Livro Silvio Meira

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Primeira edição, Setembro de 2021.

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apresentação_
Este e-book é um compilado de cinco posts que o nosso cientista-chefe, Silvio Meira, publi-
cou no seu blog, durante o mês de agosto de 2021. Como o nome sugere, trata das “Funda-
ções para os Futuros Figitais”, mas não deve ser visto como uma espécie de guia definitivo.
É mais aconselhável lê-lo como um conjunto de provocações (e não são poucas) para se
planejar para uma transformação estratégica iminente, inevitável e cada vez mais inadiável.
Tudo isso num cenário no qual as dimensões de performance e competição dos negócios
estão cada vez mais interconectadas: os mundos físico, digital e social convivendo em tempo
quase real, sem que se possa afirmar objetivamente onde começa um e termina o outro.

Tudo que é falado no texto a seguir tem os dois pés fincados na ciência e na experiência
prática. São fruto de mais de 30 anos de pesquisa científica, de consultorias para grandes
grupos empresariais da área de varejo (físico e eletrônico), do segmento imobiliário, mercado
financeiro, grandes fabricantes de autopeças, agências de comunicação, e de mais um tanto
de empresas, além das discussões dentro da nossa própria plataforma, strateegia.digital. Ou
seja, muita coisa já foi testada e aprovada. Outras ainda serão. E muita coisa foi descartada.

Dá para ler num fôlego só, mas é preciso respirar fundo. Talvez o ideal seja acompanhar o
raciocínio de Silvio Meira com calma. Fazer uma pausa aqui e acolá para ir mais fundo em
cada referência. Aliás, as referências vão do grande cético romano Marcus Tullius Cicero, a
David Bowie, passando por Isaac Newton, Jon-Arild Johannessen, Marc Andreesen, Manuel
Castells, Zygmunt Bauman e Elżbieta Tarkowska. Não necessariamente nessa ordem. Mas os
citados ajudam a compreender essa longa jornada dentro do universo figital.

O texto de Silvio é uma tentativa de fazer o futuro fluir para o passado, passando pelo pre-
sente, como ele mesmo provoca. A partir da observação do cenário um tanto sombrio dese-
nhado por Johannessen ao se deparar com a revolução da informação e o futuro do trabalho,
Silvio amplia essa visão para desenhar as fundações, as lógicas e os princípios dos ecossis-
temas coopetitivos de possíveis futuros figitais.

Agora se você ficou curioso em saber o que o mais famoso “camaleão” do universo pop
está fazendo no meio de historiadores, teóricos, cientistas e escritores, aqui vai um pequeno
spoiler: Bowie anteviu, em 2002, a chegada do streaming bem antes que muita gente boa da
área de tecnologia. E hoje, olhando para trás, pensamos: “como é que não vimos isso antes?’’

É isso que Silvio tenta: nos fazer ver o futuro, antes do futuro acontecer.

Boa leitura!
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sumário_
1. Contexto 5

2. Flexibilidade Combinatória 13

3. Plataformas Figitais 20

4. Experiências Fluidas 27

5. Transformação Estratégica 36

4
contexto_

Jon-Arild Johannessen traça um futuro um tanto som-


brio para a revolução da informação, o futuro do traba-
lho, nela, e ainda bem que nos avisa de um possível fim
das hierarquias logo no título, em The workplace of the
future: The fourth industrial revolution, the precariat and
the death of hierarchies [2018, CRC Press, 2018, grátis
no link bit.ly/2UXPy2e].

A partir de uma análise e síntese do trabalho de dezenas de autores em décadas,


Johannessen descreve futuros possíveis -e prováveis- para o que podem ser os
arranjos do trabalho e emprego num futuro em que a revolução da informação se
aprofunda muito e tem impactos cada vez maiores. Por mais de uma razão, e até
para entender melhor o que é, quem já é e quem será, quase inevitavelmente, o
precariado, vale a pena ler.

Os cenários que Johannessen cria para o futuro do trabalho podem ser entendi-
dos e estendidos sob outro ponto de vista, a partir do qual dá pra desenhar as fun-
dações, as lógicas e certamente os princípios dos ecossistemas coopetitivos de
possíveis futuros figitais que já estão acontecendo, e não por acaso, agora. Este
texto é exatamente sobre isso, e tenta estabelecer [a partir de palestras sobre o
assunto; os slides que ilustram o discurso, aqui, vêm delas] um conjunto simples e
inteligível de bases para tratar e competir em futuros figitais. Porque o ruído, quan-
do se discute transformação figital, é quase sempre maior do que o sinal. Há um
excesso de opiniões, muitas infundadas, e há poucas leis e regras gerais.

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E ainda há quem, em tempos de transição, ande à procura de cases para copiar.
Uma das leis da natureza [humana] é que a toda procura corresponderá pelo me-
nos uma oferta. E, exatamente porque estamos numa grande transição, que afeta
de maneira fundamental a cultura das empresas, não há cases a copiar, o que não
haverá de impedir que… se copie… cases. Ah, a natureza humana…

Estamos imersos em uma revolução digital que já dura mais de 50 anos e que co-
meçou pelo menos lá na década de 1970, com a chegada, em escala, dos compu-
tadores nos data centers das empresas e com o estabelecimento das redes digitais
privadas de grandes organizações e dos governos. Nos anos 1990, chegou a in-
ternet comercial [a Amazon é de 1994] e, com ela, começaram a aparecer os negó-
cios em rede. Nos anos 2000, começaram a surgir os ecossistemas digitais, quase
todos criados por empresas digitais “nativas”, nascidas depois ou com a internet, e
que haviam escapado da explosão da bolha do “pontocom” no começo da década.
Há um fenômeno muito especial dos anos 2000, criador da base para os ecossis-
temas digitais, e vamos descrevê-lo abaixo.

Nos anos 2010, as empresas incumbentes descobriram que o mundo estava mu-
dando radicalmente e aí começou uma era de transformação digital, que ainda não
está perto de terminar e que, nos anos 2020 pra frente, nos levará, a todos, a com-
petir e cooperar em ecossistemas habilitados por plataformas digitais.

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A chegada da internet comercial no meio da década de 1990 mudou muita coisa
mas, como sempre, não de uma só vez. A rede habilitou, por exemplo, ecommerce,
logo na partida. Mas levou mais de uma década para que seus efeitos práticos pu-
dessem ser sentidos, em larga escala, fora dos mercados de nicho que, no começo,
as novas lojas online conseguiam tratar em escala global. Mas, no meio da década
seguinte, algo muito mais radical estava para acontecer.

O ano mágico de 2006 deu a luz a dois fenômenos que viriam a causar uma boa
parte das grandes rupturas das décadas seguintes. Primeiro, o que viemos a cha-
mar de nuvem, ou o provimento, primeiro, de infraestutura como serviço e, paula-
tinamente, de quase tudo o que conhecemos de computação, comunicação e con-
trole como serviço, na rede. Uma das consquências imediatas foi software como
serviço, botando todo o mercado de aplicações de cabeça pra baixo. Na definição
do NIST, Software as a Service, ou SaaS, é “um recurso fornecido ao consumidor na
forma de aplicações do provedor rodando em uma infraestrutura em nuvem, que
o consumidor não gerencia nem controla”.

Esse “consumidor não gerencia nem controla” esconde vários níveis de mágica,
mas o que nos interessa, aqui, é que o consumidor da definição acima pode ser
qualquer pessoa, inclusive quem queria criar um negócio em rede, antes, mas tinha
que lidar com a epopéia de estabelecer -ela mesma- toda a infraestrutura e servi-
ços de computação e comunicação para dar partida na empreitada.

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Estamos falando de servidores, roteadores, conexões… mas não só: prédio, ins-
talações, ar condicionado, geradores, segurança… tudo. Sem falar que, antes da
nuvem, escalar um negócio era um problema sem solução em certas janelas de
espaço-tempo: não dava para comprar, ou montar, instalar, configurar… o hardware
e software básico que você precisava enquanto a oportunidade estava lá. Isso se
seu negócio tivesse o capital para adquirir tudo o que era necessário para começar
ou expandir uma oferta para a rede.

Com a nuvem e suas tecnologias de elastici-


dade, o CAPEX para criar um startup caiu para
ZERO.

Mais ou menos de uma hora pra outra, computação e comunicação passaram a ser
providas e consumidas como fluxo e pagas por volume, da mesma forma que ele-
tricidade. Informática se tramsformava em informaticidade. Essa era minha com-
paração lá em 2006, aqui no blog [veja o link bit.ly/3eUZG2J]. As consequências
seriam não triviais.

O segundo fenômeno de 2006 foram os smartphones: a Lei de Moore, aumentan-


do a capacidade e compactação da eletrônica digital e diminuindo preço e consu-
mo de energia, e tudo isso muito rápida e dramaticamente, aproximou os caminhos
de evolução dos PCs e celulares e facilitou -só pra quem entendeu- a revolução
que criaria um dispositivo que não era nem um, nem outro, apesar de ter caracterís-
ticas dos dois, e servia para alguma coisa que não existia antes: informatizar pes-
soas, ao invés de prédios e negócios [mainframes faziam isso] ou mesas e funções
[o que PCs faziam].

Smartphones possibilitaram informatizar


pessoas… e suas vidas, em tempo quase real.

De repente, surgiu um mercado potencial global de bilhões de consumidores,


cheios de problemas a resolver… e sem nenhuma chance de serem treinados para
usar os novos dispositivos. Não dava para imprimir manuais, porque a “fábrica” dos
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smartphones só “fabricaria” uma pequeníssima parte das aplicações que rodariam
no dispositivo. Nem o sistema operacional para uma certa versão do hardware se-
ria o mesmo durante toda sua vida útil. Smartphones já surgiam com sua própria
nuvem, onde residia [na forma de software como serviço] parte do seu sistema
operacional e de onde viriam suas atualização e, grande novidade, os aplicativos.
Quase todos os apps realmente úteis também eram SaaS… providos por qualquer
um que escrevesse software e tivesse um cartão de crédito, pra começar.

O resultado? A partir de 2006, a possibilidade


de criar negócios digitais sem investimento em
estrutura física, para servir um mercado poten-
cial de bilhões de clientes, originou uma
“explosão cambriana” de startups.

E os novos negócios digitais que “davam certo” tinham algumas características


comuns. Primeiro, como era impossível descobrir a priori que problemas os usuá-
rios tinham, assim como resolvê-los e treiná-los para usar os sistemas resultantes,
surgiu uma nova [bem, velha: veja Royce, W., Managing the development of large
software systems, 1970, no link bit.ly/3BDtI51] forma de resolver problemas que exi-
giam a criação de software: o desenvolvimento iterativo, interativo e incremental
de soluções, com o usuário participando do processo de desenvolvimento, mes-
mo que não soubesse disso… e com o mínimo de funcionalidades possível nas
primeiras versões de qualquer solução, para não investir no que não era necessário
[para o consumidor] e para fazer o mais rápido possível [para o provedor]. Ah, e
tinha algo ainda mais básico: sem poder educar o usuário [lembre-se… quem fazia
software para empresas podia fazer isso…] tudo, absolutamente tudo, tinha que ser
tão simples e intuitivo de usar que qualquer, literalmente qualquer pessoa deveria
ser capaz de usar sem qualquer instrução.

No princípio, era o caos. Como sempre. Havia startups-vagalume, dessas que


acendem e apagam qual pisca-pisca. Ainda há, mas a diversidade hoje é tanta que
já dá pra escolher os serviços das que apagam menos. E hoje há grandes empresas
que foram startups há 15 anos, que apagam pouco e, quando apagam, são notícia
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mundial. Mas as grandes empresas ignoraram a explosão cambriana de startups
digitais por muito tempo. Poucas acordaram há 15 anos, um pouco mais notou as
mudanças há 10 anos, um grupo maior há 5 anos, mas a vasta maioria ignorava
solenemente a realidade, até as curvas de crescimento exponencial começarem a
ser notadas… dando sinal das rupturas que começavam a causar nos mercados e
criando demandas muito reais e urgentes para transformar os negócios legados.

A explosão cambriana de 2006 e a supressão temporária, mas longa, da dimen-


são física das conexões, relacionamentos e interações pela pandemia em que ain-
da estamos acelerou uma tendência irreversível de pelo menos duas décadas e
que agora se tornou óbvia e onipresente. Tudo será figital: mercados, empresas,
times, pessoas [e cidades, países, governos…] estão numa transição do físico [ou
analógico] para uma articulação do físico, que passa a ser habilitado, aumentado
e estendido pelo digital, ambos orquestrados pelo social, em tempo [quase] real.
Uma parte significativa dos comportamentos de todos os agentes do mercado, de
trabalhadores a clientes, de governantes a contribuintes, deixou de começar, ou de
se realizar mais intensamente, na dimensão física do espaço figital e passou a se
iniciar, quase sempre, no domínio digital.

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Para a vasta maioria dos incumbentes, e se os eixos do espaço tridimensional na
figura acima representassem performances, é como sair da estratégia e execução
[majoritária, ou principalmente] física [ponto f] por melhor que seja, para um univer-
so bem mais diverso e complexo da combinação de físico, digital e social [ponto
F], por um caminho que sabemos que não é trivial, porque já há muitas empresas
legadas que já fizeram pelo menos parte da trajetória… e não foi nem um processo
banal nem tampouco um aprendizado simples e linear.

Mas fazer como, a não ser trilhando um longo e sinuoso caminho sem qualquer
sinalização, pois tudo o que se entendia do discurso das startups era mova-se,
rápido, e quebre coisas… o que [quase] nenhuma empresa estabelecida, com um
mínimo de governança, pode fazer? Só que muitas startups fizeram, mesmo sem
necessariamente saber os porquês, o caminho, e cada vez mais negócios legados
fazem a travessia do físico para, pelo menos, um mínimo de figital.

Faltavam, e ainda faltam, fundações. Falta abstrair o que serve pra muitos e gene-
ralizar, para servir para quase todos. Porque por trás de cada negócio, figital ou não,
há uma teoria… e há muitos elementos de tantas teorias que, esmiuçados, nos da-
rão fundações e lógicas mais universais. É isso que se tenta fazer aqui, estabelecer
uma primeira versão do que poderiam ser quatro fundações e suas vinte lógicas
para os futuros figitais.

Fundações e lógicas -ou leis, como as da física [e não que as propostas aqui se-
jam tão firmes quando aquelas…]- importam porque, quando há evidências confi-
áveis de que elas valem em um número de contextos, fenômenos que não estão
de acordo com as leis ou levam à evolução do sistema de leis para dar conta dos
novos fatos ou à busca por outros fenômenos, que devem estar acontecendo mas
não estão sendo observados, responsáveis pela modificação nos comportamentos
dos que estão.

Ao mesmo tempo, o fato das leis sobre um sistema serem -ou parecerem- sim-
ples não quer dizer que os fenômenos que elas descrevem são sempre tão sim-
ples quanto os casos mais simples que usamos como exemplos naquele sistema.
Por elementar que seja usar a Lei da Gravitação Universal [Newton, 1687; veja em

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bit.ly/3liJ09G] para discutir maçãs caindo de árvores… não há nenhuma solução fi-
nita para o problema de interação gravitacional entre objetos, quando introduzimos
um “simples” corpo a mais [veja bit.ly/3fAxhj9]. Mesmo assim, por mais complexo
que seja descobrir e usar leis gerais para qualquer sistema, elas são o único guia
que temos para nossas ações em um contexto, nem que seja como base para des-
cobrir que elas não são tão boas assim e como evoluir a partir delas.

Como se não bastasse, um bom número de situações reais de negócios -e dos


ecossistemas figitais dos quais fazem parte- é tratado por uma combinação de leis
gerais -que valem universalmente, pelo menos no seu ecossistema- e leis locais,
que valem para aquele e talvez uns poucos outros negócios, pelo menos num cer-
to espaço-tempo. Mas é bom lembrar que, mesmo quando este é o caso, deve-se
considerar que leis locais fortes o suficiente para redefinir as leis gerais no seu
contexto são muito raras. No caso de mercados -e ecossistemas-, as rupturas cau-
sadas por choques tecnológicos [como o digital, de agora] podem invalidar as fun-
dações e lógicas de mercados inteiros, levando consigo os incumbentes… e suas
leis locais, por melhores que sejam. Ou fossem, no caso. Daí que é melhor cada um
saber como funciona o mundo, at large, e como seu local se adapta a ele, e não o
contrário.

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fundação 1:
flexibilidade combinatória_

Este é um conjunto de fundações, lógicas e princípios


para competir em futuros figitais, e neste capítulo trata-
mos do ponto de partida para um universo competitivo
onde as dimensões digital e social assumem propor-
ções semelhantes à dimensão física, clássica, da nossa
velha “vida real”. Essa nova “composição do espaço”
demanda um novo tipo de arranjo organizacional que
reverte a tendência e as forças de concentração de de-
cisões e poder que vinham estruturando os negócios
há mais de um século. Agora, em um ambiente compe-
titivo onde o contexto passou a ser figital e reescrito,
em software, de forma distribuída e dessincronizada,
por todos os agentes de mercado ao mesmo tempo…
e continuamente… as velhas formas de organização já
não funcionam mais. Precisamos de novas fundações e
lógicas para competir .

Às nossas fundações e lógicas, pois, dito e levando em consideração tudo isso. A


primeira é a flexibilidade combinatória.

Até que enfim, A rede é O computador, como havia anunciado John Gage em
1984. Demorou, mas chegou. E, se é verdade, isso quer dizer que o código de toda
solução para qualquer problema no mundo figital está em rede, está na rede e de-
pende de características e propriedades da rede. Quer dizer que deveria ser pos-

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sível “programar a rede” e desenvolver [por exemplo] uma solução que orquestra
a busca de B, o estoque de E,… a operação financeira de F, logística de L, o aten-
dimento de A… para criar um ecommerce para T, com a mesma fluidez e facilidade
com que se pode elaborar uma aplicação “só sua”, de componentes todos seus,
sobre alguma das infraestruturas-como-serviço disponíveis na rede.

Para que isso fosse possível -e ainda não é- seria necessário que cada uma das
propriedades dos agentes BEFLAT, acima, fossem como legos: blocos construti-
vos que podem ser conectados uns aos outros, através de interfaces comuns, para
construir sistemas [complexos]. Para chegar em tal ponto, é preciso que a organi-
zação esteja dispersa em componentes que permitam uma flexibilidade combina-
tória.

Um artefato, um conjunto deles, ou um sistema, é flexível quando é facilmente


modificado para responder a [ou criar] condições de contexto. Um sistema tem
propriedades combinatórias quando há relações de interconexão, generalização
e de especialização entre um número de estruturas discretas, possibilitando a
criação de arranjos de elementos a partir de um conjunto de padrões que satisfa-
zem regras específicas, dependentes ou criadoras de contextos.

Em qualquer organização minimamente complexa, o volume e variedade de com-


ponentes que resulta de um processo de modularização é potencialmente muito
grande. Escolher que componentes são essenciais e reduzir o número total ao mí-
nimo possível é parte do trabalho de preparar a organização para competir no mun-
do figital, até porque cada componente demanda código digital para suportá-lo
ou é código ele próprio. A competitividade e mesmo a cultura das organizações
figitais depende de e é mediada por código , que precisa ser, por isso, escrito e
reescrito continuamente, quer por causa de -e para causar- mudanças deliberadas
na organização [em sua estratégia, por exemplo] ou por imposição do contexto.

Quanto mais código a escrever, mais energia a investir na sua escrita; escolher
onde investir tal energia é vital para a a sobrevivência do negócio pois, seja onde
for, os recursos, como um todo, são finitos. Melhor, então, ter menos código, de
maior impacto, a escrever, e ter a rede -seu ecossistema- a escrever uma parte

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do “seu” código. Como veremos mais adiante, isso será parte essencial de uma
das outras fundações para os futuros figitais. Mas a esta altura do campeonato já
deve estar claro que, com todo mundo escrevendo código na, para a e em rede,
tal processo é muito mais complexo do que só conectar e ativar funções figitais no
e para o negócio, até porque ainda estamos criando as fundações e lógicas que
descrevemos aqui.

Mesmo que ainda não se consiga orquestrar a “solução BEFLAT” apropriadamen-


te, em rede, é claro que dá pra começar a transformar seu negócio para que, “lá
dentro”, ele obedeça as lógicas da flexibilidade combinatória. Em rede, isso vai
acontecer à medida em que mais negócios tornem tão flexíveis quanto as possi-
bilidades que temos ao combinar múltiplas caixas de legos de famílias diferentes.
Quanto mais começarmos a perceber organizações como fluxos, desenhados por
algoritmos, executados sobre plataformas, em ecossistemas figitais, mais a rede
será tão flexível quanto um grande conjunto de legos.

Mas…quais são as 5 lógicas da flexibilidade combinatória? É o que você vai ver


depois da imagem.

1. Desintegração: os sistemas deixam de ser tratados como monolitos e


são desintegrados até chegar a fragmentos únicos, tão simples quanto
possível, que possam ser combinados [são combinadores, afinal…] para

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criar funcionalidades de múltiplos níveis de complexidade.

Sistemas, nesse contexto, são figitais e incluem, claro, a organiza-


ção e sua arquitetura e operações.

2. Distribuição: os processos de criação, entrega e captura de valor são


descentralizados e distribuídos na organização, assim como a liberda-
de e a responsabilidade pela performance local.

Processos de criação, entrega e captura de valor, nesse contexto,


são figitais, e incluem todas operações do negócio e os agentes
que as realizam, humanos inclusive.

3. Reintegração: os fragmentos criados no processo de desintegração,


distribuídos na instituição, devem ser reintegrados para compor funcio-
nalidades complexas, resultantes da combinação de elementos mais
simples.

Movimentos de desintegração – distribuição – reintegração de-


vem ser uma dinâmica constante em instituições figitais.

4. Coordenação: para reintegrar fragmentos [como serviços] e cons-


truir funções [como parte de ecossistemas], é preciso concatenar agen-
tes na organização [e fora dela], na rede que se torna possível pela
flexibilidade combinatória.

Agentes, nesse contexto, são todos os responsáveis por proces-


sos de criação, entrega e captura de valor, e isso inclui de serviços
providos por software a ações realizadas por humanos, passando
por entregas realizadas por veículos e condutores.

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5. Plataformização: a reintegração dos sistemas a partir dos fragmen-
tos não deve levar a novos monolitos, mas a um conjunto articulado
de infraestruturas e serviços que habilita aplicações escritas dentro e,
principalmente, fora da organização.

Infraestruturas e serviços são as bases da plataforma que codifi-


ca os fundamentos da organização e as aplicações são as funcio-
nalidades criadas interna e externamente. A tríade infraestrutura,
serviços e aplicações é a plataforma que habilita o ecossistema
figital do negócio e|ou a sua participação em ecossistemas habili-
tados por outras plataformas.

De pouco adianta haver lógicas se elas não têm modelos, se não podem ser anco-
radas por interpretações que as estruturam e criam as condições para que sejam
possíveis e válidas em um contexto. No nosso caso, vamos chamar tais interpreta-
ções de princípios e os que correspondem às 5 lógicas da flexibilidade combina-
tória estão na imagem e na sequência de definições abaixo.

Se você tiver olhos um pouco mais “lógicos”, vai notar que a associação feita aqui
é só “mais ou menos”, e não necessariamente um a um; afinal, este não é um texto
de lógica formal… e Tarski vai perdoar. Ao mesmo tempo, já vale a pena dizer que
estes 5 princípios valem não só para flexibilidade combinatória, mas para todas as
4 fundações tratadas neste texto. E isso não é pouco.

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1. Organização em processos: a desintegração deve ser simultânea a
um redesenho da organização ao redor de processos tão simples quan-
to possíveis, que possam ser combinados para criar redes de processos
para resolver problemas de maior complexidade.

A governança dos processos em que a organização se distribui


também é a governança do ciclo de vida de informação no e para
o negócio; os dados correspondentes até podem, com as devidas
salvaguardas estar distribuídos, mas sua governança deve ser in-
tegrada.

2. Desburocratização: a distribuição de processos deve corresponder


a um processo de desburocratização da organização, redesenhando
sua arquitetura e entregando poder para as bordas, ao mesmo tempo
em que se estabelecem processos de responsabilização pelas perfor-
mances locais.

A responsabilização local deve ser articulada levando em conta os


compromissos, habilidades e competências locais e o propósito,
objetivos e metas globais.

3. Organização em times: a desintegração da organização exige a dis-


tribuição do trabalho realizado na organização em times, que também
respondem pela sua reintegração.

Um time é feito de trabalho e pessoas, um grupo coeso, focado,


resolvendo problemas relevante, entendido e tratado como tal.

O processo de estruturação de uma organização em times é contínuo


e demanda atenção constante, que depende de uma…

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4. Organização em rede: as hierarquias clássicas oriundas da revolução
industrial não promovem a agilidade e flexibilidade necessárias para os
negócios competirem em ecossistemas figitais; ao invés de comando e
controle, é preciso evoluir para para uma organização mais plana, hiper-
conectada, e mecanismos de articulação e coordenação, em rede, ao
mesmo tempo em que se transforma o negócio em uma…

5. Organização que aprende: em rede, e em ecossistemas figitais, onde


código, introduzido por qualquer um, muda o cenário e os hábitos das
pessoas constantemente, toda a organização deve se redesenhar para
aprender o tempo todo, em todos os focos de atividade, em todos os
níveis. Isso deve ocorrer de forma independente de alguma função de
aprendizado centralizada, que se existir deve tratar da gestão do ciclo
de vida de conhecimento no negócio.

Na economia do conhecimento, os negócios que sobrevivem são


de conhecimento e baseados em aprendizados continuado e em
contexto.

Até aqui, demos conta da já complexa agenda das bases para se ter flexibilidade
combinatória em um negócio. Mas liquidificar sua organização e criar uma flexibi-
lidade combinatória internamente não resolve os verdadeiros problemas de com-
petir no mundo figital. Porque o interesse fundamental da instituição não é o que
está acontecendo dentro dela e sim, e não de agora, mas há muito tempo, o que
está rolando na interface entre o negócio [leia as pessoas, nele] e as pessoas, fora
dele, que podem vir a estabelecer conexões, relacionamentos e realizar interações
com “você”, negócio… e aí, quem sabe, eventualmente, uma parte das interações
pode até se transformar em transações.

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fundação 2:
plataformas figitais_

Até aqui, demos conta da já complexa agenda das ba-


ses para se ter flexibilidade combinatória em um ne-
gócio. Mas liquidificar sua organização e criar uma fle-
xibilidade combinatória internamente não resolve os
verdadeiros problemas de competir no mundo figital.
Porque o interesse fundamental da instituição não é o
que está acontecendo dentro dela e sim, e não de ago-
ra, mas há muito tempo, o que está rolando na interface
entre o negócio [leia as pessoas, nele] e as pessoas,
fora dele, que podem vir a estabelecer conexões, re-
lacionamentos e realizar interações com “você”, negó-
cio… e aí, quem sabe, eventualmente, uma parte das
interações pode até se transformar em transações.

É daí que vem a segunda fundação, que habilita a organização a se relacionar com
as suas próprias bordas e com o mundo exterior a ela de uma forma muito dife-
rente, e de muito maior potencial de formação de redes, do que era possível antes
dela, plataformas digitais.

Marc Andreesen já havia definido plataformas apropriadamente lá em 2007:

uma plataforma é um sistema que pode ser programado e, portanto,


personalizado por desenvolvedores externos – usuários – e, dessa for-
ma, adaptado a inúmeras necessidades e nichos que os desenvolvedo-

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res originais da plataforma não poderiam ter contemplado, muito menos
tiveram tempo para acomodar.

Pra não deixar nenhuma dúvida, Andreesen adicionou: If you can program it, then
it’s a platform. If you can’t, then it’s not. Tá no link bit.ly/2WKNrjh, e não precisa tirar
nem por uma só palavra. O problema é que muita gente passou a chamar qualquer
coisa feita na nuvem, perto dela, usando recursos dela, e até sistemas com arqui-
tetura monolítica que não têm nada a ver com a nuvem ou software como serviço
de… plataforma. Mas não é. Vamos dizer mais uma vez, pra deixar claro, em portu-
guês: se não é programável, não é plataforma.

Plataformas figitais são camadas programáveis de infraestruturas e serviços fí-


sicos, digitais e sociais, associadas a sistemas de governança que habilitam múl-
tiplos agentes a criar aplicações que fazem parte do ecossistema fomentado pela
plataforma. As aplicações habilitadas pela plataforma estendem e aumentam suas
infraestruturas e serviços em múltiplas dimensões, magnificando as redes de valor
originadas na plataforma.

Neste ponto da nossa conversa, você já descobriu que plataformas figitais preci-
sam da flexibilidade combinatória das organizações e estão por trás flexibilidade
combinatória dos ecossistemas do futuro figital, onde “programar a rede” é na ver-
dade escrever uma aplicação que usa funcionalidades de [mais de] uma plataforma
para criar um valor que não estava ali antes e que, em boa parte -senão fundamen-
talmente, depende de uma ou mais plataformas para existir.

Ao tratar as plataformas como figitais, ao invés de simplesmente digitais, incluí-


mos as dimensões física e social das infraestruturas e serviços e, aí, as possibili-
dades e combinações -a flexibilidade combinatória– aumentam significativamen-
te, porque não se trata de usar apenas as interfaces digitais de programação das
plataformas, mas de, através delas, acionar agentes nas três dimensões do espaço
figital. E eles incluem, para começar, tudo o que faz parte da internet das coisas,
objetos físicos, suas propriedades e conexões, dentro do escopo da plataforma.

Mesmo antes [e depois] da internet das coisas de verdade… dá para tratar as coi-

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sas em conjunto com pessoas que são seus conectores, sensores e atuadores
[COSA]: enquanto ainda não é possível, em geral, requisitar um robô de logística
para entregar uma pizza, pode-se programar um serviço equivalente, requisitando
uma entrega por moto, que é recebida, processada e atendida por um humano,
pilotando uma moto, assumindo o papel de uma COSA. Mas tratar as plataformas
como figitais terá outras implicações, como veremos quando discutirmos, lá na
frente, experiências.

As infraestruturas e serviços que formam a plataforma devem ser processos in-


terdependentes, devidamente orquestrados, não podem estar cercadas de buro-
cracia, para que possam ser usadas para realizar outras ações de forma elegante,
o que demanda times, ágeis e flexíveis, parte de uma organização em rede, que
aprende continuamente com o que percebe dentro e fora dela. O uso da platafor-
ma pelo ecossistema deve, o tempo todo, causar processos de adaptação, evolu-
ção e transformação da própria plataforma. Ah, você diria… estes são os princípios
1-5 [veja o segundo post da série, em bit.ly/3rYYOzo], ditos em um só parágrafo,
recontextualizados para discutir plataformas digitais. E são mesmo. Bem que eu
disse que os princípios valiam para todas as fundações. E valem, mesmo…

Plataformas não são um novo tipo de silo. Nem uma torre de castelo figital, no
centro da organização, onde o poder incumbente se protege do mundo ao redor
e tenta se defender da influência e da contaminação do que está rolando “lá fora”.
Muito pelo contrário. A velha noção de propriedade dos equipamentos digitais da
empresa, lá dos porões dos velhos CPDs, não tem lugar no espaço-tempo das pla-
taformas, onde CTO quer dizer muito mais chief transformation officer do que chief
technology officer. Porque tudo é software, e a transformação do negócio começa
pela transformação das competências e habilidades para [re]escrever o negócio
em código, e de fora pra dentro, ao invés do histórico de dentro para dentro ou, no
máximo, de dentro para fora.

O que acontece nas plataformas é fundamental para a estratégia do negócio e,


entre o muito que se desenrola nelas, toda a informação relevante para criação,
entrega e captura de valor de qualquer tipo de organização passa por lá. Aí, se o
nome de quem “toma conta” da plataforma, no seu negócio, é CIO, é sempre bom

22
lembrar que o “I“, aí, tem duas interpretações quando falamos de plataformas fi-
gitais. Primeiro, é I de informação, pois a plataforma é o hub onde se [re]desenha,
continuamente, não só a informação, mas toda a estratégia para o ciclo de vida de
informação no negócio. Este não é um problema trivial, precisa de atenção estru-
turada e contínua, o que não acontece em quase nenhum negócio; agora, passou
a ser vital [veja o link bit.ly/2HAOpH6, sobre porque chegou a hora das estratégias
de informação] e, ainda por cima, regulado, em parte, por lei.

A segunda interpretação do “I” depende da primeira, sem a qual pouca coisa vai
rolar num negócio, por menor que seja: é CIO como chief innovation officer. Por-
que pra vir de um futuro figital para qualquer presente que você queira é fazer uma
transformação figital, que é a combinação de transformação estratégica [inclusive
da arquitetura do negócio, e dos poderes, lá] e inovação figital, que é nada mais,
nada menos do que tratar da mudança no comportamento de agentes, no merca-
do, como fornecedores e consumidores usando plataformas figitais para habilitar
e fomentar novos comportamentos das pessoas dentro e fora do negócio. Pense
numa agenda gigante.

E se fosse só isso, era muito mais fácil porque, para criar uma plataforma que é
um hub de uma rede que forma um ecossistema, você ainda terá que sair de con-
trole para colaboração, criando plataformas abertas; sair de otimização do seu, só
para você, e do que você só faz mais ou menos, para interação com os outros e
para usar o que eles fazem muito melhor do que você, para que você se concentre
no que pode ser único entre todos ou no que você pode ser um dos melhores do
ecossistema; e por fim, sair de valor para cada um para valor para o ecossistema.
Afinal, plataformas habilitam ecossistemas e é lá que todos vamos coopetir. Essa
é a agenda dos CTOs e CIOs. Ou essa ou CIO, quase certamente, pode passar a
significar career is over.

23
E as lógicas das plataformas figitais, quais são?… É disso mesmo que iremos falar
depois da imagem.

1. A programabilidade das plataformas figitais depende da existên-


cia de interfaces simples e estáveis, que podem ser usadas para fazer
solicitações e obter respostas, da mesma forma que elementos com-
putacionais básicos, como CPUs, realizam operações. Interações en-
tre plataformas e|ou aplicações dependem de interfaces e protocolos
abertos, entendidos por todas as partes envolvidas.

Protocolos são conjuntos de regras para comunicação entre sis-


temas [digitais] e são uma das bases para a desintegração de uma
organização e seu redesenho ao redor de processos.

2. Plataformas figitais devem possibilitar conexões efêmeras e se ba-


seiam nelas: ativar conexões, provocar relacionamentos e realizar inte-
rações e transações deve ser possível a custo total negligenciável, para
tornar a plataforma um hub de habilitação dos processos de criação,
entrega e captura de valor no ecossistema por ela habilitado.

24
Processos de criação, entrega e captura de valor, nesse contexto,
são figitais, e incluem todas operações do negócio e os agentes
que as realizam, humanos inclusive.

3. Um ecossistema figital habilitado por uma plataforma é fundamen-


tado em conhecimento distribuído: os processos de desintegração dis-
tribuem conhecimento na instituição e no seu ecossistema, e a reinte-
gração de tal conhecimento permite a elaboração de entendimentos
holísticos sobre o ecossistema “da” plataforma.

A gestão do ciclo de vida de conhecimento no negócio, e não do


negócio, deve conectar educação e experiência a pesquisa e de-
senvolvimento e deve tratar o ecossistema como uma escola de
fazer.

4. A sustentabilidade de um ecossistema figital depende da quantida-


de, qualidade e intensidade dos relacionamentos e interações provo-
cados e habilitados pela sua plataforma, tratando todos agentes como
produtores em potencial.

A plataforma deve ter provisões para reduzir conflitos de interesse


e aumentar interações, através de intermediação, ao mesmo tem-
po em que fomenta e aumenta o valor das interações, auxiliando
agentes a criar mais valor contextual.

5. Promover e|ou defender a rede de um ecossistemas figital é muito


mais complexo do que no mundo analógico, onde exclusividade, escas-
sez, localização, tarifas e outros legados eram a base da proteção. Os
efeitos de rede são uma das poucas defesas dos ecossistemas figitais;
a plataforma deve criar e manter as condições de programabilidade,
conectividade, confiabilidade e escalabilidade que habilitam e maximi-

25
zam os efeitos de rede.

Efeitos de rede acontecem quando um usuário torna o produto ou


serviço mais valioso para todos os outros, atraindo cada vez mais
usuários a partir de mais uso por cada vez mais usuários.

Os princípios de organização em processos [associados a interfaces e protocolos],


desburocratização [que possibilita conexões efêmeras], organização em times
[onde o conhecimento está distribuído], organização em rede [de relacionamen-
tos e interações] e organização que aprende [criada e que evolui com efeitos de
rede, o tempo todo] valem, da mesma forma e intensidade, para o ciclo de vida das
plataformas figitais e para as lógicas que as sustentam, como aliás já havíamos
afirmado lá atrás.

Acontece que desmontar e remontar organizações, ou criar novos negócios, ten-


do flexibilidade combinatória e plataformas figitais como bases, não pode, tampou-
co deve, ser um fim em si. Negócios sustentáveis são os que servem a comunida-
des, e a criação e evolução de comunidades depende das experiências às quais
seus membros têm acesso como indivíduos e grupos. A experiência relacionada a
interações e transações já é, há algum tempo, um diferenciador tão relevante para
qualquer negócio quanto o produto em si e seu preço.

26
fundação 3:
experiências fluidas_

Logo depois da chegada da internet comercial, Manuel


Castells publicou a trilogia The Information Age: Eco-
nomy, Society and Culture [há exatos 25 anos, em 1996,
veja em bit.ly/2TQzeQz], onde dizia, logo no primeiro
volume, que a sociedade em rede seria um espaço de
fluxos, em seu próprio tempo [timeless time…] numa
certa oposição a um espaço de lugares [legado], que
também tinha seu tempo [clock time, o tempo legado].
Um quarto de século depois, se refrasearmos a tese
de Castells para o espaço figital, que inclui o espaço
de lugares físicos, digitais e sociais, e as conexões, re-
lacionamentos e interações [físicas, digitais e sociais…
também], é possível reescrever e unificar os fluxos de
Castells como sendo…

…sequências de trocas e interações propositais, repetitivas e progra-


máveis, realizadas por agentes [independentes] em rede [pessoas, or-
ganizações, coisas… aplicações] situados em posições [potencialmente]
disjuntas, sobre as estruturas econômicas, políticas e simbólicas do es-
paço figital, em tempo quase real.

Não por acaso, as plataformas figitais [nesta série, veja bit.ly/3lMn1rN] são parte das
estruturas simbólicas, econômicas e políticas da sociedade. Ainda mais, quando
levamos em conta que o futuro [o presente!…] figital engloba as dimensões física,

27
digital e social…

…todas as organizações são fluxos, governados por algoritmos, exe-


cutados sobre plataformas figitais em rede, formadoras e partícipes de
ecossistemas figitais. E a competição entre negócios se dá entre fluxos,
e sua efetividade e sustentabilidade dependem de efeitos de rede.

O tempo quase real, acima, nem é o tempo –que não passa– dos fluxos de Cas-
tells, nem um que passa –mas não vem de e não vai a lugar nenhum– de Bauman
[veja Zygmunt Bauman on Time…, de Elżbieta Tarkowska, em bit.ly/3CyxCfJ]. O tem-
po das experiências fluidas é um tempo que vem do futuro e passa, condicionado
pelas conexões, relacionamentos e interações entre as pessoas e delas com ou-
tros agentes no espaço figital.

Se um agente está sendo levado por um fluxo homogêneo e sua percepção é de


que tudo ao redor está parado… a ele parecerá que nem o tempo passa nem está
indo a lugar algum. Mas nosso agente inconsciente está sendo levado por um fluxo
causado por outro[s] agente[s] e, soubesse o que está acontecendo, estaria muito
preocupado.

Quando um agente cria um fluxo, produz seu próprio espaço-tempo no mundo


figital. Cada fluxo pode causar mudanças nos arranjos internos de um ou mais con-
juntos de agentes e, claro, ser um ecossistema ele próprio e alterar os arranjos
entre conjuntos de agentes. Grandes negócios são ecossistemas per se. Se você
pensar bem, pequenos, também. E pessoas. Na vida real, mesmo um fluxo visto
como homogêneo -de longe- é quase sempre uma combinação mutuamente inter-
ferente de muitos fluxos, causados por conjuntos de agentes cuja interseção não
é necessariamente vazia.

28
O tempo das experiências é o tempo das pessoas, dos negócios, o tempo prag-
mático. E flui do futuro para o passado, passando por um presente que pode ser
tratado como uma máquina que consome -numa certa ordem- um cone virtual de
possíveis eventos que vêm do futuro. A capacidade do presente é finita, do ponto
de vista de processamento de eventos, o que significa que não há como muitos
possíveis futuros acontecerem como um todo, ao mesmo tempo, de repente.

O futuro é de possibilidades. Quando um evento do futuro é consumido pelo pre-


sente ele se torna realidade -enquanto é consumido- e, imediatamente após, se
torna realização, história, e fará parte do passado. A máquina do presente, qual o
rotor da imagem, cria e altera o tempo, afetando o agora e os futuros imediatos, e
até passados distantes…

Tudo flui, e tudo flui turbulentamente, e às vezes rapidamente, mesmo quando pa-
rece calmo e estável. É só chegar mais perto, observar em mais detalhe. Aí, todo e
qualquer agente verá o tempo passando e estará indo a algum lugar, mesmo que

29
não queira, e ainda que não note. A realidade ignora, quase sempre e solenemen-
te, a percepção de quem quer que seja. Mas é possível desenhar pelo menos parte
dos fluxos dos quais queremos participar e, sim, não é impossível desenhar fluxos
que levam à participação de muitos outros agentes em experiências das quais nós
também participamos como agentes de primeira classe. E isso está relacionado às
experiências que podemos criar.

Desenhar experiências passou a ser um papel fundamental dos [novos] negócios


figitais e das organizações em transformação. E não se trata de “descobrir” e|ou re-
desenhar uma certa jornada do usuário que existe agora. Porque é muito provável
que o comportamento atual de seus clientes não seja o que eles desejam para o
futuro, nem que você resolva todas as “dores” do que se poderia entender como
a jornada atual.

A experiência que queremos criar para tornar um negócio sustentável está sem-
pre vindo do futuro, e são os cenários e personas que desenharmos para trazer
tais futuros para o presente que irão possibilitar a descoberta das oportunidades
de conceber experiências que encantam, engajam, se transformam em cultura da
rede e do ecossistema. E estão sempre evoluindo, como todos nós. Experiências
dos, nos, com os e para os fluxos. Experiências fluidas.

A noção de experiência não está relacionada apenas à usabilidade [no sentido de


user experience], mas a aspectos [socio]cognitivos da experiência das pessoas em
suas relações com o contexto, eventualmente mediada por artefatos que precisam
ser usados para a realização de alguma ação. Para pensar muito além dos limites…
imagine criar, do zero, experiências para quem não pudesse usar nenhuma ferra-
menta do espaço físico, a não ser cérebros-como-plataformas. Foi isso mesmo
que você leu. Em caso de dúvida, volte e leia sobre as lógicas das plataformas figi-
tais e os princípios que servem de base para todas as fundações. Será que, entre as
experiências que se poderia desenhar, neste cenário, estaria aprender mandarim
com um amigo que sabe, por intermédio de downloads-seletivos-de-consciência?

Não estamos falando de desenhar interfaces para as pessoas terem a experiência


de usá-las para atingir algum objetivo, mas de experiência como um fenômeno

30
que emerge de um complexo de percepções, ações, motivação e cognição em um
todo que está imerso, é afetado por e afeta os fluxos no espaço figital.

Muito se diz e faz sobre as facetas digital e social das experiências das pessoas
com as instituições, a ponto de se desprezar ou mesmo descartar a dimensão física
do espaço figital e, na mesma viagem, tudo o que acontece ou poderia acontecer
lá. Isso era -ou parecia que funcionava- quando omnicanalidade queria dizer que o
negócio se comportava mais ou menos da mesma forma [e não necessariamente
como parte do mesmo fluxo…] nas dimensões física, digital e social mas… uma coisa
quase nunca tinha nada a ver com a outra. Ainda é quase sempre assim em quase
todo canto. E o problema do futuro -ou do presente, já- é desenhar experiências
figitais, fluidas.

Uma experiência fluida envolve de desejo e prazer a estética e novos modelos


mentais, necessários para realizar algo ou causados pela sua realização. Como se
isso fosse pouco, uma experiência fluida deve ser tratada como um episódio, um
pedaço de tempo em que se vive[u], visões e sons, sentimentos e pensamentos,
motivos e ações entrelaçados, armazenados na memória, rotulados, revividos e co-
municados a outros. Uma experiência fluida é uma história, emergindo do diálogo
de pessoas com o mundo por meio das ações.

Aqui cabe uma reflexão sobre a gigantesca diferença entre pessoas e usuários
[ou clientes]. Pessoas não podem ser reduzidas a meras facetas de seus comporta-
mentos. Empresas não têm clientes, nem usuários. Mas há pessoas cujos compor-
tamentos, num dado espaço-tempo, levam a transações do tipo cliente-fornece-
dor com “nossa” empresa. E cada um de nós deveria usar o Princípio de Copérnico
[veja o link… bit.ly/3iPbchk] para assumir que “nosso” negócio não é especial: a vas-
ta maioria das mudanças de comportamento das “pessoas como clientes” começa
a acontecer nas interações que elas realizam com outros negócios… que nada têm
a ver com o “nosso”.

Não é comum pensar que o desenho de experiências seja um tipo de filosofia


para o desenho e operação de um negócio qualquer, mas é. Basta você pensar
uma vez sobre o assunto. Para desenhar experiências nas bordas, com as pessoas,

31
e para influir no comportamento delas, dentro e fora do negócio… não é uma arqui-
tetura centralizada, de pirâmide de poder, que vai dar conta da tarefa. E, claro, não
é só ter uma filosofia para tal; é ter estratégia, transformada em cultura, arquitetura,
organização e operações que vão agir assim. Experiências fluidas exigem organi-
zações em rede, e fluidas, também.

Um dos maiores problemas a tratar nas relações entre nosso negócio e as pessoas
externas a ele é como usar dados e algoritmos para combinar produtos com servi-
ços e experiências, para substituir venda e entrega por resultados para as pesso-
as [como clientes]. Já seria complicado o suficiente se não houvesse experiência
na equação. Mas há. É por isso que o [re]desenho do negócio para futuros figitais
exige experiências fluidas, figitais, que são, exatamente, nossa terceira fundação.

1. A conectividade e diversidade de uma rede são as bases para o


potencial de complexidade, sofisticação e impacto das experiências
fluidas que podem ser desenhadas nela. Um objetivo do desenho de
experiências fluidas ab initio é criar redes diversas e conectadas o su-
ficiente para habilitar a complexidade, sofisticação e impacto potencial
das experiências.

Todo fragmento do espaço figital que abriga um volume de agen-

32
tes minimamente interessante é suficientemente conectado e di-
verso para habilitar experiências fluidas de alta complexidade, so-
fisticação e impacto.

2. Experiências fluidas se dão em fluxos no espaço figital e seu enten-


dimento, desenho e evolução deve levar em conta a turbulência de
todos os tipos de fluxos, em especial em situações de aceleração ou
interação entre fluxos.

A dinâmica dos fluxos deve guiar a dinâmica das experiências;


quase todos os fluxos de interesse, no espaço figital, são turbu-
lentos. O desenho e evolução de experiências, em tal contexto de
incerteza, exige elaboração e experimentação contínua de hipóte-
ses sobre o comportamento atual e futuro dos fluxos.

3. A natureza das experiências fluidas é imprevisível e impermanente.


Em que pese os poderes de rede dos agentes que habilitam ecossiste-
mas figitais, a desintegração das instituições, a diversidade de agentes,
a multitude de conexões, relacionamentos e interações na rede e a pro-
gramabilidade do espaço figital demandam uma permanente reavalia-
ção do conhecimento sobre o ecossistema, baseado na incerteza como
norma.

O que parece caótico e aleatório nos fluxos figitais às vezes pode


ser explicado -mesmo quando não previsto nem controlado- usan-
do regras e padrões, cuja descoberta, para o desenho de expe-
riências fluidas, depende de um esforço de contínuo de aprendi-
zado realizador, da criação de hipóteses e das tentativas de validá-
-las, em tempo e contexto quase real, no espaço figital.

33
4. Experiências fluidas devem ser desenhadas a partir um conjunto mi-
nimalista de padrões. A natureza turbulenta e imprevisível dos fluxos
figitais quase sempre impede quem os provoca de exercer um papel
efetivo de coordenação e|ou controle. O melhor caso é desejar que um
desenho minimalista provoque uma auto-organização de|em fluxos de
experiências que demande o menor esforço possível de todos os agen-
tes participantes.

A flexibilidade combinatória obtida pela desintegração e reinte-


gração das organizações, associada aos relacionamentos e inte-
rações possibilitados por protocolos abertos deve passar por um
processo permanente de simplificação, para reduzir o esforço cog-
nitivo, de desenvolvimento e operacional de quem provê e partici-
pa das experiências fluidas criadas pela organização.

5. Toda experiência verdadeiramente fluida é criada de forma incre-


mental e iterativa, o que demanda organizações capazes de aprender
continuamente, de forma distribuída, em todo ponto de contato e rela-
cionamento onde seja necessário entender e atender pessoas.

As competências e habilidades das organizações que aprendem


e são capazes de criar experiências fluidas estão principalmente
nas bordas, onde as pessoas de dentro se encontram com as [as-
pirações, demandas, problemas… das] pessoas de fora -mas perto-
da organização.

Quando as competências e habilidades para criar e manter experiências fluidas se


deslocam para as bordas e se tornam um fator essencial da criação, entrega e cap-
tura de valor em um negócio, as decisões começam a -e devem ser- tomadas pela
rede social das bordas da organização, que necessariamente inclui pessoas den-
tro e fora do negócio. Na medida em que tal evolução se dá, uma de duas coisas
acontece: ou a burocracia dos mínimos detalhes do negócio começa a se tornar

34
supérflua, descobre que tem outros papéis e distribui o poder para a rede… ou, ao
descobrir que está se tornando supérflua, reage -se conseguir, mata as bordas e,
com elas, a organização como um todo, no curto ou médio prazos. Acontece.

É por isso que a combinação das fundações discutidas até agora…flexibilidade


combinatória, plataformas figitais e experiências fluidas só acontece de fato em
organizações que passam por uma transformação estratégica, que é exatamente
nossa quarta e última fundação.

35
fundação 4:
transformação estratégica_

Em 2002, David Bowie já dizia que… “a transformação


absoluta de tudo o que pensamos sobre música ocor-
rerá dentro de 10 anos, e nada será capaz de pará-la.
Não vejo absolutamente nenhum sentido em fingir que
não vai acontecer. Música será como água corrente
ou eletricidade.” Tá no link nyti.ms/3CRkoea, no New
York Times de 09/06/2002. Mas Spotify só apareceu
em 2006, Amazon Music em 2007, Apple Music em
2015, Tencent Music em 2016; os quatro respondem
por 3/4 do mercado global de música como fluxo, ou
streaming, em 2021 [veja em bit.ly/3jVzXJl]. Como é
que Ziggy Stardust “sabia” que isso iria acontecer com
tanta antecedência?

36
Aladdin Sane nunca soube que o futuro da música iria ser como, enfim, é agora.
Mas vivia tentando trazer futuros para o presente e conseguia imaginar -claramen-
te, pela entrevista- que o choque tecnológico que já vinha sendo causado pelo
digital, em rede -em 2002 não havia smartphones, mas dava pra “vê-los”, de lá,
porque havia prenúncios…- que arquivos MP3 iriam ser transformados em fluxos de
bits, com cada ouvinte tendo acesso a uma biblioteca digital musical global, uma
prateleira infinita de canções. Deu no que deu, e nenhuma das antigas gravadoras,
que dominavam o mercado antes da internet, é relevante em streaming hoje.

O que já dava para ver, em 2002, era a possibilidade de uma grande ruptura no
contexto de entretenimento baseado em áudio e vídeo, causada por novas tecno-
logias que haveriam de mudar -radicalmente- os processos de criação, agregação,
entrega e captura de valor, migrando valor entre mercados, de forma que os in-
cumbentes nem tentariam usar as novas possibilidades tecnológicas, o que de fato
ocorreu, e não só para música, como todos sabemos a esta altura do campeonato.

A competição no mercado de música mudou [como mostram Hracs e Webster


em From selling songs to engineering experiences…, bit.ly/3iV2dwr] de conteúdo,
curadoria e preço para engenharia de experiências fluidas que aproveitam a flexi-
bilidade combinatória possibilitada e habilitada por plataformas figitais, porque,
além das dimensões digital e social, a música continua existindo no espaço físico.
Mal comparando, não foi como a música mudar de planeta, no sistema solar, ou de
galáxia, no universo. O mercado de música sofreu uma ruptura de tal monta que
fez uma transição para um outro universo, onde as “leis da física competitiva” são
quase completamente diferentes.

Em tempo de rupturas, não adianta melhorar; é


preciso transformar.

Um dos problemas é saber… o que é uma ruptura? Segundo Clayton Christensen,


criador da teoria de inovação de ruptura [sim, ruptura é inovação…], comemoran-
do 20 anos da publicação do texto original [em 2015, no link bit.ly/3jT9lIR]…

…infelizmente, a teoria da ruptura corre o risco de se tornar vítima de


seu próprio sucesso. Apesar da ampla disseminação, os conceitos cen-
trais da teoria têm sido amplamente mal compreendidos e seus princí-
pios básicos frequentemente mal aplicados.
37
Como se fosse pouco…

…muitas pessoas que falam de “ruptura” não leram um livro ou artigo


sério sobre o assunto. Com muita frequência, usam o termo vagamen-
te para invocar o conceito de inovação em apoio a tudo o que desejam
fazer.

E por fim…

…muitos pesquisadores e consultores usam “inovação de ruptura”


para descrever qualquer situação em que um mercado seja abalado e
empresas que antes eram bem-sucedidas tropecem. Mas esse é um uso
muito amplo…

O indiscutível é que o debate sobre inovação de ruptura se deu e se dá sobre


substituição competitiva, em que um agente, conhecido ou não, introduz um pro-
duto que as pessoas consideram cada vez mais preferível à oferta estabelecida no
mercado. Em Disruption Through Complements [veja o link bit.ly/3vFOhd9], Adner
e Lieberman estendem e complementam a teoria já atualizada por Christensen adi-
cionando… complementos, com três papéis no cenário de inovação.

38
Primeiro, os complementos de algum produto ou serviço [ou plataforma…] ganhan-
do poder no ecossistema e evoluindo para controlá-lo, causando uma ruptura.
Segundo, os complementos evoluindo para substitutos e causando uma ruptura
“clássica“, no sentido de Christensen. Terceiro, os complementos criando negócios
adjacentes e estabelecendo uma competição clássica com os incumbentes, desa-
fiando sua posição competitiva. Aqui pra nós, a vida dos incumbentes é um pande-
mônio, ainda mais porque estão sob permanente ameaça das disfunções internas,
que causam a extinção de um vasto número deles, sem que seja necessária qual-
quer ruptura, complementos ou rivalidade para atrapalhar. Não falha quase nunca…

Ecossistemas figitais são em boa parte definidos pela diversidade de agentes, a


variedade de conexões, relacionamentos e interações na rede e a programabilida-
de das suas plataformas figitais. A redução da complexidade, esforço e custo de
criar novas aplicações que suportam novas experiências fluidas, em pouquíssimo
tempo, faz com que novos complementos e substitutos e mesmo competidores
surjam numa frequência -e competência– cada vez maior. Isso quer dizer que, na
prática, negócios sustentáveis em ecossistemas figitais são aqueles que estão em
permanente transformação, para não correrem o risco de se tornarem incumben-
tes ao melhor estilo dos sitting ducks que terminam suas histórias no grande cemi-
tério dos CNPJ.

O parágrafo acima é uma resposta à pergunta… por que transformar um negócio?


Outra pergunta que deveria ser óbvia, principalmente para quem [ainda] tem um
bom negócio agora, é… por que fazer transformações estratégicas? E a resposta
é…

…porque todos os mercados estão passando por processos de adapta-


ção, evolução e transformação que causam mudanças não necessaria-
mente incrementais –e potencialmente muito radicais– nas fundações
de suporte aos processos de criação, agregação, entrega e captura de
valor em todos os tipos de organização, com as bases analógicas [ou
analógicas digitalizadas] sendo trocadas por plataformas figitais, em
rede, que redefinem a vasta maioria dos ecossistemas de negócios.

Este fundações, em vermelho, é deliberado. As três primeiras fundações trata-


das neste texto -e que, como vimos, redesenharam a música– foram flexibilidade
combinatória, plataformas figitais e experiências fluidas e elas -e suas lógicas e
princípios– são as bases sobre as quais são criadas e evoluem as organizações do
39
futuro figital.

Em negócios legados, as fundações sobre as quais a atual teoria do negócio está


sendo executada são tão diferentes das fundações dos futuros figitais que a única
forma de vir do futuro para o presente é realizar uma mudança radical -isto é, uma
transformação– na estratégia do negócio. Em negócios nascentes, o problema é
outro: sem uma estratégia transformadora, na partida, não só o processo de cria-
ção deixará pouco a dever ao caos… e não há [mais] tempo nem dinheiro para tal,
agora, mas, sem repensar mercados, a partir das novas fundações, pode ser que se
esteja construindo um novo negócio velho. Muitos novos negócios que oferecem
soluções digitais para seu mercado, hoje, são tão analógicos, internamente, quanto
fábricas de válvulas nos anos 1920, quando se olha a estratégia, a arquitetura, or-
ganização e os processos e métodos do negócio.

O desenvolvimento de novos negócios inovadores de crescimento empreende-


dor tem que ser baseado em, e realizado sobre, um desenho estratégico que ha-
bilita o processo de criação e evolução do negócio. Em negócios novos e legados,
no mundo figital -ou seja, todos os negócios, de qualquer tipo- as facetas digital e
social de seus contextos mudam tanto, tão rapidamente e com alcance tão grande
que estar em transformação será, daqui para a frente, a norma de todos os negó-
cios.

A teoria da inovação de ruptura de Christensen também pode ser estendida para


dar conta da situação do parágrafo acima, onde…

…ao invés de produtos e serviços entrantes substituindo incumbentes,


são mercados emergentes, estruturados sobre as novas fundações do
futuro figital e obedecendo a novas leis e regras, substituindo merca-
dos existentes. Quando a migração de consumidores de um para outro
mercado atinge massa crítica, pouco importa o que um negócio fará
para se manter no mercado legado, seus dias estão contados, porque
os do “seu” mercado estão.

Foi assim com música, como Bowie havia antevisto, está sendo assim com entre-
tenimento, mídia, informação, finanças, varejo, educação… e um grande número de
mercados, agora. E ainda há muita gente vendo com os próprios olhos… e negando
a realidade e não acreditando nos fatos e dados. Mesmo nos mercados que pare-
cem estar no mesmo lugar, a transformação de físico para figital muda quase tudo.
40
Quem não der -agora- os primeiros dos muitos passos que levam do analógico para
figital correrá o risco de não mais poder –e em pouco tempo- fazer uma transição
gerenciada e incremental entre os dois mundos. E há basicamente duas formas de
fazer uma transformação: com tempo, onde pequenas rupturas periféricas podem
ser articuladas para causar cada vez mais impacto, paulatinamente e, orquestra-
das, grandes rupturas, transformando o negócio; e sem tempo, quando a opção
que resta é tentar romper com o passado de uma vez, quase sempre causando
impactos dramáticos e de impossível gerenciamento… isso quando não se fracassa
completamente.

Todos os negócios, grandes e consolidados ou pequenos e em formação preci-


sam se adaptar, evoluir e –ao fim e ao cabo- se transformar para competir numa
economia de plataformas figitais, como protagonistas de seus ecossistemas coo-
petitivos. Mais ainda, transformação figital não é um processo qualquer, que tem
começo, meio e fim. Porque não é inaugurado; suas facetas digitais e sociais são
em boa parte escritas em software e publicadas na rede. E reescritas o tempo todo.
À medida que cada agente dos mercados figitais reescreve e republica seu código,
todo o mercado é impactado e comportamentos mudam, e normalmente não é o
comportamento dos “seus” clientes nas “suas” interfaces, mas deles nas interfaces
dos outros. Como resultado… você tem que reescrever seu código que, publicado,
impacta os clientes dos outros na sua interface… e aí os outros começam a reescre-
ver seus códigos… ad infinitum.

Programar é preciso, porque navegar


é necessário, mas não é suficiente.

Nos últimos 50 anos as empresas foram virando código, e não entender como tais
coisas funcionam e não ser capaz de usar suas interfaces para reprogramá-las [para
atender suas necessidades ou delas extrair dados] será um problema tão fatal, para
qualquer negócio, como não entender juros compostos. E não se trata apenas de
se articular e agir usando a rede que já existe, mas de programar a rede que ainda
não há. Sem esperar que “os outros” [quase sempre com seus interesses] o façam.
Aprenda a programar. Faça seu negócio aprender, também.

Se você lesse cada um dos quatro conjuntos de lógicas como programas -e eles
devem ser tratados assim mesmo- cada lógica deveria ser vista como um fluxo em
si mesma, que interage com e redesenha as outras lógicas do seu conjunto e lógi-

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cas de outros conjuntos, um turbilhão de entrelaçamentos que [re]cria os fluxos tur-
bulentos de todos os mercados. Para dar conta desse turbilhão é que precisamos
estar em permanente transformação estratégica e tratar suas lógicas como o pro-
grama de mais alto nível de nosso negócio. Mas… quais são essas cinco lógicas?

1. Conhecimento é a base de qualquer teoria do negócio e da sua


transformação na prática que cria, agrega, entrega e captura valor no
fim do dia. Transformar um negócio é transformar o conhecimento do
negócio, o que começa por descobrir o que não se sabe, aclarando ao
mesmo tempo o que se precisaria saber para transformar as aspirações
de agora nas competências e habilidades para criar o futuro a partir de
agora.

Conhecimento, no negócio, começa quase sempre como tácito,


exige esforço para se tornar explícito e esforço ainda maior para
se tornar tácito novamente, quando tem que ser adaptado a partir
das regras e normas que deixaram de funcionar em uma organiza-
ção, numa espiral infinita de aprender, desaprender, reaprender.
Negócios que não chegam a fazer a transição de conhecimento
tácito para explícito não conseguem escalar… e negócios que não
conseguem fazer a transição de conhecimento explícito para tácito
não conseguem sobreviver.

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2. Descobrir oportunidades para transformação é uma capacidade fun-
damental para a sustentabilidade dos negócios. A história mostra que,
principalmente nos bons negócios, estas oportunidades de transforma-
ção não estão no centro, nem no meio, mas nas bordas, são periféricas.
Descobrir as oportunidades periféricas críticas é quase certamente por
onde um negócio deveria começar a se transformar, evitando os con-
frontos e conflitos do núcleo e criando estratégicas mínimas viáveis
para inovar a partir das bordas.

As oportunidades periféricas críticas são as que se situam distan-


te o suficiente do centro para não fazer parte das opções estraté-
gicas correntes mas que podem se tornar críticas se transformadas
em performances do negócio em algum futuro [próximo] ou, pior,
se a competição fizer isso. Descobrir oportunidades periféricas crí-
ticas é estabelecer estratégias mínimas viáveis para sua existência
como faceta do negócio, que devem ser sujeitas a uma validação
experimental antes de se investir na sua transformação em fun-
ções da organização.

3. A base do método científico é partir do conhecimento estabelecido


para refutá-lo com novos fatos e dados e|ou, a partir dele, elaborar no-
vas hipóteses que podem ser validadas [ou não] em experimentos con-
trolados e apropriadamente desenhados para tal. De nada adiantam
fundações, lógicas, princípios, teoremas… se não é possível testá-los na
prática. E a beleza do método é que, nos estágios iniciais da elaboração
de propostas de alto potencial de impacto [imagine… vacinas] é possível
trabalhar com experimentos limitados em escopo e alcance, e com bai-
xa resolução nas estratégias e protótipos para lidar com as oportunida-
des em contexto e as soluções limitadas que as resolvem.

O maior problema que novos negócios de qualquer tipo enfrentam


é começar a realizar produtos minimamente viáveis sem o conhe-
cimento mínimo dos mercados-alvo e suas fundações e lógicas e
sem uma estratégia minimamente viável para tratar as oportuni-
dades que vislumbram. Os tais dos pivôs vêm daí, de situações
indistintas de cachorros-correndo-atrás-do-rabo. Se em negócios
nascentes os MVPs sem MVSs [minimum viable strategies] cau-
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sam tanto estrago, imagine em negócios existentes, onde a maior
parte do investimento para criar uma nova função pode estar em
custos de transação dentro do negócio. Invista nos laboratórios de
criação de novo conhecimento, estratégias, produtos e serviços;
eles se pagam sustentando o negócio.

4. Comprovar a validade de uma ou mais teses em experimentos não


quer dizer que elas se transformarão, sozinhas, em funções de negó-
cios. A transição de hipótese comprovada para função de negócio exige
um esforço que demanda muito além das competências e habilidades
necessárias para realizar testes de laboratório. Um negócio nascente,
como negócio, começa nesse estágio; num negócio existente, é aqui
que a transformação começa a acontecer de forma notável e como par-
te da performance do negócio como um todo e causar impacto -positivo
e… negativo.

Evoluir de experimentos para funções de negócio envolve -no


mínimo…-desenvolvimento, produção e publicação de soluções,
formação de times em todos os níveis, monitoração e avaliação
de impacto e evolução continuada das funções e do negócio no
ecossistema. Além das articulações, [re]desenho organizacional e
investimento que hão de tornar a aventura, no mínimo, possível.

5. Se você -quer como leitor ou como negócio- chegou até aqui, muito
bem!… Volte à quinta lógica da flexibilidade combinatória, nossa pri-
meira fundação, e descobrirá que ela era… plataformização. Quer dizer
que estamos em loop? Sim, e deliberadamente.

Estas fundações, lógicas e princípios foram desenhadas como um al-


goritmo para criar, evoluir, adaptar e transformar negócios para [e nos]
futuros figitais, nos quais tudoÉsoftware e onde, para ser sustentável,
você não pode ter um plano, deve ter um algoritmo estratégico, sensí-
vel ao contexto, escrito com e para a rede, que transforma seu negócio
numa plataforma, continuamente.

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Se as funções do negócio são de classe mundial, haverá oportuni-
dades para desenhar infraestruturas e serviços que, como bases
da plataforma que codifica os fundamentos do negócio, habilitam
funcionalidades criadas interna e externamente, as aplicações,
suas e da rede, que fazem o negócio. A tríade infraestrutura, servi-
ços e aplicações é a plataforma que habilita o ecossistema figital
do negócio e|ou a sua participação em ecossistemas habilitados
por outras plataformas. Além de ser a base para o negócio [e não
só suas funções] ganharem escala, a plataforma abriga o conjunto
de funções de [ou que habilitam a] gestão de conhecimento no e
do negócio, inclusive este algoritmo.

Conhecimento são fluxos de energia nas redes das quais todo negócio do futuro
figital faz parte. A economia dos futuros figitais é de conhecimento, em rede. Aí,
cada organização é um ecossistema, onde conhecimento flui como energia. Cada
negócio -e sua plataforma– é um transformador, por onde circulam, se misturam
e são convertidas, enquanto a organização estiver viva, suas energias racionais,
emocionais e espirituais, correspondentes ao seu conhecimento racional, emocio-
nal e espiritual.

Se conhecimento é energia, mas organizações humanas não obedecem à


zeroésima e primeira leis da termodinâmica: nunca estão completo equilíbrio em
relação a outras, nem completamente isoladas. Mas todos os processos de cria-
ção e conversão [ou transformação] de conhecimento obedecem à segunda lei
da termodinâmica; criar e transformar conhecimento depende de nova energia no
negócio, assim como seus processos de [re]desenho e [re]criação, que são -clara-
mente- [re]desenho e [re]criação de conhecimento.

Todo negócio obedece à terceira lei da termodinâmica: a entropia máxima é a do


ambiente, quando o negócio não existe, e nenhum negócio de mais de uma pessoa
tem entropia nula. Criar um negócio é diminuir a entropia num certo espaço-tempo,
mas diminuí-la abaixo de um dado ponto limita, muito, a capacidade de reagir e
evoluir frente a desafios ecossistêmicos, frequentemente aniquilando as possibili-
dades do negócio causar causar modificações no ambiente. Depois de algum tem-
po, todo negócio desaparece, e o faz quando todo o fluxo de conhecimento cessa
e não há nenhum agente remanescente que saiba como, queira ou possa revivê-lo.
O zero absoluto dos negócios é a cessação do fluxo de conhecimento que gera
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sua energia.

Pra terminar, e como liderar um negócio é criar, manter e evoluir seu fluxo de
conhecimento, um decálogo de recomendações que podem ser úteis para guiar
quem há de tratar de negócios nos futuros figitais e, neles, das fundações que
acabamos de descrever.

1. Todo negócio está no negócio de aprender.


2. Aprender se tornou onlife. Se acostume a isso.
3. Todo bom negócio também é uma boa escola.
4. Negócios sustentáveis têm estratégias de, e se organizam
como, boas escolas.
5. Boas escolas conectam educação e experiência.
6. Bons negócios conectam pesquisa e desenvolvimento.
7. Negócios que aprendem são escolas de fazer.
8. Aprender fazendo e questionando demanda capacidades
operacionais e dinâmicas.
9. Equilibre as duas de tal forma que as primeiras não paralisem e as
segundas não tornem o negócio um caos.
10. No tempo, quase sempre ao mesmo tempo, toda organização sofre
com a tensão entre comando ou liberdade, controle ou responsabili-
dade e hierarquia ou redes, e passa por isso dinamicamente, em qual-
quer contexto. Não deveria haver tal sofrimento; há que ter tudo, e em
simultâneo.

Enfim… diria Cícero, [em bit.ly/3j6TG9M] “sunt facta verbis difficiliora”… ou… é mais
fácil dizer do que fazer, coisa que eu ouço muito quando falo dessas paradas pelo
mundo afora. Para o que todos nós talvez devêssemos ler mais Sêneca [e menos
auto ajuda no LinkedIn e algures…] para ouvir o grande estóico dizendo…

…”Nihil horum sine timore miramur: et cum timendi sit causa nescire, non
est tanti scire, ne timeas? Quanto satius est causas inquirere, et quidem
toto in hoc intentum animo! Neque enim illo quicquam inveniri dignius
potest, cui se non tantum commodet sed impendat”…

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…o que, em bom português, quer dizer nada mais nada menos que… Não olhamos
para nenhum desses fenômenos sem medo. E já que a ignorância é a causa de
nossos temores, não vale a pena saber para parar de ter medo? É muito melhor
investigar as causas e fazê-lo com toda a mente aplicada a esse propósito! Não há
nada mais elevado do que cuidar disso, e a isso devemos nos dedicar totalmente.

autor_
Silvio Meira é CIENTISTA-CHEFE da TDS.Company, PROFESSOR
EXTRAORDINÁRIO da cesar.school, PROFESSOR EMÉRITO
do CENTRO DE INFORMÁTICA da UFPE, RECIFE. É fundador
e presidente do conselho de administração do PORTO
DIGITAL.

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.company
somos um negócio de levar negócios para o futuro, nosso objetivo é
apoiar a transformação de negócios nascentes e legados nas jornadas
de transição entre o presente analógico e o futuro digital.

é um framework de estratégia digital para adaptação, evolução


e transformação de negócios analógicos em plataformas
e ecossistemas digitais, desenvolvido ao longo de mais
de uma década de experiência no mercado e muitas na academia.

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