A Cantora Careca
A Cantora Careca
A Cantora Careca
A CANTORA CARECA
Uma análise da peça de Eugène Ionesco
São Paulo
2021
1
Eugène Ionesco
2
ÍNDICE
SOBRE O AUTOR 3
SOBRE A PEÇA 4
VANGUARDA DA PEÇA 6
CONTEXTO DA ÉPOCA 7
IMPRESSÕES SOBRE A PEÇA 10
Ionesco e a Filosofia 11
A linguagem de Ionesco 13
REFERÊNCIAS 20
3
SOBRE O AUTOR
Nascido na Romênia em 1909 - com 0 anos de vida, se o professor/ leitor nos
permitir um breve diálogo com uma passagem da peça A Cantora Careca -, Eugène
Ionesco foi um dos grandes nomes do Teatro do Absurdo. Passou grande parte de
sua vida na terra natal de sua mãe: na França. Apesar de ter desenvolvido ensaios e
outros textos em romeno, foi no idioma francês que o dramaturgo desenvolveu a parte
mais significativa de sua obra literária.
Apesar de trabalhar com a escrita desde muito cedo, foi apenas aos 40 anos,
em 1948, que Ionesco começou a escrever sua primeira peça, A Cantora Careca. A
obra estreou em 1950 no Théâtre des Noctambules, sob a direção de Nicolas Bataille.
Foi um verdadeiro sucesso: além de ter recebido um Molière d'honneur, a peça bateu
o recorde por ser o título encenado por mais tempo no mesmo teatro. Apesar de não
ter sido imediatamente reconhecida, não demorou muito para que os críticos
começassem a reconhecer e aclamar o valor artístico da obra.
SOBRE A PEÇA
A peça A Cantora Careca é a primeira peça escrita por Eugène Ionesco e foi
inspirada em um livro didático de inglês, o “Assimil”, onde apareciam dois casais em
diálogos sem sentido informando que eram ingleses, que tinham filhos ingleses, que
viviam em Londres e que tinham uma empregada de nome inglês. Tal como no livro
a peça conta sobre o casal Smith, que recebem outro casal em sua casa, os Martin,
e nessa recepção se estabelecem diálogos incomuns.
O Capitão reclama que os incêndios estão cada vez mais raros e em seguida
começa a contar anedotas absurdas que são recebidas pelos casais com comentários
5
igualmente absurdos. Mary reaparece querendo também contar uma anedota e então
ela e o Capitão se reconhecem e descobrimos que eles são um casal. O bombeiro se
despede prevendo um incêndio no outro lado da cidade, mas antes de sair pergunta
sobre a cantora careca e após um silêncio embaraçoso, Senhor Smith responde:
“Continua a usar o mesmo penteado”.
Os dois casais voltam para seus lugares depois da saída do Capitão e trocam
uma série de frases desprovidas de qualquer lógica. As frases vão ficando mais curtas
a ponto de se tornarem uma série de palavras e depois onomatopeias. Ao final, em
meio a escuridão, todos acabam gritando repetidamente a mesma frase, cada vez
mais rápido: "Não é por lá, é por aqui”.
VANGUARDA DA PEÇA
A peça “A Cantora Careca”, de Eugène Ionesco, está incluída num gênero
teatral chamado de “Teatro do Absurdo”, que surgiu na França na década de 1950. O
gênero traz comicidade ao homem desolado e existencialista, uma vez que nesse
ponto da história, o mundo havia passado por duas guerras mundiais.
As peças desse tipo tendem a tratar de temas cotidianos, porém sem qualquer
linearidade ou compromisso com a verossimilhança, nem tampouco com a coerência.
Trata-se de um conjunto de diálogos nos quais está presente a estranheza, a bizarrice
e a contradição. É possível afirmar que a incerteza, o medo e a solidão do homem
são retratados usando uma combinação de elementos usuais e incomuns - como
construções verbais sem sentido, repetições mecânicas e ações sem motivação
aparente.
Além disso, é muito comum a presença de frases de efeito, que trazem certa
reflexão ao público; mesmo que o diálogo que as antecede não possua lógica alguma.
Destarte, o gênero em questão apresenta a incoerência da vida cotidiana, de modo a
unir a comicidade da contradição à trágica situação do homem moderno.
7
CONTEXTO DA ÉPOCA
Como “A Cantora Careca” começou a ser escrita em 1948 e estreou em 1950,
este trabalho se irá debruçar sobre os principais eventos históricos ocorridos na
década de 1940. Um dos principais eventos deste período foi a Segunda Guerra
Mundial. No total, cerca de 40 milhões de civis morreram durante a guerra, entre 1939
e 1945, e cerca de 20 milhões de soldados, quase metade russos, perderam a vida
(ONU NEWS, 2021). Todavia, mais que o legado das mortes, esse período, através
de regimes totalitários como o nazismo e o facismo, revela um momento obscuro e
de fragilidade nos Direitos Humanos, ao construir um legado obscuro na história das
civilizações mostrando o que um ser humano é capaz de perpetrar contra a própria
espécie:
[...] não podemos tirar lições sobre a natureza do homem com a experiência
do totalitarismo; os homens ou não são nem bons nem maus por natureza,
ou são os dois. Como lembra Primo Levi, o que o nazismo nos mostra é
justamente o que o homem pode fazer a outro homem: “o homem, o gênero
humano, nós, em suma, éramos potencialmente capazes de construir uma
quantidade infinita de dor; e que a dor é a única força que se cria do nada,
sem custo e sem cansaço. Basta não ver, não ouvir, não fazer”. Tzvetan
Todorov, em uma linha similar, afirma que o mal vive dentro de nós e que
esse é um grande perigo: “para que o mal se realize, não basta a ação de
alguns, é preciso também que a grande maioria fique de lado, indiferente;
disso, sem dúvida, somos todos capazes”. (VISCONTI, Visconti)
A vitória dos aliados não foi suficiente para estabelecer um período de paz
mundial, uma vez que o ganho de poder dos Estados Unidos no Pós-Guerra acaba
por criar tensões entre este país e a União Soviética, materializando uma queda de
braço em que as superpotências disputaram a dominância econômica, política e
8
militar. Mesmo com grandes perdas humanas e materiais durante a Segunda Guerra,
a União Soviética viu seu poder militar aumentar por conta da anexação de países do
Leste Europeu ao bloco socialista e também pela vitória da revolução comunista na
China. Tal ganho militar da URSS veio como um pretexto para que os EUA injetassem
uma enorme quantidade de recursos no fortalecimento de sua capacidade bélica.
Como resultado desse esforço constante das duas potências aumentarem seus
poderes político-militares, acabam-se por se criar dois blocos: o socialista, com o
Pacto de Varsóvia, que formalizou uma aliança militar entre a URSS e os países do
leste europeu; e o capitalista, com a formação da OTAN (Organização do Tratado do
Atlântico Norte), que “uniu as nações capitalistas da Europa Ocidental e os Estados
Unidos para prevenir e defender países membros de eventuais ataques vindos do
leste comunista” (GASPAR, 2015). Tal poderio bélico dos dois lados nunca chegou a
desembocar em um conflito físico e se sustentou por ameaças mútuas do uso de
armas nucleares, com imensas demonstrações de poder com testes nucleares.
[...] a voga e maior renome alcançado por Sartre, sobretudo como o filósofo
do existencialismo, foi justamente depois da II Guerra Mundial, época em que
se consagraram alguns dos nomes citados. Coincidência? evidentemente,
não . Tanto mais que vinha o público de uma mesma terrível experiência,
repetição mais crua e despojada de qualquer escrúpulo que ainda se tivesse
conservado na guerra de 1914. Com a II Guerra Mundial soçobravam as
últimas ilusões que ainda podiam ter sobrevivido à primeira catástrofe, os
mais cegos ou desejosos de assim permanecerem tiveram de dar adeus aos
últimos saudosismos da belle époque, definitivamente morta. [...] De modo
geral os grandes escritores franceses do nosso século, sobretudo dos
períodos de pós-guerra, de maneira menos ou mais intencional, apresentam
obras impregnadas não só do pessimismo como da angústia característica
da corrente existencialista. Assim é Malraux em La condition humaine; Sartre
em La nausée, Les mains sales, Huis Clos e outras; Camus em Calígula,
9
L’Étranger, entre outros; Jean Anouilh com suas Pièces Noires, sem falar em
alguns outros. (FONSECA, 1967, p.173-174).
O texto de "A Cantora Careca” se destaca por sua incoerência verbal, com uma
sequência de diálogos quase desconexos e aparentemente desprovidos de lógica,
que são inseridos em uma realidade que se parece comum, por meio de situações
exageradas.
Apesar de não possuir um enredo linear - a proposta parece não ser contar
uma história de fato -, as conversas contraditórias entre as personagens são, além de
instigantes, muito divertidas.
Ionesco e a Filosofia
Neste ensaio, Camus tenta apresentar uma resposta razoável sobre por que o
homem não deveria cometer suicídio diante de uma existência absurda e sem sentido.
Para fazer isso, ele usa a figura mitológica grega, Sísifo, que foi condenado a
empurrar uma rocha montanha acima, apenas para vê-la rolar de volta para baixo.
Ele repete este ciclo fútil por toda a eternidade. Ao final do ensaio, Camus conclui
que, “Deve-se imaginar Sísifo feliz” (Camus 123). Ele quer dizer que apenas a luta da
vida deve trazer felicidade. Essencialmente, podemos encontrar sentido em viver,
mesmo sem saber por que existimos.
“Toda a alegria silenciosa de Sísifo consiste nisso. Seu destino lhe pertence. A rocha
é sua casa. Da mesma forma, o homem absurdo manda todos os ídolos se calarem
quando contempla o seu tormento. No universo que repentinamente recuperou o
silêncio, erguem-se milhares de vozes maravilhadas da terra. ”
A filosofia trágica encontra a estética e uma ética solar surge. O absurdo abre
a possibilidade de criação. A revolta dá sua porção de sentido. A eternidade nada
mais é do que um destino certo. A liberdade é uma condenação à presença. A criação
é a atualização das forças em mais capacidade de existir e afirmar. Uma vida que se
afirma apesar das contradições e adquire a presença de estar no mundo.
“Deve-se falar somente quando não se pode calar e falar somente do que se superou:
tudo o mais é tagarelice”
-Nietzsche
A linguagem de Ionesco
Certamente, um dos aspectos que mais saltam aos olhos na leitura da peça é
a sua linguagem. Palavras fora de contexto, construções de frases que fogem à lógica
e a qualquer uso cotidiano, causam um grande estranhamento. Todavia, essa
estrutura linguística fora do convencional segue um propósito maior do que causar
um simples estranhamento. É aqui que Ionesco constrói uma crítica da linguagem:
SR. SMITH: Por que não? O navio também tem as suas doenças, e o médico
é forte como um navio; esta é a razão pela qual deveria morrer juntamente
com seu paciente, como o capitão e seu navio.
SRA. SMITH: Ah! Não tinha pensado nisso.... Talvez seja isso mesmo [...].
SR. SMITH: A, e, i, o, u, a, e, i, o, u, a, e, i, o, u, i!
SRA. MARTIN: B, c, d, f, g, h, l, m, n, p, q, r, s, t, v, w, x, z!
SRA. SMITH (imitando um trem): Tchu, tchu, tchu, tchu, tchu, tchu, tchu, tchu,
tchu, tchu, tchu!
SRA. MARTIN: é!
SR. SMITH: É!
15
SR. MARTIN: A!
É neste final que fica claro que a linguagem se tornou um amontoado de coisas
sem sentido. Colocadas lado a lado, é possível aproximar as duas cenas acima como
sendo da mesma espécie, ambas apresentam o uso de uma linguagem vazia, morta
e esclerosada. Por mais que a última pareça não ter sentido algum, vale reparar que
na primeira cena, a comparação entre um médico e um capitão de navio é tão sem
sentido quanto um amontoado aleatório de palavras, ou seja, não é porque uma frase
é dita ou escrita, que ela comunica algo. É isto que Ionesco provavelmente crítica em
nosso cotidiano, quando nos valemos daquelas frases motivacionais ou supostos
valores “universais” para nos comunicarmos, ao invés de propormos ideias próprias
ou interpretações originais, autônomas e espontâneas da realidade. Nesse sentido,
talvez seja possível aproximar frases automáticas a comunicações guturais e
monossilábicas, já que ambas se expressam por sons livres de significados
verdadeiros. Para compreendermos como Ionesco construiu essa escalada, que
conecta essas duas pontas que citamos, é necessário retomarmos as ideias de
Saussure.
da imagem de uma casa). Se, por um lado, o significado está associado a uma ordem
puramente psíquica e mental, o significante, é de ordem material (por exemplo, ao
ouvir a palavra “casa”, você pensará nas letras que a compõem [c-a-s-a] e nos
fonemas que a representam [/k/ /a/ /s/ /a/]).
SR. SMITH: Temos que arranjar o presente de núpcias. O que poderia ser?
SRA. SMITH: Por que não damos uma daquelas salvas de prata que
recebemos em nosso casamento que nunca usamos? (Silêncio.)
SRA. SMITH: Era o que faltava! Filhos! Coitada, como é que ela havia de se
arranjar!
SR. SMITH: Ela ainda é nova. Pode casar-se novamente. Fica muito bem de
luto.
SRA. SMITH: Mas quem tomará conta das crianças? Você bem sabe que
eles têm um menino e uma menina. Como é que se chamam mesmo?
ela fez foi unicamente jogar frases prontas e bordões que geralmente dizemos sobre
o estado civil de uma pessoa. O mesmo se dá quando se fala dos filhos. Nada se
sabe do que o Sr. e Sra. Smith pensam sobre ter filhos: mesmo sabendo que a pessoa
não possui filhos, eles apenas lançam bordões sobre a maternidade (“Filhos! Coitada,
como é que ela havia de se arranjar! ”; “Mas quem tomará conta das crianças? ”). A
preocupação em emitir uma opinião própria é tão inexistente que as personagens
novamente lançam frases prontas, sem nem se preocupar se a pessoa realmente
possui filhos. A linguagem, que de tanto ser utilizada de maneira automática, ficou
fossilizada, pois nunca é utilizada para comportar o pensamento individual. Só se
pensa por meio de bordões (que existem independente do eu, do indivíduo):
SR. SMITH: Ela ainda é noiva. Pode casar-se novamente. Fica muito bem de
luto.
O correto seria “Fica muito bem de noiva”, mas houve uma permutação, e o
significante “luto” passa a ter o significado da palavra “noiva”. Parece absurdo, mas
já que as palavras estão tão esclerosadas pelo uso, porque não recriá-las? Por que
não manipulá-las, justamente para satirizar e contrariar seu uso estéril, sem qualquer
apropriação pessoal. É claro que não fazemos esse tipo de permuta no dia a dia, mas
o que Ionesco faz é elevar à máxima consequência o uso da palavra morta e pré-
18
pronta (está tão morta que podemos alterar a bel prazer, como se fosse um brinquedo,
inerte).
SRA. SMITH: Nós estávamos discutindo porque meu marido disse que cada
vez que a campainha toca, é porque deve haver alguém na porta.
SRA. SMITH: E eu estava dizendo que toda vez que a campainha toca não
tem ninguém.
SRA. SMITH: Mas isso ficou provado, não pelas demonstrações teóricas,
mas pelos fatos.
REFERÊNCIAS
BERRETTINI, Célia. A linguagem de Ionesco. In: O teatro ontem e hoje. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1980.
VISCONTI, Maria. “O povo alemão é inocente”: Os nazistas e sua luta pela auto
representação no Julgamento de Nuremberg. In: VIII Encontro de Pesquisa em
História da UFMG, 2019, Belo Horizonte. Disponível em:
https://d1wqtxts1xzle7.cloudfront.net/58504144/Texto_completo_Coloquio_Violencia
s_Politicas_2019-with-cover-page.pdf?Expires=1623014188&Signature=V-
MEUDKG6rfoZd0IYU0vz~3u8BH6WnaQYymMx5jZAt~qX~OUHDsWd16XO8mR5E
KvmoVJOpJw3Wn7AhFfwaFToc91EybPeSNiMWVdWcZofHWBZKx6ZMMh7FGV30
s7qKTLKAj1~LLNftAHDgWBPFjlilVwmLRb5KQQNnT6Hx32Og2kNYvw9EokIkTco7K
-
F7WrHHIry6hghwVCDqBS6u8NLKXuLKaN0wwnkU2xNMX~OQGdy~ioPxWPYxhPY
x~2SQDWz0R7rDz4mkB3MEs9G9J93dRFLcVHWl0v~TY7dpUQYujqEI5QRsnO2f5
NgI4uP0IznYkLLAoQm2WxP28YLSsa5Q__&Key-Pair-
Id=APKAJLOHF5GGSLRBV4ZA. Acesso em: 20 de maio de 2021.