Literatura-Das-Pedras Historia Do Amapa

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COLEÇÃO GAPUIA - SOCIOLOGIA EM PESQUISAS & TESES

Literatura das pedras


A Fortaleza de São José de Macapá como
locus das identidades amapaenses

Fernando Canto
LITERATURA DAS PEDRAS
A Fortaleza de São José de Macapá como
locus das identidades amapaenses

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Esta obra teve sua publicação financiada por recursos do
Projeto de Doutorado Interinstitucional (DINTER) em Sociologia
UFC-UNIFAP

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Fernando Canto

LITERATURA DAS PEDRAS


A Fortaleza de São José de Macapá como
locus das identidades amapaenses

Coleção
GAPUIA - SOCIOLOGIA EM PESQUISAS & TESES

Macapá-AP
2019

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Copyright © 2019, Fernando Pimentel Canto

Reitor: Prof. Dr. Júlio César Sá de Oliveira


Vice-Reitora: Prof.ª Dr.ª Simone de Almeida Delphim Leal
Pró-Reitor de Administração: Msc. Seloniel Barroso dos Reis
Pró-Reitora de Planejamento: Msc. Luciana Santos Ayres da Silva
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Pró-Reitor de Ensino de Graduação: Prof.ª Dr.ª Elda Gomes Araújo
Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof.ª Dr.ª Amanda Alves Fecury
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Diretor da Editora da Universidade Federal do Amapá


Antonio Sabino da Silva Neto

Editor-chefe da Editora da Universidade Federal do Amapá


Fernando Castro Amoras

Conselho Editorial
Antonio Sabino da Silva Neto, Ana Flávia de Albuquerque, Ana Rita Pinheiro
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Danielle Costa Guimarães, Elizabeth Machado Barbosa, Elza Caroline Alves
Muller, Janielle da Silva Melo da Cunha, João Paulo da Conceição Alves, João
Wilson Savino de Carvalho, Jose Walter Cárdenas Sotil, Norma Iracema de
Barros Ferreira, Pâmela Nunes Sá, Rodrigo Reis Lastra Cid, Romualdo Rodrigues
Palhano, Rosivaldo Gomes, Tiago Luedy Silva e Tiago Silva da Costa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

F775l Fernando Canto


Literatura das pedras: a Fortaleza de São José de Macapá como locus das
identidades amapaenses / Fernando Canto – Macapá : UNIFAP, 2019.
310 p.

ISBN: 978-85-5476-079-3

Coleção Gapuia – Sociologia em Pesquisas & Teses. Coordenadores:


Antonio Cristian Saraiva Paiva, Eliane Superti / ISBN: 978-85-62359-77-4

1. Amapá. 2. Identidade. 3. Fortaleza de São José. I. Fernando Canto.


II. Universidade Federal do Amapá. III. Título.
CDD: 300

Capa e editoração eletrônica: Guilherme Peres / Autografia


Arte da capa: detalhe da tela Fortaleza de São José de Macapá, de Olivar Cunha

Editora da Universidade Federal do Amapá


www2.unifap.br/editora | E-mail: [email protected]
Endereço: Rodovia Juscelino Kubitschek, Km 2, s/n, Universidade,
Campus Marco Zero do Equador, Macapá-AP, CEP: 68.903-419

Editora afiliada à Associação Brasileira das Editoras Universitárias

É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem permissão do autor.
É permitida a reprodução parcial dos textos desta obra desde que seja citada a fonte.
As imagens, ilustrações, opiniões, idéias e textos emitidos nesta obra são de inteira e
exclusiva responsabilidade do autor do livro.

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A meus pais Antônio e Maria (in memoriam), que
me ensinaram o respeito aos seres humanos, a
coragem para vencer pelo trabalho e a humildade
para nunca querer ser melhor que ninguém.

À minha mulher Sônia, sempre presente em


minha vida, intercambiando sonhos e realizando
o poder de plantá-los em nosso Jardim.

Para meus netos Leonardo, Ana Clara,


Amanda, Clarice e Gabriel, com carinho.

E para Rosilene e Maneca, pelo companheirismo


e amizade nesta aventura acadêmica.

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AGRADECIMENTOS

Às águas das chuvas, dos rios e dos dilúvios que permitiram o acolhi-
mento da vida por meio de Ianejar, o herói primordial, que conduziu
seu povo na mítica viagem à Mairi.
À minha família, que soube compreender sobre o tempo em que me
dediquei ao curso, nunca deixando faltar incentivo, amor e ajuda nas
horas que eu mais precisei.
À Universidade Federal do Amapá, que me possibilitou mais este
degrau acadêmico.
Aos professores da UFC, que romperam as distâncias desse país
para trazer mais luzes do conhecimento acadêmico à Amazônia, espe-
cialmente aos professores Isabelle, Alba, Cristian e George.
À minha ilustre orientadora, antropóloga Isabelle Braz, que direcio-
nava o leme da canoa na hora da tempestade.
Aos queridos colegas de turma, pela troca de informações necessá-
rias ao processo de construção da pesquisa.
Aos escritores e poetas amapaenses, que deixaram em suas obras so-
bre a Fortaleza de São José de Macapá todo um arcabouço identitário.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 13
1. O ZEITGEIST AMAPAENSE 45
1.1. Os escritores 47
1.2.  A herança dos migrantes 50
1.3. Os índios e a terra do “já teve” 56
1.4. O rádio, o rio e o Tumucumaque 63
1.5. A influência de Belém e a herança territorial 66
1.6. Rios de Mairi e os a-sombrados 67
1.7. A festa de São Tiago de Mazagão Velho, outras festas e tragédias 70
1.8. Amapalidade 77
1.9. Identidades em movimento e o que fica 89
1.10. O losango amapaense 93
2.  OLHARES CRUZADOS DE BALAS E FLECHAS: AS CARTAS DOS CONSTRUTORES
NO CONTEXTO DA EDIFICAÇÃO (1764-1782) 97
2.1. A missão dos homens e da obra colonial 97
2.2. O olhar do outro e um cenário de tensões 104
2.3. Doenças tropicais, exílio, intrigas e mortes 110
2.4. Galúcio e o mundo amazônico: desterro e esquecimento 121
2.4.1. O gênio incompreendido 129
2.5. Construtores estrangeiros na Amazônia Colonial 133
3.  O DISCURSO FUNDADOR E A CONSOLIDAÇÃO DO TERRITÓRIO FEDERAL DO AMAPÁ:
UM SONHO NA FLORESTA (1943-1956) 141
3.1. Amazônia, terra de mitos 153
3.2. Mairi, um mito Waiãpi da Fortaleza de São José de Macapá 156
3.3. O encantamento do discurso 159
3.4. A mística do Amapá: um reforço ideológico ao discurso fundador 161
3.5. O encontro com o outro: injunção e poder 166
3.6. As estratégias do Governo Territorial 168
3.7. O saneamento social urbano e a reação tímida: gentrificação e protesto 171
3.8. O Governo dominador 176

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4.  O PERÍODO DITATORIAL E A LITERATURA DAS PEDRAS: O LUGAR DAS DORES E
DOS GRITOS NAS MASMORRAS DA FORTALEZA DE SÃO JOSÉ (1964-1985) 187
4.1. Calabouço de doidos e bêbados e o estabelecimento do regime militar no Amapá: murmúrios de botequim 188
4.2. A Operação “Engasga-Engasga” e o terror implantado em Macapá: a Fortaleza de
São José de Macapá como depósito de presos políticos. 194
4.3.  Memória, ideologia e literatura 213
4.4. Incêndios, aterros, a Doca e o Círculo Militar 217
4.5. O Locus da criação literária 222
5.  A CRIAÇÃO DO ESTADO DO AMAPÁ E AS NOVAS IDENTIDADES (1988-2016) 237
5.1. Referência imagética 238
5.2. Referência literária 243
5.3. Novos discursos literários 259
5.4. O autor, a literatura, a ficção e imaginário 265
5.5. O autor dentro do seu objeto 271
5.6. A aventura da escrita e as identidades 287
CONSIDERAÇÕES FINAIS 291
REFERÊNCIAS 297

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URDIDURA (ENIGMA AMAPÁ)
“Des/vendar tua terra, teus sonhos, Amapá. Des/vendar teus olhos, teus
textos não escritos. Des/velar tua alma circunscrita sobre um rio de prantos
que se espraia para a foz e lava sortilégios no oceano
O teu estado é o de ausente nas necessidades, Amapá. Essas que emer-
gem quando o tempo lento das tuas tardes flana no teu dorso como a vida
descaindo em chuva nos barrancos e re/velam teus segredos: a construção
de pedra ainda esmaecida na paisagem e o ofício de viver uma inócua
pedagogia da espera
Tu só sentirás a ruptura ao ouvir a voz gestante das ciências e o anseio
ainda latente no clamor de homens e mulheres sem os receios dos silêncios
obscuros, sem o medo de arder velhas memórias, sem a escória a deformar
os teus caminhos e os passos do teu povo em agonia
Verás, então, que desvendar-se é pôr o lume sobre a mente, é libertar-
-se já do que te oprime, é trazer o mar de volta para os Andes, é revolver a
vida em ondas inquietas de um novo rio que surge para sempre no meio do
mundo”. (Fernando Canto)

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INTRODUÇÃO

A permanência esfíngica da Fortaleza de São José de Macapá (dora-


vante mencionada aqui neste texto como FSJM), ali na paisagem, à
beira do rio, sempre despertou em mim o desejo de conhecer sua his-
tória e desvendá-la.
Suas velhas e intransponíveis muralhas, as histórias fantasiosas do
seu interior e o vai-e-vem de homens fardados em seu entorno espalha-
vam a temeridade no ar, mormente nos períodos de obscuridade políti-
ca, quando era utilizada para prender os oposicionistas do regime militar.
Então um mistério emanava de dentro dela e atingia o imaginá-
rio da população, que a temia, mas que ao mesmo tempo a respeitava
como uma edificação importante para a sobrevivência da cidade des-
de os tempos coloniais, passando pela instalação do Território Fede-
ral do Amapá, pela ditadura militar e pelos governos democráticos.
Ao lado disso conheci a produção artística e literária local sobre a
FSJM, bem como os direcionamentos políticos urbanos tratados nos
planos diretores de Macapá, que a colocavam sempre em imprescin-
dível evidência. Li, observei e ouvi intelectuais, poetas e políticos fala-
rem dela com ardor e paixão, com seus discursos multifacetados em
tempos sucessivos, evidenciando os feitos heroicos dos antepassados
e a colocarem na contemporaneidade como o lugar da promoção da
cultura.

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Ao aprofundar minhas observações verifiquei que outros signifi-
cados se agregavam sociologicamente ao monumento: uns de caráter
político, e outros oriundos da arte e da literatura. Todos eles, porém,
traziam um imenso arcabouço de fatos e sentidos que a configuravam
como um produto de múltiplas significações, dada a alteridade e a di-
versidade histórica daqueles que a fizeram, desde a sua construção às
transformações e apropriações simbólicas contemporâneas. Assim a
edificação foi se tornando o símbolo imagético da cidade de Macapá
e de seus habitantes.
Nas comemorações do seu bicentenário (1982), nos 250 anos de
aniversário de Macapá (2008), e em ocasiões cívicas e culturais sua
imagem foi amplamente usada pela sociedade, seja por instituições
ou não. Totens, postais e cartazes, além de outros objetos mais tradi-
cionais de divulgação impressa também traziam junto o teor ideológi-
co na comunicação, que fazem efeito mais pelo discurso imagético do
que pelos textos implícitos.
A mídia eletrônica veicula diariamente imagens de estabelecimen-
tos, produtos e eventos comerciais vinculando-os à imagem da FSJM.
Os diversos canais de televisão local fazem de sua imagem o aprovei-
tamento cenográfico ao apresentar seus jornais e programas todos
os dias. Na rua, os comércios, os governos estadual e municipal, e as
instituições jurídicas, militares e privadas mostram ou deixam para
quem quiser olhar, painéis, outdoors, faixas, logomarcas e outras pe-
ças distintas. Nas redes de relacionamento social da Internet deze-
nas de blogs e sites exibem a imagem da FSJM como papel de parede
(de fundo), e seus autores os realimentam com milhares de fotogra-
fias em que o monumento aparece em diversos ângulos na paisagem
em frente à cidade. Não há dúvida que sua imagem é supervaloriza-
da pelos setores comerciais e institucionais, usada positivamente por
todos porque dissemina na população o seu simbolismo de proteção
e segurança que atravessou séculos e fez dela um ícone da identida-
de local. É tão usada que está em muros com inscrições religiosas, em

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escudos de batalhões especiais da Polícia Militar, nas logomarcas de
governos e está, ainda, com seus detalhes, principalmente da sua for-
ma geométrica original e das guaritas, nos brasões oficiais e nas ban-
deiras do Estado e do Município de Macapá.
Sua presença discursiva é polissêmica, pois fala e se apresenta de
diversas formas: nas telas dos artistas, nas calçadas públicas, nos pro-
dutos artesanais e vídeos vendidos a turistas e nos painéis e grafites
pintados por encomenda nos muros de escolas e residências particu-
lares da cidade.
No decorrer dos anos muito foi escrito sobre a fortificação, atra-
vés de diversos gêneros literários que a evidenciaram como elemento
unificador da sociedade local no aspecto do sentimento de pertenci-
mento que os habitantes se identificavam.
Antes, porém, de falar nos aspectos gerais da literatura sobre a
FSJM, há necessidade de discorrer a respeito de outras formas de ex-
pressão, que para mim representam não apenas o discurso dos cons-
trutores, mas o testemunho deles em relação ao que considero uma
aventura colonial, que foram as suas cartas. Elas são textos articula-
dos de uma espécie de romance escrito por eles, no entanto organiza-
dos por mim em trabalho acadêmico recente e caracterizados assim
porque as personagens e seus atos se assemelham dentro da estrutu-
ra formal do gênero romanesco (CANTO, 2014. Pág.139). Ou seja, suas
biografias fazem parte do contexto histórico, talvez verdadeiros, talvez
ficcionais, pois os conteúdos epistolares também estão sujeitos à in-
venção e às intrigas comuns entre militares que viviam o dia-a-dia da
construção com o objetivo de terminá-la, não importavam os meios.
Estavam em Macapá como representantes da colônia lusitana, que a
história se encarregou de reconhecê-los mais tarde como heróis.
Ao me reportar que os construtores da FSJM são personagens de
um romance, baseio-me em Carlo Ginzburg (2002. Pág.47), que, ins-
tigado por Walter Benjamim, incisivamente me exorta a ler os teste-
munhos [da construção] às avessas, até mesmo contra as intenções de

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quem os produziu, porque as fontes nem sempre são dignas de crédi-
to. Essas fontes – as cartas –, soltas, fogem à forma de um romance tra-
dicional da ficção, e mais trazem uma realidade extratextual de uma
narrativa literária rica e informativa, na qual estão embutidos vários
gêneros discursivos.
Yurgel Caldas informa que o herói romanesco se constrói pela
aventura, na qual a oportunidade dá a ele a possibilidade de se consti-
tuir como sujeito de uma história e de encontrar sua própria essência
(CALDAS, 2007. Pág. 61). Nesse processo, a construção da FSJM deu
principalmente ao engenheiro militar e um dos principais missivistas
do período de construção da obra, Henrique Galúcio, essa oportuni-
dade. Uma oportunidade não ficcional, mas real e moderna no cená-
rio em que vivia em Macapá, separado da família, servindo o reino no
ambiente que idealizou, riscou (fez as plantas arquitetônicas) e cons-
truiu. Faleceu em plena execução da obra em 1769, aos 41 anos, de
malária, assim como o seu arquirrival, Nuno Athayde Varona, coman-
dante da Praça de Macapá, seis meses antes, da mesma enfermidade.
O romance, segundo a categorização de Anthony Burguess (1994), é
um gênero de ficção, e esta, pode ser definida como arte ou habilidade
de inventar, através da palavra escrita, representações da vida humana
que instruem ou divertem, ou ambas as coisas. Seus principais elemen-
tos são: o cenário, as personagens, a trama, o foco narrativo e o ponto de
vista, a abrangência e a dimensão e, o mito, simbolismo e significado.
Mas as narrativas das cartas dos construtores às vezes estão im-
bricadas, às vezes são contraditórias a outras cartas sobre um mesmo
acontecimento.
Entre os engenheiros militares portugueses que acompanharam
o italiano Henrique Galúcio (Enrico Galluzzi) destaca-se o sargento-
-mor e engenheiro Henrique João Wilkens, também poeta, que por
anos serviu em Macapá, tendo substituído Galúcio na construção da
FSJM após a morte deste. Wilkens escreveu e publicou, no final do
século XVIII, o primeiro poema épico da Amazônia, denominado “A

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Murahida”, que narra a conversão ao catolicismo dos índios mura, do
alto rio Madeira, para onde foi destacado depois de entregar a cons-
trução da obra para o engenheiro alemão (também militar do exército
colonial português) João Geraldo Gronfelts.
Com a assunção de Dona Maria I ao trono português, e a conse-
quente derrocada do marquês de Pombal, a FSJM ficou entregue às
intempéries. Palma Muniz informa que ela foi inaugurada no dia 19
de março de 1782, muito embora não concluída definitivamente (MU-
NIZ. s.d.). O historiador diz ainda que:

À sombra da fortaleza desenvolveu-se a villa de São José de Macapá, sem-


pre gozando das vantagens de centro militar, até a independência do Bra-
sil. Com esta, retirados os recursos que o governo colonial dava com van-
tagem à praça de guerra, entrou Macapá em decadência: a sua fortaleza
arruinou-se, chegou mesmo a servir de curral de animais, e o seu archivo,
importante repositório de nossa história colonial, esvaiu-se no desleixo e
abandono a que o governo do Império relegou as suas províncias” (Idem)

Embora tão abandonada como a cidade em que foi construída, a


FSJM sempre serviu de inspiração para poetas. É de Jarbas Cavalcan-
ti (1973) a informação de que a “Antologia Amazônica”, organizada por
J. Eustáquio de Azevedo, em 1904, traz o célebre soneto “Maria Bár-
bara”, de autoria do poeta romântico Tenreiro Aranha (1769-1811), que
exalta a fidelidade de uma mameluca, esposa de um soldado da guar-
nição da fortaleza, pertencente ao Regimento Militar de Macapá. No
poema a heroína preferiu a morte à traição do esposo. O drama é can-
tado desta forma:

SONETO
Se acaso aqui topares, caminhante,
Meu frio corpo já cadáver feito,
Leva piedoso com sentido aspeito

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Esta nova ao esposo aflito, errante.

Dize como de ferro penetrante


Me viste, por fiel, cravado o peito,
Lacerado, insepulto, e já sujeito
O tronco frio ao corvo altivolante.

Que dum monstro inumano lhe declara


A mão cruel me trata desta sorte,
Porém que alívio busque à dor amara,

Lembrando se que teve uma consorte


Que, por honra da fé, que lhe jurara
À mancha conjugal prefere a morte (CAVALCANTI. 1973. Pág. 23)

Faz-se necessário observar que tanto as obras relacionadas à Ma-


capá e às da FSJM escritas no período colonial, e até mesmo durante
o Império desapareceram. As cartas dos construtores são um exem-
plo disso, pois poucos documentos foram guardados nos códices do
Arquivo Público do Pará. Os documentos que usei no meu trabalho,
já referido, são apenas os que foram emitidos de Macapá para Be-
lém (sede da Província do Grão-Pará), não tendo encontrado as de
Belém para Macapá, mas apenas referências às respostas e aos ape-
los dos construtores nas cartas que eles mesmos dirigiam aos go-
vernadores.
No caso de Tenreiro Aranha, pouca coisa de sua produção chegou
aos nossos dias: a “Oração ou bom discurso”, “Ode Pindarica”, “Dra-
ma pela fundação da casa para depósito de pólvora do rio Aurá, per-
to da cidade do Pará”, “Os pastores do Amazonas, drama pastoril”, “A
felicidade no Brasil, drama em um só acto” e “Melizo, idylio” (ARA-
NHA, 2015).
Dois incidentes causaram a perda da maioria de sua obra.

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O primeiro aconteceu em 1832, quando seu filho, João Batista, que se
tornou presidente da Província do Amazonas, teve a bagagem per-
dida em um naufrágio em Icoaraci, extraviando, assim, uma coleção
de originais do poeta; no segundo, em 1835, os escritos que estavam
em sua casa, em Belém, foram saqueados pelas tropas repressoras
[da Cabanagem] que destruíram os preciosos documentos (Idem.
Pág, 23).

O soneto “Maria Bárbara”, a meu ver, é apenas um exemplo do elo


da literatura sobre a FSJM à questão das identidades amapaenses.
Porém, é conveniente transcrever aqui o poema “Macapá”, de auto-
ria do médico e político amapaense Alexandre Vaz Tavares, publicado
em 1889. O texto bem traduz a revolta do poeta, que era republicano,
ao encontrar a FSJM entregue ao abandono e ao descaso político, na
época em visita a sua terra natal, na qual o mesmo foi intendente em
1922. Considero este o primeiro texto poético sobre a cidade de Ma-
capá e sobre o monumento, que fez parte da infância do autor, como
ele bem coloca em seus versos octossílabos. Na realidade o poema
pode ser dividido em três partes.

MACAPÁ

1ª parte
Na esquerda margem selvosa
Do rio-mar, o Amazonas
Pensativa e descuidosa
Como essas gastas madonas
Das noites de bacanal
Descansa da atividade
Dos anos, da nova cidade
A minha amada cidade
Minha cidade natal

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Para leste orientada
Em face encara o nascente
De onde lhe envia a alvorada
Um beijo róseo-nitente
Em cada raio de sol

À noite, a lua de prata


Fios de perla desata
Por entre a florida mata
Onde dorme o rouxinol

Ao Oiapoque, o guiano
Vão seus solos marginais
Que se prolongam no plano
Das divisas boreais
Em serras em alcantil
A Oeste vastas campinas
Amplo tapiz de boninas
Com pingues raças bovinas
Riquezas e encantos mil

Nesta primeira parte o autor se reporta à localização da sua cidade


e a descreve como como um lugar calmo que “descansa da atividade”
em um tempo lento, mas eivado de “encantos mil”, ainda que estenda
sua descrição para lugares mais distantes de Macapá, sem deixar de
mencionar os acidentes geográficos e as fazendas de gado, a grande
riqueza pecuária, com suas “pingues (gordas) raças bovinas”. Ele es-
tava impregnado pelo simbolismo da época e pelo sentido de brasili-
dade que grandes autores como José de Alencar e Castro Alves, já vi-
nham influenciando a sociedade e os escritores por todo o país, por
meio de livros e folhetins.

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2ª parte
Por atalaia gigante
Ou em sinal de defesa
Do granito mais possante
Levanta uma fortaleza
Negras muralhas ao sul.
Outrora, adornadas em aço
Faziam troar o espaço
Dos canhões seus com o fracasso
No vasto horizonte azul

Outrora, quando ascendia


Sobre aquela grimpa ingente
Entre os sons da artilharia
O pendão aurifulgente
O auriverde pavilhão

Trajava a cidade inteira


Alva roupagem faceira
Pela data brasileira
Ou festa de devoção

Então que alegre não era


Ver-se o ledo rodopio
Em manhãs de primavera
Ou nas tardinhas do estio
De um povo em festa a folgar:
Moças com laços de cores
Raparigas com mil flores
Rapazes buscando amores...
Tudo era rir e brincar!

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Hoje... lá jaz o colosso
Quase em total abandono
Formando quase um destroço
Na triste mudez do sono
Do desprezo mais cruel.
É correção de soldados
É presídio de forçados
É terror de condenados
De criminosos, quartel.

Hoje, o bronze já não salva


Da galharda bateria
Quer assome a estrela d’alva
Quer venha a findar o dia
Não fosse a luta feral
Do rio-mar como a procela
Ou os brados da sentinela
Quando, acaso à noite vela
Fora tudo em paz mortal...

O centro do longo poema refere-se à FSJM. O poeta a chama de


“Atalaia gigante” e lembra os dias de festas cívicas e religiosas que des-
locava toda a sociedade para as suas dependências, quando ela era
usada como o lugar mais importante da cidade. Era para lá que as pes-
soas se dirigiam de roupas alvas para assistir o hasteamento da ban-
deira e o troar dos canhões seculares (que até hoje ainda disparam
tiros em dias de festas como no aniversário da cidade, no Dia da Inde-
pendência e no dia 13 de setembro, data da criação do Território Fede-
ral do Amapá). O autor lembra com saudade um tempo feliz, cheio de
festas, onde “Tudo era rir e brincar”. Em seguida traz o lamento de vê-
-la abandonada da sociedade e transformada em um lugar sangrento
de tortura e morte, pois agora “É correção de soldados/ é presídio de

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forçados/ é terror de condenados/ de criminosos quartel”. Aqui o poe-
ta inicia sua revolta contra o estado em que a Fortaleza se encontra e
acusa os militares de se igualarem a criminosos. Não há mais salva de
canhões. Tudo se transforma em sua realidade e ficam apenas os ecos
do que fora na memória de Vaz Tavares.1

3ª parte
Maldito! Maldito seja
Vezes mil um tal governo
Que insaciável deseja
Céus e terra e até o averno
Desfeito em ouro só!...
Maldito, porque os legados
De nossos antepassados
Em vez de serem zelados
São desprezados sem dó!

Sim! Maldita a monarquia


– Aleijão de privilégios
Que cegamente confia
Aos fáticos caprichos régios
A sorte de uma nação.
Ao sistema – imperialismo
Ao torpe maquiavelismo

d’El-Rei, senhor – egoísmo


Maldição! Sim, maldição!...

1. Decretada pela Assembleia Legislativa Provincial e sancionada pelo presidente da Província do


Grão-Pará, Henrique de Beaurepaire Rohan, a Lei nº 281 de 6 de setembro de 1856, que eleva Macapá
de vila à cidade, foi selada e publicada no mesmo dia e registrada no livro 3.º de Leis e Resoluções Pro-
vinciais no dia 9 de setembro. Esses dados se encontram na “Collecção das Leis da Província do Gram-
-Pará”, Tomo XVIII, Parte 1ª.

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Dorme, cidade e, em seu sono
Sonha os fulgores de outrora
– Veneza já teve um trono
Já foi dos mares senhora
E às nações já leis ditou
Mas, hoje, ei-la: descansa
Rememorando a pujança
Do fastígio que a mudança
Dos tempos lhe arrebatou...

Dorme!... tens aos pés prostrado


O rio-mar, bardo eterno
Que entoa sempre inspirado
Ora, o canto mais galerno
Ora, os hinos do tufão...
Dorme aos sons das cavatinas
Das aves entre as cortinas
Dessas florestas divinas
Do teu risonho sertão! (MEIRA, CASTRO e ILDONE, 1997).

Na última parte, o poeta se insurge com o governo monárquico2,


amaldiçoando-o “Porque os legados/ Dos nossos antepassados/ Em
vez de serem zelados/ São desprezados sem dó!”. Ele espragueja o re-
gime pelo desprezo à FSJM, o maior orgulho de sua terra natal de sua
época, e pela ideologia do sistema político imperial e suas ações ma-
quiavélicas expressas na sua catarse poética. Elogia a mudança do re-
gime de Veneza e por fim encerra o seu profundo lamento, onde pa-
rece prever mais um tempo calmo, quando o lugar sonolento dorme
ao canto da natureza se resguardando em seu “risonho sertão” para o
porvir. Macapá ficaria praticamente intacta em sua vida cotidiana até

2. Lembro, porém, que o texto foi publicado em 1889, ano da Proclamação da República.

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se transformar, em 1943 – 54 anos depois –, na capital do Território Fe-
deral do Amapá, desmembrado do Pará. Vaz Tavares foi intendente do
município de Macapá por um curto período, em 1922.
Esses textos sobre a fortificação ensejam o início de uma produção li-
terária e discursiva que viria lhe dar uma significação maior, principal-
mente após a criação do Território, onde Macapá se desenvolveria à sua
sombra, como nos tempos de sua construção realizada pelo governo co-
lonial. E ela se tornaria, então, juntamente com o Marco Zero do Equa-
dor e o rio Amazonas os principais elementos icônicos da cidade e ele-
mentos constitutivos das identidades em formação, junto a um projeto
político de Governo que implantaria um discurso ideológico de efeito
profundo para mudar a tradição e o modus vivendi da população local.
Esse discurso – com o qual me ocuparei mais tarde – trata de um
discurso fundador que incita e molda o Outro a ser como o emissor
(o poder dominante) o quer. O Outro, na perspectiva de Joanildo Bu-
ruty (1977), não é um ser em plenitude, é um ser desejante. São to-
dos aqueles que existem na literatura sobre a FSJM e nas suas relações
sociais. São personagens de um contexto histórico-literário, que vi-
veram e que foram desterrados e degredados no mundo desconheci-
do daquela Amazônia setecentista envolta em mistérios fabulosos de
esquecimentos, silenciamentos e mortes, longe dos clarões do ilumi-
nismo europeu; são migrantes que se instalaram na cidade ao redor
da fortificação, vindos em busca de um eldorado tosco e do empre-
go fácil quando da instalação da capital do Território Federal do Ama-
pá; são aqueles que acreditaram na promessa política de uma nova
Zona Franca em Macapá; são, enfim, nativos e estrangeiros desvali-
dos, mas esperançosos, a olhar por cima dos muros da FSJM o maior
rio do mundo correndo para o mar, com sua pujança da força das ma-
rés lançantes e a calmaria de um remanso na maré seca. São todos
que os trouxeram para o Amapá a sua cultura, seus sotaques e costu-
mes e se somaram à experiência dos nativos, no discurso e na imagi-
nação dos autores literários.

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Nos meados da década de 1970 (Governo Arthur Henning), o Gover-
no do Território iniciou um processo de aterramento da área em frente
à FSJM e a Prefeitura Municipal de Macapá só permitiu a construção de
casas de alvenaria, devido aos incêndios que destruíram grande parte
da área comercial. Foi construído o canal da Avenida Mendonça Júnior
e iniciado o aterro da área oriental, onde hoje está o Banco do Brasil e
a praça norte da FSJM, junto ao complexo Turístico Beira-Rio, em fren-
te ao Macapá Hotel. Anos depois, após inúmeras “reparações” e tenta-
tivas de restauração, já em 2006, foi inaugurada a praça sul, que a mídia
chamou de “lugar bonito” e que o povo passou a assim considerar (Go-
verno Waldez Góes). Antes, porém a gestão do Governo Estadual ante-
rior (Governo João Capiberibe) revitalizou o Trapiche Eliezer Levy, que
anteriormente era de madeira e principal porto de Macapá, diminuin-
do-lhe o tamanho em mais de 200 metros, mas com um restaurante no
seu final, ligado por um bonde elétrico para passageiros.
O bairro de Santa Inês, no lado sul do forte também foi aterrado até
onde se localiza hoje o bairro do Aturiá, passando pelo Complexo Tu-
rístico do Araxá. Ao meio dessas transformações na paisagem, o rio
Amazonas e a Fortaleza são algumas das poucas permanências que
restaram de um longo tempo de mudanças e de decisões de interven-
ção urbana para a área.
Para ser o que é hoje para o povo da cidade de Macapá, a FSJM
passou por inúmeras restaurações, e se estabelece na paisagem como
um elemento de referência para todos os planos diretores realizados
ou não pelos Governos municipais e territoriais.
A FSJM tornou-se um ícone-referência após as facilidades da mí-
dia em colocá-la com símbolo da cidade, que está presente em todas
as representações imagéticas: sejam elas religiosas, políticas, milita-
res, plásticas, poéticas, estéticas, discursivas ou meramente comer-
ciais. Mas representa, antes de tudo, um patrimônio local resguar-
dado enquanto museu aberto à visitação pública e como símbolo do
povo amapaense.

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Ao lado de toda a exuberância que lhe foi dada esteticamente, o
que lhe valeu o prêmio da revista “Caras” como uma das Sete Maravi-
lhas do Brasil3, o vandalismo, a violência e a falta de manutenção pelo
poder público começaram a incomodar camadas da população, os
caminhantes do entorno e os frequentadores do lugar. Por si só real-
mente ela está presente no dia-a-dia da sociedade como um símbolo
que marca a cidade, embora em seu entorno algumas ações de nada
combinam com esses valores. Nem se conta aqui a falta de perspecti-
va para minimizar o problema de vendedores ambulantes que se fi-
xaram com suas mercadorias em diversos pontos da zona comercial
central, e que fazem ponto no canal da Avenida Mendonça Júnior e
por trás do Mercado Central, além das construções comerciais pre-
cárias que ficaram por perto da fortificação. Nem se conta também a
pichação das suas muralhas e a poluição das águas do rio Amazonas
num tempo em que se inicia de verticalização de Macapá com a força
avassaladora do capital.
Por outro lado, artistas de diversas áreas veem e usam a FSJM
como o locus da cultura amapaense. Da dança dos grupos afrodes-
cendentes a exposições fotográficas; das mostras de artes plásticas
aos shows musicais; da poesia e da prosa literária, passando por mos-
tras arqueológicas e de vídeos a palestras sobre arte e cultura, tudo
passa por ela. Há também os megashows musicais em eventos co-
memorativos e tradicionais realizados em palcos montados dentro
dela e em seu entorno, demonstrando, assim, os diversos usos e con-
tra usos do lugar (LEITE, 2007. Pág. 284/88)4. Nesse contexto, infere-

3. A revista Caras, em parceria com o banco HSBC, promoveu o concurso As Sete Maravilhas Brasilei-
ras por meio de voto virtual em 2007 e a FSJM foi uma das contempladas. Com o resultado o Parque do
Forte (Praça da parte sul da fortificação, também conhecido como “Lugar Bonito” devido a propagan-
da nos meios de comunicação local) ficou conhecido em todo o Brasil e se consolidou na paisagem ur-
bana, levantando, assim a autoestima dos amapaenses.
4. Usos e contra usos são reflexões sociológicas para o conceito de lugar, ao qual Leite entende “que é
uma determinada demarcação física e/ou simbólica no espaço, cujos usos o qualificam e lhe atribuem
sentidos diferenciados, orientando ações sociais e sendo por elas delimitados reflexivamente”. Um lu-

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-se que a arte possibilita reflexões acerca do cotidiano dos grupos so-
ciais e pode ser analisada como microcosmo das relações de um dado
espaço que consiste em ser “uma das chaves para a compreensão das
transformações e permanências, e uma das lentes para a percepção
do denso emaranhamento dos processos de construção de identida-
des coletivas” (REIS, 2007. Pág. 213).
Deste modo, posso inferir que o lugar da FSJM também é o espaço
de interação simbólica e de convivências dinâmicas, devido os seus
usos no espaço em que ela foi construída, exercendo uma espécie
de vínculo atrativo de interesses socioculturais que dá ao lugar uma
identidade compartilhada pelos frequentadores das atividades ali de-
senvolvidas.
A cidade de Macapá, como qualquer outra cidade amazônica de
médio porte, tende a diluir a memória de seus habitantes por estar
sempre em transformação, dado o seu crescimento desordenado, o
alto índice de migração e as mudanças causadas pelas contingências
do seu desenvolvimento urbano presente. Mas, considerando que a
memória tenta decifrar o passado, tem ela, também, o papel de fixar
os sentidos e a identidade, permitindo a sociedade traçar suas origens
e reconhecer suas permanências independentemente do tempo. Ela
também possibilita o reencontro com o sentido de pertencimento e
tem a capacidade de viver o tempo presente (Idem).
Mas há, certamente, uma produção em que a referida obra mili-
tar está contextualizada e concretizada pela memória dos produtores
artísticos e pelas ações do Poder Público. As administrações dos go-
vernos estaduais passados realizaram sucessivas reformas e revitali-
zações na FSJM no intuito de legitimá-la ainda mais como um ver-

gar, para Leite, “é sempre um espaço de representação, cuja singularidade é construída pela ‘territoria-
lidade subjetivada’ (Pág, 285), mediante práticas sociais e usos semelhantes”. Após buscar conceitos de
outros autores sobre o tema, ele joga sobre o leitor a perspectiva que “lugares são espaços de conver-
gências simbólicas que resultam de experiências compartilhadas mediante alguma possibilidade de
entendimento sobre o que significa um certo espaço e sobre o que representam certos conteúdos cul-
turais partilhados” (Idem).

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dadeiro ícone da cidade, inclusive com muitas inserções na mídia
eletrônica. Entretanto, e independentemente dessas ações políticas,
pela sua permanência no espaço e no tempo e pelo seu papel histó-
rico, ela representa, sim, o símbolo da cidade e ícone material e me-
morial da sociedade macapaense. As concepções literárias, expressas
nos diversos discursos sobre ela, vinculadas ou não ao passado, são o
resultado dessa relação que, no meu entender, vem a contribuir para
o processo de formação da identidade local.
Desta forma há uma necessidade de se observar o monumento,
hoje, sob o olhar de uma memória coletiva. O escritor e o poeta fazem
parte dela, e suas obras representam seus sonhos e utopias, que atra-
vés de suas sensibilidades, conforme afirma Glória Reis, tem desejos
de manutenção de valores e sentidos, alternativas de engajamento
político ou de ativismo social. Sobre isso ela diz ainda que

Referentes da identificação coletiva, as experiências vividas, as manei-


ras de ver, escrever, pintar, esculpir, pensar, falar, ouvir, fotografar, relatar,
cantar, dançar e representar trazem, pois, informações essenciais sobre
a vida no espaço urbano e tem caráter documental. Os artistas, testemu-
nhos das dinâmicas da vida urbana, fazem parte do patrimônio humano
da cidade e suas memórias são preciosos instrumentos de construção de
identidades coletivas (REIS. Op. Cit, Pág. 218)

Reis vai mais além nessa perspectiva de ver nos artistas elementos
que têm realidades abrangentes, que quando falam de suas lembran-
ças adquirem “o direito de transitar por temas e períodos de sua pró-
pria vida e passam então a reler e valorizar a própria história” (Idem.
Pág. 219). Ela afirma que se forem confrontados os depoimentos dos
artistas com a análise das articulações das circunstâncias encontra-
das na cidade, é possível decodificar uma série de elementos que fa-
zem parte do modo de vida, dos hábitos, das estratificações sociais e
as tendências de transformações.

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A memória dessas pessoas e desses artistas representa uma espé-
cie de suporte das identidades. Cada olhar contido em uma poesia,
em uma produção artística, reflete uma experiência capaz de fornecer
memórias sobre a história da cidade, com seus respectivos detalhes
sobre a FSJM. O lembrado e o esquecido compõem uma experiência
que é ao mesmo tempo individual e coletiva, de forma a constituir o
sujeito na medida em que “relembrar é identificar-se consigo e com o
outro” (Idem).
E, nessa lembrança, quando a FSJM é considerada espaço de pre-
servação e edificação da cidade que faz a vinculação com o passado,
é preciso vê-la com suas significações que o levaram a ser um ícone.
Apesar de ter sido iniciada oficialmente seis anos depois da funda-
ção de Macapá (1758), a FSJM é, como o disse antes, a gênese da for-
mação da cidade, que ao longo de mais de dois séculos foi mudando o
seu eixo de ocupação.
É preciso, portanto, considerar que a conquista da Amazônia pelos
portugueses suscita uma história diversificada e rica em detalhes; que
as fortificações por eles construídas são marcos de suas lutas pela ex-
pansão das fronteiras, e que no bojo de tudo isso está a FSJM, na qual
inúmeros olhares se fixaram e se desvaneceram pela memória qua-
se diluída, pelas lembranças e esquecimentos, expurgadas pelo nasci-
mento de um novo tempo.
Então, o conceito de identidade deve ser visto como “uma celebra-
ção móvel, formada e transformada continuamente em relação às for-
mas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas
culturais que nos rodeiam” (HALL, 1997. Pág. 13).
Mas não é só isso que entra em jogo. Há inúmeros conceitos so-
bre o sentido da diferença. E a diferença nesse ponto de vista também
existe independente, assim como a identidade (SILVA, 2000. Pág. 74).
Silva afirma ainda que a diferença é um produto derivado da identi-
dade, onde esta é a referência para os dois conceitos, “o ponto original
relativamente ao qual se define a diferença. Isso reflete a tendência a

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tomar aquilo que somos como sendo a norma pela qual descrevemos
ou avaliamos aquilo que não somos” (Idem).
Essa referência será um dos pontos de apoio para a análise que
pretendo fazer na literatura sobre a FSJM em relação ao tema.
O alto índice de imigração, (em torno de 5,6%, de acordo com o
IBGE:2000) nos anos 1990 (quando da implantação da Área de Livre
Comércio de Macapá e Santana - ALCMS) causou um grande aumen-
to populacional em Macapá. Com isso, os hábitos e a cultura dos ha-
bitantes do Estado foram mudando. Os migrantes se estabeleceram
com suas famílias e fixaram suas raízes.
Com o advento da mídia eletrônica e a facilidade dos estabeleci-
mentos comerciais de transmitirem jogos de futebol pela televisão,
por exemplo, os torcedores se dividem entre torcer por times rivais de
outros estados, o que praticamente pode ter contribuído para a estag-
nação do futebol profissional local. O carnaval e a quadra junina, tal-
vez por terem mais consumidores e eleitores, recebem mais subsídios
e incentivos financeiros governamentais para a sua realização do que
os tradicionais ciclos de festas populares de origem africana como o
Marabaixo e o Batuque. A festa do padroeiro São José nem se compara
com a multidão de devotos de origem paraense de Nossa Senhora de
Nazaré, apenas para dar outros exemplos de aceitação de outras cul-
turas (Obs. Enfocado no Capítulo I).
Por outro lado, alguns amapaenses, ao mesmo tempo em que lou-
vam e enaltecem as belezas turísticas do Estado, que se orgulham
de sua ancestralidade indígena e africana, defendendo a cultura lo-
cal com sofreguidão, muitas vezes negam essa descendência e se con-
tradizem.
Esse paradoxo identitário é citado frequentemente como exemplo
por viajantes macapaenses, dentro do Brasil (ao menos no Sul), que
sofreram algum tipo de preconceito por serem amazônicos, por vive-
rem na selva e que, portanto, são “selvagens”, porque vivem em am-
bientes naturais perigosos. Eu questiono então, a partir da literatura

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produzida explícita ou implicitamente sobre a FSJM, desde o período
de sua construção até hoje: de que forma ela ancora significados so-
bre as identidades amapaenses?
Deste ponto posso afirmar que a literatura das pedras, enquanto
meu foco de análise são as narrativas literárias, textuais de escritores e
poetas, que também é o meu campo de pesquisa.
O meu objeto propriamente dito é a FSJM, a literatura e a identida-
de, pois trabalhei no processo de como as identidades amapaenses se
constroem a partir da literatura de autores que são ou que tenham re-
presentado a ordem (o Estado) e os da contraordem e suas oposições
ao discurso do Estado, tomando como referência a Fortaleza de São
José de Macapá.
Essa literatura tem os seus períodos específicos aos quais chamo
de temporalidades literárias para situar metodologicamente o tempo
de suas criações. São voltadas (em forma de capítulos da tese) para:
1) Período da construção da FSJM (1764-1782). 2) Período da criação
e instalação do Território Federal do Amapá – Governo de Janary Nu-
nes (1944-1956). 3) Período ditatorial (1964-1985) e 4) Período Demo-
crático, a partir de 1985, passando pela criação do Estado do Amapá,
em 1988, até a atualidade. Esses períodos parecem falar da constru-
ção de uma identidade local, a meu ver, a partir do que foi escrito so-
bre a FSJM. São, por isso, os processos temporais que fazem parte do
meu objeto.
Na construção do presente trabalho verifiquei que para me esta-
belecer no processo constitutivo da sociedade amapaense era neces-
sário panoramizar aspectos inerentes ao Amapá a fim de que, a prio-
ri, pudesse ter mais condições de falar sobre identidades e memórias,
historiando esses aspectos da vida cultural amapaense. Daí ter opta-
do pela feitura de um primeiro capítulo sem as temporalidades espe-
cíficas dos demais.
Os autores que falam sobre a FSJM foram selecionados em fun-
ção de suas categorizações nas temporalidades históricas e literárias,

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onde a ordem e a contraordem foram preocupações inerentes ao ob-
jeto da pesquisa. Foram trabalhados vários gêneros literários, como
as cartas dos construtores da FSJM, o discurso fundador, a literatura
oral, o romance, a poesia, o conto e a crônica.
O que pode parecer muito amplo sofreu recorte metodológico. E
a escolha dos gêneros literários se deu devido à pequena produção
relacionada à FSJM. Pequena, mas que teve força literária suficien-
te para imergir no trabalho, o que me permitiu realizar o manejo do
material pesquisado, pois tenho a certeza que ele se enquadrou nos
objetivos.
Os autores que trabalhei estão divididos nas temporalidades ex-
postas acima. Na segunda temporalidade, que trata do discurso fun-
dador do Território Federal do Amapá, estão o primeiro governador
do Amapá, Janary Gentil Nunes; Álvaro da Cunha, o organizador da
“Mística do Amapá”, que também era burocrata e poeta; a antropólo-
ga Dominique Gallois, que fala a respeito de “Mairi”, (a FSJM) do mito
fundador dos índios waiãpi, e diversos políticos brasileiros que dei-
xaram suas impressões sobre o Território Federal do Amapá no pe-
ríodo de gestão de Janary Nunes (1944 -1958). Na terceira, que se re-
fere ao período da ditadura militar, estão os autores Maria Ester Pena
de Carvalho (romancista), Ray Cunha (contista e romancista), Jorge
Hernani (romancista), Luiz Jorge Ferreira (poeta), José Araguarino de
Mont’Alverne (ex-inspetor da Guarda territorial e ex-delegado de po-
lícia e cronista), um cronista anônimo que publicou um texto sobre a
Doca da Fortaleza em uma revista local. A quarta temporalidade traz
textos do poeta Joãozinho Gomes, da cronista Luli Rojanski, do cro-
nista e memorialista João Alberto Capiberibe, ex-governador do Es-
tado do Amapá, da cronista e memorialista afrodescendente do qui-
lombo do Curiaú Esmeraldina dos Santos, dos poetas Almeida Júnior
e Roberto Serra, dos irmãos poetas Jeconias, Hodias e Obdias Araújo,
que quando crianças moraram dentro do prédio da FSJM (onde seu
pai exercia a função de coureiro e seleiro no início do Território Fe-

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deral do Amapá), do ex-senador pelo Amapá, escritor José Sarney e
outros autores que se referem à edificação contemporaneamente. Na
primeira temporalidade (II Capítulo) refiro-me ao papel dos constru-
tores e suas identidades e alteridades ao chegarem com a missão de
construir a fortificação. O material analisado é fruto de suas narrações
missivistas no período. Devo observar que nas três últimas tempora-
lidades há uma gama de textos publicados em jornais, livros, postais,
folders e prospectos turísticos e culturais sobre a FSJM que ora se re-
velam amorosos-poéticos e ora nacionalistas-ufanistas. São textos ei-
vados de códigos ideológicos, responsáveis pela disseminação dos va-
lores cívicos e patrióticos, desde a segunda temporalidade, mas com
evidência vigorosa durante os anos do governo militar.
Foi necessário também, refletir em como as ideologias são repre-
sentadas na literatura e sobre os textos dos autores que trabalham re-
presentações simbólicas, além de identificar ideias e registrar pontos
divergentes. Isso certamente foi possível a partir dos momentos de re-
flexões e diálogos, a fim de que pudesse tecer minhas considerações
sobre o fato estudado.
É através da pesquisa que essas questões são dirimidas. Para mim
são questões angustiantes e intrigantes, mas que se movem e se arti-
culam notadamente nas narrativas dos escritores locais e dão susten-
tação empírica às reflexões e aos objetivos teóricos que tentei atingir
e decifrar por meio das diversas elucubrações sobre essa construção
icônica e representativa da vida amapaense. Ao considerar esses as-
pectos descritos e analisados na tese primeiramente descrevo o arca-
bouço teórico utilizado. Apoiei-me na Sociologia da Literatura de An-
tonio Cândido, que preconiza como objetivo

focalizar vários níveis da correlação entre literatura e sociedade, evitando


o ponto de vista mais usual, que se pode qualificar de paralelístico, e ou-
tro, a sua ocorrência nas obras, sem chegar ao conhecimento de uma efe-
tiva interpenetração (CÂNDIDO, 200. Pág. 1).

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Para esse autor, a

sociologia da literatura não propõe a questão do valor da obra, e pode in-


teressar-se, justamente por tudo o que é condicionamento. Cabe-lhe, por
exemplo, pesquisar a voga de um livro, a preferência estatística por um
gênero, o gosto das classes, a origem social dos autores, a relação entre as
obras e as ideias, a influência das organizações social, política e econômi-
ca, etc. É uma disciplina de cunho científico, sem a orientação estética ne-
cessariamente assumida pela crítica (Idem. Pág.6).

No intuito de deixar bem clara a questão diferencial da crítica literá-


ria e a sociologia da literatura, Cândido fala das mudanças atuais nesses
dois campos de estudo e dos perigos que tanto a crítica literária quan-
to a sociologia podem enfrentar quando o pendor para a análise pos-
sa obliterar a verdade básica, “isto é, que precedência lógica e empíri-
ca pertence ao todo, embora apreendido por uma referência constante
à função das partes” (Idem. Pág. 9). O outro perigo é que a preocupação
do estudioso com a obra se dê fora dos limites da autonomia da análi-
se. Não se pode exacerbar o senso da função interna dos elementos, em
detrimento dos aspectos históricos que para Cândido é a dimensão es-
sencial para apreender o sentido do objeto estudado.
Antonio Cândido procura delimitar terrenos nos estudos socioló-
gicos da literatura construindo para isso uma tipologia que abrange
seis tipos de estudo. Ele dá legitimidade a todas as modalidades e suas
variantes afirmando que

Quando bem conduzidas, fecundas, na medida em que as tomarmos,


não como crítica, mas como teoria e história sociológica da literatura
[...]. Em todas, nota-se o deslocamento de interesse da obra para os ele-
mentos essenciais que formam a sua matéria, para as circunstâncias do
meio que influíram na sua elaboração, ou para a sua função na socieda-
de (Idem. Pág. 12).

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Entre os escritores que encontrei nas temporalidades estudadas na
tese, há discursos, obviamente, que não trazem o ar da contempora-
neidade. Embora muitos valores e regionalismos tenham mudado de
configuração desde o Movimento Modernista de 1922 e, apesar da li-
teratura brasileira ter entrado em diversas crises, sempre conseguiu
reagir diante das circunstâncias do novo, encontrado novas formas de
se revestir e mudar, de traçar novos e universais caminhos diante da
tecnologia e da informação. Entretanto, muitos dos poetas e escritores
amapaenses ainda se vestem com a camisa de força do Modernismo e
de sua forma discursiva para se limitar e se conflitar no tempo e no es-
paço onde existem contradições ideológicas nítidas. O autor em ques-
tão entende literatura por:

Fatos eminentemente associativos; obras e atitudes que exprimem as re-


lações dos homens entre si, e que, tomadas em conjunto, representam
uma socialização dos seus impulsos íntimos. Toda obra é pessoal, única
e insubstituível, na medida em que brota de uma confidência, um esfor-
ço de pensamento, um assomo de intuição, tornando-se uma “expressão”
(Idem. Pág. 127)

É importante verificar que o autor trabalha a deslocação espacial


dos escritores dizendo que ela ocorre de forma diferente nos diver-
sos Estados da Federação. Por isso ele reitera que só existe literatura
quando houver alguma congregação espiritual e formal que esteja se
manifestando por meio de pessoas que fazem parte de um grupo, se-
gundo um estilo, um sistema de valores, um público, uma forma de
transmissão e uma herança, que venha dar significado a integridade
desse espírito criador dentro do grupo.
A metáfora que utilizei a partir do título da tese, poderia também
ser a de uma literatura das águas, considerando os aspectos geográfi-
cos da cidade de Macapá – o topos da FSJM – onde ela tem à sua fren-
te o maior rio do mundo em volume d’água e em comprimento sobre

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a planície, desde os Andes: o Amazonas, que em eras geológicas cor-
ria ao contrário do seu percurso atual. Águas que abrigam toda sorte
de alimentos em seus nichos ecológicos e que tem entre os seus ha-
bitantes uma diversidade antropológica viva em suas margens. Pes-
soas que convivem com os mitos e lendas indígenas e quilombolas e
com suas crenças elementais, ainda que quase sempre oprimidas pe-
las circunstâncias políticas, sociais e econômicas.
Considerando ainda que todo o território amapaense é fustigado
pelas chuvas e que por baixo do Amazonas foi descoberto o maior rio
aquífero do planeta, diria que a água é o que mais se aproxima me-
taforicamente no que concerne à “pele” da identidade local. Poderia
ainda falar do sol e de seus adoradores, de uma literatura brilhante
que tivesse alma, um sistema de valores diferenciado e um público
que aceitasse essa condição e desse crédito à transmissão desses va-
lores como herança cultural legítima, condição básica para a análise
das identidades locais uma vez estabelecidas no meio do mundo, sob
a linha do equador.
Entretanto, procurei a condição dos homens, os que transforma-
ram pedras em pedaços de moradas e de defesa, que obrigaram ín-
dios e escravos negros trabalharem até à morte em nome de uma
conquista colonial, de uma terra desconhecida, mas rica em recur-
sos naturais e cobiçada por muitos povos e inúmeros inimigos. Nes-
sas condições estava a FSJM sendo erguida sob a égide das intempé-
ries, das procelas e das intrigas de homens degredados, de homens e
mulheres deslocados de seus locais de origem e que sabiam das difi-
culdades de regresso. E depois vieram os literatos com suas criações,
construindo no meio do mundo textos identitários como se fossem
pedras coladas com o cury, uma argamassa feita de cal e óleo de ba-
leia, até a inauguração de uma literatura local que, como a FSJM, está
inconclusa, é pouco estudada e está em constante restauração.
Ainda no Império, uma sugestão sobre as pedras da FSJM, feliz-
mente não aceita, é estarrecedora. Afonso Justiniano de Mello, o mi-

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litar que escreveu um relatório do Comando da Fortaleza em 18 de
agosto de 1876, sugeriu que se derrubasse a fortificação para que suas
pedras e os entulhos dos baluartes fossem usados para aterrar uma
grande área pantanosa existente na cidade (que havia sido elevada a
essa categoria vinte anos antes). O objetivo do militar era preservar os
habitantes de Macapá das doenças como a malária (CASTRO, 1999.
Pág. 192).
Apesar da ”boa intenção” do militar, um empreendimento dessa
natureza seria quase impossível para a época, em virtude da falta de
tecnologia e principalmente de recursos financeiros, afora a insanida-
de de apagar mais uma vez a marca histórica da conquista lusitana na
Amazônia e deixar a possibilidade de mais um fato nesse palimpses-
to sucessivo das construções militares na região (CANTO. Op. Cit.).
Na sequência trago referências a Clifford Geertz, na construção do
III Capítulo sobre questões políticas e culturais, aspectos esses que
têm a ver com as outras temporalidades. Como falamos acima, a se-
gunda delas trata do período da criação e instalação do primeiro go-
verno do Território Federal do Amapá, em 1943, que escolheu Macapá
para capital e fez imediatamente mudanças estruturais na área urba-
na e no modo de vida (cultura) citadino. Essas mudanças ocorreram
de forma impactante, quando o governo instalado remanejou os ha-
bitantes nativos do centro da cidade e da beira-rio, na área de entorno
da FSJM, para bairros criados no intuito de absorver essa população,
constituída, sobretudo de negros pobres, descendentes de escravos.
No seu texto “A Política do Significado”, (Capítulo 7 do livro A Inter-
pretação das Culturas), Geertz aborda a situação cultural e política da
Indonésia que envolve um campo político no qual a cultura se sobres-
sai como “estrutura de significado”. Ele diz que

A cultura, aqui, não são cultos e costumes, mas as estruturas de significa-


dos através das quais os homens dão forma à sua experiência, e a política
não são golpes e constituições, mas uma das principais arenas nas quais

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tais estruturas se desenvolvem publicamente. Com essa reformulação das
duas – cultura e política – passa a ser um empreendimento mais prati-
cável determinar a conexão entre elas, embora a tarefa não seja modesta
(GEERTZ, 1979. Pág.206).

Este texto traz um importante conteúdo teórico para desvelar sig-


nificados específicos da instalação do governo amapaense e seus ten-
tames de estabelecer uma política caudilhista e autoritária (mais tar-
de oligárquica) do primeiro governador – Janary Nunes – no Amapá,
embalado que estava na rede do “progresso” preconizado pelo dita-
dor Getúlio Vargas, durante e depois da II Guerra Mundial. No bojo
dessa estrutura do poder político e cultural (considerando as diversas
visões dos autores literários nesses períodos), tentei refletir sobre as
ações do governo de Janary Nunes, o inventor e divulgador da “Místi-
ca do Amapá”, que foi o centro de um fenômeno cultural e psicológico,
originado pela sua personalidade. Sua figura tem o caráter simbólico
da dominação política e, a meu ver, da ideia de moldagem da identi-
dade amapaense.
Por outro lado, a análise envolve a política como ação coletiva,
pois nas quatro temporalidades históricas as estruturas sociais es-
tão em franca mudança. O que antes era coeso e calmo transformou-
-se abruptamente pelas migrações sucessivas, pela formação no novo
aparato urbano e pelas “emoções” (decisões) oriundas dos aconteci-
mentos políticos. A dimensão simbólica da política, segundo Karina
Kuschnir (2007), se constrói nas conversas, falas e discursos quanto
nas decisões e ações empreendidas. Assim, tentei usar esses conceitos
para esclarecer as temporalidades, materializadas nos discursos e na
construção literária que se evidenciam historicamente para a questão
identitária analisada.
Essas análises se evidenciam no corpo da tese com o conceito de
lugar, pois ele abriga necessariamente a FSJM como o locus das iden-
tidades amapaenses. A literatura sobre ela se apresenta como uma

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menção inequívoca da realidade social, principalmente no que se re-
fere “a um lugar” muito representativo da vida local.
Estes textos foram, a meu ver, importantes para o desenvolvimento
da escrita da tese e pelo contexto histórico e cultura em que seus ob-
jetivos se alinham.
Certamente algumas orientações conceituais pensadas inicial-
mente foram deslocadas e ou evidenciadas do/no texto como contri-
buições para o entendimento intelectual e teórico que precisei para
desvendar a esfinge FSJM e as identidades amapaenses, cujos concei-
tos estão embasados em Stuart Hall, entre outros, assim como os con-
ceitos de cultura de Homi Bhabha e Clifford Geertz. Não posso esque-
cer teóricos brasileiros como, Antonio Cândido, Roberto Cardoso de
Oliveira, Alfredo Bosi e Orlandi em suas abordagens sobre literatu-
ra, sociologia, identidade e análise do discurso, bem como autores da
própria Universidade Federal do Ceará – UFC, que me proporciona-
ram outras visões de mundo sobre os diversos aspectos da identida-
de e da memória, tais como Isabelle Braz Peixoto da Silva, Alba Carva-
lho e Ismael Pordeus Júnior, além de outras expressões cearenses na
sociologia.
Para chegar ao corpo da tese, entretanto, o tema que usei foi sendo,
tal qual as pedras da fortificação, lapidado paulatinamente, pelo ama-
durecimento e contribuições de professores e colegas do DINTER,
que me permitiram avançar. Mesmo tendo formação em Ciências So-
ciais, tornei-me aluno (a-luno = sem luz), guiado pela vontade de me
situar teoricamente na contemporaneidade, pois havia vinte anos que
estava afastado da academia, e me dedicava mais a literatura e à mú-
sica. E entre estes papéis optei por procurar na FSJM o elo identitário
temporal com a sociedade amapaense. Pesquisei em bibliotecas, jor-
nais e arquivos pessoais e institucionais tudo o que pudesse estar re-
lacionado ao objeto de estudo, selecionando textos avulsos, discursos,
poemas, crônicas, romances, além das 374 cartas escritas pelos cons-
trutores da FSJM no período de sua construção (1764-1782), que esta-

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vam comigo desde 1996, quando solicitei a um paleógrafo do Arquivo
Público do Pará que as transcrevesse, pois objetivava escrever um ro-
mance sobre eles, o que não aconteceu. Algumas delas estão na pri-
meira temporalidade da tese. Depois disso selecionei os textos orga-
nizando-os por períodos de tempo, que foram fundamentais para a
consolidação dos capítulos.
No Capítulo V, por sugestão de professora Alba Carvalho durante a
qualificação, incluí, com certa relutância pessoal, um item a respeito
do meu trabalho enquanto literato amapaense, pois há anos escrevo
sobre a FSJM. Convenci-me que isso não significa um gesto de arro-
gância nem uma atitude narcisista como a dos que praticam a litera-
tura para si mesmo. Antes foi uma forma de me situar no espaço e me-
lhor refletir sobre a criação literária dos autores, cujos textos usei para
dimensionar meu objeto de estudo.
Ao entender que cada pesquisador tem seu estilo próprio de orga-
nizar seus dados, acredito que os registros da minha pesquisa biblio-
gráfica e documental facilitaram o acesso para a sua consequente in-
terpretação e análise.
Trabalhei com narrativas. Porém, para dar mais consistência aos
dados usei entrevistas com alguns autores disponíveis, realizadas por
meio de correspondência eletrônica (e-mail). Depois esses dados fo-
ram trabalhados nas temporalidades do corpo da tese. As pergun-
tas das entrevistas foram as mesmas para cada autor e cada um de-
les teve o seu conteúdo biográfico nela citado. Nem todos os autores
a quem emiti correspondência responderam às perguntas e um deles
mandou-me com bastante atraso, por isso não pôde ser integrado ao
trabalho.
Foi feita a análise comparativa dos dados em relação às quatro
temporalidades para que eu pudesse compreender sociologicamen-
te as relações entre fatores, contextos e ações políticas ou literárias,
usando, claro, a teoria (desenhada a partir das especificidades do
tema) para análise final da tese.

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Apresento cinco capítulos dentre os quais as quatro temporalida-
des que nortearam o processo de escritura da tese. Por elas perpas-
sam histórias do cotidiano, como os incêndios na área comercial de
Macapá, próxima à fortificação, e outros acontecimentos que geraram
textos literários relacionados a ela (crônicas).
Certamente que tive percalços no decorrer do processo de feitura da
tese, entretanto eles foram esmaecendo no tempo pela orientação expe-
riente e pela obstinação em tentar escrevê-la com segurança. Mas um
dos desafios epistemológicos desta empreitada foi não me deixar in-
fluenciar, copiar ou me apropriar, mesmo inconscientemente, dos tex-
tos lidos, pela angústia excruciante e abrasiva que a pesquisa impõe ao
pesquisador. É preciso ter uma constante vigilância para reparar a detur-
pação do conhecimento e evitar os perigos que a intertextualidade pode
trazer ao corpo da escrita e à ética da pesquisa e do pesquisador.
O texto foi dividido em cinco capítulos:
No Capítulo I enfoco aspectos relacionados às identidades e
acontecimentos da vida amapaense, o seu zeitgeist, em temas diver-
sos e importantes para situar-me quanto à questão da identidade e
memória.
No Capítulo II – Primeira Temporalidade – enfoco a construção da
FSJM, por meio das missivas dos construtores e acontecimentos da
época (Século XVIII, no período da sua ereção (1764-1782).
No Capítulo III – Segunda Temporalidade (1943-1956) – abordo as
manifestações literárias e o discurso fundador do período de criação
e instalação do Governo do Território Federal do Amapá, o mito de
Mairi, a situação encontrada e as relações com os nativos, o Marabai-
xo, a gentrificação e a Mística do Amapá, com suas injunções ideoló-
gicas e a formação da identidade.
No Capítulo IV – Terceira Temporalidade (1964-1985) - trabalho o
período ditatorial militar, com ênfase à FSJM como o lugar do terror,
de memória e silenciamentos, o episódio do “Engasga-Engasga” e as
comemorações do bicentenário da fortificação.

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No Capítulo V – Quarta Temporalidade (1985-2014) – abordo o pe-
ríodo de criação e consolidação do Estado do Amapá (1988) e os dis-
cursos políticos e as identidades, a partir da produção literária atual
sobre a FSJM, a restauração do Parque do Forte e a sua memorabilia.
Em todos os capítulos, de uma forma ou de outra, perpassou a aná-
lise da literatura de autores da ordem estabelecida e da contraordem
político-ideológica. Nesses capítulos também foram contempladas
a questão da literatura e sociedade e as identidades culturais locais,
considerando a FSJM como o locus das identidades e de geração des-
sa literatura.
A tese, deste modo, foi como um processo impulsionado pelos so-
nhos e sinalizado pelos pesadelos (a angústia do pesquisador), mas
não há pesadelo ou esfinge tão temerários que não possam ser doma-
dos e diluídos pela vontade de transformá-lo em realidade social.

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1
O ZEITGEIST5 AMAPAENSE

Minhas reflexões sobre o Amapá nasceram pelos lugares que andei


desde muito jovem, quando indagava por meio de minhas compo-
sições musicais e literárias quem eu era, se paraense ou amapaense,
se amazônico também, amarrado na condição de ser brasileiro. Fui
morar em Macapá6 quando tinha sete anos de idade com meus ir-

5. Zeitgeist é um termo alemão cuja tradução significa espírito da época, espírito do tempo ou sinal
dos tempos. O Zeitgeist significa, em suma, o conjunto do clima intelectual e cultural do mundo, numa
certa época, ou as características genéricas de um determinado período de tempo. O conceito de espí-
rito de época remonta a Johann Gottfried Herder e outros românticos alemães, mas ficou melhor co-
nhecido pela obra de Hegel, Filosofia e História. Em1769, Herder escreveu uma crítica ao trabalho Ge-
nius seculi do filólogo Christian Adolph Klotz, introduzindo a palavra Zeitgeist como uma tradução de
genius seculi (Latim:genius - “espírito guardião” e saeculi - “do século”). Os alemães românticos, ten-
tados normalmente à redução filosófica do passado às essências, trataram de construir o “espírito da
época” como um argumento histórico de sua defesa intelectual. Hegel acreditava que a arte reflete, por
sua própria natureza, a cultura da época em que esta foi feita. Cultura e arte são conceitos inseparáveis
porque um determinado artista é um produto de sua época e, assim sendo, carrega essa cultura em
qualquer trabalho que faça. Consequentemente, ele acreditava que no mundo moderno não é possível
recriar arte clássica, que ele acreditava ser uma “cultura livre e ética”, que dependia mais da filosofia da
arte e teoria da arte, no lugar de uma reflexão da construção social, ou Zeitgeist em que este dado artis-
ta vivia. (Wikipédia, acesso em 22.06.2016)
6. 1962, na segunda vez que meus pais migraram para a capital do Território Federal do Amapá, vin-
dos de Óbidos-PA. Eles moraram em Macapá nos anos de 1950/51. Etimologicamente, Amapá signifi-
ca “o lugar da chuva” (SARNEY: 2008). A palavra Macapá vem do tupi, significando, de acordo com o
“Vocabulário Tupi-Guarani Português”, do professor Silveira Bueno. Ele diz, que “Nem sempre é fácil
desentranhar o verdadeiro significado da palavra, colhido nos elementos construtores do vocábulo. A
separação de tais elementos admite diversidades, decorrendo disso o fato muito comum de um topô-

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mãos e meus pais que para ali migraram em busca de trabalho e de
realizações de seus sonhos. Moro, portanto, há mais de cinco déca-
das nessa cidade que me acolheu, que aprendi a amar, que me rete-
ve e me expulsou em momentos angustiantes e particulares, que vivi
nos seus acertos e contradições, que cuidei e louvei como meu lugar,
que me deu escola, família e o pensamento crítico. Morei no bairro
do Laguinho, onde ser negro não era necessariamente a condição da
aceitação; onde o açaí com peixe assado ou camarão cozido no bafo,
alimento de todos, era o sabor e o cheiro incrustrado no sentido psi-
cológico da infância e da adolescência. Ali participei de inúmeras ati-
vidades culturais e de cidadania, aprendendo com seus moradores os
laços de união e traços de rivalidade, participando dos seus sonhos,
desejos, frustrações e vitórias, coisas que me levaram à descoberta até
inconsciente de suas identidades, ao observar as pessoas de longe e
amá-las de perto. Toda a cidade me parece ser assim, com seus nichos
estabelecidos e concretos em sua personalidade territorial.
O Amapá e especificamente, Macapá estão constantemente pre-
sentes nos meus escritos. O Amapá me deixa honrado de fazer parte
dele, ainda que muitos amapaenses não conheçam a força e a dimen-
são multitudinária do seu processo identitário, que por ser processo,
caminha alicerçado por padrões culturais plurais.
Neste tempo de observações reuni recursos etnográficos para me-
lhor observar e tirar em meus escritos algumas conclusões sobre os
amapaenses, rol que me incluo como filho adotivo “pegado de ga-
lho”7(3), pois Macapá é o local que me faz configurações vinculares.

nimo apresentar duas ou mais interpretações”. É o caso da palavra Macapá, que segundo T. Sampaio,
significa o pomar das macabas (bacabas). De ma-caba = a coisa gorda, oleosa. Entretanto a palavra ba-
caba vem de ybá (árvore frutífera) + cabá (sebo, gordura), ambas de origem tupi. Para o padre Ângelo
Bubani, que escreveu o texto “Pistas para a História da Evangelização do Território do Amapá (inédi-
to), a palavra Macapá significa queimar, cuspir.
7. Termo usado popularmente para dizer que um ramo de uma planta pode ser plantado para que
crie suas próprias raízes e renasça, em solos diferentes ou não, desde que seja regado e cuidado.

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1.1. OS ESCRITORES
Por serem construções sociais que operam de maneira relacional e
nunca absoluta, as identidades são definidas por contrastes e se apre-
sentam em oposição a outras referências e categorias. Deste modo,
meu objeto de pesquisa se apresenta não apenas como textos literá-
rios no contexto da identidade a partir do que os escritores pensam
sobre a Fortaleza de São José de Macapá, mas também pelos significa-
dos que podem alterar-se, por serem opiniões relacionadas ao tempo,
ao lugar e as gerações que existiram e existem, permeando as tempo-
ralidades colocadas historicamente neste trabalho.
Já morando em Fortaleza, essas reflexões me impulsionaram a um
contato maior com a literatura de teor socioantropológico e me fize-
ram ler novamente clássicos da literatura brasileira como Iracema e O
Guarani, do romancista José de Alencar, que me proporcionaram re/
ver- re/ler o processo alteritário do indígena ao enfrentar face a face o
colonizador (normalmente militar) branco. Nesse caso vi a imanência
que está nos textos estudados pela Sociologia da Literatura, pela ex-
periência que causa ontologicamente a quem os ler e, sobretudo, em
quem se envolve amorosamente ao tentar decifrá-los enquanto textos
literários. Assim, como exemplo, vou aludir diretamente ao escritor e
missionário Eduardo Hoornaert

Quando um estudante lê a frase Verdes mares bravios da minha terra na-


tal, onde canta a jandaia nas frondes das carnaúbas, ele pode pensar estar
declamando uma lição de classe. Na realidade está diante de um desafio.
O texto de Alencar o questiona profundamente, pois em última instân-
cia o convida para uma declaração de amor ao Ceará. José de Alencar é o
primeiro a namorar sua terra natal. A figura de Poti (em O Guarani) ou de
Iracema (em Iracema) são símbolos do Ceará que merecem nosso amor.
(HOORNAERT: 2002. Pág. 18)

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Hoornaert crê que tal desafio é um fio condutor que dá ao leitor a
sua própria condição de identidade e de amor à terra, uma vez que ele
mergulhe a fundo nas águas dos romances. Uma proposta sem volta,
devido a beleza, à aventura e ao conteúdo formal dos textos de Alen-
car, que trazem essa imanência que falamos acima, uma espécie de
essência inerente a cada personagem do romantismo alencarino. O
autor continua

Os que escreveram antes dele sempre tinham falado das doenças, do


clima excessivo e doentio, dos ares infectados, das dificuldades de co-
municação, do atraso e sobretudo a ignomínia ao mundo indígena. Mas
quando José de Alencar volta ao Ceará depois de já formado em Direi-
to pelas faculdades de São Paulo e Olinda, seu coração fica inundado
de um fluxo de emoção irresistível por sua terra natal. Tudo lhe pare-
ce bonito e atraente. Pelos ares menosprezados nas rodas da elite como
insuportavelmente calorentos passa o doce Aracati dos finais de tarde,
as dunas desprezadas como áridas e secas ganham um colorido mági-
co. Perfumes impregnam os caminhos, plantas e flores brotam por todo
canto, a lua passeia no céu argenteando os campos, a brisa rugita nos
palmares (Idem).

Nesse caso coube ao escritor o desempenho do seu papel como fi-


lho da terra a explorar não apenas a visão romântica e a paisagem,
mas compor a idealização dos personagens das histórias romancea-
das por ele. A volta do escritor muda o cenário da cultura burguesa
através de um novo olhar. Ali, na mudança do campo literário, na sua
redescoberta, Alencar como escritor mantém uma relação complexa
com a viagem, pois ele (o escritor)

é tomado pela beleza de um espetáculo que o encanta e mobiliza não


apenas seu olhar, mas o conjunto de seus sentidos: uma natureza gran-
diosa, populações alijadas de qualquer intrusão da civilização ociden-

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tal. Nesse espaço fora do espaço e nesse tempo fora do tempo, liberto das
obrigações da sociedade faz a experiência de uma obrigação da sociedade
e sobretudo de uma sociedade que não suspeitava, enquanto se interroga
sobre sua própria identidade (LAPLANTINE: 1988.Pág. 175),

Os escritores criam frases que às vezes têm significados ambíguos,


contrários, pontuais ou esclarecedores. Por sua arte transcender ou-
tras formas de expressão artística o escritor usa da linguagem a seu
modo na realidade que o cerca. Por isso se diz que ele é partícipe do
seu tempo, então, como escritor atravessa outras possibilidades na co-
municação entre os membros da sociedade que tomam conhecimento
da sua escritura e se posiciona com sua personalidade, onde sua prá-
tica (ou a sua máscara de ficcionista ou poeta) é uma das suas identi-
dades. Diria ainda que todos os escritores têm suas “verdades” no seu
processo criativo, mas ela está circunscrita ao que escrevem sobre o
fato e o objeto que escrevem, que são produtos de suas criações lite-
rárias. Não existe uma verdade. Existe uma memória em um determi-
nado momento, e essa memória tem que ser considerada no contexto
analítico da sua produção.
Sempre penso que a Literatura ajuda a promover a liberdade, um
dos direitos fundamentais do homem. O modo de pensar e o direi-
to de expressar o pensamento se constituem valores que promovem
e calcificam as identidades, aquilo que nos serve de marca, em que
pese os valores contrários das alteridades que sempre observaram
a Amazônia e seus habitantes com o olhar espoliador de riquezas.
Olhares e ações que historicamente deixaram um rastro de destrui-
ção e miséria, não obstante o trabalho de muitos amazônidas que de-
ram o suor e o sangue para a reconstrução da vida e dos sonhos neste
lugar rico, esplêndido, todavia paradoxalmente sofrido. Mas coube ao
homem local realizar suas fantasias, inventar saberes e não se deixar
levar pelo medo dos mitos que se agigantam na floresta e se diluem
nas vilas. Coube a quem ficou, desde a colonização, a coragem incon-

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testável do aventureiro europeu, do negro, do indígena e dos demais
formadores desta identidade nacional, amplamente percebida na re-
gião, e evidenciada com nitidez no Amapá.
No Amapá existe um termo embutido na máscara da defesa quan-
do o amapaense tem seu brio identitário atacado por outrem na sua
estrutura personalística que envolve o processo de construção social.
Um termo novo e visto ainda com desconfiança, de soslaio, de es-
guelha, como dizem. O termo é amapalidade, que consideraremos
adiante.

1.2.  A HERANÇA DOS MIGRANTES


Os ribeirinhos que aportam e que desembarcam diariamente na ci-
dade de Macapá, também trazem das ilhas distantes suas mazelas e
esperanças para si e para os filhos num vir-a-ser constante que há
muito tempo abriu caminho na relação entre o Pará e o Amapá, des-
de a ilha do Marajó ao longínquo Baixo Amazonas; desde a frontei-
ra norte ao sul do Pará; e aos mais afastados estados da federação.
A primeira migração para a povoação de Macapá ocorreu em 1752,
seis anos antes de ser fundada a vila de São José, a 04 de fevereiro
de 17588. Depois disso ocorreram outras migrações mais significati-

8. 4 A saga da emigração madeirense começa no século XV, quando suas ilhas já tinham uma den-
sidade demográfica considerável, situação que já vinha sendo dinamizada pelo duque D. Fernan-
do na segunda metade desse século. “Para que a população crescesse e não faltasse mão-de-obra
criou um imposto anual pago em trigo, para todos os homens solteiros que não têm mulheres, para
estimular a consumação de casamentos” (Fernandes dos Santos Maria Licínia in Os Madeirenses
na Colonização do Brasil. Centro de Estudos de História do Atlântico/Secretaria Regional do Tu-
rismo e Cultura. Funchal, Madeira, 1999.) Daí, com o excesso populacional das ilhas é que inicia a
diáspora madeirense, aliada a fatores de subsistência econômica visto as ilhas vulcânicas não te-
rem muito espaço para a agricultura diversificada. Além disso, a odisseia emigratória dos povos
dos dois arquipélagos constituía-se em excelente oportunidade de ascensão social dos nobres de
segunda linha que não possuíam meios materiais para permanecerem no pico da pirâmide social
(Santos. Op. Cit. Pág. 21). Mas foi só com os alistamentos a partir de 1747 que se iniciou a vinda des-
ses povos para o Brasil, principalmente para a região Meridional, quando se instalaram na Ilha do
Desterro, hoje Florianópolis, e no Rio Grande do Sul. O sucesso político-diplomático da assinatu-
ra do Tratado de Madri, de 13 de janeiro de 1750, que definia as fronteiras do Brasil, “exigia gente
para proceder à demarcação dos limites e para reforçar a defesa de toda a enorme região amazô-

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vas no decorrer do desenvolvimento do Amapá, como na instalação
do Território Federal (1944), na exploração das minas de manganês
pela Indústria e Comércio de Minérios S.A. – ICOMI (1952), na trans-
formação do Amapá em Estado Federativo (1988) e durante a per-
manência da Área de Livre Comércio de Macapá e Santana – ALCMS
(década de 1990). Nesses períodos a origem dos migrantes eram, em
sua maioria constituídas de paraenses, maranhenses, piauienses e
cearenses, nesta ordem (Censo IBGE: 2010).
A sociedade amapaense é sempre aberta e não se petrifica. Ao con-
trário, se liquefaz, procurando ambiente para encontrar sua própria
forma e para procriar e gerar elementos de sua utopia, de sua esperan-
ça de progresso, ainda instalada da herança deixada pelos primeiros
governantes do Território do Amapá e sua mística ideológica, (que ve-
remos no terceiro capítulo desta tese). Essa identidade tem sua própria
personalidade embutida nas histórias de conquistas e estabelecimen-
tos que foram importantes para a solidificação da economia e para o
orgulho amapaense.
Os descendentes de escravos que foram trazidos para Macapá desde a
época da construção da Fortaleza de São José lutam hoje pela valorização
de sua cultura, representadas pelas festas folclóricas do Zimba9 e do Sairé10,

nica” (ver Silva, José Manuel Azevedo, “Açorianos e Madeirenses no Povoamento e Colonização da
Amazônia no Tempo do Marquês de Pombal” in As Ilhas e o Brasil. CEHA/SRTC. Funchal, Madei-
ra, 2000.) Foram propostos, então, três remédios: o “descimento dos índios do sertão”, a introdução
de escravos negros e o envio de povoadores, principalmente casais dos Açores e da Madeira, segun-
do autor acima citado.
9. O Zimba é um batuque que ocorre nas festividades do Divino espírito santo na localidade de Cuna-
ni, no litoral amapaense. É dançado por pescadores e lavradores do local. Muito semelhante na dança
ao Batuque, suas músicas são acompanhadas por grandes tambores denominados curimbós, confec-
cionados de troncos de árvores e couro de animais.
10. O Sairé ou Sahiré era uma manifestação religiosa que acontecia em Mazagão Velho e Carvão. Consis-
tia em uma procissão na qual era levada o sairé - uma cruz feita com três arcos de madeira enfeitada de
algodão e com músicas cantadas em nheengatu em homenagem ao Divino Espirito Santo. Sobrevive em
Santarém-PA, para onde foi levado por mazaganenses, de acordo com Nunes Pereira em seu livro O Sah-
iré e o Marabaixo (1951). A grafia usada pelos santarenos hoje obedece uma regra idiomática = Çairé. Em
Mazagão há um movimento para reincorporar essa tradição ao quadro de manifestações folclóricas locais.

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do Marabaixo11 e do Batuque12 e da Folia13 , além das manifestações religio-
sas de matriz africana como o Candomblé, o Tambor de Mina e a Umban-
da e da herança cultural do povo de Mazagão Velho, que possui em tor-
no de 20 festas anuais no seu ciclo santoral, incluindo as mais importantes
que são as de Nossa Senhora da Piedade e de São Tiago, ambas realizadas
no mês de julho, desde 1777 (Como veremos adiante).
Nas manifestações culturais as roupas dos participantes os distin-
gue e os isola dos assistentes da dança, que também entram na roda
dos tambores e cantores com a convicção de que são pertencentes
ao grupo de uma forma maior, mais abrangente em termos dos sig-
nificados de pertencimento e de identidade. Nessas rodas os trajes de
homens e mulheres eram os usados em domingueiras antigamente:
as mulheres com saias rodadas e blusas rendadas ou floridas. Os ho-
mens usavam trajes brancos e chapéus de palha, tanto no Marabaixo
como no Batuque.
Não obstante a alegria normal nos dias de festa, presenciei provo-
cações de cunho racista eles, que muitas vezes se calam diante disso.

11. O Marabaixo, hoje, é a maior expressão da cultura popular do Estado do Amapá, embora também
aconteça de forma apagada na festa do Çairé de Alter do Chão (no Município de Santarém – PA) e em
Marabitanas, no Estado do Amazonas. É um ritual onde os aspectos religiosos propriamente ditos não
têm mais a ênfase que lhe era dada no passado, mas continua vivo e enraizado entre os que o praticam.
O reconhecimento como expressão cultural autêntica se deu a partir do início de um processo de valo-
rização, promovido pelos setores públicos, o que motivou a elevação de sua autoestima e a consequen-
te divulgação dentro e fora do Estado.
12. Ao Batuque estão atreladas várias manifestações de caráter religioso, ao lado de danças e cânticos
preservados até hoje por moradores do Curiaú, Mazagão Velho e Igarapé do Lago, no Estado do Ama-
pá. É uma dança de roda em que os dançarinos giram em volta dos tocadores, respondendo o estribi-
lho do “ladrão”, que é a música cantada por um solista. Porém, nos lugares aqui citados ele se realiza de
modo especial, com características próprias.
13. A Folia é de origem portuguesa. Ela encerra o ritual com antigos cantos devocionais. Antigamente
consistia num agrupamento de homens que saía a colher donativos com um porta-estandarte ou alfe-
res-da-bandeira à frente do cortejo. No Curiaú, depois que encerra a ladainha, o Mestre-sala toca uma
campa e é acompanhado nas músicas por vários instrumentos. Os Tambores são feitos de madeira leve
e cobertos com couro de animais silvestres. Há pandeiros; reco-recos feitos de taboca talhada, na qual
se esfrega um pedaço de madeira; querequexés, que são cilindros confeccionados de galhos de imbaú-
ba onde são colocados grãos de cereais ou semente de tento; violas e cavaquinho.

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Por não terem argumento educacional ou político que possam mu-
dá-las, se retiram do local para não se submeterem à violência que
esses fatos podem gerar. Às vezes as provocações e os tratamentos
humilhantes são realizados por afrodescendentes da própria socieda-
de, condição endógena normalmente velada. Faço essa assertiva por
observar sempre o espaço em que todos vivem, nos bairros em que
ando e dialogo, nas famílias que visito, e que desenho suas histórias
já construídas, no relacionamento direto de aprendizado sobre seus
saberes e projetos, sobre suas condições socioeconômicas e de vida
sentimental e cultural.
Pelos fatos expostos acima é que a cidadania dos partícipes da fes-
ta é um motivo permanente de luta dos movimentos sociais afrodes-
cendentes.
Há quem diga que o amapaense é um místico por causa da “ener-
gia” emanada pelo sol sobre a linha imaginária do equador. Esse atri-
buto se dá pela influência “astral” do Equinócio das Águas (março)
e da Primavera (setembro) e dos solstícios (junho e dezembro), nes-
sa demarcação geográfica, que “passa” sobre Macapá na Latitude
0°,00’00”. Macapá é a única capital brasileira cortada por ela, separan-
do o planeta em dois hemisférios. Segundo o arquiteto Alberto Tostes

Não há dúvidas de que ser cortado pela linha do equador é um privilégio


de poucas cidades do mundo. Caracterizar simbolicamente para uma cida-
de, um povo ou um país, não é uma tarefa fácil. Exige de todos a preocupa-
ção não somente com o fato de que ali fica a linha imaginária, mas também
o sentimento da representação simbólica do meio do mundo. A arquitetu-
ra e seus monumentos expõem, na realidade, aquilo que a cidade tem o pri-
vilégio de ser, o lugar onde o usuário inscreve a história do urbano e preser-
va a memória do seu repertório coletivo (TOSTES, 2009. 2º caderno. Pág 04)

O Turismo tem tirado proveito dessa condição prática do desen-


volvimento econômico e promovido o Marco Zero, ao sul de Macapá,

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como um dos pontos de atração turística mais visitados e importantes
da cidade, ao lado da Fortaleza de São José de Macapá. Aliás, isso se
tornou marca registrada em função dessa “passagem” da linha imagi-
nária, pois transcende a mera vinculação de um simples monumen-
to, este que cada vez mais se faz presente no imaginário coletivo dos
amapaenses.
O amapaense não perdeu totalmente sua herança cultural, como
os costumes e crenças. Apesar das influências e intempéries da glo-
balização devastadora que apresenta na contemporaneidade um far-
falhar de opções e de novos valores, as relações sociais novas foram
incorporadas em parte ao seu novo estilo de vida sociocultural. A in-
serção de novos empreendimentos urbanos, como shopping centers,
condomínios fechados e o crescimento imobiliário, bem como o de-
senvolvimento populacional e novos aparatos urbanos que mudaram
a paisagem da cidade, fizeram Macapá se igualar às cidades brasilei-
ras de porte médio. Em Macapá hoje, os consumidores das “benes-
ses” são os altos funcionários públicos, tipo de casta que se formou
com a chamada economia do contracheque, que caracteriza a eco-
nomia amapaense e o movimento financeiro após os pagamentos sa-
lariais dos servidores públicos nos três níveis de governo (CHELALA:
2013). O comércio local vive às expensas do montante financeiro des-
pejado nesses períodos, além das despesas governamentais na in-
dústria da construção civil, nos serviços e no comércio propriamen-
te dito. Mas a novidade também exacerbou a violência urbana. Esta,
por sua vez, aumentou consideravelmente nos últimos anos, acompa-
nhando o crescimento econômico e populacional do Estado.
Ainda que permaneça passivo diante de certas provocações ou hu-
milhações, o amapaense sempre deu trabalho por envolver-se em bri-
gas de bares, mortes e violências diversas, em que pese a truculên-
cia policial desde os tempos do Território Federal. Diziam os de fora:
“Deus nos livre da polícia de Macapá, das mulheres de Amapá e da
fome de Mazagão “, enfatizando essa truculência, acima referida, na

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capital. Conta-se que os primeiros governantes recrutavam para a
Guarda Territorial arruaceiros contumazes, que os policiais nem sem-
pre podiam conter, oferecendo-lhes empregos na própria Instituição
Militar que mais tarde foi substituída pela Polícia Militar do Amapá.
Passou ao “folclore da cidade” o fato de famosos marginais como o
Gato, o Santino e o Ibrahim se tornarem policiais. Em Macapá exis-
tia um conhecido delegado que também era famoso por sua arrogân-
cia e violência. Ele disputava com seus colegas para ver quem prendia
mais pessoas. Certa vez, em um de seus plantões, foi fazer uma ronda
em um dancing popular conhecido por “Merengue”14, onde tudo esta-
va em ordem. Não havia ninguém para prender. Decepcionado, ain-
da olhou um homem que dançava animado fazendo “breque”. Ele dis-
se a um dos seus comandados: - Prende o “brequista”. Essa história até
hoje é contada. Entretanto, dizem os mais antigos moradores da ci-
dade que no dia do seu enterro, pessoas por ele prejudicadas injusta-
mente soltaram foguetes festivos para comemorar sua morte.
Ninguém se espanta com a “normalidade” do alto grau de suicí-
dio entre os jovens amapaenses. Essa estatística faz parte de um fenô-
meno social já estudado por Durkheim no século XIX e sempre teve
a atenção dos sociólogos em muitos países. O suicídio é uma “epide-
mia silenciosa e devastadora” (BRITO: 2016) e configura caso de saúde
pública mundial, pois “a cada quarenta segundos uma pessoa morre
no mundo” (Idem). O Brasil ocupa o 8º lugar no ranking mundial com
11,8 mil suicídios em 2012, com uma morte a cada 40 minutos. As prin-
cipais causas são os transtornos mentais como a depressão, o trans-
torno bipolar, abuso de substâncias químicas, esquizofrenia e trans-
torno de personalidade Borderline (Idem). No Amapá o número de
suicídios entre jovens chega a aproximadamente 50 por ano. Em 2015,
46 se suicidaram, a maioria por enforcamento15.

14. Merengue – ritmo caribenho binário, cuja dança era muito popular nas cidades amazônicas.
15. Dados do blog do repórter policial Bolero Neto.

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1.3. OS ÍNDIOS16 E A TERRA DO “JÁ TEVE”
No Amapá existem aproximadamente cinco mil índios morando em
aldeias e não há dados sobre os que moram nas cidades. Aqui temos
os grupos que vivem na região do Vale do Uaçá: Karipuna, Galibi, Ga-
libi-Marworno, Palikur e os Wajãpi (grafia usada pela antropóloga).
O livro escrito pela antropóloga Dominique Gallois, publicado em
2006 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Dos-
siê IPHAN) “Expressão Gráfica e Oralidade entre os Wajãpi do Ama-
pá”, informa que esse grupo é constituído de 670 pessoas, distribuídas
entre 48 aldeias. São “remanescentes de um povo outrora muito mais
numeroso, subdividido em vários grupos independentes e cuja popu-
lação total foi estimada em cerca de seis mil pessoas no começo do sé-
culo XIX”. Segundo Gallois, essa etnia tem origem em um complexo
cultural maior, de tradição e língua tupi-guarani, representados hoje
por diversos povos e distribuídos em outros estados brasileiros e paí-
ses adjacentes. Eles viviam ao sul do rio Amazonas até ao século XVII,
em região próxima da área ocupada hoje pelos Asurini e os Araweté,
todos falantes de variantes dessa mesma família linguística. Os Wa-
jãpi do Amapá ficaram isolados da convivência com os não indígenas
até a década de 70, por terem se adaptado ecologicamente à região de
serras do noroeste amapaense, contrariamente aos Wajãpi da Guiana
Francesa e os do Oiapoque que vivem na margem de rios.
O professor José Ribamar Bessa Freire, da UERJ em seu texto “Ama-
zônia: civilização de palha” (s.ed./s.d.) repassa as informações im-
pressionantes dos primeiros cronistas que passaram na região e suas

16. Bessa Freire se volta para a hipótese, cada vez mais fortalecida por diferentes disciplinas, de que
a Amazônia era densamente povoada no século XVI, perguntando sobre a produção do espaço nas
sociedades indígenas, como se apropriaram dele e como o hierarquizaram, como organizaram as al-
deias, etc. Ele ainda discorre sobre os povos amazônicos, que diferentemente dos astecas e andinos
não deixaram relatos escritos contando a sua experiência de vida. Os cronistas europeus que descreve-
ram essa realidade o fizeram usando outras categorias não apropriadas. Chamaram as casas contínuas
de bairros e cidades, de fortalezas e praças, sempre cheias de gente, depois percebidas como “civiliza-
ções de palha”, no dizer de Berta Ribeiro.

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afirmações unânimes sobre a distribuição da população indígena e os
padrões de povoamento e ocupação do seu território. Diziam que a
calha central do rio Amazonas era ocupada “por uma multidão infini-
ta de índios, que por serem muitos não se puderam contar” Na região
do baixo Amazonas “foram tantas as povoações que aí apareciam e vi-
mos que ficamos abismados”, escreveu Carvajal, o cronista da expe-
dição de Orellana, que disse também que na várzea amazônica exis-
tiam “muitas e grandíssimas povoações que reúnem 50 mil homens
entre 30 e 70 anos”. A expedição comandada por Ursua-Aguirre, 20
anos depois, em 1560-61 confirma a alta densidade demográfica local
sobre “as mais populosas terras descobertas por cristão”. Cristóbal de
Acuña, da expedição de Pedro Teixeira (1637-39) também faz citações
sobre o assunto. Freire também cita a “Escola de Berkeley”, onde estu-
dos recentes de Demografia Histórica refinaram métodos de aborda-
gem do problema “cruzando informações históricas, analisando pa-
drões de subsistência, inventariando o potencial ecológico da região
e assumindo o resultado das pesquisas arqueológicas”. Assim, William
Denevan estimou uma população de mais de 6.800.000 índios viven-
do na região que se denominou de “Grande Amazônia” no século XVI,
falando mais de 700 idiomas diferentes.
Hoje, o significado da morte e, sobretudo, o significado do suicí-
dio entre os índios brasileiros, espanta a sociedade dita civilizada. Foi
o caso da indiazinha Sa-hã, uma jovem de 12 anos que se suicidou em
uma tribo de etnia Waiãpi, do centro do Estado. A suposta causa psi-
cológica foi a repreensão do pai após um acidente em que o irmãozi-
nho que ela carregava nos braços caiu numa fogueira e teve peque-
nas queimaduras. O caso foi amplamente divulgado porque Sa-hã foi
capa de livros e revistas internacionais pela sua beleza fulgurante, em
trabalho do fotógrafo Daniel de Oliveira Gaia.
Os índios que vêm a Macapá para tratamento de saúde ou para
cuidar de outros assuntos de suas aldeias, se hospedam em casas
mantidas pela Fundação Nacional do Índio ou por instituições indíge-

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nas e/ou religiosas. Há alguns anos eles andavam pela cidade com or-
namentos e tangas de tecido vermelho em grupos, chamando a aten-
ção dos transeuntes. Hoje muitos índios jovens se vestem na moda,
imitando os jovens citadinos, com novos ornamentos e cortes de ca-
belo e outras novidades que recriam na sua estada na capital. Andam
sempre a pé nas ruas, acompanhados de suas famílias, mas as mu-
lheres ainda carregam seus filhos pequenos ao lado do corpo, pendu-
rados em panos. E ainda são vistos com curiosidade pela população
macapaense, da mesma forma como seus ancestrais um dia viram
pela primeira vez a Fortaleza de São José de Macapá. Nesse proces-
so, os índios, (enquanto objetos de curiosidade), também são critica-
dos pelos habitantes da cidade porque recebem algum tipo de bolsa
do Governo Federal, cotas para ingressarem na Universidade e outros
benefícios. Ao passearem pela cidade e supostamente por se incorpo-
raram à sociedade nacional com seus novos trajes e cortes de cabe-
los “da moda”, sofrem, sim, um tipo de racismo, dada as manifestações
depreciativas que recebem ao passarem nas ruas. Há um equívoco
brasileiro nessa relação, um equívoco nada inocente, pois os urbanos
querem medir a indianidade pela presença de sinais culturais ‘tradi-
cionais’ (CUNHA: 2016. Pág. 47).
A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha enfatiza ainda que

Supostamente os índios tem de caçar com arco e flecha, falar sua língua
ancestral, andar sumariamente vestidos, e assim vai. O que se oculta com
isso é toda uma história de deslocamentos forçados, de missionização, de
recrutamento laboral, de política oficial de miscigenação, de expropria-
ção de territórios. Basta lembrar que o marquês de Pombal exigiu que nos
aldeamentos se falasse português e promoveu casamentos de soldados
com mulheres indígenas. E que, antes desse período, e de serem expulsos
do Brasil, os jesuítas espalharam o nheengatu, uma língua de base tupi,
como língua franca na Amazônia. (CUNHA, 2016. Pág. 47).

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A autora informa ainda que o conceito de racismo sempre existirá
por ser fundado na categoria das manifestações depreciativas que in-
felizmente ainda perduram. Para ela as sociedades indígenas se adé-
quam na definição plausível que reintroduz a história dos índios tanto
como processo quanto como memória. Ao evidenciar esse conceito é
necessário reforçá-lo, dizendo que as sociedades indígenas são aque-
las que conservam, então, a sua memória de um elo com as socieda-
des ancestrais (pré-colombianas). Ela diz que “índio é quem elas [as
sociedades indígenas] dizem que é” (Idem. Pág.48).
Uma das heranças indígenas mais significativas é a forma de culti-
vo e uso de plantas ornamentais e ervas curativas no Amapá. Falar ne-
las e das suas capacidades mágicas é tratar das pajelanças e de mis-
ticismo que existe nessa relação com a ancestralidade, algo muito
presente tanto na cidade como no interior, onde o amapaense procu-
ra nelas uma solução explícita para seus problemas corporais e men-
tais. Os chamados sacacas e pajés17 estão sempre à disposição para
efetuarem tais processos quando são chamados.
Quando um prédio antigo é demolido para que outro mais moder-
no seja construído em seu lugar, ou quando se referem às “coisas boas
do passado”, os amapaenses dizem (em tom de lamento) que Macapá
é a “terra do já teve”, porque não tem mais nada. Tratam, assim, de
um verdadeiro atentado irreversível às coisas do passado, e lamentam
essa destruição sistemática em nome do progresso. Outros vão mais
longe, na tentativa de explicar o porquê do “já teve”. Referem-se, então
a Athayde Teive, governador lusitano da Província do Grão-Pará que
veio à Macapá em junho de 1764 para lançar a pedra fundamental da
Fortaleza de São José (BAENA: 1968)
Poderia estender esses fatos descritivos como uma etnografia dos
amapaenses e categorizá-los como seres sentimentais que veem a

17. Sacacas e pajés são curandeiros, conhecedores de ervas mágicas e plantas que curam. Ainda hoje
são muito procurados para a cura de doenças corporais e psicológicas e quebrantos infantis, que são
resolvidos através de massagens e benzeduras.

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história passar de forma lenta, mas que estão sempre dispostos a rea-
lizar festas dos seus santos e até de transgredi-las com inovações, se
forem necessárias. São românticos e reclamam sempre das mudan-
ças, valorizando mais o passado, ou, quem sabe, valorizam desta for-
ma a memória coletiva. Brincam sempre uns com os outros à contra-
dição do romantismo, criticando a emissão de palavras desusadas
ou fatos que ocorreram num passado longínquo, com a expressão
“do tempo que a Fortaleza era de madeira”, pois a comunidade pos-
sui uma rede de códigos e significados (GEERTZ, 1989), que faz com
que as pessoas ali reunidas encontrem interesses, aproximação pelo
modo de agir, falar comportar-se ou vestir-se – por exemplo - de for-
ma semelhante, gerando, desta forma, processos identitários comuns
que marcam os moradores em alguns momentos, em alguns cenários.
E ainda que a identidade seja múltipla e ocasione tensões eles são in-
tegrantes daquele espaço, dotados de significados e sentidos próprios
(MAGNANI, 2002). No caso do Marabaixo, as pessoas mais velhas
também reclamam das novas inserções que parecem “ferir” as tradi-
ções para elas, de forma muito chocante. Porém, no decorrer das fes-
tas elas aceitam as mudanças e contam suas histórias eivadas de boas
recordações, de beleza e saudades.
Mas nem tudo foram flores para o Marabaixo conseguir se firmar
e sobreviver como cultura ancestral. As obrigações ritualísticas eram
confundidas com erotismo e prostituição explícita aos olhos daqueles
não-pertencentes ao grupo, conforme texto do Pinsonia, primeiro jor-
nal impresso do Amapá.
Nele, um articulista anônimo ataca o Marabaixo, dizendo-se alivia-
do porque “afinal desapareceo o infernal folguedo, a dança diabola do
Mar-Abaixo”. Ele afirma que “será uma felicidade, uma ventura, uma
medida salutar aos órgãos acústicos se tal troamento não soar mais...”.
Na sua narrativa preconceituosa vai mais além ao dizer que “Graças
ao Divino Espírito-Santo, symbolo de nossa santa religião, que só exi-
ge a prática de bôas acções, não ouviremos os silvos das víboras que

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dansam ao som medonho dos gritos dos maracajás (...), que é sufi-
ciente a provocar doudice a qualquer indivíduo”. Assevera adiante
“Que o Mar-Abaixo é indecente, é o foco das misérias, o centro da li-
bertinagem, a causa segura da prostituição”. E finaliza conclamando
“Que os paes de famílias, não devem consentir as suas filhas e esposas
freqüentarem tão inconveniente e assustador espetáculo dessa dansa,
oriunda dos Cafres”. (Jornal Pinsonia. Macapá, 25 de junho de 1898).
Portanto, não é de hoje que o Marabaixo é discriminado. Aliás, as
manifestações culturais de origem africana sempre foram vistas como
ilegais ao longo da história do Brasil. Do samba à religião, seus pro-
motores foram vítimas de denúncias que os boletins de ocorrências
policiais e os processos judiciais relatam como vadiagem, prática de
falsa medicina, curandeirismo e charlatanismo, entre outras acusa-
ções, muitas vezes com prisões e invasões de terreiros.
Há anos venho relatando episódios de confronto entre a igreja ca-
tólica (e seus prepostos eclesiásticos e seculares), e os agentes popu-
lares do sagrado, estes que, por serem afrodescendentes, mestiços e
principalmente por serem pobres, foram e são discriminados, visto o
ranço estereotipado de que são “gente ignorante” e supersticiosa.
É do século XIX a influência do evolucionismo que tomava como
modelo de religião “superior” o monoteísmo cristão e via as religiões
de transe como formas “primitivas“ ou “atrasadas” de culto. Nesse
tempo “religião” opunha-se a “magia” da mesma forma que as igre-
jas (instituições organizadas de religião) opunham-se às “seitas” (dis-
sidências não institucionalizadas ou organizadas de culto).
Discursos de difamação do Marabaixo como este da nota anterior
e a posição em favor de sua extinção ocorreram seguidamente. O pró-
prio padre Júlio Maria de Lombaerd (Vigário da Paróquia de Macapá)
no início do século passado quebrou a coroa de prata do Espírito San-
to que estava na igreja de São José e mandou entregar os pedaços aos
festeiros. O povo se revoltou e só não invadiu a casa do padre para ma-
tá-lo graças à intervenção do intendente da época, Teodoro Mendes.

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Com a chegada do PIME–Pontifício Instituto das Missões Estran-
geiras - em Macapá (1948) o Marabaixo sofreu um período de queda,
mas suportado com tenacidade por Julião Ramos (Líder negro da co-
munidade do Laguinho e principal festeiro do Divino Espírito Santo
e Santíssima Trindade), que não o deixou morrer. Tiraram-lhe inclu-
sive a fita da irmandade do Sagrado Coração de Jesus, da qual era só-
cio fiel.
Nesse período os padres diziam que o Marabaixo era macumba,
que era coisa ruim, e combatiam seus hábitos e crenças, tidos como
hediondos e pecaminosos, do mesmo jeito que seus antecessores o fi-
zeram no tempo da catequização dos índios. Mas o bispo dessa época,
D. Aristides Piróvano, considerava Mestre Julião “um amigo” (CAN-
TO: 1998).
As manifestações religiosas populares sempre foram mal vistas pe-
los missionários estrangeiros. Eram consideradas profanas, pois ao
lado dos seus rituais “celebrados” pelos agentes laicos do sagrado, ha-
via sempre algo que desvirtuava aquela celebração de homenagem
aos santos. Nesse caso eram os batuques e os atos profanos, que eram
vistos até há pouco tempo como degeneração por causa da liberação
da cachaça, das libações, do erotismo das danças e pela intensidade
dos batuques, cujos tambores provocariam incorporações – uma lem-
brança religiosa das etnias africanas, mas, aos olhos ocidentais, coi-
sa do diabo.
Muito já se falou sobre isso e inclusive há poucos anos o pároco da
igreja de São Benedito, do Laguinho, um dos bairros onde o Marabai-
xo se realiza, provocou uma celeuma com os realizadores da festa. O
fato foi parar nos meios de comunicação e ganhou grande e negati-
va repercussão para a Igreja. Porém a habilidade política de um pa-
dre nativo fez com que as coisas se revertessem, compreendendo que
valorizar a cultura também é uma forma de evangelizar. E essa cultu-
ra católica já está há séculos incorporada pelo povo, devido à evan-
gelização dos missionários do tempo da Colônia e do Império. Não é

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para menos que a grande maioria dos “ladrões” antigos do Marabai-
xo traz sempre reverência aos santos. E evidentemente não dá para
confundir Marabaixo com Umbanda (ou com Macumba). Umban-
da é religião afrodescendente e não ritual das manifestações culturais
da população afrodescendente. E seus deuses são deuses como os de
qualquer religião. Ninguém pode condenar suas práticas ritualísticas
irresponsavelmente.
A atitude da Igreja em reconhecer a cultura popular como elemen-
to que caracteriza a identidade amapaense, não significa que seja
uma remissão histórica, simples retratação ou resgate cultural. Nem
é um “mea culpa”. A meu ver é uma incorporação consciente de valo-
res populares locais, já que há quase um século esse mesmo povo foi
afastado oficialmente da Igreja num processo aparentemente discri-
minador na história do catolicismo no Amapá.

1.4. O RÁDIO, O RIO E O TUMUCUMAQUE


Nas comunicações, o rádio ocupa um lugar de destaque para infor-
mar a população sobre os acontecimentos cotidianos, esportivos, poli-
ciais, culturais e políticos, notadamente pela manhã, quando, além do
noticiário, ocorrem entrevistas com atores sociais significativos para o
Amapá. Apesar do crescimento das redes sociais, da Internet, dos jor-
nais impressos e das opções televisivas atuais, os programas de rádio se
destacam muito mais pelas análises políticas e dos apresentadores, que
se dedicam a levar aos ouvintes as ações de seus patrocinadores comer-
ciais (normalmente políticos com mandatos) em nome do interesse co-
letivo, do que pela simples ação de comunicar os fatos e propagandear
os eventos de qualquer natureza. Na realidade todos os programas (de
cunho político) que ocorrem pela manhã são altamente críticos no sen-
tido de menosprezar as ações contrárias às ideologias de grupos ou car-
gos políticos que defendem com veemência. Hoje podemos pensar que
o quadro noticioso, manipulado ou não, é um reflexo, uma herança in-
conteste dos programas radiofônicos da Rádio Difusora de Macapá que

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foi ao ar pela primeira vez a 14 de setembro de 1946, fundada pelo pri-
meiro governador do Território Federal do Amapá, e que continua na
ativa desde essa época e pertence ao Governo do Estado. Outra rádio
que teve grande audiência foi a Educadora São José, pertencente à Dio-
cese de Macapá, que enfrentou graves problemas com a censura fede-
ral até seu fechamento definitivo ainda no período da ditadura militar.
As comunicações foram importantes sobretudo para diminuir o grau de
isolamento, cuja principal “barreira” (vista como ausência de estrada de
rodagem, mas uma grande hidrovia) era o rio Amazonas.18
O Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque19 , é a maior Uni-
dade de Conservação do Brasil e a maior área protegida de floresta

18. Em junho de 2007, uma expedição integrada por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe), da Agência Nacional de Águas (ANA), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísti-
ca (IBGE) e do Instituto Geográfico Militar do Peru, determinou o local exato da nascente do rio Ama-
zonas, localizada no rio Apurimac, na cordilheira dos Andes, ao sul do Peru. Conforme o Atlas Geográ-
fico Mundial, o Amazonas media 6.515 quilômetros. Com a nova medição (2007), passou a ter 6 992,06,
portanto 139,91 quilômetros mais longo do que o Nilo. Em 1500, o navegador espanhol Vicente Yañez
Pinzón batizou-o de Río Santa María del Mar Dulce; 42 anos depois, o também espanhol Francisco
Orellana mudou-o para Amazonas. O colosso marrom, que no estado do Amazonas recebe o nome de
Solimões e nos estados do Pará e Amapá, de Amazonas, tem mais de mil afluentes, constituindo-se na
espinha dorsal da maior bacia hidrográfica da Terra, formada por 7 mil rios, 25 mil quilômetros nave-
gáveis. Da nascente até 1.900 quilômetros, o Amazonas desce 5.119 metros; desse ponto até o Atlânti-
co, a queda é de apenas 60 metros. Suas águas correm a uma velocidade média de 2,5 quilômetros por
hora, chegando a 8 quilômetros, em Óbidos, cidade paraense a mil quilômetros do mar e ponto da gar-
ganta mais estreita do Amazonas, com 1,8 quilômetro de largura e 50 metros de profundidade. A des-
carga média é de 180 mil metros cúbicos de água por segundo, um quinto, ou 16% da água doce despe-
jada nos oceanos do mundo. Em maio, sobe para 220 mil metros cúbicos por segundo e, em novembro,
cai para 100 mil metros cúbicos por segundo; 65% do fluxo vaza pelo Canal do Norte, que despeja até
160 mil metros cúbicos de água por segundo. A boca do rio, escancarando-se do arquipélago do Mara-
jó, no Pará, até a costa do Amapá, mede em torno de 240 quilômetros, e sua água túrgida penetra cer-
ca de 320 quilômetros no mar, atingindo o Caribe nas cheias. Se mais de um terço de todas as espé-
cies do planeta vive na Hileia, a bacia é berço de mais de 2.100 espécies de peixes, 900 a mais do que as
dos rios da Europa. Só a bacia do rio Negro, afluente da margem esquerda do Amazonas, contém mais
água doce do que a Europa. Em 2011, pesquisadores do Observatório Nacional anunciaram evidências
de um rio subterrâneo numa profundidade de 4 quilômetros abaixo do Amazonas, com 6 mil quilôme-
tros de comprimento, batizado de Hamza, em homenagem a um dos pesquisadores, o indiano Valiya
Hamza (Fonte: INPE/Blog RAY CUNHA, postado em 19.05.2015, 09h34 AM)
19. Tumuc-Humac, do caribe, “mãe de todos os rios” (Cristóvão Lins). Entre os índios Aparaí e Waia-
na significa “pedra da montanha”, e simboliza a luta entre o xamã e os espíritos. Há quem diga que tam-

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tropical do mundo, com 3.867.000 hectares (Wikipédia.org. Acessa-
do em 26.09.2016). Tem por características as serras e florestas que
recebem as chuvas e originam diversos e grandes rios da rede hidro-
gráfica amapaense como o Jari, o Araguari e Amapari, o Oiapoque e
o Maroni.
Nessa área, aparentemente protegida em sua imensidão, também
se encontra a figura do coletor, do caçador, do pescador, enfim, do ri-
beirinho que se alimenta da floresta, e que tenta, a todo custo, sobre-
viver, até ser explorado pelo detentor do capital como os madeireiros
e os garimpeiros e suas dragas de sucção que destroem, poluem e ex-
tenuam o meio ambiente na sua sanha gananciosa de exploração do
ouro e de outros minerais nobres; dos criadores de búfalos, dos aglo-
merados financeiros e construtores de hidrelétricas e de minas, das
florestas homogêneas de pinus e de eucalipto e, hoje, de plantadores
de soja que jogam os pequenos agricultores para a periferia das cida-
des, após as negociações de compra de suas propriedades por preços
irrisórios.
O amapaense mudou seu mundo, aos poucos recebendo mais
influência externa e absorvendo modismos, adaptando-se cultu-
ral e socialmente aos novos valores, que impondo a sua cultura so-
bre todos, devido, talvez, ao forte impacto dos eventos econômicos
que o tornaram elemento-alvo de decisões políticas socioambien-
tais. Por um período de oito anos experimentou ser governado sob
o desenvolvimento sustentável (1995-2002) que preconizava e pri-
vilegiava ações de ordem preservacionistas e de exploração racio-
nal da natureza, tendo ganho inúmeras premiações internacionais
pela ousadia e ineditismo de seus projetos nas áreas econômicas e
sociais, o que levou o Estado a ser conhecido como o mais preser-
vado do Brasil.

bém tem o significado mítico de “Serpente Adormecida”, e que um dia pode acordar mexendo suas es-
camas brilhantes.

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1.5. A INFLUÊNCIA DE BELÉM E A HERANÇA TERRITORIAL
Os grandes acontecimentos da vida brasileira praticamente não ti-
nham repercussão em Macapá devido a distância do centro político
(Rio de Janeiro) e até mesmo de Belém (sede da Capitania do Grão-
-Pará e depois capital do Estado do Pará).
O Território Federal do Amapá nasceu de uma separação ungida
por um Decreto-Lei N° 5.812, de 13.09.1943, do Governo Vargas, que
nomeou um militar para ser o seu primeiro governador. Nasceu de
uma ditadura (1943) e o Estado do Amapá da democracia (1988). Mes-
mo independente do Estado do Pará, de onde seu território geográfi-
co foi arrancado, não conseguiu sair plenamente da influência de Be-
lém, à qual nunca se insurgiu, pois até a culinária local é amplamente
amazônica e minimamente amapaense, devido à tradição e aos ingre-
dientes utilizados nas comidas típicas de origem indígena, sendo as
mais conhecidas o tacacá, o pato no tucupi e a maniçoba. Não se li-
bertou também na área esportiva, notadamente no futebol associa-
tion, pois a grande maioria dos torcedores se dividem entre os times
do Pará (Remo e Paysandu), do Rio de Janeiro (Flamengo, Vasco, Flu-
minense e Botafogo) e de São Paulo (Palmeiras, Corinthians e San-
tos). No primeiro caso a paixão por times do Pará se deu por influên-
cia dos pioneiros que torciam por esses clubes em Macapá, e que
eram oriundos do estado vizinho. O futebol local que já teve seus mo-
mentos gloriosos, hoje no máximo disputa a série D (última série) do
campeonato nacional.
Apesar de tudo, o povo amapaense ainda crê em novos rumos e no-
vas medidas que possam transformar o Estado em um lugar melhor
para se viver. Essa confiança no futuro é uma das heranças pregadas no
tempo do Amapá Território de Janary Nunes e sua Mística. O amapaen-
se gosta de conversar na porta da casa, na calçada ao entardecer, falan-
do sobre mitos, lendas e fantasias, ou mesmo em fofocas para a atua-
lização das notícias comunitárias e políticas, que evidenciam ou não
boas perspectivas para o futuro, assim como os prometidos aumentos

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salariais, considerando que antes da capital se tornar uma cidade de
porte médio, era vista como o paraíso dos funcionários públicos.
O amapaense típico é solidário e apegado à família. Faço referên-
cia ao fato dos filhos morarem com os pais por muito tempo, mor-
mente aqueles que por falta de oportunidade, acidente, ou um empe-
cilho qualquer, não conseguiram estudar para terem uma profissão e
bons empregos, ou constituíram famílias ainda muito jovens, após a
responsabilidade do sexo precoce falar mais alto que a espera de um
casamento maduro e a consequente formação da família nuclear. Pais
ajudam filhos que procriam nos seus lares e são abrigados e sustenta-
dos por eles em nome da honra familiar e do compromisso em dotar
crianças de alimento e escola. Os filhos, assim, não se sufocam no de-
sespero e se dividem familiarmente as alegrias e dificuldades da vida,
crescendo e amadurecendo para a sociedade até uma libertação ou
independência total, que termina com a morte dos chefes e reinicia
com a liderança daquele filho que obteve mais sucesso na vida.

1.6. RIOS DE MAIRI E OS A-SOMBRADOS


A consciência, essa peça fundamental da cultura humana eleva a pos-
sibilidade do ser se transformar e mudar a realidade do mundo. Des-
de o estabelecimento do caos gerado pelos cataclismos de fogo na flo-
resta e o pesadelo diluviano de Mairi (Que veremos no capítulo III)
conduzida por Ianejar do mito waiãpi, o amapaense muda, cria (i)rea-
lidades para fincar na sua terra o cajado da razão de sua existência:
a multiplicidade dos sonhos a serem realizados em um novo mundo
após o caos, algo supostamente bíblico, mitológico e renovador pela
ablução das águas, que extirpa o passado e faz descortinar o sol de
uma nova existência, eivada de novos fazeres, de novas ações cultu-
rais e sentimentos; de novas memórias que decerto gerarão novas
identidades. Mas a pedra de Mairi ficará como identidade primordial
plantada onde parou, no lado esquerdo do grande paraná, que é o rio
Amazonas.

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O amapaense nunca vai deixar de ser um rio enigmático, a ser des-
vendado por ele mesmo. Até as águas turvas dos acontecimentos,
como os que presenciei em 1973, chamado pela população de “Opera-
ção Engasga-Engasga” (a ser descrita no IV capítulo desta tese), teve
a sua razão histórica e o seu limite político-ideológico ao servir a um
grupo militar que objetivava a implantação de uma nova política de
segurança para o Amapá. A obtusa e confusa atuação da Polícia Ci-
vil, da Guarda Territorial e do Exército sobre a ação dos supostos co-
munistas-terroristas-engasgadores, foi um ato que o romancista e
jornalista Jorge Hernani também testemunhou e o classificou como
incoerente e covarde, dentro de um círculo de fatos que estavam com-
patíveis com o tempo das trevas da ditadura militar que assolava o
Brasil com extraordinária eficiência das forças repressivas de então.
Faço-me ainda testemunha desses fatos e não busco a ilusão fácil
para as reflexões emitidas aqui, de onde cortejo as palavras e obser-
vo ainda hoje nas ruas as lembranças dos rostos e olhares. De memó-
rias, de crenças, lágrimas e sonhos daqueles que viveram tantas tem-
poralidades e permitiram que a história fosse contada de acordo com
seus saberes, artes e versos, criados além do lirismo individual, mas
com o desejo vivaz de ensinar o que viram para que o coletivo pudes-
se vir à tona nesses rios de águas barrentas. Esses rios são as próprias
identidades amapaenses. São o que são à luz de suas crenças. Cren-
ças de um futuro menos pessimista e mais sujeito a reflexões provo-
cadas pela energia e a intensidade da luz do sol equatorial sobre suas
cabeças. Aliás, nos equinócios, quando o arco da noite é o mesmo que
o do dia, ao meio-dia o amapaense fica sem sombra, devido à inci-
dência direta dos raios solares. Daí se dizer que a essa hora o homem
fica “a-sombrado”, ou seja, “sem sombra”, o que lhe dá a condição de
um ser não-natural, sobrenatural, translúcido e estranho, que habita
um mundo amazônico cheio de (i)realidades, características de uma
região histórica e economicamente espoliada, mas onde o mito e as
crenças se renascem e se perpetuam dentro da cultura. O significado

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de a-sombrado é o inverso de assombrado dos dicionários da língua
portuguesa.
O amapaense é um ser de luz. É por ocasião do equinócio da pri-
mavera que as cores ficam mais vivas no Amapá. A claridade reina ir-
radiando mistérios sobre a cidade de Macapá em mais uma data em
que o arco do dia é igual ao da noite: um dia equinocial. Iridescente e
translúcido no meio do planeta, na Amazônia brasileira. O sol que ilu-
mina a todos, que traz a luz e rompe trevas está presente no imaginá-
rio de muitas religiões, até porque todas as cosmogonias se relacio-
navam geralmente com as divindades da natureza. No antigo Egito, o
Sol, o mais importante dos deuses, tinha diversos nomes. As interpre-
tações dadas às suas funções eram extremamente variadas: chama-
va-se Rá, o deus supremo, quando estava no zênite. Como disco solar
chamava-se Aten; como sol nascente tinha o nome de Kepri, um gran-
de escaravelho que faz rolar a sua frente a bola de sol, assim como
na terra o escaravelho faz rolar a bola de excremento em que pôs os
ovos e da qual sairá nova vida. Também tinha o nome de Hórus. No
Japão, Amaterasu é a deusa homônima. Já na África tropical a mitolo-
gia sobre o sol é escassa porque ele está sempre presente, não haven-
do necessidade de chamá-lo de volta no inverno, como os homens o
faziam nos climas frios do norte da Europa ou do Japão. Na Babilônia,
na época de Hamurábi (cerca de 1.700 a.C.), um dos deuses mais ati-
vos era Shamash, o sol, também conhecido por Babar, “o Brilhante”. O
sol era igualmente venerado pelos sumérios, particularmente em Lar-
sa e Siippar, onde o adoravam sob o nome de Uru. Os Incas reclamam
para si um relacionamento especial entre a nobreza e o deus Sol. O
seu sistema social assentava-se no princípio hierárquico de monar-
quia divina e o prestígio de sua autoridade estava ligado ao culto des-
se astro.
Atividades como a celebração druídica do solstício de verão em
Stonehenge (Inglaterra) podem ser considerados como uma sobrevi-
vência da ideia do poder mágico, da força que se pode armazenar em

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“acumuladores materiais” como os monumentos megalíticos ali exis-
tentes. Da mesma forma, as grandes pedras encontradas em círculo,
em Calçoene (Município do Amapá), também podem ser considera-
das antigos locais de observação do sol e de acumulação de energia
deixados por alguma tribo indígena.
O amapaense é um ser de brilho, pelo sol equatorial, mas en-
contra no dilúvio místico, da chuva “baguda” (assim chamada por
ter pingos grossos) a ideia da salvação na nau de argila dos waiãpis,
a Mairi, que vagou nas ondas da enchente e se fixou na borda do
Grande Paraná, tornando-se um ícone proto-histórico da vida ama-
zônica. Um objeto da salvação de uma raça que ancorou sua sor-
te e seu destino na mata e na várzea do estuário do Amazonas. Ali
o tempo e o espaço se fundem em uma estrutura mística, do deus
Ianejar dos waiãpi, pois cada gesto seu era dotado de significação
particular. A ausência dele depois da aportagem da Casa de Barro
deixa a saudade divinatória, pois ele vai se transformar em estrela e
habitar o espaço do final do mundo, no buraco sem fim, até se en-
fraquecer no esquecimento das gerações que o abandonaram. Mas
como o seu tempo é cíclico (mítico), Ianejar pode retornar memo-
rialmente entre os waiãpis.

1.7. A FESTA DE SÃO TIAGO DE MAZAGÃO VELHO, OUTRAS FESTAS E TRAGÉDIAS


A Festa é uma das razões da existência do amapaense. Sem ela nada
seria útil. A festa é uma celebração, um encontro, mas também uma
revolta em seu território político, um ritual e um processo social. Sem
dúvida ela não teria sentido se não fosse o de fazer relações, experi-
mentar as novidades, reavivar tradições e formar alianças comerciais
e familiares, através do escambo de mercadorias, da comercialização
de produtos e promessas de casamentos. No interior, sobremaneira, a
cultura envolve e gera emoções diversificadas, pois os interesses co-
muns e coletivos se misturam aos particulares e estes dão sentido à
vida em comunidade, numa ritualização constante, que obviamente

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muda devido a dinâmica social e a incorporação de novos valores em
seus ritos e fazeres (DUVIGNAUD, 1983).
Festas e festas fazem parte do calendário religioso-cultural nas lo-
calidades mais longínquas do estado em relação à capital, Macapá. Na
vila de Mazagão Velho, fundada em 1771, e especialmente construída
para receber os portugueses que vieram expulsos de Marrocos pelos
muçulmanos, em função de conflitos religiosos ocorridos em 1769 na
Mazagão africana (hoje El Jadida), o ciclo de festas de santos é grande.
Mazagão Velho é uma vila festeira. Seu ciclo santoral abrange 17 festas
anuais, sendo que a mais importante é a de São Tiago, realizada há
239 anos ininterruptamente, nos dias 24 e 25 de julho. Nessa data as
ruas de Mazagão Velho se transformam num grande palco onde os
atores são membros da comunidade. Eles representam as persona-
gens da celebração da vitória dos cristãos sobre os muçulmanos. A
Festa de São Tiago não é apenas uma cavalhada que simula a luta en-
tre mouros e cristãos. É, antes, uma representação eivada de significa-
dos no contexto do imaginário coletivo, e elemento importante sobre
o qual se organizam as relações sociais e econômicas. É uma prática
em que se conquista no cotidiano os mais diversos interesses. Nesse
período vem gente de toda a redondeza para negociar, rezar, dançar,
namorar, casar. É composta por várias cerimônias e rituais, todos com
cenas e dramaturgia diferentes. O seu encadeamento constrói uma
história, uma epopeia, produto de ações heroicas que, juntas, revela a
tradição local na reverência ao santo, por meio de ritual religioso e re-
presentação teatral nas ruas da Vila. Essas cenas iniciam desde o dia
16 de julho quando os moradores despertam com a alvorada de fogos
de artifício e do som secular dos sinos. Nesse dia o “Arauto” sai às ruas
no meio da tarde anunciando a trasladação da imagem de São Tiago,
para que à noite comecem as novenas, com ladainhas cantadas em la-
tim, herdadas de tempos imemoriais, dentro da igreja onde estão pos-
tas as imagens vindas da costa africana em 1771, trazidas pelas primei-
ras famílias de colonizadores. Principais cenas da Festa - A partir de

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4:00h do dia 24 de julho a Vila acorda sob o barulho ensurdecedor dos
fogos de artifícios e dos disparos de espingardas. Uma multidão surge
dos salões de festas do arraial e se encaminha para a residência do
ator que representará São Tiago nos próximos dois dias. A rua fica or-
nada por um cortejo que traz à frente dois rufeiros (tocadores de tam-
bor ou caixa). Adentram à casa dançando o Vominê, uma espécie de
dança de salão que só homens dançam, em círculos (representa a vi-
tória dos cristãos sobre os mouros). As mulheres servem o café da ma-
nhã aos brincantes, que em fila recebem pedaços de bolo e chocolate
quente. Esse serviço é uma obrigação dos familiares da “figura” de São
Tiago. Depois os brincantes se dirigem à igreja e, sob o som de sinos e
tambores, reverenciam os santos no altar, rezando e beijando as fitas
que os adornam. Em seguida vão às casas das autoridades da Vila
dançar o Vominê. Outra dramatização marcante é a entrega dos pre-
sentes envenenados. Reza a lenda que os mouros, cansados de tanta
guerra, resolveram viver em paz. Na tentativa de agradar seus antigos
inimigos, enviaram-lhes presentes em forma de joias e de iguarias,
que faziam parte de uma cilada, pois estavam envenenados. Os cris-
tãos desconfiaram e mais tarde confirmaram suas suspeitas. Resolve-
ram então fazer uma contraofensiva. Guardaram uma parte dos ali-
mentos e a outra parte jogaram na granja em que os mouros recolhiam
os seus animais. A encenação desse quadro se dá em um grande cor-
tejo em que se avistam os cavaleiros Tiago e Jorge em trajes brancos,
sem seus uniformes de gala. À tarde os cristãos e os mouros se posi-
cionam distantes cerca de 400 metros. Um emissário mouro sai a ga-
lope para se encontrar com o emissário cristão no meio do caminho e
acertam o envio dos presentes. O emissário cristão leva a mensagem
dos mouros e retorna para dizer que seus chefes aceitam os presentes.
Mais tarde todos se dirigem às casas das autoridades locais para efe-
tuarem a entrega dos presentes, simbolicamente representados por
flores e laranjas sobre um prato. Ignorando a desconfiança dos cris-
tãos, os mouros promovem um Baile de Máscaras oferecendo a opor-

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tunidade de anonimato àqueles que optassem por ficar do seu lado.
Os cristãos vão ao baile e distribuem a parte da comida envenenada
que haviam guardado. Quando o dia amanhece, os mouros se depa-
ram com os seus animais mortos e reconhecem alguns dos alimentos
com os quais haviam presenteado os cristãos. No local do baile jazem
mortos muitos mouros - entre eles o chefe supremo, o Rei Caldeira.
Dezenas de brincantes chegam para dançar no baile, todos com más-
caras (caraças). Mulheres e crianças são proibidas de frequentar o bai-
le. No dia 25 de julho ocorre o “Círio”, quando as “figuras” fazem a di-
ferença com seus trajes luxuosos. São Tiago e São Jorge vêm a cavalo,
seguidos pelas fileiras de cavaleiros cristãos (de branco e verde) e de
mouros (de vermelho e branco). A procissão do Círio termina com
uma missa campal em frente à Igreja de Nossa Senhora da Assunção.
Ao meio-dia deverá passar o “Bobo Velho”. Essa figura encarna um es-
pião mouro disfarçado de saltimbanco que penetra na cidadela dos
cristãos para observar sua força militar, organização estratégica e pon-
tos fracos. Mas é descoberto e foge sob uma chuva de balas (é apedre-
jado pela multidão nas duas vezes em que passa). As batalhas – O es-
paço ritual da festa ou território cerimonial da tradição é a rua
Senador Flexa, na frente da Vila. Nesse mesmo espaço a vitória dos
cristãos, conduzida por São Tiago, se repete há mais de duzentos
anos. O enredo da dramatização renova a força do povo e impulsiona
a vontade de refazer a Festa e manter a tradição. Às 15:00h o Arauto
anuncia a batalha. A ele cabe a tarefa de tocar seu tambor mensageiro
e de estar presente em todas as cenas da festa e episódios da batalha.
Os episódios, antes incompreensíveis porque não havia narração para
o público, ainda são objetos de muita curiosidade. O primeiro deles é
a descoberta do “Atalaia” pelos mouros. Trata-se de um soldado, es-
pião dos cristãos, que rouba o estandarte dos mouros e o arremessa
para dentro da cidadela dos cristãos. É descoberto e capturado. O ges-
to custa-lhe a vida: é decapitado e tem a cabeça espetada numa vara,
que é fincada em frente às forças cristãs. Os cristãos atraem uma pa-

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trulha moura para uma armadilha e, em vingança, a dizima no deser-
to. Logo após ocorre o episódio do rapto das crianças cristãs: os mou-
ros, disfarçados de artistas circenses, distraem as crianças cristãs
enquanto seus pais estão lutando no deserto, e as vendem aos carava-
neiros com o objetivo de comprar armas e munição. Uma patrulha
cristã alcança os soldados mouros e os matam no momento em que
dividiam o dinheiro arrecadado com a venda das crianças. Essa cena
tem a participação das crianças mazaganenses. Os atores (Máscaras)
jogam cédulas de dinheiro sem valor para o alto e fazem pantomimas
rolando pelo chão. No quinto episódio os mouros propõem a troca do
corpo do Atalaia pelo estandarte. A troca é aceita, os cristãos recebem
o corpo, mas não devolvem o estandarte, alegando que os mouros es-
tariam armados. Na representação o corpo do Atalaia é entregue num
cavalo. O sexto episódio é a batalha final, quando ocorre a dádiva de
São Tiago. É a mais violenta batalha. Embora os cristãos estivessem
em vantagem, começava a anoitecer, e isso favorecia os inimigos.
Quando estes obtiveram uma certa vantagem, os cristãos pediram a
Deus e a São Tiago que o dia fosse prolongado por mais meia hora. O
milagre aconteceu. O sol se firmou na linha do horizonte e, com auxí-
lio de um cavaleiro vistoso por trás das forças mouras, os cristãos ven-
ceram a batalha. O cavaleiro era São Tiago, enviado por Deus para au-
xiliar os cristãos com a força de sua espada. Esta cena ocorre entre
gritos e tiros de espingarda. Mesmo cansados, cavaleiros cristãos,
mouros, máscaras e figuras glorificam o santo e se preparam para a
procissão de trasladação da imagem. Após os atos religiosos, iniciam-
-se os cantos do Vominê. Desde a cena do Bobo Velho até a Batalha Fi-
nal, com a epifania de São Tiago, há uma grande participação popular.
E entre símbolos e ritos a Festa se realiza desde 1777 como um conjun-
to de práticas culturais conservadas e comemoradas, que promovem
a coesão social numa pequena comunidade, num grande evento onde
o homem amazônico é o seu próprio dramaturgo, o seu próprio ator e
fazedor de sua própria história.

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As festas do Amapá, seja no interior ou na capital, ganharam
uma grande dimensão com a inserção dos agentes políticos incrus-
trados nas instituições culturais. Hoje algumas delas só são realiza-
das mediante o apoio cultural dos governos, principalmente por-
que há necessidade de ofertar comida e bebida aos organizadores
e visitantes de outras comunidades. Entre as solicitações dos festei-
ros está a compra de boi, bebidas alcóolicas, tecidos para confecção
de roupas e foguetes e rojões para homenagear os santos de diver-
sos cultos.
A festa de São José, feita em homenagem ao padroeiro de Macapá e
do Estado, a 19 de março de cada ano, já foi a principal festa religiosa.
Hoje foi suplantada pela de Nossa Senhora de Nazaré, padroeira da
vizinha Belém do Pará e da região Amazônica. Cada vez mais ela reú-
ne no segundo domingo de outubro milhares de romeiros e crentes,
o que provoca certo “ciúme” entre os habitantes mais tradicionais da
capital amapaense. Ao lado dessa manifestação cresce também a re-
ligião evangélica pentecostal e seus eventos como a Caminhada com
Cristo, ao lado de grandes manifestações de religiões de matriz africa-
na como o Candomblé, a Umbanda, como a Festa de Iemanjá, realiza-
da à beira do rio Amazonas, em 02 de fevereiro.
No aspecto popular as festas de carnaval também crescem no inte-
resse da população, ainda que as organizações carnavalescas depen-
dam totalmente dos governos para se sustentarem, a despeito de que
sempre estão envolvidas em denúncias de corrupção, desvios de re-
cursos e ausência de prestação de contas. Isso levou em três anos al-
ternados gestões governamentais se verem obrigadas a suspender a
transferência de recursos, alegando a falta deles e a crise econômi-
ca internacional. No entanto, Macapá foi contemplada em 1997 com
a inauguração de um sambódromo moderno que também abrigou a
Secretaria de Cultura e uma Escola de Artes. As micaretas, espécie de
carnaval fora de época, estimulada pelos governos foi absorvida com
simpatia pela juventude.

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No aspecto festivo é tradição do Amapá comemorar o dia 13 de se-
tembro, dia da Criação do Território Federal do Amapá com paradas
escolares. Mesmo com a Criação do Estado em 08 de outubro de 1988,
é constitucional o feriado estadual dessa data, pois se trata de respei-
to cívico à memória amapaense. Por estar próximo do Sete de Setem-
bro, percebe-se uma espécie de carnavalização nesse momento cívi-
co, com desfiles comemorativos e temáticos.
Como me referi anteriormente a festa também é um iniciar da
vida, um recomeço do homem na sua realidade a ser vencida diaria-
mente. Isso significa que nenhum povo seja sempre alegre ou feliz,
porque em algum momento viveu também suas tragédias. A primei-
ra delas no tempo do Território Federal foi o acidente aéreo que ma-
tou o deputado Coaracy Nunes, o promotor Hildemar Maia e o pilo-
to Hamilton Silva, na localidade de Macacoari, em 1956. Coaracy era
irmão do governador Janary Nunes. O desastre, até hoje lembrado
deixou os habitantes do Território consternados, pois viam nele um
talentoso líder amazônico dentro da política nacional, que poderia fa-
zer grandes reivindicações e propostas importantes para a região. De-
pois disso, apesar de não ter tido vítimas, os incêndios no comércio de
Macapá, em 1968 e em 1975, próximo à Fortaleza de São José de Ma-
capá, também foram vistos como tragédia. Mas não tão significantes
como o desastre da embarcação “Novo Amapá”, ocorrido a 06 de ja-
neiro de 1981 no rio Cajari, quando cerca de 600 pessoas pereceram
nas águas escuras daquela noite trágica. O barco, superlotado, além
de sua capacidade, teria adernado por imperícia do piloto e virou, se-
gundo relatos de sobreviventes. No decorrer do resgate os corpos en-
contrados foram transportados em balsas e amarrados como toras de
madeira até o porto de Santana, de onde saíra, onde foram sepultados
em grandes valas comuns diante da impossibilidade de reconhecer os
corpos. O trauma dessa experiência, que foi o maior desastre naval da
região, até hoje sensibiliza o povo do Amapá, que apesar de tudo pro-
cura sempre um recomeço para amenizar suas dores.

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Se muitas vezes as lembranças aniquilam o ser humano, o tempo
sem lembranças também podem aniquilá-lo, daí a importância do es-
tudo sobre a identidade e sobre a memória na vida coletiva, pois

A memória é a identidade em ação, mas ela pode, ao contrário, ameaçar,


perturbar e mesmo arruinar o sentimento de identidade, tais como mos-
tram os trabalhos sobre as lembranças de traumas e tragédias como por
exemplo a anamnese de abusos sexuais na infância ou a memória do Ho-
locausto (CANDAU, 2014, Pág., 18).

Talvez a tragédia não possa ser medida. Maior ou menor, sempre


ela será uma tragédia, eivada ou não de acontecimentos sangrentos
oriundos de acidentes e crimes, eventos que permeiam qualquer so-
ciedade. E a sociedade amapaense acompanhou, com sentimentalis-
mo exacerbado, acidentes inesquecíveis, pulsantes na memória, tais
como: o afogamento de escoteiros em excursão na Serra do Navio, ex-
plosões de embarcações no Porto de Santana, desabamento no porto
de minério de ferro e manganês (Santana), desabamentos de pontes,
assassinatos e crimes violentos que consternaram a sociedade, soli-
dária sempre com os prejudicados desses episódios.

1.8. AMAPALIDADE
O termo amapalidade já vigorava no tempo do início do Território Fe-
deral do Amapá. No entanto, em 2003, o Governo Estadual voltou a
usá-lo, objetivando com isso sustentar uma condição identitária que
despertasse nos habitantes o reconhecimento formal das coisas ama-
paenses e uma espécie de agregação de valor ao sentido de perten-
cimento. O termo não pegou, mas ficou claramente instituído nas
pessoas um compromisso com a memória e com a identidade local,
espécie de reflexão tardia do valor das coisas realizadas pelos pionei-
ros do Amapá, pelos antepassados, dando a dimensão heroica que
necessitava para reconstruir e promover essa moral cívica e memorial

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da terra, já que os museus dão pouca ênfase e vivem agônicos, funcio-
nando à míngua. Legalmente o Amapá tem um Arquivo Público, em-
bora não esteja funcionando a contento, considerando sua importân-
cia para a pesquisa acadêmica e que há no Estado uma Universidade
Federal, uma Estadual e dezenas de outras instituições de nível supe-
rior que tentam trabalhar a pesquisa histórica e social do Amapá.
Mas o que é mesmo “amapalidade”? Como lidar com esse concei-
to, a não ser pelo viés da história, citando inclusive a frase do escritor
José Sarney que escreveu: “O Amapá é a única unidade da federação
que escolheu ser brasileira” (SARNEY,1999).20

20. A região norte do Amapá, a partir do Araguari até o Oiapoque sempre foi objeto de disputa en-
tre o Brasil e a França desde o tratado de Utrecht, em 1713. Era o Território contestado. Com a explora-
ção do ouro de Calçoene as tentativas de tornar a região um país independente (A República do Cuna-
ni), os ânimos foram se exaltando até um inevitável conflito armado entre o presidente do Triunvirato
do Amapá, Francisco Xavier da Veiga Cabral, o Cabralzinho, e um comandante francês que invadiu o
Amapá para prendê-lo. Dezenas de pessoas morreram no episódio sangrento. A partir daí a diploma-
cia internacional elegeu Berna, na Suíça, para julgar o caso. A 1º de dezembro de 1900 o Brasil ganhou
a causa, tendo como advogado José Maria Paranhos da Silva, o Barão do Rio Branco. O 15 de Maio, data
do combate, quando Cabralzinho matou o capitão francês e sempre foi um dia importante para os ha-
bitantes do Amapá. Era uma data comemorada por todas as escolas que reverenciavam o triúnviro
como o “Herói do Amapá”, pelo seu ato de defender a Pátria dos invasores inimigos. As especulações
que se seguiram à época do episódio deixaram a figura de Cabralzinho bastante controversa. As baixas
francesas foram seis mortos e 20 feridos enquanto 38 brasileiros, na maioria velhos, crianças e mulhe-
res perderam a vida de forma macabra e cruel. O próprio Emílio Goeldi, cientista emérito do Museu do
Pará, em relatório de novembro de 1895 ataca Veiga Cabral, embora dizendo que não quer acusá-lo di-
retamente da culpabilidade dos abusos cometidos, mas que seus companheiros são gente da pior es-
pécie, que não lhe inspiram confiança. Hoje, apesar dos monumentos construídos ao ato heroico de
Cabralzinho, inclusive no local onde teria ocorrido o episódio, a história, tão valorizada no passado pa-
rece ter caído no esquecimento, sendo muitas vezes objeto de galhofa e ironia. Sobre esses aspectos e
levando em conta que a ciência histórica hoje considera que “as atitudes mentais, a relação com o cor-
po, com o espaço, com a paisagem, a cultura política, as relações socioeconômicas, a festa, a cultura
material, etc, se constituem objetos do conhecimento em história”, (Coelho, Mauro Cezar, in Um Di-
plomata na Colônia: As Formulações de Alexandre Rodrigues Ferreira na Defesa do Cabo Norte. Brasí-
lia:2003), não seria interessante se a academia local fizesse estudos para tentar solucionar o problema,
haja vista que não é apenas o heroísmo de Cabralzinho que está em jogo, mas a própria História do Es-
tado. O professor Jonas Marçal de Queiroz, no seu estudo História, Mito e Memória: o Cunani e outras
Repúblicas, in “Nas Terras do Cabo Norte”. Belém:1999) diz que Veiga Cabral foi esquecido assim que
o litígio com a França foi resolvido. Ele questiona também a atitude de Trajano, que teria sido escravo
em Cametá e que vira o significado de liberdade na bandeira francesa. Isto posto, é inegável a necessi-
dade de surgirem novos e esclarecedores estudos na área.

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Mas o que expressa esse termo? Algo para dizer que significa as vi-
tórias diante do Contestado, diante dos obstáculos se separar do Pará,
de transformar a gleba primeiro em Território Federal, depois em Es-
tado Federativo, depois ter a legitimidade sobre suas terras? Seria uma
maneira de ver o mundo do outro hemisfério, de forma espelhada no
tempo? Seria como se o amapaense se identificasse mais com a natu-
reza, seus mitos e suas crenças fantasiosas do que com a própria histó-
ria e, depois de descobrir sua origem partir para a vontade de crescer
em todos os aspectos? Seria amapalidade, amapaensismo, amapalis-
mo, amapanidade o que se escreve há anos sobre esse objeto (A Forta-
leza de São José de Macapá), transformado pelos observadores e escri-
tores em sujeito da pesquisa, sujeito anímico. O termo expressa, então,
o que é a água (de uma inundação que traz o alimento), a luz (da ima-
ginação identitária) e a pedra (de uma construção trabalhosa e lenta).
A Fortaleza de São José de Macapá seria apenas um sonho utópico
dos ancestrais, encostada ali na paisagem ou um reiniciar constante
de uma caminhada em um princípio cósmico embalada pelos olhos
dos poetas? Ora, o amapaense ficou séculos abandonado em sua pri-
são geográfica, separado pela massa do rio Amazonas, como já o dis-
semos acima. Porém, quando o progresso chegou – tardiamente - na
sua chegança retirou a tristeza de uma solidão atávica, à beira de uma
sombra, sob o escaldante sol do equador incidindo sobre dezenas de
cabeças que despertaram, enfim, do sonho, para domar suas próprias
realidades.
O povo do Amapá se identifica, sim, reiteradamente com o sol que
incide sobre a terra na linha imaginária do equador, já que este divi-
de o planeta em dois hemisférios. O povo amapaense percebe nitida-
mente os solstícios (de solstitium = parada do sol) e os equinócios (ae-
quinotium = noite igual ao dia). E sabe que ele tem o significado de
renascer todos os dias.
O Amapá ainda vive uma transição entre a sociedade tradicional
e a moderna. Embora não haja conflitos excruciantes, percebe-se a

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inserção de valores do capitalismo de forma agressivamente visível,
onde a presença do Outro traz uma alteridade imanente, que revol-
ve outras histórias e aludem a uma aculturação. Ainda que este con-
ceito não seja mais usado na antropologia necessário se faz dizer que
a substituição e a adaptação social de valores externos no Amapá se
deu pelo chamado desenvolvimento moderno, pelo avanço tecnoló-
gico, e pela mídia eletrônica (considerando que a televisão, por exem-
plo só foi instalada publicamente em Macapá a partir de 1974) rápida,
que levou a mudanças radicais de hábitos e costumes, ainda em que
pese a preservação desses últimos em lugares mais tradicionais da ca-
pital. E as tradições, como sabemos são criadas.
Em sua abordagem antropológica sobre a questão cultural, políti-
ca e de identidade dos índios do Ceará, Isabelle Braz Peixoto da Silva
afirma que

Existe um processo contínuo de reelaboração do patrimônio cultural dos


grupos sociais, a partir dos valores próprios. Em decorrência, os mecanis-
mos de diferenciação cultural são mais complexos do que se supõe à pri-
meira vista. As fronteiras culturais que separam as identidades são mó-
veis, porosas, ás vezes permeadas por hibridismos e mestiçagens. Devem,
portanto, ser compreendidas preferencialmente no campo das represen-
tações, dos símbolos e significados postos nos contextos particulares de
cada grupo – a sua totalidade -, do que buscadas nos sinais exteriores da
cultura, embora não se possa dizer que não haja uma relação entre estes
sinais e as construções das identidades (BRAZ, 2003. Pág. 22).

Discutir essa questão sempre traz riscos, segundo afirma Pordeus


Jr., em seu ensaio sobre a cearencidade, pois ela “se situa numa plura-
lidade de cruzamentos e interessa a todas as sociedade e disciplinas”
(PORDEUS JR. 2003. Pág. 12) elas levam à intercessões entre memó-
ria, história e antropologia, objetivando a construção dos paradig-
mas da identidade cearense que permeia a literatura local. Ele aden-

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sa seu pensamento sobre o tema, centrando-se na questão memorial
ao afirmar que

O pensamento social é essencialmente uma memória. Todo o seu conteú-


do é feito de lembranças coletivas, mas só subsistem quando a socieda-
de, trabalhando sobre seus quadros atuais, pode reconstruí-la, a memória
então, existe no presente. As representações da memória são reconstituí-
das para a conservação de centros materiais objetivando a preservação
das imagens. A memória passa a ser a reconstrução do passado, adaptan-
do os fatos ás imagens antigas às crenças e necessidades do presente, o
conhecimento daquilo que era original é secundário, pois a realidade do
passado não mais existe (Idem).

Nesse caso para o Amapá encontrar seus próprios caminhos e re-


solver seus dilemas teria, também que se valer da construção de bens
culturais que pudesse abrigar continuamente a discussão e a reflexão
desses valores relacionados a sua identidade, da mesma forma como
se discute hoje o papel da literatura como elemento central no pro-
cesso construtivo da “brasilidade” evidenciado principalmente na
literatura indigenista de José de Alencar, o que contribuiu decisiva-
mente para que se forjasse a noção de identidade nacional.
Entretanto, o Museu Fortaleza de São José de Macapá, que pode-
ria guardar essas imagens ou memórias materializadas só tem mes-
mo em seu espaço algumas telas do pintor R. Peixe (Raimundo Bra-
ga de Almeida), adquiridas há anos pelo Governo estadual. Não há
arquivo nem biblioteca nem prospecto informativo sobre a história
do monumento, muito menos guias treinados que possam fornecer
aos turistas maiores explicações. Os usos e contra usos são constan-
tes e diversificados. Recentemente (2016) ocorreu uma campanha da
população macapaense para evitar que houvesse um evento de nove
dias no revelim (a parte mais frágil do monumento, que nunca foi res-
taurado nem reformado), denominado “Bailão Country”. Felizmente a

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gerência local do IPHAN negou a sua realização, após o recebimento
de centenas de e-mails de protesto e de manifestações explícitas nas
redes sociais e outros meios de comunicação da cidade, atendendo o
apelo de órgãos culturais e da sociedade em geral, ainda que a direção
do Museu já houvesse liberado o local para que o evento ocorresse.
A exemplo de outros estados brasileiros que exaltam a sua iden-
tidade, como por exemplo o Ceará e o Rio Grande do Sul, no Ama-
pá foram criados alguns ícones dessa amapalidade. Desde o início do
Território Federal o governador Janary Nunes já exaltava as qualida-
des do caboclo21 , exortando-o ao trabalho e ao consequente progres-
so, que proporcionaria melhoria de vida, conforto e bem-estar para a
sua família e descendentes. O caboclo vivia em condições extremas
dentro da mata, explorado quase sempre pelo regatão22 que eventual-
mente passava nas vilas ribeirinhas para trocar produtos coletados na
floresta por gêneros de primeira necessidade como sal, açúcar, quero-
sene, carne seca, remédios, roupas, etc.
O caboclo é muito cantado na literatura local, e desde a construção da
Fortaleza de São José de Macapá ele está presente como elemento res-
ponsável em capturar escravos fugitivos. Verdadeiros panegíricos foram
escritos para exaltar o caboclo. A exemplo temos a crônica abaixo escrita
pelo primeiro governador do Amapá, Janary Nunes, publicada na primei-
ra edição do Jornal Amapá, de 10 de março de 1945, na primeira página.

O CABÔCLO
Durante 30 anos escutei as expressões com que o tratavam: fraco, indo-
lente, preguiçoso, móle, sem vontade. Nascêra para escravo. Apontavam-
-lhe um destino: ser mandado a obedecer.

21. Caboclo, palavra oriunda do tupi-guarani que significa “aquele que vem ou que mora no mato (caá
+ oca). No tempo da construção da Fortaleza de São José de Macapá existiam os “caboqueiros”, índios
que caçavam para os contingentes militares.
22. Tradicional forma de comércio espoliador e escambo de mercadorias, feito por embarcações, an-
tigamente muito comum na Amazônia.

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Janary diz que ele era “mais animal do que homem”, plantando
uma “tarefa” de mandioca e pescando ou caçando apenas quando for-
çado pela necessidade. Mas o autor fala que “é preciso conhecer este
homem, que mora isolado entre a água e a floresta na beira do Ama-
zonas e seus afluentes”. Descreve sua vida desde cedo, dizendo que

“se a mãe não pôde amamentá-lo, toma caribé ou mingau de macaxeira e,


não raro, antes do primeiro aniversário já bebeu a cuia de açaí ou de baca-
ba e provou o sabor do charque rançoso e do pirarucu seco”.

Faz uma série de perguntas desafiadoras:

“Preguiçoso? Mas qual é o único sêr que afronta de peito aberto esta nature-
za bárbara, criança ainda em plena transformação penetrando-lhe o arcanjo?
Quem é que sobe o rio remando dias seguidos, com um rancho insignifican-
te, que não alimentaria o mais sóbrio branco civilizado.? Quem fura o mato,
este cipoal de lianas povoadas de emboscadas hostis e traz de lá os frutos?
Qual é o homem que extrai as matérias primas da produção amazônica? ”

O governador-cronista fala que quem o calunia não sentiu sua


força, pois

“O caboclo só tem satélite digno no nordestino – o homem das “cheias” e


o homem das “secas” – um quase a morrer afogado e o outro quase a mor-
rer de sede, este pagando caro a sua audácia, bravos que se irmanam para
enriquecer os que os acusam. Indolente? Mas quem teve a infância e a
adolescência igual a sua? Como poderá ser vibrátil e ansioso de riquezas
quem existe sozinho numa beira de rio, iluminando-se com querosene,
prisioneiro da mais insidiosa cadeia econômica? Quem nunca aprendeu a
lêr e nem sabe para o que serve? Não o caluniemos. Que será dessa gente
quando tiver educação e saúde? São “heróis” os que voltam dos campos
de batalha depois de alguns meses de luta. Que título se dará a quem ven-

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cem o combate o combate travado cotidianamente para sobreviver, ferido
mil vezes, não por armas limpas, mas por espinhos, escorpiões, marim-
bondos, arraias, pedras, cobras, insetos e micróbios”.

O discurso se aprofunda.

O caboclo traz em si uma fortaleza inconquistável: O ESPÌRITO NACIO-


NAL. Para ele o estrangeiro é o homem de língua atrapalhada que arria
com qualquer febrezinha e que teme os mosquitos como se fossem fan-
tasmas. É o “brabo” mais errado que conhece. Copia os seus hábitos, mas
não os inveja. Toma-o como exemplo; sibaritas do culto aos deuses de
fora e do amesquinhamento dos próprios”.

A exortação de Janary Nunes é enfática. Esse é o seu primeiro dis-


curso do gênero publicado no jornal oficial do governo do Território.
O texto termina com a solicitação que perduraria por quase todo o
seu governo: “Vamos para a frente, CABÔCLO! O Brasil precisa de ti. A
morte não te vencerá mais! ”.
Mas como se sabe, não há discurso sem intenção, pois ela é sem-
pre acompanhada por uma dose de persuasão no conjunto de argu-
mentação que o enunciador usa para se dirigir ao leitor (não exata-
mente ao caboclo, pois ele mesmo diz que o caboclo não sabe nem
para que serve a leitura). Nesse caso, o discurso do governador é di-
rigido aos leitores do jornal e aos membros de sua administração que
serviriam de interlocutores desse discurso, pois este é autoritário e
tem na persuasão uma razão de existência, de domínio, de poder.
O pescador, o barqueiro que singra a imensidão das águas do Ama-
zonas sumindo em seus pequenos barcos no vai-e-vem das ilhas ao
litoral e vice-versa, também são vistos como verdadeiros ícones da
tradição amazônica; bem como os apanhadores de açaí, produto im-
prescindível na alimentação nativa; o garimpeiro, o vaqueiro, a dan-
çadeira do Marabaixo, a parteira da floresta e a curandeira/benze-

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deira, cuja valorização é a do trabalho exercido por elas no campo
ou na cidade pelos seus atores sociais, na falta de profissionais espe-
cializados.
O Exército Brasileiro também exerce importante função hoje no
espaço amapaense, como integrador do território, guardador das
fronteiras e construtor de estradas. Tem um Batalhão de Infantaria
em Macapá e outro em Clevelândia do Norte (Oiapoque), local que foi
uma das mais longínquas e sanguinárias bases de prisioneiros políti-
cos do Brasil, na década de 192023.
Outra referência dessa amapalidade é a cidade de Macapá, ba-
nhada pelo rio Amazonas, com suas ondas amareladas e rutilantes ao

23. O escritor e jornalista Hélio Pennafort foi um dos poucos autores amapaenses a escrever sobre a
vida dos prisioneiros políticos da colônia de Clevelândia do Norte, no Oiapoque, que antes de se tor-
nar uma base militar, foi seguramente uma das mais ferozes e desgraçadas cadeias de presos que este
país já teve. Através dos escritos de seu pai, que ainda muito jovem foi colonizar a fronteira em 1921,
Pennafort historiza os primórdios daquela aventura patriótica, onde muitos paraenses para lá se des-
locaram após a queda do preço da borracha ocorrida no início da Primeira Guerra Mundial. E foi no
natal de 1924 que Clevelândia recebeu os primeiros prisioneiros das revoluções de 1922/24 deportados
para lá, quase todos militares da Marinha. John Dulles conta em seu livro “Anarquistas e Comunistas
no Brasil” que “O primeiro navio a conduzir prisioneiros para a Colônia Agrícola de Clevelândia alcan-
çou seu destino a 26 de dezembro de 1924. Levou cerca de 250 pessoas que o governo qualificara de ‘os
mais perigosos’ e com ‘os piores antecedentes’. Nesse grupo havia diversos operários presos no Rio de
Janeiro e que passaram o tempo picando ferrugem do casco do navio-presídio “Campos”, alguns mar-
ginais e vadios do Rio, além de conspiradores da Marinha de Guerra. Um segundo navio chegou no
dia 06 de janeiro de 1925, com 120 rebeldes da região do Amazonas. Nas margens do rio Oiapoque, no
dia 1º de maio de 1925, seis anarquistas, reuniram-se com uns poucos ‘infelizes’ e alguns colonos locais
para cantar a ‘Internacional”. O terceiro e último carregamento incluía os aproximadamente 400 sobre-
viventes defensores de Catanduva, Paraná, que vieram para Clevelândia no navio Cuiabá, após esca-
la no Rio “onde apanharam 23 conspiradores e 133 malandros, vigaristas, ladrões, vadios e mendigos”.
Segundo consta não havia um prisioneiro sequer que não tivesse ficado doente com os sintomas agu-
dos de febre, vômito, convulsões, inapetência, inchação dos membros inferiores, diarreia e prostração
generalizada. O precário hospital ali instalado já não dava conta dos casos de malária, disenteria ba-
cilar, beribéri, polinevrite e sezões. Dulles informa ainda, baseado em cartas dos prisioneiros, que de-
pois vieram a denunciar o sistema de cárcere do local, que o tratamento dessas doenças, “via de regra,
consistia em injeções e comprimidos de quinino, que pareciam causar edemas e úlceras nas partes fe-
ridas pela agulha. Para aplicar 120 injeções por dia, o hospital dispunha de apenas duas seringas e, por
mais de uma vez, com uma só agulha”. Entre os quase mil degredados de Clevelândia poucos consegui-
ram fugir daquele inferno, através de Caiena, indo para a Venezuela, ou até Belém. Contam que até 14
prisioneiros eram enterrados por dia.

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vento e ao sol do equador e com os seus monumentos no meio do
mundo. Um radialista24 criou o slogan para ela, chamando-a de “ci-
dade joia da Amazônia”, considerando o brilho da paisagem noturna
e a luz refletida em suas casas, praças e avenidas; joia pelo contorno
de luz que faz no entorno do seu maior ponto de referência à beira da
baía: a Fortaleza de São José de Macapá.
Não se pode negar a participação ativa do ex-senador José Sarney
na literatura amapaense, pois publicou alguns livros de história do
Amapá e artigos e crônicas em jornais locais, como por exemplo este
trecho de uma crônica sobre Macapá, no dia das comemorações do
seu 254º aniversário, denominada Macapá: misto de força, ternura e
bondade.

Mas, por alguma hipótese, se o povo tucuju fosse chamado a renomear


livremente a capital do Amapá, teria todos os motivos para chamá-la de
guardiã, amiga, amor. A verdade é que Macapá é simples como uma bela
moça morena dos tucuju. Espraia-se, plana, vigiando dia e noite o desa-
guar deste lado do Amazonas. Ela tem o vento que vem do grande mar
oceano, brisa que lhe acaricia o corpo e os cabelos compridos. Macapá,
moça morena de lábios de sol e olhos de chuva. É a capital dos vastos ter-
ritórios que daqui só terminam nas barrancas do Oiapoque, passando por
lagos, rios, campos, florestas, chapadas, riachos e montanhas. A paisagem
humana de sua gente no seu falar cantado, descendo e subindo sempre
nos barcos, rio vai e rio vem, em demanda das ilhas ou dos pequenos por-
tos, povo ribeirinho que passa o tempo navegando. Macapá, misto de ter-
nura e bondade, gente boa, raça forte (SARNEY, 2012. Pág. 10).

Saborear o açaí e a bacaba com peixe ou com o camarão no bafo


também se constitui parte dessa amapalidade que envolve as relações

24. José Ney Picanço e Silva, o J. Ney, que há 40 anos apresenta o programa “Sua Excelência, o Domin-
go”, tendo passado por diversas rádios da capital amapaense.

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sociais e a condição de pertencimento num lugar cujo endereço está
localizado “na esquina do rio mais belo/ com a linha do equador25.
Necessário se faz dizer que essas situações e ícones são apenas
pontos de partida para que possamos designar a amapalidade en-
quanto parte da identidade amapaense. É preciso, ainda, falar que o
que foi referido neste item não se trata de meramente de expor o pi-
toresco, o curioso, o heroico, o “folclórico” e o senso comum, mas do-
tar essas identidades de referências culturais inclusivas e peculiares
aos amapaenses, sem a conotação ideológica que muitas vezes leva
ao conflito, a partir da observação da vivência diária com os elemen-
tos constitutivos dessa memória que fornece elementos à construção
da identidade local.
Há ainda a fabricação de um tecido social invisível onde todos os
elementos que citei, como paisagens, costumes e personagens são ex-
pressões literárias e popularmente ditas e ouvidas por meio de lin-
guagens, imagens e leituras discursivas diversificadas como elemen-
tos que vêm caracterizar a identidade amapaense.
Por ser uma construção social, a identidade ocorre em uma rela-
ção dialógica com o Outro. E por eles estarem indissoluvelmente liga-
dos à memória, não se diluem, pois sem lembranças o sujeito social
fica sem referência.
Posto isto, creio que os acontecimentos da história perpassam pela
memória coletiva, quando, por exemplo, a Fortaleza de São José de
Macapá é vista pela população amapaense como um ícone da ama-
palidade, mas também como um antigo e tenebroso lugar de domina-
ção dos homens; como prisão, cuja memória dos acontecimentos an-
tes e pós-1964 ainda assusta como um lugar sangrento de um tempo

25. MEU ENDEREÇO - Música de Zé Miguel e letra de Fernando Canto - Intérprete: Zé Miguel -Meu
endereço é bem fácil / É ali no meio do mundo / Onde está meu coração, meus livros, meu violão /
Meu alimento fecundo / A casa por onde paro / Qualquer carteiro conhece / É feita de sonho e linha /
Que brilha quando anoitece / Na minha casa se tece / Mesura na luz do dia / Pra afugentar quebranto
na hora da fantasia / É fácil o meu endereço / Vá lá quando o sol se pôr / Na esquina do rio mais belo /
Com a linha do equador.

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de práticas e perigos advindos da noite escura da ditadura militar que
durou 21 anos com seus episódios e relatos que veremos em capítulo
exclusivo desta tese26.
Assim, como nos referimos antes, a memória é a identidade em
movimento, em ação plena e permanente. Logo, a amapalidade ca-

26. Com o consentimento da gerência do Museu da Fortaleza de São José de Macapá e da Guarda Ter-
ritorial que ali se aquartelava, realizei um pernoite em suas dependências após ter sido informado que
um famoso programa de televisão teria verificado se procedia a ”existência” de fantasmas naquele es-
paço. Na noite do dia 07 de abril permaneci acordado observando e fotografando tudo o que se passa-
va nas instalações do prédio, onde duas vigilantes também faziam suas rondas e um soldado, que es-
tava destacado para me acompanhar, dormia profundamente. Segundo o programa, “São diversos os
relatos de assombrações ou visagens fantasmagóricas neste local, indo desde negros descalços que
surgem do nada na praça principal, como de soldados que vagam sem rumo pelo local. Há quem diga
que muitos escravos tentaram escapar pelo desaguadouro, o poço que fica no centro da praça de guer-
ra. E que até hoje as vozes deles podem ser ouvidas ali. Barulhos estranhos também acontecem nas ga-
lerias que, no passado, serviram de prisão. Ali, uma vigilante conta ter sido perseguida por fantasmas.
Outra assombração que testemunhas contam já ter visto na Fortaleza, é a de um padre sem cabeça que
flutua pelos baluartes do forte fumando um cigarro, na altura do que seria localizada a cabeça do mes-
mo”. (Programa Fantástico – TV Globo de 19 de agosto de 2012). A minha solicitação foi feita conside-
rando a Antropologia da Emoções, disciplina que “pretende discutir a relação entre indivíduo e so-
ciedade sob o prisma das emoções. Tomadas tanto pelo senso comum ocidental quanto por algumas
teorias clássicas como baseadas em uma ‘realidade’ psicobiológica, as emoções foram durante muito
tempo tratadas como experiências universais ou então profundamente individuais, escapando assim
ao crivo dos domínios social e cultural. Até por isso, este foi um tema pouco presente nas teorias clás-
sicas nas ciências sociais e só nas últimas décadas ganhou a atenção da antropologia principalmen-
te. Nesta disciplina se discute as questões teóricas colocadas em foco pelas análises das emoções nos
poucos autores clássicos que as abordaram – Durkheim, Mauss, Simmel e Elias – bem como em traba-
lhos mais recentes, pondo em foco a relação entre emoção, sensorialidade e corpo, assim como as ex-
periências emotivas nas sociedades ocidentais modernas”. (REZENDE:2009).
Na realidade nada vi ou ouvi de estranho, a não ser o murmúrio das águas do rio entrando com a maré
pelas galerias subterrâneas, o barulho da chuva e a forte ventania que passa pelos prédios internos as-
soviando. Entretanto, esses barulhos lembram mesmo passos e gritos de pessoas, se assemelham ao
arrastar de correntes e há constantes sombras se mexendo entre os espaços do monumento como se
fossem seres em desespero, tentando se comunicar. Fiquei lá até o amanhecer, debaixo de uma forte
chuva, duvidando, refletindo como nossos sentidos podem nos enganar e construir ilusões. Daí que
essas tensões arraigadas no imaginário popular causam, a meu ver uma espécie de auréola que dá ao
monumento uma condição anímica. Nesse processo não é de se desprezar que mesmo não se “vendo”
nada estranho, a cada som vindo como um grito lancinante do fundo da cisterna e das velhas masmor-
ras, a cada imagem projetada nos paredões e escadarias, mesmo que fossem do vento e das luzes que
dançavam intermitentemente, parecia, sim, ser projetado ali dois séculos e meio de sofrimento das al-
mas e dos corpos de centenas de trabalhadores braçais obrigados que eram a trabalhar de sol a sol em
nome da conquista lusitana.

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rece também de reflexão sobre uma memória que liberta poten-
cialmente, e que se exponha, para que subsista na atualidade a fim
de reconstruir no presente e no futuro suas representações imanen-
tes à identidade, pois sem a memória coletiva nada subsiste e os su-
jeitos são aniquilados, sobretudo pelo deslembramento e pelo silen-
ciamento.
Ao falar disso penso enfocar neste texto uma contribuição para o
entendimento do zeitgeist27 amapaense, não apenas para panorami-
zar o espírito do tempo (local), mas para encaminhar estas reflexões
ao centro do texto e razão desta tese que é a literatura escrita sobre a
Fortaleza de São José de Macapá para tratar analiticamente as identi-
dades locais. Nesse caso os símbolos e significados presentes nessa li-
teratura não são meros esforços dos autores em dizer o que pensaram
ou pensam sobre o monumento, mas creio que eles também realizam
a tarefa de torná-los transparentes, translúcidos ao evocar suas mani-
festações artísticas, suas criações solidificadas por meio dos seus di-
versos intérpretes, porque na poesia e na literatura o escritor lida com
palavras e elas tem o dom de refletir, mostrar e mudar as sociedades.

1.9. IDENTIDADES EM MOVIMENTO E O QUE FICA


Ao colocar estas reflexões, não poderia ficar sem dizer que, tal como
o espinheiro forte, que é a tradução do nheengatu da palavra tucuju28
, tal como a árvore palmácea da pupunha que tem espinhos no cau-
le, a história amapaense tem que ser escrita, subindo por ela para co-
lher os frutos sem se ferir. Se os escritores escrevem para construir

27. Ao decidir incluir termo tentei evitar que se confundisse com o conceito de ethos que na socio-
logia é uma espécie de síntese dos costumes de um povo. O termo indica, de maneira geral, os tra-
ços característicos de um grupo, do ponto de vista social e cultural, que o diferencia de outros. Seria
assim, um valor de identidade social. Ethos que significa o modo de ser, o caráter. Isso indica o com-
portamento do homem dando origem a palavra ética.(Wikipédia, a enciclopédia livre. Acessado em
25/08/2008. 16h31)
28. Eram também assim chamados os Índios que habitaram as terras do Amapá durante a coloniza-
ção da Amazônia

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sua própria identidade, que também é reflexo de um jogo de espelhos
existente na realidade e nas suas imaginações, é necessário a exigên-
cia de um certo distanciamento do objeto, para dar a ele um senti-
do, embora se mergulhe no conceito da identidade como “celebração
móvel” (HALL, 1997, Op. Cit.), ou seja, tudo é dinâmico na socieda-
de, pois esta molda a identidade a partir da memória e a torna um
processo.
O Amapá passou e vem passando por diversos momentos de cri-
se. Antes da transformação em Estado todos os governadores eram in-
dicados, como veremos nos terceiro e quarto capítulos, desde Janary
aos que ficaram até a primeira eleição para governador em 1990. To-
dos eles, na tentativa de dar um ar de modernidade à capital, foram
fazendo inúmeras transformações estruturais ao leve sabor da vonta-
de de quem não foi eleito pelos amapaenses, mas que estavam traja-
dos de “boas intenções”. Então fizeram intervenções sobre os prédios
públicos, demolindo-os ou transformando-os à guisa de reforma, pre-
judicando inclusive o nosso maior patrimônio arquitetônico, a For-
taleza de São José de Macapá. Mais tarde a cidade cresceu e foram
erigidos novos e bonitos prédios, com muito dinheiro federal para re-
ceber o Estado que viria. Ao lado disso também foram nomeando to-
dos eles, bem como as ruas e praças que se abriam na paisagem urba-
na. Escolas eram batizadas com o nome de parentes dos governantes,
e deles próprios, numa franca demonstração de bajulação e cumpli-
cidade de ações. E assim Macapá foi mudando até quase se tornar ir-
reconhecível. Não há dúvida que muita coisa na cidade mudou para
melhor, adequando-se às “exigências do progresso”, embora ela tenha
pago um preço irreparável com o advento das invasões das ressacas
(zonas urbanas de várzeas) por populações migrantes e outras situa-
ções semelhantes e conflituosas.
A meu ver não está em jogo apenas a questão da identidade local,
seja simbólica ou social, pois, a identidade fica marcada pela diferen-
ça, um problema de “crise de identidade” (GIDDENS:1990). Esta crise

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é característica da modernidade tardia, fenômeno que só faz sentido
devido os efeitos da globalização que atuam no contexto local de for-
ma a mudar a homogeneidade cultural da comunidade.
Desta forma pode-se esperar no Amapá todo tipo de mudanças,
inclusive sociais e de movimentos políticos, pois o mercado global
pode levar ao distanciamento da identidade ou, de forma alternativa,
a uma resistência que pode fortalecer e reafirmar a identidade social
local (ou nacional) ou levar ao surgimento de nova posição de identi-
dade (WOODWARD:2008). Quero pensar apenas que o tempo passa,
os homens passam, mas a memória continua. A memória é um deci-
framento que passa por gerações. Somos isso num tempo de transfor-
mação e de continuidade, de acordo com Pierre Nora (NORA, 1993).
A crise de identidade por qual passa o Brasil e consequentemente o
Amapá certamente estimula e mescla a memória coletiva e indivi-
dual num processo de retroalimentação, de perdas, de descobertas,
de coisas que as pessoas lembram ou esquecem. Mas nenhuma mu-
dança apagará tão rápida a memória coletiva, pois, segundo o desta-
que de Ecléa Bosi é possível afirmar que somente fica aquilo que sig-
nifica (BOSI, 1995).
É de Octavio Paz, em O Labirinto da Solidão, a ideia de que as for-
mas geográficas dos países tenham a ver com a identidade de cada
local29 .
Ele faz, nesse livro, uma referência não-convencional do México
e dos seus habitantes. Esquece os paradigmas, as pretensões cientí-
ficas, as estatísticas e joga com a intuição, e com a visão simbólica.
A Geografia pode encerrar, aos olhos de Octávio Paz, o arquétipo da
vida histórica e cultural de um povo. Ele diz que cada história de um
povo é simbólica porque são manifestações visíveis de uma realidade
escondida. Diz ainda que

29. Octávio Paz foi poeta e escritor mexicano. Ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 1990.

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Cada história é uma geografia e cada geografia uma geometria de sím-
bolos: a Índia é um cone invertido, uma árvore cujas raízes penetram no
céu; a China é um disco imenso - ventre, umbigo e sexo do cosmos; o
México se ergue entre dois mares como uma enorme pirâmide trunca-
da: seus quatro costados são os pontos cardeais, suas escadas são os cli-
mas de todas as zonas, seu elevado planalto é a casa do sol e suas cons-
telações. Não se faz necessário recordar que para os antigos o mundo
era uma montanha e que, tanto na Suméria quanto no Egito e quanto
na América medieval, a representação geométrica e simbólica da mon-
tanha cósmica foi a pirâmide. A geografia do México tende à forma pi-
ramidal, como se existisse uma relação secreta, mas evidente, entre o
espaço natural e a geometria simbólica, e entre esta e o que chamei a
nossa história invisível. Arquétipo arcaico do mundo, metáfora geomé-
trica do cosmos, a pirâmide mesoamericana culmina no espaço mag-
nético: a plataforma-santuário. É o eixo do universo, o local onde se
cruzam os quatro pontos cardeais, o centro do quadrilátero: o fim e o
princípio do movimento. Uma imobilidade onde e se origina a dança do
cosmos (PAZ: 1999, Pág. 242).

Essa é a visão própria de um poeta, de um descendente dos visio-


nários astecas, do sangue índio do que ele era portador. Gilberto Ku-
janski (1996) também fala sobre essa visão. Ele pergunta se a Índia é
um cone invertido, a China uma esfera, o México uma pirâmide: e o
Brasil, o que é dentro dessa linguagem? O Brasil, diz, e repete Heitor
Villa-Lobos, tem a forma de um coração. Daí pode-se inferir muita
coisa. O que é o coração? É a delicadeza, a sentimentalidade do bra-
sileiro. O coração exprime também a intimidade, um dado cultural
muito precioso. Está na arte e na música popular, como também na
erudita. Está na literatura, com Machado de Assis, que é um escritor
de intimidades. Basta lembrar o prodigioso conto “A Missa do Galo”,
uma história de troca de intimidades. Silêncio, coisas não explícitas,
reticências, entrelinhas. Ele diz:

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Mas o nosso coração simboliza também outra coisa: o espírito brasileiro.
Espírito da potência construtiva do Estado, da moral, do direito. Exprime-
-se, nesse sentido, por uma constante que se vê na história, que é a procu-
ra por um centro. Não um centro ideológico entre direita e esquerda, mas
um centro da nação, da sociedade, do nosso próprio ser (Idem: 1996).

Kujanski afirma que a ideia do centro pode ser comparada à figu-


ra da mandala, aquele conjunto de círculos concêntricos da cultu-
ra indiana que simboliza a integração do universo e do homem. Ele
crê que o Brasil busca uma integração, um centro, uma organização.
É algo que está no subconsciente e se reflete, por exemplo, nos símbo-
los nacionais. A bandeira brasileira é composta de um losango ama-
relo em um campo verde, e no centro uma esfera. Brasília, foi cons-
truída exatamente no meio geográfico do território nacional. São
coisas conscientes, mas que estão no inconsciente do país, das pes-
soas, que funcionam e que, de alguma maneira, estão nos falando, es-
tão exprimindo a força de suas identidades históricas, simbólicas, vi-
síveis ou não.

1.10. O LOSANGO AMAPAENSE


A configuração geográfica do Amapá se assemelha a um losango em
pé. Segundo Chevalier e Gheerbrandt,

é considerado um símbolo feminino ou da feminilidade. Desde os pri-


mórdios da humanidade nas escritas das cavernas o losango representa
a vulva e, por conseguinte, a matriz da vida. Outro aspecto da sua simbo-
logia é que seria a porta de entrada para os mundos subterrâneos, pas-
sagem iniciatória para o ventre do mundo, a entrada na residência das
forças ctonianas. Nos povos da América Central é muito utilizado pe-
las mulheres como desenhos nas suas roupas, adornos ou ornamentos e
também aparece junto de muitas das representações de suas deusas. Para
os chineses é um dos oito emblemas principais e também considerado o

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símbolo da vitória. Os adivinhos o consideram sinal de felicidade no amor
quando aparece nas leituras de borra de café. Sua representação quando
feita pela associação de dois triângulos isósceles unidos pelas suas bases
simbolizaria o intercâmbio entre o céu e a terra, o contato entre os mun-
dos superior e inferior ou mesmo a união dos dois sexos (CHEVALIER E
GHEERBRANDT,1999, Pág. 558).

Considerando que o sexo feminino é maioria no Amapá (Idem:


IBGE,2010), e que elas expressam muito bem essa identidade que co-
meça na floresta, com as índias, as caboclas e as ribeirinhas, as partei-
ras, as benzedeiras e pajés, as dançadeiras de Marabaixo e Batuque e
a lenda amazônica das Amazonas, o Estado do Amapá pode ser visto
dessa forma.
A Bandeira do Estado, da mesma forma que suas armas e brasões,
usam o símbolo do losango com o desenho da Fortaleza de São José
de Macapá em pé, notadamente para mostrar o poder das armas que
o Estado detém constitucionalmente. Na realidade diversas institui-
ções civis e militares usam não só o quadrilátero da FSJM que tem lo-
sangos nos seus baluartes para exprimir geometricamente as direções
apontadas como se fosse uma estrela de quatro pontas, suprimindo o
revelim que também é um losango. O símbolo é parte de uma histó-
ria invisível, mas evidente nessa simbologia que dá ao Amapá a capa-
cidade de união do homem e da mulher, a multiplicação de seus des-
cendentes e a virtual confiança no futuro de que falava Janary Nunes
no início do Território Federal, há cerca de 70 anos.
Em trabalho anterior a este me refiro a uma relação constante na
paisagem macapaense sobre a relação simbiótica entre um dos ba-
luartes (Em cuja ponta existe uma guarita em forma de falo) da For-
taleza de São José de Macapá e a cidade (onde existia um porto e a ci-
dade em formação nos anos 40/50). Era a cidade e a fortificação que,
simbiontes, dependem um do outro e copulam inertes na paisagem.
Algo como um

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olhar de sedução entre o baluarte (falo/masculino: a guarita é o pênis
dessa relação) e a cidade (ônfalo: masculino/feminino/o umbigo: cicatriz
de um parto necessário para manter o poder colonial). O olhar de um se-
duz o outro. Um domina o outro aos olhos do espectador da tela. Então a
realidade diz que há uma fusão com a paisagem (CANTO, 2013. Pág. 120).

A guarita do baluarte Nossa Senhora da Conceição, tal como uma


sentinela, contempla o rio Amazonas, fustigada pelas intempéries re-
gionais desde que ali foi colocada pelos escravos que trabalharam na
sua ereção. Ela se abre como uma moldura à paisagem. Nela se im-
pregna uma visão dinâmica como as identidades dos que passam no
meio do rio, nas frágeis embarcações dos ribeirinhos e dos que cami-
nham ao seu derredor. É uma visão memorial que se fundiu e se fixou
na retina do observador. Mas, aos olhos desse espectador ela se movi-
menta com a lembrança, principalmente com a de quem viveu o tem-
po que a paisagem existia de fato, antes das inúmeras transformações
da paisagem anterior.
Por ter a forma cartográfica losangular, poderia dizer de manei-
ra suave e poetizada que o Amapá possui uma simbologia feminina,
porque se permite esta interpretação. Uma interpretação, aliás, ro-
mântica do eu-lírico dos poetas, que ao lado das figuras geométricas
projetadas na configuração arquitetônica da Fortaleza de São José de
Macapá, dão margem a suas elucubrações literárias.
Hoje, longe dos tempos da colônia, quando da concepção e cons-
trução trabalhosa da fortificação, e dos tempos obscuros pelos quais
todo o país passou, falar assim de uma literatura das pedras feitas
para lhe dar substância memorial, é falar da identidade de um povo
que a tem visivelmente deslocada em outras, multiplicadas por di-
versos fatores culturais e econômicos. Nessa multiplicidade contínua
e essencial se vive novas formas de entender as perguntas feitas a si
mesmos, enquanto amapaenses, na expectativa de um tempo bom,
procurando caminhos sob as cores de sua bandeira, de seus valores

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intelectuais e práticos e de suas “identidades possíveis” (HALL. Op.
Cit. Pág. 14.). Este, então, no conjunto de sua cultura, é o espírito de
sua época, seu zeitgeist.

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2
OLHARES CRUZADOS DE BALAS E FLECHAS:
AS CARTAS DOS CONSTRUTORES NO
CONTEXTO DA EDIFICAÇÃO (1764-1782)

O presente capítulo ancora a primeira temporalidade deste trabalho


no qual estão presentes algumas das peças epistolares escritas pelos
primeiros construtores da FSJM no período de 1764 a 1782 e enviadas
às autoridades coloniais sediadas em Belém.
Tais instrumentos de análise são, de fato, aspectos preconizados
pela sociologia da literatura no dizer de Antonio Cândido (CÂNDI-
DO:2000. Pág. 1-12), pois ela enquanto ciência não propõe o valor da
obra em si nem tem a preocupação estética da crítica, mas quer estu-
dar, através das cartas, neste caso, as influências da organização so-
cial, política e econômica presentes nesses escritos, considerando o
seu teor das descrições sobre o andamento da obra nos anos que vão
se sucedendo na sua ereção. Desta forma, é relevante pensar sobre a
memória histórica da obra, considerando, então, o olhar do estrangei-
ro sobre a Amazônia e entender o esquecimento de alguns fatos que
ocorriam no cotidiano da obra e as relações sociais ao redor dela.

2.1. A MISSÃO DOS HOMENS E DA OBRA COLONIAL


O observador comum que vê a FSJM na paisagem urbana, à beira do
rio, hoje restaurada e utilizada como museu, possivelmente nem ima-
gina o custo empregado para construí-la, a mão-de-obra utilizada e as
condições ambientais, econômicas e sociais da época. Ali, na foz, foi

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erguida uma construção militar de grande porte que serviu para mar-
car o território da conquista lusitana na Amazônia, e com isso mostrar
o seu poder bélico para amedrontar possíveis invasores.
Essas constatações são imanentes às cartas enviadas pelos cons-
trutores e autoridades coloniais sediados em Macapá (fundada a 04
de fevereiro de 1728, mas que já possuía um destacamento militar des-
de 1738) para a sede da província do Grão-Pará, em Belém, especial-
mente para os governadores do período de sua construção (oficial-
mente de 1764 a 1782). Estão presentes, também, essas condições, em
todo o arcabouço ideológico de construção do espaço e conquista de
territórios, visando a expansão mercantilista de Portugal e controle
absoluto das terras da Amazônia. Todo um processo político estaria
sendo preparado pelo governo português bem antes da sua edifica-
ção, pois a região era amplamente disputada com outros países euro-
peus desde o século XVII (CASTRO:1999, Pág.129/193).
Os grandes problemas enfrentados na maior parte da construção
ocorreram no reinado de D. José I (1750-1777), período em que Mar-
quês de Pombal, Ministro do Reino, criava e determinava os projetos
de Portugal. Ele enviou inclusive, em 1751, para governar a Província
do Grão-Pará e Maranhão, o seu irmão Francisco Xavier de Mendon-
ça Furtado (Idem).
Citado por Baena, Mendonça Furtado, ao visitar Macapá pela pri-
meira vez (1752) “tanto o enamorou a sua localidade que chegou a ex-
pressar em um dos seus ofícios para a Corte que aquela terra era um
arremedo das Vilas de Cintra e Colares no Termo de Lisboa” (BAE-
NA, 1969. Pág. 60). Após voltar das expedições de demarcação das ter-
ras nos rios Negro e Solimões, em 1758, o governador funda Macapá
como vila e no ano seguinte retorna à Corte para assumir o cargo de
Secretário de Estado de Negócios da Marinha e Domínios Ultramari-
nhos. Antes, porém, ele sugere a ereção de uma fortificação em Ma-
capá, tendo em vista sua preocupação com os franceses (CAVALCAN-
TI, 1997. Pág. 26/7).

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As cartas tratavam de narrar os acontecimentos do dia-a-dia da
construção e, nelas estava implícito, enquanto discurso do coloniza-
dor, o objetivo da missão de construí-la. Os documentos falam da vila
de Macapá, das dificuldades, roubos, bebedeiras, adultérios e mor-
te; das demoras de remessa de material para a obra e das canoas que
vêm da ilha do Marajó para abastecê-la; da morte de gado, da extra-
ção de pedras, da vinda de 200 pretos de Angola, das experiências de
cozimento e secagem de tijolos, e de todo um contexto espacial e so-
cial da obra.
Há uma carta do senado da Câmara de Macapá que informa que
a vila cada vez mais vai crescendo por causa da magnífica e Real obra
da Fortificação. Muitas doenças grassam no lugar da construção, en-
tretanto, não há remédios eficazes. Faltam lápis, pinceis, carmim
e tinta da China (nanquim) para os riscos (desenhos) necessários à
obra e, ao lado de tudo isso, está claramente exposto o discurso que
caracteriza a luta pelo poder entre as principais autoridades da vila e
da obra da fortificação.
A importância da Fortaleza São José de Macapá, aliás, reside na
sua imponência e grandeza encravada na beira do rio e louvada nos
dias de festas cívicas. Enquanto feito histórico diz-se que ela cum-
priu a sua missão de resguardar a entrada do rio Amazonas, apesar
de nunca ter disparado um tiro de canhão, sequer, contra algum na-
vio inimigo (Idem).
As obras da FSJM representaram a fixação da população e a for-
mação política do lugar. Durante a sua construção, as cartas e rela-
tórios emitidos pelos seus construtores tornaram-se peças informa-
tivas de valor literário, não apenas pelo que indicam sobre a obra em
si, mas pelos aspectos inerentes ao comportamento social de homens
e mulheres que se tornaram rudes pelas circunstâncias, individualis-
tas pelas necessidades e até, às vezes, impotentes diante das injustiças
e violências por eles experimentadas. Esses documentos também fa-
lam de saudade da família, de pedidos de promoções, de listas de re-

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médios mais usados para tentar sanar as doenças e também das preo-
cupações com detalhes de figuras e medidas de pedra, “que sobre a
porta principal da Fortaleza deve conter uma daquelas inscrições que
em semelhantes monumentos passam à memória de seus fundado-
res aos séculos futuros” (Cód. 200, doc.07, de 10.07.1769). Nessas car-
tas, notadamente Henrique Galúcio (O principal arquiteto e cons-
trutor da obra), Henrique João Wilkens, João Geraldo de Gronfelds
demonstram, por meio de suas cartas, grandes conhecimentos sobre
engenharia.
Assim, com essas cartas, pode-se pensar que as fronteiras da cultu-
ra se dilatam, e que se as olharmos como peças literárias, os espaços
antes delimitados, sobretudo na literatura, perderam seus limites. En-
tão a História da Amazônia se mescla no seu sentido interpretativo, a
uma literatura real, escrita a sangue e sofrimento à luz tênue de lam-
parinas e velas, com seus olhares diferenciados sobre a imensidão de
terra que os portugueses não tinham a exata noção de possuírem.
Independentemente do intento de fazer literatura, o que os cons-
trutores escreveram em suas cartas também é parte do discurso ilu-
minista da época pombalina e reflete a experiência hegemônica dos
conquistadores, que a fogo e ferro de balas e a golpes de espada cons-
truíram a Fortaleza de São José. Tais textos também podem ser vis-
tos como elementos literários, que vão além dos meros relatórios que
detalham os passos do avanço das obras ou como escritos que con-
tam uma aventura, onde cada carta é um pedaço da construção des-
sa memória.
Criar, então, um discurso literário/histórico/artístico/mítico e mi-
diático sobre sua imagem, foi tarefa de todos aqueles que passaram
por esse espaço, construindo contornos das identidades locais, mes-
mo às pressões das diferenças, das alteridades e das diversidades cul-
turais e ambientais. Buscar a relação entre os insumos literários que
os construtores da Fortaleza escreveram durante a sua ereção e os que
vêm sendo produzidos na atualidade, além de outras expressões e lin-

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guagens artísticas e comunicativas, é uma forma de contribuir para o
entendimento das identidades amapaenses. Há, nessa ideia, um com-
plexo processo de análise a ser observado porque a história da Forta-
leza de Macapá traz, também, uma história daqueles que foram su-
postamente vencidos, registrada pelos vencedores, que tinham suas
estratégias de sobrevivência e hegemonia, onde está expressa a rela-
ção do homem com a natureza de forma significativa, pelo que expe-
rimentaram na construção da obra (BHABHA, 2007).
E essas estratégias são muito bem produzidas no período. O pa-
pel ocupado pelos colonizadores, a ordem e o controle eram contra-
postos nas adjacências da obra por negros, degredados, índios e sol-
dados desertores que protagonizaram uma “original aventura para
conquistar a liberdade. Com suas próprias ações reinventaram sig-
nificados e construíram visões sobre a escravidão e liberdade” (GO-
MES, 1999. Pág. 225). E isso emerge no cotidiano dos homens e mu-
lheres daquela época nos documentos epistolares dos construtores.
Seus textos constituem peças importantes para que se possa visuali-
zar o painel da produção literária, das artes e da mídia contemporâ-
nea sobre a FSJM, pois carregam vivências, e como tal são memórias
coletivas de um tempo. Por outro lado, foi tarefa desta pesquisa obser-
var as narrativas atuais de escritores, que utilizam a edificação de vá-
rias maneiras, apropriando-se ou não de seus significados, e que lhes
dão interpretações simbólicas diversificadas, pelo teor dos discursos
que produzem sobre ela.
Mas por ser objetiva a questão literária, enfoco um trecho de um
trabalho da escritora Esmeraldina dos Santos30, afrodescendente e

30. Esmeraldina dos Santos nasceu no dia 11 de janeiro de 1955 no bairro do Laguinho, em Macapá.
É filha de Maximiano Machado dos Santos (Mestre Bolão) e de Francisca Ramos dos Santos (Tia Chi-
quinha), ambos nascidos no Curiaú. Tem duas filhas e quatro netos. Estudou na Escola São Benedito
e na Paulo Freire. Em 2009 estudou na Etapa Extra da Escola Jardim Felicidade e concluiu seu ensino
médio na Escola Estadual Maria do Carmo Em 2002 publicou seu primeiro livro, intitulado Histórias
do meu Povo e em 2011 lançou o segundo livro e CD As Aventuras de Dona Florzinha. Nesse ano via-
jou pelo país no Projeto Sonora Brasil cantando Marabaixo em 56 cidades do Norte, Nordeste e Cen-

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moradora do Quilombo do Curiaú, localizado a 8 km de Macapá, que
expressa bem, a meu ver essa relação.

FORTALEZA DE SÃO JOSÉ DE MACAPÁ


Viviam negros escravos com direito à pena, ao entrar naquele forte sen-
ti dor, como se estivesse pegando chicotadas, vieram lágrimas aos meus
olhos foi quando pensei em meus antepassados, quando escravos traba-
lhavam na construção do forte.
Caminhos obscuros, pedras e até mesmo esgoto encontravam pelo ca-
minho, morreram pessoas que de lá tentavam escapar.
Olhei a cada pedra como se delas saíssem uma voz me chamando
como se alguém de minha família estivesse me chamando.
Veio em meu pensamento uma lembrança muito forte, foi preciso que
eu me retirasse daquele lugar, passei as mãos naquelas muralhas, senti
um gemido como se alguém tivesse me pedindo socorro, alguém tentan-
do me dizer “eu estou aqui”.
Cada pedra tem uma gota de lágrima daqueles negros que tanto luta-
ram por sua libertação.
Olhava para aquelas celas escuras, não deu para esquecer as pessoas
que viviam presas ali, refleti sobre a tristeza que tanto sentiam nas muitas
vontades de fugas que por suas cabeças passavam.
Hoje um filme passa em minha cabeça, como viviam aquelas pessoas?
A angústia que sentiam de não ter sua liberdade.
Quando nasci há 47 anos cheguei a conhecer algumas pessoas que ali fi-
caram presas, para eles era dolorido relembrar a angústia que ali viveram.
As pessoas ainda não acreditam no que está acontecendo comigo, é o
poder da vida, acreditei no eclipse do sol, eu falei que era uma mudança
na minha vida a partir daquele dia em diante e aqui está a prova, poder é
vencer, eu quero, eu posso fazer.

tro-Oeste. Em 2014 percorreu no mesmo projeto por 49 cidades do Sul e do Sudeste, e no final do ano
lançou o livro O Melhor caminho é a Escola. Possui, hoje o diploma do curso de Extensão Universida-
de da Mulher, da UNIFAP.

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Esta é a história de meu povo e que não terminou – somos muitos, que
se perdem no tempo. Aqueles que ficaram não se separam, vivem esta his-
tória que nem mesmo o tempo poderá apagar (SANTOS, 20012. Pág. 38-9)

A percepção da autora ao entrar na FSJM e ter vivido uma emoção


sem precedentes na sua vida e sentir a dor das chicotadas no corpo,
decerto tem cunho psicológico e emocional, uma vez que a escravatu-
ra atingiu seus ancestrais. Mas é pela sensibilidade que pulsa em seu
texto, que tange uma espécie de transferência temporal quando rece-
be o chamado de “eu estou aqui”, e a “angústia que sentiam de não ter
sua liberdade”. Aqui a escritora Esmeraldina Santos descreve a FSJM
como o lugar da prisão e da tortura, das tentativas frustradas de fugas,
de dor e sofrimento. Ela lamenta em seu canto a total falta de liberda-
de e assevera que a história de seu povo não terminou, porque sabe
de sua luta melhor que ninguém. Assim, a autora traz em seu texto
a dimensão sociológica do período colonial nesse local, em uma lin-
guagem simples, mas que reflete a sedimentação e a permanência do
negro até hoje no território amapaense.
De acordo com a historiadora Verônica Luna (2011), em 1765 che-
garam os primeiros africanos em Macapá, que em 1773 eram 325 e em
1788 (ainda durante a construção da FSJM) já somavam 750. Luna in-
forma que que esses escravos viviam expostos às doenças tropicais
como a malária, a cólera, a febre amarela e à varíola. Recebiam como
alimentação básica apenas a farinha e o peixe e, quando livres delas,
eram utilizados pelos colonos, militares e administradores com pos-
ses. Viviam no hospital da vila, doentes.
Grande parte dos trabalhos de indígenas e africanos era realizada
na retirada de pedras brutas das pedreiras dos rios Anauerapucu e Pe-
dreira; trabalhavam como remadores de canoas para o transporte das
pedras até a fortificação, onde eram lapidadas. Também eram carre-
gadores de areia e piçarra e barro para as olarias e aterro das muralhas
e dos baluartes (Idem. Pág. 86).

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2.2. O OLHAR DO OUTRO E UM CENÁRIO DE TENSÕES
É interessante notar que à medida em que o tempo passa e as cartas
vão se adensando, seus autores são seres potencialmente em alteri-
dades e podem mesmo ser comparados ao etnólogo, quando este, em
seu trabalho de observação, renuncia a ser “o único sujeito do discur-
so, mas são também seu objeto dentro de uma cultura” (LAPLANTI-
NE. Op. Cit. Pág. 178). Diante de uma situação inusitada ou pelo me-
nos nova para o etnólogo, este se esforça para apreender “da forma
mais próxima possível a língua dos homens da alteridade e em trans-
miti-la na nossa língua” (Idem).
Porém, os autores-colonizadores e suas cartas, tal como num ro-
mance, desenvolvem inequivocamente um interesse pessoal para os
pequenos detalhes dos minúsculos fatos, muitas vezes por não terem
a noção do dimensionamento do que constroem e de não anteverem
o seu significado naquele instante.
Como na literatura, o olhar de quem descreve fatos ficcionais ou
reais se direciona à ambientação onde perpassam os personagens, o
objeto detalhista das cartas a descrever o dia-a-dia do local da obra
denota a pluralidade – ou diversidade – social das mesmas. Aliás se
trata de uma situação de conflito, que traz tensões pela personalida-
de de cada um e pelos atos cometidos por eles, que têm que ser co-
municados à autoridade colonial. Então, o limite das narrações é es-
tabelecido pelas regras comportamentais, apesar do esforço do olhar
absoluto, do olhar total. Mesmo assim as transgressões são muitas e
bastante diversificadas.
Ao lado da construção e dos propósitos para os quais foi feita, ini-
cia-se também um intrincado processo de relações socioculturais
causado pela presença do engenheiro, sargento-mor do Exército Por-
tuguês, Henrique Antonio Galúcio, o encarregado das obras, que já se
encontrava no Brasil desde 1753, a convite do capitão-general Francis-
co Xavier de Mendonça Furtado, para trabalhar na Comissão Demar-
cadora de Limites nesta região do Brasil. Galúcio nasceu em 1728, em

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Mântua, Itália; era cartógrafo e iniciou suas atividades no Brasil com a
feitura do Mapa do Bispado do Pará, depois elaborou a carta da Capi-
tania do Piauí (CARVALHO, 2009).

Colocado a serviço de Fernando da Costa Ataíde Teive, governador do


Pará, recebe a missão de fazer o “risco” (planta) de Macapá, onde chega
acompanhado dos engenheiros Gaspar João Geraldo Granfelts, Domin-
gos Sambucette e Antonio Landi, bem como dos astrônomos João Ânge-
lo Cunceli e Miguel Antonio [grifos meus]31 (*), para estudarem o terreno,
as marés, e clima, para elaborar a planta, com as áreas definidas do po-
voado, da segurança e da fartura. O trabalho foi realizado e submetido ao
rei de Portugal, o qual foi aprovado, tendo o próprio rei nomeado Galúcio
engenheiro responsável pela construção da Fortaleza de Macapá, em 22
de janeiro de 1764 (BARBOSA, 1997. Pág. 128).

Não tenho a intenção aqui, de realizar uma biografia do mais im-


portante construtor da Fortaleza de Macapá, ou das outras persona-
gens marcantes da construção da obra, mas mostrar o sentido des-
sa presença através de uma literatura às avessas, narrada pelo próprio
Galúcio em suas cartas ao governador da Província, e por outros en-
genheiros-ajudantes, como o capitão João Henrique Wilkens 32, e
o comandante da Praça de Macapá, coronel Nuno da Cunha de
Athayde Varona.
Na medida em que a obra foi construída, ocorreu uma cadeia de
eventos que determinaram a agonia do engenheiro Henrique Galú-

31. A grafia correta dos nomes que aparecem constantemente nos documentos dos códices do Ar-
quivo público do Pará é a seguinte: Fernando da Costa de Athayde Teive, Gaspar João Geraldo Gron-
felds, Domingos Sambucetti, Antonio Landi, João Ângelo Brunelli e Miguel Antonio Ciéro. Todos vie-
ram para o Brasil na Comissão Demarcadora de Limites, em 1753.
32. O capitão-engenheiro João Henrique Wilkens substituiu Galúcio como responsável pelas obras da
fortificação logo após a morte deste, enquanto esperava o engenheiro Gronfelds que iria assumir o co-
mando. Mais tarde Wilkens também assumiu os trabalhos da construção e foi para a Província do Rio
Negro (hoje Estado do Amazonas) onde escreveu o poema A Muhuraida, publicado em 1785.

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cio. A mudança da configuração da paisagem do lugar também é a
paisagem da transformação cultural, ditada pela dinâmica das pes-
soas. Por isso cada olhar (implícito na narrativa das cartas)33 pode ser
uma visão de mundo, alteridades que vão mudando ao longo de uma
trajetória que afeta o espaço e a vida social e cultural desses atores.
É assim que, no decorrer da história, o homem vai construindo re-
lações, desenvolvendo processos, às vezes contraditórios, que se su-
peram no movimento do tempo e do espaço na sociedade e no lugar
em que ele se encontra com o outro, que é o índio, o negro, o colo-
no, o degredado. Nessas relações sociais dinâmicas se constrói a rea-
lidade que se vincula ao movimento da própria história. Os olhares
do estrangeiro, do militar colonizador, do escravo negro africano, do
comerciante e do índio, são, sim, muito diversificados, mas existem
como sujeitos que produzirão um trabalho determinado pela decisão
política, em um espaço geográfico no qual reproduzirão a sua existên-
cia e os seus valores perante a existência e os valores do outro.
Daí que a palavra alteridade, que possui o prefixo alter, do latim,
tem o significado de se colocar no lugar do outro na relação interpes-
soal, com consideração, valorização, identificação e dialogar com o
outro. A prática da alteridade se conecta aos relacionamentos tanto
entre indivíduos como entre grupos culturais, religiosos, científicos,
étnicos, etc. Na relação alteritária está sempre presente os fenômenos
holísticos da complementaridade e da interdependência, no modo
de pensar, de sentir e de agir, onde o nicho ecológico, as experiências
particulares são preservadas e consideradas sem que haja a preocu-
pação com a sobreposição, assimilação ou destruição destas.
É, portanto, na diferença cultural que o jogo de ações (e tensões) se
estabelece no contexto da construção da obra.

33. As cartas dos construtores são como crônicas literárias, pois não deixam de ser construções da
realidade que registram/narram acontecimentos e fatos comuns do cotidiano da ereção da obra e de
aspectos técnicos. Seus conteúdos são importantes, pois as concepções e os fatos extraídos delas lhes
dão, indubitavelmente, teor científico eivados de certa literariedade.

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Ao contrário dos viajantes que descreveram a Amazônia do século
XVIII como um amplo e complexo cenário que para seus olhos “reve-
la-se muitas vezes como um objeto de assombro, surpresa e maravi-
lha” (HATOUM, 2009. Pág.104), a construção da FSJM foi um processo
marcado pela labuta árdua, caracterizado por uma tecnologia inci-
piente e dificultosa, com mão-de-obra escrava e por uma série de si-
tuações de relacionamentos sociais complexos.
Nesses relacionamentos, o poder se imbrica em disputas nada sa-
lutares, em queixas, intrigas e tensões explícitas nas cartas, que refle-
tem o ambiente da época, mostrado as grandes dificuldades e deixan-
do transparecer uma subserviência impressionante aos mandatários
– como era estilo do período – sobretudo por estarem as personagens
ligadas a uma hierarquia militar impositiva e implacável.
Embora não se tratando de ficção, as personagens reais da cons-
trução da Fortaleza de Macapá também têm características ficcio-
nais das personagens dos romances amazônicos A Selva (Ferreira de
Castro) e Mad Maria (Márcio Souza), citados por Hatoum (Idem. Pág.
5), para quem a “viagem torna-se [para as personagens] uma qua-
se imposição, e nesse sentido ela se revela como uma forma de exí-
lio” (Idem).
Longe da tentativa de traçar um paralelo entre as personagens fic-
cionais dos romances sobre a Amazônia e a dura vida dos construtores
da FSJM, pode-se considerar, assim mesmo, que a determinação de er-
guê-la na foz do Rio das Amazonas constituiu-se uma missão marcada
pela vontade política do Marquês de Pombal em ampliar o reino por-
tuguês e potencializar sua economia. Paradoxalmente, foi um tipo de
“ação heroica” muito semelhante à condição “dos trabalhadores recru-
tados em vários cantos da terra: antilhanos, alemães, espanhóis, hin-
dus: párias que viajam milhares de milhas para encontrar na Amazônia
uma espécie de desterro involuntário” (Idem. Pág.112).
As personagens (europeias) da construção da Fortaleza vêm para
um ambiente violento, da mesma forma como nos romances acima

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referidos; para um lugar caracterizado pela degradação física e moral
e pelas contingências ambientais desfavoráveis, como a falta de abas-
tecimento e as doenças tropicais. Ao lado disso, africanos de diversas
procedências viviam sob a escravidão, bem como os indígenas, captu-
rados para os trabalhos de transporte, caça, pesca e outras atividades
laborais. Mas na linha hierárquica de mando estavam os portugue-
ses militares e os civis, representados pelos imigrantes madeirenses
e açorianos que vieram para Macapá a partir de 1752 (SILVA, 2000.
Pág.365-74) e que, por determinação de Mendonça Furtado, instala-
ram os poderes legislativo e judiciário na vila fundada por ele em 1758.
Considerar, então, a obra (FSJM) como gênese da ocupação, de
que falamos em capítulo anterior, significa dizer que a fortificação re-
presentou a constituição física da vila, tanto econômica como politi-
camente, pois sem a guarnição militar que ela abrigou durante parte
da sua construção, é possível que Macapá não tivesse sobrevivido. A
obra representa, pois, a fixação da população e a formação política do
lugar. Entretanto, seria conveniente inserir no cenário da construção
as estratégias de que se valeram os portugueses para se fixarem no lu-
gar, obviamente pela força militar que ostentavam, fundamentada pe-
las ações expressas em seus códigos de guerra.
Negros, índios, soldados desertores e cidadãos civis eram punidos
de acordo com seus comportamentos. Em seu trabalho sobre “O fim
das descobertas imperiais” (SANTOS, 2009. Pág.182-90), Boaventura
de Sousa Santos diz que “o segundo milênio foi o milênio das desco-
bertas imperiais. O ‘Outro’ do Ocidente, o descoberto, assumiu três
formas principais: o Oriente, o selvagem e a natureza. O autor es-
clarece que

Se o Oriente é para o Ocidente o lugar da alteridade, o selvagem é o lugar


da inferioridade. O selvagem é a diferença incapaz de se constituir em al-
teridade. Não é o outro porque não é sequer plenamente humano. A sua
diferença é a medida da sua inferioridade. Por isso, longe de constituir

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uma ameaça civilizacional, é tão só a ameaça do irracional. O seu valor é o
valor da sua utilidade. Só merece apenas confrontá-lo na medida em que
ele é um recurso ou via de acesso a um recurso. A incondicionalidade dos
fins – a acumulação dos metais preciosos, a expansão da fé – justifica o to-
tal pragmatismo dos meios: escravatura, genocídio, apropriação, conver-
são, assimilação. (Idem. Pág. 182)

Essa afirmação remete ao conceito que se tinha no período da ere-


ção da obra sobre a natureza, posta conceitualmente por Santos como
um lugar de exterioridade, mas também de inferioridade, pois “O sel-
vagem e a natureza são, de fato, as duas faces do mesmo desígnio: do-
mesticar a ‘natureza selvagem’, convertendo-a num recurso natural”
(Idem, Pág.188).
A FSJM foi construída ainda sob a égide da imposição do branco
colonizador através das chamadas “guerras justas”, concepção, que
segundo Santos está na teoria da “escravatura natural” de Aristóteles,
a qual reza que “a natureza criou duas partes, uma superior, destina-
da a mandar, e outra, inferior, destinada a obedecer. ” (Idem. Pág.186).
Entre os portugueses,

o processo de eliminação do Outro – prática comum no discurso militar


colonial, que impunha a “civilização” do europeu à “barbárie” do nativo
americano – ficou muito tempo abrigado sob o manto oficial das chama-
das “guerras justas”( CALDAS, 2007. Pág.13).

Nesse panorama é que Henrique Galúcio, a personagem princi-


pal da construção da Fortaleza indubitavelmente tinha seus conceitos
pessoais sobre o mundo que o cercava. Sua formação europeia permi-
tiu que se dedicasse ao estudo da Astronomia, munido de um teles-
cópio que mandara buscar na Itália. Suas anotações eram mandadas
para o Observatório de Lisboa, inclusive as que informam que obser-
vou um eclipse do sol na tarde de 25 de agosto de 1767, e um da lua em

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29 de julho de 1768 (BARBOSA. Op. Cit. Pág. 128). Culto e seguro na
sua escrita, Galúcio escrevia inclusive versos das Éclogas (Bucólicas),
de Virgílio, nas epígrafes de suas epístolas.
Nas suas relações com os portugueses – o comandante da Praça de
Macapá e seus engenheiros subordinados –, havia sempre uma rusga
na qual o construtor mostrava características de sua personalidade no
trato com eles. Trata-se de uma diferença cultural marcante, porque
a identidade é fabricada através da marcação da diferença, que acon-
tece por meio de sistemas simbólicos como também por meio de for-
mas de exclusão social. Para Kathryn Woodward (Op. Cit. Pág.7-72), a

identidade, pois, não é o oposto da diferença: a identidade depende da di-


ferença. Nas relações sociais, essas formas de diferença – a simbólica e a
social – são estabelecidas, ao menos em parte, por meio de sistemas clas-
sificatórios. Um sistema classificatório aplica um princípio de diferença a
uma população de uma forma tal que seja capaz de dividi-la (e a todas as
suas características) em ao menos dois grupos opostos – nós/eles; eu/ou-
tro [grifo da autora] (Idem. Pág. 39-40).

O sargento-mor e engenheiro Galúcio, apesar das dificuldades en-


frentadas no dia-a-dia, principalmente no trato de seus subordinados
e nas relações com a outra autoridade da vila, o coronel comandante
Nuno da Cunha Atahyde Varona, sabia do seu papel, da sua condição
de europeu culto, mas essencialmente sabia o que a sua própria pre-
sença significava para Portugal naquele lugar ermo onde a doença e a
saudade da família o fariam definhar até a morte.

2.3. DOENÇAS TROPICAIS, EXÍLIO, INTRIGAS E MORTES


À época da colonização de Macapá, muitas epidemias foram registra-
das, inclusive uma de impaludismo em 1752, que forçou o capitão-ge-
neral Mendonça Furtado chegar inesperadamente à povoação, via-
jando em canoa, para dar assistência aos novos colonos, “conduzindo

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o único médico que havia no Estado e uma ambulância de medica-
mentos” para conter o surto no lugar. (CAVALCANTI. Op. Cit. Pág.27)
Em 14 de abril de 1765, o comandante militar de Macapá, Athayde
Varona, informa ao governador da Província “que muitos trabalhado-
res se acham doentes [e] padecem de um grande contágio de saram-
po. ” (Códice 150. Doc. 69)34
Menos de um século depois, a história noticia um “andaço febril”,
uma pequena epidemia de disenteria que teria grassado em Maza-
gão e Macapá, matando cerca de 150 crianças e índios (LOPES, 1987.
Pág.22). Mas o local, apesar de arejado, ainda era insalubre e passível
de doenças, principalmente as chamadas “sezões”, acessos de febre
intermitente, e os “paludismos”, doenças dos pântanos ou malária.
Antes mesmo de Galúcio ser nomeado responsável pela constru-
ção da Fortaleza de Macapá, ele já se encontrava no local de obra des-
de 1762, fato ignorado ou plenamente desvalorizado pela chama-
da história oficial, que considera o período de construção de 1764 a
1782. Creio ser conveniente registrar esse esquecimento porque o en-
genheiro preparou a construção para ser posta a “pedra fundamen-
tal” pelo governador Fernando da Costa de Athayde Teive em 29 de ju-
nho de 1764, quando da sua visita oficial a Macapá. O documento 66
acompanha os Mapas

da gente que tem trabalhado nas obras da Fortificação da Praça de São


José de Macapá desde o primeiro até o último dia dos meses de Agosto,
Setembro, Outubro e Novembro de 1762 e Janeiro, fevereiro, Março, Abril,
Maio e Junho de 1763. Traz, também, o mapa do mês de Julho de 1763 até
03 de Agosto do mesmo ano, dia este em que as obras foram paralisadas
(Galúcio e Wilkens assinam os mapas). São José de Macapá, 16 de Agosto
de 1763 (Cód. 132. Doc. 66).

34. A classificação geral dos códices do Arquivo Público do Pará foi modificada e atualizada. Utiliza-
rei, a seguir apenas os números referentes aos códices atuais e o número dos documentos.

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Em agosto de 1763, tanto Galúcio como Wilkens solicitam licen-
ça para irem a Belém, o primeiro para concluir “cópia limpa do
Mapa Geral do Estado e o segundo para tratar-se de uma doença”
(Cód. 37. Doc. 69 e77). Antes, porém, Galúcio escrevera ao Governa-
dor Manoel Bernardo de Melo e Castro com o mesmo objetivo, além
de querer

Ver também a minha família dezamparada e, sobretudo, de poder, eu ter


a diteza felicidade de ir botar-me aos pés de V. Exa., pelo primeiro, mas
muito mais pelo segundo motivo terei mais que dever esta especialíssi-
ma mercê ao clementíssimo Patrocínio de V. Exa. além das infinitas obri-
gações de que viverei sempre devedor à grandeza de V. Exa. Macapá 28 de
abril de 1763 (Cód. 130. Doc. 39).

O Sargento-Mor de Macapá, Luiz Fagundes, solicita ao Governador


que “pelas entranhas da Virgem Maria Senhora Nossa”, o mande reco-
lher com sua família para a Cidade de Belém. Macapá, 10 de setembro
de 1763 (Cód. 131. Doc.31).
Wilkens reclama de “violenta enfermidade que dentro de três
meses me reduzio ao prazo da morte” (Cód. 132. Doc. 41, de 13 de ju-
nho de 1783) e que, mesmo com a aplicação dos mais eficazes remé-
dio e sangrias, estes de nada adiantaram. Como Galúcio também
precisava viajar, solicita que Wilkens lhe substitua, mas o requeri-
mento é negado pelo Comandante Nuno Varona, o que fez Galú-
cio se despedir “mais apaixonado que advertido” (Cód. 132. Doc.43,
de 14 de junho de 1743) de sua presença. É, então, a partir daí que
inicia um clima de animosidade entre o coronel Nuno Varona e o
engenheiro Henrique Galúcio, que duraria até a morte do Coman-
dante. Em 06 de outubro de 1763, Wilkens viaja com sua família
para Belém.
Com a posse do novo Governador da Província, Galúcio o parabe-
niza e transcreve:

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“Ipsa te, Tytire, pinus,/ Ipsi te fontes, ipsa hac arbusta vocabant:/ Aspice,
venturo latentur ut omnia saclo”. Virg. Ecl. I, ct. IV.

tive a honrra de ser mandado pelo meu natural monarca à servir a tão Au-
gusto Soberano já mais de 13 anos, para cujo fim troquei as delícias de
minha pátria com as asperezas dos mais desertos sertões do Brasil,
que corri e palmilhei. Macapá, 08 de outubro de 1763. [Grifo meu]. (Cód.
132. Doc.90).

Nesse documento, Galúcio admite o seu cansaço e, possivelmen-


te, o arrependimento de sua vinda para o Brasil. Em 1767, o ajudan-
te Antonio José Pinto pede ao Governador que “tire da sua vista e en-
contros o imprudente e soberbo oficial [Galúcio] que me não pode ver
e me atenda com violência” (Cód.148. Doc. 68, de 26 de dezembro de
1765). Em suas cartas, o engenheiro cita muitas vezes as contraordens
e os desmandos do coronel comandante, que segundo ele atrapalham
o desenvolvimento da construção. Já as cartas do comandante tam-
bém pedem material para a obra e informam o seu andamento, su-
gerindo até o tipo de pedra para extração no rio Anauerapucu. O En-
genheiro também responde a uma advertência do Governador sobre
como os “praticantes [da obra] se queicham de eu os tratar incivimen-
te.” (Cód. 150. Doc. 114, de 24 de junho de 1765). Galúcio afirma que

Até o presente me pareceu que eu tinha tratado a todos os 3 praticantes


com a maior civilidade e atenção, pois os amo a todos eles como a filhos,
e desejo sumamente concorrer para toda sua utilidade e aumento; e sinto
na alma que em algum deles se tenha insinuada a serpente de Amor do
descanço, que poderá/ como costuma suceder na gente moça/ ser cauza
de sua ruína. [grifo meu]. (Idem)

Mas o sargento-mor Galúcio reclama ao governador da falta de


providências do coronel comandante para as suas ordens de aterrar

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um baluarte ao mesmo tempo em que informa da doença e das ver-
tigens do ajudante engenheiro Sambucetti e também de sua “saúde
bastante prejudicada” (Cód. 153. Doc. 25, de 12 de agosto de 1765).
Em meio às dificuldades, há sempre informações, como “a chega-
da de 600 arrobas de peixe seco e 180 paneiros de farinha para o susten-
to dos operários da Fortificação” (Cód. 153. Doc. 47); ou outras medidas
que atingem grupos, como a ordem do comandante de “não dar alguns
dias de carne ao povo para não ter faltado aos operários empregados no
serviço de Sua Magestade. ” (Cód. 153. Doc. 32, de 23 de agosto de 1765).
No que se refere à saúde, o comandante Athayde Varona comunica
a Athayde Teive “o que necessita para a assistência dos enfermos do
Hospital, e os remédios que se despenderam com o curativo dos pre-
tos do senado da Câmara dessa cidade, operários da Obra da Fortifi-
cação. ” (Cód. 153. Doc. 49, de 18 de setembro de 1765). Athayde Varo-
na encaminha a relação dos remédios abaixo.

Relação: Pedra cordial, Alyotar, olhos de carangueijos, Pos Marquionis,


Mana, Folhas de Sine, Ipecacuanha, Jalapa, Ruibarbo, Macúrio Doce, Qui-
na, Salsa parrilha, Triaga Magna, Pedra Immalitis, Bolo Armênio, Terra Si-
gilada, Nitro purificado, Pedra Hume Calsinada, Xarope das Cinco Raí-
zes, sal de hosna, Bálsamo de Aparício, Bálsamo de Arcui, Termentina,
Emplaste Confodtativo, Ungto. Desopilativo, Ungto. Basilicão, Emplasto
Emuliente, Unguento camelo, óleo de amêndoas doces, óleo de minho-
cas, Bezuartico de Curvo, Madre Perulha, láudano opiado, pos de joanes,
quentilio, Bálsamo Católico, óleo de Termentina, Emplasto de Aplama e
Emplasto Stilico de Crolio (Idem).

Mas as contraordens e os desmandos do comandante continuam a


irritar Galúcio. Em carta ao governador, ele diz:

Estando as coisas nestes termos fui eu no dia 17 do corrente para a obra


pelas 6 horas da manhã; e cem-grande admiração minha achei lá o Coro-

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nel Comandante mandando tirar a maior parte dos trabalhadores ocupa-
dos no transporte da terra, de poder absoluto, e sem querer que isso fosse
mandado por mim, aplicando-os, a chegar pedra para a muralha e a fazer
um novo traço de cal, para os pedreiros trabalharem de tarde na muralha
do Revestimento [...] Por esta tão violenta determinação fica mais demo-
rada a muralha que resta para se fazer até o cordão, que são 3 fiadas, e o
aterramento do Baluarte mais atraso e mais dificultado Nunca me persua-
direi que seja a vontade de V. Exa. que se levante a muralha desse Baluar-
te à torto, e direito [...] queira V. Exa. dignar-se de ter uma inteira confian-
ça, mas já da minha pessoa, que vejo está desacreditada no conceito de V.
Exa., mas sim no Engenheiro que tiver a felicidade de ser encarregado por
V. Exa. da direção das Obras desta Fortificação. São José de Macapá, 19 de
setembro de 1765 (Cód. 153. Doc. 54).

Athayde Varona informa ao governador que o padre da Povoação


do Anauerapucu, frei Brás de Santa Tereza, foi trazido para se curar de
sezões em Macapá. E Galúcio pede instrumento de nivelamento fei-
to em Paris: “o título é um Nível de Agoa, da forma de que descreve N.
Bion no tratado dos Instrumentos de Matemática. Livro 5. Cap. 1.Fig.
A. São José de Macapá, 15 de novembro de 1765” (Cód. 153. Doc. 54).
Galúcio reclama em carta ao governador da Província, em dezembro
desse mesmo ano, que o Capitão Wilkens lhe dissera ter vindo para
Macapá para obedecer às ordens do coronel comandante Varona, e
não às suas. E fala de suas “inobediências” (Cód. 153. Doc. 102, de 23
de dezembro de 1965). Por causa disso, e por não obedecerem Galú-
cio, Nuno Varona recebe carta do governador e é obrigado a advertir
Wilkens e Sambucetti de prisão, dizendo que os mandaria a ferros à
presença do governador para serem remetidos ao Limoeiro da cida-
de de Lisboa como “Perturbadores e Inimigos dos Reais Interesses e
Serviços. ” (Cód. 164. Doc. 07, de 23 de janeiro de 1766). Isso provoca a
reação de Wilkens, que dirige carta ao governador, dizendo que nunca
faltou ao serviço, com exceção “dos 12 dias que passou enfermo, san-

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grando, e alienado do juízo. ” (Idem). E se diz “injustamente ferido na
parte mais sensível à minha honra, crédito e verdade”. (Idem). Galú-
cio, então, elabora 12 regras para serem obedecidas pelos seus subor-
dinados, ajudantes e praticantes das obras. Entre elas as seguintes

3º. O praticante da semana irá todas as noites à casa do capitão partici-


par-lhes as ordens do Sargento Mor perspectivas a Fortificação para o dia
seguinte. 6º. O Capitão irá de manhã é de tarde para a Obra da Fortifi-
cação, se não for ocupado em riscar, ou calcular por ordem do Sargento
Mor: indo às horas, e demorando-se o tempo que a sua honrra, e capaci-
dade lhe persuadirem ser conveniente ao Serviço da mesma Obra. 9º. Ne-
nhum dos indivíduos poderá ausentar-se desta praça sem consentimento
do Sargento Mor. 11º Todos tratarão com atenção, e termos de Urbanida-
de o Sargento Mor, e lhe obedecerão, e executarão tudo o que lhe for orde-
nado, e determinado por ele respectivamente ao Serviço da Fortificação
sem repugnancia, e altercações; o seu parecer quando lhe for pergunta-
do somente. 12º. Sendo desobediente, ou contravindo qualquer destes ca-
pítulos poderão ser presos por mandado do Sargento Mor à Ordem do
Comandante da Praça em suas casas, e também na Guarda Principal, e o
Comandante os não soltará sem ouvir a informação do Sargento Mor (Do-
cumento anexo ao Cód. 164. Doc. 11, de 23 de janeiro de 1766).

Entretanto, e em que pesem os esforços de Galúcio em conservar


uma situação harmônica entre seus subordinados, suas ordens quase
sempre não eram obedecidas, e ao lado das regras por ele elaboradas
faz anotações informando que: “Em 6 de fevereiro de 1766 de tarde o
Ajudante desatendeu publicamente o Sargento Mor ouvindo os traba-
lhadores e pedreiros, dizendo que não era capaz de lhe ensinar nada,
e que ele tinha estudado pelos mesmos livros.” (Idem). Informa ao Go-
vernador que vê indícios que “o Coronel Comandante não gostou da
Ordem de V. Exa. pela extraordinária frequência que reparo ajuntar
em só os dois oficiais Engenheiros” (Cód. 164. Doc. 11, de 25 de janei-

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ro de 1766), e suspeita “que eles intentem abonar seus procedimentos
com alguma máquina contra mim à V. Exa.” (Idem).
Galúcio se ofende com os desmandos do comandante Athayde Va-
rona e envia longa carta ao governador, onde enfoca que mal podia
ter-se das pernas pela passada moléstia; que foi chamado de atrevido
pelo dito comandante, ao passo que tudo não passava de atitude ze-
losa sua para com as obras da Fortificação. Encerra a carta dizendo:

Esta era a ocasião, em que eu prostrado aos pés de V. Exa. devia pedir-
-lhe humilissimamente que se dignasse por os olhos de sua Piedade em
mim, mandando-me retirar daqui, porque totalmente me não entendo
com estes dois sujeitos, o Coronel Comandante, e o inspetor, parecen-
do que de algum tempo estão colliados para me amofinar, atrapalhar, e
deitar-me na ultima desesperação; o que se não deve atribuir mais que
à grande incapacidade minha para a ocupação, em que V. Exa. foi ser-
vido empregar-me, e assim, enquanto V. Exa. se compadecer ainda de
mim para me não mandar dar baixa de Real Serviço de S. Magestade era
da maior minha conveniência, que V. Exa. me fizesse mercê de tirar-me
desse insufrível martírio, livrando-me de maiores princípios; não fal-
tando nessa cidade Engenheiros de capacidade maior à minha insufi-
ciência, nos quais concorrem todas as partes necessárias para lidar, e
saber haver-me com estes dois indivíduos tão prudentes, tão desinteres-
sados, e tão zelosos do mesmo Real Serviço. Quando eu não possa ter a
habilidade para substituir a ocupação de qualquer dos ditos Engenhei-
ros, ao menos poderei ter modo de tratar de restauração da minha saú-
de sumamente arruinada com o socorro da minha família, de que vivo
ausente quase oito anos com poucos intervalos; o que não me é pos-
sível conseguir aqui. Se os rogo mais humildades, e a instâncias mais
eficazes podem impetrar da conhecida Bedignidade de V. Exa. esta tão
importante graça, humilissimamente a peço a V. Exa; e instantissima-
mente para ela suplico. São José de Macapá, 12 de abril de 1766 [grifo
meu]. (Cód. 164. Doc. 47).

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Galúcio acusa o recebimento da carta do governador e fica mais
esperançoso. Mas Athayde Varona também escreve ao governador
acatando seu pedido para que o oficial Engenheiro “seja respeitado
e obedecido em tudo o dizer respeito à Fortificação. ” (Cód. 164. Doc.
66, de 30 de maio de 1766). Entretanto, Varona expõe suas opiniões so-
bre Galúcio dizendo que lhe é impossível obedecer-lhe por causa de
seu gênio inconstante, variável e desconfiado (Idem).
Sambucetti pede para ser transferido de Macapá em função de
uma diarreia contínua que o aflige há dezessete meses (Cód. 168. Doc.
02, de 09 de junho de 1766). O comandante Varona também informa
ao governador que se introduzia aguardente e vinho na Fortificação e
ocultamente se vendiam aos operários:

e atendendo por perniciosas conseqüências que se poderiam seguir os


serviços de Sua Magestade me pareceu mandar logo verbalmente proi-
bir naquele destrito o uso daqueles gêneros, penas de castigo; fazendo-se
todas as deligências concernentes a evitar aquele dano. São José do Ma-
capá, 09 de julho de 1766 (Cód. 168. Doc. 05).

Galúcio agradece ao governador “pela chegada de sua família em


Macapá” (Cód. 168. Doc. 54, de 10 de novembro de 1766) e a aquisi-
ção dos Instrumentos Matemáticos, mas reclama da exorbitância des-
ses preços, dizendo que “o valor na Inglaterra é de uma oitava parte. ”
(Cód. 168. Doc. 59, de 18 de novembro de 1766).
Wilkens, por sua vez, reclama do “quarto de 20 palmos de quadra-
do para ele e sua numerosa família”, e fala das suas “22 sangrias”, às
quais se submete na tentativa de melhorar seu estado de saúde (Cód.
176. Doc. 42, de 24 de setembro de 1766).
Com o desenvolvimento da construção, tanto Galúcio como Varo-
na vão informando ao governador o que nela ocorre, com cada um
narrando à sua maneira os fatos que se sucedem. Galúcio pede au-
mento de patente militar (Cód. 187. Doc. 44, de 06 de junho de 1768),

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além de informar em cartas sucessivas dos progressos da obra e agra-
decer o apoio do governador e o envio dos 3 instrumentos de Astro-
nomia, que lhe permitiram observar o eclipse lunar de 29 de junho de
1768 (Cód. 188. Doc. 0-3 e 06, de 12 de julho de 1768).
O capitão Wilkens reclama novamente das doenças que sua famí-
lia padece, sobre a perda de suas propriedades e pede licença para
cuidar de seus interesses particulares (Cód. 188. Doc. 52, de 20 de de-
zembro de 1768). Galúcio refere-se ainda à “grande oposição e re-
pugnância que agora encontra no Coronel Comandante desta Praça”
(Cód. 188. Doc. 52, de 20 de dezembro de 1768), tendo em vista o reco-
meço das suas intrigas, em função dos desmandos de Athayde Varona
nas obras da fortificação.
No dia 25 de maio de 1769, Manoel Gonçalves Meninea, Prove-
dor da Fazenda da Vila de Macapá, escreve ao governador infor-
mando que

A esta hora que são quase doze do dia vinte e cinco do corrente faleceu o
Coronel Comandante desta Praça, Nuno da Cunha de Athayde Varona, e
da mesma comandância tomou entregue o Sargento Mor a da Praça Luiz
Facundes Machado e assim lho determinou o dito Comandante já defun-
to, o que participo a V. Exa (Cód. 194. Doc. 44, de 25 de maio de 1769).

O sargento-mor Engenheiro Galúcio, àquela altura, já devia saber


que Varona seria destituído do cargo de Comandante, pois escreve ao
governador participando da entrega de carta por meio do novo co-
mandante da Praça de Macapá, Mestre de Campo Marcos José Mon-
teiro de Carvalho, onde diz que

Pela parte que me toca estimando sumamente que a incomparável pru-


dência da V. Exa. acaba-se por tal meio o que a morte principiou, pondo
por algum termo à dilatada série de meus insufríveis desgostos. Macapá,
17 de junho de 1769 [grifo meu]. (Cód. 199. Doc. 54).

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O comandante da Praça escreve ao governador algumas represen-
tações comunicando o seguinte:

A segunda representação é do Sargento Maior Henrique Antonio Galúcio


que padesse e licença que necessita para nessa cidade ver se pode resta-
belecer a saúde, estando nela alguns meses sem prejuíso da obra. É certo
que o Cirurgião me disse que ele estava caindo numa hidopazia, por estar
já caquético, motivo porque anda a muitos dias tomando a tintura de fer-
ro, e como aqui não há meios para conseguirem os fins de aremediar uma
queixa perigosa quer por esta representação renovar a que diz já figura a
V. Exa. São José de Macapá, 10 de julho de 1769. (Cód. 200. Doc. 08).

Com Galúcio doente, começam as especulações sobre quem vai


assumir seu cargo. Mas ele ainda consegue escrever:

Beijo humilissimamente as mãos de V. Exa. tributando-lhe todo o rendi-


mento da minha mais e fiel e constante obediência, porém temo e areceio
que a minha já tão má saúde não dê lugar para aproveitar delas (as espe-
ranças) e que aqui fiquem enteradas elas todas e eu com elas sem remé-
dio; se V.Exa. compadecido de minha infelicidade me não permitir logo a
faculdade para ir de alguma sorte e remir à essa Cidade enquanto ainda
talvez há tempo para isso. Macapá 11 de julho de 1769 (Cód. 200. Doc. 12).

O Comandante Marcos informa sobre os progressos da obra e que


quase todos os prédios internos já se encontram prontos. É ele quem
encaminha carta ao governador, informando a morte do engenheiro:

Pelas cinco Horas e meia da manhã de hoje entrou na Eternidade a Alma


do Engenheiro Antonio Henrique Galúcio, e ainda que se haverá dez dias
que se achava em princípio de segunda cura, purgando duas vezes, mor-
reu quase repentinamente, e sendo sensível a sua falta, se faz mais las-
timesa por morrer sem sacramentos, nem apertar a mão estando toda a

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noite com ele o Padre Vigário, dispondo-o para o cristão desengano e ven-
turozo fim do arrependimento.
Logo me veio falar o capitão Henrique João Wilkens e certificar-me do
mesmo que já me tinha dito: que ele da Fortificação nunca soubera nada
porque o Defunto Galúcio fizera sempre mistério deste projeto que nunca
lhe quis revelar, e que isto mesmo tinha o ele capitão já representado a V.
Exa: A vista do que fui logo à casa do Defunto fazer separar os papéis per-
tencentes ao serviço de Sua Majestade nesta Fortificação, para que o dito
capitão, vendo o Risco, e o mais que nele está disposto poder inteiramen-
te suceder no seu ministério e fazer executar todo o seu pensamento en-
quanto V. Exa. não resolver sobre este ponto o mais que for servido. Ma-
capá, 27 de outubro de 1769 (Cód, 200. Doc. 62).

A morte do engenheiro Galúcio até hoje causa especulações. O fato


de guardar as plantas para si, sem mostrar a ninguém mais, pode re-
velar o traço da personalidade do engenheiro, que não queria ver seu
trabalho ser executado sem a sua presença. Mas, impossibilitado por
causa da doença que lhe afligia, preferiu guardá-las em lugar seguro
enquanto esperava ser curado.
Sua morte também põe fim ao embate causado entre ele, o coman-
dante da Praça de Macapá, Nuno Athayde Varona, falecido cinco meses
antes, e os engenheiros ajudantes Sambucetti e Wilkens, com quem vi-
via em permanente tensão. A Galúcio estava reservada uma morte des-
crita dessa maneira, pois o tempo, o ambiente e o espaço da construção
iriam colaborar para a aceleração da doença, ainda que em suas epísto-
las não cansasse de suplicar sua transferência para a capital da Provín-
cia em busca de cura e do carinho da família, da qual sofria a ausência.

2.4. GALÚCIO E O MUNDO AMAZÔNICO: DESTERRO E ESQUECIMENTO


Não se podem reduzir as fontes históricas a verdades absolutas. Os
acontecimentos produzidos por homens de diversas nacionalidades,
culturas e posições sociais traziam interesses diversificados, expres-

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sos em suas cartas enviadas aos poderosos, o que as torna objetos de
análise a serem contextualizadas junto à obra que construíram num
tempo de dificuldades e muito trabalho, imposto pelo governo portu-
guês. Desta forma, necessário se faz

escovar a história ao contrário, como Walter Benjamim exortava a fazer.


É preciso aprender a ler os testemunhos às avessas contra as intenções
de quem as produziu. Só dessa maneira será possível levar em conta tan-
to as relações de força quanto aquilo que é irredutível a elas (GINZBURG,
2002. Pág. 43).

Carlo Ginzburg afirma que a historiografia se propõe unicamente


a convencer, e que seu fim é a eficácia e não a verdade, por isso mes-
mo as fontes, para ele, mesmo quando dignas de fé, são comparadas
a espelhos deformantes, mas a análise da distorção já é um elemento
construtivo (Idem). Em sua crítica à historiografia, Ginzburg diz que

De forma não diversa de um romance, uma obra historiográfica constrói


um mundo textual autônomo que não tem nenhuma relação demonstrá-
vel com a realidade extratextual a qual se refere e textos historiográficos
e textos de ficção são auto-referenciais, tendo em vista que estão unidos
por uma dimensão retórica (Idem. Pág.47-8).

Nesse caso é importante insistir na tese da “história a contrapelo”


porque assim se pode (re)descobrir uma verdade (ou verdades his-
tóricas), até inesperada, pois, de acordo com Roiz, pode ser que “por
trás de toda narrativa, principalmente a histórica, houve uma reali-
dade extratextual que lhe deu base e a tornou possível.” (ROIZ, 2008.
Pág.203).
Trata-se, então, de ver a construção da FSJM com outros olhos,
onde as cartas dos seus construtores trazem evidências da realidade,
das ações e das expressões de sentimentos de homens amargurados,

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mas rígidos dentro de seus códigos militares, desejosos de conforto,
no entanto degredados dentro de si mesmo, desterrados e impotentes
pela ordem real de plantarem uma Fortaleza que se tornaria o símbo-
lo de sua conquista em terras do Novo Mundo.
Nesse contexto, o exílio involuntário das personagens reais da
construção da Fortaleza é caracterizado pelos constantes pedidos de
voltarem à cidade (no caso Belém, capital da Província), porque em
São José de Macapá não tinham como se tratar das doenças. O am-
biente tinha como cenário a ereção de um forte ao lado de relações
tumultuadas entre o responsável pela obra e o comandante militar da
Praça de Macapá em uma luta pelo poder, coadjuvada por outras per-
sonagens que também pareciam cumprir pena no “purgatório”, consi-
derado um lugar onde se sofre por algum tempo, que evidentemente
era a vila de Macapá.
Galúcio diz, ao escrever cumprimentando o novo governador da
Província, que: “Troquei as delícias de minha pátria com as asperezas
dos mais desertos sertões do Brasil, que corri e palmilhei. ” (Cód. 132.
Doc. 90, de 08 de outubro de 1763). Seis anos antes de sua morte e es-
tando há treze no Brasil à disposição do governo português, ele mos-
trava cansaço e desejo de voltar ao menos à cidade (Belém, sede da
Província do Grão-Pará), como expressa em muitas de suas cartas ao
governador.
Imprescindível para a obra, o sargento-mor Engenheiro vivia em
Macapá como se cumprisse a pena de um degredo, vigente à época
para criminosos. E em Macapá encontra o palco de sua agonia, na
acepção total do termo, que é também um conjunto de fenômenos
mórbidos que aparecem na fase final de doenças agudas ou crônicas
e anunciam a morte.
Nas suas relações conflitantes com o Comandante Nuno Athayde
Varona e com os ajudantes engenheiros Sambucetti e Wilkens, além de
outros que se sentiam prejudicados com a sua rigidez, “soberba” e “in-
constância”, Galúcio estabelece e impõe sua formação e cultura como

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valor de referência no trato com seus contemporâneos, em um mundo
onde culturas, linguagens e valores coexistem numa diversidade am-
pla. Índios calcetas, guerreiros e remadores, degredados, negros ladi-
nos e boçais de diversas procedências35, portugueses da metrópole (Lis-
boa) e ilhéus da Madeira e Açores, italianos e alemães incorporados ao
exército real, fazem parte desse mosaico inseguro de diferenças e costu-
mes desiguais, à sombra de um regime monárquico austero que esten-
dia seus tentáculos na exploração de produtos da natureza.
As alteridades pareciam instigar as relações sociais. E cada olhar
era diferenciado porque, no dizer de Bhabha, nenhuma cultura é ja-
mais unitária em si mesma, nem dualista na relação do eu com o Ou-
tro (BHABHA. Op. Cit. 2007) Em vista disso, diz ele, “as culturas são
dinâmicas e se transformam no contato com outras culturas” (Idem).
Além disso, mesmo que as culturas estivessem numa relação de inter-
dependência, no contato direto, percebe-se nas cartas de Galúcio a
sua erudição e o seu amor pelo trabalho, que parecia querer terminar
com certa urgência para ir-se de vez de Macapá, encontrar sua família
e traçar novos rumos à sua vida.
Dono de grandes conhecimentos, Galúcio foi viajante na Amazô-
nia, antes que ela tivesse este nome: traçou mapas do Piauí, dividiu a
província em paróquias para o bispado do Pará, demarcou limites, e
projetou e construiu prédios. Olhou um mundo completamente dife-
rente da sua milenar e urbana Mântua, e reclamou das “asperezas dos
mais desertos sertões do Brasil36 [grifo meu].

35. Os calcetas (índios, negros ou brancos degredados) eram indivíduos condenados a trabalhos for-
çados, que tinham argolas de ferro fixadas nos tornozelos e/ou nos pulsos. Os negros boçais eram os
escravos recém-chegados da África, rudes e ignorantes (para os agentes da escravidão), ainda não la-
dinos; negro-novos. Os índios guerreiros eram aqueles que, a mando dos portugueses, capturavam ou-
tros índios para o trabalho escravo; belicosos, aguerridos, enquanto os ladinos eram os escravos con-
siderados astutos, negros ou índios, que já falavam o português, tinham instrução religiosa e sabiam
fazer o serviço ordinário da casa ou dos campos (ou das obras).
36. Galúcio, cansado, olhou o Brasil da época como um homem completamente isolado. Os sertões
que palmilhou certamente não eram apenas aos da região Nordeste, que percorreu traçando mapas.
Sentia-se sozinho diante da grandeza da natureza brasileira, e dela a aspereza que influenciou sua for-

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Ele é o vidente de uma paisagem quase uniforme, quase homo-
gênea e cansativa ao olhar de um estrangeiro. Mas, como diz Sérgio
Cardoso.

O olhar não descansa sobre a paisagem contínua de um espaço inteira-


mente articulado, mas se enreda nos interstícios de extensões descontí-
nuas, desconcertadas pelo estranhamento. Aqui o olho defronta constan-
temente limites, lacunas, divisões e alteridades, conforma-se a um espaço
aberto, fragmentado e lacerado (CARDOSO, 1989. Pág. 349.

O mesmo autor enfatiza ainda que as viagens sejam experiências


de estranhamento, pois

podemos mesmo observar que está, talvez, neste efeito de distancia-


mento, no sentimento de dépaysement (termo forjado com tanta felici-
dade pela língua francesa, cuja significação se aproximaria do nosso ter-
mo “desterro”, se o tomássemos num registro exclusivamente psicológico
e simbólico) que, de um modo ou de outro sempre envolve o viajante (que
não se mostre inabalavelmente frívolo), o seu núcleo essencial e sua ex-
pressão mais íntima (Idem. Pág. 359).

O dépaysement decerto assinalou mudanças no espaço visível de


Galúcio e de todos os que se encontravam em Macapá com a missão
de construir uma fortaleza, alterando e impondo fissuras e fendas nas
suas identidades e culturas. Algo de desestruturante marcou as rela-
ções sociais, experimentadas pelas dificuldades da construção, pela
luta pelo poder e pela morte. Nessa viagem onde todos estão na mes-
ma charrua (tipo de navio comum no século XVIII), experimenta-se a
natureza do estranhamento, imposta pelas alterações do tempo e não

ma de viver enquanto engenheiro militar, astrônomo, poeta, marido e intelectual incompreendido pe-
los seus pares

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só entre uns e outros, ”mas sempre ao próprio viajante; afasta-o de si
mesmo, deflagra-se sempre na extensão circunscrita de sua frágil fa-
miliaridade, no interior dele próprio”. (Idem)
Mesmo não sendo o herói de uma epopeia, cujo termo é derivado
do grego “epos”, que remonta a narração, discurso e palavra (CALDAS.
Op. Cit. Pág.51), Galúcio traz em suas cartas a essência de uma per-
sonagem que atua diretamente no espaço de um conflito (entre ele e
aqueles que não gostavam de suas atitudes), desempenha um gran-
de número de ações para o êxito da construção, objetivo de sua mis-
são como engenheiro e militar; como diretor da obra, intervém dire-
tamente na vida dos seus subordinados; obedece integralmente às
ordens do seu superior, dada a hierarquia militar; sujeita-se a essas
ordens sem nada contestar, exaltando as qualidades de seus superio-
res; expressa sentimentos e emoções ao falar de sua família, que não
vê por oito anos, até ela ser trazida por um cunhado militar a Macapá,.
Mas não há indícios da permanência de seus familiares na vila; e fi-
nalmente morre como herói real de um romance colonial em plena
Amazônia setecentista. Por ser protagonista de uma trama, no proces-
so obsessivo e desgastante da construção do forte, Galúcio torna-se
um herói, real e moderno, pois

O heroi romanesco [...] constrói-se pela aventura que dá a ele a oportu-


nidade de se constituir enquanto sujeito para, em seguida, encontrar sua
própria essência ao ser provado permanentemente. O herói épico, por sua
vez, não precisa de aventura, já que suas peripécias são muito mais uma
espécie de cumprimento de dever superior que um processo de autoco-
nhecimento (Idem. Pág. 61)

Por isso e pela sua importância para a construção do hoje monu-


mento histórico e famoso cartão turístico do Estado do Amapá, Galú-
cio ainda não teve o reconhecimento, juntamente com seus contem-
porâneos, porque a história, ao encarregar-se dos mortos, promove

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uma operação histórica que pode ser considerada como um ato de
sepultamento renovado constantemente. Mas essa sepultura não foi
definitivamente inscrita porque a historiografia recorre a artifícios
passionais sem valorizar corretamente as fontes encontradas. Dora
Alcantara diz que

a narrativa da apreensão das plantas da obra, feita por ordem do comandan-


te, faz pensar que algum desequilíbrio possa ter cercado a doença de Galúcio,
para que um zelo tão extremado o levasse a esconder de tal forma o projeto,
que se temesse uma paralisação da construção (ALCÂNTARA, 1979. Pág 16.).

Os escritores José Sarney e Odylo Costa Filho concordam com a


ideia e fala que “Em outubro de 1769 morre Galúcio, segundo tudo in-
dica de problemas mentais” (SARNEY, COSTA, 1999. Pág.123). Porém,
Galúcio, segundo o cirurgião-chefe do Hospital de Macapá, morreu de
uma doença que chamavam na sua época de “hidropezia”, ou hidropi-
sia, que é a acumulação anormal de líquido seroso em tecidos ou em
cavidade do corpo, provavelmente causado pela malária. O historiador
Arthur Viana escreveu que Antonio Galúcio, foi vítima, ao que se de-
preende da informação do cirurgião-mor Julião Alves da Costa, de uma
“cachexia palustre”, nome que na época se dava à malária.
Numa sociedade moderna que valoriza o presente, a questão da
memória fica quase em segundo plano, em um estado de anamnésia,
a incapacidade de lembrar. Entretanto, é inegável

que o trabalho de memória e de construção histórica pressupõe o esque-


cimento, ou seja, não há como se falar em memorização sem um trabalho
de triagem seletiva, sem uma reflexão crítica da própria memória (OLI-
VEIRA, 2009. Pág. 206).

Há, sim, um olvido, um esquecimento sobre o tempo da construção


da maior fortaleza do período colonial do Brasil, uma amnésia que atin-

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giu até mesmo os que tentam fazer uma historiografia desse aconteci-
mento extraordinário. Hugo Achugar diz que a “história, assim como
a identidade, se constrói em função de uma estranha combinação de
memória e esquecimento” (2006. Pág. 140), afirmando que os intelec-
tuais tentam “construir um relato cultural que corrige os “esquecimen-
tos” dos relatos anteriores, mas no final aparecem como responsáveis,
não dos esquecimentos, mas dos silenciamentos”. (Idem. Pág.146).
Achugar também afirma que “toda memória, toda recuperação e re-
presentação da memória implica uma valorização do passado” (Idem.
Pág. 59). Mas por estar aí implícita a questão temporal, deve-se consi-
derar as mudanças dos discursos em relação à construção historiográfi-
ca dos relatos, mesmo porque a cultura se renova a cada tempo, a cada
época, num processo profundo e constante de renovação, onde novas
perspectivas fazem parte da forma de pensar, considerando-se também
as mudanças históricas e os poderes decorrentes das mudanças socio-
culturais, de cada lugar, de cada país. Para Achugar “as mudanças, as
rupturas, os esquecimentos, as infrações à tradição, então, seriam, não
só transformações traumáticas, mas aquilo que o horizonte ideológico
de uma comunidade não pode pensar. ” (Idem. Pág.141).
A reflexão crítica a esse problema é levantada por Achugar a partir
do que chama de “democratização da memória” (Idem. Pág.158-60),
pois o conjunto de cidadãos [de uma determinada comunidade] tam-
bém reivindica o seu direito à narrativa, seu direito de contar o seu con-
to, a sua história, que não se trata da história de uns buscando silenciar
a história dos outros, mas aquela história como produto de uma nego-
ciação, pois são atores sociais. Mas como só conta história quem sabe,
diz o autor, pode-se, às vezes, desconsiderar a negociação e há quem
conte a história do Outro “até bem - intencionalmente” (Idem.), no sen-
tido de tentar representar (falar por) o Outro. Ele explica que

Historiador vem de hístor, e hístor quer dizer “aquele que sabe”, assinalou Mi-
chel de Certeau, em Heterologías. Historiador, aquele que conta a história, é

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aquele que sabe. Contudo, é possível afirmar que historiador “é aquele que
escolhe”, aquele que tem o poder para contar a história; um poder outorga-
do, não necessária ou unicamente, pela disciplina, pela academia, pelo parti-
do político ou pela instituição legitimadora. Um poder que decide onde, quem
e quando possui o saber. Esse poder/saber é um poder/saber escolher. É um
poder que decide a tensão entre o esquecimento e a memória (Idem. Pág. 159).

A conclusão do autor para a questão da opção de quem conta a his-


tória é a de que nunca se conta tudo, pois não poderia ser possível con-
tar tudo. E quando se propõe contar uma história podem ocorrer pri-
vilégios, esquecimentos ou silenciamentos. A lógica discursiva dessa
afirmação é que há uma seleção dos fatos a serem narrados, portanto
torna-se impossível para quem conta a história fugir da tensão esqueci-
mento-memória, mesmo do ponto de vista ético, mormente para quem
narra sob uma perspectiva da democratização da memória.
A permanência da FSJM tem uma memória a ser restaurada, não
só pelas constantes transformações que sofreu no decorrer de mais
de dois séculos, mas porque suas mudanças, seus esquecimentos e
suas rupturas fazem parte de um horizonte ideológico que lhe per-
mitiu olhares diferenciados, que não foram contados nem pela histo-
riografia oficial nem por uma literatura que resgatasse tal memória e
acendesse os esquecimentos, ou que mesmo abrisse mais os ouvidos
para escutar a linguagem escrita nos documentos dos homens que a
construíram, que cimentaram nela pedras em cima de pedras.

2.4.1. O GÊNIO INCOMPREENDIDO


Pouco ou nada se sabe a respeito da vida de Henrique Antonio Galú-
cio antes de chegar ao Brasil. Contudo, sabe-se que era italiano nasci-
do em Mântua37, em 1728, como dito acima, e que

37. Mântua ou Mantova. Cidade italiana em que nasceram o grande poeta Virgílio, autor do poema
clássico A Eneida, guia de Dante Alighieri no Canto I do Inferno (vv. 85-87) de A Divina Comédia, e o
pintor renascentista Andrea Mantegna (1431-1506). (MARQUES, 2009. Pág. 13).

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era um trabalhador da arte de cartografia e foi indicado por Carlos Martel,
destacada autoridade de sua terra, para se apresentar ao governador da
Província [do Grão Pará e Maranhão] Francisco Xavier de Mendonça Fur-
tado, que precisava de um técnico para fazer “riscos” na Comissão de Li-
mites ( BARBOSA. Op. Cit. Pág 127).

Riccardo Fontana diz que Galúcio, por ordem de Pombal, aqui


constrói uma das maiores fortalezas do Brasil e da América do Sul,

a de São José de Macapá na foz do Rio Amazonas, obra projetada e inicia-


da pelo engenheiro militar, ajudante e depois sargento-major de Infan-
taria Enrico Antonio Galluzzi de Mantova (Lombardia) entre 1763 -1769
(quando aí morreu de malária), tendo sido requisitado pela corte portu-
guesa ao Sereníssimo Duque de Gonzaga (FONTANA, 2009. Pág. 51).

É o mesmo autor que se refere ao engenheiro como o protagonista


da Fortaleza de Macapá, tendo este “a confiança do governador Fur-
tado e do chefe da comissão técnica portuguesa Carlos Martel, encar-
regado da colonização amazônica. ” (Idem. Pág. 40). Fontana informa
que em Mântua existe a fortaleza de Sabbioneta, projetada em 1588,
por Giovan Battista Antonelli, composta de seis baluartes poligonais,
que viriam inspirar o engenheiro na projeção da de Macapá.
De fato, Galúcio já teria uma proposta “de fortificação com carac-
terísticas básicas do que seria a de São José de Macapá: uma posição
abaluartada de quatro faces. Mas esse desenho ainda não seria o final.
” (CASTRO. Op. Cit. Pág 176).
Pelo conteúdo da carta de Galúcio, de 08 de outubro de 1763, quan-
do informa que teve “a honra de ser mandado pelo meu natural mo-
narca a servir a tão Augusto Soberano já mais de 13 anos” (Cód. 132.
Doc. 90), deduz-se que o engenheiro já estava trabalhando para os
portugueses desde 1750, provavelmente em Lisboa, à espera do em-
barque para o Brasil, o que ocorreu somente três anos depois, devido

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ao adiamento causado pela morte do rei de Portugal. Os membros da
Comissão só chegariam a Belém em 19 de julho de 1753.
Deve ser ressaltado que a Comissão que viria ao Brasil era com-
posta de técnicos estrangeiros altamente qualificados para as missões
que lhes foram confiadas, entretanto seus membros tinham o epíteto
de “mercenários”, junto aos militares portugueses, em função do alto
soldo que recebiam do governo português. O governador Mendonça
Furtado, após a experiência de conviver com eles à espera da Comis-
são Espanhola que nunca veio, definiu alguns dos italianos de “velha-
cos e canalhas”, porque reclamavam da falta de conforto e da comida
(FONTANA. Op. Cit. Pág. 89).
A historiadora Janaína Camilo, cita como fonte secundária, extraí-
da da obra de José Roberto do Amaral Lapa, (1978), que por sua vez se
municia no códice 1204, de 16 de abril de 1767, do Arquivo Público do
Pará, o seguinte:

Sobre Galúcio, é importante registrar que sua estadia na capitania do


Grão-Pará, anunciada pela carta escrita em Lisboa pelo Padre José Morei-
ra, em 14 de maio de 1753 (sic), teve momentos truculentos, pois não so-
mente este engenheiro, mas todos os estrangeiros e a sociedade em geral
estiveram sob os pesados olhos da Inquisição, instalada no Grão-Pará, em
1763. Galúcio, por exemplo, chamou atenção pelos seus poemas, que re-
fletiam forte personalidade (grifo meu), enquanto Gaspar João Geraldo
Gronfeld, engenheiro alemão que concluiu as obras da fortaleza de Ma-
capá, chegou a ser acusado de luterano pelo Santo Ofício (CAMILO, 2009.
Pág. 103).

É dentro dos conteúdos epistolares de Galúcio que se evidenciam


traços de sua personalidade, entendendo-se como uma pessoa genio-
sa, de personalidade forte, vigorosa e corpulenta, que traz elementos
de conduta diferenciados das demais pessoas, tendo, assim, manei-
ras habituais de ser que a distingue dos outros. Nesse contexto per-

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sonalístico, o engenheiro Galúcio encara uma figura dramática aos
olhos das personagens do seu tempo, durante a construção da fortifi-
cação. As narrativas missivistas do Comandante Nuno de Athayde Va-
rona, também detentor de uma personalidade diferenciada, vez por
outra indicam choques de mando e expressões de vaidades de Galú-
cio contra ele, que sempre reclama de intrometimento nas suas atri-
buições de engenheiro militar. Talvez por ser estrangeiro, com alta pa-
tente militar dentro do exército português, Galúcio tenha despertado
sentimentos espúrios dentro da corporação, visto os constantes recla-
mes dos seus subordinados e pela austera condução do trabalho em
um lugar insalubre como Macapá.
O engenheiro via alguns dos seus ajudantes como “preguiçosos”,
indolentes no trabalho, mas mesmo revelando que quer o melhor
para eles, sente “na alma que em algum deles se tenha insinuada a
serpente do Amor do descanço/ que poderá, como costuma suceder
na gente moça/ ser cauza de sua ruína”. [grifo meu]. (Cód. 150. Doc.
114, de 24 de junho de 1965. Op. Cit). Por essas cartas também se pode
notar que o Sargento Mor Galúcio nem sempre podia compreender a
situação dos seus comandados. Era uma pessoa exigente e muito sen-
sível nas suas relações.
Sobre seus valores e talentos literários, não nos foi possível encon-
trar nenhum verso de seus poemas, que chamaram a atenção do San-
to Ofício38. Sabe-se apenas das citações de versos do poeta italiano
Virgílio - que escreveu um dos poemas épicos mais importantes da

38. De acordo com o historiador paraense J.R. Amaral Lapa, a Inquisição visitou o Pará no período de
25 de setembro de 1763 a 06 de outubro de 1769. Ele informa que, além do engenheiro Gronfelts, acusa-
do por um padre de luteranismo, “são poucos relativamente como dissemos, os estrangeiros que cir-
culando pelo Pará acabam sendo envolvidos pela Visitação. Ficamos conhecendo ainda três deles: o
engenheiro genovês Domingos Sambosete, que o bispo D. Frei João de São José encontra em suas an-
danças e que foi o responsável pela arquitetura da reconstrução da fortaleza erguida no Gurupá em
1623 e reformada em 1762. Também engenheiro era Henrique Antonio Galluzzi, que morava na pra-
ça de Macapá e fez excelente roteiro de Belém a São José do Javari, poetando nas horas vagas [grifos
meus]. Finalmente, temos o terceiro engenheiro, também ele, Antonio José Landi, que em 1761 residia
no Pará[...]”. (LAPA, 1978. Pág.35-6).

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humanidade, a “Eneida”, em torno da figura de Enéias e a fundação
de Roma.
Galúcio também se destaca como astrônomo ao observar eclipses
do sol e da lua na linha imaginária do equador. Sua erudição e seu co-
nhecimento de engenharia, transcritos em relatório sobre a fortifica-
ção, dizendo do adiantamento das obras, ressaltam o brilho do profis-
sional que foi na sua especialidade. Esse relatório é, na verdade, um
documento em forma de relatório, uma peça que ele denomina “Pro
- memória”, com 18 itens e a conclusão sobre as necessidades da obra.
Nela o engenheiro expõe minúcias e cálculos matemáticos sobre a
produção de tijolos e telhas e sua relação com o tempo e a mão-de-
-obra necessária para o acabamento da obra (Cód. 128. Doc. 88, com
anexo. Macapá, 12 de abril de 1765).
É nítida a impressão da sua pressa: quer terminar a obra e voltar
para a sua família. No entanto seus superiores não lhe oportunizam
tal desejo, talvez pelo receio de perdê-lo enquanto o mais brilhante
dos oficiais engenheiros, necessário que era para a consecução do ob-
jetivo da defesa da foz do rio das Amazonas para o reino de Portugal.

2.5. CONSTRUTORES ESTRANGEIROS NA AMAZÔNIA COLONIAL


No centro da administração que Pombal comandou desde 1750
para a Amazônia, está a presença do seu irmão Francisco Xavier
de Mendonça Furtado, fundador de Macapá e figura imprescin-
dível para a interpretação das ações portuguesas na região norte
do Brasil.
Entretanto, a escolha dos técnicos estrangeiros, sobretudo dos ita-
lianos, foi feita ainda no reinado de D. João V, que foi buscar na Itá-
lia os melhores técnicos e cientistas, entre religiosos, leigos e milita-
res, para participarem das expedições científicas no Brasil, visando o
acordo do Tratado de Madri (BICALHO, 1999. Pág. 28-9). Entre eles es-
tavam os técnicos citados no início deste capítulo, como Sambucetti,
Ciero e Galúcio.

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Embora o centro irradiador do Iluminismo europeu fosse a Fran-
ça, a corte portuguesa tinha seus receios em contratar técnicos fran-
ceses, pois a França era uma potência bélica consolidada, enquanto
a Itália era dividida em repúblicas, reinos e ducados em luta entre si.
Além disso, os italianos eram católicos, que não corriam o risco das
ideias heréticas dos protestantes e falavam um idioma latino com ca-
pacidade de aprenderem rapidamente o português (FONTANA. Op.
Cit. Pág. 48.)39
Foi então nesse período que começaram as construções das vilas
fortificadas na Amazônia e o planejamento urbano de Belém, a capi-
tal da província do Grão-Pará e Maranhão, por ordem e Pombal. Já se
especulava aí o título de “capital do Império”, no caso de mudança da
Corte para o Brasil.
Depois da inutilidade da espera da Comissão Espanhola, os técni-
cos estrangeiros foram designados para outras missões. As de Galú-
cio foram a de fazer o mapa do Bispado do Pará e da Capitania do
Piauí, entre outras. Sambucetti, segundo Fontana (Idem. Pág. 79),
teve uma atuação muito grande na Amazônia, entre 1756 e 1771 em
Alcântara, chamada Vila Imperial, na Fortaleza de São José de Ma-
capá, na Fortaleza de Gurupá, na Vila Vistosa de Madre de Deus do
Anauerapucu e Vila Nova de Mazagão, projetada e erguida para abri-
gar no meio da floresta, às margens do rio Mutuacá, as 160 famílias,
das 340 vindas de Lisboa, após a derrota das tropas portuguesas para
os árabes na cidade-fortaleza de Mazagão, de Marrocos, hoje El Jadi-
da. Sambucetti também projetou e construiu o Forte Príncipe da Bei-
ra, no rio Guaporé, entre 1776 e 1780, ano que faleceu, como Galúcio,
de malária.
É interessante dizer que a Fortaleza de São José de Macapá ocupa
uma área de 127 mil m², com 22.574,15 m² de muralha e 2.210 m² de es-

39. Por ser o francês uma língua neolatina, assim como o italiano, creio que a posição do autor seja
mera especulação, não tendo, portanto, valor argumentativo, como motivo do recrutamento dos técni-
cos italianos em detrimento dos franceses.

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paço interno. A fortificação de Príncipe da Beira apresenta 970 m de
perímetro tendo muralhas de 10 m de altura com quatro baluartes ar-
mados com 14 canhoneiras (Idem. Pág.53).
A semelhança entre as duas fortificações é tão grande na sua for-
ma e desenho que dá condições de especular sobre o motivo de Galú-
cio ter que esconder as plantas da de São José de Macapá com tanto
cuidado por ocasião de sua morte. Pode ser que a sua aparente “lou-
cura” tivesse suas origens na suspeita e na possibilidade de plágio ao
seu trabalho como projetista, por ocasião de sua morte, quando tam-
bém o engenheiro Sambucetti, a quem, indiretamente, provocou a
ameaça de prisão e de lhe mandar a ferros para Portugal [por meio do
Comandante Nuno Varona], quando era seu ajudante de engenheiro
em Macapá.
Janaína Camilo conta que em 1773 Gronfelds solicita ao governa-
dor do Pará que perdoe três degredados que injustamente foram acu-
sados de roubarem uma planta da Fortaleza de São José de Macapá,
desenhada por Galúcio. Segundo essa autora foi instaurado um Auto
de Devassa que teve por objetivo investigar se a planta roubada, “que
era segredo de Estado, tinha sido entregue aos franceses. ” (CAMILO.
Op. Cit. Pág. 166).
Esse episódio pode ter sido o mesmo que o capitão Henrique João
Wilkens narra em longa carta encaminhada ao governador da Provín-
cia, que transcrevo integralmente abaixo:

Logo que foram entregues as Cartas que V. Exa. dirigiu ao Tenente Coronel
Comandante e a mim, se despediu o segredo em Canoa ligeira em Oficial
de Pedreiro a render José Nogueira, que se achava em Mazagão, para ser
preso com João Pedro Marçal da Silva e o carpinteiro João Pereira no Cala-
bouço à ordem de V. Exa., estes dois, que já se acharam no dito calabouço,
sendo perguntados separadamente e juntos responderam o mesmo que
já tive a honrra participar a V. Exa. na carta última de 11 de Junho [ilegível]
que estando João Pedro Marçal da Silva em casa do Sargento Mor Grons-

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feld estando este separando os riscos que havia remeter a V. Exa. daqueles
aos quais dava consumo rasgando-os, pedira o dito João Pedro ao Sargen-
to Mor alguns pedaços para piques de rendas e bentinhos para sua mulher,
e dando-lhe uma mão cheia o mesmo Sargento Mor os mandou pelo seu
filho, que é de menor idade, a sua mulher, ficando ele com o dito Sargento
Mor escrevendo e diz não soubera o que depois passou. O pedreiro cayei-
ro diz que estando com José Nogueira vira sair a dita criança com os papei
e que pedindo-os separara o dito Nogueira e ele os pedaços de que se com-
põe a Planta, que a V. Exa. remeti e as mandara grudar o dito Nogueira pelo
Carpinteiro João Pereira em cujo poder esteve, como ele mesmo diz, mais
de um ano, sem fazer caso dele nem o mostrar a pessoa alguma, diz João
Pereira que estando o dito risco na sua casa, onde ficara para grudar dado
pelo Nogueira, indo este para Mazagão, lhe pedira e que ele respondeu
o tinha perdido, e não sabia dele, e depois de partir o dito Nogueira para
Mazagão, pedira a ele o risco da Planta o cayeiro repetidas vezes até que a
buscou e lhe deu, dando-lhe o dito cayeiro o papel que remete a V. Exa. o
Tenente Coronel, com o Número 3 que igualmente diz o mesmo Carpintei-
ro lhe servia para Bentinhos, por não saber ler nem escrever, o mesmo diz
e asevera o cayeiro e chegando o pedreiro José Nogueira de Mazagão, an-
tes de entrar no calabouço, onde se achavam os 3 outros, em casa do Te-
nente Coronel em minha presença foi perguntado sobre [inelegível] e dis-
se que estando com o Cayeiro, morando ambos em um quarto, vira passar
o menino, filho de João Pedro Marçal com os papéis, e que parando ao pé
da porta, vira ele Nogueira os pedaços de que se compõe a Planta e ou-
tros mais papeis e riscos, e que sobrevindo o carpinteiro João Pereira leva-
va os ditos pedaços para grudar, e que não sabia mais deles, negando ter
ele dado os ditos para se grudarem, nem os ter separado e só sim que ti-
rara um papel riscado em lápis da Porta principal pôr ser [inelegível] ci-
vil e ele ser curioso e mandando-se fazer apreensão logo nos seus papeis,
se lhe achou só o dito papel que vai marcado número 1 e outro número 2
que é uma Planta e Profil da Guarita que ele diz lhe dera o Sargento Mor
Galúcio para executar quando esta se queria construir e logo mandando-

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-se vir a nossa presença o cayeiro e o carpinteiro João Pereira e confronta-
das convieram no mais, exceto dizer que mandara grudar o papel e que o
pedira, negando isto o Nogueira, e afirmando o cayeiro e João Pereira: fora
ele; pela confissão deles consta ter estado a Planta em casa do Carpintei-
ro mais de ano, e em poder do cayeiro, pouco mais de uma semana, e neste
tempo a ter ele levado à vila uma vez estando muito bêbado e ter mostrado
a alguns operários e gente ignorante, sem nunca o largar, e perguntando
pelo caixeiro de Antônio José Vaz, por nome José Oliveira, que o papel era
esse que levava, lhe respondeu era um risco, e se o queria por meia pataca,
respondendo o caixeiro que não, lhe tornou a dizer o queria por 4 vinténs,
ao que respondeu o sobredito que lhe não servia esse papel e que se fosse
embora pois estava muito bêbado e isto sem se abrir a dita Planta, nem a
ver, isto mesmo também assevera o dito caixeiro, que também se mandou
buscar e foi perguntando separadamente, também não consta por modo
algum se tirasse cópia, nem passasse a mão de pessoa suspeita porque ele
o dito cayeiro nunca o largou até que se fez a apreensão ( Cód. 242. Doc. 45.
Macapá, 15 de julho de 1772.)

Esta carta, com resumo de inquérito, demonstra o extremo cuida-


do que os construtores da Fortaleza tinham para que nada fugisse ao
seu controle. Janaína Camilo informa que

Silva Telles [Em seu tratado sobre a História da Engenharia no Brasil (Sé-
culos XVI a XIX):1984] afirma que o número de técnicos estrangeiros que
vieram ao Brasil, desde o governo de D. João V, é bastante elevado, no-
tando-se a atuação de 238 engenheiros até 1822, dentre os quais havia 86
portugueses, 22 brasileiros, 16 alemães, 13 italianos, 12 franceses, 2 suecos,
1 suiço e 1 holandês, não havendo registro da nacionalidade dos outros.
Essa quantidade preocupou o marquês de Pombal, que em 1770, por re-
ceio de espionagem, decretou que todos os cargos científicos no Brasil,
que outrora foram entregues a alemães e italianos, fossem remanejados
aos brasileiros ou portugueses (CAMILO. Op.Cit. Pág. 102).

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Pombal receava que os técnicos estrangeiros levassem para a Eu-
ropa seus conhecimentos adquiridos no Brasil ou que vendessem
manuscritos e publicassem cartas sobre o interior do sertão brasileiro
a países interessados nas riquezas do Novo mundo.
Na Amazônia, apesar do receio da quebra do sigilo militar e polí-
tico, que envolveu o governador Mendonça Furtado e os engenheiros
italianos, foram “superadas as dúvidas, a desconfiança e certa xenofo-
bia” (FONTANA. Op. Cit. Pág. 79) e dada, tanto a Galúcio como a Sam-
bucetti e Gronfelds, a responsabilidade de construir e dirigir os tra-
balhos de ereção das duas maiores fortalezas de que se tem notícias
no Brasil.
Fontana explica que a morte dos engenheiros, por malária, em ple-
no serviço para a Corte, fez desaparecer certo embaraço para as auto-
ridades portuguesas. O referido autor diz que

Portugal recebeu o máximo deles sem precisar eventualmente expulsá-


-los ou eliminá-los por motivos de defesa de sigilo. Sorte de todo mundo:
no celeste império chinês, os engenheiros militares, uma vez terminada a
obra, recebiam como prêmio o corte da cabeça (Idem. Pág, 79).

O receio de Galúcio deveria ter seus fundamentos: a xenofobia


dos portugueses, as constantes disputas pelo poder e mando duran-
te a construção da fortaleza e o perigo circulante das forças militares
estrangeiras que queriam seu quinhão de terra na América equino-
cial, promovia um clima de alerta permanente. Foi nesse clima que
Athayde Varona, o comandante de Macapá escreveu ao governador a
seguinte carta datada de 14 de abril de 1765, contando que foi avistado
possivelmente um navio francês nas águas do rio Amazonas.

A carta que v. Exª do primeiro do presente me, de que me fez entrega o Ca-
pitão Simão Coelho Peixote, que chegou a este porto a 11, com o número
de Tropa que V. Exª me permite a honrra de participar; em informa e qua-

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se me certifica de ser Francês o Navio visto nos baixos da Tijioca, pelas cir-
cunstâncias que a V. Exª refirio o Capitão da Charrua; pois se fosse o Navio
holandês que viesse de boa fé buscar a hospitalidade aos nossos portos,
estimaria o encontro de se comunicar com a charrua para o socorrer: E
bem pode ser que ande na deligência de reconhecer a configuração da
nossa Costa, e retificando as sondas; para segurar por este meio não só a
sua entrada, mas dos Navios, que em outra altura o poderão esperar, para
reunidos invadirem, e insultrem esta praça: como já conseguiu aleivoza-
mente aquela Nação, de baixo da paz, no ano de 1697, sendo Governador
da Colonia de Cayena o Marquês de Ferrol, com o falso fundamento de
pertencer à dita colônia, a margem da parte do norte deste Rio ( Cód. 150.
Doc. 63, de 14 de abril de 1765).

Varona conhecia a história da região e, claramente as intenções de


“aquela Nação” (a França). Sabia também que a presença dos enge-
nheiros estrangeiros era de fundamental importância para Portugal,
considerando serem eles detentores de uma refinada tecnologia de
construção militar, consolidada na construção das fortificações que
foram imprescindíveis para a defesa da região.
Apesar de todos os esforços demandados por Galúcio e dos que lhe
sucederam, no sentido de fazer continuar a FSJM até a sua conclusão,
alguns fatores colaboraram para que tal situação não acontecesse.
Em 1778, um ano depois da morte do rei D. Manuel I e a queda do
Marquês de Pombal, e quando o Capitão Henrique João Wilkens fa-
lava (como Diretor da Fortaleza de Macapá) da “feliz aclamação da
Augusta Soberana”, D. Maria I, (Cód. 327. Doc. 20, de 09 de agosto de
1778) a obra da fortaleza foi julgada dispendiosa e não teve mais a de-
vida atenção; em 1782, no dia de São José, a 19 de março, foi feita a sua
inauguração, mesmo inacabada.
O cenário da construção da Fortaleza de São José de Macapá, traz
uma história feita de inúmeras personagens, em um ambiente de uma
construção militar, testemunhada e vivenciada por elas cotidiana-

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mente. Nela não faltaram tramas, explosões de sentimentos, espúrios
ou não, verdadeiros ou falsos, mas inerentes a todas essas personali-
dades reais que se aventuraram heroicamente na região amazônica,
em uma espécie de exílio, em que padeceram as agruras de um tem-
po e de um lugar, e de suas próprias idiossincrasias, narradas em seus
discursos epistolares.
A estrutura psicológica de cada personagem real alimenta a ideia
de que suas vidas vivenciaram um romance, pois na visão teórica da
literatura não lhes faltaram as características fundamentais para uma
escritura ficcional, e os aspectos metodológicos dessa construção li-
terária estavam implícitos nos seus escritos. E eles voavam soltos em
busca de uma lógica romanesca que ninguém escreveu. Uma lógica
romanesca que se apresenta clara, guiada pelo fio da história e pela
imaginação especulativa, que se faz nesse caso, para desvendar os se-
gredos da história da construção da Fortaleza de São José de Macapá.
Nesse contexto as narrativas gallucianas e de seus contempo-
râneos ocorrem em um tempo lento, tão lento como as canoas que
serviram para transportar os milhares de carradas de pedra para a
construção das muralhas. Nesse interregno – da construção à con-
temporaneidade – um silenciamento pairou sobre a vila de Macapá
e um esquecimento parecia estar impresso nas paredes de suas ca-
sas, que só depois de 160 anos (com a criação do Território Federal do
Amapá, em 1943, e o seu tombamento em 1950) se dissipou ao troar
dos canhões. Assim, portanto, inicia a partir daqui a segunda tempo-
ralidade literária deste trabalho.

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3
O DISCURSO FUNDADOR E A CONSOLIDAÇÃO
DO TERRITÓRIO FEDERAL DO AMAPÁ: UM
SONHO NA FLORESTA (1943-1956)

Homens modernos, dispostos a construir em nome de um sonho, em


nome de uma ideologia que preconizava a mudança do mundo para
melhor como ideário político-ideológico, chegaram ao Amapá oito
meses depois da criação dos novos Territórios Federais, pelo Decreto-
-Lei 5.812 de 13 de setembro de 1943.
Seriam pioneiros de uma gleba nacional abandonada por qua-
se dois séculos pelo poder central da nação brasileira. Eram homens
decididos a tomar a história pelas rédeas e mudar o que fosse preci-
so dentro de um processo inusitado de conquistar politicamente uma
região ainda inóspita, pobre e doentia.
Com o tempo, e pelo trabalho quase tudo se tornou realidade visto
o propósito e a dimensão do discurso escrito e falado, tendo por base
os valores do passado onde estava sempre presente o exemplo colo-
nial da construção de uma fortificação e seu significado, que aponta-
ria para o futuro um lugar civilizado. Porém tudo ainda estava por fa-
zer e não havia tradição na arte de escrever.
Talvez por esses e outros conceitos e significados é que “sem a tra-
dição não há literatura como fenômeno de civilização” (CÂNDIDO,
2000, Pág. 24). Para Cândido, só com o tempo se pode formar uma tra-
dição, que são as coisas suscetíveis de mudança, que perdem valores
e agregam outros no decorrer da vida social e cultural. E assim vivia

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Macapá, na primeira fase de sua vida como capital do Território Fede-
ral do Amapá.
Ao se reportar sobre a falta de tradição literária Cândido diz que

Em fases iniciais é frequente não encontrarmos esta organização, dada a


imaturidade do meio, que dificulta a formação dos grupos, a elaboração
de uma linguagem própria e o interesse pelas obras. Isso não impede que
surjam obras de valor, - seja por força da inspiração individual, seja pela
influência de outras literaturas. Mas elas não são representativas de um
sistema, significando quando muito o seu esboço. São manifestações li-
terárias, como as que encontramos no Brasil, em graus variáveis de iso-
lamento e articulação, no período formativo inicial que vai das origens,
no século XVI, com os autos e cantos de Anchieta, às Academias do sécu-
lo XVIII (Idem).

O autor reforça inicialmente essa posição quando fala que “cada li-
teratura requer tratamento peculiar em virtude de seus problemas es-
pecíficos ou da relação que mantém com as outras” (Idem. Pág. 9). E
falando a respeito de forma mais generalizada do processo formativo
da literatura brasileira, diz que para compreender o sentido da pala-
vra formação é

porque se qualificam de decisivos os momentos estudados, convém prin-


cipiar distinguindo manifestações literárias de literatura propriamen-
te dita (grifo meu), considerada aqui um sistema de obras ligadas por de-
nominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes
de uma fase. Estes denominadores são, além das características internas
(língua, temas, imagens), certos elementos de natureza social e psíqui-
ca, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamen-
te e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. Entre eles se dis-
tinguem: a existência de um conjunto de produtores, mais ou menos
conscientes de seu papel; um conjunto de receptores formando os di-

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ferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanis-
mo transmissor (de modo geral, uma linguagem, traduzida em esti-
los), que liga uns aos outros (grifo meu). O conjunto dos três elementos
dá lugar a um tipo de comunicação inter-humana, a literatura, que apare-
ce sob este ângulo como sistema simbólico. Por meio do qual as veleida-
des mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de conta-
to entre os homens, e de interpretação das diferentes esferas de realidade
(Idem, Pág 23)

Os atores sociais já estabelecidos e organizados no Amapá, no Go-


verno Janary Nunes, mesmo sabendo da incipiente produção literária
local fundaram a Academia Amapaense de Letras, em cuja inaugura-
ção o Governador foi o principal orador. As palavras do seu discurso
publicado no Jornal Amapá, de 06 de julho de 1953 trazem a retórica
do discurso fundador.

Senhor presidente, senhores membros, excelentíssimas senhoras,


senhores.
O Amapá é uma ideia em marcha para o porvir, é um sonho que se
realiza a cada instante. Debruçado entre o Oiapoque e o Jari, no maciço
guiano, cuja idade é a da formação da terra, contempla na direção do nas-
cente a imensidão do oceano e ao sul do gigantesco Amazonas, que liga
os Andes ao mar vislumbrando seu destino universal. A história de incor-
poração de seu solo á Pátria é o mais inteligente e o mais perseverante ca-
pítulo do livro de ouro escrito pela diplomacia brasileira na fixação das
nossas fronteiras.
O Amapá merece assim uma academia, cujos membros sejam os ga-
rimpeiros de suas pedras preciosas ainda por descobrir, nesse cascalho
rico que é o seu passado, nossa mina que é sua natureza. Surpreende-nos,
entretanto, senhores acadêmicos a honra demasiada que nos concedem,
escolhendo-nos membros honorários de vossa sociedade. Não encontra-

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mos frases apropriadas para exprimir nossa gratidão a esse gesto que nos
cativa eternamente.
Desejamos que a Academia Amapaense de Letras, constituída de ho-
mens de cultura, acompanhe, participe e oriente a caminhada que o vos-
so povo vai trilhar. Os acadêmicos têm sido alvo de críticas nem sempre
justas e serenas. Acusam-nos de esterilidade, de limitação à rebeldia cria-
dora, de cenáculo vaidoso onde se esfria a chama sagrada da beleza.
Mas tantas já foram as graças de Deus derramadas sobre esta terra,
que as nossas esperanças se animam e dão-nos a certeza de que a Acade-
mia Amapaense de Letras formará um ambiente propício aos altos remí-
gios do Espírito. O Amapá é um convite irresistível aos que possuem sen-
sibilidade e aptidão para traduzir em palavras o que sentem.
Antes da criação do Território, Aurélio Buarque escreveu interessan-
te ensaio intitulado: Amapá. Elfredo Távora Gonsalves levou-nos ao Ver-
dadeiro Eldorado, Mário da Veiga Cabral, nas edições da sua Corografia
Brasileira, divulgou episódios da formação da fronteira setentrional. Ar-
thur Vianna apresentou a Histórias das Fortificações Construídas pelos
Portugueses. Palma Muniz, através dos Anais da Biblioteca e Arquivo Pú-
blico do Pará, deu-nos a História dos Municípios de Macapá, Mazagão e
Montenegro. Jorge Hurley mostrou A Participação de Macapá e Mazagão
na Cabanagem. Emílio Goeldi situou as Cerâmicas do Cunani e do Mara-
cá. O General Rondon imprimiu Rodovia Macapá/Clevelândia. Alexandre
Vaz Tavares e Acelino de Leão cantaram as belezas de seu torrão natal. Pe-
dro de Moura e Josalfredo Borges divulgaram Elementos Básicos de Nossa
Geologia. Dois cientistas franceses publicaram volumosos Ensaios Sobre a
Guiana Brasileira. Henry Coudreau com La France Equinociale e Brous-
seau com Les Richesses de La Guyane Française.
Macapá teve um jornal impresso (século XIX): PINSONIA. Eis a obra
em resumo de algumas famosas personalidades ou que passaram por
aqui deixando sua marca intelectual.
Aguardam divulgação os estudos de Álvaro da Cunha, Alceu Magna-
ni e Lúcio de Castro Soares. Ainda não foram descritas como merecem,

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no seu heroísmo anônimo a existência do balateiro, esses caboclos in-
dômitos que munidos de um pouco de sal, jabá e farinha, embrenham-
-se na mata, somem e desaparecem na floresta para voltarem meses
após, maltrapilhos e doentes. Eis senhores acadêmicos alguns temas
que pedem livros e mais livros. A cultura de um povo só se conquis-
ta acumulando experiências, somando conhecimentos e multiplican-
do pesquisas.
Pioneiros da segunda metade do século XX, lutemos para fazer do
Amapá, desta terra generosa e deste povo amigo, um conjunto amigo e fe-
liz, onde não falte a crença que constrói nem beleza e nem amor.

As citações aqui transcritas serão de suma importância para a aná-


lise final deste trabalho, visto que o teor histórico de uma sociedade
em formação, como a do Amapá, justifica o tipo de literatura produzi-
da no período citado.
A literatura voltada para o discurso fundador, o escrito no início do
Território Federal do Amapá, no qual a FSJM é, mesmo poucas vezes
citada literariamente, é uma referência para o sonho da mudança so-
cial que se escreveu e que faz parte de uma literatura emergente, mes-
mo sendo “manifestações literárias”, como disse Antonio Cândido.
Nessa categoria de “manifestações” cito aqui o trecho de um dos
primeiros discursos do governador Janary Nunes, escrito em 5 de de-
zembro de 1944, que creio ser de grande importância para a consoli-
dação dos projetos governamentais que viriam em seguida.40

A MELHOR FORTUNA TERRITORIAL


Quando se fala na criação dos novos Territórios o que salta na imaginação
do povo é o tamanho da terra. São as extensões virgens e desertas onde se
sonham tesouros. Pouco se pensa na gente.

40. Apresentação do livro de Marijeso de Alencar Benevides, “Os Novos Territórios Federais (Amapá,
Rio Branco, Guaporé, Ponta-Porã e Iguaçu) Geografia – História – Legislação. Imprensa Nacional, Rio
de Janeiro, 1946, Pág. 31/2

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A riqueza impressiona mais do que o homem. O caboclo foi sempre
humilde, calado, doente...
Entretanto o amazônida é um verdadeiro gigante. Só quem o vê na
rêde tremendo de frio aos dez dias de nascido e o acompanha crescendo
com a cultura permanente em seu sangue do plasmodium vivax ou do fal-
siparum, devorado pelos vermes, habituado ao trabalho antes de entrever
qualquer brinquedo, prematuro no sexo como no sofrimento, pode consi-
derar o vigor desse ser que venceu tremendas batalhas interiores.
Alimentado irracionalmente, analfabeto, verdadeiro pária, amarelo e
encolhido no meio das pessoas civilizadas, transforma-se num semideus
ao contacto com a natureza, enfrentando impassível as tempestades e a
pororoca, lançando-se à água para amparar a canoa do naufrágio e espe-
rando entre as ondas que o tempo amaine, ou embrenhando-se desarma-
do e tranquilo para ir colher a borracha ou a semente oleaginosa.
A febre, como a morte, não o espanta. Seguem-no como sombras per-
tinazes desde o colo materno.
Sente-se no caboclo, inteligência, sagacidade e espírito de iniciativa.
Formou a sua filosofia. Não há perigo em deixá-lo na companhia do es-
trangeiro. É inassimilável. Mudará hoje pelo interêsse sem que sua perso-
nalidade perca o seu rumo.
Encontro nessa gente as características másculas de uma raça fada-
da ao triunfo.
Teremos de sacudí-la, irritar os seus nervos adormecidos, absorvê-la
pela educação.
Se conseguirmos, porém, conservar as vidas que se perdem em fun-
ção do abandono e da ignorância, na mortalidade infantil exagerada,
estaremos multiplicando o homem indicado para o domínio da terra
equatorial.
Êle é, com toda a certeza, a melhor fortuna territorial. Tratá-lo, educá-
-lo, elevá-lo, enriquecê-lo, deverá ser a diretriz de tôda a atividade do Go-
vêrno. Porque constitui em essência a garantia da penetração e da explo-
ração da gleba e o fator mais precioso da segurança das fronteiras.

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Se nenhuma Manoa fôr descoberta nem o velocino de ouro aparecer,
só a recuperação do homem esquecido e abandonado justificaria a cria-
ção dos Territórios Federais – “obra prima da política de unidade Nacio-
nal do Presidente Getúlio Vargas”.
Misturado ao nordestino e ao sulista, - o caboclo, - irmão gêmeo do
jangadeiro, do sertanejo, do gaúcho e do vaqueiro, será o cimento que
amalgamará outras raças e desbravará o sertão, marchando sob um
azimute que só tem um destino – o Brasil primeira potência do mundo.

É Eni Orlandi que diz que discutimos identidade brasileira “seja


para dizer que não temos uma identidade, seja para afirmar que não
somos isso ou aquilo, seja para dizer que temos atributos, na maior
parte das vezes, não recomendáveis” (ORLANDI, 1993. Pág. 2)
Parafraseando a autora, diria que mais especificamente em relação
à história do Amapá, os discursos fundadores são os que funcionam
como referência básica no imaginário constitutivo do Estado, porque
se trata, sobretudo, de uma ideia, e as ideias não têm um lugar, têm
muitos, segundo afirma a autora, citando Roberto Schawarz. Nesse
contexto precisará a história local de um sentido, para ser considera-
da em sua essência. E os discursos da formação do Território Federal
se estabilizaram como referência na construção da memória coleti-
va do Amapá. Daí então, podemos, como a autora, pensar o discurso
fundador como a fala que transfigura o sem-sentido em sentido.
O acontecimento da criação do Território Federal do Amapá tinha
um sentido para o Brasil, e a FSJM serviu de base para esse discurso
fundador não apenas como a construção monumental dos conquista-
dores lusitanos do século XVIII, mas como símbolo que o Governo de
então precisava para dar sentido aos seus discursos. As falas às vezes
vinham carregadas de um linguajar poético, que uma vez articuladas
e repetidas, comoviam e incitavam ao convencimento e à ideologia ja-
narista. Janary se preocupava tanto com isso que registrava todos os
comentários dos políticos e visitantes ilustres que vinham ao Amapá

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a seu convite. No livro “O que é o Amapá – De 1944 a 1958”41 a apresen-
tação é anônima:

O Amapá tem caminhado bastante, incansàvelmente, durante os seus 14


anos de vida, entrando na fase definitiva de sua evolução, projetando-se
no cenário nacional com a determinação das coisas que não perecem.
[...]
Hoje, o Amapá vislumbra-se com uma sensação de absoluta seguran-
ça, com a certeza de que vem realmente cumprindo a sua finalidade, exi-
gindo sacrifícios humanos, renúncia ao conforto dos grandes centros,
buscando a recuperação econômica, social e humana da terra e de seus
habitantes (s. Aut./ s. ed, 1958).
Em verdade, nascemos a 13 de setembro de 1943, data da criação do
território pelo saudoso Presidente Getúlio Vargas. A 25 de janeiro de 1944,
instalava-se a administração Janary Nunes com a missão de desbravar
e despertar as energias de uma região estacionada. Esses pioneiros vie-
ram imbuídos do ideal de criar aqui uma nova civilização e de arrancar do
desconhecido este pedaço do Brasil abandonado no setentrião de nossa
Pátria, para mostrá-lo aos nossos irmãos e outras plagas, que o Amapá po-
derá dentro de pouco tempo conquistar um lugar de relevo no cenário na-
cional, projetando-se além fronteiras.
E o bandeirantismo moderno, alheio aos pessimistas e descrentes do
futuro da terra, marchou durante 14 anos ombro a ombro, dando ao seu
povo, saúde, educação, produção, colonização, obras e transportes, ener-
gia elétrica, estradas para intercâmbio entre os seus habitantes e escoa-
mento dos seus produtos, e aproveitamento do minério de manganês, sua
fonte principal de riqueza.
Essas são as métas primeiramente vencidas e a ânsia de transforma-
ção dos pioneiros continua sendo o estímulo para todos que continuam
empregando os seus esforços para que o Amapá atinja os seus objetivos,

41. S.Aut. S. Ed., Macapá, 1958

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seguindo uma política administrativa bem orientada e inspirada no de-
sejo de bem servir a coletividade. Marcharemos sempre para novas lu-
tas e novas métas, a fim de seja concretizado o mais justo e belo sonho
do Govêrno e o povo amapaense: a CRIAÇÃO DO FUTURO ESTADO
DO AMAPÁ.
E hoje, no limiar do 15º aniversário de criação do Território do Amapá,
trazemos a público o julgamento de homens de todos os matizes – nesses
anos de trabalho árduo e fecundo – sôbre a trajetória de progresso ininter-
rupto do Território.
Sentimo-nos contente por verificar que tudo mudou, e orgulhosa-
mente, exibimos para todos que pouco ou nada sabem sôbre o Amapá, o
testemunho desinteressados os mais proeminentes Estadistas, Políticos,
Embaixadores, Cientistas, Técnicos, Jornalistas, etc., que espelham perfei-
tamente tudo o que foi feito nesta região e que servem de plasma a inje-
tar em nossas veias novas energias e novas esperanças, a fim de que pos-
samos transformar a terra do manganês num grande parque industrial,
para a felicidade de seu povo sempre confiante na grandeza do Amapá e
na prosperidade cada vez maior do nosso querido Brasil.

Eis alguns desses registros publicados no livro citado. Quase sem-


pre traziam referências à Fortaleza de São José de Macapá, restaurada
pelo governo de Janary Nunes:

Depois de falar um cultor das coisas históricas, que direi eu sobre esse
legítimo monumento do passado que é, em todo o seu esplendor tra-
dicional, a Fortaleza de São José de Macapá? Curvo-me, em espírito,
n’uma sincera reverência à memória dos que a edificaram e deixo con-
signado nestas linhas o meu exaltado aprêço àqueles que, em tôrno do
soberbo forte, estão plasmando uma magnífica obra de brasilidade e de
progresso. (Impressões do Dr. PAULO SARAZATE, Deputado Federal pelo
Estado do Ceará – 27.07.48)

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O que podemos vêr com os próprios olhos, nós da caravana de Deputa-
dos federais em visita à Amazônia, nesta sugestiva e histórica fortifica-
ção de Macapá e no seu museu interior, robusteceu-se-nos a impressão
do valor da nossa gente e dos nossos avós lusos, que juntos lutaram e so-
freram por nos entregar em definitivo êste vasto território, que poderá tor-
nar-se, dentro de não muito tempo, mais do que uma simples expressão
geográfica, assim considerado pelos nossos detratores, mas uma potên-
cia digna dos magnos objetivos dos que lhe estão reservados no continen-
te americano.
As nossas cordialíssimas congratulações, pois, com os idealizadores e
executores da restauração da Fortaleza de Macapá e do seu museu inte-
rior. (Palavras do Deputado Federal AURELIANO LEITE, de São Paulo –
28.6.48).

Ao consignar, aqui, minhas impressões sobre o Território do Amapá, não


posso deixar de fazer ligeira referência aos primitivos desbravadores
destas selvas imensas, como homenagem ao seu valor, à sua constância
e à sua previdência.
A espada, nas mãos fortes do governo português; a flexa maneja-
da pelo aborígene e a cruz, trazida pelos missionários, traçaram as li-
nhas setentrionais do Brasil, em trabalho hercúleo que nos edifica e
assombra.
A luta luso-brasílica, naqueles recuados tempos, foi realmente áspera,
mas magnífica e vitoriosa. O grande Barão do Rio Branco selou-a, em de-
finitivo, com sua capacidade criadora.
Entramos na posse da área imensa e rica.
Faltava-nos, porém, a integração de seu homem e de suas riquezas.
Houve um longo período de incúria e de abandono.
Eis que surgem, a 13 de setembro de 1943, novos desbravadores quan-
do se funda o Território do Amapá!...
[...] (Impressões do Deputado Federal OSÓRIO TUYUTY DE OLIVEI-
RA FERREIRA – R.G. Sul).

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[...]
O que aqui já se acha em realização concreta, constitui uma firme,
enérgica e decidida aplicação ao programa de “sanear, educar e povoar”,
que as extensões desertas das ditas regiões estavam a reclamar. Proprià-
mente nesta capital, a tradicional cidade de Macapá, instalada sob a
proteção de sua modelar e histórica Fortaleza colonial, essa realização
se revela a qualquer espírito observador e desprevenido.
[...] (Impressões do dr, JOÃO BATISTA FERREIRA DE SOUZA –
em 23;6.1949).

[...]
A obra dos homens que aqui trabalham é uma continuação do esfôrço
heróico dos primeiros colonizadores, homens que eram gigantes e que
deixaram à portas do Amazonas, como símbolo de sua bravura, a For-
taleza de Macapá. [...] (Deputado SÍLVIO MEIRA, Líder da maioria da As-
sembleia Leg. Do Estado do Pará – 15.9.49).

“... Fiz nesta terra o investimento da minha fé e da minha esperança!”. Isso


a bordo do “Itaguary”, sôbre a água marulhante do Rio Mar, disse o Gover-
nador Janary Nunes, referindo-se ao Amapá.
Êsse investimento resultou nisso: num rincão árido, rico, porém, de
passado e de história, que o forte de Macapá recorda solene e eterno na
fôrça monumental dos seus bastiões, surgiu o esquema de uma capital
moderna, já riscada na medida da grandeza que a espera de futuro. [...]
Deus, porém, que é brasileiro, coroou por fim a fé bravia de Janary e
lhe ofertou como prêmio da sua tenacidade e patriotismo, os dez milhões
de toneladas de manganês, base real do progresso da região (Deputado
MENOTTI DEL PICCHIA, do P.T.B. do Estado de São Paulo – 25.1.54).

É ainda de Janary Nunes o discurso sobre a “Confiança no Amapá”,


um novo livro de impressões sobre o Território do Amapá, organizado
para servir de propaganda política à Câmara Federal, em 1962.

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Nessa obra Janary reafirma seu compromisso iniciado desde que
foi nomeado como governador do Território:

CONFIANÇA NO AMAPÁ
Amapaenses!
[...]
O Amapá alimentou, então, sonhos e esperanças de vir a tornar-se um
Estado rico, um São Paulo do Setentrião do País. [...]
O Amapá constituiu um exemplo autêntico da possibilidade de se
plasmar uma Civilização de alto nível sob a linha do equador.[...] (s. aut./
s.d., 1962)

Os textos acima trazem implicitamente não apenas as pequenas


manifestações literárias de um povo em formação, não apenas o
discurso fundador em busca de um sentido ideológico, mas um ri-
tual embutido no discurso de uma literatura emergente calcada na
FSJM, cuja memória histórica da construção e de seus construtores
se constitui uma ruptura com o tempo de marasmo que vai dar lu-
gar ao discurso do desenvolvimento, do progresso, da formação de
uma civilização nos trópicos. E uma nova ordem se instaura, mas
sempre com a memória como leme, em busca de uma nova tradi-
ção vivificada pelo desejo de múltiplas transformações, entre elas a
ressignificação do lugar e o vislumbre do “Amapá Estado”, uma von-
tade política que pode significar todo o esforço demandado pelos
fundadores.
Orlandi diz que

Esse processo de instalação do discurso fundador irrompe pelo fato de


que não há ritual sem falhas, e ele aproveita fragmentos do ritual já ins-
talado – da ideologia já significante - apoiando-se de “retalhos” dele para
instalar o novo (ORLANDI. Op. Cit. Pág. 13)

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O discurso fundador rompe e gera sentidos diferentes. A autora
afirma que uma de suas características é a sua relação com a “filia-
ção”, pois

Cria tradição de sentidos projetando-se para a frente e para trás, trazendo


o novo para o efeito do permanente. Instala-se irrevogavelmente. É talvez
esse efeito que o identifica como fundador: a eficácia em produzir o efei-
to do novo que se arraiga, no entanto na memória permanente (sem limi-
te). Produz desse modo o efeito do familiar, do evidente, do que só pode
ser assim (Idem. Pág. 14).

Desta maneira, os sentidos captam símbolos que vão além da


consciência, que provocam o surgimento de epifanias. A FSJM na pai-
sagem tem essa representação para os sentidos dos amapaenses, por-
que, assim, como outras imagens e mitos, ela responde a uma neces-
sidade das pessoas se identificarem. Para melhor entendimento desse
discurso, creio ser necessário recorrer às representações, onde sur-
gem mitos e narrativas que descrevem a dimensão histórica do Ama-
pá dentro do universo amazônico, ilógico, mítico, onde as coisas ina-
nimadas tornam-se anímicas (como a FSJM) e dão significado a tudo
o que não tem sentido.

3.1. AMAZÔNIA, TERRA DE MITOS


Na gênese amazônica da conquista, as fortalezas estão imbricadas,
parecendo ter o sentido de “escamas”, como se sobrepusessem propo-
sitalmente em um processo dialético inevitável, em um cenário vio-
lento de sobrevivência.
O escritor Paes Loureiro diz que a Amazônia é

Região de silêncios, recortada pela emaranhada variedade dos rios na


paisagem verde da floresta [a Amazônia], torna-se um fertilíssimo cam-
po de germinação para as produções do imaginário do homem, na frui-

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ção, no compartilhamento, na intervenção ou na explicação simbólica de
sua realidade.
A consciência imaginante da homem face a essa realidade vive em es-
tado permanentemente operatório. A relação entre o homem e a natureza
se faz de modo familiar e, ao mesmo tempo, perpassada de estranhamen-
to (LOUREIRO. 1995. Pág. 91).

Nesse cenário, o homem europeu faz parte de uma paisagem natu-


ral desconcertante e efêmera, que se transforma e transborda ao meio
de tempestades e vagalhões de ondas, de procelas que não se acabam.
Ele está diante dessa natureza inédita (porque exótica), procurando do-
mar as intempéries de um mundo não manipulável; o homem estrangei-
ro está de frente para um mundo perigoso, de forças desconhecidas, de
onde ouve narrativas fantásticas ou experimenta, ele mesmo, essa pujan-
ça imaginária ao dar vida aos movimentos naturais que os olhos veem,
que a mente imagina ao meio da ganância e da ambição de seus patrões
que lhes mandam para o inexplorado em busca de riquezas. Ele (o ho-
mem/estrangeiro) é o foco do olhar dos bichos da floresta; está entre o
temor que causam os bichos do fundo e o disparar certeiro das flechas
indígenas, avoantes ao menor descuido, vindas das margens dos rios e
das praias do mar. E sabe que, junto a ele, seus pares guerreiros europeus
também ousam os mesmos objetivos e que rondam em silêncio sob o ás-
pero sol do equador e sob a chuva rigorosa e forte. Esse homem precisa,
portanto, de proteção e de segurança, necessitando erguer fortificações.
Em sua aventura histórica, o homem europeu constrói um discur-
so para guiar sua permanência na floresta, estendendo seus domínios
sobre o leito dos rios, indo ao encontro do mar, de onde veio. Ele vem
montado sobre as asas de um tempo histórico, construindo e des-
truindo em embate permanente com as forças da natureza, na busca
de seu objetivo civilizador, registrando em documentos o que perce-
be e o que imagina como agente da ideologia da conquista, com seus
discursos e ações avassaladores.

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A Amazônia é um signo de grandeza, onde o tempo é o próprio
espaço, onde o homem sente-se isento como referência de medida,
dada a exuberância que nenhum discurso descritivo alcança, a não
ser pelas metáforas poetizadas no assombro do cenário constituído
por grandes distâncias; por acidentes geográficos onde está presente
a vida edênica quase intocada, borbulhando nas águas dos igarapés e
nos estirões de tabatinga às margens de caudalosos rios.
Recorro novamente a Loureiro para reacender a ideia de que

A Amazônia é percebida por quem a contempla, como uma grande-


za pura: é grande, é terra do sem-fim. Sua concepção está associada ge-
ralmente a outros qualificativos: rica, incomparável, bela, misteriosa, in-
ferno, paraíso. Algo que, embora próximo, está distante, como um outro
mundo. Locus do devaneio, cujas medidas físicas desaparecem e cujos
contornos se tornam sfumatos, graças a um livre pacto entre imaginá-
rio e realidade. Assimila-se sensivelmente, mais que numericamente ou
cientificamente em meio de uma grandeza sem contornos, cujo valor re-
side nessa forma imaginal de grandeza. Ideia de grandeza que internaliza
uma vaga infinidade de valores contidos nessa realidade que o imaginário
transfigura (Idem. Pág 95).

Entretanto, às margens da passagem deste homem pelo rio, milha-


res de olhos estão à espreita, segurando flechas e bordunas, assusta-
dos com o vento que tufa as velas dos navios. O autóctone, o nativo,
o que resiste em seu habitat, inevitavelmente mitificará no incom-
preensível do que vê para legar por transmissão oral aos que virão o
seu drama vivido na experiência do contato, como a impotência dian-
te do inimigo tecnologicamente mais preparado e mais forte. Então
surge a livre criação, nasce a lógica extemporânea, eivada de enun-
ciados diferenciados em torno dos eventos da conquista, mas pela
imaginação destes que recebem os também estranhos seres, vindos
de além-mar, como se sucede nos filmes Aguirre, a Cólera dos deuses

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e Fitzcarraldo, do diretor alemão Herzog, realizado na Amazônia42. É
inevitável não discorrer nas águas dos rios desse cenário fabuloso que
é a Amazônia. Convém, neste caso, transcrever o conceito de pensa-
mento mítico. Para Edgar Morin

Os mitos são narrativas que descrevem [,,,] a origem do mundo, a origem


do homem, o seu estatuto e a sua sorte na natureza, as suas relações com
os deuses e os espíritos. Mas os mitos não falam só da cosmogênese, não
falam só da passagem da natureza à cultura, mas também de tudo o que
concerne a identidade, o passado, o futuro, o possível, o impossível, e de
tudo o que suscita a interrogação, a curiosidade, a necessidade, a aspira-
ção. Transformam a história de uma comunidade, cidade, povo, tornam-
-na lendária, e mais geralmente, tendem a desdobrar tudo que acontece
no nosso mundo real e no nosso mundo imaginário para os ligar e os pro-
jetar juntos no mundo mitológico (MORIN, 1986. Pág. 150).

Para esse autor, o mito não pode ser interpretado por uma lógica,
mas por uma polilógica, que comporta algo de contingente e arbitrá-
rio. Seu universo mitológico aparece em um universo em que os se-
res inanimados têm as características fundamentais dos seres anima-
dos. E assim muito se pode ver na literatura sobre a FSJM, na visão de
alguns autores locais. No sentido mítico ela é polvilhada de histórias
de espíritos e fantasmas que ainda vivem em seus espaços, assombra-
dos, em sofrimento, no dizer da população.

3.2. MAIRI, UM MITO WAIÃPI DA FORTALEZA DE SÃO JOSÉ DE MACAPÁ


Em seu ensaio sobre a FSJM narrada pelos índios, a antropóloga Do-
minique Gallois realiza a análise do discurso mítico dos índios waiãpi,
do Amapá sobre os relatos apresentados por eles quando conheceram

42. Os filmes Aguirre, a cólera dos deuses (1972) e Fitzcarraldo (1982) tiveram a direção de Werner Her-
zog e foram protagonizados por Klaus Kinski.

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de perto a fortificação. Os índios rememoram o mito de que ela é Mai-
ri, e Ianejar é o seu herói.
Sua origem se deu quando Ianejar decidiu queimar a floresta
porque havia muita gente na face da terra. Então ele manda cons-
truir uma casa de argila (Mairi) para abrigar todos os waiãpi. Eles
entram nela e esperam. Suportam um grande cataclismo de fogo.
Muitas crianças morrem. Depois ele manda um dilúvio. Crianças
morrem de frio, mas Ianejar as faz viver novamente, soprando ne-
las. O dilúvio cessa e Mairi se encosta na margem do Paraná (ou rio
grande) e Ianejar vai embora pelo buraco do final da terra. Em Mai-
ri, os waiãpi recriam a sua humanidade, a verdadeira. Só depois os
brancos chegam, de navio, para se apossar da fortaleza (a Mairi dos
waiãpi).
Dominique Gallois, ao estabelecer conceitos de temporalidade
para explicar os mitos de Mairi e Ianejar dos índios waiãpi, enfoca que
nessa narrativa há dois tempos que fornecem argumentos comple-
mentares para a interpretação da realidade: o tempo mítico e o tem-
po histórico. Ela ainda informa que essa distinção configura “argu-
mentos construídos a partir de conceitos de temporalidade próprios a
cada um desses modos de estar no tempo” (GALLOIS. 1993, Pág. 24/5).
A autora reflete que

Se essa hipótese for correta, continuaria pertinente contrapor, para fins de


análise, argumentos míticos e argumentos históricos, que permitem com-
preender a manipulação de conceitos distintos de temporalidade embuti-
dos nessas interpretações (Idem).

Gallois também explica que

No argumento mítico, construído a partir de uma lógica classificatória


atemporal, prevalece a delimitação e a contraposição de espaços e de ca-
tegorias genéricas, ao passo que o argumento histórico desenvolve, no

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tempo, uma lógica da continuidade que pode, por sua vez, ser utilizada
para preencher os espaços previsto pelo mito (Idem. Pág. 25).

Por não ser algo que já se foi, o tempo mítico é um tempo de meta-
morfoses, é um discurso poético que se perde na memória e depois é
reconstruído de forma esfacelada pelos que ouviram os mitos de seus
antepassados. Preencher os espaços previstos pelo discurso do mito
significa dar a ele uma lógica, que creio, pode ser obtida através da
pesquisa histórica.
O mito de Mairi e Ianejar, o herói fundador dos waiãpi, é, na minha
opinião, a representação de um tempo poético, de um tempo cósmi-
co, de um tempo de sonho, que ultrapassa a dimensão da realidade
e que promove a utopia e tende a consolidá-la em um tempo linear.
Para Laymert Garcia dos Santos

O tempo mítico do xamã e do poeta é um tempo da natureza, mas ao mes-


mo tempo do sobrenatural. Porque o poeta e o xamã vivem nesse tempo.
“A poesia é o misticismo da humanidade”, diz Henry David Thoreau, num
texto intitulado “a natureza, a poesia e o poeta” – reencontrando assim,
Claudel, que considerava Rimbaud “um místico em estado selvagem”. [...]
O tempo mítico é o tempo do sobrenatural porque o tempo está eter-
namente começando, está sempre no início da divina criação.
[...] Os xamãs e os poetas são os guardiões das metamorfoses. Não
só porque vivem num tempo mítico, tempo fluido, gerador de mudan-
ça, de criação, mas também porque existem como manifestação desse
tempo, são a própria expressão do tempo mítico em ação (SANTOS, 1992.
Pág. 197/8).

O autor enfoca que eles guardam o eterno, que se aloja e permane-


ce porque é dinâmico e gera a metamorfose. Nesse momento há uma
transcendência, algo eterno na temporalidade. Assim o próprio tem-

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po linear da história não se contrapõe ao tempo circular do mito. Esse
tempo é cíclico porque

Sempre retorna, sempre se recoloca como tempo que se realiza, e é li-


near, porque essa realização é uma sucessão de instantes únicos. O que,
para dizer no mínimo, confere relatividade absoluta à noção de “progres-
so” (Idem).

Na contraposição do projeto político de Janary, que de certa ma-


neira se rodeou de intelectuais e poetas, o tempo linear estava molda-
do na ideia desenvolvimentista, na qual o dinamismo das ações de-
senvolvidas por ele necessitava de uma ideologia para que pudesse
domar definitivamente a terra e as pessoas a que foi escolhido para
governar. Naquilo que flui dessa metamorfose angustiante há um
tempo total que poderia ser modificado com palavras, pois o presen-
te, na época, se revelava como o futuro que sonhava e que caminha-
va paralelamente ao seu projeto de vir-a-ser. A essa ideia de projeto
e a pressa de mudar, de transformar, de metamorfosear a gleba ama-
paense, visando a implantação de uma civilização nos trópicos, o que
fluía não era a poesia, mas o suor e a vontade da transformação, da
vinda da modernidade e o progresso reverberado num tempo onde o
mito só teria vez se se escrevesse – literariamente, de forma poética e
convincente, uma ideologia que embalasse todos em uma viagem no
navio da sua utopia.

3.3. O ENCANTAMENTO DO DISCURSO


O chamado centro urbano de Macapá por diversas vezes mudou seu
espaço de ocupação. Inicialmente, após sua fundação em 1758, se de-
senvolveu ao lado da igreja de São José e em seguida deslocou-se para
próximo à FSJM no período de sua construção (1764-1782).
Antes do desmembramento do Estado do Pará e da instalação do
Território Federal do Amapá, a partir de 1944, Macapá, situada à mar-

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gem esquerda do rio Amazonas, era uma cidade de dois mil habitan-
tes vivendo o seu tempo lento, que subitamente seria interrompido
por um processo de mudança estrutural que iria influenciar decidida-
mente sua vida citadina.
Da mesma forma como Roberto Cardoso de Oliveira enfoca no seu
trabalho que tem como título Os (des) caminhos da identidade (CAR-
DOSO, 2000. Pág. 7) questiono aqui sobre como visualizar melhor essa
identidade, que parece estar escondida nos escaninhos da memória
coletiva e nos escritos bastante esparsos da época da instalação do pri-
meiro governo do então Território Federal (1943-1958). Mas ao falar em
identidade, baseado em escritos do passado, não significa que estou
dando contornos para materializar teoricamente esse conceito, posto
que as pressões das diferenças, as alteridades e as diversidades cultu-
rais e ambientais se estabelecem dentro dos textos. Daí enfatizar o con-
ceito de identidade de Hall que as identidades são celebrações móveis.
Ao meio do processo histórico da transformação do Amapá em
Território Federal a questão política e social sofre uma coalescência
inevitável na cultura, tanto daqueles que chegam como pioneiros da
instalação do primeiro governo territorial (colonizadores), movidos
pelas injunções políticas do Governo Vargas, como daqueles que re-
cebem e absorvem a ordem política emanada (autóctones) em um ce-
nário social impactante e abrangente, que iria modificar para sem-
pre todo o universo construído pelos seus antepassados. Valho-me,
então, da percepção do discurso político para enfatizar essa condi-
ção histórica, pois estes são relatos de cunho ideológico que afetam
os que o absorvem. E mais: todo discurso possui interferências que
estão ligadas no cotidiano de uma sociedade e, consequentemente,
na cultura do povo, e nas crenças (MORTARI e PAIM, 2009) políticas
dos proponentes das mudanças naquele período da vida amapaense.
Nesse caso é indubitável a literariedade do discurso, pois a sua natu-
reza consiste em ser uma narrativa dotada de certo poder de encanta-
mento (SOUZA, 1990).

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Além do texto sobre a Mística do Amapá, inclusa no livro de Álva-
ro da Cunha (1954), não posso deixar de enfocar alguns aspectos re-
levantes do impacto social causado pela mudança, que a meu ver foi
avassaladora, como a visão da população pobre (autóctones) diante
das decisões governamentais expressas nos “ladrões” de Marabaixo43,
quando parte da população negra foi removida da frente da cidade
para terrenos mais distantes do centro, na primeira reforma urbana
da cidade. Embora um conceituado historiador local tenha escrito em
um blog memorialista do Amapá (Blog do João Lázaro) que as famí-
lias dos removidos receberam uma indenização por conta disso, não
tivemos acesso a nenhum desses documentos, o que inicialmente nos
leva a conjecturar que os terrenos que essas famílias receberam em
outros bairros que foram criados para absorvê-las, por serem grandes,
eram a própria indenização.44

3.4. A MÍSTICA DO AMAPÁ: UM REFORÇO IDEOLÓGICO AO DISCURSO FUNDADOR


Apesar do governo de Janary Nunes ter sido instalado dez anos antes
da publicação do livro de Álvaro da Cunha, acima referido, conside-
ro que o mesmo traz em si o teor ideológico daquele governo pionei-
ro, que pretendia “construir uma civilização nos trópicos”, influencia-
do pelo patriotismo de Rondon, e pelo contexto da Segunda Guerra
Mundial (No município de Amapá foi construída uma Base Aérea
Norte-Americana.
Nesse ensaio Álvaro da Cunha analisa aspectos diversificados do
então Território, enfatizando a situação encontrada pelos primeiros
governantes: a orientação do governo getulista; os primeiros proble-
mas de relações públicas e administrativas; e a Mística do Amapá, um
tipo de louvor à terra, compreendida então como aquilo que poderia

43. “Ladrões” são músicas do Marabaixo cujas letras, muitas vezes improvisadas no cantar, expressam
alguma história acontecida na comunidade. Ver primeiro capítulo desta tese.
44. Então foi feita uma relação de troca. Ver: LÁZARO, João. Porta-retrato: Macapá de outrora. Dispo-
nível em: < http://porta-retrato-ap.blogspot.com.br/ >. Acesso em: 10 Mai 2015.

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ser o caminho da redenção e do progresso, se fosse levado em conta o
trabalho profícuo e o permanente otimismo oriundo dessa ideologia.
Tratava-se de uma ideologia fundada num excessivo clamor ao traba-
lho, através do amor ao Amapá e da exploração da terra e de seu po-
tencial, com a participação de todos e sob o comando de um grande
líder político. Ele explica:

O que é a Mística do Amapá? A Mística do Amapá talvez não possa ser de-
finida numa frase apenas. Talvez não possa ser compreendida em cida-
des excessivamente urbanas. A Mística do Amapá é o culto do chão. Para
compreendê-la é preciso, sobretudo, sentimento glebário, espírito de grei,
de amor pelo meio, tão afastado, infelizmente, da consciência humana
nos aglomerados modernos.
A Mística do Amapá é a propagação desse sentimento telúrico e da
ideia fixa de que existe, palpitante, e viva, mais duradoura que a existên-
cia do homem, uma força una, subjetiva e sagrada, a que chamamos “o es-
pírito territorial”.
A Mística do Amapá é também a consciência de que nós, brasileiros,
somos um povo de possibilidades incomputáveis, um povo excepcional
e jovem, predestinado não apenas a ter prestígio continental, mas a ser,
com toda a certeza, e ainda neste século, “a primeira potência do mundo”.
Isso é repisado frequentemente pelo jornal, pelo rádio, pelo cinema
e, principalmente, nas escolas onde se preparam as novas gerações do
Território.
Em nosso meio não se concebe nem mesmo uma oração política, ou
de qualquer caráter, que exalte o solo e a família amapaense. O Governo
do Território, criador da Mística, tem o maior interesse na sua permanên-
cia. Graças a ela a equipe dos servidores pioneiros não trabalha somente
com a visão material do salário. Foi persuadida de que vive um sentimen-
to histórico e está lutando para que ele seja o mais glorioso possível.
Dos funcionários novos, os que não acreditam na Mística ou que não
lhe dão importância, pelo menos não se atrevem a contrariá-la. Sabem

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que estão diante de um tabu, de uma crença querida e cultuada com mui-
to carinho, especialmente no coração dos velhos moradores. (CUNHA.
Op. Cit. Pág. 14)

A visão de Cunha não está apenas na técnica e na informação utili-


zada nos seus escritos de administrador. Ele possuía também a visão
crítica da realidade e a veia poética dada a poucos.
Depois de dez anos governando o Território, Janary precisava se
manter no poder com um discurso que provocasse no povo a respon-
sabilidade do trabalho “numa região em que tudo estava por fazer”
(Idem. Pág. 12), num local em que a população aumentara considera-
velmente e que precisava ser abastecida em suas necessidades mais
imediatas.

Não havendo produção o Governo plantou para abastecer, fez-se mar-


chante, fazendeiro e distribuidor de carne. O plano de obras era enorme,
mas não havia tijolo ou telha, mosaico ou marmorite e outros materiais
necessários para construções, e a importação era muito cara. Então o Go-
verno montou uma olaria de grande vulto, depois invadiu outras ativida-
des da área privada porque as que existiam eram frágeis. Construiu hotel,
rádio, jornal, transportes fluviais, trabalhos agrícolas, além de empregar-
-se nas funções administrativas. E permaneceu sob a égide ideológica da
Mística do Amapá. (Idem.)

No meu ponto de vista ela foi o reforço orgânico necessário para


a manutenção do poder num período em que este foi ameaçado por
forças políticas contrárias ao seu governo. Depois de dez anos seria
natural que a ideologia do governo tivesse se desgastado e, em sua
lógica para explicar e justificar a realidade concreta, também tivesse
funcionado para dissimular a dominação e esconder conflitos.
O governo estava presente em todas as esferas de realidade, em to-
dos os momentos da vida social. Como detentor dos meios de comu-

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nicação, propagava, mantinha e reproduzia sua concepção de mundo,
de um grupo hegemônico comprometido com modelos valorativos
que àquele instante eram importantes para a sua sobrevivência.
Álvaro da Cunha pensava o Amapá além do aspecto político e ma-
nifestava uma energia contagiante que tornava as pessoas mais ati-
vas no seu dia-a-dia. No seu ensaio, falava a respeito das variações da
Mística para explicar o “espírito de competição com o Estado do Pará”
(Idem. Pág. 15), informando que quatro quintos dos funcionários e fa-
mílias que vieram para o Amapá na época da Instalação do Governo
eram procedentes do Pará. Ele falava que

os paraenses saíam da capital para o mato. Das avenidas para a beira


do rio. Do conforto da metrópole para a pobreza extrema do interior.
Trocavam as excelências da iluminação elétrica pelas trevas constantes
dos povoados sem luz. Trocavam a possibilidade da educação para os
filhos e dos recursos médicos mais fáceis, pelo atraso cultural, pela in-
certeza dos socorros médicos que tornava quase sinistro o panorama de
saúde pública em toda a região. Substituíam os seus bangalôs de alve-
naria, os seus lares confortáveis, pelos casebres de madeira, pelos edi-
fícios coloniais em ruínas, então os únicos existentes na própria capi-
tal do Território.
Eles eram, portanto, os pioneiros, os fundadores, as cobaias humanas
de uma nova experiência política e social. Por que agiam assim, de modo
evidentemente insensato, esses bandeirantes quase líricos, numa época
que borrou com as tintas do ridículo e sentido glorioso das Bandeiras? Es-
pírito Cívico somente? Anseio itinerante, nômade, cigano, de conhecer
novas terras? Não. É evidente que não (Idem).

O autor diz que a maior parte deles era pobre e que em Belém vi-
viam em situação marginal, mas todos “Buscavam o novo campo,
atendendo os apelos do futuro e fustigados pelo anseio de uma vida
melhor” (Idem).

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Esse paraense, de Belém, foi um escritor culto, que cedo se iniciou
nas letras publicando uma produção diversificada de crônicas, poemas
e artigos em jornais e revistas de Belém e Macapá. Era um homem que
vislumbrava o sonho de todos e que ”viveu em Macapá os anos mais
férteis e felizes de sua mocidade” 45, como disse Alcy Araújo no prefácio
de “Amapacanto”. Por ter publicado a Mística do Amapá em seu livro,
e mesmo afirmando que ela foi criada pelo governo, é possível que Ál-
varo da Cunha também tenha sido o mentor intelectual do nascimen-
to dessa ideologia, posta a sua influência no governo e a sua atuação
em relevantes cargos públicos, chegando a ser inclusive presidente da
Companhia de Eletricidade do Amapá, segundo seu prefaciador Alcy
Araújo. Entretanto, o discurso traz em si a visão positivista do progres-
so e o determinismo racial tardio que, como Euclides da Cunha em Os
Sertões e nas suas confabulações sobre a Amazônia em À Margem da
História, “infunde no seu método de observação geográfica um interes-
se vivíssimo pelos problemas humanos, sempre em um tom que osci-
la entre o agônico e o trágico” (BOSI, 1994. Pág.). Humanista e não pes-
simista, o texto de Cunha também é uma conclamação quase religiosa.
Por ser uma mística, logo seria necessária a presença de termos como
“culto ao chão”, “sentimento glebário”, “espírito de grei”, “de amor pelo
meio”, “sentimento telúrico”, “força subjetiva e sagrada”, “espírito terri-
torial”, “povo predestinado”, “desprovido da visão material do salário” e

45. Os intelectuais tinham um papel importante na burocracia governamental. Vindos de diversos lu-
gares do país, estiveram coesos com a política janarista e minados pelo fascínio de sua realização. Fo-
ram os principais divulgadores da “Mística” enquanto intelectuais orgânicos e intelectuais tradicionais
no serviço conectivo entre governo e povo. Álvaro da Cunha se encaixa no conceito de Gramsci, onde
o intelectual tradicional é “aquele que desenvolve funções culturais de ligação entre as administrações
políticas regionais ou nacionais com o conjunto da população ainda não incorporada às relações de
produção capitalista”. O orgânico é aquele “que age como indivíduo ou atuando no partido político que
representa seus interesses sociais, sendo o portador de um projeto de ‘hegemonias’, baseado em um
universo cultural e moral que desagrega valores anteriores e constrói novos”. Neste, não levo em con-
ta o significado cabal da teoria gramsciana (“o intelectual orgânico é o máximo grau de consciência so-
bre sua própria situação na sociedade”), mas como conceito que caracteriza o papel do modificador
da situação encontrada. [GONZALES, Horácio. O que São Intelectuais. Brasiliense, São Paulo, 1982].

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“é uma crença querida e cultuada com carinho”. Nessas expressões está
implícita a conjunção de termos apelativos de convencimento onde se
unem a subjetividade ideológica que alimentaria o poder e por outro
lado o pretenso desinteresse do trabalhador por bens materiais, cons-
ciente que estaria do envolvimento geral e popular da responsabilida-
de pelo desenvolvimento econômico do Território. Todos teriam esse
“espírito de grei” que significa congregação, povo, nação, sociedade,
partido, mas que também é um rebanho de gado miúdo [grifos meus]
(FERREIRA,1986). Resta ainda lembrar que os pioneiros, no dizer do
autor, eram “cobaias humanas” e ao mesmo tempo “bandeirantes qua-
se líricos”, que vinham para o Amapá com o mesmo propósito colabora-
tivo, a bem dizer com espírito altruísta.
Para Orlandi, (Op. Cit. Pág. 23) que faz algumas considerações con-
clusivas sobre o discurso fundador, reconhecendo três aspectos rele-
vantes da historicidade

o discurso fundador pode ser observado em materiais discursivos de di-


ferentes natureza e dimensão: enunciados, mitos, lendas, ordem de dis-
curso, mecanismos de funcionamento discursivo, etc. O que define o dis-
curso fundador, a nosso ver, não são esses materiais, mas a historicidade
tal como a enunciamos anteriormente nos três aspectos da historicidade
(ORLANDI. Op. Cit. Pág. 24).

É importante dizer que o autor é o que faz a produção do sentido


do qual falamos acima, que ele faz a sua tarefa no tempo e no espaço
dando sentido e significado e se definindo em relação a uma obra es-
crita, no caso o discurso fundador reforçado temporalmente.

3.5. O ENCONTRO COM O OUTRO: INJUNÇÃO E PODER


A ordem formal da ocupação da área geográfica que seria o Território
Federal do Amapá causou - como falamos antes - um impacto, talvez
com um precedente semelhante quando da construção da FSJM, en-

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tre os habitantes de Macapá. Esses moradores viviam em um sistema
cultural tradicional, um tempo lento, bem característico das cidades
ribeirinhas da Amazônia. Os nativos eram, em sua maioria, negros e
mulatos pobres, descendentes de escravos que ajudaram a construir
a FSJM e que viviam da agricultura nos arredores da cidade. Macapá
era sede de um município organizado, mas muito pequeno e com
uma população inferior a dois mil habitantes. Segundo o depoimento
do Sr. Zacarias Leite, na segunda década do século passado,

“A cidade de Macapá ia até os fundos da igreja São José, onde se localiza


ainda hoje o cemitério. Naqueles tempos antigos havia ali apenas um ca-
minho [...]. Macapá não tinha luz elétrica. Nos postes, só lampiões a que-
rosene. Dentro da igreja, bicos de gás a carbureto (CAVALIERI, 1981. Pág.).

Nada havia de novo na cidade até maio de 1944, exceto um trapi-


che, mandado construir pelo governo do Pará na administração do
prefeito Eliezer Levy. Havia uma fortaleza abandonada, que servia de
curral, uma doca por onde chegavam embarcações com víveres para
abastecer a cidade e uma vida comercial na qual a maioria dos co-
merciantes era estrangeira. Pairava entre os habitantes uma grande
expectativa no propalado desmembramento do Pará e na instalação
do governo amapaense.
Foi então que, imbuído pela orientação do Governo Federal no
trinômio “Sanear-Educar-Povoar”, o primeiro governador do recém-
-criado Território Federal do Amapá, desembarcou em Macapá por
volta de 12 horas do dia 25 de janeiro de 1944 de um avião do Correio
Aéreo Nacional, não sem antes encontrar sua primeira dificuldade:
quatro horas antes um forte temporal caía sobre a futura capital, o
que obrigou o avião a voltar para Belém e depois retornar, em meio a
uma grande recepção.
A expectativa traduzia-se numa remota esperança de desenvolvi-
mento ao lado de uma arraigada desconfiança que aos poucos mais

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de mil habitantes devotavam à política a ao serviço público do Esta-
do do Pará, pois o povo da região, isolado geograficamente pelo rio
Amazonas, só tomava conhecimento dos poderes públicos sediados
em Belém através dos tributos recolhidos, da força policial e dos sa-
ques regulares à riqueza nativa, além de sentir a inexistência de inte-
resses que pudessem pelo menos modificar aquele quadro de miséria
que por séculos se estampava na face dos autóctones (CUNHA. Op.
Cit. Pág. 25).
A situação socioeconômica do Território era desoladora e virtual-
mente caótica. Grande parte da população sofria de endemias tropi-
cais tais como malária e verminose. Dos 25.000 habitantes poucos sa-
biam ler e escrever, pois existiam apenas sete escolas em péssimas
condições de instalação (Idem. Pág. 26). Tudo era precário.
Com exceção do prédio da Intendência e de duas casas recuperá-
veis, Macapá encontrava-se completamente em ruínas (Idem. Pág.26)
e embora o ímpeto inicial do governador fosse “arregaçar as mangas”
para o trabalho, as inúmeras dificuldades encontradas retiveram-lhe
as iniciativas propostas nas primeiras diretrizes, pois estas “não po-
deriam ser as de adaptar a organização ao meio ambiente, mas as de
adaptar o meio ambiente à organização” (Idem).

3.6. AS ESTRATÉGIAS DO GOVERNO TERRITORIAL


Não obstante o rol de problemas apresentados, Janary ainda se depa-
rou com outro mais grave, pois se tratava da relação do novo Governo
com a população, e era urgente para ele solucioná-lo.
Cético quanto às intenções do governante, o povo ainda se banha-
va nos resíduos da administração paraense e isso travava as atitudes
governamentais. Álvaro da Cunha informa que, quando Janary anda-
va pelas ruas, “era observado com olhares de temor e de suspeita: – O
que é que esse capitão vai ‘fazê’? Interrogavam os habitantes” (Idem.
Pág. 26). Segundo o autor, os moradores de Macapá procuravam ante-
cipar qual seria a primeira atitude do Governo contra eles. Mas a ati-

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tude foi a convocação para o trabalho que se constituía em algo novo
e recompensado por um salário jamais recebido por nenhum operá-
rio daquelas paragens. Ainda assim, continua Álvaro da Cunha, “por
mais estranho que pareça, os núcleos de reação surgiram e foi preci-
so extirpá-lo à força de autoridade, quase de coação policial” (Idem.
Pág. 26).
Para prosseguir no seu intento, o Governo buscou adotar um pro-
cesso de entendimento e de conciliação, oferecendo na burocracia
bons empregos aos elementos jovens que detinham maior expressivi-
dade na comunidade, “distribuindo parcelas de responsabilidade na
administração” (Idem. Pág. 27), dando prioridade aos nativos na com-
petição por uma colocação, já que o recrutamento para o trabalho em
Macapá havia exercido grande atração para a mão-de-obra dos esta-
dos vizinhos, principalmente no Pará. Outro processo foi o de ofere-
cer amizade pessoal aos moradores mais antigos e aos “chefes patriar-
cais” das famílias mais importantes, aos comerciantes expressivos e
aos dirigentes das festas religiosas e populares locais.
A situação acima sugere o enquadramento naquilo que Rober-
to Da Matta diz sobre o mundo “das relações”, que “é um fenômeno
das sociedades onde convivem éticas diferenciadas”, onde todos estão
submetidos na proporção direta em que essas relações promovem re-
cursos sociais, mobilizam e distribuem formas de pressão (DA MAT-
TA, s.d., Pág. 69/70). E essa tentacular rede de relações, concretizada
e crescente, inibia sobremaneira os “criadores de caso”, os “despeita-
dos”, os “invejosos” ou conservadores que não caíram nas graças de
Janary. Quem tinha alguma relação de amizade com o governador ou
com os membros de seu staff considerava-se importante. Via-se, en-
tão, o surgimento de algo novo, que modificava não apenas parte da
personalidade coletiva dos nativos como também modelava outra es-
trutura psicológica por meio da ruptura com o passado.
Aliado a esses processos, mais tarde foi estabelecido outro, mais
importante e dogmático, que proporcionou o entendimento e a con-

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ciliação. Tratava-se da chamada “Mística do Amapá”, da qual já falei
antes, pois ela viria reforçar cada vez mais as relações de poder en-
tre Governo e povo, entre dominador e dominado. Essa ideologia se-
ria o sustentáculo político de Janary e a hegemonia de seu governo,
porque no momento de seu nascimento, para lembrar Da Matta so-
bre sociedades relacionais, “haveria de se estabelecer códigos de
comportamento operando simultaneamente” (Idem. Pág 70). Não
competitivamente (Estado e Povo), mas complementando-se reci-
procamente.
Com a estratégia empregada por Janary Nunes, bons resultados
não se fizeram esperar. Líderes locais, entusiasmados com as pers-
pectivas de progresso, alastraram a seus parentes e amigos o ótimo
futuro daquela gleba e as relações com a comunidade melhoraram
substancialmente, visto dois fatores: o afeto do tratamento dispen-
sado pelas autoridades à população e a proximidade dessas rela-
ções, já que estava (o povo) habituado às enganações políticas e ao
abandono.
Porém, a cordialidade dessas relações de vez em quando era estre-
mecida por posturas de cunho ideológico dos partidos políticos con-
trários à política emanada do Governo Federal (pois Janary era um
militar em missão determinada por Getúlio Vargas) e pela não aceita-
ção imediata das mudanças propostas pelo Governo local. Nem tudo
estava bem. Afinal, o governo que ali chegara para propor uma mu-
dança radical se estabelecera subitamente. E naquele momento fora
também considerado uma espécie de intruso, modificador dos hábi-
tos tradicionais e avassalador, no sentido de radicalmente sanear a
paisagem, a estrutura urbana da cidade que até então estava em ruí-
nas. Os “núcleos de reação” ao Governo advinham principalmente
da resistência dos negros46 que moravam no centro da cidade, deno-

46. Não há dados quantitativos específicos sobre os negros que habitavam Macapá na época da im-
plantação do 1º Governo.

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minado Largo de São José, área que servia para cultivo de mandioca,
próximo à igreja de São José e ao longo do rio Amazonas, em frente da
cidade, entre a Doca da Fortaleza e a Intendência Municipal, próximo
do trapiche, na época o principal porto de Macapá.

3.7. O SANEAMENTO SOCIAL URBANO E A REAÇÃO TÍMIDA:


GENTRIFICAÇÃO E PROTESTO
Os negros macapaenses eram remanescentes de escravos que traba-
lharam na construção da FSJM e dos 103 outros que vieram da Mauri-
tânia com as 163 famílias de agricultores do mesmo país para Mazagão
e Macapá, em 1771 (PICANÇO, 1981. Pág.31). Eram também agriculto-
res, além de seringueiros, pescadores e extrativistas de modo geral.
Não é de se estranhar, portanto a reação à inovação do Estado, visto
que a proposta deste iria modificar profundamente o modus vivendi
daqueles. E o governador tinha poderes e capital financeiro para pro-
var que não brincava. Além disso, estava respaldado por Decreto-Lei,
com uma unidade de tropa do Exército, à sua disposição para auxi-
liá-lo na manutenção da ordem pública, e possuía pouco tempo para
apresentar um plano de organização administrativa e de metas ao Go-
verno Central (artigos 14 e 17 do Decreto-Lei n° 5.839, de 21 de setem-
bro de 1943). Em suma: tinha poder e pressa.
Janary tinha planos mais ambiciosos para Macapá: queria cons-
truir “uma civilização nos trópicos” (NUNES. Op.Cit. Pág.12) e, para
tanto, seu objetivo consistia em planejar, urbanizar e embelezar a
nova cidade embora encontrasse ainda o foco de reação dos negros
que, atônitos com o movimento, não abriam mão de suas proprieda-
des no centro e na frente da cidade47.
O governo, então usando a sua influência, convenceu Julião To-
maz Ramos (1876-1958), chamado Mestre Julião, principal festeiro e

47. Apesar de humildes, as casas e as roças das adjacências eram propriedades dos negros, doadas
por antigos senhores a seus escravos e herdadas pelos seus descendentes.

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tocador de caixa (tambor) de Marabaixo, para que, por sua vez, con-
vencesse também os moradores a se transferirem para outros futuros
bairros próximos do centro. Julião concretizou o objetivo do governa-
dor que imediatamente favoreceu muitas famílias através da doação
de terrenos urbanos que mediam 1.200 m2 para cada família.
Embora Macapá, na época, não tivesse o que poderíamos catego-
rizar como centro urbano, pois era um lugar com poucos prédios e
ruas, e habitada por uma sociedade tradicional sem grandes perspec-
tivas de mudanças, a atitude governamental no início do Território
foi um ato de gentrificação, pois afetou o espaço em que os habitan-
tes mais antigos da cidade moravam (Rua da Praia e áreas próximas à
FSJM), provocando uma alteração na dinâmica social e formando no-
vos lugares. Todo o capital simbólico tradicional daquela população
foi afetado pela perda da identidade com o lugar que habitavam, de-
vido às novas formas de morar e se deslocar (ganharam em troca ter-
renos de 1200 m2, e perderam a sua relação diária com o rio e a doca
da Fortaleza, um igarapé situado ao lado da FSJM, onde a cidade era
abastecida diariamente pelas canoas das ilhas vizinhas).
A prática da gentrificação, promovida quase à força pelo governo
territorial separou os habitantes do lugar em que viviam. Há versos
do Marabaixo em que os ex-moradores dos lugares próximos à FSJM
lamentam a mudança, falando a respeito do que deixariam para trás
para recome çarsuas vidas. Entretanto, novamente Leite enfatiza que
a questão é saber em que medida uma desapropriação de sujeitos não
corresponde a uma reapropriação de outros sujeitos. Apesar da gen-
trificação, é possível que esses sujeitos estivessem no mesmo proces-
so com possibilidades interativas. Isso ocorreu posteriormente nos
bairros de Macapá, escolhidos para abrigar os sujeitos dos remane-
jamentos (LEITE, 2007. Pág.290), possivelmente por causa das intera-
ções culturais.
Esse pode ser considerado o primeiro remanejamento de po-
pulações pobres em Macapá. A autoridade caudilhista do governo

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transferiu grande parte das famílias dos remanescentes de escra-
vos para os atuais bairros Perpétuo Socorro (antigo Igarapé das Mu-
lheres), Santa Rita (antigo bairro da Favela) e Laguinho. O Laguinho
ainda hoje congrega densa população de afrodescendentes, pos-
suindo duas expressivas escolas de samba e várias agremiações car-
navalescas e é um dos palcos dos acontecimentos religiosos e pro-
fanos do Marabaixo, além de ter um Centro de Cultura Negra onde
todos os anos, por ocasião das comemorações do Dia da Consciên-
cia Negra (Dia de Zumbi dos Palmares, 20 de novembro), é realizado
um grande evento afrodescendente chamado Encontro dos Tambo-
res e a Missa dos Quilombos.
No local das antigas roças e casas geminadas dos negros do cen-
tro e da frente da cidade o governo construiu praças, conjuntos habi-
tacionais para seu staff administrativo, uma residência governamen-
tal, escolas, estaleiro e um hotel em frente ao trapiche, principal porto
marítimo da cidade, à época.
O episódio que teve o mediador Julião Ramos como responsável
pela transferência das famílias para o Laguinho foi vital para que o
Governo transformasse a estrutura da cidade, ou melhor, modificasse
radicalmente a condição rural de Macapá em cidade pré-urbanizada.
A diversificação dos novos papéis sociais não atingiu a todos,
mormente a resistência dos mais velhos quanto à permanência de
todo um sistema de valores. Sacaca (Raimundo Souza), profundo
conhecedor de ervas medicinais e antigo morador da cidade, con-
tou-me que nas festas de Marabaixo um senhor de nome Bruno, que
era irmão de Julião Ramos “tirou” (compôs) um “ladrão” com os se-
guintes versos:

Vou seguindo nessa estrada


que de mim ninguém tem dó
O maldito Janary
Me jogou lá no Igapó

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É de se notar, portanto, que, mesmo consubstanciado uma espé-
cie de pacto o governo e os “Líderes de festas religiosas e populares”
e os “chefes patriarcais de famílias tradicionais”, ao lado da empolga-
ção dos discursos do dominador (Governo), se manifestava um tími-
do, porém significante protesto contra aquele mundo novo que des-
lumbrava a maioria e causava repúdio em alguns.
O desejo do Governo de traçar um plano urbanístico na capital con-
corria com o medo, debilmente manifestado no cancioneiro do Mara-
baixo, onde autores como Raimundo Ladislau cantavam com nostalgia

Aonde tu vai rapaz


Por esses caminhos sozinho
Vou fazê minha morada
Lá nos campos do Laguinho

Quando vim da minha casa


Me preguntou como passou
Rapaz eu não tenho casa
Tu me dá um armador

Destelhei a minha casa


Com intenção de retalhar
Mas a (da) Santa Engrácia não fica
Como a minha pode ficá?

Estava na minha casa


Conversando com a companheira
Não tenho pena da terra
Só tenho do meu coqueiro

Creio que o medo não era produto simplesmente do fato de deixar


a propriedade anterior com seus quintais frutíferos, ainda que hou-

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vesse uma melancolia e um apego telúrico ao já construído. Tudo se
direcionava a um “começar de novo”, pois não se constitui nenhuma
surpresa a verificação da relutância dos negros em aceitar com faci-
lidade a mudança, ou antes, a ânsia de desenvolvimento do gover-
no e suas condições impostas como medidas que geram dependên-
cia sobre a população. E esse desenvolvimento inicial era pretendido
como concretamente material, enquanto que poderia ser um proces-
so igualmente cultural, social e psicológico (FOSTER, s.d.). Nessas
condições é que convém identificar o sentido implícito de valor. Valor
estimativo. Não do pedaço de terra que eles deixaram para trás (“Não
tenho pena da terra / Só tenho do meu coqueiro”), porém um valor
mais perturbador: o do trabalho. O resultado explícito do trabalho de
plantar e recolher o fruto, ambíguo, da planta e do trabalho. Infere-
-se daí o ângulo do valor, que foi ignorado pelo Estado que jogou bru-
talmente um peso sobre uma cultura tradicional. Por outro lado, re-
portando-nos ao trabalho desenvolvimentista do Governo, fica clara
a existência de duas posições: a de Janary como preposto do capitalis-
mo e da burocracia, e dos macapaenses como valorizadores de traba-
lho tradicional, que virtualmente iriam sentir a mudança.
Entretanto os versos do Batuque traziam dissimuladamente em
seus “ladrões” eivados de valentia uma inequívoca luta, ainda que vã:

Tenho fama de judeu


Dei um soco num caboco
Que até a Fortaleza tremeu48

Nesses versos, o autor (desconhecido) se reporta às peculiarida-


des comerciais dos judeus que migraram para Macapá em 1879 (Fa-
mília Zagury) que, juntamente com outros estrangeiros (libaneses,
turcos, etc.), eram confundidos em suas nacionalidades e generali-

48. Versos da música “Yra Ayê”. Pesquisa da Banda Placa, gravada no CD “Avença”, 2012.

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zados como “judeus”, fortes comerciantes locais. Nos versos, a sóli-
da construção de pedra teria tremido devido à força idealizada pelo
compositor.
Perdida a batalha, ou melhor, sanado o impasse criado pelos ne-
gros mais velhos e mais resistentes à literal mudança, criaram estes
uma nova forma de expressão contra o dominador: a sátira, sempre
através das letras dos “ladrões”:

O largo de São João


Já não tem nome de santo
Hoje é reconhecido
Por Barão do Rio Branco

A Avenida Getúlio Vargas


Tá ficando que é um primô
Essas casas foram feitas
Pra só morar o dotô.

Depois do remanejamento, as antigas roças deram lugar a novos


aparatos urbanos como a construção da praça Barão do Rio Bran-
co, onde ficava o Largo de São João, e novas ruas e avenidas onde se
construíram conjuntos habitacionais para os altos funcionários do
Território.

3.8. O GOVERNO DOMINADOR


Ficam, então, duas situações diferenciadas em cujo cerne está o Go-
verno como depurador social e controlador do processo de mudan-
ças. As situações são: o governo como articulador das relações sociais,
objetivando a concretização de suas metas iniciais e o governo como
inovador num sistema cultural tradicional. Ora, dado o grau de auto-
nomia que permitiu o primeiro governo amapaense propor e estabe-
lecer condições alheias à vida sociocultural daquele povo e estender

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desde o nível pessoal ao conjunto da população, usando a força e um
discurso eivado de simbolismos, numa época de guerra, é de se espe-
rar que sua proposta tivesse que ter um nível de aceitabilidade muito
maior do que os “focos de reação” surgidos e logo “extirpados”.
Desta maneira o estudo dessas situações enseja que o “progresso”
(desenvolvimento) técnico trazido pelo primeiro Governo permitiu
a fixação de formas de evolução da urbanização que, relacionada ao
desenvolvimento das forças produtivas (trabalho) incidiu diretamen-
te no sistema de valores (cultura) da comunidade.
O Governo, em síntese, escreveu mais uma história de dominação
e de desigualdade numa região da Amazônia que poderíamos consi-
derar capitalista, não obstante ter uma organização burocrática (in-
suficiente) antes de ser Território Federal. Foi, na realidade a inserção
de valores exógenos em uma comunidade culturalmente tradicional,
que por si só, com o passar do tempo, teve condições de se reestrutu-
rar e de se reorganizar, mesmo com o impacto da instalação do seu
primeiro Governo Territorial quando sofreu rupturas indeléveis.
Todas essas colocações históricas, a meu ver, são importantes para
a questão identitária. No Amapá, ainda prevalece o sentido de uma
identidade tradicional, considerando os símbolos imanentes, veicula-
dos sempre por meio das linguagens midiáticas e institucionais, pelo
discurso ideológico e literário que sustentam um processo social em
franca mudança. Essas inferências são produtos de observações, per-
cepções e vivências particulares e públicas, de debates acadêmicos e
de informações cotidianas em conversas informais e aparentemente
triviais. Elas trazem uma espécie de familiaridade que permite obser-
var muitas facetas e pedaços de um grande mosaico para o estudo da
identidade local, onde a literatura tem o seu papel, visto a importân-
cia do sistema extratextual no contexto social, que vai além da ques-
tão do texto e linguagem ficcional e poética e dá importância à funcio-
nalidade social da literatura (SOUZA. Op. Cit. Pág.66/7), bem como
ao sistema de signo e de interações na cultura.

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De acordo com D’Incao, a

A literatura tem sido, cada vez mais, um meio importante para analisar as-
pectos do passado que dificilmente poderíamos encontrar em outras fon-
tes. A história, a trama contada na literatura, fornece informações sobre o
mundo dos sentimentos, relações, atitudes morais e, claro, também, so-
bre questões políticas e econômicas (D’INCAO, 1996. Pág. 13).

Para essa autora, tem sido um lugar-comum falar que a literatu-


ra retrata a sociedade de uma época. No entanto, é preciso conside-
rar que ela é imaginativa e nem sempre traz evidências suficientes e a
possibilidade de generalização de uma determinada sociedade.
O texto de Álvaro da Cunha, colocado no início deste capítulo, é
um extratexto literário que enfoca a ideologia de um Governo e de
uma sociedade em formação. É o retrato de uma origem onde havia
diferenças sociais marcantes, porque, no dizer de Woodward, a iden-
tidade é fabricada através da marcação da diferença, que acontece
por meio de sistemas simbólicos como também por meio de formas
de exclusão social (WOODWARD, 2008. Pág.71/72).
Essa autora diz que “a identidade não é o oposto da diferença: a
identidade depende da diferença” (Idem). Para ela, é nas formas de
diferença simbólica e social que as relações são estabelecidas por
meio de um sistema classificatório onde uma população é dividida
entre pelo menos dois grupos opostos, quais sejam: nós/eles; eu/ou-
tro (Idem).
Ao encerrar o exame da situação de fronteira (caso de Andorra)
Roberto Cardoso de Oliveira fala também da ambiguidade do proces-
so identitário, e das características bem assinaladas pelos seus cole-
gas catalães D’Argemir e Pujadas, “para os quais os contrastes entre o
nós e eles, marcadores do jogo de exclusão e inclusão, que expressa a
natureza da identidade contrastiva, podem ser observados com refe-
rência a vários operadores simbólicos” OLIVEIRA, 2000. Pág. 08).

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A terra ou território, para Oliveira, ´”é certamente o maior desses
operadores, onde o nós são os filhos da terra e os outros são os recém-
-chegados” (Idem). No caso do Amapá, considerando as injunções da
época, as coerções, e o uso de estratégias para que ocorresse a domi-
nação e a acomodação social, deu-se completamente ao contrário: o
“nós”, no território ocupado eram os “recém-chegados” e os “outros”, os
“filhos da terra”.
Mas há outros operadores simbólicos a considerar. Tudo, inclusive
a propriedade e o orgulho, foi vencido pelo processo da ocupação his-
toricamente traumático e culturalmente transformador. Essa história,
necessita de relevante investigação antropológica, com suas relativi-
zações inerentes no campo metodológico e epistemológico, tendo em
vista o caráter do objeto: as identidades do povo amapaense.
Desta forma, o presente capítulo tenta enfatizar a temporalidade
do discurso fundador, sem, contudo, descuidar do processo da forma-
ção das identidades amapaenses, justaposto à condição expressa no
contraponto do mito fundador de Mairi (A FSJM revisitada pelo povo
waiãpi). Apesar da primeira temporalidade se fixar até 1956, quando
da saída de Janary Nunes do Governo do Território Federal do Ama-
pá, e não até o ano de deflagração da ditadura militar no Brasil (1964),
justifico que mesmo com sua saída a influência de Janary permane-
ceu nesse interregno (1956-1964), principalmente após eleger seu ir-
mão Coaracy Nunes para a Câmara Federal como deputado e o irmão,
chamado Pauxy Nunes para governar o Amapá. Após a morte do ir-
mão deputado em um desastre aéreo (1958) que comoveu a popula-
ção amapaense, Janary se elegeu deputado federal, cargo que exer-
ceu até 1970.
Não há como desconsiderar a importância de Janary Nunes e de
Álvaro da Cunha no processo de construção histórica do Território
do Amapá, com vistas ao futuro estado da federação. Há uma simbio-
se de propósitos que se mostram por meio do sonho comum, do de-
sejo de realização plena que foi impulsionado pela vontade propos-

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ta na Mística do Amapá, onde a retórica emanada do discurso ganhou
adeptos que prontamente se adicionaram à causa.
Por ser o sonho uma experiência individual daquele que sonha e
que ele não pode, no momento do sonho, compartilhar com outrem,
é de se pensar, todavia, que políticos tentem imaginar um sonho co-
letivo, onde várias pessoas sonhem o mesmo sonho concomitante-
mente, pois, como dizia a filósofa Maria Zambrano, a poesia e os mi-
tos da história da humanidade nascem do sonho, das imagens, dos
fantasmas do ser do sonho. A isso se pode inferir sobre a importân-
cia dos estudos antropológicos, sobre os mitos, os sonhos, a lingua-
gem, os símbolos e a cultura, a partir das fantasias e das imagens. São
eles representações que daí nascem como aspectos e perspectivas das
coisas reais, que têm alcance social e cultural nas sociedades. Como
parte indispensável da existência humana, o sonho está presente nas
pesquisas da medicina, da história literária, da neurofisiologia e nas
religiões comparadas.
É Roger Caillois que afirma que [os sonhos] “se aproximam da cria-
ção literária ainda que esta exija em alto grau as virtudes da vigilância
e da atenção, que são diretamente incompatíveis com os abandonos e
a passividade do sonho” (CAILLOIS, 1978. Pág. 47)
Nessa afirmação ocorre, então, que o mistério do sonho tem sua
origem na imaginação, onde o sonhador, mesmo não dando consen-
timento ao que vai sonhar, se sente responsável e dá sentido às “men-
sagens” emanadas pelo sonho, pois o sonho não deixa de ser um ter-
reno comum ao adormecido que o sonhou como ao desperto que
dele se lembra (Idem).
Para torná-lo possível diante do real, entretanto, o sonhador preci-
sa buscar um mediador, que é o tempo, pois

Ele é o único caminho que se abre àquilo que é intransponível. Um cami-


nho, porém, não atravessa ou circunda simplesmente um território. O ca-
minho, realidade mediadora entre todas, retém ou evita alguma coisa do

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lugar. Onde ele está sendo aberto. Seu papel é conduzir aquilo que, sem
ele, não teria a menor possibilidade de existência: um ser que não se en-
contra inelutavelmente em um lugar que não pode instalar-se (ZAMBRA-
NO, 1978. Pág. 128).

O caminho encontrado pelos criadores da Mística do Amapá não


estava apenas no sonho. Por encontrarem um caminho vazio, sonha-
do, diante da realidade planejada, tiveram que construir um cami-
nho, ainda que fosse necessário destruir ou de arrancar os obstácu-
los (como assim o fizeram). E o caminho traçado e construído foi a
realidade mediadora adequada para a passagem desse sonho. Assim,
a palavra escrita nesse discurso fundador alcançou os autores para o
deciframento da odisseia na floresta amapaense.
Longe de buscar, neste trabalho, aquilo que Roger Bastide cha-
ma de Sociologia do Sonho, argumentando que “a sociologia se in-
teressa apenas pelo homem desperto, como se o homem adorme-
cido fosse um homem morto” (BASTIDE, 1978. Pág. 137), penso que
o sonho não deve ser confundido com o mero desejo de realização
ou o objetivo de construí-lo. Acredito que as propostas estabeleci-
das no plano de governo de Janary Nunes nasceram, sim, da obs-
tinação em realizá-lo, ainda que necessitasse de ideologias embu-
tidas nos escritos dos discursos fundadores e da própria Mística
do Amapá.
Álvaro da Cunha, poeta e intelectual orgânico do primeiro governo
do Amapá, escreve em “Amapacanto” a sua vida e o seu sonho sobre o
então Território, ainda em formação.

Ao poeta cabia
A última palavra
O direito de lavra
Como se a carga do tear
Fosse jazida

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Tudo que ao poeta se exigia
Era encargo que a carga suscitava
Não trair o universo
Que o atraia (CUNHA. s/d)

Nesses versos, o eu-lírico de Álvaro da Cunha se reporta às altas


responsabilidades técnicas para com os destinos do Amapá, princi-
palmente após ter realizado curso de pós-graduação na fundação Ge-
túlio Vargas no Rio de Janeiro, mesmo sem possuir qualquer curso de
graduação. A confiança que Janary lhe depositava era grande e Álvaro
cumpria suas obrigações funcionais e burocráticas, escrevendo e pu-
blicando trabalhos técnicos e trabalhos poéticos, ainda que lhe exigis-
sem “não trair o universo” em que estava

Tão simples
Que as pessoas suspeitavam
Em mim não o poeta
- um psicógrafo (idem)

Tão grande e séria era sua produção que pensavam ser ele um re-
ceptor de outra dimensão. Ele acreditava firmemente num futuro que
seria o redentor do Amapá em nível econômico e social. Sonhava
com hidrelétricas nos rios caudalosos do Território e com empreen-
dimentos industriais, a partir da produção do petróleo, minerais e da
agricultura.

Devo ter sido porém


Um dos primeiros
A auscultar as pulsações
Motrizes
O destino industrial de tias águas.
Antes que aflorasse a energia

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Das posições e fórmulas hidráulicas
Das soluções eletromecânicas
E das obras civis de engenharia
Eu já estava aqui

Entre rochas porosas e dispersas


Nas dobras anticlimais do subsolo
Tens Arábias Sauditas submersas
Montes Urais e Cáucasos enormes
Dormem à verde penumbra
Dos teus vales (Idem)

Álvaro arremata na sua poesia visionária:

Quem viver há de ver


Surgirem um dia
Dessas várzeas humosas e vitais
Califórnias esplêndidas e fartas
Em grãos e cereais (Idem).

Tal vidência se realiza hoje na descoberta do petróleo e gás no lito-


ral oceânico do Estado, nas jazidas de diversos minérios como o ferro,
o manganês, e minerais atômicos, e nas plantações de eucalipto e soja
no cerrado amapaense, bioma antes considerado inapropriado para o
plantio de culturas homogêneas e para a agricultura.
A consciência do poeta vaga entre o porvir e o passado decorrido
sem trégua quando o eu-lírico se transforma no limiar do tempo, na
sua memória.

Ou então voltar ao limiar


Dos anos 50
Quando jovem entre jovens pioneiros

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Mister era arvorar-me
Impetuoso
Cruelmente árdego genital e rude

Aquele que amava


Se arriscava (Idem)

Os rios amapaenses carregam a metáfora poética onírica e objetiva


do poeta, que insiste em tê-los como elementos preparatórios para o
desenvolvimento socioeconômico e para a sua saudade.

Certo
Todos os rios de janeiro me pertenciam
Minha é a sua estreita e rasa
Hidrografia urbana
Para os rios volumosos e crespos
Numerosos rios
Que me possuem
E marcam a identidade
Os rios que ilustram
Esta saudade
E geografam o homem (Idem)

Os rios de Álvaro são a passagem do tempo, onde o seu prolonga-


mento flui não apenas a voz poética, mas à própria vida almejada nas
experiências pelas quais passou visando a execução do planejamento
socioeconômico do Amapá do seu tempo.
E ele viveu, ainda que longe, na velhice, a sua memória e a sua in-
sofismável identidade de amapaense pioneiro e construtor de seu
próprio sonho em nome de muitos, afirmando que ninguém viveu tão
amorosamente quanto ele essa relação que lhe proporcionou entre-
gar-se de corpo e alma por uma causa que acreditou. Assim,

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Ninguém
Amapá
Viveu teu sonho ancestral
Integração tão íntima
Legítima
A possessão
Fraterna
Esta volúpia terna
Bruta
Total
Absoluta
Que sempre viveu
Entre nós dois (Idem)

Este poema reflete a natureza humana passível de mudança, pois o


tempo contemplou o poeta e o poeta contemplou o tempo do porvir,
da esperança, da construção de uma nova sociedade, de novas identi-
dades pela transição dos acontecimentos que é o fruto da temporali-
zação do futuro e que está sempre sujeito a mutações.

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4
O PERÍODO DITATORIAL E A LITERATURA
DAS PEDRAS: O LUGAR DAS DORES
E DOS GRITOS NAS MASMORRAS DA
FORTALEZA DE SÃO JOSÉ (1964-1985)

Este capítulo traz à tona uma temporalidade crucial no processo polí-


tico do Amapá. Tenta abarcar aqui aspectos inerentes à literatura local
na chamada Revolução de 1964, deflagrada pelos militares desconten-
tes com o rumo dos acontecimentos que poderiam, segundo eles, le-
var o país a um regime totalitário, de acordo com as justificativas dos
seus correligionários e simpatizantes.
Tenho por propósito refletir sobre a literatura relacionada aos
acontecimentos políticos que fizeram da FSJM o lugar da prisão de
pessoas aparentemente contrárias ao regime que se instalou e o de-
senvolvimento dos fatos narrados pelos escritores e por jornalistas,
dada a parca produção da contraordem na época.
Antes, porém, vejo necessidade de narrar um episódio, entre
tantos outros que coletei em publicações e em jornais, conside-
rando existir apenas um semanário de oposição ao regime e ao ja-
narismo, que ainda exercia forte influência nos governos territo-
rial e municipal, já que o ex-governador Janary Nunes agora era
deputado federal. Vejo que é necessário dizer também que em
todo o período territorial (1943-1988) o governador nomeado pelo
presidente da República era quem nomeava os prefeitos dos mu-
nicípios.

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4.1. CALABOUÇO DE DOIDOS E BÊBADOS E O ESTABELECIMENTO DO REGIME
MILITAR NO AMAPÁ: MURMÚRIOS DE BOTEQUIM
A denúncia de que a “histórica FSJM, que os portugueses erigiram no
meio da floresta para deter o estrangeirismo no Brasil, por todo o len-
çol verde da planície amazônica”, feita pelo jornal Folha do Povo, de 28
de maio de 195949, traz a ordem de utilização, segundo o repórter, para
objetivos criminosos em suas dependências. Ele culpa o “Sr. Chefe de
Polícia”, que manda prender pessoas por 3, 4 dias “pelo simples fato
da embriaguez”. A seguir o repórter narra o caso de um preso conside-
rado louco na cidade, que “de andrajos sujos, fica o dia inteiro senta-
do, espantando o moscaréu do seu corpo nauseante em cima de uma
pedra grotesca que o acaso jogou na masmorra odiosa do cume da
destruição da liberdade”. O jornalista também fala que não pôde fo-
tografar nem conversar porque os responsáveis o ameaçaram de pri-
são50 (*) “e de outras coisas que doem e magoam os princípios da ver-
dadeira democracia”.
O narrador conta ainda que além do “psicopata” estava preso um
funcionário da DSG (Divisão de Segurança e Guarda, órgão equiva-
lente hoje à Secretária de Segurança Estadual) por motivos políticos,
pois havia se rebelado contra o Chefe da Polícia e fora “trancafiado
como criminoso num mundo asqueroso de imundície”.
Após pedir severa punição ao gestor, o jornalista anônimo informa
que no início do Território, Janary Nunes solicitou ao Instituto His-
tórico Nacional e Artístico o consentimento para o aquartelamen-
to da Guarda Territorial na FSJM, porém, diz ele, “não é e nunca foi
do nosso conhecimento que foi dada a autorização para trancafiarem
nos cubículos inabitáveis dessa praça de guerra, doidos, funcioná-
rios perseguidos políticos e presos por bebedeiras”. Chama a atenção

49. Título da matéria. FORTALEZA DE MACAPÁ – Histórico monumento a serviço do crime e destrui-
ção da liberdade – Presos comuns trancafiados dentro das paredes seculares da ex-praça de guerra.
50. Nessa época a FSJM era ocupada pelo corpo da Guarda Territorial.

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para o Ministério da Justiça e para o Instituto do Patrimônio Nacional
para que

isso seja refreado, pois só tem trazido ao mundo territorial um concei-


to muito diferente daquele que era defender a Pátria. Hoje a Fortaleza de
Macapá só serve para humilhar o povo amapaense e fazê-lo esquecer de
que ela foi, em outros tempos, a sentinela avançada a serviço do povo e
do nosso Brasil [grifo meu].

Na realidade, os calabouços da FSJM sempre foram usados para


prender delinquentes e supostos inimigos dos administradores. Mas
foi mesmo no governo de Janary Nunes que passou a ter outros usos,
desde Imprensa Oficial, com seus maquinários gráficos, à sede da
Guarda Territorial, passando por oficinas de diversas atividades labo-
rais, fabriquetas e palco de desfiles patrióticos.
O discurso do repórter ainda hoje se reproduz nas escolas públicas
e se reafirma durante as datas e solenidades cívicas, o que dá à fortifi-
cação um sentido áurico e solene, como um templo51.

51. A única voz contrária que encontrei sobre a localização da FSJM, que é motivo de orgulho na de-
fesa da foz do rio Amazonas contra possível “invasão estrangeira” foi a do cientista paraense Ferreira
Penna, viajante e grande conhecedor da Amazônia do século XIX, que esteve em Macapá por volta de
1880. Ele afirmou o seguinte: “Ao sul da cidade está a Fortaleza de Macapá, construída no século passa-
do com todas as regras da arte militar, segundo o sistema de Vauban, sôbre um terreno alto e pedregoso,
que, todavia, tem sido muito escavado pela pancada das ondas do rio que ali vão quebrar-se”.
“Esta Fortaleza é considerada no Império na mesma ordem da de Santa Cruz; mas como praça de
guerra, sua importância vai além de constituir-se um centro de reunião de forças para distrair,
provisoriamente ou por um momento, qualquer agressão estrangeira [grifo meu]. Entre ela e a cor-
dilheira de ilhas que limitam o ramo norte do Amazonas, separando-o do ramo meridional, há um es-
paço de cerca de 6 milhas, que tanto é ali a largura do rio. Ao Sul daquelas ilhas e ao NO da ilha Marajó,
está o vasto ramo meridional do Amazonas que toma o nome de rio do Vieira, navegável para os maio-
res vapores do mundo”.
Ferreira Penna acrescenta que “o porto de Macapá é péssimo e pode-se dizer que não há um porto pro-
priamente dito senão uma costa açoitada, durante o verão, por ventos rijos e uma praia nua em gran-
de extensão, de modo que se não pode desembarcar ou embarcar livremente senão com a maré cheia”.
“O verdadeiro porto, o porto seguro, para Macapá não é junto a esta cidade, mas no grande canal entre
a ilha de Sant’Ana e o continente”.

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Mas nem sempre foi assim. O militarismo pós-64 fez dela um lugar
de prisão de suspeitos desde a instauração das comissões militares
de investigação contra as pessoas consideradas comunistas ou que se
suspeitava que tivessem alguma posição contrária ao regime. O jor-
nalista e poeta Hélio Pennafort informa (Pennafort, 1997. 4ª Pág.) que
antes de 1964 o comunismo era levado mais a sério pela Igreja do que
pelo Governo, depois da deposição do presidente João Goulart, que
mudou completamente o fio da história. A primeira iniciativa do Co-
mando Supremo da Revolução – nome que deram ao triunvirato com-
posto de oficiais-generais do Exército, Marinha e Aeronáutica, que
tomou conta do Brasil até a posse do presidente-general Humberto
Castello Branco – foi constituir a Comissão Geral de Investigação que
espalhou sucursais pelos Estados e Territórios, as Comissões de In-
vestigação Sumária. Esse aparelho tinha por função descobrir e pren-
der comunistas-subversivos e corruptos, onde quer que estivessem.
No então Território Federal do Amapá os mesmos exageros ocorri-
dos nos outros cantos do país foram registrados, pois a Comissão de
Investigação Sumária começou prendendo prefeitos e funcionários
graduados, impondo-lhes humilhações públicas, pois eram acusados
de improbidade administrativa. A dita Comissão começou a perseguir
suspeitos de vinculação ao comunismo internacional que nem exis-
tiam. E, “na falta de autênticos, qualquer um servia para ser comunis-
ta”, diz o jornalista.
Para ampliar o leque das preocupações policiais foram criadas as
figuras do cripto (secreto, escondido) e o filo-comunista (comunista
amigo, agradável). Todos iam presos para averiguações depois de pas-

No período seguinte ele traça sua vidência sobre o local, que nos séculos anteriores abrigou outros for-
tes militares estrangeiros. Santana viria a se tornar a partir da década de 1950 um importante porto de
embarque de minério de manganês, ligado às minas de Serra do Navio por uma estrada de ferro. Diz
o cientista: “É ali que para o futuro hão de fundear navios que tiverem de comerciar com Macapá, bem
entendido, quando os recursos dos habitantes ou as necessidades do comércio construírem uma via fér-
rea entre a cidade e aquele canal através dos campos completamente planos, que tanta facilidade ofere-
cem para essa obra” (PENNA,1971, Pág. 15.)

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sar alguns dias nos porões da FSJM ou nos xadrezes das delegacias.
Depois eram soltos sob o juramento solene de que iriam se comportar
daí para a frente. Esse foi o caso do jornaleiro - distribuidor de jornais
e revistas – Antonio Melo,

um dos primeiros presos do Golpe Militar de 64 no Amapá por razões


que nem ele sabia [grifo meu]; passou uma semana preso na Fortaleza
de Macapá; foi socorrido e libertado na época pelo advogado paraense
José Carlos Castro, que era cametaense (de Cametá, cidade do interior do
Pará) e se sensibilizou com a situação do seu conterrâneo (Disponível no
Blog Porta-Retrato-Macapá/Amapá de Outrora <www.porta-retrato-ap.
blogspot.com.br> Acesso: 06.10.2016, às 18h17).

Pennafort conta histórias tais como a de que dois conhecidos de-


legados de Macapá, estimulados que estavam pelo chamado estado
de exceção, antes de saírem para as rondas noturnas faziam apostas
para ver quem trazia mais presos das ruas, enquanto os políticos que
faziam oposição ao governo deposto se aproveitavam para se vingar
dos seus adversários que antes ocupavam cargos de mando na admi-
nistração do Amapá. Ele chega a enfatizar que nunca a delação foi tão
praticada quanto naquela época.
Em Calçoene (Município ao norte da capital) não faltaram situa-
ções crassas: o prefeito mandou prender dez moradores que protesta-
vam contra o aumento do preço da carne. Passou um telegrama para
o governador informando que havia detido perigosos comunistas que
estavam ameaçando a estabilidade de sua administração, informando
ainda que outros estavam soltos. O governador retransmitiu o telegra-
ma ao comando da 8ª Região Militar, que determinou o embarque de
soldados de Clevelândia (Município de Oiapoque) para ocupar Cal-
çoene. Segundo Pennafort, “a pantomima só não se concretizou por-
que o comandante de Clevelândia foi avisado que tudo aquilo não
passava de delírios e fantasias”.

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A farra revolucionária que se seguiu também serviu para uma es-
pécie de “ajuste de contas” com o janarismo. De tudo fizeram para
conseguir a cassação do mandato do deputado federal e coronel Ja-
nary Nunes. Mobilizaram várias comissões com o intuito de organizar
documentação que o enquadrasse como improbo e subversivo, de-
poimentos e provas foram anexadas ao dossiê e entregue ao governa-
dor por um funcionário do Gabinete do governador à Comissão Geral
de Investigação. O documento chegou ás mãos do presidente Castel-
lo Branco, mas todos os pedidos de cassação de Janary foram rejeita-
dos, inclusive o do governador general Luiz Mendes da Silva. Castel-
lo preferiu acatar o pleito do empresário que explorava o manganês
no Amapá, Augusto Trajano de Azevedo. E assim deixaram Janary
sossegado.
São muitas as histórias que ocorreram nessa ocasião, inclusive
com a mistura de arrogância e hilaridade. No carnaval de 1965 uns fo-
liões resolveram homenagear o compositor Chico Buarque e orga-
nizaram uma bandinha de música para tocar ininterruptamente “A
Banda”. Por onde ia arregimentava mais foliões. Entretanto, quando
quiseram passar na frente do palanque oficial (instalado pela primei-
ra vez na avenida FAB, onde as escolas de samba desfilavam), foram
intimados a dar meia volta porque Chico Buarque era considerado
autor subversivo. Posteriormente foram identificados no bloco alguns
cripto-comunistas, sendo seu que seu líder chegou a ser preso nos ca-
labouços da FSJM.
Em 1965 o Amapá possuía três jornais. O “Amapá”, órgão oficial do
Governo, a “Voz Católica”, que pertencia à Prelazia e então aliada ao
Governo e a “Folha do Povo”, que fora oposição e agora apoiava o gol-
pe, inclusive tendo membros de sua diretoria exercendo relevantes
cargos públicos da administração territorial. Segundo Pennafort, ago-
ra “a oposição se resumia aos murmúrios dos botequins”
A cultura local, que já era apagada, nada produzia a não ser com
o aval da censura e com algum tipo de manifestação consentida pe-

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los governantes. Certa vez foi necessário que a imprensa paraense in-
terviesse em questões ligadas ao Território. Foi quando o governa-
dor mandou prender todo o Grupo de Teatro do Amazonas que fazia
uma turnê pela região com a peça “A Respeitável Prostituta”, de Jean
Paul Sartre. Os artistas saíram direto do palco do Cine -Teatro Terri-
torial direto para a Fortaleza, onde ficaram dias prestando inúteis de-
poimentos. Esse acontecimento escandalizou o mundo artístico da
Amazônia. E

a “Província do Pará”, tradicional e conceituado jornal de Belém, fez uma


longa matéria centrando críticas principalmente ao chefe de polícia Renê
Azevedo Limonchi (ex-membro da Escuderia Le Coq da polícia carioca,
que muitos dizia ser o esquadrão da morte que aterririzava a Zona Sul do
Rio). Com as voltas que o mundo dá, Renê Limonchi foi nomeado pre-
feito de Macapá, acumulando as funções de caçador de subversivos, até
ser preso pelo governador por atos de corrupção na prefeitura. E foi bater
com as costas na mesma cela da Fortaleza para onde já tinha mandado
muita gente [grifo meu].

A partir de 1967, com a onda de inconformismo no país, o gover-


no militar recrudesceu, passando a usar de extrema violência através
de tortura, sequestros e mortes, nascendo então o AI-5, em seguida
(1968). O presidente era Costa e Silva e no Amapá o governador era
outro general, chamado Ivanhoé Gonçalves Martins.
Foi então que a Igreja local, através de um padre que se transfor-
mou em líder político-espiritual, começou a influenciar jovens ca-
tólicos com suas palestras e sermões, a respeito da situação política
nacional. Era o padre italiano Caetano Maiello, grande educador e
responsável pela comunicação social da Prelazia, que além do jornal
“Voz Católica” tinha a Rádio Educadora de Macapá, com grande au-
diência na capital e no interior, e, claro poder e influência entre o re-
banho de fiéis.

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Os jovens educados por ele quase todos foram estudar uma fa-
culdade fora do Amapá, pois em Macapá não existia ainda cursos
de nível superior. Ele enfrentou oposição de muitos dos seus pares
e de católicos tradicionais, mas era muito respeitado pela Confede-
ração Nacional dos Bispos do Brasil e colaborava com publicações
europeias que observavam a América Latina com preocupações
constantes.
Esses episódios narrados acima servem, de certo modo, para dar
um panorama na situação política amapaense, nessa temporalidade,
quando a FSJM era o palco e lugar de uma inesperada, mas preocu-
pante peça encenada pelos atores sociais de então, mormente por ter
envolvido pessoas dispostas a violentar vítimas ignorantes de um sis-
tema político avassalador e cruel.

4.2. A OPERAÇÃO “ENGASGA-ENGASGA” E O TERROR IMPLANTADO EM MACAPÁ:


A FORTALEZA DE SÃO JOSÉ DE MACAPÁ COMO DEPÓSITO DE PRESOS
POLÍTICOS.
A literatura sobre um dos eventos políticos mais importantes do anti-
go Território do Amapá, a chamada Operação “Engasga-Engasga”, só
pode ser lida através do noticiário de alguns poucos jornais que cir-
cularam no Amapá e em Belém, em trabalhos acadêmicos, na Co-
missão da Verdade local ou em alguns capítulos do inédito roman-
ce-reportagem escrito pelo jornalista Jorge Hernani52 sobre o tema,
como veremos adiante.
Na época dos acontecimentos da citada operação, o Jornal do go-
verno noticiava o fato na versão da polícia53:

52. Jorge Hernani dos Santos, jornalista, nascido em Macapá. Foi diretor de jornalismo da TV Ama-
pá e da TV Marco Zero. Trabalhou na Assessoria de Comunicação do Governo do Estado do Amapá e
morreu em 1° de fevereiro de 2006. Nessa época estava escrevendo outro livro-reportagem sobre o se-
questro de dois vereadores por razões políticas. (Fonte: Portal da Imprensa – Jornalismo e Comunica-
ção na web – 07.02.2006).
53. Preferi transcrever a matéria in totum devido os detalhes nela colocados.

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CIDADE EM PAZ NOVAMENTE
A Polícia já deitou a mão sobre o grupo que vinha deixando intranquila a
população de Macapá, praticando atentado contra diversas senhoras e se-
nhoritas, em uma ação que foi iniciada na tarde do sábado último e con-
cluída na madrugada de quinta-feira desta semana.
Caçada
Tudo começou com um atentado de que foi vítima uma senhorita no
sábado à tarde, na Avenida Padre Júlio Maria Lombardi, entre as ruas Odi-
lardo Silva e Eliezer Levy, quando um homem barbudo e cabeludo tentou
estrangulá-la utilizando possivelmente uma corda de manilha.
De início a polícia tomou as providências normais para uma tentativa
de homicídio. Mais tarde, porém, com o surgimento de novos casos seme-
lhantes, em outros pontos da capital, a população começou a ficar alar-
mada e a Polícia adotou novas medidas, já com a certeza de não se tratar
de apenas um elemento.
O próprio chefe de Polícia, coronel Gentil Campos, passou a dirigir as
operações, isto depois de manter contato com uma das vítimas e de verifi-
car que as marcas deixadas no pescoço das mesmas não eram pura e sim-
ples de um estrangulamento.
Foi montado o esquema para erradicação, bem como um levanta-
mento de todas as áreas de probabilidades.
Na madrugada de quinta-feira as providências adotadas deram os re-
sultados esperados., sendo presos os elementos implicados que estão em
poder das autoridades policiais, para os devidos esclarecimentos.
Perucas e barbas serviam de disfarce
Os perigosos elementos que a polícia prendeu na madrugada de quin-
ta-feira, utilizavam uma série de recursos de despistamento, escapan-
do dos lugares onde atacavam, pelo simples processo de mudança de
aspecto.
Perucas, barbas postiças e outros materiais foram apreendidos pe-
las autoridades policiais. Eles utilizavam perucas e barbas postiças, além
de luvas com lixa., para atacar vítimas. Logo depois dos ataques arranca-

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vam os disfarces e apareciam como se também estivessem participando
das buscas.
Foi o detetive Queiroga que percebeu o truque e prendeu o primeiro
dos marginais. Quando este já procurava fugir.
Bairro do Trem teve quatro atentados
Durante as operações efetuadas para a prisão dos marginais que ti-
nham apavorado a população, a Polícia local utilizou, segundo as decla-
rações do coronel Gentil de Almeida Campos, um total de 30 homens, em
equipes que se revezavam nos diversos setores suspeitos.
Foram atendidos um total de 33 alarmes falsos, com um total de sete
atentados, sendo quatro no bairro do Trem, dois no bairro do Beirol e
um na CEA.
Foram determinados 11 locais suspeitos que passaram a ser devida-
mente vigiados pela polícia, que colheu os resultados, prendendo em um
deles, os elementos procurados.
O próprio chefe de Polícia, ao ser indagado sobre a possível presença
de um estrangeiro ao meio dos capturados, disse não ser verídica a notí-
cia, como são inverídicas muitas outras que circularam na cidade.
O elemento que foi capturado inicialmente, isto depois de ter trocado
tiros com a polícia, acabou sendo atingido por uma bala à altura da perna,
o que fez que começassem a surgir resultados relativos à operação.
O Exército entrou em ação no último dia da operação, contribuindo de
forma destacada para o êxito da missão policial (Jornal Novo Amapá, 00
de maio de 1973).

Então novamente a FSJM foi o lugar da prisão dos suspeitos de


participarem da tal operação, mesmo que muitos – talvez todos – nem
soubessem o que realmente estava acontecendo. O editor do jornal
“Resistência”54, escreveu:

54. A linha editorial do jornal Resistência era de esquerda, e naturalmente se opunha ao regime mili-
tar. Era editado em Belém-Pa. A reportagem intitulada “ OPERAÇÃO ‘ENGASGA’ - Tortura em Macapá:
uma época de obscurantismo político”, é de março de 1980.

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Macapá, 1973 – O país vivia o terror dos anos Médici. No Amapá, várias
mulheres foram agredidas e engasgadas por desconhecidos. Era o que a
população amapaense passou a chamar de operação “engasga-engasga” –
terrorismo organizado por forças militares, interessadas em pressionar o
Governo para a implantação de uma política militar no Amapá. A cidade
viveu sob o manto do terror. Dezenas de pessoas tiveram suas casas inva-
didas, foram presas e torturadas, lá e em Belém. Durante todos esses anos
esses fatos ficaram entre o cochicho dos oprimidos e o silêncio dos teme-
rosos. Até que o Repórter Ray Cunha, teve a coragem de levantá-los (Jor-
nal Resistência, Belém, março de 1980).

Entre as informações dos depoimentos colhidos das pessoas


que foram envolvidas, coligi algumas delas de forma resumida, por
achá-las significativas ao contexto do episódio e com a narração do
autor e dos próprios depoentes, pois a reportagem de Ray Cunha
é longa.

“Muitas das personagens que participaram desta história obscurantista,


desapareceram do mapa e vivem em outras cidades; algumas se recu-
saram a falar; outras ainda revelaram medo por várias razões, entre
as quais a de querer esquecer as humilhações pelas quais passaram”
[grifo meu].
“O Governador do Amapá era Lisboa Freire, da Marinha de Guerra e o
Secretário de Segurança o sr. Índio Machado (que substituíra o anterior)
e contratou oficiais da Polícia Militar do Paraná para dar treinamento em
Macapá”.
As fichas das mulheres que haviam sido atendidas, vítimas de supos-
tos “terroristas” sumiram do Hospital Geral de Macapá (onde na época se
fazia exame de corpo de delito) ”.
“José Fernandes Ribeiro, que perdeu a panificadora e teve que supor-
tar a desintegração da família, é uma figura central no caso e, hoje com-
põe as peças do que aconteceu e ninguém sabe o que foi...” [grifo meu]

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Prisão de Odilardo Lima
“Mulheres se queixavam na polícia que haviam sido agredidas e engasga-
das por elementos desconhecidos”
“As constantes faltas de energia elétrica à noite, gerou um clima de
tensão, o que fez os parentes das estudantes irem esperá-las armados de
terçados (facões) ”.
“O clima de tensão aos poucos foi transformado em clima de terror”.
“A polícia deteve os elementos que haviam sido presos em 1964 à reve-
lia e sem comunicar a ninguém”.
“Odilardo Lima (líder comunitário da Igreja e redator do Departamen-
to de Jornalismo da Rádio Educadora de Macapá) conta que a operação
teve feições cômicas, porque ninguém acreditava na polícia. Mesmo as-
sim ele foi um dos primeiros a ser preso e recolhido à FSJM, pois tinha seu
nome na lista negra do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social),
por já ter pertencido aos quadros do Exército como cabo, de onde teria
sido expulso por incompatibilidade ideológica”.
“Ele foi abordado por homens do Exército, do DOPS, do SNI (Servi-
ço Nacional de Informações) e membros da Polícia Civil, no seu local de
trabalho”.
“Na Fortaleza, já preso em um dos porões, viu um delegado selecio-
nar correntes e nesse momento ‘não deu um tostão por sua vida’, contou”.
“Depois chegaram pessoas conhecidas como o João Capiberibe (ir-
mão do futuro Governador do Amapá, João Alberto Capiberibe, que na-
quele ano estava exilado politicamente em Moçambique), e Francisco das
Chagas Bezerra, o Chaguinha, ex-líder sindical dos Carregadores de Ma-
capá, e um dos presos em 1964”.
“Havia 28 presos em dois porões, entre eles um epilético que iria ter
ataques muitas vezes, e um velho aleijado”.
“Só depois do terceiro dia é que as famílias foram avisadas e começa-
ram a mandar comida”.
“Havia uma tropa de soldados da 5ª Companhia do 2º Batalhão de In-
fantaria e Selva do Exército, entre eles, torturadores”.

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“Bateram violentamente no Isnard Lima (Poeta) e nos outros munidos
de correntes e arames”.
“O Paul Lerouge, um professor francês, residente em Macapá, que ha-
via lutado na Resistência Francesa durante a II Guerra Mundial, também
apanhou muito, apesar da idade avançada”.
“Odilardo foi torturado durante duas horas com correntes e arames”.
“Foram levados encapuzados para o aeroporto com destino a Belém”.
“Éramos cerca de 30 presos e havia só uma mulher, que era acusada
de distribuir bombons envenenados”.
“Passamos cerca de um mês presos no quartel do Exército em Belém,
até que relaxaram a prisão e poderíamos visitar familiares, mas tínhamos
que chegar até às 22h00”.
“Entre os presos, além de Odilardo, estavam João Capi, Chaguinha,
Paul Lerouge, Alexandre Jorge e Fernando Ribeiro”.
“O Alexandre foi baleado na rótula pela polícia dentro da casa dele, e
passava mal com o ferimento”.
“Fomos submetidos a interrogatórios até sermos liberados, quando vi-
ramos ‘Hóspedes do Governo’, segundo um oficial do Exército”.
“Depois pegamos um avião (das Forças Armadas) para Macapá. Vol-
tou todo mundo”.
“O objetivo e causa de suas prisões permaneceram como uma incóg-
nita, mas não tão difícil de responder”.

Rui Lima (irmão mais novo do Odilardo), em carta ao repórter do


dia 15 de dezembro de 1979, direto do Rio de Janeiro, onde estudava,
narrou a prisão de seu irmão, entre outros pontos e afirmou sua posi-
ção política:

Nossa posição é combatida como uma política de extermínio, prisões e


tortura a todos os seus militantes. Foi nesse período do “Engasga-Engas-
ga” que comecei a ver as coisas mais claras, devido as opressões, as ten-
sões, à constante ronda que era feita perto de casa. Foi quando senti e co-

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mecei a ver tudo bem definido e até a ter ódio. Foi então que não poderia
estar afastado dessa vivência política, combativa ao regime [...].

O episódio do “Engasga” seria narrado depois pelo jornalista Jor-


ge Hernani55 de forma romanceada. São textos que, devido à perda de
parte deles, não chegaram às mãos dos leitores interessados no as-
sunto. O autor enfoca de forma dramática quase toda a história, sem-
pre baseado em depoimentos dos envolvidos, tanto os protagonistas
presos e torturados como os atores subalternos do regime militar.
A frase marxista popularizada, oriunda do pensamento de Hegel,
de que a história só se repete se for como farsa, esteve estampada no
episódio criado pelos policiais do DOPS, visando a instalação da Po-
lícia Militar do Amapá. E ela só poderia acontecer caso um fato mar-
cante ocorresse. Então criaram a farsa da operação “Engasga-engas-
ga”, quando se espalhou a (falsa) notícia de que terroristas estavam
em Macapá promovendo a desordem e estrangulando estudantes
que saiam das aulas à noite. Criou-se um clima de paranoia coletiva,
quando todos se assustavam ao menor sinal de “ação terrorista”, que
rendeu, como já o dissemos acima, a prisão de inúmeras pessoas ino-
centes, das quais muitas foram torturadas nos porões da FSJM.
O referido jornalista, Jorge Hernani, antes de falecer precoce-
mente, deixou comigo alguns textos que havia escrito (Por volta de
2004/2005) no propósito de publicar um romance sobre o referido
episódio. Coletou informações, entrevistou personagens de ambos os
lados do evento, mas infelizmente, seus textos estavam todos no no-
tebook que lhe foi roubado. Salvaram-se apenas alguns capítulos im-
pressos que ele me mandava para fazer a revisão. Entre eles, trans-

55. Jorge Hernani dos Santos, jornalista, nascido em Macapá. Foi diretor de jornalismo da TV Ama-
pá e da TV Marco Zero. Trabalhou na Assessoria de Comunicação do Governo do Estado do Amapá e
morreu em 1° de fevereiro de 2006. Nessa época estava escrevendo outro livro-reportagem sobre o se-
questro de dois vereadores por razões políticas. (Fonte: Portal da Imprensa – Jornalismo e Comunica-
ção na web – 07.02.2006).

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crevo aqui alguns, dos 16 que guardei, após as revisões, e que possuo
ainda. Eles me parecem bem significativos para o entendimento
maior dessa violenta história ainda pouco esclarecida que ocorreu
em Macapá.

O INÍCIO DA FARSA
Final de abril, 1973. Macapá já registrava um ar de intranquilidade,
com aquelas nuvens carregadas de chuva, no meio da tarde quando as
duas caminhonetes da Polícia Civil entraram velozes na Avenida Pedro
Lazarino.
A garotada saiu correndo, afinal não era a primeira vez que a vizinhan-
ça reclamava dos palavrões que vinham dos bate-bolas no meio da rua.
Mas os carros passaram direto e estacionaram em frente a conhecida pa-
daria, no bairro do Beirol. Os delegados Uchôa, Queiroga e outros agen-
tes, já saíram armados e foram entrando. A meninada foi chegando per-
to, os vizinhos foram se aglomerando. Momentos de tensão e expectativa.
Minutos depois, os policiais tornaram da mesma forma como entraram,
somente com armas nas mãos. Não encontraram a pessoa que deseja-
vam prender: um velho de cabelos grisalhos, o dono da padaria conheci-
do como Jorge Padeiro, considerado comunista perigoso.
Poucos quilômetros dali dezenas de policiais estavam com as pernas
atoladas num charco, no bairro do Trem, na descida da Rua General Ron-
don, onde é a Praça Floriano Peixoto. Estavam armados com revólveres
e fuzis vasculhando a área que era um imenso matagal e alagado. Anda-
vam com dificuldade naquele lamaçal. Ninguém sabe quem avisou, como
e quando. O certo é que de repente, o aparato policial estava ali, com a
justificativa de ter recebido denúncias de que um homem que tinha es-
tuprado uma mulher, estava refugiado no meio do lago protegido pelo
matagal. A população se aglomerou em volta do local, e no meio daque-
le zum-zum-zum, chegou a se comentar que homem caçado era o famoso
monstro do Morumbi, bandido procurado pela polícia paulista, que estu-
prava as mulheres antes de matar.

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Ninguém conseguia imaginar como é que ele tinha chegado a Ma-
capá, mas os curiosos acreditavam que o homem estava ali mesmo, acua-
do pela polícia. A operação que começou no final da tarde, só terminou
quando não havia mais claridade para continuar a busca. No local não
existia iluminação pública. Quando a polícia abandonou a área, a cida-
de já estava minada de boatos. Agora não era só um engasgador, eram vá-
rios, aterrorizando em diversos pontos da cidade. As ruas de Macapá ra-
pidamente foram ocupadas por grupos armados da polícia Civil, Guarda
Territorial, e por soldados do Exército. No pânico que se espalhava, for-
mou-se uma histeria coletiva, embora em meio àquele corre-corre, não
aparecessem as pessoas estranguladas. Da padaria no Beirol, até o charco
da Floriano Peixoto, o teatro maldoso já estava armado.
O Amapá estava mergulhado num dos períodos mais obscuros de sua
história, durante os anos de chumbo da ditadura militar. Uma opressão
que ninguém ousaria contestar, imposta pela força do poder militar, que
se aproveitou de uma população desmobilizada, isolada e ingênua. Esta-
va começando uma farsa que deixaria marcas de sofrimentos, atrocida-
des, injustiças, traumas e uma cidade inteira apavorada. Os militares não
mediram as consequências do que estavam implantando, mas queria a
todo custo, levar adiante seus objetivos sórdidos que era criar uma insti-
tuição repressiva com mais poder. Estava começando uma mobilização
militar em Macapá que ficaria conhecida para a história como “Operação
engasga-engasga”.

No texto abaixo o jornalista narra como os presos foram tratados


na prisão dentro das masmorras da FSJM.

ISOLADOS NAS NEGRAS MURALHAS


Um forte de muralhas negras se destaca em frente a cidade de Macapá
num cenário de imponência que se ajusta à imensidão do rio Amazonas.
Uma coisa tem a ver com a outra. A Fortaleza de São José de Macapá co-
meçou a ser construída em 29 de junho de 1764 e foi inaugurada em 19 de

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março de 1782, ainda inacabada. Foi um monumento construído estrate-
gicamente para impedir a entrada de invasores estrangeiros pelo lado es-
querdo do rio Amazonas. O núcleo central do forte tem a configuração de
um quadrado com quatro baluartes pentagonais nos vértices, o que per-
mitiria o cruzamento de fogo sobre o inimigo. Ainda no centro do monu-
mento, encontra-se uma praça rebaixada com um escoadouro de águas,
oito prédios destinados ao aquartelamento, dois conjuntos de casamatas,
uma igreja e os compartimentos com celas para os prisioneiros. A fortale-
za, que foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Na-
cional e que consumiu a mão-de-obra escrava do negro e do índio, duran-
te dezoito anos de trabalhos, nunca foi usada em combate.
Para essa estrutura rudimentar, mas de grande segurança, foram le-
vados os presos mais “perigosos” do engasga-engasga. Havia sempre po-
liciais da Guarda Territorial à esquerda dos detidos no imenso portão de
madeira na entrada do forte. Melhor sorte tinham aqueles com algum co-
nhecido para servir de protetor na recepção. Jorge Periquito teve essa sor-
te. Depois de cair na armadilha no prédio do Fórum, foi recebido pelo
inspetor Ítalo, um velho amigo com quem mantinha boa amizade. O ins-
petor da Guarda Territorial conduziu Periquito pessoalmente até o local
onde ele deveria permanecer enquanto estivesse preso no forte. A prote-
ção de Ítalo, no entanto, não seria o suficiente para livrar o velho sindica-
lista da violência na hora da partida para Belém. Periquito já estava com
a camisa cobrindo a visão e as mãos presas com arames quando recebeu
um chute por trás que lhe levou ao chão. Mal tinha acabado de levantar,
veio um violento murro nas costas. “Revoltado como estava e se eu des-
cobrisse quem era eu matava esse covarde: Quando nós voltamos, tentei
descobrir quem foi, mas depois deixei pra lá”.

Caça às bruxas
Bastaram poucas horas desde que tudo começou para que a polícia des-
se início a uma verdadeira “operação caça às bruxas”. A repressão do Ter-
ritório já tinha a situação sob controle, ou seja, sabia dos nomes, endere-

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ços e locais de trabalhos dos “indivíduos de esquerda” que deveriam ser
presos sob a acusação de serem os homens que estavam aterrorizando a
cidade. As prisões se sucederam rapidamente mesmo porque, nenhum
dos visados pela polícia, tentou se esconder, ou fugir de Macapá, por não
que aquela boataria fosse longe demais. Aos poucos eles foram recolhidos
e agrupados na fortaleza. A cada passo que davam sobre as pedras cente-
nárias do forte, consumava-se uma sentença sem o direito de defesa. Es-
tavam incomunicáveis, alguém da família que tentasse saber de notícias,
corria o risco de também ser preso, de ficar isolado na fortaleza sem ne-
nhuma culpa comprovada.
A fortaleza e os presos confinados em suas celas naquele momento,
era o retrato mais perfeito das atrocidades de um regime de exceção que
aniquilava, prendia, humilhava e torturava as pessoas inocentes, vítimas
da violência e insanidade da ditadura militar no Território do Amapá.

O Drama de Cada um
O francês Paul Lerouge era o mais idoso e debilitado dos acusados, mas
nem por isso foi poupado da violência policial. Foi um dos que mais so-
freu na fortaleza. Os outros presos não podiam olhar, foram obrigados a
ficar encostados na parede, de costas, mas, ouviam os gritos de Lerouge
que apanhava de palmatória e levava uma surra de cordas de nylon. Fo-
ram minutos de suplício num interrogatório antecipado sem registro for-
mal. Apenas puro sadismo para arrancar daquele velhinho frágil a confis-
são de que ele tinha as mãos firmes de um engasgador. Paul Lerouge não
tinha o que dizer e continuou apanhando acuado por três homens.
A idade pouco importava aos policiais violentos. Chaguinha, depois
que teve a casa revirada pela equipe do delegado Uchôa, foi levado dire-
to para a fortaleza. Começou a apanhar na rampa de subida do forte onde
já era aguardado por sete militares. Foi reconhecido por Adalberto Cou-
to, um oficial do Exército do Pará, que pediu ao seu superior para que lhe
fosse dada a permissão para conduzi-lo ao interior do forte. Foi uma pro-
teção momentânea. Dentro da fortaleza, Chaguinha começou a levar so-

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cos e murros. Mesmo indefeso, mostrava todo o seu brio de quem lutava
contra a ditadura naquele momento.
“Batam, mas não me batam na cara, porque sou homem e na cara de
homem não se bate. Se tiver de me bater no rosto me deem um tiro”, grita-
va para seus algozes enquanto sofria espancamento. Foi levado em seguida
para cela onde passou a ouvir o choro desesperado de uma pessoa que im-
plorava para não apanhar porque não era comunista e que estava sendo in-
justiçado. Reconheceu o grito irado do Isnard Lima, dentro da mesma cela:
- Cala essa boca, filho da puta, Tu não és macho, porra?!
Só em Belém é que Chaguinha conseguiu chegar perto de Isnard para
perguntar de quem era aquela voz desesperada na fortaleza. “Era o Gur-
gel, que só é comunista quando não tem repressão”, respondeu.
Um dos casos mais dramáticos era a de um preso eu sofria de epilepsia e
mesmo com esse problema de saúde não recebia qualquer tratamento espe-
cial. Ele tinha crises frequentes e quando isso ocorria, os soldados reagiam
com indiferença deixando-o se debater no chão sem intervir, alguns até fi-
cavam rindo da cena. O ambiente era de total desconforto. O mau cheiro e o
mofo impregnado nas paredes das celas eram insuportáveis. Ninguém toma-
va banho, apesar do intenso calor que fazia durante o dia. De noite a situação
mudava e o frio invadia o interior dos fétidos porões do forte. Quem estava
com sede era obrigado a beber uma água suja. Os quase trinta presos recolhi-
dos dividiam o mesmo espaço de um compartimento de 5x3 m, onde se reve-
zavam para dormir no cimento frio. Por um gesto de solidariedade, foi dado a
Paul Lerouge, que gemia muito de tanta dor devido aos espancamentos, que
ganhara o direito de deitar na única fina cama de palha que tinha na cela. Im-
provisavam sempre um local para fazer necessidades fisiológicas com a situa-
ção de total constrangimento diante da falta de privacidade. Recebiam cons-
tantemente ameaças dos militares. Não podiam falar, eram constantemente
agredidos, insultados e sofriam torturas psicológicas. “Nós vamos dar comi-
da envenenada pra vocês”, gritava histérico um oficial. Só depois de três dias
efetuadas as prisões é que os presos puderam receber água e alimentação en-
viada pala família. Em meio ao desconforto havia sempre o clima de tensão e

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medo sobre o destino da cada um. Só com a chegada de um batalhão de mi-
litares do Pará é que eles ficaram sabendo que seriam mandados para Belém
para serem interrogados sobre o engasga-engasga em Macapá.

Outras informações de caráter semelhante foram escritas pelo jor-


nalista, que evidencia com certa profundidade o episódio que trau-
matizou a cidade, tantas eram as invasões de militares e policiais civis
que atravessavam os quintais fosse noite ou fosse dia. As pessoas an-
davam armadas de cassetetes e armas brancas. As estudantes do tur-
no da noite quando iam à aula só o faziam acompanhadas dos pais e/
ou irmãos. A cidade viveu um clima de psicose coletiva durante sema-
nas. Os militares eram os mandatários e chegavam a hostilizar pes-
soas, fechar bares e dar o toque de recolher.
A FSJM, usada como lugar de tortura em “tempos de paz”, fez com
que a população da cidade reafirmasse seu olhar para ela como um
lugar tétrico, aliado às lendas que por ela circulavam. Não se sabe
quantos trabalhadores escravos, índios ou soldados morreram em sua
construção, que levou 18 anos oficialmente para ser inaugurada, sabe-
-se, porém que todos eles foram fundamentais para que ela se tornas-
se o símbolo que hoje representa para o povo do Amapá.
A um ano desse fatídico acontecimento, com o título de “150 anos
depois, Dom Pedro voltou para ver sua obra”, a revista Latitude Zero,
de setembro de 1972, cobria a reportagem em que os restos mortais de
D. Pedro I chegaram à Macapá e foram recebidos por autoridades, es-
tudantes, funcionários púbicos e a população em geral no aeroporto
da cidade, que acompanharam o féretro em desfile até à FSJM. Foi um
evento dos mais movimentados da época, que fez reacender os senti-
mentos cívicos da população, ainda imersa no orgulho da conquista
da Copa do México, de 1970. A revista diz assim:

Dom Pedro voltou pra cá e eu estou aqui. Foi um acontecimento de ex-


traordinária significação. Um fato que registramos com emoção e que foi

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vivido com profundo sentimento de amor à Pátria Livre que nos foi legada
e que temos o dever de preservar e defender, como sentinelas postadas no
extremo setentrional do Brasil.

Mas a mesma revista reafirma o discurso em seu editorial, deno-


minado “Sonho”

Certa vez, fez-se o sonho. Bento Maciel Parente, sonhou com uma Capi-
tania e escreveu à Coroa: “aqui se puede hacer outra Capitania. Terra de
sierras, campos alagadizoz, buena para ganados, dá bien tabaco, y coton,
y puedese estender por el rio arriba, hasta la boca del rio das amaçonas, y
Província de los Tapajós...”
Assim surgiu a Capitania do Cabo do Norte: 14 de junho de 1637.
Depois, outro sonhador propôs a criação da província de Oiapokia,
entre o Amazonas e o Nhamundá, o Atlântico e os limites do Império. Foi
Cândido Mendes, 1m 1853. Nada definido. Nada delimitado. Mas as gran-
dezas e vicissitudes do homem, num sentido cósmico, criavam o conjunto
político e o espaço econômico para o surgimento do Amapá.
Tanto isso é verdade que Ataíde Teive, dois séculos antes da Revolução
de 31 de março, lançava a pedra fundamental da Fortaleza de São José de
Macapá, para assegurar a posse da terra.

O texto ufanista do editor da revista traz um sentimento geral de


uma população que jamais poderia se manifestar ao contrário, sob
pena de retaliação ou mesmo de ligação com grupos politicamente
não aceitos pelo Governo, ou mesmo com a prisão.
Araguarino Mont’Alverne56, delegado de polícia, também escreveu
sobre a FSJM desta forma:

56. JOSÉ ARAGUARINO DE MONT’ALVERNE (1920-2011) - Pioneiro de Guarda Territorial do Ama-


pá. Nasceu em 2 de novembro de 1920, no rio Araguari, Município de Macapá. Faleceu em Macapá em
23 de janeiro de 2011. Após concluir o curso cientifico (equivalente ao segundo grau), em 1940 serve no
Tiro de Guerra, e em 1942 é convocado para o Exército, fazendo cursos de Cabo e Sargento, dando bai-

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O velho e imponente conjunto formado pela Fortaleza e a Igreja matriz, é
o que na verdade, resta de um trabalho regado com sangue e suor, sofri-
mento e amor, daqueles que, com o apostolado de muitos anos, lançaram
os fundamentos desta cidade de São José de Macapá [...].

Entre estas duas joias de arquitetura, floresceu a cidade que nasceu nas
alvissareiras manhãs equatoriais, sob a refrega rígida do homem contra o
agreste verdejante amazônico, ante a pertinácia do branco, a submissão
resignada do negro e a irrequieta participação do gentio [grifo meu],
fundiram-se e ombrearam-se na luta da construção do lugar que já na-
queles tempos recuados parecia ao promissor porvir [...].

E desde então, o forte e o templo passaram a se constituir relíquias da ci-


dade. Tiveram suas vicissitudes – é certo – mas registraram suas glórias.
Seus denodados construtores foram vencidos pelas doenças, pelos aci-
dentes ou pela idade, não restando de quase todos nem a lembrança dos
seus nomes. Seus feitos, entretanto, voaram por tôda a vida, escrevendo
com traços indeléveis a história do heroísmo, da abnegação, da santidade
peregrina e consumada de um passado de luta (MONT’ALVERNE, 1968).

Mas eventualmente uma voz de oposição reverberava, mesmo que


tímida e latente, entre os velados simpatizantes das liberdades demo-

xa em 1949. Retornando no dia 3 de abril desse mesmo ano a Macapá, ingressa no quadro de funcio-
nários do Governo do Amapá no dia 3 de maio, lotando na Divisão de Segurança e Guarda, como de-
legado de Polícia de Ferreira Gomes. Em 1951 é transferido para Macapá e em 1963 é transferido para o
município de Calçoene, assumindo o cargo de delegado de polícia.
Volta para Macapá em 1963, assumindo sempre cargos na esfera policial. Durante o golpe militar de
1964, acusado de “atividades subversivas”, é preso e recolhido à Fortaleza de São José de Macapá, por
ordem do governador Terêncio Porto. É posto em liberdade pelo próximo governador Luis Mendes da
Silva, retornando como delegado de Polícia Civil, e em seguida comandante da Guarda Territorial. Foi
ideia de Araguarino Mont’Alverne a colocação de uma estátua de Cabralzinho no município de Ama-
pá, no mesmo local onde aconteceu a invasão dos franceses. Em 1985 aposenta-se. Morre aos 91 anos.
Era escritor e membro da Academia Amapaense de Letras e da Academia Amapaense Maçônica de Le-
tras (Dados: Edgar de Paula Rodrigues).

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cráticas que agora, no período da anistia política (1979), já ousavam se
manifestar. O professor e poeta português, socialista convicto, radica-
do em Macapá Armindo Oliveira Sousa cantava em seu poema “For-
taleza”: SOUSA, 1979. Pág. 8):

Cintila no azul do farol uma luz que vai


e volta
Poderia ser verde, mas não é.
É vermelha.
Vermelha cor de sangue
Fortaleza da Macapá, saltos por sobre
Pedras
Pulos quase pelos
ares
Um degrau
dois,
três...
Não foram contados.
[...]
Seculares corremos entre as muralhas
Mãos se entenderam, pularam, se uniram
E saíram
Tão juntas
Que só lá podem ser vistas
Novamente (SOUSA, 1979. Pág. 8).

Entre os numerosos textos contemporâneos publicados em jor-


nais, livros, postais, folders e diversos prospectos turísticos e culturais
sobre a FSJM, notadamente quando da comemoração do seu bicen-
tenário (1982), selecionei diversas frases publicadas em jornais locais
e prospectos institucionais que trazem pedaços de um discurso am-
plo. Esses discursos ora se revelam amoroso-poéticos ora nacionalis-

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tas-ufanistas e vão se espalhando, repetitiva e imperceptivelmente, no
imaginário social e dos indivíduos, por meio de códigos ideológicos
neles contidos. Estão sempre presentes nas escolas, que são responsá-
veis pela disseminação patriótica desde a época da transformação do
Amapá em Território Federal, mas com evidência vigorosa durante os
anos do governo militar (1964-1985). Exemplos:

A Fortaleza olhada atentamente das aeronaves, lembra uma estrela de


quatro bicos encravada no solo, às proximidades da Foz do Rio Amazonas
(Amapá. Fortaleza de São José de Macapá. Governo do Território Federal
do Amapá/ SEPLAN/DETUR. Macapá, Imprensa Oficial, 1982).

Percorrer um monumento suntuoso com a Fortaleza de São José


de Macapá, é razão para perplexão diante de um grande marco his-
tórico. É motivo de grande emoção e entusiasmo pisar sobre suas pe-
dras existentes há séculos e tocar suas fortes muralhas que afrontam
os tempos. Além de imergir num passado remoto de bravura, de que
tanto deu provas aquela gente lusitana da qual descendemos (Idem)

A Fortaleza de Macapá é uma relíquia histórica, é uma sombra iluminada


do passado que, nos confins do norte pátrio ainda tem grandeza bastante
para se projetar sobre a Nação inteira, como exemplo de valor pessoal da
dignidade de soldado, do heroísmo da gente do Brasil (Idem).

Orgulho Nacional, a maior, a mais bela, imponente e sólida fortaleza des-


te país” (Jornal Marco Zero. Caderno 2, especial. Fortaleza de Macapá 200
anos. Macapá, de 19 a 26 de março de 1982).

O Amapá te saúda, fortaleza de São José. [...]. O fogo simbolizará o ardor


da gratidão. Tu serás palco da cultura e da arte. Nós, amapaenses, quere-
mos preservar-te. Queremos tua muralha visível e forte, tua história pere-
ne e sólida ao sabor do tempo e do vento (Idem).

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Sentinela da Pátria na foz do Rio Mar (Aloísio Brasil. Idem).

Impressionante em tuas linhas de cantaria, na majestade dos teus bas-


tiões e no silêncio dos teus canhões. Tua grandeza recontada na paisa-
gem ancestral da cidade, conta uma história heroica de conquistas, da de-
marcação da posse desta terra para garantir para o imenso Brasil de hoje a
grandeza verde da Amazônia (Idem).

Teus negros canhões não entraram em combate. Bastou tua grandeza


para que possíveis invasores recuassem (Idem).

Guardiã da Amazônia no braço esquerdo do Rio Mar (Idem).

Em ti ecoam as vozes dos negros de pele d”África, do lusitano saudoso, do


índio libertário, de mistura com as nossas orações (Idem).

“Quem visita Macapá aqui encontra o maior monumento, que é a Forta-


leza de São José de Macapá onde pode se encher de emoção, se entusias-
mar e exaltando-se num grande patriotismo. Pisar suas pedras seculares e
analisar suas paredes que desafiam os tempos, é retroceder num passado
de heroísmo, heroísmo que de tanto deu provas aquela gente da Mãe Pá-
tria da qual descendemos (Idem).

Fortaleza de São José. Considerado o mais belo, o mais imponente e o


mais sólido monumento militar do Brasil no período colonial (Ama-
pá. Guia Turístico de Macapá e Santana. Governo do Estado do Amapá/
CEICT/Departamento de Turismo. Imprensa Oficial. S. d.).

A importância da Fortaleza de São José de Macapá. No contexto local é vi-


sível, pois trata-se do maior monumento do Estado e o processo de res-
tauração por que passa a Fortaleza, vem contribuindo de forma decisiva
na mudança de postura da sociedade: do respeito distante à cumplicida-

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de e orgulho pelo monumento (Roseane Costa Norat. Fortaleza de São
José de Macapá. Restauração 1977/99. Governo do estado do Amapá. Ma-
capá, 14 de janeiro de 1999.)

A restauração da Fortaleza de São José de Macapá passa também pelo re-


conhecimento de um dos maiores monumentos da Arquitetura Militar do
país e da América Latina, resgatando sua importância dentro do contexto
histórico, geográfico e cultural brasileiro (Idem).

Os discursos contidos nestas frases, construídas e repetidas duran-


te anos, fazem parte do imenso arcabouço produzido pela mídia, pe-
las ideologias políticas, pelas expressões artísticas como a literatura, a
música e a pintura e pela mitologia.
Trazem dentro delas o testemunho de quem as cunhou com suas
convicções e sentidos de realidade, embora às vezes estejam carre-
gadas de tons metafóricos. As transformações, as permanências e as
memórias também perpassam os diversos gêneros discursivos, seja
através dos fatos históricos ou das decisões políticas que culminaram
em restaurações que sedimentaram o sentido identitário do povo
amapaense. Os textos regem, portanto, toda a estrutura constitutiva
da FSJM, em vários dos seus aspectos: morfológicos ou artísticos, ex-
teriores ou interiores, econômicos ou sociais, memoriais ou de es-
quecimento, e ainda de silenciamentos em épocas remotas, quando
o monumento parecia adormecer, tomado pelo mato e desprezado
pelo poder público.
Desde o início da construção, transita por dentro e fora da fortifica-
ção uma correnteza de discursos emitidos pelos mais diversos atores
(emissores), pois o discurso é um algo que segue em curso, um pro-
cesso, uma prática. Prática esta normalmente eivada de ideologia de
que se valem os detentores do poder para realizarem seus interesses
políticos.

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4.3.  MEMÓRIA, IDEOLOGIA E LITERATURA
Esses episódios instigam à reflexão sobre a memória. Memória esta
que não se prende apenas aos fatos que se sucederam, mas às suas
consequências indeléveis para tantos que deles participaram, como
aqueles que se recusaram a dar depoimentos ao jornalista Ray Cunha
no tempo da Operação “Engasga-Engasga”. E se de um lado a litera-
tura escrita pelos “intelectuais” orgânicos do governo militar deixava
um grau de satisfação àqueles que os comandavam, o poder passa a
ser observado pelo que tem de contraditório, dentro do arcabouço rí-
gido da história oficial da ditadura militar. A violência usada pelo po-
der, sua virulência e fanatismo também deixaram um certo ar carica-
tural, pois nem sempre os homens que comandam as engrenagens
de um governo que se instaura pela violência são preparados admi-
nistrativamente. Esse poder normalmente encarna atos de incerteza,
corrupção e sequências de desastres administrativos.
Ainda que a literatura da época fosse silenciada pela censura, os
poetas como Isnard Lima, Odilardo Lima, Armando Sousa, Fernan-
do Medeiros, Osvaldo Simões, Francisco Souza (Galego), Benedito
Monteiro (Binga), e outros, faziam sua “resistência” política nos bares
da cidade, recitando seus versos contra a ditadura e imprimindo tex-
tos poéticos em mimeógrafos. Era a forma encontrada para não travar
embates violentos com a polícia, já que ela os prendia, às vezes por
motivos fúteis. E ademais muitos jovens estudantes já vinham enten-
dendo o que se passava no país, com “as visões se clareando”, como
dizia a música (censurada) do compositor Geraldo Vandré na época.
Para tratar dessa temporalidade, as reflexões têm que passar im-
preterivelmente pela memória, e não pela história propriamente dita,
porque sem a memória não há como sustentar a identidade, não há
como entender o sentido da literalidade expressa nos textos dos pro-
dutores literários e seus discursos. A essa literalidade implícita signi-
fica observar o que ela tem realmente de literário, quando os auto-
res trabalham a linguagem de forma consciente, que venha a resultar

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num efeito que tenha sentido para o receptor (leitor) de suas obras.
Diria que para sustentar a interpretação, as obras estão ligadas cons-
ciente ou inconscientemente às ideologias, pois continuam sendo
instrumento veiculador de alguma coisa que nem sempre é de sua
própria realidade, mas imanente a ela. É uma atividade da linguagem
que tenta construir seu próprio discurso., seja através da metáfora, na
poesia, seja através da metonímia, na prosa (CHALHUB, 1986. Pág.
23), pois ambas comunicam, geram e emitem mensagens.
Ainda em relação à recusa de dar informações ao repórter que nar-
rou o episódio do “Engasga-Engasga”, convém dizer que a memória e
a identidade se concentram em lugares, quase sempre com um nome
que são referências perenes, que agem desafiando o tempo, como é o
caso da FSJM. Eles têm suas razões de serem lugares de memória, pois
segundo Candau (Op. Cit. Pág.157), ao mencionar os estudos de Pierre
Nora, a função primordial desses lugares é a de deter o tempo e de blo-
quear o trabalho de esquecimento, de fixar um estado de coisas e de
“imortalizar a morte”. Para Nora, um lugar de memória é um lugar onde
a memória trabalha, como mostrou o sociólogo francês Maurice Halb-
wachs em relação aos lugares santos, segundo sua afirmação. Para os
que se recusaram a informar o jornalista, o que era lugar de memória
passou a ser um lugar de amnésia, porque a memória da tragédia é for-
te. É uma memória do sofrimento, uma baliza que adverte dos perigos
ou que indica um sinal de passagem. Porém, os lugares da amnésia são
aqueles onde somente o esquecimento trabalhou, dado que a lembran-
ça era muito pesada para ser carregada pelos recusantes.
Para Candau existem regiões-memórias, cidades-memória ou
mesmo bairros que se afirmam vigorosamente com a força das iden-
tidades locais. E suas paisagens podem contribuir para a afirmação
das memórias desses lugares, quando compartilhadas e influenciar o
sentimento de identidade nacional. Até o próprio quarto de uma pes-
soa pode ser um lugar-refúgio privilegiado para a lembrança, pois ele
existe na memória como um espaço de isolamento. Candau fala que

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De uma maneira geral, ‘a sociedade silenciosa e imóvel dos lugares’, a me-
mória das ‘pedras da cidade’, a permanência das referências espaciais
‘nos confere um sentimento de ordem e quietude’ e ‘a ilusão’ de não haver
mudado através do tempo, o que é sempre tranquilizador para a identida-
de pessoal e coletiva. (Idem. Pág. 158).

A memória das pessoas é fonte inesgotável de informações, pois é


plena de significados. Ela está sempre povoada de nomes e de signi-
ficações, porque cada olhar sobre algo sempre revela coisas e remete
a contextos diferentes e até emocionais. Da história de um indivíduo
pode-se captar um significado social bem abrangente, quando a me-
mória, assim se torna coletiva.
É Nacarato (2008. Pág. 177/178) quem lembra que o verbo “recor-
dar”, de origem latina, em sua etimologia, é construído a partir do pre-
fixo “re”, o movimento de “fazer novamente” e de “cordis”, que sig-
nifica “coração”. Todavia, para os antigos romanos, “cordis” não era
apenas um órgão físico vital; era o centro da alma, e colocar algo de
novo no centro da alma é trabalho mais denso e intenso que a repeti-
ção ou a reativação, seja porque o “de novo” retoma a experiência pas-
sada, seja porque esse retomar é sempre uma novidade.

Não concebemos a memória como um repositório do passado, um arqui-


vo imóvel, mas, sim, como um trabalho constante do sujeito no tempo
presente, flexível diante das vicissitudes e relações que este presente colo-
ca, sujeito a intervenções conjuntas múltiplas, variável nas suas formas de
produção, nos contextos em que se lembra, nos motivos pelos quais essas
lembranças são reconstruídas (Idem. Pág. 178).

Nacarato ensina que o lembrado e o esquecido compõem uma


experiência que é ao mesmo tempo individual e coletiva de forma
a constituir o sujeito, na medida em que “relembrar é identificar-se
consigo e com o outro”.

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A memória é uma substância da coletividade. Ela mora naquilo
que em nós só pode existir pela relação com o outro, com a família,
com o mundo do trabalho, com um tempo, com um lugar, com espa-
ços socialmente constituídos dos quais participamos.
Alfredo Bosi comunica que a memória é, na metáfora corpórea de
Santo Agostinho, o ventre da alma. Lembrar, para o doutor da Igreja,
é saber de cor. “Cor é coração. É o coração que lembra primeiro. Mas
cor é também, a raiz da palavra coragem.
Memória, sentimento e coragem são palavras imbricadas” (BOSI,
2013. Pág. 349).
É Bosi, ainda que incentiva a repensar as ideologias e suas relações
com a literatura, pois

no que se pode ainda razoavelmente sustentar é que literatura e ideologia


se tangenciam enquanto ambas pressupõem o mesmo vasto campo da
experiência intersubjetiva. Mas os seus modos de conceber e de forma-
lizar essa experiência são diversos, quando não opostos (Idem. Pág. 248).

Isto posto, o autor afirma que a literatura exprime e re-presenta,


que presentifica, singulariza e que olha de jeito novo ou de forma re-
novada os objetos de sua percepção e chega a iluminar as fantasias do
sujeito da escrita. Já a ideologia, pelo seu lado reducionista chega a
uniformizar os elementos que reduziu, pois também generaliza e ten-
de a ocultar as diferenças (de identidades) e então preenche as lacu-
nas (para o que eu diria, as passagens e os caminhos) e os momentos
descontínuos ou os contraditórios da subjetividade.
Quando compara os dois conceitos, Bosi resume que, enquanto a
literatura dissemina (a ficção, a poesia) a ideologia, chega a fixar os
signos e as ideias em “seu devido lugar”, fechando sempre que pode
o universo do sentido, mas de qualquer maneira, ele quer dizer, es-
tão imbricados. Para que se perceba isso basta observar o conjunto de
obras de um certo período do mesmo campo literário. Bosi ainda diz

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que poesia e ideologia, poesia e doutrina poesia e não-poesia são pa-
rentes, talvez rivais, mas parentes.

4.4. INCÊNDIOS, ATERROS, A DOCA E O CÍRCULO MILITAR


A socióloga Irlys Barreira afirma que “os centros urbanos cada vez
mais aparecem como expressão de zonas emblemáticas de cidades”
e que eles “evocam o passado”, quando exerciam o “papel de agre-
gar funções administrativas e comerciais” (BARREIRA, 2010. Pág.
255-266)
No caso do centro urbano de Macapá, situado no entorno da FSJM
a função administrativa governamental desapareceu, migrando espa-
cialmente para outro ponto da cidade. Mas o centro comercial perma-
neceu até hoje, embora tivesse sido destruído pelo fogo, como infor-
ma a Revista Latitude Zero.

Ainda permanece na lembrança do povo desta cidade de Macapá a catás-


trofe ocorrida no dia 28 de novembro de 1967. Às 20h30 daquele dia a cida-
de foi surpreendida pelo alarme de um incêndio, que consumiu toda uma
quadra do bairro comercial (Revista Latitude Zero, Nº 01, 1969. Pág. 39).
.
A revista informa ainda que o fogo se alastrou porque todas as ca-
sas comerciais eram de madeira, mas que dois anos depois a maioria
dos comerciantes construiu modernos prédios de alvenaria, modifi-
cando a paisagem da cidade (Idem). Em julho de 1975, outro incên-
dio de grandes proporções destruiu outra parte da área comercial
de Macapá.
Mais tarde, a partir da década de 1970 até os meados da seguinte,
o Governo do Território, então administrado por oficiais da Marinha,
mandou aterrar toda a área de praia que ficava em frente da cidade,
a partir de recomendações dos planos diretores encomendados por
eles, numa tentativa explícita de intervir na paisagem para recuperar
as áreas alagadas que sofriam a influência das marés. Com isso desa-

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pareceu a Doca da Fortaleza e os seus barcos foram aportar na ensea-
da do Igarapé das Mulheres, situado ao norte da orla macapaense.
Desse lugar emblemático para o povo macapaense restou apenas a
lembrança, expressa em versos e prosa e nas telas de pintores que vi-
venciaram a sua existência.
A Doca da Fortaleza, área que abrigava as embarcações que che-
gavam do interior para abastecer a cidade com produtos agrícolas e
agropecuários, por ser uma área importante para a cidade e ampla-
mente divulgada por meio de imagens pictóricas, também mereceu o
registro de um cronista.

DOCA DA FORTALEZA
A Doca da Fortaleza, em Macapá, muito se assemelha à Doca de Belém e
a de outros portos aonde chegam e saem os pequenos barcos à vela, em
nossa costa marítima.
Há sempre o colorido das velas, a poesia dos barcos partindo e a ale-
gria dos barcos voltando, como na canção popular. A Doca da Fortaleza
tem muita coisa para se ver, comprar, admirar. É gente passando, é o gri-
to do homem que vende melado ou anuncia a farinha torrada. É o grito do
vento e o cheiro do rio, do grande rio-mar.
Também há o cheiro do peixe e da carne salgada, do assado de braza,
do barco parado com a quilha na lama, esperando a maré. E enquanto a
maré não vem os barcos, como grandes aves aquáticas, estendem suas ve-
las para o vento secar.
O caboclo uma rêde de pesca e outro passa cheio da mutamba, depois
de haver gasto o dinheiro apurado com a venda do açaí. Noutra canoa um
casal caboclo, queimado de sol, está ternurando no mormaço.
A Doca da Fortaleza tem muita coisa para ver e amar. Também pra
contar e cantar. É só olhar com olhar de poeta, do poeta das docas, do ho-
mem-menino que gosta de mar.
E quando a noite chega do outro lado da baía, surge uma lua imen-
sa e ilumina o silêncio da doca adormecida. As águas ficam prateadas e

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a sombra dos barcos desenha figuras impressionistas. Pela manhã, o sol
acorda o caboclo estremunhado e a vida recomeça. É vaso de barro, é pote
de mel, é peixe salgado, é fruta gostosa, é tanta coisa para ver e amar...

A Doca da Fortaleza na realidade é um posto de abastecimento co-


mum nas cidades ribeirinhas da Amazônia. Antes do seu desapareci-
mento em função do aterro da frente de Macapá, ocorriam ali as tran-
sações comerciais e muitas atividades relacionadas à economia. Por
ser um porto, havia prostíbulos e bares, o que levou o cronista a fa-
lar sobre a mutamba (árvore/ fruta), uma gíria para a cachaça e talvez
uma analogia ao óleo dessa fruta, usado para pentear cabelos. Na rea-
lidade a Doca era uma espécie de retrato identitário do povo da região
que aportava à sombra da FSJM e nela espelhava todos os seus costu-
mes amazônicos interioranos.
Mesmo que os planos urbanísticos dos governos não fossem cum-
pridos em seu planejamento inicial, a área do entorno da FSJM sofreu
sucessivas modificações, principalmente pelos aterros que se prolon-
garam após a transformação do Território em Estado: o governador
Annibal Barcellos, primeiro governador eleito, mas que havia sido go-
vernador do Território por seis anos, construiu rampas para atracação
de barcos ao sul da FSJM e aterrou toda a extensão do bairro de Santa
Inês até o do Araxá que, somado ao aterro do bairro Perpétuo Socorro,
espalha-se por 8 km de orla aterrada e urbanizada.
Os incêndios e os aterros da área da Doca da Fortaleza parecem ter
exercido um efeito devastador na memória dos habitantes locais. Fora
como se um cataclismo tivesse passado pela cidade num tempo real, di-
ferente daquele do mito de Mairi, dos índios waiãpi. Foi como se toda a
memória ficasse soterrada após uma avalanche de terra e piçarra que se
espalhou pela borda do rio-mar – O Grande Paraná – para conter as pan-
cadas das ondas trazidas pelo vento forte das manhãs equinociais.
O fato de milhares de habitantes da cidade morarem próximo ao
rio, em áreas de risco e quase insalubres, levou os sucessivos governos

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a melhorar obrigatoriamente as condições de vida dessa população, já
que se recusaram sair da área para bairros novos e distantes. Há, ain-
da hoje, uma hipótese para justificar as constantes invasões que nelas
ocorrem, como no bairro Perpétuo Socorro, por exemplo. Dizem que
o migrante ribeirinho não quer se separar da beira do rio, o que cons-
titui um modo de afirmar a sua própria identidade amazônica.
Deve ser considerado aqui, também que o poder dos militares foi
crucial para que construíssem o Círculo Militar de Macapá, ou me-
lhor que uma invasão consentida da zona oeste da FSJM permitisse a
construção de quadras esportivas e a própria sede do Saci Clube an-
tes da fundação do Círculo Militar, em 15 de maio (1969), no mesmo
lugar, “com o objetivo de congregar os militares da reserva e da ativa,
aqui residentes, bem como civis com participação ativa na socieda-
de” (Revista Latitude Zero. Op. Cit.). A agremiação militar foi demo-
lida na década de 2000, quando o IPHAN retirou todos os prédios da
área tombada.
Em março de 1982 o Governo promoveu a festa do bicentenário da
fortificação, com pompas e tiros de canhões, depois de mais uma re-
forma. Os jornais da capital traziam discursos, poemas e expressões
de autoridades e intelectuais locais sobre a obra. Esses textos eram
carregados de sentimentos laudatórios sobre ela, a maioria pregando
o valor e o heroísmo dos engenheiros e escravos negros e índios que a
construíram.
Mas no poema memorial de Luiz Jorge Ferreira, a Doca da Forta-
leza exerce nele uma reação diferente, pelo que sua biografia57, sua

57. Luiz Jorge Ferreira, nascido em Belém, porém desde muito cedo levado a Macapá, onde chegou
aos dois anos. Médico, escritor, e membro fundador da Sobrames (Sociedade Brasileira de Médicos
Escritores) Secção São Paulo. Escreveu alguns livros: Berro Verde (Poemas), Tempos do Meu Tempo
(Poemas), Beco das Araras (Poemas), Cão Vadio (Poemas), Thybum (Poemas), O Avesso do Espanta-
lho (Contos), Luiz(s.) Signo do Sol - A Cinzenta Tarde Colorida). Letrou música para alguns composi-
tores de MPB e música regional de Raiz. Milton Batista, Edinaldo Lobato, Alfredo Reis, Jose Serra, Fer-
nando Canto, e Grupo Paçoca (Claudinho Reis, Gil, e Jorge Moreira). Participou do Festival da Tupi
– 1977 com o frevo Sem Jeito (Luiz Jorge&Assunção (Músico Amapaense da Banda Os Cometas e foi
premiado como o Melhor Arranjo - Maestro Nelsinho e intérprete (Trio Nagô). Foi premiado em vários

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trajetória de vida lhe inspirou, num misto de ficção, romantismo e
realidade.

PECADO VENIAL... PECADO MORTAL...


Perto de mim, o funcionalismo da União
vendia o salário aos comerciantes da Doca da Fortaleza
minha mãe fritava o ovo e punha quente no meu prato
misturava farinha, lágrimas e dor de fome,
assim temperado, eu comia, órfão.
Perto do pote, ela tomava água com água
subia a rua poeirenta e ia ensinar aos homens do futuro
para que eles nunca mais fizessem uma professora brasileira
passar fome.

Muitos dos que se integraram à luta nacional contra a ditadura tra-


zem em seus textos a lembrança do monumento, como esse trecho de
uma crônica do ex-exilado, ex-prefeito de Macapá, ex-governador do
Amapá e atual senador João Alberto Capiberibe.

Clarões da Alma
A Fortaleza imponente, ao lado, que bela paisagem que a história nos le-
gou e que preencheu meus sonhos por anos e anos...
Cresci íntimo com o rio e suas praias lamacentas. Pescava e perambu-
lava entre a Fortaleza e o Igarapé do Jandiá, território livre da minha se-
gunda infância, que me conservou a cultura ribeirinha do Juruá. Orgulha-
va-me do trapiche enorme avançando no mar doce, desafiando as marés,
apontando, poeticamente, para a lua cheia.

Concursos Literários de Contos e Poesia. Prêmio Canon 2009, Prêmio Bernardo de Oliveira Martins
2002-2003, Prêmio Flerts Nebó 2006-2007, International Poetry – 1983 (University of Colorado, Boul-
der). Participou da Bienal de 2010 - Convidado pela Scortecci Editora. Publicou Poema sobre o Operá-
rio Santo Dias (morto em manifestação de greve no Brasil) no Le Monde (Paris-França).

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O texto acima reflete basicamente o despertar da memória ribeiri-
nha de quase todos os habitantes de Macapá. O trecho referido pelo
escritor João Alberto Capiberibe se refere à orla principal da cidade,
em que havia o trapiche e as embarcações, o hotel do Governo e o es-
taleiro territorial, entre a Doca da Fortaleza e o igarapé do Jandiá.

4.5. O LOCUS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA


Os textos apresentados para esta temporalidade mostram o grau da
criação literária sobre a FSJM e revelam, mesmo incipientemente, o
rumo crítico aos acontecimentos históricos, através da memória dos
autores. Em todas as temporalidades nota-se que a criação literária
do Amapá sobre a FSJM é um eterno devir, uma busca de identidade
perpassando por um processo de construção das identidades locais,
cujas raízes agora parecem aflorar desesperadamente para questões
que atormentam os sentidos, os significados há tanto tempo velados
em uma caixa esculpida na pedra.
Depois do poema “Macapá” (1889), de Alexandre Vaz Tavares, de-
zenas de escritores produziram textos sobre a FSJM e sua área exter-
na, ora exprimindo a saudade ora expressando sentimento de orgulho
e ufanismo, e até de sarcasmo e raiva contra as ações do sistema dita-
torial vigente à época de suas criações, como os poemas, que se torna-
ram muito populares, abaixo, escritos por Jeconias Araújo e por Ho-
dias Araújo, respectivamente58.
Com uma certa “licença poética” Jeconias Alves de Araújo escreveu
um longo poema chamado “Macapá meus passos no teu passado”:

A sordade me machuca
E me rói cá dentro do peito
Sentindo que não tem jeito

58. Os dois autores são irmãos e moraram, na infância, nas dependências da FSJM, quando seu pai
Zacarias Araújo era funcionário do Governo do Território e atuava na profissão de coureiro e sapateiro
da Guarda Territorial, segundo Obdias Araújo, seu filho, também poeta.

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Só me resta recordá:
Como era bonita a beleza
Da doca da fortaleza
Apinhada de canoa
Com suas velas colorida
Velas que ganham a vida
Sopradas por vento forte
Vindo lá do rio mar
[...]
Acontece, seu dotô
Que aquela doca bunita
A doca da fortaleza
Perdeu a vida, a beleza
Prá num mais ressucitar
Veio o progresso e aterrou
O bunito igarapé
Que servia de instrada
Pras canoa trafegá
E hoje quem quisé vê
Aquela beleza bela
Tem que vê pintada em tela
No aeroporto locá.
Parece até ironia
Que aquele inorme telão
Teja ali em insposição
Pru pessoá que viaja
Com os carçado no pé
É ironia, seu dotô
Aquele inorme telão
Tá ali em insposição
Pro pessoá que viaja
Mas viaja de avião.

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Neste poema, Jeconias Araújo enfoca aspectos históricos da urba-
nização da cidade, principalmente sobre o aterro da área de entorno
da Fortaleza e descreve com ironia a transposição da Doca da Fortale-
za para uma tela superdimensionada de autoria do pintor R. Peixe, ex-
posta atualmente no saguão de embarque do Aeroporto Internacional
de Macapá. A tela mede 2,10m x 10,22 m. Foi pintada em 1980 e doa-
da à direção da INFRAERO pelo pintor. O poeta declamava, sempre a
pedidos, este poema nas rodas boêmias de Macapá e Mazagão Velho,
aonde foi morar depois que se aposentou como gráfico da Impren-
sa Oficial do Governo do Amapá. Era compositor de sambas de enre-
do da Escola de Samba Piratas da Batucada, do bairro do Trem. Fale-
ceu em 2007.
Hodias Araújo, também poeta memorialista da cidade, e professor
do Ensino Médio de Macapá, escreve a sua versão poética sobre a área
externa da FSJM desta forma:

Inda me lembro da doca


Das canoas que chegavam
Traziam mercadorias
Para os que aqui moravam

[...]

Andei muito sobre as pontes


De 3 ruas da cidade
São José e Tiradentes
Isto eu juro que é verdade
Cândido Mendes tão bela
E a zona comercial
Era ponte de madeira
Sobre extenso pantanal

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Do matagal existente
Na frente da fortaleza
Vi surgir como progresso
Nosso mercado central
Que num ato triunfal
Dominou a natureza

O poeta popular se lembra com detalhes de outros aspectos do


monumento que até hoje tomam conta do imaginário popular: o pa-
radeiro dos canhões e do mirante, que possuía um farol náutico.

O farol da fortaleza
Guiava o navegador
Para achar o rumo certo
E navegar sem temor
Seu destino é ignorado
Com certeza foi roubado
Por algum governador
[...]
E foi assim que sumiram
Alguns dos nossos canhões
Que hoje moram no sul
E embelezam mansões
Será que eles vão voltar
Tomando o rumo do norte
Pra assumir o seu lugar
Sua missão de enfeitar
O nosso querido forte?

No verso “O farol da Fortaleza”, Hodias se refere ao Mirante que


existia no baluarte Nossa Senhora da Conceição. Segundo o historia-
dor Edgar Rodrigues (Jornal Marco Zero, 1982) o farol [com mirante]

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foi ali colocado em 1900, depois foi retirado e criou-se outro, com o
nome Macapá, Classe SG (sem guarnição), sistema automático AGA,
de chama nua a gás acetileno. Em 1979 foi retirado e no ano seguinte
foi construído outro, de 10 metros de altura, que foi novamente retira-
do pelo IPHAN na restauração de 1977.
É voz corrente entre o povo de Macapá que os canhões seiscen-
tistas da FSJM foram furtados. E até hoje ninguém dá uma explica-
ção plausível sobre o assunto. A maioria dessas peças de artilharia foi
substituída por peças de cimento. Especula-se, no imaginário popu-
lar, que eles estejam em mansões de ex-governadores militares (da
Marinha) no Rio de Janeiro. Daí o protesto desse poeta popula.r
Os textos poéticos dos irmãos Jeconias e Hodias Araújo trazem um
quadro de reconstrução memorial sobre o lugar e os eventos ocor-
ridos em seu entorno no início da instalação do primeiro Governo
amapaense, quando a capital começou a mudar sua configuração de
lugar abandonado, cuja grande referência era a própria FSJM. A cons-
trução foi restaurada, limpa e tombada (1950) tendo servido de abri-
go à Guarda Territorial e depois passado por inúmeras funções admi-
nistrativas.
Creio que esses textos são o resultado da busca de uma dimensão
dialógica entre a lembrança e a produção literária sobre o monumen-
to. Destarte, será preciso refletir mais ainda sobre a questão memo-
rial. Afinal, para que serve a memória? Para se posicionar num lugar,
numa sociedade? Para reconstruir por descrição literária um ponto de
vista em que os autores são testemunhas oculares desses fatos e com
isso deixar seus testemunhos para a sociedade local?
Rememorar é, também, produzir elementos de interesses de gru-
pos e das relações que o poeta (o indivíduo) expõe no presente. As-
sim, o passado que o autor do texto escreve pode não vir à tona intato,
pois dificilmente esse passado é conservado de forma total. O pon-
to de vista individual do poeta é, na realidade, a memória do grupo, e
esta a do poeta.

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No caso dos dois poetas-irmãos, Jeconias e Hodias, parece ter uma
adequação por afinidade devido a semelhança dos temas criados e ti-
pos de versos que utilizam. Os textos são compartilhados com a me-
mória dos leitores (coletivo) e dão a esse grupo social uma identidade.
Cordeiro Gomes, por sua vez, enfoca a FSJM como o lugar das tor-
turas. Em seu poema “Fortaleza de Macapá”, ele trata do assunto se
referindo aos maus tratos dispensados aos trabalhadores braçais no
século XVIII, dando-lhe um ar soturno que as prisões tortuosas en-
sejam, sendo esse tema uma voz recorrente e plural entre os poetas
amapaenses.

Monumento histórico
Guardião impassível de uma época
Granítico símbolo de um povo
Nas noites
– longas noites –
Do gênesis da cidade

O português sonhava
Com sua amada
Além mar...
[...]
Nas prisões subterrâneas
Nas masmorras gotejantes
Fantasmas-prisioneiros de 200 anos
Retornam assombrando trevas
Nos gritos desencontrados das aves noturnas...

É possível que o autor se refira também aos presos do golpe militar


de 1964, que “retornam” com seus gritos nascidos das torturas, já que a
fortaleza serviu de prisão para prisioneiros em vários episódios políti-
cos ocorridos em Macapá. Entre eles cito, no início deste capítulo, o que

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se chamou de “Operação Engasga-Engasga”, em maio de 1973. O fato se
configurou em prisões e perseguições a suspeitos de opositores do re-
gime, dando a eles a visão de seres irreais e fantásticos, pelo que faziam
à população da cidade, de acordo com Dorival Santos (SANTOS, 2001).
Nesse caso há, também uma forma sub-reptícia de tentar burlar a cen-
sura federal, já que os livros e músicas editadas no período passavam
pelo crivo dos censores. E havia o agravante de que o poeta era um ser-
vidor do Gabinete do governador, que se dividia entre os serviços bu-
rocráticos e o jornalismo. Carlos Cordeiro Gomes era jornalista e um
poeta muito popular, pois nas rodas boêmias também se destacava por
declamar seus poemas. Nasceu e morreu na cidade de Vigia - PA.
Ray Cunha59 assim inicia o seu romance “A Casa Amarela”

O trapiche Eliezer Levy, defronte ao Macapá Hotel, avança no rio Ama-


zonas como o calçadão de uma avenida. As embarcações de passageiros
ou de carga que atracam e partem, vêm geralmente de Belém, do Marajó
e do Baixo Amazonas. Dia e noite passageiros chegam e partem, famílias
aguardam entes queridos ou se despedem de parentes, grupinhos pas-
seiam, casais se agarram e pessoas solitárias se sentam ou se encostam
no parapeito, e ficam ali, olhando para os outros e perdendo o olhar no rio
imenso. Durante o dia o sol queima a pele das pessoas e as cabeças dos
moleques fedem a matéria orgânica em combustão. Mas no fim da tarde

59. Ray Cunha nasceu em Macapá, em 7 de agosto de 1954. Além de escritor, é jornalista, profissão que
exerce desde 1975. Trabalhou em jornais e revistas de Belém, Manaus, Rio Branco e Brasília. Graduou-
-se em jornalismo pela Universidade Federal do Pará (UFPa), em 1987, ano em que fixou residência em
Brasília. É terapeuta em Medicina Tradicional Chinesa, formado pela Escola Nacional de Acupuntu-
ra (ENAc), de Brasília. Seguem, em ordem cronológica inversa, seus livros publicados: A Confraria Ca-
banagem, Romance (Clube de Autores e Amazon.com), Hiena, Romance (Clube de Autores e Amazon.
com), A Casa Amarela, Romance (Editora Cejup, Belém, 2004), Na Boca do Jacaré-Açu – A Amazônia
como ela é, Contos (Ler Editora, Brasília, 2013), O Casulo Exposto (contos, LGE Editora, Brasília, 2008),
Trópico Úmido – Três Contos Amazônicos (edição do autor, Brasília, 2000), A Caça – Conto (Editora Ce-
jup, Belém, 1996), A Grande Farra – Contos (edição do autor, Brasília, 1992), Sob o Céu nas Nuvens –
Poesia (edição da União Brasileira de Escritores, Manaus, 1982) e Xarda Misturada – Poesia (edição dos
autores – Ray Cunha, José Edson dos Santos e José Montoril –, Macapá, 1971)

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sopra uma brisa que refresca a cidade e no começo da noite o vento verga
os caules dos açaizeiros, e agita os galhos das mangueiras, encapelando o
estuário do maior rio do mundo. A maré estava subindo e as embarcações
dançavam como se fossem soçobrar, mas, bem amarradas ao trapiche,
eram mantidas prisioneiras, lembrando cavalos selvagens recém-captu-
rados. A água surrava a muralha da Fortaleza de São José de Macapá, en-
trava por um canal e ia dar nas masmorras, onde os presos do Golpe de 64
conversavam.

Nas páginas 48 e 49 deste romance o escritor Ray Cunha usa per-


sonagens reais, que participaram de episódicas situações dentro da
cidade de Macapá. É recorrente, no decorrer do texto, a presença da
Fortaleza enquanto ambiente por onde passam as personagens de
sua narração ficcional. Exemplos:

A Fortaleza soltava-se, aos poucos, na escuridão. À mediada que ia cla-


reando, a fortificação mais se parecia a um navio vagando no inferno”; “A
Fortaleza São José de Macapá erguia-se, imensa, na margem seca do rio.
Sua existência, de pedras e de sombras, em vez de tranquilizadora, paira-
va como uma ameaça. E quando o rio avançava e havia vento, a maré chi-
coteava sua muralha de pedras, assentadas pelos negros, que depois fo-
ram para o Curiaú, o Laguinho e os Congós”; e “E assim, sitiada pelo rio,
a Fortaleza flutuava na água como um navio fantasmagórico. À noite, as
luzes da cidade eram testemunhas daquele vagar infernal: uma Fortale-
za flutuando no rio Amazonas, ventre inchado, estourando de vermes e
berros noturnos. Ali na Fortaleza São José de Macapá nascia uma nova ci-
vilização.

O contista Ray Cunha, expressa com mais fidedignidade o discurso


da contracultura em relação ao tempo da ditadura militar. Suas obras
são baseadas em casos verídicos como as prisões de amigos seus nes-
se período histórico de repressão no Brasil. Ele transgride o discur-

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so oficial e o dissimulado, o texto encomiástico e o aparentemente
contrário ao sistema. Dá a eles o trato de reprocessamento da memó-
ria coletiva (assim como uma voz de tantos que queriam dizer o que
ele diz), quando recupera o passado a partir de uma relação entre o
objeto e o leitor, entre o indivíduo e grupo e entre estados temporais
que evocam principalmente o passado e o presente de sua constru-
ção literária.
Ele narra o fato comum aos olhos comuns do embarque e o de-
sembarque de passageiros da Amazônia, deixando nas entrelinhas
aflorar gestos, cheiros e movimentos da paisagem humana do territó-
rio amazônico, tão comuns que nem sempre se percebe. Trata a FSJM
com metáforas regionais, “um navio no inferno”, “um navio fantasma-
górico”, uma fortaleza que flutua com o ventre inchado, como se fos-
se um monstro, talvez uma esfinge que espera ser decifrada no tempo.
Os autores Herbert Emanuel e Adriana Abreu escreveram para a
Editora Cortez um livro ilustrado destinado ao público infanto-juve-
nil, no qual descrevem a Fortaleza “como uma tartaruga, graças a seus
quatro baluartes e ao revelim” (H. EMANUEL, ABREU, Adriana. 2008.
Pág. 06), mas, para os índios Waiãpi, ela é Mairi, “uma gigantesca pa-
nela de barro, de fundo pontiagudo e com boca virada para baixo,
construída pelos humanos para proteger o povo Waiãpi do incêndio
e do dilúvio provocado pelo herói Ianejar, divindade recriadora deste
mundo. Bonito, não é? ” (Idem).
Os poetas costumam colocar nas entrelinhas dos seus poemas re-
lacionadas à Fortaleza, a sua memória, os seus encontros/desencon-
tros com o passado e o tempo presente, como neste trabalho poético
de Luiz Jorge Ferreira:

Quem chega d’outras terras


De épocas mais andadas, pode calar um berro.
- Muitos abençoam a vez de vê-la –
Lá está fixa a enseada. Marrom-amarelada!

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Senhora destes ventos de soslaio.
Como se fora, fora a forma geométrica.
Um jogo de damas, espraiada na ponta avançada
Cujas primeiras porções quebradas
Dão ideia do monstro marinho
Que lhe rói o piso
[...]

Nesta masmorra apodrece um amigo


Um antigo, um preto-velho, um tempo novo!
E muita coisa, que muita gente quis.
As aberturas, as torres,
Abrem bocas de canhões.
– Cansei de acordar, medo do barulho,
Atirando pólvora ao lado do rio –
1958. Um rádio chiando. Gol do Brasil.
No outro lado. Os franceses invadindo a área
Cabralzinho defendendo. Voavam albatrozes e pousavam marrecas
[...]
O Farol há coisa de vinte anos abriu os olhos pra noite
- Pelo menos foi quando lhe soube da vida –
No pátio interno do Edifício Central.
[...]

Aquele bloco abandonado a lustre.


Ele reflete o rosto do feitor, o ruído do chicote
A hemácia espocada de encosto a dor-do-carregar-pedras.
A falta de pedras te deixou inacabada
- Gorjeios de um rouxinol embalsamado
No suor dos pretos que marcaram a tua estrada
Desde o Macacoari, aos teus lados, caía e doía
[...]

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Ah! Lhe tornaram o leito uns tubos de concreto?
Então agora estás só?
Mesmo quando eu que nasci te vendo,
Vá morar mais longe que a vida.
Outros quiçá te vejam com orgulho.
Sonhem contigo, deusa de pedra.

Mesmo mirando um pobre passarinho


Que não te conhece a glória.
E te coloca na amurada, afoito, um pouco de fezes
Ao término do alado coito! [Grifos meus].

A natureza se insere diretamente com o que o homem produz no


espaço. Como produto histórico ele testemunha e ajuda a mudar a
configuração do que existe nesse espaço, até mesmo com sua memó-
ria, na perspectiva de que tudo aquilo que ele cria é parte da repro-
dução de sua existência. Nesse contexto a poesia de Luiz Jorge Ferrei-
ra se coloca não apenas como a descrição memorial do seu tempo de
adolescente, mas também como um produto social onde ele, o poe-
ta, é parte da inevitável dinâmica da cidade. Ele solta seus lampejos
memoriais, metaforizando o monumento, chamando-o de “mons-
tro marinho”, mas suaviza esse termo no final denominando-o “deusa
de pedra”. Mesmo longe, o poeta recebe a notícia do funcionamento
do farol, mas talvez queira dizer que os olhos estejam mais vigilantes
contra os que supostamente querem lhe destruir.
Para a escritora Ester Pena60 (*), uma das poucas mulheres ama-
paenses que já publicaram algum trabalho literário relacionado à

60. Maria Ester Pena Carvalho é de formação em Ciências Sociais. Atualmente é acadêmica do cur-
so de Administração Pública (UNIFAP). Defensora da bandeira contra a corrupção e defesa do patri-
mônio público, histórico, artístico, cultural material e imaterial do Estado do Amapá. Servidora Públi-
ca Estadual; Conselheira Nacional de Políticas Culturais – Arquivos (CNPC 2015-2017; Presidente da
AARPAP (Associação dos Amigos do Arquivo Público do Estado do Amapá), associação que tem por
princípio resgatar, contar, mostrar, divulgar, ou seja, tornar conhecida a história, identidade, tradição e

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FSJM, o monumento é o locus da sua escritura inicial no seu primeiro
e premiado romance. O texto de “As Aventuras do Professor Pierre na
Terra Tucuju” se constitui, de fato, uma marcante viagem na história
do Amapá. Talvez baseado na história do francês Paul Lerouge, pro-
fessor e preso político que já citei quando me referi à episódica Ope-
ração “Engasga-Engasga”, o romance o traz como principal persona-
gem (O professor Pierre), que tem o poder de viajar no tempo, como
veremos abaixo:

AS AVENTURAS DO PROFESSOR PIERRE NA TERRA TUCUJU

CAPÍTULO I – O professor Pierre e sua Máquina do tempo


A força policial do período, a antiga Guarda Territorial, sediada na
histórica Fortaleza de São José de Macapá, parecia impotente para con-
ter o avanço desse estranho movimento, que dava ares de ter como ob-
jetivo atemorizar a população e desmoralizar os militares no poder
(Pág. 17).

Decidiu subir devagar em uma árvore enorme de muitos galhos e folhas


largas, e nem precisou subir muito para conseguir visualizar o rio Amazo-
nas e a Fortaleza de São José de Macapá. Mas com certeza não estava na
mesma época. Tudo era diferente. A cidade sequer havia chegado ao local
onde Pierre morava (Pág. 20).

Apagou de novo e acordou em casa, rodeado de policiais civis e da Guar-


da Territorial. Tentou pedir socorro, mas a resposta que recebeu foi ter
seu corpo virado de bruços pelos policiais, e ter suas mãos puxadas para

memória do Estado do Amapá. Escritora integrante da APES (Associação Amapaense de Escritores) e


REBRA (Rede de Escritoras Brasileiras) autora das obras “As aventuras do professor Pierre na terra tu-
cuju”. François, o boto. Participa das antologias “Assim escrevem as brasileiras”; “Ainsi écrivent les brè-
siliennes” e “Poesia na boca do rio”. Participa do espetáculo Liras & Mocambos. Também é militante
dos grupos literários e culturais.

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trás, com muita brutalidade. E então veio o pior, a dor que sentiu quando
suas mãos foram amarradas com arame.
Em seguida foi jogado na traseira de uma caminhonete preta, que pa-
recia estar caindo aos pedaços. Foi levado para dentro da Fortaleza de
Macapá, e lá dentro ainda percebeu que havia outros presos. Todos eram
tratados com igual crueldade, sendo chamados de porcos subversivos, co-
munistas malditos, e outros adjetivos piores (Pág. 21).

Jean Pierre olhou em volta e seus olhos se inundaram com aquela paisa-
gem maravilhosa. Tudo era diferente, era mais selvagem. Não se via mais
a fileira de canoas encostadas ao longo do canal da Fortaleza, nem o esta-
leiro e nem o imponente Hotel Macapá, do outro lado do canal (Pág. 22).

Se ainda estavam construindo a Fortaleza em Macapá, então era alguma


manhã perdida entre os anos de 1764 e 1782, não tinha como saber. Pierre
torcia para que o quilombo do Curiaú já estivesse instalado, e que o negro
conseguisse motivar outros companheiros para a fuga, já que começava de
novo a sentir seu corpo formigar. Sabia que logo desapareceria dali, deixan-
do os escravos pensando que ele era um espírito que lhes incentivava a fugir.
Sua fantasmagórica aparição renderia frutos meses depois, quando
um grupo de negros, liderados pelo negrão, fugiram após um combate,
no qual foram trucidados os feitores e os condutores de uma barcaça que
trazia pedras pelo rio Pedreira para a construção da Fortaleza de Macapá.
(Pág. 24).

Entretanto, Pierre, que havia sumido de repente da construção do piso da


Fortaleza, mesmo acordado, surgiu repentinamente no mesmo calabou-
ço em que havia sido jogado, só que de novo em 1973. E dessa vez rodeado
de guardas, alguns até velhos conhecidos, mas que faziam questão de de-
monstrar que sentiam por ele um enorme desprezo e nenhuma piedade:
– Sim? Não disseste que o velho francês tinha sumido? Olha ele ai!

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– Mas ele não estava mesmo! Olha como a mão dele está solta! Não dis-
se? É isso mesmo, eles são muito espertos ou sei lá o quê! Cadê o arame?
Procuraram em vão no calabouço escuro, foram buscar um novo ara-
me e amarraram de novo as mãos do velho professor, e depois saíram ain-
da discutindo. Um deles afirmava que aqueles comunistas “tinham parte
com o diabo”, enquanto outro zombava, demonstrando que, no fundo, sa-
bia que tudo aquilo era uma mera encenação. (Pág. 26).

Mesmo assim, permaneceram no avião ainda por horas, e depois foram


retirados e levados de volta para suas celas na Fortaleza de Macapá, e des-
ta vez, por iniciativa do inspetor de polícia encarregado da condução do
grupo, que resolveu desfilar com os prisioneiros pela cidade, foram então
retirados do carro na Avenida Cândido Mendes, de onde seguiram a pé,
sob a mira de velhos fuzis e metralhadoras “Ina”, na direção da entrada da
Fortaleza (Idem).

O livro é uma metafórica viagem que traz como característica o gê-


nero fantástico da literatura. Trata de uma aventura suave e é um con-
vite ao interlocutor para que ele faça parte da história.
Como se fosse um filme, o professor Pierre está sempre viajando
na sua máquina do tempo, mas paradoxalmente sente as dores no
presente, ao ser torturado nos calabouços da FSJM durante a sua pri-
são memorial. Mas se liberta das correntes reais para imaginar em di-
versas passagens que se encontra livre. E assim, revê fatos memorá-
veis da construção da edificação, desde o seu início.
É a própria autora que explica que “a FSJM representa suas his-
tórias, memórias, tradições e identidade amapaense, pois a partir
dela se pode recriar um milhão de interpretações, desenhos ou es-
critos reais ou ficcionais”61. Para ela, o monumento faz mexer com o
seu imaginário, pois, “as emoções estão talhadas em cada pedra na

61. Parte de uma pequena entrevista que fiz com autora sobre sua obra.

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qual repousa a história do mundo ali alicerçada. E ela é matéria pri-
ma: suor, sonho e sangue de escritores, amantes da história e da lite-
ratura. É identidade de todo um povo”.
Ester informa que
as transformações no mundo criam um forte simbolismos em nos-
sa existência. Maneiras de agir, de pensar e de ser são moldados com
isso. O arcabouço cultural deixado é forte, sem dúvida, presente em
nossos corações e almas mas precisa ser referendado, lembrado e o
tempo todo revisitado. Isto é essencial à interação da dinâmica local, e
outra ponta do conhecimento para as gerações do porvir.
Precisamos cuidar bem da nossa memória para manter viva nossa
história. Luta diária pela preservação de nossas identidades. Mostrar
ao povo o quão importante e representativo a interação entre as pes-
soas e as transformações na paisagem é um trabalho para toda vida
seja na educação, na cultura ou como sopro no turismo local.
História não contada é história morta. A FSJM é um marco no
mundo e na alma amapaense.

As referências literárias expostas no presente capítulo trazem as preocu-


pações sociológicas devido sua correlação entre a literatura e a socieda-
de, sem buscar condicionamentos estéticos ou outro caminho que não
seja essa correlação. No caso da temporalidade do período ditatorial em
Macapá, a questão das identidades perpassa pelos textos ancorados na
memória dos escritores e deixam a FSJM como o locus de diversas mani-
festações sociais, políticas e culturais ao longo de sua permanência, tão
eivadas de significados nos discursos de toda ordem, emanados pelos de-
tentores do poder e por aqueles que só tinham o poder da escrita.

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5
A CRIAÇÃO DO ESTADO DO AMAPÁ E AS
NOVAS IDENTIDADES (1988-2016)

Com o fim da ditadura militar e o reestabelecimento do Estado De-


mocrático no Brasil, em 1985, o Amapá ainda teve três governadores
indicados até 1990, ano da primeira eleição para governador, depois
de sua transformação em Estado da Federação, ocorrida com a Pro-
mulgação da Constituição de 1988.
A descontinuidade do poder de sucessivos governos levou os pla-
nejadores a realizar uma série de mudanças físicas na orla da cidade e
no entorno da FSJM, sem que a população tivesse o direito de opinar,
mesmo através dos seus representantes legítimos. Tratava-se de uma
política urbana cartesiana, vinda sempre “de cima para baixo”.
De acordo com o professor Alberto Tostes, pesquisador e arquite-
to da UNIFAP, em palestra realizada no dia 18 de novembro de 2009,
“desde 2000 a FSJM já recebeu mais de 30 projetos de restauração”.
A mais significativa, no entanto, foi a de 2006, que culminou com a
inauguração do Parque do Forte, no lado sul, que após intensa pro-
paganda institucional ficou conhecido por “Lugar Bonito”. Ao lado de
toda a exuberância que lhe foi dada esteticamente, o que lhe valeu o
prêmio da revista “Caras” como uma das Sete Maravilhas do Brasil, o
vandalismo e a falta de manutenção pelo poder público começou a
incomodar camadas da população mais conservadora e os frequenta-
dores do lugar. Por si a FSJM está presente no dia-a-dia da sociedade

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como um símbolo que marca a cidade, embora em seu entorno ocor-
ram situações que em nada combinam com esses valores. A pichação
de suas muralhas, a falta de manutenção, a criminalidade e a insegu-
rança promovem o afastamento dos usuários do lugar.
Em 1998, o governo estadual revitalizou o trapiche Eliezer Levy,
que anteriormente era de madeira e principal porto de Macapá, di-
minuindo-lhe o tamanho em cerca de 200 metros, mas com um res-
taurante no seu final, ligado por um bonde elétrico de passeio para
atender à demanda turística. Infelizmente a administração atual do
governo estadual (gestão do governador Waldez Góes) não manteve a
proposta do governo da época e abandonou suas instalações, deixan-
do-o que pessoas usuárias de drogas o usassem como refúgio.
Ao meio dessas transformações na paisagem, o rio Amazonas e a
FJSM são as únicas permanências que restaram de um longo tempo
de mudanças e de decisões de intervenção urbana para a área. É aqui,
portanto, que trabalhar com a memória exige um grande esforço dos
habitantes da cidade que nela já moravam antes do inchaço popula-
cional da década de 1990, com a chamada “Zona Franca” de Macapá,
na realidade uma Área de Livre Comércio de Macapá e Santana que
não teve longa duração, considerando aspectos políticos e econômi-
cos que interferiram na sua manutenção e continuidade.
Para ser o que é hoje para o povo da cidade de Macapá, a FSJM
passou por inúmeras restaurações, mas se estabeleceu na paisagem
como um elemento de referência para todos os planos diretores rea-
lizados e para os não executados pelos governos municipais e ter-
ritoriais.

5.1. REFERÊNCIA IMAGÉTICA
A fortificação tornou-se um ícone-referência após as facilidades da
mídia ao colocá-la com símbolo indelével da cidade, que está presen-
te em todas as representações institucionais dos governos. Bem an-
tes da transformação em estado (Na administração Annibal Barcel-

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los – 1979/1985), já haviam sido realizados concursos para a escolha
de bandeira e brasão da nova unidade da federação que não tardaria
a vir. Seus símbolos são:

A BANDEIRA DO ESTADO DO AMAPÁ


Escolhida como símbolo do Estado, através de uma comissão desig-
nada pelo governador Annibal Barcellos, e oficializada pelo decreto
nº 4, de 30 de janeiro de 1984. O mesmo decreto foi revogado pelo go-
vernador que substituiu Barcellos, Nova da Costa, introduzindo ou-
tra bandeira (Decreto nº 16, de 16 de junho de 1989), mas ele foi, em
10 de abril de 1991, revogado por Barcellos (decreto nº 0059), quando
primeiro governador eleito, fazendo voltar a que constava do decre-
to 4120/1984.
Sua simbologia busca demonstrar, através da figura geométrica da
Fortaleza de São José, o passado da população do Amapá que origi-
nou e propiciou a evolução da cidade que hoje é a capital do Estado.
Seu formato retangular emoldura a bandeira amapaense baseada nas
cores azul, verde, amarelo e branco, seguindo o exemplo da bandeira
nacional, acrescido do negro. As cores do pavilhão amapaense são re-
presentadas da seguinte maneira:
Azul: Representa o céu e a Justiça. Verde: Perfaz 90% da área do
Estado; representa a floresta nativa – ainda preservada – a esperan-
ça, o futuro e o amor, além da liberdade e a abundância. Amarelo: re-
presenta a União e as riquezas do Subsolo. Branco: Tem a simbologia
da pureza, da paz, do desejo de segurança e da união entre seus habi-
tantes, evitando-se a discórdia entre poder público e seus moradores.
Negro: representa o respeito aos antepassados que enalteceram a re-
gião. Estas interpretações estão contidas no Decreto 4120/1984 (Fonte:
Edgar de Paula Rodrigues).

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Bandeira do Estado do Amapá.

O BRASÃO DE ARMAS
As Armas Estaduais são compostas por um escudo laureado pelas co-
res azul e vermelho, que retratam o antigo uniforme da Guarda da
Fortaleza. A feitura das Armas Estaduais deve obedecer às seguintes
disposições:

Brasão de Armas do Estado do Amapá.

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I - Ao topo a estrela branca e as arestas amarelas simbolizando o
surgimento de mais um Estado da Nação. A cor branca simboliza a
pureza, a serenidade e paz. O amarelo nossas riquezas.
II - Logo abaixo, a faixa com os dizeres “Aqui começa o Brasil”.
III - Na parte superior do Brasão, nos lados esquerdo e direito, são
apresentadas as formas da Fortaleza de S. José de Macapá.
IV - Seguindo as laterais, verificam-se as formas dos escudos no-
bres, até juntarem-se os lados, com retas e semicírculos de raios opos-
tos, sendo que um dos raios internos dos que estão situados do lado
direito tem como ponto de partida a Capital do Estado.
V - O Brasão é de ordem do corte horizontal, sendo que este re-
presenta a linha divisória do hemisfério, ou seja, a linha do Equa-
dor, com o seu marco 00 graus, 00 minutos e 00 segundos, localiza-
do em Macapá.
VI - No interior tem-se o mapa geográfico do Estado do Amapá,
mostrando a riqueza de solos, dada a sua expansão no espaço que
ocupa da Federação. Sua cor amarela representa as riquezas mine-
rais, no solo e no subsolo. Simboliza, ainda, a união, a fé e a constân-
cia nos atos.
VII - No centro do mapa tem o amapazeiro, árvore que deu ori-
gem ao nome Amapá, por ser pomposa no seu porte e rica em ma-
deira de lei; seu leite, folhas e frutos serviam como medicamento e
alimento aos primeiros habitantes dessa terra. Sua cor verde-musgo
representa a esperança, a fé no futuro, o amor, a liberdade, a amizade,
a abundância e a cortesia.
VIII - ao pé do amapazeiro apresenta o mesmo verde simbolizan-
do, ainda, os nossos férteis campos agrícolas.
IX - Abaixo da linha do Equador, ou seja, ao corte nobre horizontal,
enraiam-se vinte e cinco (25) arestas negras, fazendo lembrar a con-
vergência para um ponto comum no mapa do Estado, cuja cor simbo-
liza a honestidade vivida e pregada, a obediência à Lei e à autoridade,
a desilusão, a tristeza, a aflição e a morte.

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X - O Brasão é guardado ainda, pelas palmas protetoras do ama-
pazeiro e seus frutos. Os dois segmentos de palmas são unidos por
um laço branco, simbolizando a fita do Divino Espírito Santo (folclore
amapaense). [Fonte: Edgar de Paula Rodrigues].

O HINO DO ESTADO
O Hino do Estado do Amapá é composto pelo poema denominado
“Canção do Amapá”, cuja letra é de autoria o promotor de justiça Joa-
quim Gomes Diniz e a música e arranjos do maestro Oscar Santos. A
adaptação é em Fá Maior, para canto e em Si Bemol para execução, por
bandas de música. A Canção do Amapá, considerada, pela Constitui-
ção Estadual de 1991, o Hino do Amapá, foi vencedora do concurso so-
bre o Hino do Amapá em 16 de abril de 1944. Foi efetivado pela primeira
vez como hino oficial, pelo decreto nº 008, de 23 de abril de 1984, confir-
mado em 16 de junho de 1989 (Decreto nº 0018-E) e ratificado em 10 de
abril de 1991 (Decreto nº 59). [Fonte: Edgar de Paula Rodrigues].

CANÇÃO DO AMAPÁ
Letra de Joaquim Gomes Diniz
Música de Oscar Santos

Heia povo destemido


Deste rincão brasileiro.
Seja sempre teu grito partido
De leal coração altaneiro
Salve rico o torrão do Amapá
Solo fértil de imensos tesouros
Os teus filhos, alegres, confiam
Num futuro repleto de louros

Se o momento chegar algum dia


De morrer pelo nosso Brasil

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Hão de ver deste povo a porfia,
Pelejar nestes céus cor de anil

Heia povo herói, varonil


Descendente da raça guerreira
Ergue forte, leal, sobranceira,
A grandeza de nosso Brasil
Salve rico o torrão do Amapá
Solo fértil de imensos tesouros
Os teus filhos, alegres, confiam
Num futuro repleto de louros

5.2. REFERÊNCIA LITERÁRIA
Deve-se rememorar que o ano de 2008 foi marcado por muitas come-
morações pelos 250 anos da fundação da vila de Macapá. Neste ano,
Escolas de samba do grupo especial da cidade, como a Associação
Universidade de Samba Boêmios do Laguinho e a Associação Recrea-
tiva Escola de Samba Piratas da Batucada fizeram seus enredos basea-
dos nesse acontecimento.
A Agremiação Carnavalesca Beija-Flor de Nilópolis apresentou e
venceu o carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro com o tema
“Macapaba - Equinócio Solar: viagens fantásticas ao meio do mundo”,
de autoria dos carnavalescos Laíla, Fran-Sérgio, Ubiratan Silva e Ale-
xandre Louzada, cujo samba enredo fala sobre a FSJM:

A mão de Ianejar
Na Fortaleza pela proteção da vida
Em São José de Macapá
Brilha Mairi a minha estrela preferida62

62. Folha de São Paulo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2008/02/


369709-beija-flor-ilumina-sapucai-com-sol-de-macapa.shtml > Acesso:05 Mai 2015

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Esses versos são uma referência ao mito fundador dos índios
Waiãpi, já citado no capítulo I, onde o herói Ianejar conduz seu povo
em uma grande casa de barro chamada Mairi, em busca de um lugar
para morar e para que se livrem dos estrangeiros brancos que os ator-
mentavam. Até que um dia, após sucessivos cataclismos (um grande
incêndio na floresta e um dilúvio), chegam às margens do grande pa-
raná (o rio Amazonas). Como o tempo mítico é circular, certa vez, ao
visitarem Macapá, um grupo de índios Waiãpi acreditou que a FSJM
era a Mairi (Grande Casa de Barro) do mito.
Nesse ano muitas instituições, civis, militares, religiosas e a socie-
dade em geral aproveitaram a data para emitir suas expressões amo-
rosas sobre a cidade, ao lado da FSJM e de outras representações que
a caracterizam, como o monumento do Marco Zero do Equador, por
exemplo.
As instituições locais mandaram imprimir dezenas de peças publi-
citárias quase sempre com a imagem oficial da foto aérea do chamado
“Lugar Bonito”, o Parque do Forte, amplamente divulgada pela agên-
cia Amazoon Sistema de Comunicação, que fazia serviços exclusivos
para o Governo do Estado.
A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos-ECT produziu um
selo e um postal com os principais ícones físicos da cidade. Na peça
chamava Macapá de “Guardiã da Amazônia” e estampava um logoti-
po dos 250 anos com uma guarita (da FSJM) escura envolvida em uma
bandeira do município e, acima, um guará vermelho estendia suas
asas. O verso do postal trazia o seguinte texto:

04 de fevereiro de 1758.
Aqui a história se contorceu, houve enfrentamentos e sangue, surgi-
ram heróis e mártires. Foi o início da luta e da determinação de homens
e mulheres. Aqui o rio Amazonas, indiferente a tudo, abre sua boca num
estuário imenso. Tolda de barro as águas azuis. Serpenteia por igarapés,
invade floresta, oscila nas marés e nas estações. Na frente, só o céu e as

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águas. Ao lado, aparece a Cidade de Macapá, densa de história. Com seu
forte de São José, imponente, heroico, sombra da missão que lhe de-
ram de defender este lado [grifo meu].
[...]

Por conta própria, poetas como Roberto Serra, que também é


professor da rede estadual, exprimiram seus sentimentos poéti-
cos de forma explosiva e nativista, e os divulgaram como postais
impressos sobre a fotografia da fortaleza. No poema abaixo, Ser-
ra afirma (poeticamente) que a nação tucuju (índios que habita-
vam a região no tempo da construção da FSJM) surgiu da grande-
za da fortaleza.

SENTINELA DO NORTE (1782)


À margem esquerda do rio
mora a sentinela de pedras, sangue oleiro e cal
Nasceu das plantas de Gronfels
Onde canonizaram baluartes santos, na pentagonal
determinação defensiva e lúcida de Galúcio.

As lágrimas desceram o Rio Pedreira;


Enquanto invasores rondavam a coroa,
corpos negreiros e indolentes tapuias
transportavam pedreiras em jangadas e canoas
mergulhadas nos suores sedentos das cuias.
As lágrimas desceram o Rio Pedreira;

Quilombos surgiram nas campinas


dos rios Uanará-Peru, Flexal e Araguari
procriando antepassados nas endemias
formando o povo guerreiro dos nossos dias.

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As lágrimas desceram o Rio Pedreira;
A sentinela ouviu a república,
virou curral, quartel de animais
e os espíritos voltaram a chorar nas masmorras
de novo...
Oprimindo um inimigo invisível,
Seu próprio povo.

Hoje, as gerações do rio mar abraçam


a história na verdadeira fé
de uma nação tucuju
que surgiu da grandeza
de uma Fortaleza de São José.

Os escritores Joãozinho Gomes63 , Luli Rojanski e Almeida Júnior,


entre outros, também se expressaram de forma poética e/ou ficcional
sobre a FSJM, onde a questão da identidade se ressignifica em seus
conceitos.
Necessário se faz, pois, apresentar o poema de Joãozinho Go-
mes, abaixo. Uma poesia aguerrida, que busca uma identidade lo-
cal através do tema; que vislumbra um sonho no qual o eu-lírico
constrói imagens e mergulha nas raízes da história, com autocon-
fiança, sentimento de pertencimento e de envolvimento com a so-
ciedade local.

63. Joãozinho Gomes. Poeta e compositor paraense - radicado no Amapá - nasceu em 20 de outubro
de 1957, na cidade de Belém do Pará. Iniciou suas atividades poética e musical na década de 1970. Em
época atual, reconhecidamente como um dos mais férteis poetas-letristas da sua geração, Joãozinho
Gomes ostenta uma obra que agrega parceiros – compositores e poetas – de várias regiões do Brasil.
A sua produção poética e musical consiste em aproximadamente mil canções e cinco livros, dos quais
cerca de duzentas canções foram gravadas por seus respectivos parceiros e, apenas um livro fora edi-
tado, “A Flecha Passa e poemas diVersos”; recentemente teve seus poemas editados pela Revista Bra-
sileira 84, da ABL- Academia Brasileira de Letras. Assim sendo, somente vinte por cento de sua exten-
sa obra está publicada.

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IV CANTOS DO TEMPO
À Fortaleza de São José de Macapá

I
Âncoras ao rio
gente ao calabouço
grilhões cavando corpos
em busca de ossos
ainda ouço – ouço
o baque seco
do aço ao osso – o eco surdo
o gemido úmido do
índio e do caboco, o grito de
dor em quimbundo, o áfrico
choro aos abortos:
ouço a corte
assassinar os nossos
a foice trabalhar o corte
o aço ao osso
ouço a morte
o sangue gotejando
ao calabouço marca o tempo
do remorso – soluço
de um fantasma moço.

II
Aos arcos expõem o teu silêncio
um barulho de passos
ainda range aos ferros do martírio
correntes arrastando
os nossos pelos corredores
(medonho tilintar de tenebrosos guizos)

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passo a passo iam nus ao cárcere
– anti-humano o tempo disto! –
descalços sobre o chão de pedra bruta
pés ensanguentados foram ao sacrifício.
Aos arcos, as marcas desse tempo
são povos que passaram aflitos
coaguladamente negros
coaguladamente índios... aos gritos!

III
O povo caminha
sobre as pedras
dentro do Ente triste.
(dentro doente o
povo) Sobre ele
um abismo de flange
aflige o amazonas
carrega em si
um afluente inteiro
para encher o pote.
Na cela; o choro
trêmulo de quem
repele a morte,
é sinal de luta na
rispidez das pedras.
São fantasmas e
crianças conjugando
a mesma “...sorte”.

IV
Farrapos após séculos!
Eis aqui a miserável obra

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do destino imenso,
não viste ainda
a imperfeição dos traços?
Olha para este quadro,
moldura de mogno magno
e tela de panos parcos.
(obsoletos paletós
ex-postos em corpos soberbos
expostos em mórbido espaço)
Qual ser
de tamanha galhardia fora outrora
dessas vestes usuário?
Quem as doou a este povo
(mísero donatário)
o fez por sabedoria
ou para vangloriar-se
de tão “nobre” ato?
Hoje quem as veste
sabe como cerzir os trapos,
e os enxágua
na água do amazonas,
como se lavasse a própria alma
miseravelmente em farrapos (GOMES, 2013. Pág. 57/60).

O poema fala de prisioneiros e degredados que vão ao sacrifício


das tormentas, dos castigos. Descreve a bruta vida diária dos pri-
meiros tempos da construção. Fala de negros, caboclos e índios,
que deixaram suas vozes no calabouço da história, com marcas
existenciais de sangue coagulado, como se a história passasse e só
restassem hoje seus gritos de angústia ecoando pelas paredes. Re-
pete o insofismável quadro do “Ente triste”, onde o povo, aquela so-
ciedade do período da ereção, “caminha sobre as pedras” doente,

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mas resiste aos males e às ameaças de morte. Fala de farrapos, da
“miserável obra do destino imenso”, um destino empobrecido como
os andrajos dos soldados que um dia tiveram “tamanha galhardia”;
e dos que vestem os “obsoletos paletós” e lavam suas sujeiras na
“água do Amazonas”.
Decerto, o poeta evoca o pensamento heraclitiano para sentir as
temporalidades contidas no poema, pois para Heráclito ninguém
toma banho no mesmo rio duas vezes. E a alma a ser lavada, para
o poeta, é doída, sofrida e retrato da condição que as personagens,
reais, fictícias e anônimas passaram na história, fazendo com que o
leitor compreenda que a FSJM é o lugar da enunciação do discurso
das identidades amapaenses.
Joãozinho Gomes costuma usar a FSJM como tema de seus traba-
lhos poéticos e musicais. Em entrevista a mim, disse que

a Fortaleza de São José de Macapá é o cenário predileto de minha verve


quando penso em retratar, em traduzir o Amapá, seja em textos escritos
para serem musicados, ou em textos escritos para versarem músicas, ou
em textos escritos para serem editados em livros. A Fortaleza de São de
Macapá paira permanentemente em minha imaginação me impondo
uma espécie de cobrança ancestral a levar-me naturalmente a reverenciar
a sua colossal imponência e importância histórica e cultural para os ama-
paenses, para os amazônidas, e, por que não, para os brasileiros?! A For-
taleza de São José de Macapá é uma das mais importantes matérias-
-primas da minha poesia tucuju [grifos meus].

Uma de suas músicas traz a experiência da substância poética da


qual se alimenta. Abaixo a música “Templo de pedra e sangue”, feita
em parceria com o compositor amazônida Nilson Chaves:

Eu vim (pra) fazer a festa


guerrear contra a tristeza

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nesta cidade floresta
dentro dessa Fortaleza. ..

O belicoso templo
de pedra e sangue
fora outro outrora,
ora abriga as artes,
enquanto
a ele o tempo ora.

Há vinte de nós
a decantar a sua história!
A frente de nós
há de cantar a sua história
legião de poetas
que carrego na memória. [grifos meus].

Inserido no processo cultural do Amapá, onde milita há cer-


ca de duas décadas, Joãozinho Gomes se refere ao monumento des-
ta forma:

Fortaleza de São José de Macapá é a maior documentação da nossa his-


tória, aqui edificada, acredito! Nela está o DNA da nossa origem. Creio
que a partir de pesquisas aprofundadas - e, isso bem que poderia ser pro-
videnciado por nossos governos - a respeito de sua nada feliz, mas impor-
tantíssima história, poderemos chegar a origem da nossa própria história,
da nossa existência enquanto brasileiros, amazônidas, amapaenses que
somos, não?
Ela é a identidade do Amapá, é o seu maior símbolo confeccionado
pelas mãos do homem, né!? Assim, concorrendo em inferior condição,
porém, de maneira amistosa, com outro símbolo, este mais majestoso,
confeccionado pelo poder de Deus, refiro-me ao poderoso Rio Amazo-

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nas (“Este rio é Deus/ Em estado líquido/ Por isso ser/ Deste tamanho”).
Ambos são símbolos que orgulham o povo amapaense, que adora falar e
ouvir que a Fortaleza de São José de Macapá é linda, grande, a maior do
Brasil etc. A Fortaleza de São José de Macapá não é só uma edificação
colossal ao sentimento do povo amapaense; é, sim, a logomarca da sua
existência, penso eu [grifos meus].

Entre os escritores contemporâneos que escolhi para a realização


deste trabalho está Almeida Júnior, autor de “Conversa na Sala”, um livro
de contos, crônicas e poemas que trazem a projeção história da FSJM
como tema basilar. Sua expressão literária sobre o monumento se resu-
me a um passado histórico descritivo, transitando em estilo romântico.
Seu poema “Fortaleza Cristã” enfoca certa estrutura histórica da
conquista americana e a fixação do colonizador luso e seus valores
religiosos que terá de impor aos índios da floresta e negros do além-
-mar. Sua viagem literária também traz conceitos que se incompatibi-
lizam nos versos no texto, ainda que neles queira deixar uma relação
com os entes da floresta. O texto também traz a voz (e a ideologia) do
conquistador, embora narre as condições precárias da construção e
os castigos impostos aos trabalhadores compulsórios.

AMAZÔNIA
O aeroplano ficou guardado sob os olhos dos soldados do Forte. Magní-
fica obra da engenharia lusitana. Construída pedra sobre pedra, consu-
miu décadas do tempo e muito sofrimento humano para ser erguida. Ali,
homens brancos, negros e índios, mulheres e crianças também, e velhos,
alguns muito velhos, suaram seu suor de sangue, viveram sua via-crucis,
uns com chibata nas mãos outros com arreios nos ombros. Cercados por
um dos lados pelo Dulce Mar e pelos outros a implacável muralha verde
permeada de frestas e olhos espreitando vigilantes e assombrados, e sil-
vos, muitos silvos, e sendas, poucas sendas, com pegadas e marcas, mar-
cas estranhas deixadas à noite, e silvos, muitos silvos.

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Iniciativa com a marca Pombalina, no ano do Senhor de 1764. Um ano
dentro da sua década de poder, um poder real de monarca, nas mãos sem
cedro. Apenas um mandato com a marca do anel real, na cabeça não se via
coroa alguma, apenas planos, muitos planos, planos e estratégias de poder
e conquista. Veio sem vir, e fez valer a vontade de Dom José, o Gordo, o Rei,
este sim vestindo coroa e dormindo além mar. Garantiu deste lado do Atlân-
tico uma praça de guerra inviolável aos inimigos de qualquer língua, vindos
de qualquer lado, montados sobre cavalo ou dragão, ou soprados nas velas,
armados com qualquer poderosa arma aniquilante de ferro e fogo. Dali não
passariam, seriam detidos e expulsos se vivos ainda estivessem.
Para a construção daquele altar da guerra, abrigo suntuoso da morte,
fez vir técnicas e desenhos de Vauban, o Formidável, o Engenheiro, sim, o
outro Marquês, admirado em Portugal, o rei que não era rei, mas reinava
como um rei dos dois lados do oceano. Uma suntuosa fortaleza ergueu-
-se ali, garantindo um território verde irreconhecível, intraduzível, inde-
finível, inviolável, assombroso, misterioso, mágico, paradisíaco e infernal.
Quixito resumiria liricamente em prosa aquela empreita do rei que não
sabia reinar, mas que mandava no quase rei político e astucioso, visto com
os próprios olhos (ALMEIDA JUNIOR, 2014. Pág. 63-6).

FORTALEZA CRISTÃ
El-Rei Dom José Primeiro, sem saber ao certo
O que fazer, em que lugar
Fez vir Galúcio, determinado e hábil, Vauban febril,
“Faz ser nosso sem contestação, o que é nosso é até então”
Uma a uma, pedra por pedra,
Suntuoso e monstro ergueu ali,
À sombra da expedicionária cruz,
O castelo da morte, o altar da guerra e da luz.

Bem ao largo, úmida e hostil,


Espiava tudo a floresta inteira

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Riam muito, assustando os negros,
O Saci, o Curupira, e a onça, rainha sorrateira.
O chicote em punho, com suor do povo, umas nas outras,
Fez colar, as cantarias da muralha de Macapá.

Consumada a obra, efetivando o mapa,


Sem conhecer o futuro, e o que ao certo haviam feito,
Sorriu seu sorriso de Rei, El-Rei dom José Primeiro,
“Se o império ibérico arruinasse um dia, seria bem aí que eu moraria”

Oh, naus corsárias de França e Holanda,


Vindas do longínquo hemisfério de lanças em punho,
Com seus caninos a morder o vento,
Encravada à terra, lhes espera agora,
A conquistadora guardiã cristã,
Imponente e brava resguarda a foz de um rio,
Este, amazônico e doce, luso mar.
“Trancada a porta, por onde pretendem passar? ” (Idem).

A escritora Luli Rojanski, paranaense, é contista e cronista. Fixou-


-se em Macapá na década de 1990. É professora estadual e foi diretora
da Biblioteca Pública Elcy Lacerda. Publicou em seu livro “O Lugar da
Chuva” o texto abaixo, escrito com suavidade e sensibilidade, dando a
ele um ar de contemporaneidade. Nele a autora vivifica as cenas mo-
vimentadas na praia de sedimentos da frente da cidade, que ocorrem
quando a maré baixa. É termino das férias escolares e ali, os meninos
nem sequer percebem o que há de tão importante na FSJM. Eles sol-
tam papagaios e correm quando a maré enche até se acenderem as
luzes do trapiche, no seu dizer nostálgico. A narração de Luli Rojans-
ki é um retrato da cidade, onde a diversão dos ribeirinhos que moram
no entorno da fortificação faz parte de um cenário permanente entre
ela o rio.

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MENINOS DE JULHO
[...]
Os meninos de julho amanhecem colorindo com pipas o céu às mar-
gens do Amazonas dourado, cujas águas ondulam desde o princípio do
mundo. Circundam a secular Fortaleza de São José, onde dormem os ne-
gros que a construíram, iluminados pelo sol menino que penetra as pare-
des pétreas. Correm incansáveis e descalços sobre o sedimento da praia,
até que se acendem as luzes do trapiche, até que julho termine.
Agora que o menino está sonhando, Macapá sente a falta de pipas cru-
zando o céu, transportando o sonho de voar do menino (ROJANSKI, 2001.
Pág.79).

Tanto quanto nos escritores acima, o exercício da expressão da


memória está presente nas obras do ex-governador João Alberto Ca-
piberibe e Obdias Araújo64.
O primeiro trabalha as suas origens caboclas e o segundo cons-
trói elementos surreais e metafóricos para expressar seus sentimentos
identitários em relação à FSJM.

Clarões da Alma
A Fortaleza imponente, ao lado, que bela paisagem que a história nos le-
gou e que preencheu meus sonhos por anos e anos...
Cresci íntimo com o rio e suas praias lamacentas. Pescava e perambu-
lava entre a Fortaleza e o Igarapé do Jandiá, território livre da minha se-
gunda infância, que me conservou a cultura ribeirinha do Juruá. Orgulha-
va-me do trapiche enorme avançando no mar doce, desafiando as marés,
apontando, poeticamente, para a lua cheia (CAPIBERIBE, 1998. Pág. 57).

64. O cronista João Alberto Capiberibe, como o dissemos antes, no capítulo anterior, foi prefeito de
Macapá, governador do Amapá e agora é senador da República. Tem 71 anos e já publicou livros de in-
teresse político. Obdias Alves de Araújo, 56 anos, publicou três livros de poesia entre eles “Praça, Pinga,
Poesia e Mágoa”, edição do Autor, Macapá - 1997.

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Ressalte-se que o presente texto está em uma coletânea organiza-
da especialmente para a inauguração do novo trapiche Eliezer Levy,
que perdeu suas funções de ancoradouro e se tornou lugar de atração
turística na frente de Macapá, ao lado da FSJM.
Obdias Araújo também é irmão dos poetas Jeconias e Hodias Araú-
jo, a quem me referi no capítulo anterior. O poema, inédito, foi escri-
to desta forma:

Tu sabias
que a Fortaleza
foi toda construída
no Curiaú?
Diz que o Sacaca
o Paulino e o Julião Ramos
vieram em cima da Fortaleza
varejando até chegar na beira do Igarapé Bacaba
onde amarraram a bichona na Pedra do Guindaste
e foram tomar uma lá
no boteco do sêo Neco.
Diz que o o Alcy escreveu uma crônica
E o Pedro Afonso da Silveira Júnior leu
Oito horas da noite
no Grande Jornal Falado E-2.
Diz que, né?
Diz que o mestre Zacarias
vinha em cima do farol
tocando um flautim feito
com as aparas da porta de ébano...
E que Dona Odália vinha fazendo
flores de raiz de Aturiá
sentada no maior de todos os canhões
brincando com a Iranilde
que acabara de nascer.
Diz que o Amazonas Tapajós vinha

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cantando ladrões de Marabaixo
-ele, o Edvar Mota e o Psiu.
E o João Lázaro transmitia tudo para a Difusora.
Diz que até o R. Peixe pintou um mural
-aquele que ficou no pátio da casa do Isnard
lá no Humilde Bairro de Santa Inês
de onde foi roubado pelo Galego e trocado
por duas garrafas de Canta Galo
e uma de Flip Guaraná, lá na Casa Santa Brígida...
Hoje Macapá amanheceu bem
mais triste que de costume.
Roubaram a Fortaleza!
Levaram o velho forte! De madrugada
Dois ou três bêbados remanescentes
viram passar aquela enorme coisa boiando
rumo Norte, parecida uma usina
de pelotização.
Andam comentando lá
pelo Banco da Amizade
que foi o Pitoca
a Souza
o Quipilino
o Pombo
o Zee e o Amaparino...
E que o Olivar
do Criôlo Branco
e o Cirão
estão metidos nessa história.
Eu, hem!

O ROUBO DO FORTE VELHO65

65. ARAÚJO, Obdias, O roubo do forte velho. Canto da Amazônia. 2011. Disponível em:< http://fer-
nando-canto.blogspot.com.br/2011/11/obdias-araujo-novo-poema.html. > Acesso em 09 jun.2015.

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Todas as pessoas citadas no texto, bem como os lugares, existiram
ou existem ainda. São elas: Sacaca, conhecedor de ervas, curandei-
ro; Paulino, organizador de festas de Marabaixo; Julião Ramos, lí-
der negro do Marabaixo do Laguinho e fundamental no processo de
gentrificação das famílias de negros que moravam na frente da ci-
dade na época da instalação do Território Federal; Seu Neco, dono
de bar; Alcy, poeta e jornalista; Pedro Afonso da Silveira Júnior, lo-
cutor de rádio; Mestre Zacarias, flautista, pai do poeta; D. Odália,
mãe do poeta; Iranilde, irmã do poeta que nasceu nas dependên-
cias da FSJM quando seu pai ali morava; Amazonas Tapajós, locutor
de rádio e boêmio; Edvar Mota, locutor e publicitário; Psiu, locutor e
marcador de quadrilha junina; João Lázaro, disk jockey da Rádio Di-
fusora de Macapá; R. Peixe, artista plástico e sambista; Isnard, poeta
e advogado, que foi preso contumaz do regime militar; Galego, poe-
ta e jornalista; Pitoca e Souza, filhos do Sacaca, Quipilino e Pombo,
irmãos boêmios, sendo o primeiro servidor da Prefeitura e o segun-
do mecânico e sambista; Zee e Amaparino, irmãos, o primeiro fun-
cionário púbico federal no Amapá e o segundo biblioteconomista;
Olivar, torneiro mecânico, filho do Criôlo Branco, massagista e ben-
zedor e; Cirão, tratorista da Prefeitura.
Locais: Fortaleza, FSJM; Curiaú, quilombo próximo de Macapá;
Igarapé bacaba, local próximo ao Curiaú; Pedra do Guindaste, anti-
ga pedra e agora um pedestal de cimento que sustenta a estátua de
São José, padroeiro da cidade e se localiza na praia; Grande Jornal Fa-
lado E-2, antigo programa de notícias de grande audiência transmi-
tido pela Rádio Difusora de Macapá; Aturiá, nome de praia e de uma
árvore; Marabaixo, manifestação cultural de origem afrodescenden-
te. Bairro de Santa Inês, antiga localidade da Vacaria, ao sul da FSJM;
Canta Galo, marca de cachaça; Flip Guaraná, antigo refrigerante local;
Casa Santa Brígida, comércio; rumo Norte, direção da praia do Igara-
pé das Mulheres; usina de pelotização, local de transformação de pe-
dras de manganês em bolinhas para exportação do minério e; Ban-

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co da Amizade, tradicional local de encontro de amigos no bairro do
Laguinho.
Este poema é interessante porque realiza uma mistura de per-
sonagens emblemáticos da cidade que participaram de um roubo
fantástico, em que arrastaram a FSJM pelo litoral até o local onde
ela teria sido construída: o Curiaú, na imaginação do poeta. Suas
referências memoriais apontam para uma realidade impossível, na
narrativa de lugares e personagens reais da cidade, principalmen-
te os do bairro do Laguinho. O enredo do poema parece se tratar de
um resgate (que envolve vingança) de um objeto que não perten-
cia à cidade de Macapá, mas sim aos remanescentes dos escravos,
cujos ancestrais participaram da construção da fortificação, pois
a maioria deles são afrodescendentes e por isso viram-se no direi-
to de arrancar a fortificação e leva-la até onde foi, de pleno direito,
construída.

5.3. NOVOS DISCURSOS LITERÁRIOS


Em 2008, a Geração Editorial lançou o romance “O Conceito Zero”,
de A.J. Barros, uma história de mistério, suspense e ação, que tra-
ta de uma intriga internacional para proclamar a independência da
Amazônia. Está sintetizada no seguinte: ao comparecer a um en-
contro com o general chefe da Abin, a Agência Brasileira de Infor-
mações, o agente da Receita Federal, dr. Maurício, se vê no meio de
uma conspiração, cujo objetivo é tornar a Amazônia um país inde-
pendente.
Na busca de indícios que o levem aos conspiradores, Maurício des-
cobre um código, que precisa ser decifrado. Começa então uma corri-
da contra o tempo, numa narrativa onde a realidade e a imaginação se
unem numa história inquietante.
O texto é rico em informações históricas e geográficas, muitas das
quais do Amapá, em que algumas das personagens visitam a capi-
tal, Macapá, e inevitavelmente a FSJM. As informações fazem par-

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te do enredo e ajudam a compreender a trama. Quais teriam sido,
por exemplo os reais objetivos da viagem do ex-presidente Theodo-
re Roosevelt pela Amazônia, no início do século XX? Teria o governo
brasileiro suspeitado das intenções de Roosevelt e indicado o então
coronel Rondon para desviá-lo do caminho?
Essas questões são apresentadas no decorrer do romance, do qual
reproduzo alguns trechos:

Entre os anos de 1964 e 1982, foi construído o forte de São José de Macapá,
logo após o Tratado do Pardo ter revogado o Tratado de Madri de 1750,
reacendendo as guerras territoriais entre Espanha e Portugal.
Rogério interrompeu as meditações de Maurício.
– Aqui nós não temos um marco zero? O marco zero do Equador? Ele
não atravessa a cidade?
– Estive pensando nisso também. Mas nosso problema não é “marco
zero”, mas o “conceito zero”. Tenho procurado analisar todos os detalhes,
buscando combinações que possam ser úteis para decifrar o verdadeiro
código, do qual não temos nenhuma pista ainda. Temos de ver esse for-
te e tentar sair daqui ainda hoje. Algo me diz que as coisas estão se pre-
cipitando.
O piloto disse que até as quatro e meia podiam decolar para Belém.
Carlão preferiu ficar no aeroporto com seu colega. Tomaram um táxi e o
motorista levou-os ao forte.
Nunca havia estudado tanto a história do brasil como nos últimos me-
ses. Agora estava ali no Amapá e precisava descobrir se o forte São José de
Macapá estaria escondendo algum mistério que o general não teve tem-
po de desvendar.
“O Contestado Franco-Brasileiro teria algo a ver com isso? ” BARROS,
2008. Pág.314).

Depois de falarem sobre a República do Cunani, a invasão dos


franceses na localidade de Amapá e o episódio de Cabralzinho,

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Chegaram ao forte São José de Macapá, outra obra de arte que seguia os
mesmos princípios do forte Príncipe da Beira. No entanto as pedras não
eram trabalhadas, eram pedras comuns, sem o capricho do Real Forte
Príncipe da Beira, construído em homenagem ao herdeiro da Coroa.
Apenas os cantos das muralhas eram de cantaria. As guaritas e os de-
talhes do portão de entrada, o acabamento e o desenho tinham o mesmo
estilo do outro. Mas ali o transporte era mais fácil e havia mais gente.
O tenente comentou:
– O mais provável é que as pedras para a construção do Príncipe da
beira tenham vindo de Portugal, e essas pedras de cantaria que colocaram
nos cantos dos muros deste forte são apenas sobras daquelas que seriam
usadas no Guaporé.
Mas as explicações que buscavam para justificar as diferenças de
construção não satisfaziam. Qual o mistério para que dedicassem tanto
engenho e arte, como diria Camões, ao real Forte Príncipe da Beira, ainda
localizado num dos mais difíceis recônditos do país?
O forte de Macapá estava restaurado e em suas dependências havia
um pequeno museu. Tiveram tempo de ouvir as explicações do funcioná-
rio e caminhar pelo pátio, onde havia também um buraco no centro, que
deveria levar as águas das chuvas. Lembrou-se do seu desconforto da sua
entrevista com a Confraria lá no Príncipe da Beira, mas o túnel do forte de
Macapá servia apenas para conduzir as águas da chuva para o rio, pois era
estreito, não dando passagem para uma pessoa (Idem. Pág. 315).

Com um mapa do estado, fizeram algumas observações sobre o


Oiapoque. Depois o narrador fala:

A história do Amapá era muito rica e cheia de coisas interessantes, mas


nada de especial chamava a atenção e eles tinham de ver o marco zero.
Olhou mais uma vez o atentamente a imensidão das águas barrentas
do rio Amazonas e comentou com o tenente:
– Quem dominar esta posição toma conta da Amazônia.

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Quando o tenente Rogério estendeu a vista para a imensidão das
águas que se abriam diante deles, Maurício suspirou profundamente e
disse com certa tristeza:
– Tenho a estranha sensação de que não se trata apenas de perdermos
a Amazônia. Às vezes me dá a impressão de que precisamos reconquis-
tar todo o país. O Brasil sempre respeitou a amizade e a integração entre
os povos, mas parece ter-se descuidado da sua identidade (Idem. Pág. 316)

O autor narra que o táxi levou as personagens para o Marco Zero


do Equador, onde uma guia turística lhes explicou o fenômeno do
equinócio e falou de outras curiosidades:

– Será mesmo verdade que esse efeito coriolis faz as águas das pias escoa-
rem em sentido contrário, dos dois lados da linha do Equador? Aquela
moça disse que ao lado do Hemisfério Norte, a água escoa no sentido do
relógio, e, do lado do Hemisfério Sul, no sentido anti-horário. Penas que
não temos tempo para comprovar isso – disse o tenente, pesaroso.
Mas Maurício estava pensando nas hipóteses do novo código.
Nos dias 21 de março e 23 de setembro, o Sol passa sobre a linha do
Equador e então os dias e as noites duram exatamente doze horas, em
qualquer lugar do globo terrestre. Daí o nome equinócio, que vem do la-
tim aequinoctium, que significa noites iguais, e marca o início da prima-
vera, no Sul e o outono, no Norte.
“Será que esse equinoctium misturado com o efeito coriolis estaria
sendo usado? Parece tudo tão ridículo”.
Saíram do marco zero e foram direto para o aeroporto. O motorista
perguntou:
– Os senhores são da polícia? (Idem. Pág. 317).

As personagens ainda confabulam sobre experiências científi-


cas na Amazônia, principalmente aquelas que são usadas em se-
res humanos como o caso da malária em São Raimundo do Pirativa,

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no Amapá, em que uma universidade americana pagava doze reais
por dia para que as pessoas ficassem expostas às picadas do mosqui-
to da malária, entre outros assuntos semelhantes. Em seguida, o nar-
rador diz:

Chegaram ao aeroporto e o avião estava abastecido, já com o plano de voo


para Belém. O Sêneca decolou e empinou em direção a Belém, passando
sobre o rio Amazonas, que serviu de sepultura a Francisco Orellana.

Ao finalizar o capítulo, o narrador informa ao leitor que os

amapaenses consideram-se mais brasileiros do que os demais porque, se-


gundo eles, Deus os destinou a pertencer ao Brasil. E dizem isso porque
Francisco Orellana retornou à região com uma carta de outorga dada pela
Coroa da Espanha, mas morreu quando seu barco naufragou nas águas
do rio que descobrira, perto do Amapá66 (Idem. Pág. 318).

O que poderia ser uma ruptura no tempo, a construção da FSJM


- que já foi vista pelos escritores locais como algo acabado, tangível
na paisagem, uma sombra do passado, e ainda um monstro inócuo
e morto à beira do Amazonas, na sua permanente contemplação ao
movimento das ondas e à força do vento - é um elo conectivo que une
os pretéritos da aventura colonizadora com a hipervalorização da
obra no presente (o que traz à tona a grandiosidade da intenção do
governo português do século XVIII para garantir a paz e a segurança
das populações ribeirinhas, mas que também traz o propósito de en-
riquecimento da nação portuguesa em função dos altos investimen-
tos militares e econômicos para a região).

66. Sobre esse assunto, o ex-presidente da República e ex-senador pelo Amapá, o escritor José Sarney
traz à baila de forma intertextual, em seu livro sobre o Amapá, que os amapaenses se consideram mais
brasileiros que os outros porque se recusaram a ser franceses no episódio do Contestado (1895), desde
o confronto sangrento em que Cabralzinho lutou com os franceses defendendo o Brasil.

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Pensar essa obra isoladamente é incorrer no vazio, porque ela
tem muitas facetas, e múltiplos olhares se dirigem a ela sob as mais
diversas temporalidades e alteridades. E a literatura lhe dá o caráter
de uma escritura nascida do dia-a-dia, não algo provisório e tênue na
paisagem, todavia um abrigo de emoções nascidas do cotidiano que
guarda ainda hoje a recordação e, quem sabe, segredos de cada gesto
nos nichos fechados de suas pedras de cantaria.
O que aconteceu durante as obras da fortificação tem causa, obje-
tivo, objeto e um emaranhado de acontecimentos, que fizeram dela a
realidade histórica que a imaginação de poetas e escritores se servi-
ram para tê-la como objeto de descrição, como louvação ou mesmo
como objeto simbólico, com sua inerência à formação da identidade
do povo amapaense.
A FSJM estava sempre lá, no mesmo lugar, como a permanência de
um projeto político e militar da conquista lusitana, como uma pedra
fixada sendo contemplada como um “ser” na paisagem que tem por
fundo o rio Amazonas. E todas as personagens daquele rol de indiví-
duos isolados, e quase degredados, beberam o fluido e se alimenta-
ram com o peixe do mesmo rio.
Todos os aspectos sociais ligados (ou causados) pela sua constru-
ção iluminam virtualmente o significado de sucessivos projetos es-
taduais de Governo em um processo que ora determina seus discur-
sos ora encaminha a decisão das transformações urbanas no entorno
do monumento. Daí então está a sua importância para a cidade de
Macapá, pois é nela que se multiplicam e se cristalizam os discursos.
Cabe, entretanto, a uns poucos o uso sistemático de seus espaços e de
sua forma imagética.
Para mim é importante ressituar sempre o contexto histórico da
FSJM, porém, sem perder de vista a sua dimensão literária. O “topos”
onde ela foi construída é o teatro, o locus que se montou, se desmon-
tou e se remontou com a vida dos habitantes de Macapá. Nele, tempo
e espaço se integram em uma dimensão. O tempo traz “uma concep-

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ção de homem e, assim, a cada nova temporalidade corresponde um
novo homem” (AMORIM, 2008. Pág. 105).
Posto isto, o cronotopo atinge a produção da história, designa um
lugar de coletividade, “espécie de matriz espaço-temporal onde as vá-
rias histórias se contam ou se escrevem [...] ou onde o tempo é com-
partilhado pela coletividade em esferas comuns de atividades” (Idem.
Pág. 105).
Esse conceito orienta o sentido de que os discursos estão dentro
de uma dimensão espaço-temporal compartilhados pela coletivida-
de. Deste modo, a noção de tempo linear (histórico), onde está a con-
temporaneidade exposta, até o resultado da produção cultural que se
faz, no caso, em função do monumento, se amplia no tempo e no es-
paço, que toda a sociedade pode partilhar.
O espaço da FSJM é um lugar de turistas, passantes e caminhan-
tes diurnos e noturnos envolvidos em suas liminaridades ritualísticas
entre o dia e a noite (LEITE. 2007. Op. Cit. Pág. 241). Como qualquer
centro urbano remodelado, revitalizado ou restaurado, inicia-se ao
cair da tarde o lugar da mobilização, de deslocamento dos que voltam
para casa e dos que chegam para trabalhar ou para usar a noite (VAS-
CONCELLOS e MELLO, 2006).
Nesse caso novas formas de ver a sociedade estão em jogo, dada a
dinamicidade e a interação social do lugar.

5.4. O AUTOR, A LITERATURA, A FICÇÃO E IMAGINÁRIO


Achei conveniente falar um pouco sobre o autor e seu objeto de tra-
balho nesta temporalidade, em virtude de novas reflexões a respei-
to do assunto e mesmo para fazer um apanhado desses períodos em
que a própria literatura era sustentada mais por discursos políticos
(fundadores) e poéticos, pois num tempo de milhares de analfabe-
tos, Janary lia seus discursos no rádio (Rádio Difusora de Macapá) e
os publicava no jornal Amapá, ambos de propriedade do governo do
Território.

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Creio que o fato de dar ênfase a sua ideologia construtivista, ele e
seus seguidores possuíam a cultura de que o que escrevesse ficaria
como referência histórica para o órgão da federação nascente e ad-
ministrado por eles com verbas federais. Suas ideias, como autor nas-
ciam, claro, individuais e depois se tornavam a marca da identidade
que pregava, valorizando o caboclo nativo, a FSJM, as riquezas natu-
rais e o poder do trabalho.
Ao autor estava reservada a sua permanência até depois de sua
morte. Mas quem lhe conferiria a imortalidade seria o leitor, aque-
le que comenta, critica e tem a liberdade de interpretar. No caso do
discurso em que Janary promove a expressão de sua ideia ou vonta-
de, ele provoca estímulos ao leitor para respostas que podem ser con-
siderados uma espécie de vínculo no momento de receber as ideias
do autor. O autor é um indivíduo que criou (ou que cria) uma ideia a
ser interpretada, por isso ele não é apenas o que assinou o texto, mas
aquele que tem um certo brilho, expondo certa confiabilidade e valor.
Autores são pedreiros que justapõem pedras sobre pedras e cons-
troem edifícios memoráveis, artesãos angustiados e inquietos. Obser-
vadores de pedras quebradiças, brutas e polidas, estas que o autor se
vale para empreender sua escrita. É ele que dá o sentido a uma me-
mória quando a imaginação arde ou falha. Nesse trabalho de conexão
com a realidade que se apresenta, o autor é que dá o sentido à (des)
ordem inimputável do tempo, laborando nas palavras o significado
daquilo que será usufruído por todos, pois o coletivo que absorve sua
obra é a representação que dá continuidade a sua criação literária.
Roger Bastide dizia que a arte não expressa apenas o esforço pes-
soal do autor, pois para ele toda a produção artística (incluído a lite-
ratura) nasce de um processo coletivo onde “não há criação indivi-
dual sem um prévio preparo social e popular” (BASTIDE, 1971. Pág.
13). Ele diz que a emoção é arrancada de quem observa, de quem lê
a arte, aliás é uma característica que envolve o seu sentido criativo.
Diz que, diante de uma obra de arte, expressamos nossa emoção e te-

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mos necessidade de compartilhá-la, de fazê-la chegar a outras pes-
soas, de senti-la comum. Por isso é que aquilo que provém da arte e
que se torna uma obra de valor, que tenha emoção artística e estética,
cria, então, a solidariedade social. É o que a arte provoca. Assim, a arte
(e isso é válido para a literatura) “compõe-se de dois elementos da so-
lidariedade: o que nos une ao artista (o produtor cultural) e o que nos
une aos seres imaginários inventados por este último” (Idem. Pág.31).
É perceptível que as produções artísticas como a literatura, a mú-
sica, a pintura, a fotografia e o cinema, entre outras, vêm sendo obje-
to de análise na vida contemporânea de forma multidisciplinar. Como
não tenho por escopo interesse no aspecto crítico da literatura, mas
sim a sua representação objetiva da realidade exterior a ela, concor-
do com Canclini, quando afirma que é no processo de circulação so-
cial da obra que seus significados se constituem e variam (CANCLI-
NI, 1979), considerando que essa circulação também será importante
para o entendimento da identidade social.
Há, então, uma correspondência entre o processo artístico; autor/
obra/intermediários/público e a sociedade. Para Canclini, “as chaves
sociológicas do objeto [...] e sua significação no conjunto de uma cul-
tura não se encontra na relação isolada da obra (literária) com o con-
texto social” (Idem, Pág. 12). Para ele, cada obra é o resultado do terre-
no artístico e de pessoas e instituições que condicionam a produção
do autor.
Destarte, para compreender o sentido social de uma arte é neces-
sário compreender as relações entre os componentes do terreno artís-
tico e a inserção desse terreno na sociedade total. Pode-se dizer, en-
tão, que há uma disposição antropológica na produção da escritura,
pois, se o autor cria, ele é uma espécie de catalizador da cultura que
envolve a sua sociedade. Ele, com sua criação, lança a luz ao receptor
que não encontra impedimento em absorver o conjunto de palavras e
de torná-lo significante à sua interpretação. Mesmo injuntiva, eivada
de teor ideológico, a produção do autor é livre, pois o ato de inventar é

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inerente ao ser humano. Assim, essa disposição antropológica traz na
ficção, na criação literária, um movimento que aponta com nitidez a
sua importância e a necessidade de narrar, de refletir, em função des-
sa realização, mesmo transgressora, o que significa também razão de
sua existência.
Não há dúvida que, no processo da produção, existe um objetivo
que é a circulação da escrita. Ver o compartilhamento de seu traba-
lho junto ao leitor reforça no escritor o pensamento de que, ao menos
potencialmente, o leitor tenha condições de recriar sua ficção, sua
criação. E essa socialização resgata e satisfaz o autor e sua biografia,
porque assim ele encontra eco (deformado ou não) para o que supos-
tamente iniciou (considerando que o que ele fez foi imbuído de uma
força coletiva inconsciente que ocorreu no seu processo criativo).
É Wolfgang Iser que segmenta a construção literária ao dizer que
há três atos de “fingir”:

Seleção, combinação e autoindicação. O escritor é um ser humano con-


dicionado pelo espaço e o tempo que, todavia, em algum momento de-
cide se entregar ao labor de escolher entre os elementos que lhe acorrem
à mente, aqueles que constituirão uma narrativa, e os articula de manei-
ra que lhe parece conveniente. O empenho em criar não lhe confere cons-
ciência plena em suas decisões e medidas, tampouco lhe faculta o contro-
le o controle absoluto sobre o resultado alcançado; no entanto a própria
adoção de certas alternativas e não de outras já diz da intencionalidade
do texto (ISER, 2013. Pág. 09).

Nessa intencionalidade é que ficam expostas a arte do escritor, o


delineamento de suas ideias e, sobretudo, o rompimento intencional
da sua própria interpretação da realidade, em desdobramentos que
permitam a emoção e o significado de quem lê seus trabalhos.
Muito têm-se dito sobre o escritor e sua criação literária, ficcional
ou não. Mas é importante e salutar dizer que antes de ser um autor,

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ele leu. Ele foi um receptor, um leitor, que em maior ou menor grau
se envolveu com o conhecimento posto a sua frente, que naturalmen-
te lhe deu o estarte para a sua socialização e desenvolvimento intelec-
tual por meio da educação e da cultura.
Porém, independentemente das configurações literárias que ve-
nha a assumir na sua vida, a ficcionalidade, o “fingimento” do escri-
tor surge da necessidade de mostrar-se a si mesmo. No momento da
criação o escritor é um ser dual, mas consciente de sua encenação e
de sua natureza paradoxal que lhe faculta vivenciá-la na sua dualida-
de. É, então, que ele se distancia de si mesmo para se colocar na pers-
pectiva de criar-se.
Não se trata aqui de se referir a aspectos psicanalíticos – ou de con-
ceitos usados pela psicologia para procurar entender essa afirmação.
Trata-se de uma observação que se põe antes da percepção do cam-
po estético e durante o processo de produção que faz do escritor um
ser que tramita entre o real e o imaginário, em busca de percepções
criativas que enriquecem a humanidade. O escritor, o poeta, que En-
zra Pound chamou de “antena da raça”, cria simplesmente a sua ver-
são de mundo.
Acrescento que não quero apologizar o escritor, mas relativizar ob-
servações de cunho teórico, desde que se sabe (devido ao hiperdivul-
gado verso de Fernando Pessoa, de que ”o poeta é um fingidor”) que o
significante do escritor é resultado do ato de fingir, pois

O signo verbal mantém sua costumeira diferença em relação ao significa-


do e, ao mesmo tempo tira partido do fato de se encontrar alforriado dos
códigos que regem seu ato corriqueiro (Idem. Pág. 17).

Na realidade o ato de escrever ficção torna-se algo lúdico, para não


dizer ato diferenciado e até mesmo romântico quando autor “petrifi-
ca” o imaginário momentaneamente e depois o deixa voar com ou-
tras cores (e signos), pois a ficção não está comprometida com o mes-

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mo pragmatismo de outras literaturas, como a religiosa, a política
e outras.
Por ser lúdico faz o jogo da linguagem de onde nasce a ficção, pela
sua capacidade humana de simbolizar. E o autor subtrai da realida-
de e do imaginário esses símbolos como matéria-prima da sua cria-
ção literária.
O escritor, diria ainda, é um ser multifacetado e carregado de
nuanças personalísticas e tensões que, quando se aparta do seu coti-
diano persiste o esquadrinhamento de outras (i)realidades. Ele tem a
capacidade de se liberar da própria personalidade para aparentar ou-
tra que lhe permita produzir o texto., a partir do ato de “fingir”.
Ainda que sejam disseminadas as experiências de escrituras, nas
quais poetas, contistas e romancistas se sentem transportados pelo
texto no ato de escrever, deve-se pensar que eles são arrebatados pelo
jogo, um embate entre o homem e sua criação., onde o imponderável
e aleatório se confirmam como requisitos para escrever.
Considerando essas posições, recorro a Iser novamente para enfa-
tizar que “a literatura necessita de interpretação, pois o que verbaliza
não existe fora dela e só é acessível por ela” (Idem. Pág. 25). E ela cum-
pre a sua função sociocultural, além da mera pragmática no seu pa-
pel de entreter, de informar e documentar, ou de passatempo. Quan-
to mais cumpre a sua função, mais ela permite hoje captar por trás da
força por ela produzida (a construção da realidade) “uma construção
antropológica do homem que se alimenta de suas fantasias” (Idem.
Pág. 26).
Iser dá a conotação antropológica à literatura ao afirmar que a fic-
ção e o imaginário são experiências “por fazer superarmos o que so-
mos através de mentiras e dissimulações, seja porque vivemos nos-
sas fantasias durante os sonhos diurnos, nos sonhos e nas alucinações
(Idem. Pág. 29). Para esse autor o fictício e o imaginário fazem parte
das disposições antropológicas, existem na vida real e não se restrin-
gem à literatura.

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A literatura atualiza o sentido do que o que a caracteriza é a arti-
culação, organizada por meio do fictício e do imaginário. É daí, en-
tão que a literatura surge e pode se diferenciar dos outros meios, pos-
to que nenhum fenômeno da arte existe por si mesmo. Ele diz que “o
fictício e o imaginário são por si sós a condição para a literatura resul-
tante de sua interação, porque nem o fictício nem o imaginário po-
dem ser totalmente fundamentados “ (Idem).
À medida que cada um se torna o contexto do outro, o que vem a
regular o jogo da criação é a estrutura que nasce da interrrelação en-
tre o fictício e o imaginário. A literatura atualiza essa interação e o tex-
to literário, como espaço de jogo, abre-se para a história e vem a ofe-
recer respostas do homem de necessitar de ficção.
Antonio Cândido conceitua a Literatura como todas as criações de
caráter poético, ficcional e dramático, considerando que cada socie-
dade a representa de acordo com sua cultura (CÂNDIDO, 2004).
Isto posto, reitero que a ideia de colocar a questão do autor, da lite-
ratura e do imaginário neste texto se baseia na experiência do enten-
dimento da verdade, da pesquisa, da imersão aos textos, tão diversifi-
cados nas temporalidades. Estas que dão sentido e evocam o sentido
de identidade da sociedade amapaense, ao logo do trabalho.

5.5. O AUTOR DENTRO DO SEU OBJETO67


Pela sua história, FSJM representa para os poetas e escritores do Ama-
pá uma fecunda fonte de criação literária dos mais variados estilos,
o que me permitiu discorrer ecleticamente sobre ela por meio de ar-
tigos, poemas e crônicas, durante cerca de trinta anos (Décadas de
1980/1990/2000/2010).
Mas antes de fazer uma reflexão crítica sobre essa produção,
devo dizer que este item é uma espécie de duelo travado (diálo-

67. A reflexão produzida neste item foi o resultado da sugestão da professora Alba Carvalho no exa-
me de qualificação, para que eu me colocasse frente ao tema de investigação desta tese, como litera-
to que sou.

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go) entre a obra do autor/pesquisador com o seu objeto de estudo
e a teoria, considerando o propósito de relacioná-lo às temporali-
dades dos capítulos. É uma situação que instiga a busca de outras
interpretações que não aquelas do tempo em que os textos foram
elaborados, e bem antes de pensar em direcionar a escrita sobre o
objeto. Nesse caso, eu, enquanto autor, seguramente não pensa-
va que essa produção pudesse ser elemento da construção de uma
pesquisa.
Na minha infância, eu via a FSJM como um prédio estranho, en-
cravado na beira-rio do Amazonas e como uma construção inacessí-
vel, de onde contavam histórias terríveis de gritos e sofrimentos dos
prisioneiros encarcerados em suas masmorras e das assombrações
inerentes a esses fatos que então povoavam o imaginário dos maca-
paenses. Muito tempo depois, eu a observei de outro ponto de vista,
não sem me envolver na corrente ufanista de sua importância, a qual
era dotada de manifestações laudatórias às ações dos “heróis” que a
construíram em um tempo de grandes dificuldades de transporte e
comunicação, no século XXVIII. Essas reverências preenchiam mui-
to bem as necessidades de manifestações patrióticas do governo mili-
tar, que desde 1964 fazia perpassar sua ideologia nas escolas públicas,
onde estudei até 1973, ano do surgimento de um fato que se tornou
conhecido como “Engasga-Engasga”, já colocado no capítulo IV, no
qual a FSJM novamente foi lugar de prisões e torturas de mais de duas
dezenas de “subversivos comunistas”, bem antes já identificados pelos
órgãos de repressão do Governo.
Estes textos, diria sem nenhum receio, são substratos empíricos de
base memorialística e artística, pois trazem minha experiência alte-
ritária sobre o objeto em diversos períodos de tempo, o que me con-
diciona a olhá-los com o olhar de pesquisador, para que eu possa en-
tender as mudanças nele ocorridas. Diria, ainda, que aqui objetivo
ampliar a revisão metodológica sobre meus textos para saber se não
sofistiquei ou vulgarizei a abordagem.

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Por ser a literatura uma área que me dedico há muitos anos, prin-
cipalmente tendo como tema a Amazônia e, especialmente o Amapá,
seja na ficção, na poesia ou na crítica (Onde aspectos sociais, polí-
ticos e econômicos são sistematicamente abordados por mim), não
poderia deixar de enfatizar nesses escritos a cidade de Macapá e sua
vida cotidiana, onde estão presentes as relações sociais e sua estrutu-
ra urbana em constante mudança, bem como suas poucas permanên-
cias, como a FSJM. Por ocasião das festividades dos 200 anos de sua
fundação (1982) fui convidado para escrever um texto poético-come-
morativo em um jornal local:

Dezenove de março: dois séculos rondam a Fortaleza de São José


de Macapá.
Durante todo esse tempo ela permanece inexorável às intempéries. O
silêncio testemunha a vigilância constante dos seus baluartes. É a maior, a
mais bela e sólida fortaleza deste país, entre os dezoito fortes quase eter-
nos do Rio-Mar (CANTO, Jornal Marco Zero, 1982).

O texto, indubitavelmente, carrega um teor ideológico que repro-


duz, mesmo de forma poética, o discurso heroico e épico sobre o mo-
numento, cujo aniversário de fundação serviu como oportunidade
para a disseminação patriótica do Brasil da época. Fui de roldão nes-
sa propositura, pois há menos de um ano havia ingressado no serviço
público (setembro de 1981) e exercia minhas funções no então Depar-
tamento de Turismo da Secretaria de Planejamento e Coordenação
do Governo do Território Federal do Amapá, que coordenou o evento.
Creio que, independentemente de certa vigilância ideológica, feita
de forma velada pelos chefes do Departamento, não me fur-
tei de abordar as dificuldades que obstaculizaram a construção da
obra, e de me valer da interseção da deidade ao me referir em outro
trecho falando sobre: “nesta terra durante anos esquecida pelos ho-
mens”. Deixei presente no texto o sentido da soberania nacional, tão

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propugnado nesse período pela ditadura militar. A gratidão aos “he-
róis” e a preservação da obra foi a preocupação poética por mim idea-
lizada. A muralha do forte para mim simbolizava a solidez da espe-
rança num futuro melhor, quando a história dos homens e mulheres
obtivesse novos rumos e pudesse modificar o país, com ampla liber-
dade de pensamento.
Em 1984 publiquei meu primeiro livro de poesia, “Os Periquitos
Comem Mangas na Avenida”, onde evoco Pablo Neruda por meio de
seu poema “Ainda”, cujos versos “Perdão se quando quero/ contar mi-
nha vida/ É terra o que conto” traduzem um certo comprometimen-
to entre as suas atividades políticas, poéticas e sua aldeia. Neste texto,
homônimo do livro, digo que

I
Como diariamente
As pedras dessa fortaleza silenciosa.
Bebo o rio afoito
Num apetite inútil (CANTO, 1984. Pág. 15-16).

No poema “Macapá” também me refiro a FSJM de forma metafóri-


ca, pois parece que a esperança se esvanece:

[...]. Meu olhar não condena o vento


nem quer fazer falir o fogo da esperança
mas ardem os pés outrora fortalezas
e os olhos são docas na extensão das horas (Idem).

O contexto dos poemas é a cidade de Macapá, onde o eu-lírico in-


forma que pode engolir o que não se pode comer, considerando o la-
conismo do objeto e a inutilidade da intenção, a uma decifração me-
morial da FSJM, esfinge que ele avista no horizonte da cidade. Num
outro olhar, o sujeito informa que absorve pela observação particular

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os barcos e as pessoas que chegam à cidade, na doca, próxima à forta-
leza, expressando certa preocupação com a decadência da vida urba-
na do lugar, onde o tempo é lento (Entendendo-se sempre como um
tempo sem pressa e sem grandes movimentos). A ausência de uma
dinâmica social suscita ao eu-lírico uma angústia caracterizada pela
ardência dos pés que necessitam de movimento.
Mas é no livro em homenagem à Macapá que falo sobre o surgi-
mento mítico das entidades que habitam o imaginário popular, desde
a colonização dos lusitanos na Amazônia.

CÂNTICO 16º
Esvaem-se sortilégios
A cada pedra sobre pedra.
As mesmas mãos que criaram vultos
Mataram visagens de vidro.

Vão-se assombrações
Quando argamassa e barro
Unem-se/ fundem-se
Na raça que resulta em nós (CANTO, 1985. Pág. 57).

Ao dizer que os amapaenses são o resultado da argamassa e do


barro que serviram de matéria-prima para a construção da fortifica-
ção, o eu-lírico insinua que ela foi o ponto de partida para a solidifica-
ção de um povo no contexto histórico da Amazônia, onde a herança
cultural indígena ainda é muito forte.
Digo que sempre me preocupei com a preservação do monumen-
to, pois, por trabalhar no setor de divulgação turística do antigo Ter-
ritório do Amapá, observava de perto a relação do povo com ele. Tal
relação essa que se caracterizava pelo respeito e admiração que os
moradores mais antigos da cidade a ele tinham, e pelo descaso e irres-
ponsabilidade com que a juventude o tratava.

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Antes de [a Fortaleza de São José] completar 200 anos, foi preparado um
programa de comemorações, incluída também uma nova pintura, troca
de telhas, capina, etc... Nova pintura pelo fato de, à falta de vigilância su-
ficiente, foi facilitada a entrada de vândalos, que quando não faziam de-
senhos, pichações e escreviam frases obscenas nas paredes, carregavam o
que encontravam desde grades de ferro a balas de canhões (CANTO, 1987.
Pág. 136).

Não havia programa integrado dentro da estrutura governamental


que pudesse fazer do monumento um lugar de acesso turístico popu-
lar com visitações monitoradas e informativas, muito menos de edu-
cação sobre a importância dele para o povo local.
A FSJM causou em mim um grande impacto desde que cheguei a
Macapá com meus pais e irmãos em uma manhã meio chuvosa do dia
22 de abril de 1962, a bordo de um avião Hércules da Força Aérea Bra-
sileira, um dos poucos transportes aéreos que faziam linha para a ca-
pital amapaense. Pela segunda vez meus pais vieram para Macapá,
realizando um trajeto de navio entre Óbidos e Belém, e de avião de
Belém até Macapá. Observem-se os dois textos:

III
O medo era um peixe engolidor
Que dissipou-se à vista da primeira paisagem
- Uma estranha construção de pedra
E um longo madeirame sobre as águas

Estava completada a travessia


(Ávida espera/ânsia desritmada)
Meus pés então colaram à terra
Como planta que “pega de galho” em solo fértil
E nunca mais eu e tu fomos nós dois! (CANTO, 2000. Pág. 10).

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SACO DE FRASES
[...] Entre as aulas e as brincadeiras, porém, eu andava pela Doca da For-
taleza, e pelas ruas do comércio, vendendo jornais, escutando histórias e
as aspirações das pessoas. A cidade tinha grandes esperanças. Mas de vez
em quando eu ouvia vozes reclamantes tirarem seus lençóis sujos e des-
cobrirem seus ranços pelos coaradores dos quintais: ‘caboclo preguiçoso’,
‘velho caduco’, ‘japonês é traiçoeiro’, ‘juiz ladrão’, ‘branco ensebado’, ‘preto
retinto do Laguinho’, ‘mulher burra’, ‘arigó assassino’, ‘prefeito ladrão’, ‘ju-
deu sovina’, ‘índio fedorento’, ‘moleque safado de uma figa’, ‘todo político é
corrupto’, ‘puta escrota’, ‘libanês esperto’. Pessoas se xingavam, se machu-
cavam. (CANTO, 2004. Pág. 117).

Evidentemente que ambos os textos retratam alguns aspectos au-


tobiográficos, que procurei dar cunho literário e ficcional. Esses as-
pectos situam-se atemporais e inevitáveis, pois me parece que a me-
mória não é intangível na criação literária e que o escritor está sempre
sujeito a lampejos memoriais que se estabelecem para adicionarem-
-se à criação artística do texto, sem o seu devido controle.
Em 2008, dois anos após a inauguração da Praça do Forte, o Con-
selho Estadual de Cultura provocou um assunto polêmico ao suge-
rir ao Governo que a praça fosse gradeada, devido ao vandalismo e
a onda de assaltos no lugar. Publiquei, então, um artigo que teve cer-
ta repercussão na imprensa amapaense e que considerei importante
para que a decisão do Conselho não fosse levada adiante:

Talvez fosse desnecessário dizer o quanto ideias aparentemente bobas


podem se tornar inconsequentes, pois a partir do momento em que o po-
der público procura dotar a sociedade de espaços populares para o lazer,
tem sempre alguém ou coisa tentando arranjar um jeito de deturpá-las,
como um síndico infernizando a vida comum dos seus condôminos ou
como um caga-regras das antigas caravelas portuguesas impondo códigos
sobre tripulantes e passageiros.

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Vi crianças pobres e tristes não poderem apreciar um dos mais belos
recantos de sua terra e namorados de mãos entrelaçadas sem poder des-
frutar o romantismo que a paisagem sortílega exerce sobre eles, enquanto
os autores da ideia sorriam (CANTO, 2008, Jornal do Dia).

A sugestão do Conselho Estadual de Cultura levada a seus supe-


riores trazia o cunho autoritário e conservador de seus pares, que es-
tavam mais preocupados em participar das decisões administrativas
do que exercer, dentro do órgão, o seu papel normativo e consultivo,
mesmo que as instâncias superiores do Governo não tivessem solici-
tado tal aconselhamento.
Mas é em torno do aniversário da cidade de Macapá que flui a poe-
sia direcionada para a fortificação em seu topos. O texto completo foi
usado para o Processo Seletivo de 2011, da UNIFAP:

O RIO, O FORTE E A CIDADE


[...] A cidade em festa se extasia diante da beleza do entorno do forte. É a Mai-
ri dos Waiãpi, revisitada num tempo espiralado, cíclico, aonde Ianejar, o herói
mítico, conduziu aquele povo para salvá-lo do infortúnio que o homem bran-
co lhe causava. Mairi, a casa de barro que os livrou dos cataclismos de fogo e
do dilúvio primordial, ainda causa espanto, pois ali permanece como uma es-
trela encravada num céu verde, molhada de mar. Permanece com seus olhos
mirando o infinito, caçando corsários inexistentes, mas possíveis. Existe numa
terna relação com o Rio dos Rios, sob a energia do equinócio que se alastra e
que se acende, mas que não basta em si mesma para gerar mais sonhos.
[...]. Na trilha da história poucos contam dos castigos infindáveis, im-
putados a muitos. Nem falo do sangue dos revéis ensandecidos, do couro
dos boçais encalcetados, da forca promovida pelo banzo, da dor que atra-
vessava um oceano de lonjura até o Oriente - ali onde a amada talvez es-
tivesse livre, amamentando um príncipe sem reino e povo. A história não
só conta; a história dói porque observa a obra humana e sua conduta. Em
nome de tão poucos homens de honra.

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[...]. Ao sol do meio-dia, no entanto, almas nuas ficam sem sombra, e
homens assombrados têm medos de seus próprios passos. Ora, mas esta-
mos no equador, que é uma panela escaldante cheia dos temperos mais
picantes onde se sabe que não há pecado em pecar demais. Não é castigo
ser leão atroz, e devorar o sonho e estilhaçar quebrantos de vidas que mi-
ram apenas no vazio do horizonte. Porque não há horizonte, há um gran-
de cemitério de mãos e pés que foram úteis CANTO, 2010. Pág. 81-2).

Aqui eu me detenho na questão do tempo mítico, que está relacio-


nado ao herói Ianejar, dos índios Waiãpi, da região das montanhas do
Tumucumaque. Para eles o tempo é espiralado e reflete a volta dos
acontecimentos memoriais da tribo. Mas a FSJM, como falamos no
capítulo anterior, tornou-se lugar de muitos acontecimentos no perío-
do da ditadura militar.

OPERAÇÃO ENGASGA E A VOLTA DOS QUE NÃO FORAM


A cidade vivia um clima de psicose coletiva em maio de 1973. Todos se
transformavam em alcaguetes e aquele que por ventura tivesse fala-
do contra o regime, bêbado em um bar ou sóbrio numa barbearia, fa-
talmente se tornaria um inimigo em potencial, sujeito a prisão e a inter-
rogatório. Os repressores prendiam quem queriam e levavam “material
suspeito” para investigação, como possíveis livros proibidos pela censura
federal e textos escritos pelos presos, tipo cartas e até letras de músicas.
As prisões se efetuavam intempestivamente por policiais desprepara-
dos e inexperientes. (Idem).

Nesse período a FSJM cumpria ainda a sua função militar. Não


cheguei a ser preso nela, mas fui detido durante horas no 3º Bata-
lhão de Infantaria e Selva para um interrogatório constrangedor. Rela-
tos posteriores davam conta da tortura física e psicológica que muitos
presos tiveram que passar durante dias, antes de serem transferidos

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encapuzados para uma unidade do Exército, em Belém, fatos que já
citamos com certa amplitude no capítulo anterior a este.
A importância da FSJM para a cidade está voltada para os concei-
tos de memória e de identidade, posto que dizem respeito às transfor-
mações sofridas pela FSJM ao longo de sua trajetória no tempo, e tam-
bém as mudanças dos seus habitantes, considerando o caminhar da
sociedade. Suas funções e modificações urbanas também foram en-
focadas por mim na busca de uma explicação sobre a sua situação de
ícone e referência histórica da cidade.
É através das cartas dos construtores da FSJM (Expostas nesta tese
como parte da primeira temporalidade, no segundo capítulo), que
podemos começar a entender como ela foi erguida, além dos proble-
mas e significados, que a levaram a ser tão fortemente o símbolo in-
contestável da cidade de Macapá.
As cartas escritas pelos engenheiros militares Galúcio, Gronfelts,
Wilkens e mesmo pelos comandantes da Praça de Macapá, sem dú-
vida são documentos importantes para a reconstituição histórica
da fortificação. Esses documentos me permitiram corrigir certos
equívocos de fatos e datas e adentrar no período histórico e social
estudado.
Reitero aqui que a literatura deve ser compreendida como uma
construção histórico-social, consolidada enquanto conceito e prá-
tica social, podendo proporcionar mudanças no leitor e realizando
uma ideologização ao relacionar-se com a realidade objetiva (SIL-
VA, 2008).
Ao assumir esta produção legitimamente como de minha autoria,
sou sujeito de um processo que não necessariamente tem que romper
com o passado, mas que pode renunciar a um paradigma e construir
uma autonomia do presente sobre o tema.
E ao dialogar com meus textos sobre a FSJM, executo um percur-
so cronológico que tem de ser valorizado pelo eu-lírico, posto que na
realidade estou trabalhando uma epistemologia que servirá para pôr

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em cena a teoria a respeito do objeto que irei construir. E “o objeto é
uma ‘criatura’ cheia de manhas (informação verbal) ”68.
Por não existir o fato em si, mas sim interpretação (Idem), é que
o eu-lírico dos textos aqui postos, tenta alicerçar-se teoricamente, fa-
zendo a interlocução entre si e o objeto, buscando estabelecer um
diálogo que pode mobilizar a ação de sua escrita em busca de novas
perspectivas e outros horizontes e, até mesmo, creio, da construção
de novos saberes sobre o seu objeto pesquisado.
Devo esclarecer, para não parecer arrogante ao escrever sobre mim
mesmo, que nesse processo da interlocução, do diálogo com o objeto,
e seus desdobramentos, há certa necessidade de argumentação com
o Outro, aquele que pode ou não validar o que penso ou o que afirmo.
Entretanto, nesse caso, pelo fato de o Outro ser eu mesmo, devo racio-
cinar comigo mesmo, pois em se tratando de raciocínio o que se pen-
sa é interno e particular. Então só posso validar o que penso se apre-
sentar bons argumentos à comunidade científica da qual faço parte.
Ao expor-me e mostrar meus textos coletados, estou pesquisando, ou
melhor, exercendo a liberdade de pesquisar, de compreender meu
objeto e mesmo de entender as razões pelas quais escrevi sobre ele
antes mesmo de pensar em pesquisá-lo cientificamente.
Até que ponto eu poderia dizer que estava fazendo uma espécie
de exercício de auto etnologia em meus textos, se o meu objeto é a
FSJM, um objeto físico, uma obra colonial histórica que tem impor-
tância simbólica para o povo amapaense? Seria esse objeto o Outro?
Claro que não. “O Outro”, para mim, são todos aqueles que existem na
FSJM e nas suas relações sociais, inclusive o eu-lírico. São as persona-
gens de um contexto histórico que viveram, que foram desterrados e
degredados no mundo desconhecido daquela Amazônia setecentis-
ta envolta em mistérios fabulosos, esquecimentos, silenciamentos e
mortes, longe dos clarões do iluminismo europeu; são migrantes que

68. Informação verbal fornecida por Alba Carvalho. Apontamentos de sala de aula. Macapá, 2013.

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se instalaram na cidade ao redor da fortificação, vindos em busca de
um eldorado tosco, quando da promessa política de uma nova zona
franca em Macapá; são, enfim autóctones e estrangeiros desvalidos,
mas esperançosos. Atento a isso está o eu-lírico desta aventura.
Mas o pesquisador, o eu-lírico que se inscreve na observância do
mundo desafiador, também reclama das condições sub-humanas
do processo de construção do seu objeto, e com ele expõe seus sen-
timentos e paixões, que são próprios dos seres humanos. Lembro que
ao ler os 374 documentos recolhidos em ordem cronológica por um
paleógrafo do Arquivo Histórico do Pará, a meu pedido, nos meados
dos anos 90, me sensibilizei ao deparar com descrição da morte do
engenheiro e Sargento-Mor Galúcio na carta do comandante da praça
de Macapá, Mestre de Campo Marcos José Monteiro de Carvalho, en-
viada ao Governador da Província do Pará.
Essa carta ainda hoje tem um cunho simbólico muito forte para
mim como pesquisador da FSJM. A morte do engenheiro causada
pela malária é apenas uma pequena representação do quadro e das
condições materiais em que viviam esses homens e mulheres como
degredados (in) voluntários, reféns de uma obra que nunca disparou
sequer um tiro de canhão contra o inimigo.
Para Geertz, Barthes distingue o “autor” do “escritor” (GEERTZ,
2009. Pág. 32) ao dizer que noutro ponto, “obra” é aquilo que o “autor”
produz e, o “texto” é o que produz o “escritor”. Ele diz que

O autor cumpre uma função; o escritor exerce uma atividade. O autor


participa do papel do sacerdote, o escritor do papel exercido pelo escri-
ba. Para um autor, “escrever” é um verbo intransitivo. Para o “escritor”,
escrever é um verbo transitivo – ele esconde algo. Ele estabelece um ob-
jetivo (demonstrar, extrair, explicar), do qual a linguagem é meramente
um meio; para ele a linguagem sustenta uma práxis, mas não se constitui
numa práxis [...]. É devolvida à natureza de instrumentos de comunica-
ção, veículo do “pensar” (Idem).

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A meu ver essa diferenciação tem mais amparo no corpo das dife-
renças dos discursos que na antropologia propriamente dita, pois não
tem valor intrínseco (critérios) que distinga o escritor-autor do autor-
-escritor ou ainda, que cada um seja um indivíduo diferente.
Mas o exercício de escrever se insere num modelo que abrange
um conceito mais amplo, aquele em que está implícito o sentido da
aprendizagem (NUNES, 2008). Eu posso escrever sobre algo sem me
deixar contaminar pelo que já escrevera antes. Minha “verdade” é a
minha inserção no tema escolhido, o que me possibilita observar e
entender até mesmo minhas próprias angústias e os mecanismos en-
volvidos no processo da escrita e ainda os obstáculos que podem até
impedir que eu realize uma produção mais elaborada.
Poderia dizer que este trabalho está no corpo epistemológico rela-
cionado ao Racionalismo Aberto e Crítico, de Alba Carvalho, que

é uma configuração epistemológica gestada no diálogo entre distintas


vertentes racionalistas que tem em comum o exercício da razão críti-
ca, sempre aberto às interpelações da realidade, na busca incessante
de descobertas na produção do conhecimento. A rigor, é uma produ-
ção de racionalismos, a mobilizar o entrecruzamento de concepções de
ciência/pesquisa que permeiam as minhas reflexões epistemológicas ao
longo das três últimas décadas (CARVALHO. S.d/ Ver o Verso Edições
[e-book]).

Nesse contexto, Carvalho enfatiza o “fazer científico” como uma


tessitura artesanalmente em movimento, em construção, através de
uma metáfora muito criativa e bem argumentada, para explicar “a
ruptura com os padrões de racionalidade então vigentes” (Idem).
A aproximação do conteúdo textual deste artigo ao Racionalismo
Aberto e Crítico se prende a uma busca de reflexão essencialmente
crítica para entrar no mundo real da pesquisa com um esforço de des-
vendamento.

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Os textos primordiais sobre a FSJM da década de 1980 e os mais
recentes entram no tear do Racionalismo Aberto e Crítico como fios
que podem ser tecidos no trabalho incessante da pesquisa empírica e
da teoria, mas que não visam a sua completude. Aprendo, assim, que
o eu-lírico que trabalha o seu olhar de pesquisador no mundo con-
temporâneo pode desvendar o que está oculto e até mesmo desven-
dar-se a si – e de si – próprio para obter novas visões sobre o objeto
pesquisado.
Carvalho, ao referenciar Boaventura dos Santos Silva, diz que

a infindável riqueza da experiência social do mundo contemporâneo é


um permanente desafio ao diálogo crítico no campo da epistemologia, da
metodologia, da teoria, configurando a produção científica como um ‘lo-
cus’ da criação (Idem).

Nesse processo de ampliação do desvendamento por meio da ra-


cionalidade crítica, Carvalho evoca Bachelard (1976) no que tange a
respeito do trânsito Ciência/Arte, domínios da criação, que são cam-
pos de descobertas e de revelações, que têm lógicas diferenciadas
de criação, porém trazem entre si uma relação insofismável. Nessa
aproximação

o conhecimento complexo ultrapassa as fronteiras da ciência, estabele-


cendo interlocução com a literatura, poesia, música, teatro, enfim,, com
as artes, resgatando os seus saberes e descobertas. Logo, o exercício da ra-
cionalidade ampla e abrangente exige reconhecer e trabalhar o trânsito
ciência/arte, alargando horizontes analíticos e vias de acesso à complexi-
dade da vida (Idem).

A autora reafirma sua teoria da tessitura crítica da teoria/empiria


pelo pleno exercício do racionalismo que deve ser aberto ao real com
sua complexidade relacional. No racionalismo é necessário ter o rigor

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crítico e vigilância da crítica. E no debate contemporâneo é preciso
observar que a ciência não pode deixar de ser uma prática social com-
prometida com a realidade social, política e cultural.
Ao se valer dos instrumentos que lhe desvendem as provocações
do mundo, o pesquisador deve estar atento às questões que a realida-
de impõe, posto que até a “tensão política é também epistemológica”,
no dizer de Boaventura dos Santos, de acordo com Carvalho.
Pesquisar, para essa autora é “aventurar-se”. Aventurar-se por cami-
nhos inacessíveis porque ali está o rumo do conhecimento que as evi-
dências escondem. Assim, cabe ao pesquisador como um ofício apai-
xonante e árduo, que ao exercitá-lo, incorpora o “habitus” científico,
preconizado por Bourdieu (1989), porque a pesquisa é um trabalho
racional. E só com essa atividade que se pode lançar-se na aventura
de conhecer o objeto real e o objeto científico, sabê-los discernir, pro-
blematizá-los, construí-los e trabalhar a teoria/empiria no artesana-
to intelectual (MILLS:1975) do tear onde se encontram em tessitura os
fios da teoria e os fios da realidade. Esse é o trabalho do pesquisador.
Nessa condição, as dificuldades advindas das provocações e das
tensões me trazem a ideia de que se pode experimentar diversos mo-
dos de entender epistemologicamente o mundo. Por meio da literatu-
ra e da própria obra literária do eu-lírico sobre seu objeto, pode-se ex-
trair uma razão metonímica para contrair o futuro (e suas ansiedades
psíquicas) e expandir o presente no percurso da ciência e do cientista
no ofício de pesquisar e obter “um conhecimento prudente para uma
vida decente” (Santos, 2004).
Após a exposição dos textos e o pensar aberto e crítico sobre eles,
exponho, então, esta experiência textual que emergiu de estímulos e
foi exercido pelo pensar racional proposto por mim sobre o meu ob-
jeto de estudo.
Ao falar sobre isso, remeto-me (e me envolvo) a um processo men-
tal dinâmico, onde a questão da criação literária é atirada como um
bólido no tempo, trazendo em seu dorso aspectos individuais da ob-

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servação do eu-lírico para uma reflexão crítica sobre a vida coletiva do
entorno da FSJM (Sim, o meu objeto é um espaço de relações sociais).
Vejo ainda, que minhas narrações, embora sejam discursos poéticos,
também são referências cronológicas de conteúdos explícitos sobre o ob-
jeto, como é imanente nelas algum estilo pessoal que imprimi aqui, sem
com isso querer me expressar com vaidade ou com o narcisismo que às
vezes se percebe na escrita acadêmica. Por serem observações que, de-
pendendo de cada olhar, são transparentes e frágeis, elas requerem sem-
pre reparações observacionais e reinterpretações temporâneas. Essa
incompletude faz parte do processo de pesquisa no aspecto teórico-ob-
servacional. Não é a incompletude da realidade, pois aprendo que “a rea-
lidade é uma construção em movimento”(informação verbal)69, por isso
mesmo não existe em fragmentos, clivada no tempo e no espaço.
Por não serem textos meramente autobiográficos (o que poderia
denotar uma visão antropocêntrica e estereotipada sobre outras in-
terpretações e outros olhares que não os meus), mas observações me-
morialísticas e racionais inscritas no granito desgastado do tempo, o
conjunto desta escrita são apenas insumos de pesquisa.
Nessas circunstâncias, não tenho dúvida que o autor, no caso o su-
jeito da pesquisa, ao se deparar com o seu objeto com mais acuida-
de, sairá transformado dessa relação pela própria experiência que
enfrenta. A experiência causa a transformação, pois a relação de al-
teridade promove um estremecimento nas condições existenciais do
sujeito que observa o objeto na pesquisa sociológica (LOPES. S/d.).
Esse impacto que faz mudar é, a meu ver, o caráter primordial que
move a ciência, que lhe dá aderência e pregnância, e instiga e provo-
ca no pesquisador o desejo de “aventurar-se” em busca de novos tea-
res para tecer novos tecidos sociais (a realidade) de outras formas, de
outras cores.

69. Informação verbal fornecida por Alba Carvalho. Apontamentos de sala de aula. Dinter, Ma-
capá. 2013

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5.6. A AVENTURA DA ESCRITA E AS IDENTIDADES
Todos esses aspectos permitem a criação literária sobre o lugar,
considerando que cada frase de um escritor, cada verso de um
poeta suscita uma busca identitária que está, de certa forma, es-
condida. Essa tríade, composta pela FSJM, a literatura e a iden-
tidade, permite uma visão maior, não necessariamente sobre os
seus diversos usos, mas sobre o que os atores que frequentam o lu-
gar podem fazer para se reconhecerem como cidadãos amapaen-
ses interativos e capazes de reconhecer e valorizar sua cultura, a
exemplo mesmo da memória étnica dos índios Waiãpi, que traz o
tempo mítico, o tempo do eterno retorno, uma vez que seus rela-
tos significam o retorno aos mitos de origem (FERREIRA, Op. Cit.
2009. Pág. 157).
Por estar a memória ligada ao espaço (e ao tempo), as lembranças
e a imaginação dos sujeitos os ligam aos lugares oriundos das ima-
gens reais ou a lugares criados, pois cada ser humano possui um sis-
tema de lugares reais e imaginários que pode alterar. E a literatura,
amparada pela interdisciplinaridade das ciências sociais, pode cada
vez mais refletir sobre esses lugares existentes na memória e no espí-
rito humano.
Considerando todos esses aspectos temporais para mim há uma
FSJM de pedra, uma FSJM de imagens e uma fortaleza anímica que
estimula a cultura de homens e mulheres que dela fazem um marco
indelével da cultura local e, portanto, da identidade com seus signifi-
cados simbólicos sociais inerentes.
Penso que na sua concretude, na sua permanência e existência ela
tem o seu papel histórico e turístico hoje e sua significância como re-
presentação simbólica para o povo local. Então, a partir de suas ima-
gens tão disseminadas ela possui uma espécie de “alma”, que promove
e que instiga a identidade coletiva e faz as pessoas se orgulharem de
tê-la ali na paisagem como um símbolo. E não se trata apenas de um
orgulho fugaz do conjunto da população local ou nativa, que a encar-

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na, que a lê, e que protesta quando ocorrem atribulações fora ou den-
tro dela, mas também ela exerce um certo fascínio nos visitantes.
Claro que uma reflexão dessa natureza poderia explorar isso mais
no sentido literário que sociológico, ainda que pense que simbolica-
mente ela existe como um ser anímico, que transcende a condição de
lugar e de sociedade para ser mesmo um mito dos Waiãpi, que são os
guardiães de suas permanências e das criações poéticas e literárias no
tempo que a cerca ciclicamente.
Nas temporalidades é inevitável inserir a literatura produzida so-
bre ela como um sistema de representações que compõem a realida-
de social, mas também é preciso observá-la além de sua condição de
edificação, até como objeto que simboliza a caverna, o refúgio interior
dos homens, o coração e imagem que protege e concentra o interior
do espírito. Para tanto necessário foi proceder outras análises sobre as
criações literárias e sobre o processo literário e criativo dos escritores
pesquisados.
Nesse contexto a análise sociológica da literatura (sem que se tome
o lugar da crítica literária, pois não é esse o papel da sociologia da lite-
ratura) pode trazer à luz o que a sociedade amapaense e suas tempo-
ralidades mostram de forma tênue ou o que escondem sob as pedras
seculares da fortaleza ali na paisagem.
Antonio Cândido esclarece que “a criação literária correspon-
de a certas necessidades de representação de mundo, às vezes como
preâmbulo a uma praxis socialmente condicionada” (CÂNDIDO,
2000. Pág.49).
Assim, creio que, como Cândido, a literatura aparece como algo
que a análise sociológica pode interpretar porque é na sociedade, ob-
viamente, que estão presentes e em movimento as identidades.
Os versos dos poetas, os textos dos prosadores, a imaginação dos
ficcionistas, as cartas dos construtores, os discursos políticos-funda-
dores relacionados à FSJM, ilustram, no meu entendimento, algo bas-
tante peculiar: a observação de uma ânsia dos distintos estratos so-

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ciais em ter sua identidade própria, ou seja, de tentar capturar algo
que se encontra em movimento, ainda que as obras não sejam am-
plamente divulgadas e só chegam nas mãos de poucos leitores. Por
não ter a repercussão necessária para chegar ao leitor, normalmente
as obras caem no vazio, no abismo do esquecimento.
Entretanto, se a vida, a leitura, a imaginação, a escrita e os laços po-
líticos se envolverem, o resultado será a força que todos experimen-
tam para enfim se tornarem o que são. A aventura da escrita e o prazer
da leitura são condições essenciais e inalienáveis para o entendimen-
to da visão de mundo do escritor. Este, por sua vez, se mostra em có-
digos semânticos, em expressões e sentimentos advindos do seu po-
tencial criativo, que nada mais é do que um profundo mergulho de
sua (in)consciência na experiência adquirida na vida social. O escri-
tor agindo, e repercutindo com sua obra, expressa a identidade ou as
identidades sociais de um povo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A identidade está em constante movência, sendo construída aos pou-


cos e sujeita a hibridismos e influências multiculturais. Deste modo,
ao procurar absorver seletivamente a história da FSJM através das
temporalidades apresentadas nos capítulos, também procurei abrir,
com isso, algumas janelas para a reflexão sobre o Amapá, principal-
mente suscitando que é a partir dos conceitos de memória que se
chega a um estudo sobre a construção de suas identidades, sendo que
não se pode dissociar tais conceitos.
O percurso iniciado atemporalmente com o mito de Mairi, depois
passando historicamente pela colonização da Amazônia à construção
da FSJM, e chegando ao discurso fundador – poderia até dizer discur-
so ideológico –redentor, devido a ruptura político-espacial com o Es-
tado do Pará e as injunções impostas pelos governantes do novo Ter-
ritório Federal, consolida-se na temporalidade do governo ditatorial,
pelo contexto militar e, mais tarde, na contemporaneidade.
Trata-se, assim, de um percurso identitário, no qual a memória
está necessariamente ligada a uma imagem, a um lugar, na perspecti-
va de que ela, enquanto individual, está ligada à memória coletiva, e
que esta dá unidade ao grupo social. Por estar relacionada diretamen-
te ao espaço e ao tempo, toda a memorabilia escrita sobre a FSJM,
ficcional ou não, dá a ela esse caráter real, característico de Macapá,

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enquanto representação simbólica imanente, que me referi nos capí-
tulos deste trabalho.
Os poemas e os textos em prosa que destaquei nas respectivas
temporalidades em virtude do seu labor literário são trabalhos de es-
critores construtores de uma arte cursiva, em que o retrato e o espe-
lho do sujeito, e o ambiente (o meio ambiente) pode ser tergiversado,
contrastado ou identificado como literariedade regional, realizando,
assim, uma temática voltada para o objeto (FSJM), para concretizar o
seu percurso do “fazer poético” numa língua viva e atual. E se a FSJM
é o objeto que origina a pesquisa, os escritores são os sujeitos dessa
pesquisa, sendo a voz deles a escrita, que o pesquisador deu o trato
analítico, tentando ser imparcial.
É bom relembrar com base nos textos que aprecei nos capítulos,
que eles foram elementos usados para instituir discursivamente a to-
pografia de Macapá (e da FSJM), posto que esse locus é obra da cultu-
ra humana e foi elemento constitutivo da formação da sociedade ur-
bana macapaense. Saliento ainda que a fortificação, em termos das
relações sociais, corroborada pela literatura, criou outras relações
múltiplas da vida social como as religiosas, jurídicas, econômicas,
educacionais, mitológicas e cívicas. Deste modo, o processo dinâmi-
co da vida social registrado pela história nas temporalidades aqui es-
tudadas, atingem todo o processo identitário amapaense. Assim, bus-
quei com esta tese, mostrar que as diversas identidades implícitas nos
textos dos autores das diversas temporalidades e na história relacio-
nada ao topos de Macapá e a fortificação, são construídas nos posicio-
namentos dos discursos de todos, da ordem e da contraordem, onde
elas existem em franco dinamismo. Com isso, retomei essa literatura
na perspectiva de Antônio Cândido no processo linear-histórico, com
vistas a ilustrar teoricamente as questões de história e literatura.
A metodologia que usei para o posicionamento analítico foi deli-
neada a partir da produção textual da FSJM, o que me permitiu vis-
lumbrar uma tessitura leve, silenciosa, instigada pela memória dos

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autores. Uma memória que tange os outros sentidos e se estabelece
nas identidades, e que busca, efervescente, e às vezes líricas em suas
diversas facetas individuais sobre um mesmo tema, representações
diversas.
O posicionamento dos autores e seus textos, nas suas várias tem-
poralidades, está voltado para um único espaço, que considero o lo-
cus das identidades – a FSJM, por ser realmente o lugar que abarca
e atrai a cultura, exercendo uma espécie de fascínio na sociedade,
pela aura emanada de seu corpo pétreo e da sua silhueta na contra-
luz. Os textos sobre ela têm um caráter plural, e neles há um jogo poé-
tico-memorial na interpretação literária. O lugar é banhado pelo rio
Amazonas, fonte de misticismo e abundância, mas também é onde a
história registra grandes problemas de saúde e falta de saneamento,
tomado que foi pelas doenças tropicais e epidemias. O lugar ao derre-
dor é o lugar da água. Um lugar diferenciado, mas comum nessa par-
te da Amazônia, onde há um grande e não-resolvido problema de sa-
neamento e falta diária de água na cidade.
Deste modo, o lugar topográfico das cartografias dos viajantes, dos
exploradores e construtores, visto como o “Éden tropical”, já dito pe-
los navegadores que viam o Brasil edênico no tempo da Terra Brasilis,
deixou de existir há tempos. Logicamente que esse tema existe crista-
lizado na memória ancestral do brasileiro e estará sempre ao meio de
releituras, ressignificações e deslizamentos de sentido.
O objetivo central destas páginas foi investigar como as identida-
des amapaenses se ancoram na produção literária sobre a FSJM e o
que esse monumento traz de significado para ela, a partir das tempo-
ralidades específicas que lidei. As diversas formas escritas de referên-
cia ao lugar edificam identidades, desenhadas pela própria escritura
sobre a fortificação, com sua elasticidade temporal.
Destarte, acredito que o presente trabalho possa contribuir para
reforçar os outros escritos de pesquisadores que lidam com memória
e identidade, conceitos que nortearam as análises dos discursos fun-

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dadores do Amapá, da mitologia indígena sobre a FSJM e das produ-
ções textuais de autores regionais de diferentes temporalidades.
Ao aceitar as sugestões dos professores no período da qualifica-
ção, para a inclusão de um capítulo sobre as cartas dos construtores
da FSJM, o que me pareceu superimportante, compreendi que ele se-
ria uma temporalidade que iniciaria todas as outras no processo evo-
lutivo da cidade de Macapá – e até mesmo a razão de sua existência
no lugar. Também percebi que antes de tudo deveria escrever um ca-
pítulo sobre o zeitgeist amapaense, como um mosaico representativo
de sua realidade identitária.
Certamente as limitações de tempo foram muitas para o encami-
nhamento geral das análises, como por exemplo imergir na questão
da identidade regional com maior profundidade para proporcionar
reflexões mais enriquecedoras. Entretanto, acredito que mesmo as-
sim este estudo pode ser valioso na medida que se pode sistematizar
melhor as temporalidades, e colher mais material bibliográfico signi-
ficativo para o assunto aqui pautado.
A literatura produzida no Amapá não é necessariamente embrio-
nária e os textos sobre a FSJM não são raros, mas os que encontramos
certamente foram importantes para que se levantasse a questão das
identidades locais de forma que mostrassem as “diferenças” imanen-
tes a elas, a partir das temporalidades.
É necessário reiterar o que foi dito no Capítulo V sobre o papel do
autor, devido a sua importância, até mesmo quando ele é anônimo,
pois ele é quem cria um texto, uma imagem, um discurso. É ele que
entrega um elo à corrente de uma construção subjetiva; que realiza a
aliança com o outro em uma condição em que o seu produto ficcio-
nal, informativo ou poético, traz em seus ombros um arcabouço me-
morial coletivo, mesmo que seja inconsciente.
Todas as representações simbólicas produzidas pelos escritores e
que de alguma forma ganham repercussão coletiva, expressam visões
de mundo e de sociedade, diria de identidades e, como tal, são visões

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políticas e sociais da realidade, porque as ideologias estão ligadas às
percepções da cultura e do contexto no qual ela se insere. De outra
feita não se pode desconsiderar a identidade e o engajamento político
dos autores. Neste caso a própria identidade do autor desta tese está
em jogo, pois a sociologia não está livre de um engajamento, cabendo
a escolha do sociólogo, do pesquisador, o lugar que ele pretende to-
mar nas discussões.
Aqui escrevi sempre identidades no plural. E digo que elas são mu-
táveis porque à medida em que a população se diversifica os interes-
ses também se pluralizam. Nenhuma sociedade existe totalmente di-
ferenciada nem absolutamente com interesses iguais. Ao se urbanizar,
por exemplo, ela congrega uma série de novos valores a partir dos fe-
nômenos que podem referenciar a vida dos indivíduos e com isso am-
pliar ou diminuir seus interesses. E todos, por uma simples demanda
que ultrapassa a questão da personalidade, aderem ou se eximem de
participar de algum grupo: grupos sociais que possuem identidades,
que lidam com sua própria história e se esteiam em uma memória co-
letiva construída. E também porque as identidades correm como um
rio e se erguem com as pedras da memória. Cada texto sobre a FSJM
utilizado nesta tese traz uma identidade viajante em seu dorso nesta
bricolagem de representações que é a vida social.
Se tudo o que é importante tem vida, a FSJM ganha a pulsação pró-
pria e se torna um ser-símbolo referencial para a identidade coletiva
dos habitantes de Macapá.
Diria ainda que no presente estudo a primeira temporalidade é
cartográfica porque trata da relação histórica, inicial com os lugares
mapeados e que serão inaugurados na geografia local; a segunda é in-
juntiva porque parte de uma decisão política-administrativa que iria
fazer nascer uma sociedade plural, após o impacto do governo Terri-
torial e das transformações urbanas e sociais; a terceira é político-i-
deológica porque trata da manutenção do poder de uma ditadura mi-
litar, e a quarta é a das liberdades democráticas e econômicas, pois a

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redemocratização permitiu a transformação do Amapá em Estado, e
com isso as eleições diretas, estrutura e autonomia política e jurídica,
mas também a formação de oligarquias, e outros males que a política
permite quando há concentração de poderes.
Reitero que as leituras que realizei no presente trabalho sobre os
textos voltados para a FSJM foi uma constante busca de significados.
Foi um esforço interpretativo da produção literária amapaense sobre
o monumento, que me instigou a buscar mais elementos significati-
vos para as identidades locais. O trabalho proporcionou, nessa aber-
tura de olhares, o desencadeamento de possibilidades que podem le-
var em consideração aspectos do poder refletidos no objeto estudado,
por meio dos seus quatro eixos temáticos ou temporalidades.
Tento, então, concluir, com a consideração de que as relações en-
tre as temporalidades sejam as do passado, assim como as do presen-
te, vinculam-se a interesses políticos dos períodos em que são cons-
tituídas.
Com isso, o interesse é manter sempre os laços deste estudo aber-
tos para o futuro. Em cada pesquisa como esta há necessidade de uma
relação de trocas de experiências, com pesquisas em outros contex-
tos, liquidando o movimento unilateral e às vezes isolado das ciências
sociais no Estado do Amapá.
A expectativa é que tudo será, certamente “um começar de novo”,
pois aprendo cotidianamente que o sociólogo deve viver em perma-
nente reflexão sobre os fatos sociais e sobre as tensões causadas por
eles. Esta é a sua realidade. Uma mediação real no tempo que, para al-
guns, almeja abrir caminhos para a solução de conflitos e enseja no-
vos rumos a políticas sociais que venham para beneficiar as aspira-
ções da sociedade.

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CÓDICES DO ARQUIVO PÚBLICO DO PARÁ


Códice 150. Doc. 69 - 14 de abril de 1765
Cód. 132. Doc. 66. 16 de agosto de 1963
Cód. 37. Doc. 69 e77, 28 de abril de 1763
Cód. 130. Doc. 39, 10 de setembro de 1763
Cód. 131. Doc.31
Cód. 132. Doc. 41, de 13 de junho de 1783
Cód. 132. Doc.90, 08 de outubro de 1763.
Cód.148. Doc. 68, de 26 de dezembro de 1765
Cód. 150. Doc. 114, de 24 de junho de 1765.
Cód. 153. Doc. 25, de 12 de agosto de 1765.
Cód. 153. Doc. 47
Cód. 153. Doc. 32, de 23 de agosto de 1765
Cód. 153. Doc. 54, de 19 de setembro de 1765.
Cód. 168. Doc. 54, de 10 de novembro de 1766
Cód. 164. Doc. 11, de 25 de janeiro de 1766
Cód. 153. Doc. 102, de 23 de dezembro de 1965
Cód. 164. Doc. 07, de 23 de janeiro de 1766
Documento anexo ao Cód. 164. Doc. 11, de 23 de janeiro de 1766
Cód. 164. Doc. 11, de 25 de janeiro de 1766

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Cód. 164. Doc. 47, de 12 de abril de 1766
Cód. 164. Doc. 66, de 30 de maio de 1766
Cód. 168. Doc. 02, de 09 de junho de 1766).
Cód. 168. Doc. 05 de 1966, de 09 de julho
Cód. 168. Doc. 54, de 10 de novembro de 1766
Cód. 168. Doc. 59, de 18 de novembro de 1766
Cód. 168. Doc. 59, de 18 de novembro de 1766
Cód. 176. Doc. 42, de 24 de setembro de 1766
Cód. 187. Doc. 44, de 06 de junho de 1768
Cód. 188. Doc. 0-3 e 06, de 12 de julho de 1768
Cód. 188. Doc. 52, de 20 de dezembro de 1768
Cód. 194. Doc. 44, de 25 de maio de 1769
Cód. 199. Doc. 54, de 17 de junho de 1969
Cód. 200. Doc. 12, de 11 de julho de 1769.
Cód. 200. Doc. 62, de 27 de outubro de 1769
Cód. 132. Doc. 90, de 08 de outubro de 1763

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Coleção Gapuia – Sociologia em Pesquisas & Teses
ISBN: 978-85-62359-77-4

Coordenadores
Prof. Dr. Cristian S. Paiva
Prof.ª Dr.ª Eliane Superti

Títulos da Coleção

Vol. 1: Participação social no desenvolvimento de políticas públicas no estado do Amapá: um olhar sobre
a elaboração e execução do plano plurianual de Macapá-AP no período de 2013 a 2016 (ISBN: 978-85-
62359-79-8)
Alexandre Gomes Galindo

Vol. 2: Literatura das pedras: a Fortaleza de São José de Macapá como locus das identidades amapaenses
(ISBN: 978-85-62359-80-4)
Fernando Canto

Vol. 3: Saber de parteira, ciência de médico? Incorporação de saberes médicos e resistência cultural na
“capacitação” de parteiras tradicionais do Amapá (ISBN: 978-85-62359-81-1)
Iraci de Carvalho Barroso

Vol. 4: Histórias vividas e narradas: as identidades amapaenses no Jornal Amapá (1945-1968) (ISBN:
978-85-62359-82-8)
Manoel Azevedo de Souza

Vol. 5: Doença de feitiço: aspecto da cosmologia amazônica (ISBN: 978-85-62359-78-1)


Maria da Conceição da Silva Cordeiro

Vol. 6: Tempos de chorar e de sorrir no espaço da morada: um estudo socioantropológico de mulheres


resistentes marcadas pela tragédia em Macapá-AP (ISBN: 978-85-62359-83-5)
Roberta Scheibe

Vol. 7: Ecos do silêncio: culturas e trajetórias de surdos em Macapá (ISBN: 978-85-62359-84-2)


Ronaldo Manassés Rodrigues Campos

Vol. 8: Travessias entre a sala de aula e o consultório: trajetórias docentes, narrativas e histórias de
sofrimento e adoecimento psíquico de professores no Amapá (ISBN: 978-85-62359-85-9)
Selma Gomes da Silva

Vol. 9: Ações artísticas na cidade de Macapá: conexões de mundos, trajetória e experiência na Amazônia
(ISBN: 978-85-62359-86-6)
Silvia Marques

Vol. 10: Um cais que abriga histórias de vida: sociabilidades conflituosas na gentrificação da cidade de
Macapá (1943-1970) (ISBN: 978-85-62359-87-3)
Verônica Xavier Luna

Vol. 11: A gapuia de significados: modos de vida, espaços de convivência e processos de nomeação entre
ribeirinhos da Amazônia amapaense ((ISBN: 978-85-62359-92-7)
Rosileni Pelaes de Morais

Este livro foi composto em Utopia Std pela


Editora da Universidade Federal do Amapá
e impresso em papel offset 75 g/m².

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Neste livro, o sociólogo Fernando Canto enfatiza os diversos papéis da
maior fortificação portuguesa construída na Amazônia no século XVIII - a
Fortaleza de São José de Macapá - em quatro temporalidades, todas cruciais
para o entendimento das identidades e da memória amapaense. Assim, ela
é analisada, tendo por base os textos e discursos de escritores e poetas que
a descrevem ao longo da História, na ordem e na contraordem política e
como o locus material e simbólico do Amapá.

FERNANDO CANTO nasceu em Óbidos-PA, em 1954, mas foi em Macapá-AP,


que iniciou seus estudos. Bacharelou-se em Ciências Sociais pela UFPA,
onde viria a trabalhar mais tarde como técnico e como professor. Em Macapá
desenvolveu várias atividades no Governo do antigo Território Federal do
Amapá, na Prefeitura Municipal de Macapá e na UNIFAP, onde atualmente
exerce suas funções. É especializado em Métodos de Desenvolvimento Ur-
bano e Municipal (IBAM-RJ), em Teoria Antropológica (UFPA) e em Desenvol-
vimento Sustentável e Gestão Ambiental (NAEA-UFPA). É mestre em Desen-
volvimento Regional (UNIFAP) e doutor em Sociologia (UFC).

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