Otto Maria Carpeaux - Visão de Graciliano Ramos
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3. A IDÉIA DA UNIVERSIDADE
E AS IDÉIAS DAS CLASSES MÉDIAS
Jamais esquecerei o dia em que entrei pela primeira vez, com toda a ingenuidade dos
meus dezoito anos, no solene recinto da Universidade da minha cidade natal. Um
pórtico silencioso. Nas paredes viam-se os bustos dos professores que ali estudaram e
ensinaram; no busto de um helenista lia-se a inscrição: "Ele acendeu e transmitiu a
flâmula sagrada"; e no busto de um astrônomo: "O princípio que traz o seu nome
ilumina-nos os espaços celestes." No meio do pátio, num pequeno jardim, sob o ameno
sol de outono, erguia-se uma estátua de mulher nua, com olhos enigmáticos: a deusa da
sabedoria. Silêncio. Não esquecerei nunca.
A última vez que passei perto deste "templo das Musas", o edifício estava fechado; os
estudantes haviam-se juntado a uma imensa manifestação popular. Sabia muito bem o
que isso significava para mim: um adeus para sempre. Olhando pelas frestas das portas
monumentais — estávamos na primavera — via sob a luz branda do sol os pórticos, as
velhas pedras, o jardim, e a deusa nua, tendo nos lábios o sorriso enigmático da morte.
E reconheci um fim definitivo.
Por toda parte, as universidades são doentes, senão moribundas, e isto é grande coisa.
Os iniciados bem sabem que não é esta uma questão para os pedagogos especializados.
Das universidades depende a vida espiritual das nações. O fim das universidades seria
um fim definitivo. O abismo entre o progresso material e a cultura espiritual aumenta de
dia para dia, e as armas desse progresso nas mãos dos bárbaros é fato que clama aos
céus. Os edifícios das universidades resistem ainda, e neles trabalha-se muito, demais,
às vezes, mas o edifício do espírito, esta catedral invisível, está ameaçado de cair em
ruínas. Em tempos mais felizes a sueca Ellen Key dizia com sutileza: "Cultura é o que
nos resta depois de termos esquecido tudo quanto aprendemos." E, deste modo, somos
riquíssimos de saber e mendigos de cultura. Hoje em dia Herbert George Wells pode
dizer: "We are entered in a race between education and catastrophe." "Entramos numa
corrida entre educação e catástrofe." Aí está a questão da Universidade.
Mas o que quer dizer "prático", "útil"? A resposta não é tão simples. Por felicidade os
poderosos deste mundo introduziram um novo ponto de vista, ao qual julgo que
devemos algumas perspectivas novas.
Mas o que é ainda mais notável é uma certa coincidência. Sabemos que a Universidade,
Universitas Litterarum, é uma criação da Idade Média. Ora, os ditos regimes não se
ocupam com as ciências naturais, que a Idade Média conhecia pouco, e que se juntaram
mais tarde à Universidade. Tratam somente das "velhas" ciências, das Litterae, que na
Idade Média já eram conhecidas, e que formam a verdadeira alma da Universidade. Está
claro. Foram justamente estas Litterae que formaram os caracteres das nações; e aquele
que desejar transformar uma nação deverá transformá-las integralmente. Eles sabem o
que é uma universidade.
O que resta destas Universitates Litterarum? O nome. Já não formam lettrés, nem
gentlemen, nem Gebildeter; formam médicos, advogados, professores. As universidades
tornaram-se lugares de investigações científicas; e é um romantismo utilitário que vem
muni-las das asas do progresso. Não há mais clercs, só há estudantes.
Quem é o culpado? Ainda uma vez apelo para aqueles que disso entendem. Por toda
parte onde há aqueles regimes os estudantes estão nas vanguardas da violência. Não é
um acaso. Ouso responder: os estudantes são os culpados.
O fascismo foi impossível na Rússia. É também um fato fundamental que a Rússia não
conheceu, não teve uma classe média. Ora, seguindo a corrente da época, o bolchevismo
criou uma classe média. A burocracia soviética, os stakhanovistas e outras camadas
privilegiadas do operariado não são outra coisa senão uma nova classe média.
Considerando, nos outros países, a ascensão de camadas igualmente novas, que o século
XIX ainda não conhecia, verdadeiros exércitos de empregados privados, de funcionários
públicos, de pequenos empresários, todos formados num regime de ensino secundário
ou superior muito facilitado, essas massas de homens, todos mais ou menos educados,
essas multidões de "pequenos intelectuais"; considerando essas multidões de homens
novos, nem capitalistas nem trabalhistas, que Karl Marx não podia prever, deve-se
precisar o pensamento: o fascismo e o bolchevismo têm o lado comum de serem
expressões das novas classes médias. E a ideologia que permite explicar o espírito das
novas classes médias é a ideologia pequeno-burguesa, violentamente revolucionária e
antiintelectualista.
Explica-se, por isso, que Georges Sorel, o pai espiritual comum do fascismo e do
bolchevismo, Georges Sorel, o ideólogo da violência, seja um homem profundamente
pequeno-burguês, representante típico das classes médias francesas, preocupado com a
decadência das "autoridades sociais", que ele concebeu fielmente no espírito
conservador de Le Play; preocupado, enfim, com a decadência vital da raça latina, pela
qual ele responsabiliza violentamente a Inteligência; ao espírito ele prefere a vitalização
pelos instintos bárbaros da massa.
Fica-se a admirar que Sorel fale em decadência, na França dos Taine e Bergson, dos
Flaubert e Proust, dos Mallarmé e Claudel, dos Degas e Cézanne, dos Rodin e Debussy,
dos Pasteur e Henri Poincaré, numa das épocas mais magníficas do espírito francês.
Mas é por isso mesmo. Sorel é violentamente antiintelectualista. Vê no espírito e suas
obras o grande obstáculo da volta ao primitivo. Neste ponto, Sorel parece sobretudo
"moderno", contemporâneo de nós outros. É a hostilidade ao espírito que liga Sorel
diretamente às novas classes médias.
Como? Não é a classe média o principal agente dos movimentos espirituais? Sim, é, ou
melhor, foi. O século XIX, o século liberal, abre a todos todas as possibilidades. A
educação superior é o caminho da ascensão. A preeminência da classe média no século
XIX baseia-se na sua cultura universitária. Mas o século XX acaba com isso. O grande
capitalismo precisa mais de exércitos de pequenos empregados do que de self-made
men; as profissões liberais estão superlotadas; o movimento socialista repele os que
resistem à proletarização e suas humilhações e privações. Privada dos privilégios da
Inteligência, a classe média quebra furiosamente o instrumento, como uma criança
quebra o brinquedo insubmisso. É uma criança essa nova classe média; mas uma criança
perigosa, cheia dos ressentimentos dos déclassés, furiosa contra os livros que já não
sabe ler e cujas lições já não garantem a ascensão social. Está madura para a violência.
"We are entered in a race between education and catastrophe." Wells tem muita razão.
Mas é de grande importância datar a desgraça. Esta catástrofe irrompeu sob o signo do
progresso, e o progresso ilimitado, muito do gosto de um Wells, cavará mais
profundamente o abismo. O verdadeiro caminho é a volta.
Temos mais uma vez "a disputa do medievalismo". Uma coisa fica, porém: a
Universidade é uma criação da Idade Média. Todas as universidades medievais são, por
princípio, instituições "clericais": elas formam os clercs. O restabelecimento das
universidades "clericais" é uma restauração de tradições.
Quatro ou cinco faculdades reunidas não constituem ainda uma universidade. Elas não
criam esta "convivence of sciences, which forms a philosophical habit of mind",1 de que
fala o cardeal Newman. Não se trata destas ciências ou daquelas profissões. Trata-se do
espírito comum que as anima, do espírito filosófico, antiutilitário, desinteressado, que as
nossas universidades perderam, e que é a própria Idéia de Universidade. Derrubemos,
pois, este estado de coisas. É ao ensino secundário que cabe o preparo do ensino
profissional, dispensado nos hospitais e na magistratura. Em conclusão, é à
Universidade que incumbe a formação do espírito da "clericatura".
Voltemos aos estudantes: o seu utilitarismo, mais perigoso que o das ciências, perdurará
enquanto a freqüência das universidades for a chave para as posições de mando na
sociedade. Verdadeiramente, o oposto deste utilitarismo é o desinteresse, no qual
Newman via o espírito e a idéia de universidade, o espírito do clero universitário
medieval, que se sentia independente do mundo e somente responsável perante Deus.
Sem tais padres o altar fica vazio e o culto abandonado. Poderia chegar o dia em que
ninguém compreenderia mais as fórmulas nem os poemas, em que os quadros de
Rembrandt seriam pedaços de tela e as partituras de Beethoven farrapos de papel; dia da
barbaria, em que a história humana se transformaria, pela sucessão de desgraças, num
formigueiro mal organizado. E este dia talvez já esteja mais próximo do que realmente
pensamos. "Somos a última reserva, fiquemos conscientes disto" — dizia Hugo Ball.
Fiquemos conscientes, "dreading to leave an illiterate Ministery to the Churches, when
our present Ministers shall lie in the dust".
NOTAS