Constitucionalismo e Democracia - IngoSarlet

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DIGNIDADE (DA PESSOA) HUMANA, MÍNIMO EXISTENCIAL E JUSTIÇA

CONSTITUCIONAL: ALGUMAS APROXIMAÇÕES E ALGUNS DESAFIOS

Ingo Wolfgang Sarlet1

RESUMO

O presente artigo discute o conceito de um mínimo existencial para uma vida digna e sua
relação com outros direitos fundamentais na ordem jurídico-constitucional brasileira,
principalmente com foco no papel da jurisdição constitucional.

Palavras-chave: Mínimo existencial. Vida com dignidade. Jurisdição constitucional.

1 NOTAS INTRODUTÓRIAS

Se a dignidade da pessoa humana e o assim chamado mínimo existencial são


noções tidas como indissociáveis, ao mesmo tempo e já pela conexão apontada, cuida-se de
figuras praticamente onipresentes no atual debate (pelo menos é o que se observa no caso
brasileiro) sobre os fundamentos e objetivos do Estado Constitucional, sobre o conteúdo dos
direitos fundamentais (com destaque para os direitos socioambientais) e mesmo no que diz
respeito ao papel da Jurisdição Constitucional na esfera da efetivação dos direitos
fundamentais e do controle dos atos dos demais órgãos estatais, mas também dos atos da
própria jurisdição ordinária. De modo particular, chama a atenção que ao longo dos últimos
anos, especialmente pela forte conexão com o direito à vida e com a dignidade da pessoa
humana, o assim chamado direito (humano e fundamental) ao mínimo existencial acabou

1
Professor titular da Faculdade de Direito e dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito e em Ciências
Criminais da PUCRS. Juiz de Direito no RS.
sendo não apenas associado e mesmo identificado com o núcleo essencial dos direitos
fundamentais sociais (e mesmo ambientais, quando em causa a noção de um mínimo
existencial ecológico ou ambiental) como tem servido de critério material para a solução, na
esfera de uma ponderação de direitos e/ou valores, de uma série de demandas judiciais que
envolvem a imposição, ao poder público, de prestações na esfera socioambiental ou a
proteção de direitos fundamentais contra intervenções restritivas por parte do Estado, aspectos
que mais adiante voltarão a ser considerados.
O quanto o recurso à noção de um mínimo existencial, designadamente de um
direito fundamental à sua proteção e promoção, tem sido realmente produtivo ou apresenta
aspectos dignos de maior reflexão quanto à sua correta compreensão e manejo é precisamente
o mote da presente contribuição, com destaque para o modo pelo qual o mínimo existencial,
na sua relação com a dignidade da pessoa humana e outros direitos fundamentais, tem sido
aplicado pela jurisdição constitucional brasileira, representada pela sua instância maior, o
Supremo Tribunal Federal.
É, pois, justamente considerando o elo entre direitos fundamentais sociais, vida e
dignidade da pessoa humana,2 que, ademais, dizem com necessidades existenciais de todo e
qualquer indivíduo, que, na sequência, se estará a examinar o assim designado mínimo
existencial e sua relação com os direitos sociais, com destaque para a evolução no âmbito do
direito constitucional alemão, especialmente considerando a recente decisão do Tribunal
Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht) sobre o tema e a sua conexão com a
problemática da democracia e dos limites ao legislador.

2 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O ASSIM CHAMADO MÍNIMO


EXISTENCIAL

A vinculação dos direitos (fundamentais) sociais com o que passou a ser


designado como uma garantia de um mínimo existencial é evidente, mas é igualmente
evidente que também aqui há uma série de aspectos controversos que, já há algum tempo,
integram a pauta das discussões a respeito dos direitos fundamentais. Entre nós, muito embora
o tema não venha a ser exatamente novo, não faz, contudo, muito tempo que tem sido objeto
de estudos mais sistemáticos. Nesta seara, destaca-se a contribuição pioneira de Ricardo Lobo

2
Para uma mirada na perspectiva jurídico-constitucional, v., por todos, SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade
da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2010.
Torres, autor, ao que tudo indica, do primeiro ensaio especialmente dedicado ao tema no
Brasil, publicado pouco após o advento da Constituição de 1988 na tradicional Revista de
Direito Administrativo.3 Desde então, o próprio autor citado tem revisitado o tema, ampliando
o horizonte de seus estudos e aperfeiçoando seu rico arcabouço argumentativo.4
Adentrando desde logo este aspecto do tema, é possível afirmar que a noção de
um direito fundamental (e, portanto, também de uma garantia fundamental) às condições
materiais que asseguram uma vida com dignidade teve sua primeira importante elaboração
dogmática na Alemanha, onde, de resto, obteve também um relativamente precoce
reconhecimento jurisprudencial.
Com efeito, em que pese não existirem, de um modo geral, direitos sociais típicos,
notadamente de cunho prestacional, expressamente positivados na Lei Fundamental da
__
Alemanha (1949) excepcionando-se a previsão da proteção da maternidade e dos filhos,
bem como a imposição de uma atuação positiva do Estado no campo da compensação de
desigualdades fáticas no que diz respeito à discriminação das mulheres e dos portadores de
__
necessidades especiais (para muitos não considerados propriamente direitos sociais) a
discussão em torno da garantia do mínimo indispensável para uma existência digna ocupou
posição destacada não apenas nos trabalhos preparatórios no âmbito do processo constituinte,
mas também __ após a entrada em vigor da Lei Fundamental de 1949, na qual foi desenvolvida
pela doutrina __ no âmbito da práxis legislativa, administrativa e jurisprudencial.
Na doutrina do Pós-Guerra, o primeiro publicista de renome a sustentar a
possibilidade do reconhecimento de um direito subjetivo à garantia positiva dos recursos
mínimos para uma existência digna foi o publicista Otto Bachof, que, já no início da década
de 1950, considerou que o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. I, da Lei
Fundamental da Alemanha, na sequência referida como LF) não reclama apenas a garantia da
liberdade, mas também um mínimo de segurança social, já que, sem os recursos materiais
para uma existência digna, a própria dignidade da pessoa humana ficaria sacrificada. Por esta
razão, o direito à vida e integridade corporal (art. 2º, inc. II, da LF) não pode ser concebido
meramente como proibição de destruição da existência, isto é, como direito de defesa,
impondo, ao revés, também uma postura ativa no sentido de garantir a vida. 5 Cerca de um ano
depois da paradigmática formulação de Bachof, o Tribunal Federal Administrativo da
Alemanha (Bundesverwaltungsgericht), já no primeiro ano de sua existência, reconheceu um

3
Cf. TORRES, Ricardo Lobo. O Mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de direito
administrativo, n. 177, p. 20-49,1989.
4
Cf., TORRES, Ricardo Lobo. O Direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
direito subjetivo do indivíduo carente a auxílio material por parte do Estado, argumentando,
igualmente com base no postulado da dignidade da pessoa humana, direito geral de liberdade
e direito à vida, que o indivíduo, na qualidade de pessoa autônoma e responsável, deve ser
reconhecido como titular de direitos e obrigações, o que implica principalmente a manutenção
de suas condições de existência.6 Ressalte-se que apenas alguns anos depois o legislador
acabou regulamentando em nível infraconstitucional um direito a prestações no âmbito da
assistência social (art. 4º, inc. I, da Lei Federal sobre Assistência Social
[Bundessozialhilfegesetz]).
Por fim, embora transcorridas cerca de duas décadas da referida decisão do
Tribunal Administrativo Federal, também o Tribunal Constitucional Federal acabou por
consagrar o reconhecimento de um direito fundamental à garantia das condições mínimas para
uma existência digna. Da argumentação desenvolvida ao longo desta primeira decisão, extrai-
se o seguinte trecho:

Certamente a assistência aos necessitados integra as obrigações essenciais de um


Estado Social. [...] Isto inclui, necessariamente, a assistência social aos concidadãos,
que, em virtude de sua precária condição física e mental, se encontram limitados nas
suas atividade sociais, não apresentando condições de prover a sua própria
subsistência. A comunidade estatal deve assegurar-lhes pelo menos as condições
mínimas para uma existência digna e envidar os esforços necessários para integrar
estas pessoas na comunidade, fomentando seu acompanhamento e apoio na família
ou por terceiros, bem como criando as indispensáveis instituições assistenciais.7

Em que pesem algumas modificações no que tange à fundamentação, bem quanto


ao objeto da demanda, tal decisão veio a ser chancelada, em sua essência, em outros arestos
da Corte Constitucional alemã, resultando no reconhecimento definitivo do status
constitucional da garantia estatal do mínimo existencial.8 Além disso, a doutrina alemã
entende que a garantia das condições mínimas para uma existência digna integra o conteúdo

5
Cf. O. Bachof. Begriff und Wesen des sozialen Rechtsstaates. VVDStRL, n. 12, p. 42-3, 1954.
6
Cf. BVerwGE 1, 159 (161 e ss.), decisão proferida em 24-06-1954.
7
Cf. BVerfGE 40, 121 (133).
8
Para tanto, v. BVerfGE 78, 104, reiterada em 82,60 e 87, 153. Ressalte-se que, nas duas últimas decisões, se
tratou da problemática da justiça tributária, reconhecendo-se para o indivíduo e sua família a garantia de que a
tributação não poderia incidir sobre os valores mínimos indispensáveis a uma existência digna. Cuidou-se,
contudo, não propriamente de um direito a prestações, mas, sim, de limitar a ingerência estatal na esfera
existencial, ressaltando-se aqui também uma dimensão defensiva do direito fundamental ao mínimo para uma
existência digna. Note-se que o princípio da dignidade humana passa, sob este aspecto, a constituir limite
material ao poder de tributar do Estado. Recentemente, mais precisamente em 9.2.2010, sobreveio decisão do
Tribunal (que teve por objeto o exame da constitucionalidade de alentada reforma da legislação social, a
polêmica Reforma Hartz-IV, com destaque para os valores pagos a título de seguro desemprego) igualmente
afirmando o dever do Estado com a garantia do mínimo existencial e reconhecendo um direito subjetivo
individual e indisponível correspondente. Para maiores detalhes, v., entre outros, as anotações de RIXEN,
essencial do princípio do Estado Social de Direito, constituindo uma de suas principais tarefas
e obrigações.9
Neste sentido, o que se afirma é que o indivíduo deve poder levar uma vida que
corresponda às exigências do princípio da dignidade da pessoa humana, razão pela qual o
direito à assistência social considerado, pelo menos na Alemanha e, de modo geral, nos
países que integram a União Europeia, a principal manifestação da garantia do mínimo
existencial alcança o caráter de uma ajuda para a autoajuda (Hilfe zur Selbsthilfe), não tendo
por objeto o estabelecimento da dignidade em si mesma, mas a sua proteção e promoção. 10
Desenvolvendo os aspectos já referidos, a doutrina (mas também a jurisprudência)
constitucional da Alemanha passou a sustentar que e, em princípio, as opiniões convergem
neste sentido a dignidade propriamente dita não é passível de quantificação. 11 A necessária
fixação, portanto, do valor da prestação assistencial destinada à garantia das condições
existenciais mínimas, em que pese sua viabilidade, é, além de condicionada espacial e
temporalmente, dependente também do padrão socioeconômico vigente.12 Não se pode,
outrossim, negligenciar a circunstância de que o valor necessário para a garantia das
condições mínimas de existência evidentemente estará sujeito a câmbios, não apenas no que
diz respeito à esfera econômica e financeira, mas também no concernente às expectativas e
necessidades do momento.13
De qualquer modo, tem-se como certo que a garantia efetiva de uma existência
digna abrange mais do que a garantia da mera sobrevivência física, situando-se, portanto,
além do limite da pobreza absoluta. Sustenta-se, neste sentido, que se uma vida sem
alternativas não corresponde às exigências da dignidade humana, a vida humana não pode ser
reduzida à mera existência.14 Registre-se, neste contexto, a lição de Heinrich Scholler, para

Stephan. In: Sozialgerichtsbarkeit 04/10, p. 240 e ss.


9
Neste sentido a paradigmática proposição de um dos principais teóricos do Estado Social na Alemanha,
ZACHER, Hans-Friedrich. Das soziale Staatsziel. In: ISENSEE-KIRCHHOF (Org.), Handbuch des
Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland (HBStR). Heidelberg: C. F. Muller, 1987. v. 1. p. 1062 e ss.
10
Esta a oportuna formulação de NEUMANN, Volker. Menschenwürde und Existenzminimum. In: NVwZ,
1995. p. 425.
direito a um mínimo existencial corresponde ao direito à subsistência de que nos fala Po
LEDUR, José Felipe. Direitos fundamentais sociais: efetivação no âmbito da democracia participativa. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 109 e ss.
11
Cf. novamente e por todos, NEUMANN, Volker, op. cit., p. 428-9.
12
Cf. STARCK, Christian (Org). Staatliche Organisation und Staatliche Finanzierung als Hilfen zur
Grundrechtsverwirklichungen? In: ______. Bundesverfassungsgericht und Grundgesetz, Festgabe aus Anla
des 25 jëhrigen Bestehens des Bundesverfassungsrerichts, v. 2 (BVerfG und GG II). Tübingen: J. C. Mohr
(Paul Siebeck), 1976. p. 522.
13
Neste sentido, BREUER, Rüdiger. Grundrechte als Anspruchsnormen. In: ______. Verwaltungsrecht
zwischen Freiheit, Teilhabe und Bindung, Festgabe aus Anlass des 25 jährigen Bestehens des
Bundesverwaltungsgerichts (FS für das BVerwG, München: CH Beck, 1978. p. 97.
14
Esta a lição de NEUMANN, Volker, op. cit., p. 428 e ss.
existência que permita a plena fruição dos direitos fundamentais, de modo especial, quando
15
seja possível o pleno desenvolviment Tal linha de fundamentação, em
termos gerais e consoante já destacado, tem sido privilegiada também no direito
constitucional pátrio, ressalvada especialmente alguma controvérsia em termos de uma
fundamentação liberal ou social do mínimo existencial e em relação a problemas que
envolvem a determinação do seu conteúdo,16 já que, não se há de olvidar, da fundamentação
diversa do mínimo existencial podem resultar consequências jurídicas distintas, em que pese
uma possível convergência no que diz respeito a uma série de aspectos.17
Ainda no contexto do debate jurídico-constitucional alemão, verifica-se uma
distinção importante no concernente ao conteúdo e alcance do próprio mínimo existencial,
que tem sido desdobrado num assim designado mínimo fisiológico, que constitui, por
compreender as condições materiais mínimas para uma vida condigna, no sentido da proteção
contra necessidades de caráter existencial básico, o conteúdo essencial da garantia do mínimo
existencial, e num assim designado mínimo existencial sociocultural, que, para além da
proteção básica já referida, objetiva assegurar ao indivíduo um mínimo de inserção em
termos de tendencial igualdade na vida social e cultural.18 Ao passo que na Alemanha e
segundo orientação doutrinária e jurisprudencial prevalente o conteúdo essencial do mínimo
existencial encontra-se diretamente fundado no direito à vida e na dignidade da pessoa
humana (abrangendo, por exemplo, prestações básicas em termos de alimentação, vestimenta,
abrigo, saúde ou os meios indispensáveis para a sua satisfação), o assim designado mínimo
sociocultural encontra-se fundado no princípio do Estado Social e no princípio da igualdade
no que diz respeito ao seu conteúdo material.19
Do exposto com base na experiência germânica que, à evidência, não é a única e
também não é isenta de possíveis e importantes críticas, mas que, em ternos de repercussão

15

Behinderten. In: JZ 1980,


16
Para além da paradigmática formulação de Ricardo Lobo Torres e da literatura já referida, vale conferir,
ainda, o ensaio de SCAFF, Fernando F. Reserva do possível, mínimo existencial e direitos humanos. In:
Revista Interesse Público, v. 32, p. 213 e ss, 2005, aderindo ao conceito e fundamento proposto por Ricardo
Lobo Torres. Por último, v. BITENCOURT NETO, Eurico. O Direito ao mínimo para uma existência digna.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
17
Neste sentido, embora não tenha adentrado este debate, a pertinente observação de SOUZA NETO, Cláudio
Pereira. Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais, p. 308 e ss.
18
Neste sentido, v. o recente relato. SORIA, José Martínez. Das Recht auf Sicherung des Existenzminimums.
In: JZ 13/2005, especialmente p. 647-48. Aliás, também na visão do Tribunal Constitucional Federal, como dá
conta a decisão de 09.02.2010, tal concepção segue encontrando guarida.
19
Cf., ainda, SORIA, José Martínez. Das Recht auf Sicherung des Existenzminimums, pp. 647-48.
sobre o direito comparado, certamente é a mais relevante resultam já pelo menos duas
constatações de relevo e que acabaram por influenciar significativamente os
desenvolvimentos subsequentes.
A primeira diz respeito ao próprio conteúdo do assim designado mínimo
existencial, que não pode ser confundido com o que se tem chamado de mínimo vital ou um
mínimo de sobrevivência, uma vez que este último diz respeito à garantia da vida humana,
sem necessariamente abranger as condições para uma sobrevivência física em condições
dignas, portanto, de uma vida com certa qualidade. Não deixar alguém sucumbir à fome
certamente é o primeiro passo em termos da garantia de um mínimo existencial, mas não é e
muitas vezes não o é sequer de longe o suficiente. Tal interpretação do conteúdo do mínimo
existencial (conjunto de garantias materiais para uma vida condigna) é a que tem prevalecido
não apenas na Alemanha, mas também na doutrina e jurisprudência constitucional comparada,
notadamente no plano europeu, como dá conta, em caráter ilustrativo, a recente contribuição
do Tribunal Constitucional de Portugal na matéria, ao reconhecer tanto um direito negativo
quanto um direito positivo a um mínimo de sobrevivência condigna, como algo que o Estado
não apenas não pode subtrair ao indivíduo, mas também como algo que o Estado deve
positivamente assegurar, mediante prestações de natureza material.20
Em que pese certa convergência no que diz respeito a uma fundamentação
jurídico-constitucional a partir do direito à vida e do princípio da dignidade da pessoa
humana, e tomando como exemplo o problema do conteúdo das prestações vinculadas ao
mínimo existencial, verifica-se que a doutrina e a jurisprudência alemã partem de um modo
mais cauteloso da premissa de que existem diversas maneiras de realizar esta obrigação,
incumbindo ao legislador a função de dispor sobre a forma da prestação, seu montante, as
condições para sua fruição, etc., podendo os tribunais decidir sobre este padrão existencial
mínimo, nos casos de omissão ou desvio de finalidade por parte dos órgãos legiferantes. 21
Relevante, todavia, é a constatação de que a liberdade de conformação do legislador encontra
seu limite no momento em que o padrão mínimo para assegurar as condições materiais

20
Cf. a decisão proferida no Acórdão n° 509 de 2002 (que versa sobre o rendimento social de inserção), bem
como os comentários tecidos por Vieira de Andrade, op. cit., p. 403 e ss., e, mais recentemente, por
MEDEIROS, Rui. Anotações ao art. 63 da Constituição da República Portuguesa. In: MIRANDA, Jorge;
MEDEIROS, Rui. Constituição Portuguesa Anotada. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. t. 1. pp. 639-40.
21
Esta a posição de BREUER, Rüdiger, op. cit., p. 97, assim como, mais recentemente, MOREIRA, Isabel. A
solução dos direitos, liberdades e garantias e dos direitos econômicos, sociais e culturais. Coimbra:
Almedina, 2007. p. 143 e ss. Também o Tribunal Federal Constitucional atribui ao legislador a competência
precípua de dispor sobre o conteúdo da prestação. Neste sentido, v. BVerfGE 40, 121 (133) e 87, 153 (170-1).
Por último, v., no mesmo sentido, a decisão de 9-2-2010.
indispensáveis a uma existência digna não for respeitado, isto é, quando o legislador se
mantiver aquém desta fronteira.22 Tal orientação, de resto, é que aparentemente tem
prevalecido na doutrina e jurisprudência supranacional e nacional (constitucional) Europeia,23
e, de algum modo, parece ter sido assumida como substancialmente correta também por
expressiva doutrina e jurisprudência sul-americana, como dão conta importantes contribuições
oriundas da Argentina24 e da Colômbia25. Entre nós, basta, por ora, lembrar o crescente
número de publicações e de decisões jurisdicionais, inclusive proferidas por Tribunais
Superiores, neste último caso, com destaque para a área da saúde.26
É preciso frisar, por outro lado, que também no que diz respeito ao conteúdo do
assim designado mínimo existencial, bem como no que concerne a sua proteção e
implementação, existe uma gama variada de posicionamentos sobre as possibilidades e limites
da atuação do poder judiciário nesta seara, de tal sorte que tal temática aqui não será
especificamente examinada. De outra parte, mesmo que não se possa adentrar em detalhes,
firma-se posição no sentido de que o objeto e conteúdo do mínimo existencial, compreendido
também como direito e garantia fundamental, haverá de guardar sintonia com uma
compreensão constitucionalmente adequada do direito à vida e da dignidade da pessoa
humana como princípio constitucional fundamental. Neste sentido, remete-se à noção de que
a dignidade da pessoa humana somente estará assegurada em termos de condições básicas a
serem garantidas pelo Estado e pela sociedade onde a todos e a qualquer um estiver

22
Cf. o já referido leading case do Tribunal Constitucional Federal (BVerfGE 40, 121 [133]).
23
Ainda que não se trate do reconhecimento de um direito a prestações propriamente dito, o Tribunal
Constitucional Espanhol, na Sentença nº 113/1989, e
persona el que la efectividad de los derechos patrimoniales se leve al extremo de sacrificar el mínimo vital del
deudor, privándole de los medios indispensables para la realización de sus fines personales. Se justifica así,
junto a otras consideraciones, la inembargabilidad de bienes y derechos como límite del derecho a la
Derechos Fundamentales y
Principios Constitucionales (Doctrina Jurisprudencial). Barcelona: Ariel, p. 73). Já admitindo um direito às
prestações vinculadas ao mínimo existencial, v. a já citada decisão do Tribunal Constitucional de Portugal, na
esteira de jurisprudência anterior, ainda que em princípio tímida e partindo da primazia da concretização pelos
órgãos legiferantes.
24
V. especialmente COURTIS, Christian; ABRAMOVICH, Victor. Los derechos sociales como derechos
exigibles. Madrid: Trotta, 2003, que apresenta e comenta um expressivo elenco de casos que envolvem os
direitos sociais e o mínimo existencial não limitado à experiência da Argentina.
25
Inventariando e comentando a jurisprudência constitucional da Colômbia, v. ARANGO, Rodolfo;
LEMAITRE, Julieta (Dir.). Jurisprudência constitucional sobre el derecho al mínimo vital. In: Estudos
Ocasionales CIJUS. Bogotá: Ediciones Uniandes, 2002.
26
V. aqui, entre outras e por todas, a decisão emblemática proferida pelo Supremo Tribunal Federal, relatada
pelo Ministro Celso de Mello (Agravo Regimental no RE nº 271.286-8/RS, publicada no DJU em
24.11.2000), na qual restou consignado igualmente em hipótese que versava sobre o fornecimento de
medicamentos pelo Estado (no caso, paciente portador de HIV) que a saúde é direito público subjetivo, não

julgados que poderiam ser colacionados, v. a paradigmática decisão monocrática do STF proferida na ADPF
n° 45, igualmente da lavra do Ministro Celso de Mello, afirmando embora não tenha havido julgamento do
mérito a dimensão política da jurisdição constitucional e a possibilidade de controle judicial de políticas
assegurada nem mais nem menos do que uma vida saudável.27 Assim, a despeito de se
endossar uma fundamentação do mínimo existencial no direito à vida e na dignidade da
pessoa humana, há que encarar com certa reserva (pelo menos nos termos em que foi
formulada) a distinção acima referida entre um mínimo existencial fisiológico e um mínimo
sociocultural, notadamente pelo fato de que uma eventual limitação do núcleo essencial do
direito ao mínimo existencial a um mínimo fisiológico, no sentido de uma garantia apenas das
condições materiais mínimas que impedem seja colocada em risco a própria sobrevivência do
indivíduo, poderá servir de pretexto para a redução do mínimo existencial precisamente a um

diferença entre o conteúdo do direito à vida e da dignidade da pessoa humana, que, a despeito
dos importantes pontos de contato, não se confundem,28 poderá vir a ser negligenciada.
Convém destacar, ainda nesta quadra, que a dignidade implica uma dimensão sociocultural e
que é igualmente considerada elemento nuclear a ser respeitado e promovido,29 razão pela
qual prestações básicas em termos de direitos culturais (notadamente no caso da educação
fundamental) estariam sempre incluídas no mínimo existencial como, de resto e mesmo por
vezes seguindo uma fundamentação política e filosófica liberal já vinha também
sustentando importante doutrina nacional.30
Dito isso, o que importa, nesta quadra, é a percepção de que a garantia (e direito
fundamental) do mínimo existencial independe de expressa previsão constitucional para poder
ser reconhecida, visto que decorrente já da proteção da vida e da dignidade da pessoa humana.
No caso do Brasil, onde também não houve uma previsão constitucional expressa
consagrando um direito geral à garantia do mínimo existencial, os próprios direitos sociais
específicos (como a assistência social, a saúde, a moradia, a previdência social, o salário
mínimo dos trabalhadores, entre outros) acabaram por abarcar algumas das dimensões do

públicas quando se cuidar especialmente da implementação da garantia do mínimo existencial.


27
Cfr. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana [...], op. cit., pp. 59-60.
28
-89, assim como, de modo
especial, ao ensaio de KLOEPFER, Michael. Vida e dignidade da pessoa humana. In: SARLET, Ingo
Wolfgang (Org.). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 153 e ss.
29
V. por todos HÄBERLE, Peter. A Dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: SARLET,
I. W. (Org). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e Direito constitucional, especialmente p.
116 e ss.
30
Aqui se remete novamente aos aportes já referidos de Ricardo Lobo Torres. Adotando linha argumentativa
próxima, v. BARCELLOS, Ana Paula. O mínimo existencial e algumas fundamentações. In: TORRES,
Ricardo Lobo (Org.). Legitimação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 11 e ss., e, mais
recentemente, da mesma autora, BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia dos princípios constitucionais:
dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. Em sentido diverso, privilegiando uma
fundamentação a partir da teoria das necessidades, v. LEIVAS, Paulo G.C. Teoria dos direitos fundamentais
sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 129 e ss.
mínimo existencial, muito embora não possam e não devam ser (os direitos sociais) reduzidos
pura e simplesmente a concretizações e garantias do mínimo existencial, como, de resto, já
anunciado. Por outro lado, a previsão de direitos sociais não retira do mínimo existencial sua
condição de direito-garantia fundamental autônomo e muito menos afasta a necessidade de se
interpretar os demais direitos sociais à luz do próprio mínimo existencial, notadamente para
alguns efeitos específicos, o que agora não será objeto de atenção mais detida.
Neste contexto, há que enfatizar que o mínimo existencial compreendido como
todo o conjunto de prestações materiais indispensáveis para assegurar a cada pessoa uma vida
condigna (portanto, saudável) tem sido identificado por alguns como o núcleo essencial
dos direitos fundamentais sociais, núcleo este blindado contra toda e qualquer intervenção por
parte do Estado e da sociedade.31
Considerando a relevância deste ponto, inclusive no concernente ao trato da assim
ersada como eficácia dos direitos
fundamentais nas relações privadas) dos direitos fundamentais, mas especialmente no tocante
à relação entre o mínimo existencial e os direitos fundamentais de um modo geral, é preciso
recordar que não se endossa a tese de acordo com a qual o conteúdo em dignidade da pessoa
humana equivale necessariamente ao núcleo essencial dos direitos fundamentais. 32 Com
efeito, consoante já demonstrado em outra ocasião, não é certo que todos os direitos
fundamentais tenham um fundamento direto na dignidade da pessoa humana e, portanto, um
conteúdo certo em dignidade.33
O mesmo aplica-se aos próprios direitos fundamentais sociais (que como
demonstrado logo atrás não se reduzem à dimensão prestacional, assim como não se limitam
ao mínimo existencial), ainda mais em se considerando as peculiaridades e a extensão do
elenco dos direitos positivados na Constituição de 1988. Assim, verifica-se que, mesmo não
tendo um conteúdo que possa ser diretamente reconduzido à dignidade da pessoa humana ou,
de modo geral, a um mínimo existencial, os direitos fundamentais em geral e os direitos
sociais nem por isso deixam de ter um núcleo essencial. Que este núcleo essencial, em muitos
casos, até pode ser identificado com o conteúdo em dignidade destes direitos e que,
especialmente em se tratando de direitos sociais de cunho prestacional (positivo), este

31
Cf., por exemplo, seguindo esta linha argumentativa, MARTINS, Patrícia do Couto V. A. A proibição do
retrocesso social como fenômeno jurídico In: GARCIA, Emerson (Coord.). A efetividade dos direitos sociais.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 412 e ss., referindo-se, todavia, à noção de necessidades básicas como
núcleo essencial dos direitos sociais (noção esta similar a de um mínimo existencial), núcleo este blindado
contra medidas de cunho retrocessivo.
32
Cf. demonstrado por SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana [...], op. cit., p. 118 e ss.
33
V. neste sentido, SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana, [...], op. cit., p. 77 e ss.
conteúdo essencial possa ser compreendido como constituindo justamente a garantia do
mínimo existencial, resulta evidente. Por outro lado, tal constatação não afasta a circunstância
de que, quando for o caso, este próprio conteúdo existencial (núcleo essencial = mínimo
existencial) não é o mesmo em cada direito social (educação, moradia, assistência social,
etc.), não dispensando, portanto, a necessária contextualização em cada oportunidade que se
pretender extrair alguma consequência jurídica concreta em termos de proteção negativa ou
positiva dos direitos sociais e do seu conteúdo essencial, seja ele, ou não, diretamente
vinculado a alguma exigência concreta da dignidade da pessoa humana.
Outro aspecto que merece destaque diz respeito ao fato de que, tendo a própria
garantia do mínimo existencial sido (como cláusula geral) implicitamente consagrada pela
ordem constitucional brasileira, em diversas situações tal garantia acabou inclusive antes
mesmo da edição da vigente Constituição sendo concretizada, em algumas das suas
dimensões, pelo legislador infraconstitucional, o que ocorre, por exemplo, com a obrigação
alimentar. Tal exemplo revela, por um lado, que a garantia do mínimo existencial já estava
presente no constitucionalismo pretérito, até mesmo pelo fato de dizer respeito a necessidades
básicas da pessoa humana que, independentemente de uma previsão formal e expressa num
texto constitucional, conectam-se (ou assim o deveriam) com a compreensão do conteúdo
material do direito constitucional e dos direitos fundamentais, até mesmo pelo fato de estar
em causa a vida e a dignidade da pessoa humana.
De todo o exposto, há como extrair, ainda, outra constatação de relevo também
para os desenvolvimentos subsequentes, qual seja, a impossibilidade de se estabelecer, de
forma apriorística e, acima de tudo, de modo taxativo, um elenco dos elementos nucleares do
mínimo existencial, no sentido de um rol fechado de posições subjetivas (direitos subjetivos),
negativos e positivos correspondentes ao mínimo existencial,34 o que evidentemente não
afasta a possibilidade de se inventariar todo um conjunto de conquistas já sedimentadas e que,
em princípio e sem excluir outras possibilidades, servem como uma espécie de roteiro a guiar
o intérprete e, de modo geral, os órgãos vinculados à concretização dessa garantia do mínimo
existencial.35

34
Ao mínimo existencial aplica-se, portanto para deixar suficientemente enfatizado este ponto a noção de
uma dupla função prestacional (positiva) e defensiva (negativa), de modo geral inerente aos direitos
fundamentais em geral e aos direitos sociais em particular.
35
É precisamente neste sentido que compreendemos a proposta de BARCELLOS, Ana Paula, op. cit., p. 247 e
ss., ao incluir no mínimo existencial a garantia da educação fundamental, da saúde básica, da assistência aos
desamparados e do acesso à justiça, pena de fecharmos de modo constitucionalmente ilegítimo (ou, pelo
menos, problemático) o acesso à satisfação de necessidades essenciais, mas que não estejam propriamente
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

À vista do exposto e buscando identificar algumas conexões entre os diversos


segmentos da presente contribuição, notadamente para o efeito de enfatizar o vínculo entre
democracia, mínimo existencial e justiça constitucional, resulta evidente que o
__
reconhecimento de um direito (garantia) ao mínimo existencial seja numa perspectiva mais
restrita (mais próxima ou equivalente a um mínimo vital ou mínimo fisiológico), seja na
dimensão mais ampla, de um mínimo existencial que também cobre a inserção social e a
participação na vida política e cultural (precisamente o entendimento aqui adotado e que
corresponde à concepção consagrada na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da
__
Alemanha e ao que tudo indica na doutrina e jurisprudência brasileira) constitui ao mesmo
tempo condição para a democracia e limite desta mesma democracia. Ao operar,
especialmente no âmbito de atuação da assim chamada jurisdição constitucional, como limite
ao legislador, implicando inclusive a possibilidade de declaração da inconstitucionalidade
material de ato legislativo (como, de resto, de qualquer ato do poder público), a garantia do
mínimo existencial se integra, no contexto do Estado Constitucional, ao conjunto do que já se
designou (Dworkin) trunfos contra a maioria. Por outro lado, também no que diz respeito ao
mínimo existencial, é perceptível que procedimentalismo e substantivismo não são
necessariamente inconciliáveis,36 muito antes pelo contrário, podem operar de modo a se
reforçarem reciprocamente, assegurando assim uma espécie de concordância prática (Hesse)
entre as exigências do princípio democrático e a garantia e promoção dos direitos
fundamentais sociais, especialmente quando em causa as condições materiais mínimas para
uma vida condigna.
Um exemplo digno de atenção, extraído da experiência dinâmica da jurisdição

vinculadas (pelo menos, não de forma direta) às demandas colacionadas pela autora.
36
Na literatura nacional, explorando as diversas facetas da problemática, inclusive da legitimidade da jurisdição
constitucional, v. além da obra do ora coautor Giovani Saavedra, já referida, os excelentes estudos de
SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte:
Del Rey, 2002; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del
Rey, 2004 (do mesmo autor, v., ainda Hermenêutica Jurídica e(m) Debate. O Constitucionalismo Brasileiro
entre a Teoria do Discurso e a Ontologia Existencial. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007), STRECK,
Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006 (do mesmo autor
v. Verdade e Consenso, 3. ed.. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009), assim como a coletânea organizada por
CATTONI, Marcelo (coord.). Jurisdição e Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte: mandamento,
2004, com destaque para as contribuições do próprio Marcelo Cattoni e de Menelick de Carvalho Neto. Mais
recentemente, merecem destaque, entre outros, MENDES, Conrado Hübner. Controle de Constitucionalidade
e Democracia, Rio de Janeiro: Elsevier Editora, 2008, bem como a coletânea coordenada por TAVARES,
André Ramos. Justiça constitucional e democracia na América Latina. Belo Horizonte: Fórum, 2008, já numa
perspectiva diversa da dos estudos anteriores, visto que focada na descrição e discussão de algumas
experiências nacionais representativas do ambiente latino-americano.
constitucional, é o da já referida e recente decisão do Tribunal Constitucional Federal da
Alemanha (9.2.2010), onde, a despeito de retomada a noção de que toda e qualquer pessoa é
titular de um direito (subjetivo) às condições materiais mínimas para que possa fruir de uma
vida com dignidade, merece ser sublinhada a manifestação do Tribunal no sentido de que ao
legislador é deferida uma margem considerável de ação na definição da natureza das
prestações estatais que servem ao mínimo existencial, mas também dos critérios para tal
definição. Por outro lado, tal liberdade de conformação encontra seus limites precisamente na
própria garantia do mínimo existencial, de tal sorte que nesta mesma decisão o Tribunal
Constitucional veio a declarar a inconstitucionalidade parcial da legislação submetida ao seu
crivo. Entre as diretrizes estabelecidas pelo Tribunal decisiva para a declaração da
ilegitimidade constitucional da legislação está a de que, para a definição do conteúdo das
prestações exigíveis por parte do cidadão, o legislador está obrigado a avaliar de modo
responsável e transparente, mediante um procedimento controlável e baseado em dados
confiáveis e critérios de cálculo claros, a extensão concreta das prestações vinculadas ao
mínimo existencial.
A deferência para com o legislador (e, portanto, para com o órgão legitimado pela
via da representação popular), todavia, não acaba por aí. Com efeito, reiterando decisões
anteriores, o Tribunal mediante exercício do assim chamado judicial self restraint,37
acabou não pronunciando a nulidade dos dispositivos legais tidos por ofensivos ao mínimo
existencial constitucionalmente garantido e exigido, mas assinou prazo ao legislador para que
ele próprio, no âmbito do processo político e democrático, venha a providenciar os ajustes
necessários, corrigindo sua própria obra e adequando-a aos parâmetros constitucionais. É
claro que também a tradição alemã, ainda que sejam poucos os casos concretos em que se
utilizou do expediente do apelo ao legislador, igualmente demonstra a seriedade com a qual a
decisão do Tribunal Constitucional é recebida pelos órgãos legislativos (sem prejuízo de
fortes críticas), de tal sorte que em todos os casos o legislador embora lançando mão da sua
liberdade de conformação correspondeu aos apelos e revisou suas opções anteriores, ou
mesmo, nos casos de omissão, editou a regulamentação exigida pelo Tribunal Constitucional.
Aliás, também aqui a trajetória inicial (acima descrita, inclusive com menção às decisões
judiciais superiores) do reconhecimento da garantia do mínimo existencial já se manifestara
fecunda, visto que foi precisamente a falta de previsão legislativa de uma prestação estatal
destinada a assegurar uma vida condigna a quem não dispõe de recursos próprios que motivou

37
Sobre o tema, v., entre nós, especialmente MELLO, Cláudio Ari. Democracia constitucional e direitos
fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
fosse acessada a jurisdição constitucional, designadamente para impulsionar o legislador a
inserir tais prestações na codificação social alemã.
O quanto tal caminho se revela produtivo para o caso brasileiro, seja no que diz
respeito à definição do mínimo existencial (abarcando a definição de seu conteúdo e das
respectivas consequências jurídicas), seja quanto ao modo de articular as relações entre
legislação, democracia e jurisdição constitucional, ainda está longe de ser satisfatoriamente
equacionado, de modo que fica a esperança de que com a presente contribuição se tenha
logrado agregar pelo menos mais algum elemento à fecunda discussão travada na esfera
doutrinária e jurisprudencial.

HUMAN DIGNITY (FROM PERSON), EXISTENTIAL MINIMUM ENA


CONSTITUTIONAL JUSTICE: SOME APPROACHES AND SOME CHALLENGES

ABSTRACT

This paper discusses the concept of a minimum of existance for a worthy life and its relations
with other fundamental rights in the Brazilian constitutional system, focusing in the role of
the constitutional jurisdiction.

Keywords: Existence minimum. Worthy life. Constitutional jurisdiction.

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