Livro Identidades e Territórios - Araujo e Haesbaert

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IDENTIDADES E TERRITÓRIOS:

QUESTÕES E OLHARES CONTEMPORÂNEOS

Organizadores
Frederico Guilherme Bandeira de Araujo
Rogério Haesbaert

Autores:
Amélia Cristina Alves Bezerra
Eber Pires Marzulo
Frederico Guilherme Bandeira de Araujo
Rogério Haesbaert
Valter do Carmo Cruz

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Copyright© 2007 by - Frederico Guilherme Bandeira de Araújo
Rogério Haesbeart

CIP - Brasil. Catalogação na fonte


Sindicato Nacional do ditores de Livreos, RJ

L22
Identidades e territórios : questões e olhares contemporâneos / organizadores
Frederico Guilherme Bandeira de Araujo,
Rogério Haesbaert ; autores, Amélia Cristina Alves Bezerra... [et al.]. - Rio de Ja-
neiro : Access, 2007.
136 p.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-86575-48-8
1. Geografia política. 2. Identidade social. 3. Territorialidade humana. 4. Civilização
moderna. 5. Pós-modernismo. I. Araujo, Frederico Guilherme Bandeira de, 1948-.
II. Costa, Rogério H. da (Rogério Haesbaert da), 1958-.
07-1078 CDD: 320.12
CDU: 911.3:32
001092

Direitos da edição da obra em língua portuguesa adquiridos por


ACCESS Editora
Rua Pinheiro Guimarães nº 87 - Botagofo (RJ) - CEP 22281-080
Tel. (21) 2535-1724

Projeto gráfico e Diagramação: Fabio Oliveira


Capa: Beatriz Petrus
Foto de capa: Ronaldo Brilhante
Revisão: Célia Regina dos Santos

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SOBRE OS AUTORES

Amélia Cristina Alves Bezerra


Professora Adjunto. Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais – Univer-
sidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)
Doutora em Geografia pelo Departamento de Geografia da Universida-
de Federal Fluminense (UFF)
Integrante do Núcleo de Pesquisa sobre Globalização e Regionalização
(NUREG) da UFF

Eber Pires Marzulo


Professor Adjunto. Faculdade de Arquitetura (FAU) – Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Doutor em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ)
Integrante do Grupo de Pesquisa Modernidade e Cultura (GPMC) do
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da
UFRJ.

Frederico Guilherme Bandeira de Araujo


Professor Adjunto. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Re-
gional (IPPUR) - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ)
Coordenador do Grupo de Pesquisa Modernidade e Cultura (GPMC)
do IPPUR / UFRJ

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Rogério Haesbaert
Professor Adjunto. Departamento de Geografia da Universidade Fede-
ral Fluminense (UFF)
Doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP)
Pós-Doutorado na Open University (Inglaterra)
Coordenador do Núcleo de Pesquisa sobre Globalização e Regionaliza-
ção (NUREG) da UFF

Valter do Carmo Cruz


Professor Assistente (substituto). Faculdade de Educação – UFF.
Professor Assistente (substituto). Departamento de Geografia da Uni-
versidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Mestre em Geografia pela Universidade Federal Fluminense.
Integrante do Núcleo de Pesquisa sobre Globalização e Regionalização
(NUREG) da UFF

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SUMÁRIO

Apresentação, p. 7

Introdução, p. 9

I. “Identidade” e “Território” enquanto simulacros discursivos, p. 13

II. Identidades Territoriais: entre a multiterritorialidade e a reclusão territorial


(ou: do hibridismo cultural à essencialização das identidades), p. 33

III. Espaço dos pobres. Identidade social e territorialidade na modernidade tar-


dia, p. 57

IV. Festa e Identidade: a busca da diferença para o mercado de cidades, p. 69

V. Territorialidades, identidades e lutas sociais na Amazônia, p. 93

Referências bibliográficas, p. 123

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APRESENTAÇÃO

Esta coletânea tem sua origem na Sessão Coordenada “Identidades e


Territórios: questões e olhares contemporâneos”, realizada durante o XI En-
contro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Pla-
nejamento Urbano e Regional (ANPUR), acontecido em Salvador entre 23 e
27 de maio de 2005.
À exceção do artigo de Valter do Carmo Cruz, incorporado à coletânea
por seu diálogo com os demais artigos e por complementar, em escala distinta,
temas aí tratados, todos os outros foram apresentados nessa Sessão, que teve
como debatedora a geógrafa Maria Regina Petrus – professora do Colégio de
Aplicação (CAp) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e dou-
toranda no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR)
da mesma Universidade –, a quem os autores agradecem as precisas e valiosas
observações.

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INTRODUÇÃO

Um olhar sobre a literatura que discute temas designados como “identi-


dade” e “território”, não pode deixar de constatar a grande polissemia que esses
termos sugerem. Isto, por si só, já justificaria o destaque desses temas como
objetos de reflexão nos dias que correm. Não obstante, a relevância é ainda
maior se for considerado que essa multiplicidade semântica relaciona-se com
o fato de que os processos sociais contemporâneos têm colocado em questão
as referências espaço-temporais das configurações identitárias e territoriais da
modernidade, e que, além disso, posturas epistemológicas divergentes, consti-
tuídas pela ruptura entre si, têm especificado de modo radicalmente distinto o
próprio caráter conceitual desses dois termos.
Esse quadro se esboça a partir do aprofundamento dos princípios do
mundo moderno, quais sejam, a cisão da esfera cultural em domínios autô-
nomos – os domínios ético-político, estético e da ciência - e a ideologia laica
imbricada ao princípio filosófico da liberdade da subjetividade. Nos últimos
quarenta anos, tanto a fragmentação da cultura quanto o individualismo exa-
cerbaram-se de tal maneira que terminaram por produzir, entre outras, uma
crise no próprio campo da legitimação dos saberes em si.
Se, então, na atualidade, a estrutura de construção identitária muda
pela explosão da autonomia das esferas culturais, as idéias de Estado-Nação (e,
concomitantemente, de território nacional), de classe e de indivíduo, matrizes
identitárias do mundo moderno, se redefinem ou perdem parte dos papéis que
antes exerciam.
A idéia de Estado-Nação é posta em questão, por um lado, em conseqü-
ência da perda do poder de gestão interna e de representação externa dos Esta-
dos, com o traspassamento de suas fronteiras territoriais pelos fluxos econômi-

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cos e informacionais; e, por outro, pela reconstrução de tradições étnicas, numa
lógica que opera sob a tensão da afirmação da diferença e da homogeneização,
mas que, mesmo por vezes apropriada como estratégia de resistência, em suas
formas mais evidentes, não escapa ao interesse da valorização mercadológica
no jogo do singular e do universal. Juntamente com essa problematização da
idéia de Estado-Nação, entra também em debate uma determinada concepção
de território, moldada pela continuidade e pela fixidez, e por relações definidas
e estáveis com grupos identitários ou instâncias de poder.
A idéia de classe socioeconômica, por sua vez, vê-se questionada como
conseqüência das transformações na esfera das modalidades tecnológicas e or-
ganizacionais do produzir e a paralela ascensão de uma ideologia que privilegia
o indivíduo em detrimento de suas formas coletivas do existir, desqualificando,
assim, a instância política, ou que, ao retomar essas formas coletivas, o faz em
nome da intensificação de vínculos étnicos ou religiosos.
O indivíduo privilegiado, todavia, já não é mais aquele tornado sujeito
consciente de si enquanto constituinte de uma totalidade-mundo, através da
liberação das amarras ideológicas da tradição pelo exercício da subjetividade;
ele o é agora, pela extremada exacerbação descentrada da liberdade da subjeti-
vidade, um ser apenas consciente de si para si, frente a uma coleção de outros
“si mesmo”.
A aludida polissemia em relação aos termos “identidade” e “território”
configura-se no contexto de toda essa situação.
As questões refletidas nos artigos que compõem a coletânea, todas re-
metendo ao ambiente do quadro delineado, dizem respeito mais diretamente a
dois grandes eixos: o da análise crítica de conceitos e teorias sobre identidade,
território e sua relações, especialmente através do eixo modernidade / “pós-
modernidade”; e o da análise crítica de práticas de construção identitária e de
territorialização-desterritorialização-reterritorialização em diferentes escalas,
da segregação intra-urbana à cidade e à região.
O artigo de abertura da coletânea, “Identidade’ e ‘Território’ enquanto
simulacros discursivos”, de Frederico Guilherme Bandeira de Araujo, tem pro-
pósito essencialmente epistemológico, e, como campo problemático, o campo
das construções identitárias e suas relações com o espaço. O escopo maior é ob-
jetivar posturas, critérios e formulações específicas sobre o que é designado pelo
senso comum das ciências sociais como “identidade” e “território”, tendo como
. “Territorialização-desterritorialização-reterritorialização” corresponde à conceituação de um pro-
cesso desenvolvida na Geografia por Claude Raffestin (Cf. ����������������������������������������
“Repères pour une théorie de la territo-
rialité humaine”, in Dupuy, Gabriel (Org.) Réseaux Territoriaux. Caen, Paradigme : 1988), e que conta
com uma espécie de paradigma na filosofia de Gilles Deleuze e Felix Guattari (inicialmente desdo-
brado em sua obra O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro, Imago, 1976; e depois
aprofundada em Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. 5 vol. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1995-1997).

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campo teórico de referência aquele que se desdobra tendo por base o que é
conhecido na história do pensamento como “virada lingüística”. De modo mais
específico, o trabalho assume por foco problematizador a idéia de simulacro, à
maneira suscitada por Nietzsche e Deleuze, e toma por referencial analítico
fundamentos presentes no dialogismo bakhtiniano, conjunto que constitui a
base a partir da qual o autor afirma “identidade” e “território”, não como con-
ceitos, mas enquanto simulacros discursivos.
As reflexões desenvolvidas nesse primeiro trabalho, pela ênfase no ca-
ráter discursivo dos processos identitários e de territorialização, diferenciam-se
daquelas presentes nos demais artigos aqui expostos, seja o de Rogério Ha-
esbaert, em que é apresentada a proposta teórica de uma leitura múltipla da
construção identitária a partir de cada contexto geo-histórico em que ela se
desdobra, sejam os três seguintes, marcados em comum pelo propósito analítico
de situações ou questões identitário-territoriais concretas e pela preocupação 
com seus efeitos políticos e estratégicos.
O trabalho de Haesbaert, intitulado “Identidades territoriais: entre a
multiterritorialidade e a reclusão territorial (ou: do hibridismo cultural à es-
sencialização das identidades)”, toma por consideração de partida que a mobi-
lidade crescente e a complexidade das relações espaço-tempo contemporâneas
levam à constituição de territorialidades também móveis e de caráter múltiplo,
o que ocasionaria uma mutação nas formas da relação entre território e iden-
tidade que se objetiva em verdadeiro hibridismo identitário e na intensificação
do fenômeno das identidades multiterritoriais. Essa condição "multiterritorial"
e culturalmente mais híbrida, entretanto, convive com dinâmicas territoriais
que promovem também a reclusão territorial e, muitas vezes de forma asso-
ciada, a essencialização de identidades. É a existência dessa multiplicidade de
situações e o seu convívio paradoxal que permite, ao autor, afirmar que não
existe hoje uma forma geral de identificação territorial, e que é fundamental a
contextualização histórico-geográfica de cada movimento de construção iden-
titário-territorial.
A questão: o espaço segregado dos pobres na modernidade tardia tem
um efeito identitário? é mote ao artigo de Eber Pires Marzulo, “Espaço dos
pobres. Identidade social e territorialidade na modernidade tardia”. Através da
questão apontada, o trabalho insere-se no debate sobre a associação entre ter-
ritório e identidade no contexto contemporâneo, marcado pelo esfacelamen-
to das matrizes identitárias modernas. Dentro desse contexto a reflexão busca
desvendar dinâmicas identitário-territoriais no interior da metrópole ocidental.
Em particular, aborda a constituição de uma hipotética identidade social con-
sagrada ao nível da representação social na metrópole brasileira: o favelado.
Desde investigações sobre a literatura e estudos em uma típica favela da zona
sul carioca e em uma cité parisiense, a questão identitária é tratada ligada ao

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processo de segregação espacial que atinge o espaço dos pobres nas metrópoles
ocidentais. O sentido da investigação é averiguar se o processo de segregação
espacial dos pobres nas metrópoles ocidentais apresenta dinâmicas similares
e constituidoras de níveis identitários, desde a investigação empírica em duas
metrópoles – Rio de Janeiro e Paris – absolutamente simbólicas das diferenças
encontradas na moderna sociedade ocidental.
A escala da cidade, ainda que não metropolitana, é também o domínio
reflexivo presente ao artigo “Festa e Identidade: a busca da diferença para o
mercado de cidades”, de Amélia Cristina Alves Bezerra. Todavia, a similaridade
aí se esgota, posto que agora o tema é o da construção de identidade relaciona-
da à cidade como um todo, a partir de eventos culturais tradicionais. As festas
populares são tomadas como veículos de produção de identidades das cida-
des e da (re)organização do espaço urbano, sendo adotadas como estratégias
por administradores e planejadores na contemporaneidade histórica em que a
cultura adquire valor de mercado. Assim, políticas de revitalização de centros
históricos, construção de arremedos de paisagens regionais e a organização de
festas, buscam afirmar diferenças entre cidades, valorizando singularidades lo-
cais, que, não raramente, são colocadas como valor de troca no “mercado de
cidades”. Esse processo vem sendo vivenciado pela cidade de Mossoró (RN),
local de referência empírica às reflexões do trabalho. Aí, através das festas-es-
petáculo, ideários de liberdade e coragem têm sido celebrados, (re)significando
e (re)afirmando a identidade local.
O derradeiro artigo da coletânea leva a problemática identitário terri-
torial ao âmbito regional. Valter do Carmo Cruz, em “Territorialidades, identi-
dades e lutas sociais na Amazônia”, toma por referência histórica o processo de
modernização conservadora por que vem passando a Amazônia desde os anos
60 do século passado, e a emergência, a partir do final dos anos 80, de movi-
mentos sociais contestadores dessa marcha. O artigo, em primeiro plano, anali-
sa os processos e as condições da emergência de “novas” identidades territoriais
construídas pelas populações “tradicionais” nas lutas pela afirmação material e
simbólica dos seus modos de vida, identidades estas que historicamente foram
marginalizadas, suprimidas, silenciadas, e que agora começam a tornar visível o
que era invisível, tornar presente o que estava ausente e, desse modo, iluminam
a r-existência e o protagonismo dessas populações na construção da história e
da geografia da região.

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capítulo I

“IDENTIDADE” E “TERRITÓRIO”
ENQUANTO SIMULACROS DISCURSIVOS

Introdução
Uma questão de identidade entre os Homens, seja ela qual for, con-
cernente ao indivíduo em si mesmo ou a seus vínculos com outros indivíduos,
enquanto propriamente um problema a ser enfrentado, é algo que só adquire
significado no mundo moderno. Isto por que, na tradição antecedente a suposta
determinação da ordem transcendente sobre o mundo desfaz a base a qualquer
problematização do gênero, por esgotar imediatamente a mínima suspeição de
controvérsia sobre o estabelecido através de explicação fundada na idéia de
afirmação da vontade divina.
A modernidade nascente, laica em seu modo de pensar o mundo, dá
origem à constituição problemática de três identidades básicas que assumem o
papel de matrizes ao domínio geral dos processos identitários: as de indivíduo,
classe e nação. Não obstante esse desenho originário, na contemporaneidade
essas matrizes encontram-se em crise, por um lado, pela exacerbação do próprio
princípio filosófico regente do mundo moderno – o princípio da liberdade da
subjetividade, nos termos de Hegel; por outro, por esgotamento ou desvio em
relação a fundamentos que, apoiados naquele princípio regente, constituem
um leito regulador à modernidade – os fundamentos ético-políticos emanados
do Iluminismo.
 O desenvolvimento deste trabalho contou com a colaboração essencial dos participantes do
Grupo de Pesquisa Modernidade e Cultura (GPMC), do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no período 2004-2005. Em
particular, quero destacar e agradecer as contribuições das doutorandas Denise Teixeira Nogueira e
Maria Regina Petrus, do mestrando André Dumans Guedes, e dos estagiários de iniciação científica
Luciano da Silva Barboza e Ricardo Oliveira Barros Filho. Não obstante, como de praxe, a responsa-
bilidade pelas afirmativas aqui contidas é inteiramente minha.
. “Matriz” entendida como campo de significação.
. Cf. HABERMAS, 1992.
. HABERMAS, 1992, considera que esses fundamentos constituem o “projeto” da modernidade.

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Na modernidade originária o princípio regente possibilita subjetivação
constitutiva daquilo que se pode designar como “indivíduos-sujeitos”, posto
que indivíduos com capacidade de consciência crítica ao vigente, de imagi-
nação utópica e de desdobramento dessas faculdades em ação. Em termos de
identidades relacionais, como apontado acima, a emergência desses indivíduos-
sujeitos traduz-se tanto na constituição, no âmbito das relações de produção,
de classes “para si”, quanto na constituição de configurações societárias que
fusionam vínculos de caráter étnico relacionados a espaço geográfico e a um
tipo de arranjo político, o que ficou conhecido como Estado-Nacional.
No contexto social hegemônico contemporâneo, a subjetivação ex-
tremada conotada por valores do mercado, sem dúvida propiciada por ne-
cessidades de transformação das relações de produção vigentes, tem levado à
constituição de “indivíduos-indivíduos” e ao enfraquecimento ou à ruptura de
vínculos identitários antes fundamentais, sejam os concernentes à classe, sejam
os que sustentam o Estado-Nação. Não obstante, talvez como reação a esse
quadro, é evidente a emergência de fortes fundamentalismos nacionalistas, de
cunho religioso ou não, associados a uma referência territorial definida, além
do surgimento de agrupamentos identitários que escapam ao domínio imediato
da relação Capital / Trabalho e da esfera da nação: os relativos ao gênero, à
opção sexual, ao biótipo, etc.
Esse contexto conflituoso, que tem gerado desde as mais sutis formas de
discriminação até segregações explícitas e inenarráveis atrocidades individuais
e coletivas, faz da temática das identidades, dos territórios e das relações en-
tre esses dois âmbitos classificatórios um tema relevante ao mundo atual, isso,
tanto no campo que diz respeito à busca da elucidação de processos históricos,
como no que envolve a reflexão crítica sobre a base epistemológica necessária
à própria possibilidade do dizer sobre esses processos. O trabalho que se segue
percorre essa última via.

Para pensar identidade, território e suas relações


Um olhar preocupado com o rigor teórico, mas atrelado a determinado
tipo de compreensão epistemológica moderna, larga, profunda e praticamente
contestado, todavia, mesmo assim ainda preponderante, poderia afirmar em
sentido definitivo, com intento de encerrar o assunto, apoiado em toda uma
pragmática de construções teoréticas que, tanto o termo “identidade”, quanto
“território”, são conceitos.
Não obstante essa presumível afirmação supostamente peremptória, o
termo conceito, no presente, expressando herança perene ao longo de toda a
. Nos termos de MARX, 1978.

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história do pensamento ocidental, é marcado pela polissemia instaurada des-
de sua originária proximidade com a idéia grega de lógos, em si portadora de
significados múltiplos. Essa herança, não obstante, pode ser precisada em seu
fundamento maior quando referida à epistemologia platônica, em que lógos não
é propriamente conceito, mas sim o “intermediario inteligible en la formación
del mundo”. Nessa epistemologia, então, conceito, enquanto noesis, ou seja,
como o correlato epistêmico da Idéia, é suposto um universal capaz de operar
como base intelectiva ao cosmo, e às coisas em particular, na medida em que é
considerado a tradução, absolutamente fiel e plena, do que consiste a origem
formal da totalidade mundo, a Idéia. Aqui transparece de modo ineludível a
duplicidade essencialmente distintiva, ainda que cúmplice, entre o conceito e
o conceituado. O pensamento aristotélico, descendente crítico da Teoria das
Idéias, reescreve o universal noético platônico enquanto aquilo que corres-
ponde à “essência” das coisas. Essa perspectiva, na origem da modernidade,
reafirma-se enfatizando sua proximidade com a idéia de lógos enquanto reali-
dade inteligível10 e desdobrando-se em concepções racionalistas e empiristas.
Às primeiras, correspondem interpretações de caráter epistemológico, como
em Descartes e Leibniz. Nas vertentes empiristas é discernível uma propensão
nominalista, como em Locke. Seja como for, o questionamento do fundamento
originário das visões da tradição ocidental, a noção platônica de conceito en-
quanto universal noético, distinto e distinguível daquilo que denota, aparece já
em Kant e em Hegel com o propósito de romper com a dicotomia epistemoló-
gica essência / aparência11.

. Já em Heráclito (séculos VI / V aC), lógos aparece como a “razón universal que domina el mundo
y que hace posible un orden, una justicia y un destino”, sendo que, correlativamente, o saber “con-
siste principalmente en conocer esta razón universal que todo lo penetra y en aceptar sus justas
decisiones” (MORA, 1994, p. 2203). Ao longo da cultura grega, pré e pós-socrática, todavia, a idéia
se traduziu não só como razão, mas também enquanto palavra, expressão, pensamento, discurso,
fala, verbo, inteligência, e, inclusive, diretamente como conceito. Na síntese de François Châtelet,
lógos tem três acepções polares: inicialmente é palavra com sentido, ou seja, aquela que, distinta-
mente de um som qualquer (phonê), quando enunciada, “suscita uma reação, uma representação,
uma adesão ou uma recusa”; posteriormente, o entendimento expande-se para conjunto, dotado
de sentido, formado por palavras em si portadoras de sentido; finalmente, adquire o significado
daquilo que “em nós, permite-nos ligar diversas frases com sentido para fazer uma demonstração
de conjunto com sentido” (CHÂTELET, 1994, p. 25).
. MORA, 1994, p. 2203.
. Conforme expresso na República (PLATÃO, 1997).
. “... se o universal existe apenas no espírito humano, sob a forma de conceito, ele não é criação
subjetiva: estaria fundamentado na estrutura mesma dos objetos que o sujeito conhece a partir da
sensação. Os conceitos reproduziriam não as formas ou idéias transcendentes ao mundo físico,
mas sim a estrutura inerente aos próprios objetos ...” (PESSANHA,
����������������������������
1991, p. XVIII).
10. “Cuando en la época moderna se ha acentuado el sentido de ‘logos’ como <realidad inteligi-
ble>, se ha suscitado sobre todo el problema _a la vez metafísico y gnoseológico_ del modo de
relación entre esta <realidad> y <lo dado>.” (MORA, 1994, p. 2204).
11. Em Kant, através da operação dos a priori como fundamentos ao entendimento; em Hegel,
através da suposição do mundo enquanto objetivação do Espírito.

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Entretanto, como aludido, as visões preponderantes no presente não
deixam de remeterem-se, mesmo que em última instância, aos fundamentos
dualistas de origem platônica. Conceitos, assim sendo, diriam respeito a um
objeto no mundo, não se confundindo com este, mas constituindo seu correlato
substituto noético. Objeto este que, por sua vez, pode ser de qualquer ordem:
real, ideal, metafísico, axiológico. Apesar disso, e no que aqui interessa destacar,
esse tipo de visão supõe uma externalidade entre aquilo que o enunciado de-
signa no mundo – o objeto – e aquilo que “diz” deste objeto – o conceito. Visão
que constituiria, por conseguinte, uma teoria da representação: o domínio dos
conceitos, dos signos, “representa”, como realidade inteligível, no âmbito refle-
xivo, o domínio dos objetos que, em si, independem dessa representação. Cabe
chamar atenção de que isso também implica na separação epistemológica, em
termos de autonomia constitutiva, entre sujeito e objeto do conhecimento.
Esse modo de compreensão, de lógica irretocável, não obstante o perene
questionamento, só é contestado em suas raízes estruturantes por Nietzsche e
– com feição própria, todavia embebida pela instigação desse filósofo – pela
larga vertente constituída posteriormente a partir da emergência do que ficou
conhecido como “virada lingüística”, uma modalidade filosófica que, sem negar
a existência do mundo enquanto positividade independente e autônoma ao
pensamento, toma essa consideração como um dogma de princípio que fica em
suspenso à reflexão epistemológica. O radical pensamento do “último” Witt-
genstein12, fundamento radical emblemático dessa vertente13, remete, requali-
ficando, a problemática conceitual a um outro domínio. Não mais ao das teorias
da representação, mas ao que se poderia designar como o campo das “teorias
sígnicas”, que corresponderiam ao domínio dos “processos de signicação” 14.
O princípio norteador dessas visões é o de que, em termos epistemológi-
cos, a existência do mundo só se objetiva enquanto constituída no pensamen-
to que, aqui, confunde-se com linguagem. A externalidade entre os âmbitos
do objeto e do conceito, suposto essencial das teorias da representação, fica
descaracterizada. A linguagem apropria-se / diz do mundo (em qualquer de
suas dimensões: material, ideológico e axiológico) instituindo, de modo ne-
cessariamente associado, ambos enquanto inteligíveis, designações e atributos
que podem ser considerados como constituintes de um signo. De modo mais

12. A referência diz respeito à obra de Wittgenstein “Investigações Filosóficas”, publicada origina-
riamente em 1953, após sua morte.
13. Nos parece adequado afirmar aqui que uma série de outros pensadores operou, desde antes da
publicação do Investigações Filosóficas em 1953, propositadamente ou não, trazendo maiores ou
menores contribuições, no campo crítico à fundamentação platônica a partir de enfoques centrados
na linguagem. Destacaríamos nesse campo, durante o século XX, Ferdinand de Saussure, Ernst
Cassirer e o próprio Wittgenstein do Tratado Lógico Filosófico.
14. Ambas as expressões aspeadas referem-se a “signo”, entendido aqui de modo mais largo do
que em Saussure, enquanto um tropo que diz respeito, ao mesmo tempo, a objeto, a significante, a
significado e a sentido, como esclarecido a seguir.

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preciso cabe dizer, inspirado em perspectiva bakhtiniana15, que o signo assim
concebido constitui-se de quatro domínios imbricados e inseparáveis, confor-
mando totalidade: o dos objetos “apontados” no mundo; o dos significantes
– correspondente aos trópos16 que denotam os objetos e, ao mesmo tempo, os
conotam como algo em si; o dos significados – que diz respeito aos trópos que,
por sua vez, conotam ou atribuem significação aos significantes em contexto
discursivo fechado (campo intradiscursivo), o que corresponde à sobre-cono-
tação do objeto; e o dos sentidos – o que concerne à conotação de significantes
e seus respectivos significados enquanto assentados relacionalmente no mundo
(campo extradiscursivo), o que, portanto, corresponde a uma hiperconotação
dos objetos17.
Convém destacar, ao inverso do que apregoa a crítica mais simplista,
todavia freqüentemente preponderante, que a diferença das teorias sígnicas
com o tradicional idealismo, domínio do relativismo absoluto, é sólida, ainda
que sutil. A instituição de objetos, significantes, significados e sentidos não é
obra de uma mente / linguagem fora do domínio prático, em que importam so-
mente estruturas e lógicas relacionais, regras semânticas e sintáticas. A ênfase
na linguagem empreendida por essa vertente constitui-se de tal maneira que
tem por implicação a consideração de que o próprio caráter do vínculo social é
lingüístico, ou, na forma desdobrada mais precisa de algumas compreensões, é
discursivo. Assim sendo, a objetividade dos signos, ou seja, do quádruplo objeto
/ significante / significado / sentido, é constituída no campo das relações inter-
discursivas, das relações sociais portanto, o que traz à problemática, de modo
imediato e direto, questões de ordem política, ética, estética e gnosiológica,
além de apontar ao caráter espaço-temporalmente situado dos signos.
15. A “inspiração” tem por base mais direta a construção bakhtiniana referente ao que denomina
“compreensão”, que pode ser vislumbrada no seguinte excerto: “Comprensión. Desmembración
del proceso de la comprensión en actos aislados. En el proceso real y concreto de la comprensión,
estos actos están indisolublemente unidos, pero cada acto tiene una independencia ideal de sentido
(de contenido) y puede aislarse del acto empírico concreto. 1] Percepción psicofisiológica del signo
físico (palavra, color, forma espacial). 2] Su reconocimiento (como algo conocido o desconocido).
Comprensión de su significado repetible (general) en la lengua. 3] Comprensión de su significado
en un contexto dado (próximo o más alejado). 4] Comprensión dialógica activa (discusión-consenti-
miento). Inclusión en el contexto dialógico. Momento valorativo en la comprensión y el grado de su
profundidad y universalidad.” (BAJTÍN, 1992, p. 381).
16. Designo, em sentido geral, signo e seus quatro elementos constitutivos enquanto trópos, para
frisar com acuidade, metaforicamente, o substrato aí presente de argumento que expressa a impos-
sibilidade de atingir a verdade.
17. Assumidos aqui ao modo considerado por Bakhtin: “significante” como expressão de ato com-
preensivo concernente à estrutura da língua (“definição de dicionário”); “significado” como expres-
são de ato compreensivo limitado ao dialogismo interno do texto; “sentido” como expressão de ato
compreensivo, inexoravelmente associado aos anteriores, que toma por referência o dialogismo ex-
terno ao texto (contexto extratextual). Cf. “Hacia una metodología de las ciencias humanas”, Bajtín,
2002. Convém apontar que Bakhtin considera os dialogismos interno e externo como de naturezas
distintas. O primeiro, enquanto constituído da oposição mecânicas entre vozes estabelecida em
um contexto dado; o dialogismo externo enquanto constituído por oposições ativas marcadas por
diferenciais axiológicos. Cf. “O discurso no romance”, BAKHTIN, 1988.

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Entendida dessa maneira, a problemática representacional dos concei-
tos se metamorfoseia18 enquanto problemática lingüística19 da natureza e rela-
ção entre objeto, significante, significado e sentido. Mais diretamente, pode-se
afirmar que essa problemática então se constitui triplamente pela conjunção
das questões: da relação do significante com o mundo suposto existente (ques-
tões da denotação e da conotação do objeto), da relação entre significante e
o significado (questão da sobre-conotação), e da relação entre significante e
significado e o sentido (questão da hiperconotação)20.
Essas questões, não obstante sua distinção, podem ser abordadas a par-
tir do que Nietszche propugnou enquanto “reversão do platonismo”, ou seja,
a partir da crítica que faz às teorias platônicas das Idéias e da mímesis21 como
concepções fundadoras do pensamento moderno, essencialmente represen-
tacional, como abordado anteriormente. Para o filósofo, de modo específico,
essas teorias visam distinguir o verdadeiro do falso, não no escopo, o que se
poderia supor a uma primeira aproximação, da distinção entre “o que é” (Idéia)
e sua configuração no pensamento, mas no intento de distinguir e qualificar
duas modalidades de imagens: aquela que é julgada positivamente, a cópia, por
princípio legítima postulante a representante absoluta da Idéia, candidata a
noesis, portanto, por sua assumida pretensão de semelhança; e aquela avaliada
negativamente, o simulacro, na medida em que é construído a partir de uma
não-similitude. Essa não pretensão à Idéia significa que o simulacro inclui em
si, não só a própria diferença – ou melhor, aquilo a que Jacques Derrida desig-
na como différance22– mas também aquilo que é o elemento diferenciador, ou
seja, o sujeito do saber. Isso, entretanto, não corresponde à consideração de
um ponto de vista singular no processo de atribuição de nome, significado e
sentido a uma suposta mesma coisa. A dessemelhança permitida pelo sujeito é
construída através da formulação também daquilo a que é atribuída a posição
epistemológica de objeto. Ela contém a virtualidade da suposição de valores e
a intenção da produção de um efeito de ordem prática (ideológico ou material)
por intermédio da criação de um sentido.

18. Rigorosamente não cabendo mais sua designação como “problemática dos conceitos”.
19. Lingüística porque, nessa ótica, se reconfigura a problemática da relação com o mundo, agora
especificada enquanto relação de denotação, intrínseca ao signo, do significante com o objeto sen-
sível. Este, em si, também não é entendido como algo extra-lingüístico, na medida em que, por um
lado não pode ser considerado fora da trama sígnica, por outro, porque a própria percepção não
escapa às marcas do pensamento / linguagem.
20. Observe-se o caráter mais fluido do sentido (dado pela hiper-conotação constituída no campo
da inter-discursividade externa ao enunciado), em relação ao caráter mais rígido do significante e
do significado.
21. O que segue sobre a “reversão do platonismo” tem por referência o texto deleuziano “Platão e o
simulacro” (Apêndice I-1, DELEUZE, 1974).
22. O termo différance, como explicitado por Derrida, implica na consideração conjunta, como pos-
sibilidade, dos sentidos implícitos do verbo diferir (presentes tanto no francês quanto no portu-
guês): diferenciar (espacializar) e retardar (temporalizar). Cf. DERRIDA, 1968, 1995, 2004.

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Deleuze assim esclarece o assunto:
“Consideremos as duas fórmulas: ‘só o que se parece difere’, ‘somente as
diferenças se parecem’. Trata-se de duas leituras do mundo, na medida
em que uma nos convida a pensar a diferença a partir de uma similitu-
de ou de uma identidade preliminar, enquanto a outra nos convida ao
contrário a pensar a similitude e mesmo a identidade como o produto de
uma disparidade de fundo. A primeira define exatamente o mundo das
cópias ou das representações; coloca o mundo como ícone. A segunda,
contra a primeira, define o mundo dos simulacros (...) O simulacro não
é uma cópia degradada, ele encerra uma potência positiva que nega
tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução”. 23
Retomando a problematização que levou à discussão desenvolvida aci-
ma, e tomando-a como referência, pode-se agora considerar que a denotação,
a conotação, a sobreconotação e a hiperconotação constitutivas do signo se
especificam enquanto simulacros, não remetem portanto a nenhum absoluto,
em si são portadoras de valores e, por si propugnam um efeito. O signo, assim
concebido, é um simulacro discursivo. A questão da legitimidade desses cons-
tructos situa-se no domínio das tramas sociais cuja tessitura é discursiva.
A argumentação desenvolvida no que se segue toma os constructos
identidade e território dessa maneira, ou seja, não enquanto conceitos repre-
sentacionais, mas enquanto signos, simulacros discursivos, na medida em que
se entende que essa positivação epistemológica – nem essencialista, nem idea-
lista – coloca em destaque o papel do sujeito no campo do embate das formula-
ções sobre o mundo, o que permite a explicitação e releva o caráter axiológico e
político desse embate, feito que consideramos fértil à fundamentação das ações
transformadoras no mundo da vida.

Sobre identidade
No pensamento moderno, em uma semântica desencarnada, conceitu-
al, taxonomia, enquanto estruturação de sistemas de signos, diz respeito ao
agrupamento daquilo que é igual – ou melhor, daquilo que é reconhecido como
comum na multiplicidade e em meio à mudança – e à correlata separação des-
tes frente a seus diferentes. A positividade da igualdade suposta é dada pelo
fundamento lógico da não contradição24.
Essa suposição implica de modo imediato em três tipos de problemas
epistemológicos que se articulam: o da individuação, o da similitude e o da
23. DELEUZE, 1974, p. 267. Grifado no original.
24. A é A e não pode ser não-A ao mesmo tempo, sob todos os mesmos aspectos. Cf. LEIBNIZ,
1996, Cap. I.

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permanência. O princípio de similitude exige previamente a individualização
dos objetos, para que, enquanto unos singulares, indivisíveis e duráveis, possam
ser racionalmente comparados com outros e classificados em coletivos estáveis
compostos por iguais.
As assunções modernas sobre o tema são marcadas emblematicamente
pela seguinte contradição configurada entre determinadas concepções de Leib-
niz (1646-1716) e Kant (1724-1804). O “princípio da identidade dos indiscer-
níveis”, formulado pelo primeiro25, afirma “não ser verdade duas substâncias
assemelharem-se completamente e diferirem apenas solo-numero”,26 o que é
justificado pelo suposto fundamento operatório da razão suficiente27. Assumido
com rigor, esse princípio, que retoma concepção substancialista de origem aris-
totélica,28 implicaria na impossibilidade de igualdades de caráter ontológico.
Kant condena essa concepção leibniziana. Em sua forma mais desenvol-
vida essa condenação aparece na Crítica da Razão Pura29, onde é posto que30
“identidade e diferença” são conceitos reflexivos que servem para orientar
o juízo, designando, portanto, características da intuição e não "coisas em si
mesmas". De forma direta31, Kant sustenta que Leibniz, tendo em conta esses
termos como designantes de características ontológicas das coisas, e não como
produtos da reflexão sobre os processos de como as aparências são organizadas
em termos de espaço, tempo e das categorias de quantidade, de qualidade, de

25. Cf. “Quarta Carta de Leibniz ou reposta à terceira réplica de Clarke”, LEIBNIZ, 1974a; LEIBNIZ,
1974b; e Cap. XXVII, Livro Segundo, LEIBNIZ, 1996.
26. LEIBNIZ, 1974c, p. 83.
27. Não haveria razão suficiente para a existência na natureza de dois seres que sejam indiscerní-
veis, posto que isto implicaria em que Deus e a Natureza estariam trabalhando sem razão por trata-
rem o um de modo distinto que o outro. Cf. “Quarta carta de Leibniz ...”, in LEIBNIZ, 1974a.
28. “Aristóteles diz: ‘Em sentido essencial, as coisas são idênticas do mesmo modo que são uni-
dade, já que são idênticas quando é uma só a sua matéria (em espécie ou em número) ou quando
sua substância é uma. É, portanto, evidente que a identidade de qualquer modo é uma unidade,
seja porque a unidade de refira a uma única coisa, considerada como duas, como acontece quando
se diz que a coisa é idêntica a si mesma’ (Met. V; 9; 1018 a, 7). Em outros termos, como diz ainda
Aristóteles, as coisas só são idênticas ‘se é idêntica a definição de suas substâncias’ (Ibid. X; 3; 1054
a, 34). A unidade da substância, portanto, da definição que a expressa é, sob este ponto de vista,
o significado da identidade. Deste mesmo ponto de vista, pode ser, como o nota Aristóteles, uma
identidade acidental como quando dois atributos acidentais, ‘branco’ e ‘músico’, por exemplo, se re-
ferem à mesma coisa, suponhamos; porém, esta identidade acidental não significa de modo algum
que o homem, em geral, seja branco ou músico (Ibid. V; 9; 1017 b, 27). Este conceito de identidade
como unidade da substância ou, (o que é o mesmo) como definição da substância, conservou-se e
ainda aparece em muitas doutrinas. Hegel o fez seu, definindo a essência como ‘identidade consigo
mesma’, e, conseqüentemente, a identidade como coincidência ou unidade da essência consigo
mesma (Enc. §§ 115 - 116). Tal conceito de identidade é, pois, análogo e correspondente à interpre-
tação do ser predicativo como inerência e da essência como essência necessária” (ABBAGNANO,
1970, p. 503).
29. KANT, 1994.
30. Cf. KANT, 1994: B316 / A261 até B320 / A264.
31. Cf. idem A281 / B337.

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modalidade e de relação32, foi levado a confundi-las com entidades sensíveis
ou reais. E isso é o que teria possibilitado as equivocadas asserções do princípio
dos indiscerníveis. Para Kant, portanto, é possível considerar o mundo através
da classificação de iguais discerníveis que, entretanto, não são mais do que
entidades reflexivas.
A problemática taxonômica moderna é marcada, como já enunciado,
pelo duplo traço oriundo dessas visões, que pode ser explicitado sinteticamente
do seguinte modo: rigorosamente não há igualdade ontológica de objetos dis-
cerníveis no mundo; é possível a atribuição de igualdades reflexivas a objetos
do mundo positivados (reflexivamente) como existências duráveis distintas.
Mas é marcada também, numa apropriação que se pode considerar mais prag-
mática e que, de certo modo, intermedia as visões contrapostas, por por outra
consideração leibniziana, que estabelece a substitubilidade como critério à con-
sideração das identidades entre o que é discernível: duas coisas podem ser ditas
rigorosamente idênticas quando uma pode substituir a outra sem prejuízo do
existente, seja em conteúdo, seja em termos de permanência33.
No domínio social a questão taxonômica acima delineada se bifurca:
por um lado, é, do mesmo modo, uma questão stricto sensu classificatória, quan-
do tem por referência o Homem tomado através de características objetais; em
outro, requalifica a problemática quando tem por referência o Homem como
ser finito, reflexivo, sígnico, axiológico, discursivo, capaz de se constituir como
sujeito de ação. Esse viés, na visão aqui elaborada, redefinindo de modo próprio
a problemática taxonômica, constitui propriamente a problemática identitária
de caráter relacional.
Enquanto questão puramente classificatória o problema não traz novi-
dades formais de compreensão em relação ao que foi abordado acima. Homens,
tratados como objetos não reflexivos, podem ser classificados de infinitas ma-
neiras, todas elas a partir de fundamentos lógicos consistentes, sejam eles de
significado ontológico, ou de mera aparência, ou ainda de caráter reflexivo.
Na vertente propriamente identitária, no entanto, a questão implica em
outro tipo de complexidade. Apesar disso, as abordagens modernas hegemôni-
cas – o que exclui as de caráter convencionalista – do mesmo modo que o senso
comum, “desfazem” essa complexidade por intermédio de uma operação epis-
temológica de evidentes implicações sociais, éticas e políticas: elas abolutizam
no Homem o que lhe é reflexivo e, através desse artifício, mesmo aquilo que
explicitam como reflexivo não escapa a um sentido objetal, posto que determi-
32. Que, juntamente com tempo e espaço, são as categorias consideradas a priori à reflexão por Kant.
33. “Idênticas ... são as coisas que se podem substituir uma pela outra salva veritate. Se A entra
numa proposição verdadeira e substituindo nesta B por A a nova proposição continua sendo verda-
deira, e o mesmo acontece em qualquer outra proposição, A e B se denominam indênticas; e reci-
procamente se A e B são idênticas, a substituição a que nos referimos pode acontecer” (LEIBNIZ,
Specimen Demonstrandi, Op., apud ABBAGNANO, 1970, p. 503).

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nado por relações objetais, como se estas fossem, ao domínio sígnico, algo dado
e determinante. Constituídas dessa maneira, essas modalidades do pensar não
constituiriam mais do que falsas problemáticas identitárias, na medida em que
estas não deixaram de tratar exclusivamente de problemas lógicos de taxono-
mia. Para exemplificar, nessa perspectiva podemos considerar o Materialismo
Histórico. Para essa corrente do pensar social e político, identidade de classe
em seu sentido positivo, como algo situado no domínio da práxis, a “classe para
si”, não corresponde a mais do que ao auto-reconhecimento coletivo da situa-
ção considerada objetiva, real, dada, a situação de “classe em si” 34.
Seja como for, mesmo a essas falsas problemáticas identitárias, as ques-
tões da individuação, da igualdade e da permanência, antes apontados, objeti-
vam-se com perfil singular.
Já nos séculos XVII e XVIII, período em que situamos os traços ori-
ginários da moderna problemática taxonômica, Locke (1632-1704) e Hume
(1711-1776) preocuparam-se com a questão relativa à individualidade huma-
na35, a partir de duas indagações cruciais ao problema: sob que condições pode
ser dito que uma pessoa é a mesma em momentos diferentes? E, o que é uma
pessoa? Não obstante a especificidade das questões, a resposta a que chegam
não avança essencialmente além da afirmação genérica da necessidade de in-
dicação de espaço e tempo para a designação da individualidade.36 Um pouco
antes, Descartes (1596-1650) imagina essa individualidade como configurada
em uma perspectiva absolutamente intrínseca. Para ele o indivíduo se positiva
enquanto tal através de uma substância imaterial que lhe seria constitutiva,
que designa como “eu”. Este não seria outra coisa senão aquilo que pensa, con-
clusão expressa pelo famoso enunciado: cogito, ergo sum.37
Essa dicotomia entre as posições de Locke e Hume, por um lado, e Des-
cartes, por outro, constituem no mundo moderno, por sobre o pano de fundo
da problemática taxonômica originada pelo princípio dos indiscerníveis, antes
comentada, o campo próprio de discussão sobre a individuação dos Homens.
Mais uma vez é Kant quem costura as duas posturas. Para ele os intricados do
eu pensante não são suficientes para determinar uma identidade pessoal, mas
sim é o ato de unificação proporcionado pela experiência o que pode determi-
ná-la. Ou seja, Kant aponta que a identidade própria do indivíduo é constituída
por sua experiência, enquanto ser pensante, no mundo. O que, claramente,
significa um modo de compreensão que supõe a problemática da individuação
enquanto de caráter social, ainda que sem romper com o sentido objetal a que

34. Cf. MARX, 1978.


35. FOUCAULT (1992) considera que só ao final do século XVIII o Homem torna-se um objeto es-
pecífico do conhecimento, o que permite dizer correspondentemente, em concordância com a ar-
gumentação aqui tramada, que somente a partir dessa época pode se constituir uma problemática
propriamente identitária.
36. Cf. LOCKE, 1997 e HUME, 1996
37. Cf. Quarta parte, DESCARTES, 1996a; e Meditação Segunda, DESCARTES, 1996b.

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fizemos referência, posto que o eu kantiano experiencia através de categorias
transcendentais apriorísticas.
Esse tipo de remetimento relativo ao indivíduo, não obstante, traz como
conseqüência uma requalificação da problemática das identidades relacionais,
o que se objetiva com a formulação daquilo a que Hall38 nomeia de “sujeito
sociológico”39. A concepção de identidade coletiva, assim, se especifica através
de duas dimensões sociais que se sobrepõem: a de um self individual, societário
por si, como visto, e a de um vínculo relacional entre indivíduos. Dimensões
que, todavia, são entendidas como não separáveis e em profunda e necessária
imbricação em seus processos constitutivos40.
No que concerne à esfera identitária relacional, nessa perspectiva o cri-
tério primeiro de classificação é o velho parâmetro leibniziano da substitubili-
dade. Se um indivíduo pode substituir um outro em um grupo identitário sem
que este grupo se transforme em termos de seus fundamentos constitutivos
partilhados, então ele pode ser visto e aceito como um “estabelecido”.
No século XX o indivíduo moderno caracterizado, nos termos acima apre-
sentados, por sua unicidade, indivisibilidade e singularidade, começa a ter seus
pilares minados por certas concepções emblemáticas da época, o que, conseqüen-
temente, traz implicações à problemática identitária fazendo com que esta, já na
contemporaneidade, pudesse vir a se constituir de modo mais próprio enquanto
questão identitária e não mais como questão de taxonomia social.
Esse processo originário de “descentramento” 41, nos termos do que aqui
está sendo discutido, tem por base fundamental a emergência de uma ordem
teórico-conceitual e filosófica distendida do que ficou conhecido como “virada
lingüística”42. Esse viés, como apresentado no início deste trabalho, vai quali-
ficar o indivíduo enquanto sujeito discursivo, na medida em que entende que
o próprio vínculo social é lingüístico. Não obstante, os desdobramentos per-
mitidos por essa nova base de compreensão da problemática identitária foram
limitados em suas modalidades predominantes, posto que avançaram apenas
ao nível, sem dúvida significativo de, expressando rompimento radical com
qualquer resquício de traço substancialista, considerar o caráter convencio-
38. HALL, 2000.
39. De acordo com essa visão interativa, “a identidade é formada na ‘interação’ entre o eu e a so-
ciedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’, mas este é formado e
modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses
mundos oferecem.” (HALL, 2000, p. 11).
40. A tradição sociológica da teoria da identidade surge a partir da pragmática do eu discutida ori-
ginariamente por William James (1842-1910). Cf. BOTTOMORE e OUTHWAITE, 1996. Ver também
SHOOK, 2002.
41. HALL, 2000.
42. Stuart Hall, além dessa, considera também como fontes de descentramento do sujeito moderno
a interpretação althusseriana do Materialismo Histórico, a psicanálise freudiana, a lógica do poder
disciplinar como formulada por Foucault e a emergência das chamadas “novas subjetividades” a
partir do movimento feminista. Cf. HALL, 2000.

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nal das individualizações, similitudes e finitudes afirmadas. De acordo com
essa concepção não é possível estabelecer de uma vez por todas o significado
da identidade ou o critério para reconhecê-la, mas sim é possível, no âmbito
de um determinado sistema lingüístico, determinar de forma convencional e
pragmática esse critério. Não obstante, a concepção não escapa daquilo que
poderíamos designar de “objetalismo convencional”: a convenção é produto da
ação de sujeitos racionais, centrados, que manipulam racionalmente valores,
interesses e saberes em processo interativo de estabelecimento de acordo43. Isto
não permite mais do que a operação de “fixação” nos campos dos significados
e dos sentidos, como se o convencionado fosse o resultante da confrontação
de vozes distintas, todavia pautadas por uma mesma linguagem, racionalmente
aceita por princípio44.
Pode-se considerar, entretanto, que a questão identitária de indivídu-
os humanos tomados como reflexivos, a partir da fundamentação possibilitada
pela crítica nietszchiana e pela “virada lingüística”, permite um tipo de con-
sideração que vai além do formulado pela vertente convencionalista, exata-
mente por tensionar o campo da convenção entendendo-o não mais como tal,
mas enquanto domínio dos processos de construção sígnica, como exposto no
item anterior, o que quer dizer expandir a questão aos domínios associados dos
objetos e dos sentidos. O problema em si, além do mais, pode ser tratado em
dois enfoques: o da similitude atribuída por algum autoconstituído “alter” dessa
mesma similitude e, em ênfase oposta, o do auto-reconhecimento identitário
– o que inclui, evidentemente, tanto o eu, ou o nós, quanto seus “alteres”. Esta
última coloca em relevo a dimensão mais complexa da problemática identitária
e, correlatamente, destaca a forma mais plena da idéia de sujeito identitário.
No item final do trabalho abordaremos algumas indicações sígnicas às aborda-
gens referentes especialmente a este último campo problemático.

Sobre território
Na perspectiva teórico-conceitual aqui desenvolvida, “território” é
entendido como uma taxonomia efetuada por agentes sociais – processo aqui
designado como “territorialização” – e objetivada através do referimento ge-
odésico relacional de signos. Tendo isso em conta, pode-se considerar que a
problemática aí compreendida é, ao longo da história ocidental, marcada em
determinadas dimensões por questões similares às concernentes à constituição
das classificações, ou seja, questões, como tratadas anteriormente, relativas à
não contradição dos idênticos e, por conseguinte, relativas à individuação, à
similitude e à permanência.
43. “Convencional”, portanto, enquanto artifício que se contrapõe a “real”. Em termos dessa catego-
ria (convenção), a idéia de real ou de verdade já aparece questionada explicitamente no pensamento
sofista. Para essa visão, a própria linguagem usada para dizer do mundo é resultado de convenções.
Assim, o “carácter aceptable de un enunciado, de una teoría o de una doctrina es función de las
convenciones de principio adoptadas, es decir, de que se haya llegado ... a un ‘acuerdo’ respecto a
ciertas ‘verdades’ básicas.” (MORA, 1994, p. 689).
44. A referência a isso são as concepções bakhtinianas de polifonia e polilinguagem (heteroglosia).

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Não obstante, se esses domínios de questões tecem um leito problemá-
tico, a especificidade com que se objetivam é dada pela articulação de, por um
lado, em sentido ontológico, idéias de espaço subjacentes; por outro, em senti-
do lógico / prático, conteúdos supostos regentes às territorializações efetuadas.
Na origem da cultura ocidental a primeira expressão emblemática de
alguma manifestação do que viria a ser designado, nos termos aqui assumidos,
de território, está presente na descrição do escudo de Aquiles feita por Homero
na Ilíada45. Ali, ainda que como parte de uma grande ordem cósmica, a singu-
laridade das atividades humanas marca a distinção de domínios geográficos. No
entanto, é Hecateu, século VI a.C.46, que, em suas narrativas, primeiramente
afrouxa os liames dos homens com essa ordem cósmica, deslocando o enfoque
“da physis para a terra habitada” 47 e, com isso, colocando no domínio propria-
mente humano o processo de qualificação diferencial do terreno.
Já na Grécia clássica, a representação por excelência da sociedade faz-
se por intermédio de sua forma de espacialização mais emblemática: a Polis. O
fundamento espacial que orienta esta taxonomia, e portanto, que permite a
positivação da individuação, da similitude e da permanência, é o de totalidade
polarizada pelo centro. O princípio regente associado estabelece uma estreita
relação entre os conceitos de centro, igualdade e não domínio48. Por sobre a
polarização assim referenciada ainda plasma-se outra tensão particular: a da
cisão entre os domínios afirmados como sagrado e profano. O primeiro, como
hierofania, representa a presença do absoluto no mundo sensível; significa, ao
mesmo tempo, um pólo de referência que permite o ordenamento primordial
das coisas, libertando-as do caos da relatividade total. O território profano,
em contrapartida, é um domínio contínuo, homogêneo e neutro que só toma
significação por meio da sinalização estabelecida pelo pólo sagrado. São esses
fundamento e princípio regente que possibilitam e determinam a individuação,
a similitude e a permanência das taxonomias territoriais, que, por sua vez, ob-
jetivam-se tendo por operadores principais os termos relacionais convenientia,
aemulatio, analogia e simpatia49.

45. Essa indicação e a descrição da estampa do escudo estão em JAEGER, 1989, p. 53.
46. As informações sobre o período de vida de Hecateu não são precisas. Vide CHÂTELET, 1983,
quadro sinóptico.
47. JAEGER, 1989, p. 305.
48. ARAUJO, 2003; VERNANT, 1990.
49. Convenientia designa uma semelhança por proximidade espacial que permite a comunicação, a troca,
a influência de paixões, energias, propriedades. Convenientia concerne a uma semelhança devida mais ao
ambiente comum aos objetos do que a eles em si; diz respeito à ordem da conjunção e do ajustamento ao
meio. Aemulatio é também pensada como uma forma de convenientia, mas que estabelece similitudes liber-
tas de qualquer amarra vinculada à distância ou ao posicionamento relativo. Atua por reflexão em círculos de
recíproca mudança, ignorando a extensão, o espaço. Já analogia é imaginada como certa síntese de aspec-
tos das duas noções anteriores: as semelhanças que opera transcendem ao espaço, mas são expressões de
ajustamentos, solidariedades, à maneira de convenientia; seu foco, todavia, são as relações constitutivas das
coisas. Simpatia tem como contraface antipatia. É concebida configurando uma semelhança sem nenhum
suposto; sua força também determina assimilações, simbioses, alterações no sentido da identidade única.
Assim sendo, antipatia funciona como uma saudável salvaguarda da diferença. É da tensão entre os dois
termos que se objetiva a existência singular. O par simpatia / antipatia como que envolve e suporta os outros
três fundamentos da similitude. Do mesmo modo que aemulatio e analogia, estabelece semelhanças “des-
prezando” tempo e espaço. Cf. FOUCAULT, 1992.

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Na modernidade nascente, laica na estruturação de suas positivações,
mais precisamente ao longo do século XVII configura-se, como visto, uma rup-
tura em toda essa fundamentação classificatória. Um outro vetor do ato com-
parativo se configura, agora baseado na afirmação de identidades e diferenças,
estabelecidas mediante a verificação de medidas e a elucidação de legalidades.
Estas, por conseguinte, expressas enquanto relações, no tempo, entre quanti-
dades mensuráveis, todavia, consideradas como manifestação de qualidades. É
a mathesis assim esboçada que então passa a dominar qualquer arranjo de taxo-
nomia (Foucault, 1992). Nesse quadro, a problematização relativa à taxonomia
território pode ser vista, em sua especificidade, também no contexto da aludida
controvérsia entre Leibniz e Kant, agora, todavia, ampliada pela “revolucioná-
ria” concepção espacial de Newton. O primeiro, coerente com seus princípios
da “identidade dos indiscerníveis” e da “razão suficiente”, sustenta uma noção
de espaço não absoluto, não substantivo, mas relacional, como ordem de fenô-
menos distintos coexistentes, como rede de relações quantitativas50, o que se
pode considerar como uma concepção representacional de território. Newton,
buscando consistência lógica aos princípios de sua mecânica corpuscular, con-
cebe espaço como um absoluto imaterial existente em si e por si, neutro, re-
ceptáculo das coisas materiais. Kant, em harmonia com seu entendimento de
que identidade e diferença são conceitos reflexivos, ordenadores, postula espa-
ço como uma das categorias a priori do entendimento humano. Compreensão
que, por conseguinte, permite uma idéia correspondente de território enquanto
objetivação reflexiva conotativa da possibilidade dada pela categoria transcen-
dental espaço.
O resultado da costura kantiana para a divergência sobre a identida-
de dos indivíduos entre Locke e Hume por um lado, e Descartes por outro,
também aqui pode aqui ser lembrado para marcar a abertura de um caminho
divergente na compreensão da taxonomia território. Para Kant, como visto, é a
“experiência”, possibilitada pelos a priori, aquilo que pode conferir positividade
a uma identidade. No que interessa agora à argumentação, importa destacar
que isto significa retirar a constituição territorial dos domínios exclusivos da
razão e da materialidade em si. Nessa perspectiva, é na interação experiencial
entre esses dois domínios que se situa o processo de territorialização, o que
pode ser entendido, ao olhar da teorização aqui desenvolvida, como processo
de constituição de um signo. Conforme comentamos ao tratar do assunto em
termos das identidades, essa experiência não pode ser compreendida como algo
fora do mundo: ela é necessariamente social. Isto requalifica a problemática
taxonômica como questão da práxis51, portanto extrapolando os âmbitos pura-
mente lógico, ontológico ou empírico, sem, contudo, destituí-la dos fundamen-
50. ARAUJO, 2003.
51. No sentido marxista do termo, ou seja, enquanto conjunto das atividades práticas por meio do
qual os homens constroem seu mundo e, ao mesmo tempo, enquanto categoria epistemológica
que descreve as práticas relativas às condições indispensáveis à existência da sociedade. (Cf. BOT-
TOMORE e OUTHWAITE, 1996)

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tos ordenadores quantitativos.
A partir do final do século XVIII, o homem enquanto totalidade – como
vida, como organismo, como agente transformador do ambiente e como por-
tador de cultura, de linguagem (Foucault, 1992) – tomado como indivíduo ou
grupo, torna-se objeto do conhecimento de si mesmo; mais que isto, como tal
passa a ser compreendido no tempo, como ser consciente, liberto de predes-
tinação divina ou natural. O “alter” mundano desse homem é o domínio das
coisas, a natureza, suposto como algo em si, evolutivo por necessidade pró-
pria. Isso implica transformações marcantes nas possibilidades do dizer sobre
o mundo. O anterior acento horizontal dos saberes, sobre homens e coisas, é
subvertido pela ênfase na compreensão através do devir. O fundamental deixa
de ser a diferenciação entre objetos, mas a especificação das relações entre eles,
o que corresponde ao estabelecimento de sistemas. Os princípios ordenadores
desses sistemas são analogia52 e sucessão; as comparações sincrônicas passam
a ser subsumidas na relação diacrônica. As taxonomias, por conseguinte, são
agora supostas como similitudes mutantes cuja individuação é possibilitada
pela permanência (necessariamente provisória) da especificidade analógica
constitutiva do vínculo.
Não obstante ao que tudo isso tem de novo – inclusive, como apontado,
a instituição da problemática propriamente identitária – o conjunto de questões
relativas à taxonomia territorial segue amarrado às incompatibilidades incon-
gruentes das visões espaciais de Leibniz – espaço como ordem de fenômenos –,
Newton – espaço como absoluto imaterial –, e Kant – espaço como categoria
transcendental. A “resolução” do imbróglio, positivada de modo mais definido
a partir da segunda metade do século XIX, paradoxalmente, surge como uma
subversiva quebra da moderna dicotomia homem / natureza, enquanto cons-
tituição de um modo classificatório que se pode nomear de “híbrido” – por
analogia a um tipo de prática moderna, assim designado por Bruno Latour53– e
da “explosão” dos conteúdos espaço aportados pelos pensadores referidos em
domínios mais gerais e abstratos: o específico espaço como a priori, em domínio
reflexivo; o específico espaço como ordem fenomenológica, em domínio empí-
52. Observe-se que analogia, nesse contexto gnosiológico, expressa a relação entre fenômenos que
podem ser descritos por um mesmo formalismo matemático, ou seja, de modo independente de
qualquer subjetividade, e não mais a relação síntese de convenientia e aemulatio, como na tradição
originária.
53. “... a palavra ‘moderno’ designa dois conjuntos de práticas totalmente diferentes que, para per-
manecerem eficazes, devem permanecer distintas, mas que recentemente deixaram de sê-lo. O
primeiro conjunto de práticas cria, por ‘tradução’, misturas entre gêneros de seres completamente
novos, híbridos de natureza e cultura. O segundo cria, por ‘purificação’, duas zonas ontológicas in-
teiramente distintas, a dos humanos, de um lado, a dos não-humanos, de outro (...) O primeiro, por
exemplo, conectaria em uma cadeia contínua a química da alta atmosfera, as estratégias científicas
e industriais, as preocupações dos chefes de Estado, as angústias dos ecologistas; o segundo
estabeleceria uma partição entre um mundo natural que sempre esteve aqui, uma sociedade com
interesses e questões previsíveis e estáveis, e um discurso independente tanto da referência quanto
da sociedade.” (LATOUR, 1994, p. 16).

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rico; o específico espaço como absoluto, em domínio ontológico.
Objetivação emblemática do acima exposto, que, inclusive, reitera cla-
ramente a questão taxonômica como questão da práxis, é a consideração do
espaço como “produção social” que emerge no materialismo histórico marxia-
no54. O caráter híbrido dessa construção transparece ao observar-se que nela
estão mesclados sentidos reflexivo (pelo caráter de categoria epistemológica),
fenomenológico relacional (pelo caráter de categoria de designação empírica)
e absoluto (pelo caráter de categoria ontológica). A correlata concepção da
taxonomia território pode, assim sendo, ser vista como uma materialidade ge-
orreferenciada de relações significadas. Exemplos particulares disso são as con-
cepções territoriais marxianas correspondentes às polarizações campo x cidade
e centro x periferia, e à noção de desenvolvimento desigual. Formulações que
expõem um entendimento de território como “produção” material e simbólica
fundada em questões concernentes aos campos ético-político, estético e gno-
siológico, mas que, apesar de tudo, não escapam ao caráter convencionalista.
Dessa maneira, mesmo tendo em conta o âmbito de significação pre-
sente nessas modalidades constitutivas da taxonomia território, é no campo
das compreensões de caráter sígnico, só concebíveis na modernidade posterior
à “virada lingüística”, que as taxonomias em geral, e a taxonomia território
que ora nos interessa, adquirem ideações mais radicalmente distintas tanto da-
quelas de base lógico-idealista, quanto das de fundamento ontológico, quanto
ainda das de princípio puramente empirista. É sob essa nova perspectiva que se
coloca a acepção anunciada de território enquanto simulacro discursivo.

Instigações
Como tratar, nos termos anteriormente descritos de construção sígni-
ca, da configuração de identidades entre indivíduos humanos e da respectiva
relação desse tipo de curso com o de territorialização? Objetivamente o que
se trata agora é de procurar compreender, em termos construcionistas, como
operar discursivamente em relação a questões de ordem identitária e territorial
através das categorias objeto, significante, significado e sentido, na busca do
entendimento do signo como síntese dessa quadra.
Tomemos como referência reflexiva o processo que diz respeito ao auto-
reconhecimento identitário na dimensão relacional55. Em primeiro lugar, é
necessário ter em conta que esse auto-reconhecimento, enquanto proclama-
ção de partilhas56 (éticas, estéticas, gnosiológicas), diz respeito à concordância
54. Cf. LEFEBVRE, 1974.
55. Nesse caso, cabe frisar, o papel de sujeito identitário se sobrepõe ao de objeto.
56. Entende-se aqui “partilha” como processo consciente e voluntário de comunhão de idéias, va-
lores e gostos.

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em termos de uma linguagem57 em comum. Essa linguagem é entendida como
aquela que corresponde a um sujeito social objetivo e singular em sua ação no
mundo. A denotação realizada pelo significante – correspondente à designação
de um grupo social configurado por indivíduos aos quais é suposto um elemen-
to vinculativo de ordem material ou cultural – tem como contra-face, neste
mesmo operador, a explicitação de um dizer constituído enquanto “definição
de dicionário”58 – por exemplo, o operariado industrial_, fundada no princípio
lógico da substitubilidade e apoiada em fundamentos de igualdade, totalidade,
homogeneidade, singularidade, alteridade, permanência. Trata-se da designa-
ção de vinculações duráveis supostas instituídas entre indivíduos no mundo.
Em termos gerais corresponde à indicação de permanências de laços de ordem
prática relativos a relações de produção, parentesco, vinculação institucional,
etnia, sexo, religião, ideologia. Tomada isoladamente, não constitui mais do
que uma classificação social nos termos definidos anteriormente.
Essa dupla especificação significante é acompanhada simultaneamente
de uma atribuição de significado à suposta existência objetiva do vínculo social,
um processo de sobreconotação que tem por fundamento a intencionalidade59
da construção identitária – por exemplo, transformar a estrutura de poder vi-
gente. De modo explícito ou oculto esse significado auto-atribuído traduz pro-
pósitos, relativos a si mesmo e aos outros de si, de reprodução, dominação,
transformação, separação, junção. Enquanto processo, a constituição do sig-
nificado corresponde primordialmente a um dialogismo de caráter polifônico,
interno ao grupo auto-identificado enquanto significante.
Já a designação do sentido da construção identitária advém de sua con-
sideração em termos axiológicos – por exemplo, a emancipação do Homem
como um Bem – o que tem por referente primeiro um dialogismo de caráter
polilingüístico, externo ao grupo auto-identificado enquanto significante. De
modo explícito ou oculto o sentido traduz valores de Bem / Mal, Belo / Feio,
Verdade / Doxa.
O signo identidade institui-se pela imbricação, em processo, das atribui-
ções correspondentes a essas três ordens de trópos: do significante (denotação /
57. No sentido adotado por Bakhtin. Cf. BAJTÍN, 2002.
58. Uso a expressão, ao modo de Bakhtin, para indicar o caráter vernacular desencarnado, “neutro”,
não discursivo.
59. Intenção compreendida aqui, em termos bakhtinianos, como propósito de efeito em si ou no
outro, diretamente ou através de um objeto (discursivo). Para o autor referido, em qualquer enun-
ciado podemos abarcar, entender, sentir a vontade discursiva do falante _sua intenção discursiva_,
que condiciona a configuração do próprio enunciado, seu volume, seus contornos. A intenção de-
termina, assim, tanto a escolha do objeto como as possibilidades de seu esgotamento sígnico. Ela
é o momento subjetivo do enunciado e forma uma unidade indissolúvel com o aspecto do sentido
do objeto, através da amarração do ato enunciativo a uma situação comunicativa concreta e única.
Não obstante, para Bakhtin a linguagem não é um meio neutro que se torne livremente propriedade
intencional do falante. Ela está sempre povoada por intenções de outrem. Dominá-la, submetê-la às
próprias intenções e acentos é um processo difícil e complexo. Cf. BAKHTIN, 1988 e 2002.

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conotação), do significado (sobreconotação) e do sentido (hiperconotação).
Tratemos agora, do mesmo modo, dos processos de territorialização60.
O caráter objetal intrínseco do que está sendo constituído, mesmo tendo em
conta de que se trata de relações sociais, faz do processo um processo de clas-
sificação operado por determinado sujeito. Seja como for, pode ser pensado
também enquanto construção sígnica. O significante, nesse caso, corresponde
à denotação / conotação de formas materiais ou sociais duráveis georreferidas,
dotadas de unicidade, singularidade, homogeneidade, alteridade – por exem-
plo, área geográfica de plantação de soja; ou área geográfica das práticas da
nação Yanomani.
A instituição do significado associado, correspondendo à sobrecono-
tação do que foi denotado / conotado, diz respeito então à intencionalidade
explícita ou implícita da territorialização, instituída por dialogismo intrínse-
co ao sujeito territorializador. Para ficar em correspondência com os exemplos
acima, podemos imaginar o significado de delimitar o domínio de intervenção
de determinada política pública de financiamento da produção, no primeiro
caso, ou o de garantir à etnia referida o domínio jurídico de área geográfica de
sua suposta localização histórica e considerada necessária às suas práticas de
sobrevivência.
O sentido disso, constituído em dialogismo vivo entre o sujeito territo-
rializador e seus “alteres”, corresponde a uma indicação de caráter valorativo,
hiperconotação do que foi denotado. Mais uma vez seguindo os exemplos, po-
demos supor no primeiro caso um juízo positivo associado à idéia de aumento
da oferta de produtos alimentícios que poderia decorrer da aplicação da política
de financiamento. No segundo caso, a idéia de Bem poderia estar associada à
idéia de garantia das condições necessárias à vida de todos os indivíduos.
Do mesmo modo que no caso do constructo identidade, território ins-
titui-se pela imbricação, em processo, das atribuições correspondentes às três
ordens de trópos consideradas.
A partir das reflexões anteriores, sendo então identidade e território
entendidos enquanto simulacros discursivos, enquanto signos, ainda que de
caráter distinto, conforme o apresentado, como pensar a relação entre os dois
constructos? Problematizaremos aqui, não essa relação em geral, mas no que
diz respeito a situações em que os vínculos entre os dois são explicitados pelos
próprios discursos de afirmação identitária ou territorial.
É fundamental à abordagem desse domínio problemático ter em con-
ta que identidades que explicitam territórios em suas modalidades e formas
de positivação61, instituem-se no mesmo processo interdiscursivo em que é
60. Uso o termo, nesse ponto, em sentido lato, correspondendo ao complexo que RAFFESTIN
(1988) designa como “territorialização-desterritorialização-reterritorialização”.
61. Corresponde ao que HAESBAERT (1997) designa como “identidade territorialmente mediada”.

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constituído o território a que se referem. Há nesse caso, portanto, uma ligação
inextricável entre a construção da identidade e a do território associado; a afir-
mação da diferança identitária como inexoravelmente vinculada a da diferança
territorial e vice versa.
Assim sendo, na perspectiva de refletir sobre a relação entre os cons-
tructos identidade e território, podemos procurar considerar par a par as espe-
cificações identitárias e territoriais em relação a cada ordem sígnica de designa-
ção. A inextricabilidade considerada permite que cada uma dessas conjunções
possa ser pensada como um domínio próprio e singular, cujo conteúdo não cor-
responde à simples adição das especificidades dos respectivos tópicos sígnicos
identitários e territoriais, mas a uma operação de síntese dialética.
Tendo em conta essas considerações, no âmbito dos significantes, essa
dialética se resolve como síntese denotativa / conotativa entre vinculações
duráveis supostas instituídas entre indivíduos e formas georreferidas. Essa sín-
tese, portanto o significante da relação entre identidade e território, é a defi-
nição de locus necessário à existência ou realização da similaridade singular e
vinculatória suposta a um conjunto de indivíduos. O objeto correspondente
diz respeito ao coletivo e ao seu respectivo lugar de existência designados. À
guisa de exemplo, pode-se imaginar como significante a expressão “território
dos brasileiros” e, como objeto correspondente no mundo, a superposição do
conjunto dos indivíduos identificados (por si, pelos outros) como brasileiros e
do território nacional.
No âmbito dos significados a síntese diz respeito a intenções. Aqui o
interesse de afirmar a identidade e a diferança passa pelo interesse de apropriar
e recortar o espaço geográfico. A afirmação identitária é a própria afirmação da
apropriação do espaço geográfico em sua materialidade: brasileiros são os que
nascem no território do Brasil.
No âmbito dos sentidos, a síntese se dá através do georreferimento do
valor fundante atribuído à identidade: o brasileiro é um homem cordial; o Bra-
sil é o território da cordialidade.
Enquanto simulacro discursivo uno, a relação identidade / território
constitui, por sua vez, também um signo que institui uma totalidade composta
por essas três ordens de trópos.
Mas, que tipo de identidades são essas que, como afirmamos anterior-
mente, “explicitam territórios em suas modalidades e formas de positivação”?
Afinal não é qualquer identidade que suscita imediata e diretamente algum
tipo de territorialidade.
Territórios são constituídos como parte indissociável de processo iden-
titário quando a identidade propugnada, pelo juízo valorativo constituído em
determinada relação inter-discursiva (sentido) e por circunstâncias históricas

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definidas (significado), importa na necessidade estratégica de – face ao intuito
de reconhecimento / legitimação social (interna e externa) – ser afirmada sob
modalidade que remeta a um acontecimento originário, fundador, instituído
como mito. Trata-se, então, de uma estratégia de remetimento a uma imagina-
da fundação mítica, por intermédio de um imaginado território sacro associado
a esse momento primórdio62. Isso porque, a identidade desse modo objetivada
como relação sacra entre similares, adquire o caráter de arquétipo fora do tem-
po, conseqüentemente instituindo-se isenta da possibilidade de juízo e compre-
ensão racional e, assim, fundamentando seu “poder simbólico”63.

62. Esse tipo de remetimento, ainda que sem o caráter de operação mítica aqui tomado em conta,
é considerado por Bourdieu quando afirma que “As lutas a respeito da identidade étnica ou regional,
quer dizer, a respeito de propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas à origem através do lugar de
origem e dos sinais duradoiros que lhes são correlativos, como o sotaque, são um caso particular
das lutas das classificações, lutas pelo monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de
fazer reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e, por este meio, de
fazer e de desfazer os grupos.” (BOURDIEU, 1989, p. 113. Itálicos no original).
63. No sentido adotado por BOURDIEU (1989).

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capítulo II

IDENTIDADES TERRITORIAIS: ENTRE A


MULTITERRITORIALIDADE E A RECLUSÃO
TERRITORIAL (OU: DO HIBRIDISMO CULTU-
RAL À ESSENCIALIZAÇÃO DAS IDENTIDADES)

“(...) a crise de identidade seria o novo mal do século. Quando hábitos


seculares vêm abaixo, quando gêneros de vida desaparecem, quando ve-
lhas solidariedades desmoronam, é comum, certamente, que se produza
uma crise de identidade (...).
A verdade é que, reduzida a seus aspectos subjetivos, uma crise de iden-
tidade não oferece interesse intrínseco. Melhor seria olhar de frente as
condições objetivas das quais ela é sintoma e que ela reflete.”
Através desta citação introdutória de Lévi-Strauss podemos perceber a
relevância da questão identitária que, desde pelo menos os anos 70, quando ele
formulou esse pensamento, já era reconhecida como moldada pela “crise”, uma
crise de tal vulto que o autor chega a denominar de “novo mal do século”. O
que não dizer agora, neste início de novo século – e milênio – nesta fragmenta-
da era “pós-moderna”, quando questões étnicas, religiosas e outras expressões
identitárias entram na ordem do dia, a ponto de tentar-se até mesmo, num
extravagante culturalismo, explicar todos os grandes conflitos pela chamada
“razão cultural”?
Lévi-Strauss acrescenta que, muito mais do que prendermo-nos aos
aspectos meramente subjetivos dessa crise, devemos nos ater às “condições
objetivas” que ela expressa. Daí a relevância, também, de uma abordagem ge-
ográfica da identidade, ou seja, pelo viés das chamadas identidades territoriais.
Como sabemos, nossas identidades – em seu caráter mais ou menos múltiplo
– são sempre configuradas tanto em relação ao nosso passado, à nossa memória
e imaginação, isto é, à sua dimensão histórica, quanto em relação ao nosso pre-
sente, ao entorno espacial que vivenciamos, isto é, à sua dimensão geográfica.
. LÉVI-STRAUSS, 1977, p. 10-11.

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Nosso intuito, então, neste artigo, é trazer à tona o debate contemporâ-
neo das identidades focalizado a partir de sua dimensão espacial ou, de forma
mais estrita, territorial, tanto no que se refere ao caráter múltiplo, “híbrido” e
flexível dos territórios – e das identidades – quanto às manifestações territoriais
– e identitárias – mais fechadas e essencializadas.
À mais genérica “crise de identidade” sócio-cultural de Lévy-Strauss
veio somar-se ainda a crise da identidade territorial por excelência do mundo
moderno, a do Estado-nação. Como espaço-tempo dominante, o “espaço-tem-
po estatal e nacional” é, para Sousa Santos um dos pressupostos fundamentais
do contrato social moderno, e tem como uma de suas grandes “constelações
institucionais” a “nacionalização da identidade cultural”, “processo pelo qual
as identidades móveis e parcelares dos diferentes grupos sociais são territoriali-
zadas e temporalizadas [homogeneizadas] no espaço-tempo nacional” , refor-
çando assim os critérios de inclusão/exclusão, “dentro” e “fora”.
Como sabemos, hoje, a polêmica é o que domina em termos de de-
finições como inclusão-exclusão, dentro e fora, e diante da fragilidade e/ou
ambigüidade das fronteiras (de toda ordem), fica claro que nosso referencial
identitário territorial básico, o Estado-nação, está em crise. Nas palavras de
Souza Santos:
“... o espaço-tempo nacional estatal está perdendo a primazia, convulsio-
nado pela importância crescente dos espaços-tempo global e local que com
ele competem. (...) Acresce que vão perdendo importância temporalidades
ou ritmos [e espacialidades, acrescentaríamos] incompatíveis com a tempo-
ralidade [e a espacialidade] estatal nacional em seu conjunto. Duas delas
merecem referência especial. O tempo instantâneo do ciberespaço, por um
lado [demasiado acelerado para as fronteiras nacionais, como nos mercados
financeiros], e o tempo glacial da degradação ecológica, da questão indí-
gena e da biodiversidade [lento e geograficamente muito amplo para ser
compatibilizado a nível nacional]”.
Entretanto, as coisas não são tão simples e, ao mesmo tempo em que,
por um lado, o nacionalismo e as fronteiras se fragilizam, por outro eles ganham
nova relevância. Pretendemos assim desenvolver a idéia de que, apesar de te-
órica e conceitualmente serem tratadas majoritariamente como identidades
híbridas, móveis ou mesmo “flutuantes”, as identidades se expressam hoje, na
prática, através de uma espécie de continuum que vai desde as identidades mais
abertas e explicitamente híbridas (no seu extremo, “fluidas”, embora hibridis-
mo e fluidez não sejam obrigatoriamente sinônimos) até as mais “rígidas” e
(re)essencializadas. Paralelamente a esta múltipla composição identitária terí-
. SOUSA SANTOS, 1999, p. 39.
. Idem, p. 42 e 43.

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amos, não exatamente como seu “reflexo”, mas como seu constituinte indisso-
ciável e de crescente importância, o território, tanto no sentido mais múltiplo
e aberto da “multiterritorialização” em curso quanto na acepção mais fechada
dos processos que propomos denominar de “reclusão territorial”, muitas vezes
concomitantes e articulados.
De fato, podemos dizer, esses processos estão ligados a um pressuposto
mais geral referido às construções identitárias, na medida em que todos nós
vivenciamos, concomitantemente, a tensão entre a construção de um senti-
do mais estável de identidade e a busca por crescente autonomia e liberdade
(que, como nos lembra Paul Virilio é, antes de tudo, liberdade de movimento).
Assim, no dizer de Gatens e Lloyd (baseadas por sua vez em Tully): “De um
lado há a liberdade crítica para questionar e desafiar na prática nossas formas
culturais herdadas; de outro, a aspiração por pertencer a uma cultura e a um
lugar e, assim, sentir-se em casa neste mundo.”
A grande questão é como cada grupo social resolve essa tensão, ora
apelando para o pólo da liberdade e da autonomia, através de identidades
múltiplas, híbridas, sempre abertas e negociáveis, ora privilegiando o pólo da
estabilidade, da fixação e do fechamento em identidades unas, “naturais” e es-
sencializadas. Nosso espaço-tempo se move hoje claramente num ir-e-vir entre
estes dois pólos.

1. Território, Cultura e Identidade


Para discutirmos teoricamente o tema das identidades territoriais deve-
mos começar por destrinchar o elo, ao nosso ver indissociável, entre território e
cultura ou, mais especificamente, entre território e identidade.
Como qualquer conceito, “cultura” e “identidade” são definidos através
da proposição contrastiva com outros conceitos, que lhes dão um sentido não
propriamente oposto, mas por contraste – ou seja, os conceitos são sempre
formados e definidos em termos de “constelações” ou de inter-relações de con-
ceitos. Os conceitos a partir dos quais “cultura” e “identidade” se (re)definem
transformam-se, assim, também, de alguma forma, em seus elementos consti-
tuintes.
Desse modo, pode-se dizer, convencionalmente, pelo menos, o conceito
de cultura surge a partir de seu contraste ou relação com o conceito de “na-
tureza”, assim como o conceito de identidade aparece sobretudo contrastado
com ou em relação ao conceito de “diferença”. Ao “definirem” a cultura e a
identidade, natureza e diferença nunca o fazem pela separação, mas pelos elos
. TULLY, 1995.
. GATENS e LLOYD, 1999, p. 78.

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que as perpassam, na medida em que devem ser vistos enquanto (parcialmente,
pelo menos) inseridos um no outro, tornando-se assim parcelas indissociáveis
de suas próprias definições. Como afirmou Young, estendendo seu raciocínio
para a própria relação entre diferentes culturas:
“O movimento histórico por meio do qual a exterioridade da categoria
contra a qual a cultura é definida, gradualmente vai para dentro des-
ta e torna-se parte da própria cultura. Externa ou interna, esta divisão
entre o mesmo e o outro é menos um lugar de contradição e conflito
do que uma possibilidade fundadora da cultura: como gênero, classe e
raça, seus cúmplices de bom grado, as categorias da cultura nunca são
essencialistas, mesmo quando aspiram a tal. Isto se dá porque a cultura
é sempre um processo dialético, inscrevendo e excluindo a sua própria
alteridade.”
Com relação a identidade e diferença ocorre um cruzamento ainda mais
íntimo, pois não há como “identificar-se” algo sem que sua “diferenciação” (em
relação ao “outro”) seja construída, a ponto de “diferenciar-se” e “identificar-
se” tornarem-se completamente indissociáveis – isto demonstra, de saída, o ca-
ráter permanentemente relacional da construção identitária, sempre produzida
na relação com aquele que é estabelecido como o seu “outro”.
No caso da identidade, é muito relevante distingui-la enquanto concep-
ção ou princípio geral, filosófico (no tradicional debate entre diferentes tipos
de lógica, por exemplo), e enquanto objeto de discussão no âmbito das Ciên-
cias Sociais, onde também é importante considerar as especificidades de cada
campo, especialmente no que se refere à distinção entre a Psicologia e a Socio-
logia/Antropologia. Daí o risco em que pode incorrer o geógrafo ao transitar
indiscriminadamente pelos debates filosófico, psicológico ou antropológico da
questão.
Preferimos assumir aqui a “filiação” do debate geográfico à esfera das
chamadas Ciências Sociais “não-aplicadas”, como a Sociologia e a Antropo-
logia, mesmo sem ignorar toda a relevância dos estudos espaciais numa pers-
pectiva mais subjetiva e individual. É nesse sentido que identidade e território
podem cruzar-se em diferentes perspectivas, desde o nível mais individual (que
não será aqui trabalhado) até aquele envolvendo amplos grupos sociais, como
no caso das tradicionais identidades regionais e nacionais.
Território, por sua vez, aparece ao longo do tempo e na maior parte das
reflexões teóricas como conceito capaz de apreender uma das principais dimen-
sões do espaço geográfico, a sua dimensão política ou vinculada às relações de
poder, dentro das diferentes perspectivas com que se manifesta o poder. Deste
modo, território, político por natureza, contrasta e se cruza com outros concei-
tos, como região, paisagem e lugar, o primeiro com ampla tradição na chamada
. Young, 2005 [1995], p. 36.

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Economia Regional (e na Geografia Econômica, embora nunca a ela restrito),
os dois últimos com longa tradição nas abordagens da Geografia Cultural.
Hoje, num mundo de “hibridismos” como o nosso, os conceitos estão
longe de carregar a ambição formal de outrora, e às vezes também aqui precisa-
mos trabalhar muito mais com interseções e ambivalências do que com frontei-
ras ou limites claramente definidos. Por isso falamos no caráter contrastivo dos
conceitos, num sentido que pode lembrar (em parte) a différance de Derrida,
onde um acabará sempre sendo (re)definido pelo outro, numa re-significação
sempre em aberto. Desse modo, não há cultura sem natureza, assim como não
há identidade sem diferença – como se um fosse construído a partir da sua com-
posição, múltipla e até mesmo ambivalente, com o outro – e não simplesmente
num sentido dialético, de contradição.
Não podemos esquecer, contudo, como veremos aqui para o caso do
elo entre identidade e território, que todas essas re-significações ou, no nosso
caso, re-identificações, estão mergulhadas em relações de poder e, deste modo,
sujeitas aos mais diversos jogos, ora mais impositivos, ora mais abertos, que este
poder implica dentro de uma sociedade profundamente desigual e marcada por
múltiplos processos de dominação. Se identificar(-se) é também, de alguma
forma, classificar, estas classificações com que re-significamos o mundo, nós e
os outros, inclusive através dos territórios, são objeto de intensas disputas entre
aqueles que têm o poder de formular e mesmo de fixar estas classificações.
Mas esse poder também é múltiplo e não se restringe às figuras cen-
tralizadoras do Estado e das classes dominantes. Numa interpretação de base
foucaultiana, o poder se estende por todas as esferas���������������������������
/escalas da sociedade, per-
����
mitindo também reações de toda ordem, desde os microterritórios de resistên-
cia do nosso cotidiano até as redes planetárias dos movimentos contragloba-
lizadores. Ainda que privilegie a dimensão política, o território carrega hoje
toda a complexidade com que se constroem essas relações de poder, um poder
que, mais do que claramente centralizado e identificável, é também difuso,
multifacetado e “rizomático” – para utilizar a expressão de Deleuze e Guattari,
estendendo-se do poder mais visível e “material” das instituições formalizadas
ao poder “invisível” e simbólico do imaginário e das representações dos diferen-
tes grupos culturais.
O território, portanto, é construído no jogo entre material e imaterial,
funcional e simbólico. Poderíamos mesmo afirmar que as concepções de terri-
tório capazes de responder melhor pela realidade contemporânea devem supe-
rar os dualismos fundamentais: tempo-espaço, fixação-mobilidade, funcional e
simbólico. Por isso propomos ver o território a partir da(s):
-. perspectiva que valoriza as relações e os processos : o território num
sentido relacional e processual (devendo-se mesmo falar mais em processos de
. DELEUZE e GUATTARI, 1995.

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“territorialização” do que de território como entidade estabilizada);
-. múltiplas temporalidades e velocidades nas quais ele pode ser cons-
truído, desde os territórios com maior fixidez e estabilidade até aqueles mais
móveis e flexíveis;
-. conjugação entre ou num continuum que se estende desde os territó-
rios mais funcionais até aqueles com maior carga (ou poder) simbólica(o).
Em relação a este último aspecto, é interessante lembrar que “territó-
rio” já desde a sua origem etimológica, no latim do velho Império Romano,
carrega essa ambivalência entre o material e o simbólico, tanto através da raiz
terra-territorium (domínio territorial concreto) quanto de terreo-terrere (ame-
drontar), a inspiração do temor pelo território como área cujo acesso é privi-
légio de uns poucos. Segundo o Dictionnaire Étimologique de la Langue Latine,
de Ernout e Meillet, territo estaria ligado à “etimologia popular que mescla
‘terra’ e ‘terreo’”, domínio da terra e terror, como se as delimitações da terra,
os cercamentos, ao excluirem tantas pessoas, inspirassem nelas o medo (e, por
outro lado, forjassem uma identidade para aqueles que usufruem diretamente
do território).
De certa forma, ainda que “às avessas”, negativamente, território e
(des-) identificação de grupos sociais estão intimamente ligados. Como afirmamos,
“não há território sem algum tipo de identificação e valoração simbólica (positiva ou
negativa) do espaço pelos seus habitantes”. Hoje, num mundo em que o simbolismo
da cultura é presença fundamental em todas as esferas da vida, o território não
poderia fugir à regra e se vê cada vez mais mergulhado nas tramas de um “poder
simbólico”10 que tudo parece arrebatar. Se considerarmos, num sentido mais amplo,
e falando então mais de espaço do que de território, de um espaço que é imanente à
construção do social, podemos afirmar que toda dinâmica de construção identitária
é inerentemente espacial.

2. Perspectivas culturais do território e da territorialidade


Como os conceitos nunca são feitos através de limites ou “identidades”
claras, rígidas, e suas significações trazem sempre um potencial para releitura
e integração com ou mesmo reinvenção de outros conceitos, território e ter-
ritorialidade também se inserem nesta abordagem de alguma forma “híbrida”.
Assim, o território ratzeliano do final do século XIX11, que é um território esta-
tal e recheado de “natureza”, solo, pedaço de chão, expande-se com Gottman,
. ERNOUT e MEILLET, 1967.
. HAESBAERT, 1999, p.172.
10. BOURDIEU, 1989.
11. RATZEL, 1988.

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mais de meio século depois, a ponto de incorporar uma dimensão “iconográ-
fica”, simbólica12. Na verdade, se formos mais fiéis à obra de Ratzel, diremos
que já no próprio “espírito” ratzeliano havia referências ao simbólico e à sua
relevância13.
Mais recentemente, sob influência da “virada cultural” (às vezes exage-
radamente cultural���������������������������������������������������������������
-ideal���������������������������������������������������������
ista), cresceu o diálogo entre perspectivas territoriais
como as da Geografia e da Antropologia. Do trabalho pouco conhecido de
Garcia14 ao clássico “O ideal e o material” de Maurice Godelier, muitas pontes
podem ser desenhadas em busca da não dicotomização material-ideal. Assim,
expressa-se Godelier:
“... o que reivindica uma sociedade ao se apropriar de um território é
o acesso, o controle e o uso, tanto das realidades visíveis quanto dos
poderes invisíveis que os compõem, e que parecem partilhar o domínio
das condições de reprodução da vida dos homens, tanto a deles própria
quanto a dos recursos dos quais eles dependem”.15
Embora a princípio coubesse ao geógrafo manter “os pés no chão” e
enfatizar sempre a dimensão material do território, a realidade contemporânea,
dominada pelo mundo das imagens e das representações, acabou trazendo para
o próprio âmbito das proposições geográficas uma visão “mais idealista” de ter-
ritório. Para os geógrafos Bonnemaison e Cambrèzy16, por exemplo, vivemos
hoje sob uma “lógica culturalista” ou “pós-moderna” de base identitária e reti-
cular que se impõe sobre a lógica funcional e zonal (estatal) moderna. Por isso,
“o território é primeiro um valor”, estabelecendo-se claramente “uma relação
forte, ou mesmo uma relação espiritual” com nossos espaços de vida. Numa
distinção bastante questionável, o próprio “território cultural” precederia os
territórios “político” e “econômico” (p. 10).
Na verdade, Bonnemaison inspirou-se em sua tese na sociedade da ilha
de Tanna, no arquipélago de Vanuatu, bem pouco “pós-moderna”, onde o ter-
ritório (“cultural”) não é um produto dessa sociedade, mas uma entidade que a
precede e a funda, os habitantes locais auto-definindo-se como man-ples, “ho-

12. GOTTMAN, 1952.


13. Ao reconhecer, por exemplo, um laço ou uma ligação psicológica do homem ao solo (utilizado
muitas vezes como sinônimo de território), criado “no costume hereditário da co-habitação [que ‘dá
nascimento ao sentimento nacional’], no trabalho comum e na necessidade de se defender do exte-
rior”. Desta co-habitação ligando povo e solo, “onde jazem os restos das gerações precedentes, (...)
surgem os laços religiosos com certos lugares sagrados, laços muito mais sólidos do que o simples
costume do trabalho comum” (RATZEL, 1988, p. 22). DIJKINK (2001) chega mesmo a reconhecer
uma interpretação idealista de natureza e variantes do “espírito universal” hegeliano na perspectiva
geográfica de Ratzel.
14. GARCIA, 1974.
15. GODELIER, 1984, p. 114.
16. BONNEMAISON e CAMBRÈZY, 1996.

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mens-lugares”17. Trata-se assim mais de uma territorialidade – ou mesmo, em
suas palavras, de uma “ideologia do território” – do que do território em sentido
estrito. Cabe aqui, então, distinguirmos território e territorialidade – especial-
mente para reconhecermos que esta, independente ou não da efetivação do
território, tem um papel cada vez mais importante.
Segundo Bonnemaison, os habitantes de Tuva não “possuem” o terri-
tório, mas se identificam com ele. Todos os conflitos, antigos ou recentes, são
moldados por uma espécie de “ideologia do território” que remonta aos mitos
sobre a criação do povo local. Embora em bases muito distintas das socieda-
des tradicionais, teríamos hoje um certo retorno às “ideologias territorialistas”
que, em pleno mundo globalizado, manifestam-se com crescente importância,
a territorialidade, num sentido simbólico, impondo-se como argumento para a
construção efetiva do território – ou o território tornando-se, provavelmente,
como afirmam Bonnemaison e Cambrèzy18, o mais eficaz de todos os constru-
tores de identidade.
No jogo contemporâneo dos processos de destruição e reconstrução ter-
ritorial fica muito claro o ir e vir entre territórios mais impregnados de um sen-
tido funcional, de controle físico de processos (ou, mais estritamente, no caso
do Estado, de vigência dos direitos ligados à condição de cidadania), e aqueles
onde a dimensão simbólica – a territorialidade, para alguns – adquire um papel
fundamental. Por isso nossa proposta para encarar sempre o território dentro
de um continuum que se estende da apropriação mais especificamente simbólica
(no seu extremo, uma “territorialidade sem território”) até a dominação funcio-
nal em sentido mais estrito (no seu extremo, mas apenas enquanto “tipo ideal”,
um “território estritamente funcional”).
Aqui é importante explicitar a distinção entre território e territoriali-
dade. Alguns autores, numa visão mais estreita, reduzem a territorialidade à
dimensão simbólico-cultural do território, especialmente no que tange aos pro-
cessos de identificação territorial. Na maioria das vezes, porém, não se faz esta
distinção, a territorialidade sendo concebida abstratamente, numa perspectiva
mais epistemológica, como “aquilo que faz de qualquer território um territó-
rio”,19 ou seja, as propriedades gerais reconhecidamente necessárias à existên-
cia do território – que variam, é claro, de acordo com o conceito de território
que estivermos adotando.
A territorialidade, no nosso ponto de vista, é “algo abstrato”, como diz
Souza, mas não num sentido que a reduza ao caráter de abstração analítica. Ela
é uma “abstração” também no sentido ontológico de que, enquanto “imagem”
ou símbolo de um território, efetivamente existe e pode inserir-se eficazmente
17. BONNEMAISON, 1997, p. 77.
18. BONNEMAISON e CAMBREZY, 1996. p. 14.
19. SOUZA, 1995, p. 99.

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como uma estratégia político-cultural, mesmo que o território ao qual se refira
não esteja materialmente manifestado – como no conhecido exemplo da “Terra
Prometida” dos judeus.
Deduz-se daí que o poder no seu sentido simbólico também precisa ser
devidamente considerado em nossas concepções de território. É justamente por
fazer uma separação demasiado rígida entre território a partir de relações de
poder num sentido mais concreto, “funcional”, e território a partir de relações
de poder mais simbólico que muitos ignoram a riqueza das múltiplas territoria-
lidades em que estamos mergulhados. Resumindo, propomos definir território:
“(...) a partir da concepção de espaço como um híbrido – híbrido entre
sociedade e natureza, entre política, economia e cultura, e entre mate-
rialidade e “idealidade”, numa complexa interação tempo-espaço, como
nos induzem a pensar geógrafos como Jean Gottman e Milton Santos,
na indissociação entre movimento e (relativa) mobilidade – recebam
estes os nomes de fixos e fluxos, circulação e “iconografias” [na acepção
de Jean Gottman], ou o que melhor nos aprouver. (...) o território pode
ser concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de poder,
do poder mais material das relações econômico-políticas ao poder mais
simbólico das relações de ordem mais estritamente cultural.”20
É nesse sentido que percebemos o território dentro de uma espécie de
continuum desde os territórios mais funcionais e concretos, onde predominam
processos que Lefebvre21 denomina de “dominação”, até os territórios mais
simbólicos, onde predominam dinâmicas efetivas de apropriação22. Território,
portanto:
“(...) envolve sempre, ao mesmo tempo (...), uma dimensão simbólica,
cultural, através de uma identidade territorial atribuída pelos grupos so-
ciais, como forma de “controle simbólico” sobre o espaço onde vivem
(sendo também, portanto, uma forma de apropriação), e uma dimensão
mais concreta, de caráter político-disciplinar [e político-econômico,
podemos acrescentar]: a apropriação e ordenação do espaço como for-
ma de domínio e disciplinarização dos indivíduos.”23
Mesmo se admitirmos que o território se define hoje muito mais através
de suas imagens e representações – sua dimensão simbólica ou, para outros,
sua “territorialidade”, do que por sua dimensão material – o que faz com que
20. HAESBAERT, 2004, p. 79.
21. LEFEBVRE, 1986.
22. . Dado o sentido positivo que em geral Lefebvre delega aos processos de apropriação do es-
paço, devemos ressaltar que também os processos de dominação (num sentido negativo) podem
fazer uso, e muito, do “poder simbólico” aqui aludido. Trata-se, na verdade, de um traço do capi-
talismo que foi substancialmente reforçado nas últimas décadas, como já apontava nos anos 60 o
estudo clássico de Guy Débord em “A Sociedade do Espetáculo” (Débord, 1997[1967]).
23. HAESBAERT, 1997, p. 42.

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alguns relacionem este fenômeno com processos de desterritorialização –, não
há dúvida que não se trata de um processo simplista de fragilização dos terri-
tórios, mas da complexificação de uma dinâmica que, por adquirir maior carga
simbólica, encontra-se aberta à experimentação de um jogo muito mais amplo
de identidades territoriais.

3. Identidade territorial e espaços de referência identitária


A construção da identidade social, ao contrário da interpretação do
senso comum que enfatiza sua aparente estabilidade e longevidade, é sempre
dinâmica, está sempre em curso, sendo preferível, para muitos, falar em proces-
sos de “identificação” do que em “identidade” enquanto estado substantivo24.
Além disso, como já vimos, ela nunca é construída a partir da mera diferença
ou de características “próprias”, “singulares”, pois tem sempre um caráter re-
flexivo, isto é, identificar-se implica sempre identificar-se com, num sentido
relacional, dialógico, e a identidade, por mais essencializada que pareça, justa-
mente por seu caráter simbólico, é sempre múltipla e����������������������������
/���������������������������
ou está aberta a múltiplas
re-construções. É evidente que, como enfatizaremos mais à frente, esta pers-
pectiva “construtivista” da identidade nem sempre possibilita compreender a
proliferação contemporânea de “reessencializações” identitárias politicamente
muito reacionárias.
De qualquer modo, não é possível dissociar completamente a natureza
eminentemente simbólica da identidade de seus referentes mais “objetivos”.
Como enfatizou um dos autores clássicos neste debate, Lévi-Strauss, citado no
início deste artigo, “melhor seria olhar de frente as condições objetivas” das
quais a identidade é sintoma e as quais ela reflete.25
Pode-se partir da própria discussão sobre a natureza do “simbólico”. Se
as identidades sociais são simbólicas, os símbolos que compõem uma identidade
não são construções totalmente arbitrárias ou aleatórias, eles precisam ancorar-
se em referentes materiais ou, em outras palavras, têm sempre uma fundamen-
tação política “concreta”. “As marcas da identidade não estão inscritas no real”,
diz Penna, mas “os elementos sobre os quais as representações de identidade
são construídas são dele selecionadas”26. E esta seleção, devemos salientar, está
sempre associada a determinadas estratégias sociopolíticas.
É esta carga de ambivalência que carregam os símbolos que faz das
identidades realidades igualmente ambíguas, podendo “conduzir a lugares to-

24. HALL, 1996.


25. LÉVI-STRAUSS, 1977, pp. 10-11.
26. PENNA, 1992, p. 167.

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talmente inesperados”27. Ao mesmo tempo em que participam de uma lógica,
com “um componente ‘racional-real’”, os símbolos fazem parte do “imaginário
último ou radical”, pressupondo a capacidade de “ver em uma coisa o que ela
não é”28.
Para Castoriadis, o símbolo não se coloca como “necessidade natural” e
“nem pode privar-se em seu teor de toda referência ao real”. Para ele, somente
em alguns ramos da matemática poderíamos encontrar “símbolos totalmente
‘convencionais’”.29 Assim, acrescenta DaMatta,
“(...) se a sociedade classifica, ela também opera e manipula suas classifi-
cações. Além disso, as sociedades não classificam o nada, mas, ao contrá-
rio, coisas, pessoas, relações, objetos [o espaço, poderíamos acrescentar],
idéias, etc.” Nas sociedades modernas ou complexas “deslocamentos de
objetos (...) criam símbolos que devem ser dominantes, servindo como
pontos de referência para a contaminação de todo o sistema.”30
Numa leitura mais recente, já no diálogo direto com vertentes do pen-
samento pós-estruturalista, Woodward afirma que “a construção da identidade
é tanto simbólica quanto social” 31, um de seus principais aspectos é que ela
“está vinculada também a condições sociais e materiais”32. Assim, de alguma
forma retomando Lévi-Strauss, “a luta para afirmar as diferentes identidades
tem causas e conseqüências materiais”.33
Estas “causas e conseqüências materiais”, podemos afirmar, vão desde
a alusão a objetos do cotidiano até espaços geográficos bastante amplos que se
tornam então referenciais simbólicos através dos quais os grupos se reconhe-
cem e afirmam suas identidades. Uma das bases, portanto, que pode dar mais
consistência e eficácia ao poder simbólico na construção identitária, diz respei-
to aos referenciais espaciais, materiais (no presente ou no passado) aos quais a
identidade faz referência. A estes referenciais Bernard Poche, ao trabalhar com
as identidades regionais, denominou “espaços de referência identitária”.34
Para Poche, poderíamos tanto falar de identidade cultural quanto de refe-
rência simbólica, mas o primeiro termo acabou prevalecendo, em função de evocar
mais claramente um “dinamismo potencial” e de ter uma relação mais clara com
fundamentos históricos e etnológicos – “em particular a língua, mas também certos
elementos da economia local mantidos através do ‘gênero de vida’”.35 O conjunto
27. CASTORIADIS, 1982, p. 147.
28. Idem, p. 155.
29. Op. Cit., p. 144.
30. DAMATTA, 1983, p. 76.
31. WOODWARD, 2004[1997], p. 10, grifos da autora.
32. Idem, p. 14.
33. Idem, p. 10.
34. POCHE, 1982.
35. Idem, 1982, p. 4.

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de signos e de representações sociais criados para fortalecer uma identidade cul-
tural pode incluir o próprio espaço – ainda que este carregue um conteúdo (uma
“aura de subjetividade”) tanto positivo quanto negativo.
Como afirmou de forma muito clara Stuart Hall:
“Todas as identidades estão localizadas no tempo e no espaço simbóli-
cos. Elas têm aquilo que Edward Said chama de suas ‘geografias imagi-
nárias’, suas ‘paisagens’ características, seu senso de ‘lugar’, de casa������
/�����
lar,
de heimat, bem como suas localizações no tempo – nas tradições inven-
tadas (...).”36
Devemos enfatizar ainda que não se trata apenas de geografias “imagi-
nárias”. Como afirmamos anteriormente, a territorialidade pode tanto situar-se
num campo eminentemente simbólico, como pode levar a ações efetivas na
construção ou na defesa e��������������������������������������������������
/ou�����������������������������������������������
manutenção material de espaços de identidade.
Ainda que a relevância das questões identitárias decorra da eficácia ou perfor-
mance da identidade e não propriamente de sua “verdade”, isto não impede
que a referência a recortes espaciais “reais” não auxilie, e muito, na eficácia dos
discursos identitários.
Assim, no que estamos denominando aqui de identidades territoriais,
escolhem-se (ou, concomitantemente, reconstroem-se) espaços e tempos, ge-
ografias e histórias para moldar uma identidade, de modo que os habitantes de
um determinado território se reconhecem, de alguma forma, como participan-
tes de um espaço e de uma sociedade comuns.
Em trabalho anterior37 ressaltamos que, se toda identidade territorial é,
obviamente, uma identidade social, nem toda identidade social (como a iden-
tidade de gênero, por exemplo) é, obrigatoriamente, uma identidade territorial.
Esta se caracteriza como a identidade social que toma como seu referencial
central, definidor do grupo, o território ou, num sentido mais amplo, uma fra-
ção do espaço geográfico.
Trata-se de uma leitura mais restrita do que a de autores que conside-
ram uma espécie de “identidade espacial” como componente indissociável de
qualquer processo social (que se torna, assim, sempre, um processo “socioespa-
cial”). Na verdade, podemos afirmar que, como toda relação social, toda iden-
tidade cultural é “espacial”, na medida em que se realiza no/através do espaço,
mas nem toda identidade é “territorial”, no sentido da centralidade adquirida
pelo referente espacial em estratégias de apropriação, culturais e políticas, dos
grupos sociais – ou seja, realiza-se claramente, neste caso, o elo entre espaço,
política e cultura.

36. HALL, 1997, p. 76.


37. HAESBAERT, 1999.

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A identidade territorial só se efetiva quando um referente espacial se
torna elemento central para a identificação e ação política do grupo, um espaço
em que a apropriação é vista em primeiro lugar a partir da filiação territorial,
e onde tal filiação inclui o potencial de ser ativada, em diferentes momentos,
como instrumento de reivindicação política. Os casos mais conhecidos e “tradi-
cionais” são os das identidades de bairro (articulando “associações de morado-
res”, por exemplo), de municípios, regiões e Estados-nações. Mas vários outros
grupos ou comunidades podem também, ocasionalmente, acionar identidades
territoriais de acordo com as estratégias políticas em jogo, muito além do sim-
ples jogo “tradicional” das identidades territoriais “encaixadas” que caracteri-
zam o mundo estatal moderno (da propriedade privada e do município ou zona
administrativa ao Estado-nação ou Bloco de Poder).
Entre as identidades territoriais do mundo moderno, a mais articulada
e difundida, sem dúvida o seu esteio político-identitário básico (embora, como
já destacamos, hoje parcialmente em crise), é a identidade nacional. A própria
idéia de nação, ao ser tratada no mundo moderno intimamente vinculada à
idéia de Estado – que é intrinsecamente territorial – acaba sendo sempre mais
do que simplesmente uma “comunidade imaginada”, como propôs Anderson38,
pois necessita de um referente ou de uma base espacial-territorial para ser cons-
truída. O espaço, em sua dimensão material, não é apenas um “instrumento de
manipulação” no livre jogo da “invenção” identitária, mas um referencial que,
uma vez “eleito” (ou “reconstruído”), passa a interferir na própria intensidade
e longevidade da dinâmica identitária.
Esses espaços de referência para a construção de identidades territoriais
podem ter origens muito distintas. Em trabalho recente sobre as identidades
territoriais�������������������������������������������
/regionais na �����������������������������
Faixa de Fronteira brasileira39 distinguimos alguns ti-
pos, conforme a relação “escalar” entre espaço representado e representação
do espaço.
Ao primeiro tipo, de relação mais direta, denominamos região-paisa-
gem, o segundo, de relação mais indireta, denominamos paisagem-símbolo.
Não há dúvida de que nos dois casos determinadas paisagens são configuradas
como símbolos da identidade regional, mas enquanto no primeiro elas parecem
se confundir mais nitidamente com a própria área da região no seu conjunto
(como o binômio rio-floresta estendido para a Amazônia como um todo), no
segundo trata-se de uma paisagem específica que é transposta como símbolo de
toda uma área (como o caso da estância latifundiária da Campanha Gaúcha
para todo o Rio Grande do Sul, ou do Pão de Açúcar e do Corcovado para a
cidade do Rio de Janeiro e mesmo, em certo sentido, para o Brasil).
Ao lado da paisagem, mais ou menos carregada de atributos “naturais”
38. ANDERSON, 1989.
39. MACHADO ET AL., 2005.

45

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(em geral destacados pela abrangência de sua manifestação geográfica), temos
o “tempo espacial”40 a ela incorporado, que pode fornecer referenciais identitá-
rios não só geográficos como também históricos – ou, para sermos mais precisos,
geo-históricos. A “densidade histórica” dos lugares exerce assim uma influência
muito relevante. O que não impede que, em lugares com menor especificidade
ou “densidade” histórica, esses referenciais também sejam “inventados”, como
ocorre na proposta separatista da Padânia, no norte da Itália, ou, no caso brasi-
leiro, nas propostas para a criação de novos estados41.
A identidade territorial sem dúvida toma por base um contexto muito
mais complexo do que a simples “paisagem”, imbricando fatores como a dife-
renciação sócio-econômica e cultural dos espaços (tanto no sentido de dife-
renças de grau, como no jogo das desigualdades sociais, quanto de diferenças
mais qualitativas, como etnia, religião, língua e outros elementos culturais),
as institucionalidades e divisões político-administrativas previamente existen-
tes (que também compõem a “densidade histórica”) e os níveis de mobilidade
da população – o peso das migrações na construção (multi) identitária. Este
último elemento, vinculado ao incremento da mobilidade espacial, é crucial
para o entendimento de um aspecto inovador na construção das identidades
territoriais contemporâneas, “identidades territoriais no e pelo movimento”, a
ser tratado no próximo item.

4. Das identidades “desterritorializadas” às identidades multiterri-


toriais (ou: do hibridismo cultural à multiterritorialidade)
A mobilidade crescente e a complexidade das relações espaço-tempo
na atualidade levam à constituição de territorialidades (ou melhor, processos
de territorialização) também mais móveis e de caráter múltiplo – tanto no que
se refere à sua constituição político-econômica quanto simbólico-cultural. As-
sim, ocorre igualmente uma mutação nas formas da relação entre território e
identidade, tanto no sentido território-identidade, porque a territorialização se
tornou múltipla e complexa, afetando as nossas construções identitárias, quan-
to no sentido identidade-território, pois os processos de identificação nunca
foram tão mutáveis nem estiveram afetados por tamanha multiplicidade e/ou
hibridismo cultural, repercutindo assim na intensificação do fenômeno que de-
nominamos de multiterritorialidade.
O aumento generalizado da mobilidade, nos mais diferentes níveis e se-
tores da sociedade, faz com que a identidade seja construída também, de forma
crescente, no���������������������������������������������������������������
e com o�������������������������������������������������������
movimento. Assim, os próprios referentes espaciais de
40. SANTOS, 1996.
41. . A este respeito ver nosso estudo sobre a “invenção” da identidade são-franciscana na proposta
de criação do Estado de São Francisco, no oeste baiano. HAESBAERT,
����������������
1996.

46

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identidade podem estar vinculados ao movimento, a “espaços em movimento”.
Em parte como originalmente ocorria com grupos nômades, vivenciamos hoje
a possibilidade de construir identificações territoriais na mobilidade, ou, se pre-
ferirmos, com a mobilidade.
Tal como na distinção de Bauman42 entre “turistas” e “vagabundos”, a
mobilidade alcança hoje a condição de um diferenciador social básico – não
apenas por distinguir os diferentes graus de mobilidade entre os grupos sociais,
mas também por demonstrar a capacidade profundamente desigual de deslan-
char e de controlar estes fluxos – naquilo que Doreen Massey43 denominou
“geometrias de poder” da compressão espaço-tempo.
Equivocadamente, no nosso ponto de vista, alguns autores visualizaram
nessas “identidades migrantes” processos identitários “desterritorializados”. O
geógrafo Mitchell, por exemplo, afirmou que:
“(...) para um número incontável da população mundial a vida é defi-
nida por uma espécie de status de permanente Ausländer, e o desen-
volvimento de algo como uma identidade migrante. (...) cada vez mais
trabalhadores comuns encontram na ‘globalização’ não um novo e atra-
ente ‘cosmopolitismo’, mas um permanente estado de deslocamento.
‘Identidades desterritorializadas’ certamente estão continuamente se
formando, mas o que elas significam pode ser muito mais uma função
de quem você é (em termos de status de classe) do que de onde você é
(Nogales, Nottingham ou Nairóbi).”44
Em primeiro lugar, a associação entre mobilidade, migração e desterrito-
rialização é extremamente complexa45. Afirmações como esta, geralmente ges-
tadas nos países capitalistas centrais, acabam menosprezando não só a extrema
heterogeneidade dos processos de construção identitária (e migratórios) a nível
mundial, como a multiplicidade intrínseca às próprias experiências territoriais,
parcialmente inovadoras, construídas na mobilidade. Como defendemos ante-
riormente46, muito mais do que desterritorialização, em geral é de uma multi-
territorialidade que se trata. As novas formas de organização territorial, mar-
cadas pela sobreposição e/ou descontinuidade, pelo movimento, pela crescente
multiplicidade e “hibridismo”, devem ser mais profundamente debatidas.
Os processos culturais de “hibridação” (ou “hibridização”) implicariam,
a princípio, também, territórios múltiplos, “híbridos”. ������������������������
O termo hibridismo, dis-
cutido em maior detalhe em outro trabalho47, passou de uma conotação unila-
42. BAUMAN, 1999.
43. MASSEY, 2000[1991].
44. MITCHELL, 2000, p. 280, grifos do autor.
45. HAESBAERT, 2005b.
46. HAESBAERT, 2004 e 2005b.
47. HAESBAERT, no prelo.

47

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teralmente negativa (sinônimo de “perversão” e “degeneração” – da raça) para
outro extremo, de total positividade (sinônimo de caráter aberto, democrático
e enriquecedor de uma cultura).
Pouquíssimo utilizado até o século XVIII, segundo o Dicionário Oxford
da língua inglesa, o termo hibridismo é, na leitura de Young48, “uma palavra
do século XIX”. Remontando a um sentido biológico e, mais especificamente,
botânico (como até hoje aparece na ciência agronômica), passa de um conceito
fisiológico, ao longo do século XIX, para um conceito cultural, no século XX49,
firmando-se a partir da década de 80 como um conceito central dos Estudos
Culturais, especialmente na chamada abordagem pós-colonial.
Sem uma conotação positiva ou negativa a priori, associamos hibridismo cul-
tural não com desterritorialização, como fazem muitos autores, mas com multiterri-
torialidade, o que significa voltar à questão inicial em relação a autores que, como
Mitchell ou Canclini, advogam uma associação direta entre processos de hibridação e
dinâmicas de desterritorialização, ou seja, num mundo cada vez mais “híbrido” ou de
identidades múltiplas, os territórios teriam cada vez menor expressão. Para Canclini
“culturas híbridas” são “geradas ou promovidas pelas novas tecnologias comunicacio-
nais, pela reorganização do público e do privado no espaço urbano e pela desterrito-
rialização dos processos simbólicos”.50
Tal como já reconhecemos em debate anterior:
“Numa leitura de território que enfatiza a dimensão cultural, temos a
desterritorialização vinculada ao desenraizamento e ao enfraquecimen-
to das identidades territoriais. Aqui, o território pode adquirir uma co-
notação culturalista e, muitas vezes, confundir-se com o conceito de
lugar (...) – referência simbólica que, sob a des-territorialização, perde
sentido e se transforma em um “não-lugar” (Augé, 1992) ou numa rede
(como no “espaço dos fluxos” de Castells, 1996). Estes não-territórios,
culturalmente falando, perdem o sentido de espaços aglutinadores de
identidades na medida em que as pessoas não mais desenvolvem la-
ços simbólicos e afetivos com os lugares em que vivem. Além disso, na
construção de suas identidades culturais, cada vez menos teríamos a
participação das referências espaciais ou da relação com um espaço de
referência identitária.”51

48. YOUNG, 2005[1995].


49. Young, com base no já citado Dicionário Oxford, afirma que a primeira utilização do termo num
sentido filológico data de 1862, quando passou a denotar “uma palavra compósita formada de
elementos pertencentes a línguas diferentes”. Bakhtin, já no século XX, vai dar-lhe um outro rigor
teórico nesta linha do hibridismo filológico ou “lingüístico”, expressando a forma dupla com que a
linguagem se manifesta, veiculando duas vozes: “uma mistura de duas línguas sociais dentro dos
limites de um único enunciado” (Bakhtin,
��������������������������������
apud Young, 2005:25).
50. CANCLINI, 1997, p. 29.
51. HAESBAERT, 2001, p. 126.

48

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Na verdade, muito mais do que perderem vínculos de identificação com
espaços determinados, “desterritorializando-se”, o mais comum é que as pesso-
as e os grupos sociais desenvolvam, concomitantemente, vínculos identitários
com mais de um território ao mesmo tempo, ou com territórios que em si mes-
mos manifestam características muito mais instáveis, múltiplas e/ou híbridas.
Trata-se assim de um claro processo de “multiterritorialização”, seja de forma
sucessiva, vivenciando-se alternadamente distintos territórios, seja de forma
simultânea, tanto no sentido de apropriar-se de um espaço marcado pela mul-
tiplicidade cultural, quanto no sentido de “acessar” e exercer influência sobre
distintos territórios (via ciberespaço, notadamente).
A multiterritorialidade (ou o processo de multiterritorialização), discu-
tida em maior detalhe em outro trabalho52, mais do que no sentido genérico da
experiência de vários territórios ao mesmo tempo, possibilidade que, de alguma
forma, sempre existiu (na medida em que “toda relação social implica uma
interação territorial, um entrecruzamento de diferentes territórios”,53 pode ser
definida, de forma mais estrita, como uma:
“(...) reterritorialização complexa, em rede e com fortes conotações ri-
zomáticas, ou seja, não-hierárquicas, (...) a possibilidade de acessar ou
conectar diversos territórios, o que pode se dar tanto através de uma
‘mobilidade concreta’, no sentido de um deslocamento físico, quanto
‘virtual’, no sentido de acionar diferentes territorialidades mesmo sem
deslocamento físico, como nas novas experiências espaço-temporais
proporcionadas pelo chamado ciberespaço.” 54
O exemplo mais difundido de multiterritorialidade é, muito provavel-
mente, o das grandes diásporas de imigrantes. Através delas poderíamos identi-
ficar uma das expressões mais acabadas do fenômeno do hibridismo cultural e,
no nosso ponto de vista, da multiterritorialidade55. É muito importante lembrar,
contudo, que, mesmo no que se refere às migrações transnacionais, a intensifi-
cação da multiterritorialidade não é a regra.
O aumento das migrações pode levar tanto a uma proliferação de mi-
cro-espaços de identidade, segregados��������������������������������������
/�������������������������������������
segregadores, quanto a um entrecruza-
mento de traços culturais que produzem espaços efetivamente híbridos, virtuais
articuladores de novas e mais abertas identificações territoriais – ou, o que
talvez seja mais comum, produzir uma espécie de amálgama em que convi-
vem e se articulam estas duas formas de territorialidade. Assim, o território
pode veicular a articulação de poderes simbólicos de múltiplas faces, que ora

52. HAESBAERT, 2006.


53. HAESBAERT, 2004, p. 344.
54. Idem, pp. 343-344.
55. Para uma análise mais detalhada do caráter “multiterritorial” das diásporas, ver o item “A multi-
territorialidade das diásporas” em HAESBAERT, 2004, pp. 354-359.

49

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reforçam a segregação e o fechamento – naquilo que denominamos “reclusão
territorial”, e ora potencializam uma dinâmica de convívio ou de ativação de
múltiplas identidades.

5. O outro lado da multiterritorialidade: essencialização identitária


e reclusão territorial
Este mundo tido por tantos como cultural e geograficamente “dester-
ritorializado”, está na verdade promovendo processos muito diversos, sendo
impossível delinear um único movimento ou mesmo definir claramente uma
direção dominante. No máximo poderíamos falar em “tendências”. Neste perí-
odo tão complexo argumenta-se tanto em favor de um mundo “sem fronteiras”
(pelo mesmo pressuposto de que viveríamos todos “nas fronteiras”), quanto de
um mundo cada vez mais dividido (por exemplo, pelas “linhas de fratura” entre
civilizações, na visão conservadora de Huntington56). De fato o que está em
jogo é a impossibilidade de compreendermos este mundo com a pretensão geo-
graficamente universalista e historicamente cumulativa dos instrumentos lógi-
cos e “totalizantes” com os quais, tradicionalmente, tentávamos interpretá-lo.
Assim, no caso das identidades, como sintetizam Isin e Wood57, nem a
abordagem essencialista que “congela” a diferença entre os grupos sociais, nem a
abordagem construtivista que “dissolve” esta diferença, no desejo ambivalente de
ao mesmo tempo afirmá-la e transcendê-la, são capazes da dar conta da comple-
xidade das relações de construção identitária. Segundo estes autores, freqüente-
mente negligenciamos o fato de que “identidades não são somente formadas por
grupos buscando reconhecimento, mas também por grupos buscando a domina-
ção”58, sendo “inadequado colocar o foco sobre um aspecto da identidade (fluidez
e multiplicidade) às custas do outro (solidez e relativa permanência)”.59
Isin e Wood acrescentam que, embora cruciais, visões não-essencialistas
e múltiplas da identidade, como aquelas desenvolvidas por Stuart Hall60:
“(...) deixam em aberto uma lacuna para entender porque grupos têm
uma impressão tão forte sobre suas identidades e invocam noções essen-
cialistas em suas lutas por reconhecimento. Como argumentou Calhoun
(1994:14-16), tal construtivismo social pode tornar-se exclusionário
quando todo esforço de identificação de grupo é criticada por essencia-
lismo.”61

56. HUNTINGTON, 1997.


57. ISIN e WOOD, 1999.
58. Idem, p. 15.
59. Idem, p. 19.
60. HALL, 1996.
61. ISIN e WOOD, 1999, pp. 16-17.

50

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Propomos então associar aqui aquilo que estamos denominando de “o
outro lado” dos processos de multiterritorialização com a idéia da re-essen-
cialização identitária, claramente evidenciada na proliferação de fundamenta-
lismos, notadamente os fundamentalismos nacionalistas, étnicos e religiosos.
Não como se ela fosse apenas a “contra-face”, “dialeticamente” articulada à
territorialização cada vez mais múltipla do nosso tempo, mas também como
um “outro lado”, ambivalente – que, embora aparentemente “do lado de fora”,
insere-se num jogo que é ao mesmo tempo de contradição e de ambigüidade.
Peter Burke, em seu trabalho sobre o hibridismo cultural, reconhece que
não só o hibridismo não é um bem em si mesmo (“não tenho a menor intenção
de apresentar a troca cultural como enriquecimento, esquecendo que às vezes
ela ocorre em detrimento de alguém”62), como pode conviver com seu aparente
contrário, os movimentos “tradicionalistas” ou, no nosso entender, de relativa
“reclusão” ou fechamento ao maior intercâmbio cultural. Assim, diz o autor:
“O preço da hibridização, especialmente naquela forma inusitadamente
rápida que é característica de nossa época, inclui a perda de tradições
regionais e de raízes locais. Certamente não é por acidente que a atual
era de globalização cultural, às vezes vista mais superficialmente como
“americanização”, é também a era das reações nacionalistas ou étnicas
– sérvia e croata, tútsi e hutu, árabe, basca e assim por diante.” 63
Numa interessante alusão à obra do antropólogo Gilberto Freyre, Burke
lembra que ele “louvou notavelmente tanto o regionalismo quanto a mesti-
çagem”, embora geralmente mostrando uma tensão existente entre estes dois
processos.
Assim, a aparente dinâmica de desterritorialização, que na verdade
pode estar referida à abertura para a experimentação múltipla de territoriali-
dades, pode também jogar a favor do seu contrário, uma espécie de retorno às
territorialidades mais exclusivistas e relativamente fechadas. Diante da apa-
rente perda de referenciais identitário-territoriais e/ou frente a uma crescente
fragilização material e simbólica, ou ainda através de uma avaliação crítica (por
aversão e/ou temor) em relação à velocidade das transformações e multiplicida-
de desses referenciais, muitos grupos se apegam às suas “raízes” identitárias, que
se tornam assim uma espécie de último “capital” (simbólico), reconstruído atra-
vés da história e da geografia e, por isto, tido como sólido e “indestrutível”.
Devemos reconhecer ainda que esse pretenso “retorno às origens” ou
àquilo que é encarado como o elemento menos vulnerável, mais duradouro ou
“enraizado” na reprodução dos grupos sociais, não é uma prerrogativa dos gru-
pos subalternos, pois pode se manifestar também entre os grupos hegemônicos.
Para os mais abnegados trata-se em geral do temor pelo “novo” e o imprevisível
62. BURKE, 2003, p. 18.
63. Idem.

51

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que a sociedade da mobilidade (ou que sobrevaloriza a mobilidade64) promove.
Para os mais pobres é a debilidade das expectativas sob o desemprego estrutural
e a insegurança de toda ordem que pode levá-los a recorrer à sobrevalorização
de um recurso simbólico-identitário, como a língua, a religião, a etnia, a nacio-
nalidade – ou vários deles ao mesmo tempo.
Apesar de seu caráter intrinsecamente mutável, as identidades sociais
manifestam múltiplas durações no tempo. O fato de nunca se manifestarem
exatamente como uma “realidade” objetiva, “dada”, não implica, obviamente,
que as identidades sejam sempre frágeis e de curta duração. Aliás, se formos
avaliar a longevidade dos fenômenos sociais nos últimos dois milênios, efetiva-
mente são processos identitários, como aqueles ligados à religião, que tiveram a
mais longa duração. Manuel Castells chegou até mesmo a afirmar:
“A construção da vida, das instituições e da política em torno de identi-
dades culturais coletivas é historicamente a regra, e não a exceção. A ex-
ceção, na verdade, são as sociedades forjadas a partir dos Estados-nações,
que surgiram a favor do capitalismo e do estatismo na época industrial, e
que se estenderam a todo o planeta em sua expressão colonial”65
Ancoradas em determinados referenciais espaço-temporais, as identi-
dades acabam ganhando aparência de “concretude” e com freqüência são assim
essencializadas, como se fizessem parte indissociável dos grupos sociais a que
se referem. O poder da identidade social é tanto mais enfático quanto maior
for a eficácia dos grupos sociais em “naturalizar” esta identidade, tornando
“objetivo” o que é pleno de subjetividade, transformando a complexidade da
construção simbólica no simplismo de uma “construção natural”, a-histórica e
aparentemente estática.
Como já afirmava Benoist nos anos 70, como que reafirmando uma ca-
racterística recorrente:
“Uma obsessão atravessa o nosso tempo, saturado de comunicação,
aquela do retorno de cada um sobre seu território, sobre o que faz sua
diferença, isto é, sua identidade separada, própria. Sonho do reenraiza-
mento no espaço insular de uma separação.”66
Numa visão conservadora, mais tradicional, a identidade como um todo
referir-se-ia, antes de mais nada, a algo estável, a-temporal e a-espacial – ou
melhor, a um tempo-espaço fixo e imutável ou que, cíclico, permitiria reviver
constantemente as “origens”. A historicidade do próprio espaço seria transfi-
gurada em mito, no “eterno”, a identidade moldada através de “figuras parti-

64. Sobre este debate em torno da mobilidade e seus efeitos sociais na contemporaneidade, ver
URRY, 2000.
65. CASTELLS, 1998.
66. BENOIST, 1977, p. 13.

52

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culares (...) encarnadas na história e na geografia”67. A referência ao território
enquanto entidade material revela-se aí de particular eficácia – o “eterno re-
torno” da identidade sendo garantido pela partilha cotidiana de um território
comum.
O clássico trabalho etnográfico de Elias para uma pequena cidade do in-
terior inglês, demonstra como a simples “longevidade” num local de residência
pode fortalecer laços identitários (com o lugar) capazes de justificar todo um
“arsenal de superioridade e desprezo grupal”68 em relação a novos residentes:
“(...) a exclusão e a estigmatização dos outsiders pelo grupo estabelecido eram
armas poderosas para que este último preservasse sua identidade e afirmasse
sua superioridade, mantendo os outros grupos firmemente em seu lugar.”69
A “naturalização” implica uma espécie de “direito” adquirido numa es-
paço-temporalidade parcialmente “efetiva” (no caso da comunidade inglesa)
ou completamente inventada. Passa-se então a legitimar a identidade do grupo
pelo “laço territorial”, “indestrutível” relação travada entre o homem e a terra
e que lembra, no seu extremo, as leituras biologicistas da territorialidade, se-
gundo as quais o comportamento “territorial” humano seria decorrência de sua
origem ou condição animal, uma extensão do comportamento territorial dos
animais70.
Surgem então expressões claramente “territorialistas”, como estas da ala
mais conservadora do “tradicionalismo” gaúcho:
“Telurismo é a influência do solo de uma região sobre os usos e costumes
de um povo. É a força que brota das entranhas da terra. (...) Graças ao
telurismo criou-se a imagem do gaúcho amante da liberdade, um ser
indomável, habitante das planícies dos pampas sulinos.”71
Em casos como este podemos afirmar, como o faz o cientista político
francês Bertrand Badie:
“(...) os discursos identitários se atêm (à “naturalização”) para estender
ao território a qualidade indiscutível de atributo natural da identidade
reivindicada. A estratégia que daí deriva é clara e cada vez mais difun-
dida: a uma identidade deve corresponder um território.”72
Trata-se de um fenômeno nada desprezível no mundo contemporâneo.
Não é à toa, portanto, que um autor conservador como Huntington73 tenha
67. MEMMI, 1997, p. 99.
68. ELIAS, 2000, p. 21.
69. Idem, p. 22.
70. . Para um balanço e uma crítica mais detalhada desta relação entre território animal e humano,
ver nossa análise em Haesbaert, 2004 (especialmente páginas 44-55).
71. LAMBERTY, 1989, p. 56.
72. BADIE, 1995, p. 102.
73. HUNTINGTON, 1997.

53

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chegado ao extremo de propor, numa generalização extremamente questioná-
vel, que a grande fonte de conflitos seria a partir de agora de ordem cultural, ou
seja, ocorreria nas “linhas de fratura” entre diferentes civilizações. Sua proeza
em conseguir identificar claramente o “território” de cada uma dessas grandes
civilizações é a melhor evidência de que, ainda que de modo algum globalmen-
te projetada, a questão do vínculo – re-essencializado – entre identidade (no
caso, “civilizacional”) e território está na ordem do dia.
Esses processos de construção territorial fundados numa visão naturali-
zante e essencializada da identidade podem ser uma das origens – e ao mesmo
tempo uma conseqüência – daquilo que denominamos dinâmicas de “reclusão
territorial”74, o relativo fechamento em torno de territórios excludentes em
que, no caso da perspectiva cultural-identitária aqui enfatizada, promovem-se
separações mais rígidas entre insiders e outsiders.
Embora os processos de globalização tenham afetado muito esse tipo de
“reclusão”, com uma permeabilidade espacial crescente (construindo mesmo
um “sentido global de lugar”, nos termos de Massey75), é importante lembrar
sempre o movimento extremamente desigual com que a(s) globalização(ões) se
difunde(m)76. Segundo Hall77, por exemplo, teríamos hoje três formas, conco-
mitantes, de manifestação identitária:
-. as identidades “globais” ou a diluição das identidades pela globaliza-
ção [muito questionável, neste caso, o termo “diluição”];
-. as identidades de resistência, que retomam ou reforçam antigas me-
mórias coletivas, como nos movimentos neonacionalistas;
-. as novas identidades pluriculturais, fruto do crescente diálogo entre o
global ou universal e o local ou particular.
Na verdade, o que estamos identificando como processo de acirramento
de naturalizações e essencialismos identitários não está simplesmente ligado
ao que Hall denomina “identidades de resistência”. Na medida em que os pró-
prios circuitos da globalização capitalista – e a biopolítica que a acompanha
– instauram “espaços de exceção”, como diz Agamben78, onde não funciona
o padrão jurídico-político “normal” do Estado (os “campos”, na linguagem do
autor), criam-se condições e ambientes favoráveis à produção de novos “terri-
torialismos” identitários. A busca de uma relação biunívoca e exclusivista entre

74. HAESBAERT, 2005a.


75. MASSEY, 2000.
76. . Sousa Santos (2003), afirmando que “a rigor, o termo globalização só deveria ser usado no
plural”, define-a como “o processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua
influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de considerar como sendo local
outra condição social ou entidade rival” (p. 433).
77. HALL, 1997.
78. AGAMBEN, 2002 e 2004.

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identidade cultural (nacional, étnica, religiosa...) e território insere-se em um
dos mais eficazes – e por isso mais perigosos – processos contemporâneos de
segregação social.

6. (Não) Concluindo
Sem dúvida nossos processos de identificação social estão de forma cres-
cente revelando, na prática, o caráter sempre relacional e, pelo menos par-
cialmente, “híbrido” das identidades. No caso das identidades cuja coesão é
construída a partir (ou através) de referentes espaciais/territoriais zonais bem
delimitados, como as identidades de bairro (ou, em certos casos, de “guetos”79),
de regiões ou de Estados-nações, os processos de globalização trouxeram sérios
complicadores.
Com a globalização, não só muitas identidades envolveram-se num mo-
vimento mais aberto em termos de novas hibridações, como o próprio espaço
e o território passaram a ser construídos de forma muito mais múltipla e com-
plexa. Neste sentido, reconhecemos, analiticamente, que a construção de iden-
tidades territoriais envolve um movimento que vai da identidade ao território
e do território à identidade. Embora na prática estejam sempre articuladas de
forma concomitante e indissociável, alguns casos sugerem reconhecer o predo-
mínio de uma direção em relação à outra, sobretudo para enfatizar o papel das
representações territoriais nesses contextos.
Assim, no movimento liderado pela Liga Norte italiana pela autonomia
da “Padânia” temos claramente uma espécie de “imposição” de um território e,
com ele, de uma identidade territorial que, de outra forma, fora do sentido po-
lítico-estratégico com que foi proposta no interior do movimento, certamente
não se articularia. O mesmo vale para movimentos de menor amplitude e pre-
tensão “territorial” (em termos de autonomia), como os de formação de muitos
novos estados no Brasil.
O exemplo por nós trabalhado para o estado do São Francisco, no oeste
baiano80, é bem evidente desta “construção territorial” para a configuração de
uma identidade. Nestes casos a natureza “híbrida” da identidade é um pressu-
posto óbvio, tendo em vista que o próprio território, em termos dos novos limi-
tes propostos, ausente no “espaço vivido” dos grupos locais, nasce de um jogo
que mescla elementos de distintas matrizes e amplitudes geo-históricas.
Ao mesmo tempo em que, teoricamente, são vistas sempre como ine-

79. Falamos “em certos casos” porque, mesmo nos verdadeiros guetos o aparente territorialismo
identitário se confunde muitas vezes com processos dramáticos de “desidentificação”, especial-
mente entre os jovens.
80. HAESBAERT, 1996.

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identidades_territorios.indb 23 3/5/2007 13:09:01


rentemente “híbridas” – e “inventadas”, para usar o termo de Hobsbawm e
Ranger81 relativo às tradições – as identidades podem, como vimos, ser reco-
nhecidas e postas em prática por seus produtores e/ou “usuários” como homo-
gêneas e “naturais”, parte de uma alegada “essência” dos grupos aos quais são
atribuídas. Por seu caráter simbólico, sempre aberto a novas interpretações, as
identidades acabam sendo objeto de inúmeras reconstruções – que incluem o
próprio fechamento e a “exclusividade”, como se, neste caso, a cada identidade
cultural devesse corresponder um território, uno, sem sobreposições.
Isso significa, como ressaltamos ao longo do texto, que, ao lado do que
reconhecemos como um “hibridismo” crescente de identidades e territórios
– construindo complexas multiterritorialidades (que incluem a própria iden-
tidade referenciada a espaços em movimento), temos, concomitantemente, o
relativo fechamento de diversos grupos, especialmente os mais subalternizados,
partidários de teses fundamentalistas que pretendem assegurar a dominância
de seus pressupostos identitários através da “reclusão” em espaços/territórios
cada vez mais “exclusivos” – ou que, por outro lado, criaram ou reforçaram um
senso de exclusivismo identitário ao serem forçados à reclusão territorial. Sem
esquecer que, em nome de discursos como os da “insegurança” e da “invasão
cultural” também os grupos hegemônicos desenvolvem formas renovadas de
(relativos) fechamento e impermeabilidade culturais.
O que não podemos é confundir a nossa simpatia por identidades mais
abertas e plurais com a realidade efetiva do nosso entorno, que mescla uma
grande heterogeneidade de manifestações. É a existência desta multiplicidade
de processos de identificação e o seu convívio paradoxal que nos permite afir-
mar que não temos hoje, nas práticas sociais efetivas, um padrão ou uma forma
geral de identidade (ou de identificação) territorial, muito menos uma direção
segura e definida para o futuro.
Torna-se fundamental, por isso, tal como têm mostrado os chamados
estudos pós-coloniais, a contextualização histórico-geográfica de cada movi-
mento de construção identitário-territorial – sem nunca desistir da luta contra
a xenofobia e os territorialismos, buscando, de certa forma, a utopia de Sara-
mago, “um mundo (...) que, para todo o sempre, declarasse intocável o direito
de cada qual a ser ‘persa’ pelo tempo que quiser e não obedecendo a nada mais
que às suas próprias razões”.82

81. HOBSBAWM e RANGER, 1984.


82. SARAMAGO, 1998, p. 25.

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identidades_territorios.indb 24 3/5/2007 13:09:01


capítulo III

ESPAÇO DOS POBRES. IDENTIDADE


SOCIAL E TERRITORIALIDADE NA
MODERNIDADE TARDIA

1. A questão da modernidade tardia


A questão central da presente reflexão repousa na indagação se há uma
incidência de espaços particulares e reconhecidos pela representação social
como tais, nesse sentido podendo ser compreendidos como territorialidades, na
construção da identidade social dos agrupamentos que ali vivem, na atualida-
de. Assim, a emergência da questão dialoga, por um lado, com o senso comum
e senso comum científico, que tendem a atribuir identidades sociais aos sujei-
tos a partir de sua inserção em territorialidade particular. Antes, uma ressalva.
Pois, se o procedimento de atribuir aos sujeitos sociais as características do
território a que estão associados, ao nível do senso comum, não é particular de
nossa contemporaneidade, tome-se como exemplo o tratamento dado às clas-
ses populares como classes perigosas na virada do século XIX para o XX e sua
definição espacial, as condições de emergência desse tratamento na atualidade,
e sua naturalização no discurso do senso comum científico, remetem a uma
problemática mais vasta, de fundo, a respeito da condição contemporânea. Na
medida em que a questão da identidade social na contemporaneidade é tratada
pela literatura como marcada por um processo de diluição, entendido como
perda de centralidade do que se denomina aqui como matrizes identitárias mo-
dernas.
A idéia de abordar como matriciais as identidades sociais centrais que
caracterizam a modernidade se fundamenta na compreensão que mesmo no
auge de sua função identitária estas sempre tiveram desdobramentos particula-
res, expressões históricas e culturais remetidas a elas, porém com configurações

. Em particular em HALL (2003, 2002 e 2000).

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particulares. Todavia, a partir da literatura sobre a modernidade consagra-se o
indivíduo, a classe e a nacionalidade, como referenciais centrais das identida-
des sociais modernas. Saliente-se, aqui, a proeminência da identidade fundada
na individualidade sobre as demais, já que tanto a modernidade afirma como
sujeito social seminal o indivíduo, como as demais construções identitárias se
referem inexoravelmente a ele.
Se a literatura que problematiza a condição identitária contemporânea
permite a abordagem desde um ponto de vista em que se assume o processo de
enfraquecimento dessas matrizes da modernidade como legítimo, tem-se um
pano de fundo teórico consolidado para investigar se tal processo contempo-
râneo incide sobre fenômenos sócio-espaciais, no que se refere à questão da
identidade social.
A ênfase na relação entre identidade social e espaço, pressuposto do
trabalho, e a construção do quadro contemporâneo de diluição da função ma-
tricial das identidades indivíduo, classe e nacionalidade, são o ponto de partida
para enfrentar a questão da existência de um “efeito de território” na for-
mação identitária, conforme se encontra difundido ao nível do senso comum
(inclusive o científico). Encaminha-se, dessa forma, a abordagem da definição
dessas matrizes para um sentido socioistórico. Ou seja, se realiza um trabalho
de (re) construção histórica dessas identidades sociais para compreendê-las em
sua função matricial, priorizando a análise de sua formação, tornando capaz de
dar sentido à configuração assumida contemporaneamente.
A escolha por essa abordagem, de viés socioistórico, explica-se pelo fato
de haver na literatura que trata da modernidade forte presença de dinâmicas
sócio-espaciais referenciando as transformações encontradas no momento de
formação das matrizes identitárias modernas. Ou seja, na formação das iden-
tidades modernas está presente com ênfase a questão do espaço. Logo, se a
incorporação das abordagens que apontam a condição contemporânea como
marcada por uma diluição das identidades sociais modernas já indicava a im-
portância de um viés socioistórico, a ênfase encontrada na literatura que trata
da configuração moderna sobre as relações espaço-sociedade, em especial no
momento de constituição da própria modernidade, constituição essa indisso-
lúvel da formação das identidades sociais que afirmarão a sociedade moderna,
tornam essa perspectiva analítica incontornável.
Além da reiterada referência às relações espaço-sociedade surge, nes-
sa mesma literatura ocupando função central na afirmação e estruturação dos
traços característicos da modernidade, a família, entendida enquanto organiza-

. Cf. BERMAN (1987) FOUCAULT (1985, 1977), ARIÈS (1978), SIMMEL (1998), THOMPSON (1995),
DUMONT (2000), MARX (1979, 1977, s/d) e WEBER (2000).
. Cf. BOURDIEU (1997).
. Em especial em SIMMEL (op.cit.), THOMPSON (op.cit.) e POLANYI (2000).

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ção social balizar na formação moderna. Daí, a necessidade de se realizar uma
análise focada na construção da família moderna, em um percurso que parte da
literatura sobre parentesco da antropologia, até sua configuração estritamente
moderna, passando pela organização em linhagens. Essa função central da or-
ganização social família na modernidade, seja em termos da formação subjetiva
do indivíduo, seja da inserção deste nas instituições sociais modernas, é tratada
como sendo de mediação. Colocada assim sua centralidade na formação da
modernidade, a família ganha uma abordagem particular e é, então, tomada
como organização social norteadora para a realização da pesquisa com base no
trabalho de campo.
A partir da tomada da família como organização social com função cen-
tral na afirmação das identidades modernas, dada sua função na constituição
social da individualidade como sujeito subjetivo e de inserção deste no interior
das instituições organizadoras da vida social na modernidade, emerge sua re-
levância socioeconômica na grande transição da sociedade feudal para a mo-
derna. Em particular, interessa para a questão em tela a função da família como
sujeito socioeconômico que articula dimensões como trabalho, espaço e senti-
mento, especialmente entre os pobres. Entende-se que a transformação para a
modernidade capitalista encontrou forte resistência entre os pobres, em espe-
cial no que se refere a sua participação no mercado de trabalho. Essa resistência
dos pobres em se constituírem como mercado de trabalho teve como desdobra-
mento sua estruturação enquanto classe, nos marcos da moderna sociedade ca-
pitalista de mercado. Desdobramento paradoxal, pois tanto a resistência em se
constituir como mercado como a própria constituição do mercado de trabalho
viram paradigmas para a identificação dos trabalhadores como classe.
Desde essa abordagem que especifica as dinâmicas de formação do in-
divíduo, classe e nacionalidade como matrizes identitárias modernas, em par-
ticular através da função mediadora da família, sendo que entre os pobres esta
assume, na grande transição, função socioeconômica profundamente articula-
da à espacialidade, busca-se melhor compreender o processo contemporâneo
de diluição das matrizes que permitiria o hipotético surgimento de identidades
sociais fundadas na inserção territorial. Em um movimento retrospectivo, par-
te-se para a construção do objeto de investigação, na realidade, na perspectiva
epistemológica e ideológica tomada, mais adequado é tratá-los como sujeitos
da pesquisa.

. Cf. DUMONT (op.cit.), GOW (1997), MALINOWSKI (1930) e SAHLINS (1999).


. Em ARIÈS (Op.cit.), FOUCAULT (1985) e ELIAS (2000).
. Ver em especial DUBY (1986).
. POLANYI (Op.cit.).

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2. Família como eixo de análise
Dada a potência simbólica que tem no contexto carioca e brasileiro a fi-
gura social do favelado, expressão nítida da atribuição de um efeito de território
definidor de identidade social pelo senso comum e senso comum científico, no
caso da sociedade brasileira, coloca-se como fenômeno particularmente sintéti-
co do problema da relação identidade-território o estudo da condição daqueles
que vivem em favela no espaço da metrópole do Rio de Janeiro.
Para realizar o estudo, além de analisar informações demográfico-sócio-
econômicas sobre a condição das favelas na cidade do Rio de Janeiro, toma-se
a perspectiva de construção de um caso empírico. Como se trata de averiguar
a existência sociológica de fenômeno socioespacial consagrado pela represen-
tação social, manifesto como senso comum e senso comum científico, isto é, a
existência da identidade social de favelado, e buscando manter a coerência na
construção da empiria com os elementos norteadores em termos analíticos,,
em que dimensões objetivas se explicam e ganham sentido desde condições
subjetivas, se escolhe como caso o que seria uma típica favela carioca. Típica,
digamos, ao nível da representação social. Assim, a escolha recai em uma favela
clássica da zona sul: o Pavão-Pavãozinho.
Além de informações quantitativas sobre o lócus elaborou-se um método
de investigação que incorpora elementos oriundos da tradição etnográfica e dos
estudos de antropologia urbana sobre as classes trabalhadoras ou populares10.
Se a questão em foco remete à construção identitária em função do espaço de
moradia e da representação social sobre aqueles que vivem nesse lócus, parece
necessário, assim como quando se trata das matrizes identitárias, construir uma
relação tempo-espaço. Tal abordagem fica reforçada por se tomar como noções
centrais para o tratamento da questão da relação identidade-território, a partir
da literatura, enraizamento11 e pertencimento12. Pois tais noções trazem em sua
formulação como aspecto incontornável a dimensão temporal. Então, para se
apropriar das relações favelado-favela, torna-se necessário, por um lado, des-
vendar um processo histórico e, por outro, estabelecer uma instituição ou orga-
nização como foco para a coleta de dados e eixo da investigação.
Não bastasse (1) a relevância assumida pela família moderna na forma-
ção da própria modernidade, e de suas matrizes identitárias, e de sua participa-
ção histórica enquanto unidade socioeconômica de resistência à constituição
de mercado de trabalho e, logo, da própria formação dos trabalhadores en-
quanto classe; (2) de sua centralidade nos estudos sobre as classes trabalhado-
. A experiência na coordenação de pesquisa de campo no ano de 2002 sobre mercado imobiliário
informal em 15 favelas permitiu o contato com uma base de informações sobre a situação das fave-
las no Rio e contatos com instituições e organizações associativas.
10. Cf. HOGGART (1986), GANS (1965), ELIAS (2000) e DUARTE(1986).
11. No sentido de embebbedness, cf. GRANOVETTER(1985).
12. Cf. ELIAS (Op. cit).

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ras e associação às noções de enraizamento e pertencimento; trata-se de (3)
organização fundante da própria territorialidade da favela, pois a ocupação da
área teve como unidade mínima famílias, demonstra tanto a investigação de
campo e as informações primárias sobre as favelas, como a própria literatura
sobre o tema13. Dessa forma, a família é tomada como organização social a ser
investigada em sua função constitutiva de uma identidade social dos moradores
da favela.
Para melhor compreender a dimensão histórica, intrínseca às noções de
enraizamento e pertencimento aqui tomadas como chaves para o desvenda-
mento da incidência das relações socioeconômicas no território, relações en-
tendidas como fundamentais para a efetivação de uma identidade social esta-
belecida a partir da territorialidade, define-se como foco da pesquisa as famílias
moradoras mais antigas, e como constituídores da rede de informantes a 1ª e 3ª
gerações de cada, tratadas como rede social.
A noção de rede social, aplicada à família, remete à literatura sobre
classes populares14 e ao pressuposto que essa seria a forma de estruturação da
organização social, na medida em que permite uma expansão além das rela-
ções consangüíneas e por aliança, ao incorporar agregados, tanto como uma
redução, por não incluir todos aqueles componentes da família em seu sen-
tido de parentalha. Além da coerência com a literatura, embora a ressalva15
a forma como é empregada no estudo usado como referência, em relação ao
funcionamento das famílias, a utilização da noção rede social permitiu que as
informações coletadas fossem tratadas como pertinentes a redes familiares, isto
é, incorpora-se como parte da informação as relações relatadas nas entrevistas
com os demais membros, cuja relevância atribuída permitiam que fossem tra-
tados na análise como parte da rede. Esse percurso só se torna possível graças
a flexibilidade intrínseca ao método, o que possibilitou o desvendamento da
relevância das relações, suas transformações ao longo do tempo e dinâmicas,
mesmo que externas à territorialidade tomada como parâmetro para constru-
ção do objeto empírico.
Como a questão tratada, a da identidade social na modernidade tardia,
tem uma escala espacial que vai muito além dos marcos de uma sociedade
nacional, e as condições de realização da investigação permitiram, buscou-se
construir um caso de controle em metrópole de país central do capitalismo, no
caso a França. Mantendo a coerência com o método empregado para a defini-
ção do lócus no Brasil, a partir da literatura sobre o tema pobres e espaço na
França e análise dos dados sobre as condições socioeconômicas das famílias na
região de Paris, a escolha caiu sobre os grandes conjuntos habitacionais, as cha-

13. Ver em especial PERLMAN (2002), ZALUAR (1999), LINS (2000) e BARCELLOS (2003).
14. Cf. BOTT (1976).
15. Em ELIAS (Op.cit)

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madas cités. São as cités que aparecem na representação social francesa como
espaço dos pobres e, tal como as favelas no Brasil, responsável pelas condições
socioeconômicas de seus moradores.
Na França, como no Brasil, é ao espaço onde vivem os pobres que o
senso comum e senso comum científico atribuem a responsabilidade pelas con-
dições de seus moradores. Lá, como aqui, os moradores das cités são tratados,
por princípio, como problemas, pois vivem em um espaço problema. Embora as
diferenças entre as condições, a posição na representação social da sociedade
francesa ocupada pela cité corresponde a da favela na sociedade brasileira. Tan-
to na fala dos cidadãos, na emissão pelos veículos de comunicação de massa
(como tevê e jornal), como na construção de dados e definição de espaços de
intervenção do poder público, tem-se coincidências alarmantes. A partir dessas
conclusões se pode definir um lócus para a pesquisa empírica na região de Paris:
o Clos St. Lazare, em Stains.

3. A favela e a cité.
Sendo a família entendida enquanto rede social, será essa extensão da
organização social que norteia as indagações iniciais sobre o espaço praticado,
e pela prática, como expressão indissolúvel da criação do sentimento de per-
tencimento, também, do enraizamento socioeconômico. Espaço que assim se
torna território. Durante as entrevistas-testemunhos, muitas vezes, são aciona-
das outras relações institucionais, além da rede social familiar, em geral relativo
à outra época, a do Pós-Guerra, época das sociedades afluentes, de constitui-
ção de Estados nacionais afirmados internamente pela formação de uma classe
trabalhadora urbana polarizada pelo operariado industrial e uma classe média
forjada no interior das grandes estruturas corporativas ligadas ao capitalismo
monopolista.
As informações sobre a rede de relações com nítida polarização das fa-
mílias, pela própria definição daquelas investigadas a partir da 3ª e 1ª gerações
das mais antigas do Pavão-Pavãozinho, articulam, simultaneamente, uma rede
de informantes, todos com pelo menos um elo entre si, sendo que muitas famí-
lias estão bastante imbricadas, enquanto redes sociais de vizinhaça, hoje efeti-
vada nos contatos entre os membros da 3ª e 2ª gerações.
Essa construção da rede de informantes permite uma compreensão mais
nítida das transformações no interior das redes familiares imediatamente de
duas gerações e indiretamente de pelo menos três, porém sendo comum os re-
latos da 1ª geração se transformarem em testemunhos, cuja história de vida se
desenrola imediatamente associada aos ciclos econômicos e sua expressão espa-
cial, assim social, num movimento para trás que reitera a abordagem escolhida.

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Tem-se, então, um movimento vertical na rede social, seja pelos depoimentos
das duas gerações em foco, seja por esses remeterem a outras gerações, para trás
e para frente quando surge o tema dos filhos e gravidez com a 3ª geração. E há,
ainda, o movimento em rede horizontal pela indicação de outros membros de
famílias com pelo menos três gerações de moradores.
Se tal abordagem foi profícua e em sintonia com a estruturação desses
grupos na favela carioca, o mesmo não se deu no Clos. Lá, embora existam
famílias há três gerações, essas, salvo exceções, não contam mais na cité com
membros de todas as gerações. Dada a configuração, o problema aponta ime-
diatamente para a solução: construir os relatos, às vezes testemunhais, com
duas gerações. Embora particularidades típicas da inserção do pesquisador no
campo, que levaram ao encontro de uma família excepcionalmente latinoame-
ricana, de origem chilena e outra africana, da Guiné ex-colônia francesa, cuja
capital é Conacri. Nesta a entrevista de duas gerações só foi possível porque se
entrevistou a filha púbere de 10 anos, pois a outra filha, jovem de 20 anos do
que deveria ser uma rede familiar estrita, parece ser inalcançável pela influên-
cia materna. O problema na família africana prenunciava outro. Na família de
origem argelina, contatada através do filho, da rede fraterna da filha da família
latino-americana, o movimento no sentido vertical intergeracional também foi
bloqueado.
Com as relações verticais, internas à família, bloqueadas se pode ima-
ginar o que aconteceria com a tentativa de construção de uma rede de infor-
mantes horizontal, de vizinhança, de famílias com pelo menos duas gerações
vivendo ali: nada. Todavia, essas dificuldades no emprego de rede social, tal
como realizado na favela, além de propiciar informação de alta qualidade para
a análise comparativa, levou à necessidade do aprofundamento do papel na
pesquisa dos entrevistados. Eles se tornam, então, típicos informantes, priori-
tários para a compreensão das trasnformações e relações socioespaciais e socio-
econômicas existentes na cité. E todas as cités são razoavelmente similares em
termos de posição em uma hierarquização dos espaços na França e constitui-
ção socioeconômica e étnica, conforme se pode detectar a partir da literatura,
campo, dados e informações de técnicos e acadêmicos sobre o tema. De toda
forma, manteve-se a coleta qualitativa baseada em entrevistas não-diretivas e
no recolhimento de mapas-mentais16. As informações e o papel atribuído aos
agora informantes na investigação era o de testemunhos, no sentido de relatos
autobiográficos17.
Se as dinâmicas, espantosamente, dadas as diferenças entre as estrutu-
ras sociais e função do Estado nas duas sociedades, tendem a envolver elemen-
tos recorrentes, pois as questões em jogo na existência dos pobres na cité se

16. Cf. LYNCH (1982).


17. Cf. CHRISTIN (1995); CONINCK e GODARD (1989); BOSI(2001).

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assemelham àquelas da favela; seus movimentos e referências aparecem muitas
vezes quase como inversos. O trabalho, as condições de inserção dos jovens,
a representação social negativa dos moradores a partir de aspectos culturais
remetidos a territórios originários ou identidade cultural de cunho étnico/ra-
cialista e a violência são elementos que emergem nos dois casos. No entanto,
apresentam contornos e movimentos distintos, em especial, em função das
condições sociais oriundas da função do Estado em cada sociedade.
Se na favela o sentimento de pertencimento forja uma rede afetiva de
sustentação psicossocial, a partir da qual, e reafirmando-as, se desenvolvem
práticas socioeconômicas que levam ao enraizamento, em particular em virtude
da potencialidade econômica intrínseca à construção, expansão e melhoria das
moradias, na cité o que se tem é uma independência das individualidades das
relações intrafamiliares e dessas com a moradia, pois esta é atribuição estabele-
cida desde políticas públicas do Estado nacional francês. A presença protetora
do Estado francês também explica o desenvolvimento e inclusão em institui-
ções sociais públicas, em particular a educação, solidificando laços ao nível da
fratria que compensam a fragilidade e diluição do referencial familiar.
Porém, essas instituições estão todas próximas ao território da cité e as-
sim limitam as possibilidades de convivência em espaço mais amplo. Enquanto
na favela, ao movimento centrípeto que as relações socioeconômicas imbrica-
das às redes sociais familiares e as dificuldades de circulação devido ao controle
e conflito entre os bandos armados (incluindo nestes a própria polícia) e a
estigmatização junto ao entorno imediato, tem-se, paradoxalmente, um movi-
mento centrífugo rumo a periferia da metrópole onde se encontram outros elos
da rede social familiar.
Se o peso das relações socioeconômicas sustentadas em redes afetivas
geradoras do sentimento de pertencimento se torna relevante na favela, na cité
a dependência refere-se às políticas públicas de assistência sob a responsabili-
dade do Estado e a rede social que emerge é a constituída entre os jovens pelo
sentimento de fratria e nos adultos pelo trabalho ou falta deste e a referência
ao Estado.
Importante salientar a relevância dos aspectos envolvidos na dinâmi-
ca constituidora desses espaços em territorialidades, embora os movimentos
dessas dinâmicas assumam contornos distintos. Emprego, crime, gravidez, et-
nia e racialismo são temas recorrentes nesses espaços. Afinal, são espaços que
ocupam lugares similares em suas respectivas sociedades nacionais, em termos
de representação social, demonstrando que a incidência e efeitos do processo
histórico característico da modernidade tardia sobre os territórios das classes
populares nas metrópoles ocidentais se assemelham. Em termos esquemáticos
se constata então a existência de aspectos comuns na dinâmica e movimentos
distintos ao comparar a incidência identitária do território da favela e da cité
sobre seus moradores.

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Quadro 1: comparação entre a favela e a cité

Aspectos/local Favela Cité

Domínio do espaço Domínio do espaço da


metropolitano e mora- cité e entorno ime-
1) Território dia como investimento diato. Moradia não
econômico incorpora dimensão
financeira

Pequena circulação de Circulação de dinhei-


2) Dinheiro dinheiro e distância do ro e participação no
circuito financeiro-mo- circuito monetário-fi-
netário nanceiro

Baixa remuneração, Precário ou desem-


3) Trabalho não-remunerado ou prego, com poucas
precário e cada vez mais alternativa no interior
no interior da favela da cite

Funciona como rede Núcleo mínimo perde


4) Família social temporalmente relevância com o tem-
perene e pólo socioeco- po, sem maior função
nômico socioeconômica

Idosos socialmente
Idosos espacialmente isolados, jovens com
isolados, jovens sem pouca perspectiva de
5) Gerações perspectiva de trabalho, inserção profissional
nem manutenção da e manutenção dos
rede de amizade vínculos pela rede de
amizade

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4. Sobre a identidade social de quem vive em favelas
Se a favela não deve ser mais definida juralmente, mas sim como um
padrão socioespacial, a análise crítica da existência sociológica da identidade
social favelado, a partir do senso comum e senso comum científico, apresenta-
se como insustentável. Tanto quanto pertinente. Explique-se o paradoxo.
Insustentável por não se tratar de um efeito de território criador de
identidade social, desde a condição particular da forma de ocupação peculiar
da favela, pois essa favela não existe mais. Assim, a confusão, muitas vezes tra-
tada como estigmatizadora, do senso comum, à qual não atinge o senso comum
científico, de definir como favelado todo pobre no fundo se demonstraria em
alguma medida correta. Pois, o espaço das classes populares na metrópole se
apresenta como único e tendo como padrão a dinâmica das favelas. E, mais.
Para o próprio morador da favela não existe distinção relevante entre sua situ-
ação e posição, enfim, sua condição e a do morador do loteamento, conjunto
habitacional ou mesmo bairro ou subúrbio pobre. Sendo os Outros os morado-
res dos bairros da classe média e classe abastada.
Se as condições contemporâneas levaram a radicalização da dinâmica
de enraizamento e pertencimento nas favelas, em seu sentido ampliado, as po-
líticas focais do Estado e as ações de ONGS só intensificam a dinâmica. Dinâ-
mica que é de segregação.
A compreensão da dinâmica que define os grupos sociais pobres, a partir
de sua condição espacial, remete a perda de centralidade do trabalho e ao en-
fraquecimento do reconhecimento identitário em função de sua inserção nessa
esfera. Perdida a referência ao trabalho, restou a identificação das classes popu-
lares por sua condição de moradia. Território que assume funções cada vez mais
totalizantes exatamente por essa condição contemporânea.
Emerge daí, também, o problema de sobrecarga na unidade social in-
divíduo, na medida em que os demais referenciais sociais de cunho coletivo
se diluem. Sobrecarga que tem como consequência as assustadoras disfunções
psicossociais contemporâneas, onde se pode incluir a própria sociabilidade vio-
lenta18 e a reprodução por jovens cada vez com menor idade.
Tal sobrecarga está relacionada também ao afastamento do Estado da
vida cotidiana e, por conseqüência, do sentimento de pertencimento à nação.
Esse processo, no entanto, tem derivações distintas se tomados os casos brasi-
leiros e franceses. Se no Brasil a questão está na ausência ou na prática de ações
não-republicanas; na França o problema se coloca no sentido unitarista, em
alguma medida pouco democrático, como o Estado se impõe sobre as diferenças
culturais, através de políticas integracionistas contraditórias com a dimensão e
expansão das origens multiculturais que compõem hoje as classes populares na
18. MACHADO (2004).

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França. Em ambos os caso, seja pela ausência ou ações pontuais, seja pela força
integracionista, as repercussões são perversas sobre as individualidades.
No entanto, o reconhecimento dos iguais socialmente implica na cons-
trução de diferenças. E, tanto em uma sociedade nacional como na outra, a
questão étnico-racial, ou melhor seria territorial-racialista, aparece como refe-
rente de distinções internas às classes populares e a seus territórios. Negros e
nordestinos se diferenciando na metrópole brasileira. Brancos e não brancos,
ex-colononizados e não-colonizados, oriundos departamentos de além-mar e
outros estrangeiros, se distinguindo nas cités. Divisões de cunho étnico/regio-
nal-racial que atravessam a construção da identidade no interior das classes
populares. Além da hierarquização entre esses territórios a partir de sua maior
ou menor proximidade com os centros, isto é, os espaços das elites.
A inversão no caso da polarização entre negros e nordestinos, no inte-
rior da favela carioca, é particularmente relevante da complexidade dessa nova
identidade social cunhada por derivações socioespaciais. Supõe-se que o jogo
de inversões de estigmas, no caso, possa explicar a posição estritamente econô-
mica ocupada pelos chamados nordestinos em relação aos afro-descendentes.
Cabe destacar que a identidade nacional comum jamais foi acionada pelos en-
trevistados no caso brasileiro, sendo caso de disputa no caso francês.
No Brasil, embora a representação social difundida pelos meios de co-
municação audiovisuais cada vez mais afirme valores e práticas das classes po-
pulares como sendo as que identificam a brasilidade, estas não se identificam
com tal imagem. O afastamento do Estado da vida cotidiana e a diluição de
suas competências tornaram sua representação bastante enfraquecida, se to-
marmos como referência as ações públicas anteriores e a própria participação
na constituição do Estado-nação que surgiram , às vezes mais outras menos,
durante os testemunhos dos membros da 1ª geração de moradores da favela do
Pavão-Pavãozinho no Rio. Sintomático desse enfraquecimento é a constante
referência às diferenças de origens regionais, como já foi apresentado acima,
na constituição de distinções internas que se manifestam hierarquicamente or-
ganizadas.
O achatamento das condições de classe, constituída a partir do refe-
rencial trabalho, leva a uma homogeneização infeliz fazendo com que o senti-
do de classes trabalhadoras, proletariado e classe operária ao perder sua força
afirmativa e, logo, identitária, em função da perda de relevância da inserção
institucionalizada no trabalho no conjunto das classes populares, torne este
referencial diluído e, assim, esses sujeitos têm que assumir táticas de vida muito
próximas daquelas desenvolvidas por seus antepassados para sobrevivência no
quadro de uma economia de subsistência subordinada, então, aos interesses das
elites latifundiárias.

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O enfraquecimento das matrizes identitárias modernas indivíduo, nação
e classe e a homogeneização das condições de classe do conjunto das classes po-
pulares, manifesto em sua expansão na estrutura de classe, isto é, sua posição,
e afastamento da classe média, relativo à sua situação, geram uma homoge-
neização da condição de seu território cujo padrão socioespacial, na sociedade
brasileira, é a favela conforme sua configuração mais contemporânea. Assim, o
efeito de território não remete à condição de morador de favela, mas antes ao
território das classes populares. Por outro lado, no entanto, tal condição não
implica no esgotamento heurístico do fenômeno favela, mas na compreensão
de sua função de padrão de ocupação do espaço pelas classes populares na me-
trópole brasileira na modernidade tardia.

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capítulo IV

FESTA E IDENTIDADE: A BUSCA DA


DIFERENÇA PARA O MERCADO DE CIDADES.

A festa tem ocupado um lugar significativo na cultura brasileira, pois atra-


vés dela são (re)atualizadas, ritualizadas e celebradas as experiências sociais. Ela
apresenta características tanto materiais quanto simbólicas, representando, desse
modo, uma das formas de produção de identidade. Esta característica tem con-
tribuído para que a festa se destaque nesse momento histórico da sociedade em
que, juntamente com a homogeneização global, há também, conforme Hall, uma
fascinação pela diferença e pela mercantilização da alteridade.
Assim, pensar a festa na contemporaneidade nos coloca diante de uma
nova questão, qual seja, a sua tendência à mercantilização, visto que nessa fase
histórica do capital a cultura, como bem coloca Yúdice, passa a ser utilizada
como recurso e, nesse processo, vem sendo apropriada como uma das formas de
delimitação das particularidades locais frente ao mercado global.
Esse processo de mercantilização da cultura tem tido um rebatimento
especialmente nas cidades, desencadeando investimentos nas políticas de re-
vitalização de centros históricos e na organização de festas - que têm assumido
a característica de grandes espetáculos - reafirmando, desse modo, particulari-
dades/singularidades regionais e locais, o que implica uma (re)elaboração das
identidades que, não raramente, são vendidas no mercado de cidades.
É neste quadro que festa e identidade se colocam como questões im-
portantes para pensarmos a cidade. E este é o tema do presente artigo, cujo
objetivo específico é entender qual tem sido o papel da festa no processo de
. A festa como forma de celebração das experiências sociais é trabalhada por diferentes autores,
a exemplo de AMARAL (1998).
. HALL, 2003.
. YÚDICE, 2004.

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(re)afirmação das identidades locais. Para tanto, tomaremos como referência a
dinâmica instalada na cidade de Mossoró, localizada no oeste do Rio Grande do
Norte, lugar de onde partimos para pensar as questões presentes neste artigo.
Nesta cidade, nos últimos dez anos, as festas vêm ocupando uma cen-
tralidade, tanto espacial como temporal, a exemplo dos festejos de São João
que ocupam todo o mês de junho e ainda do espetáculo Auto da Liberdade que
ocorre no mês de setembro. Através dessas duas festas, a cidade tem buscado
demarcar suas diferenças no mercado regional de cidades. Para tanto, há uma
mobilização de investimentos em torno das mesmas.
Essas duas festas, embora possuam características diferenciadas, conver-
gem para um elemento comum, que é a conformação de elementos identitá-
rios à cidade. Nesse sentido, a festa de São João, com suas imagens e símbolos
configurados nas quadrilhas, no forró, nas comidas típicas, atualiza a idéia de
tradição construída em torno das festas juninas no nordeste, reforçando assim
o sentimento de pertencimento à região. Ao mesmo tempo, uma teatralização
que ocorre durante o espetáculo Auto da Liberdade (re) atualiza fatos e sujei-
tos históricos que compuseram a história de Mossoró. Por meio desses fatos os
referenciais de coragem e liberdade são destacados e impressos como aqueles
da cidade. Essas duas festas conseguem estabelecer um entrelaçamento entre as
escalas identitárias local e regional.
Para compreendermos melhor essa dinâmica faz-se necessário uma com-
preensão da própria festa, sobretudo dos seus entrelaçamentos e proximidades com
a cidade e com a identidade, sendo este o primeiro tópico que compõe este artigo,
que é seguido de outros dois momentos. O segundo deles é um esforço para situar
esses entrelaçamentos entre festa, cidade e identidade nesse momento histórico
da dinâmica capitalista em que o uso da imagem tem assumido uma centralidade,
resultando assim no processo de espetacularização da sociedade.
No terceiro e quarto tópicos do artigo, apresentamos a dinâmica festiva
espetacularizada que vem se instalando em Mossoró, bem como as tensões e
ambigüidades encontradas nessa forma de pensar a festa na cidade.

Cidade, Festa e Identidade: Entrelaçamentos e Proximidades


A cidade foi um espaço ocupado ao mesmo tempo pelo trabalho produ-
tivo, pelas obras e pelas festas, já nos dizia Lefebvre. Esse entrelaçamento entre
a cidade e os rituais festivos também está presente nas trilhas que Mumford
constrói em busca das origens da cidade que, para ele, tem suas bases ligadas à
predisposição do homem para a vida em sociedade, para o compartilhamento,
para as festas.
. LEFEBVRE, 1991.
. MUMFORD, 1965.

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Inspirado nas observações de Munford e Lefebvre, é possível afirmar
que a predisposição do homem à sociabilidade, ou seja, ao encontro e à festa,
constitui-se em um dos primeiros germes da cidade. Compartilhando dessa ins-
piração, Fernandes destaca que as festas desempenham um importante papel
na relação entre o homem e o meio, pois estas manifestações sempre refletiram
o modo como os grupos sociais vivem, percebem e concebem seu ambiente,
valorizam mais ou menos certos lugares.
No Brasil, por exemplo, os�� diferentes relatos e reflexões existentes sobre
festas, sobretudo no Brasil colonial, trazem um elemento que parece comum:
a cidade como o espaço dos rituais festivos. Del Priore, por exemplo, quando
trata das festas nesse período nos fala do cuidado com o embelezamento da
cidade durante o período festivo, onde era comum
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as Câmaras recomendarem
à população que caiassem suas casas e ornassem portas e janelas nos dias de
procissão ou de festa profana; costumava-se, igualmente, segundo os relatos
por ela registrados, “alcatifar as ruas com flores odoríferas, ornar as janelas com
colchas de Pequim ou China ou com as lindezas dos senhores desta terra; noz
moscada era jogada nas portas de entrada, para perfumá-las” .
A iluminação era outra ferramenta fundamental na ornamentação da
cidade. A luz certamente fazia o “contraste entre a festa, a alegria, e o cotidia-
no escuro, das noites vazias e silenciosas”. A iluminação também ajudava a
estabelecer claramente as posições econômicas e, portanto, também social dos
indivíduos na cidade e na sociedade política.
Ao abordar as festas nesse período, Cardim10 nos chama atenção para
o papel político que as mesmas exerciam na cidade. Nesse sentido, argumenta
que as “Entradas” - que eram rituais solenes de acolhimento reservados aos
soberanos, bispos e autoridades - embora estivessem, não raras vezes, a serviço
do projeto político da Monarquia, constituíam, também, acontecimentos de
primeira importância para as autoridades urbanas, pois a opção do rei em visitar
a cidade era um sinal de preeminência, de que as autoridades citadinas eram
dignas de receber garantias régias e teriam as suas prerrogativas preservadas.
Em outros momentos, eram as próprias cidades que tomavam a iniciati-
va de convidar o rei a visitá-las, um gesto pleno de significado que, em regra, era
parte de uma estratégia de afirmação de uma cidade em relação a outras. Nesse
sentido, Cardim afirma que a própria capacidade para organizar um evento
com estas características era interpretada como sinal de vitalidade política da
corporação que governava a cidade, “por outras palavras, a corporação urbana,
ao assumir parte da organização da festa, demonstrava que permanecia vigente
e que tinha a intenção de continuar à frente do destino da cidade”11.
. FERNANDES, 2001.
. ������������������
DEL PRIORE, 2000.
. Idem, 2000, p.38.
. AMARAL, 1998, p. 77.
10. CARDIM, 2001.
11. Idem, 2000 p.9.

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Ao tratar das festas no Ocidente na época moderna, Di Méo12 lembra
como através dos desfiles as cidades eram veneradas na Europa. Nesse sentido
argumenta que as grandes procissões gerais constituíam sempre grandes espetá-
culos. Nelas, os habitantes representavam, ao mesmo tempo, atores e expecta-
dores. Eles demonstravam aos estrangeiros de passagem a pujança, a grandeza,
a felicidade da sua pátria. Esses desfiles e os rejúbilos que os acompanhavam
aumentavam a coesão comunal. Para o referido autor essas festas criavam uma
“identidade urbana forte” (grifo nosso).
Essa dimensão identitária que as festas condensam é apontada ao lon-
go das reflexões de Di Méo13, pois, para ele, um dos significados da festa está
no seu poder de mobilizar ou forçar as identidades a nível sócio-geográfico, já
que seu significado profundo, suas manifestações, a liturgia de seu desenvol-
vimento, os discursos e os mitos a mantêm trabalhando de perto ou de longe
a unidade e a identidade social. Partindo desse referencial, argumenta que as
numerosas festas que colocam o acento sobre a unidade e sobre a identidade do
grupo têm tido sempre uma participação elevada na Europa.
Em certas ocasiões, destaca Di Méo14, a organização das festas vai até
fechar as sociedades em si mesmas, como é o caso da província basca de La
Soule, onde pastorais e mascarados constituem espetáculos complexos. Eles
misturam teatro, canções, danças e desfiles, e nos últimos vinte anos estão vi-
venciando uma estonteante renovação - a cada ano uma comunidade prepara
o pastoreio para o conjunto do vale e depois o representa para todos em seu
próprio território.
Essas considerações nos conduzem a pensar que a festa é uma produção
social que pode gerar vários produtos, tanto materiais como comunicativos ou,
simplesmente, significativos; contudo, o “mais crucial e mais geral desses pro-
dutos, segundo Guarinello é precisamente, a produção de uma determinada
identidade”, que nesse sentido argumenta:
A festa é uma produção do cotidiano, uma ação coletiva, que se dá num
tempo e lugar definido e especial, implicando a concentração de afetos
e emoções em torno de um objeto que é celebrado e comemorado e cujo
produto principal é a simbolização da unidade dos participantes na esfe-
ra de uma determinada identidade. Festa é um ponto de confluência das
ações sociais cujo fim é a própria reunião ativa de seus participantes15.
Essa simbolização da unidade apontada por Guarinello é encontrada
nas considerações que Durkheim elabora sobre festa, pois, para ele, os ritos co-
memorativos ao mesmo tempo em que libertam, também celebram a unidade;
12. DI MÉO, 2001.
13. Idem, 2001.
14. Idem, 2001.
15. GUARINELLO, 2001, p.972.

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através deles, “o grupo reanima periodicamente o sentimento que tem de si
mesmo e de sua unidade”16. Para este autor, através dos ritos comemorativos
os indivíduos são revigorados em sua natureza de seres sociais, pois as gloriosas
lembranças que fazem reviver diante de seus olhos e das quais eles se sentem
solidários, dá-lhes uma impressão de força e de confiança.
Nessa direção, Guarinello17 reforça ainda que a festa gera a concreti-
zação efetivamente sensorial de uma determinada identidade que é dada pelo
compartilhamento do símbolo que é comemorado e que, portanto, se inscreve
na memória coletiva como um afeto coletivo, como a junção das expectativas
individuais, como um ponto em comum que define a unidade dos participantes.
“A festa é, num sentido bem amplo, a produção de memória e, portanto, de
identidade no tempo e no espaço social”.18
Enquanto forma de produção de identidade, a festa vem assumindo um
papel importante em algumas cidades brasileiras, sobretudo nas últimas déca-
das em que vem se impondo a necessidade de uma diferenciação no mercado
de cidades. A festa, nesse contexto, tem sido um dos veículos através do qual a
identidade local é (re)atualizada e sintetizada. Essa identidade, conforme San-
chez19, tem sido apresentada como condição de sobrevivência e de êxito da
cidade face à globalização.
Contudo, essa síntese construída carrega inevitavelmente uma leitura
fetichizada e reducionista das relações sociais, pois, nas operações de síntese,
prevalecem os traços de identidade instrumentais ligados às relações domi-
nantes de poder. Nessa perspectiva, Sanchez acrescenta que o caminho para a
auto-definição é a definição do “outro” de modo excludente e estereotipado.
Nessa perspectiva argumenta:
A desqualificação do outro, sejam cidades ou regiões, parece ser uma
ferramenta para a qualificação do ´nós`, para a construção do sentido
de pertinência.(...) Porém se por um lado, esta oposição binária entre
“nós” e ´outros`, reforça e define a identidade do lugar, por outro, si-
multaneamente, ordena a diferença complexa mediante uma simplifica-
ção, mais facilmente apropriada. As múltiplas identidades e diferentes
formas de vida social, que co-existem na cidade, são simplificadas, de-
puradas numa única identidade que se pretende sintética20.
Desse modo, a ordem necessária para impor os projetos de moderniza-
ção se constrói em larga medida por meio do controle da produção simbólica.

16. DURKHEIM, 2003, p.409.


17. GUARINELLO, 2001.
18. Idem, 2001, p.972.
19. SANCHEZ, 2003.
20. Idem, 2003, p.120.

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Esse poder simbólico, conforme Haesbaert21, ao se manifestar pode fazer uso
de elementos espaciais, representações ou símbolos, constituindo assim uma
identidade territorial que:
(...) trata-se de uma identidade em que um dos aspectos fundamentais para
sua estruturação está na alusão ou referência a um território, tanto no senti-
do simbólico quanto concreto. Assim, a identidade social é também territo-
rial quando o referente símbolo central para a construção desta identidade
parte do ou transpassa o território22.
Uma das características mais importantes da identidade territorial e que
corresponde ao mesmo tempo a uma característica geral da identidade é que “ela
recorre a uma dimensão histórica do imaginário social, de modo que o espaço que
serve de referência condense a memória do grupo, tal como ocorre deliberadamen-
te nos chamados monumentos históricos nacionais”23. A (re)construção imaginária
da identidade envolve, portanto, uma escolha, entre múltiplos eventos e lugares
do passado, daqueles capazes de fazer sentido na atualidade. Nesta perspectiva, a
memória é solicitada e reestruturada sem cessar24.
Contudo, a escolha do que deve ser lembrado e, conseqüentemente,
do que deve ser esquecido se define no âmbito das relações de poder. Em se
tratando desse processo na cidade, os “vencedores”, na maioria dos casos, são
aqueles que detêm o “direito” de falar pela cidade e, portanto, de representá-la.
Nesse processo, segundo Sanchez25, a construção da hegemonia é evocada a
partir de uma identidade territorial homogênea que precisa de proteção contra
o diferente/externo.
Essas reflexões nos conduzem a pensar que as identidades são relacio-
nalmente construídas. Como construção relacional, a identidade supera posi-
ções essencialistas. Nessa perspectiva, “a construção é tanto simbólica quanto
social”26. Esse reconhecimento pode levar à renegociação das identidades, pois
reformular o modo por meio do qual se representa a identidade é também uma
ação política. Compreendida dessa forma, a identidade é construída com base
nas representações, nos discursos, nos sistemas de classificações simbólicas.
Considerando que as identidades constituem uma relação social e que
sua definição está sujeita a vetores de força, é possível dizer que “elas não são
simplesmente definidas, mas impostas. Elas não convivem lado a lado, sem hie-
rarquias; elas são disputadas”27 . Nessa direção, são valiosas as contribuições de
21. HAESBAERT, 1997.
22. HAESBAERT, 1999 p.178.
23. Idem, 1999, p.180.
24. Idem, 1999.
25. SANCHEZ, 2003.
26. WOODWARD, 2004 p.10.
27. SILVA, 2004, p.81

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Hall ao argumentar que as identidades:
Emergem no interior do jogo de modalidade de poder e são, assim, mais
o produto da marcação da diferença e da exclusão do que o signo de uma
identidade idêntica, naturalmente constituída, de uma ´identidade` em
seu significado tradicional isto é, uma mesmidade que tudo inclui, uma
identidade sem costuras, inteiriça, sem diferenciação interna.28
A concepção de identidade apontada por Hall não é, portanto, essen-
cialista, mas estratégica e posicional. Ele aceita que as identidades jamais sejam
unificadas e, nos últimos tempos da modernidade, “cada vez mais fragmenta-
das e fraturadas; jamais singulares, mas construídas multiplamente através de
diferentes discursos, práticas e posições, com freqüência, interligadas e anta-
gônicas”29 . Acrescenta ainda que a unidade, a homogeneidade interna, que
o termo identidade trata como fundamental, não é uma forma de fechamento
natural, mas construído.
Desse modo, afirmar que a festa produz identidade não significa afirmar que
produza, necessariamente, consenso, muito pelo contrário. “A festa é produto da
realidade social e, como tal, expressa ativamente essa realidade, seus conflitos, suas
tensões, suas cesuras, ao mesmo tempo em que atua sobre eles”30.
Nesse sentido, Ferreira31 propõe que a festa seja apreendida como uma
luta pelo poder que se define através da conceituação do espaço festivo. Assim,
“festejar será, então, dominar o discurso que define este ou aquele espaço como
festivo”32. Determinar e manter este espaço através das práticas associadas à
festa será uma tarefa exercida tanto pelo grupo que detém o poder sobre o
evento, quanto por aquele que, necessariamente, disputa este poder. “Um poder
que precisa ser desafiado constantemente na medida em que ter o poder simbólico
sobre os espaço pressupõe uma constante luta pela posse dos seus limites (...)”.33
Essas reflexões nos conduzem a perceber a festa como um espaço das
múltiplas territorialidades, onde os diferentes sujeitos lutam para delimitar seu
espaço na festa, tanto do ponto de vista simbólico quanto material. O sentido
de territorialidade aqui referenciado não se limita a uma simples ligação com o
espaço, pois concebê-la dessa forma seria, nas palavras de Raffestin, “fazer re-
nascer um determinismo sem interesse”.34 Nessa perspectiva, a territorialidade
é sempre uma relação, mesmo que diferenciada, com outros sujeitos sociais. O
referido autor acrescenta ainda que:
28. HALL, 2004, p.109.
29. Idem, 2004.
30. GUARINELLO, 2001 p. 972.
31. FERREIRA, 2003.
32. Idem, 2003, p.9.
33. Idem, 2003, p.10.
34. RAFFESTIN, 1993 p.161.

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Cada sistema territorial segrega sua própria territorialidade, que os indi-
víduos e as sociedades vivem. A territorialidade se manifesta em todas
as escalas espaciais e sociais; ela é consubstancial a todas as relações
e seria possível dizer que, de certa forma, é a ´face vivida` da ´face
agida´ do poder35 .
Esse poder que perpassa as territorialidades se expressa nos processos de
disputa do espaço que definem o fato festivo, bem como na memória da festa.
Nesse sentido, Ferreira 36 retoma Bercé para argumentar que “as festas não
são produtos de uma transmissão contínua ligadas a uma filiação ‘milenar’”.
Ao contrário, os eventos festivos mostram longos períodos de “obliteração e
recomeços, de nascimentos, empobrecimentos, rupturas e esquecimentos”37. A
manipulação deste processo de memória e esquecimento será determinante na
luta pelo poder da festa.
Assim, a festa é um espaço de múltiplas territorialidades, onde a tensão
que define o espaço festivo pode ser entendida como um conflito pela hegemo-
nia das representações, realizada através de qualificações e desqualificações, de
lembranças e esquecimentos, de enfrentamentos que, enfim, determinam e são
determinados pelo espaço festivo38.
Essas possibilidades interpretativas nos conduzem a pensar que a festa é
o espaço que congrega ao mesmo tempo o conflito e a unidade, o consenso e a
tensão, a identidade e a diferença.
Em se tratando desse momento histórico da sociedade, e em especial das
festas que vêm ocorrendo em Mossoró, é possível apontar duas tendências di-
ferentes. A primeira está relacionada às festas que vêm sendo organizadas pelo
poder público, especialmente as festas juninas e os festejos cívicos realizados na
cidade. Nestas, percebemos que o caráter regulador da festa tem superado sua
possibilidade subversiva, que a construção da unidade territorial tem pairado
sobre os conflitos identitários e que o caráter profano, especialmente no que se
refere aos festejos juninos se apresenta com maior intensidade do que o sagra-
do. A tensão, embora esteja presente nas duas formas de festejar, é o consenso
que ainda permanece.
Assim, nas festas que são organizadas pelo poder público, há uma pre-
dominância maior da dimensão do concebido, que segundo Lefebvre39 corres-
ponde às representações do espaço e está relacionado às relações de produção
da “ordem” que incluem os conhecimentos, os signos, os códigos espaciais e que
representam um misto de ideologias e conhecimentos. As representações do
35. Idem,1993, p.161.
36. FERREIRA, 2003.
37. Idem , 2003, p.11.
38. Idem , 2003.
39. LEFEBVRE, 1983, 1991.

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espaço, segundo Lefebvre, personificam o espaço do progresso, isto é, o espaço
concebido: aquele dos sábios, dos planificadores, dos urbanistas, dos tecnocra-
tas e de certos artistas. Essa dimensão do concebido tem sido reforçada pelas
imagens espetaculares que tem se sobreposto às experiências sociais.
Já no que se refere as festas juninas que ocorrem nos bairros da cidade,
percebemos outras tendências. Nestas há uma predominância maior da dimen-
são do vivido, entendido por Lefebvre40 como o espaço das representações, que
está relacionado com o espaço dos “habitantes”, dos “usuários”, mas também
de certos artistas. Estes espaços têm uma dimensão mais afetiva, contêm os
lugares da paixão e da ação e são essencialmente qualitativos, relacionais, di-
ferenciais. Assim, nas festas dos bairros percebemos uma predominância do
sagrado em relação ao profano e também uma propensão da valorização das
experiências locais em detrimento das imagens, o que resulta na solidificação
dos laços sociais local.
Ao elaborar essa interpretação não estamos propondo uma separação ou
uma oposição das festas vividas em relação às festas concebidas, pois como bem
argumenta Lefebvre41 entre os espaços de representação e as representações do
espaço, ou seja, entre a vivência e o concebido, não há corte, nem ruptura, não
há quebra, pois o movimento dialético entre essas duas dimensões do espaço
nunca cessa, pois a “vivência se enche de representações, porém se livra delas,
posto que é ela mesma que se representa” (...). Enquanto que o concebido,
não só inclui os conceitos teóricos, mas também as ideologias “trabalhadas” em
função de um objetivo estratégico.
Essas duas formas de festejar produzem, (re)significam e afirmam iden-
tidades, embora uma delas mais ligada ao domínio estratégico-funcional do
espaço pelo poder econômico e político, sendo construída através das represen-
tações do espaço, e a outra mais ligada a uma apropriação simbólico-expressiva,
tendo mais como referencial a subjetividade e a experiência do espaço vivido,
ou seja, dos espaços de representação42. Isso não implica uma oposição, mas
conduz a uma compreensão de que existem pólos predominantes e hegemôni-
cos e outros subalternizados em forma de resíduos e resistências.
Assim, as identidades produzidas e (re) significadas com uma maior
predominância das representações do espaço, ou seja do concebido, tendem a
afirmar as identidades hegemônicas, sendo uma das formas comumente usadas
para diferenciar as cidades no mercado global. É o caso da cidade de Mossoró,
onde nas festas tem sido utilizada uma das formas de (re) significação e afirma-
40. Idem, 1983, 1991.
41. LEFEBVRE, 1983.
42. Essa afirmação está baseada nas reflexões que CRUZ, 2006, desenvolve sobre identidade. Para
o mesmo, existem duas configurações no processo de construção identitária, uma mais ligada ao
domínio estratégico-funcional do espaço, sendo construída através das representações do espaço,
e a outra mais ligada a uma apropriação simbólico-expressiva, tendo mais como referencial a subje-
tividade e a experiência do espaço vivido, ou seja, dos espaços de representação.

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ção da identidade local.

A Cidade e a Festa em Tempo de Espetáculo


Celebrando a unidade, reforçando as identidades, espetacularizando a
diferença, é nessa direção que as festas vêm sendo (re)inventadas em muitos
lugares. Esse processo ilustra a dinâmica que vem se instalando em algumas
cidades brasileiras, onde as festas vêm sendo apropriadas como uma das formas
de “renovação” da própria cidade. Na medida em que tenta recriar a cidade, a
festa é (re)inventada, transformando-se muitas vezes em grandes espetáculos.
Esse processo de espetacularização encontra nas reflexões de Debord43
uma de suas expressões mais originais. O referido autor denomina esse momen-
to vivenciado pela sociedade como um grande “espetáculo”, argumentando
que “toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de
produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos”. Tudo o
que era vivido diretamente tornou-se uma representação. Nessa perspectiva,
acrescenta ainda que:
Considerado em sua totalidade, o espetáculo é ao mesmo tempo o resul-
tado e o projeto do modo de produção existente. Não é um suplemen-
to do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o âmago
do irrealismo da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares
– informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de diver-
timentos –, o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na
sociedade. É a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e
o consumo que decorre dessa escolha (...).44
Esse processo de espetacularização se situa nesse momento histórico da
dinâmica capitalista em que o uso da imagem e a intensificação do consu-
mo assumem uma centralidade, estando intrinsecamente relacionados, pois a
aceleração do tempo de giro na produção tem acelerado também as trocas e o
consumo. Nesse contexto, dominar ou intervir ativamente na produção da vo-
latilidade envolve a manipulação do gosto e da opinião. É a partir desse quadro,
segundo Harvey 45, que a publicidade e as imagens da mídia passaram a ter um
papel mais integrador nas práticas culturais, tendo assumido agora uma impor-
tância muito maior na dinâmica de crescimento do capitalismo.
Ao discutir o desenvolvimento da arena de consumo, Harvey46 chama
atenção para duas tendências. A primeira delas foi o fortalecimento do con-
43. DEBORD, 1997, p.13.
44. Idem, 1997, p.14.
45. HARVEY, 2000.
46. Idem, 2000.

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sumo da moda em mercados de massa (em oposição ao mercado de elite), o
que acabou acelerando o ritmo do consumo não somente em termos de roupa,
ornamentos e decoração, mas também numa ampla gama de estilos de vida e
atividades de recreação.
A segunda tendência apontada por Harvey foi a passagem do consumo
de bens para o consumo de serviços – não apenas serviços pessoais, comerciais,
educacionais e de saúde, como também de diversão, de espetáculos, eventos e
distrações. Tendo em vista que o tempo de vida desses serviços é bem menor
do que a utilização de um produto, faz sentido que os capitalistas se voltem
para o fornecimento de serviços bastante efêmeros em termos de consumo.
Essa busca, segundo o autor - que nesse momento faz referência a Mendel e
Jameson - pode estar na raiz da rápida penetração capitalista em muitos setores
da produção cultural a partir da metade dos anos 60.
A cidade, nesse contexto, tem sido uma das dimensões espaciais onde a
espetacularização das imagens tem se revelado com maior visibilidade na me-
dida em que é o receptáculo onde se materializam com mais intensidade os
processos sociais.
Essa “nova” dinâmica urbana que vem se materializando na cidade ope-
ra mediante a incorporação de novos valores culturais e de novos padrões de
vida, ou a afirmação destes, pois no mundo global, onde a modernização gerou
uma tendência à homogeneidade, muitas cidades viram diluir-se a sua iden-
tidade; assim, a diferenciação através da identidade local, como bem destaca
Vaz47, se torna um triunfo essencial. E a identidade está fortemente ancorada
na imagem da cultura local. Nesse processo, considera-se que é principalmente
através da cultura que as cidades poderão se individualizar, acentuando suas
identidades, marcando seu lugar no panorama mundial.
Ao falar sobre esse processo de mercantilização da cultura, Arantes48 argu-
menta que o “tudo é cultura”, inaugurado nos idos de 1960, teria, pois, se transfor-
mado de vez naquilo que a autora denomina de “culturalismo de mercado”. Esse
processo ocorreu com tamanha intensidade que a cultura que havia se cristalizado
como esfera autônoma dos valores antimercado torna-se imagem.
Assim, existe nas políticas e nos projetos urbanos contemporâneos, so-
bretudo dentro da lógica do planejamento estratégico, uma clara intenção de
se produzir uma imagem singular de cidade. Essa imagem, forjada ou não, seria
fruto de uma cultura própria, ou seja, da identidade do lugar.
Nesse sentido, Vainer49 argumenta que, se durante um longo perío-
do o debate acerca da questão urbana remetia, entre outros, a temas como

47. VAZ, 2004.


48. ARANTES, 2002.
49. VAINER, 2002.

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crescimento desordenado, reprodução da força de trabalho, equipamentos de
consumo coletivo, movimentos sociais urbanos, racionalização do uso do solo
etc, a “nova” (grifo nosso) questão urbana teria, agora, como nexo central a
problemática da competitividade urbana, em que a imagem e o marketing são
acionados de forma agressiva.
A festa, nesse contexto, tem ganhado uma centralidade, pois seu poder
de impressionar, como bem destaca Calvo50, seu caráter estético e ao mesmo
tempo simbólico, tem contribuído para que ela assuma o papel de representa-
ção da identidade local. É o caso de algumas cidades do nordeste, a exemplo
de Campina Grande na Paraíba, onde a cidade se anuncia através da festa de
São João, que é apresentada como a maior do mundo. Já a cidade de Caruaru,
em Pernambuco, é anunciada por meio do melhor São João do mundo. Nesse
cenário nordestino das festas, destaca-se ainda Recife e Olinda, locais onde o
carnaval é concebido como o mais tradicional, tendo no frevo e nos bonecos de
Olinda alguns dos grandes referenciais.
Em Mossoró, nossa referência empírica de pesquisa, a festa também vem
sendo apropriada como uma das formas de demarcação da identidade local.
Nesta cidade, algumas festas vêm sendo (re)inventadas e a tradição, juntamen-
te com os referenciais de coragem e liberdade, vem sendo agregada como ele-
mento diferenciador da cidade em relação às outras. Esse processo vem sendo
acompanhado, não raramente, pelo processo de espetacularização das festas.
Estamos entendendo por espetacularização “o excesso midiático contido nas
relações, nos produtos e nas coisas”51.
Desse modo, os rituais, que inicialmente possuíam um caráter quase
espontâneo dos valores e das tradições populares dos diversos grupos sociais,
foram apropriados pelos administradores públicos e empresariais, transforman-
do-se em grandes eventos, cujo caráter de empreendimento econômico e co-
mercial tornou-se muito acentuado. Uma vez institucionalizados pelo poder
público, esses eventos têm assumido a forma de grandes espetáculos urbanos.
Assim, o caráter simbólico e ao mesmo tempo material da festa tem
contribuído para que ela assuma uma condição de mercadoria, pois, como bem
sublinha Amaral52 a “festa à brasileira” possui uma tríplice importância: “Por
sua dimensão cultural - no sentido de colocar em cena valores, projetos, arte
e símbolos do povo brasileiro - como modelo de ação popular - no sentido que
tem sido em muitas ocasiões o modo de concentração de riquezas - e como
espetáculo de muitas cidades”.
Ao tornar-se espetáculo das cidades, a festa se espetaculariza. Contudo,
não é possível fazer uma separação entre festa e espetáculo; nesse sentido, as
50. CALVO, 1991.
51. SEABRA, 2002, p. 3.
52. AMARAL,1998, p. 9.

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palavras de Debord são elucidativas:
Não é possível fazer uma oposição abstrata entre o espetáculo e a ativi-
dade social efetiva: esse desdobramento é também desdobrado. (...) Ao
mesmo tempo, a realidade vivida é materialmente invadida pela con-
templação do espetáculo e retoma em si a ordem espetacular à qual ade-
re de forma positiva. A realidade objetiva está presente dos dois lados.
Assim estabelecida, cada noção só se fundamenta em sua passagem para
o oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real ... 53
As observações de Debord nos conduzem às reflexões de Lefebvre
quando o mesmo argumenta que entre a vivência e o concebido, ou seja, entre
os espaços de representação e as representações do espaço, não há corte, rup-
tura ou quebra. E o movimento dialético entre essas duas dimensões do espaço
nunca cessa, pois a “vivência se enche de representações, porém se livra delas,
posto que é ela mesma que se representa”.54
Essas reflexões elaboradas por Lefebvre trazem para o cenário de deba-
tes questões centrais para aqueles que pensam a cidade, sobretudo no que se
refere à implementação dos planos estratégicos que envolvem a (re)invenção
dos lugares, pois estes tendem a evocar a construção de uma hegemonia elabo-
rada a partir das representações do espaço e, neste processo, é construída uma
identidade territorial que se pretende homogênea. Esses projetos se apropriam
das vivências, contudo as ignoram no plano das diferenças.
As formas de demarcação dessa identidade têm se expressado de di-
versas formas: em Mossoró, local de onde partimos para pensar as questões
levantadas nesse trabalho, essa demarcação identitária tem se expressado tanto
através da recuperação de ambientes históricos, como da construção de equi-
pamentos culturais; contudo, é a festa que mais tem sintetizado a identidade
local. Essa dinâmica tem sido acompanhada pela (re)invenção das festas que,
nesse processo, têm sido espetacularizadas, provocando uma (re) configuração
dos rituais festivos que ocorrem na cidade. No tópico seguinte tentaremos de-
talhar melhor como esse processo vem ocorrendo nessa cidade.

A (Re) Invenção das Festas e da Identidade em Mossoró


Mossoró, localizada no oeste do Rio Grande do Norte, entre o sertão e
o litoral, é uma dessas cidades onde o sol não pede licença para brilhar todos
os dias e, por conta disso, as altas temperaturas que variam entre a máxima de
36,0 °C, a média de 27,4 °C e a mínima de 22,5º, já fazem parte do cotidiano
dos moradores. Conhecida por esse sol que a visita cotidianamente e ainda pelo
53. DEBORD, 1997, p. 15.
54. LEFEBVRE, 1983, p. 70.

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sal e pelo petróleo, produtos que fizeram ou ainda fazem parte da sua formação
socioeconômica, Mossoró nos últimos anos tem buscado ser reconhecida tam-
bém como a “cidade da cultura” e especificamente da festa.
Assim, tanto o sal como a agroindústria, o petróleo e o comércio são
atividades que têm influenciado no processo de organização do espaço dessa
cidade que conta com uma média de 199.000 habitantes distribuída nos 27
bairros que compõem a zona urbana. As políticas de habitação configuradas
através dos conjuntos habitacionais também tiveram um papel importante para
o alargamento da malha urbana da cidade.
Nessa perspectiva, Mossoró, lembra um mosaico em que a conforma-
ção das várias peças revela as diferentes temporalidades que se expressam
no movimento da formação espacial. Nos últimos anos parte desse mosaico,
especificamente a área central da cidade, tem passado por um processo de
(re)estruturação que tem se revelado, sobretudo, através da (re)configuração,
construção e embelezamento de algumas áreas. A esse processo soma-se ainda
a dinâmica festiva que vem se instalando nessa parte da cidade.
A grandiosidade dessa dinâmica festiva, uma vez descrita, lembra os cená-
rios das cidades visitadas, vividas e contadas por Ítalo Calvino, pois em Mossoró,
em tempos de festas, é possível se deparar com maracatus atômicos se intercalando
com navios negreiros e, ainda, com uma batalha entre os moradores da cidade e o
bando de Lampião. Nesta batalha, uma “chuva de balas” sai das armas dos homens
que entram no palco sobre seus cavalos. Todas estas cenas se misturam num grande
espetáculo denominado “Auto da Liberdade”, que ocorre no final do mês de se-
tembro na cidade e que tem como objetivo (re) atualizar fatos históricos e, através
deles, os referenciais de coragem e liberdade.
Além destas imagens, é possível lembrar a Mossoró Cidade Junina, festa
que ocupa toda a área central da cidade e que nesse período se (re)veste de balões
coloridos que enfeitam as ruas, as praças e as pontes. Durante esta festa, a Estação
das Artes, antiga estação de trem de Mossoró, se transforma em cidade cenográfica
e as fachadas dos bares são revestidas de cores e formas que lembram a Mossoró do
início do século. Neste cenário, uma réplica da igreja é instalada e a imagem de São
João é colocada em um altar que é visitado pelos freqüentadores.
Neste período junino, mais uma “chuva de balas” invade Mossoró e a
cidade comemora novamente a batalha travada contra Lampião por meio de
uma teatralização denominada Chuva de balas no país de Mossoró, cujo palco
é a igreja de São Vicente. Nesta igreja ainda estão preservadas as marcas deixa-
das pelas balas no momento do confronto entre a cidade e o bando de Lampião,
ocorrido em 1927. Ao longo das festas, é possível perceber a intensidade da
circulação de pessoas entre a Estação das Artes e a Igreja de São Vicente, sendo
que esses dois espaços formam, juntos, uma área de 48.000 m2.

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À margem das luzes do espetáculo, outros cenários juninos insistem e
resistem nos bairros. Nestas festas, as novenas, que normalmente são acompa-
nhadas por encenações que relembram a vida de São João, (re)atualizam o ca-
ráter sagrado presente nas comemorações dos bairros. Os leilões, as quadrilhas
e o parque de diversão também fazem parte desse cenário festivo.
Mossoró também se enche de festa ao longo do mês de dezembro, perí-
odo em que é comemorada a festa da padroeira. Ao longo das comemorações, a
vida de Santa Luzia é encenada e milhares de pessoas se encantam com os anjos
e demônios apresentados ao longo da peça que tem a igreja central como palco.
A possibilidade de investimento nesses eventos tem ampliado outras formas
de comemorações na cidade, dentre as quais se incluem também as feiras. O
quadro I nos situa melhor acerca dessa dinâmica festiva na cidade.
Quadro I

Calendário
Tema das Espaços
de festas e Festas e Feiras
estas e feiras privilegiados
feiras
São João/ São
Pedro e Sto. An- Estação das
tônio. Festa onde Artes/ Igreja de
Mossoró Cidade
Junho é encenada a vi- São Vicente-
Junina
tória da cidade Área central da
sobre o bando de cidade.
Lampião.

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Centro de co-
Feira Agropecuá- mercialização de
Festa do Bode ria - Exposição de animais Arman-
caprinos e ovinos. do Buá. Bairro:
Costa e Silva.
Evento que reúne
aeronaves oriun-
das de várias par-
tes do país e inclui Aeroporto Dix-
Mossoró Air Fest
apresentação de Sept Rosado.
Julho
pára-quedistas e
da Esquadrilha da
Fumaça.
Evento que reúne
usuários do mo-
tociclismo inclui Estação das Ar-
Mossoró Moto
exposição de mo- tes- Área central
City
tos e várias outras da cidade
atrações em torno
do tema.
Evento que reúne
os segmentos da
FICRO – indústria, comér-
Agosto Feira Industrial e cio e serviços do Estação das
do Comércio do Rio Grande do Artes
Oeste Norte com expo-
sitores de todo o
Nordeste.

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Carnaval fora de
época com ban-
Carnativa Centro da cidade
das e vários trios
elétricos.
Encenação ao ar
livre que trata dos
principais aconte-
Setembro Espetáculo Auto cimentos históri-
da Liberdade e a cos de Mossoró: O Estação das Artes-
parada cívica no voto feminino, O Área central da
dia 30 de Setem- motim das mulhe- cidade.
bro. res, A libertação
dos escravos e A
resistência ao ban-
do de Lampião.
Evento que faz
Vaquejada Porcino parte do calen- Porcino Parque
Costa dário nacional de Center
vaquejadas.
Evento que re-
úne produtores
Outubro da fruticultura
irrigada nordesti- Campus UFERSA,
EXPOFRUIT na. Momento de antiga Escola
exposição da pro- da Agronomia
dução de frutas
tropicais: melão,
caju e banana.
Catedral da
Dezembro Festa da Padroeira. Santa Luzia cidade. Praça da
Matriz.
(Fonte: Elaborado pela autora a partir de pesquisa de campo, 2004 e 2005 e ainda atra-
vés das informações do Diagnóstico do Plano Diretor de Mossoró.)

Além dessas festividades que ocorrem nos meses de junho, setembro e


dezembro, Mossoró realiza ainda a festa do Bode no mês de julho, a Feira In-
dustrial e Comercial da região oeste – FICRO - que acontece no mês de agosto
e a Expofruit que ocorre em outubro.
Essa centralidade que a festa tem ocupado no cenário urbano da cidade
de Mossoró é algo recente. Ao fazer essa afirmação, não estamos propondo que
a festa não fazia parte da dinâmica da sociedade mossoroense em outros mo-
mentos históricos; ela fazia parte, sim, mas de uma outra forma. Até dez anos

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atrás, essas festas eram feitas em um tempo mais reduzido, sendo que algumas
delas se concentravam nos bairros, como é o caso do São João, e, nesse período,
não apresentavam esse caráter de espetacularização que hoje assumem.
Essa (re)invenção das festas em Mossoró tem sido acompanhada
pela (re)estruturação do espaço da cidade, sobretudo da área central. Essa
(re)organização pode ser percebida através da reestruturação da Estação das
Artes, antiga estação ferroviária, transformada em local de eventos culturais, a
renovação e o embelezamento das praças e dos teatros, assim como a constru-
ção de um novo teatro que custou R$ 6.500.000 e foi construído em parceria
com a PETROBRÁS.
Entender quais são os processos que têm movido essa (re)invenção das
festas e as transformações de muitas áreas da cidade é uma forma de entender
a dinâmica socio-espacial instalada em Mossoró na última década. Nesse sen-
tido, as leituras feitas em torno dos diferentes planejamentos e, em especial,
daquele que tem sido denominado de “estratégico”, a partir do qual a tôni-
ca tem recaído na reabilitação ou na recuperação de ambientes históricos, na
construção de equipamentos culturais marcantes, no cuidadoso desenho dos
espaços públicos e na organização de eventos festivos, nos conduz a pensar que
a dinâmica urbana que vem se instalando em Mossoró guarda reflexos dessa
forma de pensar a cidade.
E, embora os debates que vêm sendo desenvolvidos em torno do plane-
jamento estratégico privilegiem, sobretudo, as grandes cidades, como é o caso
de Barcelona, Rio de Janeiro, entre outras, podemos sugerir que se trata de uma
espécie de um pensamento único que hoje se espraia sobre as cidades, como
propõe o titulo do livro de Vainer e Arantes55.
A compreensão daqueles que estão envolvidos com as transformações
que têm ocorrido na cidade de Mossoró, como é o caso do secretário de cultu-
ra, parece reforçar os referenciais propostos no planejamento estratégico, pois,
para ele, a transformação espacial que vem se desenhando na cidade tem tudo
a ver com a cultura. Nesse sentido, argumentou que “a cidade chegou a um
ponto que tinha que ter esses equipamentos (teatros, ginásios, espaços para
festas) porque esses eventos (festas) naturalmente iam levar o nome da cidade,
e a cidade ia extrapolar os muros do estado e realmente extrapolou”.
Essa compreensão acerca da dinâmica que hoje se instala em Mossoró
aponta para duas questões: a primeira diz respeito à idéia da cultura como re-
curso. A segunda, que está intrinsecamente ligada à primeira, se refere à utiliza-
ção da cultura como estratégia de renovação da cidade. Com relação à primeira
questão, são interessantes as reflexões de Yúdice, que caracteriza a questão
cultural do “nosso tempo como uma cultura da globalização acelerada, como

55. O título do livro elaborado por ARANTES, Otília & VAINER, Carlos & MARICATO, Ermínia, denomi-
na-se A cidade do pensamento único – Desmanchado consensos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

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um recurso”.56 Para fundamentar sua argumentação retoma pronunciamentos
feitos pelo representante do Banco Mundial, James D. Wolfensohn:
A cultura material e expressiva é um recurso subvalorizado nos países
em desenvolvimento. Ela pode gerar renda através do turismo, do arte-
sanato, e outros empreendimentos culturais (Banco Mundial, 1999:11).
“O patrimônio gera valor. Parte de nosso desafio mútuo é analisar os retornos
locais e nacionais dos investimentos que restauram e extraem valor do patri-
mônio cultural – não importando se a expressão é construída ou natural, tais
como a musica indígena, o teatro, as artes” (Banco Mundial, 1999:13)57.
O autor prossegue em sua reflexão destacando que a cultura, cada vez
mais invocada como uma propulsora do desenvolvimento do capital, passou a
constituir para alguns a própria lógica do capitalismo contemporâneo.
Contudo, as tendências globais não explicam por si só as dinâmicas locais,
sobretudo quando se trata das cidades de porte médio, ou cidades médias, como é
o caso de Mossoró. Assim, do ponto de vista local, é possível pensar que essa “re-
novação” da cidade, bem como a (re)invenção das festas tem sido uma das formas
encontradas pelas elites políticas locais para “vender” a cidade e, ao mesmo tempo,
para justificar sua permanência no poder, bem como a sua legitimação.
Essa apropriação da memória da cidade e por conseqüência da festa em
Mossoró foi apontada no trabalho desenvolvido por Felipe quando trata da
relação da oligarquia Rosado - elite política que está à frente do poder há mais
de seis décadas - com a cidade:
Os Rosados se apropriam dessa memória da cidade; reforçam os heróis
e os mitos; criam outros e, através dos cultos, rituais e datas comemo-
rativas, colocam-se nessa história e denominam suas ações de tarefas
sagradas. A política é o caminho para realização dos sonhos dos an-
tepassados. Apropriando-se politicamente dos discursos dos heróis, re-
novam a tradição, a linguagem do sagrado e a idéia de que todos estão
em conformidade para elegê-los os guardiões da cidade que permanece
nesse imaginário como uma fortaleza inviolável a expulsar as ameaças
que vêm do seu exterior58 .
Prosseguindo em sua reflexão, Felipe destaca que a pretensão do referi-
do grupo é a utilização da história, da memória do lugar e dos seus mitos para,
por intermédio desse imaginário coletivo, “elaborar o seu imaginário político,
que vai fornecer o conteúdo do seu discurso e os elementos para firmar a idéia
de que não são “proprietários” do território – mas pertencem a um ´lugar`, que
vai ser exaustivamente imaginado até ser transformado em um ´país` – o ´país

56. YUDICE, 2004, p. 25.


57. Documento do Banco Mundial retomado por YÚDICE, 2004, p. 31.
58. FELIPE, 2000, p.16.

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de Mossoró`59 . Para tanto, os Rosados montam o teatro e através da repetição
das peças organizam o lugar a partir de uma hierarquia histórica em que alguns
fatos são realçados e outros são tornados irrelevantes.
Essa dimensão política da festa tem se agregado ao projeto estratégico
que vem sendo proposto às cidades nas últimas décadas. Assim, o entrelaça-
mento entre as festas e a (re)estruturação dos espaços da cidade parece con-
vergir para algo comum, qual seja, a tentativa de demarcação identitária local,
que está pautada, sobretudo, nos elementos da tradição e nos referenciais de
liberdade e coragem atualizados ao longo dos rituais festivos. É o caso da festa
junina, quando é teatralizado o espetáculo “chuva de balas no país de Mossoró”
e ainda do espetáculo Auto da Liberdade quando são encenados os fatos his-
tóricos que conformam os referenciais de coragem e liberdade, dentre os quais
se destacam: abolição dos escravos60, o motim das mulheres 61, a resistência da
cidade ao bando de Lampião e ainda o primeiro voto feminino na cidade.
Esses referenciais de coragem e liberdade também estão impressos na
geografia da cidade, como os conjuntos habitacionais que foram gradativamen-
te transformados em bairros, a exemplo dos conjuntos habitacionais Liberdade
(I, II e III), Abolição (I, II, III e IV). A praça da Redenção e da Independência
localizada no centro de Mossoró também compõe este conjunto arquitetônico
que expressa esta idéia de liberdade.
Estas duas grandes festas possuem características diferenciadas, pois,
enquanto o Auto da Liberdade é uma comemoração que tem uma origem local
e que, historicamente, esteve mais ligada ao Estado e às elites políticas de Mos-
soró, o São João está relacionado a um passado “além-mar”, embora à medida
que se propagou pelas regiões brasileiras foi assumindo características específi-
cas e, nesse processo, o caráter religioso foi gradativamente sendo substituído
pelo profano. No Nordeste, como bem salienta Morigi (2001) essas festas juni-
nas adquiriram maior significado, tendo sido absorvidas pela cultura, regional e
local, onde passaram a ser consideradas como festas da cultura nordestina.
A grandiosidade e o requinte presentes nestas festas, sobretudo no espe-
táculo Auto da Liberdade têm chamado a atenção da mídia nacional, estadual
e local, a exemplo das matérias exibidas no Jornal Nacional da Rede Globo, na
revista Isto É62 e na Folha de São Paulo.
Essa grandiosidade que se expressa por meio dos cenários festivos, dos
figurinos utilizados ao longo das encenações, revela o processo de espetaculari-
zação a que as festas vêm sendo submetidas na cidade. Mas quais os impactos
desse processo nas formas de festejar já existentes na cidade e, conseqüente-
59. Idem , 2000, p. 38.
60. Segundo a história local, os escravos foram libertados em Mossoró em 1883.
61. Movimento de mulheres organizado por Ana Floriano em 1885 contra a convocação dos maridos
e filhos para lutarem na guerra do Paraguai.
62. Matéria intitulada "Maracatu Atômico", exibida na revista Isto É do dia 08 de outubro de 2003.

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mente, nas sociabilidades dos moradores? Quais as tensões e ambigüidades
nessa forma de pensar a festa, a cidade e a identidade em Mossoró? No tópico
seguinte discutiremos um pouco essas questões.

Tensões e Ambigüidades nas Formas de Pensar a Cidade, a Festa e


a Identidade em Mossoró.
Ao adentrar na dinâmica festiva em Mossoró nos deparamos com di-
ferentes cenários. Um dos elementos que se destacam nesse cenário festivo é
o caráter de espetacularização que a festa organizada pelo poder público tem
apresentado. Esse aspecto tem se revelado tanto através da estetização como
da mercantilização da mesma.
Uma das conseqüências desse processo de espetacularização tem sido a
institucionalização de uma espacialidade e de uma temporalidade das festas na
cidade. Essa institucionalização se expressa através da concentração das festas
na área central da cidade em um tempo determinado, a exemplo do São João
que ocorre durante todo o mês de junho em um espaço reservado ao evento.
A festa de São João que antes era comemorada em dias alternados nos
diferentes bairros da cidade, nos últimos seis anos tem se concentrado na área
central da cidade durante todo o mês de junho. A institucionalização do tempo
e do espaço festivo acabou produzindo um esvaziamento das comemorações
que ocorriam em outros lugares da cidade, provocando tensões e resistências,
produzindo, assim, conflitos de territorialidades na cidade.
Essas tensões e resistências têm se revelado de diferentes formas, sendo
uma delas a atitude dos moradores do bairro onde tradicionalmente era come-
morado o São João que, mesmo enfrentando o esvaziamento, pois ela ocorre
concomitante ao São João realizado pela Prefeitura, vêm mantendo a data das
festividades do bairro. Muitos desses moradores se negam a freqüentar a festa
oficial, pois, para eles, ela é responsável pelo esvaziamento das comemorações
do bairro. Nesse sentido, reivindicam a inclusão dessa festa na programação
oficial63 do São João, pois sabem que essa é uma das formas de resgatar os fre-
qüentadores e continuar (re)existindo.
Essa reivindicação em torno da tradição da festa de São João que ocorre
no bairro foi destacada também pelo pároco da igreja. Conforme o padre, a
festa de São João organizada pelo poder público não obedece à tradição - enfa-
tizada por ele - na sua dimensão religiosa.
Ao mesmo tempo em que há resistências ao processo de instituciona-
lização da espacialidade e da temporalidade da festa junina em Mossoró, há
também uma conveniência por parte de moradores de outros bairros no sentido
63. Estamos denominando de Programação Oficial, aquela em que são divulgadas as atrações da
festa Junina organizada pela Prefeitura durante o mês de junho.

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de transferirem as suas comemorações para o mês de julho. Contudo, as opini-
ões sobre essas transferências de datas se diferenciam: para os mais jovens estas
mudanças são boas porque ampliam o tempo festivo; já para os mais idosos este
processo tem retirado da festa a sua tradição.
Essas resistências e assimilações que se expressam no cenário festivo de
Mossoró revelam as ambigüidades e contradições que permeiam a cultura po-
pular. Essas contradições são compreensíveis na medida em que não podemos
compreender a cultura popular fora do campo de forças das relações de poder
e dominação. Nesse sentido, Hall (2003) salienta que não devemos negar o
poder que as indústrias culturais possuem em “retrabalhar e remodelar aquilo
que representam; e pela repetição e seleção, impor e implantar tais definições
de nós mesmos de forma a ajustá-las mais facilmente às descrições da cultura
dominante ou preferencial”64.
Nessa perspectiva, é preciso reconhecer a influência que a indústria cul-
tural exerce sobre nós; afirmar o contrário, significa dizer que a cultura do povo
pode existir como um enclave isolado, fora do circuito de distribuição cultural
e das relações de força. O cenário festivo em Mossoró tem revelado essas influ-
ências, na medida em que há uma aceitação e uma identificação por parte de
uma camada da população com os rituais festivos que vêm sendo organizados
pelas elites.
Ao mesmo tempo em que há uma identificação com essa forma hege-
mônica de pensar a festa em Mossoró, há também resistências, que se revelam
através dos conflitos entre as instituições, a exemplo da Igreja, que reclama a
dimensão religiosa da festa, e entre as gerações, a exemplo dos mais idosos que
reivindicam a questão da tradição. Nesse sentido, “há uma luta contínua e
necessariamente irregular, por parte da cultura dominante, no sentido de desor-
ganizar e reorganizar constantemente a cultura popular”65. Contudo, há pontos
de resistências e também momentos de superação. Esta é a dialética da luta
cultural, como bem nos afirma Hall66.
Essa luta cultural, segundo o autor, é contínua e ocorre nas linhas com-
plexas da resistência e da aceitação, da recusa e da capitulação, que transfor-
mam o campo da cultura em uma espécie de campo de batalha permanente,
onde não se obtêm vitórias definitivas, mas onde há sempre posições estra-
tégicas a serem conquistadas ou perdidas. É no interior desse processo que é
possível compreender o cenário festivo em Mossoró.
No campo dessa luta cultural em Mossoró, um elemento tem se destacado
- a afirmação de uma identidade local. Essa identidade, que pretende ser hegemô-
nica, tem sido construída no âmbito das relações de poder que perpassam a luta
64. HALL, 2003, p.254.
65. Idem, 2003, p.255.
66. Idem, 2003.

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cultural na cidade e nesse processo de construção tem sido utilizado um conjunto
de representações e símbolos que tem reforçado o poder das elites na cidade.
Todavia, considerando que as identidades são relacionalmente constru-
ídas, é possível afirmar que elas podem ser disputadas, questionadas, e que os
referenciais de coragem e liberdade que são apropriados pelas elites para legiti-
mar uma identidade hegemônica, podem ao mesmo tempo, ser utilizadas pelas
classes subalternas para a sua afirmação material e simbólica, apontando assim,
para um horizonte emancipatório materializados em práticas e representações
onde se problematiza o espaço da diferença e se questiona os espaços da desi-
gualdade na cidade.
Esse caminho, embora encontre desafios, precisa ser percorrido em Mos-
soró, sobretudo nesse momento vivenciado pela cidade, em que os interesses
políticos locais se entrelaçam e, ao mesmo tempo, se reforçam no projeto global
que vem sendo proposto para as cidades por meio do planejamento estratégico.
Esse processo pode levar à destruição da cidade como espaço da política, como
lugar de construção da cidadania, ou como bem nos alerta Vainer67, da cidade
enquanto polis.
Essas questões que envolvem a cidade, a identidade e a cultura, embora
complexas, precisam ser refletidas, sobretudo por aqueles que estão se dispondo
a pensar a dinâmica sócio-espacial de Mossoró nos últimos anos. Essa dinâmi-
ca, que revela características de uma tendência mais global de pensar a cidade,
apresenta especificidades locais, dentre as quais tem se destacado a festa como
uma das formas de (re)invenção da tradição, (re)atualização da identidade e
conseqüentemente renovação da cidade. Nesse processo tem ocorrido uma im-
posição da festa concebida frente à festa vivida e, conseqüentemente, da cidade
da troca frente à cidade do uso. Neste sentido são valiosas as observações feitas
por Lefebvre:
A própria cidade é uma obra, e esta característica contrasta com a orien-
tação irreversível na direção do dinheiro, na direção do comércio, na
direção das trocas, na direção dos produtos. Com efeito, a obra é valor
de uso e o produto é valor de troca. O uso principal da cidade, isto é, das
ruas e das praças, dos edifícios, e dos monumentos, é a festa (que conso-
me improdutivamente sem nenhuma outra vantagem além do prazer e
do prestígio, enormes riquezas em objetos e em dinheiro).68
Pensando a cidade como espaço do uso, Lefebvre propõe que a mesma
reencontre a festa, sua função primordial. Essa proposta parece não se encon-
trar com o papel de mercadoria que a festa e a cidade têm assumido nesse mo-
mento histórico da sociedade capitalista, embora, para Lefebvre:
O espaço lúdico coexistiu e coexiste ainda com espaços de trocas e de
circulação, com o espaço político, com o espaço cultural. Os projetos
67. VAINER, 2002.
68. LEFEBVRE 1991, p.4.

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que perdem esses espaços qualitativos e diferentes no seio de um “espa-
ço social” quantificado, regulado apenas por contagens e pela contabili-
dade, esses projetos se baseiam numa esquizofrenia que se cobre com o
véu do rigor, da cientificidade, da racionalidade (...).69
Para que essa racionalidade contida nos projetos não tome completamente
a cidade, Lefebvre sugere que se faça valer a dimensão política contida nos progra-
mas. Para tanto, cabe aos habitantes não se deixarem manobrar, manipular. Cabe
às forças políticas indicarem suas necessidades sociais, “inflectir as instituições exis-
tentes, abrir os horizontes e reivindicar um futuro que será obra sua”.70
Em se tratando do projeto estratégico que está se instalando em Mossoró,
no qual a festa coloca-se como um dos elementos centrais, é preciso não permitir
que a espetacularização a que vem sendo submetida a sociedade e, conseqüente-
mente, a festa, não se imponha a ponto de sufocá-la, pois, como bem coloca Sea-
bra71, se o espetáculo vencer a festa, matará o germe que a alimenta.
Nesse sentido, propomos que a tensão que está colocada entre o espe-
táculo e a festa não se esgote no debate sobre a questão da tradição, mas que
ela assuma a perspectiva de um projeto para a cidade por parte dos moradores.
Com isso não estamos propondo que a festa seja extinta por conta do seu cará-
ter espetacular, mas que ela seja restituída na perspectiva de uma transforma-
ção da vida cotidiana como bem propõe Lefebvre72 .

69. Idem, 1991, p.133.


70. Idem, 1991, p.123.
71. SEABRA, 2002.
72. LEFEBVRE, 1991.

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capítulo V

TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E
LUTAS SOCIAIS NA AMAZÔNIA.

Identidade (...) Sempre que se ouvir essa palavra, pode-se estar certo
de está havendo uma batalha. O campo de batalha é o lar natural da
identidade. Ela só vem à luz no tumulto da batalha, e dorme e silencia
no momento em que desaparecem os ruídos da refrega.
(Zigmunt Bauman)

As pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a dife-


rença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os
descaracteriza.
(Boaventura de Sousa Santos)

Nas últimas décadas, a Amazônia vem passando por um profundo pro-


cesso de reestruturação sócio-espacial e reordenamento histórico-cultural.
Esse processo, que vem ocorrendo especialmente a partir da década de 60 é
resultante da tentativa de “integração” e incorporação da região na divisão ter-
ritorial do trabalho em escala nacional e internacional. Nesse período a região
torna-se um espaço estratégico para o projeto de nação que o Estado brasileiro
autoritário projetava para o país naquele momento histórico.
Para a realização de tal projeto a prioridade era “modernizar” a Ama-
zônia. Para tanto, busca-se uma modernização do território por meio de “uma
tecnologia espacial” que lhe impõe uma malha de controle técnico e político,
uma “malha programada”, constituída pelo conjunto de programas e planos
governamentais que colocaram a Amazônia na condição de uma fronteira de
recursos naturais a ser violentamente incorporada pelo grande capital .
Assim, o modelo que orientou esse processo de ocupação da Amazônia
. BECKER, 1996.

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foi a chamada economia de fronteira, pautada na idéia de progresso e de de-
senvolvimento como crescimento econômico e prosperidade infinita com base
na exploração de recursos naturais, também eles percebidos como infinitos,
como nos coloca Becker. Além disso, a premissa organizadora desse modelo de
ocupação e apropriação era a crença no papel da modernização como a única
força capaz de destruir as superstições e relações arcaicas, não importando o
seu custo social, cultural e político. A industrialização e a urbanização eram
vistas como inevitáveis e, necessariamente, progressivos caminhos em direção
à modernização .
Junto com o projeto de modernização implantado na Amazônia chegou
a cosmovisão da modernidade pautada em um conjunto de “magmas de signi-
ficação” que criaram um imaginário em que se atribui a priori uma positividade
ao novo, ao moderno e uma negatividade ao velho, ao passado, ao tradicional.
Essa perspectiva de compreensão da história e da realidade está pautada numa
ideologia do progresso e numa espécie de “fundamentalismo do novo”, presen-
tes num conjunto de práticas e representações marcadas pela violência e pelo
colonialismo que serviam e ainda servem para justificar a subalternização das
populações que historicamente viveram na região (índios, ribeirinhos, peque-
nos agricultores, seringueiros, varzeiros, castanheiros, populações quilombolas,
mulheres quebradeiras de coco etc.). Essas populações passam a ser classifica-
das como tendo modos de vida “tradicionais”, por estarem pautadas em outras
temporalidades históricas e configuradas em outras formas de territorialidades
e ainda por terem modos de vida estruturados a partir de racionalidades eco-
nômicas e ambientais com saberes e fazeres diferenciados da racionalidade ca-
pitalista.
O projeto de modernização conservadora materializado nos planos e
planejamentos do Estado autoritário e na implantação de “grandes projetos” a
partir da década de 60 via tais populações e seus modos de vida “tradicionais”
como obstáculos ao “desenvolvimento”, pois nessa visão se assinala um único
futuro possível para todas as culturas e todos os povos (a modernização ociden-
tal capitalista e a sociedade de consumo urbano-industrial). Nessa perspectiva,
aqueles que não conseguirem incorporar-se a esta marcha inexorável da histó-
ria estão destinados a desaparecer. As outras formas de ser, as outras formas de
organização da sociedade, as outras formas de conhecimento são transformadas
não só em diferentes, mas em carentes, arcaicas, primitivas, tradicionais, pré-
modernas, e são situadas num momento anterior do desenvolvimento histórico

. Idem, 1996.
. ESCOBAR, 1998.
. GONÇALVES (2005) usa essa expressão para chamar a atenção para a obsessão do imaginário
da modernidade pelo novo, pela velocidade, pela mudança, pelo progresso, criando uma justifica-
tiva ideológica para todas as formas de violência cometidas em nome do desenvolvimento e da
modernização.

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da humanidade, o que, no imaginário do progresso, enfatiza sua inferioridade.
Essa história de violência e subalternização que a modernidade/colonial
trouxe para a Amazônia pelo avanço da fronteira demográfica e econômica
passa a ser questionada a partir do final dos anos 80 pelo crescimento e for-
talecimento da organização da sociedade civil, em especial, pela atuação dos
movimentos sociais que através de inúmeras lutas buscam a afirmação das terri-
torialidades e das identidades das populações “tradicionais”. Esses movimentos
criam inúmeras redes e alianças com a cooperação internacional via principal-
mente das ONGs. Isso se dá em várias escalas, do local ao global, redefinindo as
formas de luta e de resistência dos sujeitos subalternizados na região.
A partir de então começa a se esboçar uma nova geo-grafia na Amazô-
nia que aponta para um processo de emergência de diversos movimentos sociais
que lutam pela afirmação das territorialidades e identidades territoriais como
elemento de r-existência das populações “tradicionais”; trata-se de movimentos
sociais de r-existência, pois não só lutam para resistir contra os que exploram,
dominam e estigmatizam essas populações, mas também por uma determinada
forma de existência, um determinado modo de vida e de produção, por dife-
renciados modos de sentir, agir e pensar.
Nesse sentido, os movimentos sociais lutam contra as diferentes formas
de subalternização material e simbólica, contra preconceitos e estigmas e pela
afirmação de suas identidades a partir dos seus próprios modos de vida. As
populações “tradicionais” se organizam, ganhando visibilidade e protagonismo,
se constituindo e afirmando como sujeitos políticos na luta pelo exercício ou
mesmo pela invenção de direitos a partir de suas territorialidades e identidades
territoriais. Essas lutas são lutas por redistribuição e por maior igualdade de
acesso aos recursos materiais (lutas por “territórios da igualdade”), bem como
pelo reconhecimento da legitimidade de diferenças e identidades culturais ex-
pressas nos diferentes modos de produzir e nos diferentes modos de viver e de
existir de tais populações (lutas por “territórios da diferença”).
Nesse contexto, vem ocorrendo a constituição de novos sujeitos políti-
cos e a emergência de “novas” identidades territoriais construídas pelas popu-
lações “tradicionais” nas lutas sociais pela afirmação material e simbólica dos
seus modos de vida. Essas identidades emergentes na Amazônia, construídas
pelos diferentes movimentos sociais (índios, ribeirinhos, pequenos agricultores,
seringueiros, varzeiros, castanheiros, populações quilombolas, mulheres que-
. LANDER, 2005.
. GONÇALVES (2004) propõe pensar a Geografia não como substantivo, mas como verbo ato/ação
de marcar a terra. É desse modo que podemos falar de nova geo-grafia, em que os diferentes
movimentos sociais re-significam o espaço e, assim, com novos signos grafam a terra, geografam,
reinventando a sociedade.
. Expressão cunhada GONÇALVES (2001) para mostrar que as lutas desses movimentos sociais
têm um significado social e cultural mais profundo do que uma simples reação.

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bradeiras de coco etc.), estão orientadas no sentido da superação de velhas
identidades coletivas ligadas a um discurso moderno/colonial que se fundamen-
tava na invisibilização, na romantização e, em especial, na estigmatização e no
estereótipo do “caboclo” para (des)qualificar as populações como “atrasadas”
“ignorantes” “indolentes” “improdutivas”, considerando tais populações como
um obstáculo a um projeto moderno urbano- industrial para Amazônia.
Assim, esses movimentos apontam para o caráter emancipatório das lu-
tas pautadas numa politização da própria cultura e de modos de vida “tradicio-
nais”, numa politização dos “costumes em comum” produzindo uma espécie de
“consciência costumeira”que vem re-significando a construção das identida-
des dessas populações que, ancoradas nas diferentes formas de territorialidade,
se afirmam num processo que, ao mesmo tempo, as direciona para o passado,
buscando nas tradições e na memória sua força, e aponta para o futuro, sinali-
zando para projetos alternativos de produção e organização comunitária , bem
como de afirmação e participação política.
Essas populações mobilizam estrategicamente e perfomaticamente esses
novos discursos identitários na busca de reconhecimento de sua cultura, me-
mória, e territorialidade que historicamente foram marginalizadas, suprimidas,
silenciadas e invisibilizadas e que agora começam a tornar visível o que era
invisível, em voz o que foi silenciado, em presenças as ausências e, desse modo,
iluminam a r-existência e o protagonismo dessas populações na construção da
história e da geografia da região.
Para discutirmos tais questões organizamos o presente texto em três par-
tes: na primeira realizaremos uma discussão teórica sobre o conceito de iden-
tidade e identidade territorial, já no segundo momento analisaremos as novas
representações discursivas sobre a Amazônia e o papel delas na emergência
das identidades territoriais construídas nas e pelas lutas sociais na Amazônia,
discussão que será tratada na terceira parte e, por último, buscaremos tecer
algumas considerações finais.

Itinerários Teóricos para se Pensar o Conceito de Identidade.


A discussão sobre a temática da identidade é muito complexa, já que
este conceito é portador de uma grande ambigüidade teórica e política, levan-
. Expressão usada por THOMPSOM (1998) para se referir à emergência de uma consciência polí-
tica e de uma cultura plebéia rebelde que buscava nos costumes e na tradição a legitimidade das
suas lutas para afirmação de determinadas formas de direitos consuetudinários e da economia
moral em oposição à economia capitalista e do direito liberal. Os camponeses resistem, em nome
do costume, às racionalizações econômicas e inovações (como o cercamento de terras comuns, a
disciplina no trabalho e os mercados ‘livres’ não regulados de grãos) que governantes, comerciantes
ou patrões buscavam impor. Trata-se de atribuir um conteúdo emancipatório para as culturas tradi-
cionais normalmente vistas como sinônimas de conservadorismo.

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do autores como Stuart Hall, inspirado pela perspectiva desconstrutivista de
Derrida, a afirmar que só é possível trabalhá-lo sob “rasura”, pois, apesar de sua
imprecisão e precariedade explicativa o conceito de identidade possui algo de
“irredutível”, em outras palavras, significa que apesar de suas limitações, não
é possível substituí-lo, pois a identidade é um desses conceitos que operam no
intervalo da inversão e da emergência: uma idéia que não pode ser pensada de
forma antiga, mas sem a qual certas questões-chaves não podem nem sequer
serem pensadas. Diante da vasta literatura existente sobre o tema optamos por
fazer uma síntese de alguns pressupostos teóricos que entendermos serem fun-
damentais na compreensão do fenômeno identitário e, em especial, para pen-
sarmos a questão das identidades territoriais na Amazônia.
• a identidade é uma construção Histórica
O nosso ponto de partida é o de que a identidade é sempre uma cons-
trução histórica dos significados sociais e culturais que norteiam o processo de
distinção e identificação de um indivíduo ou de um grupo. “Um processo de
construção de significados com base em um atributo cultural ou, ainda, um
conjunto de atributos culturais inter-relacionados o(s) qual (ais) prevalece(m)
sobre outras fontes de significação”. 10
A partir desse ponto de partida queremos distanciar nossa visão de toda
forma de “substancialismo” e “essencialismo”, pois concordamos com Hall
quando afirma que a identidade é, e sempre está em processo, ou seja, sempre
está em construção11. Neste sentido a identidade é dinâmica, múltipla, aberta e
contingente. Essas características nos remetem a algo em curso, em movimen-
to, sempre se realizando. Neste sentido, a identidade não se restringe à questão:
“quem nós somos”, mas também “quem nós podemos nos tornar”; desse modo,
a construção da identidade tem a ver com “raízes” (ser), mas também com
“rotas” e “rumos” (torna-se, vir a ser)12.
Assim, o conceito de identidade não se confunde com as idéias de origi-
nalidade, tradição ou de autenticidade, pois os processos de identificação e os
vínculos de pertencimento se constituem tanto pelas tradições (“raízes”, heran-
ças, passado, memórias etc.) como pelas traduções (estratégias para o futuro,
“rotas”, “rumos” projetos etc). As identidades nunca são, portanto, comple-
tamente determinadas, unificadas, fixadas, elas são “multiplamente constru-
ídas ao longo dos discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser
antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historizacão radical, estando
constantemente em processo de transformação e mudança”. 13

. HALL, 2004.
10. CASTELLS, 1993, p. 22
11. HALL, 2004.
12. Idem, 2004.
13. Idem, 2004, p. 108.

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• a identidade é relacional e contrastiva
Precisamos compreender que a identidade não é uma “coisa em si” ou
“um estado ou significado fixo”, mas uma relação, uma “posição relacional”,
uma “posição- de-sujeito” construída de forma relacional14 e contrastiva15, vis-
to que os processos de identificação e, conseqüentemente, as identidades são
sempre construídos na e pela diferença e não fora dela e nenhuma identidade
é auto-suficiente, auto-referenciada em sua positividade, tendo seu significado
definido no jogo da différance16 Ou, como nos lembra Hall (2003), cada iden-
tidade é radicalmente insuficiente em relação a seus “outros”. Isso implica no
reconhecimento radicalmente perturbador de que é apenas por meio da relação
com o outro, da relação com aquilo que não é, precisamente com aquilo que
falta, com aquilo que tem sido chamado de seu exterior constitutivo17, que a
identidade ganha sentido e eficácia.
Portanto não é possível estudar a identidade de qualquer grupo social
apenas com base na sua cultura, ou no seu modo de vida, nas suas representa-
ções de forma introvertida e auto-referenciada, pois as identidades e os senti-
mentos de pertencimento são construídos de maneira relacional e contrastiva
e muitas vezes conflitiva entre uma auto-identidade (auto-atribuição, auto-
reconhecimento) e uma hetero-identidade (atribuição e reconhecimento pelo
“outro”). São nessas teias complexas de valorações e significados de reconhe-
cimento e alteridade que se estabelece o diálogo e o conflito entre os grupos,
forjando as identidades.
• a identidade é material e simbólica
Um outro cuidado teórico e metodológico importante sobre a questão
da identidade é a superação de posições dualistas como: material/simbólico, ob-
jetivo/subjetivo. A identidade é construída subjetivamente, baseada nas repre-
sentações, nos discursos, nos sistemas de classificações simbólicas, embora não
seja algo puramente subjetivo e não se restrinja à “textualidade” e ao “simbóli-
co”. Ela não é uma construção puramente imaginária que despreza a realidade
material e objetiva das experiências e das práticas sociais como muitos afirmam,
e nem tampouco é algo materialmente dado, objetivo, uma essência imutável,
14. Idem, 2003.
15. OLIVEIRA, 1976.
16. Jacques Derrida usa este conceito para romper com o binarismo e a absolutização dos concei-
tos, dos significados, das diferenças e diríamos das identidades fixas, pois é só numa cadeia e num
jogo deslizante em relação aos outros que o significado, o conceito, a diferença ou a identidade
existe. “A différance, é o jogo sistemático das diferenças, dos rastros de diferenças , do espaça-
mento, pelo qual os elementos se remetem uns aos outros. Esse espaçamento é a produção, ao
mesmo tempo ativa e passiva (...) dos intervalos sem os quais os termos “plenos” não significariam,
funcionariam (...) o jogo das diferenças supõe, de fato, sínteses e remessas que impedem que, em
algum momento, em algum sentido, um elemento simples esteja presente em si mesmo e remeta
a si mesmo” (Derrida, 2001, p. 32-3).
17. HALL, 2004, p. 110.

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fixa e definitiva. Se a identidade é uma construção social e não um dado, se
ela é do âmbito da representação, isto não significa que ela seja uma ilusão que
dependeria da subjetividade dos agentes sociais. “A construção das identidades
se faz no interior dos contextos sociais que determinam a posição dos agentes e
por isso mesmo orientam suas representações e suas escolhas”. 18
Portanto, na construção da identidade não é possível pensar de forma
dissociada sua natureza simbólica e subjetiva (representações) e seus referen-
tes mais “objetivos” e “materiais” (a experiência social em sua materialidade)
Desse modo, não cabem posições deterministas e excludentes que privilegiem
a priori o material ou simbólico/textual, pois “se há sempre ‘algo mais’ além da
cultura, algo que não é bem captado pelo textual/discursivo, há também algo
mais além do assim chamado material, algo que sempre é cultural e textual.”19
Essa tensão e primazia não podem ser resolvidas no campo da teoria, só é pro-
visoriamente solucionada na prática concreta.
• a identidade é estratégica e posicional
A luta pela afirmação da identidade enquanto forma de reconhecimen-
to social da diferença significa lutar para manter visível a especificidade do gru-
po, ou melhor dizendo, aquela que o grupo toma para si, para marcar projetos e
interesses distintos, e “isso significa que sua definição - discursiva e lingüística
- está sujeita a vetores de força, a relações de poder” 20. O que aponta para uma
relação entre o “cultural” e o “político”, estando essas duas dimensões imbrica-
das num laço constitutivo na construção das identidades.
Esse laço constitutivo significa que a cultura entendida com concepção de
mundo, como um conjunto de significados que integram práticas sociais,
não pode ser entendida adequadamente sem as considerações das relações
de poder embutidas nessas práticas. Por outro lado, a compreensão das con-
figurações dessas relações de poder não é possível sem o reconhecimento
do seu caráter “cultural” ativo, na medida em que expressam, produzem e
comunicam significados.21
Assim, todos os sistemas simbólicos de classificação que organizam e
dão sentido e significado à marcação das diferenças culturais e das desigual-
dades sociais na construção das identidades são impregnadas de poder22. As
identidades “emergem no interior do jogo de modalidades específicas de poder,
e são assim mais o produto da marcação da diferença e da exclusão do que o
signo de uma unidade idêntica, naturalmente constituída” 23. É, pois, por essa
íntima relação com o poder que a identidade não pode ser considerada de ma-

18. CUCHE, 1999, p. 82


19. ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2003, p. 21
20. SILVA, 2004, p. 80.
21. ÁLVARES; DAGNINO E ESCOBAR, 2000, p. 17.
22. WOODWARD, 2004.
23. HALL, 2004, p. 109.

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neira essencialista, mas estratégica e posicional24 .
Neste sentido, a construção das identidades está em estreita conexão
com as relações de poder; os significados das identidades não são transcen-
dentais, eles são construídos, contestados, negociados a partir das relações as-
simétricas de poder na sociedade. Neste sentido, a luta pela afirmação de uma
determinada forma de representação e o estabelecimento de um determinado
significado de uma identidade é uma luta pela afirmação ou contestação da
hegemonia, um campo de batalha, pois como afirma Bauman:
Identidade (...) Sempre que se ouvir essa palavra, pode-se estar certo de
está havendo uma batalha. O campo de batalha é o lar natural da iden-
tidade. Ela só vem à luz no tumulto da batalha, e dorme e silencia no
momento em que desaparecem os ruídos da refrega (...) A identidade é
uma luta simultânea contra a dissolução e fragmentação; uma intenção
de devorar e ao mesmo tempo uma recusa resoluta a ser devorado. 25
Assim, devido a seu caráter estratégico, as identidades estão sujeitas à
manipulação dos indivíduos ou grupos sociais; elas não existem em si mesmas,
independentemente das estratégias de afirmação dos atores sociais. Elas são ao
mesmo tempo produtos e produtoras das lutas sociais e políticas. “Elas não são
simplesmente definidas; elas são impostas. Elas não convivem harmoniosamen-
te, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas”. 26
Na disputa pela identidade está envolvida uma disputa por outros recur-
sos simbólicos e materiais da sociedade. A afirmação da identidade e a
enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais
assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens
sociais. A identidade e a diferença estão em estreita conexão com as
relações de poder. O poder de definir a identidade e marcar a diferença
não pode ser separado das relações mais amplas de poder. A identidade
e a diferença não são, nunca, inocentes. 27
A eficácia das estratégias identitárias e o seu poder de legitimação irão
depender da situação de cada grupo no jogo do poder. Irá depender do capital
econômico, do político e, em especial, do simbólico28 que cada grupo possui na
estrutura assimétrica da sociedade. É pela “autoridade legítima” do poder sim-
bólico, “esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade da-
queles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”29,
é pela força do discurso performático, no poder quase mágico das palavras, num
24. Idem, 2004.
25.25������������������������
BAUMAN, 2005, p. 83-4.
�����
26. SILVA, 2004, p. 81.
27. Idem, 2004, p. 81 (grifo nosso).
28. BOURDIEU, 2003.
29. Idem, 2003, p. 8.

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jogo de corte e recorte, colagem e repetição de enunciados, imagens e símbolos,
que a identidade produz o consenso, a ação e a mobilização.
• a identidade pode ser: hegemônica ou subalterna.
A construção das identidades pode servir tanto para a manutenção e
legitimação das relações de poder hegemônicas da sociedade, quanto para sub-
vertê-las. Desse modo, o mesmo processo que serve à reprodução do poder
hegemônico, logo das identidades hegemônicas, pode ser interrompido e re-
orientado no sentido de produzir novas identidades. Pois, como afirma Silva,
inspirado em Judith Buttler,
A mesma repetibilidade que garante a eficácia dos atos performativos
que reforçam as identidades existentes pode significar a possibilidade
de interrupção das identidades hegemônicas. A repetibilidade pode ser
interrompida. A repetição pode ser questionada e contestada. É nessa
interrupção que residem às possibilidades de instauração de identidades
que não representam simplesmente a reprodução das relações de poder
existentes. 30
Assim, podemos perceber que para além das identidades hegemônicas
existem outras subalternizadas, de sujeitos subalternizados no jogo do poder,
mas que podem contestar a hegemonia, pois como nos fala Hall (2004), toda
identidade tem à sua “margem” um excesso, algo a mais. Silva (2004) afirma
que a identidade hegemônica é permanentemente assombrada pelo seu “ou-
tro”. Nestes termos, “toda identidade tem necessidade daquilo que lhe "falta”
- mesmo que esse outro que lhe falta seja um outro silenciado inarticulado”31.
Como as identidades não são nunca completamente unificadas, estáveis, fixas,
o mesmo “discurso performático” que repetidamente tende a fixar e a estabili-
zar uma identidade, silenciando outras, pode também subvertê-la e desestabili-
zá-la, ou seja, o que está na “margem” pode se tornar o “centro”.
Deste modo, no jogo de poder pela hegemonia na sociedade os dife-
rentes atores sociais de acordo com a “posição” que ocupam no espaço social
(muitas vezes também geográfico) e, ainda, pelo acúmulo de “capitais” que
possuem e a intenção em “investir” nos seus projetos políticos, podem afirmar
diferentes identidades em cada momento histórico. Castells (1996:24), fazendo
uma espécie de mapeamento das “posições“ e dos projetos dos diferentes atores
propõe três tipos de identidades: identidade legitimadora, identidade de resis-
tência e identidade de projeto.
a) A Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes
da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação
aos atores sociais.
b) Identidade de resistência: criada por atores que se encontram em

30. SILVA, 2004, p. 95.


31. HALL, 2004, p. 11.

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posições e condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica de domina-
ção, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em
princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo
opostos a estes últimos.
c) Identidade de projeto: Quando os atores sociais, utilizando-se de
qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identi-
dade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, buscam a trans-
formação de toda a estrutura social.
Assim, podemos verificar que conforme a “posição” do ator social a
construção das identidades assume uma configuração específica tanto no senti-
do da reprodução de uma ordem hegemônica quanto no de contestação desta
ordem, afirmando a diferença subalternizada e questionando as identidades
“normalizadas” e institucionalizadas ou, de forma mais ampla, a própria socie-
dade como instituição. Contudo, é importante percebermos com clareza que
cada “posição” é sempre construída de forma relacional em cada contexto de
poder específico, e que qualquer “posição” não é estática, mas dinâmica, o que
possibilita a uma identidade subalternizada ou de resistência tornar-se hegemô-
nica e institucionalizada, do mesmo modo que o que é o hegemônico em um
determinado contexto histórico pode tornar-se não-hegemônico em outro.

Identidade Territorial: uma perspectiva geográfica de pensar a ques-


tão das identidades
Adotamos a proposição de Haesbaert (1999) de que determinadas iden-
tidades são construídas a partir da relação concreta/simbólica e material/ima-
ginária dos grupos sociais com o território. Estas seriam identidades territoriais
por serem construídas pelo processo de territorializacão, aqui entendido como
“as relações de domínio e apropriação do espaço, ou seja, nossas mediações
espaciais do poder, poder em sentido amplo, que se estende do mais concreto
ao mais simbólico” 32 .
Assim, parte-se do princípio de que o território como mediação espacial
das relações do poder em suas múltiplas escalas e dimensões se define por um
jogo ambivalente e contraditório entre desigualdades sociais e diferenças cul-
turais, se realizando de maneira concreta e simbólica, sendo, ao mesmo tempo,
vivido, concebido e representado de maneira funcional e/ou expressiva pelos
indivíduos ou grupos. Neste sentido, baseado na distinção de Lefebvre entre
domínio e apropriação do espaço, Haesbaert define:
O território envolve sempre, ao mesmo tempo [...], uma dimensão sim-
bólica, cultural, por meio de uma identidade territorial atribuída pelos
32. HAESBAERT, 2004, p. 339.

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grupos sociais, como forma de controle simbólico do espaço onde vivem
(podendo ser, portanto, uma forma de apropriação), e uma dimensão
mais concreta, de caráter político-disciplinar: apropriação e ordenamen-
to do espaço como forma de domínio e disciplinarização dos indivíduos.
(2002:120-21) (...) Assim, associar o controle físico ou a dominação
“objetiva” do espaço a uma apropriação simbólica, mais subjetiva, impli-
ca em discutir o território enquanto espaço simultaneamente dominado
e apropriado, ou seja, sobre o qual se constrói não apenas um controle
físico, mas também laços de identidade social . 33
Dessa forma, cada território se constrói por uma combinação e imbrica-
ção única de múltiplas relações de poder, do mais material e funcional, ligado a
interesses econômicos e políticos, ao poder mais simbólico e expressivo, ligado
às relações de ordem mais estritamente cultural. Portanto, “o território, en-
quanto relação de dominação e apropriação sociedade-espaço, desdobra-se ao
longo de um continuum que vai da dominação político-econômica mais “con-
creta” e “funcional” à apropriação mais subjetiva e/ou cultural - simbólica” 34.
Afirmando esse duplo aspecto do território, como “domínio” e “função”
e, ao mesmo tempo, como “apropriação” “significação/valor” Bonnemaison e
Cambrezy declaram que para além da “função” que assume, o território é pri-
meiramente um “valor”. Segundo os autores “essa relação se expressa por uma
marcação mais ou menos intensa do espaço, ele transcende a única “posse”
material de uma porção da superfície terrestre. O poder do laço territorial re-
vela que o espaço é investido de valores não somente materiais, mas também
éticos, espirituais, simbólicos e afetivos”. 35
O território enquanto processo se realiza por um sistema de classificação
que é ao mesmo tempo funcional e simbólico, incluindo e excluindo por suas
fronteiras, (re)forçando as des-igualdades sociais (diferenças de grau ) e as di-
ferenças culturais (diferença de natureza) entre indivíduos ou grupos. Assim, o
processo de territorialização, seja pela funcionalização (domínio) ou pela sim-
bolização (apropriação), ou pela combinação simultânea desses dois movimen-
tos, constrói diferenças e identidades. Pois, como afirma Silva:
A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre,
as operações de incluir e excluir. A identidade e a diferença se traduzem,
assim, em declarações sobre quem pertence e quem não pertence, sobre
quem está incluído e quem está excluído. Afirmar a identidade significa
demarcar fronteira, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o
que fica fora. 36
33. HAESBAERT, 2001, p. 121.
34. Idem, 2004, p. 95.
35. BONNEMAISON; CAMBREZY, 1996, p. 10.
36. SILVA, 2004, p. 82.

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Nesta perspectiva, “toda relação de poder espacialmente mediada é
também produtora de identidade, pois controla, distingue, separa e, ao separar,
de alguma forma nomeia e classifica os indivíduos e os grupos37. Contudo, se
podemos afirmar que em toda territorialização como sistema de classificação
funcional-estratégico e/ou simbólico-expressivo se constroem identidades, não
se pode dizer o contrário, pois nem toda identidade é territorial, nem toda
identidade se territorializa, ou seja, constrói territórios, pois todas estão “loca-
lizadas” no espaço e no tempo, mas somente algumas têm como seu referencial
principal, sua “matéria-prima”, o território como definido por Haesbaert:
Toda identidade territorial é uma identidade social definida fundamen-
talmente através do território, ou seja, dentro de uma relação de apro-
priação que se dá tanto no campo das idéias quanto no da realidade
concreta, o espaço geográfico constituindo assim parte fundamental dos
processos de identificação social [...] trata-se de uma identidade em que
um dos aspectos fundamentais para sua estruturação está na alusão ou
referência a um território, tanto no sentido simbólico quanto concreto.
Assim a identidade social é também uma identidade territorial quando
o referente simbólico central da construção dessa identidade parte ou
perpassa o território. 38
No nosso entendimento, a construção de uma identidade territorial
pressupõe dois elementos fundamentais:
a) O espaço de referência identitária39
É o referente espacial no sentido concreto e simbólico onde se ancora
a construção de uma determinada identidade social e cultural. Refere-se ao
recorte espaço-temporal (os meios e os ritmos) onde se realiza a experiência
social e cultural, é nele que são forjadas as práticas materiais (formas uso, or-
ganização e produção do espaço) e as representações espaciais (formas de sig-
nificação, simbolização, imaginação e conceituação do espaço) que constroem
o sentimento e o significado de pertencimento dos grupos ou indivíduos em
relação a um território.
b) A consciência socioespacial de pertencimento:
É o sentido de pertença, os laços de solidariedade e de unidade que
constituem os nossos sentimentos de pertencimento e de reconhecimento
como indivíduos ou grupo em relação a uma comunidade, a um lugar, a um
território. Não é algo natural ou essencial, é uma construção histórica, relacio-
nal/contrastiva e estratégica /posicional. No que diz respeito à consciência de
pertencimento a um lugar, a um território, essa é construída a partir das práti-
37. HAESBAERT, 2004, p. 89.
38. Idem, 1999, pp. 172-178 (grifo do autor).
39. Espaço de referência identitária é uma expressão cunhada por POCHE (1983) para o estudo da
região numa perspectiva culturalista.

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cas e das representações espaciais que envolvem ao mesmo tempo o domínio
funcional-estratégico sobre um determinado espaço (finalidades) e a apropria-
ção simbólico/expressiva do espaço (afinidades/afetividades). O domínio do es-
paço, nos termos de Lefevbre40, está ligado às representações do espaço (espaço
concebido), e a apropriação está mais ligada às práticas espaciais e aos espaços
de representação (dimensão de um espaço percebido e vivido).
Isso implica dizer que também as identidades territoriais podem ser
construídas de formas diferentes, umas mais ligadas ao domínio estratégico-
funcional do espaço pelo poder econômico e político, sendo construídas com
base num espaço concebido, e outras mais ligadas a uma apropriação simbó-
lica-expressiva, tendo mais como referencial a subjetividade e a experiência
do espaço vivido. Mas isso não significa criar uma dicotomia, pois, como nos
lembra Lefebvre41, não há quebras ou rupturas entre domínio (concebido) e
apropriação (vivido), mas sim uma relação dialética.
Neste sentido, cabe metodologicamente verificar em cada processo de
construção identitária a contradição entre o domínio das estratégias-funcionais
(concebido) e a apropriação simbólico-expressiva do espaço (vivido). Nessa
tensão existem pólos predominantes e hegemônicos e outros subalternizados
em forma de resíduos e resistências. Assim, ora se impõe o domínio e o espaço
concebido, ora a apropriação e o espaço vivido na construção das identidades.
Partindo dessas possíveis configurações identitárias podemos ter dois “tipos ide-
ais” de configurações das identidades territoriais que só é possível separar anali-
ticamente, considerando que empiricamente estão imbricadas numa espécie de
continuum que vai da identidade que se ancora exclusivamente no “vivido” até
aquela que se pauta exclusivamente no “concebido”.
Para aprofundarmos essa caracterização das configurações das identida-
des territoriais num diálogo com a proposta de Henry Lefebvre (1986) sobre a
concepção da produção social do espaço, propomos pensar:
a) Identidades construídas predominantemente pautadas no espaço
concebido (representações do espaço):
São identidades pautadas no domínio lógico-racional e estratégico-fun-
cional do espaço (Espaço com valor de troca: mercadoria – propriedade). Essas
identidades são construídas a partir do espaço concebido ou das representações
do espaço que, segundo Lefebvre42, estão ligadas às relações de produção da
“ordem” que impõem os conhecimentos, os signos, os códigos espaciais como
um produto do saber, um misto de ideologias e conhecimentos Neste sentido,
tais identidades são construídas deslocadas das experiências do espaço vivido
cotidianamente e têm sua “matéria-prima”, sua “base” no conjunto de repre-
40. LEFEVBRE, 1986.
41. Idem,1983.
42. LEFEBVRE, 1986.

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sentações do espaço (concebido) dos planos, teorias, imagens, discursos e ide-
ologias dos atores hegemônicos como o Estado, o grande capital, os cientistas,
os burocratas, os políticos, a mídia etc.
b) Identidades construídas predominantemente pautadas no espaço
vivido (espaços de representação)
São identidades pautadas na apropriação simbólico-expressiva do es-
paço, nos “resíduos irredutíveis” ao domínio lógico-racional e estratégico-fun-
cional do espaço: o uso, o vivido, o afetivo, o sonho, o imaginário, o corpo, a
festa, o prazer etc. Essa apropriação está mais assentada no valor de uso – uso
concreto do tempo, do espaço, do corpo – que da concretude, e abriga as di-
mensões da existência e os sentidos da vida43 .
São identidades construídas a partir dos espaços de representação que,
segundo Lefebvre, são espaços que se caracterizam pelos simbolismos comple-
xos, ligados ao subterrâneo, ao labirinto, à clandestinidade da vida social, ao
imaginário44. São identidades construídas a partir do espaço dos “habitantes”,
dos “usuários”, o espaço vivido que contém uma forte dimensão afetiva, con-
tém os lugares da paixão e da ação; trata-se de um espaço essencialmente quali-
tativo, relacional e diferencial.45 Portanto, são identidades construídas arraiga-
das na experiência imediata do espaço vivido, na densidade e espessura de um
cotidiano compartilhado localmente em sua multiplicidade de usos do espaço e
do tempo. Estão ligadas à produção e comunhão dos saberes, dos costumes em
comum, da memória e do imaginário coletivo.
Assim, para compreendermos a identidade das populações “tradicionais”
na Amazônia precisamos conhecer as suas experiências culturais, seus modos
de vida, suas territorialidades, seus saberes e fazeres vividos cotidianamente
(o “espaço vivido” nos termos de Lefebvre). Mas, para além da dimensão do
“vivido” precisamos levar em conta um conjunto de representações e ideologias
presentes nas imagens, discursos, planos e teorias sedimentados historicamente
pela mídia, pela visão da classe política, pelas diferentes frações do capital na-
cional e internacional e pelos planejamentos do Estado e ainda nas pesquisas
acadêmicas que muitas vezes estão pautadas nas “representações do espaço”
ou no “espaço concebido.”46 É a partir dessa relação dialética entre “o espaço
vivido” e o “espaço concebido” que se constroem a consciência socioespacial
de pertencimento e as identidades territoriais.

43. SEABRA, 1996.


44. LEFEBVRE, 1986
45. Idem, 1986
46. Idem, 1986.

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Novas Representações Sobre a Amazônia e a Emergência da Ques-
tão Identitária
No atual momento histórico podemos verificar que a Amazônia é pro-
fundamente influenciada por processos globais, e vários vetores da atual eco-
nomia globalizada convergem para esta região. Neste sentido, vale destacar a
centralidade estratégica, geopolítica, econômica e midiática que a região assu-
miu a partir da ascensão da questão ambiental. Essa visibilidade é tão grande
que algumas pesquisas apontam que a palavra “Amazônia”, ou melhor, a marca
“Amazônia” é uma das três mais conhecidas em todo o mundo, estando ao lado
de marcas como Coca-Cola. Isto mostra como é forte o imaginário construído
sobre esta porção do território brasileiro. Além disso, hoje é muito grande a
quantidade de empresas, ONGs e instituições de pesquisa que atuam na região
, sem falar que grande parte do capital que nela circula é de origem externa.
Esse processo de globalização da região vem se intensificando a partir
do processo que Arturo Escobar denominou de uma “irrupção do biológico” 47.
Trata-se da emergência do discurso da conservação da biodiversidade e do cha-
mado desenvolvimento sustentável no plano das políticas de desenvolvimen-
to a nível global. Segundo Escobar (2005), o conceito de biodiversidade tem
transformado os parâmetros de avaliação da natureza e as disputas de acesso
aos recursos naturais. A idéia de biodiversidade decorre de uma quantificação
do número de espécies existentes em determinadas áreas. É por isso que zonas
ou áreas tropicais como a Amazônia (que possuem uma grande diversidade
genética) adquirem “uma nova visibilidade e se convertem em objeto de reno-
vado interesse” para inúmeros atores com interesses e projetos diversos. Desse
modo, o discurso da biodiversidade coloca as áreas de floresta tropical unidas
numa “posição biopolítica global fundamental”. 48
No que se refere especificamente à Amazônia, a revolução científico-
tecnológica, a crise ambiental e a atuação dos chamados novos movimentos
sociais redefiniram a partir de interesses diferenciados o valor da natureza en-
quanto recurso.49 A ação conjunta desses elementos resulta na mudança do pa-
radigma de desenvolvimento na Amazônia baseado na economia de fronteira
para um padrão de desenvolvimento sustentável baseado na eficiência máxima
e no desperdício mínimo no uso de recursos naturais, na valorização da diver-
sidade e na descentralização. 50
Nessa nova realidade se configura uma nova divisão territorial do tra-
balho e uma nova geopolítica, o que implica um novo modo de produzir que

47. ESCOBAR, 2005.


48. Idem , 2005, p. 346.
49. BECKER, 1996.
50. BECKER, 1996, p. 226.

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valoriza a natureza como capital de realização atual e/ou futura51. Diante desse
novo quadro, a Amazônia deixa de ser a fronteira de recursos para o uso ime-
diato para tornar-se uma fronteira tecnoecológica ou fronteira socioambiental,
cujo desenvolvimento futuro se tornou uma questão complexa e híbrida que
envolve um conflito de valores quanto à natureza.52
Nesse contexto, segundo Becker a natureza vem sendo reavaliada e re-
valorizada a partir de duas lógicas muito diferentes, mas que convergem para o
mesmo projeto de preservação da Amazônia:
1- A primeira lógica é a civilizatória ou cultural, que se caracteriza por
uma preocupação legítima com a natureza pela questão da vida, dando origem
aos movimentos ambientalistas.
2- A outra lógica é a da acumulação, que vê a natureza como recurso escas-
so e como reserva de valor para a realização de capital futuro, fundamentalmente
no que tange ao uso da biodiversidade condicionada ao avanço da tecnologia53.
Essas duas grandes lógicas se tornam mais complexas e matizadas quan-
do verificamos a questão dos discursos sobre a biodiversidade envolvendo os
mais diversos atores e interesses, como nos mostra Arturo Escobar:
1. Utilização dos recursos: perspectiva “globocêntrica”. A perspec-
tiva “globocêntrica” é visão da biodiversidade produzida pelas insti-
tuições dominantes, nomeadamente o Banco Mundial e as principais
ONGs ambientalistas do norte apoiados pelos países do G-8. Oferece
prescrições para conservação e usos sustentáveis dos recursos nos ní-
veis internacional, nacional e local, e sugere mecanismos apropriados
para utilização, incluindo investigação cientifica, conservação in situ e
ex situ, planejamento nacional da biodiversidade e estabelecimento de
mecanismos apropriados para compensação e utilização econômica dos
recursos da biodiversidade, principalmente mediante direitos de pro-
priedade intelectual.
2. Soberania: Perspectivas nacionais do terceiro-mundo. Apesar de
existirem grandes variações nos posicionamentos adotados pelos gover-
nos do terceiro-mundo, pode-se afirmar a existência de uma perspec-
tiva nacional do terceiro-mundo que, sem pôr em questão de maneira
fundamental o discurso “globocêntrico”, procura negociar os termos dos
tratados e as estratégias da biodiversidade. Aspectos ainda não resol-
vidos, nomeadamente o da conservação in situ e o acesso a coleções
ex situ, o acesso soberano aos recursos genéticos, a dívida ecológica e
a transferência de recursos tecnológicos e financeiros para o terceiro-

51.51� Idem, 1996, p. 226.


������
52. Idem, 1996.
53. Idem, 2005

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mundo são tópicos importantes na agenda dessas negociações.
3. Biodemocracia: perspectivas das ONGs progressistas. Para um
número crescente de ONGs do sul a perspectiva dominante e “globo-
cêntrica” equivale a uma forma de bioimperalismo. Os simpatizantes
da biodemocracia enfatizam o controle local dos recursos naturais, a
suspensão de megaprojetos de desenvolvimento, e os subsídios para as
atividades do capital destroem a biodiversidade, o apoio às práticas ba-
seadas na lógica da diversidade, a redefinição de produtividade e efici-
ência e o reconhecimento da base cultural da diversidade biológica.
4. Autonomia cultural: Perspectiva dos movimentos sociais. Os mo-
vimentos sociais que constroem uma estratégia política para defesa do
território, da cultura e da identidade ligada a determinados lugares e
territórios geram uma política cultural mediada por considerações eco-
lógicas. Consciente de que a biodiversidade é uma construção hegemô-
nica, reconhecem, porém, que esse discurso abre um espaço para confi-
guração de desenvolvimentos culturalmente apropriados que se podem
opor às tendências mais etnocêntricas. O interesse desses movimentos é
a defesa de todo um projeto de vida, e não apenas a defesa dos recursos
ou da biodiversidade. 54
Paralelo a essa “irrupção do biológico” vem ocorrendo também uma “ir-
rupção do étnico”, que está ligada a um processo mais amplo de “centralidade
da cultura”55 na dinâmica do mundo contemporâneo. Segundo Hall (1997)
vem ocorrendo um processo onde o “cultural” é cada vez mais relevante para
entendermos o “econômico” e o “político”. Este processo se materializa em duas
direções: de um lado, nessa nova fase do capitalismo, o capital avança rumo
às ultimas fronteiras onde a lógica da mercadoria ainda não tinha se tornado
hegemônica - trata-se da transformação da “cultura em recurso”56e meio de
acumulação. Numa segunda direção percebemos as transformações nas formas
de sociabilidade, visto que as mudanças de valores vêm afetando de maneira
dramática a construção das subjetividades. Deste modo, as subjetividades são
cada vez mais politizadas e a questão da diferença torna-se o centro de muitas
das lutas do mundo atual, sendo que o direito ao reconhecimento constitui a
plataforma de inúmeros movimentos sociais que lutam pelas chamadas “políti-
cas de identidade”.
Esses dois processos de “irrupção” se materializam na atual realidade
da Amazônia, pois há uma crescente visibilidade das questões ambientais por
conta da questão do “desenvolvimento sustentável” e da biodiversidade, ao
mesmo tempo em que há uma crescente organização e mobilização das chama-
54. ESCOBAR, 2005, p. 348-9.
55. HALL, 1997.
56. YUDICE, 2005.

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das “populações tradicionais” na luta pelo reconhecimento dos seus direitos,
como vem ocorrendo com as populações indígenas, as populações quilombolas
e as populações extrativistas como a dos seringueiros, entre outras; isso implica
numa espécie de “ambientalização” e “etnização” das lutas sociais na região. Es-
ses dois processos trazem um conjunto de elementos importantes na construção
de novas “políticas culturais” ou da politização das culturas “tradicionais” e tem
influenciado na construção das identidades territoriais na Amazônia.
Assim, podemos verificar que esse novo paradigma do “desenvolvimen-
to sustentável” traz consigo um novo conjunto de práticas materiais expressas
em novas formas de produzir, uma nova forma de atuação de uma fração ca-
pital, bem como uma mudança nas formas de intervenção estatal através das
políticas públicas de ordenamento territorial expresso nas idéias de preservação
e conservação ambiental. Além disso, vem ocorrendo a emergência de redes
internacionais e globais dos movimentos ambientais e sociais que travam inú-
meras lutas pautadas na idéia de uma “consciência ambiental global”.
Mas, para além disso, esse novo modelo de desenvolvimento trouxe
consigo um novo imaginário e um novo regime discursivo que dá uma grande
visibilidade ao chamado “desenvolvimento sustentável” e à biodiversidade. Es-
tas idéias são a base, como vimos, dos discursos produzidos pelos mais diversos
atores com diferentes interesses e projetos. Esse discurso abrange um amplo
leque de atores e interesses e se manifesta tanto no discurso do grande capital e
dos organismos internacionais que normatizam o sistema de acumulação global
– como Banco Mundial, OMC entre outras instituições –, como nos discursos
do Estado, da mídia, dos cientistas e das organizações não governamentais,
alcançando os movimentos sociais. Diante da amplitude e da força desse novo
regime discursivo, cria-se um novo imaginário pautado num conjunto de “re-
presentações do espaço” que apresentam uma “nova” visão da Amazônia e das
chamadas “populações tradicionais”, pois com a valorização da biodiversidade
ocorre também uma certa “valorização” das chamadas “culturas tradicio-
nais”, já que o acesso aos recursos genéticos não raras vezes passa pelos saberes
“tradicionais” acumulados por essas populações na longa convivência com os
ecossistemas amazônicos.
Desse modo, a cultura dessas populações que sempre foram historica-
mente invisibilizadas, negadas, suprimidas ou estigmatizadas por um conjunto
de discursos, representações e ideologias marcadas por preconceitos e por uma
visão racista e colonialista, experimenta hoje uma certa (re)valorização e uma
(re)significação a partir de dois movimentos que, embora procedendo de inte-
resses e projetos distintos e caminhando em direções diferentes se relacionam
dialeticamente na construção de uma consciência socioespacial de pertenci-
mento e na construção da identidades dessas populações.
O primeiro movimento aponta para uma espécie de idealização românti-

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ca, que tem ganhado força nos dias atuais por via de um ecologismo romântico
que fortalece a idéia de que essas populações são a redenção para a sociedade
urbano-industrial marcada pelo consumo e pela insustentabilidade. Nesta vi-
são, os modos de vida dessas populações apontam para formas alternativas de
racionalidade econômica e ambiental sustentáveis. Essa visão, contudo, ignora
a pobreza e as difíceis condições de vida que tais populações vivenciam.
Essa visão é ainda reforçada pela indústria do turismo que vive da venda
do exótico; neste sentido, vem ocorrendo uma espécie de mercantilização da alte-
ridade e da diferença57 com uma conseqüente (re)valorização das singularidades
das culturas não-urbanas, ou “culturas tradicionais”, criando-se assim verdadeiros
“mercados étnicos”, a venda de “estilos de vida” e o estímulo ao “consumo de iden-
tidades”.58 Dessa forma, as culturas e os modos de vida “tradicionais” são estiliza-
dos, tornando-se valiosos produtos para o mercado turístico.
Num segundo movimento e em outra direção, a valorização das “cultu-
ras tradicionais” vem sendo realizada pelas próprias populações “tradicionais”
que se organizam, ganhando visibilidade e caráter protagonista, constituin-
do-se e afirmando-se como sujeitos políticos na luta pelo exercício ou mesmo
pela invenção de direitos a partir de suas territorialidades. Essas lutas são lutas
por redistribuição e por maior igualdade de acesso aos recursos materiais, bem
como pelo reconhecimento da legitimidade das diferenças e das identidades
culturais expressas nos diferentes modos de produzir e nos diferentes modos de
viver de tais populações.
Assim, nas lutas pela afirmação dos direitos à sua territorialidade e ao
seu modo de vida próprio que são negados pelo projeto de “modernização”, as
populações “tradicionais” iniciaram um processo de questionamento dos dis-
cursos e representações hegemônicas sobre as suas identidades. Representações
estas que desconsideram a cultura e o modo de vida, o “espaço vivido” des-
sas populações, sendo construídas e pautadas em estereótipos reducionistas de
uma clara fundamentação colonialista. É nesse contexto que emergem novas
identidades a partir de um processo de politização das culturas “tradicionais”
na Amazônia.
Essas lutas contam com fortes alianças internacionais e globais através
da cooperação internacional e, em especial, pela atuação em rede de ONGs
ligadas à questão ambiental que financiam e ajudam no processo de organi-
zação , mobilização e, sobretudo, no processo de divulgação e midiatização das
causas e lutas dos “povos da floresta”.
Esse conjunto de processos atua de maneira ativa na construção das
identidades territoriais na Amazônia: o sentido de lugar, os vínculos de perten-
cimentos, as relações de caráter expressivo e afetivo, construídas e arraigadas
57. HALL, 1997.
58. YUDICE, 2005.

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no cotidiano, nas práticas do “espaço vivido” e amalgamadas na memória e na
tradição são “suturadas” a esses novos discursos, a essas novas “representações
do espaço” pautadas no “espaço concebido”, produzindo uma consciência so-
cioespacial de pertencimento e a constituição de novas posições-de-sujeito,
tornando mais complexa a dinâmica política da região. É esse processo que
analisaremos a partir de agora.

R-Existências, Territorialidades e Lutas Sociais na Construção das


Identidades na Amazônia.
A partir do final dos anos 80 emerge na Amazônia um conjunto de
movimentos sociais canalizando e materializando as forças políticas das chama-
das “populações tradicionais” que no processo de r-existência aos processos de
exploração econômica, dominação política e estigmatização cultural começam
a se organizar e lutar, constituindo-se, como novos protagonistas que ganham
visibilidade a partir dos inúmeros antagonismos sociais e lutas por seus direitos
sociais e culturais.
Esses novos movimentos sociais, conforme Almeida (2005) vêm se con-
solidando fora dos marcos tradicionais do controle clientelístico e da política
que tinha sua personificação nos sindicatos de trabalhadores(as) rurais. O au-
tor aponta o ano de 1989 como um marco, um ponto crítico e de precipitação
de inúmeros “encontros” e iniciativas que deram origem a diversas formas de
movimentos sociais e associações que lutam por interesses das populações “tra-
dicionais”.
No momento atual esse processo de emergência de novos sujeitos po-
líticos vem assumindo novas configurações e ganhando densidade e conteúdo
histórico pela afirmação de múltiplas formas de associação que ultrapassam
“o sentido estreito de uma organização sindical, incorporando fatores étnicos
e critérios ecológicos, de gênero e de autodefinição coletiva” 59. Esses novo-
velhos sujeitos protagonistas apontam para uma existência coletiva objetivada
numa diversidade de movimentos organizados com suas respectivas redes so-
ciais, redesenhando a sociedade civil da Amazônia e impondo seu reconheci-
mento aos centros de poder.
Prosseguindo suas considerações, o referido autor destaca como mate-
rialização desse processo as associações voluntárias e entidades da sociedade
civil que estão se tornando força social, tais como: União das Nações Indígenas
– UNI, Coordenação Indígena da Amazônia Brasileira – Coiab e toda a rede de
entidades indígenas vinculadas, que alcança cerca de 60, o Movimento Interes-
tadual das Quebradeiras de Coco-Babaçu – MIQCB, o Conselho Nacional dos
59. ALMEIDA, 2004, p. 163.

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Seringueiros, o Movimento Nacional dos Pescadores – Monape, o Movimento
dos Atingidos de Barragens – MAB, a Associação Nacional das Comunidades
Remanescentes de Quilombo e a rede de entidades a ela vinculada no Ma-
ranhão – a Associação das Comunidades Negras Quilombolas do Maranhão
– Aconeruq e no Pará – a Associação das Comunidades Remanescentes de
Quilombos do Município de Oriximiná – ARQMO, a Associação dos Ribeiri-
nhos da Amazônia entre outras.
Essas novas formas de organização política implicam novas táticas e
estratégias levando a uma ampliação das pautas reivindicatórias na luta por
direitos que vão dos direitos sociais básicos como saúde, educação, terra, cré-
dito, bem como pelo reconhecimento de direitos culturais, como o direito às
formas diferenciais de apropriação e uso da terra e dos recursos naturais, for-
mas diferentes de cultos e valorização e reconhecimento dos conhecimentos
acumulados por tais populações etc. Segundo Almeida (2004) a ampliação das
pautas de demandas tem sido acompanhada da multiplicação de instâncias de
interlocução dos movimentos sociais com os aparatos político-administrativos,
sobretudo com os responsáveis pelas políticas agrárias e ambientais.
Esse conjunto de movimentos sociais se articula coletivamente naquilo
que Almeida denominou de “unidades de mobilização”60, um conjunto de mo-
vimentos diferentes e locais que estrategicamente se reúnem para pressionar o
Estado na busca soluções para suas demandas, além disso, essas “unidades de
mobilizações” se articulam em redes em várias escalas transcendendo a escala
local e até a nacional, logram generalizar o localismo das suas reivindicações
através de parcerias e alianças a nível internacional criando novas formas de
mediação e interlocução e com essas práticas alteram padrões tradicionais de
relação política com os centros de poder e com as instâncias de legitimação,
inaugurando novas formas de lutas políticas e resistência.
Essa nova estratégia discursiva e identitária dos movimentos sociais na
Amazônia, ao designar os sujeitos da ação, não aparece atrelada à conotação
política que, conforme Almeida (2004), em décadas passadas estava associada
principalmente ao termo camponês. No momento histórico atual esses atores
políticos apresentam-se através de múltiplas denominações e apontam para a
construção de novas e múltiplas identidades. Essa multiplicidade de identida-
des cinde, portanto, com o monopólio político do significado das expressões
camponês e trabalhador rural, que até então eram usadas com prevalência por
partidos políticos, pelo movimento sindical centralizado na Contag (Confede-
ração Nacional dos Trabalhadores em Agricultura) e pelas entidades confessio-
nais (CPT, CIMI, ACR).61
Para Gonçalves (2001) esse novo contexto aponta para a construção
60. ALMEIDA, 1994.
61. ALMEIDA, 2004.

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de “novas” identidades coletivas surgidas de velhas condições sociais e étni-
cas, como é o caso das populações indígenas e negras, ou remetendo-se a uma
determinada relação com a natureza (seringueiro, castanheiro, pescador, mu-
lher quebradeira de coco) ou, ainda expressando condição derivada da própria
ação dos chamados “grandes projetos” implantados na região, como estradas
hidrelétricas, projetos de mineração, entre outros (“atingidos”, ”assentado”,
“deslocado”). Trata-se de um processo de ressignificação político e cultural que
esses grupos sociais vêm fazendo da sua experiência cultural e da sua forma de
organização política.
Dentro dessas novas estratégias discursivas e das novas táticas de prá-
ticas políticas os “velhos” agentes vêm se constituindo em “novos” sujeitos
políticos ou novas posições-de-sujeito62, este processo se dá pela politização
daqueles termos e denominações de uso local. Trata-se da ”politização das re-
alidades localizadas, isto é, os agentes sociais se erigem em sujeitos da ação ao
adotar como designação coletiva as denominações pelas quais se autodefinem
e são representados na vida cotidiana”. 63
Essas novas afirmações identitárias não significam uma destituição do
atributo político das categorias de mobilização como camponês e trabalhador
rural. Contudo para Alfredo Wagner Almeida é a emergências das “novas”
denominações que designam os movimentos e que espelham um conjunto de
práticas organizativas que traduzem transformações políticas mais profundas
na capacidade de mobilização desses grupos, em face do poder do Estado e em
defesa de seus territórios.
Em virtude disso, pode-se dizer que, mais do que estratégia de discurso,
ocorre o advento de categorias que se afirmam por meio da existência
coletiva, politizando não apenas as nomeações da vida cotidiana, mas
também as práticas rotineiras de uso da terra. A complexidade de ele-
mentos identitários, próprios de autodeterminação afirmativas de cultu-
ras e símbolos, que fazem da etnia um tipo organizacional, ou traduzida
para o campo das relações políticas, verificando-se uma ruptura pro-
funda com a atitude colonialista e homogeneizante, que historicamente
apagou diferenças étnicas e a diversidade cultural, diluindo-as em clas-
sificações que enfatizavam a subordinação dos “nativos”, ”selvagens” e
ágrafos ao conhecimento erudito do colonizador. 64
Assim na busca pela afirmação dos direitos à sua territorialidade, com
seu modo de vida próprio negado pela “modernização”, essas populações inicia-
ram um processo de questionamento dos discursos e representações hegemô-
nicas sobre as suas identidades (representações pautadas no espaço concebido
que é um misto de conhecimento e ideologias), representações homogêneas e
62. HALL, 2004.
63. ALMEIDA, 2004, p. 166.
64. ALMEIDA, 2004, p. 167

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abstratas materializadas no conjunto de planos, projetos, estatísticas e teorias
usadas pelo Estado e pelo grande capital que ignoram o “espaço vivido” e a
dimensão cotidiana do modo de vida de tais populações com seus múltiplos
ritmos, diferentes formas de sociabilidade, saberes e fazeres.
O questionamento das práticas discursivas e representações do espaço “es-
paço concebido” é feito pela politização do “espaço vivido” da dimensão cotidiana
dos diferentes modos de vida e territorialidades. Assim esses movimentos sociais
buscam redefinir e re-significar suas identidades buscando construir um novo
“magna de significações” que valorizem a própria experiência cultural dessas popu-
lações apontando para uma nova “política cultural” aqui entendida:
(...) como processo posto em ação quando conjuntos de atores sociais
moldados por e encarnando diferentes significados e práticas culturais
entram em conflitos uns com outros. Essa definição supõe que significa-
dos e práticas - em particular aqueles teorizados como marginais, opo-
sicionais, minoritários, residuais e emergentes, alternativos, dissidentes
e assim por diante, todos concebidos em relação a uma determinada
ordem cultural dominante - podem ser fonte de processos que devem
ser aceitos como políticos. 65
Trata-se de um processo onde há um entrelaçamento entre a cultura
e a política de maneira co-constitutiva na construção identitária. A cultura é
política porque os significados são constituídos dos processos que implícita ou
explicitamente, buscam redefinir o poder social. “Isto é, quando apresentam
concepções alternativas de mulher, natureza, raça economia, democracia ou
cidadania, que desestabilizam os significados culturais dominantes, os movi-
mentos põem em ação uma política cultural.”66
Falamos de formações de política cultural nesse sentido: elas são resul-
tadas de articulações discursivas que se originam em práticas culturais
existentes - nunca puras, sempre híbridas, mas apesar disso, mostrando
contrastes significativos em relação às culturas dominantes - e no con-
texto de determinadas condições históricas67.
Essas novas “políticas culturais“ ou a politização da cultura pelos movi-
mentos sociais ligados às populações ”tradicionais” apontam para o advento,
nesta última década e meia, de categorias que se afirmam por meio de uma
existência coletiva, politizando nomeações da vida cotidiana, tais como serin-
gueiros, quebradeiras de coco-babaçu, ribeirinhos, castanheiros, pescadores,
extratores de arumã e quilombolas, entre outros, isso implica numa grande
complexidade da questão identitária na realidade Amazônica. 68

65. ÁLVARES, DAGNINO E ESCOBAR, 2000, p. 24-5.


66. ÁLVARES; DAGNINO E ESCOBAR, 2000, p. 25.
67. Idem, 2000, p. 25.
68. ALMEIDA, 2004

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As políticas culturais dos movimentos tentam amiúde desafiar ou de-
sestabilizar as culturas políticas dominantes. Na medida em que os ob-
jetivos dos movimentos sociais contemporâneos às vezes vão para além
de ganhos materiais e institucionais percebidos; na medida em que es-
ses movimentos sociais afetam as fronteiras da representação política e
cultural, bem como a prática social, pondo em questão até o que pode
ou não pode ser considerado político; finalmente, na medida em que
as políticas dos movimentos sociais realizam contestações culturais ou
pressupõem diferenças culturais - então devemos aceitar que o que está
em questão para os movimentos sociais, de um modo profundo, é uma
transformação da cultura política dominante na qual se move e se cons-
titui como atores sociais com pretensões políticas. 69
Esses movimentos sociais tendem a questionar as identidades legitima-
doras70 deslocando e fraturando os discursos identitários que historicamente
produziram a invisibilidade, a romantização e a estigmatização dessas popula-
ções, reorientando as práticas políticas e discursivas a partir de identidades de
resistência que em muitos casos como dos seringueiros, das mulheres quebra-
deira de coco de babaçu se esboçam como identidades de projeto, pois, apon-
tam para um conjunto de práticas e valores que reforçam e inauguram modos
alternativos de produzir, de se relacionar com a natureza, enfim, diferentes mo-
dos de existir.
Trata-se da constituição de novos atores no espaço público e na políti-
ca, atores protagonistas afirmando suas identidades, pois o “ator não é aquele
que age em conformidade com o lugar que ocupa na organização social, mas
aquele que modifica o meio ambiente material e, sobretudo social no qual está
colocado, modificando a divisão do trabalho, as formas de decisão, as relações
de dominação ou as orientações culturais”. 71 Neste mesmo sentido, Gonçalves
(2004) destaca que o movimento (social) é, rigorosamente, mudança de lugar
(social) sempre indicando que aqueles que se movimentam estão recusando
o lugar que lhes estava reservado numa determinada ordem de significações.
Nesta perspectiva um movimento social é:
Um esforço de um ator coletivo para se apossar dos valores, das orien-
tações culturais de uma sociedade, opondo-se à ação de um adversário
ao qual está ligado por relações de poder (...) Um movimento social é
ao mesmo tempo um conflito social e um projeto cultural (...) ele visa
sempre a realização de valores culturais, ao mesmo tempo que a vitória
sobre um adversário social.72

69. ÁLVARES; DAGNINO E ESCOBAR, 2000, p. 70.


70. CASTELLS, 1996.
71. TOURAINE, 1994, p. 220-1
72. Idem, 1994, p. 253.
����

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O movimento social como “projeto cultural” é portador de uma nova
ordem em potencial não sendo destituído de sentido, busca novos valores, no-
vos “magmas de significação”.73 Os movimentos sociais na Amazônia parecem
apontar para direção de outros movimentos sociais que hoje nas suas lutas
apontam para a construção de “políticas culturais”.
Esses movimentos sociais, emergentes hoje na Amazônia forjados pelos
mais diversos antagonismos têm como referencial e diferencial o fato de serem
movimentos pautados em lutas não só contra a desigualdade, pela redistribui-
ção de recursos materiais como, por exemplo, a terra, crédito, estradas etc., mas
também são lutas simbólicas por “novos magmas de significação” que permi-
tam o reconhecimento das diferenças culturais, dos diferentes modos de vidas
que expressam em suas diferentes territorialidades. Desse modo, a constituição
desses novos sujeitos se dá nas e pelas lutas de afirmação de suas identidades
culturais e políticas pautadas na territorialidade, logo, são lutas pela afirmação
de suas identidades territoriais. Almeida, (2004) afirma que o sentido coletivo
das autodefinições emergentes na Amazônia impôs uma noção de identidade à
qual correspondem territorialidades específicas.
São os seringueiros que estão construindo o território em que a ação
em defesa dos seringais se realiza. São os atingidos por barragens e os
ribeirinhos que estão defendendo a preservação dos rios, igarapés e la-
gos. E assim sucessivamente: os castanheiros defendendo os castanhais,
as quebradeiras, os babaçuais, os pescadores, os mananciais e os cursos
d’água piscosos, as cooperativas, seus métodos de processamento da ma-
téria-prima coletada. De igual modo, os pajés, curandeiros e benzedores
acham-se mobilizados na defesa das ervas medicinais e dos saberes que
as transformam74.
Assim, podemos verificar que na luta contra os processos de moderniza-
ção e expansão da fronteira econômica e das frentes de expansão demográfica
sobre os territórios tradicionalmente ocupados pelos povos “tradicionais” é que
os movimentos sociais afirmam a identidade e territorialidade dessas popula-
ções, ou seja, as novas reivindicações territoriais dos povos indígenas, dos qui-
lombolas e outras comunidades negras rurais, e das diversas populações extra-
tivistas, representam uma resposta às novas fronteiras em expansão, respostas
que vão muito além de uma mera reação mecânica para incluir um conjunto de
fatores próprios da nossa época.75
Diante da pressão dos violentos processos desterritorializadores frutos
do avanço das Frentes de expansão na Amazônia , os povos tradicionais se
sentiram obrigados a elaborar novas estratégias territoriais para defender suas
73. GONÇALVES, 2004.
74. ALMEIDA, 2004, p. 48-9.
75. LITLLE, 2002

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áreas. Isto, por sua vez, deu lugar à atual onda de (re)territorializações.76
O alvo central dessa onda consiste em forçar o Estado brasileiro a ad-
mitir a existência de distintas formas de expressão territorial – incluin-
do distintos regimes de propriedade – dentro do marco legal único do
Estado, atendendo às necessidades desses grupos. As novas condutas
territoriais por parte dos povos tradicionais criaram um espaço político
próprio, na qual a luta por novas categorias territoriais virou um dos
campos privilegiados de disputa.77
Assim, trata-se de lutas pelo direito à territorialidade que é fundamental
na reprodução dos modos de vida tradicionais, pois o território é para essas po-
pulações, ao mesmo tempo: a) os meios de subsistência; b) os meios de trabalho
e produção; c) os meios de produzir os aspectos materiais das relações sociais,
aquelas que compõem a estrutura social 78. Assim o território se constitui como
“abrigo” e como “recurso” abrigo físico79, fonte de recursos materiais ou meio
de produção e ao mesmo tempo um elemento fundamental de identificação ou
simbolização de grupos através de referentes espaciais80.
Little (2002) afirma que territórios dos povos tradicionais se funda-
mentam em décadas, em alguns casos, séculos de ocupação efetiva. A longa
duração dessas ocupações (domínio estratégico-funcional e apropriação simbó-
lico-expressiva) fornece um peso histórico às suas reivindicações territoriais e
afirmações identitárias.
A expressão dessas territorialidades, então, não reside na figura de leis ou
títulos, mas se mantém viva nos bastidores da memória coletiva que in-
corpora dimensões simbólicas e identitárias na relação do grupo com sua
área, o que dá profundidade e consistência temporal ao território. 81
O referido autor destaca três elementos que marcam a razão histórica
e que substancializa a territorialidade das populações tradicionais a) regime
de propriedade comum, b) sentido de pertencimento a um lugar específico c)
profundidade histórica da ocupação guardada na memória coletiva. É por essa
importância que a territorialidade é uma dimensão fundamental da afirmação
dos direitos coletivos das “populações tradicionais” na Amazônia, pois é nela
que reside a garantia do reconhecimento de uma identidade coletiva e a defesa
da integridade dos diferentes modos de vida, modos de vida associados a matri-
zes de racionalidades pautadas nas diferentes formas uso-significado do espaço
e da natureza.
76. LITTLE, 2002; ALMEIDA, 2005.
77. LITTLE 2002, p. 13.
78. Ver DIEGUES (1996) o papel do território na construção dos modos de vida “tradicionais”.
79. SANTOS, 2004.
80. Ver uma proposta de sistematização feita HAESBAERT (2005) sobre “fins” ou objetivos do pro-
cesso territorialização.
81. LITTLE, 2002, p. 14.

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É na luta pelo reconhecimento da territorialidade das populações “tra-
dicionais” que vêm se (con)formando as identidades coletivas na Amazônia,
identidades essas associadas a estas diferentes formas de luta, são o resultado
emergente das próprias lutas, mesmo quando assentam em condições ou em
coletivos que pré-existem a elas. Elas podem assentar, seja em comunidades
locais, baseadas em relações face a face, seja em comunidades imaginadas82.
Assim, o conflito se constitui, como um momento privilegiado dessa conforma-
ção de identidades, de configuração de “comunidades de destino”. 83
É quando cada um começa a perceber que o seu destino individual está
num outro com/contra o qual tem que se ligar/se contrapor. (...) Pode-
mos, pois, afirmar que são nas circunstâncias dos encontros/das rela-
ções/das lutas que se desenham concretamente essas diferenças e que
toda classe se constitui, se classifica, se diferencia, constrói um Nós em
relação a um Eles. 84
Assim, a identidade dos movimentos sociais na Amazônia vem se cons-
tituindo a partir da construção de uma consciência socioespacial de pertenci-
mento pautados em uma politização da territorialidade e do “espaço vivido”,
do modo de vida cotidiana e na luta contra o projeto de “modernização auto-
ritária”; trata-se de transformar “comunidades de vida” em “comunidades de
destino” para usar a expressão de Bauman85. Esse processo é explicitado por
Martin quando afirma que:
A função do discurso identitário é de orientar estas escolhas, de tornar
normal, lógico, necessário, inevitável, o sentimento de pertencer, com
uma forte intensidade, a um grupo. Ele se dirige à emotividade, se es-
força por impressionar, por emocionar, a fim de que este sentimento de
pertencimento impulsione, caso a situação o exija, a agir: impelido pelo
sentimento de pertencimento, torna insuportável a recusa de defesa. A
fim de criar as condições desta adesão, o discurso identitário tem por
tarefa definir o grupo, fazer passar do estado latente àquele de ’comuni-
dade’ em que os membros são persuadidos a ter interesses comuns, a ter
alguma coisa a defender juntos86.
Essa politização do “vivido” é colocada para o plano do “concebido” e
do “representado” ocorrendo uma passagem de “comunidades de vida” para
“comunidades de destino” uma metamorfose da identidade que deixa de ser
vivida como “necessidade” de forma latente para ser vivida e representada de
forma manifesta e performática como “projeto”. Isso é muito bem demonstrado

82. SOUSA SANTOS, 2003.


83. GONÇALVES, 2004.
84. Idem, 2004.
85. BAUMAN, 2005
86. MARTIN Apud CLAVAL, 1999, p. 23.

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por Carlos Walter Porto Gonçalves no que se refere à constituição da identida-
de dos movimentos dos seringueiros.
Claro que os seringueiros existiam naquele lugar/naquele momento,
tanto no sentido geográfico como social. No entanto, sabemos, a exis-
tência de uma determinada condição sociogeográfica seringueira, ou
outra qualquer, não implica necessariamente que venha a se constituir
numa identidade político-cultural assumida pelos próprios protagonis-
tas como tal (....)Deste modo, emerge um movimento dos seringueiros
que emana da compreensão interessada do que é comum, o que implica
uma comunidade territorial que vá além do espaço vivido, pressupon-
do-o; que vá além do lugar/dos lugares, contendo-os. É isso que diz a
expressão união, tão invocada na conformação de identidades coletivas:
o que se une é o igual e esse igual se constitui na percepção interessada
do que é igual e do que é diferente87.
Assim, podemos verificar que construção de uma identidade coletiva é
possível não só devido às condições sociais de vida semelhantes, mas, também,
por serem percebidas como interessantes e, por isso, é uma construção e não
uma inevitabilidade histórica ou natural. Como a identidade é estratégica e po-
sicional na afirmação de identidades coletivas “há uma luta intensa por afirmar
os “modos de percepção legítima” (Bourdieu), da (di)visão social, da (di)visão
do espaço, da (di)visão do tempo, da (di)visão da natureza”88.
Portanto, longe de uma perspectiva essencialista e substancialista que
concebe a identidade como uma “coisa” natural, podemos verificar que trata-
se de uma construção exposta ao movimento da história e ao jogo de relações
de poder onde a política e subjetividade estão imbricadas bem como as
práticas matérias e representações discursivas se entrelaçam na afirmação das
novas posição-de-sujeito que implicam na construção de identidades alter-
nativas que deslocam e fraturam as identidades hegemônicas. As identidades
construídas pelos movimentos sociais são forjadas na e pela luta para a afirma-
ção da diferença subalternizada e como r- existência a formas dominantes de
poder econômico, político e cultural instalados historicamente na Amazônia .
Mas sabemos que o processo de construção das identidades é marcado
por ambivalências e ambigüidades e que muitas vezes se apresentam de manei-
ra contraditória tendo ao mesmo tempo perspectivas progressistas e conserva-
doras, além disso não há dicotomias e dualismos radicais entre os discursos dos
dominantes e dos dominados mas diálogos, tensões, conflitos e retroalimenta-
ções, contudo é inegável que esses novos movimentos sociais hoje na Amazô-
nia sinalizam importantes horizontes de emancipação social para as populações
“tradicionais.”

87. GONÇALVES, 1999, p. 70.


88. Idem, 1999, p. 70.

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Considerações Finais
Para concluirmos nossas reflexões queremos retomar alguns elementos
que entendemos serem imprescindíveis para a compreensão da emergência das
identidades territoriais das populações “tradicionais”, hoje, na Amazônia.
a) A identidade não é uma essência, nem é naturalmente construída,
ela é, sim, uma construção histórica e social. A identidade é relacional e con-
trastiva e seu significado social e cultural é determinado na e pela diferença.
As identidades são construídas tanto pelas diferenças culturais e por sistemas
simbólicos de classificação (diferença de natureza) quanto pela desigualdade e
exclusão social (diferenças de grau), ou melhor, pelos dois processos concomi-
tantemente. Neste sentido, as identidades territoriais das populações “tradicio-
nais” na Amazônia são historicamente construídas a partir da imbricação dos
processos de produção das desigualdades sociais e exclusão social, bem como da
marcação das diferenças culturais, sendo que o significado de cada identidade
só pode ser compreendido num contexto relacional específico.
b) As construções das identidades são estratégicas e posicionais, pois
estão estreitamente ligadas às relações de poder. O jogo de poder para a defini-
ção de uma determinada identidade está em conexão com as modalidades mais
amplas do exercício do poder na sociedade, e isso implica em compreender as
identidades como produtos e produtoras das lutas e conflitos sociais, políticos e
culturais. Desse modo, as identidades territoriais das populações “tradicionais”
na Amazônia são produtos e produtoras das relações de poder e são construídas
e instituídas nas e pelas lutas e conflitos dos diferentes sujeitos pela sua afirma-
ção material (luta por redistribuição de bens materiais) e simbólica (luta por
reconhecimento das diferenças culturais).
c) A construção das identidades e seu poder de eficácia e performance
vão depender da posição de cada sujeito na estrutura assimétrica de poder da
sociedade (econômico, político e simbólico). As identidades podem tanto legi-
timar e reproduzir as relações de poder e as instituições hegemônicas da socie-
dade quanto podem contestá-las e propor novos projetos alternativos. Assim,
determinadas identidades territoriais na Amazônia reproduzem e legitimam a
ordem hegemônica do poder econômico, político e simbólico estabelecido e ou-
tras, como as identidades das populações “tradicionais”, r-existem a tal hegemo-
nia, afirmando a diferença subalternizada e apresentando-se como “identidade
de projeto”, apontando para alternativas de sociedade a partir de diferentes
modos de produzir e de modos de vida, como é o caso dos movimentos dos
seringueiros e das mulheres quebradeiras de coco de babaçu.
d) Todo processo de territorialização funciona como sistema de clas-
sificação funcional e simbólico, o que implica na definição de fronteiras e na
construção de identidades. Contudo, se em todo processo de territorialização

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se produzem identidades, nem toda identidade é uma identidade territorial.
Isso significa que nem todas as identidades construídas na Amazônia são ter-
ritoriais, mas que na construção das diversas territorialidades das populações
“tradicionais” se produzem identidades territoriais.
e) As identidades territoriais são construídas a partir do jogo das múlti-
plas escalas de pertencimento. A consciência socioespacial de pertencimento
depende da experiência espaço-temporal (espaço de referência identitária) e
do contexto específico nos quais as identidades são construídas. Na Amazônia,
as identidades são construídas a partir da multiplicidade de temporalidades his-
tóricas desiguais e diferentes que se (des)encontram na contemporaneidade.
Portanto, as identidades são resultantes do conflito entre as diferenças do signi-
ficado social e cultural da experiência espaço-temporal expressa nos diferentes
“modos de viver” dos diferentes sujeitos sociais.
f) As identidades territoriais mobilizadas pelos movimentos sociais das cha-
madas populações “tradicionais” na suas lutas sociais na Amazônia são construídas
a partir de um duplo movimento: primeiramente estão pautadas numa politização
da cultura ou de “política cultural”, dando visibilidade e significância às territoriali-
dades e aos modos de vida “tradicionais” com suas histórias, memórias e saberes de
longa duração (raízes) sedimentada num conjunto de práticas e de representações
que têm densidade e espessura no cotidiano de um espaço vivido. Em um segundo
e simultâneo movimento, tais identidades se voltam não para o passado (tradição),
mas para o futuro, para rotas, rumos e projetos pautados em estratégias políticas
e organizacionais articulados em escalas mais amplas e ligados a outras formas de
saber (saber científico) e ao conjunto de discursos, ideologias e representações pau-
tadas num espaço concebido.

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