4 TT Unicamp Vanessa Lea
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L ea
M emor ial
Pr epar ado par a a r eclassificação por mér ito
par a pr ovimento de um car go de Pr ofessor Titular
SUM ÁRI O
Influência latina ................................................................................................................ 2
Graduação ......................................................................................................................... 3
Pós-Graduação.................................................................................................................. 5
América Latina ................................................................................................................. 6
Doutorado ......................................................................................................................... 8
Pesquisa de campo no doutorado e posteriormente........................................................ 10
Docência ......................................................................................................................... 17
Tese................................................................................................................................. 18
Pós-doutorado e produção de um livro........................................................................... 21
Língua mebengokre ........................................................................................................ 26
Perícias............................................................................................................................ 29
Ensino na UNICAMP ..................................................................................................... 29
Professor convidado ....................................................................................................... 35
Orientações ..................................................................................................................... 35
Educação Indígena.......................................................................................................... 38
Publicações ..................................................................................................................... 40
Participação de bancas.................................................................................................... 42
Assessoria ....................................................................................................................... 43
Administração................................................................................................................. 43
Coordenação de Grupos de Trabalho e de Simpósios .................................................... 44
Participação em Congressos, etc. com trabalhos apresentados.......................................45
Ensino de inglês e Tradução ........................................................................................... 45
Trabalho Fotográfico ...................................................................................................... 45
Balanço inteletual e da conjuntura atual da etnologia .................................................... 46
Projetos de Pesquisa para o futuro.................................................................................. 50
2
I nfluência latina
Minha iniciação à cultura latina veio aos cinco anos de idade quando fui à
Maiorca de férias. Apaixonei-me por dança flamenca, mas naquela época era impossível
encontrar aulas de flamenco em Liverpool. Minha primeira experiência de ensino foi
também na Espanha quando, aos quinze anos (em 1969), trabalhei brevemente para uma
família de Valência, ensinando inglês para uma moça.
A partir de 1961 cursei uma escola católica depois de mudar de casa, por falta de
vaga em outra escola, dando grande desgosto a minha avó materna, descendente de
protestantes escoceses que encarava os católicos de modo muito preconceituoso. Meu
pai me aconselhou a não revelar que eu não havia sido batizada e suponho que foi essa
exposição a pontos de vista conflituosos que me proporcionou um olhar relativista
desde cedo. Meu pai não concordou com minha transferência para uma escola de teatro,
como eu queria. No entanto, frequentei uma escola de artes cênicas aos sábados, em
3
Liverpool, e segui o currículo de exames nos seus diferentes graus – certificado, bronze,
prata e ouro – nas categorias leitura de poesia e de prosa, Shakespeare, apresentação de
trechos de peças teatrais etc. Escrevi uma peça de teatro com dez anos de idade e a
partir daí comecei a escrever poesia. Além disso, frequentei o círculo de poetas de
Liverpool durante algum tempo antes de entrar na universidade.
Minha relação com a América Latina começou aos sete anos de idade na
mudança de casa já mencionada. Várias casas na mesma rua acabaram sendo alugadas a
famílias de cônsules. Assim sendo, passei a conviver com uma família espanhola,
seguida por uma família venezuelana, e simultaneamente com uma família peruana,
seguida por uma família uruguaia/brasileira. Acabei sendo bastante integrada no
cotidiano dessas famílias. Íamos juntos para escola onde havia inclusive uma família
brasileira cujo pai, também cônsul, teve que voltar ao Brasil em 1964.
Influenciada por peças de Tchechov e romances russos quis aprender russo, mas
somente a escola católica para meninos oferecia essa possibilidade. Tive que assistir
aulas de latim a contragosto, desperdiçando uma oportunidade que teria contribuído
para o estudo das demais línguas que aprendi mais tarde porque não me conformava em
ter que aprender uma língua morta. Tive que esperar até treze anos de idade para
começar a estudar espanhol, algo que ansiava fazer devido a minha convivência intensa
com pessoas que falavam essa língua. Comecei a estudar francês aos onze anos de idade
e pretendia estudar literatura francesa e espanhola na universidade. Em francês eu tinha
lido autores como Molière, Racine e Mauriac, além de muita poesia, e o currículo em
espanhol incluiu Cervantes, Pio Baroja, de Lara entre outros. No equivalente ao
vestibular acabei colocando como primeira opção os estudos latino-americanos, sem
saber que isso implicava a rejeição automática pelos cursos de literatura francesa e
espanhola.
Gr aduação
Pós-Gr aduação
Essa antropóloga foi uma pioneira no estudo de xamanismo nas terras baixas da
América Latina. Naquela época havia um clima de antipatia entre o Institute of Social
Anthropology e o Museu Pitt Rivers. As pessoas ligadas ao instituto olhavam o museu
com desprezou, associando-o ao evolucionismo e difusionismo. A metamorfose em
antropóloga, no entanto, demorou a consolidar-se até chegar ao Brasil.
Para minha dissertação pesquisei a participação dos índios Mapuche do Chile no
governo popular de Allende. Eles tinham a reputação de terem sido uma vanguarda
política daquele governo devido a sua ocupação de latifúndios. Entrevistei alguns
líderes Mapuche refugiados na Inglaterra, mas a dissertação era basicamente
bibliográfica, uma preparação para fazer pesquisa de campo ao nível de doutorado
(D.Phil). O titulo da dissertação foi: The Mapuche Indians of Chile. Their Struggle for
Land. Foi orientada por Alan Angell por ser mais sociológica do que antropológica.
Devido ao grau de repressão política no Chile fui aconselhada de que não
haveria condições para pesquisa antropológica lá naquela época. Tive que aguardar o
fim da ditadura de Pinochet ou mudar de pesquisa. Era frustrante passar mais dois anos
estudando América Latina sem ainda conhecer o continente de primeira mão. Decidi
tentar obter uma bolsa de estudo para viajar a América Latina antes de entrar no
doutorado. Hoje em dia, com o endividamento de estudantes universitários através de
empréstimos para financiar seus estudos, o tipo de trajetória que tive, o de abandonar o
país de origem, torna-se cada ver mais difícil. Em 2005 naturalizei-me brasileira mais
por minha indignação com a invasão de Iraque pela Inglaterra do que por acreditar que
esse ato modificaria minha vida no Brasil.
no Alto Xingu. Foi ele quem me recomendou optar pelo Museu Nacional no Rio de
Janeiro. Nessa mesma época conheci o casal de etnólogos Stephen e Christine Hugh-
Jones, da Universidade de Cambridge. Lembro-me que Steve desaconselhou pesquisa
etnológica no Brasil afirmando que a Inglaterra já tinha três etnólogos sul-
americanistas, Peter Rivière, Joanna Overing e ele mesmo e não haveria emprego para
mais um. A própria Christine Hugh-Jones abandonara a antropologia quando o
departamento de Cambridge recusou admitir um casal de etnólogos. Em seguida ela se
formou como médica, profissão que exerce desde então. Em 2000 fui convidada a
candidatar-me para o emprego de Rivière quando se aposentou. O motivo por não
aproveitar essa oportunidade não é relevante ao memorial.
Realizei aulas de intercambio com um antropólogo brasileiro, José Sávio
Leopoldi. Eu lhe ensinava inglês e ele me ensinava português. Devido à repressão
política no Brasil, Ken Brecher me aconselhou a não assumir abertamente que estava
interessada pelos índios. Aproveitei meus estudos de sociologia para redigir um projeto
sobre a colonização da Transamazônica, um projeto governamental. Fui convocada pela
embaixada brasileira onde fui entrevistada pelo então embaixador, o economista
Roberto Campos. Tinha muito medo que ele pudesse perceber que meu projeto oficial
era mera fachada, mas dominava o assunto suficientemente para convencê-lo do meu
interesse pela estrada e fiquei aguardando a resposta sobre a bolsa.
No meio tempo, depois de terminar os exames de fim de curso (dois dias
inteiros) fiz um curso de ensino de inglês (TEFL) e comecei a dar aulas. Agi também
como intérprete para alguns refugiados chilenos, através do Chile Solidarity Campaign
de Oxford, conhecendo diretamente vítimas da tortura. O World University Service me
alocou como aluno particular de inglês um médico comunista que acabara de sair da
prisão depois de mais de um ano preso. Já no final do curso em Oxford começaram a
chegar refugiados da ditadura argentina me colocando em contato direto com
testemunhas da repressão política que assolava o continente naquela época.
Enquanto guardava notícias da bolsa viajei para os EUA e fui de Nova Iorque a
Boston para conhecer Shelton Davis, conhecido de Ken Brecher, meu amigo em
Oxford. Davis foi um dos fundadores de um centro de pesquisa importante, o
Anthropological Resource Centre (ARC) e havia realizado pesquisa de campo entre
índios guatemaltecos. Ele me arrumou um emprego voluntário num importante jornal,
Akwesasne Notes, dos índios Mohawk ligados ao American Indian Movement (AIM).
Trabalhei como tradutora de correspondência entre índios norte e sul americanos. Fui
8
morar numa casa de madeira, sem água encanada ou luz elétrica, nas montanhas
Adirondack no estado de Nova Iorque, na fronteira com Canadá. Depois de pouco
tempo um voluntário cubano convenceu os Mohawk a expulsar os não índios da
comunidade (eu e um holandês; o cubano permaneceu).
Em seguida encontrei um ride center, coordenando pessoas oferecendo e
precisando de carona. Parti com um motorista de ônibus de Oregon para entregar um
carro em Los Angeles numa viagem de uns dez dias. Convenci meu co-motorista a
visitar Grand Canyon e as áreas indígenas dos Hopi e Navajo no meio do caminho.
Viajei de Los Angeles a San Francisco e de lá a México e Guatemala. Por meio de
indicações de Sandy Davis fui à comunidade de Santa Eulália onde ele havia feito sua
pesquisa de campo, numa área montanhosa, e andei a pé pelo campo. A Guatemala é o
país mais bonito que já vi, com paisagens maravilhosas e belíssimas roupas bordadas
diferenciando cada etnia indígena do país. Em fevereiro de 1977 o resultado da bolsa
saiu finalmente e viajei ao Brasil via Panamá.
Doutor ado
lhes fazia perguntas e eles respondiam para Miguel. Eu pretendia estudar xamanismo,
mas Prepori, o grande pajé dos Kayabi, morava em outra aldeia. Era a época da
derrubada do mato para preparar novas roças e a pequena aldeia ficava deserta durante o
dia. A esposa do chefe Yurumuc falava português melhor do que seu marido, mas, na
presença dele ela me falava somente em kayabi, o que não entendia. O primeiro
Mebengokre que conheci pessoalmente era Bedjai que trabalhava como motorista de
barco na administração do Parque. Ele era mais orgulhoso do que os Kayabi que haviam
aprendido manifestar um certo estilo de submissão perante os não índios durante seus
anos de trabalho nos seringais. Atraia-me a idéia de uma grande aldeia e a descrição de
‘ festas’ (cerimônias) que duravam do anoitecer até o amanhecer do dia seguinte.
Combinei com Miguel que ele continuaria pesquisando os Kayabi e eu partiria,
finalmente, para os Mebengokre.
Foi no Museu Nacional que comecei a aprofundar o estudo de antropologia.
Meus professores no primeiro ano incluíam Roberto DaMatta e Castro Faria. Escolhi
uma mistura eclética de cursos. Estudei etnologia com Seeger e com João Pacheco,
campesinato e Kautsky com Moacir Palmeira e Lygia Sigaud, e linguística com Yonne
Leite. Naquela época não havia outros antropólogos interessados em lingüística; por
isso tive o privilégio de um semestre inteiro (o primeiro de 1981) como única aluna
antropóloga da professora Yonne. Fiz um curso de antropologia econômica com
Afrânio Garcia, um curso sobre ideologia com Ruben Cesar Fernandes e fui ouvinte de
um curso de Luis Fernando Dias Duarte sobre nomes. Geralmente os alunos
frequentavam aulas apenas de um determinado grupo, ou os etnólogos ou os marxistas,
mas consegui transitar entre um grupo a outro.
Eu e outra bolsista da Divisão de Cooperação Intelectual do Itamaraty, Bruna
Frachetto, da Itália, conseguimos renovar a bolsa duas vezes, dando um total de três
anos de financiamento. Nos anos 1977 e 1978 eu frequentava o Museu Nacional como
estagiária. Naquela época fui entrevistada no London School of Economics (LSE) como
candidata ao doutorado em Antropologia Social. Joanna Overing, que estudou os
Piaroa, um povo indígena na Venezuela, me aceitou como orientanda, mas Maurice
Bloch sugeriu que eu deveria fazer o diploma em antropologia antes de começar o
doutorado. Na mesma época o Museu Nacional iniciou seu programa de doutorado em
antropologia. Apresentei um projeto que foi aceito e obtive a nota mais alta na prova de
francês. O conhecimento de francês tem sido útil devido à grande influência da
antropologia francesa e porque é mais fácil ler obras em francês do que inglês para
10
Apresento a seguir uma tabela de toda a pesquisa que realizei no Brasil de 1977
até o presente, um total de aproximadamente dois anos. Para o doutorado fiz quase um
ano de pesquisa.
Museu
Nacional 1
IIb Aldeia Mẽtyktire 22/01/1978 – 1.26
19/03/1978
1
As viagens realizadas entre 1978 e 1979 foram financiadas com recursos do Museu
Nacional. A bolsa do CNPq iniciou-se em março de 1980.
12
somente do irmão dela; ele acabou estudando em Ruskin College, Oxford, e era
comunista.
Na minha pesquisa de campo a questão de gênero estava sempre presente.
Ficava inconformada quando meu poderoso “ pai” Raoni me despachava para a roça
quando estavam acontecendo reuniões políticas importantes nos Postos da FUNAI e eu
era impedida de ir junto. Apesar disso ele me levava à casa dos homens para ficar
ouvindo a conversa dos velhos. Minha “ mãe” , a mulher dele, perguntava se eu tinha
pênis quando ia à casa dos homens. Eu retrucava que não tinha pênis, mas tampouco
filhos com quem ficar em casa de noite. Também afirmava que os chefes no meu país
eram duas mulheres – a rainha Elizabeth e Margaret Thatcher.
Os homens Mebengokre afirmavam que não buscavam água ou lenha por não
precisar disso e as mulheres me exortavam a levar bastante comida da roça para
alimentar meu pai. Os homens transportavam apenas uma espingarda, estando de
prontidão para proteger as mulheres de onças e de índios bravos (não contatados). Os
homens eram antipáticos com seu ar beligerante. Antes de aprender a falar mebengokre
eu dependia dos poucos homens que falavam algum português. Aos poucos fui
aprendendo a língua, especialmente depois de estudar um pouco de linguística. Quando
tentava aprender inicialmente me debatia com situações como perguntar “ como se diz
nós dormimos em mebengokre?” , e receber como resposta três possibilidades: “ gu
ngono; gwai ngono” e ainda “ gu mẽ ngono” . Foi somente com a ajuda da lingüística que
descobri que gu é um pronome inclusivo que significa “ eu e você” ; “ gwai” remete a
“ nós” - enquanto um grupo pequeno de pessoas, e “ gu mẽ” significa “ nós todos” .
Na primeira ida aos Mebengokre, em 1978, somente três homens sabiam ler e
escrever em português e outros estavam ávidos a aprender, reclamando que os Villas-
Boas afirmavam que a escrita era algo dos brancos que eles não precisavam. Procurei a
ONG Centro de Trabalho Indigenista (CTI), em São Paulo, que já estava envolvida com
projetos de alfabetização em várias áreas indígenas e solicitei a ajuda de Maria Elisa
Ladeira para elaborar uma cartilha de alfabetização em português para os índios
Metyktire no Parque do Xingu. Trabalhamos nesse projeto nos meses de junho e julho
de 1979. O projeto foi aplicado por mim entre setembro de 1979 e fevereiro de 1980.
Havia somente alunos de sexo masculino porque nenhuma mulher falava português.
Vários alunos desistiram depois de pouco tempo ao descobrir que alfabetização era bem
mais complicada do que imaginavam. Alguns continuaram, inclusive depois da minha
15
saída do campo. Inicialmente eu usava fichas plastificadas, mas depois o CTI publicou a
cartilha.
A publicação não citou meu nome como co-autora por ser estrangeira, o que
poderia causar minha expulsão do país caso surgissem problemas. De fato a FUNAI
alegou que os verbetes, baseados em textos colecionados na minha primeira ida ao
campo, colocavam os índios contra seus irmãos não índios e a cartilha foi tirada de
circulação. Nessa mesma época fui alertada por uma professora no Posto de Diauarum,
no Parque do Xingu, Mariana Ferreira (hoje antropóloga), que ela tinha visto um
relatório sendo preparado pelo Chefe do Posto, o qual me denunciava como insuflando
os índios, acusação corriqueira aos antropólogos naquela época. Algum tempo depois a
FUNAI me recusou autorização para voltar à área. Gilberto Velho, chefe do depto. de
Antropologia no Museu Nacional, corajosamente convocou o Coronel Zanoni do SNI
em Brasília para ir dar explicações sobre os motivos de estar impedindo a realização de
pesquisa desenvolvida por um de seus estudantes. Após a reunião no Museu a
autorização acabou sendo liberada. Numa ocasião anterior a autorização havia sido
conseguida somente com a intervenção direta do chefe Metyktire Ropni.
Voltando à minha estratégia de troca, os alunos do curso de alfabetização
alegavam que não tinham tempo para me ensinar mebengokre fora da sala de aula
porque as aulas de alfabetização já interferiam com suas atividades de pesca. E minha
“ irmã” reclamou que os homens deveriam me alimentar porque eu só trabalhava com
eles. De qualquer maneira, foi uma primeira iniciativa de introduzir educação indígena
na área. Em 1982 uma professora não índia foi contratada pela FUNAI e foi morar na
aldeia, me desincumbindo de continuar com essa tarefa. Em 1981 publiquei um artigo
sobre essa experiência numa coletânea da Comissão Pró-Índio em São Paulo.
No decorrer da pesquisa de campo, à medida que aprendi a língua consegui
ocupar menos tempo participando dos trabalhos de subsistência e pude dedicar mais
tempo à pesquisa propriamente dita. Adotei a estratégia de circular de casa em casa,
levando um pedaço de plástico para poder sentar no chão e fazer anotações no meu
caderno. Meu orientador recomendou levar um pedaço de plástico para forrar goteiras
no teto, mas acabou se transformando no meu ‘ escritório móvel’ . Complementei o
censo da população da aldeia com o levantamento de genealogias. Descobri que, ao
contrário do que imaginava, a aldeia não era endogâmica. Acabei levantando vinte oito
genealogias que remetem a toda a população Mebengokre a oeste e a leste do rio Xingu.
Esse material foi anexado à tese em 1986, algumas genealogias medindo mais de um
16
orientanda estudou os Apinajé para sua dissertação de mestrado entre 1999 e 2001.
Fiquei fascinada com a proximidade aparente, linguística e cultural, entre os Apinajé e
os Mebengokre.
Um colega escocês, Peter Gow, visitou vários de seus orientandos no campo e
aderi a esse exemplo indo ao campo junto com Raquel. Uns vinte dias antes de nossa
viagem os Apinajé mataram quatro não índios encapuzados que invadiram sua área para
tentar resgatar um trator que os índios haviam sequestrado numa das suas aldeias. O
clima era muito tenso com os Apinajé de oito aldeias congregados em São José por
medo de represálias. Fomos muito bem vindas, oferecendo uma espécie de apoio moral
ao chegar nesse contexto.
Numa reunião para a preparação dos depoimentos dos Apinajé para a Polícia
Federal, um dos índios chegou a referir à morte dos brancos como “ um crime bárbaro” .
Foi corrigido pelo Procurador da República que afirmou que os índios agiram em
legítima defesa. Posteriormente, perguntei ao porta-voz Apinajé que palavra
correspondia a “ bárbaro” na sua língua. Respondeu-me que era “ tàjtx” , que traduz como
‘ duro’ ou ‘ valente’ , o que é diferente do significado corrente da palavra “ bárbaro” em
português. Esse episódio demonstra a importância de estar sempre atenta à língua
indígena, fazendo a conversão para suas próprias categorias daquilo que dizem em
português.
Pude então finalmente verificar a proximidade linguística entre os Apinajé e os
Mebengokre. Os Apinajé são conhecidos na literatura antropológica como Timbira
ocidentais (situados a oeste do rio Tocantins), em contraste com outros povos Jê
daquela região conhecidos como Timbira orientais. Em novembro de 2008 apresentei a
comunicação: “ Problematizando a classificação das línguas Jê setentrionais e o rótulo
Timbira” , no VI Encontro de línguas e culturas macro-Jê, realizado na Universidade
Federal de Goiás. Foi publicado como capítulo pelos organizadores do livro proveniente
do encontro no início de 2009. Fiquei satisfeita que a viagem rendeu uma publicação
que contribui à classificação dos povos Jê setentrionais e que ocorreu com tanta rapidez.
Docência
contratada junto com Luis Eduardo Soares que estudou no Museu Nacional junto
comigo. Substituímos Peter Fry, um dos fundadores do conjunto de Antropologia.
Pouco tempo depois do meu ingresso no IFCH minha colega Manuela Carneiro da
Cunha foi embora para trabalhar na USP.
O etnólogo Anthony Henman foi contratado pelo IFCH em setembro de 1981,
mas permaneceu somente até meados de 1989. Nádia Farage ingressou o conjunto no
início de 1985, mas aos poucos foi se distanciando da Etnologia. O etnólogo Robin
Wright ingressou na UNICAMP em meados de 1987 e foi um interlocutor intelectual às
avessas durante muitos anos. Discordamos sobre a universalidade da religião e do
sagrado, algo que nos rendeu boas discussões. Em 1990 apoiei a transferência de
Márcio Silva do IEL para o IFCH onde permaneceu até maio de 1998 quando foi
trabalhar na USP. Em 1992 foi cogitada a contratação pelo departamento de Eduardo
Viveiros de Castro, algo que acabou não vingando. Em 1994 participei da banca que
contratou John Monteiro, especialista em história colonial. Aracy Lopes da Silva entrou
no departamento em 1998, mas faleceu em outubro de 2000.
A UNICAMP se orgulha, com toda razão, por ter desenvolvido a antropologia
urbana como uma das suas marcas definidoras. Com poucos etnólogos, em comparação
ao Museu Nacional, a USP e a UnB, tem sido difícil atrair bons alunos para a área de
Etnologia. Meu colega John Monteiro não padece do mesmo grau de isolamento por
poder recorrer a interlocutores no Depto. de História. A heterogeneidade dos interesses
dos etnólogos tem sido bom, de um lado, mas de outro lado tem dificultado a elaboração
de um projeto comum para obter recursos financeiros.
Tese
não entendeu bem a tese e não conseguiu acreditar que um povo Jê pudesse fazer uma
distinção entre donos plenos e usufrutuários, conforme eu argumentava.
Tive a oferta de publicação da tese pela editora Marco Zero, pertencente a um
casal que estudou comigo no Museu Nacional e que publicara a dissertação de outro
aluno do Museu daquela época, José Sergio Leite Lopes. Lamentavelmente recusei a
oferta, insistindo em fazer uma revisão antes. David Maybury-Lewis se ofereceu para
encontrar uma editora nos EUA para publicar meu livro quando nos encontramos no
Rio de Janeiro em 1994, durante a reunião da ABA realizada em Niterói. Antes de eu
poder fazer a revisão necessária ele ficou doente e depois morreu. Eu também ficava
com receio dele querer censurar minhas críticas ao seu projeto Harvard-Brasil Central.
Também me senti usada como um meio para ele extravasar seus atritos com Terence
Turner.
A banca da tese havia me convencido que a questão da descendência matrilinear
ainda não estava bem resolvida e argumentava-se, com razão, que Lévi-Strauss elaborou
a noção de “ sociedades de casas” como ferramenta analítica para sociedades cognáticas,
sendo que nego até hoje a pertinência de cognatismo para a sociedade Mebengokre, a
não ser no sentido em que todas as sociedades reconhecem uma parentela cognática,
mesmo tendo descendência matrilinear, patrilinear ou dupla.
Depois da tese, dois outros caminhos de pesquisa se abriram, um sobre a
mitologia e sua relação com a organização social e o outro sobre aliança matrimonial. A
publicação dos dois volumes de mitologia Jê nos EUA, organizados por Wilbert e
Simoneau, o primeiro em 1978 e o segundo em 1984, foi muito importante por
disponibilizar uma quantidade enorme de mitos da maioria das sociedades Jê,
facilitando a comparação entre versões distintas num mesmo povo e em povos
aparentados em termos culturais e linguísticos. Eu mesmo publiquei três mitos
Mebengokre no segundo volume, provenientes da minha pesquisa de campo. Lembro-
me que Seeger considerou essa contribuição prematura, sendo que ainda não havia
defendido minha tese, enquanto a maioria dos autores já era mais conhecida. Ao estudar
os dois volumes de mitologia reconheci diversos nomes pessoais em uso entre a
população que estudei, o que me alertou para a conexão entre os mitos e a organização
social, um aspecto que pude incorporar no livro atualmente no prelo.
A geração ascendente de ‘ Jêólogos’ , Maybury-Lewis e seus ex-alunos como
Terence Turner, estava convencida de que não havia nenhuma forma de aliança
matrimonial entre os povos Jê. O ano em que terminei a pesquisa de campo para o
20
doutorado (1982), foi defendida a dissertação de mestrado de Maria Elisa Ladeira que
levantou a questão da relação entre a circulação dos nomes e dos cônjuges. Isso suscitou
dois colegas, Márcio Silva e Eduardo Viveiros de Castro, a me perguntar sobre a
relevância de aliança matrimonial entre os Mebengokre, algo que comecei a investigar a
partir daí.
Retornei ao campo em 1987, com financiamento da FINEP, num projeto
desenvolvido junto com meu colega Robin Wright. As duas aldeias que estudei para a
pesquisa de doutorado tinham se juntado a partir de 1985. Isso me permitiu verificar que
as matri-casas provenientes dessas duas aldeias estavam situadas no círculo de acordo
com sua posição tradicional em relação aos pontos cardeais. Fiz um censo, levantando
dados sobre casamento e gravei dez horas de mitos. Tive que sair do campo quando
contrai malária. O ano seguinte, engravidei de minha filha Julia e a pesquisa de campo
pode ser retomada somente em 1994.
Entre 1994 e 1996 desfrutei de uma bolsa da Fundação Wenner-Gren dos EUA.
Foi o melhor financiamento que já tive. A fundação prioriza resultados sem criar
grandes complicações burocráticas. Com essa bolsa realizei viagens às duas novas
aldeias Mẽtyktire que resultaram de uma cisão da aldeia que visitei em 1987. Em 1994
havia uma aldeia na beira do rio Xingu, perto da cachoeira von Martius e outra no
cerrado. Nessas visitas de 1994 e 1995 os homens e as mulheres Mẽtyktire estavam
fabricando pulseiras num ritmo frenético para vender à Body Shop. Uma mulher me
disse que gostaria de tomar anticoncepcionais para não ter mais filhos, dedicando-se à
produção de pulseiras para poder ter seu próprio dinheiro. Ou seja, havia um
questionamento em relação ao papel dos homens como provedores exclusivos de
dinheiro.
Nas duas aldeias atualizei os censos, chequei as genealogias e revisei a lista dos
nomes e de nekretx usadas na tese. Entre 1994-5 haviam 552 Metyktire cujas
genealogias remetem a 1.667 pessoas. Pesquisei a história conjugal de diversas pessoas.
Fiz novas gravações de mitos, com homens e mulheres, atentando para uma observação
de Seeger a respeito da diferença entre o estilo de narração dos homens e das mulheres.
Fotografei a última geração de homens que ainda usa batoques, e a pintura corporal que
está sendo trocada gradativamente por roupa.
Em julho de 1995, um dos homens Mẽtyktire, Mỳjkàrỳ, veio em casa em São
Paulo para me ajudar com a transcrição e tradução de mitos. Comecei a digitalizar as
narrações de Meyre, um velho de batoque cuja fala é difícil de entender. Suas narrativas
21
1279 1280
Genealogy 23
House XVII
Pãjnmokr a Bepkrw àjkà
1281 695?
Pàd’yre ‘Ôkêt
1284 1285
house 15
Kretire
1982
~
PM* = in Posto Mekr ãgnõti
Genealogy 24 complements G 23
Genealogy 25 refers to House XIII, absent from Kretir e
Foi necessário reler uma série de mitos Jê (nas publicações organizadas por
Wilbert e Simoneau, de 1978 e 1984), para me certificar a respeito da análise que faço
no capítulo sobre a fonte dos nomes. A tradução da extensa lista de bens simbólicos
pertencentes a cada matri-casa implicou um trabalho cuidadoso de pesquisa numa série
de livros sobre a flora e a fauna, checando os nomes em português, inglês, Mẽbêngôkre,
além dos nomes científicos em latim.
Seeger e outras pessoas me recomendaram que era mais importante publicar o
livro no Brasil do que no exterior. A revisora de português de minha tese de doutorado,
Wanda Caldeira Brandt, considerou que eu mesmo era capaz de traduzir meu livro.
Depois de constatar a péssima qualidade da tradução do livro O Indivíduo e a Sociedade
na Guiana, do meu ex-professor Rivière, publicada pela Edusp em 2001, que
praticamente significou o sucateamento do livro, resolvi traduzir meu próprio livro. Pelo
menos já estava digitado dessa vez em inglês, permitindo usar abundantemente o
recurso de cortar e colar. Já que tive pouquíssimo tempo para estudar o português
depois de chegar ao Brasil, em 1977, achei que a experiência da tradução ajudaria a
melhorar meu português. Acho que de fato ajudou, mas foi um empreendimento
gigantesco. Comecei a tradução em português no início de 2007 e terminei somente em
janeiro de 2010. Além de ser traduzida, a versão em português precisou de várias
revisões antes de ser entregue à editora.
25
financiamento. A UNESP aceitou fazer uma co-edição com a Edusp, mas essa última
editora tinha receios em relação à UNESP. A editora da UNESP me forneceu um
orçamento para encaminhar à FAPESP. A solicitação de recursos da FAPESP foi feita
em agosto de 2009 e a resposta afirmativa saiu no fim do ano. A editora da UNESP me
informou que precisava saber quanto a FAPESP estaria contribuindo. Mandei uma carta
com a quantia, mas não tive mais notícias. No meio tempo a Edusp disse que poderia
editar o livro com os recursos obtidos da FAPESP e aceitei essa proposta. A revisão do
português foi iniciada em novembro de 2009 e o contrato assinado em janeiro de 2010.
Esse mesmo mês, depois de ter entregado tudo menos as ilustrações, a editora me
informou que cada citação precisaria ser traduzida para o português. Já que o livro
dialoga basicamente com uma bibliografia em inglês e em francês há muitas citações
nessas línguas, algumas traduzidas e outras não. Achava que eu poderia deixar as
citações na língua original, pelo menos nas notas, mas a editora insistiu na necessidade
de traduzir tudo. Atenderei a essa exigência depois da entrega desse memorial.
L íngua mebengokr e
pouco entendem, ao contrário a países como Austrália onde esse tema é objeto
principalmente de linguistas. No mesmo paper, que será publicado em 2010, articulo
meu ponto de vista sobre a questão de gênero, retomado a partir de uma comunicação
feita na ANPOCS em 2001. A comunicação apresentada no 60 Encontro Macro-Jê,
publicada em seguida, já foi mencionada acima, referente a uma visita aos Apinajé.
Per ícias
Graduação
minha atuação ao longo do tempo. De meados de 1983 até 2001 ministrei cursos
regularmente na graduação no curso de Ciências Sociais no período diurno e depois de
sua criação em 1992, no período noturno. A partir da defesa da tese de doutorado, no
fim de 1986, comecei a ministrar aulas na pós-graduação no mestrado em Antropologia
e no doutorado em Ciências Sociais e, depois da criação da área em 1995, no doutorado
em Antropologia. Na graduação dei cursos de Organização Social e Simbolismo (cujos
subtítulos incluíram a noção de cultura, e o indivíduo e a pessoa), Etnologia Indígena,
Família e Parentesco, História da Antropologia e Introdução à Antropologia (com o
subtítulo Totemismo). Na pós-graduação ministrei cursos de Etnologia, Organização
Social e Parentesco, Tópicos Avançados em Família e Relações de Gênero, e História
do Pensamento Antropológico (sobre o funcionalismo estrutural britânico) e coordenei
o curso de seminário de tese junto com John Monteiro. Um curso ministrado no IEL
como já foi mencionado.
De 2001 até o fim de 2009 ministrei treze cursos na graduação, incluindo o
período diurno e noturno, nas áreas de parentesco, etnologia, pesquisa antropológica e
mito e rito. Dei um curso obrigatório sobre parentesco oito vezes entre 2001 e 2007. Em
função da frequência com que me foi alocado esse curso vale a pena citar o texto que
acompanhou o programa que ministrei a última vez em 2007.
para falar sobre sua experiência de campo sobre temas como africanas presas em São
Paulo acusadas de tráfico de drogas, e os índios Apinajé e projetos de desenvolvimento
e seu envolvimento com o cultivo de maconha para comercialização.
No 10 semestre de 2009 dei o curso Etnologia Sul Americana no período diurno
para 24 alunos. Já que era impossível levar os alunos ao campo tentei transmitir alguma
sensação desse campo pelo uso extensivo de vídeos ao longo do semestre. Na primeira
metade de cada aula foram discutidos textos provenientes de uma ampla bibliografia, os
vídeos sendo reservados para a segunda metade de cada aula. Tanto na minha graduação
como na minha pós-graduação na Inglaterra tive acesso a muitos filmes, fora do período
de aula, mas como atividade ligada às universidades. Conhecia os clássicos cineastas
brasileiros como Glauber Rocha e isso foi um ingrediente importante para a minha
formação.
Apresento, a seguir, o resumo do curso Etnologia Sul Americana (HZ 669):
Há poucos anos atrás era impossível ministrar um curso de etnologia na
graduação sem recorrer a uma bibliografia em inglês ou francês. Hoje em dia, devido à
expansão da produção brasileira nessa área, tornou-se plenamente viável usar,
exclusivamente, textos publicados em português. O curso parte da ótica das próprias
sociedades indígenas sul-americanas das terras baixas para explorar alguns dos temas e
debates que nortearam as pesquisas empreendidas nas últimas décadas, como, por
exemplo, parentesco, organização social, cosmologia, mitologia, gênero e sexualidade,
xamanismo e feitiçaria, diferenciação social, riquezas imateriais, arte, linguagem,
urbanização e transformação social. O intuito é mapear a etnologia brasileira
contemporânea de uma maneira que permita quem for dedicar-se a uma pesquisa nessa
área obter as ferramentas necessárias para, após o curso, seguir seu próprio caminho.
No segundo semestre de 2009 dei o curso Mito e Rito para 15 alunos no período
diurno e para 10 alunos no período noturno.
Apresento, a seguir, o resumo do curso Mito e Rito (HZ466)
O curso vai abordar um fragmento da pletora de teorias desenvolvidas para analisar ritos
e mitos. A parceria entre mitos e ritos é uma herança das especulações que surgiram a
partir do final do século XIX, exemplificada pela idéia de que o mito justificaria um rito
ou, alternativamente, que o ritual seria um performance do mito. Atualmente qualquer
conjugação necessária entre mitos e ritos é questionável. O curso parte dessa conjuntura
para enfatizar que mitos e ritos não são fenômenos que remetem de forma privilegiada à
alteridade (outras sociedades, outras épocas), algo sugerido nos meios de comunicação
quando jornalistas lamentam a ausência dos ritos de passagem nas sociedades
contemporâneas euro-americanas.
Os significados do termo ‘ mito’ são tão heterogêneos que vamos investigar se há
equivalências entre as diversas acepções. Tentaremos destrinchar a atração do tema dos
mitos e ritos ao campo da religião ao longo da história da antropologia, além de
investigar se a religião é uma categoria universal. Será indagado se a noção do sagrado
tem mais substância do que a noção do totemismo. Nos últimos anos discutiu-se
34
bastante a relação entre mito e história. E agora há um interesse crescente nos mitos da
ciência, como (da perspectiva de Dumont) o mito do surgimento da sociedade ou cultura
a partir de um estado de natureza. Com o desmoronamento dos pilares da antropologia
clássica, sociedade e cultura, junto com sua antítese, a natureza, se torna relevante
submeter tais noções ao crivo da mitologia.
Pós-graduação
Pr ofessor convidado
Or ientações
Da terra das primaveras à ilha do amor: reggae, lazer e identidade em São Luís do
Maranhão, de Carlos Benedito Rodrigues da Silva, publicado pela editora da
Universidade Federal de Maranhão, em 1995.
Cayapó e Panara: Luta e Sobrevivência de um povo Jê no Brasil Central, de Odair
Giraldin, publicado pela editora da UNICAMP em 1997.
Aspectos Fundamentais da Cultura Kaingang, de Juracilda Veiga, publicado pela
editora Curt Nimuendajú em 2006, com um prefácio de minha autoria.
O livro de Odair Giraldin confirma a identificação dos Panará como Kayapó do
Sul, um dos povos Jê setentrionais. Sua pesquisa em arquivos históricos localizou listas
de vocabulário da língua panará até então desconhecidas. Entre os séculos XVIII e XX
os Kayapó do Sul circularam por uma área que se estendeu do Mato Grosso e Goiás ao
noroeste do atual estado de São Paulo. A primeira tentativa de contar essa história foi
empreendida por Giraldin.
O livro de Juracilda Veiga constitui a primeira etnografia da organização social
dos Kaingang, um dos dois povos Jê meridionais. Os Kaingang não foram estudados por
pesquisadores anteriores por serem considerados muito aculturados. Juracilda mapeia a
diversidade das situações de vida desse povo atualmente, espalhado desde São Paulo até
Rio Grande do Sul, e documenta seu sistema de descendência patrilinear. Sua pesquisa
motivou uma retomada de interesse por esse povo, sendo obra de referência para
estudos posteriores.
Entre 2001 e 2002 foram defendidas mais duas dissertações de mestrado sob
minha orientação sobre povos Jê, um sobre a questão de gênero entre os Apinajé e outro
sobre a história da colonização do atual estado de Maranhão e os embates com os
Ramkokamekra-Canela, um povo Timbira da família linguística Jê.
Em 1993 um doutorando proveniente da Universidade Federal de Roraima, que
estava estudando os Xocleng, outro povo Jê meridional, teve que ser reprovado no
exame de qualificação por falta de condições de levar o doutorado adiante.
Dois alunos que fizeram seu mestrado sob minha orientação ingressaram no
doutorado em Antropologia e defenderam suas teses de doutorado em 2000. A Juracilda
deu continuidade a sua pesquisa sobre os Kaingang, enfocando o ritual de kiki, e Odair
estudou os Apinajé. Sua tese argumenta que os dois sistemas de metades identificados
por DaMatta constituem, na realidade, manifestações alternadas de um único sistema.
Desde seu doutorado Juracilda trabalha na FUNAI e Odair é professor adjunto da
Fundação Universidade Federal do Tocantins.
37
Nessa última década tive dois alunos de pós-doutoramento, uma advogada com
doutorado em geografia que trabalha há muitos anos com povos indígenas, mas que teve
dificuldades em publicar os resultados de sua pesquisa interdisciplinar, sobre
conhecimentos tradicionais, e um etnólogo, já mencionado, da Universidade Federal de
Grande Dourados (UFGD) que pesquisa os Kaiowá de Mato Grosso, e que na sua
passagem pela UNICAMP ajudou a editar um número especial da Revista Idéias, da
UNICAMP, além de coordenar um grupo na ABA comigo, algo já mencionado.
Atualmente tenho oito orientandos. Uma aluna de Iniciação Científica, Roberta
Cristina Neves, pesquisa o debate acerca do "infanticídio" indígena, com uma bolsa da
FAPESP. Um aluno de mestrado, João Veridiano (também com bolsa FAPESP), está
com a defesa agendada para abril de 2010. Sua dissertação trata do xamanismo e da
assistência médica entre os Kalapalo, povo Caribe do Alto Xingu. Tenho dois
mestrandos Mapuche, com bolsas da Fundação Ford, cada um estudando um aspecto de
seu povo, algo que me permite retomar meu interesse por essa etnia chilena.
Em julho de 2003, após o Congresso de Americanistas, realizado em Santiago,
Chile, assisti a um congresso de índios chilenos durante dois dias, realizado na cidade
de Temuco, e depois passei uma semana na casa de uma família Mapuche, ao convite de
um antropólogo inglês realizando pesquisa de campo para seu doutoramento. Embora os
Mapuche fossem o tema do meu mestrado, foi somente em 2003 que surgiu a
oportunidade de viajar para uma área Mapuche. Foi uma experiência importante para
adquirir uma perspectiva comparativa da situação indígena em outro país da América do
Sul.
No doutorado em Antropologia tenho três orientandos que entraram em 2007,
com bolsas, respectivamente, da FAPESP, FAPEAM e do CNPq. Já mencionei uma
aluna com quem viajei para os Apinajé e que começou a estudar essa etnia no seu
mestrado. Atualmente ela está estudando projetos de desenvolvimento entre esse povo.
Fabiane Vinente dos Santos está pesquisando a relação entre índios e militares em áreas
indígenas de fronteira. Ilana Seltzer Goldstein está estudando a exposição e a
comercialização de artes indígenas nas sociedades ocidentais. Nesse momento está
pesquisando arte aborígene na Austrália, orientada por Howard Morphy, com uma
bolsa-sanduíche. Tenho também um orientando de pós-doutoramento, Gabriel Coutinho
Barbosa, estudando o intercâmbio de bens e circulação de pessoas nas Guianas. Neste
momento ele está no campo. Participamos do mesmo projeto temático na USP, sobre
38
Educação I ndígena
fonema V. Lea
1978 1995 1998
/e/ è - ê
/ɔ/ ò - o
/o/ o - ô
/ɯ/ ù - y
/ɤ/ ë - ỳ
/ʈ ʃ / ts tx -
/dʒ/ dz dj -
/j/ y - j
Em 2002 minha experiência foi bastante frustrante. Tentei abordar a questão dos
termos triádicos (mencionada anteriormente) como exemplo de um recurso lógico,
ausente em línguas como português e inglês. Os Mebengokre exigiram a tradução em
português de tais termos, e quando argumentei que não havia um equivalente eles
achavam que eu estava recusando traduzi-los por estar levantando dados para minha
pesquisa. Outro tema que tentei abordar foi a distinção entre história oral e documental,
algo fundamental nas perícias judiciais que dizem respeito às suas terras. Rejeitaram
esse tema alegando que se quisessem saber de sua história iam perguntar para seus
próprios velhos.
No final de 2009, ao ir embora do curso, encontrei na pista de pouso com o
antropólogo Terence Turner, que acabara de chegar para falar sobre a história
Mebengokre, trazendo consigo gravações de um velho Mebengokre. Esse exemplo e
aquele referente à “ pesquisa” demonstram a versatilidade das atitudes dos índios em
relação à questão da educação neste momento. Uma afirmação feita numa ocasião pode
mudar radicalmente quando o assunto for retomado posteriormente. Em suma, o ponto
de vista dos Mebengokre sobre a questão da educação escolar (e outras etnias com uma
história semelhante de contato com a sociedade envolvente) está em ebulição. É
importante frisar essa falta de cristalização de atitudes para relativizar algo dito num
momento que não se sustenta em outro.
Em 2005 minha experiência foi mais frutífera. Não estava ensinando
antropologia em si, mas abordando temas de interesse aos Mebengokre, Tapaiuna e
Panará, enquanto líderes nas suas comunidades, e não apenas como professores
escolares. Um tema que produziu resultados interessantes foi a questão de se os índios
têm religião. Inicialmente acharam que não, mas, perante a ameaça constante de
proselitismo evangélico chegaram à conclusão pragmática que religião está vinculada ao
xamanismo. A caracterização da economia foi outro tema de grande interesse, incluindo
a questão de desenvolvimento, progresso, desigualdade sócio-econômica,
empoderamento etc. Chama a atenção a reificação da noção de cultura. É traduzida em
mebengokre com facilidade como kukràkdà enquanto muitas outras noções em
português apresentam dificuldades quando se tenta encontrar um equivalente. Os índios
afirmam sua preocupação em encontrar recursos para impedir a perda de sua cultura e
os professores se apoderaram da noção de pesquisa como ferramenta que pode auxiliá-
los a preservá-la.
40
Publicações
apresentar dois trabalhos no Núcleo de Estudos Pagu onde pude contar com Marisa
Correia e Adriana Piscitelli como interlocutoras. Publiquei um primeiro artigo sobre
gênero feminino nos Cadernos Pagu em 1994, e outro na Revista de Estudos Feministas
em 2000. Publiquei um artigo sobre a performance do choro cerimonial, uma arte
feminina, na revista Indiana, em Berlim, depois de apresentar o trabalho no Congresso
de Americanistas no Chile em 2003. Retorno a esse tema num trabalho sobre a morte,
apresentado no México e publicado num livro no Peru em 2007, além do capítulo de
livro sobre uma aula de choro, já mencionado. Ainda ligado à questão de gênero,
publiquei um capítulo de livro sobre a pintura corporal Mebengokre, executada pelas
mulheres, e outro capítulo na primeira coletânea dedicada à questão da paternidade
múltipla.
Nas décadas de 1980 e 1990 publiquei alguns trabalhos de divulgação científica
(ver CV). Em 1996 organizei um volume publicado na série Texto Didático, publicada
pelo IFCH. O texto consistiu de um artigo de Lévi-Strauss. Fiz a revisão técnica da
tradução e escrevi a apresentação desse texto, que teve a terceira edição no IFCH em
2004. Escrevi uma nota sobre a morte de Lévi-Strauss para o jornal da ADUNICAMP
em 2009.
Desde 2003 fiz quatro resenhas, a primeira sobre uma coletânea póstuma do
etnobiólogo Darrell Posey, a segunda sobre a tradução em inglês de um livro de Louis
Dumont, a terceira a respeito de um livro sobre tatuagem maori na Nova Zelândia. E em
2010 será publicada uma resenha de uma coletânea francesa sobre matrilinearidade e
uxorilocalidade em diversas regiões do mundo.
Publiquei uma carta na SBPC on-line e fiz algumas entrevistas para jornais,
revistas e radio.
Minha publicação de maior fôlego, com quase 400 páginas de texto além dos
apêndices (umas 100 páginas), está no prelo da EDUSP e deve sair em 2010. A versão
em inglês desse livro, de umas 148.603 palavras, está pronta e pretendo ainda encontrar
uma editora nos EUA ou, alternativamente, lançar uma versão digital em inglês, um e-
book.
Assessor ia
Administr ação
Cambridge, afirmou que meu trabalho derrubou o mito da irrelevância das genealogias.
Ainda não consegui encerrar essa questão.
Em suma, minha pesquisa enfoca principalmente a organização social, incluindo
os temas da matrifocalidade, a matrilinearidade, a uxorilocalidade e o mito do
matriarcado. Idealmente gostaria de fazer um estudo etnográfico sobre as emoções,
especialmente o ciúme, um tema corriqueiro no cotidiano, mas, na atual conjuntura da
etnologia essa proposta não seria aceita pelas comunidades indígenas.
A etnologia brasileira passa por uma crise gerada, indiretamente, pela
democratização da sociedade, acompanhada pela evolução da relação das populações
indígenas com a sociedade nacional. Aos poucos os índios passam de tutelados a donos
da palavra. Cada vez mais são as lideranças as porta-vozes de suas comunidades e não
mais os antropólogos. Isto pode ser constatado nos filmes etnográficos. Na década de
1960, por exemplo, em um documentário sobre sal indígena, os índios foram filmados,
mas não falaram nada, enquanto hoje em dia eles estão fazendo seus próprios vídeos.
Acompanhei o processo dos Mebengokre assimilarem a noção de sua cidadania
no Estado brasileiro, introjetando consciência de seus direitos em relação à terra, saúde,
e educação. De forma gradativa todas suas reivindicações passam a ser formuladas em
torno dessa tríade que anseiam transformar em ‘ projetos’ . A incorporação da linguagem
de direitos estimulou a formação de uma nova geração de lideres, versada na arte de
defender os direitos coletivos e se auto-promoverem através das associações indígenas
que, junto às ONGs, vão substituindo a tutela da FUNAI.
Os líderes Apinajé estão sujeitos à tirania dos projetos. Hoje em dia tudo se
converte num ‘ projeto’ . Por exemplo, a FUNAI informou que a obtenção de água
encanada e luz, e a própria oficialização das novas aldeias que vão surgindo, dependem
da elaboração de um projeto. A burocracia das prefeituras municipais e instâncias
governamentais estaduais, como a secretaria de saúde, vão dissipando as energias das
lideranças.
Em mẽbêngôkre e, deduzo que nas línguas indígenas das terras baixas de modo
geral, não há nada que pode ser traduzido como ‘ direitos’ , no sentido que tal termo
adquiriu nas sociedades que o herdaram do direito romano. Portanto, a assimilação
pelos índios, pelo menos pelas lideranças, da noção abstrata de ‘ direitos’ , equivale a
uma metamorfose que fez com que etnias indígenas como os Mẽbêngôkre assimilassem
a idéia de que são, simultaneamente, índios e brasileiros. O fato dos índios
reconhecerem-se como brasileiros não significa acreditar numa essência identitária, mas
48
apenas estarem convencidos de que têm direitos. E, do ponto de vista dos índios,
permanece nebulosa a distinção entre direitos coletivos e individuais.
Nos cursos para a formação de professores bilíngües dos quais participei, em
1998 e 2002, ficou patente a hostilidade dos índios perante os antropólogos,
considerados (junto com lingüistas, missionários e fotógrafos) como predadores de seus
conhecimentos. Isto tende a ser exacerbado pelo destaque crescente às questões de bio-
pirataria, propriedade intelectual e imaterial, e pela reificação de cultura nos meios de
comunicação de massa (especialmente os jornais e a televisão).
Na minha estadia na França, em 2005, notei que a reificação da cultura não é
apenas uma questão brasileira. Um artigo no jornal Le Monde postulava que a cultura
européia se diferencia da cultura americana, destacando valores como solidariedade e
fraternidade. E pouco tempo depois o canal BBC, da televisão britânica, discutiu a
necessidade de integrar sua população muçulmana, com os mesmos argumentos que são
usados no Brasil a respeito das populações indígenas.
Atualmente, os índios brasileiros tendem a ver o antropólogo como alguém que
pode ajudá-los a formular projetos para a obtenção de recursos nas áreas de educação,
saúde, defesa da terra, ou desenvolvimento econômico. Perante essa conjuntura, os
estudantes universitários estão preferindo estudar as associações indígenas, fazer
pesquisas históricas, ou pesquisar índios urbanizados, evitando a imersão numa
comunidade indígena, e contornando a aprendizagem de uma língua indígena.
Enquanto a lingüística experimenta um boom, relacionado a uma campanha
internacional para a proteção das línguas ameaçadas de extinção, a etnologia passa por
uma crise de identidade já que os antropólogos têm consciência de que a cultura não é
reificada; está num processo de reformulação constante. Evidentemente as línguas
tampouco são petrificadas, mas têm um núcleo constituído pela fonologia, morfologia e
sintaxe, que permite abordá-las como se fossem entidades dotadas de permanência, e
que estão ameaçadas de extinção. No caso de culturas, é menos claro o que seria esse
núcleo.
De uma perspectiva teórica, me interessa a questão de como conciliar a
‘ diferença’ com a cidadania numa economia globalizada. Pretendo investigar a
possibilidade de travar um diálogo inter-cultural que não se reduz a proselitismo para o
sistema neo-liberal. Por exemplo, casamentos infantis são corriqueiros em muitas
sociedades indígenas brasileiras, mas este fenômeno é abordado na imprensa brasileira
como uma contravenção aos direitos humanos. Tais dilemas testam os limites do
49
relativismo, uma das pedras angulares da antropologia. Outro exemplo é que a noção de
cidadania supostamente transcende a questão de gênero e a UNESCO destaca
atualmente a importância de educação para mulheres, visando consolidar a igualdade de
oportunidades para ambos os sexos. No entanto, a sociedade mẽbêngôkre continua
praticando segregação sexual. É questionável a necessidade de intervir para modificar
essa situação, algo que entraria em choque com o direito (amplamente reconhecido) de
auto-determinação. Cabe ao antropólogo apenas discutir tais questões com a
comunidade, delegando a ela a solução.
A situação vai se modificando gradativamente. No curso de educação indígena
no qual participei em 1998 o papel das mulheres se limitou a cozinhar e a lavar pratos.
Em 2002 não tiveram nenhuma participação. O curso foi realizado no Posto Piaraçu, em
vez de uma aldeia, onde havia poucas mulheres para distrair os homens de seus estudos.
Foi naquele ano que defrontei com monitores sanitários indígenas pela primeira vez,
além dos monitores de saúde que já existiam há mais tempo. Ambos os ofícios oferecem
novas vias de acesso ao trabalho assalariado. Em 2009 já haviam duas mulheres no
curso de formação de professores, uma praticamente mono-língue e a outra moradora da
cidade que fala apenas português.
A maioria dos antropólogos que lidou com a questão de gênero nas sociedades
indígenas tentou solucionar o conservadorismo indígena, da perspectiva euro-
americana, apelando para a complementaridade sexual (Overing 1986, Gow 1991,
McCallum 2001). A meu ver, isso não resolve questões como o acesso diferencial a
uma renda monetária, nem a crença da sociedade hegemônica na necessidade de
igualdade de oportunidades educacionais para ambos os sexos. A adesão à idéia de
direitos humanos universais, quando aplicada a minorias étnicas e não aos estados-
nações, esbarra no direito à diferença. A legislação internacional (como aquela já citada
acima) afirma o direito à diferença, mas está simultaneamente enraizada em valores
euro-americanos tomados, de forma implícita, como absolutos. Trata-se de um tema de
grande complexidade e não me parece que a antropologia encontrou uma saída para esse
impasse (de Coppet, 2001, faz uma discussão incipiente dessa questão). É algo que
discuto com meus alunos com regularidade, sem nenhum avanço significativo até agora.
É um ponto cego do discurso oficial de instâncias como as Nações Unidas.
Em outubro de 2003 apresentei uma comunicação no IEL, UNICAMP, a
respeito de minha participação no curso do ano anterior. Argumentei que a educação
escolar indígena pode servir como uma forma de proselitismo leigo, impondo
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2
Ver a Convenção 169 da Organização Mundial de Trabalho, de 1989, e a United Nations Declaration on
the Rights of Indigenous Peoples, 2007 (7 setembro), onde ‘ desenvolver’ é usado em contraste com o
termo ‘ manter’ , ou seja, aponta para uma modificação do estado atual de um aspecto qualquer da vida
social.
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