Constitucionalismo e Democracia - IngoSarlet
Constitucionalismo e Democracia - IngoSarlet
Constitucionalismo e Democracia - IngoSarlet
RESUMO
O presente artigo discute o conceito de um mínimo existencial para uma vida digna e sua
relação com outros direitos fundamentais na ordem jurídico-constitucional brasileira,
principalmente com foco no papel da jurisdição constitucional.
1 NOTAS INTRODUTÓRIAS
1
Professor titular da Faculdade de Direito e dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito e em Ciências
Criminais da PUCRS. Juiz de Direito no RS.
sendo não apenas associado e mesmo identificado com o núcleo essencial dos direitos
fundamentais sociais (e mesmo ambientais, quando em causa a noção de um mínimo
existencial ecológico ou ambiental) como tem servido de critério material para a solução, na
esfera de uma ponderação de direitos e/ou valores, de uma série de demandas judiciais que
envolvem a imposição, ao poder público, de prestações na esfera socioambiental ou a
proteção de direitos fundamentais contra intervenções restritivas por parte do Estado, aspectos
que mais adiante voltarão a ser considerados.
O quanto o recurso à noção de um mínimo existencial, designadamente de um
direito fundamental à sua proteção e promoção, tem sido realmente produtivo ou apresenta
aspectos dignos de maior reflexão quanto à sua correta compreensão e manejo é precisamente
o mote da presente contribuição, com destaque para o modo pelo qual o mínimo existencial,
na sua relação com a dignidade da pessoa humana e outros direitos fundamentais, tem sido
aplicado pela jurisdição constitucional brasileira, representada pela sua instância maior, o
Supremo Tribunal Federal.
É, pois, justamente considerando o elo entre direitos fundamentais sociais, vida e
dignidade da pessoa humana,2 que, ademais, dizem com necessidades existenciais de todo e
qualquer indivíduo, que, na sequência, se estará a examinar o assim designado mínimo
existencial e sua relação com os direitos sociais, com destaque para a evolução no âmbito do
direito constitucional alemão, especialmente considerando a recente decisão do Tribunal
Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht) sobre o tema e a sua conexão com a
problemática da democracia e dos limites ao legislador.
2
Para uma mirada na perspectiva jurídico-constitucional, v., por todos, SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade
da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2010.
Torres, autor, ao que tudo indica, do primeiro ensaio especialmente dedicado ao tema no
Brasil, publicado pouco após o advento da Constituição de 1988 na tradicional Revista de
Direito Administrativo.3 Desde então, o próprio autor citado tem revisitado o tema, ampliando
o horizonte de seus estudos e aperfeiçoando seu rico arcabouço argumentativo.4
Adentrando desde logo este aspecto do tema, é possível afirmar que a noção de
um direito fundamental (e, portanto, também de uma garantia fundamental) às condições
materiais que asseguram uma vida com dignidade teve sua primeira importante elaboração
dogmática na Alemanha, onde, de resto, obteve também um relativamente precoce
reconhecimento jurisprudencial.
Com efeito, em que pese não existirem, de um modo geral, direitos sociais típicos,
notadamente de cunho prestacional, expressamente positivados na Lei Fundamental da
__
Alemanha (1949) excepcionando-se a previsão da proteção da maternidade e dos filhos,
bem como a imposição de uma atuação positiva do Estado no campo da compensação de
desigualdades fáticas no que diz respeito à discriminação das mulheres e dos portadores de
__
necessidades especiais (para muitos não considerados propriamente direitos sociais) a
discussão em torno da garantia do mínimo indispensável para uma existência digna ocupou
posição destacada não apenas nos trabalhos preparatórios no âmbito do processo constituinte,
mas também __ após a entrada em vigor da Lei Fundamental de 1949, na qual foi desenvolvida
pela doutrina __ no âmbito da práxis legislativa, administrativa e jurisprudencial.
Na doutrina do Pós-Guerra, o primeiro publicista de renome a sustentar a
possibilidade do reconhecimento de um direito subjetivo à garantia positiva dos recursos
mínimos para uma existência digna foi o publicista Otto Bachof, que, já no início da década
de 1950, considerou que o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. I, da Lei
Fundamental da Alemanha, na sequência referida como LF) não reclama apenas a garantia da
liberdade, mas também um mínimo de segurança social, já que, sem os recursos materiais
para uma existência digna, a própria dignidade da pessoa humana ficaria sacrificada. Por esta
razão, o direito à vida e integridade corporal (art. 2º, inc. II, da LF) não pode ser concebido
meramente como proibição de destruição da existência, isto é, como direito de defesa,
impondo, ao revés, também uma postura ativa no sentido de garantir a vida. 5 Cerca de um ano
depois da paradigmática formulação de Bachof, o Tribunal Federal Administrativo da
Alemanha (Bundesverwaltungsgericht), já no primeiro ano de sua existência, reconheceu um
3
Cf. TORRES, Ricardo Lobo. O Mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de direito
administrativo, n. 177, p. 20-49,1989.
4
Cf., TORRES, Ricardo Lobo. O Direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
direito subjetivo do indivíduo carente a auxílio material por parte do Estado, argumentando,
igualmente com base no postulado da dignidade da pessoa humana, direito geral de liberdade
e direito à vida, que o indivíduo, na qualidade de pessoa autônoma e responsável, deve ser
reconhecido como titular de direitos e obrigações, o que implica principalmente a manutenção
de suas condições de existência.6 Ressalte-se que apenas alguns anos depois o legislador
acabou regulamentando em nível infraconstitucional um direito a prestações no âmbito da
assistência social (art. 4º, inc. I, da Lei Federal sobre Assistência Social
[Bundessozialhilfegesetz]).
Por fim, embora transcorridas cerca de duas décadas da referida decisão do
Tribunal Administrativo Federal, também o Tribunal Constitucional Federal acabou por
consagrar o reconhecimento de um direito fundamental à garantia das condições mínimas para
uma existência digna. Da argumentação desenvolvida ao longo desta primeira decisão, extrai-
se o seguinte trecho:
5
Cf. O. Bachof. Begriff und Wesen des sozialen Rechtsstaates. VVDStRL, n. 12, p. 42-3, 1954.
6
Cf. BVerwGE 1, 159 (161 e ss.), decisão proferida em 24-06-1954.
7
Cf. BVerfGE 40, 121 (133).
8
Para tanto, v. BVerfGE 78, 104, reiterada em 82,60 e 87, 153. Ressalte-se que, nas duas últimas decisões, se
tratou da problemática da justiça tributária, reconhecendo-se para o indivíduo e sua família a garantia de que a
tributação não poderia incidir sobre os valores mínimos indispensáveis a uma existência digna. Cuidou-se,
contudo, não propriamente de um direito a prestações, mas, sim, de limitar a ingerência estatal na esfera
existencial, ressaltando-se aqui também uma dimensão defensiva do direito fundamental ao mínimo para uma
existência digna. Note-se que o princípio da dignidade humana passa, sob este aspecto, a constituir limite
material ao poder de tributar do Estado. Recentemente, mais precisamente em 9.2.2010, sobreveio decisão do
Tribunal (que teve por objeto o exame da constitucionalidade de alentada reforma da legislação social, a
polêmica Reforma Hartz-IV, com destaque para os valores pagos a título de seguro desemprego) igualmente
afirmando o dever do Estado com a garantia do mínimo existencial e reconhecendo um direito subjetivo
individual e indisponível correspondente. Para maiores detalhes, v., entre outros, as anotações de RIXEN,
essencial do princípio do Estado Social de Direito, constituindo uma de suas principais tarefas
e obrigações.9
Neste sentido, o que se afirma é que o indivíduo deve poder levar uma vida que
corresponda às exigências do princípio da dignidade da pessoa humana, razão pela qual o
direito à assistência social considerado, pelo menos na Alemanha e, de modo geral, nos
países que integram a União Europeia, a principal manifestação da garantia do mínimo
existencial alcança o caráter de uma ajuda para a autoajuda (Hilfe zur Selbsthilfe), não tendo
por objeto o estabelecimento da dignidade em si mesma, mas a sua proteção e promoção. 10
Desenvolvendo os aspectos já referidos, a doutrina (mas também a jurisprudência)
constitucional da Alemanha passou a sustentar que e, em princípio, as opiniões convergem
neste sentido a dignidade propriamente dita não é passível de quantificação. 11 A necessária
fixação, portanto, do valor da prestação assistencial destinada à garantia das condições
existenciais mínimas, em que pese sua viabilidade, é, além de condicionada espacial e
temporalmente, dependente também do padrão socioeconômico vigente.12 Não se pode,
outrossim, negligenciar a circunstância de que o valor necessário para a garantia das
condições mínimas de existência evidentemente estará sujeito a câmbios, não apenas no que
diz respeito à esfera econômica e financeira, mas também no concernente às expectativas e
necessidades do momento.13
De qualquer modo, tem-se como certo que a garantia efetiva de uma existência
digna abrange mais do que a garantia da mera sobrevivência física, situando-se, portanto,
além do limite da pobreza absoluta. Sustenta-se, neste sentido, que se uma vida sem
alternativas não corresponde às exigências da dignidade humana, a vida humana não pode ser
reduzida à mera existência.14 Registre-se, neste contexto, a lição de Heinrich Scholler, para
15
20
Cf. a decisão proferida no Acórdão n° 509 de 2002 (que versa sobre o rendimento social de inserção), bem
como os comentários tecidos por Vieira de Andrade, op. cit., p. 403 e ss., e, mais recentemente, por
MEDEIROS, Rui. Anotações ao art. 63 da Constituição da República Portuguesa. In: MIRANDA, Jorge;
MEDEIROS, Rui. Constituição Portuguesa Anotada. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. t. 1. pp. 639-40.
21
Esta a posição de BREUER, Rüdiger, op. cit., p. 97, assim como, mais recentemente, MOREIRA, Isabel. A
solução dos direitos, liberdades e garantias e dos direitos econômicos, sociais e culturais. Coimbra:
Almedina, 2007. p. 143 e ss. Também o Tribunal Federal Constitucional atribui ao legislador a competência
precípua de dispor sobre o conteúdo da prestação. Neste sentido, v. BVerfGE 40, 121 (133) e 87, 153 (170-1).
Por último, v., no mesmo sentido, a decisão de 9-2-2010.
indispensáveis a uma existência digna não for respeitado, isto é, quando o legislador se
mantiver aquém desta fronteira.22 Tal orientação, de resto, é que aparentemente tem
prevalecido na doutrina e jurisprudência supranacional e nacional (constitucional) Europeia,23
e, de algum modo, parece ter sido assumida como substancialmente correta também por
expressiva doutrina e jurisprudência sul-americana, como dão conta importantes contribuições
oriundas da Argentina24 e da Colômbia25. Entre nós, basta, por ora, lembrar o crescente
número de publicações e de decisões jurisdicionais, inclusive proferidas por Tribunais
Superiores, neste último caso, com destaque para a área da saúde.26
É preciso frisar, por outro lado, que também no que diz respeito ao conteúdo do
assim designado mínimo existencial, bem como no que concerne a sua proteção e
implementação, existe uma gama variada de posicionamentos sobre as possibilidades e limites
da atuação do poder judiciário nesta seara, de tal sorte que tal temática aqui não será
especificamente examinada. De outra parte, mesmo que não se possa adentrar em detalhes,
firma-se posição no sentido de que o objeto e conteúdo do mínimo existencial, compreendido
também como direito e garantia fundamental, haverá de guardar sintonia com uma
compreensão constitucionalmente adequada do direito à vida e da dignidade da pessoa
humana como princípio constitucional fundamental. Neste sentido, remete-se à noção de que
a dignidade da pessoa humana somente estará assegurada em termos de condições básicas a
serem garantidas pelo Estado e pela sociedade onde a todos e a qualquer um estiver
22
Cf. o já referido leading case do Tribunal Constitucional Federal (BVerfGE 40, 121 [133]).
23
Ainda que não se trate do reconhecimento de um direito a prestações propriamente dito, o Tribunal
Constitucional Espanhol, na Sentença nº 113/1989, e
persona el que la efectividad de los derechos patrimoniales se leve al extremo de sacrificar el mínimo vital del
deudor, privándole de los medios indispensables para la realización de sus fines personales. Se justifica así,
junto a otras consideraciones, la inembargabilidad de bienes y derechos como límite del derecho a la
Derechos Fundamentales y
Principios Constitucionales (Doctrina Jurisprudencial). Barcelona: Ariel, p. 73). Já admitindo um direito às
prestações vinculadas ao mínimo existencial, v. a já citada decisão do Tribunal Constitucional de Portugal, na
esteira de jurisprudência anterior, ainda que em princípio tímida e partindo da primazia da concretização pelos
órgãos legiferantes.
24
V. especialmente COURTIS, Christian; ABRAMOVICH, Victor. Los derechos sociales como derechos
exigibles. Madrid: Trotta, 2003, que apresenta e comenta um expressivo elenco de casos que envolvem os
direitos sociais e o mínimo existencial não limitado à experiência da Argentina.
25
Inventariando e comentando a jurisprudência constitucional da Colômbia, v. ARANGO, Rodolfo;
LEMAITRE, Julieta (Dir.). Jurisprudência constitucional sobre el derecho al mínimo vital. In: Estudos
Ocasionales CIJUS. Bogotá: Ediciones Uniandes, 2002.
26
V. aqui, entre outras e por todas, a decisão emblemática proferida pelo Supremo Tribunal Federal, relatada
pelo Ministro Celso de Mello (Agravo Regimental no RE nº 271.286-8/RS, publicada no DJU em
24.11.2000), na qual restou consignado igualmente em hipótese que versava sobre o fornecimento de
medicamentos pelo Estado (no caso, paciente portador de HIV) que a saúde é direito público subjetivo, não
julgados que poderiam ser colacionados, v. a paradigmática decisão monocrática do STF proferida na ADPF
n° 45, igualmente da lavra do Ministro Celso de Mello, afirmando embora não tenha havido julgamento do
mérito a dimensão política da jurisdição constitucional e a possibilidade de controle judicial de políticas
assegurada nem mais nem menos do que uma vida saudável.27 Assim, a despeito de se
endossar uma fundamentação do mínimo existencial no direito à vida e na dignidade da
pessoa humana, há que encarar com certa reserva (pelo menos nos termos em que foi
formulada) a distinção acima referida entre um mínimo existencial fisiológico e um mínimo
sociocultural, notadamente pelo fato de que uma eventual limitação do núcleo essencial do
direito ao mínimo existencial a um mínimo fisiológico, no sentido de uma garantia apenas das
condições materiais mínimas que impedem seja colocada em risco a própria sobrevivência do
indivíduo, poderá servir de pretexto para a redução do mínimo existencial precisamente a um
diferença entre o conteúdo do direito à vida e da dignidade da pessoa humana, que, a despeito
dos importantes pontos de contato, não se confundem,28 poderá vir a ser negligenciada.
Convém destacar, ainda nesta quadra, que a dignidade implica uma dimensão sociocultural e
que é igualmente considerada elemento nuclear a ser respeitado e promovido,29 razão pela
qual prestações básicas em termos de direitos culturais (notadamente no caso da educação
fundamental) estariam sempre incluídas no mínimo existencial como, de resto e mesmo por
vezes seguindo uma fundamentação política e filosófica liberal já vinha também
sustentando importante doutrina nacional.30
Dito isso, o que importa, nesta quadra, é a percepção de que a garantia (e direito
fundamental) do mínimo existencial independe de expressa previsão constitucional para poder
ser reconhecida, visto que decorrente já da proteção da vida e da dignidade da pessoa humana.
No caso do Brasil, onde também não houve uma previsão constitucional expressa
consagrando um direito geral à garantia do mínimo existencial, os próprios direitos sociais
específicos (como a assistência social, a saúde, a moradia, a previdência social, o salário
mínimo dos trabalhadores, entre outros) acabaram por abarcar algumas das dimensões do
31
Cf., por exemplo, seguindo esta linha argumentativa, MARTINS, Patrícia do Couto V. A. A proibição do
retrocesso social como fenômeno jurídico In: GARCIA, Emerson (Coord.). A efetividade dos direitos sociais.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 412 e ss., referindo-se, todavia, à noção de necessidades básicas como
núcleo essencial dos direitos sociais (noção esta similar a de um mínimo existencial), núcleo este blindado
contra medidas de cunho retrocessivo.
32
Cf. demonstrado por SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana [...], op. cit., p. 118 e ss.
33
V. neste sentido, SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana, [...], op. cit., p. 77 e ss.
conteúdo essencial possa ser compreendido como constituindo justamente a garantia do
mínimo existencial, resulta evidente. Por outro lado, tal constatação não afasta a circunstância
de que, quando for o caso, este próprio conteúdo existencial (núcleo essencial = mínimo
existencial) não é o mesmo em cada direito social (educação, moradia, assistência social,
etc.), não dispensando, portanto, a necessária contextualização em cada oportunidade que se
pretender extrair alguma consequência jurídica concreta em termos de proteção negativa ou
positiva dos direitos sociais e do seu conteúdo essencial, seja ele, ou não, diretamente
vinculado a alguma exigência concreta da dignidade da pessoa humana.
Outro aspecto que merece destaque diz respeito ao fato de que, tendo a própria
garantia do mínimo existencial sido (como cláusula geral) implicitamente consagrada pela
ordem constitucional brasileira, em diversas situações tal garantia acabou inclusive antes
mesmo da edição da vigente Constituição sendo concretizada, em algumas das suas
dimensões, pelo legislador infraconstitucional, o que ocorre, por exemplo, com a obrigação
alimentar. Tal exemplo revela, por um lado, que a garantia do mínimo existencial já estava
presente no constitucionalismo pretérito, até mesmo pelo fato de dizer respeito a necessidades
básicas da pessoa humana que, independentemente de uma previsão formal e expressa num
texto constitucional, conectam-se (ou assim o deveriam) com a compreensão do conteúdo
material do direito constitucional e dos direitos fundamentais, até mesmo pelo fato de estar
em causa a vida e a dignidade da pessoa humana.
De todo o exposto, há como extrair, ainda, outra constatação de relevo também
para os desenvolvimentos subsequentes, qual seja, a impossibilidade de se estabelecer, de
forma apriorística e, acima de tudo, de modo taxativo, um elenco dos elementos nucleares do
mínimo existencial, no sentido de um rol fechado de posições subjetivas (direitos subjetivos),
negativos e positivos correspondentes ao mínimo existencial,34 o que evidentemente não
afasta a possibilidade de se inventariar todo um conjunto de conquistas já sedimentadas e que,
em princípio e sem excluir outras possibilidades, servem como uma espécie de roteiro a guiar
o intérprete e, de modo geral, os órgãos vinculados à concretização dessa garantia do mínimo
existencial.35
34
Ao mínimo existencial aplica-se, portanto para deixar suficientemente enfatizado este ponto a noção de
uma dupla função prestacional (positiva) e defensiva (negativa), de modo geral inerente aos direitos
fundamentais em geral e aos direitos sociais em particular.
35
É precisamente neste sentido que compreendemos a proposta de BARCELLOS, Ana Paula, op. cit., p. 247 e
ss., ao incluir no mínimo existencial a garantia da educação fundamental, da saúde básica, da assistência aos
desamparados e do acesso à justiça, pena de fecharmos de modo constitucionalmente ilegítimo (ou, pelo
menos, problemático) o acesso à satisfação de necessidades essenciais, mas que não estejam propriamente
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
vinculadas (pelo menos, não de forma direta) às demandas colacionadas pela autora.
36
Na literatura nacional, explorando as diversas facetas da problemática, inclusive da legitimidade da jurisdição
constitucional, v. além da obra do ora coautor Giovani Saavedra, já referida, os excelentes estudos de
SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte:
Del Rey, 2002; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del
Rey, 2004 (do mesmo autor, v., ainda Hermenêutica Jurídica e(m) Debate. O Constitucionalismo Brasileiro
entre a Teoria do Discurso e a Ontologia Existencial. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007), STRECK,
Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006 (do mesmo autor
v. Verdade e Consenso, 3. ed.. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009), assim como a coletânea organizada por
CATTONI, Marcelo (coord.). Jurisdição e Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte: mandamento,
2004, com destaque para as contribuições do próprio Marcelo Cattoni e de Menelick de Carvalho Neto. Mais
recentemente, merecem destaque, entre outros, MENDES, Conrado Hübner. Controle de Constitucionalidade
e Democracia, Rio de Janeiro: Elsevier Editora, 2008, bem como a coletânea coordenada por TAVARES,
André Ramos. Justiça constitucional e democracia na América Latina. Belo Horizonte: Fórum, 2008, já numa
perspectiva diversa da dos estudos anteriores, visto que focada na descrição e discussão de algumas
experiências nacionais representativas do ambiente latino-americano.
constitucional, é o da já referida e recente decisão do Tribunal Constitucional Federal da
Alemanha (9.2.2010), onde, a despeito de retomada a noção de que toda e qualquer pessoa é
titular de um direito (subjetivo) às condições materiais mínimas para que possa fruir de uma
vida com dignidade, merece ser sublinhada a manifestação do Tribunal no sentido de que ao
legislador é deferida uma margem considerável de ação na definição da natureza das
prestações estatais que servem ao mínimo existencial, mas também dos critérios para tal
definição. Por outro lado, tal liberdade de conformação encontra seus limites precisamente na
própria garantia do mínimo existencial, de tal sorte que nesta mesma decisão o Tribunal
Constitucional veio a declarar a inconstitucionalidade parcial da legislação submetida ao seu
crivo. Entre as diretrizes estabelecidas pelo Tribunal decisiva para a declaração da
ilegitimidade constitucional da legislação está a de que, para a definição do conteúdo das
prestações exigíveis por parte do cidadão, o legislador está obrigado a avaliar de modo
responsável e transparente, mediante um procedimento controlável e baseado em dados
confiáveis e critérios de cálculo claros, a extensão concreta das prestações vinculadas ao
mínimo existencial.
A deferência para com o legislador (e, portanto, para com o órgão legitimado pela
via da representação popular), todavia, não acaba por aí. Com efeito, reiterando decisões
anteriores, o Tribunal mediante exercício do assim chamado judicial self restraint,37
acabou não pronunciando a nulidade dos dispositivos legais tidos por ofensivos ao mínimo
existencial constitucionalmente garantido e exigido, mas assinou prazo ao legislador para que
ele próprio, no âmbito do processo político e democrático, venha a providenciar os ajustes
necessários, corrigindo sua própria obra e adequando-a aos parâmetros constitucionais. É
claro que também a tradição alemã, ainda que sejam poucos os casos concretos em que se
utilizou do expediente do apelo ao legislador, igualmente demonstra a seriedade com a qual a
decisão do Tribunal Constitucional é recebida pelos órgãos legislativos (sem prejuízo de
fortes críticas), de tal sorte que em todos os casos o legislador embora lançando mão da sua
liberdade de conformação correspondeu aos apelos e revisou suas opções anteriores, ou
mesmo, nos casos de omissão, editou a regulamentação exigida pelo Tribunal Constitucional.
Aliás, também aqui a trajetória inicial (acima descrita, inclusive com menção às decisões
judiciais superiores) do reconhecimento da garantia do mínimo existencial já se manifestara
fecunda, visto que foi precisamente a falta de previsão legislativa de uma prestação estatal
destinada a assegurar uma vida condigna a quem não dispõe de recursos próprios que motivou
37
Sobre o tema, v., entre nós, especialmente MELLO, Cláudio Ari. Democracia constitucional e direitos
fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
fosse acessada a jurisdição constitucional, designadamente para impulsionar o legislador a
inserir tais prestações na codificação social alemã.
O quanto tal caminho se revela produtivo para o caso brasileiro, seja no que diz
respeito à definição do mínimo existencial (abarcando a definição de seu conteúdo e das
respectivas consequências jurídicas), seja quanto ao modo de articular as relações entre
legislação, democracia e jurisdição constitucional, ainda está longe de ser satisfatoriamente
equacionado, de modo que fica a esperança de que com a presente contribuição se tenha
logrado agregar pelo menos mais algum elemento à fecunda discussão travada na esfera
doutrinária e jurisprudencial.
ABSTRACT
This paper discusses the concept of a minimum of existance for a worthy life and its relations
with other fundamental rights in the Brazilian constitutional system, focusing in the role of
the constitutional jurisdiction.
REFERÊNCIAS
BACHOF, Otto. Begriff und Wesen des sozialen Rechtsstaates. VVDStRL, n. 12, p. 42-43,
1954.
BITENCOURT NETO, Eurico. O Direito ao mínimo para uma existência digna. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
COURTIS, Christian; Abramovich, Victor. Los derechos sociales como derechos exigibles.
Madrid: Trotta, 2003.
KLOEPFER, Michael. Vida e dignidade da pessoa humana. In: Sarlet, Ingo Wolfgang (Org.).
Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 153 e ss.
LEIVAS, Paulo G. C. Teoria dos direitos fundamentais sociais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2006. p. 129 e ss.
SCHOLLER, Heinrich.
durch einen Behinderten. In: Juristenzeitung Gesetzgebungsdienst : JZ-GD, 1980. p. 676.
TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.