Os Adivinhos Libba Bray
Os Adivinhos Libba Bray
Os Adivinhos Libba Bray
As luzes estão todas acesas numa casa de uma rua elegante do Upper East
Side de Manhattan. Está a decorrer uma festa – a última do verão. No
terraço sobranceiro à incandescente linha do horizonte, a orquestra faz um
intervalo há muito ansiado. São dez e meia. A festa dura desde as oito horas
e os convidados sentem-se já aborrecidos. Debutantes envergando elegantes
vestidos de chiffon em tons pastel murchavam nas cadeiras de couro como
petits fours sob o sol de julho. Um atrevido estudante da Universidade de
Princeton quer que os amigos o acompanhem a Greenwich Village a um
speakeasy1 de que ouviu falar a um amigo de um amigo.
A anfitriã, uma jovem bonita e mimada, repara na inquietação dos
convidados com uma sensação de pânico. É o seu décimo oitavo aniversário
e se não fizer alguma coisa para erguer a festa dos mortos, nos próximos
dias toda a gente dirá que esta foi mais aborrecida que uma reunião
paroquial.
Erguer dos mortos.
No fim de semana anterior fora obrigada a ir com a mãe ao Norte à
procura de antiguidades – uma coisa terrivelmente enfadonha, até terem
encontrado um velho tabuleiro de Ouija. As tábuas de Ouija são o último
grito da moda. Os videntes afirmam receber mensagens e avisos do além
usando a «tábua falante» do Dr. Fuld. O antiquário convencera a mãe de
que recebera o tabuleiro em circunstâncias misteriosas.
– Dizem que ainda está assombrado por espíritos inquietos. Mas talvez a
senhora e a sua irmã consigam acalmá-los – dissera com exagerada lisonja;
naturalmente que resultara com a mãe, que pagara afinal um preço
excessivo pela coisa. Pois bem, pagaria agora pelo erro que cometera.
A anfitriã corre para o roupeiro do corredor e faz sinal à criada.
– Faz-me um favor e vai buscar aquilo.
A criada entrega-lhe a tábua abanando a cabeça.
– A menina não devia brincar com esse tabuleiro.
– Não sejas parva. És uma antiquada.
Com uma volta rápida própria de Clara Bow2, a anfitriã irrompe pela sala
com o tabuleiro de Ouija.
– Quem quer comunicar com os espíritos? – pergunta com uma
gargalhadinha, para mostrar que não levava o assunto a sério. Afinal era,
sem dúvida alguma, uma menina moderna dos anos vinte.
As jovens murchas saltam dos cadeirões.
– Mas o que tens aí? Um tabuleiro de Ouija? – pergunta uma delas.
– É verdade, querida! A minha mãe comprou-o para mim. Parece que está
assombrado – declara a anfitriã a rir. – Mas claro que não acredito. –
Coloca o indicador em forma de coração no meio do tabuleiro. – Vamos
então conjurar qualquer coisa para nos divertirmos.
Todos a rodeiam. George coloca-se ao lado dela. Estuda em Yale. Está no
terceiro ano. E ela passou já muitas noites acordada no quarto a imaginar o
futuro com ele.
– Quem quer começar? – pergunta encostando os dedos aos dele.
– Eu – anuncia um rapaz com um fez ridículo. Não se lembra de como ele
se chama, mas ouviu dizer que tem o hábito de convidar raparigas para a
marmelada no seu descapotável. Fecha os olhos e pousa os dedos no vidro
do indicador. – Uma pergunta eterna: a menina do meu lado direito estará
loucamente apaixonada por mim?
As raparigas soltam gritinhos histéricos e os rapazes riem enquanto o
indicador indica lentamente as letras S-I-M.
– Mentira! – exclama zangada a menina em questão, olhando o indicador
em forma de coração com a sua lente de vidro.
– Não desminta, minha querida, eu seria seu sem pedir nada em troca –
declara o rapaz.
Cresce o entusiasmo; as perguntas tornam-se mais ousadas.
Embriagaram-se com gim, com o divertimento e com a tola distração de
adivinhar o futuro. Every mornin’, every evenin’, ain’t we got fun?3
– Olhem, vamos chamar um espírito verdadeiro – desafia George.
Um nó de emoção e desassossego aperta o estômago da anfitriã. O
antiquário acautelara-a para não o fazer. Avisara-a de que os espíritos
chamados deveriam ser devolvidos ao seu descanso cortando a ligação,
dizendo-lhes adeus. Mas tentava ganhar dinheiro e além do mais, está-se em
1926 – quem acredita em assombrações e duendes quando há automóveis,
aviões, o Cotton Club e homens como Jake Marlowe a fazer avançar a
América através da indústria?
– Não me digas que estás com medo! – George ri, trocista. Tem uma boca
cruel, o que o faz ainda mais desejável.
– Medo de quê?
– De que o gim se acabe! – brinca o rapaz do fez e toda a gente ri.
George murmura-lhe ao ouvido «Eu olho por ti», com a mão nas costas
dela.
Oh, com certeza, esta é a noite mais fantástica!
– Conjuramos agora o espírito deste tabuleiro para que nos escute e fale
do nosso futuro! – exclama a anfitriã com grande entoação, entrecortada por
risadas. – Tens de obedecer, espírito!
Há uma pausa e logo a seguir o indicador começa uma lenta migração
pelas letras góticas do alfabeto, formando uma palavra.
O-L-Á
– É o espírito – afirma alguém em tom de troça.
– Como te chamas, ó grande espírito? – insiste a anfitriã.
O indicador movimenta-se rapidamente.
J-O-H-N-P-E-R-V-E-R-S-O
George ergue uma sobrancelha com ar atrevido.
– Pois olhem que estou a gostar. Porque és perverso, rapaz?
V-Ã-O-V-E-R
– Ver o quê? Que vais fazer, ó perverso?
Nada.
– Quero ir dançar! Vamos para o Moonglow – pede em voz arrastada uma
jovem embriagada, já a fazer beicinho. – Afinal, quando volta a banda?
– Daqui a pouco, não te preocupes – diz a anfitriã com um sorriso e uma
gargalhada, porém, com alguma cautela. – Vamos tentar outra pergunta.
Tens alguma profecia para nós, John Perverso? Alguma previsão para o
futuro? – Olha de soslaio para George.
O indicador mantém-se imóvel.
– Diz-nos qualquer coisa, vá lá.
Por fim, há movimento no tabuleiro.
– Eu… ensino-vos… medo – lê a anfitriã em voz alta.
– Parece o diretor de Choate – troça o rapaz do fez. – Como vais fazer
isso, amigo?
E-S-T-O-U-À-P-O-R-T-A-E-B-A-T-O
S-O-U-A-B-E-S-T-A
O-D-R-A-G-O-N-O
– O que quer isso dizer? – pergunta a jovem embriagada, recuando
ligeiramente.
– Não quer dizer nada. São tolices – diz a anfitriã repreendendo a
convidada, mas sentindo algum receio. Volta-se para o rapaz que tem a
reputação de arranjar sarilhos. – Estás a fazer com que diga isto!
– Não. Juro! – afirma, fazendo uma cruz sobre o coração com o indicador.
– Porque estás aqui, amigo? – pergunta George ao tabuleiro.
O indicador movimenta-se tão depressa que mal o podem acompanhar.
G-U-A-R-D-O-A-S-C-H-A-V-E-S-D-O-I-N-F-E-R-N-O-E-D-A-M-O-R-
T-E
C-H-E-G-O-U-A-I-R-A-A-R-M-A-G-E-D-Ã-O-P-R-O-S-T-I-T-U-T-A-D-
A-B-A-B-I-L-Ó-N-I-A
– Para imediatamente! – grita a anfitriã.
P-R-O-S-T-I-T-U-T-A-P-R-O-S-T-I-T-U-T-A-P-R-O-S-T-I-T-U-T-A
repete o indicador. Os jovens inteligentes retiram os dedos, mas o indicador
continua a mover-se.
– Faz com que pare, faz com que pare! – guincha uma rapariga e até os
rapazes enfadados empalidecem e se afastam.
– Para espírito! Para, já te disse! – grita a anfitriã.
O indicador imobiliza-se. Os convidados da festa olham uns para os
outros com olhos assustados. Na outra sala, os membros da banda pegam de
novo nos instrumentos e atacam uma dança animada.
– Oh, aleluia! Venha meu querido, vou ensiná-lo a dançar o black bottom.
– A rapariga embriagada põe-se de pé com alguma dificuldade e leva o
rapaz de fez atrás de si.
– Esperem! Temos de escrever «adeus» no tabuleiro. É esse o ritual! –
implora a anfitriã, mas os convidados começam a debandar.
George passa-lhe o braço em redor da cintura.
– Não me digas que tens medo do John Perverso.
– Bom, eu…
– Sabes perfeitamente que foi ali o nosso amigo – diz acariciando-lhe
suavemente a orelha com o hálito. – Tem os seus truques. Sabes como são
as pessoas como ele.
Ela sabe como são as pessoas como ele. Foi provavelmente esse rapaz
horroroso que quis troçar deles. Mas dela ninguém faz troça. Já tem dezoito
anos. A vida será um turbilhão infinito de festas e bailes. Night or daytime,
it’s all playtime. Ain’t we got fun? Sentiu acalmarem-se os seus primeiros
receios. A festa parecia animar-se e continuar noite dentro. As carpetes
foram enroladas e os convidados dançavam entusiasmados. As longas
fiadas de pérolas batiam de encontro aos vestidos de cintura descaída. As
polainas atacam desafiadoras o chão de madeira. Os braços agitavam-se no
ar – tudo isto como se uma febril pintura dadaísta tivesse acordado para a
vida.
A anfitriã esconde o tabuleiro no armário, onde em breve será esquecido e
corre para a sala com as suas brilhantes lâmpadas elétricas – a moderna
maravilha do Sr. Edison – e junta-se descuidada à última festa do verão.
Lá fora, o vento detém-se por momentos nessas janelas iluminadas;
depois, com uma rajada enérgica, parte a toda a pressa pelos passeios.
Entrelaça-se brevemente nas cloches4 de duas jovens que tagarelam acerca
da trágica morte de Rodolfo Valentino enquanto passeiam um caniche junto
ao rio East. Avança pelos desfiladeiros ensopados em néon, pelo comboio
aéreo, passando ruidosamente pela Segunda Avenida, abanando as janelas
das pobres almas que tentam dormir antes que chegue a manhã – a manhã
com as buzinas dos táxis, os tróleis e os comboios; os engraxadores polindo
os sapatos de atacadores dos empresários de Union Square; os ardinas
apregoando os títulos em Times Square; as telefonistas lançando olhares
cobiçosos aos novos casacos de gola tipo xaile que as tentavam das
montras, os majestosos arranha-céus erguendo-se acima de tudo como
deuses de aço, tijolo e vidro.
O vento passeia-se brevemente diante de um clube de jazz, escutando este
novo estilo musical que exalta a noite. Vibra com o som dos metais, a
percussão enérgica dos acordes do piano, nascidos dos blues e do ragtime,
os ritmos sincopados que refletem a emoção recortada do horizonte da
cidade.
Em Bowery, na carcaça ornamentada de um teatro de vaudeville, tem
lugar uma sonolenta maratona de dança. Os concorrentes, raparigas novas e
respetivos acompanhantes, apoiam-se uns nos outros, decididos a que
reparem neles para poderem chegar aos sonhos que lhes foram vendidos
pelos anúncios dos jornais e da rádio. Têm bolhas nos pés, mas estrelas nos
olhos. Já na parte alta da cidade, o Great White Way, assim chamado pela
ofuscante incandescência das luzes dos teatros, esvazia-se de clientes.
Alguns habitués das portas dos artistas esperam nos becos, na esperança de
avistarem as glamorosas coristas ou de terem a sorte de conseguir o
autógrafo de uma das muitas estrelas da Broadway. Estamos em época de
celebridades, de fama, de fortuna e ganância e os jovens ardem em
ambições secretas.
O vento de tudo se apercebe com indiferença. É apenas o vento. Não se
transformará numa estrela da rádio ou num capitão de indústria. Não se
apresentará como candidato a um cargo público nem se apaixonará por
Douglas Fairbanks, também não cantará as canções de Tin Pan Alley,
canções de saudade e arrependimento, a recordar os bons tempos (ain’t we
got fun?). E assim segue viagem, passando pelos matadouros da Rua 14,
pelas infelizes que se vendem nas ruelas escuras. Ali perto, a Estátua da
Liberdade ergue a sua tocha sobre o porto, um farol para todos os que
chegam a estas costas fugidos de perseguições, fome ou desespero.
O vento rodopia pelos edifícios da Rua Orchard, onde morrem tantos
sonhos de gente com estrelas nos olhos e onde nascem outros sonhos dentro
da miséria e da pobreza numa subida monte acima. Açoita a roupa
estendida nas cordas entre os prédios, passa sobre ruas sujas e esburacadas
onde, a esta mesma hora, crianças famintas procuram comida nos caixotes
do lixo. O vento existe para sempre. Já viu muito neste país de sonhos e
anúncios de sabão, antigos horrores e sangue derramado. Fez de testemunha
muda às suas bruxas queimadas nas fogueiras e percorreu o Caminho das
Lágrimas5; viu os navios de escravos despejarem nos portos a sua carga
humana, assustada e pestanejando, tendo por únicas posses um desgosto
que nunca a abandonaria. O vento estava presente quando o presidente
Lincoln caiu sob a bala de um assassino. Cheirava a pólvora e a Antietam6.
Correu com os búfalos e experimentou poisar os dedos nos chapéus negros
dos puritanos. Transportou gritos de amor e transformou em trilhos de sal as
lágrimas que corriam em incontáveis rostos.
O vento saltita pela Bowery e investe pelo West Side, domicílio dos
gangues irlandeses como os Dummy Boys, que andam a cavalo pela Nona
Avenida avisando os contrabandistas de bebidas alcoólicas. Rodopia ao
longo do poderoso rio Hudson, passa pela vibrante vida noturna do Harlem
com os seus grandes pensadores, escritores e músicos, para ir descansar
junto às ruínas de uma velha mansão. Tábuas bolorentas cobrem as janelas
partidas. O lixo entope a sarjeta da frente. Antigamente a casa era a
residência de um mal indescritível. Agora é uma relíquia de uma época
passada, esquecida na sombra da prosperidade e crescimento da cidade.
A porta range nos gonzos. O vento entra cauteloso. Rasteja por estreitos
corredores em voltas estonteantes. Quartos defuntos, podres de incúria,
ramificam-se à esquerda e à direita. As portas abrem-se em paredes de
tijolo. Um alçapão dá para uma rampa que termina numa vasta câmara de
horrores subterrânea e num quarto ainda mais assustador. Ainda fede: a
sangue, a urina, a mal e a um medo tão negro que se tornou parte da casa,
tal como a madeira, os pregos e a decomposição.
Alguma coisa se agita nas sombras profundas, uma coisa terrível, e o
vento que conhece o mal recua e abandona este lugar. Foge para a
segurança dos magníficos prédios altos que prometem os céus azuis,
nothing but blue skies, do futuro, da indústria e da prosperidade; o futuro
que não acredita no mal do passado. Se o vento fosse uma sentinela, daria o
alarme. Soltaria um grito de aviso para os terrores futuros. Mas é apenas o
vento, ciente de que ninguém ouve os seus gritos.
Nas profundezas da cave da casa em ruínas, uma fornalha acorda para a
vida com o estertor da morte semelhante à tosse amarga de um moribundo,
que ri desdenhoso do seu destino. Um leve brilho emana desse túmulo de
terra, escuro e fétido. Sim, algo se mexe de novo nas sombras. O prenúncio
de um mal futuro, muito maior. John Perverso chegou a casa. E tem
trabalho a fazer.
1 Local de venda e consumo ilegal de bebidas alcoólicas durante a Lei Seca dos Estados Unidos da
América. (N. da T.)
2 Atriz do cinema mudo e dos princípios do cinema sonoro (1905-1965). (N. da T.)
3 Letra de um foxtrot dos anos 1920. (N. da T.)
4 Chapéu feminino, geralmente de feltro, de copa hemisférica e aba muito estreita, usado nos anos
1920. (N. da T.)
5 Nome dado pelos índios às migrações forçadas, impostas pelo governo dos EUA às diversas
tribos que seriam reunidas no chamado «Território Indígena» (atual estado de Oklahoma). (N. da
T.)
***
9 «Encontrei-me com um homem numa estrada escura, tinha um sinal na mão. Disse que se
aproximava uma tempestade e que muita chuva cairia na terra.» (N. da T.)
O MUSEU DOS ARREPIOS
***
– Nem acredito que estás aqui – disse Mabel. Ela e Evie estavam sentadas
na delapidada sala de jantar do Bennington comendo sanduíches e bebendo
Coca-Cola.
– Que fizeste para te terem posto a andar do Ohio a toda a velocidade?
Evie brincou com o gelo no copo.
– Lembras-te daquele truque de que te falei há uns meses? Bem... – Evie
contou a Mabel a história do anel de Harold Brodie. – E foi terrível porque
eu tinha razão e ele acabou por parecer a parte ofendida da história, o
grande hipócrita!
– Safa! – disse Mabel.
Evie observou cuidadosamente o rosto de Mabel.
– Acreditas em mim, não acreditas, Mabesie?
– Claro que sim.
– Não pensas que eu sou uma aldrabona, pois não?
– Nunca! – Mabel fez girar o gelo no copo enquanto pensava. – Mas
gostaria de saber porque começaste de repente a ser capaz de fazer essas
coisas. Não caíste e bateste com a cabeça, pois não?
Evie ergueu uma sobrancelha.
– Muito obrigada!
– Não é nada disso! Pensei que pudesse haver uma razão médica. Uma
razão científica – disse Mabel apressadamente. – Já falaste nisso ao teu tio?
Evie abanou enfaticamente a cabeça.
– Não vou abanar o barco. Até agora, está tudo fantástico com o meu tio e
é assim que quero que fique.
Mabel mordeu o lábio.
– Já estiveste com o Jericho?
– Sim, já – disse Evie terminando a Coca-Cola.
– E o que achas? – perguntou Mabel, insistindo.
– Muito... sólido.
Mabel soltou um gritinho.
– Não é lindo?
Evie pensou no Jericho que conhecera – calado, sério, sóbrio. Não havia
nele o que quer que fosse de remotamente sedutor.
– Para ti é, e é isso que importa. E o que fizeste já acerca dessa situação?
– Bem... na sexta-feira passada, quando estávamos perto das caixas do
correio?
– Sim? – Evie agitou sugestivamente as sobrancelhas.
– Fiquei muito perto dele…
– Hã, hã.
– E disse-lhe assim: «Está um dia bonito, não acha?»
– E…?
– E mais nada. Bem, ele disse que sim. Por isso concordámos ambos
acerca do tempo.
Evie deixou-se cair de encontro ao assento.
– Credo! É como uma festa sem papelinhos. Precisamos de um plano,
menina. Um assalto romântico de proporções épicas. Vamos abanar as
muralhas de Jericho! Esse rapaz nem vai saber o que lhe aconteceu.
Mabel animou-se.
– Estupendo! Qual é o plano?
Evie encolheu os ombros.
– Não faço ideia. Só sei que precisamos de um.
– Oh!
– Oh, Mabesie, minha querida, não te preocupes. Vou ter uma ideia
qualquer. Entretanto, vamos às compras, vamos ver a Theta No Foolin no
Follies... e aposto que ela conhece todos os lugares... vamos dançar o
charleston até cair. Vamos viver, menina! Tenciono fazer destes os meses
mais emocionantes das nossas vidas. Se jogar bem as minhas cartas, vou cá
ficar. – Evie dançava no assento. – Onde estão os teus pais esta noite?
Mabel corou.
– Oh, há uma manifestação para o recurso de Sacco e Vanzetti na Baixa.
Os meus pais vão representar o Proletariat – disse, recordando a Evie o
nome do jornal socialista que os pais de Mabel geriam e distribuíam. – Vou
lá estar, mas não vou poder acompanhar-te na tua primeira noite na cidade!
– Bem, suponho que os verei amanhã.
O rosto de Mabel ensombrou-se. Abanou a cabeça.
– A minha mãe vai falar no sindicato das costureiras e o meu pai tem de
ficar no jornal. Fazem tanto por tantos.
As cartas de Mabel estavam cheias de histórias acerca dos esforços dos
pais na cidade. Era evidente que tinha muito orgulho neles, mas também
que as suas causas os deixavam com pouco tempo e energia para a filha.
Evie deu uma palmadinha na mão de Mabel.
– Não faz mal. Os pais estorvam. A minha mãe está impossível desde que
apanhou aquela doença.
Mabel pareceu perturbada.
– Oh, o que é que ela tem?
Um sorriso lento surgiu nos lábios de Evie.
– Temperança. Extrema.
O riso de ambas foi interrompido pela aparição de duas senhoras de
idade.
– Não é assim que as jovens se devem comportar na esfera social, menina
Rose. Esta cena é perfeitamente despropositada.
– Sim, menina Proctor – disse Mabel, envergonhada. Evie fez uma careta
que só Mabel pôde ver e teve de morder o lábio para não soltar uma nova
gargalhada. – Menina Lillian, menina Adelaide, dão licença que vos
apresente a menina Evie O’Neill. A menina O’Neill veio ficar uns tempos
com o tio, o senhor Fitzgerald. – Mabel pisou Evie debaixo da mesa, para a
avisar.
A menina Lillian sorriu.
– Oh, que encanto. Que carinha tão delicada, não achas Addie?
– Muito, muito delicada.
As meninas Proctor usavam o longo cabelo grisalho encaracolado como
meninas de escola do final do século XIX. O efeito era estranho e
desconcertante. Pareciam duas bonecas de porcelana envelhecidas e
enrugadas.
– Bem-vinda ao Bennington. É um edifício antigo e imponente. Noutros
tempos foi considerado um dos melhores locais para se viver nesta cidade –
prosseguiu a menina Lillian.
– É estupendo. Humm, adorável. Um local adorável.
– Sim. Por vezes podem ouvir-se sons estranhos durante a noite. Mas não
se assustem. A cidade tem os seus fantasmas, sabem.
– Os melhores sítios têm-nos – disse Evie com seriedade trocista.
Mabel quase se engasgou com a Coca-Cola, mas a menina Lillian não
reparou.
– No final século dezoito este terreno albergou pessoas que sofriam de
febre-amarela. Esses pobres infelizes que gemiam nas suas tendas, cheios
de icterícia, sangrando e com vómitos negros como a noite!
Evie afastou a sanduíche.
– Horrivelmente fascinante. Estava a dizer à Mabel, à menina Rose, que
não falamos o suficiente acerca de vómitos negros. – Debaixo da mesa, o pé
de Mabel ameaçava empurrar Evie pelo chão abaixo.
– Depois do tempo da febre-amarela, enterraram aqui os indigentes e os
loucos – prosseguiu a menina Lillian, como se nada tivesse ouvido. –
Foram exumados antes da construção do Bennington, claro, ou pelo menos
foi o que disseram. Embora eu não esteja a ver como foi possível terem
encontrado todos os cadáveres.
– Os cadáveres são um grande problema – disse Evie com um pequeno
suspiro e Mabel teve de voltar a cabeça para não desatar a rir.
– É verdade – disse a menina Lillian com um pequeno ruído de
aborrecimento. – Quando o Bennington foi construído, em mil oitocentos e
setenta e dois, diz-se que o arquiteto que descendia de uma longa linhagem
de bruxas, criou o edifício segundo antigos princípios do ocultismo, para
que pudesse ser sempre uma espécie de íman para os seres do outro mundo.
Por isso, como lhe disse, não se preocupe com os sons ou suspiros estranhos
que possa ouvir. É apenas o Bennington, minha querida.
A menina Lillian esboçou um sorriso. Um borrão de batom vermelho
marcava-lhe os dentes como uma mancha de sangue. A seu lado, a menina
Addie sorria ao longe e acenava como se cumprimentasse hóspedes
invisíveis.
– Por favor, deem-nos licença, mas temos de nos retirar – disse a menina
Lillian. – Estamos à espera de visitas e temos de nos preparar. Dá-nos a
honra de nos visitar uma noite destas, não é verdade?
– Claro que sim – respondeu Evie.
A menina Addie voltou-se subitamente para Evie, como se a estivesse a
ver pela primeira vez. Tinha uma expressão estranha.
– A menina é um deles, não é verdade, minha querida?
– A menina O’Neill é sobrinha do senhor Fitzgerald – comentou Mabel.
– Não. É um deles – disse a menina Addie num murmúrio urgente que
causou um arrepio na espinha de Evie.
– Pronto, pronto, Addie, deixa estas meninas jantarem descansadas.
Temos muito que fazer. Adeus!
As irmãs Proctor mal tinham saído da sala de jantar quando Mabel teve
um ataque de riso.
– «Depois da febre-amarela, foram os indigentes» – imitou ainda a rir.
– O que pensas que ela quis dizer quando me perguntou «A menina é um
deles»? Diz o mesmo a todas as pessoas que conhece? – perguntou Evie,
esperando não parecer tão inquieta como se sentia.
Mabel encolheu os ombros.
– Por vezes, a menina Addie percorre os andares em camisa de dormir. O
meu pai já teve de a levar algumas vezes de volta para o apartamento. –
Mabel bateu com o indicador na testa. – Não regula. Provavelmente quis
dizer que és uma dessas meninas modernas e que não está de acordo com o
estilo – disse a brincar, agitando o dedo como uma professora antiga. – Oh,
vai mesmo ser o melhor tempo da nossa vida, não achas? – perguntou com
tal entusiasmo que Evie afastou da ideia o perturbador comentário da
menina Addie.
– Po-si-ti-va-men-te! – disse Evie erguendo o copo. – Ao Bennington e
aos seus fantasmas!
– A nós! – acrescentou Mabel e fizeram um brinde ao futuro.
Evie e Mabel passaram a tarde pondo a conversa em dia e, quando Evie
voltou ao apartamento do tio Will eram quase sete horas e este e Jericho já
tinham regressado. O apartamento pareceu-lhe maior do que se lembrava e
surpreendentemente delicado para ser a casa de um homem solteiro. Uma
imponente janela semicircular projetada para a magnífica folhagem do
Central Park. Um sofá e duas cadeiras flanqueavam um aparelho de
telefonia. Evie soltou um suspiro de alívio ao ver uma pequena cozinha,
muito limpa, que parecia raramente ter uso. Na casa de banho havia uma
banheira perfeita para se pôr de molho, mas desprovida dos luxos mais
simples. Em breve trataria desse assunto. Mais três quartos e um pequeno
escritório completavam a suíte. Jericho levou-a a um quarto estreito, com
uma cama, uma secretária e um guarda-fato com gavetas. A cama rangia,
mas era confortável.
– Aquilo dá para o telhado – disse Jericho, apontando para uma saída de
emergência junto à janela. – Lá de cima podes ver quase toda a cidade.
– Oh! – conseguiu Evie replicar. – Estupendo.
Tencionava fazer mais do que ver toda a cidade do terraço. Havia de se
envolver nela. A mala já chegara e começou a desfazê-la enchendo as
gavetas vazias com as suas meias pintadas, chapéus, luvas, vestidos e
casacos. Pendurou os longos colares de pérolas nos postes da cama. O único
objeto que não guardou foi o pendente da moeda que James lhe oferecera.
Depois de terminar, Evie sentou-se com Jericho e o tio Will na sala
enquanto eles terminavam o seu jantar de sanduíches trazidas embrulhadas
em papel encerado da charcutaria da esquina.
– Como começaste a trabalhar para o meu tio? – perguntou Evie a Jericho
com uma gravidade dramática. Jericho olhou para o tio Will cuja boca
estava cheia. Nenhum deles respondeu.
– Bem, calculo que seja um vulgar mistério – prosseguiu Evie. – Onde
está Agatha Christie quando precisamos dela? Terei de inventar histórias a
vosso respeito. Vamos ver se o Jericho é um duque que empenhou o seu
ducado, palavra engraçada essa, e o Tito esconde-o de forças hostis do seu
país natal que lhe cortariam a cabeça.
– O teu tio foi meu tutor até eu ter feito dezoito anos este ano. Agora
trabalho para ele como assistente de curador.
Os dois homens continuaram a comer as suas sanduíches, deixando
insatisfeita a curiosidade de Evie.
– Muito bem. Engulo essa. Como foi que o Tito…
– Tens de me chamar isso?
Evie refletiu.
– Sim, acho que tenho. Como é que o Tito se tornou teu tutor?
– O Jericho era um órfão do Children’s Hospital.
– Oh… lamento. Mas como…
– Creio que a pergunta já foi respondida – disse o tio Will. – Se o Jericho
não deseja contar mais, fá-lo-á quando lhe aprouver e quando achar que é
devido.
Evie tinha vontade de responder de maneira brusca, mas como era
hóspede naquela casa, mudou de assunto.
– O museu está sempre assim, vazio?
– Que queres dizer com isso? – perguntou o tio Will.
– Vazio, privado de seres humanos.
– As coisas andam um pouco lentas.
– Lentas? Parece uma morgue! Precisa de corpos lá dentro, ou vai à
falência. Precisa de publicidade.
Will ficou a olhar para Evie com ar estranho.
– Publicidade?
– Sim. O tio já ouviu falar, não ouviu? É uma invenção moderna
estupenda. Dá a conhecer às pessoas as coisas de que precisam. Sabonete,
batom, rádios... ou o seu museu, por exemplo. Podíamos começar com um
slogan atraente como «Museu Americano de Folclore, Superstição e
Ocultismo... temos o espírito»!
– As coisas estão bem como estão – disse o tio Will como se quisesse
encerrar o assunto.
Evie soltou um assobio baixinho.
– Não pelo que vi. É verdade que a cidade está a tentar tirar-lho por causa
de impostos atrasados?
Will semicerrou o solhos por cima dos óculos que lhe escorregavam no
nariz.
– Quem te disse tal coisa?
– O taxista. Também me disse que o tio era objetor de consciência e,
provavelmente, bolchevique. Não que isso me importe. Só que pensei que
podia incentivar o local. Meter lá gente. Arranjar massa.
Jericho olhou primeiro para Will, depois para Evie e de novo para Will.
Aclarou a garganta.
– Importam-se que ligue a telefonia?
– À vontade – disse Will.
A voz do locutor borbulhou através dos fios.
– E agora a orquestra de Paul Whiteman em «Wang Wang Blues».
A orquestra lançou-se num swing e Evie acompanhou a música a
cantarolar.
CIDADE DOS SONHOS
A jovem estava exausta e zangada. Durante setenta e oito horas a fio ela e o
namorado, Jacek, tinham girado na maratona de dança na esperança de
ganhar o prémio, mas, por fim, Jacek adormecera, quase a fazendo cair. O
árbitro tocara-lhes no ombro, assinalando o final do concurso e também dos
seus sonhos.
– Porque terias de adormecer, meu papa mole? – A rapariga deu-lhe um
soco no braço quando saíram do concurso e ele cambaleou, praticamente
incapaz de se manter acordado.
– Eu? Segurei-te quatro vezes e continuaste a pisar-me com esses barcos
que tens nos pés.
– Barcos! – As lágrimas saltavam-lhe dos olhos. Aproximou-se dele e
tropeçou exausta de tanto esforço.
– Vamos lá, Ruta, não sejas assim. Vamos para casa.
– Não vou para lado nenhum contigo. És um incompetente.
– Não queres dizer isso. Vá lá. Senta-te aqui comigo neste degrau.
Podemos apanhar o comboio de manhã.
A exaustão contra a qual lutara durante tanto tempo acabara por ser
demasiado.
– Não vou voltar assim para que todos riam de nós e digam que eu não
sou nada de especial nem nunca hei de ser! – Sufocou um soluço, mas Jacek
não ouviu. Já adormecera na entrada de uma pensão. – Podes ficar aí que
não me importo! – gritou ela.
Os carris do comboio aéreo da Terceira Avenida formavam uma gaiola
sobre a cabeça de Ruta quando esta se dirigiu para sul, na Bowery, à
procura de uma entrada para o comboio onde não houvesse gandulos à
espera, sentados nas escadas vacilantes. A cada passo exausto, sentia o
amargo desapontamento de regressar de mãos vazias a Greenpoint,
Brooklyn, onde a família vivia num apartamento de dois quartos num
prédio a desfazer-se, numa rua onde quase ninguém falava polaco e os
velhos fumavam diante das montras cobertas com enormes fieiras de
salsichas. Ficava do outro lado do mundo em relação às luzes brilhantes de
Manhattan. Olhou para a parte alta da cidade, em direção ao brilho
enevoado da distante Avenida Park, onde viviam os ricos. Só queria a parte
que lhe competia. Nada de estar todos os dias ao PBX de um escritório de
advogados de segunda categoria, mal ganhando para ir ao cinema. Ruta
tinha apenas dezanove anos e o que mais conhecia era o desejo... a vontade
de conhecer a boa-vida que via em seu redor.
Ruta Badowski. Ruta. Odiava o seu nome. Era tão polaco, trazido pelos
pais, mas nascera aqui, em Brooklyn, Nova Iorque, EUA. Gostaria de
alterar para um nome mais americano como Ruthie ou Ruby. Ruby era bom.
Ruby... Bates. Amanhã, Ruta Badowski deixaria o seu emprego no PBX e
Ruby Bates tomaria o autocarro para o teatro do Sr. Ziegfeld para fazer uma
audição para corista. Um dia o seu nome apareceria rodeado de luz e Jacek
e os outros poderiam vê-la dos lugares mais baratos e ir bugiar.
– Boa noite.
Ruta soltou um suspiro abafado; a voz sobressaltou-a. Semicerrou os
olhos na escuridão.
– Quem está aí? É melhor pôr-se a andar. O meu irmão é polícia.
– Sempre tive grande apreço pela lei. – O desconhecido saiu da sombra.
Os olhos deveriam estar a pregar-lhe partidas, porque o homem parecia
quase um fantasma à luz. As suas roupas eram estranhas – definitivamente
antiquadas: um fato de tweed, embora estivesse calor, colete, casaco e
chapéu de coco. Trazia uma bengala com castão de prata representando uma
cabeça de lobo. O lobo tinha o focinho arrepanhado e olhos vermelhos
como rubis. Ruby... Ah! Aquilo causou-lhe um pequeno arrepio, embora
não soubesse porquê. Ocorreu-lhe de que não se encontrava num local
seguro. As maratonas de dança tinham geralmente lugar em bairros de má
reputação, onde não atraíam grande atenção da cidade,
– É um lugar muito mau para uma jovem sozinha – disse o desconhecido,
como se lhe lesse os pensamentos. Ofereceu-lhe o braço. – Posso ajudá-la?
Ruby Bates podia estar prestes a ser uma estrela glamorosa, mas Ruta
Badowski crescera nas ruas.
– Agradeço mesmo assim, cavalheiro, mas não preciso de ajuda – disse
rapidamente. Quando se voltou para partir, torceu o tornozelo e estremeceu
de dor.
A voz do desconhecido era profunda e calmante.
– Eu e a minha irmã temos um estabelecimento aqui perto, uma grande
pensão com uma cozinha. Talvez queira esperar aí? Temos telefone se
desejar ligar à sua família. A minha irmã, Bryda, deve ter feito paczki e
café.
– Paczki? – repetiu Ruta. – O senhor é polaco?
O desconhecido sorriu.
– Creio que somos todos sonhadores a tentar encontrar um caminho neste
país extraordinário, não é verdade, menina…?
– Ruta… Ruby Bates.
– Muito gosto em conhecê-la, menina Bates. O meu nome é Hobbes. –
Tocou ao de leve no chapéu. – Mas os meus amigos chamam-me John.
– Obrigada, senhor Hobbes – respondeu Ruta, cambaleando levemente do
cansaço.
– Tenho sais de cheiro que a podem ajudar. – O homem molhou o lenço e
estendeu-lho. Ruta cheirou-o. O cheiro pungente causou-lhe ardor no nariz,
mas sentiu-se mais animada. O desconhecido ofereceu-lhe de novo o braço
e, desta vez, ela aceitou-o. Aparentemente parecia um homem grande, mas
tinha um braço fino como um pau de fósforo por baixo do casaco grosso.
Qualquer coisa no braço fez com que Ruta se sentisse gelada por dentro e
retirou rapidamente o seu.
– Já estou bem. Os sais ajudaram. Aceito o café.
Ele fez uma pequena vénia.
– Como queira.
Caminharam juntos e a ponta de prata da bengala do desconhecido batia
no passeio com um ritmo cavo, enquanto ele cantarolava uma canção que
Ruta não conseguiu reconhecer.
– Que canção é essa? Nunca a ouvi na telefonia.
– Não. Creio que nunca a ouviu – respondeu o desconhecido.
Com o braço esquerdo, fez um gesto na direção da Bowery degradada,
com as suas missões cristãs e pensões baratas, hotéis infames, salas de
tatuagem, lojas que forneciam restaurantes e fábricas de bebidas de má
qualidade.
– «A Babilónia caiu, caiu, essa grande cidade.»
Apontou para os degraus de uma pensão barata, onde dormiam alguns
bêbados.
– Terrível. Alguém deveria limpar esta espécie de ralé, e mandá-los para
fora daqui. Não são como a menina e eu, menina Bates. Limpos. Bons
cidadãos. Pessoas com ambições. Contribuintes para esta brilhante cidade
na colina.
Ruta nunca pensara naquilo, mas deu por si a acenar afirmativamente
com a cabeça. Olhou para os homens com novo desagrado. Eram diferentes
da sua família. Estrangeiros.
– Não são da nossa espécie. – O desconhecido abanou a cabeça. –
Noutros tempos, a Bowery albergava os mais fantásticos restaurantes e
teatros. O grande ator J. B. Booth, pai de John Wilkes Booth, pisou-lhes o
soalho. Gosta das artes, menina Bates?
– Pois. Quero dizer, sim. Gosto. Sou atriz. – Sem saber porquê Ruta
sentia-se um pouco tonta. As ruas pareciam ter um pouco de brilho.
– Mas é claro! Uma jovem bonita como a menina. Há qualquer coisa de
especial em si, não é verdade, menina Bates? Posso dizer-lhe que tem um
destino muito importante a cumprir. «E a mulher estava vestida de cor de
púrpura e escarlate e enfeitada com ouro e pedras preciosas.»
O desconhecido sorriu. Apesar da hora tardia, da estranheza das
circunstâncias e da dor que sentia nas pernas, Ruta sorriu. O desconhecido...
não, afinal não era um desconhecido, pois não? Era o Sr. Hobbes. Um
homem tão simpático. Um homem inteligente e também de classe. O Sr.
Hobbes considerava-a especial. Via o que mais ninguém percebia. Era
aquilo a que a avó chamaria um wróżba, um presságio. Apetecia-lhe chorar
de gratidão.
– Muito obrigada – disse em surdina.
– E sobre a sua testa estava escrito um nome misterioso – disse o
desconhecido e o seu rosto iluminou-se com uma luz estranha.
– O senhor é pregador ou assim?
– Tenho a certeza de que deve estar desejosa de ligar à sua família. – Foi
a resposta do Sr. Hobbes. – Sem dúvida estarão preocupados.
Ruta pensou na sua família, amontoada no apartamento em Greenpoint e
tentou não se rir. O pai estaria acordado ao lado da mãe, a tossir a
humidade, o tabaco e o pó da fábrica dos pulmões. Os quatro irmãos e
irmãs estariam atravancados no quarto ao lado, a ressonar. Não sentiriam a
sua falta. E não tinha pressa de regressar.
– Não quero acordá-los – declarou e o Sr. Hobbes sorriu.
Percorreram um número estonteante de ruas laterais, até Ruta sentir que
se havia perdido. A Ponte de Manhattan erguia-se ao longe como um portão
para um submundo. Caía uma chuva miudinha.
– Então... então, senhor Hobbes, ainda estamos muito longe?
– Já chegámos. A sua charrete aguarda-a – disse e Ruta viu uma carroça
antiga, partida, puxada por uma velha pileca.
– Não disse que era mesmo aqui?
– Mas a menina está cansada. Levo-a de carro o resto do caminho.
Rute subiu e o suave balanço e o bater das patas do cavalo embalaram-na
no seu sono. Quando a velha carroça se deteve, viu apenas as enormes
ruínas de uma velha mansão numa colina, rodeada de terrenos vazios,
cobertos de ervas daninhas.
Ruta retraiu-se.
– Pensei que o senhor tinha dito que tinha uma pensão. Aqui só vejo
ruínas.
– Minha querida, os seus olhos pregam-lhe partidas. Olhe mais uma vez –
murmurou o Sr. Hobbes em voz baixa.
Acenou com o braço e ela viu um quarteirão encantador com casas
pegadas umas às outras, confortáveis e acolhedoras e, ao fundo, uma
mansão elegante, igual àquelas em que moravam os milionários, pessoas
com nomes como Carnegie e Rockefeller. Aquele Sr. Hobbes também devia
ser milionário! A chuva miudinha aumentou de intensidade. Os sapatos de
veludo com fivelas de pedrarias – o seu bem mais estimado que lhe custara
uma semana de salário – ficariam estragados, por isso seguiu o homem e
atravessou a rua em direção ao abrigo. Um gato preto cruzou-se-lhe no
caminho, sobressaltando-a. Soltou uma gargalhada nervosa. Estava a ficar
tão supersticiosa como a tia Pela, que via maus augúrios em todo o lado. A
porta rangeu e fechou-se atrás de si, fazendo Ruta dar um salto. O homem
sorria por baixo do grande bigode, mas o sorriso pouco afeto conferia aos
penetrantes olhos azuis. Este pensamento ocorreu-lhe brevemente, mas
afastou-o, achando-se tola. Estava decidida a sentar-se para descansar as
pernas estafadas.
Porém, o local tinha um cheiro estranho. A mofo, a podre e a algo mais
que não conseguia identificar, mas que lhe dava volta ao estômago. Levou a
mão ao nariz.
– Ai, um infeliz gato perdeu-se nos muros. Receio bem que o seu aroma
tenha permanecido – disse o Sr. Hobbes. – Mas está com frio e cansada.
Venha sentar-se. Vou acender o lume.
Ruta seguiu o homem até outra divisão. Semicerrando os olhos para
tentar ver no escuro, apercebeu-se dos contornos de uma lareira. Tropeçou e
estendeu a mão para se amparar. Sentiu a parede húmida e pegajosa.
Retirou imediatamente a mão e limpou-a no vestido estremecendo.
O Sr. Hobbes dirigiu-se à lareira fria e enegrecida e, logo a seguir,
apareceu um lume enorme. Ruta tentou perceber como podiam as chamas
lamber tão de repente o interior da chaminé. Não, disse para consigo, ele
colocara a madeira e acendera um fósforo. Claro que sim. Ela não se
lembrava, mas deveria ter sido o que acontecera. Safa, aquela maratona
dera-lhe cabo da cabeça
– A...acho que, afinal, devia telefonar aos meus pais. Vão ficar muito
irritados se não lhes ligar.
– Claro, minha querida. Vou acordar a minha irmã. Mas, primeiro,
prometi-lhe café.
De repente, tinha uma chávena na mão.
Com uma vénia e um toque no seu estranho chapéu, o homem
desapareceu-lhe da vista. Porém, ouvia-o cantarolar e percebeu que não
gostava daquela canção. Não sabia porquê, mas causava-lhe arrepios na
pele. O café estava forte e quente. Deixava-lhe na boca um gosto amargo,
mas enchia-lhe o estômago vazio e Ruta bebeu-o até ao fim. Mesmo assim
não a fez recuperar do cansaço. As suas pálpebras estremeciam enquanto
olhava para o lume. Cada vez mais pesadas...
Ruta acordou sentindo um estalido na cabeça e um sabor amargo na boca.
O lume apagara-se. Quanto tempo dormira? Ligara para a família? Não, não
ligara. Onde estava o Sr. Hobbes? E a irmã dele? Um rato passou a correr
pelo seu sapato. Ruta gritou e deu um salto, apercebendo-se que se sentia
estranhamente observada, como se o quarto tivesse vida. Juraria que ouvia
as paredes respirar. Mas isso seria impossível!
– Senhor Hobbes! – chamou. – Senhor Hobbes!
Ele não respondeu. Onde estaria? Onde estaria ela? Porque teria ido com
ele? Era demasiado esperta para o ter feito, para acompanhar um homem
totalmente desconhecido. Não, ele não era um desconhecido, disse para
consigo. Era o Sr. Hobbes, o bondoso Sr. Hobbes que a achara bonita e
especial. O Sr. Hobbes que podia estar aparentado com milionários, e podia
ser o seu bilhete de acesso para grandes coisas.
Então porque se sentiria tão aflita?
Em seu redor, a casa parecia viva com uma espécie de mal. Pronto. Já o
dissera. Mal. A palavra ocorrera-lhe exatamente quando passara pelo único
candeeiro a gás. A sua chama trémula lançava a dúvida sobre a verdadeira
natureza das paredes. Umas vezes pareciam de uma bela cor dourada, outras
Ruta via-as cobertas por um papel sujo a separar-se do estuque em tiras
esfarrapadas. Longas riscas manchavam o lugar iluminado pelo candeeiro.
Aproximou-se para analisar melhor e viu tratar-se de marcas sujas de dedos.
Não. Não era sujidade. Sangue. A impressão sangrenta de uma mão.
Quatro. Só com quatro dedos. Faltava um.
Ruta sentiu o coração bater violentamente e faltar-lhe a força nas pernas.
Cometera um erro terrível. Teria de sair dali imediatamente. Voltou-se e viu
horrorizada desfazerem-se as suas ilusões e a casa transformar-se diante dos
seus olhos num buraco infeto com a podridão a trepar pelas paredes em
direção a ela. O cheiro atingiu-a como um soco, fazendo-a vomitar. E havia
ratazanas. Com um pequeno grito, Ruta tropeçou para diante, como se
pudesse ultrapassar a escuridão que vinha apanhá-la. Onde ficava a porta?
Não conseguia encontrá-la! Era quase como se a casa a afastasse dela.
Como se a quisesse manter ali.
– «E na sua testa estava escrito um nome: Mistério, a grande Babilónia, a
Meretriz…»
Não conseguia ver o desconhecido, mas ouvia-o assobiando agora aquela
canção horrível. Tinha de haver outra maneira de sair dali! Uma janela à sua
direita parecia promissora e correu para ela. Através das tábuas pregadas
conseguiu entrever um bêbado que avançava pelo terreno vazio do outro
lado da rua em busca de um local para urinar.
– Ei! Ei, senhor! Socorro! Ajude-me por favor! – gritou. Como ele não a
ouvisse, Ruta bateu com as mãos na madeira. Tentou arrancar as tábuas que
não se moveram até ficar com as unhas em sangue e as palmas das mãos
cheias de lascas. Lá fora, o bêbado tratou do que tinha a fazer sem dar por
nada e partiu para a noite, enquanto Ruta se deixava cair a soluçar no chão
imundo.
Quando Ruta tinha três anos, a mãe fechara-a numa arca para que o
senhorio não descobrisse que tinham mais uma criança e os pusesse na rua.
Ali ficara, sozinha, apertada, em silêncio na escuridão, aterrorizada.
Parecera-lhe que haviam passado horas até que a libertassem e, desde aí,
sempre que se sentia fechada, era como se fosse de novo uma criança
assustada. O pânico esvaziava-lhe o espírito de qualquer tipo de lógica.
Andou desesperada pela casa que parecia crescer. Corredores labirínticos
levavam-na a quartos esquálidos; portas abriam-se para paredes de tijolo.
Ouvia à sua volta o horrível assobio do homem. Por fim foi ter a uma porta
que ainda não tinha experimentado. Pôs a mão no puxador. O chão cedeu
debaixo dos seus pés e caiu pela entrada fedorenta e esquecida de uma cave.
Doía-lhe o tornozelo que tinha torcido e ficara dobrado por baixo de si,
obrigando-a a gritar de dor. Tentou dar um passo, mas foi uma agonia e caiu
de novo no chão duro e sujo.
O soalho estalava debaixo dela e ouvia ao mesmo tempo o assobio
distante do desconhecido. Sentiu o cérebro vazio de tudo, exceto da ideia de
sobrevivência. Pestanejou, obrigando os olhos a ajustarem-se à escuridão.
Caíra de uma altura considerável: a cave era muito funda, provavelmente
cerca de seis metros abaixo do nível da rua. Tinha a certeza de que poderia
gritar todo o dia sem ser ouvida. Precisava de uma arma. Arrastou-se uns
centímetros palpando, tentando encontrar qualquer coisa de que se pudesse
servir. Finalmente, tocou com a mão num pau liso. Era leve, mas aplicado
com força contra um olho ou um pescoço, poderia ferir. Agarrou-o com
força de encontro ao peito e esperou. Ouviu uma porta abrir-se lá em cima,
o que permitiu a entrada de um pequeno raio de luz. Viu uma escada por
trás de uma parede, mas nunca conseguiria subi-la no estado em que se
encontrava. O pau era a sua melhor aposta. Poderia ter de fazer mais do que
apenas ferir.
O Sr. Hobbes fechou a porta e a luz desapareceu. Ruta ficou mergulhada
na escuridão total, como lhe acontecera dentro do baú. Esforçou-se por
manter a respiração calma, embora desejasse gritar com todas as suas
forças. Os passos do desconhecido soavam pesados, mas regulares, na sua
direção e Ruta apercebeu-se de que ele já não utilizava a bengala. A canção
ecoava na cave. Desta vez juntara-lhe a letra. «John Perverso, John
Perverso trabalha com o avental posto. Corta-te o pescoço, leva-te os ossos
e vende-os por uma mão-cheia de pedras.»
A saliva parecia não lhe descer pela garganta. Ruta estava demasiado
assustada para engolir. A antiga fornalha surgiu de novo para a vida,
enchendo o compartimento com uma luz vermelha de sombras macabras.
Ruta escondeu-se atrás dos restos de uma cortina de tule, pendurada de
um varão de roupa e ficou a olhar através do tecido granulado. Não via o Sr.
Hobbes, mas conseguia ouvi-lo.
– «... a Grande Babilónia, a Meretriz Adornada e lançada ao Mar, a
abominação na Terra. E foi a quinta oferta conforme ordenado pelo Senhor
Deus.»
Ruta sentia a língua pesada dentro da boca. Pelo canto dos olhos divisava
coisas inquietantes em movimento, mas quando voltava a cabeça
desapareciam. Tinha a perna esquerda dormente.
– E vi um novo céu e uma nova terra: pois o primeiro céu e a primeira
terra desapareceram e o mar deixou de existir. E eu, John, vi a cidade santa
de Jerusalém descendo de Deus, no céu, preparada como uma noiva
enfeitada para o seu esposo. E ouvi uma grande voz do céu, que dizia: «Eis
aqui o tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará, e eles
serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles, e será o seu Deus.»
Estás a ouvir, Ruby?
Ruta agarrou-se ao pau com toda a força e manteve-se em silêncio.
O homem lançou qualquer coisa no lume para o espevitar.
– Aquele que estava sentado no trono disse: «Agora faço novas todas as
coisas! Sou o Alfa e o Ómega, o princípio e o fim. Àquele que tem sede,
darei de beber da fonte da água da vida. O vencedor herdará todas as coisas;
eu serei o seu Deus, e ele será meu filho.» – Percorria o perímetro do
compartimento enquanto falava. – Mas os incrédulos, os abomináveis, os
fornicadores e os idólatras terão a sua parte no lago que arde com fogo e
enxofre. Porque apenas os escolhidos se erguerão com a Besta. E o mundo
ficará em cinzas.
Pela voz do homem, Ruta sabia que ele se encontrava do lado oposto.
Sentiu a visão turvar-se-lhe e o estômago apertado. Apercebeu-se
horrorizada de que não conseguia mexer as pernas. Que lhe estaria a
acontecer? Recordou-se do lenço que cheirara e do café que bebera e sentiu
o coração disparar. Que conteriam? Olhou de novo para o pau que tinha na
mão e viu que se tratava de um osso. Soltou um grito e deixou-o cair
agoniada. A cortina abriu-se e o Sr. Hobbes surgiu sobre ela como um deus
vingativo.
– Não se aflija com a minha aparência, minha querida. Mal comecei a
manifestar-me.
Tinha os braços e o pescoço marcados com estranhas tatuagens, símbolos
que ela não conhecia. Os símbolos ondulavam e sobressaíam. A sua carne
mexia-se como se algo deslizasse dentro dela. Apenas conseguia dar voz ao
seu medo na sua primeira língua e por isso murmurou uma oração em
polaco.
O homem franziu a testa.
– Orações? Pensei que fosse uma rapariga moderna numa época moderna.
Iluminado pela fornalha, o desconhecido parecia um demónio negro.
Sentia já os braços imóveis. Ruta batia os dentes.
– P...por favor. Por favor. Não conto a ninguém.
– Mas tem de contar. – O desconhecido arrastou Ruta pelo seu braço
inútil. – Bem te disse que tinhas um importante destino a cumprir e é o que
farás: Tu, Ruby Bates, és o princípio do fim.
John Perverso, John Perverso, trabalha com o avental posto…
Quando chegou à parede por detrás da fornalha, tocou-lhe com os seus
dedos cor de osso. Uma porta escondida abriu-se para revelar um quarto
secreto.
– Nie, nie, nie – murmurou Ruta, como se pudesse desejar que a porta não
se abrisse.
– Sou aquele que vive. Estive morto, mas agora estou vivo para todo o
sempre, ámen! E tenho as chaves do Hades e da morte.
Sorriu-lhe e quando Ruta lhe viu nos olhos o fogo e um infinito turbilhão
negro a sua bexiga descontrolou-se.
– O ritual começa de novo – disse o desconhecido. Puxou Ruta para o
quarto escondido e ela apenas pôde gritar.
DESCONHECIDO DE PASSAGEM
– Bem te disse que não era boa ideia – disse o tio Will. Estavam sentados
no restaurante de Chinatown. A dor de cabeça de Evie incomodava-a
seriamente. Limitava-se a tocar com a colher os bolinhos fritos dentro da
tigela da sopa.
– Quem poderia ter feito uma coisa daquelas? – perguntou Evie por fim.
– Dado o curso da história humana, a pergunta mais precisa será: «Por
que razão não há mais pessoas a fazer coisas dessa natureza?» – disse Will,
ao levar habilmente à boca um bocado de carne usando os pauzinhos.
– Pode ter sido um gangue. Talvez que a família dela devesse dinheiro a
alguém – sugeriu Jericho.
– Mas então porquê darem-se a tanto trabalho? – refletiu Will. – Porquê
fazer parecer que o crime tem a ver com o ocultismo na sua natureza... e já
agora com um ocultismo tão estranho?
Will e Jericho ponderaram várias ideias e rejeitaram-nas na sua maioria.
Evie manteve-se em silêncio. Estava desesperada por uma bebida.
– É tirado do Apocalipse? – perguntou Jericho. – A meretriz. A Prostituta
da Babilónia.
– Sim. Também pensei. O Apocalipse menciona a Prostituta da Babilónia.
Mas a meretriz adornada... é uma expressão muito específica. Tenho a
certeza de já a ter ouvido. – Abanou a cabeça e continuou a comer. – No
entanto, não me ocorre.
Evie olhou para a sua tigela e pensou nas coisas terríveis que vira
enquanto tivera na mão a fivela do sapato de Ruta Badowski. E se fossem
importantes?
– Já alguma vez ouviu esta melodia? – perguntou Evie, assobiando a
canção que escutara no seu transe.
Will apertou os lábios, refletindo.
– O que é? Uma coisa de um programa de rádio? Se se adivinhar recebe-
se um prémio do sabonete Pears, ou coisa que o valha?
Evie abanou a cabeça. Doía-lhe quando o fazia.
– É só uma canção tola que ouvi no outro dia. Fiquei a pensar se quereria
dizer alguma coisa e... – O quê? O que poderia dizer que fizesse sentido? –
Não é nada.
– Como queiras. Não queres experimentar o pato?
Evie lutou contra uma onda de náusea enquanto afastava os pauzinhos e a
comida desagradável. Mas também se sentiu aliviada. Talvez que as
desconcertantes imagens que vira e a canção nada tivessem a ver com o
assassinato da rapariga. Poderiam ser qualquer coisa, afinal. Qualquer outra
coisa.
Uma silenciosa agitação lá à frente chamou a atenção de Evie. A dona do
restaurante, uma rapariga de vestido vermelho, mais ou menos da idade de
Evie, empurrou uma trouxa para as mãos de um jovem, falando com ele em
chinês. No seu tom de voz havia uma ordem que não podia ser contrariada.
Sob o olhar penetrante da jovem, o rapaz retirou-se, deixando bater atrás de
si a porta da cozinha. A jovem do vestido vermelho apareceu à mesa com
um tabuleiro de bolinhos da fortuna. Evie reparou que tinha os olhos verde-
claros.
– Desejam mais alguma coisa? – perguntou delicadamente, mas com leve
enfado.
– Não, muito obrigado. – O tio Bill pagou a conta enquanto Evie extraía o
papelinho do seu bolo.
– O que diz? – perguntou Jericho.
– «A sua vida vai mudar em breve.» – Evie atirou-o para o lado. – Estava
à espera de «Vai encontrar um desconhecido alto e moreno». Que diz o teu
Jericho?
– «Para ganhar confiança tem de arriscar os segredos.»
– Intrigante. Tito?
Will deixou o seu intacto no tabuleiro.
– Não leio a sina se o puder evitar.
Saíram para o passeio estreito e serpenteante da Rua Doyers, conhecido
como «a esquina sangrenta» pela curva e pelo enorme número de
assassinatos aí cometidos por gangues. Porém, nessa noite a rua estava
sossegada. Do outro lado do passeio, uma multidão de homens acendia
velas dentro de pequenas lanternas e ficava a vê-las flutuar no céu do
crepúsculo. O cheiro a incenso pairava na rua.
– O Festival do Outono – explicou o tio Will. – É uma importante
tradição cultural, a celebração das colheitas.
Mais abaixo, lanternas de papel enfeitavam a fachada de uma loja: Mee
Tung Co., Importadores. Flutuavam na brisa da noite. Folhas de papel com
letras chinesas tinham sido coladas num muro de tijolo ao lado da loja. Na
rua, havia homens que, ao passar, lançavam olhares sub-reptícios ao que
estava escrito.
– O que é aquilo? – perguntou Evie.
– Listas dos comerciantes que não estão alinhados com os Tong12.
– Aquelas coisas prateadas que servem para pôr gelo no gim? – Evie
imitou com os dedos. – Adoro!
Os Tong são irmandades ou associações dirigentes e existem duas em
Chinatown: Hip Sing Tong e On Leong Tong. Há décadas que governam
Chinatown e, de vez em quando, estão também envolvidas em lutas
sangrentas. Os comerciantes colocam esses avisos como declaração de
neutralidade, para que possam ser deixados de fora dessas atividades
violentas.
– Que se passa ali? – perguntou Evie. Brilhava uma luz na montra de uma
loja junto da qual se formara uma fila de homens.
– Provavelmente será para mandarem cartas às mulheres que estão na
China.
– As mulheres não vivem aqui com eles?
– O Ato de Exclusão Chinesa de mil oitocentos e oitenta e dois. – O tio
Will ficara a olhar para ela, à espera de uma reação. – O que ensinam nas
escolas hoje em dia? Vamos ter uma geração de criacionistas sem qualquer
perceção da história.
– Então parece que sou uma felizarda porque o tio pode ensinar-me.
– Bem, sim – disse Will hesitante, antes de passar a explicar. – O Ato de
Exclusão Chinesa foi uma lei destinada a impedir que viessem para cá mais
chineses depois de terem terminado a construção do nosso caminho de
ferro. Não podiam trazer para cá as famílias. Não eram protegidos pelas
nossas leis. Estavam sós.
– Não parece lá muito americano.
– Pelo contrário, é muito americano – disse o tio Will em tom amargo.
Passaram pelas traseiras da Casa de Chá e viram o rapaz que fora
repreendido pela dona do restaurante. Estava ajoelhado diante de uma
pequena taça em chamas que alimentava com finas folhas de papel
colorido.
– Que está ele a fazer? – perguntou Evie.
– A afugentar os fantasmas – respondeu o tio Will sem qualquer outra
explicação.
12 Pinça de gelo, em português. (N. da T.)
UM LUGAR NO MUNDO
Era tarde quando Evie, Will e Jericho voltaram ao museu. Para chegar às
prateleiras altas da biblioteca o tio Will subira à escada de rodas, passava os
dedos pelas lombadas gastas, e entregava os livros a Jericho.
– Vê se consegues encontrar uma Bíblia – gritou para Evie. – Deve haver
uma na sala das coleções.
Evie não tinha grande vontade de entrar na outra divisão, principalmente
à noite.
– O Jericho não pode ir? Conhece o museu melhor do que eu.
– O Jericho está a ajudar-me e, tanto quanto vejo, tu consegues andar.
Insististe em ir hoje, não é verdade?
– Sim, mas…
– Então torna-te útil.
Evie percorreu rapidamente as salas do museu, acendendo os candeeiros à
medida que avançava. Não queria saber da conta da eletricidade; queria as
salas tão brilhantes como a Great White Way. À entrada da sala das
coleções, Evie fez uma pausa, procurando apenas com o olhar, na esperança
de localizar o que procurava sem ter de andar por aquele espaço cavernoso
cheio de objetos misteriosos. Quando percebeu que teria de entrar, deu à
manivela da velha vitrola para lhe fazer companhia e afastar os arrepios.
Era uma pequena gravação de alguém a tocar ragtime no piano. A melodia
alegre ajudou-a a esquecer o medo enquanto executava a sua busca. No
canto junto à lareira tropeçou em qualquer coisa por baixo do tapete persa.
Erguendo o canto, viu no chão uma argola de ferro para uma pequena porta,
como a de um abrigo de tempestades. Era demasiado pesada para a puxar e
parecia não ter sido mexida havia muitos anos. Voltou a colocar o tapete no
sítio. Numa mesinha, Evie encontrou a Bíblia encostada a um vaso com um
feto.
– E diz a mãe que eu sou pagã.
A música terminara. O disco sibilou uns instantes no silêncio e depois um
homem começou a falar na gravação. «Toda a minha vida fui capaz de ver
os mortos», disse com um sotaque rolado. «Alguns só querem paz e
descanso. Mas nem todos. Nada disso. Há maldade neste mundo, maldade
nos corações dos homens, maldade que vive em...» Evie retirou a agulha de
cima do disco e fugiu da sala sem apagar as luzes.
– Porque demoraste tanto? – perguntou Will quando Evie chegou
ofegante à biblioteca. Ele e Jericho tinham retirado um monte de livros que
metiam na pasta de Will.
– Tive de ir a Jerusalém em busca da Bíblia. Sabia que queriam um
original – disse Evie irritada. – Sabia que há uma porta no chão?
– Sim – respondeu Will.
– Então? Onde vai ter? – perguntou Evie irritada.
– São escadas para uma cave secreta e um túnel. Era uma paragem do
metropolitano. A própria Sojourner Truth escondeu antigos escravos aí em
baixo – explicou Will. Pegou na Bíblia e meteu-a na mala. – Agora só lá
deve haver pó e ratazanas. Vamos?
Evie e Jericho esperaram nos degraus enquanto o tio Will fechava o
museu. As luzes estavam agora acesas, dando ao Central Park uma aura
misteriosa. Pelo canto do olho, Evie apercebeu-se de qualquer coisa que a
fez olhar para trás.
– Que se passa? – perguntou Jericho. Seguiu o olhar de Evie até ao
parque.
– Pensei ver uma pessoa a observar-nos – disse Evie, perscrutando o
parque. Nada viu. – Devo ter-me enganado.
– Foi um longo dia – disse Jericho delicado. – Não me admirava que os
teus olhos te pregassem partidas.
– Creio que tens razão – disse Evie, mas tinha a sensação incómoda de ter
visto Sam Lloyd. Tivera a vaga impressão de o ver encostado a uma árvore
com a sua postura confiante que tanto a irritava. Mas Jericho tinha razão,
não estava ninguém ali. Apenas o candeeiro da rua e o parque.
Sam ficou para trás escondido por uma rampa de pedra até que se foram
embora. Ela vira-o. Fora apenas um segundo, mas bastara. Que se passaria
com aquela jovem que o fazia perder a sua esperteza? Viera até ao museu
para tentar convencê-la com falinhas mansas a devolver-lhe o casaco, mas
depois vira o detetive e decidira regressar quando o museu estivesse vazio
para roubar o casaco – e mais qualquer coisa de que precisasse.
Sam fizera tempo no meio da animação de Times Square. Marcara um
marinheiro que passeava um pouco incerto na esquina da Broadway com a
Rua 45. As ruas estavam cheias de gente que ia para casa depois do
trabalho. A maioria dos carteiristas considerava aquela uma boa hora para
exercer a sua arte, pois as pessoas andavam distraídas. Porém, Sam tinha a
seu favor uma misteriosa habilidade para se movimentar entre as pessoas
sem ser notado. Não que fosse invisível; mas porque conseguia dirigir os
pensamentos alheios para outro lugar de modo que os olhos dos outros não
o notavam. Bastava-lhe pensar, Não me vejas, e a pessoa não o via.
Também era rápido, movendo-se com a rapidez de um gato. Nesses
momentos, ouvia apenas a sua respiração ritmada enquanto extraía uma
carteira de um bolso, arrancava uma mala da mesa de um restaurante, ou
roubava pão da prateleira de uma loja. Não sabia porque resultava, nem
como – apenas que era assim. Era assim que sobrevivia por si só, nos
últimos dois anos.
Tinha uma nítida recordação da primeira vez que acontecera. Era pequeno
– dez ou onze anos, talvez; fora pouco tempo depois de a mãe ter partido. O
pai tinha um relógio que pertencera ao avô e tinha dito a Sam para não lhe
tocar, mas fora precisamente essa ordem que tornara o relógio tão atraente.
Um dia rapinara-o de dentro da gaveta do pai e escondera o tesouro no
casaco para mostrar aos outros rapazes da escola, na esperança de que se
apercebessem do seu valor e deixassem de troçar dele pelo seu sotaque, as
suas roupas, o seu tamanho. Mas, afinal, ridicularizaram-no. «Isso? É
apenas um relógio barato», disse o líder e esmagara-o no chão. Sam ficara
com medo de voltar para casa e ter de enfrentar o pai. Enquanto estava
sentado no sofá à espera, desejou que houvesse um lugar onde se esconder.
Quando o pai chegou a casa, o medo de Sam era tão grande que se sentiu
outra vez pequenino, imaginando que poderia simplesmente fechar os olhos
num jogo de escondidas e a outra pessoa não daria por ele. Ouviu
aproximarem-se os passos do pai, ouviu-o chamá-lo pelo seu nome. Não me
vejas, pensou Sam. «Não me vejas», murmurou várias vezes, como uma
prece. E depois, estranhamente, o pai olhou diretamente para ele e
continuou a andar chamando pelo seu nome como se ele fosse um fantasma.
Sam sentiu-se atrapalhado para explicar. Lembrou-se de uma coisa
estranha que a mãe lhe dissera. Estavam na casa de banho e ela limpava os
arranhões que arranjara porque os colegas violentos o haviam perseguido e
empurrado na rua.
– Não te preocupes lyubimiy. Tens dons que eles não têm.
– O que quer dizer com isso? – perguntara, estremecendo quando ela
encostara um pano húmido ao seu queixo arranhado.
– Verás com o tempo.
E realmente assim fora, mas perguntava-se se seria isso que ela quisera
dizer e como o poderia ter sabido.
Tentando manter-se quente no frio da noite, Sam observara
cuidadosamente o marinheiro e pensou no seu casaco. O que lhe importava
não era o jaquetão de lã, mas sim o postal escondido no bolso. Não
pareceria grande coisa – apernas um desenho gasto de majestosas
montanhas cobertas de neve e árvores altas. Não tinha qualquer carimbo de
correio que o esclarecesse. Nas costas havia três palavras rabiscadas em
russo. Esse postal era a única coisa que Sam trouxera de casa do pai em
Chicago, quando fugira, pedindo abrigo a um circo que viajava para leste.
Nos primeiros seis meses em Nova Iorque mal conseguira sobreviver. Mas
a sorte poderia mudar rapidamente. Os jornais estavam cheios de histórias
de self-made men, como Henry Ford e Jake Marlowe. Também Sam faria
fortuna e depois encontraria o sítio do postal. Encontrá-la-ia.
Evie, o tio e o gigante teutónico tinham certamente partido de vez, por
isso Sam usou o seu canivete suíço e abriu a fechadura da porta do museu
com toda a facilidade. Para uma sumidade, aquele professor era muito
incompetente no que dizia respeito à proteção dos seus tesouros. A luz da
rua encostava-se aos vitrais do museu, conferindo um suave brilho
ambarino à escuridão do seu interior. Sam esperou que os olhos se
ajustassem e deslizou através da antiga mansão em busca do seu casaco.
Tudo isto teria sido evitado se tivesse usado o seu dom quando conhecera
Evie O’Neill na Penn Station. Mas, sem saber porquê, quisera que ela o
visse. Quisera falar com ela. E, na devida altura desejara beijá-la tal como
desejara o seu dinheiro. Fora esse o erro. Agora ali estava, no Museu dos
Arrepios, procurando o seu casaco na penumbra.
Fora muito mais simples com o marinheiro. O homem parara na esquina
sem saber se avançar ou voltar à esquerda e, nesse momento, Sam entendeu
perfeitamente o pobre homem. Quando o marinheiro atravessara por fim a
rua, Sam viera da direção oposta. Não me vejas, pensou e mesmo que
alguém olhasse na sua direção, teria uma visão vaga e desfocada. Sam
movimentara-se ininterruptamente através da multidão e retirara-lhe a
carteira do bolso das calças com facilidade, para logo avançar sem ser visto.
Onde estaria o seu casaco? Arriscou-se a ligar o candeeiro de mesa. A luz
caiu sobre uma pilha de recortes de jornais de quase dez centímetros.
Examinou vagamente as histórias, pondo-as de lado com um sorriso
afetado. Histórias de fantasmas. Histórias assustadoras inventadas por gente
que tinha medo de viver. Ou por quem desejava atenção, conhecia o género.
Depois o sorriso de Sam desvaneceu-se quando um pequeno artigo de um
jornal do Kansas o informou de que uma jovem de quinze anos, que
adoecera com uma doença letárgica antes de morrer, repetira uma expressão
que intrigara a família. Eram sempre as mesmas duas palavras repetidas
vezes sem conta: Projeto Búfalo.
Sam devolveu o artigo ao monte de recortes com as mãos subitamente
trémulas. Se este professor Fitzgerald sabia alguma coisa desse assunto,
Sam precisaria de descobrir maneira de se aproximar dele, talvez chegando-
se mais à sobrinha, o que lhe parecia uma proposta fantástica. A menos que
ela o matasse com um ataque de fúria. Certamente parecia ser o tipo de
miúda capaz de o fazer. Sam sorriu só de pensar; gostava de um desafio e
tratava-se sem dúvida de um desafio. Apenas precisava de um modo de
entrar nele.
Encontrou-o pendurado na parede da sala das coleções: PUNHAL E BAINHA
DO CERIMONIAL MAÇÓNICO DOS CAVALEIROS DO TEMPLO, PROPRIEDADE DE
CORNELIUS T. TATHBORNE, FALECIDO EM 1855.
«Isto deve servir», pensou Sam escondendo os objetos na camisa. Saiu do
museu como entrara. No dia seguinte à mesma hora, teria de volta o seu
casaco e talvez uma pequena recompensa.
COISAS POR DIZER
Sob uma trave carunchosa da antiga casa, uma aranha esperava e vigiava
uma infeliz mosca que se aventurava a aproximar-se da sua teia. Quando
percebeu que a mosca estava definitivamente presa, a aranha aproximou-se,
enterrando-a numa mortalha de seda.
Como a aranha, a casa também esperava. Esperava. Esperara durante
muitos anos, assistindo a mortes de presidentes e a guerras. Esperava
quando o primeiro automóvel surgiu ruidoso nas ruas sujas e o aeroplano
desafiou a gravidade. Agora a espera terminara.
Nos confins da velha cave, a chama da fornalha voltava à vida. Por trás
da fornalha havia uma passagem secreta para um quarto escondido cujas
paredes brilhavam levemente com símbolos pintados há muito em
preparação. O desconhecido fez girar uma manivela e lá em cima uma
grade de metal, ferrugenta pela falta de cuidado, rangeu e abriu-se para
revelar o céu da noite não intacto da fosforescência das luzes da cidade. Era
o local perfeito para ver passar as nuvens indolentes. Para olhar para as
estrelas. Ou para observar em toda a glória a passagem ardente de um
cometa profético. O desconhecido estava nu debaixo daquele céu. A sua
pele cintilante era também uma tapeçaria de símbolos. Poisou os olhos no
altar e inclinou a cabeça, à espera, como a aranha, como a casa.
A sala estava cheia de sussurros, primeiro suaves, depois mais ruidosos,
como o som de um milhar de demónios à solta no deserto. A escuridão
moveu-se. As sombras avançaram, encostando-se ao desconhecido e à
oferenda, enquanto as estrelas frias e distantes desviavam o olhar.
PRESSÁGIOS
***
Memphis estava sentado no cemitério perto de uma pedra tumular que dizia
EZEKIEL TIMOTHY. NASCEU EM 1821. MORREU LIVRE EM 1892. Retirou a lanterna
do esconderijo e à sua luz amarelada começou a escrever um novo poema.
Veste o seu desgosto como um casaco de penas, tão pesado que não a deixa
voar. Riscou pesado e escreveu denso, depois decidiu que era uma palavra
pretensiosa e voltou a escrever pesado. Um barco cortava a superfície do
Hudson, deixando atrás de si esteiras de luz. Memphis ficou a olhá-lo
durante algum tempo, em busca da inspiração, mas estava cansado e por
fim descansou a cabeça nos braços e adormeceu.
No sonho já habitual, Memphis estava numa encruzilhada. A terra era lisa
e castanho-dourada. Na estrada em frente o pó amontoava-se num muro
brumoso que escurecia o dia. Havia uma quinta, um celeiro e uma árvore.
Um moinho de vento girava com força nos remoinhos de pó. O corvo
crocitava no campo, batendo as asas frenético diante do homem alto e
magro que, a cada passo, transformava o trigo em cinzas.
Memphis acordou sobressaltado. A vela da lanterna consumira-se
completamente. Estava muito escuro. Colocou de novo a lanterna no buraco
secreto da árvore, pegou nas suas coisas e passou pela casa da colina. Não
olhes, continua a andar, pensou Memphis quando chegou ao portão. Porque
teria pensado aquilo? Porque sentiria os braços arrepiados? Superstição.
Uma superstição estúpida e retrógrada. Ele não era supersticioso e, como
que para se desafiar, para se separar de uma longa linha de temerosos
antepassados entrou propositadamente pelo portão e deixou-se ficar no
caminho rachado e coberto de ervas daninhas que levava à mansão
arruinada. Obrigou-se a caminhar, avançando mais na direção das portas
danificadas. Talvez até entrasse, para acabar para sempre com aquela
estupidez. Estava quase lá. Só mais cinco passos, quatro, três...
As portas abriram-se de par em par, libertando um som que Memphis
apenas conseguia descrever como um gemido infernal. Memphis caiu para
trás, levantou-se com alguma dificuldade e correu a toda a velocidade,
abrandando apenas quando avistou as luzes fortes do Harlem.
Foi o vento, mais nada, raciocinou enquanto subia para casa de Octavia.
Deixara-se aterrorizar por uma rajada de vento. Abanou a cabeça pensando
na sua debilidade, depois sufocou um grito quando deu com Isaiah à porta
do quarto.
– Deus todo-poderoso, Homem de Gelo! – murmurou. – Quase tenho um
ataque de coração. Que fazes fora da cama? Queres um copo de água?
Isaiah olhava em frente.
– Ungi a vossa carne e preparai as paredes de vossas casas. O Senhor não
tolerará fraquezas dos seus escolhidos.
– Homem de Gelo?
– E a sexta oferenda será uma oferenda de obediência.
Memphis sentiu um arrepio subir-lhe dos braços até ao pescoço. Não
reconhecia as palavras de Isaiah. Era como se as recebesse. Memphis não
sabia o que fazer. Se fosse ter com Octavia, esta arrastá-lo-ia e a Isaiah até à
igreja e aí deixá-los-ia para rezarem toda a noite.
A irmã Walker. Talvez a irmã Walker soubesse. Amanhã falaria com ela
para lhe perguntar. Memphis pegou na mão de Isaiah e levou-o para a cama.
O rapaz continuava a olhar ao longe.
– Chegou o tempo. Estão a chegar – disse Isaiah, voltando para os
sonhos, a sua última palavra foi um mero murmúrio. – Os Adivinhos.
E adormeceu.
UM RAIO DE LUAR
Mabel não teve tempo para notar a graça das folhas de outono enquanto
caminhava por entre a multidão reunida na Union Square. Sabia que
precisava estar alerta – os Detetives Pinkerton, disfarçados de
trabalhadores, perturbavam muitas vezes um protesto pacífico, dando à
polícia um motivo para avançar, interromper a manifestação e fazer
detenções. Por vezes as coisas ficavam feias.
A chuva parara e a mãe de Mabel encontrava-se sobre um estrado
improvisado, inspirando a multidão com os seus dotes oratórios e a sua
beleza morena. O seu nome de solteira era Virginia Newell, membro do
famoso clã Newell, uma das famílias da elite de Nova Iorque. Aos vinte
anos desistira de tudo para fugir com o pai de Mabel, Daniel Rose, um
incendiário jornalista judeu e socialista. A família cortara relações com ela
e deixara-a sem um cêntimo. Mas o glamour dos Newel mantivera-se.
Chamavam à mãe de Mabel a Rebelde da Alta Sociedade. E, até certo
ponto, o facto de a mãe ter desistido de tudo por amor, tornara-a ainda mais
famosa do que alguma vez seria como senhora de sociedade. Por isso
mudaram-se para o Bennington; ninguém recusaria uma menina Newell –
nem mesmo caída em desgraça.
Mas, para Mabel era difícil viver à sombra da mãe. Ninguém escrevia nos
jornais acerca dela. E, para mais ainda, Mabel herdara as parecenças do pai
– rosto redondo e nariz forte, olhos castanhos, profundos e cabelo
encaracolado castanho-arruivado.
– Deves parecer-te com o teu pai – diziam as pessoas e depois seguia-se
um silêncio incómodo. Mas quando a mãe sorria, a abraçava e lhe chamava
«a minha querida menina tão valente!» Mabel sentia-se inundada de um
afeto intenso. E quando, inevitavelmente, a mãe se envolvia numa causa ou
injustiça que tinha de ser defendida, Mabel ficava do lado dela, como filha
obediente, provando ser indispensável. As pessoas úteis e indispensáveis
são sempre amadas, não é verdade?
A única pessoa que não parecia olhar para a mãe de Mabel com espanto
era Evie. Mais do que uma vez, fizera dela uma imitação perfeita.
– «Mabel, miiinha queriiidinha, como te podes queixar de não teres
jantado, quando as massas trabalhadoras nem sequer respiram livremente?»
«Mabel queriiiidinha, diz-me: são precisos vestidos bonitos para ajudar os
pobres e defender os operários do Lower East Side?»
E por muito que Mabel se sentisse tentada a zangar-se com Evie e a
defender a mãe, tinha de admitir que era uma das coisas que mais gostava
na amiga. Fosse como fosse, Evie tomava sempre o partido de Mabel.
– És a verdadeira estrela da família Rose – insistia Evie. – Um dia todos
conhecerão o teu nome. – Mabel só tinha esperança que Evie pudesse fazer
com que Jericho fosse da mesma opinião.
Jericho. Embaraçava-a a frequência com que pensava nele. Tantas
fantasias românticas! Podia ser muito sensata, mas no que dizia respeito a
esse rapaz, perdia-se com as ideias dos livros de contos. Ele era tão
inteligente, estudioso e nobre – não era um marçano, como aquele Sam
Lloyd, só adulação e promessas para qualquer rapariga que se interessasse
por ele. Não. As afeições de Jericho significavam alguma coisa. Era esse o
desafio, não era? Se um rapaz como Jericho se apaixonasse por ela teria a
prova de que era desejável.
Mabel pensava em tudo isto, enquanto atravessava a Union Square,
entregando exemplares do Proletariat aos trabalhadores. Acenou aos
indivíduos que se encontravam na mesa dos Wobblies14, mas estes não lhe
deram atenção, por isso Mabel seguiu adiante, sentindo-se perdida na
multidão. Se decidisse desaparecer, alguém daria pela sua falta?
– Quem são os vossos líderes? – gritava a mãe de Mabel do cimo do
estrado.
– Somos todos líderes! – respondeu a multidão.
Mabel sentiu uma mão no braço. Voltou-se e viu uma jovem com um
bebé ao colo, acompanhada por uma mulher mais velha de lenço na cabeça.
A jovem falou num inglês entrecortado.
– A menina é a filha da Grande Senhora Rose?
Tenho nome. Chamo-me Mabel. Mabel Rose.
– Sou sim – respondeu irritada.
– Por favor, pode ajudar? Levaram a minha irmã da fábrica.
– Quem a levou?
A jovem falou com a mulher com ar de avó em italiano antes de se voltar
para Mabel.
– Os homens – disse.
– Que homens? A polícia?
A mulher olhou em volta para ter a certeza de que ninguém ouvia e
depois disse em voz baixa:
– Os homens que se movem como sombras.
Mabel não compreendeu o que a mulher queria dizer com aquilo. Seria
provavelmente uma nuance da língua impossível de traduzir.
– Mas porque levariam a sua irmã? Ela estava a organizar alguma coisa
na fábrica?
A jovem olhou de novo para a mulher mais velha, que acenou
afirmativamente.
– Ela é... profeta. – A jovem parecia procurar as palavras certas. – Ela...
fala com os mortos. Diz que eles vão chegar.
– Quem vai chegar?
O apito estridente da polícia soou à entrada do parque, juntando-se aos
gritos e exclamações da multidão. Uma lata de gás lacrimogéneo aterrou
por entre a multidão e o parque ficou submerso num nevoeiro químico que
queimava os olhos e a garganta. Mabel ouvia a mãe a pedir calma pelo
microfone, mas este foi logo cortado. As pessoas empurravam-se e corriam
aos gritos, enquanto a polícia perseguia os trabalhadores. Alguém deu um
enorme empurrão a Mabel e atirou com os jornais ao chão, que foram
pisados e feitos em bocados. Mabel não via os pais através do gás e da
multidão. A tossir e desorientada tentou abrir caminho por entre a multidão
caótica e começou a correr até dar de caras com um polícia.
– Apanhei-te – disse ele.
Em pânico, Mabel subiu a correr a Rua 15 em direção a Irving Place,
sempre com o apito do polícia a alertar os outros. Havia à vontade cinco
polícias atrás dela. Dirigiu-se aos portões de ferro de Gramercy, mas umas
mãos fortes puxaram-na para uma porta de serviço nas traseiras de um
restaurante. Começou a gritar, mas uma mão tapou-lhe a boca.
– Por aí não, menina. Esse caminho está cheio de polícias – murmurou-
lhe ao ouvido uma voz de homem e Mabel acalmou-se. Um minuto depois a
polícia passou com os bastões em riste. Do seu esconderijo viu-os desistir e
regressar a Union Square.
– Obrigada – disse Mabel, olhando para o seu salvador pela primeira vez.
Era jovem, pouco mais velho do que ela.
O rapaz afastou-a dali.
– A menina é filha dos Rose, não é verdade?
Mabel sentiu que nem ali conseguia escapar.
– Chamo-me Mabel – disse, como se quisesse desafiá-lo a contradizê-la.
– Mabel. Mabel Rose. Não me esqueço. – Cumprimentou-a com um forte
aperto de mão. – Pois bem, Mabel Rose, desejo que chegue a casa em
segurança.
Soou uma explosão nas imediações.
– Vá agora – disse-lhe o misterioso salvador e correu velozmente pelo
beco, subiu a escada de incêndio e desapareceu para lá dos telhados.
***
De volta ao Bennington, Mabel apanhou o elevador para o sexto andar.
Duas lâmpadas tinham-se fundido havia muito tempo, lançando
permanentemente o patamar na sombra, o que lhe causava arrepios. Mabel
ouviu murmurar no outro extremo do corredor escuro e assustou-se. E se
afinal a polícia tivesse vindo atrás dela?
Apesar do receio, avançou cautelosamente. A menina Addie estava junto
à janela estreita de camisa de dormir, com o cabelo grisalho todo
emaranhado. Tinha na mão um saco de sal que ia deitando no parapeito para
formar uma tira larga. O sal saía também de um buraco no saco e
espalhava-se no tapete.
– Menina Addie? O que está a fazer?
– Não posso deixá-los entrar – respondeu a menina Addie sem erguer os
olhos.
– Não pode deixar entrar quem?
– Estão a passar-se acontecimentos terríveis. Aproximam-se coisas
pecaminosas.
– Quer referir-se aos assassínios? – perguntou Mabel.
– Já começou. Sinto-o. Vi em sonhos o homem do chapéu alto com uma
capa de corvos. Aproxima-se uma situação terrível. – A mão de Addie
esvoaçava perto do seu rosto como um pássaro ferido. Parecia confusa,
como uma mulher que acordasse depois de uma anestesia com éter. – Onde
está a minha porta? Não consigo encontrá-la.
– A senhora está no sexto andar, menina Adelaide. Precisa de ir para o
décimo. Pronto, eu levo-a.
Mabel retirou o saco de sal das mãos da idosa e ajudou-a a entrar no
elevador, segurando o fecho traiçoeiro da porta.
– Quando as curandeiras foram acusadas de praticar bruxaria como se
fosse um jogo e as nossas forcas floresceram com mortos, o homem estava
lá. Quando os Choctaw foram levados à ruína pelo Caminho das Lágrimas,
o homem estava lá.
Mabel contou os andares, desejando que o elevador subisse mais
depressa.
– Dizem que apareceu ao senhor Lincoln uma noite antes da Guerra entre
os Estados. Foi como se uma mão descesse e arrancasse o coração da nação,
e até os rios sangraram e as feridas da terra não sararam. – De súbito, a
menina Addie calou-se e olhou diretamente para Mabel. – É terrível o que
as pessoas podem fazer umas às outras, não é verdade?
Mabel abriu apressadamente a porta do elevador para deixar sair a menina
Addie. Sabia que deveria ajudá-la a chegar à porta, mas estava demasiado
assustada.
– É ao fundo do corredor à direita, menina Adelaide.
– Sim, muito obrigada. – A menina Addie tirou o saco de sal das mãos de
Mabel e saiu para o patamar escuro. – Não estamos em segurança, sabes.
De maneira nenhuma.
Mas Mabel já fechara a porta e o elevador descia.
– É terrível o que as pessoas podem fazer – repetiu a menina Addie.
Do elevador, Mabel via afastarem-se os pés descalços da idosa, um rasto
de sal e a renda da camisa de dormir que a seguia como espuma do mar.
14 Industrial Workers of the World, em português Trabalhadores Industriais do Mundo, sindicato
adepto da Teoria Sindicalista Revolucionária. (N. da T.)
OPERAÇÃO JERICHO
A casa estava situada na colina batida pelo vento, como uma sentinela. O
exterior coberto de hera que se espalhava como uma mancha. As janelas
estavam fechadas e pregadas. As portas entalhadas, de cerejeira, eram
castanhas. Se alguém conseguisse espreitar para dentro teria notado as teias
pendendo das portas e as aranhas ocultando nas frinchas as presas
envolvidas nos seus fios. As tábuas tortas curvavam-se perigosamente em
determinados pontos.
A casa fora magnífica nos seus tempos. Albergara festejos e bailes. Aos
domingos, as carruagens passavam por lá para admirar a sua altiva
presença, um símbolo de tudo o que era certo e bom e da esperança do país.
A casa era um sonho materializado. O homem que a construíra, Jacob
Knowles, fizera fortuna com o aço, o aço que fora utilizado para construir a
cidade. Apenas uma filha sua e de sua mulher sobrevivera. Chamava-se Ida
e era a maior alegria de ambos. Ida era pequena e atreita a constipações e,
por essa razão, os seus ansiosos pais satisfaziam todos os caprichos da
menina. Tinha aulas de piano, dava passeios de pónei e era dona de um
pequeno spaniel chamado Chester. Quando Ida organizava chás na relva, as
criadas ficavam por perto para servir as bonecas. Eram muitos os dias em
que fingia ser uma princesa árabe vigiando o seu reino. Subia as escadas até
ao último andar da casa, um sótão onde havia um quarto com um pequeno
terraço. Daí viu o fumo dos incêndios da Revolta de 1863, imaginando que
olhava para tocas de distantes dragões e não para as fervilhantes frustrações
de uma guerra de classes e racial, que se transformava numa brutal
violência de multidões. Durante a Guerra Civil, Ida transformou-se numa
jovem mulher. Sonhava casar-se com um bonito oficial para se
transformarem no senhor e senhora da imponente casa. Meses depois do
final da Guerra Civil os soldados da União juntaram-se ao próprio general
Grant para uma festa na casa e espalharam-se pelos relvados para o fogo de
artifício, enquanto os acordes de uma valsa ecoavam ao longo das vigas do
teto. Mas Ida estava constipada e ficou confinada à sua cama com uma
cataplasma de mostarda no peito, soluçando de infelicidade, embora a mãe
lhe tivesse dado umas palmadinhas na face e lhe dissesse que não se
preocupasse, que haveria outro baile e um jovem à espera dela e, além do
mais, que ainda não estavam preparados para que a sua única filha, a sua
querida Ida, os deixasse tão cedo.
Mas foi a mãe de Ida que teve de os deixar. Um ano após o baile, a Sr.ª
Knowles adoeceu de disenteria e foi enterrada uma semana depois. Um ano
mais tarde, Jacob Knowles morreu com uma súbita hemorragia cerebral. E
Ida, de vinte e dois anos, teve de manter Knowles’ End. Governar uma casa
era muito diferente de brincar às princesas e embora um primo afastado a
avisasse que deveria ser prudente com os seus gastos, ela não seguiu este
conselho. Dilacerada pelo desgosto de ter perdido os pais, Ida procurou
consolo no novo espiritualismo. Abriu Knowles’ End aos teosofistas,
cartomantes e médiuns espíritas. A mais dotada destes médiuns era uma
viúva rica chamada Mary White, que tinha uma misteriosa capacidade para
pôr Ida em comunicação com os seus parentes no outro mundo. Não havia
pancadas na mesa, nem truques baratos de levitação, como tantos tentavam.
Não. Mary White tinha um dom genuíno e uma atitude afetuosa, pelo que
Mary e Ida se tornaram muito próximas, chamando Ida «irmã» à amiga.
Mais uma vez, a casa encheu-se de atividade e Knowles’ End tornou-se
um local de reuniões espirituais, cartomancia, sessões de espiritismo e todo
o tipo de encontros esotéricos e ocultistas. Ida tinha a certeza de que era
apenas uma questão de tempo até a antiga glória de Knowles’ End ser
restaurada. Mas Mary nunca lhe dissera que os espíritos o garantiam.
Mary tinha um companheiro nestas tentativas, um homem extremamente
carismático com olhos penetrantes, um tal Sr. Hobbes. Era, garantia ela, um
profeta. Um homem santo.
É certo que passava muitas horas sozinho na biblioteca a ler e, por vezes,
durante as sessões de espiritismo, caía em estranhos transes e dizia palavras
que Ida não compreendia – prova, afirmava Mary, da sua ligação com o
reino dos espíritos.
Mas as despesas de Ida eram muitas – os médiuns espíritas são
dispendiosos – e a fortuna dos Knowles diminuiu rapidamente. Ida seria
socialmente humilhada se as suas dívidas fossem conhecidas. Foi Mary que
se ofereceu para comprar Knowles’ End e aceitar Ida como hóspede para
lhe poupar a reputação. Mary concordou em deixar ficar Ida no seu quarto
favorito, o quarto do sótão com vista para a cidade, e disse-lhe que não se
preocupasse, pois pagaria os impostos em atraso e o Sr. Hobbes ocupar-se-
ia da difícil tarefa de recuperar Knowles’ End, que entretanto se degradara,
e de a tornar de novo bela.
E foi o que fez. Mas foi uma confusão! Uma equipa trabalhava durante
uma semana, para ser sumariamente despedida e substituída por outra que
duraria talvez cinco ou seis dias antes que o Sr. Hobbes também os
mandasse embora. Por fim, ele próprio deitou mãos à obra trabalhando na
velha cave, para construir uma despensa para enlatados e provisões – ou
pelo menos foi o que disse, pois Ida não tinha autorização de ir lá abaixo.
– É demasiado perigoso – dizia-lhe com um sorriso que não lhe chegava
aos olhos. (Os seus olhos, frios e hipnotizadores.) – Não quereria que
encontrasse a morte lá em baixo.
Houve outras alterações peculiares na casa. Portas que abriam para lado
nenhum, rosetas decorativas que emolduravam buracos nas paredes de onde
saía um estranho fumo que o Sr. Hobbes insistia ser benéfico para os
pulmões e necessário para o importante trabalho espiritual. Uma longa
conduta inclinada para a roupa suja que a Sr.ª White garantia ser uma ajuda
para a pobre lavadeira. Estavam reduzidos a três criados – uma lavadeira,
uma criada de fora e um criado que era também motorista. Era uma
desgraça e Ida tinha esperança que ninguém descobrisse como as coisas
estavam mal. Mas depois, Mary sorria e dizia-lhe que tinha sido visitada
pela forma espectral do pai de Ida com um molho de rosmaninho na mão,
símbolo da recordação, sinal seguro de que cuidava de todos, e Ida sentia-se
grata por este pequeno conforto. Para tratar o estado nervoso de Ida, Mary
oferecia-lhe vinho doce que, por vezes, provocava nela estranhos sonhos de
fogo e destruição e visões fantasmagóricas de homens e mulheres de rostos
sérios.
As coisas começaram a azedar. Realizavam-se estranhas reuniões a altas
horas da noite. Uma ou duas vezes por mês, Ida ouvia música e cânticos
vindos lá debaixo. Havia gente que ia e vinha.
– O que fazem nessas reuniões? – perguntou Ida ansiosa, uma noite
enquanto jantavam. Mal tocou na comida. A carne assada estava demasiado
crua para o seu gosto.
– Porque não se junta a nós, minha querida? – sugeriu a Sr.ª White.
– A Babilónia, essa grande cidade, caiu. É tempo de uma limpeza. De um
renascimento. Não é da mesma opinião, menina Knowles? – perguntou o Sr.
Hobbes a sorrir. Tinha uns olhos tão azuis que Ida se sentia desconcertada.
Por um momento, ao olhá-lo, perguntou a si própria como seria dançar com
o Sr. Hobbes. Sentir os seus beijos. As suas carícias. E assim que o pensou,
foi vencida pelo asco.
– Certamente que não sei de que está a falar – disse, com as mãos a
tremer. O sangue da carne assada formava no seu prato uma pequena poça
enjoativa. – Eu... eu não me sinto bem. Se me desculparem, vou para a
cama.
Nessa noite, ouviu sons estranhos vindos do interior da casa, murmúrios e
ruídos bestiais. Sentia-se demasiado assustada para sair do quarto. Ficou
acordada, e tremeu até de manhã, debaixo dos cobertores.
Num armário do salão, o Sr. Hobbes guardava um livro grande, forrado a
couro, semelhante a uma Bíblia. Mas quando Ida tentou ir buscá-lo,
descobriu que o armário estava fechado. O seu próprio armário, na sua
própria casa, fechado, para que ela não pudesse ter-lhe acesso! Trémula de
raiva, enfrentou a Sr.ª White, pois já não a considerava como a sua afetuosa
irmã Mary.
– Não admito, senhora White, não admito – disse bruscamente.
– Já não está em sua casa, minha querida – respondeu a Sr.ª White e o seu
sorriso era cruel.
Foi numa terça-feira que Ida descobriu um monte de trapos
ensanguentados que o Sr. Hobbes lhe garantiu, de um modo tão delicado
como correto, pertencerem à lavadeira, devido às suas regras. (Coitada, foi
um embaraço para ela. Claro que lhe demos roupa limpa e mandámo-la
para casa descansar. Coitada, pobrezinha. Receio que, por ter ficado tão
envergonhada, já não queira voltar cá para casa.) Ida escreveu uma carta
desesperada ao primo, em Boston, que enviou as autoridades, mas, quando
estas chegaram, Ida estava num torpor tal, que a Sr.ª White lhes disse que
ela não se encontrava bem, que estava a ser tratada e que esperava que o
esforço de descer a escada para responder às perguntas não lhe pusesse a
saúde em perigo. As autoridades recuaram, resmungando desculpas.
A última criada, Emily, saiu pela calada da noite, sem sequer se despedir.
Nem esperou para receber o salário.
Ida estava farta. Deixou de beber o vinho. O seu corpo, embora
enfraquecido, tinha força suficiente para descer as escadas, pois tencionava
descobrir o que se passava na sua própria casa. Sim! A sua própria casa!
Fora construída pelo pai, para a sua família! Era uma Knowles, não um
desses novos-ricos cheios de dinheiro e prosápia: a Sr.ª White, essa charlatã,
saíra para organizar uma sessão de espiritismo em casa de uma pobre alma
com mais dinheiro que juízo. E o Sr. Hobbes, o Sr. Hobbes com os seus
olhos frios e ar arrogante, as suas mentiras e segredos. Que homem
malvado! Ida precisava de saber o que se passava na sua própria casa e
começaria por ir ver a cave proibida.
Começou a descer a escada alta e estreita para o espaço húmido e escuro.
Cheirava a terra e a mais qualquer coisa. Ida sentiu-se nauseada com o mau
cheiro. Daria uma olhadela em volta e, com sorte, encontraria o que
precisava para ir às autoridades e expulsar da sua casa aquela gente
horrível. Depois, procuraria um hóspede adequado, ou até – atrever-se-ia a
pensar? – um marido. Um nobre cavalheiro com quem partilharia a sua
vida. Juntos devolveriam à casa a sua antiga imponência. Festas
frequentadas por gente decente, gente importante e de classe. Knowles’ End
reinaria de novo.
A mão de Ida tremeu na pega da lanterna. A luz cintilou nas paredes e nos
cantos. Ida viera em busca de informação e obtivera-a. Sabia que, sem
sombra de dúvida, enfrentava um mal terrível. Não houve qualquer grito
quando a vela estremeceu e os murmúrios começaram. E exatamente no
momento em que Ida soltou o grito que retivera na garganta, a vela apagou-
se e ela mergulhou na escuridão.
O HOTSY TOTSY
Theta ficou sentada à mesa, só, por trás de uma imperscrutável nuvem de
fumo de cigarros, a assistir. Henry começara uma conversa com um criado
bem-parecido chamado Billy, o que a fez duvidar de que ele fosse para casa
nessa noite. Observou o divertimento das debutantes mimadas que tinham
vindo à zona norte da cidade para ouvir jazz em clubes proibidos, só para
irritar as mães. Observou os barmen enchendo copos, mas sempre com os
olhos nas portas. Observou os corações solitários das mulheres suspirando
por homens que, sem reparar nelas, suspiravam pelas suas queridas.
Observou uma discussão entre um casal que agora se remetera a um triste
silêncio. Observou as meninas que vendiam cigarros sorrindo para as
mesas, gabando os benefícios dos Lucky Strikes ou Chesterfields para a
saúde, conforme a empresa que lhes pagava mais. Observou as jovens que
dançavam no palco, imaginando a idade que teriam quando começaram.
Teriam sido arrastadas de cidade em cidade naquela vida desde os quatro
anos? Teriam ficado acordadas no chão de motéis baratos, para depois, na
manhã seguinte, fazerem a ronda pelos agentes, quase mortas de cansaço?
Alguma delas se atrevera a fugir de uma pequena cidade, a meio da noite?
Teriam mudado os nomes e a aparência, tornando-se pessoas
completamente diferentes, para não serem encontradas? Alguma delas teria
um poder tão assustador que tinha de ser bem escondido, fechado a sete
chaves?
Um rapaz bem-parecido com um emblema de uma república universitária
na lapela aproximou-se da mesa de Theta, bloqueando-lhe a vista.
– Importa-se que lhe faça companhia?
Theta esmagou o cigarro no cinzeiro.
– Desculpe, amigo. Ia-me já embora. – Agarrou no seu abrigo e na bolsa
de Evie e foi em busca da casa de banho.
***
***
***
Evie e Mabel passaram toda a noite numa cela em Tombs, a famosa prisão
da Baixa da cidade, rodeadas de jovens embriagadas, prostitutas e uma
mulher enorme que rosnava como um cão sempre que alguém se
aproximava. A mãe de Mabel foi a primeira a chegar, varrendo o corredor
com a sua altivez característica.
– Espero que as meninas tenham tido tempo de refletir sobre a vossa noite
– disse, mas era para Evie que olhava e era claríssimo que pensava que ela
deveria arcar com todas as culpas.
– Adeus, Evie – disse Mabel, enquanto a mãe a acompanhava à saída.
Parecia uma prisioneira a caminho da cadeira elétrica sem direito a uma
última refeição.
Já passava das sete horas, quando o tio Will pagou a fiança de Evie. A
cidade acordava ruidosamente para a vida, para outra manhã em Manhattan,
quando ela e Will chegaram à Rua White.
– Devia ter-te deixado lá ficar mais tempo – disse Will bruscamente.
Caminhava tão depressa que Evie mal o conseguia acompanhar. A cabeça
doía-lhe a cada passo.
– Peço muita desculpa, Tito.
– Tínhamos um acordo: eu dava-te liberdade, mas tu não te metias em
sarilhos.
– Bem sei e sinto-me completamente estúpida por ter sido apanhada
assim.
Will espetou um dedo.
– Não é essa a questão, Evangeline. Tu desobedeceste deliberadamente ao
meu muito razoável pedido para que ficasses em casa ontem à noite.
Mentiste-me.
– Não menti exatamente…
– Sair à socapa é mentir.
– Sim, mas... pode abrandar um pouco, Tito? Estou cheia de dores de
cabeça. – O sol da manhã magoava-lhe os olhos.
O tio Will parou junto a uma banca de jornais e passou a mão pelo cabelo.
Um miúdo acenou-lhe com o jornal, mas ele enxotou-o.
– Foi uma ideia horrível. Sou solteiro; não faço a mínima ideia de como
ser pai ou sequer tio.
– Não é verdade. É um tio muito bom. É o melhor tio que conheço. A sua
fotografia devia estar no dicionário junto da entrada da palavra tio.
– Essa graxa não dá resultado, Evie. Proibi-te de sair ontem à noite por
uma boa razão. Porém, preferiste ignorar o meu pedido.
– Oh, mas Tito…
– E avisei-te especificamente para não te meteres em sarilhos, não é
verdade? Bem, é mais que evidente que este acordo não resulta.
– Q...que quer dizer com isso? – perguntou Evie, já com o estômago a
doer.
– Será melhor que regresses ao Ohio. Amanhã telefono à tua mãe... –
olhou para o relógio – … hoje. E trato de tudo.
– Mas... foi só a primeira vez que me meti em sarilhos! – Assim que
acabou de dizer isto, Evie apercebeu-se de como aquele argumento era
ridículo. Era quase uma promessa de que mais sarilhos estavam para vir e
desejou poder retirar o que dissera. – Por favor, Tito. Peço muitas
desculpas. Nunca mais lhe desobedeço.
Will encostou-se a um candeeiro da rua. Evie apercebia-se de que ele
estava a ceder, por isso manteve o ataque.
– Faço tudo, varro o chão, limpo o pó às bugigangas. Faço sanduíches
todas as noites. Mas, por favor, por favor, não me mande para casa.
– Não tenciono ter esta discussão em plena Rua White com uma pessoa
que cheira como uma destilaria. Vou levar-te para o Bennington para
dormires a sesta e, sugiro, tomares um banho.
Evie cheirou a manga do casaco e fez uma careta.
– Espero-te no museu às três da tarde. Nessa altura dir-te-ei o que vou
fazer. Não te atrases.
Will regressou a casa pela hora do jantar e chamou Evie ao seu escritório.
Estava sentado muito direito na cadeira, mexendo num cigarro apagado. A
telefonia tocava em surdina.
– Evangeline, não deveria ter-me irritado contigo há bocado. Peço
desculpa.
Evie encolheu os ombros.
– Toda a gente se zanga de vez em quando.
– Apanhaste-me de surpresa, parece-me. – Will acendeu o Chesterfield
que tinha na mão, puxou uma baforada e soprou uma fina espiral de fumo. –
Fala-me então um pouco mais desse teu talento.
– Teve início há dois anos quando comecei a sonhar com o James.
– Com o teu irmão James?
– Não, com o porteiro – disse Evie exasperada, para logo se arrepender. A
última coisa que desejava era irritar o tio.
– Não havia antecedentes. Sou curador e académico. Preciso das fontes –
disse Will em tom prático. – Como o descobriste?
– A primeira vez aconteceu com uma pregadeira da minha mãe. Queria
usá-la, mas ela não queria. Deixou-a em cima do toucador e eu peguei-lhe,
mas não conseguia arranjar coragem para a pregar no meu vestido. Comecei
a dar-lhe voltas nas mãos e tive uma sensação estranha. A pregadeira ficou
quente, senti um formigueiro na palma das mãos que também aqueceram. –
Evie fez uma pausa. Queria falar do assunto, mas sentia-se exposta.
– Continua. O que viste? Só tiveste acesso a uma hora da história do
objeto, ou conseguiste ver mais para trás? Apercebeste-o mais como uma
sensação, uma sugestão, ou sentiste-o como se estivesses com a pessoa a
viver esse momento?
– Quer dizer que… acredita em mim?
Will acenou afirmativamente.
– Acredito em ti.
Evie inclinou-se para diante esperançosa.
– Foi como se me sentasse no cinema, mas a ver um filme em que o
projetor não fosse muito forte. Foi apenas um momento. Consegui ver a
minha mãe sentada ao toucador e sentir o que ela sentira quando usara a
pregadeira.
– E o que foi?
Evie olhou-o nos olhos.
– Desejou que tivesse sido eu a morrer em vez do James.
Will afastou o olhar.
– As mães amam igualmente todos os filhos.
– Não. Não amam. Isso é o que está convencionado dizer-se.
– E foi essa a primeira vez?
– Sim. Depois testei. Sempre que me concentrava num objeto, sentia
parte da sua história. Não é sempre da mesma maneira. Por vezes, as
imagens que vejo são esbatidas, outras vezes, mais fortes. Penso que,
quando a emoção é forte, sinto e vejo mais.
– Dirias que essa capacidade se tem tornado mais forte ou mais fraca?
– Não sei. Não tenho praticado como se tocasse castanholas – disse Evie.
– Será que se pode praticar como se fossem castanholas?
– Conheces alguém que consiga fazer o mesmo que tu? – inquiriu Will,
ignorando a pergunta.
– Há outras pessoas como eu?
– Se há, não se deram a conhecer. Disseste aos teus pais?
– Já foi difícil dizer-lhes depois do que aconteceu no Ohio. Pensam que
foi uma das minhas partidas.
– Muito bem – disse Will.
– Porque me está a fazer todas essas perguntas?
– Estou a tentar perceber – respondeu Will.
Nunca ninguém falara com Evie daquele modo. Os pais sempre quiseram
aconselhá-la, instruí-la ou dar-lhe ordens. Eram boas pessoas, mas
precisavam que o mundo se lhes curvasse, para caber na sua ordem de
coisas. Evie nunca se adaptara exatamente e quando tentava, acabava por
saltar dela, como uma boneca espremida para caber numa caixa demasiado
pequena.
– Então ninguém sabe – murmurou Will.
– Bem, exibi-me um pouco naquela festa a que a Theta me levou – disse
Evie, vacilante.
– Fizeste isto numa festa? – Will parecia assustado.
– Não foi nada de importante! Só disse às pessoas o que elas tinham
jantado, ou o nome dos cães ou dos filhos. A maioria das pessoas estava
com os copos. – Evie teve o cuidado de não dizer que tinha bebido. – Foi só
por brincadeira. Porque não haveria de o fazer?
– Não foi isso que te meteu em sarilhos?
– Isso foi no Ohio. Estamos em Nova Iorque. Se as raparigas podem
dançar quase nuas nos clubes noturnos, não sei porque não hei de pôr em
prática as minhas capacidades de adivinhação.
– As pessoas não têm medo de raparigas quase nuas nos clubes noturnos.
– Pensa então que terão medo de mim?
– As pessoas têm sempre medo daquilo que não compreendem,
Evangeline. A história prova-o. Suponho que, se estavam a beber... – Will
não terminou a frase. – E dizes que tiveste um desses episódios com a fivela
do sapato de Ruta Badowski?
Evie acenou afirmativamente.
– Vi uma sala terrível, uma fornalha enorme e o contorno de um homem,
creio. Mas foi apenas uma silhueta, uma sombra. Não tenho a certeza. –
Abanou a cabeça. – Crê que aquilo que vi estava relacionado com o crime?
Will tinha uma expressão rígida.
– Não sei.
– Pensa que devo contar à polícia? – perguntou Evie.
– Certamente que não.
– Porque não? Se ajudasse...
– Pensariam que eras maluca. Ou pior: alguém a tentar conseguir que o
seu nome apareça nos jornais. Terrence e eu somos amigos há algum tempo.
Sei o que a polícia pensa.
– Mas se conseguisse ler mais alguma coisa a partir dos crimes, alguma
coisa que pertencesse ao Tommy Duffy, por exemplo…
– Nem penses nisso – declarou Will. – Não creio que devas tocar no que
quer que seja que tenha a ver com estes crimes. – Will saltou da cadeira e
andou de um lado para o outro a todo o comprimento da sala. Parou a meio
para deitar a cinza num cinzeiro de prata de pé alto junto de um cadeirão às
riscas azuis e brancas que parecia nunca ter sido usado. Era como se a
energia de Will não lhe permitisse sentar-se tempo suficiente para nele
deixar uma impressão. – Vamos apanhar o nosso assassino com trabalho de
detetive à moda antiga, mesmo que tenhamos de ler todos os livros sobre
ocultismo que há na biblioteca do museu.
– Então... posso ficar? – perguntou Evie.
– Sim. Podes ficar. Por enquanto. Mas haverá novas regras. Nada de idas
a speakeasies. E deverás ajudar no museu.
– Claro. – Era melhor que o comboio de volta para o Ohio. E assim que
provasse ao tio como era indispensável, este teria de ficar com ela a longo
prazo.
– Obrigada, Tito. – Evie lançou os braços em redor do pescoço de Will
que se endireitou e esperou que ela se retirasse.
À porta, Jericho aclarou a garganta e esperou que dessem por ele. Deixou
cair a última edição do jornal sobre a secretária de Will.
– Talvez queira ler isto.
– «Exclusivo para o New York Daily News, por T. S. Woodhouse. O
Museu e o Crime do Pentagrama» – leu Will em voz alta. Franziu a testa e
abanou o jornal. – O que é isto?
Evie arrancou-lhe o jornal da mão e continuou a ler.
– «A cidade de Nova Iorque, essa animada metrópole não é alheia à
violência. Bugsy Siegel, Meyer Lansky e o resto da Companhia dos
Assassinos juntaram cadáveres mais depressa do que foi possível os chuis
aceitarem subornos para fazer vista grossa. Mas os Assassínios do
Pentagrama assustaram os habitantes de Nova Iorque, incluindo os mais
empedernidos. As mães não deixam os filhos jogar à bola nas ruas depois
do pôr do Sol. As empregadas das lojas gastam os tostões que tanto lhes
custam a ganhar em táxis para irem diretas para casa, para os seus
apartamentos em Murray Hill e na Rua Orchard, que nem sequer têm água
quente. O sultão do swing, o próprio Sr. Babe Ruth prometeu uma
recompensa de quinhentos dólares a quem tiver informações que levem à
captura desses terríveis inimigos. Mas no meio de toda esta criminomania
de Manhattan há uma chafarica que começa a destacar-se – o Museu
Americano do Folclore, Superstição e Ocultismo. O Museu dos Arrepios
para os que estão dentro do assunto.» Tito, o Museu chegou aos jornais! – e
continuou: – «Tem a ver com tudo o que é macabro e qualquer coisa
macabra é boa para o negócio. Numa destas sextas-feiras, este repórter
testemunhou uma multidão estacionada junto à entrada da mansão do velho
Cornelius T. Rathbone, perto de Central Park. Isto porque o curador do
Museu, o professor William Fitzgerald…» Oh! É o meu Tito! – exclamou
Evie – «ajuda a polícia a descobrir o que provoca este diabólico assassino
na esperança de o encontrar antes que ataque de novo. É assistido no seu
trabalho pela sobrinha, a menina Evie O’Neill, vinda de Zenith, Ohio, uma
elegante menina de dezassete anos que entende de tudo desde o penteado
das bruxas aos ossos dos conjurados chineses. Mas quando este repórter
tentou recolher informações acerca da caçada ao assassino, a dama fechou-
se em copas. “Receio bem não poder comentar acerca desse assunto”, disse
ela e piscou os seus belos olhos azuis. Rapazes, preparem-se. Há mais do
que um assassino nesta cidade.»
Evie tentou esconder um sorriso. Afinal T. S. Woodhouse cumprira o
prometido.
– Evangeline, falaste com este Woodhouse? – perguntou.
– Tito, não fazia a mínima ideia de que ele fosse um repórter! Era um
visitante do museu e pagou a entrada. Servi de cicerone. Quando começou a
fazer perguntas, cortei-lhe as vazas. O rapaz queria enganar-me!
– Tens de ter mais cuidado. Aprende a viver em Nova Iorque. – Will
bateu com um segundo cigarro na mesa antes de o acender, para compactar
mais o tabaco. – O que terá acontecido ao verdadeiro jornalismo?
– Não sabe? – comentou Jericho. – Não vende jornais.
– Tem toda a razão, Tito. Esse Woodhouse é um cretino. Mas pelo menos
mencionou o museu – disse Evie. – Sabe o que isso quer dizer?
Will soprou duas espirais de fumo pelas narinas.
– Sarilhos – declarou.
O telefone tocou sobressaltando-os a todos. Will atendeu e a sua
expressão endureceu.
– Vamos ter contigo.
– Que se passa? – perguntou Evie.
– O Assassino do Pentagrama atacou de novo.
O PAPÃO
Memphis estava distraído. Durante todo o dia reviu o seu encontro com
Theta, a emoção da sua fuga da polícia. O modo como ela o olhara quando
se apercebeu de que tinham conseguido, com gratidão e alguma timidez.
Naquele momento, Memphis nada mais desejara do que arrebatá-la num
beijo romântico. De facto, foi o pensar naquele beijo que quase lhe
provocou problemas. Nessa manhã, quando foi ao salão da Sr.ª Jordan para
escrever os papelinhos, trocou os números habituais da Sr.ª Jordan com os
da Sr.ª Robinson por ter o pensamento muito longe dali.
– Memphis, onde estás com a cabeça? – perguntou a Sr.ª Jordan com
simpatia e Memphis pediu desculpa e correu a entregar os números na
Barbearia Floyd pouco antes do fecho.
Papa Charles convocara uma reunião no Restaurante Dee-Luxe, um dos
que lhe pertencia, para discutir a desastrosa rusga do dia anterior. Garantiu a
todos que a situação era de pouca monta, um mal-entendido já prestes a ser
resolvido e que o cadeado em breve seria retirado das portas do Hotsy
Totsy. Mas Memphis percebia que sob os seus elegantes modos e o seu
calmo discurso, o Papa Charles estava nervoso. Tinha o tal tique no queixo
que Memphis já algumas vezes lhe notara, quando tinha de lidar com um
cliente embriagado e beligerante ou um contrabandista drogado. Mas,
mesmo assim, Memphis não deixava de pensar em Theta.
Theta, Theta, Theta. Encontrara a rapariga dos seus sonhos – uma
rapariga que tinha o mesmo sonho que ele – e perdera-a por entre a
multidão. Logo quando sentira que o seu destino estava a tomar forma,
perdera-a. Não sabia onde ela vivia, de onde era, nem sequer o apelido dela.
E aquele pássaro louco voltara, seguindo-o a cada passo.
– Xô! – Memphis agitava as mãos na direção do corvo. – Vá, Berenice!
Sai!
E agora Memphis estava atrasado para ir buscar Isaiah à escola. Entrou na
sala de aula cheio de desculpas, mas Isaiah não quis saber de desgraças. Na
rua, de mau humor, o irmão seguia aos pontapés a uma pedra, metendo-a na
valeta.
– Devias estar aqui às três horas!
– Tive coisas que fazer, Homem de Gelo.
– Que coisas?
– Coisas minhas. Não é nada contigo.
– Para a próxima vou sozinho para casa.
– Para a próxima não me atraso.
– Calhando andas por aí aos saltos com aquela Princesa Crioula –
resmungou Isaiah.
Memphis parou.
– Onde é que ouviste isso?
Isaiah desatou a rir.
– Vi escrito no teu caderno ontem à noite. O Memphis arranjou uma
namorada! O Memphis arranjou uma na-mo-ra-da!
Memphis pegou no braço de Isaiah.
– Ouve bem: o caderno é privado. Pertence-me. Percebeste?
Isaiah espetou o queixo.
– Larga-me o braço!
– Promete!
– Larga! – Isaiah soltou-se e desatou a correr pela rua movimentada. Era
imprevisível quando se enfurecia e tanto podia queixar-se a Octavia como
não.
Memphis acalmou-se. Não havia necessidade de descarregar as suas
frustrações em Isaiah, por muito aborrecido que estivesse. Apressou-se a
apanhá-lo, dizendo:
– Não te zangues, Homem de Gelo. Anda, vamos comer um hambúrguer
ao senhor Reggie. Podes sentar-te ao balcão, nos bancos giratórios. Mas não
dês muitas voltas para não vomitares o hambúrguer.
Isaiah parou. Tinha o nariz a pingar.
– Quero chocolate.
– Então dou-te chocolate – prometeu Memphis.
Memphis estava preocupado com Isaiah. Fora por acaso que a irmã
Walker lhe descobrira aqueles talentos especiais. Havia cerca de seis meses
que se mudara para o Harlem e fora visitar Octavia. Dissera ser uma velha
amiga da mãe deles e ficara triste ao saber o que ela passara.
– A Viola era muito boa mulher – dissera a irmã Walker.
Octavia observara-a e não ficara convencida.
– Estranho, ela nunca me ter falado de si. E éramos tão próximas.
– Ora, suponho que até as irmãs guardam alguns segredos – respondera a
irmã Walker e Memphis percebera que aquilo não assentara bem à tia.
Mas quando a menina Walker se ofereceu para ajudar Isaiah com a
aritmética, uma disciplina que lhe causava problemas, e ainda por cima de
graça, Octavia cedeu. Um dia, enquanto a irmã Walker usava as cartas para
lhe ensinar a multiplicação, Isaiah começou a dizer quais eram
antecipadamente e a irmã perguntou-lhe se ele sabia fazer outras coisas.
Disse que era um dom que o poderia ajudar na vida e incentivou-o a
trabalhá-lo como se fosse uma disciplina da escola. Memphis não via como
esse dom seria uma ajuda para a vida de Isaiah, como era para Gabe tocar
trompete ou resolver equações numéricas era para a Sr.ª Ward na escola. E
se alguma vez Octavia descobrisse o que de facto se passava em casa da
irmã Walker, teria uma fúria nunca vista. Mas era importante para Isaiah.
Fazia-o sentir-se especial e feliz como antes, quando a mãe ainda era viva e
brincava com eles às escondidas enquanto estendia a roupa na corda no
jardim que partilhavam com os Touissant na casa da Rua 145. Memphis
ainda se lembrava do riso da mãe quando dizia: «Muito bem, vamos ver
agora se conseguem estender estes lençóis tão bem como se escondem
neles.»
Tinham sido tempos felizes, o pai voltava para casa do trabalho na
Orquestra de Gerard Lockhart e perguntava jovial: «Ora muito bem, o que
andaram hoje a fazer os irmãos Campbell?» Memphis tinha saudades do
cheiro do cachimbo do pai na sala da frente. Por vezes passava pela loja de
tabaco na Avenida Lenox só para avivar a memória desse aroma.
– Toma conta do Isaiah – dissera a mãe. Nessa altura estava pele e osso,
deitada na sala da frente, a doença roubando-lhe a alegria que ele tanto
gostava de ver nela. Tinha os olhos cavos. – Promete-me. – E ele
prometera. Três dias depois enterraram-na no Cemitério de Woodlawn. A
Orquestra de Gerard Lockhart mudou-se para Chicago e o pai de Memphis
foi também até poder poupar o suficiente para mandar para os filhos. Mas
nunca parecia ser suficiente e ali tinham ficado no quarto das traseiras em
casa de Octavia.
Isaiah era tudo o que restava desses dias felizes em que a família estava
toda junta e bastava entrar em casa para ouvir alguém a rir ou a perguntar,
«Quem está a bater à minha porta?» e Memphis agarrava-se com força ao
irmão. Se alguma coisa acontecesse a Isaiah não sabia se conseguiria
sobreviver.
Mas tudo aquilo já pertencia ao passado e ele não ia ficar agarrado ao que
já não voltava. A noite anterior com Theta dera-lhe uma nova esperança.
Ela estava algures naquela cidade e Memphis tencionava procurá-la até
voltar a encontrá-la.
Na farmácia17 ele e Isaiah ocuparam dois lugares ao balcão e o Sr. Reggie
preparou-lhes os pedidos, pressionando com uma espátula os dois
hambúrgueres na grelha que soltava um reconfortante assobio de gordura e
calor. Passou-os para pratos e serviu-os juntamente com uma gasosa para
Memphis e um batido de chocolate para Isaiah. Este encarregou-se
imediatamente de meter na boca colheradas do gelado deixando escorrer
metade pelo queixo.
– Parece-me que cheguei mesmo a tempo. – Gabe deixou-se cair no
banco ao lado de Memphis e agarrou-lhe o hambúrguer para lhe dar uma
generosa dentada. – Senhor Campbell. Exatamente o homem que eu queria
encontrar. A Alma vai dar uma festa de angariação de fundos para pagar a
renda. E nós vamos. E arranjei para nós uma pipa de massa.
Gabe entregou-lhe um maço de notas.
– Em frente do Isaiah, não – murmurou Memphis.
– Ele não sabe do que estamos a falar. Está a adorar aquele batido – disse
Gabe.
– Não sei o quê? – perguntou Isaiah.
Memphis lançou um olhar a Gabe Estás a ver?
Gabe apertou os lábios e cruzou os braços.
– Rapaz, por acaso terás ouvidos mágicos?
Isaiah sorriu.
– Não. Mas tenho poderes.
– Isaiah – avisou-o Memphis.
– Ah, não me digas! Eu sei como é – troçou Gabe.
– Aposto que sei quanto dinheiro tens no bolso – disse Isaiah dando a
volta no banco do bar.
– Isaiah, o Gabe não tem tempo agora para as tuas brincadeiras – disse
Memphis ríspido. – Come já!
Isaiah semicerrou os olhos. Memphis conhecia bem aquele olhar para
saber que a seguir vinham problemas.
– Tens uma nota de cinco, uma de um e duas moedas de vinte cinco
cêntimos. E a direção de uma senhora chamada Cymbelline.
Gabe esvaziou os bolsos e uniu as sobrancelhas.
– Como sabes?
– Eu bem te disse que tinha um dom. Também sei fazer profecias.
– Ele não sabe fazer nada disso. Isaiah, deixa-te de histórias – disse
Memphis, lançando ao irmão outro olhar de aviso.
– Posso dizer o que me apetecer – respondeu bruscamente Isaiah.
– Ele pode dizer o que lhe apetecer – disse Gabe a sorrir. – Diz-me outra
coisa, rapaz.
– Por vezes consigo ver o futuro das pessoas.
– Isaiah, acaba já com isso. Olha que temos de ir para casa...
– Espera aí, meu. O puto vai dizer-me o futuro. Talvez saiba alguma coisa
das gravações. Diz-me lá Isaiah, achas que vou ser a nova estrela da Okeh
Records.
– Tenho de tocar em ti.
– Senhor Reggie! Desculpe, senhor Reggie! – disse Memphis
rapidamente. – Quanto lhe devemos?
– Espera um segundo, Memphis – disse o Sr. Reggie. Trazia dois pratos
de comida nas mãos.
– Diz-me – murmurou Gabe, estendendo a mão. Isaiah tomou-a na sua e
concentrou-se. Depois de uns segundos deixou cair rapidamente a mão de
Gabe e recuou com os olhos muito abertos.
– O que viste? Não me digas... ela é feia? – troçou Gabe.
– Não vi nada – respondeu Isaiah e olhou para Memphis com os olhos
muito abertos. Memphis percebeu que o irmão ficara muito assustado com
o que vira.
– Vai buscar o casaco, Homem de Gelo.
Mas Gabe não o deixava em paz.
– Vá lá! O que foi que viste para o teu amigo Gabriel?
– Debaixo da ponte... não passes por baixo da ponte – disse Isaiah em voz
baixa. – Ele está lá.
– Que ponte? Ele quem? Que me vai acontecer se eu passar?
– Vais morrer.
– Isaiah! – vociferou Memphis. – Ele não quer dizer isso, mano. Só está a
brincar. Pede desculpa, Isaiah.
Com os olhos muito abertos, Isaiah afastou os olhos de Memphis, fitou
Gabriel e olhou de novo para Memphis.
– Desculpa, Gabe – disse baixinho.
– Estavas só a brincar, Isaiah? – perguntou Gabe.
– Estava sim – murmurou Isaiah, com a cabeça baixa.
O rosto de Gabe descontraiu-se num sorriso em parte de alívio, em parte
de aborrecimento.
– Maninhos – disse, abanando a cabeça. Deu uma palmada nas costas de
Memphis. – Não te esqueças do resto, Memphis.
– Não me esqueço.
O cego Bill Johnson estava sentado num canto com uma caneca de sopa
que Reggie tivera a delicadeza de lhe oferecer. A sopa era rala, mas estava
quente e ele comia-a vagarosamente enquanto se desenrolava a cena ao
balcão. Agora que terminara, pôs a viola às costas com um gemido e seguiu
batendo com a bengala pelas ruas do Harlem. O ar cheirava a chuva. Não
gostava de chuva, recordava-lhe a Luisiana. Era filho de um rendeiro com
dois olhos bons, apanhava algodão o dia inteiro e a chuva quase afogava
quem queria cumprir a sua quota. Recordava-lhe o dia em que o dono, o Sr.
Smith lhe batera com uma correia por tê-lo apanhado a tocar viola em vez
de apanhar algodão e como, mais tarde, metade da colheita do homem se
estragara – queimada e transformada em tufos – e encontraram o corpo
dilatado do Sr. Smith no rio, inchado como uma saca de arroz apodrecido e
as más-línguas diziam que não se podia confiar em Bill Johnson, porque
havia nele qualquer coisa de mabouya. Que ele ficara no cruzamento à
meia-noite e amaldiçoara o Papa Legba. Que cuspira na cruz. Que vendera
a alma ao Diabo.
Chovia na noite em que os homens de fato escuro chegaram ao
acampamento. As colheitas tinham chamado a atenção. Espalhara-se o
rumor de que a culpa poderia ser de Bill Johnson. Que podia matar um cão
velho que precisasse de misericórdia ou que, quando estava zangado,
segurava uma borboleta na mão e esta morria. Os homens de fatos escuros
sentaram-se, calmos e pacientes como tudo, só sorrisos e delicadezas na
sala do Sr. Tate a beber limonada por copos cobertos de gotas.
Trouxeram Bill à presença deles. Era um homem robusto, de vinte anos e
um metro e oitenta, a pele macia e castanho-escura, livre das marcas que os
antepassados ostentavam envergonhados. Bill sentou-se numa velha cadeira
de cana, com as mãos nos joelhos, enquanto os homens faziam perguntas:
Bill quereria ajudar a manter o país seguro? Gostaria de ir com eles e
conversar?
Bill queria sair dos campos e da Luisiana com os seus homens de capuzes
brancos que incendiavam a noite com as suas cruzes. Fora com os homens
de fato escuro na parte de trás do carro com as cortinas das janelas laterais
corridas.
Fez as coisas que lhe pediram. Falara-lhes do que era capaz de fazer com
o corpo, mostrara-lhes como a sua coluna se dobrava e o cabelo
embranquecia. Tinha apenas vinte anos, mas parecia ter cinquenta. Os
homens tinham esboçado os mesmos sorrisos suaves e dito: «Só mais uma
vez Bill.»
E quando a sua vista se limitou a pequenos pontos de luz indistinta que
em breve passara a negro, mandaram-no embora sem nada. Restava-lhe a
viola e uma cicatriz saliente na pele e um aperto de mão de aviso para que
não falasse. Perdera a vista. Tinha o corpo quebrado e cansado. E o dom –
se é que assim se poderia chamar – também parecia tê-lo abandonado.
Quantas vezes não invetivara o céu e desejara ter o dom de volta? E depois,
subitamente, cerca de três meses atrás, sentira as primeiras palpitações de
esperança. Apenas precisava da faísca certa para o retomar.
Agora, enquanto os irmãos Campbell saíam do drugstore do Reggie,
fazendo soar a pequena campainha sobre a porta, Bill ouvia-os a discutir. O
Campbell mais novo tinha o dom – era mais que evidente – e o mais velho
queria guardar segredo. Fazia bem. Não era bom que todos soubessem
segredos desses. Podiam ser descobertos pelas pessoas erradas. Por alguém
que até nem soubesse como eram perigosos.
As primeiras gotas de chuva caíram nos óculos escuros de Bill que
franziu o nariz. Maldita chuva. sem pensar esfregou a cicatriz da mão
esquerda e desceu a colina a bater com a bengala.
17 Nas farmácias americanas vendiam-se também refeições ligeiras e bebidas. (N. da T.)
ESTRELA CELESTIAL
***
No museu, Evie regressou com Will, Sam e Jericho atrás, mas encontrou o
vestíbulo vazio e nem sinal de Memphis Campbell ali ou na rua.
– Estava aqui mesmo! – disse Evie, assoprando. – Tito, estava a falar de
Knowles’ End! Não acha estranho?
– Tens a certeza de que não era um repórter?
– Suponho que podia ser – admitiu Evie. – Mas parecia muito sincero.
Estava a perguntar qualquer coisa de um símbolo... um olho com... vou
desenhar para verem.
Evie desenhou o olho e o raio e mostrou-o a Will. Sam aproximou-se de
Evie.
– Ele fez perguntas acerca desse símbolo?
– Como é que disseste que o rapaz se chamava? – perguntou Will.
– Memphis. Memphis Campbell – replicou Evie.
– Sabe o que significa esse símbolo, professor? – perguntou Sam. Estava
a olhar para o desenho do olho com grande interesse.
Will olhou para a folha.
– Nunca o vi. Agora, por favor, não me incomodem. Tenho de trabalhar. –
Deu meia-volta e deixou-os no vestíbulo.
***
Gabe não sentiu a pressão dos fantasmas enquanto se dirigia para oeste a
caminho de casa, com a cabeça ainda zonza da erva que fumara na festa de
Alma. A noite arrefecera, obrigando-o a soprar as mãos para tentar aquecê-
las. Fora um dia bom, tão agradável quanto qualquer outro de que Gabe se
lembrava. Conhecera a grande Mamie Smith. Tinha apenas dezoito anos,
mas os outros músicos tratavam-no como se fosse um deles, sorrindo
enquanto fazia os solos, elogiando-lhe a técnica.
A única sombra fora a discussão com Memphis. Mas o que lhe dera para
levar aquela rapariga à festa? Claro que era bonita. Mas havia muitas
raparigas bonitas que não causavam problemas, ou pelo menos não mais do
que o habitual nas mulheres. Não lhe agradava que tivessem ficado
zangados. Memphis e Theta tinham desaparecido sem sequer se
despedirem. Se era assim que ele queria, muito bem. Quando a miúda o
deixasse por um importante qualquer, a quem se iria ele queixar? A Gabe,
estava visto.
Um som sobressaltou-o. Um, dois, três; um, dois, três. Uma cadência a
três tempos, como uma valsa. Mas quando se voltou, não viu ninguém.
Sentia-se irritado e a história de Memphis e da miúda estava a estragar-
lhe a sua boa disposição. Gabe subiu a gola do casaco para se proteger
temporariamente do vento que soprava do Hudson, e continuou a andar. O
vento teve de se contentar em arrastar uma lata pela rua abaixo. Lá em
cima, os carris do El da Nona Avenida gemiam no seu vazio. Gabe reviveu
os melhores momentos desse dia. A camaradagem com os outros músicos.
O aperto de mão de Clarence Williams, que lhe prometera um futuro
brilhante com a Okeh Records. «Vou pôr-te a tocar para toda a gente»,
dissera. E para Gabe estava feito.
O som surgiu de novo – um, dois, três, um dois, três, clic, step, step, clic,
step, step.
– Está alguém aí? – perguntou Gabe para as sombras. Qualquer coisa
surgiu de entre os largos pneus de um Ford estacionado e Gabe soltou um
pequeno grito. Quando viu o gato desaparecer no beco, riu-se. – Meu Deus,
gato, para a próxima faz-te anunciar. Não tenho sete vidas como tu.
Abanando a cabeça, continuou o seu caminho, trauteando em surdina um
pouco da canção de Mamie Smith, pousando os dedos num trompete
imaginário. Os carris entrançados da ponte do El deixavam riscas de luz na
estrada. Foi então que se recordou do aviso de Isaiah. A ponte. Não passes
debaixo da ponte. Gabe nunca comentaria o assunto com Memphis, mas
havia certamente qualquer coisa de estranho com Isaiah. Aquela história de
ler o futuro a Gabe era um bom exemplo. Isaiah levara a piada longe de
mais; Gabe acreditara que o miúdo também estava assustado. Demasiada
imaginação – era o problema daquele rapaz.
Um, dois, três, um, dois, três, clic, step, step.
Outra vez aquele maldito som! Gabriel voltou-se. De repente surgira um
nevoeiro cerrado. As luzes do Whoopee Club brilhavam vagamente ao
longe.
Não passes por baixo da ponte. Ele está lá.
Gabe apertou mais a gola do casaco em redor do pescoço. Porque se
deixaria assustar pelas palavras tolas daquele rapaz? Ouviu o som de
passos. Pareciam vir de todos os lados. O nevoeiro tornava-se ainda mais
cerrado. Como seria possível? Como poderia ter ficado mais cerrado numa
questão de segundos? Estaria a aproximar-se do rio? Ter-se-ia perdido?
Gabe sentia-se desorientado. Qual seria o caminho para voltar aos clubes?
O som do assobio atravessava a bruma.
– Gabriel…
Alguém chamava pelo seu nome. Não reconhecia a voz.
– Quem está aí?
– Gabriel, o anjo. O mensageiro…
– És tu, Memphis? Vá lá, olha...
Gabe procurou qualquer coisa que pudesse usar se necessitasse, mas nada
conseguia ver. Não passes por baixo da ponte. Ele está lá.
Se aquilo era uma gracinha, Gabe não tinha vontade de rir. Avançou
rapidamente.
O homem saiu do ar húmido como se lá tivesse nascido. Vestia roupas
antiquadas e trazia uma bengala de prata. Sorria a Gabe. Era um sorriso
frio, frio, e Gabe sentiu os pés pouco firmes.
– O Arcanjo Gabriel cuja trombeta rasgou o céu.
– Se está à procura de quem toque instrumentos de sopro, já estou
comprometido com o grupo do Count – disse Gabe. O bater do seu coração
disparara violentamente. Provavelmente seria apenas um maluco que se
embebedara. Gabe podia vencê-lo se chegassem a isso, então porque se
sentiria de repente tão assustado?
Não passes por baixo da ponte. Ele está lá. Vais morrer.
– Gabriel, cuja trombeta anunciou o nascimento de João Batista. De Jesus
Cristo. E cuja chamada será testemunha da chegada da Besta – continuou o
desconhecido com os olhos a rolar em fogo, mas Gabe não conseguia
afastar os seus. – E a oitava oferenda foi a oferenda do anjo, do grande
mensageiro cuja música celestial alinhou as esferas e recebeu o fogo no céu.
E aí, ao tocar a sua trombeta dourada, marcou o nascimento da Besta.
O homem parecia cada vez maior com olhos como chamas gémeas e a
pele a alterar-se lentamente. A mudar.
– E o Senhor disse, que todas as línguas deem as boas-vindas e louvem o
Dragão antigo pois Dele é o caminho da justiça.
Do nevoeiro surgiu um terrível murmúrio demoníaco, um hálito do
próprio inferno.
– Vais respeitar-me, Gabriel? Vais respeitar-me e contemplar-me?
Gabe descobriu que não podia falar, porque o que tinha na sua frente
ficava para lá das palavras.
KNOWLES’ END
O Sol era uma enorme bola quando Mabel e Evie saíram do comboio na
Rua 155 e se dirigiram para norte por ruas ladeadas por casas estilo Tudor e
por outras mais pequenas, passaram a taberna do Velho Lobo e a mercearia
Johnson, numa esquina onde havia uma agência imobiliária com andares
para alugar e seguiram em direção ao rio onde as casas eram mais escassas.
Uns rapazes de fatos de macaco poeirentos jogavam basebol fazendo o
relato da partida como se fosse um jogo dos Yankees: «Babe Ruth prepara-
se para bater a bola, o Grande Bambino, o Rei do Swing corre para a
base...» Os rapazes acenaram às duas jovens e Evie fez um movimento de
swing.
– Bates a bola como o Califa! – exclamou ela. Por fim, as jovens
voltaram em Knowles’ End, uma abandonada rua lateral que dava a volta à
colina sobranceira ao Hudson. Aí via-se a casa como uma gárgula num
monte ventoso.
– Por favor, não me digas que temos de ir ali – disse Mabel sufocada,
ofegante. A subida fora difícil. – Vamos ser comidas por ratazanas ou
encontramos o monstro do doutor Frankenstein.
– Não seria uma tarde emocionante? Pelo menos aparecerias com o
penteado mais moderno da cidade. O teu cabelo está o suco da barbatana!
Estou mesmo feliz por teres decidido cortá-lo!
Mabel recusou deixar-se convencer.
– Evie, porque me trouxeste aqui? O que tem isto a ver com a
investigação dos homicídios?
– Creio que é esta a toca do Assassino do Pentagrama.
Mabel ficou a olhar abismada.
– A Theta tinha razão quando te pôs a alcunha de Evil19. Julgo que
precisarás dos serviços de Sigmund Freud. Será a única pessoa que
possivelmente entenderá o funcionamento do teu pouco saudável cérebro.
Evie deu o braço a Mabel.
– Vou dizer-te uma coisa confidencial acerca deste caso. Mas tens de jurar
sobre a Bíblia...
– Sou ateia.
– Tens de jurar sobre a Bíblia dos ateus que não contas.
– Não existe nenhuma Bíblia dos ateus.
– Então, devias escrever uma. Jura sobre a campa do Xeque!
– Juro sobre a campa do Rodolfo Valentino – disse Mabel.
– Sei de fonte segura que, nesta casa, pode haver pistas que identifiquem
a identidade do criminoso. – Não estava exatamente a mentir.
– Pensei que a polícia já tinha engavetado o assassino... esse tal Jacob
Call. – Mabel observou atentamente o rosto da amiga. – Não pensas que
seja ele o Assassino do Pentagrama?
– É um palpite.
– Oh, não – disse Mabel. – Não, não e não!
– Por favor, Mabesie. Tenho de fazer isto.
Cedeu e contou a Mabel tudo o que ocultara acerca da investigação dos
crimes: o facto de ter pegado na fivela do sapato de Ruta, o assobio, a
ligação de John Perverso a Knowles’ End e a breve e estranha visita de
Memphis Campbell ao museu, quando disse que a casa parecia habitada.
– Caramba, Evie – disse Evie. Estremeceu, mas depois refletiu. Evie
conhecia as expressões de Mabel quando refletia; a amiga estava a delinear
um plano. – Não vamos para lá sem tomar precauções.
Mabel fez sinal a Evie para que a seguisse enquanto descia a colina e
voltava ao sítio onde os rapazes jogavam basebol.
– Vocês conhecem aquela casa velha na colina?
– Sim, menina – responderam.
– Vive lá alguém? Viram pessoas a entrar ou a sair?
– Ninguém entra ali. Nem sequer por causa de apostas – disse um dos
rapazes num tom enfático.
Mabel olhou para Evie como que a dizer-lhe Estás a ver?
– Pois bem, nós vamos entrar. É uma... aposta... da nossa fraternidade –
informou-os Mabel.
O outro rapaz abanou a cabeça.
– O mal é para si, menina.
– Rapazes, não querem ganhar dez cêntimos?
Os rapazes acompanharam-nas à esquina que era, segundo disseram, o
mais longe que as mães lhes permitiam chegar.
– Se eu e a menina O’Neill não sairmos dentro de trinta minutos, chamem
a polícia – ordenou-lhes Mabel.
– Não vamos à polícia por nada neste mundo. São tão maus como a casa.
– E que tal se, se não sairmos dentro de trinta minutos, lançarem essa
bola, com toda a força, para a janela e correrem para as vossas mães? Pode
ser?
– É a única bola que temos.
– Cinquenta cêntimos – disse Mabel.
– Por cinquenta cêntimos faço um lançamento como os do Babe Ruth.
– Fantástico! – Evie meteu vinte e cinco cêntimos na mão de cada um. –
Agora confiamos que fiquem aqui como duas pessoas normais, mas de
vigia. São cavaleiros a quem foi confiada uma importante missão.
– Hã?
– Abram bem esses faróis e não se atrevam a cavar daqui – disse Evie.
Obrigou-os a cuspir e a jurar sobre o cuspo, e depois, de braço dado, ela e
Mabel dirigiram-se para a ruína de Knowles’ End.
A casa fora certamente uma beleza nos seus tempos, com os seus
imponentes torreões, a varanda, duas pequenas chaminés e uma muito
grande, e as janelas em arco. Mas agora as janelas estavam entaipadas e as
duas portadas que restavam, presas por pregos e a ameaçar cair. A porta
dupla de carvalho ficara cinzenta por ação do tempo. Marcas metálicas
marcavam o lugar onde existira a aldraba, agora desaparecida –
provavelmente vendida ou roubada. A porta estava trancada.
– Tem de haver maneira de entrar. Olha à volta – disse Evie. Tropeçou
numa coisa no chão e viu que se tratava de uma boneca. Era uma boneca de
criança com o rosto de porcelana rachado. O bolor cobria as costuras
semelhantes a cicatrizes.
Nas traseiras ficava a entrada dos criados. Evie tirou um gancho do
cabelo e meteu-o na fechadura simples, conseguindo fazê-la girar. A porta
abriu-se com um rangido e encontraram-se numa despensa com armários
altos. Cheirava a pó e a podre. Fracas barras de sol passavam pelas fendas
das portadas.
Evie retirou uma lanterna do bolso e o feixe de luz mostrou os tetos de
metal rachados e grãos de poeira.
– De que diabo andas aqui à procura, Evie?
Evie não tinha bem a certeza. Precisava de uma coisa que lhe permitisse
fazer uma leitura.
– Vê se consegues encontrar um pendente antigo com um pentagrama.
– Um pentagrama como o do Assassino do Pentagrama? – perguntou
Mabel, à cautela.
– Só um pendente – mentiu Evie. – Tem calma, amiga. Oh!!!
Evie entrou no que certamente deveria ter sido em outros tempos um
salão de baile. Parte da mobília estava coberta com lençóis, dando à sala um
ar de cemitério. Junto de uma enorme lareira via-se um sofá bolorento, com
o miolo espalhado pelo chão. O papel caía em tiras da parede e em
determinados sítios tinha mesmo desaparecido, expondo as tábuas
apodrecidas. Havia muito que tudo de valor fora retirado daquela casa. Não
havia livros, pratas ou bibelôs, nada que ajudasse Evie. Até os apliques
tinham desaparecido. Encostado a um canto havia um piano de cauda,
coberto de teias de aranha e com falta de várias teclas. Evie carregou numa
e um ruído desagradável soou no espaço morto. Uma aranhinha preta saiu
de entre duas teclas e Evie afastou a mão. Na parede oposta via-se um
espelho partido que refletia a sala como um quadro rasgado. Evie pensou ter
visto movimento num dos estilhaços e deu um salto.
– Que se passa? – perguntou Mabel e Evie apercebeu-se de que fora
apenas a amiga que se aproximara.
– Nada. – Evie observou toda a sala. – É estranho – disse.
– O quê?
– Do exterior reparei que havia uma enorme chaminé, mas esta lareira é
muito pequena.
– Não temos tempo de criticar a arquitetura, Evie. A qualquer instante,
esses miúdos vão chamar as mães. Se é que não foram já à farmácia tomar
uns batidos. Não devias ter-lhes dado o dinheiro antes.
– Continua à procura – pediu Evie.
– De quê? – perguntou Mabel.
Não sei.
– Vou lá acima.
Mabel correu para ela.
– Evangeline Mary O’Neill! Não vais deixar-me nem por um momento!
Vamos ficar mais juntas do que George e Ira Gershwin20.
– Oh, a rapsódia. Nunca serei azul – gracejou Evie, embora parecesse
estranho brincar naquela sepultura.
– Importas-te de continuar?
Uma imponente escadaria levava ao primeiro andar. Os seus pilares
elegantemente entalhados tinham pontos apodrecidos. Os degraus rangiam e
gemiam a cada passo e Evie esperava que os degraus aguentassem com o
peso das duas. Passou a luz da lanterna por velhos retratos a óleo prateados
por teias de aranha. No cimo, o patamar dividia-se em dois corredores, um à
direita e outro à esquerda, cada um com várias portas. Evie mantinha-se
atenta a qualquer coisa em que pudesse tocar para obter uma leitura sólida,
qualquer coisa de pessoal.
– Por aqui – disse, dirigindo-se para a direita. Experimentou os puxadores
de todas as portas, mas estavam trancadas. Ao fundo da casa, encontraram
nova escadaria. Esta era estreita e mais fechada e levava a um sótão cuja
lucerna fora entaipada. Pequenas tiras de luz saíam pelas fendas, mas não
eram suficientes para iluminar a escuridão. Evie passou a luz da lanterna
pela divisão. O raio de luz aterrou numa cama de quatro postes envolvida
em cortinas. Um toucador com um espelho triplo. Um guarda-vestidos.
Com todo o cuidado, Mabel abriu as portas que rangeram. Estava vazio,
excetuando alguns chapéus. Sobre o toucador havia um espelho de mão e
uma escova.
De repente, Mabel soltou um grito arrepiante.
– O que foi? O que foi? – perguntou Evie com o coração acelerado.
Mabel ainda gemia quando apontou para a cama onde a lanterna de Evie
encontrou a forma de uma ratazana que fugia assustada e Evie e Mabel
quase ficaram ao colo uma da outra, aos gritos.
– Isto é a última gota, Evie! – exclamou Mabel sufocada. – Por favor,
podemos ir?
– Muito bem – disse. Não podia deixar de pensar que tinha fracassado.
Quando deu meia-volta para sair, tropeçou em qualquer coisa e quase caiu
em cima de Mabel.
– Evie, queres que eu morra de susto?
– Desculpa, amiga. – Evie apontou o feixe de luz para o chão. Parte de
uma tábua estava podre e, por baixo, havia qualquer coisa escondida. –
Segura aqui – disse, entregando a lanterna a Mabel. Puxou a tábua com um
gemido.
– Diz-me que não vais meter a mão aí dentro – disse Mabel.
– Está bem, não te digo. – Evie sufocou um grito e meteu os dedos no
espaço escuro por baixo da tábua podre, palpando com todo o cuidado para
encontrar o objeto. Quando ficou ao seu alcance, puxou-o com um grito e
ficou a tremer.
– Com mil raios! Nunca mais quero fazer isto.
Mabel acocorou-se junto de Evie.
– O que é?
Evie limpou as camadas de pó da caixa de camisas e levantou a tampa. Lá
dentro, estava um pequeno livro de capa de couro. Enquanto Mabel
segurava na lanterna, Evie abria o livro numa página ao acaso. No cimo
estava marcada uma data: 22 de março de 1870.
– «Esta noite, o papá encontra-se sobre a mesa da casa de jantar
embrulhado numa mortalha, pronto para ser enterrado. Sou a última pessoa
que resta dos Knowles. Oh, sinto-me perdida!» – leu Evie em voz alta. – O
diário da Ida Knowles – disse admirada.
– Era isso que querias encontrar?
– Muito melhor!
– Estupendo. Vamo-nos pôr a andar. Esta casa faz-me arrepios.
Desceram as escadas o mais depressa que puderam sem se magoar e
Mabel dirigiu-se à cozinha, por onde tinham entrado. Mas Evie reparou
numa porta que se abria lentamente no extremo oposto do corredor. Não
reparara antes. E se lá houvesse uma pista importante?
– Evie! Vamos embora! – sussurrou Mabel, mas Evie já estava à porta.
Evie entrou e encontrou-se num pequeno aposento. Estranhamente, havia
outra porta no centro da parede. Fez girar o puxador da porta que abriu um
alçapão que a fez cair por uma conduta de roupa. A gritar procurava nas
paredes lisas uma saliência a que se pudesse agarrar, para abrandar a
descida. Quando saiu no outro extremo, o casaco prendeu-se numa aresta
afiada, deixando-a suspensa. Livrou-se do casaco com todo o cuidado,
segurando-se a ele enquanto descia. O casaco rasgou-se na gola e aterrou no
chão sujo com uma pancada pouco agradável que lhe abanou os ossos. Não
partiu nada, mas ficou sem a lanterna e o seu casaco novo de brocado
dourado em tiras; um quadrado de tecido brilhante ficara agarrado à boca da
conduta.
Evie pôs-se de pé com algum esforço e esperou que os seus olhos se
habituassem à escuridão. O aposento tomou uma forma escura. Continha
uma fornalha velha. Uma mesa de trabalho, coberta de ferramentas. Roupa
estendida numa corda, dura e poeirenta. Uma peça moveu-se ligeiramente e
Evie ouviu o sangue latejar-lhe nos ouvidos. Não havia ninguém. Mas tinha
a certeza de que a peça de roupa se tinha mexido. Ergueu a mão e sentiu
uma leve brisa. Mas de onde? Não via janelas naquele túmulo escuro.
– Evie! Estás bem? – O pânico na voz de Mabel ecoava na conduta. –
Evie!
– Mabel, querida, havias de ver... há aqui um speakeasy muito giro e o
George Barrymore vai servir-me um cocktail de champanhe. – Evie
gracejava para acalmar os nervos.
– Não te atrevas a gozar comigo!
– Está tudo fantástico, Bolacha. Ando à procura da escada. Já subo.
Mabel continuava a falar. Era o que fazia quando estava nervosa, mas
Evie sentia-se grata enquanto andava aos tropeções naquela cave escura,
com a mão levantada, seguindo a leve aragem.
– ... não acredito que me convenceste a vir aqui...
A aragem levava a uma parede. Era impossível, o ar não conseguia
atravessar uma parede.
– … nunca, mas nunca mais me metes noutra, Evie O’Neill…
Estava tão escuro. Evie apalpou a parede em busca de uma abertura. No
silêncio parecia-lhe ouvir murmúrios e um tom baixo e firme. A pele de
galinha subia-lhe pelos braços até ao pescoço. Sim, murmúrios. Como o
bater de asas. O zumbido de insetos. O rosnar profundo dos cães. Um
milhar de línguas murmurando ao mesmo tempo.
– Calma, mulher, calma – disse para consigo, em voz alta. Era o que
James lhe dizia quando a ajudava a aprender a patinar sobre o lago gelado,
de mão dada com ela.
Agora tremiam-lhe as mãos e a respiração. Sentiu qualquer coisa ranger
debaixo dos pés e pisou uma coisa dura. Inclinou-se para apanhar o objeto e
descobriu bocados de um fecho de pedrarias. A fivela de um sapato. Como
a que faltava no sapato de Ruta Badowski. Sentiu o espírito num turbilhão e
uma tontura. Deixou cair a fivela, como se fosse uma coisa suja. Os
murmúrios voltaram. Parecia-lhe que qualquer coisa se movia na escuridão.
A velha fornalha acendeu-se e Evie recuou assustada. No mesmo instante
apagou-se.
Ouviu uma pancada surda lá em cima seguida de um grito de Mabel.
– Mabel! Mabel! – gritou Evie.
– Os miúdos atiraram a bola depois de uma eternidade! – gritou Mabel
pela conduta. – Será melhor irmos embora antes que as mães deles venham
cá e nos mandem prender por invasão de propriedade.
Evie andou aos tropeções pela cave e quase gritou de alegria quando por
fim encontrou uma escada. Subiu a correr as frágeis escadas e bateu na
porta até que Mabel a abriu para a deixar sair. De braço dado, saíram a
correr pela porta da frente para o sol acolhedor, sem se importarem em
correr o ferrolho e sem se deterem até chegarem à plataforma do
metropolitano e verem o comboio aos solavancos pelos carris da longa
espinha metálica da cidade.
Evie sabia que Will teria um ataque quando lhe contasse as explorações
desse dia em Knowles’ End, mas ficaria provavelmente encantado quando
lhe mostrasse o diário de Ida, que conseguira arrancar a Mabel, com a
promessa de que o leriam juntas depois de o mostrar ao tio Will. Instalou-se
então numa mesa do primeiro andar da biblioteca do museu, junto de um
candeeiro verde e leu algumas das últimas entradas.
7 de Setembro de 1874
Esta foi uma noite de grandes acontecimentos! Na sala escurecida, a
minha querida Mary comunicou com os espíritos dos meus falecidos
pais. Demos as mãos e Mary e o Sr. Hobbes falaram em línguas
desconhecidas. Ouviram-se pancadas e a chama da vela estremeceu
e apagou-se. Ficámos na mais completa escuridão.
«Não tenhas medo, queridinha», disse Mary em transe e soube
imediatamente que era o meu querido pai a pronunciar aquelas
palavras através dela. Oh, ouvir as suas palavras a uma tão grande
distância, erguer o véu para aqueles momentos preciosos, foi o maior
bálsamo que alguma vez recebi!
«Como vão os meus lilases?», perguntou a minha mãe, como o
faria se estivesse viva. Os seus queridos lilases! Eu mal podia falar,
com as saudades que sentia no meu peito.
«Lindos como sempre», respondi e, embora parecesse indecoroso,
não pude conter as lágrimas.
Foi tão breve a sua estada neste plano e espero tentar de novo o
mais depressa possível.
3 de Outubro
O Sr. Hobbes é um homem muito peculiar. Usa um estranhíssimo
pendente, um medalhão redondo sobre o qual está gravada uma
constelação de curiosos símbolos. A Mary diz que se trata de uma
relíquia sagrada de uma ordem secreta. Por vezes vejo-o sentado ao
fresco na biblioteca a estudar um texto antigo para o qual, segundo
afirma, foi conduzido pelo Senhor para o encontrar escondido no
buraco de um velho carvalho. O livro é um texto místico cheio de
cifras para o outro mundo, que não podem ser partilhadas com os
não iniciados, disse ele à laia de desculpa para o ter fechado no
armário e guardado a chave. Achei impertinente o facto de se ter
apropriado dessa maneira do meu armário. Mas Mary diz-me que o
Sr. Hobbes é um homem espiritual que não pode ser incomodado por
preocupações e haveres terrenos, embora seja suficientemente
bondoso para pagar do seu bolso as reparações da casa, o que para
mim é um grande consolo, pois desejo que Knowles’ End regresse à
sua antiga glória.
28 de Outubro
Quanto barulho! Os martelos do Sr. Hobbes perturbam-nos de noite
e de dia. Mudei-me para o velho quarto do sótão para evitar a poeira
e o barulho.
22 de Novembro
O Sr. Hobbes não me deixa descer à minha própria cave. Quando me
ofendi, disse-me, o mais delicadamente possível, que houvera um
terrível problema na cave e que a antiga fornalha fora substituída.
Sorriu ao dizê-lo, mas reparei que o sorriso nunca se espelha nos
olhos dele, que são de um gélido tom de azul.
15
de Janeiro
Estou adoentada, pelo que me encontro de cama. Mary diz que estou
prostrada pelo desgosto de falar tantas vezes com os meus queridos
pais e por receber constantemente as cartas para o pagamento dos
impostos. Não tenho dinheiro. «Vende-me Knowles’ End, minha
querida e eu pago os impostos e poderás viver como antes, se te
aperceberes que não és tu a dona da casa. O teu bem-estar nunca
estará em questão», disse-me Mary. Não suporto a angústia de não
vender Knowles’ End, mas seria pior perdê-la, levando-a à praça.
Tenho de pensar. Mary ofereceu-me vinho doce e insistiu para que eu
o bebesse para acalmar os nervos.
20 de Janeiro
O meu sono é perturbado pelos mais terríveis sonhos.
21 de Abril
Encontrei-o às escuras na sala, nu. «Olha para mim e admira-te»,
vociferou. E os seus olhos ardiam no escuro como chamas gémeas.
Depois, de nada mais me lembro até acordar na minha cama, já
depois do meio-dia com uma enorme dor de cabeça e Mary a insistir
em que eu não precisava de médico, mas sim de descansar sob os
seus cuidados.
Maio
Não sei que dia é, pois as datas juntam-se como correntes num
ribeiro. Lá em baixo realizam estranhas sessões de espiritismo. Oiço-
os daqui, mas estou demasiado fraca para descer e estou muito
assustada.
Agosto
Está um calor terrível. O mau cheiro impregna a casa e revolta-me o
estômago. O hóspede desapareceu, não sei para onde.
1 de Setembro
A besta assola os corredores desta casa, assustando todos os que cá
estão. Os poucos criados que ainda cá se mantêm receiam-no. Conta
as histórias mais fantásticas. Uma vez afirmou ser o último membro
sobrevivente de uma tribo perdida e escolhida, quando eu sei que era
pobre de pedir, uma pessoa perfeitamente vulgar, criado num
orfanato de Brooklyn. Conta uma história diferente de cada vez, até
ser impossível saber o que é verdade e o que não passa de uma
loucura.
20 de Setembro
Nunca mais beberei o vinho doce dessa mulher.
28 de Setembro
A falta de vinho pôs-me terrivelmente doente. Fiquei uma semana
inteira de cama, estrebuchando e vomitando, assistida pela minha
querida Emily, a criada que nos resta. Confessou-me estar tão
assustada como eu. Parece que se atreveu a entrar num quarto
fechado, que por acaso não o estava e quase caiu por um alçapão e
uma conduta que, segundo calcula, só podem ir ter à cave.
3 de Outubro
Esta noite fui acordada por gritos, mas não sei dizer onde acabaram
os sonhos e começou a vigília.
8 de Outubro
Ab Emily desapareceu há três dias.
10 de Outubro
Levantei-me da cama com algum esforço e desci as escadas. As
portadas estavam seladas e a casa parecia uma catacumba. «Onde
está Emily?», perguntei ao Sr. Hobbes, com um ar muito calmo,
embora por baixo do roupão sentisse os joelhos a tremer. «Teve de
partir com toda a urgência porque a irmã entrou em trabalho de
parto», respondeu a besta. «É estranho que nada me tenha dito, nem
tenha vindo receber o salário», disse eu. «Não quis incomodá-la com
coisas de tão pouca monta», respondeu. «Então porque se foi embora
sem a bolsa?» perguntei, pois já tinha ido ao quarto dela e
encontrara-a aí, intacta. Foi então que a Sr.ª White se materializou
ao lado dele, sem dúvida atraída pelo meu tom de voz. «Vamos
certificar-nos de que lhe é devolvida, coitada. Estava tão preocupada
com a irmã.»
Que mulher deixa a bolsa para trás?
13 de Outubro
Fui de novo impedida de entrar na cave pelo Sr. Hobbes. «Não é
seguro», declarou, e houve qualquer coisa no seu tom de voz, no azul
frio do seu olhar que fez com que eu regressasse imediatamente ao
quarto.
15 de Outubro
Oiço murmúrios em todas as paredes. Oh, aproxima-se sem dúvida
uma terrível calamidade!
17 de Outubro
A Sr.ª White foi ao campo prestar os seus serviços de médium. Que
charlatã! Estou aqui em casa sozinha com ele.
19 de Outubro
Hoje, quando vi a carruagem do Sr. Hobbes sair da garagem para a
rua, apressei-me a descer e, meti um gancho na fechadura do
armário de portas de vidro até que este cedeu. Depois li o seu
horrível livro. Profano! Obsceno! Cheio de degradação e imundície!
Foi difícil não o ter queimado. Oh, estou em perigo! Escrevi ao meu
querido primo e contei-lhe tudo. Porque terei consentido em vender a
casa a esta horrível mulher? Imposturas e enganos! Mentiras e mais
mentiras. Vou reavê-la. Sou Ida Knowles, esta é a minha casa,
construída pelo meu pai. Mas primeiro tenho de descobrir o que se
passa na cave. Tenho de ver com os meus próprios olhos.
Memphis saiu para a rua numa manhã que parecia ter acordado de mau
humor, cinzenta, fria e chuvosa. A chuva da noite lançara no passeio um
aguaceiro de folhas outonais que mais pareciam um tapete manchado de
ouro. Octavia pedira a Memphis que as varresse antes de saírem para a
igreja e foi o que ele fez, apanhando-as com uma pá e metendo-as no
caixote do lixo. Um carro da polícia subia a Broadway seguido por um
segundo e por um terceiro. Memphis inclinou-se sobre o portão, tentando
ver o que se passava. Perguntou a um vizinho que por ali circulava.
– Que aconteceu?
– Ouvi dizer que encontraram um cadáver no Trinity Cemetery – disse o
homem.
– Há montes de cadáveres no Trinity Cemetery. É por isso que se chama
cemitério – disse Memphis secamente.
– Pensam que tenha sido o Assassino do Pentagrama – disse o homem e
apressou-se a descer a rua para se juntar aos outros. Memphis largou a
vassoura e seguiu-o.
Juntara-se uma multidão perto dos portões de ferro do Trinity Cemetery,
pessoas ainda de roupão, chinelos e lenços. As mães enxotavam os filhos
para os passeios com ordens para não saírem de lá a menos que quisessem
umas boas palmadas no rabo. A polícia percorria as suaves colinas do velho
cemitério que fora o local de uma grande batalha durante a Guerra da
Revolução e ainda tinha um marco a comemorar o acontecimento. Memphis
recuou e subiu a um candeeiro para tentar ver melhor.
Ouviu-se um grito na rua, seguido de exclamações abafadas e mais gritos
à medida que a notícia passava de boca em boca, invadindo as pessoas
como uma onda enorme. Memphis espreitou o barbeiro Floyd, desceu e foi
ter com ele.
– Floyd, que se passa? O que aconteceu?
Floyd olhou para ele com olhos doridos e abanou a cabeça.
– Nada de bom, Memphis.
Memphis sentiu-se como se tivesse engolido um bocado de gelo que se
fosse derretendo lentamente através de si.
– Quem é? – perguntou, mas já sentia o sangue a latejar-lhe nos ouvidos
como um prelúdio.
– É o Gabriel Johnson. Dizem que o assassino lhe tirou a boca e o
pendurou como um anjo crucificado.
A MORTE
JÁ NÃO TEM AUTORIDADE
Memphis estava sentado num banco muito cheio da Igreja Sionista da Mãe
AME entre Octavia e Isaiah. Lá à frente o caixão de Gabe cintilava sob um
manto de lírios doados pela própria Mamie Smith. Todos os lugares se
encontravam ocupados e vários homens estavam encostados à parede do
fundo. A sala estava abafada e as mulheres refrescavam-se abanando-se
com leques de madeira fornecidos pela funerária.
O pastor Brown subiu ao púlpito e baixou a cabeça, desgostoso.
– Um jovem, ceifado na primavera da vida por uma indescritível
violência. É quase impossível suportar...
As pessoas choravam e fungavam enquanto o pastor Brown falava do
amigo morto de Memphis, da sua vida prometedora que tão cedo terminara.
Memphis engoliu em seco pensando em como haviam discutido na noite em
que ele fora morto. Desejava poder voltar atrás para conversarem. Desejava
ter impedido Gabe de sair sozinho da festa. Se tivessem saído juntos, ainda
estaria vivo? Retirou do bolso a pata de coelho da sorte que pertencera a
Gabe. Dera-lha a Sr.ª Johnson, dizendo: «Ele havia de gostar que ficasses
com isto. Eras como um irmão para ele.» Memphis apertou-a com força na
mão.
– A morte já não tem autoridade sobre o irmão Johnson – vociferou o
pastor Brown.
– Ámen – exclamou uma mulher.
– Porque diz a Bíblia, «assim como Cristo ressuscitou dos mortos pela
glória do Pai, devemos caminhar na nossa nova vida. Pois se fomos criados
à semelhança da sua morte, certamente o seremos à semelhança da sua
ressurreição», assim disse o Senhor.
– Aleluia! – exclamaram várias pessoas. E a seguir. – Palavra do Senhor.
– Oremos agora pelo nosso irmão, Gabriel Rolly Johnson, para que possa
ser recebido no seio de Jesus Cristo e encontre a paz eterna. Ámen.
– Ámen – responderam os membros da congregação.
O coro começou a cantar. «Atravessai as águas, atravessai as águas,
atravessai as águas, o Senhor agitará as águas...»
As notas tristes do conhecido espiritual invadiram Memphis e arrastaram-
no para as terríveis profundezas, como se tivesse pedras nos bolsos. A tia
Octavia chorava para dentro do lenço, rezando em voz baixa, por entre
lágrimas «Senhor, Senhor». De vez em quando estendia a mão enluvada e
apertava a de Memphis para o consolar, mas Memphis mantinha-se de olhos
secos e sem ação. Olhava para Isaiah, que ainda não deixara de fitar os
sapatos. Pensava no que Isaiah dissera a Gabe no drugstore do Sr. Reggie:
«Vais morrer.» Isaiah teria visto que alguma coisa aconteceria a Gabe? E se
alguém os tivesse ouvido? E se alguém dissesse alguma coisa à polícia?
Tinha de proteger Isaiah a todo o custo.
Depois do serviço religioso, o cortejo fúnebre fez a sua passagem lenta e
funesta pela Broadway. O Elks Club pagara o funeral e insistira numa
despedida adequada. Caminhavam na frente, com as suas faixas, o Papa
Charles abria o cortejo com o chapéu encostado ao peito. Atrás dele, vários
músicos do Harlem tocavam um hino fúnebre nos seus instrumentos de
sopro e cantava um coro de mulheres de luto. O caixão de Gabe foi
transportado por uma carreta pelas ruas até ao local do seu repouso
provisório na Funerária Merrick. Mais tarde seria sepultado pela família. Os
repórteres enchiam os passeios, tomando notas e tirando fotografias,
erguendo os chapéus no momento em que o caixão passava. Memphis
caminhava atrás do caixão com passos lentos e obedientes, acompanhando-
o até à funerária. Não entrara aí desde a morte da mãe, e não suportava ter
de o fazer agora.
– Vou apanhar ar – explicou à tia Octavia, que lhe deu uma palmadinha
no rosto, disse que ele era uma pobre criança e acenou para que fosse.
Memphis esgueirou-se discretamente por entre a multidão que tentava
conseguir um vislumbre da última vítima do Assassino do Pentagrama.
Alguns eram apenas mirones curiosos. Outros mostravam-se zangados e
gritavam aos polícias exigindo respostas. Não tinham apanhado o
assassino? Não estava na cadeia? E então? Que faziam para proteger os
cidadãos de Nova Iorque? Quando se sentiriam de novo em segurança? Os
polícias mantinham-se em silêncio.
Numa esquina, Memphis espiava a rapariga do museu. Não deveriam
ajudar a apanhar o assassino? Porque não o tinham ainda apanhado?
Memphis, louco de raiva, dirigiu-se a Evie O’Neill e bateu-lhe no ombro.
Ela levou um segundo a reconhecê-lo.
– É você, o senhor Campbell.
– Já sabe quem é o assassino?
– Ainda não.
Memphis acenou, com o queixo apertado.
– Conhecia… conhecia o falecido? – perguntou Evie.
– Era o meu melhor amigo.
– Lamento muito – disse ela. E Memphis pensou que ela de facto
lamentava. Não era como os repórteres que diziam «lamento a sua perda» e
logo a seguir perguntavam-lhe se o seu melhor amigo era viciado em drogas
ou se pensava que a culpa era do jazz.
– Memphis!
Ao ouvirem a voz de Theta, Evie e Memphis voltaram-se. Ela corria pela
rua fora, ainda com a maquilhagem do teatro e um casaco por cima do traje
que usava. Evie via as lantejoulas. Theta deu a Evie um rápido abraço e
voltou-se para Memphis.
– Vim assim que soube.
– Vocês... vocês conhecem-se? – perguntou Evie.
– Ele morreu – disse Memphis, a voz trémula ao pronunciar a última
palavra. – O Gabe morreu.
Theta falou em voz baixa, para consolar Memphis e Evie sentiu-se
estranha por estar ali sem dizer nada.
– Lamento muito pelo seu amigo – disse, embora as palavras lhe
parecessem vazias.
Memphis voltou-se para ela com uma expressão dura.
– Quero ajudar a descobrir o assassino de Gabe.
– Há uma coisa que pode fazer – disse Evie ainda hesitante. – Ajudava a
nossa investigação se pudéssemos ter qualquer coisa do falecido... hum... do
Gabriel. De preferência algo que tivesse consigo na noite da sua morte.
– Como pode isso ajudar? – perguntou Memphis.
– Por favor – implorou Evie. – Por favor, confie em mim. Queremos
apanhá-lo tanto como o senhor.
Memphis meteu a mão no bolso e retirou de lá a pata de coelho.
– Era o seu amuleto. Nunca andava sem ele.
– Obrigada. Prometo tomar bem conta dele – disse Evie, mas Memphis
não a ouvia. Theta dera-lhe a mão e apenas olhavam um para o outro. Evie
afastou-se, deixando-os nessa conversa privada e silenciosa.
A imprensa empurrava as barricadas, pedindo comentários, tentando
ouvir opiniões, mas os polícias continuavam firmes, de boca fechada. T. S.
Woodhouse mantinha-se na linha da frente. Evie tentou esgueirar-se sem
que ele a visse.
– Ora, ora, mas é a Sheba – disse, impedindo-lhe a fuga. – Não podemos
continuar a encontrarmo-nos desta maneira.
– Então porque não se vai embora?
– Não está aborrecida com aquela história, pois não?
– Como não? Pedi-lhe um favor e tratou de me roubar o que lhe disse
para publicar nos jornais.
T. S. Woodhouse abriu os braços num gesto conciliatório.
– Sou repórter, menina O’Neill. Deixe-me compensá-la. Diga-me o que
sabe disto e eu faço uma reportagem sobre a sua pessoa. Talvez lhe dê até
um espaço nas colunas para escrever o que lhe apetecer. Será a jovem mais
famosa de Manhattan.
– Lamento... já não falo com repórteres.
Afastou-se, mas Woodhouse seguiu-a apressado para lhe acompanhar o
passo.
– Vá lá, Sheba. A bófia não nos diz nada, só a conversa do costume.
Sabemos que Jacob Call não pode ser o Assassino do Pentagrama, a menos
que possa limpar o sebo a alguém mesmo estando atrás das grades ou tenha
um cúmplice. Um cúmplice. É isso.
– Adeus, senhor Woodhouse.
T. S. Woodhouse agarrou o braço de Evie e ela olhou-o de tal forma que
ele retirou a mão. Ele apontou com a cabeça os outros repórteres.
– Estes fulanos passam-me à frente. Não tenho história para hoje. Tenho
andado a fazer elogios ao museu do seu tio. Também quero ser conhecido,
compreende?
Evie compreendia. Também compreendia que T. S. Woodhouse tudo
faria, tudo diria, todos pisaria para conseguir aquela história. Fora um erro
envolver-se com ele. E era tempo de ele ter o que merecia.
– Muito bem, senhor Woodhouse – disse Evie. – Julgamos que o
assassino trabalhe segundo um antigo texto místico, o Ars Mysterium.
– Ah, sim? – Woodhouse salivava praticamente ao ouvir aquela
informação. – Ótimo.
– Agora, nem uma palavra disto a ninguém, nem sequer ao seu editor. –
Evie mordeu o lábio e tratou de esticar o pescoço fingindo querer assegurar-
se de que ninguém os ouvia. – Pensamos que o próximo assassinato terá
lugar esta noite na ponte de Hell Gate. Vai querer levar um fotógrafo.
– Não está a brincar?
– E eu mentiria a um tão importante membro da imprensa?
T. S. Woodhouse pesava de um lado a sua ambição contra a história dela.
Evie percebia-o ao vê-lo torcer a boca.
– Obrigado, Sheba – disse, por fim.
– Não tem de quê... estou a falar a sério, senhor Woodhouse.
Fora um dia simplesmente horrendo, mas quando se afastou de T. S.
Woodhouse, Evie não pôde deixar de sentir uma pontada de satisfação ao
imaginá-lo mais tarde, ao vento gelado da ponte de Hell Gate, à espera de
uma história que nunca aconteceria, enquanto todos os repórteres lhe
passavam à frente.
A MESMA CANÇÃO
– Que raio! – Will apagou com força o cigarro no cinzeiro. Os quatro, Evie,
Jericho, Sam e Will, estavam sentados a uma das compridas mesas da
biblioteca. Will fechara o museu mais tarde, apesar das multidões que
pediam visitas ao sobrenatural conduzidas pelo maior especialista em
ocultismo de Manhattan.
– Ele vai continuar a matar e estaremos sempre um passo atrás dele.
– Não temos de estar – disse Evie, olhando fixamente para o tio. – Posso
descobrir o que precisamos de saber.
– Como será isso possível? – perguntou Jericho.
– Com isto. – Evie colocou a pata de coelho de Gabe sobre a mesa.
As sobrancelhas de Sam dispararam.
– Queres apanhar um assassino com um bocado de pelo de um animal
morto?
– Pertencia ao Gabriel Johnson. Tinha-o consigo na noite em que morreu.
– Evie olhou para Will. – Tito, posso lê-la, sei que sim. Dê-me uma
oportunidade.
– Ler o quê? – perguntou Jericho.
Will admirou-se.
– Onde arranjaste isso?
– Deu-ma um amigo dele.
Will abanou a cabeça.
– É muito perigoso, Evangeline.
Evie saltou da cadeira e bateu com o punho na mesa. Estava farta da
relutância do tio. Tinham tentado à maneira dele e apenas haviam
conseguido outro cadáver.
– O que é muito perigoso é pelo menos não tentar.
Jericho olhou para Sam, que encolheu os ombros.
– Não olhem para mim. Não sei de nada – disse.
– Anda um assassino à solta e temos de o impedir de qualquer maneira –
implorou Evie. – Por favor.
– É uma loucura – murmurou Will. Passou os dedos pelo cabelo.
– Alguém me quer contar o que se passa? – pediu Jericho.
– Sou Adivinha – disse Evie.
– Evangeline!
– Eles podem saber, Tito! Estou cansada de guardar segredo. – Voltou-se
para Jericho e para Sam. – Consigo ler objetos. Um anel, uma faca de papel,
uma luva, são mais do que meras coisas para mim. Dá-me o teu relógio e
consigo dizer-te o que jantaste ontem à noite... ou os teus mais profundos
segredos. Depende. – Olhou de novo para Will. – O que diz, Tito?
Com as mãos atrás das costas, Will deu uma volta completa à biblioteca.
Parou junto de Evie, olhando-a durante muito tempo, o que a fez sentir
pouco à vontade.
– Vamos fazê-lo de um modo controlado, compreendes?
– Como queira, Tito.
– Eu guio-te. Não te envolvas muito, Evangeline. Deves manter-te
afastada, uma mera espetadora.
– Vejo o que consigo fazer e depois afasto-me.
– Se sentires a mínima ameaça, deves deixá-lo mediatamente.
– Tenho tudo controlado, Tito.
– Ainda bem que alguém tem – disse Sam, sacudindo a cabeça.
– Dentro de momentos já veremos – anunciou Will. – Evie, vem sentar-te.
Evie instalou-se num cadeirão de couro.
– Estás confortável? – perguntou Will.
– Sim. – Sentia o coração acelerado e a boca seca. Desejava sentir-se
pronta para aquilo.
– Lembra-te de que se te sentires assustada…
– Eu compreendi, Will – garantiu Evie.
– Will, isto é seguro? – perguntou Jericho.
– Eu garanto a segurança dela – declarou Will. – Podes começar quando
te sentires preparada, Evie.
Will colocou-lhe a pata de coelho nas mãos. Evie fechou os olhos e tocou
nas rugas. Vá lá, pensou. Por favor... levou alguns segundos, mas assim que
conseguiu, imagens do dia de Gabe surgiram em enorme confusão. Era
como se Evie tivesse mergulhado num lago frio e tentasse regressar à
superfície.
– Não consigo... não consigo perceber...
– Calma. Devagar. Respira e concentra-te – comandou Will.
A respiração de Evie acalmou. Conseguia ouvi-la bem como o suave
correr do seu sangue.
As anteriores cenas inconsequentes do dia de Gabriel desapareceram.
Estava com ele nas ruas escuras do Harlem. A cena parecia enevoada, como
uma fotografia mal revelada, mas conseguia distinguir Gabriel a caminhar
debaixo dos carris do El e sentir o que ele sentia.
– Está zangado por qualquer coisa... – disse Evie, hesitante.
– Não te aproximes tanto – avisou Will.
Evie respirou fundo mais uma vez. A rua ficou um pouco menos
enevoada quando se concentrou. O piscar de um reclame de néon ao longe e
o cheiro a fumo e a lixo tomaram vida no seu espírito. Ouviu passos e um
estranho som metálico.
– Alguém o segue.
– Cuidado, Evie.
– De repente, ficou tudo muito enevoado, mas está lá alguém. – Viu
primeiro uma bengala, uma coisa de prata com a cabeça de um lobo. O
homem que a tinha ocultava-se na sombra e na bruma. Gabe chamou e,
como nada ouviu, continuou a andar sob a enorme sombra dos carris aéreos.
Evie apenas conseguia ver o que ele via. Mas ouvia os passos lentos e
deliberados na rua. Sentiu o primeiro golpe de apreensão de Gabe. E depois
ouviu o assobio.
Evie soltou uma exclamação sufocada.
– É a mesma canção.
– Evie, é altura de parares – declarou Will, mas Evie não estava disposta a
parar. Estava quase. Mesmo quase.
Passos que se aproximavam. Um, dois, clic. Um, dois, clic. A bengala
cintilava na bruma.
– É ele. Está a chegar...
– Evie, para – ordenou Will.
Evie agarrou com força a pata de coelho. O homem saiu da sombra e o
pulso de Evie bateu acelerado.
– Estou a vê-lo.
– Evie, para! – vociferou Will. Bateu as palmas várias vezes para quebrar
o transe. Evie deixou cair o amuleto e pestanejou com os olhos
lacrimejantes.
– Conheço-o! Já o vi antes! – disse.
Correu para a vasta coleção de apontamentos, empurrando papéis, até
encontrar o que procurava. Sentia o estômago trémulo de emoção e
incompreensão.
– É ele – disse, batendo na fotografia de John Hobbes num recorte de
jornal que estava sobre a mesa. – O homem debaixo da ponte era John
Hobbes. O Gabriel Johnson foi assassinado por um morto.
APENAS HISTÓRIAS
Espero que tenhas dormido bem. Peço-te que não roubes nada,
porque não há nada para roubar.
Podes ficar o tempo que quiseres.
Cumprimentos,
Henry DuBois IV
Theta não tinha onde ir, por isso comeu o donut e lavou o prato. Depois
lavou os outros pratos e arrumou-os. Henry chegou a casa e viu tudo tão
limpo que saiu e voltou a entrar para ter a certeza de que não se enganara no
apartamento.
– Por acaso não te chamas Branca de Neve, pois não? – perguntou
irónico.
Dividiram uma tigela de canja de uma loja de comida e conversaram até
altas horas.
Fora Henry que a convencera a cortar o cabelo. De braço dado dirigiram-
se a um barbeiro na Rua Bleecker, Theta vestida com a roupa de Henry.
Sentou-se perfeitamente imóvel, a olhar em frente, enquanto a tesoura
cortava os seus fartos caracóis. O cabelo caía como penas em redor da
cadeira. Sentia a cabeça mais leve, como se se visse livre do peso da
recordação, dos fantasmas do passado. Quando o barbeiro fez girar a
cadeira para que se visse ao espelho, Theta abriu a boca de espanto. Tocou
suavemente na pele macia do pescoço, chocada ao sentir a nuca onde o
corte formava um V provocante. Ao espelho viu que Henry mordia o lábio.
– Para onde olhas tão espantado, Pianista? Nunca tinhas visto uma
rapariga moderna? – perguntou, piscando um olho.
– És a rapariga mais bonita da rua – disse Henry e Theta esperou que ele
a beijasse. Como ele não o fez, sentiu um estranho misto de desilusão e
alívio.
Celebraram com champanhe num clube noturno boémio em Greenwich
Village, junto à Rua MacDougal onde, longe dos olhares críticos, belos
rapazes dançavam juntos com elegância, peito com peito, agarrando-se,
trocando olhares pelas mesas decoradas com homens decorativos. Theta
ouvira falar da existência de tais lugares e sabia que havia homens que
preferiam outros homens – «mariquinhas», chamava-lhes a Sr.ª Bowers com
desprezo e Theta sentiu no coração a vergonha da palavra – mas nunca
estivera num desses clubes. Receava não ser bem recebida, mas descobriu
que era.
Na penumbra do clube, Henry recostou-se na cadeira e observou a cena,
demorando o olhar sobre um belo rapaz de cabelo escuro que também o
olhava de vez em quando. Nesse momento, Theta percebeu.
– Já vi tudo, miúdo – dissera. Depois, num gesto de artista, dirigiu-se ao
jovem de cabelo escuro, puxou da cadeira e disse: – O meu amigo Henry
vai ser o próximo George Gershwin. Devia pedir-lhe para dançar antes que
ele se torne rico e famoso.
Muito mais tarde estavam sentados, todos juntos num sofá de veludo.
Theta de um lado de Henry, do outro o rapaz bonito, mais outros dois
universitários de Nova Jérsia e um marinheiro do Kentucky, a rir e a beber,
a cantar, a puxar as gravatas uns dos outros. Tentavam arranjar um nome
novo para Theta que, segundo Henry declarou, nunca se poderia chamar
Betty. Passaram por toda a espécie de nomes desde os glamorosos – Gloria,
Hedwig, Natalia, Carlotta – aos tolos – Mah Jong, Merry Christmas, Ruby
Valentino, Mary Pickaxe.
– Talvez te devesses chamar Sigma Chi! – disse um dos universitários,
interrompendo-os a todos.
– Que horror! – declarou Henry entre gargalhadas. Tinha as faces
levemente afogueadas. Parecia um menino de coro libertino.
– Alpha Beta! Delta Upsilon! Phi Beta Kappa! Delta Theta!
– Esperem... qual foi essa última palavra? – perguntou Theta.
– Theta – disse o universitário e os companheiros repetiram-na, ruidosos,
com uma embriagada e contagiosa alegria.
– Theta – disse ela saboreando a palavra. – Pois fica Theta.
Insistiu que o apelido fosse Knight. Fazia-a sentir forte e corajosa. Um
nome de cavaleiro. Porque se defenderia na sua nova vida.
– À menina Theta Knight – brindaram os rapazes e Theta bebeu à saúde
do seu novo nome. A rir, dançaram em roda debaixo do lustre que os
banhava num luz manchada e ela desejou que a noite não terminasse.
Uma semana depois, Theta acordou Henry tão cedo que a luz do dia não
passava de um pensamento azulado que os manchava de cor. Tinha os olhos
inchados e vermelhos, as faces manchadas de lágrimas. Havia dois meses
que saíra do Kansas e que Roy a magoara pela última vez.
Henry sentou-se apoiado nos cotovelos, a voz rouca de sono.
– Que se passa, querida?
Ela contou-lhe o que se passara no Kansas, conseguindo não soluçar até
quase ao fim. Sentira-se tão leve naquelas últimas semanas, como se tivesse
sido salva de morrer afogada na corrente de um rio transbordado, aquecida
na margem, ao sol quente para agora descobrir que o rio aumentara durante
a noite, puxando-a outra vez para o fundo.
Henry escutou-a calmamente. Quando ela terminou, puxou-a para si e
estreitou-a de encontro ao peito nu e macio.
– Se quiseres, caso-me contigo – disse.
Ela beijou-lhe as palmas das mãos e levou-as ao rosto.
– Não posso ter o bebé, Hen.
Henry assentiu lentamente com a cabeça.
– Sei de alguém que pode ajudar-nos.
Dissera assim – ajudar-nos. E foi então que Theta soube que nunca se
separariam, que seriam sempre assim, duas metades do mesmo todo, os
melhores amigos.
Tinham o nome de um homem e uma morada escritos num bocado de
papel escondido na mão de Theta. Estava a chover quando percorreram uma
ruela e entraram num edifício velho, onde dois homens andavam de um
lado para o outro a fumar, com ar assustado, depois subiram cinco lanços de
uma escada em mau estado e passaram por portas fechadas atrás das quais
crianças choravam e eram mandadas calar. O odor a peixe cozinhado
pairava no corredor, dando voltas ao estômago de Theta que teve de se
conter para não vomitar. Chegaram por fim ao último andar e bateram à
porta castanha de um apartamento que cheirava fortemente a desinfetante.
Um homem muito magro de cara enrugada fê-los entrar para uma sala de
espera suja com cadeiras desirmanadas. À direita estava uma banheira
quase cheia com água ensanguentada e uma coleção de facas. Uma mulher
gemia atrás de uma cortina. Theta apertou com tanta força a mão de Henry
que pensou que lha partiria. O homem magro apontou para uma maca com
um lençol e disse-lhe que se despisse e deitasse. A mulher gritou de novo e
Theta correu escadas abaixo e saiu para a rua suja sem se importar por ficar
encharcada.
– Não faz mal – disse Henry quando a apanhou. Estava sem fôlego. –
Vamos arranjar o dinheiro.
Henry vendeu o piano e arranjaram outro médico, caro, mas limpo.
Depois de tudo tratado, Theta ficou deitada na cama de Henry, dorida e
anestesiada com éter, prometendo comprar-lhe outro piano, nem que fosse a
última coisa que faria. Henry apertou-lhe a mão e ela adormeceu. Duas
semanas depois, Theta arranjou emprego como corista nas Follies. Tivera
de mentir em relação ao nome, à sua história, à idade, mas era o que todas
faziam. Era por isso que adorava aquela cidade – uma pessoa podia ser
quem quisesse. Quando o pianista dos ensaios se despediu para ir tocar num
clube noturno da zona norte da cidade, sugeriu que contratassem Henry.
Com mais algum dinheiro conseguiram alugar um apartamento maior no
Bennington, apresentando-se como irmãos, o que era cómico, já que o seu
aspeto era tão diferente quanto as suas almas eram semelhantes. E todas as
semanas, Theta metia um dólar numa velha lata de café onde escrevera
DINHEIRO PARA O PIANO DO HENRY.
Pensara que aquilo continuaria para sempre, Theta e Henry, pertencendo
apenas a si próprios e um ao outro. Não contara com a possibilidade de
conhecer Memphis. Não era apenas o facto de terem sonhado com o mesmo
símbolo estranho, coisa que era certamente importante. Não. Era o próprio
Memphis. Era bondoso, forte e bonito. Quando estava com ele, sentia-se
cheia de leveza e esperança, embora a ideia de estarem juntos parecesse
completamente sem esperança. E se Flo descobrisse, expulsá-la-ia do seu
espetáculo.
Daisy deixara um par de brincos de rubi na mesa de maquilhagem, um
dos muitos presentes que recebera do seu corretor ou do crítico de teatro.
Theta quase pensara vendê-los e dar a massa a um orfanato, só para ensinar
aquela vaca frívola a tomar conta das suas coisas. Mas deixou-os lá e
apagou as luzes, caminhando pelo teatro apenas iluminado pelas luzes de
presença. Chegara aos bastidores quando um assobio agudo algures dentro
do teatro a imobilizou de medo.
– Wally? És tu? – gritou com o coração a bater acelerado.
O assobio calou-se. Não houve resposta.
Theta apressou os passos. Se algum engraçadinho lhe quisesse pregar
uma partida, seria capaz de lhe dar um soco nos queixos. Theta passou as
pernas por cima do palco e saltou para a primeira fila. Ouviu de novo o
assobio atrevido algures dentro do teatro. Desejou ter deixado as luzes
acesas.
– Quem está aí? – gritou. – Daisy, se és tu, juro que não vais poder dançar
durante meses porque vou partir-te as duas pernas.
Mas o assobio não parou e Theta não conseguia localizar a fonte. Parecia-
lhe vir de todos os lados ao mesmo tempo. Correu pela coxia direita, no
escuro, e bateu com uma perna contra o braço de uma cadeira. Lançou-se de
encontro às portas do teatro, mas descobriu que estavam trancadas.
De onde viria o assobio? Recuou pela coxia espreitando a plateia. De
repente acendeu-se um projetor que a cegou. Pestanejando para afastar as
manchas negras, voltou-se e correu em direção aos camarins, com a música
cava sempre a segui-la. As portas estavam abertas e Theta avançou pelo
comprido corredor mal iluminado, temendo que o autor do assobio saltasse
de trás de qualquer dessas portas. Theta estava agora verdadeiramente
assustada. Por baixo das luvas sentia a pele muito quente e a picar-lhe.
– Não – murmurou. – Não.
Uma réstia de luz brilhava no fundo do corredor, a porta do palco estava
entreaberta. Os dedos ardiam-lhe num fogo desagradável. O assobio era
agora mais alto. Parecia vir de trás dela. As luzes picavam e apagavam-se à
sua passagem. Tropeçou e magoou um joelho, o que a fez gemer de dor.
Encostou a mão à parede e sentiu a madeira a escaldar. Sufocada, Theta
correu para a porta. A porta, a porta, a porta. A saída dos artistas, o seu
meio de fuga. A saída dos artistas, cuja porta começava a fechar-se.
O QUE TRABALHA COM AS DUAS
MÃOS
Memphis acordou com a sensação de que alguma coisa não estava bem.
Quando olhou para o lado e viu que a cama de Isaiah estava vazia,
levantou-se imediatamente e percorreu o apartamento a toda a pressa com o
coração acelerado. Foi ver a cozinha e a casa de banho. Octavia ressonava
na cama e Memphis fez os possíveis por não fazer barulho e não a acordar.
Olhou pelas janelas da sala e viu o irmão, de pijama, ao frio, no jardim.
Correu para o lado dele.
– Isaiah, que estás a fazer? – Memphis abanou o rapaz. Isaiah estava
gelado.
– Estou a falar com o Gabriel. – Tinha os dentes a bater. Os olhos
estavam fixos, cegos como que em transe. – Memphis, mano – murmurou
Isaiah. – Aproxima-se a tempestade… Aproxima-se a tempestade…
– Isaiah! Isaiah! – Memphis abanou o irmão com força.
– Em nome de Deus, mas o que se passa aqui? – Octavia saíra de casa de
camisa de dormir. – Que estão a fazer aqui fora a meio da noite?
– O Isaiah está com um pesadelo. Vá lá, Homem de Gelo, acorda!
– A nona oferenda foi uma oferenda de luxúria e pecado… – disse Isaiah
revirando os olhos e torcendo a boca.
Octavia levou a mão à boca, assustada.
– Oh, meu Jesus. Memphis, ajuda-me a levá-lo para dentro.
Juntos, levaram o trémulo Isaiah e meteram-no na cama. Octavia caiu de
joelhos e pôs uma mão na testa do sobrinho e a outra no seu próprio
coração.
– Ajoelha-te, Memphis John. Reza comigo. Vamos rezar para tirar o
Diabo de dentro desta criança.
– Não há nenhum diabo dentro do Isaiah! – vociferou Memphis.
– Eles vêm, irmão... – murmurou Isaiah. Os seus tremores eram agora
mais violentos.
– Diz comigo – ordenou Octavia. – O Senhor é meu pastor, nada me há
de faltar.
Horrorizado, Memphis via aquela cena desenrolar-se no seu próprio
quarto. O seu melhor amigo morrera. O irmão estava doente e tinha visões.
A mãe morrera cedo e assombrava-lhe o sono e o pai partira e
possivelmente nunca mais voltaria. Memphis estava farto de tudo. Queria
agarrar em Theta e fugir dali.
– O Senhor faz-me deitar em verdes prados – rezava Octavia com fervor.
– Guia-me mansamente a águas tranquilas. Refrigera a minha alma…
Memphis John, onde pensas que vais?
– Para longe daqui! – gritou Memphis. Lançou um casaco por cima do
pijama, calçou os sapatos sem meias e saiu de casa furioso e sem destino. O
nevoeiro caíra, ofuscando a luz dos candeeiros e transformando o Harlem
numa cidade fantasma. Obscurecidas pela bruma, as poucas pessoas nas
ruas mais pareciam sombras que riam. Memphis afastou-se delas e dirigiu-
se para norte.
Porque estaria tudo aquilo a acontecer? E se Isaiah estivesse doente como
a mãe? Não tinham sabido que ela estava tão mal, senão quando já fora
demasiado tarde. Seria um aviso? Recordou-se do que a irmã Walker
dissera acerca de Isaiah ser como um rádio que recebia os sinais. Que sinais
receberia Isaiah e como se poria fim a tudo aquilo?
Deu por si diante do Trinity Cemetery. O portão aberto rangia ao vento.
Porque estaria aberto? Um gato preto atravessou a estrada, obrigando
Memphis a parar.
– Vá, desaparece! – sussurrou.
Memphis estremeceu arrepiado. Tinha arrefecido consideravelmente,
embora não percebesse porquê. Não havia vento, nem um ramo de árvore
balançava. As folhas não restolhavam. Memphis sentia pele de galinha nos
braços e no pescoço. De repente pensou que deveria dar meia-volta e ir para
casa, meter-se na cama e puxar os cobertores para cima da cabeça.
– Crá! – Lá em cima, nos ramos de uma árvore nua, estava um corvo a
olhar para ele.
– Deixa-me em paz! – berrou Memphis para o pássaro.
No cemitério viu a silhueta de uma figura envolta em nevoeiro. A pessoa
não se mexia. Estava apenas ali.
– Memphis…
A voz era rouca como o restolhar de folhas secas numa sarjeta. Memphis
manteve-se imóvel, exceto o tremor dos seus joelhos. A respiração saía-lhe
em Morse num código de medo. Tentou falar, mas tinha a língua seca.
– Gabe?
A figura pedia-lhe que se aproximasse.
– Mano…
Ouviu de novo o corvo. Memphis começou a rir. Estava a enlouquecer –
era isso mesmo. Estava preso numa espécie de pesadelo e não conseguia
acordar. Com uma sensação de fatalidade, seguiu a figura e internou-se no
cemitério coberto pelo nevoeiro, até chegar ao mausoléu em que o corpo de
Gabe fora depositado como um anjo caído. Agora Gabe estava ali na
bruma, com o fato do funeral. Tinha a pele esticada sobre os ossos do crânio
e cintilava em decomposição, fosforescente, um peixe de águas profundas
que nadava brevemente pelos baixios. Memphis ouvia um som, com a nota
entrecortada de trompete. Chegou aos seus ouvidos e acelerou-lhe o
coração. Os joelhos cederam e caiu no chão. Por cima dele, Gabe cintilava,
como que em sonhos, como se Memphis visse um ciclo da morte de Gabe:
o seu amigo de olhos emocionados. Um demónio a rir. Uma máscara
mortuária em decomposição, coberta de moscas, os olhos cozidos, a língua
desaparecida.
A voz de Gabe surgiu como um longo e elaborado murmúrio, como se
fossem esses os últimos sons que poderia pronunciar.
– Na encruzilhada, terás de escolher, mano. Tem cuidado com aquele que
trabalha com as duas mãos. Não deixes que os olhos te vejam...
O corpo de Memphis estremeceu. O instrumento atingiu uma nota tão alta
que quase o obrigou a gritar. O nevoeiro girava em torno de Gabriel e a
última coisa que Memphis ouviu antes de desmaiar foi o aviso.
– Aproxima-se a tempestade... Todos são precisos.
A irmã Walker estava sentada à mesa da cozinha, de roupão, com o cabelo
metido num lenço, uma chávena de café intacta à sua frente, a ouvir
Memphis falar do seu amigo morto. Manteve-se no mais perfeito silêncio
enquanto ele desfiava a sua história incrível, começando pelo transe de
Isaiah e terminando no Trinity Cemetery; nem sequer se mexeu quando
Gabe emitira o aviso – «Aproxima-se a tempestade» – antes de desaparecer
no nevoeiro. Quando Memphis terminou, ouvia-se apenas o tique-taque
regular do relógio da cozinha e a primeira luz leitosa da madrugada entrava
pela janela.
Por fim, a irmã Walker falou.
– Memphis, quero que me escutes com muita atenção. Sofreste um
choque terrível. Não sei o que aconteceu nesse cemitério, mas, por
enquanto, gostaria que esse assunto ficasse entre nós. Não digas a
ninguém... a ninguém, entendes?
Memphis sentia-se demasiado cansado para fazer outra coisa que não
acenar afirmativamente.
– Quanto ao Isaiah vou deixar de trabalhar com ele durante algum tempo,
até ele melhorar. Quando cá vier da próxima vez trabalharemos com a
aritmética e nada mais.
– O Isaiah não vai gostar – disse Memphis numa voz cava.
– Deixa que eu cuido do Isaiah. – Tossiu com força durante muito tempo,
pelo que meteu uma pastilha na boca. Depois colocou o casaco nos ombros
de Memphis como faria uma mãe e ele sentiu um grito formar-se-lhe no
fundo da garganta.
– Agora vai para casa, Memphis. Vai descansar.
A irmã Walker ficou à porta a ver Memphis dirigir-se para casa. Estava
com muita tosse... e dormia pouco. Um gole de remédio e chá quente
ajudariam por agora. Em relação ao que ouvira, não havia remédio – apenas
uma profunda sensação de medo de que um horror inominável estivesse
prestes a varrer a terra com a sua asa negra, e que todos se perdessem na sua
sombra.
FALSOS ÍDOLOS
Mary White Blodgett vivia na Avenida Surf num bungalow danificado pelo
vento e pelo ar salgado com vista para a montanha-russa Thunderbolt.
Eleanor, a filha da Sr.ª White abriu a porta a Will e a Evie com um vestido
de andar por casa e a cabeça cheia de rolos.
– Senhora Ambrosio? – perguntou Will.
– Quem deseja saber?
– Como está? Sou William Fitzgerald do museu. Falámos ao telefone.
Uma centelha de reconhecimento brilhou nos olhos da mulher.
– Oh, com certeza. Claro que sim. A minha mãe já tem muita idade e está
bastante doente. Por isso não a deixem agitada.
– Claro que não – afirmou Will, tirando o chapéu.
A Sr.ª Ambrosio fê-los atravessar uma sala cheia de caixas vazias de
bombons Whitman’s Sampler e a coleção de frascos de Radithor que ainda
não tinham ido parar ao caixote do lixo. A casa cheirava a cerveja velha e a
sal.
– É o dia de folga da mulher da limpeza – disse ela e era difícil perceber
se se tratava de uma brincadeira ou de uma desculpa, ou talvez das duas
coisas. – Esperem uns minutos aqui na cozinha.
Evie não mexeu em nada. Não queria estar ali de pé e muito menos
sentada. Sobre a desarrumada mesa da cozinha havia um frasco com o
rótulo de MORFINA perto de outro que dizia VENENO PARA RATOS. Via-se uma
seringa suja sobre um bocado de algodão manchado de sangue.
A Sr.ª Ambrosio desapareceu atrás de uma cortina, mas conseguiam
ouvir-lhe a voz alta e esganiçada.
– Mãe! Estão aqui umas pessoas que querem falar do senhor Hobbes.
A Sr.ª Ambrosio reapareceu de repente, metendo os frascos num armário
e fechando a porta.
– Por vezes temos ratos – explicou. – Como vos disse, ela está muito
doente. Não demorem mais de quinze minutos. São horas da sesta dela.
Atrás da cortina, o quarto de Mary White parecia um túmulo. As gelosias
tinham sido descidas e o brilhante sol da praia entrava pelos cantos. A velha
estava sentada na cama, encostada a uma almofada. Tinha na cabeça uma
touca de dormir e vestia um casaquinho de seda cor de pêssego, muito sujo.
Por baixo da frágil pele dos braços, as veias azul-acinzentadas destacavam-
se como as escarpas de uma montanha ao longo das dobras de um mapa.
– Querem então saber do meu John – disse em voz fraca e com
dificuldade em respirar.
– Sim, senhora Blodgett, muito obrigada.
O tio Will sentou-se na única cadeira, obrigando Evie a instalar-se na
borda da cama. A velha cheirava a Mentholatum e a qualquer outra coisa
adocicada, como flores murchas. Evie teve vontade de fugir porta fora e
correr para a luz forte da praia.
– Conheceu o meu John? – perguntou Mary White a sorrir, mostrando os
dentes castanho-acinzentados.
– Não, receio bem que não – respondeu o tio Will.
– Era um homem encantador. Trazia-me um cravo todas as semanas.
Umas vezes branco, outras vezes vermelho. Ou cor-de-rosa, nos dias
especiais.
Evie estremeceu. Pelo que sabiam, John Hobbes fora tudo menos um
homem encantador. Matara várias pessoas e mutilara-lhes o corpo.
Aterrorizara e, provavelmente, assassinara Ida Knowles. E se estivessem
certos, o seu espírito voltara para terminar um ritual macabro e trazer uma
terrível destruição.
– Sim, bem, a senhora pode falar-nos acerca das crenças dele? – pediu o
tio Will. – Acerca do culto dos Irmãos e...
– Não se tratava de um culto! – A velha tossiu. Evie ajudou-a a beber um
pouco de água de um copo sujo. – Tentaram fazê-lo parecer diabólico. Mas
não era, era muito belo. Procurávamos manifestar o reino espiritual neste
plano. Jefferson, Washington, Franklin, homens esclarecidos, fundadores da
nossa grande nação, conheciam os segredos dos antigos. Segredos
desconhecidos até para os maçons nas suas grandes salas. Queríamos
libertar os espíritos das pessoas, para que se vissem livres das algemas. O
mundo que conhecemos morreria e no seu lugar nasceria um novo mundo.
Era essa a nossa missão... renascer. O John sabia-o.
– E o hóspede que desapareceu? E a criada? – insistiu Will.
– Mentiras – disse Mary irritada. – O hóspede partiu sem pagar a renda. A
criada era insolente. Foi-se embora para ir ver a irmã e nem se deu ao
trabalho de nos dizer adeus.
– E a Ida Knowles?
– A Ida? – As mãos de Mary esvoaçaram-lhe junto da boca e nos seus
olhos surgiu uma expressão desconfiada. – Quem são vocês? O que
querem? – perguntou com a voz mais alta. – Eu não disse que vos
receberia!
Evie pegou na mão fria e magra de Mary White e tomou-a entre as suas.
– Compreendo o que quer dizer acerca do senhor Hobbes – começou
Evie. – Os puritanos pensam que nós, as raparigas modernas, somos
moralmente indecentes. Mas tentamos apenas aproveitar a vida. – Evie
olhou para o tio que lhe fez um leve aceno para que continuasse. – Pois
aposto que se o senhor Hobbes estivesse hoje aqui, seria sem dúvida
considerado muito moderno.
A Sr.ª White sorriu. Dois dos seus dentes tinham apodrecido
completamente. Poisou a mão húmida na face de Evie.
– Teria gostado de si. O John gostava sempre de uma cara bonita.
Evie silenciou o grito que lhe subia da garganta.
– Sou um pouco curiosa e, se não se importa que lhe pergunte, porque
nunca quis desistir de Knowles’ End? Tenho a certeza que teria feito uma
fortuna se a vendesse.
– Nunca o faria.
– Claro que não – concordou Evie, acenando veementemente. – Só tenho
curiosidade em saber porque não o fez.
– Para que o John tivesse uma casa para poder voltar. Disse que era muito
importante. «Nunca vendas a casa, Mary, ou não poderei voltar para ti.»
Arrepios dançavam pelas costas de Evie.
– Mas como?
Mary White encostou a cabeça à velha fronha de cetim e olhou para a luz
que se esgueirava pelos cantos da janela.
– O Johnny não me contava tudo. Só ele entendia o plano infinito do
Todo-Poderoso. O seu corpo fora ungido, sabe, como uma obra de arte: a
Vénus de Botticelli, o David de Miguel Ângelo. As marcas em toda a parte.
Usava-as como uma segunda pele.
– Porquê?
– Fazia parte do plano, sabe. Ele voltaria. Renasceria. Uma ressurreição.
E uma vez renascido traria o fim dos tempos. O mundo seria purificado
pelo fogo. Ele governá-lo-ia como um deus. E nós estaríamos a seu lado. –
Riu-se, uma gargalhadinha de colegial, completamente oposta à sua cara
enrugada. – Chamava-me a sua Senhora Sol. Oh, era um príncipe. Olhe. –
Com esforço, Mary abriu a gaveta da mesa de cabeceira e retirou de lá uma
caixinha preta.
– Abra.
Uma larga aliança de ouro, baço do passar dos anos, repousava no veludo
negro.
– É linda – disse Evie.
– Era dele – murmurou em tom conspirativo. – Ofereci-lha. Meu marido,
era como eu lhe chamava, embora ainda não tivéssemos casado. Usou-a
quase até ao fim, o meu Johnny.
Os dedos de Evie estremeceram de desejo de pegar na aliança, de a ler.
Pertencia-lhe. A John Hobbes.
– Guarde-a, por favor – ordenou a Sr.ª Blodgett.
Evie fechou a caixa com alguma relutância.
– Oh, mas a senhora não pode sentir-se confortável, senhora Blodgett. Por
favor, doutor Fitzgerald, não poderia sentá-la numa posição mais cómoda?
Will pareceu momentaneamente atordoado, mas tratou de ajudar a velha
que parecia querer impedi-lo. Durante a confusão, Evie meteu rapidamente
o anel no bolso e voltou a meter a caixa na gaveta.
– Ah, assim está melhor, não é verdade?
– Sim, obrigada – disse Mary, como se tivesse sido ela a pensar naquilo.
Depois continuou. – Mas ele tinha de melhorar o mundo. Purgá-lo do
pecado. Tomá-lo como um salvador. Para comer o pecado do mundo. – Os
olhos de Mary White estavam molhados de lágrimas. – Assassinaram-no, o
meu Johnny. Era tão belo e assassinaram-no. Filisteus! Filisteus! – Tossiu
de novo e Evie ajudou-a a beber mais água. – Nunca fez mal a ninguém! As
pessoas sentiam-se atraídas por ele... principalmente as mulheres. – Sorriu e
deu uma palmadinha no braço de Evie. A mera sugestão de tocar em John
Hobbes deu volta ao estômago da jovem. – Estou com dores. Onde está a
Eleanor com o meu remédio? Que rapariga estúpida. Sempre atrasada.
– Sim, sim – acalmou-a Evie. – Vai já tomar o seu remédio. Mas também
gostava de saber uma coisa: o senhor Hobbes alguma vez falou de um ritual
para prender um espírito ou para o enviar de volta para o outro reino assim
que tivesse terminado o seu trabalho?
Mary White franziu a testa.
– Não. Por favor chamem-na para que me dê o meu remédio.
– Claro que sim! E o senhor Hobbes usava um pendente especial, não é
verdade?
– Sim – respondeu Mary White, com a voz esvaída de dor. – Sempre.
– E onde está agora o pendente?
– O pendente? – Tinha um olhar vago e Evie receou que não
conseguissem a tempo aquilo de que necessitavam.
– Ele deu-lho a si? – sugeriu Evie. – Talvez como presente.
– Já lhe disse que o usava sempre – disse a mulher, irritada. – Tinha-o
quando morreu. Foi enterrado com ele. Eleanor! O meu remédio! – gritou a
Sr.ª White.
– Foi enterrado como indigente. Já desapareceu há muito – disse Will a
Evie em voz baixa.
– Não, não, não! O meu Johnny não foi enterrado como indigente –
corrigiu-o Mary White com um ouvido nitidamente mais perfeito do que a
sua memória.
– Peço perdão, pensei...
– Pagámos a um guarda para que nos devolvesse o corpo. De acordo com
os desejos de Johnny, enterrámo-lo na sua casa.
– Em Brooklyn ou em Knowles’ End?
– Não – disse a velha irritada. – Na sua verdadeira casa.
– Onde ficava? – perguntou Evie.
– Ora, em Brethren, minha querida. Lá em cima na velha colina, com os
fiéis.
O quarto pareceu girar. Evie ouviu a sua própria voz como vinda de muito
longe.
– O senhor Hobbes era de Brethren?
– Sim. Claro.
– Mas não houve sobreviventes do incêndio de Brethren – disse Evie.
– Só um. Pode dar-me essa caixa de chapéus, minha querida?
Evie entregou-lhe a caixa de chapéus que se encontrava sobre o toucador.
Mary White meteu lá a mão e abriu um fundo falso, para retirar um livro de
hinos. De dentro das suas páginas finíssimas retirou uma folha de papel
dobrada, que entregou a Evie.
Era uma certidão de nascimento do condado para a aldeia de Brethren,
datada de 6 de junho de 1842: Yohanan Hobbeson Algoode, filho do pastor
John Joseph Algoode e de Ruth Algoode (que morrera de parto).
– Foi um sacrifício tão grande que fizeram por ele, o escolhido.
A cortina foi afastada com força. A filha de Mary White apareceu com
uma seringa numa mão e um tubo na outra.
– Tenho estado à espera – resmungou Mary White. – Queres que eu sofra,
não é verdade? Ai, como a minha vida era boa.
– Pois sim. Quando vivia na mansão da colina, bem sei. Se não tivesse
andado a pagar os malditos impostos daquela casa velha, não teríamos de
viver neste buraco. Já alguma vez pensou nisso?
Mary White gemeu quando a filha lhe espetou a agulha na curva já
magoada do braço e depois retirou o tubo. Logo a seguir os olhos da mulher
cintilaram com a morfina.
– Ele vem aí, sabem? – O tom de voz era agora meloso. – Disse que vinha
buscar-me, e eu sei que sim. – Tinha os olhos vidrados. – Era um homem
tão bonito. – Fechou os olhos pelo efeito da morfina e Evie e Will saíram da
casa.
Já em segurança ao sol, Evie e Will caminharam rapidamente por entre as
famílias que andavam a passear.
– Claro! – exclamou Will.
Deteve-se diante de um cartaz colorido que anunciava o Selvagem do
Bornéu. Do lado de fora da tenda, um homem com o casaco vermelho e o
chapéu alto de empresário de circo tentava os curiosos:
– Entrem e vejam o selvagem… metade monstro, metade homem! – Atrás
deles, a montanha-russa subia a inclinação com um firme clic-clic-clic,
antes de mergulhar às voltas com as pessoas aos gritos numa mistura de
medo e prazer. Era o último divertimento do ano antes que os divertimentos
encerrassem até ao verão seguinte.
– Claro – repetiu Will, repreendendo-se. – Agora tudo faz sentido.
– Ótimo! Pode explicar-me?
– Yohanan é o nome hebraico correspondente a John. John Hobbeson
Algoode. John Hobbes – disse Will. – O perverso John Hobbes era filho do
pastor Algoode... o escolhido. A Besta prometida pela profecia. Voltou para
terminar o trabalho do pai, para trazer o inferno à terra.
Caminhavam de novo e as palavras de Will eram tão rápidas como os
seus passos.
– A Mary disse que ele tinha de comer o pecado do mundo. Que tinha de
tomar os seus pecados. É por isso que retira partes deles, segundo os sinais.
Ingere partes deles. A ideia de que ao comer partes dos inimigos se fica
mais forte é uma magia antiga. Não podem derrotar-nos. Dois, por favor...
com legumes!
Will parara diante dos Nathan’s Hot Dogs. Tirou duas moedas do bolso e
entregou-as ao rapaz atrás do balcão, recebendo em troca dois cachorros
quentes. Entregou um a Evie que o segurou desajeitadamente.
– Uf – disse fazendo uma careta. – Francamente, Tito.
Will engoliu rapidamente o seu, continuando a falar.
– No caso do John, está a ajudar a manifestar-se. Dá-lhe força.
Evie experimentou dar uma pequena dentada no cachorro.
Surpreendentemente era delicioso e nem mesmo a conversa do canibalismo
a pôde impedir de o devorar.
– Se o pendente é a sua ligação com este plano, a sua proteção, então
bastará destruí-lo para destruir a sua ligação a este mundo. Será assim?
– Parece razoável.
– Mas ela disse que foi enterrado com ele.
– Sim – disse Will fazendo uma pausa para pensar. – Isso vai ser um
trabalho sujo.
Evie deixou de mastigar.
– Não pode estar a falar a sério. – Ficou a olhar para Will. – Oh, valha-me
um burro aos coices, está a falar a sério.
Will deitou o papel do cachorro num caixote do lixo.
– Vamos para Brethren. E precisamos de uma pá.
Memphis caminhou por entre as ruas cheias de folhas do Upper West Side,
aconchegando o casaco para se abrigar do vento frio. Já era outono. O fumo
das chaminés queimava um pouco o ar e perfumava o vento. As noites
tinham peso. Vai correr tudo bem, Memphis. Deixa de te preocupar.
Memphis caminhava mais depressa, desejoso de chegar ao Museu
Americano de Folclore, Superstição e Ocultismo. A irmã Walker dissera-lhe
que guardasse para si o episódio com o fantasma de Gabe, porque
provavelmente andaria a ver coisas que mais não seriam que efeitos da
tristeza e do cansaço. Mas os transes de Isaiah, a visita de Gabe e o sonho
que partilhava com Theta eram demasiadas coisas para ignorar, e Memphis
precisava que alguém lhe explicasse o que se passava.
Memphis avistou ao longe as torres góticas do Bennington espreitando
por entre as folhas que já rareavam. Era ali que Theta vivia e, por
momentos, desejou poder subir para a ver e esquecer este mundo louco.
Mas o mundo dela era tão misterioso como o resto que tanto o preocupava.
Nada podia fazer acerca disso e, além do mais, precisava de respostas. Por
isso seguiu o seu caminho.
Foi perto de Central Park West e da Rua 88 que percebeu que alguém o
seguia. Quando olhou por cima do ombro, viu-os: vinham dois homens
atrás dele, a respeitável, mas consistente distância. Memphis percebeu
imediatamente tratar-se de polícias à paisana. O coração bateu-lhe com
mais força. Não trazia papelinhos consigo. Estava tudo bem. Memphis
continuou a andar. Os homens também. Não havia dúvida de que o
seguiam. Memphis investigou a rua em busca de uma saída. Ao longo de
Central Park West, havia trabalhadores a escavar a rua para a nova linha do
metropolitano. Seria possível esconder-se ali? Não. Certamente ficaria
encurralado e acabaria por partir uma perna. Talvez pudesse despistá-los.
Memphis esperou até que um carro subisse a rua, depois lançou-se para a
frente dele, fazendo o condutor guinar e subir a avenida, bloqueando
momentaneamente o trânsito. Partiu a correr para o Central Park. Sentia os
pulmões a arder e ouvia o ruído dos sapatos no atalho do circuito que
rodeava árvores e pedras negras e aguçadas, com o sol a manchar o trilho
com promessas de luz da cor do ouro falso. Por cima da sua respiração
entrecortada, Memphis ouviu os polícias a correr atrás dele aos gritos. Eram
mais velozes do que aparentavam, mas Memphis conseguia ser ainda mais
rápido. Atreveu-se a olhar de novo para trás; não os viu, o que o fez sentir
uma súbita alegria no peito. Voltou-se a tempo de ver uma ama com um
carrinho de bebé mesmo à sua frente e a expressão de horror da ama,
transfigurada, incapaz de sair do seu caminho. Ganhara demasiada
velocidade a descer a colina. Tentou parar e escorregou e depois de ter
rolado sobre si foi parar à relva, magoado e tonto. Tinha as calças rasgadas
e ensanguentadas nos joelhos. Mesmo assim, pôs-se de pé com dificuldade,
preparado para correr. Mas era demasiado tarde; os dois homens estavam
em cima dele, erguendo-o violentamente, torcendo-lhe os braços e
puxando-os para trás das costas.
– Mas o que temos aqui? – perguntou um polícia ofegante e Memphis
sentiu-se satisfeito por pelo menos os ter cansado. – Parece que apanhámos
um homem dos papelinhos.
– Eu não – disse Memphis. – Não tenho papelinhos nenhuns.
– Ah, não? Então e o que é isto nos teus bolsos? – disse o outro polícia.
Tirou do próprio bolso um monte de papelinhos e enfiou-os no bolso de
Memphis.
– Diria que aqui estão pelo menos vinte e cinco, o suficiente para um juiz
te mandar engavetar, rapaz.
– Mas esses não são meus! – Assim que as palavras lhe saíram da boca,
Memphis apercebeu-se de como os seus protestos eram estúpidos e fúteis.
A palavra de dois polícias brancos contra a de um negro do jogo dos
papelinhos? Era uma guerra perdida.
– Chamem o Papa Charles – disse Memphis. – Ele dá-vos o que
precisarem.
– Não trabalhamos para o Papa Charles – disse um dos polícias
desdenhoso, e Memphis percebeu que o polícia trabalhava para Dutch
Schultz. – Vais para a esquadra, amigo.
Os polícias empurraram-no rudemente para dentro do carro estacionado
junto ao passeio. Atrás de si, Memphis conseguia ver as pontas aguçadas do
Bennington flutuando por cima de umas nuvens, transparentes como uma
miragem.
UMA HERANÇA SAUDÁVEL
Memphis estava atrasado. Dissera a Isaiah que o iria buscar às cinco horas a
casa da irmã Walker, mas eram quase seis e Isaiah já tinha fome. A tia
Octavia punha o jantar na mesa pontualmente às seis e quinze. Se não
estivessem lavados e sentados à mesa a essa hora, iam para a cama com
fome. Isaiah já estava zangado porque a irmã Walker não o deixara ler as
cartas. Durante toda essa tarde apenas tinham feito contas de somar e a
tabuada e, por isso, sentia-se bastante aborrecido. Não tencionava passar a
noite às voltas com o estômago vazio por causa de Memphis. Isaiah sabia
que a irmã não o deixaria sair dali sem a companhia de um adulto, por isso
esperou até que ela fosse à cozinha buscar o chá e disse em voz alta:
– Parece que já estou a vê-lo, irmã! – E saiu porta fora antes que ela o
pudesse apanhar.
Até àquele dia nunca saíra sozinho de casa da irmã Walker. Era
emocionante, como se tivesse um mundo secreto para explorar. Porém,
desejava que não fosse quase noite. Não gostava do escuro. O caminho
levava-o a passar pela funerária e pensou na mãe, deitada no caixão, com o
seu vestido branco dos domingos, e também em Gabe. Por isso sentiu-se
triste e um pouco assustado. Depois tinha de passar pelo Trinity Cemetery à
noite. Todos sabiam que era a essa hora que os mortos passeavam. Sentiu o
estômago a roncar e pensou que Octavia lhe negaria o jantar.
Isaiah susteve a respiração – devia-se sempre reter a respiração ao passar
por um cemitério, também todos sabiam isso – enquanto corria por cima das
primeiras folhas caídas do outono, ao passar pelos altos muros de pedra e
ferro. Esperava que os pulmões aguentassem. Era difícil correr e suster a
respiração ao mesmo tempo. Quando chegou ao fim, sentia-se tonto.
Chocou de cabeça com o cego Bill Johnson e soltou um grito.
– Assustou-me!
Bill sorriu.
– Isaiah Campbell! Pensaste que eu era um fantasma?
– Pois. Não gosto de passar pelo cemitério, mas se não chego a casa a
horas, a minha tia Octavia não me dá de jantar.
– Então é melhor apressarmo-nos. Anda. Conheço um atalho. – A bengala
de Bill fazia tap-tap-tap no passeio. Pararam à esquina. – Diz-me, gostas de
truques de magia?
– Acho que sim.
– Achas? Que espécie de resposta é essa? – disse Bill, fingindo-se
ofendido. – Vais ver uma coisa. Tenho andado a praticar o meu número de
magia. Queres ver?
– Claro – disse Isaiah. Batia uma bola, apanhando-a quase sempre.
– Observa! Nesta mão tenho uma rosa. – Bill abriu a mão direita para
mostrar ao rapaz, e depois fechou-a. – Abracadabra! – Abriu a mão. – O
que vês?
Isaiah semicerrou os olhos para a rosa levemente esmagada.
– Não aconteceu nada.
– Nada?
– Ná.
– Deixa-me tentar outra vez. Ó grandes espíritos da terra, colocai um sapo
na minha mão direita! – O cego Bill abriu a mão. A rosa continuava a ser
uma rosa.
Isaiah riu-se.
– Ainda não há sapo.
– Confundi-me – disse o cego Bill. – Leram-me um livro de magia e tudo.
Acho que não tenho jeito.
Isaiah queria contar ao velho o que podia fazer. Memphis não queria que
ele falasse no assunto, mas Memphis não estava aqui. Fora sabia-se lá para
onde e esquecera-se do irmão. Tinha vontade de chorar, mas os rapazes não
deviam chorar. Parecia que havia uma lista de coisas que Isaiah não devia
fazer e já se sentia cansado de tantos deveres.
– Eu sei fazer magia – confessou Isaiah de repente.
– Sabes?
– Hum-hum. A irmã diz que sou especial. – Se Memphis tinha segredos
para ele, também Isaiah poderia ter segredos para Memphis. E podia contá-
los.
– Ah, sim? E porque és tão especial?
– A irmã diz que não posso dizer.
– Está bem, mas podes contar ao velho cego Bill, não podes? Achas que
vou dizer a quem?
– A irmã diz que não.
– Hum. Estou a ver. Vais deixar que essa mulher mande em ti, quando já
és um homenzinho? – Rápido como uma serpente, agarrou na bola com a
mão esquerda e pô-la fora do alcance de Isaiah.
– Ei!
– Se és tão especial, que tal se ma tirasses? Ou não serás assim tão
especial?
– Sou!
– Pois, sim, filho! Não podemos ser todos especiais.
– Sou especial! – exclamou Isaiah, tão zangado que as lágrimas lhe
chegaram aos olhos.
O cego Bill entregou a bola a Isaiah e deu-lhe uma palmadinha na cabeça.
– Então, então. Não queria ofender-te, rapaz. Claro que és especial. Eu
sei. O cego Bill sabe.
– Sabe?
– Sei sim senhor, sei sim senhor.
As palavras do velho foram um bálsamo para Isaiah. Pelo menos alguém
se preocupava com os seus sentimentos. Isaiah estava cansado de ser
pequeno e que o pusessem de parte. Estava cansado de todos – a irmã
Walker, Memphis, Octavia, os professores, as pessoas da Mãe AME – lhe
dizerem constantemente o que devia e não devia fazer. De que servia ter um
dom tão especial se ninguém podia saber?
– Muito bem. Vou contar-lhe. Mas tem de me prometer que vai guardar
segredo.
O velho fez uma cruz sobre o coração com o dedo comprido.
– Juro, que eu morra já aqui.
Era o juramento mais solene que Isaiah conhecia.
– Consigo ver as coisas na minha cabeça. Quando a irmã Walker segura
nas cartas, consigo dizer quais os naipes sem sequer olhar.
Bill torceu a boca.
– Ah, sim? Devias ser bom a jogar póquer.
– A irmã não me deixa.
– Não, claro que não.
– E, às vezes... – Isaiah fez uma pausa.
– Sim?
– Às vezes, consigo ver coisas que ainda não aconteceram.
Bill sentiu uma espécie de comichão no estômago, que logo lhe invadiu o
sangue como um desejo.
Com a mão trémula, tocou de novo no alto da cabeça do rapaz.
Isaiah pegou na mão do velho e voltou-a.
– Tem aqui uma marca.
– É um corte do tempo em que colhia algodão. Os troncos são duros e
APANHAM-NOS! – Bill assustou Isaiah que gritou e depois riu. Gostava de
Bill, gostava que o velho brincasse com ele. Recordava-lhe o pai, a balançá-
lo suspenso dos dois braços quando andavam na rua e a mãe a dizer:
«Marvin, olha que lhe arrancas um braço.» Entristeceu-se ao pensar na mãe
e no pai.
Chegaram a uma rua estreita a que Bill dissera que Isaiah deveria estar
atento.
– O atalho – disse ao velho.
– Obrigada. – Bill abrandou o passo. – Estás bem, homenzinho? Pareces
triste.
– Estava a pensar na minha mãe. Ela morreu.
– Bem. É mesmo muito triste. – Bill abrandou um pouco mais. Sabia que
aquela rua era um beco e terminava num muro. Já lá dormira algumas
vezes. – Podia retirar toda essa tristeza da tua cabeça, se quisesses.
– E como faria uma coisa dessas?
– Anda cá que eu mostro-te.
Isaiah ficou desconfiado. Não era só pelo facto de a tia lhe ter dito que
devia ter cuidado com desconhecidos. O cego Bill não era exatamente um
desconhecido. Houve uma pausa, uma coisa que interiormente o
aconselhava a ter cautela, mas mesmo assim seguiu o cego.
– Isto não é um atalho, senhor Johnson. Há um muro lá ao fundo.
– Enganei-me. Devia estar a pensar noutra rua. É difícil para um cego,
sabes. Vem cá, então. Vá, vem cá.
Isaiah olhou para trás, para a rua deserta.
– Não estás com medo, pois não? Um rapaz especial como tu?
– Não. Não ’tou com medo – disse Isaiah. Não estou com medo, diria
Memphis. Mas Memphis não estava presente. Isaiah foi ter com o velho.
– Tenho de pôr a minha mão na tua cabeça, assim. Faz comichão?
Fazia, um pouco, e Isaiah riu-se.
– Tomo isso como um sim. E aqui? – Bill avançou a mão para que as
pontas dos dedos agarrassem firmemente a testa do rapaz.
– É bom.
– Muito bem. Vou apertar um bocadinho e depois não vais mais sentir-te
triste.
Nunca mais, corrigiu Isaiah em silêncio. Tal como Memphis. Teve uma
súbita premonição acerca do irmão, uma sensação de que estava com
problemas, de que qualquer coisa não estava bem.
– Tenho de ir para casa, senhor Johnson. A tia Octavia está à minha
espera.
– Espera um pouco, filho.
– Tenho de ir.
– Não te debatas. Não te debatas.
O pânico apoderou-se de Isaiah. A sensação de perigo transformou-se
numa visão terrível: viu o irmão numa encruzilhada debaixo de um céu de
tempestade.
– Largue-me! – gritou Bill, tentando em vão escapar-se da mão firme de
Bill. Solte-me, solte-me!
Bill gemeu e aguentou-se e foi recompensado pelo estremeção elétrico.
Nas suas mãos, Isaiah estrebuchava e, como no passado, quando
conseguia ver, Bill sabia que o rapaz revirava os olhos, que talvez um fio de
cuspo lhe saísse dos cantos da boca. O coração do próprio Bill batia
acelerado e, por um segundo, viu-se a correr pelos campos de tabaco,
descalço debaixo dos céus que se estendiam em todas as direções. Um
número flutuava diante dele – um, quatro, quatro. Um número! Conseguira
um número em tudo aquilo! Um novo estremeção sacudiu o corpo de Bill,
mais forte que o primeiro. Enrolou-se-lhe a língua e sentiu um gosto
metálico. Viu uma encruzilhada e uma nuvem de poeira a formar-se na
estrada como acontece antes das tempestades; depois viu um homem alto,
muito magro e acinzentado, de chapéu alto. Nas suas mãos o rapazinho
estava silencioso e calmo. Caiu no passeio aos pés de Bill e o velho
acocorou-se junto dele, escutando o som da sua respiração.
– Ei! Ei! – gritou alguém na rua.
Bill praguejou em surdina e retirou a mão.
– Aqui! Precisamos de ajuda aqui!
A voz dirigiu-se a eles e transformou-se na silhueta de um homem. Uma
sombra! Oh! Se ao menos tivesse mais uns momentos! Que mais não
poderia ver? Que outros poderes poderia provar?
– O que aconteceu? – A voz do homem era dura, acusatória.
– Não sei. O rapazinho estava perdido. Tentei ajudá-lo a encontrar o
caminho, mas teve uma espécie de ataque, julgo eu. Não sei dizer por causa
do meu problema. – Bill poisou a mão na bengala. Tenho estado a gritar.
Não me ouviu?
– Creio que sim – respondeu o homem. – Creio que foi o que me chamou
a atenção. Foi uma sorte o senhor estar aqui.
– O Senhor devia estar a tomar conta.
As pessoas eram tão sugestionáveis.
Durante todo esse dia Evie sentiu-se dentro de uma bruma de nervos. O
museu nunca tinha tido tanta gente e parecia que a afluência tinha duplicado
devido à passagem do Cometa de Salomão. Toda a cidade fervilhava. O
Mayor Walker pedira aos habitantes de Nova Iorque que reduzissem a
iluminação, para que pudessem avistar o cometa na sua visita única sem o
brilho das luzes. Muitas pessoas tinham já transportado cadeiras e
almofadas e até colchões para os terraços de alcatrão dos telhados dos
prédios ou pequenas varandas. As lojas baratas esgotaram chapéus e apitos.
Os clubes noturnos anunciavam festas especiais à meia-noite e ofereciam
bebidas com o nome de Sensação de Salomão e Estrela Cadente. Havia até
um concurso de fatos de banho que prometia coroar uma Miss Cometa. Era
como se alguém fosse dar uma festa e tivesse convidado toda a Manhattan.
Porém, Evie não estava voltada para comemorações; se não fizessem
corretamente as coisas, John Hobbes poderia ter vindo para ficar e o inferno
com ele.
Quando o último visitante saíra do museu, Evie trancou as portas e ela,
Sam e Jericho reuniram-se na biblioteca. Eram sete horas. O cometa
passaria nos céus de Nova Iorque um minuto antes da meia-noite. Jericho
descansava no sofá, ainda fraco da provação da noite anterior.
– Sentes-te bem, Jericho? – perguntou Evie, algo tímida. – Precisas de
alguma coisa?
– Não, estou... ótimo, obrigado – disse tentando sorrir.
Sam observava-os de soslaio. Qualquer coisa acontecera em Brethren,
para além de terem encontrado o pendente e fugido aos fiéis. E Sam não
estava a gostar.
– Caramba, estou um farrapo de tantos nervos – disse Evie ligando a
telefonia. A Orquestra de Paul Whiteman tocava uma hora especial de hot
jazz dedicada ao «Velho Rei Salomão». As canções alegres pareciam
deslocadas em relação ao que teriam de fazer naquela noite.
– Há uma coisa que não percebo – disse Sam. – Porque não terá ele feito
ainda a décima oferenda. Pensam que esta noite fará as duas oferendas ao
mesmo tempo?
Evie mordeu uma unha. Era estranho.
– Não sei. Só sei é que se queimarmos o pendente esta noite e repetirmos
o encantamento nos livramos para sempre de John Hobbes.
Will entrou de repente na biblioteca com um saco.
– Tenho aqui tudo o que precisamos.
Entregou a Evie um bocado de giz e a Sam uma lata de sal.
– Evie, desenha um círculo grande no chão e, dentro dele, um
pentagrama. Sam, dá a volta ao perímetro da sala com o sal, por favor.
Ouviu-se uma pancada muito forte e insistente na porta do museu.
– Que se passará agora? – disse Evie. – Não se preocupem... vou dizer
que o museu está fechado esta noite.
Ficou admirada ao encontrar o detetive Malloy à porta. Não tinha
exatamente a sua habitual cara de poucos amigos. De facto poderia dizer-se
que vinha com uma expressão terrível. Evie sentiu um nó no estômago.
Ladeado por vários agentes, passou por ela a caminho da biblioteca. Will
empalideceu ao vê-los.
– Houve outro assassínio – disse Malloy. – Mary White Blodgett foi
encontrada em Coney dentro do Túnel do Amor. As mesmas marcas dos
outros. E tem a língua cortada.
– «Ao ver a Besta, a viúva soltou lamentações, até a sua língua ser
silenciada...» – disse Evie, em voz baixa.
– O Lamento da Viúva. A décima oferenda – disse Sam.
Will estava pálido e parecia indisposto.
– A filha da senhora Blodgett disse que, há dois dias, a mãe recebera a
visita de uma jovem. Disse que tinha feito todo o tipo de perguntas acerca
de John Hobbes – prosseguiu Malloy.
– É verdade – disse Will.
– Não pensaste em dizer-me nada, Fitz? – O detetive parecia zangado e
ofendido.
– Não pensei... não me pareceu relevante. Era apenas um palpite.
– Pagam-me para seguir os palpites – disse Malloy. – E disse-vos que se
afastassem do caso. E se eu preguntasse se têm a fivela do outro sapato de
Ruta Badowski no vosso museu, qual seria a resposta?
– Diria que isso é ridículo – respondeu Will.
Malloy acenou lentamente com a cabeça.
– Espero que tenhas razão. Importa-se que dê uma olhadela, professor?
A polícia já invadira o museu, esvaziando gavetas e abrindo armários.
Um agente quase deixou cair uma pequena estatueta e Will exclamou:
– Tenham cuidado com isso, por favor? Pois são artefactos bastante
preciosos.
Outro agente abriu a gaveta da secretária de Will e retirou a fivela do
sapato de Ruta Badowski.
– Está aqui, tal como dizia o recado.
– Como é que...? – Will ficou completamente imóvel, como se estivesse
pregado ao chão.
– Esperem um momento… que recado?
– Podes dizer-me como vieram parar ao museu as provas de um crime? –
Malloy nem pestanejou.
– Não sei, Terrence, juro – disse Will em voz baixa.
– E suponho que também não saibas como o teu isqueiro acabou no local
do crime. – O detetive Malloy mostrou o isqueiro que Will perdera.
As mãos de Will dirigiram-se imediatamente ao bolso do peito.
– Perdi-o há pouco e...
– Foi encontrado em casa de Mary White Blodgett.
– Fui eu que apanhei a fivela – confessou Sam. – Encontrei-a no porto e
pensei que poderia fazer um bom dinheiro com ela. Há fulanos macabros
que pagam por essas coisas.
– Sam, não – avisou-o Evie.
Ele esboçou um sorriso fraco.
– Tudo bem, boneca, ficamos empatados com os vinte dólares.
– Tens aqui um pessoal jeitoso, Fitz – disse Malloy. Observou a sala: o
pentagrama traçado a giz no chão. O sal não totalmente despejado. O
pendente.
– Que se passa aqui, Will?
– Se eu te disser, pensarás que estou louco.
– Se não me disseres aqui, vais dizer-me na esquadra! – vociferou Malloy.
– Não creio que te apercebas dos sarilhos em que estás metido, Fitz!
– Por favor, detetive Malloy, que recado encontrou? – insistiu Evie.
– Foi escrito pela senhora Blodgett antes de morrer e estava metido no
bolso do seu roupão. A filha confirmou ser a caligrafia da mãe. Acusa Will
de ser o assassino.
Will recuou.
– Como?
– Mas que coisa mais idiota! – exclamou Sam.
– Ela disse que encontraríamos provas no museu. Disse que lhe tinham
feito várias perguntas acerca dos assassínios, com a desculpa de
conseguirem coisas interessantes para o museu. – Os ombros enormes de
Malloy descaíram. Parecia ter envelhecido anos nos momentos em que
segurara a fivela partida do sapato de Ruta Badowski. – Senhor Fitzgerald,
terá de nos acompanhar à esquadra para responder a algumas perguntas.
Rapazes, já agora tragam também o ladrãozeco.
– Oh, ele é esperto, é muito, muito esperto – disse Will, mais para consigo
do que para qualquer outra pessoa. – Não veem? Sabia que estávamos
perto! Sabia! Obrigou-a a escrever o recado. Preparou-nos uma armadilha e
caímos nela, direitinhos.
– Oh, Tito, que vamos fazer?
– De que estão a falar?
– Terrence, vai parecer-te que enlouqueci completamente, mas garanto-te
que estou no meu perfeito juízo. O Assassino do Pentagrama não é um
copiador de crimes e certamente não sou eu. É o John Hobbes.
O rosto de Malloy parecia de pedra.
– O John Hobbes que morreu há cinquenta anos? Estás a dizer-me que um
morto cometeu estes crimes?
– Através de uma qualquer espécie de feitiçaria, o seu espírito
manifestou-se neste plano, sim. Sei que parece uma loucura...
– Mas é verdade! – Evie interrompeu-o. – Foi por isso que fomos a
Brethren, à sua campa secreta e desenterrámos o corpo dele. É por isso que
temos de destruir este pendente... para retirar o seu espírito deste mundo. E,
se não o fizermos antes da passagem do cometa, esta noite, estamos feitos.
Evie apercebeu-se de como pareciam ridículos. Os outros agentes
soltavam risinhos. Só Malloy não o fazia, parecendo francamente zangado.
– Sabes, Fritz, nunca imaginei que acreditasses nestas aldrabices que
vendes aqui no museu. Também nunca te imaginei como assassino. –
Voltou-se para os outros agentes. – Levem-no!
Os agentes rodearam Will e Sam e conduziram-nos para fora do museu.
– Assassínio. Profanação de sepulturas. Destruição de propriedade.
Roubo. E corrupção de menores... – Malloy afastou-se, mas não antes de
Evie poder escutar o tom de desagrado e cautela na sua voz. – Creio que
nunca conhecemos verdadeiramente uma pessoa, não é verdade?
Evie correu atrás deles, batendo com os calcanhares no chão de mármore.
– Por favor, detetive Malloy, não pode levá-lo! Esta noite temos de
impedir o John Hobbes. Vai atacar durante a passagem do Cometa de
Salomão e transformar-se na Besta. É a nossa última oportunidade!
– Minha querida, não sei o que ele lhe disse, mas não existem assassinos
fantasmas. E não existem fantasmas, ponto final. Não há nenhum papão,
nem uma Besta que cause o fim do mundo. Isso são contos de fadas. Mais
nada. Lamento. – No rosto de Malloy havia uma verdadeira expressão de
compaixão.
– Terrence, por favor, escuta-me... tens de o impedir antes que esta noite
ele faça a última oferenda – implorou Will enquanto os agentes o metiam no
banco de trás do carro da polícia.
– Se ele atacar esta noite, o senhor está salvo, professor – disse o
desdenhoso agente antes de fechar a porta.
Dentro do museu, Evie andava de um lado para o outro na biblioteca.
Jericho olhava-a.
– Como poderemos impedi-lo? Pensa, Evie, pensa.
– Levaram o pendente com eles.
– Terá de haver outra maneira. – Evie abriu o Livro dos Irmãos,
examinando cuidadosamente as páginas. Quando chegou à última, à décima
primeira oferenda, ficou a olhar. A Besta estava junto do corpo inclinado de
uma mulher, dando-lhe as mãos. Via-se um pequeno altar. Por cima deles, o
céu da noite ardia com o fogo do cometa.
– Por que razão teria ele pedido a Mary White para não se desfazer da
casa? – interrogou-se Evie.
– Precisava de um local para regressar – disse Jericho. – Precisava de um
local seguro.
– Mas deixou os cadáveres em locais muito públicos, por isso podia ter
ido para qualquer outro lado. Porquê nessa casa? O que haverá nela que lhe
faz falta? – Evie andava de novo de um lado para o outro.
– Estás a parecer-te com o teu tio – disse Jericho. – E estás a pôr-me um
pouco tonto.
– Desculpa. – Evie sentou-se à mesa comprida com as perigosas pilhas de
livros, a pensar. Pegou no diário de Ida Knowles. – A última entrada de Ida
Knowles foi feita presumivelmente antes de ir à cave. O que haveria lá em
baixo?
– A polícia encontrou apenas uma cave cheia de ossos.
– «Ungi a vossa carne e preparai as paredes das vossas casas…» – recitou
Evie. Lembrou-se do dia em que ela e Mabel havia ido a Knowles’ End.
Reparara numa grande chaminé na parte de fora da casa, mas não
conseguira encontrar a lareira correspondente no interior. Depois, na cave,
sentira uma corrente de ar.
De repente, Evie começou a andar de um lado para o outro da biblioteca,
metendo fósforos e lanternas nos bolsos.
– O que estás a fazer?
– Creio que há uma espécie de quarto secreto, um lugar especial para ele
e é aí que provavelmente esconderá aquilo que o mantém vivo. – Evie
olhou de soslaio para o relógio. Eram dez e meia. – Temos de nos
despachar, se quisermos chegar a tempo.
Jericho pôs-se de pé, mas estremeceu com a dor na ferida.
– Onde vamos?
– Não podemos esperar que o John Hobbes faça a sua última vítima.
Vamos combatê-lo. Vamos a Knowles’ End.
AS ENTRANHAS DA BESTA
Estrelas. Foi o que Evie viu. Sobre ela, o céu cor de tinta cintilava com a
falsa esperança das estrelas. Doía-lhe a cabeça, pois batera com ela no chão.
A boca sabia-lhe a sangue.
– Ah, estás a acordada – disse a voz. – Ainda bem.
A visão de Evie ficou por momentos ofuscada, mas logo se concentrou na
figura de John Hobbes. Era um homem grande, de farto bigode. Despira a
camisa e ela pôde ver as marcas que lhe cobriam o tronco, as costas e os
braços, transformando o corpo dele numa tapeçaria de pesadelo. Ungi a
vossa carne…
Os olhos eram os mesmos que Evie já vira: frios e azuis.
– Foi muita bondade tua vires ter comigo. Poupaste-me o trabalho de te ir
buscar. – Cintilava diante dela como cera de uma vela, instável, mas com
capacidade para arder.
– Jericho! – gritou Evie. – Jericho!
John Perverso sorriu.
– Presentemente o teu companheiro não se encontra bem – declarou e
Evie receou perguntar-lhe o que queria aquilo dizer.
Evie sentou-se, admirada de o poder fazer com tanta facilidade.
– De que serviria prender-te? – perguntou como se lhe lesse os
pensamentos.
Evie estava paralisada de medo.
– Porquê? – perguntou. Foi tudo o que conseguiu, o terror reduzia-lhe as
palavras.
– Porquê? – repetiu John Hobbes, como se ela fosse uma criança
insolente e ele o seu enfadado, mas paciente professor. – Porque haveria eu
de deixar continuar este mundo cheio de pecado e vício e de todos os tipos
de corrupção? Necessita de ser governado por um novo senhor, Senhora
Sol.
– Não s...sou a s...sua Senhora Sol.
John Hobbes puxou do pequeno quadrado de brocado dourado do casaco
dela.
– A Mulher Vestida de Sol.
Sorriu, fazendo com que Evie sentisse o sangue latejar-lhe na cabeça.
Olhava para todos os lado na sala, procurando maneira de fugir, tentando
divisar o que lhe poderia ser útil. Sentiu o coração acelerado quando se
apercebeu de que a porta estava levemente entreaberta. Avançou depressa,
mas como se se apercebesse do seu plano, a porta fechou-se antes de lá
poder chegar. Bateu-lhe com os punhos.
– «E o Senhor disse, que a Besta se una à Mulher Vestida de Sol. Ungi a
vossa carne com a sua.»
John Hobbes caminhava calmamente em direção ao pequeno braseiro.
Dele saíam vários ferros, com os símbolos incandescentes sobre as brasas.
– Eu… eu... – O medo sufocava-lhe as palavras na garganta.
Evie, pensa, mulher. Tencionava incendiar a casa com John Perverso lá
dentro, mas o plano gorara-se. Precisava de um novo plano. Will dissera
que seria necessário ligar o espírito dele a um objeto sagrado, como o
pendente, depois dizer as palavras e destruir o objeto. Mas o que teria ela à
sua disposição? Procurava de novo, aflita, um objeto que pudesse usar.
– Esta sala é a sua força, não é verdade? «Preparai as paredes das vossas
casas.» Não é o que diz? O que acontecerá se eu destruir estas paredes?
Como se poderá manifestar? – perguntou ela, sondando-o.
– Tarde de mais. O cometa está prestes a passar. Dentro de três minutos.
Vais ser a minha noiva e o teu coração assegurará a minha imortalidade. E
tu viverás para sempre como os fiéis, meus Irmãos.
As paredes cintilavam junto de Evie. Curvavam-se como uma membrana
e ela via rostos e mãos lá encostados. Evie recuou na direção do altar
enquanto os corpos dos falecidos Irmãos enchiam o aposento – cadáveres
vivos com a pele a suar sangue, queimada até ao osso em certos pontos.
Rostos esqueléticos sem olhos. Bocas arrancadas. Os fiéis. Os malditos.
Prontos para o sacrifício final, a última oferenda. Não se deteriam até o
coração de Evie lhe ser arrancado do peito e a Besta se transformar num
todo.
– Estão aqui comigo. Os Irmãos escolhidos, sacrificados na primeira das
onze oferendas. Para agradar ao Senhor!
O vento parecia rodopiar sobre os Irmãos que respondiam:
– Ámen, ámen, ámen…
– Exigem um tributo pelo seu sacrifício. E recebê-lo-ão.
Os Irmãos mortos aproximavam-se dela. Vinham buscá-la. Evie correu à
frente de John Hobbes e retirou um ferro das brasas. Queimou-lhe a mão e
teve de o largar com um grito. Envolveu a pega do ferro na bainha da blusa
e segurou-o de novo, erguendo-o na sua frente. A mão tremia-lhe com
violência.
– Neste vaso, p...prendo o teu espírito. Dentro do f...fogo, eu... eu...
Não se recordava das palavras.
O riso de John Hobbes borbulhava com a crueldade de uma criança
encantada com o poder de esmagar um inseto com a sua bota.
– Tem de ser uma relíquia sagrada! Só um objeto abençoado pode conter
o espírito.
– Jericho! – gritou de novo Evie, embora soubesse que não valia a pena.
Lançou o ferro contra as paredes, fazendo-o ressaltar pelo chão.
– Não importa. Posso ungir a tua carne quando estiveres morta.
Evie pousou a mão no peito, como se fosse o bastante para impedir que a
Besta e os fiéis lhe arrancassem o coração. Os seus dedos tocaram na
moeda de meio dólar e agarrou-se a ela como uma criança assustada.
Tendo retomado o poder da fala, os Irmãos mortos abriram as bocas num
alvoroço coletivo que arrepiou Evie. As suas mandíbulas deslocadas
vomitavam uma substância negra e oleosa que corria pelo chão como um
rio de serpentes. Trepava pelas pernas de John Hobbes juntando-se às
marcas da sua pele. Cobria-o como uma armadura para ser absorvida por
ele.
– Olha para o meu corpo e assombra-te!
Estendeu os braços, lançou a cabeça para trás e soltou um grito que tanto
poderia ser de agonia como de êxtase. A pele rompeu-se como se alguma
coisa tentasse quebrar-se de dentro. Evie via com horror o rosto de John
Hobbes contorcer-se. A boca curvava-se-lhe num esgar cruel. Os dentes
cresciam em forma de lâmina e saíam-lhe garras das pontas dos dedos.
Brotaram-lhe nas costas duas asas enormes, brancas como a lã de um
cordeiro. O aposento encheu-se de luz. Manifestava-se diante dela
transformando-se numa coisa terrivelmente bela. Evie sentiu os olhos
doridos ao fitá-lo. Para ficar completo, apenas precisava do coração de
Evie.
– O Senhor não tolera fraqueza nos seus escolhidos! – disse a Besta. A
sua voz era, como mil vozes falando ao mesmo tempo, uma sinfonia
demoníaca.
Por momentos, Evie perdeu todo o desejo de lutar. Não podia lutar contra
um mal tão grande, tão perfeito. Apenas poderia submeter-se. Que
acontecesse e terminasse. O céu da noite começou a clarear por entre a
pequena abertura: o Cometa de Salomão no seu profetizado regresso aos
céus. A futilidade da luta pesava sobre Evie como pedras tumulares.
– O cometa está prestes a passar lá em cima – anunciou John Hobbes.
A mão dele era uma garra pronta a trespassá-la. Evie gostaria de ser todos
os outros – Ruta Badowski com os seus sapatos partidos. Tommy Duffy
ainda com o pó do último jogo de basebol debaixo das unhas. Gabriel
Johnson, levado no melhor dia da sua vida. Ou até Mary White tentando
manter-se à espera de um futuro que nunca chegou. Seria como todos
aqueles rapazes brilhantes marchando para a guerra, de espingarda ao
ombro e promessas nos lábios feitas às namoradas: voltariam para casa no
Natal, a emoção do jogo nos seus rostos. Voltariam homens, heróis com
aventuras para contar, de como haviam vencido o inimigo e reposto o que
estava certo neste mundo, resumindo-o a sim e não. Branco e preto. Certo e
errado. Aqui e ali. Nós e eles. Mas acabaram por morrer na Flandres, presos
no arame farpado, atacados pela gripe na Frente Ocidental, mortos em
explosões na terra de ninguém, estrebuchando nas trincheiras, ainda a sorrir,
oferta dos gases fosgénio, clorídrico ou mostarda. Alguns voltaram a casa
com síndrome pós-traumática, pestanejando, as mãos trémulas, falando
sozinhos, seguindo as ordens de uma guerra particular que ainda continuava
nas suas mentes. Ou, como James, simplesmente desaparecidos, relegados
para livros de história que ninguém se preocupava em ler, medalhas
guardadas em armários fechados. Um monte de peças de xadrez
movimentadas por mãos invisíveis num universo enfadado consigo mesmo.
E agora ali estava ela, mais um peão. Evie tinha vontade de chorar. De
medo. De exaustão, sim. Mas, principalmente, da cruel inutilidade, da
estúpida arbitrariedade de tudo aquilo.
– «Um grande sinal aparecerá no céu, o céu iluminado em chamas, a
mulher vestida de sol, coroada de estrelas. E o seu coração foi uma oferta à
Besta, o coração do mundo, que ela devorará para se transformar num todo
e caminhar pela terra durante mil anos...»
A moeda passou pela mão de Evie. Pensou em James e um pensamento
terrível, desesperado, tomou forma. Não. Não podia. Teria de haver outra
maneira.
Os mortos chegavam. Chegavam para a vir buscar.
Tremendo, Evie arrancou o pendente do pescoço e ergueu-o diante de si.
– Neste vaso, p...prendo o teu espírito... – Tremia tanto que receava não
conseguir pronunciar as palavras.
Os mortos aproximavam-se. Via-lhes as órbitas vazias nos rostos
sombrios e esqueléticos. Dedos brancos, sem vida, estendiam-se para ela.
Bocas negras jorrando líquido negro pelos queixos manchados.
– Ao fogo, entrego o teu espírito – disse Evie mais alto.
As mãos estendiam-se para ela. Dedos mortos abriam-se sobre os seus
pés, mas ela empurrou-os, gritando, tentando não perder o equilíbrio para
não cair sobre a multidão indigna. O aposento iluminou-se. Quanto tempo
faltaria para a passagem do cometa? Um minuto? Trinta segundos?
Os gritos sibilantes dos Irmãos eram ensurdecedores. Falavam um milhar
de línguas. Mas sob a cacofonia, Evie ouvia alguns gemidos. Sob a sua
raiva, Evie sentia-lhes o medo. Os seus grunhidos aflitivos, abrangentes
saltavam no aposento
– Matem-na, matem-na, matem-na. Sois a Besta, a Besta, a Besta, a Besta
deverá erguer-se...
– Essa moeda não é uma relíquia sagrada, Senhora Sol – provocou-a John
Hobbes.
Evie agarrou com força na moeda, sentindo o relevo na sua mão, um
conforto e um castigo. O único laço físico que a ligava ao irmão.
– Para mim é – disse em voz rouca. E gritou sobrepondo-se ao tumulto: –
Besta! Lanço-te nas trevas, para não mais te ergueres!
As almas dos Irmãos gritavam. O fogo lambia as paredes. Parecia que
uma pintura macabra ganhara vida. Os Irmãos gritavam como se fossem de
novo engolidos pelas chamas. Evie fechou os olhos e esperou. O pendente
tremia-lhe violentamente na mão. As vozes sibilantes tinham deixado de se
ouvir, para serem substituídas por uma arrepiante sinfonia de gritos e
berros, grunhidos guturais e latidos, sons que não sabia nem queria
identificar. Sentia o cheiro a fumo. Quando abriu os olhos, viu que as almas
dos Irmãos eram arrastadas e sugadas pelas paredes, há muito engolidas
pelas chamas.
John Perverso mantinha-se. Mais forte, graças às dez oferendas. Talvez
demasiado forte para ser dominado e Evie receava que aquilo que possuía
não tivesse afinal força suficiente.
– Vou matar-te – vociferou, atirando-se a ela.
Evie ergueu a moeda bem alto.
– Neste vaso… – gritou, desta vez em voz mais forte.
A forma dele tremeluziu, a carne contorceu-se de um modo que Evie
pensou ser dolorosa. Sangue negro escorria-lhe dos cantos da boca. Os
dentes soltaram-se e caíram. Retraíram-se as poderosas garras.
– Eu... p...prendo, eu... – O horror sobrepunha-se à memória de Evie.
– Destrói-me e nunca saberás o que aconteceu. Ou o que vai acontecer –
cuspiu John com a respiração entrecortada.
Queria distraí-la. Truques. Mentiras.
– Neste vaso, prendo o teu espírito...
John Hobbes gritou. Caiu de joelhos. A sua pele enrugava-se como se
estivesse cheia de ratos.
– Nunca saberás... do teu irmão – disse.
Evie sentiu-se gelar.
– O meu irmão, como?
Uma gargalhada rouca ergueu-se no peito de John, transformando-se em
tosse. Gotas de sangue negro borrifaram o rosto de Evie que conteve o
desejo de gritar.
– O meu irmão, como? – gritou.
– Não fazes ideia... do que se soltou.
– Está a falar de quê?
John Hobbes sorriu. O sangue manchava-lhe os poucos dentes que lhe
restavam.
– Pergunta… James.
Avançou e quase atingiu Evie com as suas asas, obrigando-a a deixar cair
o pendente. Com um grito ela atirou-se a ele, mas ele fez o mesmo com
mãos mais ágeis. Lutaram e a Besta ganhava vantagem. Estava sobre ela; o
cometa aproximava-se. Uma garra surgiu-lhe na pele do indicador direito e
uma segunda no dedo médio – o suficiente para a cortar, o suficiente para
lhe arrancar o coração.
Evie agarrou o pendente pelo outro lado e os seus dedos tocaram nos
dela.
– Neste vaso, prendo o teu espírito. No fogo encomendo o teu espírito.
Nas trevas...
– Vais perder…
– Ordeno-te, Besta, que nunca mais te ergas! – terminou Evie.
Os olhos azuis de John Hobbes mostraram medo pela primeira vez,
quando o Cometa de Salomão brilhou lá em cima. A sua forma foi sugada
pela moeda que estremeceu e brilhou incandescente na mão de Evie, que foi
obrigada a soltá-la. Uma enorme coluna de fumo ergueu-se do seu centro e
juntou-se ao cometa numa luminosa explosão. Depois, tão rapidamente
como chegara, o cometa partiu, tal como o pendente, que se transformara
em cinzas. O céu escurecera de novo e aquietara-se. Na névoa que o cobria
surgiam novas estrelas.
Evie ouviu outro som sibilante e pôs-se de pé. As chamas soltavam-se das
paredes enegrecidas, mas desta vez não provinham de uma antiga
recordação. Era um verdadeiro incêndio. Ardiam-lhe os olhos do calor e
sentia dificuldade em respirar sem tossir. Evie foi de novo invadida pela
sensação de pânico. Como sair dali? Que deveria fazer? Por uns momentos,
ficou perfeitamente imóvel, paralisada pelo medo e pelo horror da noite.
Ergueu os olhos para o céu, como se esperasse que ele a ajudasse na sua
decisão. O fumo negro erguia-se no ar, bloqueando a vista das estrelas. Não.
Não chegara até ali, não sacrificara o que tinha de mais precioso para
morrer ali. O teto cedeu e o estuque caía. Com um urro quase animalesco,
Evie correu para a porta, estendendo as mãos para se proteger dos
destroços. Correu pela cave e subiu as escadas com as pernas trémulas,
gritando por Jericho.
– Evie? Evie!
Ao ouvir a voz de Jericho, Evie sentiu uma esperança renovada.
– Jericho! Continua a chamar!
Seguiu os gritos de Jericho até ao aposento em que ele tinha caído.
Agarrou a lanterna e espreitou pela abertura. Não era muito funda, via-o
agora. Quando caíra devia ter batido com a cabeça. Estendeu o braço, e foi
o suficiente para Jericho se apoiar e subir.
– Temos de fugir daqui a toda a pressa – disse com esforço.
– O que aconteceu ao...? – Jericho esfregou os olhos.
– Desapareceu – disse ela. – Acabou.
As tábuas estalaram. Os vidros rebentaram e sobre eles caiu uma chuva
de estilhaços. A casa estremeceu nos alicerces, afundando-se com o fogo
como se quisesse levar tudo e todos consigo. Evie e Jericho correram para a
cozinha.
– Porque acendeste o fósforo? – gritou Evie.
– Não acendi! – jurou Jericho.
A porta da cozinha não abria. Evie puxou freneticamente a maçaneta.
Jericho correu para ela, mas ficou presa. Evie gritou quando o telhado caiu
e a porta se abriu. Não esperou, agarrou na mão de Jericho, puxou-o e
rebolaram ambos pela relva, indo parar à rua enquanto a casa se
despedaçava.
Memphis esperou que Octavia dormisse a sono solto, depois fechou a porta
do quarto em que Isaiah dormia e deitou-se ao lado dele. Olhou para as suas
mãos. Tinham passado três anos desde que, em vão, tentara curar a mãe e
sentia a pressão dos espíritos por entre um adejar de asas. Talvez tivesse
perdido o dom para sempre. Mas estava cansado de ter medo de o descobrir.
Memphis ajoelhou-se ao lado da cama. Pensou em rezar, mas rezar para
quê? Para pedir a ajuda de Deus ou o Seu perdão? Nem tinha a certeza de
acreditar, por isso, nada disse e colocou as mãos sobre o corpo do irmão,
pensando na cura. Ali ajoelhado, nada sentia. Nem calor, nem cheiro a
flores antes de ser transportado para o mundo dos espíritos e das estranhas
visões.
– Não desisto, caramba – disse através dos dentes cerrados. – Estão a
ouvir? Não desisto.
Memphis respirou fundo. Começou com um tremor nos dedos. Depois o
calor familiar percorreu-lhe as veias como uma torneira subitamente aberta.
E antes que tivesse tempo para pensar, foi sugado para o reino das sombras
entre os mundos. Sentiu à sua volta a pressão dos espíritos, que lhe
pousavam suavemente as mãos nos ombros e braços, numa enorme cadeia
de cura. Ouviu a voz da mãe, doce e suave.
– Memphis.
Usava uma capa iridescente como um lago ao luar. Não estava doente e
magra como da última vez que a vira, mas sim muito bela, embora um
pouco sombria. A sua mãe estava ali e ele queria correr para ela.
– O nosso tempo é breve, meu filho.
– Mãe? És tu?
– Tenho de te dizer estas coisas enquanto posso. Serás chamado a tomar
grandes decisões e a fazer grandes sacrifícios – disse um pouco triste. –
Tudo será necessário, mas apenas tu podes decidir qual o caminho certo.
Aproxima-se uma tempestade e tens de estar preparado.
– E o Isaiah?
A mãe não respondeu.
– Há uma coisa que nunca te disse. Uma coisa que deveria ter-te dito...
O doce conforto dos espíritos desapareceu. Estavam na encruzilhada do
sonho dele. Ao longe via-se a quinta e a árvore retorcida. O céu coberto de
nuvens negras rasgadas por relâmpagos. A mãe de Memphis olhava o céu,
receosa. O vento soprava forte, levantando uma nuvem de poeira.
– Não podes trazer nada de volta, Memphis. Quando partem, acabou.
Promete-me!
A poeira aproximava-se dela.
– Foge, mãe!
– Promete-me! – gritou e foi engolida pelo muro de pó.
Memphis avançou pela estrada, cambaleando, tentando ultrapassar a
poeira sufocante. No campo à sua direita viu que o trigo se curvava numa
ruína negra quando um homem magro, de casaco cinzento e chapéu alto o
atravessou. O corvo voou no caminho de Memphis.
O transe quebrou-se. Memphis caiu no chão com uma pancada forte.
Estava coberto de suor e tremia. Estivera no local de cura. Vira a mãe nesse
mundo.
– Memphis. Que estás a fazer deitado no chão?
Isaiah acordara e olhava-o com olhos de sono, como se fosse uma manhã
qualquer.
– Isaiah? – Memphis sentia-se sufocado. – Isaiah?
– É esse o meu nome. Estás muito esquisito – disse Isaiah espreguiçando-
se. – Tenho sede.
O irmão estava curado. Estava curado e fora Memphis que o conseguira.
As palmas das mãos vibravam ainda do toque. Não perdera o dom; o dom
voltara. Memphis envolveu Isaiah nos seus braços.
– Que se passa?
– Nada. Nada, homenzinho. Já está tudo bem.
– Continuo com sede.
– Vou buscar-te qualquer coisa para beber. Fica aqui. Não saias para
qualquer lado.
– Para lado nenhum – corrigiu Isaiah sonolento.
– Isso, também.
Memphis correu à cozinha e encheu um copo com água da torneira,
desejando que fosse mais rápido.
– Obrigado – disse, embora não soubesse a quem agradecia, ou porquê.
Fechou a torneira e apressou-se a ir para junto de Isaiah.
Do outro lado da janela da cozinha, os relâmpagos rasgavam as nuvens. O
corvo olhava em silêncio.
TEMPESTADE IMINENTE
O cego Bill Johnson bateu à porta da casa da tia Octavia e esperou até a
porta ranger e ela o convidar a entrar. Sentaram-se na sala e Octavia trouxe
as chávenas de café e um prato com bolachas de manteiga.
– Nem sei como lhe agradecer por lá ter estado, senhor Johnson – disse
Octavia com voz emocionada.
– Ora, minha senhora, ainda bem que o Bom Deus lá me colocou.
– O senhor tem um fato novo e um chapéu muito elegantes, senhor
Johnson.
– Bill. Obrigado, minha senhora. Comprei-os com os meus ganhos. Saiu
o meu número. Ganhei duzentos dólares assim de repente! – Bill fez estalar
os dedos.
– Deve ter sido uma recompensa do céu pelas suas boas obras.
Bill pigarreou.
– E... humm, como está o rapazinho?
– Oh, não soube? – Bill detetou a exuberância na voz dela. – Está ótimo.
Melhor que ótimo. Curado como se nada lhe tivesse acontecido.
– Percebo. – As mãos de Bill tremeram e ele apertou-as no colo. – E ele
lembra-se do que aconteceu?
– Não, não, de nada. O médico disse que deve ter sido uma espécie de
febre. Aposto que nunca o saberemos.
– Talvez… – disse Bill, e sacudiu a cabeça como se quisesse afastar o
pensamento despropositado. – Talvez não o deva dizer.
– O quê?
– Estive a pensar se ele não se terá cansado demasiado a adivinhar as
cartas em casa da menina Walker.
Bebeu um gole do café e aguardou. Finalmente, quando Octavia falou fê-
lo num tom tenso de apreensão e zanga.
– Miss Walker ajuda o Isaiah com a aritmética, porque ele tem problemas
com as contas. Não sei nada disso das cartas.
– Pronto, já falei de mais. Não ligue, Miss Octavia.
– Gostaria muito, senhor Johnson…
– Bill.
– Bill, agradecia que me dissesse o que sabe, obrigada.
Não conseguia ver Octavia, mas ouviu o sussurrar do vestido quando ela
se chegou para a borda da cadeira e apercebeu-se de que a tinha na mão.
– Bem, minha senhora, suponho que não sei tudo. O rapazinho disse-me
que tinha um dom e que a menina Walker o ensinava a usá-lo. Tinha o que a
minha avó chamava «visão». – Bill pegou noutra bolacha e molhou-a no
café. Era deliciosa. – Mas sabe como são as crianças. Imagino que o
rapazinho me tenha estado a contar histórias. A armar-se em importante.
– Bem vejo. – Octavia estava zangada. Bill tinha a certeza de que não
haveria mais visitas a casa da menina Walker.
– Posso ir ver o Isaiah, se não fosse muito incómodo?
– Bem, ele está a descansar – disse Octavia desconfiada.
– Oh, compreendo. Não quero incomodar. Gostaria apenas de rezar junto
dele.
– As orações são sempre bem-vindas.
– Sim, minha senhora, acho que sim.
Octavia levou Bill ao quarto das traseiras e aproximou-o da cama de
Isaiah.
– Oh, Senhor – disse Bill, curvando a cabeça. – Desculpe, senhora
Octavia, mas fico um pouco envergonhado quando rezo diante de outras
pessoas.
– Claro – disse ela, e Bill ouviu-a fechar a porta.
Bill estendeu a mão e tocou na cabeça do rapaz, macia como um cordeiro.
Só um toque. Era o que precisava. Só outro número. Desta vez teria
cuidado. Sentiu a energia do rapaz fluir até ele, mas logo a seguir sentiu-se
sufocado. Retirou rapidamente as mãos com os dedos trémulos. O que seria
aquilo? O que teria sentido?
Na escuridão do quarto, Bill divisou a mais breve das formas – um
armário enorme, a luz fraca de uma janela. Formas. Luz. Podia... ver. Só um
pouco, mas estava ali. E Bill percebeu que alguém usara o poder curativo
no rapaz. Alguém com um dom maior do que Isaiah Campbell. Muito
maior. As mãos de Bill desejavam tentar de novo, mas ouvia a tia do rapaz
chamá-lo pelo nome. Recordou-se da história que ouvira nos campos
quando era pequeno. Uma coisa qualquer acerca de uma lebre e de uma
tartaruga. Devagar se vai ao longe, era essa a conclusão. Paciência. Era
preciso ter paciência. Bill saberia ser a tartaruga. Sim, haveria tempo de
sobra.
Bill Johnson partira havia muito quando Memphis chegou a casa, mas a tia
Octavia estava sentada na sala da frente com as mãos a trabalhar numa
camisola, como se a quisesse matar em vez de a tricotar.
– Que se passa? Aconteceu alguma coisa ao Isaiah? – perguntou
Memphis.
– Já sei das tuas idas a casa da irmã Walker e a história das cartas. Já sei e
isso vai acabar – disse em tom irritado. – E creio que tudo isto foi
provocado pelo que andas a fazer com essa mulher.
Memphis olhou para o chão.
– Ele tem um dom.
– O que lhe fez ela?
– Nada. Já lhe disse. Ele tem um dom.
– Vai buscar a Bíblia. Vamos rezar.
Octavia dirigiu-se ao quarto de Isaiah. Memphis seguiu-a com relutância.
– Memphis John, vem para o pé de mim. Vamos rezar pelo teu irmão,
rezar para que essa mulher não tenha trazido o Diabo para esta casa.
Memphis ajoelhou-se ao lado da tia, à cabeceira do irmão, mas não estava
a gostar daquilo. Porquê?, pensou. Porque tenho de rezar a Deus? Que fez
ele por mim ou pela minha família? Sentiu a raiva invadi-lo e transformar-
se em lágrimas.
– Não rezo.
O choque de Octavia transformou-se em firme decisão.
– Prometi à vossa mãe que tomaria conta dos filhos dela e tenciono fazê-
lo. Agora reza comigo.
Memphis explodiu.
– Porque não pergunta a Deus por que razão levou a minha mãe? Porque
não Lhe pergunta por que razão o meu pai não volta? Porque não Lhe
pergunta o que tem contra o meu irmãozinho? – Tinha vontade de bater
nalguma coisa ou em alguém. Queria incendiar o mundo inteiro, curá-lo e
incendiá-lo de novo.
Esperava que Octavia gritasse com ele por blasfemar ao Senhor e que o
expulsasse de casa. Mas ela acabou por dizer em voz baixa:
– Vai buscar frango à geleira para comeres. Eu rezo e falamos depois. –
Quase foi pior. Octavia baixou a cabeça. – Senhor Jesus... por favor protege
este rapaz que não sabia o que fazia. É um bom rapaz, meu Jesus...
Isaiah acordou.
– Tia, porque está a rezar? Memphis, onde vais?
Memphis não tinha fome e não havia lugar para ele ficar. Não voltara ao
cemitério desde que vira o fantasma de Gabe. Já não queria sentar-se com
os mortos. Precisava dos vivos. Queria Theta. Foi à biblioteca e aí, no
silêncio, Memphis rezou a sua própria oração. Abriu o caderno e escreveu
até sentir cãibras nos dedos e a luz do restaurante em frente se apagar.
Escreveu até se sentir vazio. Tinha razão para escrever e alguém para quem
escrever. No fim escreveu apenas duas palavras: Para Theta. A sua
confissão completa; dobrou o papel, meteu-o num envelope e deixou-o para
o carteiro levar.
***
Sam estava sentado a uma mesa empenada, nas traseiras de um bar perto
dos estaleiros da Marinha. Era o tipo de estabelecimento frequentado por
rufias e velhos marinheiros e cheirava a álcool de má qualidade e a suor.
Sam encostava-se à parede para poder avistar todo o local. Viu um homem
com um casaco molhado pela chuva sacudir-se junto à porta e encaminhar-
se lá para trás. O homem deslizou para o reservado onde Sam se
encontrava. Ficaram por uns instantes em silêncio. Sam colocou o postal
sobre a mesa. Momentos depois o homem ergueu o postal e meteu no bolso
os cinquenta dólares que estavam por baixo dele. Voltou o postal, leu-o e
devolveu-o a Sam.
– O Projeto Buffalo. Disseram que o tinham terminado depois da guerra.
Mas não foi assim.
– De que se trata?
O homem abanou impercetivelmente a cabeça.
– Um erro. Um sonho que correu mal. A velha história.
Sam apertou os lábios.
– Dei-lhe cinquenta dólares. Sabe o que me custou arranjar esse dinheiro?
O homem levantou-se e enfiou o chapéu na cabeça, lançando uma sombra
sobre o rosto.
– Ela está viva, se é o que deseja saber.
– Onde?
– Há verdades neste mundo que as pessoas preferem não saber. É por isso
que contratam gente como nós para poderem continuar a dançar e a
trabalhar e a ir para casa com as suas famílias. A comprar telefonias e pasta
de dentes. Quer um conselho? Esqueça isto, rapaz. Saia daqui e goze a vida,
pelo menos aquela que resta.
– Não sou assim.
– Então desejo-lhe sorte.
– Só isso? Vai mesmo pôr-se a andar e deixar-me sem nada?
O homem mordeu o interior da face e lançou um rápido olhar para se
certificar de que ninguém os observava. As pessoas que os rodeavam
pareciam desinteressadas, como a maioria. Retirou uma caneta barata do
bolso e escreveu um nome num guardanapo.
– Quer respostas? Eis um bom sítio por onde começar.
Sam olhou para o nome e apertou o maxilar.
– Isto é alguma piada?
– Disse-lhe que devia esquecer o assunto, não disse? – O homem dirigiu-
se à porta e desapareceu na chuva e na noite.
Sam deixou-se ficar a olhar para a mesa. Tinha vontade de dar um murro.
Queria embebedar-se e atirar uma garrafa até à lua. Olhou para o nome
escrito no guardanapo e amachucou-o, metendo-o no bolso. Encontraria a
mãe e saberia a verdade, por muito tempo que levasse e por muitos perigos
que corresse. Não importava quem magoasse pelo caminho.
Um homem voltou-se ligeiramente para ele.
– Não me vejas – resmungou Sam e o homem olhou em frente sem o ver.
Sam deslizou pela multidão sem ser visto, roubando carteiras pelo caminho.