Apostila Teodiceia 2020
Apostila Teodiceia 2020
Apostila Teodiceia 2020
METAFÍSICA / TEODICEIA
Introdução
1. O problema "Deus"
É próprio do homem o procurar o absoluto. Tal procura representa o caráter distintivo de
uma vida verdadeiramente humana. O homem não pode realizar-se sem perguntar-se o
porquê do próprio cotidiano, sem procurar o sentido e a finalidade da própria vida, da
própria posição no mundo e do próprio ser.
"Mas por que o homem busca? Por que sente a necessidade de procurar e de interrogar-se
sobre o futuro, por que não se contenta com o que lhe dizem e oferecem as coisas que o
circundam imediatamente? Evidentemente porque ele se dá conta que as coisas não se
sustentam por si mesmas, não conferem o sentido a si mesmas, mas reenviam a outro o
próprio ser. O homem vive a relatividade interna, a dependência, a limitação e o caráter
transitório de todas as coisas e da própria vida, e através destas realidades se interroga sobre
a razão absoluta, independente, ilimitada e imperiosa do seu ser e do seu sentido, razão que
sustenta e torna possível tudo o que existe.
Querendo ou não o homem busca sempre o absoluto; nesse sentido e em termos decisivos
escreveu K. Jaspers (1883-1969): "Se elimino algo que é absoluto para mim,
automaticamente um outro absoluto toma o lugar do que foi eliminado".
Hegel chegou a dizer que a afirmação segundo a qual não se deve fazer o percurso
intelectual do mundo a Deus, do finito ao Infinito, significa que não se deve pensar.
Tomás de Aquino sustentava que conhecimento da verdade é o que anima a nossa vida
intelectual, pois nos impulsiona a conhecer a causa final de tudo quanto conhecemos: "O
fim último do homem e de toda substância intelectual se chama felicidade ou beatitude; de
fato é isto o que toda substância intelectual deseja como próprio fim último, e o deseja de
per si. Consequentemente, a beatitude e felicidade última de toda substância intelectual é
conhecimento de Deus" (Summa contra gentiles, III, 25). Isto é verdade porque o sentido e o
valor de toda verdade encontram o próprio fundamento último na verdade primeira, que se
identifica com o Absoluto, e o espírito humano não encontra paz até que não repousa nesta
suma verdade, ou seja, em Deus. Uma tal procura terminará somente no encontro com Deus
e na sua posse, segundo as famosas palavras de S. Agostinho: "Senhor, tu nos fizeste para
Ti, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousa em Ti" (Confissões, I, 1).
O nosso curso se deterá no segundo dos quatro modos de acesso ao Absoluto aqui
apresentados, ou seja, através da via filosófica, e mais concretamente, metafísica. Este
percurso, que parece o mais inócuo e, talvez, o mais insatisfatório, porque é bem pouco em
relação às certezas sobre Deus que nos oferecem a fé e a teologia sobrenatural, é o máximo
conhecimento natural ou racional que o homem pode ter do Absoluto. É justamente aí que
consiste a sua grandeza; a sua miséria depende, ao contrário, do fato que Deus supera
completamente a capacidade do nosso intelecto e, consequentemente, o nosso conhecimento
possível de Deus é assaz escasso. Tomás de Aquino, a este respeito, afirmava: "Se o
intelecto humano compreende a substância de uma coisa, por exemplo, de uma pedra ou de
um triângulo, não há nada de inteligível em tal coisa que exceda a capacidade da razão
humana. Mas isto não acontece em relação a Deus. O intelecto humano, de fato, não pode
chegar naturalmente até a Sua substância, pois o conhecimento nesta vida tem a própria
origem nos sentidos, e, portanto, o que não cai sob o poder dos sentidos não pode ser
apreendido pelo intelecto humano senão enquanto deduzido do sensível. Mas os entes
sensíveis não podem conduzir o nosso intelecto a descobrir neles o que a substância divina
é, pois os entes sensíveis são efeitos inadequados à potência da causa. O nosso intelecto,
partindo do sensível, pode chegar a descobrir que Deus é (existe), e outras verdades
semelhantes relativos ao primeiro princípio" (C. G., I, 3). Todavia, mesmo se o homem não
pode conhecer com a própria razão a essência de Deus, pois esta excede a sua capacidade,
deve, por quanto lhe é possível, empenhar-se no conhecimento das coisas imortais e divinas,
dado que o conhecimento imperfeito de Deus confere ao homem uma grande perfeição,
enquanto a razão encontra a própria perfeição máxima no conhecimento das causas últimas,
que é a sabedoria. A metafísica, sabedoria na ordem racional, é como dizia Aristóteles, a
ciência da verdade, e não apenas de uma verdade qualquer, mas sobretudo – acrescenta
Tomás de Aquino – daquela verdade que é a origem de toda verdade e que concerne ao
primeiro princípio do ser de todas as coisas (C. G., I, 1). O conhecimento metafísico de
Deus recebe o nome de teologia natural ou teodiceia, o saber mais elevado que o homem
através da razão pode alcançar.
É preciso ainda ter presente a precisa formalidade segundo a qual Deus é considerado na
metafísica: partindo da ratio entis (razão dos entes) se chega à causa primeira do ser de
todas as coisas. Não se chega a Deus secundum quod est in se (segundo o que é em si),
como o que Ele é na sua essência (esta é a formalidade teológica sobrenatural), mas como
causa das coisas. Daí a definição da teologia natural como a parte da metafísica que estuda a
primeira causa dos entes.
Esta definição coloca em evidência dois aspectos: a) a sua diferença em relação à teologia
sobrenatural; b) a perspectiva da teologia natural é essencialmente metafísica e se constitui
como uma parte desta disciplina.
Premissa
Sobre a existência de Deus se podem elaborar inúmeras provas. De fato cada traço da
ordem cósmica e de contingência radical, se é seguido atentamente, conduz até Deus; e
também qualquer ideia transcendente (bondade, verdade, beleza, unidade, ser, etc...), se
explorada cuidadosamente, revela a existência de Deus.
Sabemos que as metafísicas podem ser construídas em dois modos: do alto ou de
baixo. As metafísicas que partem do alto assumem como ponto de partida a ideia do
Absoluto, do Princípio primeiro e deste derivam todas as outras realidades. O ponto de
partida pode ser o Uno, a Substância, a Mônada, o Espírito, o Bem, a Verdade, o Perfeito,
etc... Partem de baixo as metafísicas que assumem como ponto de partida as coisas
sensíveis, o fenômenos materiais, a realidade humana, o devir, a história, etc... e procurando
as suas razões últimas ascendem até o Princípio primeiro, o Absoluto.
Nas metafísicas construídas do alto, a existência de Deus – o Princípio primeiro – é
argumentada a priori, ou seja, é colocada e confirmada por primeiro; enquanto que nas
construídas de baixo, a existência de Deus é demonstrada a posteriori, ou seja, é colocada
por último.
Note-se que o ponto de partida da prova é a ideia de Deus como aquele do qual não
se pode pensar nada maior (id quo maius cogitari nequit), isto é, o ser que recolhe em si
todas as perfeições: o omniperfeito. Santo Anselmo sustenta que, se também tal perfeição
deriva da fé, estão não é possessão exclusiva do crente, mas é própria de todos, dado que até
mesmo os ateus compreendem o seu significado; caso contrário, a sua negação não teria
sentido. Quando o ateu afirma que Deus não existe, compreende o que diz, e o que
compreende é a noção de um ser perfeitíssimo, o ser do qual não é possível pensar nada
maior. O conceito de Deus é portanto universal.
Todavia, da universalidade do conceito de "Deus" não segue que Deus exista na
realidade. O próprio Anselmo no capítulo II do Proslogion faz uma distinção entre
existência mental e existência real: uma coisa é um quadro na mente do pintor e uma outra é
o quadro na realidade; no primeiro caso, o quadro tem uma existência mental, no segundo
tem uma existência real.
No caso de Deus se tem a ver com uma existência real necessária. O que é devido ao
fato de que o que não se pode pensar nada maior não pode ter somente uma existência
mental, porque a existência real é uma perfeição, algo que o ser perfeitíssimo ou o ser do
qual não se pode pensar nada de maior deve possuir. Assim é porque existir na mente e na
realidade é mais que existir somente na mente. Se existisse somente na mente se cairia em
flagrante contradição, pois se o ser do qual não se pode pensar algo maior existe somente
com existência mental, podemos pensar um outro que possui também a existência real; daí
se pode concluir que o ser do qual nada maior se pode ser pensado seria o ser do qual algo
maior pode ser pensado.
Segundo Anselmo a existência real de Deus ou do ser perfeitíssimo é uma existência
real necessária, porque de outro modo, se o ser quo maius cogitari non potest pudesse ser
pensado como não existente in re, aquele do qual não se pode pensar nada de maior não
seria o ser maior que se pode pensar. E tal existência real necessária compete somente ao ser
perfeitíssimo.
O artigo no qual Tomás expõe as cinco vias segue o artigo em que trata da
necessidade da demonstração da existência de Deus, visto que a sua existência não é para
nós evidente, e o que interroga sobre a possibilidade da demonstração.
1. A ascensão a Deus das vias tomistas é uma ascensão metafísica. Não se trata de
deduções matemáticas nem de demonstrações de física.
2. A ascensão metafísica a Deus parte sempre da consideração das criaturas enquanto entes
causados que exigem uma causa incausada. Entes causados: as vias, de fato, se fundam
sobre o ente e sobre a causalidade. Se trata da passagem do ser (esse) do ente ao Ser, Ato
puro de ser; do participado ao imparticipado, do finito ao infinito.
3. O ponto metafísico central desta passagem é constituído pelo ente, o qual, mostrando-se
como uma estrutura composta de essência (o que é) e ser (aquilo pelo qual é), levante
imediatamente a pergunta do porque um ente é. Ora, o ser é o ato de todo ato, perfeição
suma, o que de mais imediatamente e intimamente convém a cada coisa; portanto, a sua
causa não está no âmbito predicamental. A causalidade predicamental, de fato, explica o
fieri (tornar-se) do efeito, mas não o seu esse (existir); é necessário então procurar a
causa do ser, ou seja, a causalidade transcendental. Ora, a causa do ser não pode fundar-
se na natureza do ente, pois se assim fosse este produziria a si mesmo no ser, o que é
impossível: "Não se pode admitir que o próprio ser (esse) seja efeito da forma ou
qüididade da coisa; caso contrário, seguira que uma coisa seria causa de si mesma e que
alguma coisa poderia produzir a si mesma no ser, o que é absurdo. Conseqüentemente, é
necessário que toda coisa, cujo ser é distinto de sua natureza, tenham o ser de um outro.
Ora, tudo o que é por outro se reduz àquele que é por si como sua causa primeira, se
conclui que deve existir alguma coisa que é a causa essendi (causa de ser) de todo o
resto, enquanto é somente ser". E não basta dizer que esta causa é, mas é preciso
reconhecer que esta é o Ser: o Ser por essência.
4. Como veremos, a causalidade da qual se fala nas vias é a causalidade metafísica e não
física: causalidade do ser e não causalidade dos fenômenos.
5. Antes de passar ao estudo das vias, é preciso lembrar um princípio, válido para toda a
teodiceia, tirado do sed contra do artigo no qual Tomás expõe as cinco vias: no exercício
racional ou demonstrativo não se prescinde da fé. "Longe de tentar esquecer a sua fé na
palavra de Deus, antes de estabelecer a existência de Deus, Tomás a reafirma de modo
muito decisivo. E não poderia ser diversamente, pois o Deus no qual ele crê é justamente
o mesmo Ser cuja existência a sua razão está para demonstrar. A fé que se volta à razão é
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o moto comum de todos os teólogos cristãos e também dos filósofos cristãos". Todavia,
a fé não é um elemento da demonstração metafísica: e é possível também que alguém
aceite por fé o que per se é demonstrável e cognoscível, por exemplo, porque não
compreende a demonstração.
Os entes dos quais partimos se mostram como efeitos; então, "porque os efeitos
dependem das suas causas, posto o efeito, é necessário que a sua causa preexista", por isto,
de todo efeito é possível demonstrar a existência da causa própria do seu ser. Não existem
efeitos absolutos, desligados ou independentes; todo efeito pressupõe uma causa da qual
depende no seu ser.
A causalidade tem valor ontológico; não é percebida pelos sentidos, mas é
"intelletta", ou seja, percebida pelo intelecto. Se pode compreender, e de fato se
compreende, que a causa é o que comunica o ser, contra o fenomenismo de Hume e a
particular teoria kantiana da causalidade, já tratada e criticada precedentemente: tudo o que
começa a ser tem necessidade de uma causa eficiente, e todo efeito não tem em si a razão de
seu ser, mas na própria causa.
Como é possível aplicar a causalidade a Deus? Se Deus, uma vez que se demonstra a
sua existência, se nos apresenta como infinito, eterno, imutável, etc..., como pode uma causa
infinita, eterna, imutável produzir, causar efeitos finitos, temporais ou mutáveis? A
causalidade enquanto tal não diz de per se imperfeição; por isto pode ser aplicada a Deus.
Além disso, entre a causa e o efeito não há nenhuma interdependência, correspondência bi-
unívoca ou relação recíproca: necessariamente o efeito mostra sempre uma dependência da
causa, mas o relacionamento inverso não é por nada necessário, como pensava Kant.
Este é um argumento fundamental da teodiceia, que encontra os seus pontos de
aplicação, como veremos, na transcendência de Deus (suprema superioridade do Ser divino)
e na relação de criação (não há relação real entre Deus e a criatura devida à causalidade
criadora: Deus não depende por nada e não é relativo a nada; enquanto que as criaturas,
enquanto efeitos, dependem de Deus: têm uma relação real com o Absoluto). Não existem
efeitos absolutos, mas podem existir uma relação absoluta.
No procedimento argumentativo das vias, se parte do efeito para chegar à causa. O
desenvolvimento do raciocínio leva do efeito próprio à causa própria. Se queremos que a
argumentação seja rigorosa, é preciso ter em conta que a causa sobre a qual estamos nos
interrogando é a causa própria do ser do efeito do qual partimos. Causa própria é aquela
que, por primeiro e por si, imediatamente e por si mesma, pode produzir um efeito
determinado, e da qual em último termo e imediatamente depende o efeito. Não se trata,
portanto, de uma causa qualquer ou de uma outra causa também esta prévia à realização do
efeito, ou de uma causa acidental.
O que se entende por processo ao infinito? É um percurso sem fim através de uma
série de passagens a partir do efeito considerado. É preciso recordar que o infinito do qual se
trata nas vias é um infinito metafísico (série de causas de efeitos reais metafisicamente
considerados) e não um infinito matemático (que tem valor simplesmente lógico e formal),
nem um infinito físico, no qual as causas são unívocas e explicam somente o fieri (o
acontecer sucessivo) do efeito.
Dois textos, de Tomás e de Aristóteles, que evidenciam como, se se desse um
processo ao infinito na série de causas eficientes (essencialmente subordinadas no presente)
em ordem à produção de um efeito, não existiria causa primeira:
1) "Em todas as causas eficientes ordenadas, o primeiro é causa do meio, e o meio do
último, seja no caso da presença de um só meio, como no caso de mais meios. Ora, tirado o
primeiro, o meio não poderia ser causa. E se se procedesse indefinidamente na série das
causas eficientes, nenhuma seria causa primeira. Portanto, desapareceriam todas as causas
médias. E isto é manifestamente falso" (Summa contra Gentiles, I, 13).
2) "De fato, numa série de termos médios, primeiro e depois dos quais existe um outro
termo, necessariamente o termo anterior é causa daqueles que são sucessivos a este. Se, na
verdade, nós devêssemos determinar qual destes três termos é causa, diríamos sem dúvida
que é o primeiro, já que não é certamente causa nem o posterior, pelo fato que o termo final
não é causa de nada, nem o mediano, sendo este causa só de um outro termo (não há
diferença se se trata de um só termo médio ou mais de um, e se estes são numericamente
infinitos ou finitos). Mas tanto as séries concebidas como infinitas neste modo quanto o
infinito em geral têm todas as suas partes igualmente intermédias até que não se chegue ao
termo ora em questão; portanto, se não existe um primeiro termo, não há absolutamente
nenhuma causa" (Metafísica, livro II, 2)
d) Portanto, deve haver um primeiro movente que não seja movido por outrem, mas
que tenha em si mesmo a razão de ser do seu movimento; é o primeiro movente imóvel,
absoluto ou Deus.
4. Como podemos afirmar que o Primeiro Motor imóvel é Deus? Este é Deus
porque move sem ser movido, é absoluto e absolutamente desligado de todo motor e de todo
móvel. Move sem ser movido, isto é, "age sem passar da potência ao ato, mas
permanecendo em ato, ou seja, identificando-se com o próprio agir; e, dado que o agir
depende do ser e o modo de agir segue o modo de ser, o ser que tem por essência o próprio
agir, terá também por essência o próprio ser, e portanto será o ser simplicíssimo e
atualíssimo, o Ser subsistente, isto é, Deus. S. Tomás chega assim à existência de Deus
como Primeiro Motor Imóvel. As características do motor imóvel são as mesmas que todos
atribuem a Deus e somente a Ele.
As conseqüências do fato de haver um Primeiro Motor Imóvel são:
1. O Primeiro Movente imóvel é infinitamente perfeito. Sim, toda mudança implica
imperfeição. Portanto, pelo fato de ser absolutamente imóvel, o Primeiro Motor possui
toda perfeição ou possui a plenitude do ser. Com outras palavras: é Ato Puro.
2. O Primeiro Movente imóvel é espiritual, pois a matéria se desgasta, é essencialmente
imperfeita. Sendo espiritual, O Primeiro Movente deve ser também dotado de
inteligência e de livre vontade, pois estas são propriedades essenciais do seres
espirituais.
3. O Primeiro Movente imóvel é eterno, ou seja, não teve começo nem terá fim, pois a
temporalidade é a medida do movimento.
4. O Primeiro Motor imóvel é todo-poderoso, pois é princípio do movimento do universo
inteiro; por conseguinte, por seu poder está presente a tudo aquilo que ele move ou a
todo o universo.
A segunda via parte do fato de que existem múltiplas causas neste mundo, concatenadas
entre si numa linha de dependência e subordinação: a fruta de uma árvore, por exemplo,
supõe a árvore, a árvore supõe a fecundidade da terra; esta supõe a ação do sol e da chuva;
estes, por sua vez, supõem outros fatores... Já que é impossível o processo ao infinito, é
necessário admitir finalmente uma primeira causa causante e não causada ou a Causa
Absoluta, que é Deus:
CAUSANTE
NÃO CAUSADO
O ABSOLUTO, DEUS
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causada...
causada causante
causada causante
causa causada causante
O mundo físico é composto de seres contingentes. A realidade que vemos, não era e
veio a ser. Ora, se tudo fosse contingente, não haveria começo de ser, nada existiria – o que
é falso. Donde se conclui: ou Deus, o Ser Absoluto, Necessário, não contingente, existe e é a
razão suficiente de todos os demais seres, que são contingentes... ou nada existe.
Deus não recebeu o ser (existência). Ele é o ser (existência). Todos os demais
receberam o ser (existência).
O panteísmo levanta uma objeção. Admitem, sim, um ser necessário, não, porém, um
Deus pessoal (isto é, inteligente e livre, cheio de amor e bondade); o ser necessário seria o
próprio mundo tomado como conjunto e concebido como um ser único e infinito. Panteísmo
vem de pan (= tudo) e theós (=Deus), em grego; tudo (o universo) seria a Divindade,
substância neutra e poderosa.
Ora, o panteísmo é ilógico, pois identifica a Divindade (que, por definição, é perfeita,
absoluta, eterna) com a realidade material (que é imperfeita, contingente e passageira). Com
outras palavras: o todo, que é a soma das partes, não pode ser de natureza diferente das
partes. Ora, o mundo é composto de seres contingentes e limitados. Por isso, o mundo
também é contingente e imperfeito, como cada uma de suas partes; não existe por si mesmo.
Daí concluir-se que a existência do mundo só pode ser compreendida se há um ser existente
por si mesmo, que é Deus.
Este argumento procede do fato de que existem perfeições em graus limitados neste
mundo (existem mais amor, menos amor, mais bondade, menos bondade...). Desta realidade
se deduz a existência de um ser ilimitadamente perfeito, que é Deus. Já Platão (+ 347 a. C.)
propunha tal argumento, quando exortava a alma a amar a beleza, elevando-se da beleza das
cores, das formas do corpo, para a beleza da alma e das belas ações, para a beleza das
ciências... até contemplar a Beleza em si mesma isenta de acréscimo ou diminuição, "bela
em tudo, sempre e em toda parte", "beleza que não reside num ser diferente dela mesma...,
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mas que existe eternamente e absolutamente por si mesma e em si mesma; da qual
participam todas as outras belezas, sem que o nascimentos destas ou a sua destruição lhe
traga a menor diminuição ou o menor acréscimo, nem a modifique em qualquer coisa que
seja" (Banquete 211C).
Conceitos básicos:
a) Uma coisa é perfeita (per facta, acabada) quando nada lhe falta do que convém à
sua natureza, isto é, quando está totalmente atualizada ou em ato. É imperfeita, quando está
em potência para adquirir ulterior atualização. Donde ato, por si, diz perfeição; potência
diz imperfeição, capacidade de perfeição.
b) Uma perfeição pode ser:
== simples (pura), quando o seu conceito diz somente perfeição, sem envolver noção
alguma de imperfeição, de modo que em qualquer hipótese é sempre melhor essa perfeição
do que não a possuir; por exemplo, bondade, sabedoria, justiça, vida...
== mista, quando o seu conceito implica alguma imperfeição; por exemplo,
racionalidade, sensibilidade, corporeidade... A racionalidade só chega à verdade mediante
silogismos, ou seja, de modo lento e sujeito a erros; melhor seria a intuição direta.
Explanação
a) Existem nos seres deste mundo perfeições simples diversamente limitadas: mais
amor, menos amor,... mais bondade, menos bondade...
c) Sendo real a existência de perfeições simples limitadas, real também deve ser a
existência da causa. Tal causa é a própria perfeição existente por si em sua plenitude ou em
grau infinito: a Bondade mesma, a Justiça mesma, o Amor mesmo...
Em conclusão: a quarta via nos leva ao conhecimento de Deus como Ato Puro, Ser
infinitamente perfeito, Existência mesma subsistente. Ora tal é o constitutivo mais íntimo da
natureza divina, a sua essência metafísica, da qual, como de sua raiz, segundo o nosso modo
de entender, se derivam todos os atributos de Deus. Esse Ser Supremo, na quarta via,
aparece como:
== causa exemplar, que todos os seres imitam pelo fato de participarem
limitadamente de suas perfeições;
== causa final, para a qual todos tendem;
== causa eficiente, da qual todos os seres recebem a existência participada.
Tal argumento é também chamado finalista, porque parte da atividade de seres que
agem para um fim, em oposição à atividade casual. É outrossim dito "a prova cosmológica"
(de cosmos = ordem, beleza, universo ordenado). Eis como procede:
a) Quem considera o universo, não pode deixar de nele verificar ordem estupenda e
tendência de múltiplos elementos (por si indiferentes a múltiplas possibilidades de
concatenação) em demanda de um fim bem determinado.
b) Tão maravilhosa ordem, tão segura tendência a um fim supõem exista uma
Inteligência que as tenha concebido e produzido.
c) O Ser Inteligente que, por via destes raciocínios, se chega a descobrir, há de ser
absoluto, ilimitado, incriado, pois a Ele se deve não apenas o ato de dispor em ordem alguns
ou muitos seres que Ele concebe em sua mente (deixando de parte outros seres possíveis),
mas igualmente o de conceber o plano do universo e de cada um de seus componentes.
Essa causa total da ordem natural só pode ser o Autor dessas essências, Aquele que
as tirou do nada e as criou. Por conseguinte, a Inteligência Ordenadora é também a
Inteligência Criadora. Com outras palavras: a Inteligência Ordenadora, para explicar
totalmente a ordem (= ser causa total da ordem), deve necessariamente ser subsistente por si
mesma (não depende d outrem), infinitamente perfeita e criadora, atributos estes que
convêm unicamente ao ser que chamamos Deus.
Assim a ordem do universo é a grande janela aberta sobre o além, pela qual vemos
passar a sombra de Deus: "Deus é o Invisível evidente" (Vitor Hugo). A alguém que pedia
uma prova da existência de Deus, Newton (+1704) indicou o firmamento e disse uma só
palavra: "Vede!".
Objeções
Contra a quinta via se levantam algumas objeções:
1. No universo apontam-se muitas imperfeições e males, que parecem depor contra a
apregoada ordem do mundo.
Não se trata, contudo, no argumento, de saber se o mundo é ou não o mais perfeito
possível. Deus podia ter feito um mundo que nos pareceria melhor: o homem teria asas,
quatro olhos, etc.; mas não o quis, porque criou livremente; escolheu um entre os muitos
mundos possíveis. De resto, a noção de "o melhor mundo possível" é ilógica; não pode
haver um mundo bom em grau superlativo, isto é, em tal grau que não se lhe possa
acrescentar mais bondade, pois o mundo é um conjunto de criaturas limitadamente boas, às
quais sempre se pode atribuir mais bondade; uma série de Perfeições finitas nunca realizará
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a Perfeição infinita; poderá ser uma série quilométrica, mas sempre finita. No mundo atual
as desordens (o mal no mundo, o acaso) se devem não ao Criador, mas às criaturas.
2. O mal no mundo.
a) Notemos, em primeiro lugar, que o mal não é uma realidade positiva, mas uma
carência; é a ausência de um bem devido. Há dois tipos de ausência: a de um bem que não é
devido (a falta de olhos na pedra), e a de um bem devido (a falta de olhos no homem); a
primeira não é um mal, ao passo que a segunda o é. Da mesma forma, as trevas não são algo
de positivo, mas são a ausência de luz.
b) Por conseguinte, o puro mal não existe; o mal supõe sempre o bem como suporte;
é uma carência que sobrevém ao bem. Comparemos entre o si o bombeiro (extintor de
incêndios) e o ladrão: ambos devem ser corajosos, hábeis, sagazes, inteligentes...; a
diferença, porém, está em que no bombeiro tais valores são aplicados a uma finalidade reta
(salvar vidas), ao passo que no ladrão carecem da orientação para a reta finalidade.
d) O mal não tem causa direta. Ele é indiretamente causado por um agente
imperfeito, que seja capaz de falhar em sua atividade. Tal agente só pode ser a criatura;
nunca poderá ser Deus; Este, por definição, é perfeito.
e) Deus não quer impedir o mal decorrente das limitações das criaturas; para tanto
Ele teria que intervir artificialmente e a todo momento, para coibir o exercício das leis
naturais ou da liberdade humana; teríamos então um mundo de marionetes. Por conseguinte,
Deus permite o mal; Ele não o quer, mas deixa que as criaturas o cometam. Todavia Ele
nunca o permitiria se não tivesse recursos para tirar do mal bens ainda maiores. É S.
Agostinho que afirma: "Deus julgou melhor tirar do mal o bem do que não permitir a
existência de mal nenhum" (Enchiridion XXVIII).
Assim o primeiro pecado tornou-se ocasião para que nos fosse dado o Salvador Jesus
Cristo, com uma riqueza de graças nunca antes possuída: "Ó feliz culpa, que nos mereceu
tal e tão grande Redentor!" (Liturgia da vigília da Páscoa). Quando aos demais casos de
tribulação, não nos é sempre possível assinalar os bens que Deus tinha em vista ao permitir
o mal; como quer que seja, cremos que a Providência Divina não falha, mesmo quando
deixa que uma mãe pereça sem ter educado seus filhos ou que uma criança inocente seja
atormentada pela dor. O fato é que já os antigos pagãos reconheciam o valor positivo do
sofrimento ao dizerem "pathos-mathos": o sofrimento é escola.
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3. O acaso
O acaso é o cruzamento contingente, isto é, não necessário, nem previsto, de duas
causas independentes uma da outra, das quais cada uma age em vista de um fim
determinado. Assim, por exemplo, dois amigos se encontram por acaso numa cidade para
onde cada um, sem saber do outro, fora a negócios. Vê-se, pois, que o acaso supõe sempre
duas ou mais causas que agem com ordem e finalidade. Os fenômenos ditos casuais só são
casuais para quem ignora as causas que os produziram; por isto o acaso propriamente não
existe como sujeito real.
De resto, a reflexão e o bom senso recusam a hipótese de que este mundo tenha sido
produzido por acaso.
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II PARTE
A ESSÊNCIA DE DEUS
1. A simplicidade de Deus
O estudo dos atributos ou propriedades que convêm ao Ser Subsistente inicia com a
simplicidade divina.
Simplicidade significa ausência ou negação de qualquer composição. Não é
equivalente à unidade, pois unidade exprime a negação da divisão. A unidade pode ser
unidade de simplicidade – unidade do ente que não tem partes – e unidade de composição –
a unidade do ente que possui princípios ou partes.
Tomás de Aquino considera os possíveis tipos de composição que acontece nos entes
e depois verifica se estas se dão também em Deus. A conclusão a que ele chega é que Deus
é absolutamente simples, isto é, exclui todo os tipos de composição analisados, que são os
seguintes:
1. Em Deus não há composição de partes quantitativas: Deus não é corpóreo;
2. Em Deus não há composição de matéria e forma: Ele é espírito;
3. Em Deus não há composição de substância e acidentes: Ele é Substância sem
acidentes;
4. Em Deus não há composição de essência e existência: Ele é o Ser Subsistente;
5. Em Deus não há distinção entre suposto e natureza;
6. Deus é absolutamente simples.
A profundidade e originalidade destas noções tomistas de ato de ser, de ser como ato
da essência, da distinção real de essência e ser de toda realidade criada e a teoria da
participação – núcleo da filosofia de Tomás – se realiza plenamente na reflexão sobre Deus
como o Próprio Ser Subsistente (Ipsum esse subsistens).
O termo "perfeito" não pode ser aplicado a Deus no sentido etimológico, todavia
pode ser aplicado por extensão àquilo que está em ato completo e não foi feito. É preciso
notar que a perfeição não pode ser atribuída em sentido próprio a Deus se olhamos o
significado etimológico do termo: o que não foi feito parece não poder ser chamado
perfeito. Mas, visto que tudo o que é feito passou da potência ao ato e do não-ser ao ser, se
diz com propriedade perfeito, ou seja, totalmente feito, porque a potência é completamente
reduzida ao ato, de modo tal que não há nenhum não-ser e possui o ser completo. Por
extensão do nome, se diz perfeito não somente o que no processo de produção chega ao ato
completo, mas também o que está em ato completo sem ter sido feito. E neste sentido
dizemos que Deus é perfeito.
Perfeito, portanto, é o que no seu ser atual não tem falta de nada. Por isso se afirma
que o ato por si diz perfeição, e a potência imperfeição. O Ato Puro privado de qualquer
potencialidade será o perfeitíssimo. Todo ser é perfeito enquanto está em ato; ao invés, é
imperfeito enquanto está em potência e, portanto, é privado de ato. O que portanto não tem
nenhuma potencialidade, mas é puro ato, deve ser perfeitíssimo. Deus tem tal característica,
portanto, é perfeitíssimo.
Deus é perfeitíssimo e, além do mais, todas as perfeições dos entes existem nele:
todas as perfeições dos entes (efeitos) se encontram em modo indiviso e em grau eminente
no Ser (causa); tal verdade pode ser provada por diferentes pontos de vista, mas
especialmente a partir da causalidade eficiente, e porque Deus é O Próprio Ser Subsistente.
Considerando a causalidade eficiente afirmamos que em Deus existem todas as
perfeições das coisas, pois é Ele a sua causa efetiva. Quanto existe de perfeição no efeito
deve existir na causa efetiva. Deus é a causa primeira dos entes, portanto "é necessário que
pre-existam nele de modo eminente as perfeições de todos os seres. E enquanto existem em
Deus de modo eminente e indiviso todas as perfeições, estas não podem aumentar. A
criação não acrescenta a Deus nenhuma perfeição; os seres criados têm uma série de
perfeições graduadas e não aumentam a perfeição divina.
Considerando Deus como O Próprio Ser Subsistente afirmamos que a perfeição de
todo ser é proporcionada ao seu ser. E porque Deus é O Ser por essência, não pode faltar
nenhuma perfeição que se encontre nos entes. Deus é o Ser Subsistente, portanto, deve ter
em si a inteira perfeição do ser. Se, por exemplo, um corpo quente não tem toda a perfeição
do calor, isto se deve evidentemente ao fato que não participa em toda a sua intensidade;
mas se existisse um calor em si subsistente, não lhe faltaria nada da sua intensidade.
Portanto, se Deus é o próprio ser subsistente, não pode faltar-lhe nada da perfeição do ser.
As perfeições de todas as coisas pertencem à perfeição do ser, portanto, são perfeitas
enquanto têm o ser em um certo modo. Consequentemente, a Deus não pode faltar a
perfeição de nenhum ente.
As perfeições das realidade finitas pertencem à perfeição do ser. Se o ato por si diz
perfeição, o ato de ser significa a máxima perfeição. O Ser é o perfeitíssimo, dado que se
relaciona a todas coisas como seu ato. Nada tem atualidade senão enquanto é; por isto, O
Ser (Ipsum Esse) é a atualidade de todas as coisas, inclusive das próprias formas.
Consequentemente, Deus, enquanto Ser Subsistente, é perfeitíssimo e possui de modo
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eminente as perfeições existentes nas criaturas; assim que se pode considerá-lo Perfeição
suprema, a própria Perfeição Subsistente.
Deus, enquanto Ato Puro é a bondade mesma: o bem próprio de todo ente é de fato o
ser em ato. Se afirmou precedentemente que um ente é bom enquanto é perfeito. A perfeição
de todo ser é a sua própria bondade. Deus, que é em si mesmo a perfeição máxima, é bom
por essência: o bem não é alguma coisa que se acrescenta ao seu ser, mas se identifica com
o ser. Deus não é somente bom, e sumo bem, mas é o que por essência é bom, ou seja, a
Bondade mesma subsistente.
1. Infinitude
a) Conceitos prévios.
O conceito de infinito é o resultado da reflexão e não da experiência; na ordem
noética (do conhecimento) a noção de infinito pressupõe a de finito, à qual se opõe como
contraditória. Infinito significa falta de limites; indefinido significa que os limites se
estendem continuamente; se prescinde da existência dos mesmos e se diz somente que não
podem ser determinados. Tudo o que existe é finito ou infinito, pois ou tem limites ou não
os tem: no primeiro caso é finito, no segundo, infinito. Se trata aqui de infinito real e não do
conceito matemático de infinito, isto é, aquele que pode ser concebido sem fim, como a
série dos números, ou uma extensão indefinida.
O infinito pode ser considerado em dois modos: segundo o ponto de vista da forma
ou da matéria. O infinito formal significa que a forma ou ato não é limitado pela matéria ou
sujeito no qual se encontra. O infinito material é o que não possui a forma que lhe
corresponde por natureza: é este o infinito em relação à quantidade; assim, enquanto o
infinito formal não tem limites em razão de seu ato, o infinito potencial ou material não tem
limites na própria potencialidade.
A ideia de infinito, por outro lado, como negação dos limites, é uma noção em si
mesma positiva; em efeito, o finito exprime limitação e portanto negação; e o infinito,
enquanto nega o finito, significa alguma coisa de positivo em si, pois duas negações
comportam uma afirmação.
A noção de infinito não pode ser encontrada senão partindo do finito; todavia, a
filosofia moderna desenvolverá os pressupostos contrários a respeito desta observação e
tentará chegar ao finito partindo da ideia do infinito. Como já vimos, para Descartes Deus é
a primeira ideia, que não tem necessidade de uma outra ideia para ser pensada e "com o
nome de Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável"; um ser finito não poderia
ter a ideia de Deus, ser infinito, se este último não tivesse posto neste tal ideia. Deste modo,
Descarte pode afirmar: "tenho, em certo modo, em mim antes a noção de infinito que a de
finito, isto é, tenho primeiro a noção de Deus que de mim mesmo. O caráter teologizante é
uma das principais características da metafísica moderna racionalista e idealista; e, apesar
disto tal metafísica não é contraditória, mas deduzida do primado da subjetividade.
b) A infinitude de Deus.
Deus é o próprio ser subsistente; portanto, Deus é infinito de uma infinitude atual
absoluta. O ato puro não admite potencialidade alguma, não tem em si o menor sinal de
limitação; consequentemente é absolutamente infinito. O ser subsistente não é recebido de
outro, nem se determina em alguma coisa de finito: não é nem uma forma na matéria, nem o
seu ser inere em alguma forma ou natureza, visto que se identifica com o seu próprio ser. Se
deduz, portanto, que é infinito.
Esta tese se fundamenta na afirmação de que o ato, que por si mesmo, significa
perfeição, pode ser limitado somente pela potência que o recebe, ou em outras palavras: o
ato não limita a si mesmo. Portanto, um ato que é puro ato, é pura ausência de limites,
infinitude absoluta.
A infinitude, portanto, é um atributo que pertence a Deus enquanto ele é "o próprio
ser". Por isso, não é preciso dizer que Deus é o seu próprio ser porque é infinito, mas vice-
versa, que é infinito enquanto se identifica com o seu próprio ser.
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Ora, visto que o fundamento da infinitude é o Ser subsistente, é claro que a infinitude
compete somente a Deus; e o Ser subsistente seria infinito mesmo se não existisse nenhum
ente finito.
2. A imensidão de Deus
O atributo "imensidão" exprime a capacidade que Deus possui de ser em todos os
lugares, sem ser medido por estes. A onipresença é, pois, a efetiva presença de Deus em
todo ente: tal propriedade se chama também ubiqüidade quando se quer indicar a presença
de Deus em todos os lugares.
A diferença entre imensidão e onipresença pode ser facilmente compreendida em
base à seguinte consideração: mesmo se não existisse nenhuma realidade finita, Deus,
mesmo não tendo criado nada, seria igualmente imenso, pois não seria limitado por
nenhuma extensão; a onipresença, ao invés, é um atributo que convém a Deus em relação às
coisas criadas.
Deus é imenso porque, enquanto sem extensão e espiritual não é sujeito ao espaço. O
que delimita os entes, o que os "define" e os circunscreve, é a quantidade dimensiva, que
não existe em Deus que é pura simplicidade.
Deus é imenso, ou seja, pode estar em todos os lugares e coisas sem ser circunscrito
por estas, por motivo de sua infinitude no ser e no agir: o seu ser e a sua potência ativa
infinita preenchem tudo, e se estendem a todas as coisas que são ou podem ser, a todos os
espaços, compreendendo-os e ao mesmo tempo transcendendo-os.
3. A onipresença divina
Em relação ao espaço da criação visível, Deus é onipresente, não como contido no
espaço, mas como Causa de todas as coisas: Deus inteiro está em todos os lugares e em
todos os entes, por essência, por potência e por presença, no modo mais íntimo.
A presença por essência de Deus nas coisas depende da participação do ser na
criação. Porque Deus é causa do ser, a sua presença criadora permanece sempre, já que se
não existisse tal permanente ação fundante, os entes cairiam no nada.
Em primeiro lugar, Deus está em todas as coisas não como um acidente, nem como
parte da sua essência, mas como causa, "como o agente está presente naquilo que realiza";
de fato, a força (virtus) do agente está presente no efeito de modo imediato e está unida a
este, porque é próprio da relação causal que todo agente esteja presente unido ao que de
modo imediato realiza, e o toque com a sua força e o seu poder. No primeiro agente, isto é,
em Deus, não se dá nenhuma distinção entre o ser agente e a sua força; consequentemente
ele se encontra unido e presente de modo imediato e necessário em todo seu efeito.
Ora, o efeito próprio de Deus é o ser: Deus causa o efeito do ser nas coisas não
somente quando iniciam a existir, mas também por todo o tempo que o conservam, assim
como o sol continua a causar a iluminação do ar por todo o tempo em que esta permanece
iluminada; consequentemente, deve estar presente em tudo o que tem o ser e segundo o
modo em que o ente singular participa do ser. Mas o ser é o que de mais íntimo há em cada
coisa, o seu ato último, o que de mais profundo está presente em cada coisa. Deus está,
portanto, intimamente presente em todos os entes: segundo a sábia expressão de Agostinho,
Deus é mais íntimo às coisas que estas a si mesmas.
A presença por essência de Deus comporta a presença por potência e por presença.
Se diz que Deus está nos entes segundo a potência, enquanto tudo está submetido ao seu
poder e age por força (virtude) dele. Segundo a presença, enquanto imediatamente ordena e
dispõe cada coisa, e tudo é claramente presente ao seu eterno olhar.
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Uma admirável síntese desta doutrina se encontra na Summa Theologiae, I, q. 8, a.
2.: "Se costuma dizer que Deus se encontra em tudo segundo a essência, a presença e a
potência. Para compreender tal afirmação, é preciso saber que algo se diz ser segundo a
potência naquilo que está submetido ao seu poder, como quando se afirma que o rei está em
todo o reino submetido ao seu poder, sem que ele se encontre neste nem segundo a presença
nem segundo a essência. Se diz que está segundo a presença em todas as coisas que estão
diante de seus olhos, assim como o rei está segundo a presença na sua casa. Se diz que se
encontra segundo a essência naquelas coisas em que está a sua substância, assim como o rei
está em um certo lugar determinado. Dizemos que Deus está por toda parte por potência,
enquanto tudo está sujeito ao seu poder, como se lê no Salmo 138: "Se subo aos céus estás
ali.... Se tomo as asas da aurora e vou habitar no extremo do mar, também ali a tua mão
pousa sobre mim e a tua direita me segura". Por presença, porque tudo o que existe no
mundo está nu e evidente diante de seus olhos. E por essência, enquanto a sua essência é
íntima a todas as coisas. Portanto é absolutamente necessário que todo agente, enquanto tal
agente, esteja unido de modo imediato ao próprio efeito, já que o motor e o movido devem
ser simultâneos. Ora, Deus, é o criador e o conservador de todas as coisas segundo o ser que
lhes é próprio. Portanto, sendo o ser íntimo a todo ente, é claro que Deus está em todas as
coisas segundo a essência, através da qual cria".
Se Deus está em toda parte por essência, presença e potência, lhe pertence,
obviamente, a ubiqüidade: Deus está em todos os lugares: mas está presente não como se
ocupasse um lugar, mas enquanto dá o ser ao lugar. Não se pode esquecer que Deus é o Ser
separado, transcende o mundo e é distinto deste; a onipresença divina é comparável com a
transcendência: Deus está em todas as coisas por essência, potência e presença, como a
causa nos efeitos que participam de sua bondade.
1. Imutabilidade
Todo movimento ou mudança pressupõe em certo modo uma potência passiva, dado
que o movimento é passagem da potência ao ato; mas Deus é Ato Puro sem potencialidade
alguma; por consequência é absolutamente imóvel. Deus não pode sofrer nenhuma mudança
observável no mundo (substancial, geração, corrupção, aumento ou diminuição, alteração,
movimento local) porque o sujeito da mutação é sempre composto, pelo menos de ato e
potência; ora, Deus é simplicidade pura, portanto a Ele compete a máxima imobilidade: esta
é necessária e absoluta e própria somente do Ser subsistente. Somente Deus é absolutamente
imóvel. As criaturas, ao invés, são mutáveis, quanto ao seu fim e à aplicação do seu poder
operativo da realidade múltipla (criaturas espirituais); e também quanto ao seu ser
substancial (criaturas materiais). Além disso, todas as criaturas, tanto as espirituais quanto
as materiais, são mutáveis enquanto do poder de Deus depende o ser e o não ser de toda
realidade criada. De uma parte, Deus somente pode dar o ser, dado que conserva-las
significa comunicar-lhes continuamente o ser; por isto, se Deus suspendesse a sua ação
criadora, todas as coisas tornariam ao nada. Consequentemente, assim como era dependente
do poder do Criador que as coisas, antes de ter o ser em si mesmas, recebessem o ser,
depende também do poder do Criador que cessem de ser agora que já tem o ser. Portanto,
todas as coisas são mutáveis em virtude do poder de um outro, isto é, de Deus, enquanto Ele
pode produzi-las no ser do nada, e pode reduzi-las do ser ao nada.
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A completa imutabilidade divina não é ausência de vida ou passividade; não
imobilidade de uma realidade inerte, mas ao contrário é plenitude de vida e plenitude de
ação, enquanto se diz também que é vivente quem atuo a si mesmo em ordem das próprias
operações, mesmo se não através de um movimento, como no caso de desejar e sentir são
ações vitais. Deus age em grau sumo não por outro, mas por si mesmo, enquanto é a
primeira causa agente; portanto a Ele compete o viver em sumo grau. Deus é atividade
vivente – é Vida – mas imutável. Por outro lado, os desígnios divinos são imutáveis: Deus
não tomas "novas" decisões, nem muda os seus projetos.
De um modo ou de outro, a imutabilidade divina foi negada por aqueles pensadores
que negam a transcendência de Deus. Uma boa parte da filosofia moderna e contemporânea
não consegue conceber a imutabilidade divina, enquanto considera que as relações entre
Deus e o mundo não podem ser explicadas pressupondo a "estaticidade" de um Deus
imóvel. Neste sentido, Deus não é, mas se torna. O Deus dialético hegeliano é um Deus que
se torna "sofredor" portanto, privado de imobilidade. Neste sentido, a influência do Deus
dialético de Hegel é muito forte na teologia contemporânea.
2. A eternidade de Deus
O conceito de eternidade se pode entender a partir do conceito de tempo. Este é
definido como o número do movimento segundo um antes e um depois. Implica a medida
do movimento uma sucessão de partes. A noção de tempo está ligada à de movimento; além
do mais, o tempo pode medir somente o que tem princípio e fim, porque em tudo o que se
move é necessário considerar um início e um fim. Se dá o tempo somente há movimento.
A medida do que é imóvel se denomina eternidade. O ser absolutamente imóvel é um
ser que carece de sucessão e que não tem princípio nem fim. Assim sendo, o conceito de
eternidade se pode formar a partir de duas considerações. Em primeiro lugar, porque o
eterno é interminável, isto é, não tem princípio nem fim; além disso, porque a eternidade
não tem sucessão, enquanto nesta tudo existe ao mesmo tempo. Deus como completamente
imutável não é medido pelo tempo: é eterno. Não se trata, portanto, de um tempo ou duração
infinita, mas de algo que não pode ser medido pelo tempo.
A eternidade divina que negativamente indica atemporalidade, positivamente
exprime a auto-posse perfeita do Ser. A duração da eternidade é inteiramente simultânea;
por isso Agostinho afirmava que na eternidade tudo está presente, diferentemente do tempo,
que não pode nunca ser verdadeiramente presente. O tempo diz respeito à criatura; melhor, é
criado com a criação.
Deus não é somente eterno, mas é a sua própria eternidade; nenhuma outra coisa se
identifica com a própria duração, porque se distingue do próprio ser. Mas Deus é um ser
uniforme, pelo qual a própria essência se identifica com a própria eternidade. O ser eterno é
uma propriedade exclusiva de Deus.
Deus é a sua eternidade porque é imutável. A existência da eternidade divina é, até a
um certo ponto, explicável; mas é difícil compreender em que consiste a eternidade: neste
sentido a via remotionis (a via da remoção) exprime aqui muito pouco dizendo que em Deus
não há início nem fim, não se dá sucessão, nem passado nem futuro, etc. Se a própria noção
de tempo é difícil de explicar – "se ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicar a quem
me pergunta, eu não sei", escreveu Agostinho – com maior razão isto vale para a noção de
eternidade. No fundo, tal auto-posse perfeita do Ser, que exprime a eternidade, não é outra
coisa que o modo próprio da "duração" divina, a medida do ser permanente, a duração do
ser completamente imóvel, do próprio Ser subsistente. A plenitude da vida divina é um puro
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presente sempre em ato, é o "agora" absoluto, enquanto o "agora" do tempo é um agora
fluente.
2. A unicidade de Deus
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Dizer que Deus seja o Uno significa que ele seja uno como o são também os entes
(todo ente é uno), mas que a Unidade divina, a unidade do Próprio Ser subsistente, comporta
a unicidade: Deus é Uno e Único. A tal tese se opõem o politeísmo (admite muitos deuses),
o dualismo (admite dois deuses: o princípio do bem e o princípio do mal) e o henoteísmo
(admite um deus supremo e vários deuses inferiores).
A unicidade de Deus pode ser demonstrada facilmente com as seguintes
considerações:
a) Deus é uno e único pela sua total simplicidade: o que pelo qual Deus é Deus
(natureza divina ou divindade) é o que pelo qual Deus é este Deus, separado de todo o resto.
O que em virtude pela qual uma coisa singular é justamente esta coisa, de nenhuma maneira
pode comunicar-se a outros. Por exemplo, aquilo pelo qual Sócrates é homem pode ser
condividido por muitos; mas aquilo pelo qual é este homem determinado somente um pode
possuir. Consequentemente, se o que pelo qual Sócrates é homem fosse também o que pelo
qual é este homem, assim como não poderiam existir muitos Sócrates, não poderiam
também existir muitos homens. E este é o caso de Deus que, como vimos, se identifica com
a própria natureza: o que pelo qual é Deus é o mesmo pelo qual é este Deus. É portanto
impossível que existam muitos deuses.
b) Pela sua infinita perfeição não recebida de outro. Este raciocínio, afirma Tomás,
obrigou alguns filósofos antigos a admitir a existência de um único Deus. De fato, Deus
encerra em si toda perfeição do ser; se existissem mais deuses, um destes teria alguma coisa
que faltaria ao outro, sem como privação seja como perfeição, e consequentemente não seria
absolutamente perfeito. É impossível, portanto, que existam mais deuses.
c) Pela unidade do mundo. Vemos que todas as coisas existentes são ordenadas entre
elas, dado que algumas se servem de outras. Mas coisas tão diversas não seriam
coordenadas em um mesmo projeto, se uma realidade unitária não as ordenasse, porque em
toda multiplicidade um somente impõe a ordem melhor que outros: o uno, de fato é de per
se causa da unidade, enquanto os muitos não causam a unidade se não acidentalmente, isto
é, enquanto em um certo modo formam uma unidade. Portanto, porque o que ocupa o
primeiro lugar deve ser o mais perfeito enquanto tal e não acidentalmente, aquele primeiro
que submete todas as coisas à mesma ordem, deve ser necessariamente uno e único; e este é
Deus.
d) Só pode existir um ser necessário per se. Se existissem dois, de fato, seria preciso
admitir que se distinguem por alguma coisa que se acrescenta a um dos dois (ou aos dois), e
então um destes, ou todos os dois, seriam compostos. Mas nenhum ser composto é
necessário por si mesmo. A essência de um ser necessário por si mesmo é o seu próprio ser.
Se assim não fosse, o ser necessário receberia o ser de um outro, o que é impossível. Não se
pode, portanto, admitir senão um só ser necessário por si mesmo. A unicidade de Deus
comporta também que o Absoluto seja distinto de tudo o que não é ele, mas não anula nem
abaixa o valor dos entes.
3. O Ser e a beleza
a) A beleza tem o mesmo fundamento do bem; todavia, esta se refere à faculdade
cognoscitiva: alguma coisa é bela na medida em que a sua contemplação agrada. De outra
parte, a beleza, como a bondade, se fundamenta no ser, mas através da forma. A beleza é
uma variante do bem. Afirma Tomás (S. Th. I. q. 5, a. 4, ad 1): "Em um sujeito
determinado, a beleza e a bondade são uma mesma coisa, pois se fundam numa mesma
realidade, isto é, na forma, e por isto o bem se considera também belo. Diferem contudo no
seu conceito, pois o bem em sentido próprio se refere ao apetite, dado que é bom aquilo ao
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qual todas as coisas tendem. Ao invés, o belo se refere à faculdade cognoscitiva; de fato se
dizem belas as coisas que vistas, agradam. Por isto a beleza consiste na devida proporção, já
que os sentidos experimentam predileção pelas coisas devidamente proporcionadas".
b) Se considera a beleza também como harmonia: unidade na variedade. Em Deus há
uma riqueza infinita de perfeições: todas as múltiplas perfeições do mundo se encontram
Nele em plenitude. Mas se existem em Deus todas as perfeições das coisas (reais e
possíveis), estas se encontram Nele num estado de máxima unidade, porque se identificam
com a sua essência, que é o Ser. Deus é, portanto, suma beleza e suma harmonia.
c) Porque Deus é sumo bem e suma beleza, no conhecê-lo e no amá-lo consiste a
máxima felicidade possível para uma criatura espiritual, dado que todas as perfeições que
encontramos nas criaturas e que nos atraem se encontram em Deus elevadas ao grau infinito,
e além do mais privadas de potencialidade e imperfeição.
6. A transcendência de Deus
Deus é simplicidade absoluta, infinitamente perfeito, imutável e eterno, infinito e ao
mesmo tempo onipresente, uno e único. Não tem em si mesmo nenhum tipo de composição;
nem entra em composição com outros seres; se distingue de cada um dos entes do universo
e do seu conjunto chamado mundo. Deus transcende o mundo: se distingue como o que é
infinitamente mais perfeito.
III PARTE
O AGIR DIVINO
Depois de ter estudado a substância divina, passamos agora a considerar a sua ação.
Depois de considerar o ser divino em si mesmo e as propriedades que procedem do Ser
Subsistente é preciso estudar o agir divino, as divinas operações. Esta ordem depende do
fato que o agir segue ao ser, e o modo de agir ao modo de ser. Ora, porque algumas
operações ficam naquele que as exerce, enquanto que outras passam para efeitos externos,
vamos estudar primeiro a ciência e a vontade divinas (dado que os atos do intelecto e da
vontade permanecem naquele que os exercita), e em seguida o poder (a onipotência) de
Deus, que é considerada como princípio das operações divinas que passam a efeitos
externos.
Quanto à onipotência divina esta compreende duas teses fundamentais: a participação
transcendental do ser na criação (com as suas conseqüências: conservação e causalidade da
Causa primeira nas causas segundas), e a providência divina, com os seguintes pontos: -
Deus é causa eficiente do mundo: a participação transcendental do Ser na criação; - a
conservação; - a moção divina no agir criado; - a providência e o governo divino do mundo.
1. A ciência divina
1. Deus, inteligência infinita
Um ente é inteligente pelo fato de ser imaterial, dado que o conhecimento consiste
em possuir intencionalmente – não fisicamente – a forma do conhecido. O que se conhece
está presente ao cognoscente em um modo imaterial, espiritual. A inteligência é uma
perfeição própria da imaterialidade, porque as formas das coisas são compreendidas pelo
intelecto abstraídas da matéria. Portanto, se as formas são conhecidas emquanto imateriais,
um ser será inteligente porque imaterial. Por conseqüência, a inteligência está em Deus, que
é imaterialidade suma. "Os seres dotados de conhecimento se diferenciam dos que não o
são, porque estes últimos não possuem senão a própria forma, enquanto que os primeiros
podem ter a forma dos outros, já que a forma do conhecido está no cognoscente" (S. Th., I,
q. 14, a. 1).
Daí é evidente que a natureza do ente que não conhece é mais restrita e limitada; ao
passo que a natureza do cognoscente tem uma maior amplidão ou extensão. O que limita a
forma é a matéria, e por isto temos afirmado que quanto mais imateriais são as formas, tanto
mais estas se aproximam a uma certa infinidade. Portanto, é evidente que a imaterialidade
de um ser é a razão pela qual é cognoscente, e o modo da sua imaterialidade corresponde ao
modo da sua inteligência; assim, diz Aristóteles, as plantas não conhecem dada a sua
materialidade, mas o sentido já é capaz de conhecer porque recebe as formas sem a matéria,
e o intelecto o é muito mais, porque é separado da matéria e menos misturado com esta (III
De anima). Portanto, visto que Deus, como vimos, está no vértice da imaterialidade, deve
ter também em grau supremo o conhecimento".
A inteligência de Deus pode ser provada também a partir do fato que todas as coisas
são finalizadas, e porque o fim é o primeiro na intenção, este (o fim) deve estar presente
intencionalmente, isto é, numa inteligência: Deus é este ser inteligente que dirige todas as
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coisas ao seu fim (como se viu na quinta via da demonstração da existência de Deus). E
porque a inteligência é uma perfeição, e em Deus estão as perfeições de todas as coisas,
Deus deve ser inteligente. E porque as perfeições se encontram em Deus de modo excelso e
infinito, a inteligência divina é infinita: não há nada de inteligível que seja desconhecido a
ela; mas ela conhece tudo em modo total (mediante uma compreensão completa). A ciência
de Deus é universal; se estende a todos os objetos e compreende tudo quando em cada um
destes há. O conhecimento humano é necessariamente seletivo e parcial. O espírito humano
seleciona, consciente ou inconscientemente, determinados objetos ou aspectos particulares
dos mesmos, deixando todo o resto na penumbra ou fragmentariedade... O saber divino não
pode não pode nem aumentar, nem diminuir, diferentemente do conhecimento humano que
se enriquece com a pesquisa ou se perde por causa do esquecimento. A infinita inteligência
divina é absoluta, completamente livre e desligada de qualquer objeto conhecido; não
necessita de nenhum objeto fora di para conhecer: o objeto primário da ciência divina é,
portanto, Deus mesmo.
De um modo ou de outro, os grandes filósofos consideraram Deus como dotado de
conhecimento ou sapiência, tanto na antiguidade como na idade moderna. Há algumas
exceções, como Schopenhauer, que negou que se possa considerar Deus como dotado de
intelecto.
2. A vontade divina
1. O Ser divino é "volens": existência e natureza da vontade divina
Em todo ser inteligente há vontade, porque esta segue necessariamente ao intelecto.
Toda natureza tende ao próprio bem: àquilo conhece como tal quando não o possui, e até
que o possua, como aquilo em que repousa e aquieta o próprio desejo. Tal tendência ao bem
nos seres que carecem de conhecimento se chama apetite natural. Afirma Tomás: "Do
mesmo, portanto, modo deve comportar-se a natureza intelectual em ordem ao bem
conhecido através da forma inteligível, ou seja, possuindo-o repousará neste e não
possuindo o buscará. Ambas estas funções pertencem à vontade; por isso todo ser
inteligente deve ter também a vontade, assim como todo ente que tenha os sentidos não
pode carecer do apetite animal" (S. Th., I. q. 19, a. 1). Neste texto Tomás prova que Deus é
volens em base ao princípio que a vontade segue ao intelecto; todavia, se poderia chegar à
mesma conclusão através da simples consideração que a vontade, enquanto perfeição pura,
não pode faltar a Deus. Se a perfeição da vontade se apresenta em alguns entes, deve dar-se
também em Deus, causa do ser e de todas as perfeições que derivam do ser (quarta via).
Além disso, porque o amor é o primeiro ato da vontade, se deverá afirmar que Deus é Amor.
Como já vimos a respeito do conhecer, também o querer de Deus se identifica com o
seu Ser. A vontade divina não pode ser uma potência de querer, mas uma Vontade atual: em
Deus o ato de vontade é o mesmo ato de ser, a vontade de Deus é a sua própria essência. A
total identificação entre Ser e Querer pode ser mostrada também por via negativa: se a
vontade divina fosse de fato alguma coisa de acrescentada ao ser de Deus, constituiria uma
composição com Ele, que é, ao invés, simples; se fosse alguma coisa acrescentada, os dois
elementos estariam em relação como potência ao ato, ao passo que Deus é Ato Puro. Além
disso, todo agente age enquanto está em ato; Deus que é Ato Puro age por essência. A sua
Vontade é o seu Ser.
Em Deus há identidade perfeita entre Ser, Entender e Querer: Como o conhecer é
perfeição do cognoscente, assim o querer é perfeição do sujeito que quer: ambas as ações
são imanentes ao agente, e não possam a um paciente, como a ação do esquentar. Mas o
conhecimento de Deus, como vimos, é o seu Ser: de fato, sendo o ser divino per se
perfeitíssimo, não se pode acrescentar alguma perfeição; conseqüentemente, a sua vontade é
a sua própria essência.
b) Deus não ama em modo necessário, todavia, o que se distingue dele. Ou seja, Ele
não ama as criaturas porque estas são boas, mas estas são boas porque Deus as ama. Deus é
causa da bondade dos entes, e portanto, do seu ser. "Deus causa os entes através de sua
própria vontade e não por necessidade de natureza".
A prova de que Deus é causa dos entes está baseada na relação entre efeito e causa.
De fato, "os efeitos procedem das causas segundo o modo em que preexistem no ser, dado
que todo agente produz algo semelhante a si. Ora, os efeitos preexistem nas suas causas
segundo o modo de ser da causa; e portanto, porque o ser e o conhecer divinos se
identificam, os efeitos preexistem em Deus de modo inteligível. Portanto, estes procedem
dele em modo inteligível, e conseqüentemente através da vontade, já que a inclinação a
fazer o que o intelecto concebe é própria da vontade. Portanto, a vontade de Deus é a causa
dos entes". Para compreender esta última parte do argumento é preciso ter presente que o
intelecto não realiza nenhum efeito senão mediante a vontade, cujo objeto é o bem
conhecido; o intelecto divino traz unido a si a vontade.
c) A vontade de Deus, portanto, é causa dos entes, mas porque Deus age justamente
através da vontade e não por necessidade da natureza, Ele não quer as criaturas de modo
necessário, mas livremente, pois a bondade das criaturas na acrescenta à infinita Bondade
divina: "Dado que a bondade divina é perfeita e pode subsistir sem os outros seres, os quais
não podem acrescentar-lhe nenhuma perfeição, não é por nada necessário que Deus queira
realidades diferentes de si". Deus não quer os seres diferentes de si em modo necessário,
mas livremente; todavia, uma vez que quis, não pode não os querer: os quer com
necessidade condicionada pela sua vontade de criá-los.
Espinoza negou que Deus queira os seres distintos de si de modo livre. Segundo o
panteísmo espinoziano, da natureza divina seguem necessariamente infinitas coisas em
infinitos modos, as coisas não poderiam ter sido produzidas por Deus em modo diverso de
como foram feitas; o querer divino, para Espinoza, é necessário: não pode não querer as
coisas. Deus, portanto, não age através de uma vontade livre; não tem a capacidade de
escolher, age por necessidade da natureza. No pensamento de Espinoza a perfeita imanência
é realizada graças à identificação de intelecto e vontade e de vontade e liberdade; e porque
esta última não consiste em outra coisa senão na simples necessidade da própria natureza, o
espinozismo chega ao conceito contraditório de livre necessidade.
Uma posição oposta a esta sustentou Descartes. Para ele a vontade divina é
absolutamente livre e tudo depende dela. O querer divino não tem nenhum limite: poderia
criar um outro mundo com características diferentes do nosso, e as essências das coisas, as
verdades eternas e morais poderiam ser diferentes se Deus assim estabelecesse; as essências
dependem da vontade de Deus, não do seu intelecto. O racionalismo cartesiano se torna
voluntarismo. Tudo depende do arbítrio divino.
Quando uma vontade muda? Tão logo inicia a querer o que antes não queria e cessa
de querer o que antes queria; mas tais mudanças não podem dar-se senão onde se dá uma
mudança de conhecimento ou nas disposições do sujeito que quer. A razão disto depende do
fato que, sendo o bem o objeto da vontade, esta pode mudar somente em dois modos, ou
seja, ou porque alguma coisa começa a ser ou cessa de ser um bem para a vontade, ou
porque o intelecto começa a conhecer que é um bem o que antes ignorava ser tal. Ora, em
Deus estas duas possibilidades devem ser excluídas, dado que Deus e o conhecimento
divino são absolutamente imutáveis; conseqüentemente deve ser tal também a vontade. A
razão de fundo disto deriva do que já comentamos precedentemente: as coisas criadas
começar a existir por causa da vontade divina, e não tendo esta como fim. Portanto, quando
se diz que Deus "se arrepende", etc..., tal afirmação deve ser entendida em sentido
metafórico, por analogia com o modo de agir do homem.
3. A onipotência divina
1. Existência da potência ativa em Deus
A existência em Deus da potência ativa pode ser provada pela conclusão das cinco
vias da demonstração de sua existência. Deus é o Motor imóvel, a primeira Causa
incausada, etc... e o princípio do movimento ou o ato de causar não se produzem sem uma
efetiva operação, que implica uma potência (no sentido de poder).
A potência ativa é definida justamente como o princípio do movimento ou mudança
em um outro enquanto outro; e é este o significado mais comum do termo potência, isto é,
capacidade de operar. Enquanto a capacidade de receber ou sofrer a ação de um outro se
denomina potência passiva. A potência ativa é o princípio de agir em outro; a passiva é o
princípio de ser modificado por outro.
Um ente é ativo na medida em que está em ato; a potência ativa depende do grau de
atualidade de um ente. Ora, Deus é o ser em ato, portanto, também potência ativa. Deus é
Ato Puro, portanto, ativo: nele há uma potência ativa. E pela própria definição de potência
passiva – sofrer modificação – se conclui que esta não existe em Deus.
Em Deus não pode faltar a potência ativa, pois esta é uma perfeição e Deus encerra
em si todas as perfeições. Ora, perfeição é sinônimo de ato; por isso, o ato de ser é a
perfeição das perfeições e tudo o que age, age enquanto está em ato. Por este motivo, Deus,
Ato puro de ser, é a perfeição máxima ao qual convém o mais alto grau de potência ativa.
3. Deus é onipotente
A potência ativa de Deus, considerada na sua extensão, enquanto nada foge dela, se
denomina onipotência.
Todo ser produz algo semelhante a si; Deus, Ser infinito, compreende em grau sumo
a perfeição de todo ente; e porque todo ente tem a perfeição do ser, todo ente cai sob a
potência de Deus. Tudo o que pode ser, pode ser efeito de Deus; a onipotência de Deus se
estende a todo o âmbito do possível em sentido absoluto, ou em outras palavras, ao
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absolutamente possível. Que Deus possa fazer todo o possível em sentido absoluto se deduz
do fato que a sua potência é infinita.
A única coisa que Deus não "pode" é o que não tem razão de ente, que repugna a
razão de ente absoluto. Deus não pode fazer o que é absolutamente impossível, ou seja,
aquilo que comporta contradição metafísica. Mas que não o possa fazer não significa que a
sua potência ativa não seja infinita, isto é, se trata de algo impossível não pela falta de poder
ativo, mas pela impossibilidade da coisa mesma. Portanto, não se deve deduzir que Deus
não pode fazer algo, mas que este algo não pode ser feito.
O poder de Deus se estende a tudo o que não implica contradição. A contradição é
não-ser, e portanto, não é uma das possíveis participações de Deus. O contraditório (por
exemplo: que o que existiu não tenha existido) não é compreendido na onipotência divina.
A onipotência divina não é restrita aos efeitos atualmente produzidos, mas pode fazer
coisas diferentes daquelas que faz: pode realizar o que não fez e que não fará.
54
4. A criação
1. Introdução
O termo "criação" exprime, no seu sentido mais radical, a ação produtora por
antonomásia, mediante a qual Deus produz as coisas do nada (creatio ex nihilo). Para
compreender o significado deste conceito, é preciso separá-lo das outras acepções ou termos
e resolver os equívocos que tal vocábulo possui.
O uso do termo criação é usual quando se indica a produção humana de um ente a
partir de alguma coisa existente em precedência (por exemplo: criação artística ou prática);
além disso, "se fala de criar uma associação, de imaginação criadora, de psicanálise dos
processos criativos, de literatura criacionista, etc... Evidentemente nenhumas dessas
expressões se refere a um atributo que seja específico de Deus, já que com estes se
consideram atividades que o homem pode exercer, ou seja, aquela que produz uma
novidade, que repete o já feito. Resumindo, a palavra "criação", nestes casos é sinônimo de
"inovação". Somente Deus pode fazer alguma coisa sem precisar de materiais disponíveis,
que sirvam, pela sua plasticidade, a receber uma nova forma. O homem, ao contrário, se
limita a reformar uma realidade já existente, isto é, se limita a dar uma forma nova a um
ente que lhe está à frente, modelável, maleável, disponível à vontade e ao poder humano de
transformá-lo.
O poder criador do homem implica sempre como pressuposto, em toda sua
manifestação algo de pré-existente; por isso se diz que sempre se trata de um criar relativo;
enquanto o criar absoluto, que é próprio de Deus, é um criar sem nenhum pressuposto. Não
se pode iniciar a compreender o conceito metafísico de criação se não se inicia a distingui-lo
radicalmente de qualquer outro tipo de produção, dado que a criação realizada pelo
Absoluto não é nem a estruturação de algo preexistente, nem informação de uma matéria
preexistente: é produção do nada.
A criação não é, portanto, edução, isto é, o agente extrai a forma inserida na matéria
passiva. A criação também não é emanação: ou seja, o agente extrai de si um ser semelhante
(o resultado desta produção de tipo emanativo pode ser ou algo substancialmente ligado ao
agente, ou algo não necessariamente ligado a ele); o que emana é da mesma natureza do
princípio do qual procede, é seu efeito necessário, não é outra coisa senão um
desdobramento da riqueza do princípio do qual procede.
A criação também não é uma processão, ou seja a comunicação de uma natureza
imutável a uma outra pessoa; com este vocábulo se explicam as relações das Pessoas divinas
na Trindade.
A criação não é, portanto, nem processão, nem edução, nem emanação, nem geração,
nem transformação, nem qualquer outro tipo de produção humana. A criação é a produção
divina de alguma coisa a partir do nada.
Antes de aprofundar a metafísica da criação até colher o seu significado mais próprio
é preciso demonstrar a realidade da criação.
3. A natureza da criação
a) A criação do ser é criação do nada. O efeito próprio da causalidade divina é o ser
de todo ente. A criação diz respeito propriamente ao ser da coisa; e por isto se diz no livro
De Causis, prop. VIII, que o ser se produz por criação e as outras coisas, ao invés, por
informação. Deus pode ser chamado Criador justamente porque dá o ser à criatura. Pertence
à razão específica da criação a produção do ser em modo absoluto, e não enquanto isto ou
aquilo. O ser é, por assim dizer, o ponto de contato entre o Ser por essência e os entes por
participação, posto que o efeito da causalidade divina criadora, é o ser de todo ente. O ser é
o termo adequado da causalidade divina. "O primeiro efeito de Deus nas coisas é o ser,
porque todos os outros efeitos o pressupõem e sobre este se fundam".
Se a influência do ser é o que caracteriza a criação, a conclusão é que a criação
divina é produção ex nihilo, dado que fora do ser não há nada que tenha o ser (o ser não é
um conteúdo, mas o ato de todo ato; em sentido próprio, o ser não tem uma essência, mas é
a essência que tem o ser); nem há nada precedente ao ser, pois não há um termo a partir do
qual possa ser feito, dado que o ser está implicado em tudo o que existe. O objeto próprio da
criação é o ser; a produção do ser ex nihilo se chama criação. "Quanto mais universal é uma
causa, tanto mais universal é o seu efeito... Toda causa que faz ser alguma coisa em ato,
pressuposto o que está em potência àquele ato, é causa particular em relação a uma causa
mais universal. O que não diz respeito a Deus, dado que é Causa primeira e, portanto, não
tem necessidade de matéria para a sua ação. Conseqüentemente, lhe é próprio produzir as
coisas no ser a partir do nada, que se chama criar".
b) Essência, ser e criação. Porque a essência sem o ser correspondente não é nada,
não somente o ser mas também a essência deve dizer-se criada: "Deus, enquanto dá o ser,
produz o que recebe o ser". Nem mesmo a essência ou qüididade preexiste ao ser, pois sem
este (o ser) esta não é. Todavia, não se trata de uma espécie de dupla produção, como se a
criação fosse, pela criatura, o resultado de duas ações divinas, uma pelo ser e outra por
essência. Não são duas "coisas" criadas que se unem, mas um ser (participação, semelhança
parcial, do Ser de Deus) que, justamente porque participado, é recebido em uma essência; é
ato de uma determinada potência (essência) que limita este ato.
Isto não significa, todavia, que a essência seja simples negatividade, já que é ato
(positividade metafísica) em nível formal. A essência dos entes não deve ser entendida
como negatividade, nem como privação ou limite privativo do ser; a positividade da
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essência deve ser salvaguardada: esta comporta, de fato, um exercício determinado,
mediato, da perfeição do ser.
Não é, contudo, inútil insistir sobre o primado do ser sobre a essência, em ordem a
uma correta compreensão da metafísica da criação. Tomás de Aquino diz que, justamente
porque à essência é atribuído o ser, não se pode reconhecer somente a este último, mas
também à essência, de ser o termo do ato criativo. A participação, porém, é referida
diretamente ao ser, porque uma criatura sem ser é nada, a não ser no intelecto do Criador,
onde não é uma criatura, algo diferente da essência criadora. A essência sem o ser é nada:
isto indica que a essência não pode ser concebida sem fazer referência ao ser, que se
constitui, portanto, como o objeto primário da ação de criação. Quando se afirma que antes
das coisas criadas há o ser não se quer dizer que a realidade criada é somente ser: de fato, é
criado o tudo (o ente, composto de essência e ser), mas a criação tem essencialmente como
termo de referência o ser mesmo da coisa criada, e através do ser, a coisa (essência). A força
de discursos racionais e abstrações, somos fortemente tentados – na história da filosofia as
quedas foram quase contínuas – de conceber as essências sem referência ao ser, como idéias
puras (até mesmo eternas!). Para Tomás de Aquino, ao contrário, "a essência não designa
alguma coisa que possa ser entendida independentemente da sua referência ao ser que é o
seu ato. O conceber a essência como uma realidade em espera de receber, quase do externo,
a existência, e que portanto em um certo sentido reclama tal existência da bondade divina, é
um erro crasso". Isto aconteceu toda vez que se considerou a essência como o elemento
primordial, o que, de outra parte costuma acontecer quando o ser como ato é reduzida à
factum, à existência.
c) Criação ativa e criação passiva. A criação pode ser entendida como ação realizada
por Deus, e como efeito consequente desta ação: no primeiro sentido se denomina criação
ativa; no segundo caso toma o nome de criação passiva.
A criação ativa ou ação de criar é Deus mesmo: não se diferencia da sua causa
criadora. O ser do poder de Deus é idêntico a este poder. Deus não passa da possibilidade de
ser dotado de potência criadora ao ato de possuí-la, nem da potência de causar ao causar em
ato. Ambas as passagens ou mutações são de todo incompatíveis com o Ser que é Ato Puro.
A onipotência divina é totalmente ativa: atividade pura e absoluta. Por isto, a ação de criar é
exercida por Deus sem que aconteça nele nada que o distinga desta. A ação criadora de
Deus é Deus mesmo, porque a sua ação é o seu ser; não se trata, portanto, de alguma coisa
que emane ou flua de Deus: neste sentido se deve dizer que a criação é incriada. A criação
ativa é o próprio Ser Subsistente.
A criação, considerada em sentido passivo, é o efeito resultante: o criado. Como
vimos no parágrafo precedente, Deus dá o ser à criatura tornando-a dependente. Por isto, na
criação, considerada do ponto de vista do criado, existem dois aspectos que não devem ser
esquecidos: a derivação completa da criatura respeito ao Criador; e a dependência absoluta
do criado respeito a Deus. Dito com uma só expressão que resuma estas duas características
essenciais: dependência no ser. Deus dá o ser à criatura tornando-a dependente, e por isso
não é alguma coisa de adjacente às coisas, mas intimamente presente. Todavia, o ser das
criaturas é por elas possuído como próprio, já que este não é pura facticidade, enquanto a
criação não pode ser considerada "um simples factum nem um estado de precariedade
entitativa; é uma situação estável e positiva, como estável e positivo é o ato de ser
participado, que constitui o fundamento de toda realidade. O "ser criatura" não é um ser
jogado na existência, não se reduz a uma mera efetividade diretamente resultante de um
decreto arbitrário, mas reside na estrutura mais profunda do real. O ser é "próprio" do ente,
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de toda criatura, porque a esta foi dado por Deus; e ao mesmo tempo é impossível que se
desvincule de sua causa transcendental: esta dependência absoluta e radical constitui a
essência da criação; além disso, Deus não pode fazer que a criação não dependa dele. Por
isso, Tomás de Aquino, em algumas ocasiões, define a criação como uma pura dependência.
Pois é criação do nada e nesta o ser é produzido sem nenhum pressuposto, a criação se
realiza sem movimento (antes da criação não há nada que possa "mover-se") e, portanto,
sem sucessão. "A criação não é, portanto, um movimento, mas a dependência do ser criado
respeito ao princípio pelo qual é constituído".
d) A relação de criação. Como vimos, a criação não pode ser considerada como um
movimento. Não há uma mudança no Criador. Há somente a dependência ou relação
daquilo que recebeu o ser respeito àquele do qual recebeu.
Tanto a criação ativa quanto a passiva comportam uma relação; todavia se trata de
uma relação diferente em cada um dos casos. No primeiro caso esta designa a ação de Deus,
que é a sua essência, em relação à criatura: esta não é uma relação real, mas somente de
razão. No segundo caso, visto que a criação não é um movimento, não se pode dizer que
seja alguma coisa no gênero da paixão, mas no gênero da relação.
Todos os entes são efeitos de Deus, que é a sua Causa de ser; por isso, estes
dependem totalmente Dele. Dada esta origem e dependência, as coisas se dizem relativas a
Deus. É evidente que se alguma coisa se relaciona com outro, este último deve dizer-se
relativo ao primeiro; portanto, também Deus está em relação com as coisas. De Deus, de
fato, se predica alguma coisa em relação às criaturas.
As relações, como sabemos, podem ser reais ou de razão. Relação real é a que se dá
nas coisas; e relação de razão se dá quando a referência (o puro "referir-se a" em que
consiste a relação) é colocado na razão. Vejamos agora o modo em que é preciso entender a
relação entre as criaturas e o Criador.
Em primeiro lugar, a referência, "em respeito" ou relação de Deus com as criaturas.
A relação de criação existente entre Deus e as criaturas não pode ser de maneira alguma
real, pois, conforme definimos a relação real, nesta os extremos da relação, o sujeito e o
termo, são simultâneos e simultaneamente conhecidos. Aplicado a Deus, isto colocaria em
Deus uma referência obrigatória em relação às criaturas, isto é, uma referência a estas
(independentemente do tipo de referência: segundo o ser, a quantidade, a qualidade, a ação
ou a paixão); se a relação de Deus para com as criaturas fosse real, Deus dependeria em um
certo modo das coisas. A criação, portanto, não põe em Deus nenhuma relação real respeito
às criaturas.
A relação colocada pela criação não pode ser identificada com a essência divina, nem
pode ser um acidente acrescentado à sua essência. Não é possível identificar esta relação
com a essência divina, porque a criação não é necessária e além do mais, em caso contrário,
Deus mesmo não seria um ser necessário. As relações atribuídas a Deus em ordem às
criaturas não se identificam com a essência divina "pois sendo o relativo o que no seu ser
tem uma certa tendência respeito a outro, como afirma Aristóteles no Livro sobre as
Categorias, seguirá racionalmente que a substância divina em si mesma se predicaria de
outro. Mas o que pelo qual algo tende a outro, depende em certo modo deste, dado que não
pode ser nem ser compreendido sem esse. Portanto, a substância divina dependeria de
alguma coisa de extrínseco, e em tal modo não seria por si mesmo um ser necessário, como
se demonstrou. Portanto, tais relações não são reais da parte de Deus.
Esta relação não pode nem mesmo ser um acidente, pois em Deus não há nada de
acidental. Portanto se existe efetivamente uma relação em Deus respeito às coisas, que não é
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real, isto é, Deus não está em relacionamento com outras coisas em virtude de uma relação
que existe nele realmente, "fica claro que lhe são atribuídas somente segundo o nosso modo
de entender, ou seja, enquanto todas as coisas se referem a Ele. O nosso intelecto, de fato,
compreendendo a relação que uma coisa tem com outra, colhe junto a relação que esta tem
respeito àquela, mesmo se na realidade às vezes tal relação não exista".
A relação entre Deus e as criaturas é, em Deus, uma relação de razão. Tomás de
Aquino esclarece este ponto, explicando que Deus é relacionável às criaturas como o
conhecível à ciência: não há relação real nem conhecível, mas somente no nosso
conhecimento: Mesmo se o conhecível se diz tal enquanto está em relação com a ciência,
todavia, não se dá relação real neste, mas na ciência. Por isto Aristóteles afirma no livro V
da Metafísica, que o conhecível tem um significado relativo, mas não porque este esteja em
relação, mas porque alguma coisa se refere a ele.
Na criatura, ao invés, a relação a Deus é real; se trata de uma relação entre o
participante e o participado nos termos comporta a participação transcendental; é relação de
origem, de presença fundante do Ser no ser do ente, o que implica a total dependência da
criatura respeito (relação) a Deus. Tal relação é real, assim como real é o que a criatura
adquire na criação, e como o efeito em relação à própria causa; "e é absolutamente radical,
enquanto provém da causa do seu ser... De outra parte, esta relação implica um
relacionamento direto e imediato em relação a Deus, enquanto dar o ser é privilégio divino.
Esta relação é acidental (toda relação é um acidente). Mas acidental não significa pouco
importante; antes, se trata de um relacionamento totalmente necessário que não poderá
nunca deixar de existir. "A acidentalidade desta relação não tolhe nada à sua radical
necessidade. Nem mesmo a onipotência divina poderia – uma vez criado o existente – privá-
lo desta relação. Todavia, tendo sido criados livres, senhores de nossos atos, capazes de
participar o nosso ser substancial aos acidentes, nós mesmos podemos privar-nos de tal
relação nas nossas ações, no nosso dinamismo, e perder assim a semelhança perfeita e
terminal com a nossa causa formal exemplar.
4. Criação e evolução
A doutrina metafísica da criação não pode ser rebatida (ou contrariada) por nenhuma
teoria científico-experimental que explique ou pretenda explicar o modo físico ou biológico
da origem do universo ou a origem da vida. É um pré-julgamento difundido colocar o
problema da criação e da evolução como doutrinas contrapostas radicalmente, de modo tal
que se se admite uma não se pode admitir a outra. Tal falso dilema pode encontrar um apoio
somente pelo abuso de um dos dois versantes da alternativa: abuso da ciência experimental
(que transcende o dado científico observável e analisado) ou abuso da metafísica (que
descuidasse ou desprezasse as realidades físicas). A criação do ser por parte de Deus não
exclui uma evolução posterior; exclui, ao invés, o evolucionismo universal, isto é, aquele
que compreende o próprio Deus (por exemplo, o panteísmo evolutivo, doutrina que não é
nem científica nem filosófica) e a alma humana, ou a doutrina, também essa filosófica, da
origem de tudo por evolução do nada absoluto (o não-ser não pode nem criar nem evoluir).
A criação, como tal, não pode ser um processo evolutivo; de qualquer maneira, a
evolução viria depois. Vimos que a criação não é um movimento: este, o movimento em
qualquer de suas formas (a evolução é um tipo de mudança) vem depois. Enquanto ato do
Criador, a criação das coisas do nada é instantânea, e como já vimos, não é uma mudança,
mesmo se a nossa imaginação a representa primeiro como não existente e depois como
existente: assim não é, justamente porque constitui uma novidade absoluta que comporta um
início absoluto, sem nenhuma mutação. Respeito a que coisa mudaria, se não é possível nem
mesmo falar de um antes? A criação, não comportando nenhum movimento ou processo,
não é processual ou evolutiva por quanto diz respeito ao fato de tirar as coisas do nada por
parte de Deus (o que se chama criar). O evolucionismo científico, em cada uma das suas
modalidades, implica a criação. Esta, como vimos, indica além do mais a precisa situação
metafísica do ser participado. É preciso ressaltar o que já se afirmou acima: a criação é
indiferente tanto à eternidade quando ao início no tempo; a criação, se fosse eterna, seria
mesmo assim criação.
Portanto, em qualquer caso, o ser de todos e de cada um dos indivíduos de todas as
espécies foi dado imediatamente por Deus; o ser de cada uma das coisas não pode ser
entendido senão como procedente do Ser divino, o que corresponde propriamente à criação,
como já afirmamos. Quanto pois ao homem, todo nascimento implica a criação da
respectiva alma: se note que isto não significa que o nascimento de todo vivente exige uma
62
intervenção imediata de Deus como na criação das almas humanas individualmente. A
produção (e conservação) do ser de todos os entes é ação própria de Deus como causa
primeira e universal, mas a fonte do ser de todo o finito deixa subsistir a causalidade das
causas segundas. Estas são causas particulares que não produzem o ser, mas dão razão
somente ao tornar-se (o devir), explicando a causalidade entre estes entes. Um exemplo:
este pai não é causa do ser deste filho, mas é causa somente do gerar do filho enquanto esta
matéria adquire tal forma.
Gerar não significa dar o ser, mas um meio através do qual é transmitido um novo
ser. O homem, por exemplo, não pode produzir a alma espiritual a partir da matéria: a
geração põe as condições para que esta matéria seja determinada por tal alma (criada por
Deus). Como o devir é união do corpo e da alma, assim se pode sem dúvida dizer que cada
indivíduo humano é gerado realmente por seus genitores. O mesmo vale para todas as outras
espécies de coisas naturais, se bem que nos entes simplesmente corpóreos, a forma
substancial é tirada da matéria pré-existente. Consequentemente, o homem não pode surgir
por evolução, já que a sua alma ou forma substancial é espiritual e, portanto, independente
da matéria.
A criação, como dissemos, não exclui uma evolução posterior, e a possibilidade que
alguns seres procedam de outros. O fato que, em linha geral, as doutrinas evolucionistas
atualmente superem os limites do método científico-positivo e algumas considerem que a
origem da vida se explique exclusivamente com a evolução da matéria e das energias físico-
químicas, com uma programação molecular procedente do acaso, etc... não deve levar a uma
rejeição do evolucionismo como teoria científica. O que se deve ao invés rejeitar são as
teses filosóficas, difundidas entre os cientistas, que não atendem rigorosamente às
exigências do método científico positivo. O evolucionismo científico pode ser verdadeiro se
demonstra objetivamente o que afirma (ou seja, o certo como certo, o incerto como incerto,
e o hipotético como hipotético) a respeito da cosmogênese e à biogênese.
Todas as teorias (passadas, presentes e futuras) sobre a cosmogênese e a biogênese
não se opõem ao criacionismo. Por outra parte, um filósofo que demonstre a verdade da
criação não deve temer que uma teoria científica "demonstre" a impossibilidade da criação.
Não deve considerar as teorias científicas com prevenção, e muito menos deve imitar o
modo de raciocinar dos cientistas evolucionistas, rejeitando as descobertas verdadeiramente
científicas e demonstradas que as ciências positivas apresentam em torno às diferentes
modalidades da evolução do mundo e da evolução biológica.
5. A conservação
A conservação é a contínua dependência que as coisas criadas têm respeito ao seu
criador. A presença do Ser nos seres do ente não é passageira, mas permanente. Nenhuma
criatura pode manter o seu ser, perdurar no ser, se a causa criadora não mantém a sua ação
atuante, pois depende desta no seu ser e no seu agir: ser e agir são seus efeitos e tirada a
causa desaparece o efeito. A presença da causa criadora no criado se realiza, não somente
quando as coisas iniciam a ser, mas também enquanto são conservadas no ser. "Deus é por
si diretamente causa do ser, enquanto comunica o ser a todas as coisas, assim como o sol
comunica a luz ao ar e ao resto que é por este iluminado. E como para a conservação da luz
no ar é preciso que perdure a iluminação do sol, assim, para que as coisas sejam
conservadas no seu ser, é preciso que Deus conceda o ser incessantemente; e
consequentemente todas as coisas se refiram a Deus como o que é feito àquele que faz, seja
quando começam a ser, seja quando são conservadas no ser. É necessário que Deus seja
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presente em todas as coisas enquanto estas tem o ser. O ser é o que mais intimamente está
presente em tudo, portanto, é necessário que Deus seja presente em todas as coisas".
Se tal presença criadora parasse, o ente cairia no nada (o seu ser despareceria), assim
como desaparece o tornar-se (o movimento / a mutação) de um ente quando é suspensa a
ação da causa predicamental. Um exemplo: se a ação de construir um edifício é suspensa,
também a construção do edifício se interrompe; quando a luz que causa a iluminação do ar
desaparece, desaparece também a própria iluminação. Assim do mesmo modo: "o ser de
todas as criaturas depende de tal modo de Deus, que estas não poderiam subsistir nem
mesmo por um instante, mas tornariam ao nada, se não fossem conservadas no ser pela ação
da virtude divina" (S. Th. I, q. 104, a. 1.). Toda criatura está para Deus assim como o ar está
ao sol que o ilumina: como o sol é iluminante por natureza e o ar se torna iluminado
somente participando da luz do sol, do mesmo modo Deus é o ser por essência e toda
criatura é ser por participação. O ser não pode nunca entrar e fazer parte daquilo que a coisa
é, e portanto, se Deus não comunicasse 'continuamente' o ser, pois a essência não pode
apropriar-se dele, o ente cairia no nada. E com isso nos encontramos diante do significado
preciso deste nada, diferente da simples negação lógica: o que seria a criatura antes e fora
do ato criado de Deus. Tal nada atesta a infinita indigência da criatura diante de Deus, e a
infinita potência de Deus que domina e supera qualquer indigência.
Deus não causa a conservação das coisas mediante uma nova ação criadora, mas com
a mesma ação com a qual produz o ser. A conservação é a continuação ou o prolongamento
da mesma ação criadora pela qual é dado o ser às coisas.
Não se insistirá nunca o bastante em ressaltar que criação e conservação são uma
mesma ação. Por isto, o próprio termo "continuidade" (da criação) mal exprime o que se
quer indicar, pois a rigor se dá continuidade quando há uma sucessão contínua, enquanto
que a criação e a conservação constituem a mesma e indivisível ação divina de dar o ser e
continuar a produzi-lo. Por assim dizer, a conservação, mais que uma conservação
continuada, é a continuação ou o prolongamento da criação.
A conservação ou continuação da criação não significa uma recriação contínua, como
pensou o racionalismo cartesiano. Segundo Descartes, a conservação, além de constituir-se
como um argumento para provar a existência de Deus, deve ser uma constante e perpétua
recriação, enquanto o tempo é descontínuo. Tendo como certeza que cada instante é
independente do que o precede e do que o segue, Descartes é constrangido a considerar a
conservação como uma criação reiterada em todo momento: Deus agiria de modo criador a
todo instante. Contra o racionalismo cartesiano é preciso observar que a conservação não é
uma reatualização ou reiteração do ato criador: a conservação é, ao invés, como vimos
precedentemente, o prolongamento no tempo da mesma e única ação criadora.
1. Deus é providente
Já vimos que Deus é criador e conservador das coisas. A causa universal criadora e
conservadora se estende a tudo o que existe, tornando independente no ser e no agir tudo o
que se encontra na criatura, incluídos os fins que os entes criados buscam. O cuidado que
Deus dispensa às criaturas para que estas alcancem o próprio fim, é a providência. Esta é
própria de Deus, já que "nas coisas há o bem não somente por quanto diz respeito à sua
natureza, mas também em relação à ordem que essas têm respeito ao fim, e sobretudo
respeito ao fim último, isto é, a bondade divina". Além da ligação que as criaturas têm
respeito a Deus quanto ao ser e ao agir, estas possuem uma ligação correspondente aos seus
fins: as criaturas são finalizadas. A causalidade divina na criação, conservação e no próprio
agir dos entes é ação eficiente. A providência é a ação divina respeito à finalidade. Deus
dirige as coisas ao seu fim, tem cuidado para que tudo alcance o próprio fim particular, e ao
mesmo tempo esteja de acordo com o fim geral do universo.
Posto isto, se compreende a definição de providência, isto é: a ordenação divina das
coisas ao seu fim. Se trata da Inteligência divina enquanto nesta há uma razão de ordem, de
direção rumo a um fim, a ordenação ao fim das ações, operações, movimentos, etc... das
coisas. Portanto, o bem da ordem que se encontra nas criaturas foi criado por Deus. Mas
porque Deus é causa das coisas graças ao seu intelecto, pelo qual deve preexistir nele a
razão de cada um dos seus efeitos, é necessário que preexista na mente divina a razão da
ordem que há nas coisas respeito aos seus fins.
Todas as criaturas estão sujeitas à providência divina. A providência de Deus é
universal: se estende a todos e a cada um dos entes, porque nada foge da causalidade do
Primeiro Agente: "Todo agente age por um fim, por isso a ordem dos efeitos ao fim se
estende absolutamente a todos os entes, e não somente quanto aos seus elementos
específicos, mas também quanto aos seus princípios individuais, seja corruptíveis seja
incorruptíveis: tudo o que participa do ser, deve, portanto, ser odenado por Deus a um fim...
Na mesma media em que as coisas participam do ser, são também sujeitas à providência
divina".
2. Os dois aspectos da providência: o plano divino respeito as coisas que devem ser
dirigidas ao seu fim e a execução de tal ordem
a) Com relação ao plano divino, a providência é imediata para todas as criaturas
"porque no próprio intelecto Deus tem a razão de cada coisa, incluídas as ínfimas, e porque
dotou as causas dispostas a produzir um certo efeito, da atividade suficiente a produzí-lo:
por isto é indispensável que conhecesse em precedência na própria razão a ordem de tais
efeitos". Deus dispõe com a sua providência imediata a ordem das coisas. Se esta não fosse
imediata se daria uma imperfeição na ciência divina: como conhece todas as coisas
imediatamente, assim as ordena ao seu fim sempre de modo imediato.
b) Com relação ao governo efetivo, Deus se serve de causas segundas, participando-
lhes o seu poder de governo. Deus no governo das coisas se serve de intermediários não por
insuficiência do próprio poder, mas "porque a sua bondade é tão grande, que comunica às
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próprias criaturas as prerrogativas da causalidade". Se deve notar, portanto, que enquanto na
providência enquanto razão de ordem seria sinal de imperfeição não obtê-la imediatamente,
na providência enquanto governo ou execução isto é sinal de perfeição e dignidade. A
perfeição da providência em quanto governo exige que existam causas intermédias que
realizem tal providência. A dignidade de um rei implica que este tenha muitos ministros e
diversos executores dos atos de seu governo, porque o seu poder se mostra tão mais alto e
grande quanto mais homens de hierarquias diferentes estão a eles subordinados. Ora, não há
dignidade que possa ser comparada àquela do reino divino. Portanto é conveniente que Ele
exerça a sua providência mediante diferentes ordens de agentes. Deus participa o seu pode
de governo às causas segundas, que são executoras da providência divina, e isto em
consequência da abundância e do transbordar de sua bondade.
3. A providência divina dirige as criaturas segundo a sua natureza, isto é, se aplica a estas
segundo o modo de ser necessário, contingente ou livre que as criaturas possuem
Isto não vai contra a infalibilidade da providência divina, que se realiza sempre: "a
imobilidade e a certeza da ordem da providência consiste nisto, que as coisas as quais Deus
provê se realizem no modo em que Ele providenciou, ou seja, no modo necessário ou
contingente".
Por que a providência divina se conforma à natureza das coisas? Por que Deus não
impõe a necessidade a todas as criaturas?
A resposta a tais perguntas pode surgir em base à consideração da verdadeira causa
primeira, da distinção entre as coisas, que consiste nisto: sendo cada uma destas boa por si,
todavia, tomadas no seu conjunto são muito boas, em razão da ordem do universo, que é a
última e mais nobre perfeição dos entes.
Ora, se o bem principal presente na criação é a perfeição do universo, este não
existiria se não existissem todos os graus de ser: a presença de diferentes graus de perfeição
nas coisas contribui à perfeição do universo: de fato "todo agente tende a realizar no efeito
uma sua semelhança, proporcionalmente ao tipo de efeito, portanto este age tanto mais
perfeitamente quanto mais perfeita é a causa..., portanto Deus, agente perfeitíssimo, plasma
perfeitamente a própria semelhança nas coisas criadas por quanto convém à natureza criada.
As coisas criadas não podem alcançar uma perfeita semelhança com Deus ao interno de uma
só espécie de criaturas, porque, superando a causa o efeito, isto que está na causa em modo
simples e unificado se encontra no efeito em modo composto e múltiplo... Portanto era
oportuno que existissem multiplicidade e variedade nas coisas criadas, para encontrar nestas
uma semelhança perfeita de Deus, mesmo se ao seu modo.
É próprio portanto da providência divina produzir todos os graus de ser; tal
diversidade e desigualdade não procede por acaso, nem da diversidade da matéria, nem da
intervenção de algum tipo de causa, mas é produzido pelo querer de Deus, que quis dar a
toda criatura uma natureza determinada. Assim fez algumas coisas necessárias, outras
contingentes e outras ainda livres; impôs a necessidade às coisas necessárias, e guia as
contingentes e livres segundo a sua natureza, isto é, tornando-as contingentes e livres. Em
outras palavras, "é efeito da providência divina não somente que surja uma coisa qualquer,
mas que surja necessariamente o que a divina providência dispõe que surja em modo
infalível e necessário, e contingentemente o que na razão da providência divina é previsto
que deve surgir em modo contingente". Os acontecimentos do mundo são realmente
necessários, contingentes e livres, e todavia, cada um destes é causado por Deus, sua Causa
primeira: não acontece nada no mundo que fuja às disposições divinas.
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A infalibilidade e universalidade da providência divina não se opõe à liberdade. Deus
não tolhe a liberdade, mas a causa, faz que exista: a Providência divina se serve das
realidades livres em conformidade ao seu modo de ser livres.