O Acolhimento No Processo de Trabalho em Saúde - PASS
O Acolhimento No Processo de Trabalho em Saúde - PASS
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Resumo:
Este artigo é uma revisão bibliográfica subsidiada pelo entendimento de que no
campo do trabalho em saúde, o acolhimento se mostra como uma tecnologia
fundamental na busca pela integralidade da assistência. Por meio da escuta e do
diálogo, permite a humanização da relação profissional-usuário, a decodificação
das necessidades de saúde e, a construção de processos de vínculo e trabalho em
equipe. O artigo apresenta uma discussão sobre o processo de trabalho em saúde
no campo da micropolítica, considerando sua relação com a gerência e gestão da
política de saúde, bem como a conjuntura social, política, econômica e cultural em
que se inserem. Posteriormente apresenta-se uma reflexão sobre o cuidado e a
humanização em saúde, destacando o acolhimento como uma possibilidade para
se construir um modelo de atenção à saúde centrado no usuário, com foco na
saúde e não na doença.
Abstract:
The user embracement in the process of health work. This article is a literature
review aided by the understanding that the field of health work, the user
embracement appears as a essential technology in the quest for integrality care.
Through listening and dialogue, allows the humanization of the professional-user
relationship, the decoding of health needs, and building of bonding and teamwork.
This article presents a discussion about the process of health work in the field of
micropolitics, considering its relationship with management and management of
health policy and the social, political, economic and cultural environment in which
they operate. Then, presents a reflection on the care and humanization health,
highlighting the user embracement as an opportunity to build a model of care
health user-centric, focusing on health and not disease.
1
O conteúdo deste artigo é parte integrante da monografia apresentada ao Curso de Especialização em
Políticas e Pesquisa em Saúde Coletiva/UFJF no ano de 2011, com o título – Acolhimento na Atenção
Primária à Saúde: dispositivo disparador de mudanças na organização do processo de trabalho? - sob a
orientação da Professora Doutora Lêda Maria Leal de Oliveira.
Faculdade de Serviço Social -Universidade Federal de Juiz de Fora - [email protected]
Sabrina Alves Ribeiro Barra
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objetos inertes. Produção e consumo dos atos de saúde ocorrem no mesmo momento
nos espaços intercessores onde as tecnologias leves devem ser a dimensão-chave.
O trabalho vivo em ato permite em certa medida, o exercício da criatividade e
liberdade do trabalhador. Merhy (2002) aponta uma importante característica do
trabalho em saúde que é o autogoverno, a autonomia dos trabalhadores nas relações que
se estabelecem entre os sujeitos envolvidos no processo de trabalho. O autogoverno
representa a capacidade de o trabalhador organizar seu processo de trabalho, aplicar
suas tecnologias, definir o modo como estabelecerá suas relações com os usuários e com
os membros da equipe.
O autor considera que o processo de trabalho em saúde não ocorre de modo
idêntico ao do mundo produtivo das fábricas, uma vez que as ações em saúde são menos
normatizadas e ocorrem por meio da relação entre trabalhador e usuário,
potencializando o trabalho vivo. Por isso, para o autor o trabalho em saúde não pode ser
totalmente capturado pelo trabalho morto, pautando-se somente no uso das tecnologias
duras, pois “o jogo produção, consumo e necessidades tem uma dinâmica muito peculiar,
que faz com que esteja sempre em estruturação, dentro de um quadro
permanentemente incerto, sobre o padrão do seu produto final e o modo de satisfação
que o mesmo gera” (MERHY, 2002, p. 98). A potência instituinte do trabalho vivo em ato
permite o uso das tecnologias leves e a busca pelas “linhas de fuga” para os “ruídos” do
processo de trabalho. Isto quer dizer que o autogoverno dos trabalhadores da saúde os
permite construir estratégias paras os entraves, as dificuldades encontradas no processo
de trabalho fugindo a uma lógica normativa.
Ao mesmo tempo, a organização do processo de trabalho deve ser entendida na
sua historicidade e na articulação com a totalidade social da qual emerge e faz parte
(LIMA, 2007). De acordo com Campos (1997), não é possível definir um sujeito a partir
dele mesmo, pois os indivíduos, os agrupamentos e as classes sociais se constituem pela
rede de relações na qual estão imersos. Os trabalhadores da saúde são produtos e
produtores do sistema de relações da sociedade atual em seu contexto sócio-histórico.
Como produtos, os trabalhadores sofrem influência das políticas governamentais,
do saber estruturado em disciplinas, das leis e valores culturais de cada época. Como
produtores participam da construção de saberes, influenciam as políticas, constroem o
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Podemos dizer que o ideal de humanização das práticas de saúde tem como
premissa básica a construção de uma atenção centrada no usuário, reconhecendo este
como um cidadão que usa os serviços de saúde como um direito social. Em consequência
desse reconhecimento vêm todas as outras questões relacionadas à humanização, desde
o plano da micropolítica até a macroestrutura do sistema de saúde.
A humanização pode ser vista como uma política transversal que perpassa todos os
programas e serviços do sistema de saúde, buscando oferecer atendimento de qualidade
pela combinação entre avanços tecnológicos e bom relacionamento baseados na
comunicação como premissa básica para o cuidado em saúde (ARTIMANN; RIVERA, 2006).
Trad (2006) apresenta dois eixos da humanização: o uso das tecnologias leves,
como o acolhimento, o vínculo e a autonomia e, o reconhecimento das necessidades do
usuário, dotando-as de significados de acordo com o contexto em que elas se inserem,
considerando que a construção destas é social e historicamente determinada e que o
processo saúde/ doença tem sua gênese nas condições materiais de vida (RAMOS, 2007).
Humanização e cuidado em saúde incluem então, a compreensão e reflexão sobre
as necessidades de saúde e sobre as formas ampliadas de intervir sobre estas. Tal
compreensão de necessidades de saúde associa-se diretamente ao conceito ampliado de
saúde, em que a “situação sócio-econômica, as identidades de gênero, etnia ou de raça
condicionam o desenvolvimento das capacidades de cada pessoa” (STOTZ, 2003, p. 1).
Discutindo sobre os conceitos e representações de tais necessidades de saúde,
Cecílio (2001) aponta que estas podem ser englobadas em quatro conjuntos.
O primeiro se refere a ter boas condições de vida, no entendimento de que os
diferentes lugares ocupados pelos indivíduos no processo de produção da sociedade
capitalista resultam em diferentes modos de adoecer. Os modos/ hábitos de vida,
condições de trabalho e moradia, acesso a lazer, educação etc traduzem diferentes
necessidades de saúde.
O segundo conjunto de necessidades se refere ao acesso a serviços de saúde e às
tecnologias de saúde que podem contribuir para melhorar e prolongar a vida. O uso
dessas tecnologias, independente de sua densidade, é sempre definido pela necessidade
de cada pessoa em cada momento singular.
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que quer alcançar o cuidado em saúde. O que se destaca é a qualidade da escuta que
busca ir além das demandas explícitas, que correlaciona o contexto do usuário e fornece
a este condições de refletir sobre seu próprio modo de vida. Um dispositivo que se
destaca nessa dimensão é o acolhimento, enquanto uma tecnologia leve que propicia tal
interação (AYRES, 2006).
O diálogo permite a construção de vínculos e de confiança na relação usuário-
profissional, contribuindo para o estabelecimento de compromissos e responsabilidades.
Para Ayres (2006), a responsabilidade também assume relevância no cuidado em saúde,
desde as relações no plano da micropolítica do trabalho em saúde até o plano da gestão
dos serviços que também deve estar comprometida com a construção do cuidado.
Considerando os processos de autonomia do trabalho em saúde, tanto entre
trabalhadores quanto entre usuários, podemos entender a responsabilização como uma
corresponsabilização em que todos se comprometem e participam das práticas de saúde.
O usuário também se torna responsável pelo atendimento às suas necessidades,
mediante relações usuário-serviço.
Tais questões são fundamentais para a construção do cuidado e remetem à
importância do trabalho em equipe, pois a eficácia do trabalho em saúde depende da
composição e cooperação de diferentes saberes e técnicas que juntos deem conta de
responder às necessidades de saúde. Há uma interdependência no trabalho em saúde,
devido aos diversos fatores (biológicos, sociais, culturais etc) que interferem no processo
saúde/doença, demandando uma atuação interdisciplinar.
A ideia de equipe de saúde, de acordo com Peduzzi (2003), não se refere somente a
uma justaposição de profissionais, mas sim à integração e articulação de diferentes
processos de trabalho, considerando que cada trabalho especializado possui saberes,
instrumentos e objetivos próprios. Essa integração, por sua vez, não quer dizer eliminação
das diferenças que também são necessárias e podem contribuir para o avanço da
democratização e da ética nas relações de trabalho e no próprio trabalho produzido. A
superioridade do trabalho em equipe não exclui a necessidade de definição clara e
precisa das responsabilidades individuais diante de cada caso.
A autora aponta que a interdependência do trabalho em saúde tenciona a
necessidade de cooperação dos trabalhos e a necessidade de autonomia técnica. Ao
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Com o acolhimento, todos os usuários são acolhidos durante todo o dia, incidindo
diretamente na acessibilidade dos usuários à Unidade. O acesso também se refere ao
modo como o serviço está organizado o que pode burocratizar ou facilita-lo
(CAVALCANTE FILHO, 2009).
O acolhimento é processo dinâmico, inacabado, em construção e nunca estará
totalmente pronto. Por isso é fundamental um processo de avaliação e reorientação
permanente. Enquanto processo não se restringe ao espaço físico do setor de recepção
da Unidade, como também não é responsabilidade exclusiva de quem trabalha na
recepção. Na verdade, o acolhimento diz respeito a toda situação de atendimento a partir
do momento em que o usuário entra no sistema. Deve ser executado por todos os
trabalhadores tanto em ações individuais quanto coletivas (MATUMOTO, 1998).
Nessa compreensão, o acolhimento implica: protagonismo dos sujeitos envolvidos
no processo de trabalho; valorização e abertura para o encontro profissional de saúde,
usuário e sua rede social; reorganização do serviço de saúde a partir da problematização
dos processos de trabalho; elaboração de projeto terapêutico individual e coletivo;
mudanças estruturais na forma de gestão do serviço de saúde, ampliando os espaços
democráticos e de decisões coletivas; postura de escuta e compromisso em dar respostas
às necessidades de saúde trazidas pelo usuário que inclua sua cultura, saberes;
capacidade de avaliar riscos físicos e psíquicos; construção coletiva de propostas com a
equipe local e com a rede de serviços e gerências centrais (BRASIL, 2006).
Matumoto (1998) salienta que no processo de acolhimento é fundamental
questionar “qual é o problema” que será tomado como objeto no trabalho em saúde e
qual a forma como ele se apresenta: pode ser o motivo pelo qual o usuário procurou o
serviço de saúde, a interpretação que o profissional faz dessa necessidade do usuário ou
o “problema” eleito pela instituição a partir do qual as ações de saúde são planejadas e
organizadas.
Essa diferenciação é fundamental, pois ela revela a direção que será dada às
práticas de saúde e acolhimento que podem ser um fim em si mesmo ou, propulsores de
autonomia de usuários e trabalhadores na busca pela qualificação das ações e garantia do
direito à saúde.
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Com base nos conceitos e nas reflexões sobre acolhimento tecidas, é possível
sistematizar, de acordo com Silva Junior e Mascarenhas (2004), o acolhimento em três
dimensões: como postura, como técnica e como princípio de reorientação dos serviços.
Como postura, pressupõe a atitude da equipe de saúde de receber, escutar, tratar
humanizadamente, construindo relações de confiança, vínculo e comprometimento com
a resolução das necessidades dos usuários. O diálogo é a peça chave nessa dimensão que
implica também a relação intraequipe e entre os níveis de atenção do Sistema.
Enquanto técnica, o acolhimento instrumentaliza a geração de procedimentos e
ações organizadas que facilitam o atendimento e enriquecem a intervenção dos diversos
profissionais envolvidos na prestação da assistência. Orienta a escuta, análise,
discriminação de riscos e a busca pelas soluções dos problemas demandados. Essa
dimensão apoia-se no trabalho de uma equipe multiprofissional, superando a
fragmentação dos saberes e da organização do trabalho.
Em sua terceira dimensão, o acolhimento busca reformular o processo de trabalho,
identificando as demandas do usuário e articulando o serviço para respondê-las. Com a
organização dos serviços, o acolhimento detém um projeto institucional que deve nortear
o trabalho realizado por todos os profissionais. Essa proposta de trabalho orienta desde o
trabalho da equipe, até o perfil dos agentes envolvidos, as capacitações, supervisões e
avaliações do trabalho.
Os autores também incorporam a ideia de acessibilidade para complementar o
conceito de acolhimento. Argumentam que a acessibilidade é um conjunto de
circunstâncias que viabilizam a entrada do usuário no serviço. Representa as dificuldades
ou facilidades dessa entrada, estando ligada ao modo como a oferta de serviços está
organizada.
Para que o acolhimento se efetive em todas as suas dimensões é necessário que
seja incorporado como uma diretriz tanto pelos profissionais no plano da micropolítica do
trabalho em saúde, como, também, na construção das políticas de saúde, na implantação
dos sistemas municipais de saúde, viabilizando os diversos pontos de atenção e recursos
tecnológicos em todos os âmbitos do SUS (SOLLA, 2005).
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Referências
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MATTOS, R. A. (Org.). Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe,
participação e espaços públicos. Rio de Janeiro: CEPESC/UERJ: ABRASCO, 2005. p. 77-89.
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