De Profecia e Inquisição
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De Profecia
e Inquisição
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SUMÁRIO
Nota editorial
p. IX
Prefácio
Vieira e o Reino deste Mundo, por Alfredo Bosi -- p. XI
DE PROFECIA
I
Defesa do livro intitulado QUINTO IMPÉRIO, que é a apologia do
livro CLAVIS PROPHETARUM, e respostas das proposições
censuradas pelos senhores inquisidores: dadas pelo
Padre Antônio Vieira, estando recluso nos cárceres
do Santo Ofício de Coimbra -- p. 3
II
Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo,
primeira e segunda vida de El-Rei D. João o quarto. Escritas por
GONSALIANES BANDARRA, e comentadas pelo
Padre Antônio Vieira da Companhia de Jesus, e remetidas
pelo dito ao Bispo do Japão, o Padre André Fernandes -- p. 63
III
Discurso em que se prova a vinda do
Senhor Rei D. Sebastião -- p. 111
sair
IV
Reflexões sobre o papel intitulado Notícias Recônditas
do modo de proceder do Santo Ofício com os seus presos:
pelo Padre Antônio Vieira -- p. 173
VI
Sentença que no Tribunal do Santo Ofício de
Coimbra se leu ao Padre Antônio Vieira em
23 de dezembro de 1667 -- p. 231
VII
Breve de Isenção das Inquisições de Portugal e mais Reinos,
que alcançou em Roma a seu favor o Padre Antônio Vieira
pelo Papa Clemente X -- p. 273
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Prefácio
Alfredo Bosi
(1) Pe. Antônio Vieira, Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício. Introdução e
notas do Prof. Hernani Cidade. Tomos I e II. Salvador, Livraria Progresso
Ed., 1957.
pontuais cada vez mais apertados, aos quais o réu responde esgrimindo a sua
retórica temerária que se engenha em tornar crível o impossível, provável o apenas
possível, e absolutamente certo o apenas provável. Mas no fundo dessa arte in-
genuamente sutil pulsava um desejo que é belo e é nobre ainda e sempre: o sonho
de um reino de justiça que se realizaria cá na Terra, neste nosso mundo, e não
tão-somente no outro.
Pelos autos vê-se o quanto essa utopia do réu suscitou as iras dos
seus juízes. O fato é que Vieira atraíra contra si um concurso de motivações
ameaçadoras. O anti-semitismo da Inquisição, de velas enfunadas nos Seiscentos,
vislumbrou, com a perspicácia feroz dos perseguidores, traços judaizantes naquelas
elucubrações proféticas. Era, aliás, notória a posição do nosso jesuíta em favor dos
"homens de nação" desde quando interviera junto ao rei pedindo-lhe que fossem
bem acolhidos em Portugal os judeus dispersos pela Europa. Deles poderiam vir
recursos para financiar a Companhia das Índias Ocidentais projetada pelo mesmo
Vieira. Esse é o teor da sua "proposta feita a El-Rei D. João IV, em que se lhe
representavam o miserável estado do reino e as necessidades que tinha de admitir
os judeus mercadores que andavam por diversas partes da Europa".
Havia ainda outros motivos que explicariam a animosidade do
Santo Ofício: a antipatia que os dominicanos nutriam pela Companhia de Jesus
e, last but not least, a vaidade literária de um de seus pregadores, Frei Domin-
gos de Santo Tomás, ferida pelas setas do nosso orador, que traçara a sua carica-
tura no Sermão da Sexagésima.
Voltemos aos autos. Vieira exalta as trovas do Bandarra, er-
guendo-se à altura das profecias de Isaías e Daniel e dos versos dos Salmos e dos
Cantares. Não contente com essa mostra de credulidade, interpreta a figura do
Encoberto como alusão a D. João IV. Sucede que este rei, seu protetor, morrera
em 1656. Vieira não hesitara então em escrever à rainha viúva uma carta anun-
ciando a próxima ressurreição de D. João IV, o qual venceria os
maometanos e instauraria o Quinto Império, enfim, o reino de paz profeti-
zado nas Escrituras.
Vieira operara uma substituição tática, pois o Encoberto era para
os primeiros crentes do Bandarra ninguém menos que D. Sebastião, o jovem rei
que desaparecera nos areais de Alcácer-Quibir. A este sim, o povo, desconsolado
com o desastre nacional, atribuía poderes messiânicos, esperanças tenazes que, pas-
sados três séculos, o nosso Euclides da Cunha ainda ouviria da boca dos sertane-
jos reunidos em Canudos em torno do Conselheiro.
O leitor culto dos nossos dias talvez pasme ao perceber o candor
com que um homem da estatura de Vieira dissertava sobre a ressurreição próxima
de um rei morto havia pouco. No entanto, esse homem é o mesmo a quem
Cristina da Suécia, discípula de Descartes, escolheria para diretor espiritual nos
seus anos romanos. E mais se espantará quando ler, na Defesa, a justificação do
réu, que declara ter feito uma diligência (diríamos hoje uma pesquisa), a qual
"sem ser tão esquisita como eu quisera, nem estar acabada, já tinha descoberto,
nesses 120 últimos anos, 95 mortos ressuscitados; pois assim como ressuscitaram
95, que muito seria que fossem 96?"
O monarca redivivo fundaria o Quinto Império que duraria mil
anos, até que sobreviesse o dia do Juízo. Aqui confluem o traço mais arcaico e o
mais atual do milenarismo. Vieira imagina um tempo que nunca existiu a não
ser nas dobras de um desejo coletivo de felicidade. Eram saudades do futuro as que
ditavam as suas esperanças.
Os inquisidores exigiram que ele falasse do reino somente em termos
metafóricos. Vieira sustentou quanto pôde o sentido literal: o reino se erguerá na
terra dos homens. Ao cabo de dois anos, abalado pela informação de que o papa
condenara as suas proposições, retratou-se. Mesmo assim, foi proibido de pregar em
Portugal. Saiu da pátria, foi viver em Roma, onde Clemente X lhe concedeu hon-
rarias e um salvo-conduto, o Breve, que o livraria de novas arremetidas da In-
quisição lusitana. No fim da vida, já octogenário, no refúgio baiano da Quinta do
Tanque, Vieira continuou a escrever, contra tudo e contra todos, a Clavis
Prophetarum.
O que é a profecia
Esta é apenas uma primeira leitura do que se pode considerar o
núcleo do processo: as profecias do Bandarra foram acolhidas por Vieira segundo
uma perspectiva messiânica, mas já não sebastianista em senso estrito, porque
adaptada à espera da ressurreição de D. João IV, o Restaurador.
os homens da ignorância no que toca aos futuros contingentes, para que o homem
"não atribua a causas naturais (e muito menos ao acaso) os efeitos que vêm sen-
tenciados como castigos por sua justiça e ordenados para mais altos e ocultos fins
por sua Providência" 2. Os profetas seriam os porta-vozes por excelência desses
desígnios divinos que, em parte, já se realizaram na História da Salvação, em
parte ainda vão realizar-se.
Se o evento profetizado como, por exemplo, a queda de um im-
pério, fosse universalmente previsível e tido por natural e necessário (do
mesmo modo que todos sabem que é fatal a seqüência dia-noite), ele não pre-
cisaria ser objeto de revelação: já estaria inscrito na expectativa do comum dos
mortais. Mas, na medida em que o evento profetizado só pode ser previsto me-
diante o anúncio que Deus faz a alguns homens excepcionais, a sua necessi-
dade não aparece como evidente a todos: a crença na sua realização exige fé
na palavra do profeta. Daí vem o desencontro e até mesmo o conflito entre o
profeta e os seus ouvintes incrédulos para os quais só se pode prever com certeza o
que já está "naturalmente" predeterminado.
Quanto aos crentes, e só para estes, a profecia deixa de ser predição
de um evento contingente, e passa a ser fatum, necessidade, pois foi proferida por
um eleito de Deus. Nabî, em hebraico; prophetés, em grego: aquele que fala em
lugar de Deus.
Em suma, crer na profecia, antes da sua realização, é sempre um
ato de fé. Vieira está ciente dessa condição subjetiva da crença, e procura confortá-
la com as lições da História, seguindo o preceito agostiniano de que o novo está
latente no antigo, e o antigo se patenteia no novo. Quod in Vetere Testa-
mento latet, in Novo patet (De spiritu et littera, 7). A vigência de uma re-
lação estreita dos sucessos atuais com a profecia antiga é afirmada e reiterada pelos
evangelistas que a enunciam por meio da fórmula "estas coisas se fizeram para
que se cumprissem as Escrituras" ou de suas variantes.
As Trovas do Bandarra estariam confirmadas pelos sucessos da
Restauração portuguesa e pelas ações patrióticas de D. João IV: provas de que a
Figura e profecia
tura de quatro impérios sucessivos afinal destruídos por uma pedra que encheria
toda a Terra -- alegoria do último e eterno reino de justiça e paz (Dan 2, 44).
Coração do processo narrativo, a figura ora traz à tona experiências
submersas no passado, sendo então objeto de reconhecimento da memória (é o que
faz o analista na anamnese dos fantasmas oníricos do paciente); ora é movida pelo
desejo, recebendo o estatuto de figuração de coisas e tempos futuros. A figura, neste
caso, descola-se da sua forma aparentemente estática e mostra a sua verdadeira
face de conhecimento antecipado, narrativa dos futuros, visão, profecia.
Se o intérprete der à figura um significado unívoco e o fixar como o
único legítimo, a profecia será lida como alegoria. Ou seja, um "outro discurso",
que, embora individual, pode cristalizar um desejo comunitário, uma utopia so-
cial. A figura que parecia apenas imagem produzida em sonhos tende, na
economia da vontade coletiva, a ser prognóstico infalível. Dom Sebastião voltará.
Em face do sinal (antes que serrem quarenta, erguerse ha gran tor-
menta), os leitores e os ouvintes produzem "wishful thinking", pensamento dese-
joso.
Há uma ponte que comunica a figura enunciada com o evento que
deverá um dia acontecer. Entre os pólos -- a figura plasmada no pretérito e o seu
cumprimento no futuro -- vigoram o desejo e a consciência atual. É o olhar pre-
sente que busca a palavra passada servindo-lhe de mediador e tradutor, mantendo-
a viva. A memória social, como bem a analisou Maurice Halbwachs, opera sob a
ação da percepção e da vontade, aqui e agora. É a história contemporânea do in-
térprete com os seus ideais e valores, as suas nostalgias e utopias, que escava e traz
à luz o passado forjando elos de coerência interna sem os quais a profecia apare-
ceria como vana verba, delírio da imaginação.
A condição de possibilidade da profecia reside no fato de o tempo
ter, para os seus crentes, um sentido.
avança: novos acontecimentos podem descobrir uma verdade que o passado enco-
bria.
Um leitor de Vieira, dos mais escrupulosos, José Van Den Besselaar,
chamou a atenção para o valor que se dá, na História do Futuro, à passagem
dos anos e, daí, à boa fortuna dos comentadores modernos das profecias. Teriam
estes melhores condições de ver o que os Antigos não puderam conhecer3.
É um discurso raro, atípico, por isso significativo, de valorização do
novo e de um tempo que se adianta já não mais em direção à morte dos indivíduos
e à entropia das nações. Não mais o famigerado "tempo roedor das coisas",
"tempo minaz", mas um tempo que procede no sentido da sua plenitude.
Examinem-se de perto as metáforas do lume da profecia e do lume
da razão com que Vieira nomeia o entendimento progressivo dos desígnios da
Providência. No capítulo X "mostra-se que o melhor comentador da profecia
é o tempo". Os Antigos, posto que tivessem melhor candeia (ainda a deferên-
cia ao princípio da autoridade), não poderiam ter enxergado os futuros tão
claramente quanto os modernos: a estes foi dada a vantagem de estarem mais
próximos do cumprimento das promessas, "porque a candeia de mais perto
alumeia melhor".
Os profetas do Velho Testamento anunciaram a Cristo, sim, mas
"o Batista mostrou-o melhor, porque era candeia de mais perto. Os outros diziam:
‘Há de vir’; e ele disse: ‘Este é’."
E neste passo, munindo-se das cautelas necessárias a um religioso que
deve enfrentar a suspicácia inquisitorial, Vieira aponta as novidades espantosas que os
tempos recentes trouxeram à humanidade. As candeias de mais perto também
ajudaram os comentadores a ver nas profecias o que os Antigos não teriam podido se-
quer vislumbrar. O cabo Não foi dobrado, dobrado foi o Bojador. O mar oceano de
tenebrosa memória foi cortado por naus lusitanas. O nauta Gil Eanes "quebrou
aquele antiqüíssimo encantamento e mostrou que também o não navegado era
navegável". E Vieira não deixa de evocar os camonianos mares nunca dantes
navegados.
templo trivial de Cátulo. Tu, Roma, lias Ênio durante a vida de Virgílio, e
Homero foi metido a ridículo pelos seus contemporâneos." 4
Os escritores medievais que comentaram as profecias bíblicas antes
dos descobrimentos portugueses não podiam saber que a Terra era esférica, jul-
gavam fantasiosa qualquer alusão aos antípodas e, naturalmente, ignoravam a
existência do Novo Mundo. Mas o conhecimento cresceu com o tempo e junto à
nova ciência da Terra (a nova astronomia, a nova cosmografia) cresceu o entendi-
mento das Escrituras.
Não me detenho aqui, por brevidade, nas engenhosas leituras
que Vieira faz dos Cantares e do Livro de Isaías, provando que nesses textos
já estavam figuradas as maravilhas da China, do Japão e das Américas, in-
cluindo as do Maranhão e das Amazonas. Mais interessantes me parecem os
trechos da História do Futuro em que Vieira defende o caráter progressivo
do conhecimento, combinando a sua fé na História da Salvação com as
evidências do novo saber que os descobrimentos e a Renascença trouxeram ao
homem europeu.
As imagens, verdadeiras comparações, são a matéria-prima do seu
discurso probatório. O pigmeu montado às costas do gigante, embora tão menor do
que este, consegue ver melhor e mais longe. O último degrau da escada, mesmo que
seja mais estreito que todos os outros, permite a quem nele subir enxergar o que
não enxergou quem escalou só até o penúltimo. Os cavadores da vinha que, na
parábola evangélica, chegaram na undécima hora, receberam o mesmo salário dos
que já haviam trabalhado o dia inteiro; embora últimos, foram tratados como
primeiros. "Quantas vezes os que trabalham no descobrimento de algum tesouro
cavam por muitos dias, meses e anos, sem acharem o que buscam; e depois de estes
cansados e desesperados, sucede vir um mais venturoso, que, descendo sem trabalho
ao profundo da mesma cova, e cavando alguma cousa de novo, descobre a poucas
enxadadas o tesouro, e logra o fruto dos trabalhos e suores dos primeiros! Assim
acontece no tesouro das profecias: cavaram uns, e cavaram outros, e cansaram-se
todos; e o cabo descobre o tesouro, quase sem trabalho, aquele último para quem
(4) Trata-se de um dos epigramas de Marcial (V, 10). Transcrevi acima a versão
de Besselaar, que consta em nota ao capítulo nono da História do Futuro.
estava guardada tamanha ventura, a qual sempre é do último." Vê-se aqui, pela
evidência das analogias, o quanto urgia a Vieira inverter o argumento tradi-
cional que dá prioridade aos Antigos! Para tanto, era preciso encarecer "o bene-
fício do tempo", pelo qual "as profecias se vão descobrindo ordenada e sucessi-
vamente aos mesmos passos -- ou mais vagarosos, ou mais apressados -- com que se
vão seguindo e variando os tempos". E enfaticamente: "O tempo foi o que inter-
pretou a profecia, e não Daniel".
Apaixonado pelo tema e conhecendo bem o poder de fogo do ar-
gumento contrário, Vieira se põe à caça de exemplos probantes da sua tese
arriscando-se a dizer, pura e simplesmente, que o novo é superior ao antigo.
O sol veio depois das trevas, o homem depois dos animais, o Novo Testa-
mento depois do Velho, o cristianismo depois do paganismo. No plano do
conhecimento, se a memória nos bastasse, por que Deus nos teria dado o en-
tendimento? Saber só o que os Antigos souberam, não é saber, é lembrar-se --
frase de Sêneca citada para ressaltar a necessidade de ir além do culto do pas-
sado. Os eruditos, como certos alemães (que têm a cabeça virada para as
costas, no dizer sarcástico dos italianos), só se ocupam com o passado "sem
descobrir nem inventar cousa alguma". E neste século dezessete e ibérico de
tesourizadores, de "adoradores ou aduladores da Antigüidade", não deixa de
ser prova de inconformismo dizer que muitos doutores se restringem a "es-
tudar o já estudado, escrever o já escrito, tomando a água no regato por não se
cansarem de a ir buscar à fonte. E estes mais são copiadores de livros que
autores, acrescentando às opiniões número, mas não peso" (Repres. 2a., § 11).
"Mas querer forçosamente que nos atemos em tudo aos passados, é querer atar os
vivos aos mortos" (História, XI).
Segundo esse novo modelo, os tempos não só passam como também
crescem na direção da plenitude. "Incrementa temporis", diz São Gregório, e
Vieira o alega para mostrar que o conhecimento do mundo e dos desígnios de
Deus se amplia com a passagem dos séculos. E o mesmo Aristóteles, em que pese
ao magister dixit, supôs que os céus fossem sólidos e incorruptíveis e, no entanto,
a "nova opinião... tão bem recebida em nossos dias" os considera fluidos. Teria
Vieira notícia do processo movido pela Inquisição a Galileu, fazia apenas trinta
anos, quando este ousara contraditar a astronomia de Aristóteles? Creio que não,
porque, do contrário, não teria lançado mão de exemplo tão perigoso na sua
própria defesa perante o Tribunal do Santo Ofício.
De todo modo, a concepção de tempo que sai dos escritos de Vieira
é mais do que simplesmente linear. Diria que é cumulativa e ascensional, pois
nela o presente traz no bojo todo o passado, enriquecendo-o com os achamentos do
novo; este, por seu turno, espera outros e melhores acréscimos com o advento do fu-
turo. Concepção sem dúvida progressiva e (arriscaria dizer) progressista.
O crescimento do saber universal se fez com os descobrimentos
d’além-mar, glória dos portugueses. Na visada teleológica de Vieira, o sentido
deste novo saber se inscreve na rota da Igreja enquanto corpo místico que igual-
mente cresce com os tempos no rumo da plenitude final.
A comparação por figuras se faz inicialmente com a imagem do rio.
"O rio que nasce da fonte, quanto mais caminha e mais se aparta de seu
princípio, tanto mais se engrossa, porque vai recebendo novas correntes e novas
águas, com que se faz mais largo, mais profundo, mais caudaloso" (História,
XII). A imaginação de Vieira não pára aí. Se as águas do rio crescem com o
tempo, também se dilata pouco a pouco a luz do dia, começando pelo raiar da
aurora, figurada belamente nos cânticos de Salomão (quae est ista, quae pro-
greditur quasi Aurora consurgens?) e admirada no seu iluminar gradativo
até os fulgores do meio-dia, de claridade em claridade.
Se assim é, inverte-se engenhosamente o sentido mesmo das
palavras: o novo, por vir último e tarde, é verdadeiramente o antigo, pois tem a
idade dos séculos; e o antigo, por ter vindo primeiro, é verdadeiramente mais novo e
tenro como a infância em relação à idade madura...
Aplicando ao curso dos tempos a sua esperança no advento do
Quinto Império, Vieira divide a História da Salvação em três etapas, nas quais
já se vislumbraram traços da doutrina das Três Eras do Abade Joaquim de
Flora5:
I -- o Reino de Cristo incoado -- tempos do judaísmo antigo;
(5) Ver, a respeito, as observações judiciosas que faz Maria Leonor Carvalhão
Buescu na sua introdução à História do Futuro (Lisboa, Imprensa Nacional,
1982, pp. 17-21).
A s profecias do Bandarra
E depois de acordado,
já dá brado;
já assoma a sua bandeira
contra a Grifa parideira,
langomeira,
que taes prados tem gostado."
Verso por verso:
Já o tempo dezejado he chegado. [Vieira aqui vai recapitu-
lando a história dinástica de Portugal desde o reinado de D. João III, quando
Bandarra escreveu as suas profecias, até os anos da Restauração. Note-se, linhas
adiante, a menção à inoportunidade da empresa africana de D. Sebastião, levada
a efeito "em tempo tão incompetente"; o que revela um Vieira capaz de guardar
distância do sebastianismo stricto sensu.]
"Considere-se bem o tempo em que foram escritos estes dous versos,
e ver-se-há o muito que dizem, e o muito que supõem, tudo futuro, e não imagi-
nado, nem ainda imaginável. Foram escritos os ditos dous versos no tempo D’el-
Rei D. João III, sendo vivo o Príncipe D. João, seu filho, e dous ou três irmãos do
mesmo Rei, gozando o Reino, em paz e abundância, as felicidades naturais da
terra própria e as dos mundos estranhos e novos, de que El-Rei Dom Manuel, seu
Pai, o deixara também herdado. E neste mesmo tempo, tão feliz e tanto para esti-
mar, e não desejar outro, diz Bandarra que haveria outro tempo desejado, su-
pondo o desejo deste tempo todas aquelas mudanças e voltas da fortuna, que em
mais de cem anos seguintes padeceu Portugal; sendo necessário para isso que D’el-
Rei D. João o 3º se não lograsse mais que o Príncipe D. João; que esse acabasse
na flor de sua idade, não deixando mais que o póstumo D. Sebastião; que o
mesmo Rei D. Sebastião empreendesse em tempo tão incompetente uma tal jor-
nada, e que se perdesse nela; que o Infante D. Duarte não tivesse herdeiro varão;
que El-Rei D. Henrique não nomeasse sucessor; que o Bastardo do Infante D.
Luís não fosse seguido; que o direito da senhora D. Catarina fosse oprimido de
dentro com a inveja e de fora com as armas; e que a Imperatriz Dona Isabel,
para complemento e instrumento de toda esta tragédia, tivesse por filho a Filipe
segundo. E, finalmente, que debaixo do Império de Castela, sendo tão poderoso, se
perdesse a Índia e o Brasil; sendo tão político, se avexasse e descontentasse a no-
breza; e sendo tão rico e opulento, lhe fosse necessário carregar de tão imoderados
tributos o Povo que foram as últimas e mais apertadas disposições dos ânimos,
para que todos desejassem, e suspirassem por outro tempo e não soubessem quando
já havia de acabar de chegar. E o que muito particularmente se deve notar aqui é
que estes mesmos dous versos eram um dos principais motivos que muito ani-
mavam os ditos desejos; porque na confiança deles se esperava que o tempo dese-
jado havia de chegar sem dúvida, como chegou."
Segundo firmal assenta. "Firmal é o decreto firme e imutável
de Deus, que tinha determinado e assentado o tempo em que havia de chegar o
termo e cumprimento dos desejos." E declarando qual este termo e este tempo
havia de ser, diz:
Rei novo. E finalmente foi Rei levantado, porque não foi ele o que buscou o
Reino, e se introduziu, mas o Reino foi o que o buscou a ele, e o levantou."
Já dá brado. "E foi brado que não só se ouviu em Espanha e
em Europa, senão em todo o mundo; em umas partes com horros, em outras
com aplauso (conforme os interesses de amigos e inimigos) e com admiração em
todas."
Já assoma a sua bandeira contra a Grifa parideira. "Depois do
Rei novo levantado, segue-se nesta narração do futuro, como se fora história do
passado, o que também logo se seguiu; que foi porem-se em campo as bandeiras e
armas de Portugal contra Castela; a qual chama Grifa parideira com duas
notáveis propriedades: o grifo é um animal composto de águia e leão, porque tem o
corpo e garras de leão, e o bico e asas de águia, e esta mesma é a composição das
armas de Castela pelos leões de Espanha e águias de Áustria. E porque Castela tem
a terminação feminina, por isso lhe chamou Grifa e não Grifo. O epíteto de
parideira alude à condição ou fortuna daquela Monarquia, que por casamentos e her-
anças ajuntou a si tantos Reinos e Estados e se fez tão grande, por onde se disse dela:
Bella gerant alii, tu, feliz Austria, nube:
Quae Mavors aliis dat, tibi regna Venus.
E vinha o epíteto muito ao intento do que Bandarra contava ou
predizia, porque pelo casamento da Princesa D. Isabel com Carlos Quinto, e por
ela parir a Filipe, veio a Grifa a ser senhora de Portugal."
Langomeira, que taes prados tem gostado. "A palavra
langomeira é própria da terra de Bandarra, e daquela Província, e significa
gulosa ou lambisqueira, em que alude à ambição de Castela em adquirir e
ajuntar estados. E conforme ao mesmo nome de langomeira e gulosa, diz
que teria gostado os prados de Portugal, nas quais palavras supõem e declara
duas cousas, ambas mui dificultosas de crer nem presumir: uma que sucedeu dali a
quarenta anos, que foi senhorear-se Castela e Portugal; outra que sucedeu sessenta
anos depois dos quarenta que foi tornar Portugal a livrar-se das mãos de Castela,
sendo as garras da Grifa de tão boa presa, e os prados tão gostosos."
Saya, saya esse Infante
bem andante;
o seu nome he Dom João.
como deve ponderar, que, para se mudar João em foão, havia a esperança e
opinião dos sebastianistas, a cujo propósito não fazia aquele nome."
Interrompo aqui as transcrições, que já vão longas. E julgo opor-
tuno insistir na distinção que faz Vieira entre a sua leitura do Bandarra, toda
centrada na figura de D. João IV (tanto o Restaurador quanto o Esperado do
Quinto Império), e "a opinião dos sebastianistas" que, em mais de uma pas-
sagem, ele reelabora substituindo o nome do infortunado rei.
Outros acertos do Bandarra são expostos nos parágrafos 91, 100-
101 e 103-107, que em seguida resumo e comento em razão de seu ponderável in-
teresse histórico:
Parágrafo 91 -- Vieira decifra a expressão "terras prezadas" como
alusivas à Índia e ao Brasil, colônias que logo reconheceram a nova situação por-
tuguesa enviando a Lisboa embaixadores deferentes a D. João IV.
Parágrafos 100-101 -- Vieira mostra a exata correspondência en-
tre a trova cujo primeiro verso é Comendadores, Prelados, e a formação da
Junta dos Três Estados na qual acordaram entre si nobreza, clero e povo em pa-
gar os tributos para sustentar o Reino contra as investidas de Castela.
Parágrafos 103-107 -- Vieira comenta as coincidências entre certas
expressões do Bandarra e fatos acontecidos antes da Restauração: trinta dous
anos & meio valeria sessenta e um anos de dominação castelhana, pois o cardeal
D. Henrique morreu em janeiro de 1580 e D. João IV foi aclamado em dezem-
bro de 1640; averá sinaes na terra prediz o aparecimento do "cometa funesto"
que varreu o céu pouco antes da morte de D. Sebastião; e a "nova estrela", que
surgiu no Serpentário no ano em que nasceu D. João, tendo sido notada por Ke-
plero [sic]... E outros prodígios aparecidos no céu, na terra e no mar.
das expressões mais vivas dessa expectativa: "Que em seus dias floresça a justiça e
muita paz até o fim das luas; que ele domine de mar a mar, desde o rio até os
confins da Terra" 6.
Não caberia aqui sequer mencionar as múltiplas encarnações da figura
do Messias-Rei que a História registra dentro e fora do contexto judaico. Recomendo
uma obra admirável pela sua erudição e nitidez expositiva, Le messianisme royal,
de J. Coppens 7. O autor acompanha a formação do messianismo real judaico
desde o oráculo de Nathan e a unção de Davi até às profecias canônicas e às suas
versões contemporâneas do advento de Cristo. Os intérpretes dessa longa tradição
messiânica ora a reduzem a uma ideologia nacional-judaica, ora a elevam a um
nível escatológico universal que confina com a expectativa dos primeiros cristãos.
Do mesmo autor é o ensaio de síntese "L’espérance messianique, ses origines et son
développement", que admite uma justaposição do "rei nacional" e do "imperador
universal" em várias passagens das Escrituras8.
Essa figura recorrente do Messias-Rei (com a qual o Jesus dos
Evangelhos, enquanto "Filho do Homem", não quis identificar-se) reaparece nos
milenarismos medievais, em Bandarra, nos sebastianistas e em Vieira, que a pro-
jetou na história vindoura de Portugal e do mundo.
Nas representações, porém, e na História do Futuro, Vieira jamais
confunde na mesma pessoa o Imperador do Quinto Império, que seria um rei português,
e o Messias cristão. O Tribunal, nesse ponto, usou de má fé para poder condená-lo como
milenarista judaizante, isto é, como crente na vinda de um Messias terreno.
Convém distinguir, nesta altura, discursos paralelos e discursos con-
vergentes. Transcrevo abaixo três passagens em que fica explícita a comparação
entre os judeus, tantas vezes cativos e afrontados, e os portugueses oprimidos pelos
castelhanos:
I. "Finalmente, deixados exemplos antigos, assim como os Por-
tugueses, sendo verdadeiramente cristãos e católicos, esperavam que havia de
haver tempo, em que tivessem rei português que os libertasse da sujeição de Cas-
tela, que eles chamavam cativeiro, para tornarem a ser reino separado, livre e so-
berano, como dantes eram, se que esta esperança encontrasse [=contrastasse] em
alguma coisa a fé de verdadeiros cristãos, assim os judeus (se o forem verdadeira-
mente e de coração receberem a fé de Cristo) sem ofensa nem repugnância da dita
fé, podem esperar a restituição de sua Pátria e repúblicas e que o instrumento
e autor dela seja algum príncipe ou outra pessoa particular própria ou es-
tranha, que Deus escolheu para esta obra." (Repres. 2a., § 393; grifos de
Vieira).
II. "Os futuros portentosos do mundo e de Portugal, de que há de
tratar a nossa história, muitos anos há que estão sonhados, como os de Faraó, e
escritos como os de Baltasar; mas não houve até agora nem José que interpretasse
os sonhos, nem Daniel que construísse as escrituras; e isto é o que eu começo a
fazer" (Livro Anteprimeiro, § 41).
III. "Já Deus, Portugueses, nos livrou do cativeiro. Já por mercê de
Deus triunfamos de Faraó e do poder dos seus exércitos. Já os vimos, não uma
mas muitas vezes, afogados no Mar Vermelho do seu próprio sangue; imos camin-
hando para a Terra da Promissão, e pode ser que estejamos já muito perto dela e
do último cumprimento das prometidas felicidades" (§ 43).
Comparação não é identificação. E paralelismo supõe diferença.
Vieira não ignora nem omite a diversidade de significados que tem a palavra
Messias nas tradições hebraica e cristã. É só ler o parágrafo 395 da
segunda Representação para avaliar a nitidez com que o réu expõe o contraste
entre as duas crenças. Para os judeus o Messias será um rei terreno e temporal
que governará a Terra da Promissão em tempos vindouros de justiça e paz.
Para os cristãos o Messias prometido pelos profetas já chegou: é Jesus Cristo,
que só voltará no dia do Juízo universal. As expectativas são, portanto, di-
versas. Mas não excludentes. A interpretação de Vieira conserva orto-
doxamente a crença na volta final de Cristo, mas inclui a vigência de um
longo período de concórdia e felicidade, a que chama Quinto Império do
Mundo, "tempo vacante", ou "tempo em meio" entre o Império Romano já
findo e a hora do Apocalipse. É provável que nessa expectativa se encon-
trem traços de esperanças judaicas.
(10) Desde que Oliveira Martins, na História de Portugal (1879), julgou ver no se-
bastianismo um traço definidor do caráter nacional, acendeu-se uma polêmica
que iria envolver mais de uma geração de intelectuais "explicadores de Portu-
gal". Se João Lúcio de Azevedo, o biógrafo exemplar de Vieira, soube manter
uma atitude compreensiva em face de um tema tão complexo, no seu A
Evolução do Sebastianismo (1918), veio de Antônio Sérgio a crítica mais demoli-
dora às raízes mesmas do mito no ensaio Uma interpretação não-romântica do se-
bastianismo, que é de 1920. No campo ideológico a luta não conheceu trégua.
(11) "Explicação de um livro", em Obras em prosa, Rio, Aguilar, p. 71. Texto escrito
em 1935, poucos meses antes da morte do poeta.
DE
PROFECIA
PONDERAÇÃO 1. a
ACERCA DO ASSUNTO DO LIVRO
PONDERAÇÃO 2.ª
ACERCA DOS PAPÉIS
Os papéis de que se tiraram as culpas de que fui argüido
são quatro: o primeiro, é o papel do Maranhão, no qual se deve pon-
derar que todas as culpas que dele se formam se reduzem a um só
ponto, que foi o ter o Bandarra por profeta, na qual suposição, que
muito é que eu provasse o que ele expressamente diz, ou o que das
suas trovas por boa conseqüência se segue. Os fundamentos por que
tive para mim que fora profeta, e o pretendi privadamente provar
naquele papel, são os que presentei na mesa expendidos em escri-
turas, autoridades e razões especulativas e práticas, em que se seguia a
opinião geral, do que por palavras e escritos impressos assim o julgam
e pregoavam, entendendo da mesma maneira, que assim como se
pode provar que tal ação foi milagre, e que tal morte foi martírio, as-
sim se pode provar que tal predição ou predições foram profecias, e
assim como se pode inferir que o que faz tal ação é milagroso, e o que
padece tal morte é mártir, assim se podia inferir, que o que disse tais
predições era profeta; tendo para mim, finalmente, que os papéis ou
discursos em que as sobreditas coisas se provam, as podem provar e
comunicar seus autores privadamente, sem violar a proibição, ou in-
correr penas dos que publicam ou divulgam semelhantes tratados; e
em próprios termos, é o que eu só fiz, remetendo o dito papel a uma
rainha, pelo modo e meio mais secreto que podia ser, que foi por mão
de seu confessor: e se ele ou outrem o divulgou, parece se me não
deve imputar essa culpa.
O segundo papel é o que enunciei ao conselho geral, ped-
indo restituição de tempo em que havia estado doente, e mudança de
lugar por alguns dias, para convalescer da dita enfermidade, como or-
denavam os médicos do Santo Ofício, sendo a mesma petição e sub-
missão, com que nela tão miudamente fiz de mim atos mui formais
da mesma obediência, reconhecimento, e respeito, e não podendo
haver direito algum que presuma que quem pede favor e graça queira
ofender ao juiz que o há de sentenciar ou absolver, sendo os juízes
PONDERAÇÃO 3.ª
ACERCA DAS PROPOSIÇÕES
Antes de propor o que devia seguir, se pondere nas
proposições (ita), referirei brevemente as ditas proposições:
1.ª Reprova-se o título de Quinto Império, por ser
(como dizem) o dito império do Anticristo: e eu no dito
acedi, ou segui a sentença ordinária dos teólogos e exposi-
tores que, no império das visões de Daniel, dizem que o
Quinto Império é o império e reino de Cristo.
2.ª Reprova-se provar o império temporal de
Cristo com alguns dos mesmos lugares, em que se prova o
espiritual, e que isto se não pode fazer sem ser in sensu
judaico, e contra Cristo. E este modo de provar é a prova or-
dinária de todos os teólogos que seguem a dita sentença,
PONDERAÇÃO 4.ª
ACERCA DAS SUPOSIÇÕES
Como a matéria do meu assunto era tão particular, e não
tratada ex professo por algum outro escritor, e no primeiro papel se
acudia somente a ela sem declaração das ditas alusões e intento do
dito papel, e mui alheias do assunto dele as suposições que de tudo se
formaram e argüíram, das quais suposições é forçoso referir ao
menos as mais notáveis.
1.ª Supõe-se que o dito Quinto Império é humano como
o dos inquisidores ordinários do mundo, e não é senão o império e
reino de Cristo.
2.ª Supõe-se que o dito Quinto Império é futuro, e não é
império do futuro, senão o mesmo império e reino de Cristo, que foi,
é, e há de ser, e só se diz que há de ter um grande aumento no último
e confirmado estado da sua duração.
3.ª Supõe-se que o dito Quinto Império há de mediar en-
tre o romano e o do Anticristo, como que é o sexto: eu não digo tal,
nem é necessário dizer-se porque para um império ser o quinto, outro
o quarto, basta que este comece primeiro e o outro depois, ainda que
ambos continuem a sua duração no mesmo tempo, como de fato
aconteceu ao império grego, e ao romano, que são terceiro e quarto
de Daniel, ou dos impérios de que ele trata, e como também vemos
hoje no quarto império, e no quinto, que é o do Anticristo, os quais
simul continuam enquanto ao nome de reino, que em respeito do ro-
mano se chamará o quinto. O império do Anticristo se se fizesse a
comparação com ele, se poderia o nosso chamar sexto império, mas
tenho para mim que o do Anticristo a respeito do de Cristo não há de
ter o nome de império, senão de perseguição, nem de imperador
senão de tirano.
terra ou por cima das águas, como se diz levou a S. Tomé, e podendo
o dito santo converter os índios sem assistência e favor dos vice-reis,
que ele confessa por importante, S. Francisco os não converteu sem
eles.
14.ª Supõe-se que este modo de conversão é mero
judaico, e quer ajuntar a Cristo com o Anticristo, porquanto o motivo
por que os judeus rejeitam a Cristo, e o não quiseram receber por
Messias, foi porque veio pobre sem potência temporal, mas já fica
mostrado que o dito modo é de pregação e conversão, que supor-se
(sic) é o que pratica hoje a Igreja, que nelas houve príncipes cristãos
aprovados por todos os santos pontífices e exercitados pelos bispos e
varões apostólicos e mais santos, como S. João Crisóstomo, S. Dom-
ingos e outros; porque a assistência dos príncipes não tira que o ob-
jeto da pregação seja Cristo crucificado, o qual sem embargo de ter
sido -- judaeis quidem scandalum, gentibus autem stultitiam -- quando Deus
tira o véu dos olhos a uns e toca o coração dos outros o adoram na
mesma cruz.
15.ª Supõe-se que as felicidades prometidas, e o dito
estado do império consumado de Cristo, são sumas felicidades,
delícias e riquezas, e outras que corrompem os bons costumes, sendo
que tal coisa não disse nem escrevi, senão tudo em contrário, como
são virtudes, santidade, graça e salvação, na forma em que o prome-
tem os autores da dita esperança, não havendo nela coisa temporal,
mas que por meio do império católico daquele príncipe, e paz univer-
sal e vitória contra infiéis, coisas todas ordenadas ao bem espiritual da
Igreja, e as quais pede o mesmo Deus para a continuação.
16.ª Supõe-se que de admitir a opinião que entende pelo
-- cornu parvulum -- de Daniel, o império otomano se segue, que não é
Cristo, ainda vindo ao mundo, porque as duas visões do dito profeta
falam do primeiro advento do mesmo Cristo, mas nem os autores da
dita opinião ou interpretação sendo tantos e tão católicos, religiosos e
doutos, quiseram assinar tal erro, nem entenderam que ele se seguia
do dito princípio, pois a mesma ilação se pode fazer, que pelo -- cornu
lhe pedia com muita submissão tempo suficiente para discutir os fun-
damentos do dito assunto, e os sujeitar logo ao mesmo tribunal
sagrado para com aprovação sua saber o que havia de seguir em todas
as matérias dele, como expressamente se contém no dito papel.
35.ª Supõe-se, finalmente, que quando escrevi em uma
parte de meus apontamentos, que o Bandarra podia ser chamado ao
santo ofício por calúnias, e em outra parte com uma autoridade de Cas-
tro, que alguns censuradores por quererem censurar proposições alheias,
mostravam erro e ignorância das suas; e em ambos os ditos lugares quis
remoquear aos ministros do santo ofício, atribuindo-lhes as calúnias, ou
erro, ou ignorância; e verdadeiramente que quando isto me foi dito fiquei
afrontado e corrido, de que tal descomedimento e despropósito cuidasse
do meu pouco juízo, sendo coisa muito clara, que no primeiro lugar que
falava dos denunciadores do Bandarra, que o podiam acusar calun-
iosamente com falsos testemunhos, de que se não livra tribunal algum,
por mais puro e santo que seja, como, segundo minha lembrança, digo
no mesmo lugar: no segundo dos censurados, aludia e remoqueava
nomeadamente ao padre Luís Alves, reitor do colégio do Porto, e ao
abade fr. Jorge de Carvalho, por suspeitar que algum deles, ou ambos,
haviam denunciado certas proposições, de que se me faz cargo, que eu
tinha dito em conversação, mal entendidas ou interpretadas por eles, e
constando como consta, que os ditos apontamentos eram para fazer o
papel ou livro que tratava de apresentar aos senhores inquisidores, e de
suas mãos havia de passar aos revedores e qualificadores do santo ofício:
bem se vê que quem esperava dos ditos ministros seu bom despacho,
não os havia de querer picar com palavras tão indignas e descorteses,
sendo igualmente certo que as ditas palavras se haviam de riscar, e não
haviam ser copiadas, sem que ao compor e ordenar o dito papel, me
ocorresse a menor imaginação de que podiam ser tomadas ou torcidas na
suposição em que eu agora as vejo.
PONDERAÇÃO 5.ª
ACERCA DAS CONSEQÜÊNCIAS
Posto que das sobreditas suposições, e do modo com que
me foram supostas e introduzidas, reconheci com grande admiração, e
edificação minha, a superlativa sabedoria, vigilância, e circunspecção deste
sagrado tribunal, e alta prudência inspirada por Deus, com que está orde-
nada a eficácia de seus meios para convencer, penetrar, descobrir, e tirar
outro qualquer erro ou engano contra a pureza da fé, por mínimo e
oculto que seja.
Muito maior conhecimento formei de tudo isto no ar-
tifício e disposição dos argumentos e conseqüências com que tão
apertadamente fui argüido, redargüido, e instado, posto que todos
fossem contra mim; e porque tenho tão justos fundamentos para recear,
que sem embargo de serem fundados sobre as suposições tão diversas
das minhas se possam persuadir e fazer crer, é-me necessário ponderar e
descobrir o dito artifício dos argumentos ou conseqüências: para que se
veja que nenhuma delas, nem seus erros me devem prejudicar, porei
de cada gênero um exemplo.
As conseqüências do primeiro gênero são aquelas em que
do grau remotíssimo em concurso se infere a diferença particular,
como disséramos: este indivíduo é animal, logo é víbora: assim nem
mais nem menos se me atribui a peçonha. Exemplo. Os judeus es-
peram que o seu Messias há de ser imperador do mundo, e o turco
também espera semelhante aumento ao seu império, até aqui o pro-
ferente diz que o imperador acima referido há de ser imperador do
mundo: logo esta esperança é judaica e maometana, como se não fora
possível e imaginável haver imperador no mundo, senão daquelas
nações e daquelas seitas.
O mesmo argumento se pode fazer em contrário: os
espanhóis e franceses esperam e aspiram à monarquia universal: logo
esta esperança é católica e cristianíssima, e melhor ainda sobre os fun-
damentos e autoridades do mesmo assunto. Muitos santos e muitos
varões insignes em virtude e espírito de profecia, prometem o so-
bredito imperador, logo esta esperança é santa, logo esta esperança é
profecia.
As conseqüências do segundo gênero, são as em que se
cala o que digo, e se supõe o que não digo: e de premissas em que se
cala o afirmado, e se supõe o negado ou imaginado, que muito se infi-
ram tão horrendas e afrontosas conseqüências como as que tenho ou-
vido? Exemplo no mesmo imperador: eu digo com os autores da dita
opinião, que este imperador há de ser europeu, cristão, e de-
scendente de príncipes cristãos, zelosíssimo do serviço de Deus, e
propagador da fé de Cristo, e que todo o poder e autoridade se há de
empregar nele, e no serviço da Igreja e obediência ao sumo pontífice:
ajudado deste imperador se há de converter e reformar o mundo,
florescendo mais que nunca o culto divino, a justiça, a paz, e todas as
virtudes cristãs, acrescentando pelos fundamentos particulares deste
reino, que o dito imperador há de ser português, e rei do nosso reino
de Portugal, e cabeça do império, Lisboa. E sendo esta a manifesta
PONDERAÇÃO 6.ª
ACERCA DAS RESPOSTAS
Sendo tantas, tão várias e tão terríveis as suposições
referidas, e as conseqüências e censuras que delas e sobre elas se me
tiraram e argüíram, quase posso afirmar, que a nenhuma tive lugar de
responder, ao menos cabal e plenariamente, como agora peço se pon-
dere pelas razões seguintes:
Primeira, porque as matérias são tantas e tão pouco
tratadas, e envolvem tantas dependências, questões e suposições, e
são tantas as dúvidas e dificuldades que sobre cada uma delas pode
ocorrer ou argüir-se, que quase é impossível haver-se de explicar e
satisfazer a tudo por papel, ainda que este fora muito largo, e ainda
que as dúvidas e dificuldades se propuseram muito clara e descober-
tamente, por ser o papel um intérprete mudo, que só mostra o que
leva escrito, sem poder explicar ou distinguir, nem responder ao que
nele, dele, e contra ele se me interpreta ou argüi, o que falando se
pode fazer, e sendo ouvido, que foi a causa por que eu representei ao
conselho geral, me permitisse dar razão de mim verbalmente.
Segunda, porque pedindo muitas vezes que me fossem
dadas ou quando menos lidas as proposições censuradas por suas
PONDERAÇÃO 7.ª
ACERCA DAS DENUNCIAÇÕES
Discorrendo sobre os fundamentos com que podiam ser
denunciadas coisas tão sem fundamento, como a da proposição ou
PONDERAÇÃO 8.ª
ACERCA DO RÉU
posto que nem as suas forças, nem as suas virtudes eram para outros
maiores trabalhos, ao menos fazia que os empreendessem seus com-
panheiros, indo alguns deles distância cinqüenta léguas, e sessenta, a
acudir a um moribundo, só na dúvida de se poder achar ainda vivo,
posto que se afirmasse estaria já o índio morto, como verdadeira-
mente se achava: e porque as distâncias e as necessidades eram mui-
tas, e os sacerdotes poucos, compus um formulário breve, com todos
os atos com que em falta do sacramento da penitência, se pudesse
uma alma pôr em graça de Deus, escrito pelas palavras mais substan-
ciais e breves, e de maior eficácia, assim na língua portuguesa, como
na geral dos índios, para que qualquer pessoa nos casos de necessi-
dade, pudesse suprir a ausência de sacerdotes.
E outra segunda parte na mesma forma, para poderem
administrar o sacramento do batismo, e dispor para ele nos casos e
termos mais apertados, a qualquer gentio; e outras semelhantes
indústrias e prevenções, para que nenhuma alma se perdesse. E será
finalmente de homem que não cresse em Cristo, nem amasse a
Cristo, a constância, a que outros chamam pertinácia, com que tanto
instou e trabalhou para arrancar por todas as vias daquele país o pe-
cado universal, e como original dele, dos cativeiros injustos dos
índios, sem embargo de ter contra si todos, não só seculares, senão
eclesiásticos; e tornando a Portugal sobre esta demanda, e embar-
cando-se para isso em um tal navio, que no meio do mar se virou,
onde tivera acabado os seus trabalhos, se Deus para outras maiores o
não livrara quase milagrosamente?
conflitos se viu por mar, e por terra, e expôs tantas vezes a vida às
setas dos bárbaros, e à fúria dos elementos, sem bastarem estas de-
monstrações, não sendo feitas no seu cubículo, senão na face do
mundo, para o não argüirem de inimigo de Cristo? Não cuidavam as-
sim os que lhe ouviam as práticas dos passos da paixão de Cristo, que
ele introduziu na igreja de S. Luís do Maranhão, repartidos por todas
as sextas-feiras da quaresma, sem que nenhuma houvesse, em que
não fosse necessário acudir com remédios a muitos dos ouvintes, uns
porque desmaiavam, outros porque abafavam de dor e de lágrimas,
mas ainda era maior o fruto, e muito conhecido de uma história ou
exemplo de Nossa Senhora, que também introduziu e pregava todos
os sábados bem de tarde, a que concorria com grande devoção e ex-
pectação toda a cidade, introduzindo assim mesmo na dita igreja to-
dos os dias o terço do rosário, de que ele era capelão, e não só vin-
ham rezar os estudantes e meninos da escola, por obrigação, e para
bem se costumarem, mas também se achava ordinariamente à mesma
devoção, o governador, ouvidor-geral, provedor-mor da fazenda, o
vigário-geral, e o da matriz, e outras pessoas principais, sendo muitas
as famílias que no mesmo tempo faziam o mesmo em suas casas,
rezando pais, e filhos, e escravos, em um coro; e as mães, filhas, e
escravas, em outro, seguindo em tudo a forma a que eram exortados.
Isto é o que obrava o réu em a mesma terra, e no mesmo
tempo em que foi escrito o papel de que se inferem as conseqüências,
porque é chamado ímpio e blasfemo; mas supostas as coisas referidas, e
outras mais interiores (que se calam e passaram no Maranhão) em
Coimbra estão os padres Francisco da Veiga, Jácome de Carvalho, e
José Soares, que podem testemunhar neste caso, e estão em Portugal
também o Dr. Pedro de Melo, Baltasar de Sousa Pereira, e o Dr.
Jerônimo Cabral de Barros, governador, e capitão-mor, e sindicantes
que foram naquele tempo e estado, meus capitais inimigos (e Deus e o
mundo sabem o porquê) aos quais sem embargo disso ofereço por
testemunhas do mesmo, e ao licenciado Domingos Vaz Correia,
vigário-geral que foi muitos anos, e o era naquele tempo do Maranhão,
porque a todas dava vinho e hóstias para as missas, e cera branca para
os dias principais, sendo levadas todas estas coisas deste reino de Por-
tugal, porque naquelas terras as não há; como também iam de Portu-
gal todos os ornamentos, uns ricos e outros decentes, e os sacrários e
os altares portáteis, os cálices e as custódias maiores e menores,
aquelas de grande majestade, cruzes, castiçais, alâmpadas, turíbulos,
alguns de prata, e os mais de latão, muitos sinos, muitas imagens de
Cristo, e de Nossa Senhora e de vários santos, umas de pintura para
os retábulos, e outras de relevo estufadas, assim maiores para os al-
tares, como menores para as procissões, para mostrar aos gentios,
muito inclinados aos seus bailes, que a lei dos cristãos não é triste.
E assim mesmo todo o aparato dos batismos para se faz-
erem com grande pompa, necessária igualmente aos olhos da gente
rude que só se governa pelos sentidos, muitas resmas de papel, tintas,
e latas para os sepulcros, e imagens da paixão para as procissões da
quaresma e semana santa, que tudo se introduziu desde logo para fi-
car mais bem fundado e estabelecido entre aqueles novos cristãos,
sendo matéria de grande devoção ver derramar sangue por amor de
Cristo e vestidos de disciplinantes à portuguesa, e muitos daqueles
mesmos, que poucos meses antes de fartavam de sangue e carne hu-
mana, sendo raro o que naqueles dias não fizesse esta penitência, e
para verem da mesma maneira com os olhos o mistério do nas-
cimento de Cristo, cuja solenidade fazia celebrar com diálogos na sua
língua representados por seus próprios filhos.
todo o reino em cem anos ser judeu, assim como em cento e cin-
qüenta era já a metade dele.
E que os ditos meios os comunicasse sua majestade com
os senhores inquisidores, e os resolvesse com eles, e os aprovasse
pelo sumo pontífice, que é a maior comprovação de que não pretendi
coisa que não fosse mui justa, justificada, e pia, quanto mais contra a
fé: nem em mim se pode ou podia considerar razão alguma pela qual
houvesse de favorecer os judeus; porque, pela graça divina, sou
cristão-velho, e três cunhados e seus filhos, que são os parentes que
só tinha, são também cristãos-velhos; não tenho nem tive jamais ami-
zade com cristão-novo algum, exceto somente Manuel da Gama de
Pádua, por ser o mercador a quem meu irmão remetia do Brasil os
haveres do seu negócio, e açúcares, e por ser prebendeiro da capela
que me pagava os meus ordenados de pregador d’el-rei. Nem os
cristãos-novos me deram nunca coisa alguma, nem eu havia mister
que eles me dessem, porque além de não ser curioso nem cobiçoso de
ter (como é mais sabido na minha religião), para tudo que eu quisesse
tinha parentes muito ricos, que me davam o que eu não queria aceitar, e
sobretudo tinha a liberalidade d’el-rei, que sem limite punha em meu
alvedrio a inteira disposição da sua fazenda a qualquer parte onde me en-
viava, não usando eu jamais desta largueza, antes restituindo aos minis-
tros da fazenda real, até o que dos viáticos me sobejava, como de
tudo pode ser boa testemunha Pedro Vieira da Silva.
Nem acrescenta nada a sobredita suspeita ou presunção,
o haver eu comentado ou seguido as trovas do Bandarra, porque o
tive sempre por cristão-velho, sem raça de moiro ou judeu, como ele
mesmo afirma, onde perguntado, se é dos judeus ou dos agarenos,
diz:
Senhor, não sou dessa gente
Nem conheço esses tais.
E por me parecer que as ditas trovas combinam grande-
mente com as profecias dos santos, e opinião dos doutores acima
referidos, de cuja fé ninguém duvida, e finalmente, além das razões
mal, porque lhe não podia suceder bem, e o efeito o mostrou. Todos
estes versos que tenho referido vão continuados, e neles descrito o
sucesso da aclamação do rei no reino e nas conquistas, com todas as
circunstâncias, e logo imediatamente se segue no mesmo sonho:
Não tema o turco não
Nesta sesão,
Nem o seu grande mourismo
Que não recebeu batismo
Nem o crismo,
É gado de confusão etc.
Estes versos contêm uma circunstância admirável da pro-
fecia, porque não só declarou Bandarra as coisas que haviam de ser, e
o tempo em que haviam de suceder, senão também os tempos em
que não haviam de ser. O principal assunto do Bandarra é a guerra
que el-rei há de fazer ao turco, e a vitória que dele há de alcançar: e
porque não cuidássemos toda a empresa havia de ser logo depois da
aclamação do novo rei, advertiu, e quer que advirtamos, que a em-
presa do turco não é para o tempo da aclamação, senão para outro
tempo, e para outra sesão mesmo depois. E por isso disse que nesta
sesão bem podia o turco estar sem temor.
A esta profecia negativa do turco se junta outra negativa
do papa, o qual papa supõe Bandarra que não há de reconhecer a el-
rei senão depois que o turco entrar pelas terras da Igreja, e assim o
declaram os versos do sonho segundo:
O rei novo é acordado
Já dá brado,
Já arressoa o seu pregão,
Já Levi lhe dá a mão,
Contra Siquém desmandado.
Esta copla se aplica adiante; por ora basta dizer que Levi é o
papa, e Siquém o turco, e que quando Siquém se desmandar pelas terras
da Igreja, então dará Levi a mão ao rei novo, que já neste tempo será
acordado; onde o que se deve muito notar é aquele já Levi lhe dá a mão,
na qual palavra supõe Bandarra que até então lha não quis dar, como
em efeito nenhum dos três papas, Urbano, Alexandre e Inocêncio lha
não quiseram dar, por mais que foram requeridos pelos povos, com
tantos gêneros de embaixadas.
Por muitas vezes disse eu a el-rei, e principalmente
quando me mandou a Roma, que o papa não havia de dar bispos, e
quando vinha a nova que já os dava ou queria dar, sempre me ri
disso, assim em Portugal como no Maranhão, de que são testemun-
has os que me ouviram dizer por galantaria, que o turco era o que
havia de dar os bispos, e não o papa.
O ser rei o infante D. Afonso, e o ser governador das ar-
mas João Mendes de Vasconcelos, também é profecia do Bandarra.
Do infante disse:
Vejo subir um infante
No alto de todo o lenho.
Todos cuidavam e esperavam por natural conseqüência,
que o príncipe D. Teodósio, que Deus tem, havia de suceder a seu
pai, e que na volta que deu, a que o Bandarra chama roda triunfante,
havia ele de ser o que sucedesse, e subisse no alto de todo o lenho;
mas vejo que é o infante D. Afonso, porque assim estava escrito.
Muitas vezes me ouviu dizer el-rei e vossa senhoria do mesmo prín-
cipe, que dele não falava Bandarra palavra; e de João Mendes de Vas-
concelos, diz:
Vejo subir um fronteiro
Do reino de trás da serra,
Desejoso de pôr guerra
Esforçado cavaleiro.
Já escrevi a vossa senhoria que quando no Maranhão se
soube que o castelhano estava sobre Olivença, e que o Conde de S.
Lourenço governava as armas, disse eu diante de muitas pessoas ecle-
siásticas e seculares que o que havia de fazer as facções era João Men-
des de Vasconcelos, fundado nesta mesma copla, interpretando ser
ele o fronteiro detrás da serra, porque era ele naquele tempo de Trás-
os-Montes. Todo este papel que aqui vai lançado escrevi na mesma
conformidade em os últimos de abril deste ano, como se verá pela
primeira via dele, que logo então mandarei pelo Maranhão. Agora
ouvi que João Mendes está não só retirado da guerra, mas preso, com
que parece errou minha conjetura na explicação, ou na aplicação
destes versos.
Facilmente admitirei este erro, e que fala Bandarra de ou-
tro fronteiro que seja de Trás-os-Montes, ou do que nos dizem que é
hoje o Conde de S. João, de cujo valor e esforço e cavalarias chega
por cá tão honrada fama que bem lhe quadra o nome de esforçado
cavaleiro. Mas se houver quem queira persistir no primeiro sentido
que demos aos versos, poderá tirar deles a primeira solução, e dizer o
que disse antes de se saber cá a retirada do sítio de Badajós. Dizia eu
(de que eu tenho muitas testemunhas) que quando se não conseguisse
a entrada da praça, nem por isso ficava desfeita a acomodação ou
aplicação dos versos, antes então ficam melhor entendidos e con-
struídos, porque as palavras do desejoso de pôr guerra, não significam
efeitos senão desejos, posto que tão galhardamente manifestados.
Onde também se deve notar a praxe de pôr guerra, que apropria de si-
tiar guerra, e não de vencer exércitos, e quanto à copla que se segue
depois destas falando do mesmo sujeito:
Este será o primeiro
Que porá o seu pendão
Na cabeça do dragão
Derribá-lo-á por inteiro,
que é uma profecia e promessa do futuro, a que tanto se
pode caminhar do castelo de Lisboa, como de qualquer parte, porque fala
manifestamente da guerra do turco, como adiante se verá mais claro. E
diz Bandarra que aquele mesmo fronteiro que ele mesmo viu sair do re-
ino detrás da serra será o que há de pôr o pendão na cabeça do turco em
Constantinopla, e que juntamente o há de derribar e vencer.
Isto é o que digo, isto é o que me parece, protestando
que assim nestes versos, como em todos os de Bandarra, não é minha
gripa parideira, ou Castela, por um parto, que foi Filipe 2.º filho da in-
fante Imperatriz D. Isabel, havia de lograr Portugal? Quem lhe disse
que o tempo desejado da redenção havia de ser no ano de quarenta?
Quem lhe disse que o restaurador havia de ser rei levantado; e quem
lhe disse que este rei se havia de chamar D. João, e que havia de ser
feliz e descendente de infantes? Quem lhe disse que o haviam de re-
conhecer e aceitar logo as conquistas, e que elas dali por diante
haviam de estar firmes, sem nenhuma vacilar nem retroceder? Quem lhe
disse que uma destas conquistas havia de ser governada naquele tempo
por um homem mui sisudo e cabeludo, e que o que governasse se havia
chamar excelência, e que era agudo, e que sendo instrumento da acla-
mação havia de ser tirado do cargo por suspeitas da infidelidade; e que
essa infidelidade não havia de estar no seu escudo? Finalmente, quem lhe
disse que o papa não havia de aceitar este rei, e que lhe havia de suceder
na casa um infante, e não príncipe seu primogênito? É certo que só Deus
o podia dizer, e revelar ao Bandarra todos estes futuros, e qualquer deles,
e com a mesma certeza se deve ter e afirmar, que foi Bandarra verdadei-
ramente profeta. Resta agora ver se profetizou o Bandarra alguma pro-
fecia D’el-Rei D. João, que ainda não esteja cumprida, que é o segundo
fundamento da nossa conseqüência.
PROVA-SE A SEGUNDA
PROPOSIÇÃO DO SILOGISMO
As coisas que o Bandarra profetizou D’el-Rei D. João,
que ele ainda não obrou, e há de obrar, são tão grandes, e tão ex-
traordinárias que à vista delas não tiveram as passadas nada de ad-
miração: começa com este prólogo a narração delas, o seu profeta
no sonho segundo:
Ó quem tivera
Para dizer
Os sonhos que homens sonham!
Mas hei medo que me ponham
De mos não quererem crer.
Isto mesmo, senhor bispo, é profecia do que hoje vemos:
há de estar Bandarra corrido e envergonhado na opinião de muitos,
que ficará havido por grão-senhor, porque o turco nas suas terras intitula-
se grão-senhor, e o mesmo nome lhe dão em Itália.
E que a El-Rei D. João se haja de dever toda a vitória, diz
Bandarra no sonho seguinte:
De quatro reis, o segundo
Haverá toda a vitória.
Chama-se El-Rei D. João nesta ocasião o segundo, bem po-
dia ser, por ter tomado o nome de Fernando, porque então será Fer-
nando segundo. Mas pode-se chamar segundo, porque os reis de Portu-
gal verdadeiramente têm o segundo lugar entre os reis cristãos, sendo o
primeiro indecisamente o de França, ou de Espanha, que inda o pleiteiam
diante do pontífice, o qual nunca o quis decidir. Também pode ter o
segundo lugar nesta empresa como general do mar, que há de ser, sendo o
primeiro lugar o rei que for general da terra. Enfim, poder-se-á chamar
segundo por outro qualquer incidente que o tempo interpretará mais facil-
mente, do que nós o podemos agora adivinhar.
Coroado por imperador, diz Bandarra, que voltará el-rei vi-
torioso com dois pendões, que deve de ser o de rei de Portugal, e de
imperador de Constantinopla:
De pendões e orações
Irá fortemente armado,
Dará nele S. Tiago
Na volta que faz depois,
Entrará com dois pendões
Entre os porcos sedeúdos
Com fortes braços e escudos,
E de seus nobres infantões.
Estes porcos sedeúdos, entre os quais entrará el-rei, serão
os bachás e capitães do turco, e os levará diante de si, e no seu triunfo
quando voltar.
Finalmente, diz Bandarra, que o mesmo rei há de intro-
duzir ao sumo pontífice os dez tribos de Israel, que naquele tempo
hão de sair e aparecer no mundo com pasmo de todo ele. No
Terceira.
Que o ferirá em sua própria mão, e que ele se lhe virá en-
tregar.
Quarta.
Que ficará senhor da cidade e império de Constantinopla,
de que será coroado imperador.
Quinta.
Que tornará com dois pendões vitoriosos ao seu reino.
Sexta.
Que introduzirá ao pontífice e à fé os dez tribos de Israel
prodigiosamente aparecidos.
Sétima.
o havia sido. Bandarra diz que este rei há de ser levantado no ano de
quarenta: El-Rei D. João foi levantado no ano de quarenta. Bandarra
diz que este rei é feliz, e bem andante: El-Rei D. João em todo o seu
reinado foi felicíssimo. Bandarra diz que o nome deste rei é D. João:
El-Rei D. João, antes e depois, sempre teve o mesmo nome. Bandarra
diz que por este rei se declarariam logo as conquistas, e estariam fir-
mes por ele: El-Rei D. João logo foi aclamado e reconhecido por rei
nas conquistas, e todas perseveraram na mesma fidelidade. Bandarra
diz que ele levantaria suas bandeiras, e faria guerra a Castela: El-Rei
D. João dezesseis anos que governou sempre fez guerra aos castel-
hanos. Bandarra diz que este rei é mais excelente: El-Rei D. João
teve muitas excelências, além dele só ser excelência, enquanto
duque de Bragança.
Bandarra diz que este rei não é de casta goleima: El-Rei
D. João não é de casta goleima, como já explicamos. Bandarra diz
que este rei é primo e parente de reis: El-Rei D. João é primo, e não
mais que primo de três reis da Europa, e parente dos mais. Bandarra
diz que este rei vem de mui alta semente: El-Rei D. João vem dos reis
de Portugal, cujo título é mui alto e muito poderoso. Bandarra diz que
este rei descende dos reis do Levante até o Poente: El-Rei D. João descende
dos reis de Portugal, Aragão e Castela, que são reis do Poente, e dos
reis de Nápoles, e Sicília, que são reis do Levante. Bandarra diz que
este rei tem um irmão bom capitão: El-Rei D. João é irmão do In-
fante D. Duarte, tão bom capitão como sabemos. Bandarra diz que
este rei ou este monarca é das terras da comarca, porque é natural de
Vila Viçosa. Bandarra diz que este rei é guardador da lei, e que da
justiça se preza: El-Rei D. João de nenhuma coisa se prezava mais
que da justiça, e esta só deixou encomendada em seu testamento a el-
rei que Deus guarde. Bandarra diz que este rei até certo tempo não há
de ser recebido pelo papa: El-Rei D. João nenhum dos três pontífices
até o tempo de seu falecimento o recebeu. Bandarra diz ou supõe que
este rei, nem todos os que o aclamaram com a boca o haviam de
seguir com o coração: El-Rei D. João é certo que o não seguiram com
o coração, ao menos aqueles a quem ele mandou tirar as cabeças.
Bandarra, finalmente, diz que este rei fez Deus todo perfeito, e que
não acha nele nenhum senão, e quem pode duvidar que depois de ressus-
citado El-Rei D. João, que há de ser um varão perfeito, e que mostre bem
ser feito e perfeito por Deus, quanto mais que homem sem nenhum
senão, não pode ser homem deste mundo senão do outro. Da mesma
maneira diz Bandarra, que é um homem rei encoberto, porque em El-Rei
D. João tem Deus depositado em grau eminente muitas partes e quali-
dades de bom rei encobertas até agora, e depois se descobrirão. Uma
parte que desejava El-Rei D. João para o tempo em que Deus o fez, era
ser muito guerreiro, e inclinado às armas. Este espírito guerreiro e militar,
se descobrirá em el-rei com notáveis maravilhas na guerra do turco,
quando o mundo, depois de fugidos e desbaratados seus exércitos, o vir
rendido aos pés D’el-Rei D. João, e ferido por sua própria espada: esta é a
energia com que Bandarra diz:
Demonstra que vai ferido
Desse bom rei encoberto.
Mostrando encoberta nele esta parte que parece lhe faltava
para bom rei. Ó quanto estava encoberto naquele sujeito D’el-Rei D.
João! Estava el-rei em si mesmo encoberto de alguns acidentes de rei, em
que mais se reparava era em uma cobertura (disfarce natural) com que
Deus tinha encoberto nele, o que por ele queria obrar, para que sejam
mais maravilhosas suas maravilhas.
Leiam os curiosos todas as profecias do Bandarra, assim
as que contêm os sucessos já passados, como as que prometem os
futuros, e em todas elas não acharão diferença individuante, sinal ou
qualidade pessoal alguma de monarca profetizado, mais que estas
que aqui fielmente temos referido, as quais todas são tão próprias
da pessoa D’el-Rei D. João o 4.º, e lhe quadram todas tão natural-
mente, e sem violência, que bem se está vendo que a ele tinha diante
dos olhos, e não a outro, quem com cores tão vivas, e tão suas o re-
tratava. Com que fica evidentemente mostrado e demonstrado, que
o Senhor Rei D. João o 4.º que está na sepultura, é o rei fatal, de
que em todas as suas profecias fala Bandarra, assim das que já se
cumpriram, como das que hão de suceder ainda. E este mesmo rei
está hoje morto e sepultado, e não é amor e saudade, senão razão e
obrigação do entendimento, crer e esperar que há de ressuscitar.
papa, e Simeão el-rei, e assim como Levi se uniu com Simeão para de-
safrontar a Dina da injúria que lhe fez Siquém, assim el-rei se há de
unir com o papa para desafrontar a Igreja das injúrias que lhe fará o
turco, e isto diz Bandarra mesmo nas suas respostas quando diz:
O que minha conta soma
O texto se há de cumprir
Primeiro, senhor, em Roma.
Primeiro há de vir o turco a Itália e Roma, e então há de
ressuscitar el-rei: e em outro lugar fala o mesmo Bandarra na ressur-
reição d’el-rei, debaixo da mesma metáfora de acordado, com as mes-
mas circunstâncias do turco, e diz assim nas trovas antes dos sonhos:
Já o leão é desperto
Mui alerto,
Já acordou, anda caminho,
Tirará cedo do ninho
O porco, e é mui certo.
De maneira que quando el-rei, que é o leão, despertar, que é
ressuscitar, será depois que o porco, que é o turco, vier fazer o ninho nas
terras dos cristãos; e diz que o tirará cedo do ninho, porque a guerra será
muito breve, e não como as dilatadíssimas em que se for conquistar a
Terra Santa: e porque este efeito, e esta presa parecia dificultosa e ad-
mirável, acrescenta: porque ninguém duvide (e é mui certo), e assim em dois lug-
ares diz Bandarra que o novo rei ressuscitará debaixo da metáfora de
acordado: Já o leão é desperto mui alerto, já acordou etc.
Em ambos estes lugares diz, acordará e ressuscitará para
ir fazer guerra ao turco, e vencê-lo, e deste efeito se colhe com
evidência que acordar significa ressuscitar, porque el-rei novo morto,
como ao presente está, não pode acordar, senão ressuscitando. Em
outros dois lugares com a mesma clareza (posto que também
metafóricos) acho profetizada no Bandarra a ressurreição d’el-rei; e
ressuscitar nas escrituras explica-se pela palavra erguer-se: deste
termo usou o anjo quando anunciou a ressurreição de Cristo: surrexit
non est hic: do mesmo termo usou Cristo quando ressuscitou o filho da
viúva: Adolescens tibi dua surge. Do mesmo modo usou Davi profeti-
zando a ressurreição do mesmo Cristo: Surge Domine in requiem tuam.
Porque assim como jazer significa estar sepultado, por onde escrevem
as sepulturas: Aqui jaz Fuão; assim levantar-se e erguer-se significa
ressuscitar, e por este modo diz Bandarra em dois grandes textos que
ressuscitará El-Rei D. João: o primeiro texto nas trovas antes dos
sonhos:
Um grão leão se erguerá,
E dará grandes bramidos,
Seus brados serão ouvidos,
E a todos assombrará.
O segundo texto nas trovas antes do fim:
Vejo erguer-se um grão rei
Todo bem-aventurado,
Que será tão prosperado,
Que defenderá a grei.
Onde se deve notar que da conseqüência destes mesmos
textos colhe-se claramente, que em ambos o erguer significa ressuscitar,
porque em ambos se segue o erguer. No primeiro texto diz que se erguerá,
e que assombrará a todos, porque não haverá coisa que mais assombre o
mundo que el-rei de Portugal depois de tantos anos morto, ressusci-
tado: e logo continua os versos seguintes, dizendo o que há de fazer
contra o turco, e como há de entrar na terra da promissão, que é o
principal fim para que Deus há de ressuscitar el-rei. No segundo texto
sobre dizer que se há de erguer todo bem-aventurado, que é qualidade própria
de um homem, diz que se há de erguer para defender a grei, que é o rebanho
de Cristo a quem o rei ressuscitado irá acudir e defender contra os lobos,
que, como fica dito pelo mesmo Bandarra, estarão despedaçando em
Roma e em Itália o mesmo rebanho. Assim que, em quatro lugares diz
Bandarra expressamente pelos mesmos termos com que costumam falar
os profetas, e pelos mesmos com que profetizou Davi a ressurreição de
Cristo, que El-Rei D. João há de ressuscitar.
Neste mesmo sentido, e com a mesma clareza falou S.
Metódio cujas palavras andam muito viciadas nos cartapácios dos se-
bastianistas. Eu as li na Biblioteca antiga dos Santos Padres que está
neto de reis por seus pais, e de imperadores por sua mãe. Este rei diz
Bandarra, que tem um irmão bom capitão: El-Rei D. Sebastião nem teve, e
não pode ter irmão; porque nem o Príncipe D. João, seu pai, nem a
Princesa D. Joana, sua mãe, tiveram outro filho. Este diz Bandarra que é
das terras da comarca: El-Rei D. Sebastião não é da comarca, porque nasceu
em Lisboa. Este rei diz Bandarra que havia de ter guerra com Castela no
princípio do seu reinado: El-Rei D. Sebastião nunca teve guerra com Castela.
Este rei diz Bandarra que da justiça se preza: El-Rei D. Sebastião prezava-se
das forças e valentia. Este rei diz Bandarra, que até certo tempo lhe não hão de
dar a mão os pontífices: El-Rei D. Sebastião teve grandes favores dos pon-
tífices do seu tempo Paulo IV, Pios IV e V. Este rei diz Bandarra que lhe
não achou nenhum senão: El-Rei D. Sebastião se não fora a África não nos
perdera: veja-se se foi grande senão. Finalmente, porque nos não can-
semos mais em prova de coisa tão clara, tirado somente ser El-Rei D. Se-
bastião semente D’el-Rei D. Fernando, nenhuma coisa diz Bandarra em todos
os textos dos sinais ou qualidades do rei que descreve que possam aco-
modar, nem de muito longe a El-Rei D. Sebastião.
As outras que os sebastianistas chamam profecias, são
papéis fingidos e modernos, feitos ao som do tempo, e desfeitos pelo
mesmo tempo, que em tudo tem mostrado o contrário; até aquele
texto tão celebrado cujus numen quinque apicibus ne tatum est, que os mes-
mos sebastianistas aplicam ao nome de Sebastianus, composto de
cinco sílabas; tão fora está de ser em favor de suas esperanças, que é
uma milagrosa confirmação da nossa. Ápices propriamente não são
sílabas, nem letras, senão os pontinhos que se põem sobre a letra i.
Assim o diz o texto: Ista onum aut unus aero. E qual seja o nome que
tenha cinco ápices, ou cinco pontinhos sobre a letra i o nome
seguinte o dirá: Joannes IV -- iiii, e não digo mais.
PRIMEIRO FUNDAMENTO
DAS RAZÕES E CONJECTURAS
Vejamos, como prometeu o discurso, primeiramente as
razões destas duas espécies, umas que mostram a razão da parte afir-
mativa, outras que da parte negativa inculquem a sem-razão.
Primeiramente não se dá impossibilidade alguma; porque
se se dera, ou se dera da parte de Deus, ou da parte dele: da parte de
Deus é impossível, porque a Deus tudo é possível; da parte dele, tam-
bém não, porque ainda nos tempos modernos passaram alguns
homens de trezentos anos, e quando não seja naturaliter, será miracu-
lose, como de fato é: logo não se dá impossibilidade nenhuma.
A esta primeira razão, serve de obstáculo a primeira sem-
razão, argüindo, que é escusado guardar-se um homem tanto tempo,
podendo fazer qualquer rei o que ele havia de fazer. E não reparam,
que Daniel, falando do império otomano, diz que havia de ser en-
tregue a um velho, por antonomosia velho: Usque ad antiquun dierum
pervenit: et in conspectu ejus obtulerunt eum. Et dedit ei potestatem et honorem, et
regnum etc. Que doidice é logo dizer-se que El-Rei D. Sebastião está
guardado e conservado para destruir o império do turco, que é uma
das coisas que há obrar? E se não combinem aquele quem conservat Al-
tissimus, com este usque ad antiquum dierum pervenit, e verão a razão. De-
mais, que os porquês de Deus são incompreensíveis, e das suas razões
não pode o entendimento humano dar razão. Demais, que Deus sem-
pre faz as suas obras grandes, com grandes milagres. Bem podia Deus
dar no tempo do Anticristo, padres que a este pregassem, e contudo
guarda há tantos anos a Enoque e Elias; e outras muitas paridades,
que as não permite a brevidade.
SEGUNDO FUNDAMENTO
DAS PROFECIAS E VATICÍNIOS
Prova-se também a vinda do senhor Rei D. Sebastião
com as profecias e vaticínios dos santos, e homens de virtude, e
de espírito profético. Veremos as profecias e depois os vaticínios,
que falam neste encoberto, destruidor da seita maometana, impera-
dor do mundo, e no fim deste discurso, por remate, veremos que
todas as circunstâncias e sinais deste prometido só no senhor Rei
D. Sebastião se cumprem e acham, e só ele é o verdadeiro en-
coberto, o verdadeiro prometido, e o verdadeiro imperador, que
deve ser esperado.
Em o décimo nono:
Bien se, que de mil, vinte nõ me creeron,
Y de vinte mil los dez nõ me entendan
Y unos me burlen, y otros me reprehendam.
Em o trigésimo segundo:
Y un tiempo vendrá en el siglo postrero,
Contando muy cierto de aquel que ha venido
Supremo Juez; será muy cumplido
Se se cuenta diez vezes um ciento primero,
Y luego seguiendo otros seis por intero
Vendrán otros diez, que a todo han seguido,
Y luego el otro a un non cumplido
Será desta cuenta la guia, y rotero.
Em o trigésimo quarto:
Despierta de un sueño con furia estraña,
Y trahe consigo al toro, y al gallo,
La zorra, el tigre, la ave, el cavallo;
Con furia se vienen, con furia y con maña
En Efrata entra, y en una alta montaña
Depuso Calipso su primer trismallo
Alli con fuerza de piedra, y de mallo
Se funda o travez su primera cabaña.
Em o trigésimo sexto:
Verase un portento sangriento señal,
Que el padre con ancias de muerte renueva:
Verase la tierra, que es vieja ser nueva,
Sin que de haver sido le quede señal
Alli de improviso verá cadaqual
Las señas bastantes, que el vulgo approeba,
Verase del muerto la mas falça prueba,
Que con su engaño causó tanto mal.
Em o trigésimo sétimo:
Al bravo leon el mundo obedece
Las señas, que traz, son bruno, y son blao,
Son sinco, y sinco escriptas en pao,
Em o quadragésimo quinto:
Del cielo la luna se caye en la tierra,
El sol dará luz de noche, y de día
Por todo el mundo sus raios embía
En solo siette annos de paz, y de guirra.
Em o quadragésimo nono:
Venderá en un cavallo mayor, que el troyano,
Com otras mil aves muy acompañado,
Un leon rompiente del ciclo guardado
Dó ciñe la espuma del mar Occeano
Ya tiende su braco con muy larga mano,
Ya passa la meta hasta el otro lado,
Con el fuerte escudo del muy sublimado
Se llega à las puertas del monte Ulisano.
Em o quadragésimo sétimo:
Tendrá la victoria muy enteramente
De grullos, y gryfos, de tigres, y pantheras
El leon primero con sinco simeras,
Saltando las torres, el vado, y la puente:
De las quatro bandas el es presidente,
Tomando del austro las partes primeras,
Y del Oriente las mas estrangeras
Se buelve volando hasta el Occidente.
Em a Profecia vinte e sete:
La gloria se augmenta del leon afamado,
Porque es sin segundo en vida, y en muerte,
El mundo du nombre conosce, y advierte etc.
Em a Profecia vinte e cinco:
Y llega à la selva dõ nascio primero
Con gran magestad, y pompo espantosa etc.
Y al santo mauseolo
Donde el lusitano solo,
Coronado de Africa, y Palestina
Exaltarà su nombre por la fé divina.
Ay, que con deseo el ay suspira
Al tiempo, que por años se respira !
Ay, que las CC dezaseis caminan
A cumplir lo que los dos arabes
Moros in la astrologia eminentes,
Que del tiempo por computos concernientes
Predito lo tienen !
Ay, que ya vienen
Las letras caminando al siglo de oro,
Para el Luso occulto, y para el Moro !
Victorio en el cielo ya se acclama,
Angles a sus lados
Traerà el Luso por soldados etc.
E vaticinando outras coisas, assinou-se ao pé do per-
gaminho -- Leocádia.
seran martyres de Jesu Christo, y los malos del demonio. Los infieles
se bolveran contra estas dos partes de hereges, y catholicos; mataran,
arruinaran, y sacaran la mejor parte de la christianidad. Del otro
bando se moveran los santos cruciferos, non contra los christianos, ni
dentro de la christianidad, siño contra los infieles en el paganismo, y
le conquistaran todo con muerte de infinito numero de infieles, y des-
pues se bolveran contra los malos christianos, y mataran todos los re-
beldes de Jesu Christo, e le quitaran todo lo espiritual y temporal, que
ansi es voluntad de su divina magestad. Regiran y governaran el
mundo santamente in saeculam saeculorum. Amen. De vuestra linage
serà el fundador de tal gente santa. Mas quando será tal cosa?
Quando se veran los señales, y se verá sobre el estandarte el crucifixo?
Viva Jesu Christo biendito; Gaudeamus omnes, nos otros que estamos
en el servicio del Altissimo porque se llega ya la gran vizita, y refor-
macion del mundo, será un ganado, y un pastor. Adios. 25 de março
de 1460."
Diz mais em outra carta ao dito Simão, ao mesmo in-
tento :
Vaticínio de S. Metódio.
S. Metódio no liv. 6 cap. 28, diz:
"Expergiscetur rex in furore magno, quem existimabant
homines tamquam mortuum."
O mesmo santo no liv. 37 das Visões dos tempos, como
também na Biblioteca dos santos padres, diz:
"In his diebus apparebit in luna vitale signum; resurget
rex ex somno, qui fuit asinus et camelus. Leo decipabit agarenos,
dicetur magnus imperator romanorum, et restituet domum sanctitatis,
et erit pax plurima."
TERCEIRO FUNDAMENTO
Prova-se também a vinda do senhor Rei D. Sebastião,
com revelações de santos, e de pessoas de conhecida virtude, como
ouviremos.
salvum fac filium ancillae tuae, apareceu-lhe o encoberto e lhe disse: Deixai-
me rezar, não me inquieteis; e se me ordenais que repita este verso,
dizei-me o para quê? Respondeu-lhe o encoberto: Amiga, esse verso, su-
posto se intenda de Cristo Senhor nosso, também se acomoda a mim;
porque me tem o Senhor prometido que hei de reformar e ser im-
perador; porque sou o filho mais obediente da Igreja nossa mãe.
Em tempo que Évora esteve de sítio pelo inimigo, recol-
heu-se a venerável madre ao coro em um dia de tarde, levando con-
sigo trinta e duas freiras com velas acesas, como muitas vezes costu-
mava; e estando recomendando a Deus nosso Senhor, restituísse a ci-
dade de Évora à sua liberdade, estando em o fervor da oração, entrou
pelo coro dentro uma religiosa doida, que havia no dito convento;
esta trazia uma cana na mão com um papel, como bandeira, dizendo:
Vitória, vitória. Respondeu a venerável madre: Escutai, filhas, que
ainda não é tempo; e passado algum tempo mais, disse muito alegre
para as freiras: Louvemos todas muito a Deus nosso Senhor, que já
Évora está restaurada.
E perguntando-lhe eu em outra ocasião por este negócio,
disse-me : Filho, o encoberto também andou na batalha, e logo me deu
a nova de tão bom sucesso. Seja o Senhor bendito para sempre.
cabeça, todo vestido de verde. Muitas outras coisas viu este servo de
Deus acerca desta matéria.
De Aragon y Portugal
Sirven los sceptros reales.
Bien se pudo presumir-se
Por lo de Affonso, y campana,
Que la monarquia de Hespaña
Es tiempo de dezunir-se.
Antes es cosa sencilla
Acabar-se todo imperio:
Plegue a Dios, que a nuestro imperio
No se le entre la polilla.
Alguna vez amarillos
Miren lo cargue el baston
En la frente del leon
Las quinas en los castillos.
Aora Hespaña y Castilla
Se juntou. Ay, que estã junta!
Plegue a Dios, como a difunta
Que no le taña Belilla,
Viendo en esta conjectura
Solo un rey bueno, e mil malos,
El mejor rei, que huvo a palos
Brama de la sepultura.
Si el discurso nó me engaña
Alegra-te Portugal,
Al cabo de tanto mal,
Sobre los reinos de Hespaña.
Ya Dios te abre los puertos
Para bienes excessivos,
Ayer callavan los vivos,
Oy vemos hablar los muertos.
Bien puede ser, quando viene,
Hablar rei sin duda muerto,
Esperar otro encubierto
Que por muerto no se tiene.
Nò lo quizieron creer.
Si emperò el mismo amor
Pone la quexa en olvido,
Para que sea cumplido
Lo que prometio el Señor.
Si a Dios pide licencia oy,
Para restaurar su arbol,
Y base dentro del marmol,
Como dizendo: Aqui estoy.
Seja o quarto prodígio: No ano de 1598 manou em
Belém, do sepulcro do príncipe D. João, pai do Senhor Rei D. Se-
bastião, sangue, por dezoito dias, e é quando D. João de Castro diz,
que Sua Majestade estivera muito apertado em Nápoles; ao que
atende a sibila Eritréia: Vera-se un portento, sangriento señal, que el padre con
ancias de muerte renueva. Eu falei com o padre sacristão, que então era, e
me disse, desejara, se tivesse poder, abrir o túmulo, e ver donde
manava.
Seja o quinto prodígio: Na era de 1598 um menino de
dezenove meses, em Santarém, dizer repentinamente: Há de vir o
Bastião, e nesta desejada vinda falou três vezes em doze dias. Refere o
caso por extenso o padre frei Sebastião de Paiva na sua Quinta Monar-
quia, que viu o relatório autêntico do pai do dito menino.
Seja o sexto: Na noite de 27 de outubro de 1601 se quei-
mou o Hospital de Todos os Santos de Lisboa, em cuja desgraça
aconteceram dois prodígios: o primeiro foi ficar intacto o retrato do
Sr. Rei D. Sebastião, posto que defumado, ficando queimados todos
os outros reis, e consumidos. O segundo foi que ficaram livres as ar-
mas de Portugal feitas de madeira, que estavam sobre o cruzeiro.
Destas premissas está clara a conseqüência.
Seja o sétimo um reparo: Por que razão, em tantos anos,
se não tem feito sepultura de mármore, para o sepulcro que dizem al-
guns ser D’el-Rei D. Sebastião, e se fez para a do Cardeal Henrique?
Foi descuido ou foi acaso? Filosofe cada qual como lhe parecer.
dizem favorece aos cristãos, e com Marte, que também dizem que fa-
vorece aos turcos, se conclui, e convence astrologicamente a vitória
total da religião cristã contra a seita maometana: Hinc victoria religionis
christianae supra turcicam astrologicè concluditur.
E como esta estrela apareceu assinaladamente no signo
de Sagitário, que domina sobre Espanha, e na parte do mesmo signo,
que distingue a figura do serpentário, que domina sobre Portugal, por
ser a serpente o timbre de suas armas, claramente se vê, que este im-
pério e este monarca há de ser da Lusitânia. E isto confirma João
Carrion em o livro que imprimiu em Leão de França intitulado --
Chronicorum libellus -- donde em largas razões prova ser Portugal o
último e maior dos impérios.
Isto mesmo corrobora André Gonçalves Salmanticense em
o Tratado que escreveu da Conjunção Máxima: ponderem-no os curiosos, e
consultem-no.
Mas o nosso lusitano Bocarro resplandece entre todos; Velut in-
ter ignes luna minores, o qual largamente escreveu do império lusitano, e seu fun-
dador. Sendo cinco as suas intrínsecas das exaltações dos impérios; 1.ª as con-
junções dos planetas Saturno e Júpiter; 2.ª a mudança dos auges dos planetas,
principalmente do Sol; 3.ª a mudança da excentricidade; 4.ª a obliqüidade do
Zodíaco; 5.ª o orbe magno; com engenho agudo, e sutil arte mostra este autor
em o seu Anacefaleoses da Monarquia Lusitana, que em Portugal se denota este
grande império, nas oitavas 57, 58, 59, 61 e 62.
Oitava 57:
Soberbo passa atropelando o monte,
Vestido de Mavorte, irado o gesto.
Outro novo, senão Belorofonte
De uma nuvem cercado, obscuro, e mesto.
À ninfa rogo, que o que é me conte,
Se o presságio da nuvem tão funesto
É de ruína, ou de imatura morte?
A ninfa me responde desta sorte:
Oitava 58:
Quando cinco agarenos superando
O santo Afonso, a quem Tonante incita,
A cristífera imagem venerando,
A progênie no céu viu quase escrita:
Que na décima sexta atenuando
Se iria, lhe prediz sacro eremita;
Sustentada porém do Nereu coro
Nova honra alcançaria, e mais decoro.
Oitava 59:
Chegou-se o tempo, não feliz, mas certo,
Que rogando evitar não posso, ou basto:
Do reino congregou o pouco esperto
A gente, que perdeu fatal Sebasto;
De nuvem, como viste, vai coberto;
Porque na morte, como vês, o engasto,
Que às vezes é defensa do mau fado,
Juízo para Deus só reservado.
Oitava 61:
Do tempo que refiro, e não consumo,
Enquanto os casos míseros espendo
Compassos giro, e medindo o rumo
Vou da fortuna o pólo compreendendo:
Do mouro, que se exalta, então presumo,
Pelas coisas celestes discorrendo,
Que seu termo hoje tem, e a majestade,
Aquela que venceu naquela idade.
Oitava 62:
Venceu o lusitano, que a ventura
Dominador criou da Barberia;
Mas como a mútua sorte, que procura
Formar a portuguesa monarquia,
Indigesta estivesse, e não madura
em El-Rei D. João I, que indo-os buscar a África, lhes tirou das mãos
em um dia, e sujeitou à sua coroa a cidade de Ceuta. Sustentou-a
poderosamente El-Rei D. Duarte, e logo El-Rei D. Afonso V,
chamado Africano, tendo já tomado Alcácer aos mouros, com maior
e mais arriscado empenho se fez senhor de Tânger.
Prosseguiu as mesmas empresas El-Rei D. João II, por
mar e terra, ganhando as praças interiores, e ganhando fortalezas; e
pondo já os pés sobre o mar para passar a África em pessoa, bastou a
fama desta resolução para conseguir o fim dela.
SÉTIMO FUNDAMENTO
DO JUÍZO DOS POLÍTICOS
Dos historiadores passemos aos políticos. Muitos pudera
alegar, mas entre todos, e por todos, me contentarei com o juízo de um,
que com as vozes e sentenças de todos, professou felizmente ser mestre
da política. Este é Justo Lipsiu, varão incomparável nas notícias do
mundo antigo e moderno, e nenhum mais vigilantíssimo observador das
diminuições e aumentos dos reinos e impérios, e das causas por que uns
se levantam, outros caem; uns dominam, outros servem; uns crescem, ou-
tros diminuem; uns nascem, outros morrem; e quase debaixo da sepul-
tura alguns talvez ressuscitam.
aludindo a este império universal, com que lida em tantas partes dos
seus escritos, e indo a dizer, que virá tempo e caso em que assim seja,
o companheiro (com quem ali fala em diálogo) lhe foi à mão dizendo:
Per ignem sermones tui erunt, et vide ne ambulare: Repara Lipsiu, que estas
tuas palavras se metem pelo fogo, e olha não te queimes. Donde se
segue manifestamente que o fogo e perigo em que se metia era es-
perar, e prometer outro império dentro em Espanha; porque sendo
ele vassalo seu, como flamengo, natural dos estados católicos de Flan-
des, ficaria suspeitoso, e indiciado de menos devoto e afeto às felici-
dades e grandezas daquela monarquia, o que de nenhum modo se
podia temer se ele lhe prognosticasse os acrescentamentos do império uni-
versal, antes seria o maior obséquio e lisonja que podia fazer aos mes-
mos reis.
Em suma, que em todos estes lugares fala Lipsiu do fu-
turo império universal, que se há de levantar, como um novo sol, na
gente mais ocidental do Oceano (que são os portugueses) e que a
esta gente se há de passar o cetro, e sujeitar toda a potência do
turco.
E se alguém, com razão perguntar, de que princípios se
pode inferir politicamente que este império universal e último se haja de
levantar nos últimos fins ou raias do ocidente? Respondo que da ex-
periência havida pelas histórias, que são aquele espelho inculcado por Sa-
lomão, em que olhando para o passado, se antevêem os futuros. E posto
que estes dependam dos decretos divinos, pelos efeitos que os olhos
vêem dos mesmos decretos, não só conhece o discurso humano quais
eles fossem, mas infere, quase com certeza, quais haja de ser. Assim o no-
tou em outro lugar o mesmo Lipsiu, advertindo (e pedindo se considere)
que o poder e o domínio do mundo sempre veio caminhando ou
descendo do oriente para o ocidente: Nescio quo povidentiae decreto res, et vigor
ab oriente (considera si voles) ad occasum eunt.
O primeiro império do mundo, que foi o dos assírios, e
dominou toda a Ásia, também foi o mais oriental: dali passou aos persas,
mais ocidentais que os assírios, dali aos gregos, mais ocidentais que os
persas, dali aos romanos, mais ocidentais que os gregos; e como já tem
passado pelos romanos, e vai levando seu curso para o ocidente, havendo
de ser como é de fé, o último império, aonde pode ir parar, senão na
gente mais ocidental de todas, que são os portugueses?
Mas por que o mesmo autor desta advertência confessa
ignorar a razão dela, e a da providência divina em um tal decreto: Nescio
quo providentiae decreto; não será temeridade, nem consideração supér-
flua dizer eu a razão que se me oferece; e é, que Deus enquanto gover-
nador do mundo, se conforma consigo mesmo, enquanto criador
dele. A sabedoria com que Deus governa o universo é a mesma com
que o criou. Que muito logo, que no modo do governo, e da
criação se pareça a mesma sabedoria, e o mesmo Deus consigo?
Deus criou o mundo em sete dias, e vemos que no governo do
mesmo mundo, nas idades, nas vidas, nas doenças, nos dias críticos, e
nos anos climatéricos, observa sempre os períodos do mesmo seteno.
Pois assim como Deus no governo da natureza observa a proporção
dos tempos, assim é de crer que no governo dos impérios observe a
proporção dos movimentos. O sol, os céus, as estrelas, os mares, to-
dos se movem perpetuamente do oriente para o ocidente; e porque a
roda, que os ignorantes chamam da fortuna, é própria e verdadeira-
mente a da providência divina, correndo sempre os movimentos
naturais do universo desde o oriente ao ocaso, pede a proporção e
harmonia do mesmo universo, que também corram do oriente para o
ocaso os movimentos políticos. Assim que, não é totalmente violenta
a força que muda e desfaz os impérios antigos, e cria e levanta os no-
vos; mas essa mesma violência ou força tem muito de natural, pois
segue os movimentos e peso de toda a natureza. No oriente nasceu o
primeiro império, no ocidente há de parar o último.
destinado para a fábrica de tão alto edifício. Como o sangue nos cor-
pos viventes e sensitivos é o humor e instrumento principal, sem o
qual se não poderam sustentar nem viver, assim neste vastíssimo
corpo do universo em que a terra e os penhascos são a carne e os os-
sos; o mar, os portos e os rios são o sangue, os nervos e as veias, por
onde nas mais remotas distâncias se pode unir o coração com os
membros, e por meio deles lhes comunicar a vida, e reparar as forças
com aquela distribuição igual e contínua, sem a qual se não pode con-
servar e muito menos ser um. As naus grandes e poderosas são as
pontes do Oceano, e as embarcações menores, as dos rios caudalosos
e navegáveis: com estas se unem as povíncias, com aquelas o mundo
se não divide em partes, e até as mesmas ilhas se fazem continentes.
E que outro lugar há no universo tão acomodado a receber ele, como
de uma só fonte, todos estes benefícios vitais, mais breve e facilmente
que Portugal, situado quase na boca do Mediterrâneo, não longe das
gargantas do Báltico, e para o Atlântico e Etiópia para o Eritreu e o
Índico o mais vizinho? Ali se deságua o Tejo, esperando entre dois
promontórios, como com os braços abertos, não os tributos de que o
suave jugo daquele império libertará todas as gentes, mas a voluntária
obediência de todas que ali se conheceram juntas, até as da terra hoje
incógnita, que então perderá a injúria deste nome.
Lava o celebradíssimo Tejo, ou doira com as suas corren-
tes as ribeiras, e faz espelho aos montes, e torres de Lisboa, aquela
antiquíssima cidade, que na prerrogativa dos anos excede a todas as
que os contam por séculos. Em seu nascimento foi fundada por Elisa
filho de Javã, e irmão de Tubal, ambos netos de Noé, donde
começou a ser conhecida pelo nome de Eliséia; e depois tão amplifi-
cada por Ulisses, que não duvidou a grega ambição de lhe dar, como
obra própria, o nome de Ulissipo. Tanto pelo fundador, como pelo
amplificador, lhe compete a Lisboa a precedência de todas as
metrópoles dos impérios do mundo; porque enquanto Eliséia, é 222
anos mais antiga que Nínive, cabeça do primeiro império, que foi o
dos assírios; e enquanto Ulissipo 425 anos mais antiga que Roma, ca-
16.º Cum inventus fuerit in medio lui intra unam portarum tu-
arum; quas Dominus Deus tuus dat tibi, vir, sive mulier, qui facerit, quod ma-
lum est in oculis Domini Dei tui ut transgrediatur pactum ejus, fuerit que, et
coluerit Deos alienos, et adoraverit eos, solem, aut lunam, aut quemcumque exer-
citum celorum, quod ego non proecepi, et nunciatum fuerit tibi, audieris, que, et in-
quires bene, et ecce si fuerit verum, et certum verbum, et facta fuerit abominatio
ista in Israel educes virum illum, aut mulierem illam, qui fecerunt remillam
iniquam virum in quam, aut mulierem, et obruas eos lapidibus, donec moriantur.
17.º Encarrega Deus que, sendo um homem acusado de
apostasia, que se inquira e especule com muita exação e cuidado, de
modo que conste aos juízes, que a denunciação é verdadeira e certa, e
não conjetural e presuntiva, não coligida da identidade do sangue; de-
duzindo tem sangue de moiro, ou de judeu: logo é crível que observe
a lei de Moisés ou de Mafoma.
18.º Dos mesmos termos e expressões usa a escritura
sagrada, tratando da apostasia de uma cidade ou povo, encarregando
as mesmas cautelas, não só em geral, mas em particular.
19.º Debes inquirire, investigare, et interrogare deligenter si verum
est et certum verbum illud, quod facta sit abominatio ista in medio tui, percu-
tiendo peruties: habitatores civitatis illius in ore gladii.
20.º Considere-se, pois, se processos fundados sobre de-
poimentos de testemunhas não contestes, que não receiam castigo,
ainda que sejam falsos; que não sentem que se lhes prove a coartada,
incógnitas totalmente ao réu, com quem, não só os não confrontam,
mas nem ainda os nomeiam; que pela maior parte são vis, corrup-
tíveis, néscios, e se talvez são homens de honra, depõem de outros,
para se livrar de si, se estão presos; ou para que não os prendam, se
estão livres, obrigando-os o temor de perder a honra, os bens e a
vida, a forjar na sua idéia entes de sem razão para salvar a mais im-
portante destas partes essenciais da humana felicidade, ou todas se for
possível.
21.º Se se devem admitir estas testemunhas em um tribu-
nal que se jacta exercitar a mesma jurisdição de Deus! Se seus de-
dinheiro para ir à terra onde não tivesse que recear os rigores da in-
quisição.
42º Este moço, além de ser dos principais da nação,
como tenho dito, estimado de todos os que tratavam com ele, por ser
dotado de um caráter dócil e afável com todos, leal em seu negócio,
pontual em sua palavra, e finalmente prudente e discreto, era univer-
salmente amado de todos: prenderam-no pela inquisição, e poucos
dias depois elegeram por papa ao cardeal Odescalchi, que foi Inocên-
cio XI. Como este sendo cardeal se havia mostrado muito de-
safeiçoado aos judeus, receavam que oferecendo-se-lhe ocasião tão
plausível e oportuna, não deixaria de satisfazer os impulsos da sua av-
ersão em a pessoa do preso, condenando-o a um rigoroso castigo;
porém ficaram desenganados dali a poucos dias quando o viram
aparecer livre, alegre, e agradecido aos inquisidores, e a seus subalter-
nos ministros, que, conhecendo o falso da acusação, o trataram com
muita benignidade e carinho em tudo, e em todo o tempo que teve de
prisão, que foi de 55 dias, sem lhe levarem mais gastos que 55 júlios
de moeda romana, que são cinco escudos e meio da mesma moeda,
havendo-lhe primeiro advertido que se era pobre não o obrigavam a
pagá-los. Como este moço era um dos meus amigos, quis ouvir dele o
caso pela sua mesma boca, e ele mo relatou como o tenho referido,
não cessando de louvar ao tribunal da inquisição de Roma: se o de
Espanha e Portugal imitaram a retidão e eqüidade da suprema, e
seguiram os vestígios da sua indulgência, mereceriam os mesmos elo-
gios, e alcançariam os mesmos encômios.
43.º Conhecendo os ministros de Inocêncio XI a grande av-
ersão que tinha à nação hebréia, aconselharam as suas cabeças que lhe
não fossem render obediência, como tinham feito aos pontífices seus an-
tepassados para se não exporem a alguma mortal afronta: seguiram o
conselho, e não foram a seus pés, sem que o papa formasse queixa da sua
omissão, por onde claramente se coligiu a desafeição que tinha à nação.
44.º Sem embargo deste papa tão contrário, e tão de-
safeiçoado, ocorrendo-lhe tão boa oportunidade de executar os im-
todo o resto dos meus dias não os aborrecerei; como com efeito fez
até agora. Torno a ratificar o que disse de Inocêncio XI em o fim do
§ 44: isto é justiça, isto é clemência, isto é caridade.
51.º Dois textos do Deuteronômio, tenho alegado, um
no § 16, que manda que se apedreje ao particular que houver aposta-
tado; outro no § 19, onde se manda que, apostatando uma cidade in-
teira, se matem os moradores à espada, e que se queime a cidade com
tudo o que houver nela, em forma que não fique alma vivente ra-
cional, ou irracional, nem rasto de fazenda, nem pedra de edifício,
nem se permita reedificar-se mais. Em nenhum destes dois textos se
faz menção de fisco; e se em cidade que é apóstata manda se queime
tudo, é porque devendo morrer todos os moradores, era supérflua a
fazenda com tudo o que serve para comodidade da vida, e isto não é
confiscação, é destruição. Em o segundo texto, que é o § 19, que trata
da apostasia de um particular, manda que se apedreje o apóstata
somente, e não que lhe confisquem os bens; e como Deus é todo
justiça, e todo misericórdia, não permite já que os filhos padeçam
pelos delitos de seus pais, não sendo cúmplices do mesmo delito.
52.º Se as inquisições pois de Espanha e Portugal permi-
tiram que os bens fossem aos legítimos herdeiros do réu, e pro-
cedessem contra ele só com todo o rigor das leis, ainda que fosse com
as falsidades que hoje se usam, que são, não nomear as testemunhas
ao réu, não as confrontar com ele, não as castigar rigorosamente,
provando-se-lhes a falsidade, podia-se persuadir o mundo, que o rigor
que se via, procederia de um fervoroso zelo de religião, sem outro fim
que de expurgar esses reinos de tudo o que não é apostólico romano;
porém como sempre adjudicam ao fisco, e ao seu tribunal, presume-
se universalmente, que as pias admoestações ficam atropeladas dos
estímulos violentos da cobiça.
53.º Os reis e príncipes ainda que sejam despóticos sen-
hores das vidas e bens de seus vassalos vivem, sem embargo disso,
sujeitos ao inflexível tribunal da razão e eqüidade, cujos termos jamais
devem exceder em a justiça comutativa com a proporção aritmética;
DE
INQUISIÇÃO
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214 PADRE ANTÔNIO VIEIRA
para prova da sua defesa porquanto não estavam capazes disso, nem
ainda no estado em que estavam se lhe dera tempo para os ver e re-
mendar nem sabia o que neles se dizia, e algumas das mesmas
coisas se haviam de mudar, como acontece a todos os que com-
põem e escrevem qualquer matéria, e muito mais de controvérsias,
e que somente apresentava aqueles papéis aos ditos senhores in-
quisidores para que os vissem e lhes constasse como ele suplicante
tinha obedecido e trabalhado neles sem cessar, e que assim o
pedia e requeria; o que os ditos senhores não quiseram fazer, nem
ainda ouvi-lo devagar, dizendo que tinham muitas ocupações, e
que o que ele suplicante dizia se não escrevia, nem importava nada
para a sua causa, a que ele replicou requerendo que se lhe tomasse
por escrito tudo o que ele dizia e tinha para dizer, protestando de
novo que se lhe desse tempo necessário e suficiente para re-
sponder; que o mesmo tempo que se lhe tinha dado e assinado se
lhe tornava a negar, contra todo o direito natural, do qual direito
ele de nenhum modo cedia, nem consentia na violência notória
que se lhe fazia por este modo, e que assim o tornava a requerer.
Respondendo-se-lhe a tudo que deixasse os papéis, e se fosse,
como com efeito foi, obrigado e contra sua vontade. Tornando a
declarar e a requerer que os ditos seus papéis se lhe haviam resti-
tuir, pois eram os instrumentos e armas de sua defesa com as
quais ele se não podia defender enquanto não estavam formados e
postos em estado que por eles constasse a sua razão e justiça.
Este é o fato de todo o processo da sua causa até o dia
presente, de que dá por prova os mesmos autos, e do que deles não
constar aos mesmos senhores inquisidores e notário, que estava pre-
sente, e se de alguma outra coisa das acima referidas nesta narração,
for necessária mais prova que a notoriedade delas, se oferece a provar
todas pelos meios de direito.
tes parece se lhe quer tirar e negar) o direito natural de sua defesa.
Porquanto:
Provará que ele suplicante não pode ser sentenciado sem
se lhe dar defesa, e o tempo suficiente e necessário para ela.
Provará que o tempo necessário e suficiente para a dita
defesa se há de medir e proporcionar e regular pela quantidade das
matérias de que se trata, e pela disposição ou capacidade do sujeito ou
pessoa que há de dar ou fazer a dita defesa.
Provará que a ele suplicante se lhe não tem dado até ag-
ora o tempo suficiente e necessário para a sua defesa, segundo a dita
quantidade e qualidade das matérias a que deve responder.
Provará que as ditas matérias, quanto à quantidade, são
muitas e diversas; porque não só se lhe fez cargo das proposições
contidas na carta que escreveu ao bispo do Japão, senão também de
outras mais que se lhe imputa haver proferido em diferentes conver-
sações, e sobretudo de alguns livros que teve pensamento de escrever,
e das matérias e assuntos deles.
Provará que sobre todas as coisas sobreditas lhe foram
feitas várias perguntas, e se lhe argüíram erros e conseqüências absur-
das, a que ele também deve responder e satisfazer, com o que
acresceram e se aumentaram muito as ditas matérias.
Provará que depois dos ditos seus livros, ou pensamentos
de livros, assuntos e proposições de que haviam de constar, serem as-
sim argüidos e censurados, fica mais dilatada a matéria e prova deles,
do que se com efeito os compusera, por ser em juízo contraditório,
de que podem ser exemplo todos os autores que fizeram apologias
em defensa de suas obras, ou de uma só proposição que lhe quiseram
condenar.
Provará que as ditas matérias, de que há de dar razão,
pela qualidade delas, são ainda mais dificultosas e dilatadas, e re-
querem muito mais tempo para a sua defesa. Porque:
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e se aplique à dita obra, e lhe dêem todo o favor e ajuda para isso, as-
sim pelo dito serviço e glória de Deus e da universal Igreja, como pela
honra e estimação deste reino, que é bem conheça os fins por que
Deus o tem escolhido para dilatador de sua fé, e também para con-
fusão e desengano de seus inimigos.
E para que ultimamente conste a vossa senhoria quanto
ele suplicante deseja dar brevemente razão de si, de seus fundamen-
tos, e das opiniões e proposições em que se repara, e que disposto
está a abreviar a resolução da sua causa, e saber pelo juízo deste
sagrado tribunal se deve continuar ou desistir do pensamento da dita
obra, ou emendar algumas coisas dela, vista a dificuldade ou moral
impossibilidade de responder em breve tempo por papel, por todas as
causas acima alegadas, assim da parte do sujeito, como da qualidade e
quantidades das matérias: representa ele suplicante e pede a Vossa
Senhoria, como por vezes tem representado ao senhor inquisidor Al-
exandre da Silva, se lhe conceda licença para responder verbalmente
diante de vossa senhoria, ou dos senhores inquisidores desta cidade, e
das pessoas mais qualificadas e doutras que vossa senhoria para isso
nomear, para o que ele se oferece logo depois da sua convalescença, e
ainda antes de estar bem convalescido, porque falando e respondendo
às dificuldades se pode examinar em pouco tempo o que por papel se
não pode deduzir, se não em muito larga escritura, e com grande dis-
puta de argumentos, sem os quais se não podem fundar e defender as
conclusões que em cada uma das matérias são muitas, e cada uma de-
las depende de outras suposições, também não tratadas ex professo nos
livros, pelo que é necessário que ele as trate e dispute desde seus
primeiros princípios e fundamentos, sob pena de não ser entendida a
certeza ou probabilidade delas, com que ele suplicante fica fazendo da
sua parte quanto é possível, e oferecendo-se a muito mais do que em
direito é obrigado para abreviar a decisão da sua causa, cuja dilação de
nenhum modo se lhe pode atribuir, nem imputar, pois não está por
ele, porquanto se oferece, ou a responder logo verbalmente, ou a re-
sponder por escrito com o tempo necessário. Pelo que tudo:
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224 PADRE ANTÔNIO VIEIRA
vista se lhe deve de direito dar a ele suplicante sob pena de ficar inde-
feso, porque nem ele pode adivinhar os fundamentos por que suas
proposições foram censuradas, nem os juízes julgar se têm suficiente
resposta ou solução enquanto se não dá vista delas a quem tem obri-
gação de lhe responder. Na dita vista, calando o nome do qualificador,
não há inconveniente algum, antes grande justificação e crédito da justiça,
pois de outro modo se não pode conhecer inteiramente a verdade,
que é só o que se deve pretender, e até no tribunal divino, cuja ciên-
cia, verdade e juízo são infalíveis, se consente e admite este requeri-
mento, o qual fez Jó ao mesmo Deus, quando disse Indica mihi cur me
ita judices (Jó X -- 2), nem se pode dizer que este requerimento é in-
tempestivo, pois o fez ele suplicante ao senhor inquisidor Alexandre
da Silva desde o dia em que lhe foi dado o libelo, e lhe foi respondido
que não era estilo, a que ele replicou que não será estilo em outros ca-
sos, mas neste seu o deve ser, porque é mui diverso, e se lhe deve de
direito natural, pois ninguém se pode defender de armas invisíveis,
que muitas vezes se formam: Ut sagittent in ocultis immaculatum (S.
LXIII -- 5). Encubra-se embora a mão, mas não se encubra a seta.
Finalmente, em qualquer dos sobreditos casos pede e re-
quer lhe sejam outra vez entregues os papéis de seus apontamentos e
respostas que tinha principiado, os quais levou ao santo ofício obri-
gado de seus mandados somente para que constasse aos senhores in-
quisidores da diligência e aplicação com que ele suplicante lhe tinha
obedecido, e do muito que tinha trabalhado, e não para fim e via de
se defender com os ditos papéis, imperfeitos, mutilados, confusos, e
informes, e sem disposição, nem conclusão alguma, e que somente
são as matérias e os materiais que aí ia ajuntando, e começando a dis-
por para a sua defesa, assim como as pedras que se vão lavrando e
ajuntando, ainda que delas se hão de fazer os muros, enquanto não
estão lavradas, e unidas, e postas em seu lugar, não podem servir de
defensa. E se acaso entre os ditos papéis houver alguma coisa que
seja menos conforme à verdade de sua doutrina, ou da que se deve
seguir, protesta que tal ou tais coisas se não devem reputar por suas,
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226 PADRE ANTÔNIO VIEIRA
porque nem ele reviu os ditos papéis, nem se lhe deu um momento para
isso; e nem tudo o que os autores ajuntam em seus apontamentos é
para o seguirem ou afirmarem senão a também para o refutarem e
impugnarem, e depois de acabada a questão, e ainda toda a obra, en-
tão se faz a última eleição do que resolutivamente se há de seguir. E
porque pode acontecer que para este incidente (como deve ser sem
dúvida para a causa principal) sejam consultados alguns teólogos, e
outras pessoas doutas, pede e requer a Vossa Senhoria ele suplicante, que
assim nesta como em qualquer outra matéria tocante a ele, não sejam
consultadas, nem admitidas pessoas que por alguma via lhe possam ser
suspeitas, sendo certo que fora e dentro de sua religião tem muitos êmu-
los, os quais não pode nomear em particular porque não sabe quais ha-
jam de ser, e somente pode dar, como dá por suspeitos em geral aos re-
ligiosos do Carmo pelas controvérsias que teve com eles no Maranhão,
sendo os ditos religiosos os principais movedores da sua expulsão, e dos
outros religiosos da Companhia que lá estavam por haverem tomado
umas cartas dele suplicante em que informava contra eles a sua majestade
em matérias graves e de muita importância, conforme as ordens que tinha
do dito senhor, e provará as ditas suspeições largamente sendo ne-
cessário.
Item dá por suspeitos em suas causas aos religiosos de São
Domingos, assim pela emulação e oposição geral que têm com os da
Companhia sobre opiniões em matérias de letras, como particularmente
desde anos a esta parte com a pessoa dele suplicante por haverem en-
tendido que ele em um sermão da capela desestimara ou reprovara seu
modo de pregar apostilado, pela qual razão os ditos religiosos se deram
por mui ofendidos dele, e o mostraram publicamente nos púlpitos, e em
papéis particulares que contra ele escreveram, sendo os mais empenhados
neste sentimento as pessoas mais graves da dita religião, como é notório e
provará sendo necessário.
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228 PADRE ANTÔNIO VIEIRA
como tal se devia procurar que fosse proibido, assim para que os por-
tugueses com aquela esperança se não animassem a perseverar no que
eles chamam rebelião, como também para que os castelhanos não
cressem nas nossas chamadas felicidades por ele.
Ultimamente pede e requer ele suplicante a vossa sen-
horia que estes seus requerimentos se acostem ao processo de sua
causa, e que nela se cumpra tudo aquilo em que estiverem defeitu-
osos, e tudo o mais que pode cumprir ao bem e melhoramento de sua
justiça, porquanto ele suplicante não tem notícia nem prática alguma
de requerer nos juízos, e muito menos dos estilos deste sagrado tribu-
nal, nem do modo que nele se deve falar e requerer. E porque o re-
speita, reverencia e venera, como ele merece, pede perdão de algum
erro, se por ignorância o houver cometido neste papel, como pessoa
totalmente alheia desta profissão, e que não tem procurador que o en-
caminhe, pedindo e requerendo pela mesma razão a vossa senhoria
lhe mande nomear por procurador um dos ministros deputados do
santo ofício, que, com as letras e inteireza que professam, possa de-
fender a justiça de sua causa.
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230 PADRE ANTÔNIO VIEIRA
hor: Et fiet unum ovile, et unus pastor (Joan. X-16) e que assim há de
durar o mundo por muitos anos.
Nona. Que no dito tempo hão de aparecer os dez tribos
de Israel (Êxod. XIII) que desapareceram há mais de dois mil anos,
sem se saber deles, e que o mesmo imperador ressuscitado os há de
apresentar ao sumo pontífice; tratando o réu de provar o tal apare-
cimento com alguns lugares da sagrada escritura.
E assim em razão das ditas proposições censuradas,
como de haver também informação do santo ofício, que o réu de-
pois de compor o sobredito papel, afirmara em certa parte perante al-
gumas pessoas, as proposições seguintes concernentes a mesma
matéria; a saber:
Que depois de todo o mundo ser reduzido à fé de Cristo,
há de durar mil anos, tendo Deus preso neles o Diabo (antes solto)
para não tentar as gentes, como o deduziu do cap. 20 do Apocalipse
(Apoc. XX -- 1, 2 e 3.)
Que viverá o mundo em paz, à imitação do estado da
inocência, sem guerra, e sem trabalhos; e que depois havendo de vir o
Anticristo (Apoc. XX -- 3) se tornará a soltar o Diabo, e virá o dia de
juízo.
Que não era crível que Deus fizesse o mundo então sujeito a
uma só cabeça: Unum ovile et unus pastor (Joan. X -- 6) para logo acabar, an-
tes que nos mil anos, sendo tanta a gente santa, se igualaria o número dos
predestinados ao dos réprobos; que foi o que nos quis ensinar Cristo
Senhor nosso na parábola das virgens (Mat. XXV -- 2, 10, 11, 12 e 13),
que sendo dez, cinco delas se perderam, e cinco se salvaram: não mere-
cendo menos censura estas proposições, que as acima referidas, e
conteúdas no dito papel do Quinto Império do mundo.
Pelo que foi o réu mandado aparecer pessoalmente na
mesa do santo ofício; e sendo nela perguntado em geral, se dissera
ou fizera alguma coisa de que lhe parecesse era obrigado a dar conta
na Inquisição, e em particular se compusera o papel acima dito do
que São Paulo tirou das promessas de Deus feitas a Abraão; e que
além das trovas do dito Bandarra, de que tirava a ilação do dito rei
haver de ressuscitar, se moveu também a tê-lo por provável, e as mais
coisas por ele preditas nesta matéria, por combinarem com lugares da
sagrada escritura explicados por bons doutores, e por predições de
santos e pessoas que têm opinião geral de falarem com espírito
profético, a saber: S. Francisco de Paula, S. Metódio e outros:
Que não tivera licença alguma da sé apostólica e or-
dinário para divulgar por verdadeiras profecias as trovas do Bandarra,
por lhe parecer que não necessitava dela, suposto o consentimento
tanto universal dos prelados eclesiásticos deste reino aonde se im-
primiram, e principalmente porque não propôs as ditas trovas e
promessas do Bandarra por verdadeiras e infalíveis absolutamente,
senão conforme a aceitação ordinária, e pela certeza e probabilidade
moral, que costuma fundar-se no discurso humano.
Que sabe muito bem, que segundo a doutrina dos san-
tos padres, e o que consta da sagrada escritura, que não basta faltar
aos sucessos alguma coisa predita, ou cominada por alguns profetas,
para ser tido por não verdadeiro; mas diz, sem embargo disso, que
se os sucessos fossem de tantas coisas e tais, que não possam ser
antevistas por entendimento criado, essas bastam para qualificar o
verdadeiro espírito de profecia; e que ainda que alguns doutores si-
gam o contrário, têm por opinião mais provável, que basta um
sucesso das coisas profetizadas para constituir algum verdadeiro
profeta, e assim entende que é regra dada por Deus no cap. 18 do
Deuteronômio, como também afirma, que bem pode uma pessoa ter
espírito profético e iluminação profética e verdadeira, ainda que
prediga coisa que não contenha doutrina sã e católica.
Que tem para si, fundado em muitos lugares da sagrada
escritura, e santos padres, que com efeito se hão de reduzir à fé todos
os judeus e gentios; e suposto que tem visto muitos autores que ensi-
nam haver de ser esta conversão geral por meio da pregação de Elias
e Enoque, depois da vinda do Anticristo; contudo, conforme vários
que as tentações do Diabo sejam tão fortes e livres, como as que ag-
ora faz ao gênero humano.
Que muitos santos da primitiva Igreja, principalmente a
Virgem Maria Senhora Nossa, o glorioso S. José, S. João Batista e os
santos apóstolos, são tão incomparavelmente avantajados em mere-
cimentos, virtudes e santidade a todas as mais criaturas, que comparar
e igualar com eles os santos que o réu prometia e esperava no tempo
do Quinto Império, e dizer que com aqueles futuros prelados muito
santos se há de reformar a Igreja, era temerário, e tirado de algumas
chamadas revelações que, mandadas examinar pela santa sé
apostólica, as não quis aprovar, antes as proibiu, por parecerem mais
sonhos e delírios que revelações verdadeiras.
Que pelo determinado número dos mil anos de que no
Apocalipse se trata acerca da ligação do Demônio, se deve entender
conforme a comum explicação dos santos padres e doutores, o
número indeterminado dos anos que correm desde a morte de Cristo
Nosso Senhor até a vinda do Anticristo, e fim do mundo, e não pelo
tempo que depois de acabar o império do turco, dizia o réu há de
suceder e durar a redução universal do mundo todo, judeus e gentios
à fé, e paz geral entre os príncipes cristãos.
Que ainda que, segundo o comum sentir dos santos pa-
dres, esteja no Apocalipse profetizada a destruição de Roma, sem ser
alguma das que já teve, e que há de ser abrasada em castigo das
perseguições passadas que nela se moveram à Igreja, no tempo em
que a dita cidade foi governada pelos gentios; contudo era erro ines-
cusável e suspeito de judaísmo atribuir a dita destruição à cruel guerra
e entrada do turco por Alemanha e Itália com a extinção do império
romano quando começar o dito rei ressuscitado; quando aliás a
comum inteligência dos mesmos padres e expositores é, que o tal
incêndio e destruição de Roma há de ser no tempo do Anticristo
ou proximamente a ele, e não muitos anos antes, quando for o do
Quinto Império, como o réu dizia, e os judeus tambem afirmam há
de suceder no Quinto Império do seu Messias.
tas, segue-se que não interveio a condição, e que hão de ter efeito ab-
soluto, porque de outro modo não podiam ser vistas.
Que todas as coisas estão preditas pelo Bandarra, e cumpri-
das até hoje (sendo tantas e tão grandes), ninguém as predisse nem pro-
fetizou senão ele, e que ainda que as que estão por cumprir sejam de igual
ou maior grandeza, estão quase todas preditas na sagrada escritura; acres-
centando o réu que se Bandarra no seu livro quisera compor uma de-
claração do credo, uma protestação da fé romana, uma apologia ou uma
invectiva contra todas as seitas dos infiéis, e contra todas as espécies da
infidelidade, não pudera dizer mais que o que disse em tão pequeno vol-
ume; e aqui fazia a exclamação seguinte: Ó quanto de melhor vontade ex-
aminara eu e refutara esta calúnia imposta ao Bandarra, argumentando do
que escrevendo! E senão digam os autores, em que está a razão, força ou
eficácia? Se são escrupulosos, em que está a aparência, dúvida ou receio?
Mostrem alguma palavra, alguma letra, alguma sílaba, em todos aqueles
toscos versos, que seja menos consoante, ou menos conforme à fé e à
doutrina da Igreja católica.
Que até aos supremos tribunais de Roma, chegaram as
forças da diligência, para ser proibida a lição do Bandarra, onde a
distância podia escurecer a verdade, a diferença da língua a in-
teligência, e o afeto de certa nação a justiça da causa; e que assim
como trataram de introduzir em Portugal a lição de Palafox, assim
quiseram proibir a lição do Bandarra, e muito mais depois que o
viram comentado, como quem receita o veneno, e veda a triaga;
mas que debalde se cansará a emulação dos inimigos, e a lisonja
dos que favorecem a mesma emulação, com quererem negar a fé
ao profeta, se não podem negar a vista às profecias; pois nem às
profecias haviam de tirar a confirmação, nem ao profeta o ba-
tismo; porque muito a seu pesar elas sempre hão de ser verdadei-
ras, e ele sempre cristão.
Que já hoje era doutrina muito comumente, recebida dos
teólogos modernos, que para se crer nas revelações privadas, e ainda
para as publicar, não era condição absolutamente necessária, serem
hipérbole, e encarecimento, mas que ele réu dizia que não é encare-
cimento nem hipérbole, senão que é verdade moralmente universal
em todo o rigor da teologia, ser impossível que se salve algum dos que
governam, e que impossível moral chamam os doutores àquilo que
nunca, ou quase nunca costuma acontecer (Vieira part. 3ª n.º 238).
Em outro sermão da segunda dominga do advento,
havendo falado do juízo final; disse: Sabei, cristãos, que há ainda ou-
tro juízo mais terrível; ainda há outro juízo mais rigoroso; ainda há
outro juízo mais estreito, que o juízo de Deus: e que juízo é este? É o
juízo dos homens. (Vieira part. 5ª serm. 2)
E por se achar que as ditas proposições e denunciações
acrescidas continham não só doutrina nova, perigosa e falsa, mas
também outras matérias de grande peso e importância, e parecer
muito conveniente por todos os respeitos averiguá-las com maior cir-
cunspeção e madureza, e com segurança da pessoa do réu; foi man-
dado recolher em uma das casas de custódia da inquisição, e que dela
se continuassem os termos do seu processo.
E sendo todas as proposições, respostas do réu, e de-
nunciações acima referidas mandadas de novo qualificar por
outras mais pessoas de conhecidas letras e virtude, e muito ver-
sadas na lição da sagrada escritura; e outrossim uma larguíssima apo-
logia que o réu compôs e entregou em juízo depois do tempo de sua re-
clusão, em que confirmava tudo o que nos ditos papéis do Quinto Im-
pério, cadernos e respostas se continha, e procurava prová-lo com as
mesmas trovas do Bandarra, vários lugares da escritura, e autoridades
de alguns expositores; acrescentando que suposto se não podia com
certeza dizer o tempo em que havia de começar a mudança de que
tratava (tão notável ao mundo e à Igreja) em ordem ao novo estado do
império completo de Cristo, contudo a opinião em que concorriam
maiores conjecturas, fundada no texto da visão de Daniel, era, que a
dita mudança teria seu princípio na era de 1660, e particularmente na
era de 1666, em que o réu aquilo escrevia; retratando-se somente do
que tinha escrito em uma das sobreditas proposições acerca de ser
que dava nos ditos exames (as quais por evitar maior prolixidade se
não repetem aqui por extenso) perseverando em sustentar o que tinha
escrito e proferido, não iludia os fundamentos e autoridade com que
a verdade de nossa santa fé, e resoluções conformes a ela (que devia
ter e seguir) se propunha e estabelecia nas ditas qualificações e exames
contra as mesmas proposições repetidas dele réu, e contra a falsa e ar-
riscada doutrina, que nelas procurava introduzir, e tratava defender.
Porque em afirmar que há de haver no mundo quinto im-
pério terreno de Cristo, e que este é o esperado das gentes: In eum gentes
sperabunt (Rom. XV -- 12), que São Paulo aos romanos explica do Reden-
tor espiritual; e do que no salmo segundo em que se trata da paixão de
Cristo se diz: Postula me, et dabo tibi gentes haereditatem tuam, et possessionem
tuam terminos terrae (Sal. II -- 8), e de outros mais (que são os mesmos que
provam a fé do reino espiritual que Cristo fundou na sua cruz: Regnavit a
ligno Deus*) declina ao erro dos judeus, que esperam reino temporal
contra Cristo Redentor, e rei espiritual crucificado: Nos autem praedica-
mus Christum crucifixum: judaeis quidem scandalum. (1. Cor. I -- 23)
Nem se escusava confessando também o reino espiritual
de Cristo crucificado, que reconhece, porque também Cengo recon-
hecendo-o era judaizante, por lhe ajuntar as cerimônias da lei; como
também aos milenários chama judaizantes S. Jerônimo com a Igreja,
que os condena por declinarem as esperanças para o reino terreno de
mil anos, que os judeus esperam no tempo do seu Messias com as fe-
licidades deste quinto império.
Nem se desvia dos milenários judaizantes com prome-
ter este reino nesta vida, e muito cedo, esperando-o aqueles na
outra, porquanto mais se chega aos judeus, que o esperam também
nesta vida presente na vinda do seu Messias, e perpétuo depois para
sempre na Terra, donde se segue que tendo até agora à pregação
evangélica de Cristo Rei espiritual e crucificado: Nos autem praedica-
mus Christum crucifixem (Ibid.) (a que repugna o reino temporal) daqui
por diante seria lícito pregar: Christum crucifixum temporalem regem; es-
perar e pedir pela cruz de Cristo, reinar temporalmente na Terra com
ele, como pregamos e pedimos reinar espiritualmente com o mesmo
Senhor no Céu; porquanto tudo o que há de haver em Cristo Reden-
tor, Rei e cabeça nossa, se pede e deve pedir e esperar Dele para to-
dos os professores da sua redenção, pela qual nos deu todo o seu
merecimento; e assim ou virão outra vez ao mundo lograr este reino
terreno de Cristo os antigos padres, como dizem os judeus dos seus,
no tempo do reinado do Messias; ou ficarão privados, sem culpa sua,
desta glória terrena todos os que não viverem naquele tempo.
Nem carecerão desta pena os bem-aventurados do Céu;
pois Cristo Rei da glória, segundo o doutrina deste quinto império,
ainda espera empossar-se deste reino temporal na Terra, como consu-
mação do seu reinado, por meio de seu temporal vigário, certo rei de
Portugal e seus sucessores, à semelhança do vigário de Cristo espiri-
tual; e assim porão na Terra os bem-aventurados também seus pro-
curadores, para tomar posse do que lhes cabe neste reinado, o que so-
bre ser fátuo no sentido humano, como se nota, o é também na cen-
sura de Roma, por ser sem fundamento algum da escritura, pois se
não acha nela lugar da instituição deste vigário temporal de Cristo na
Terra.
E sobretudo semelhante modo de discorrer, principal-
mente declina a judaísmo; pois segundo a doutrina de São Paulo,
não se admite salvação, santidade, e bem-aventurança da alma
com bens terrenos e temporais nesta vida e na outra; e os judeus
para isso, e por isso, dizem que o são para serem ricos e honrados;
e esta é, e foi a total causa por que não receberam, nem hoje rece-
bem a redenção espiritual de Cristo, que só foi e é por cruz, po-
breza e desprezo, sem as bonanças temporais, a que sempre aten-
deram os judeus.
Pelo que, vendo estes agora, que um cristão, religioso, e
douto, ensina e espera de Cristo, e por Cristo crucificado, a consu-
mação e santidade da alma, com as maiores abundâncias da Terra
ris (Ibid. V I-- 25), que são três anos e meio, ou quarenta e dois
meses, de que se faz menção no cap. 11.º e 13.º do Apocalipse,
vemos que muitos mais reinou Mafoma, e se vai sua seita estendendo
a muitos séculos.
E que defender também que no dito tempo futuro do
dito quinto império havia de suceder a paz universal, que até agora
não estava cumprida senão incoadamente, era o mesmo que os judeus
afirmavam acerca da dita paz, não ainda chegada; nem conseguinte-
mente o Messias, que esperam, prometendo-a naquele tempo que ele
vier.
E que esta proposição dele réu não somente continha
erros judaicos, mas também era das mais injuriosas que trazia, por
encontrar e desfazer com os rabinos e alguns hereges, o funda-
mento e alicerce da fé católica, com que claramente se prova
estarem já cumpridas as profecias da primeira vinda, que falam em
Cristo acerca da sua e nossa redenção espiritual, contra as tem-
poralidades que os judeus esperavam dele, e hoje esperam de seu
sonhados Messias.
Repugnando outrossim ao que os anjos disseram na noite
do nascimento quando publicaram ser já chegada a paz prometida
pelos profetas, como diz S. Lucas: Gloria in altissimis Deo, et in terra pax
hominibus (Luc. II -- 14); e contradizendo ao lugar de S. Paulo aos de
Éfeso: Ipse enim est pax nostra, qui fecit ultraque unum (Efes. II -- 14);
aonde a palavra fecit mostra que a dita paz é já obrada, e não futura no
tempo do quinto império temporal de Christo, que o réu dizia estava
ainda por vir.
Pelo que, sendo de fé só a segunda vinda do juízo final,
não pode afirmar o réu, sem erro judaico, terceira vinda, ou comple-
mento dela temporal, nem ainda por um vigário seu temporal, sem
mostrar a instituição dele necessária, como se vê do vigário espiritual
S. Pedro: Tu es Petrus, et super hanc petram edificabo ecclesiam meam. (Mat.
XVI -- 18)
ocasiões haver falado nestas matérias, estava certo que nunca fora
com a formalidade e aspereza das palavras denunciadas.
E usando o réu de melhor conselho, com mostras e sinais
de arrependimento, disse que como verdadeiro católico e religioso se
sujeitava com toda a lisura e sinceridade à dita resolução e censuras de
sua santidade e seus ministros de Roma, aceitando, reverenciando, e
reconhecendo por verdadeira doutrina a que na mesa do santo ofício
se lhe havia dado nos exames e admoestações que no decurso de sua
causa se lhe tinham feito, e que desde logo se desdizia e retratava de
todas as sobreditas proposições conteúdas assim no dito papel do
Quinto Império, e respostas que deu acerca dele, como nos cadernos
que tinha deixado na mesa e nos sobreditos, sermões que havia pre-
gado; e não só desistia de as querer defender, explicar, e declarar o
sentido delas, como até então ia fazendo, senão que pedia e requeria,
que, conforme a desistência e retratação, fosse sua causa julgada nos
termos em que estava, com a comiseração e piedade que esperava da
misericórdia deste santo tribunal.
O que tudo visto, com o mais que dos autos consta, e
como o réu se desdisse e retratou de tudo o que contém as ditas suas
proposições, que até então havia procurado defender, sem embargo
das multiplicadas instâncias que em contrário se lhe fizeram no
decurso do seu processo, sujeitando-se ao que estava determinado
por sua santidade e dantes censurado pelos ministros do santo ofício,
como filho obediente da Santa Igreja Católica Romana:
Mandam que o réu o Padre Antônio Vieira oiça sua sen-
tença na sala do santo ofício, na forma costumada, perante os inquisi-
dores e mais ministros, oficiais e algumas pessoas religiosas, e outros
eclesiásticos do corpo da universidade, e seja privado para sempre de
voz ativa e passiva, e de poder pregar, e recluso no colégio ou casa de
sua religião, que o santo ofício lhe assinar, donde sem ordem sua não
sairá; e que por termo por ele assinado se obrigue a não tratar mais
das proposições de que foi argüido no decurso de sua causa, nem
de palavras nem de escrito, sob pena de ser rigorosamente castigado;
se deve julgar e entender nas coisas referidas, por quaisquer juízes or-
dinários e delegados, ainda que sejam auditores das causas do palácio
apostólico, e cardeais da santa Igreja Romana, e ainda legados a latere,
núncios da sé apostólica, e também pelo inquisidor-geral, e mais in-
quisidores referidos, ou quaisquer outros que tenham ou hajam de ter
qualquer preeminência ou poder, tirando-lhes a todos, e cada um
deles, qualquer faculdade e autoridade de julgar, e interpretar de outra
sorte, e declarando ser írrito, e de nenhum vigor, o que sobre o
referido suceder, ou se intentar ciente ou ignorantemente por alguma
pessoa, em qualquer autoridade constituída.
Não obstando outrossim os privilégios indultos, e letras
apostólicas, em contrário do referido concedidos, confirmados, e por
quantas e quaisquer vezes aprovados, inovados, e ainda em favor do
santo ofício do dito reino, e de seus inquisidores, e ainda gerais e
especiais de quaisquer reinos, e ministros postos por quaisquer pon-
tífices romanos, nossos predecessores, e por nós mesmo, e pela dita
sede apostólica, com qualquer teor ou forma de palavras, e com
quaisquer cláusulas ainda derrogativas, e outras ainda mais eficazes, e
insólitos e irritantes, e outros decretos, ainda que sejam de semelhante
motu, e ciência, e plenitudine de poder, e passados em consistório, ou de
outro qualquer modo; aos quais todos, e a cada um somente, por esta
vez, por efeito do referido havemos por revogados. Dado em Roma
em Santa Maria Maior, debaixo do Anel do Pescador, aos 17 de abril
do ano de 1675, quinto ano do nosso pontificado.
J. G. Ilusius.