Erro, Ilusão e Loucura
Erro, Ilusão e Loucura
Erro, Ilusão e Loucura
• editora•134
Este livro de ensaios realiza um retorno,
sem dúvida enriquecido com os debates filosó-
ficos mais atuais, do professor Bento Prado Jr.
ao ponto de partida de seu itinerário, sua tese de
1964 sobre a gênese bergsoniana da subjetivi-
dade no campo transcendental das imagens. A
problemática da subjetividade e do transcen-
dental é o fio de Ariadne desse percurso.
Em Erro, ilusão, loucura essa problemática
desdobra-se no espaço bem peculiar aberto pela
análise gramatical de Wittgenstein que é a in-
vestigação terapêutica das situações nas quais
"não sabemos o caminho" e tornamo-nos se-
melhantes aos cegos da gravura de Goya que o
autor comenta ao início do seu livro. Se o erro
sempre supõe um horizonte de certeza, o tipo
de ilusão necessária que nasce dos próprios jo-
gos de linguagem mais comuns e que a "pers-
picuidade" da descrição gramatical nos permi-
te reconhecer, remete, na filosofia, à ausência de
horizonte como na gravura.
Mas reconhecer ilusões necessárias é reco-
locar a questão de Kant: "o que significa orien-
tar-se no pensamento?", tomando uma posição
apenas aparentemente paradoxal na qual sair da
filosofia (como se pensa às vezes ser o alvo de
Wittgenstein) seria uma maneira de entrar nela.
E entrar na filosofia significaria, por sua vez, que
levar em conta seriamente a história da filoso-
fia, num "tempo sincopado e descontínuo" do
pensamento, seria verdadeiramente filosofar.
Por isso, os ensaios onde um Wittgenstein
"mais kantiano do que se está normalmente dis-
posto a aceitar" desempenha o papel de inter-
locutor principal, colocam-no num eixo onde
se encontram não apenas Kant como também
Descartes e, sobretudo, Pascal. No ensaio epôni-
mo e no seguinte ("Descartes e o último Witt-
genstein"), trata-se de pensar Wittgenstein en-
quanto protagonista essencial da crise contem-
16.3 2 13
5 10 11 8
9 6 7 12
4 15 14 1
Bento Prado Jr.
ERRO, ILUSÃO,
LOUCURA
Ensaios
Comentários de
Arley Ramos Moreno,
Sérgio Cardoso e
Paulo Eduardo Arantes
editoraN134
EDITORA 34
Editora 34 Ltda.
Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000
São Paulo - SP Brasil TeVFax (11) 3816-6777 www.editora34.com.br
Imagem da capa:
Francisco Goya y Lucientes, No saben el camino,
gravura n° 70 da série "Fatales consequencias de la guerra
de Espaiur con Bonaparte" ("Desastres de la Guerra")
Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica:
Bracher & Malta Produção Gráfica
Revisão:
Adrienne de Oliveira Firmo
ISBN 85-7326-296-6
Inclui bibliografia.
CDD -100
ERRO, ILUSÃO, LOUCURA
Ensaios
Prefácio
(
Bibliografia 265
Index Nominorum 273
Para meus netos, Sofia e Bentinho
"Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje quando me sinto,
É com saudades de mim."
Prefácio 11
da subjetividade no campo transcendental das imagens,
parece retornar a ele em duas etapas diferentes.
Um primeiro passo foi dado durante minha esta-
da na França entre 1969 e 1974, no CNRS, após mi-
nha exclusão da USP, com a redação de um livro (do
qual apenas alguns capítulos foram publicados) sobre
Rousseau e sua concepção essencialmente retórica da
linguagem, isto é, sobre sua concepção da intersubje-
tividade (ou, na excelente fórmula de Jean Hyppolite,
sobre a decisão de Rousseau de instalar a linguagem no
lugar reservado a Deus pela tradição metafísica)."
Prefácio 13
concepção essencialmente anarcântica4 da filosofia, que não é
inimiga da análise conceituai e que se exprime em obras diferen-
tes ao longo da história da filosofia (penso, em particular, em
nomes como os de Rousseau e Pascal). Noutras palavras, penso
numa guerra filosófica antiga contra toda forma de fundacio-
nismo, que se recusa a saída fácil do ceticismo e do relativismo,
que talvez seja mais atual que a voga atual do pensamento mole
dos pós-modernismos. Pascal dizia contra o "absolutismo" da
filosofia: "La vraie philosophie se moque de la philosophie". E
Rousseau, depois de demolir a ambição da metafísica dogmática,
acrescenta: "il me faut une philosophie pour moi". É claro que
parecemos embaralhar anacronicamente as linhas da história da
filosofia. Mas talvez seja necessário fazê-lo e recusar, a um só
tempo, historicismo e Philosophia Perennis, imaginar um tempo
do pensamento que seja sincopado e descontínuo. Walter Benja-
min? Não sei. Digamos que a intenção última é a de introduzir
um mínimo de negatividade no debate acadêmico, revelando o
que há de frágil na segurança moral-ideológica que está em sua
base mais funda.
Mas tudo isso é muito vago e se refere mais a um alvo lon-
gínquo e ainda impreciso destes escritos do que a passos efetiva-
mente dados; no nível do té/os não poderia ser muito diferente:
temos diante de nós pouco mais do que uma aposta filosófica.
Confessemos, desde já, que no sabemos el camino, como pode-
ríamos dizer trazendo para a primeira pessoa a frase que dá tí-
tulo a uma belíssima gravura de Goya: No saben el camino. Mi-
chael Armstrong Roche assim descreve essa gravura: "Uma hor-
rível procissão — dois frades, um tonsurado, o outro encapuzado,
ambos fulgurando em seus hábitos brancos; três nobres vestindo
uma peruca atada, outro vestindo um colete, todos vestindo an-
Prefácio 17
A cegueira e o sono remetem menos ao erro e ao preconceito do
que à ilusão necessária.
Vistos desta maneira, os Bergwege da gravura assumem as
características dos Holzwege ou, mais classicamente, das aporias.
O que não implica em introduzir um páthos trágico no otimismo
ilustrado implícito na gravura (em todo caso, não implica nenhu-
ma adesão a um estilo heideggeriano, como as expressões utili-
zadas poderiam sugerir). Como se pode ver no seguinte texto de
Wittgenstein, que poderia ser lido como um comentário da gra-
vura de Goya: "Caminhamos, por aí, sonâmbulos, entre abismos.
— Mas mesmo se dizemos agora: 'agora estamos despertos', po-
deremos, de fato, estar seguros de não despertarmos em outra
hora? (E dizer então: — dormimos novamente)./ Podemos estar
seguros de que não há abismo algum, que não vemos?/ Mas, se
eu dissesse: num cálculo não existem abismos se não os vemos!/
Engana-nos aqui um diabinho? Mesmo se nos engana, não nos
atrapalha. O que os olhos não vêem, o coração não sente". 9
Mas, ao projetarmos, assim, o parágrafo de Wittgenstein so-
bre a gravura de Goya (o que podemos fazer com legitimidade),
algo talvez seja perdido da riqueza de nossa percepção. Esse pa-
rágrafo é, a um só tempo, anticartesiano e anti-hilbertiano, no seu
tratamento da matemática. Já em Descartes, o argumento do so-
nho era insuficiente para por em perigo a verdade da matemáti-
ca: se estou dormindo, as minhas representações que remetem ao
mundo físico podem induzir-me em erro. Mas, mesmo em so-
nho, 2 + 2 = 4! Só a hipótese do gênio maligno suspende a evidên-
cia das idéias simples. E Wittgenstein acrescenta: nenhum "dia-
binho", por mais que me engane, pode pôr em perigo a seguran-
ça de meu andar pelos caminhos da matemática. Mais ainda, não
preciso cuidar, como Hilbert, de provar a "consistência" de mi-
nha teoria: isto é, não carece, além de provar que todas as pro-
Prefácio 19
curidão. Intuímos que estamos no alto de um despenhadeiro, mas
nenhuma indicação é dada sobre aquilo que está em torno, aci-
ma ou abaixo. O espaço branco na parte superior direita da gra-
vura poderia ser o céu, acima de todos nós, iluminado pelo sol,
que se infiltra na bruma envolvente. Mas poderia, também, ser o
mar, visto de cima, como o vislumbramos, indo para o litoral
paulista, do alto da serra do mar. De fato, a cena toda é vista de
cima. Na parte superior esquerda, idem: tanto um céu coberto de
nuvens, como um obscuro e revolto mar-oceano. No limite, in-
sulados pelas névoas e perdidos no labirinto montanhoso, não
mais sabemos localizar-nos no plano horizontal (é claro, já que
se trata de um labirinto ou de uma aporia, caminho sem saída),
mas sobretudo no plano vertical. Se não somos capazes de discri-
minar as vias sobre a superfície da Terra, é porque não somos
capazes de nos localizar, na Terra, entre o Céu que está acima dela
e o Inferno que supostamente está abaixo. Justamente o que fal-
ta é o horizonte, ou aquilo que, sem ser a própria Terra, nos per-
mitiria orientarmo-nos nela. O que não sabemos, para lembrar o
título do texto clássico de Kant, é que significa orientar-se no pen-
samento? Mesmo percebidos como céu, o espaço iluminado e o
obscuro estão radicalmente cortados do espaço imediato percor-
rido pelos personagens errantes e não podem, assim, servir de nor-
te ou de horizonte. 12
garth does that this waywardness is alien to him. Even in his broadest, most
farcical satirizations, one always feel distinctly that Goya has direct perso-
nal experience of the error that is being satirized and that ir is not just some-
thing he lias observed from a detached vantage point" (op. cit. p. 93). Não
se trata de um passo para trás: romper com o otimismo teo-cosmológico-éti-
co-político do Barroco ou das Luzes (ou com o neoclassicismo de David) sig-
nificaria, pelo contrário, abrir o espaço para a desarticulação do mundo, es-
tranhado e alienado, tornado de algum modo opaco na arte moderna. Sem
jamais comentar No saben el camino, Fred Licht aponta, todavia, ao longo
de toda a obra de Goya, as mesmas características da estranha ambigüidade
do espaço (a supressão do horizonte e da perspectiva) que tentamos mostrar
na gravura em pauta. Comentando os Caprichos, por ex., escreve: "The am-
biguiry of serting and of lighting is what lends to the Caprichos an air of ir-
rationaliry, of a world gone awry, of figures that have lost their bearings"
(op. cit , p 96) Essa ambigüidade na determinação do espaço, com o uso
combinado do negro, do branco e do cinza (que elimina a luminosa transpa-
rência perspectiva do mundo) é examinada inúmeras vezes no livro (cf. as pp.
94-103, 142, 145-6, 180, 182, 187, 210-2, 214-5, 232, 279-81).
Prefácio 21
signo da aporia, como a oposta por Mênon a Sócrates. E é pela
mesma razão que aponta para um escrito futuro sobre a ipseidade
(e ou a alteridade) e seu horizonte.
Começando com Mário de Sá-Carneiro, não poderíamos es-
quecer de encerrar este prefácio com os versos de Luís Vaz de
Camões que, na esteira de Petrarca, prefigura os versos do poeta
do século XX:
II
26
Idem, ibidem, p. 245.
III
" G. E. Moore, "Uma defesa do senso comum", São Paulo, Abril, col.
Os Pensadores, 1985, pp. 81-2.
IV
1.
Concordo com sua interpretação da idéia wittgensteiniana
de vernünftige Mensch, como sendo o indivíduo que domina uma
técnica lingüística e não pergunta por seus fundamentos — por
oposição ao homem racional. Só que minha interpretação dessa
idéia talvez seja, digamos assim, menos ortodoxa: é uma figura
teórica que, sem ser um modelo normativo, permitiria, por con-
traste, compreender e esclarecer situações de confusão conceitual.
Situação oposta àquela do homem racional — e, neste caso, unin-
do a tradição filosófica com a expressão do próprio Wittgenstein
—, do filósofo que "pensa" e não "olha", generalizando por so-
bre a diversidade das situações; atitude, esta, irreprimível, e, em
certo sentido, natural, uma vez que nosso pensamento é uma das
possíveis manifestações da linguagem — desde o Tractatus e —
2.
Outra idéia importante que você salienta, com a qual con-
cordo inteiramente, é a do "empírico-transcendental" aplicada à
combinação entre fatos muito gerais da natureza e ações envol-
vidas com a linguagem. Eu apenas tomaria a liberdade de acrescen-
tar dois comentários. Em primeiro lugar, distinguir nos fatos ge-
rais da natureza uma função propriamente transcendental que
seria exerCida a partir do momento em que são eles integrados ao
simbolismo na qualidade de regras para o uso da linguagem. En-
quanto empíricos, esses fatos gerais, assim como quaisquer ou-
tros, não exercem nenhuma função simbólica: são um nada, a
respeito do qual nada podemos falar. Uma vez elaborados no
interior de práticas diversas, ganham o estatuto convencional de
regras para o uso do simbolismo e, a partir de então, tornam-se
independentes de sua natureza empírica original: tornam-se regras
a priori para a construção de conceitos. Em segundo lugar, e como
conseqüência, o mesmo parece aplicar-se aos objetos empíricos
em geral: ganham a função transcendental ao serem assimilados
ao simbolismo lingüístico como "meio de apresentação" para o
uso de palavras (é essa, parece-me, a técnica do paradigma).
3.
Outro ponto que gostaria de comentar, agora para apresen-
tar algumas dúvidas, é aquele em que você afirma que, para es-
capar ao relativismo, no caso de Wingenstein, basta reconhecer
que é possível compreender todos os jogos de linguagem ao des-
crever e compreender apenas um jogo de linguagem — basean-
do-se, para esta afirmação, no manuscrito 980, citado pelo Gran-
ger. Minha dúvida é a seguinte: se fosse como afirma, então cada
jogo de linguagem deveria conter a determinação comum a todos
os jogos de linguagem, "reais ou possíveis". É fácil perceber, pa-
rece-me, que essa tese é bastante antiwittgensteiniana. Eu inter-
preto o fragmento do manuscrito 980 da seguinte maneira: ao
4.
Outro ponto que gostaria de comentar diz respeito aos "prin-
cípios fundamentais da pesquisa humana". Concordo apenas com
sua sugestão do primeiro aspecto (# 26). No contexto daquela
afirmação, no Ober Gewissheit, # 670, parece-me que seria per-
tinente acrescentar a seguinte idéia: fazem parte dos princípios as
manifestações da certeza e da dúvida que acompanham as formas
do julgamento (p. ex., as notas de 20/4/1951, as de 22/4/1951 e
as de 26/4/1951, entre outras): alguém sempre poderá duvidar de
• minhas mais arraigadas certezas, com boas razões para isto, quali-
ficando-as, como diz Wittgenstein, de erro, magia, heresia ou lou-
cura — e vice-versa; em outros termos, julgamentos entrarão nor-
malmente em confronto em virtude de sua forma, mas, principal-
mente, pela convicção com que são manifestados do interior de
cada imagem do mundo. Quando não mais tivermos boas razões
para isso, quando nos defrontarmos com provas factuais que con-
trariam nossas convicções, certezas e dúvidas, pois bem, nessas
situações-limite — que são aquelas tematizadas por Wittgenstein,
com freqüência — bateremos o pé no chão (como o faz, por ve-
zes, o Lebrun!) e persistiremos em nossa posição continuando a
jogar nossos jogos de linguagem da certeza e da dúvida (p. ex., #
657). Eis outro elemento que me parece fazer parte, segundo Witt-
genstein, dos "princípios fundamentais". Ora, através da terapia
gramatical, que nos conduz à visão sinóptica, teremos ganhado,
sobretudo, um pensamento agora apto a combater sua própria
tendência natural a filosofar — no sentido criticado por Wittgen-
stein —, á deixar-se envolver pela força das imagens — no meu
6.
Mais um ponto que gostaria de comentar, é o caráter arbi-
trário dos princípios básicos, desta vez menos gerais que os ante-
riores, instituídos através de convenções. Concordo plenamente
que, desde o Tractatus, para Wittgenstein os conjuntos de leis
naturais e de princípios básicos das imagens do mundo .— os axio-
mas da mecânica e, posteriormente, as proposições gramaticais
— não têm sentido, i.e., não possuem valor de verdade, e, ao
mesmo tempo, possuem o caráter de necessidade e são arbitrários.
Arbitrários, no sentido de que não resultam de inferências, mas
de escolhas que . poderiam ser outras. Todavia, não são arbitrá-
rios no sentido de que dão conta eficazmente das situações que
exprimem, cada um à sua maneira: a física é tão eficaz para nós
• quanto a magia para outras comunidades — ou, para. ser menos
caricato, a mecânica newtoniana permite-nos conhecer fatos, as-
sim como a einsteiniana, e operacionalizá-los. O que poderíamos
denominar de relativismo convencionalista que se observa no ní-
vel das imagens do mundo — eu diria, no nível empírico desta di-
versidade irredutível de jogos de linguagem — é, se não absorvi-
do, pelo menos, nivelado no interior de cada jogo de linguagem
através dos mecanismos, ou práticas simbólicas, que permitem in-
corporar ao simbolismo lingüístico os elementos da experiência
empírica em geral. Por mais diversos que sejam aqueles princípios
— as diversas concepções da necessidade e da dúvida — ao ex-
primi-los lingüisticamente, ou, pelo menos, sempre que isso for
possível, é porque foram aplicados mecanismos simbólicos per-
mitindo instaurar o nível dos conceitos — nível onde são realiza-
das combinações e inferências independentemente do que ocor-
re, do que é o fato: não é necessário que exista um besouro den-
tro de nossa caixa privada, nem sensações em nosso corpo, nem
emoções em nossa alma etc., para que possamos aplicar conve-
7.
Mais um ponto: a tarefa terapêutica negativa e seu resulta-
do. A terapia filosófica de Wittgenstein parece, de fato, não ter
fim, ainda que sintomas particulares tenham desaparecido. Ain-
da que se possa explicitar o sistema de idéias que a sustentam —
uma concepção de linguagem, de significação, de conceito, de
necessidade etc. —, sua aplicação segue, certamente, o modelo
clínico: aplica-se a cada indivíduo em situações determinadas de
confusão conceituai. A terapia filosófica não poderia, de acordo
com a própria concepção que a sustenta, devolver, ou revelar, um
vemos?/ Mas, se eu dissesse: num cálculo não existem abismos se não os ve-
mosi/ Engana-nos aqui um diabinho? Mesmo se nos engana, não nos atra-
palha [somos nós que sublinhamos, lembrando a frase de Descartes da se-
gunda meditação: ... et (alias quantum potest...]. O que os olhos não vêem,
o coração não sente".
Web
udo iss\-) e apenas
' IMF af)mado nesse parágrafo, mas o que in-
teressa é examinar o esboço de argumento apresentado no pará-
grafo que o segue e encerra o livro, onde podemos ler: 676 "No
entanto, se não me posso enganar em tais casos, não é possível
que eu esteja drogado?". ,
No início de nosso comentário, não podemos evitar algumas
considerações de ordem estilística (Wittgenstein dizia que era preci-
so ler seus textos muito devagar). Notemos que a frase citada, que
abre o # 676, vem grafada entre aspas, o que significa, pelo me-
nos, que não é assinada pelo autor — mais que isso, trata-se de
um argumento que contraria o movimento pensante do livro. Po-
der-se-ia dizer que o argumento do narcótico' -,— primo-irmão dos
argumentos cartesianos do sonho e da loucura — é o último ar-
gumento do solipsista que, com o realista, faz o par metafísico con-
tra o qual se volta todo o esforço de Sobre a certeza. De qualquer
maneira, esse gesto estilístico aponta para a natureza dialógica do
texto de Wittgenstein. Arrisquemos uma fórmula: os textos do
—
segundo Wittgenstein assemelham-se aos diálogos de Platão, com
a diferença radical de que, aqui, o diálogo é, sempre e por essência,
aporético. Não no sentido platônico, de uma investigação inter-
rompida de facto, que, mesmo no seu malogro, não deixa de apon-
ptar para o tdos universalista do pensamento, sublinhando-o, por
\ ssim dizer, em negativo. A orético num sentido essencialmente
nti-socrático ou antiplatônrco, que mostra que a curiosidade ou
a inquietação filosófica jamais pode aplacar-se na identificação
de uma essência estável, calma e transparente, onde o bougé de
nossa linguagem demasiado humana pudesse ser reabsorvido, sem
deixar resto ou problema (como afirma o próprio Wittgenstein
em outro lugar: "Sócra;es, que sempre reduz o sofista ao silêncio
— ele o reduz com direito [mit Reck] ao silêncio? — Certamente,
o sofista não sabe o que acreditava saber; mas não há aí nenhum
triunfo de Sócrates. Ele não pode exclamar: 'Veja! Você não sa-
be!', nem triunfantemente: 'Assim, nenhum de nós sabe nada!").
Mas voltemos ao argumento entre aspas: o que ele sugere é
que há casos-limite (exatamente, aliás, como na primeira das Me-
80 PAAXWAt tiC/D`
4
Bento Prado ir.
oatew L 24~{a, nvoui- ‹;J:35
ditações de Descartes), ou casos patológicos, que põem em xeque
a idéia segundo a qual todo erro é corrigível por essência, que
pressupõe regras. an....S512zr
erro ii .i.4.api o como um
_
Sit.1 — uma e oderia evad . em
direça • . • .asto mundo. Com efeito, os delírios artificiais, o so-
Atera,mrirmrcfatos? E tais fatos não podem reativar os
sucessivos argumentos da primeira meditação? Não podem eles
reconduzir Wittgenstein a suas inquietações mais antigas, à ob-
sessão com o solipsismo, jamais completamente aplacada? É im-
possível não referir, neste momento, um texto do diário do filó-
sofo (8 de abril de 1917) onde encontramos a seguinte reflexão
que vai exatamente à contracorrente do texto que começamos a
comentar: "Estamos dormindo, nossa vida é como um sonho. Nos
melhores momentos despertamos mas • apenas o suficiente para
z
percebermos que estamos sonhando. Na maior parte do tempo,
estamos mergulhados num sono profundo. -Não_posso=me..acorr
dar de mim mesmo. g'forço-me para tanto, meu coroo de sonho
se põe em movimento r mas-mewcorpo-real-satecusaJnfelizmen-
te é as5im" (apud Chauviré, 1991, p. 44).
Supondo-se (mas voltaremos adiante a essa questão) que o
sonho normal e o induzido artificialmente não são essencialmen-
te diferentes para o argumento em pauta, podemos dizer que o #
676 percorre um caminho exatamente inverso ao da página do
diário de juventude: "Se estou [se estou drogado] e a droga me
rouba a consciência, então não falo ou penso efetivamente".
Ora, à primeira vista, esse enunciado de efeitos anticarte-
sianos faz eco, de alguma maneira, ao espírito do cartesianismo,
na medida em que parece deixar transparecer uma espécie de inter-
face com a filosofia do cogito, pois, ainda que se trate de limitar
o processo de generalização da dúvida, tal limitação aparentemen-
te é feita graças à identificação entre pensamento e consciência.
Pois é exatamente essa identificação ue bloqueia a e içácia do
A1/4.
itu j
--/ak 0(4501( Ch. wzr.\<zxkLçu,
fre j» jIUen to_ Prado Jr.
7
, \,..s.),\Ç 6,...).. ca jer.434ti
poma4,--‘ conmioAlyvic;
egocêntrico, pelo menos conscienciocêntrico?
C e4.11~4.441:14
Mais duramente ain- 4
da, seria final e novamente a consciência um ingrediente da sig-
nificação em geral? De que serviu a dura ascese de Frege, a longa
batalha conduzida contra o psicologismo na lógica?
É preciso dizer, é claro, para desdramatizar e relativizar um
pouco as coisas, que o recurso à consciência não implica um mer-
gulho imediato no pântano do psicologismo. As Investigações ló-
gicas de Husserl, por exemplo e pelo contrário, viam nas idéias
de "consciência" e de "intencionalidade" justamente os instrumen-
tos indispensáveis para depurar o universo da lógica e das signi-
ficações em geral de todo e qualquer compromisso com a psico-
logia em particular e com a natureza como um todo. Mas é cla-
ro, também, que o antipsicologismo de Frege é mais puro e duro,
e Wittgenstein mais radical ainda que seu mentor..........a......--.~......0
E nesse caso,
recoe_ a "cr ia.,,,,..:,.
nisciêi c.,i,t;Le.leTsig.rfi Z1 de uma
"conséiênçia-de-regra" seria artuitia?6projeto essencialfl
---..~-•
-- rsi.
_ pepsame2t4)wspzi-i., 92%;,
rn .;?"grado suas sucessivas rans or
a5oesclefinido psI2,meto.do da_análise lógica ou gramatical"
da lingin se rs_o.p. m q.54.dt?:49.4>»knretarig,.4....„S„q,ria
naturafo
w- ».\„,_Zittge_n.s.teitktoena.explícito quando após exa-
minar as idéias de compreensão e de si nificação à luz dolato do
.....: ...a.-~c--...---.~.-,..- N.,,...."...„,..,-
aprendizaid,azgunta a si mesmo `,Estarei,f_azendoziçologia
infantil?",parar logo.respondetnegativamente: "Não; não é his-
tória natural-que,me-interessa ymas-a-gramática").
Mas continuemos a leitura do texto, que se encerra com as
seguintes palavras: "Não posso admitir seriamente que sonho nes-
te momento. Quem, sonhando, diz Eu sb.nho, mesmo se o diz de
maneira audível, tem tão pouca razão de fazê-lo quanto tem quan-
do, sonhando, diz Chove, mesmo numa situação em que chove
efetivamente. Mesmo se seu sonho está efetivamente associado ao
ruído da chuva".
O que há de inquietante, nessas frases, é que parecem suge-
rir que a significação de uma proposição (a alternativa entre sua
verdade e sua falsidade), ao contrário do dritte Reid, de Frege,
depende do estado ou de alguma determinação do sujeito real e
A~
Descartes e o últiuWArge ste
CU)
joimi ctynk3/4 cd44.1)4 avyttb
da eventual contaminação psicologista da semântica e é justamen-
te essa questão que gostaria de visitar na leitura do último pará-
grafo de Sobre a certeza. Mas antes de retornar ao texto em pau-
ta e para reformular nossa questão (ou para formulá-la finalmen-
te), é necessário que os convide a um longo desvio. Antes de re-
tornar à reformulação wittgensteiniana do argumento do sonho,
talvez não seja inútil consultar o uso que dela fizeram seus discí-
pulos. Minha sugestão é de que boa parte da chamada filosofia
analítica deriva de uma má leitura de algumas frases de Wittgen-
stein (assim como de uma má leitura de Descartes) — dentre as
quais, aquela que discutimos é paradigmática.
Distanciemo-nos, portanto, provisoriamente, do # 676 de
Sobre a certeza, para examinar alguns dos efeitos do pensamen-
to do segundo Wittgenstein. Confiando numa certa linha da pos-
teridade anglo-americana do filósofo austríaco, tudo se passa co-
mo se a desconstrução do argumento do sonho correspondesse,
no nosso século, a uma formidável revolução teórica. Penso aqui,
em particular, no belo livro, já antigo, de Gilbert Ryle, The con-
cept of mind, e num outro, de Norman Malcolm, publicado sob
o título de Dreaming. Num caso como no outro, trata-se de usos
das análises wittgensteinianas que decretam que os argumentos
céticos da primeira das Meditações de Descartes beiram a burri-
ce — pois que é a burrice, senão confusão categoria!? — e que só
o estilo da análise lógica pode liberar-nos dos fantasmas cartesia-
nos que oneram até hoje o pensamento filosófico.
O qro passan o i-apidamente pela posteri-
dade de Wingenstein, é o que me parece um erro historiográfico
e filológico (mas também lógico-gramatical), uma certa cegueira
para as metamorfoses da filosofia: 52 O que nos dizem, mais ou
cular no caso de Norman Malcolm que é visado neste texto. Esclareço que
não ignoro a finura da interpretação que oferece, em vários lugares, da obra
de Wittgenstein como, p. ex., em Notbing is hidden. Quando falo, portanto,
PildWilit
Antes de voltarmos a esse texto de E inosa, é interess) t -
que nos reportemos às páginas de L'imaginaire que Sartre consa-
ga~o cartesiano do sonho ou, mais geralmente, à
própria essençia do sonho como tal. Se Sartre recorre ao texto de
e êle\ coloca dificuldades para sua teoria da
Descartes, é po;:pi
imaginação e do imaginiário. E encaminha a discussão reformu-
lando o argument nos seguintes termos: Cifli‘:1\L
, yosa).obv
"Se é verdade que o mundo do sonho se dá co-
mo um mundo real e percebido, quando ele é consti-
tuído apenas por um imaginário mental, não haveria
aí ao menos um caso onde a imagem se dá como per-
cepção?" (p. 206)
br
Descartes e o últimoIttgensteil ° iiii> 93
v ritt3-?,,but) ibsdi r~)
é uma e a mesma coisa. Pira Es inosa, também, ter uma idéia,
perceber essa idéia adequadamente, isto é, na ordem das idéias
ou na conexão com sua causa, emprestar-lhe assentimento, tudo
é o mesmo. Pensando na criança que se representa apenas o ca-
valo alado, podemos dizer que, para Espinosa, sonhar é supri-
miro mundo ou implodir a ordem das idéias; ou ainda afirmar,
em outros termos, que não existe uma ordem ou um mundo do
sonho e do imaginário. Como o faz explicitamente Sartre:
III
Mas, tudo isso posto, o que ganhamos com este périplo er-
rático, que nos levou tão longe do último parágrafo de Sobre a
certeza? Pode, pelo menos, ter clarificado a perspectiva a partir
da qual me aproximei do # 676. Talvez esse excurso, desenhan-
do a épura de uma tradição, tenha dado um sentido mínimo à
recusa wittgensteiniana do argumento do sonho, bem como à
maneira pela qual se articulam, no Tractatus, as noções de sujei-
to e de mundo. De qualquer maneira, o que tentamos sugerir é
que, ao contrário do proposto por Ryle e Malcolm, tudo se pas-
sa como se a refutação do argumento do sonho (retomada no pre-
sente pela filosofia analítica) não correspondesse a uma revolu-
ção teórica recente (o mais belo exemplo da dissolução analítica
das ilusões da metafísica), mas a um lugar-comum venerável, in-
C44 taftib
Ao pretender dizer sua verdade, o solipsismor ,
embaralha-se inevitavelmente em paralogismos. A pro-
jeção da realidade no sinal (a simbolização) não pode
ser feita um objeto de representação. Há como que uma
reflexividade do pensar que não é uma representação,
mas algo análogo ao que Kant definiu como apercep-
ção: a consciência da representação no ato de represen-
tar, quando a atividade representativa se rec ece e
seu pro uto, a representação. Neste sentido, é uma re-
flexividade irredutivelmente subjetiva, por meio da qual
o sujeito não se mostra como objeto entre outros, mas
como um ponto de convergência das linhas de proje-
ção que fazem do sinal um símbolo." (p. 105)
k9a M1/4.4)
, (-9~ ola'ot. Atl-,v2,a ‘t_ô ■
n
orfQX,cji:ji;:azet,011
--- apenas um espaço de transparência (clareira?) onde justamente
"transparece" a consistência do mundo, que ilumina transversal
( ou obliquamente o jogo projetivo entre as proposições e os esta-
dos-de-coisa. Tudo se passa, enfim, corno se essa figura do sujeito,
02.p.a.innite da linguagem e do mundo (o sujeito, nós o sabemos,
não está dentro do mundo como o olho não está dentro do caril. -
pl ti - o), fosse a forma terminal de um longóso_deasmbli-
ces.sa
mação ou de despsicologização do cogito. Descartes era "psicolo-
gista" para Kant, como este era para Husserl, como o próprio Hus-
serl era para Wittgenstein. Tudo se passa como se esse vai-e-vem
secular entre solipsismo e realismo dogmático viesse encontrar em
Wittgenstein seu ponto final de repouso ou de esgotamento.
Se assim é, se a depuração do sujeito psicológico deixa lu-
gar para esse resíduo inerradicável de subjetividade e de reflexi-
vidade, talvez não seja difícil dissolver as dificuldades que apon-
tei no início desta exposição. Não poderíamos, com efeito, enten-
der desta maneira a expressão: "se não tenho consciência, não
estou pensando nem falando"? Não que a consciência produza
misteriosamente (como numa superabundância genial ou român-
tica, ou por alguma forma de intencionalidade operante) signifi-
cação ou verdade. Talvez porque seja impossível pensar ou falar
significativamente sem se aperceber de que isso é feito (como se a
sombra da reflexão acompanhasse necessariamente a prática do
pensamento e da linguagem).
Mas, se assim é, nossa exposição termina num anticlímax
decepcionante. Depois de sugerir, no texto de Wittgenstein, a pre-
sença de um inquietante paradoxo, não só esvaziamos o parado-
xo, como culminamos na imagem de um Wittgenstein perfeita-
mente clássico e de um pensamento sem drama. Apenas uma nova
e mais radical formulação das clássicas críticas endereçadas a
Descartes por Malebranche, Locke, Espinosa, Kant, Husserl e to-
dos os que vieram depois.
contra os argumentos de Yost e Kalish (cf. C. E. M. Dunlop, op. cit. pp. 81-
102) referentes à continuidade entre sonho de sufocação no asmático e a
consciência desperta posterior, Malcolm é obrigado a dizer: "Their condi-
tion falis in a doubtful border region between fully asleep and not being fully
asleep. One can describe the thing only by means of some makeshift formu-
la as `Their feelings of suffocation are partly dreamt and partly real'. Because
there is a criterion in present behaviour for this feeling of suffocation it does
not belong to the content of a dream, in that pure sense of `dream' that has
its sole criterion the testimony of the awekened person" (Dreaming, p. 99).
O brilho do olhar e o sorriso que distende o rosto (critérios behavioristas?)
não seriam critério da felicidade que se exprime imediatamente no rosto, co-
mo tantas vezes insiste Wittgenstein? O que há de estranho (very queer, in-
deed) neste argumento? É que a artificiosidade da "fórmula paliativa" é atri-
buída aos fenômenos de transição do sonho à vigília (e vice-versa) e não à
artificiosa redistribuição categoria' que transforma a noção comum de so-
nho e que, assim, cria problemas insolúveis de transição. Malcolm chega a
dizer, sempre pensando na transição, que "... the continuity of sensations and
emotions is not very puzzling or interesting when what we are given is a
transition between sleep-like states and states of full awekedness, and where
the criterion of continuiry is more or less similar behaviour in the rwo states"
(ibidem, p. 100).
Visando, como Putnam, à problemática continuidade entre os racio-
cínios de Malcolm e de Wirtgenstein (e para mostrar que o segundo não pre-
cisa enfrentar as dificuldades que o primeiro cria ou inventa), reconheçamos
desde logo que não há nada de heterodoxo no reconhecimento de que os
conceitos têm fronteiras porosas e fluidas. Mas o problemático é reconhecê-
lo, perdendo o que se ganha normalmente com tal reconhecimento, multi-
plicando fronteiras duras e nada porosas, como faz Malcolm, que pulveriza
o "conceito comum" de sonho, marcando rígidas distinções de essência en-
tre sonho, sonambulismo, pesadelo, alucinação, que intuitivamente apresen-
tam um inegável "ar de família". Quando Wittgenstein insiste na porosidade
das fronteiras categoriais, ele o faz justamente para sublinhar a ilusão platô-
nica essencial da filosofia, que se atribui o papel de rigoroso agente alfande-
gário. Acrescentemos aqui, com Wittgenstein, que se não há fenomenologia,
hápr:_à1219:122!fenoilológicos. E tais fenômenos de transição não seriam ca-
sos opicos desses problemas? E não poderia a reflexão, aqui, deixar-se guiar
(como o faz a própria 'fenomenologia) pelo testemunho literário da transi-
ção? Penso aqui, por exemplo, no manuscrito A VI 14 de E. Husserl, "Das
bewusstlose lch — Schlaf — Ohnmacht", editado por J. Linschoten em apên-
dice a seu artigo "Over het Inslapen" (Tifilchri ft voor Pbdosophie, n° 14,
Leuven, 1952, pp. 261-3), onde a idéia husserliana do adormecimento como
"perda de horizonte" é guiada também pela descrição proustiana do sono e
suas oscilações (devo o acesso a esses textos à gentileza de meu amigo José
Henrique Santos, que me passou a tradução que deles fqz).
r
100
U_ naCt15— i,rQjr ento Pr<klí.f../1«."-.)
r
hit94-)rn,941/Ynid !
fluence of an impression, then we will see dream-telling
as it is — a remarkable human phenom no a part of
the natural history of man, something gwen, the foun-
r the concept of dreaming." (ibide% 217)
dpt• el4 Ann0 dfil- rlihnti ( V 7
ixemos um ponto puramente literário ou ettilíStico. Diga-
m os que os textos que Wittgenstein consagra ao sonho são mui-
mos
to mais Lichtenberg's like do que Malcolm's like. Exprimem uma
certa perplexidade jamais extinta (existem problemas fenome-
nológicos...) e não ambicionam jamais a concretizar-se como teo-
ria do sonho. Ao contrário de Malcolm que, sem pretender esta-
belecer essa teoria positivamente (baseando-se essencialmente pe-
lo que o sonho não é), deixa passar doce e sub-repticiamente, por
sob a porta, uma teoria behaviorista da mente. Nem Lichtenberg
nem Wittgenstein parecem buscar um "fundamento natural" para
a..GerrceirtnIrs-orrhs-e-pafecern.indicar-que._014~ncLo sonho
só, é interessante norque marca o limite do conceitualizável. Vol-
emos aos textos. Wittgenstein diz, por exemplo: . .
"Wenn einem unter Tags eia Traum der letzten Nacht ein-
tfãlt, an den man früher im Wachen nie gedachte hatte, so ist das
em n seltsames'Erinnern [.1", ou ainda: "Der Traum eine Halluzi-
nation? — Die Erinnerung an den Traum ist wie die Erinnerung
an eine Halluzination, oder vielmehr: wie die Erinnerung an emn
Wirklisches Erlebnis. Das heisst, man mochte z.B. manchmal sa-
gen: `Ich habe gerade das und das gesehen', so ais hãtte man's
' wirklich gerade gesehen" (Letzte Schriften über die Philosophie
dersychologie,
 Band I, ## 962 e 965). 59 Trata-se de uma atitu-
Oriika
)
PIP"tml
tivessem lido mais do que as duas primeiras meditações. Pois, de
fato, ambos (ou, pelo menos, Ryle) passa diretamente da dimen-
são epistêmica (acesso privilegiado a si mesmo no cogito) para a
dimensão metafísica ou ontológica da relação entre corpo e alma.
Já Merleau-Ponty notava, no que se refere ao segundo tópico, e
um pouco contra Guéroult, a positividade da união entre o cor-
po e a alma, que não está nele instalada como "um nauta em sua
nave" ou como "a ghost in a machine". Docet natura.62
Numa palavra, se há que opor Wittgenstein a Descartes, não
será necessariamente nestes termos. Até pelo contrário. Lembro
aqui, a propósito, a conclusão de um ensaio de Lili Alanen ("Des-
artes's dualism and the philosophy of mind", Révue de Métaphy-
sique et de Morale, n° 3,1989) que converge com o que tentamos
sugerir aqui, até mesmo nas restrições à émpresa de Malcolm:
Paulo, Editora 34, 1996), poderia amparar a aproximação aqui aludida en-
tre Wittgenstein e Kant no que se refere à função da loucura na delimitação
da Razão, convergindo também com meu ensaio supracitado "Erro, ilusão,
loucura".
Para tratar do tema que nos foi proposto, sob um título di-
ferente daquele anunciado anteriormente ("A filosofia e a plura-
lidade das culturas para Wittgenstein"), o que resolvi eu fazer?
Escolhi, para entrar num tema tão vasto ("Cultura: Substantivo
Plural"), limitar-me a um campo particularmente estreito, na es-
perança de ganhar, talvez, alguma precisão, ao preço do sacrifí-
cio voluntário da extensão.
li
m Cf. V.B., TER., p. 46. Ver também o belo comentário desse texto,
feito por Gérard Granel, nas Acta du Colloque Wittgenstein (Co!!. buem. de
Philosophie, junho de 1988), pp. 49-72, sob o título de "Ludwig Wittgens-
teM ou le refus de la couronne".
IV
l'ego, Paris, Vrin, 1965. Deleuze encontra outros modelos para um campo
da consciência, ao mesmo tempo pré-subjetivo e impessoal, no primeiro
capítulo de Matéria e memória de Bergson e no stream of thought de Wil-
liam James (que também retoma o more de Lichtenherg, dizendo que deve-
ríamos poder dizer it thinks como dizemos it rains) e em Nietzsche que via
no cogito apenas o efeito superficial e ilusório da gramática.
II
Ic's Para o conceito de Welibild, cf. Sobre a certeza, # 94: "Mas não
cheguei à minha imagem do mundo 1Weltbild] por convencer-me, a mim
mesmo, de sua correção; nem por ter sido convencido dessa correção. Não
é ela o pano de fundo sobre o qual distingo o verdadeiro do falso". Para o
conceito de Weltanschaiumg, ver o # 422: "Então, estou tentando dizer algo,
aqui, atropelado (enviezado) por uma espécie de Weltanschattung". Note-
se que as traduções deste parágrafo, para o inglês como para o francês, con-
servam a expressão alemã Weltanscharamg, enquanto traduzem a palavra
Weltbild respectivamente por "picture of the world" e "image du monde".
Traduções problemáticas, sem um comentário adequado. De qualquer ma-
neira, o que se deve sublinhar é que, se eu posso libertar-me de uma Wel-
tanschauzeng, que desvia minha reflexão e se infiltra (deformando-o) em meu
si mesma nas regras dos "jogos de linguagem". Para usar uma metáfora mais
ousada: vida e linguagem são os "dois" lados de um anel de Moebius.
III Lembremos, entre outros, o exemplo do esquema pragmatista e
historicista proposto por Rorty em Philosophy and lhe nzirror Nature
(1979), que freqüentes vezes identifica os estilos de Wittgenstein, Dewey e
Heidegger (o Heidegger, é claro, da "História do Ser ou da verdade").
112 Sobre Kierkegaard e Deleuze, cf., acima, a nota 103. Sobre Win-
genstein e Kierkegaard, ver Vermischte Bemerkungen, T.E.R., ed. bilíngüe
com trad. francesa (Remarques mêlées) de Gérard Granel, pp. 42-3, 50 e 66.
Kierkegaard é também mencionado em Ludwig Wittgenstein and the Vien-
ne Circle: conversations recorded by Friedrich Waisman, ed. B. F. McGuin-
ness, Oxford, Blackwell, 1979, notas de 30 de dezembro de 1929.
III
117 Cf. o prefácio de Foucault à tradução de Anti Édipo, feira por Ro-
-
119 Para definir o plano de imanência, Deleuze lança mão dessa expres-
são escolástica. Ela significa um ser que contém em si próprio a razão de seu
ser. Abaleitas é seu antônimo: significa um ser cuja existência depende da
existência de outro ser.
Caro Bento,
Recebi seus dois artigos, mas apenas agora pude terminar
os comentários, que tive vontade e prazer de redigir, porque, en-
tre o recebimento e o término, mudei-me de casa e, com isso, foi-
se o tempo.
Gostei muito de seus dois textos, não por concordar plena-
mente com eles, mas, pelo contrário e em primeiro lugar, por não
concordar com pontos que me parecem bastante pertinentes e
devem ser levantados, como você o fez — o que me deu ocasião,
vontade e prazer, para alongar-me nos comentários; em segundo
lugar, porque seus textos são um belo exemplo de que quando se
faz bem história da filosofia, faz-se também filosofia.
Uma vez que os temas que gostaria de comentar são muito
amplos, evocando um grande número de conceitos, assim como
uma argumentação mais ou menos longa, não vou proceder ana-
liticamente, mas tematicamente, i.e., desenvolvendo uma argu-
mentação — talvez longa demais, temo — em torno do tema da
escolha ética que faz Wittgenstein para, em seguida, aproveitan-
do o que terá sido dito, arrematar em nova argumentação em tor-
no do tema plano de imanência/We/tbild.
Inicio com o prefácio das Philosophische Bemerkungen: o
livro foi escrito para quem tem "afinidade com o espírito no qual
foi escrito". Essa passagem indica que, para Wittgenstein, o lei-
tor compartilha os mesmos valores, sendo sensível à argumenta-
ção terapêutica; e isso significa, em particular, que está disposto
a mudar sua "forma de ver", a duvidar e criticar as imagens pre-
sentes em suas formas de expressão próprias, disposto, inclusive,
PS.:
Uma vez que retomei o texto para corrigir os erros, sou pe-
rigosamente tentado a prosseguir — mas, não tema, deixo-me
persuadir a ser mais do que breve.
Onde, então, situar a doença do pensamento, segundo Wit-
tgenstein? — Ou melhor, se o dogmatismo da Weltanscbauung
não está nem na Lebensforni . e nem no Weltbild, onde estará?
Parece-me que esse dogmatismo é um processo desencadeado pela
atribuição de necessidade — qualquer que seja a causa empírica
desse ato ou sua motivação. Isso não implica, entretanto, que toda
atribuição de necessidade desencadeie o mesmo processo. Onde
situar, então, e como caracterizar a forma particular de uma tal
atribuição que conduz ao dogmatismo? Wittgenstein nos respon-
de: quando esquecemos, ou deixamos de perceber aquilo que nós
próprios fazemos com as palavras. Nesses casos, somos iludidos
pela imagem da referência das palavras — o modelo agostiniano
da linguagem — seguindo-se, daí, todas as conseqüências que, p.
ex., as Philosopbische Untersuchungen exploram. Ora, esse mes-
mo processo ocorre, ocorreu e ocorrerá, qualquer que seja a for-
ma de vida ou sociabilidade, ainda que sejam outras as imagens
a respeito do funcionamento das palavras. Por quê?
Fui persuadido a ser mais do que breve. Cumpro.
li
1982, p. 167.
138 The presocratic philosophers, de Jonathan Barnes, Londres, Rout-
ledge & Kegan Paul, 2' ed. revista, 1982; e The sophists, de W. K. C. Guth-
rie, Cambridge Univ. Press, 1971, trad. francesa, Paris, Payot, 1976.
139 Como no título da peça de Pirandello: Cosi è (si vi pare).
147 Jean Pierre Cometi (ed.), bre Rorty: le pragmatisme et ses consé-
quences, Paris, Éd. de l'Éclat, 1992.
III
150 Cf. o belo comentário desse texto de Para além do Bem e do Ma/
por Rubens Rodrigues Torres Filho, em Ensaios de filosofia ilustrada, São
Paulo, Brasiliense, 1987, pp. 30-3.
IV
cendo que McCloskey (bem inspirado por Rorty) recorre aos instrumentos
adequados em sua cruzada contra o positivismo que ainda obscurece a idéia
que os economistas norte-americanos têm de sua prática teórica, apontamos
para o perigo de jogar o bebê com a água do banho. Nossa pergunta, na
ocasião, era: "estamos nós condenados a seguir os passos de Dewey, pelo
simples fato de recusar a megalomania do fundacionalismo?". Toda a episte-
mologia está morta já que morreram o positivismo e a unified science? Será
que a descrição da epistemologia, apresentada em Philosophy and the mirror
of Nature é razoável? Ser antipositivista não significa necessariamente ser
rortiano. Não ser rortiano, no caso, significa propor ou aceitar uma arqueo-
logia alternativa do modernismo, ou aceitar a idéia, no entanto sensata, de
que, p. ex., o ceticismo humeano não é supra ou desumano, como fica claro
no ensaio de Gérard Lebrun sobre 1-lume — "La bounde de Charing Cross",
Revista Manuscrito, abril de 1978.
154 Dialética negativa, cf. a trad. francesa, Paris, Payot, 1978, p. 35.
"' A entrevista sobre Gilles Deleuze foi parcialmente publicada pelo su-
plemento Mais! da Folha de S. Paulo em 2 de junho de 1996.
"-
de uma pequena antologia, publicada sob esse título na
coleção Textes et Documents Philosophiques, dirigida por Georges Cangui-
lhem, Paris, Hachette, 1955.
■
250 altaget ad Jr. )
—4 4- imeiv~G~ at9 )
pedregulho), de William James (o do arcam of thought dos Princi-
pies, que lamentava não poder dizer em inglês, como seria neces-
sário, it thinks, como se diz it rains, já que a gramática do enun-
ciado I think cria a ilusão da substancialidade do cogito). W c. 2az
Nietzsche que via na identidade do cogito ou do sujeito funda-
dor, um efeito, apenas, de ilusao
158 Que seja dito, a favor de Heidegger, que talvez não fosse Bergson
seu alvo principal, mas os seus rivais, filósofos do nazismo, que davam à
filosofia um cunho "naturalista" ou "biologista", indispensável à defesa da
tese da superioridade racial dos arianos.
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I SBN
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porânea da razão e de avaliar como, em Sobre a
certeza, ele reelabora os argumentos da loucura
e do sonho que limitam o alcance da razão.
Nesta investigação que se acompanha, no
primeiro ensaio, de uma leitura crítica do livro
de José Ardmr Gianotti Apresentação do mundo,
encontramos o outro (ou talvez o mesmo) fio
condutor do livro: a questão do ceticismo e do
relativismo. "Wittgenstein: cultura e valor" e
"O relativismo como contraponto" exploram a
"saída" da metafísica pelo relativismo condena-
do a permanecer assombrado pelo fundacionis-
mo do qual tenra fugir. Trata-se de recusar o re-
lativismo sem voltar a uma nova versão do fun-
dacionismo gerada pela confusão entre razoá-
vel e racional que as leituras pragmático-trans-
cendentais de Wirtgentsein operam. Mas se a vi-
são perspícua e sinóptica de Wittgenstein é um
perspectivismo não relativista e se, fazendo com
que a filosofia se torne visão de seu próprio li-
mite, ela abre "o espaço caótico da ética, da arte
e da religião", é preciso explorar a articulação
entre filosofia e vida nesse aspecto. É o que fax
o autor no ensaio "Plano de imanência e vida",
onde tenta esclarecer esta noção deleuziana na
sua conexão com as de "conceito" e de "caos",
contrapondo-as à idéia wittgensteiniana de "sis-
tema de regras".
Bento Prado Jr. abre esta e outras das suas
hipóteses de leitura ao diálogo crítico com Arley
Ramos Moreno, Sérgio Cardoso e Paulo Eduar-
do Ai-antes, cujos comentários encontram-se ao
final de três dos seis ensaios. Dessa forma, esta
coletânea, em que o último capítulo, "Bergson,
110 anos depois", parece fechar um percurso, é,
na verdade, uma entrada das mais abertas que
se pode esperar à atividade filosófica.