A Cantora Careca

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CÉLIA HELENA CENTRO DE ARTES E EDUCAÇÃO

ANA FAVERON, BRUNO VIEIRA, CAMILLA MATTA, GUSTAVO MARTINI E MARIA


EDUARDA MENEGHEL

A CANTORA CARECA
Uma análise da peça de Eugène Ionesco

São Paulo
2021
1

Eugène Ionesco
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ÍNDICE

SOBRE O AUTOR 3
SOBRE A PEÇA 4
VANGUARDA DA PEÇA 6
CONTEXTO DA ÉPOCA 7
IMPRESSÕES SOBRE A PEÇA 10
Ionesco e a Filosofia 11
A linguagem de Ionesco 13
REFERÊNCIAS 20
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SOBRE O AUTOR
Nascido na Romênia em 1909 - com 0 anos de vida, se o professor/ leitor nos
permitir um breve diálogo com uma passagem da peça A Cantora Careca -, Eugène
Ionesco foi um dos grandes nomes do Teatro do Absurdo. Passou grande parte de
sua vida na terra natal de sua mãe: na França. Apesar de ter desenvolvido ensaios e
outros textos em romeno, foi no idioma francês que o dramaturgo desenvolveu a parte
mais significativa de sua obra literária.

Ionesco cursou letras e filosofia na Universidade de Bucareste e, em 1938,


recebeu uma bolsa para estudar literatura francesa em Paris. Durante a Segunda
Guerra Mundial, o autor passou por dificuldades financeiras, mas conseguiu se
manter por meio de alguns trabalhos, principalmente como revisor de texto e também
como tradutor do poeta romeno Urmoz.

Apesar de trabalhar com a escrita desde muito cedo, foi apenas aos 40 anos,
em 1948, que Ionesco começou a escrever sua primeira peça, A Cantora Careca. A
obra estreou em 1950 no Théâtre des Noctambules, sob a direção de Nicolas Bataille.
Foi um verdadeiro sucesso: além de ter recebido um Molière d'honneur, a peça bateu
o recorde por ser o título encenado por mais tempo no mesmo teatro. Apesar de não
ter sido imediatamente reconhecida, não demorou muito para que os críticos
começassem a reconhecer e aclamar o valor artístico da obra.

A Cantora Careca e outros trabalhos de Ionesco - como os Rinocerontes -


foram decisivos para ajudar a consolidar o que ficou conhecido como O Teatro do
Absurdo. A vertente também contou com outros nomes que se tornaram imortais,
como Samuel Beckett, Jean Genet e Arthur Adamov. O grupo foi diretamente
influenciado pela concepção de absurdo do filósofo Albert Camus (mais sobre a
relação do dramaturgo com a filosofia no capítulo seis deste trabalho).

Como uma chancela ao prestígio e contribuição inegáveis de Eugène às letras,


o dramaturgo foi admitido na Academia Francesa em 1971. Durante seu período em
atividade, o autor escreveu quase trinta peças, além de ter publicado ensaios e outros
textos. Eugène Ionesco faleceu em 28 de março de 1994, em Paris, aos 84 anos de
idade.
4

SOBRE A PEÇA
A peça A Cantora Careca é a primeira peça escrita por Eugène Ionesco e foi
inspirada em um livro didático de inglês, o “Assimil”, onde apareciam dois casais em
diálogos sem sentido informando que eram ingleses, que tinham filhos ingleses, que
viviam em Londres e que tinham uma empregada de nome inglês. Tal como no livro
a peça conta sobre o casal Smith, que recebem outro casal em sua casa, os Martin,
e nessa recepção se estabelecem diálogos incomuns.

A história é introduzida no interior de uma casa inglesa, onde o casal Smith


conversa após o jantar. Eles passam sem problemas de um assunto para outro e
fazem comentários incoerentes, em especial sobre uma família da qual todos os
membros são chamados de Bobby Watson e um Bobby Watson morreu há dois anos,
mas eles foram ao seu funeral há um ano e meio e já se passaram três anos desde
que falaram sobre seu falecimento.

Mary, a empregada, aparece e dá continuidade aos comentários incoerentes e


anuncia a visita do casal Martin. O Senhor e a Senhora Smith saem de cena e logo
em seguida Mary também, deixando os Martin esperando na sala. Eles
aparentemente não se conhecem, no entanto, após observar uma série de
coincidências, como o fato de morarem no mesmo apartamento e dormirem na
mesma cama, eles descobrem que são marido e mulher. Mary volta ao palco e revela
apenas para o público que na realidade o Senhor e a Senhora Martin não são
casados, enquanto eles parecem muitos felizes por terem se encontrado e prometem
nunca se perder.

Os Smith voltam para cumprimentar seus convidados e conversam enquanto


a campainha toca três vezes, mas não há ninguém na porta. Um debate sobre
“quando se escuta a campainha tocar, é porque tem alguém tocando” é instaurado e
a campainha toca uma quarta vez, mas desta vez o Capitão dos bombeiros está lá.
Os dois casais questionam o Capitão na tentativa de desvendar o insolúvel mistério
da campainha.

O Capitão reclama que os incêndios estão cada vez mais raros e em seguida
começa a contar anedotas absurdas que são recebidas pelos casais com comentários
5

igualmente absurdos. Mary reaparece querendo também contar uma anedota e então
ela e o Capitão se reconhecem e descobrimos que eles são um casal. O bombeiro se
despede prevendo um incêndio no outro lado da cidade, mas antes de sair pergunta
sobre a cantora careca e após um silêncio embaraçoso, Senhor Smith responde:
“Continua a usar o mesmo penteado”.

Os dois casais voltam para seus lugares depois da saída do Capitão e trocam
uma série de frases desprovidas de qualquer lógica. As frases vão ficando mais curtas
a ponto de se tornarem uma série de palavras e depois onomatopeias. Ao final, em
meio a escuridão, todos acabam gritando repetidamente a mesma frase, cada vez
mais rápido: "Não é por lá, é por aqui”.

As palavras cessam bruscamente e a luz retorna com o Senhor e a Senhora


Martin sentados como os Smith no começo da peça e dizendo as mesmas falas do
início enquanto a cortina fecha.
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VANGUARDA DA PEÇA
A peça “A Cantora Careca”, de Eugène Ionesco, está incluída num gênero
teatral chamado de “Teatro do Absurdo”, que surgiu na França na década de 1950. O
gênero traz comicidade ao homem desolado e existencialista, uma vez que nesse
ponto da história, o mundo havia passado por duas guerras mundiais.

As peças desse tipo tendem a tratar de temas cotidianos, porém sem qualquer
linearidade ou compromisso com a verossimilhança, nem tampouco com a coerência.
Trata-se de um conjunto de diálogos nos quais está presente a estranheza, a bizarrice
e a contradição. É possível afirmar que a incerteza, o medo e a solidão do homem
são retratados usando uma combinação de elementos usuais e incomuns - como
construções verbais sem sentido, repetições mecânicas e ações sem motivação
aparente.

Além disso, é muito comum a presença de frases de efeito, que trazem certa
reflexão ao público; mesmo que o diálogo que as antecede não possua lógica alguma.
Destarte, o gênero em questão apresenta a incoerência da vida cotidiana, de modo a
unir a comicidade da contradição à trágica situação do homem moderno.
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CONTEXTO DA ÉPOCA
Como “A Cantora Careca” começou a ser escrita em 1948 e estreou em 1950,
este trabalho se irá debruçar sobre os principais eventos históricos ocorridos na
década de 1940. Um dos principais eventos deste período foi a Segunda Guerra
Mundial. No total, cerca de 40 milhões de civis morreram durante a guerra, entre 1939
e 1945, e cerca de 20 milhões de soldados, quase metade russos, perderam a vida
(ONU NEWS, 2021). Todavia, mais que o legado das mortes, esse período, através
de regimes totalitários como o nazismo e o facismo, revela um momento obscuro e
de fragilidade nos Direitos Humanos, ao construir um legado obscuro na história das
civilizações mostrando o que um ser humano é capaz de perpetrar contra a própria
espécie:

[...] não podemos tirar lições sobre a natureza do homem com a experiência
do totalitarismo; os homens ou não são nem bons nem maus por natureza,
ou são os dois. Como lembra Primo Levi, o que o nazismo nos mostra é
justamente o que o homem pode fazer a outro homem: “o homem, o gênero
humano, nós, em suma, éramos potencialmente capazes de construir uma
quantidade infinita de dor; e que a dor é a única força que se cria do nada,
sem custo e sem cansaço. Basta não ver, não ouvir, não fazer”. Tzvetan
Todorov, em uma linha similar, afirma que o mal vive dentro de nós e que
esse é um grande perigo: “para que o mal se realize, não basta a ação de
alguns, é preciso também que a grande maioria fique de lado, indiferente;
disso, sem dúvida, somos todos capazes”. (VISCONTI, Visconti)

Historicamente, o conflito ficou marcado pelo enfrentamento de dois grupos:


os Aliados (Reino Unido, França, União Soviética e Estados Unidos) e o Eixo
(Alemanha, Itália e Japão). Entretanto, para além dos países supracitados, a guerra
espalhou-se pela África, Ásia e Oceania e contou com o envolvimento de nações de
todos os continentes. Pode ser organizada em três fases distintas: a fase da
supremacia alemã, a fase em que as forças estavam equilibradas e a fase que marcou
a derrota do Eixo.

A vitória dos aliados não foi suficiente para estabelecer um período de paz
mundial, uma vez que o ganho de poder dos Estados Unidos no Pós-Guerra acaba
por criar tensões entre este país e a União Soviética, materializando uma queda de
braço em que as superpotências disputaram a dominância econômica, política e
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militar. Mesmo com grandes perdas humanas e materiais durante a Segunda Guerra,
a União Soviética viu seu poder militar aumentar por conta da anexação de países do
Leste Europeu ao bloco socialista e também pela vitória da revolução comunista na
China. Tal ganho militar da URSS veio como um pretexto para que os EUA injetassem
uma enorme quantidade de recursos no fortalecimento de sua capacidade bélica.
Como resultado desse esforço constante das duas potências aumentarem seus
poderes político-militares, acabam-se por se criar dois blocos: o socialista, com o
Pacto de Varsóvia, que formalizou uma aliança militar entre a URSS e os países do
leste europeu; e o capitalista, com a formação da OTAN (Organização do Tratado do
Atlântico Norte), que “uniu as nações capitalistas da Europa Ocidental e os Estados
Unidos para prevenir e defender países membros de eventuais ataques vindos do
leste comunista” (GASPAR, 2015). Tal poderio bélico dos dois lados nunca chegou a
desembocar em um conflito físico e se sustentou por ameaças mútuas do uso de
armas nucleares, com imensas demonstrações de poder com testes nucleares.

No plano da cultura, os horrores da Segunda Guerra e o temor causado pela


Guerra Fria influenciaram tanto romancistas como filósofos para produzirem
conteúdos alicerçados no existencialismo. É certo que o existencialismo já era
presente antes mesmo das duas Grande Guerras, tendo suas origens no século XIX
com Kierkegaard, todavia, períodos em que há mudanças profundas podem ser
responsáveis por criar inquietação e ansiedade em toda uma classe artística,
configurando uma condição real para a produção existencialista:

[...] a voga e maior renome alcançado por Sartre, sobretudo como o filósofo
do existencialismo, foi justamente depois da II Guerra Mundial, época em que
se consagraram alguns dos nomes citados. Coincidência? evidentemente,
não . Tanto mais que vinha o público de uma mesma terrível experiência,
repetição mais crua e despojada de qualquer escrúpulo que ainda se tivesse
conservado na guerra de 1914. Com a II Guerra Mundial soçobravam as
últimas ilusões que ainda podiam ter sobrevivido à primeira catástrofe, os
mais cegos ou desejosos de assim permanecerem tiveram de dar adeus aos
últimos saudosismos da belle époque, definitivamente morta. [...] De modo
geral os grandes escritores franceses do nosso século, sobretudo dos
períodos de pós-guerra, de maneira menos ou mais intencional, apresentam
obras impregnadas não só do pessimismo como da angústia característica
da corrente existencialista. Assim é Malraux em La condition humaine; Sartre
em La nausée, Les mains sales, Huis Clos e outras; Camus em Calígula,
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L’Étranger, entre outros; Jean Anouilh com suas Pièces Noires, sem falar em
alguns outros. (FONSECA, 1967, p.173-174).

Sendo assim, eis o contexto histórico da década de 1940: um mundo em que


a política internacional se resuma a uma queda de braço potencialmente destrutiva,
o estado da arte das ciências está voltada para projetar armas de destruição em
massa e uma produção cultural voltada para representação das angústias e
desilusões do e no ser humano. As produções do teatro do absurdo percorrem um
caminho pavimentado por todas esse contexto:

O Teatro do Absurdo une a comicidade ao trágico sentimento de desolação


e de perda de referências do homem moderno. Tal sentimento deriva não
apenas do horror da Segunda Guerra como também da Guerra Fria e do
estágio atingido em meados do século XX pela filosofia, especialmente a
existencialista, que afirma definitivamente a solidão e a responsabilidade do
homem por seu destino em um mundo sem Deus. Há ainda um paralelo com
as ciências (que superam antigas "certezas") e com as artes plásticas, que
consolidam o abstracionismo (responsável pela criação de mundos não
atrelados às formas reconhecíveis do real), como uma forma de arte tão
legítima quanto o figurativismo. (TEATRO DO ABSURDO…, 2021).
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IMPRESSÕES SOBRE A PEÇA

O texto de "A Cantora Careca” se destaca por sua incoerência verbal, com uma
sequência de diálogos quase desconexos e aparentemente desprovidos de lógica,
que são inseridos em uma realidade que se parece comum, por meio de situações
exageradas.

É interessante notar que as personagens são intercambiáveis; o silêncio, o


vazio dos diálogos, as futilidades, contradições e a falta de personalidade dos
elementos tornam possível colocar Martin no lugar de Smith e Smith no lugar de
Martin sem que os espectadores percebam.

Inconscientemente, é como se desenvolvêssemos uma empatia pelas


personagens e a grande genialidade da obra está na “jocosidade” presente na ideia
de que os personagens são caricaturas de nós mesmos e a comparação, mesmo que
inconsciente, provoca o riso. Os diálogos absurdos que lembram a
incomunicabilidade cada vez mais presente na vida das pessoas, onde fala-se muito
e não se diz nada.

Apesar de não possuir um enredo linear - a proposta parece não ser contar
uma história de fato -, as conversas contraditórias entre as personagens são, além de
instigantes, muito divertidas.

As frases de efeito utilizadas nos conduzem a uma certa reflexão sobre as


possíveis críticas abordadas na obra; como por exemplo o encontro do casal Martin,
que, na percepção do grupo, quase funciona como uma reflexão acerca dos
relacionamentos modernos. Todavia, à medida que a peça acontece e o momento
“da cantora careca” chega, tais frases são usadas repetidamente e sem motivação
aparente, o que nos levanta a questão: serão tais diálogos de fato críticas
direcionadas ou estão dentro de uma proposta maior do nonsense?

À medida que os personagens falam e vão indo contra seus posicionamentos


anteriores, o público é induzido a refletir acerca do que foi dito e tentar encontrar
coerência – o que não ocorre. São as contradições as grandes responsáveis por
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prender a atenção do público, uma vez que os obriga a – inconscientemente –


procurar um sentido.

Esses elementos tornam a Cantora Careca uma peça interessante e complexa,


além de recheada de elementos (anti) cômicos. É capaz de – apesar de toda sua
incoerência – trazer reflexões e impactar o espectador e diverti-lo.

Ionesco e a Filosofia

O palco que pensa - Ressonâncias com a obra do dramaturgo Eugène Ionesco


passando por grandes problemas do pensamento do filósofo Albert Camus e o
pensamento filosófico moderno.

O teatro do absurdo foi fortemente influenciado pela filosofia existencial.

Eugène Ionesco concordava com a avaliação do filósofo Albert Camus, em seu


ensaio “O Mito de Sísifo” (1942), de que a situação humana é essencialmente
absurda, sem propósito. Compartilhava de uma visão pessimista da humanidade
lutando em vão para encontrar um propósito e controlar seu destino. A humanidade,
segundo esse ponto de vista, se sente desesperançada, desnorteada e ansiosa. O
teatro do absurdo foi fortemente influenciado pela filosofia existencial

Neste ensaio, Camus tenta apresentar uma resposta razoável sobre por que o
homem não deveria cometer suicídio diante de uma existência absurda e sem sentido.
Para fazer isso, ele usa a figura mitológica grega, Sísifo, que foi condenado a
empurrar uma rocha montanha acima, apenas para vê-la rolar de volta para baixo.
Ele repete este ciclo fútil por toda a eternidade. Ao final do ensaio, Camus conclui
que, “Deve-se imaginar Sísifo feliz” (Camus 123). Ele quer dizer que apenas a luta da
vida deve trazer felicidade. Essencialmente, podemos encontrar sentido em viver,
mesmo sem saber por que existimos.

O absurdo nos esclarece um seguinte ponto: não há amanhã. É preciso viver


para isso. E daí que pode se extrair uma ética, uma maneira de viver em acordo com
o absurdo. A revolta, a liberdade e a paixão são consequências diretas disso. A única
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realidade é a presença deste momento e nada mais. Nenhum eterno é possível ao


homem que considera verdadeiramente o absurdo. Só se pode viver a esse custo.

“Um mundo que se pode explicar, mesmo com raciocínios errôneos, é um


mundo familiar. Mas num universo repentinamente privado de ilusões e de luzes, pelo
contrário, o homem se sente um estrangeiro. É um exílio sem solução, porque está
privado das lembranças de uma pátria perdida ou da esperança de uma terra
prometida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário é
propriamente o sentimento do absurdo. E como todos os homens sadios já pensaram
no seu próprio suicídio, pode-se reconhecer, sem maiores explicações, que há um
laço direto entre tal sentimento e a aspiração ao nada. ”

– Camus, O Mito de Sísifo, p.20.

A boa disposição de si mesmo faz de Sísifo um criador. Ele já não é pedra.

“Toda a alegria silenciosa de Sísifo consiste nisso. Seu destino lhe pertence. A rocha
é sua casa. Da mesma forma, o homem absurdo manda todos os ídolos se calarem
quando contempla o seu tormento. No universo que repentinamente recuperou o
silêncio, erguem-se milhares de vozes maravilhadas da terra. ”

– Camus, O Mito de Sísifo, p.140

A filosofia trágica encontra a estética e uma ética solar surge. O absurdo abre
a possibilidade de criação. A revolta dá sua porção de sentido. A eternidade nada
mais é do que um destino certo. A liberdade é uma condenação à presença. A criação
é a atualização das forças em mais capacidade de existir e afirmar. Uma vida que se
afirma apesar das contradições e adquire a presença de estar no mundo.

Problema da comunicação e crítica ao hábito:

Os personagens de A cantora careca (1950) de Ionesco sentam e falam,


repetindo o óbvio até que pareça um absurdo, revelando assim as inadequações da
comunicação verbal. O comportamento e a conversa ridículos e sem propósito dão
às peças uma superfície cômica às vezes deslumbrante, mas há uma séria
mensagem subjacente de sofrimento metafísico. Isso reflete também a evidência do
impacto pelos escritos de Franz Kafka.
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“Deve-se falar somente quando não se pode calar e falar somente do que se superou:
tudo o mais é tagarelice”

-Nietzsche

Existe um vício da comunicação, vício inclusive de falar claramente, a


comunicação está do lado do estabelecido, no lado das formalidades e não tem
nenhuma relação com amor, amizade ou nenhum excesso, ela é atrasada como se
fosse uma gordura desnecessária, ao menos que você faça dela uma poesia. Que a
comunicação encontre experimentações inauditas. O encontro é justamente quando
não tem encontro, ir em lugares inexplorados.

Estamos tendo a verdadeira conversa por debaixo da comunicação, temos que


conviver com essas nebulas, afastar a opressão do significado, do hábito e para isso,
é necessário produzir intervalos onde possa entrar uma intensidade, mas a distância
e o intervalo são vistos pela sociedade como uma doença, no qual deveríamos
preencher e nos curar.

Não temos encontros com a literatura e a arte para colecionar um álbum de


figurinhas, mas para intensificar, produzir nebulas, ser o mestre das perspectivas.
Esses encontros são algo grande demais, nesse excesso as palavras tornam-se
descartáveis.

A linguagem de Ionesco

Certamente, um dos aspectos que mais saltam aos olhos na leitura da peça é
a sua linguagem. Palavras fora de contexto, construções de frases que fogem à lógica
e a qualquer uso cotidiano, causam um grande estranhamento. Todavia, essa
estrutura linguística fora do convencional segue um propósito maior do que causar
um simples estranhamento. É aqui que Ionesco constrói uma crítica da linguagem:

A impotência da linguagem como meio de comunicação é uma característica


de Ionesco. Linguagem demolidora da linguagem esclerosada, vazia de
sentido, absurda; é uma das contribuições do autor à nova linha teatral, a
partir de A Cantora Careca (1949), com suas extravagantes réplicas, suas
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vulgaridades, seus estereótipos bastantes gastos e reflexo dos


automatismos do pensamento. Ou, como ele mesmo o diz: “[...] As palavras
se haviam tornado cascas sonoras, desprovidas de sentido”. (BERRETINI,
1980, p.54).

No sentido de ironizar a linguagem esclerosada, a peça constrói uma escalada:


começa com frases sem sentido, certamente uma crítica à utilização de pensamentos
prontos e de estereótipos gastos:

SR. SMITH: Um médico consciencioso deve morrer com o paciente, se não


há cura para ambos. O capitão de um navio morre com o navio no mar. Ele
não sobrevive sozinho.

SRA. SMITH: Não se pode comparar um doente com um navio.

SR. SMITH: Por que não? O navio também tem as suas doenças, e o médico
é forte como um navio; esta é a razão pela qual deveria morrer juntamente
com seu paciente, como o capitão e seu navio.

SRA. SMITH: Ah! Não tinha pensado nisso.... Talvez seja isso mesmo [...].

Saindo das frases automáticas sem sentido, caminhamos até um total


abandono da semântica, já no final da peça:

SRA. MARTIN: Bazar, Balzac, Bazaine!

SR. MARTIN: Bisar, bisou, bisonho!

SR. SMITH: A, e, i, o, u, a, e, i, o, u, a, e, i, o, u, i!

SRA. MARTIN: B, c, d, f, g, h, l, m, n, p, q, r, s, t, v, w, x, z!

SR. MARTIN: Do alho ao óleo, do óleo ao alho!

SRA. SMITH (imitando um trem): Tchu, tchu, tchu, tchu, tchu, tchu, tchu, tchu,
tchu, tchu, tchu!

SR. SMITH: Não!

SRA. MARTIN: é!

SR. MARTIN: Por!

SRA. SMITH: Lá!

SR. SMITH: É!
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SRA. MARTIN: Por!

SR. MARTIN: A!

SRA. SMITH: Qui!

É neste final que fica claro que a linguagem se tornou um amontoado de coisas
sem sentido. Colocadas lado a lado, é possível aproximar as duas cenas acima como
sendo da mesma espécie, ambas apresentam o uso de uma linguagem vazia, morta
e esclerosada. Por mais que a última pareça não ter sentido algum, vale reparar que
na primeira cena, a comparação entre um médico e um capitão de navio é tão sem
sentido quanto um amontoado aleatório de palavras, ou seja, não é porque uma frase
é dita ou escrita, que ela comunica algo. É isto que Ionesco provavelmente crítica em
nosso cotidiano, quando nos valemos daquelas frases motivacionais ou supostos
valores “universais” para nos comunicarmos, ao invés de propormos ideias próprias
ou interpretações originais, autônomas e espontâneas da realidade. Nesse sentido,
talvez seja possível aproximar frases automáticas a comunicações guturais e
monossilábicas, já que ambas se expressam por sons livres de significados
verdadeiros. Para compreendermos como Ionesco construiu essa escalada, que
conecta essas duas pontas que citamos, é necessário retomarmos as ideias de
Saussure.

A linguagem é o sistema de símbolos com os significados compartilhados por


humanos do mesmo grupo linguístico. Esses símbolos são transmitidos, geralmente,
como sequências de sons, um após o outro. Tais símbolos podem ser categorizados
como signos, uma vez que são usados como simplificações da realidade, tomando o
lugar de coisas reais, como, por exemplo, a palavra cavalo, que é usada em diálogos
para se referir ao animal, mesmo quando o mesmo não está presente. Desta forma,
não há a necessidade de ir até um equino para mostrar do que se está falando. Para
Saussure, o signo pode ser separado em duas partes: o significado e o significante.
O significado é o equivalente ao “sentido”, ou seja, uma ideia, um conceito, uma
representação mental de um objeto ou da realidade social em que nos situamos,
representação essa condicionada pela formação sociocultural que nos cerca desde o
berço (por exemplo, a palavra “casa” permite que você recrie o conceito na sua
memória sobre o que você sabe acerca de uma casa, ou seja, uma construção com
portas e janelas, com cômodos diferentes e, assim, terá na sua cabeça a recriação
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da imagem de uma casa). Se, por um lado, o significado está associado a uma ordem
puramente psíquica e mental, o significante, é de ordem material (por exemplo, ao
ouvir a palavra “casa”, você pensará nas letras que a compõem [c-a-s-a] e nos
fonemas que a representam [/k/ /a/ /s/ /a/]).

O que Ionesco parece apontar em sua peça é que a linguagem pouco


consegue exprimir do eu individual, uma vez que os indivíduos só se valem de
significados e significantes prontos, já que foram herdados desta forma ao longo da
formação do indivíduo, para expressar ideias que supostamente seriam próprias (mas
que de próprias não têm nada). É o que percebemos no trecho abaixo, onde as
personagens se valem de falas, que carregam seus significados e significantes, mas
sem exprimir nada pessoal, são apenas palavras lançadas para fora da boca:

SRA. SMITH: E quando os dois pretendem se casar?

SR. SMITH: O mais tardar na próxima primavera.

SRA. SMITH: Precisamos fazer todo o possível para irmos ao casamento.

SR. SMITH: Temos que arranjar o presente de núpcias. O que poderia ser?

SRA. SMITH: Por que não damos uma daquelas salvas de prata que
recebemos em nosso casamento que nunca usamos? (Silêncio.)

SRA. SMITH: É triste ficar viúva tão nova.

SR. SMITH: Ainda bem que eles não têm filhos.

SRA. SMITH: Era o que faltava! Filhos! Coitada, como é que ela havia de se
arranjar!

SR. SMITH: Ela ainda é nova. Pode casar-se novamente. Fica muito bem de
luto.

SRA. SMITH: Mas quem tomará conta das crianças? Você bem sabe que
eles têm um menino e uma menina. Como é que se chamam mesmo?

Primeiramente, a Sra. Smith mostra interesse em um casamento. Logo depois,


entretanto, lança outro interesse com a viuvez da mulher que estava para casar.
Claramente, os eventos de noivado e viuvez são completamente antagônicos e
constituem na cena um paradoxo. Isso ocorre porque a Sra. Smith pouco se
interessou em expressar algo pessoal sobre os eventos (casamento/viuvez), o que
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ela fez foi unicamente jogar frases prontas e bordões que geralmente dizemos sobre
o estado civil de uma pessoa. O mesmo se dá quando se fala dos filhos. Nada se
sabe do que o Sr. e Sra. Smith pensam sobre ter filhos: mesmo sabendo que a pessoa
não possui filhos, eles apenas lançam bordões sobre a maternidade (“Filhos! Coitada,
como é que ela havia de se arranjar! ”; “Mas quem tomará conta das crianças? ”). A
preocupação em emitir uma opinião própria é tão inexistente que as personagens
novamente lançam frases prontas, sem nem se preocupar se a pessoa realmente
possui filhos. A linguagem, que de tanto ser utilizada de maneira automática, ficou
fossilizada, pois nunca é utilizada para comportar o pensamento individual. Só se
pensa por meio de bordões (que existem independente do eu, do indivíduo):

Mr. e Mrs. Smith, autênticos robots desprovidos de pensamento e que


apenas tagarelam todo o tempo, sem chegarem a comunicar-se, dando-se o
mesmo com Mr. e Mrs. Martin, as visitas, que, substituindo os primeiros,
repetem as mesmas frases [...] Ouçamos a declaração do dramaturgo
[Ionesco], em 1960: “Há dez anos eu me bato contra o espírito burguês (...).
Sendo o pequeno burguês o homem das ideias aceitas, dos slogans, o
conformismo geral; este conformismo, está claro, é sua linguagem
automática que o revela”. (BERRETINI, 1980, p.54)

Esta seria a crítica de Ionesco, a linguagem automática, desprovida de ideias


próprias, apenas com significados e significantes, algo morto e fossilizado. Tendo em
vista isso, vê-se então, que ele procura satirizar tal situação. Uma das formas de
sátiura se materializa quando Ionesco brinca com os significados e significantes das
palavras: significantes desprendem-se de seus respectivos significados se colando a
outros significados. Vemos isso na fala abaixo:

SR. SMITH: Ela ainda é noiva. Pode casar-se novamente. Fica muito bem de
luto.

O correto seria “Fica muito bem de noiva”, mas houve uma permutação, e o
significante “luto” passa a ter o significado da palavra “noiva”. Parece absurdo, mas
já que as palavras estão tão esclerosadas pelo uso, porque não recriá-las? Por que
não manipulá-las, justamente para satirizar e contrariar seu uso estéril, sem qualquer
apropriação pessoal. É claro que não fazemos esse tipo de permuta no dia a dia, mas
o que Ionesco faz é elevar à máxima consequência o uso da palavra morta e pré-
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pronta (está tão morta que podemos alterar a bel prazer, como se fosse um brinquedo,
inerte).

Tal exagero para se obter um efeito satírico sobre a linguagem se mostra


bastante presente em toda peça. Um exemplo está na possível sátira do pensamento
empírico. Em uma cena em que todas as personagens estão à mesa e de repente a
campainha toca e a Sra. Sith se levanta para abrir a porta e não encontra ninguém.
Ela volta à mesa e a campainha toca novamente. A Sra. Smith se levanta novamente
e não encontra ninguém. Esse evento da Sra. Smith abrir a porta após a campainha
tocar e não encontrar ninguém se repete algumas vezes. Com isso, a Sra. Smith
formula, através de seu conhecimento empírico, que nunca há ninguém na porta porta
quando a campainha toca:

SRA. SMITH: Nós estávamos discutindo porque meu marido disse que cada
vez que a campainha toca, é porque deve haver alguém na porta.

SR. MARTIN: É plausível.

SRA. SMITH: E eu estava dizendo que toda vez que a campainha toca não
tem ninguém.

SRA. MARTIN: Pode parecer estranho.

SRA. SMITH: Mas isso ficou provado, não pelas demonstrações teóricas,
mas pelos fatos.

Neste caso, há um exagero no pensamento empírico (uma vez que a


personagem realiza poucas observações e tira disso uma conclusão absurda) que
serve para mostrar o quão preguiçoso pode ser o pensamento.

Mais uma sátira da linguagem, revelando os automatismos da linguagem diária


encontra-se nas falas abaixo, quando o uso de frases clichês é exagerado e cômico:

SR. SMITH: O coração não envelhece. (Silencio.)

SR. MARTIN: É verdade. (Silencio.)

SRA. SMITH: É o que dizem. (Silencio.)

SRA. MARTIN: Também dizem o contrário. (Silencio.)

SR. SMITH: A verdade fica entre os dois. (Silencio.)


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SR. MARTIN: Isso é verdade. (Silencio.)

Às vezes a exagerada troca entre significado e significante; às vezes o exagero


no uso de frases ou pensamentos automáticos. É assim que Ionesco opera: Via de
regra, se valendo dos exageros para criar uma sátira bem-humorada, sempre
acusando a vaidade mecânica das palavras e os clichês de uso diário, através de
personagens, ora reféns dos bordões, ora das palavras fossilizadas, sufocando tais
personagens e paralisando suas consciências.
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REFERÊNCIAS

GERIN, Antônio Roberto. A Cantora Careca. 2021. Disponível em:


https://www.assistoporquegosto.com.br/blog/index.php/a-cantora-careca/. Acesso
em: 5 jun. 2021.

CARLO, Ricardo Di. A Literatura Dramática de Ionesco: Teatro do Absurdo Em Foco


'A Cantora Careca'. 2021. Disponível em:
https://www.guiasaoroque.com.br/colunistas/a-literatura-dramatica-de-ionesco-
teatro-do-absurdo-em-foco-a-cantora-careca-1840. Acesso em: 05 de Jun. 2021.

BERRETTINI, Célia. A linguagem de Ionesco. In: O teatro ontem e hoje. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1980.

FONSECA, Célia Freire A. O existencialismo e o século XX. Revista de História, São


Paulo, v. 34, n. 69, p. 173-177, 1967.

GASPAR, Ricardo Carlos. A trajetória da economia mundial: da recuperação do pós-


guerra aos desafios contemporâneos. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 17, n. 33,
p. 265-296, maio de 2015.

NAÇÕES Unidas lembram os mortos da Segunda Guerra Mundial. Onu News, 8


maio de 2021. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2021/05/1750022. Acesso
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21

TEATRO do Absurdo. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.


São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível em:
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo13538/teatro-do-absurdo. Acesso em: 06
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VISCONTI, Maria. “O povo alemão é inocente”: Os nazistas e sua luta pela auto
representação no Julgamento de Nuremberg. In: VIII Encontro de Pesquisa em
História da UFMG, 2019, Belo Horizonte. Disponível em:
https://d1wqtxts1xzle7.cloudfront.net/58504144/Texto_completo_Coloquio_Violencia
s_Politicas_2019-with-cover-page.pdf?Expires=1623014188&Signature=V-
MEUDKG6rfoZd0IYU0vz~3u8BH6WnaQYymMx5jZAt~qX~OUHDsWd16XO8mR5E
KvmoVJOpJw3Wn7AhFfwaFToc91EybPeSNiMWVdWcZofHWBZKx6ZMMh7FGV30
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Id=APKAJLOHF5GGSLRBV4ZA. Acesso em: 20 de maio de 2021.

UOL Biografias - Eugene Ionesco


DW Brasil - 1909: Nasce Eugène Ionesco, mestre do Teatro do Absurdo
Wikipédia - Eugène Ionesco

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