Apostila Teodiceia 2020

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METAFÍSICA / TEODICEIA

Pe. Helio Fronczak


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METAFÍSICA / TEODICEIA

Introdução

1. O problema "Deus"
É próprio do homem o procurar o absoluto. Tal procura representa o caráter distintivo de
uma vida verdadeiramente humana. O homem não pode realizar-se sem perguntar-se o
porquê do próprio cotidiano, sem procurar o sentido e a finalidade da própria vida, da
própria posição no mundo e do próprio ser.
"Mas por que o homem busca? Por que sente a necessidade de procurar e de interrogar-se
sobre o futuro, por que não se contenta com o que lhe dizem e oferecem as coisas que o
circundam imediatamente? Evidentemente porque ele se dá conta que as coisas não se
sustentam por si mesmas, não conferem o sentido a si mesmas, mas reenviam a outro o
próprio ser. O homem vive a relatividade interna, a dependência, a limitação e o caráter
transitório de todas as coisas e da própria vida, e através destas realidades se interroga sobre
a razão absoluta, independente, ilimitada e imperiosa do seu ser e do seu sentido, razão que
sustenta e torna possível tudo o que existe.
Querendo ou não o homem busca sempre o absoluto; nesse sentido e em termos decisivos
escreveu K. Jaspers (1883-1969): "Se elimino algo que é absoluto para mim,
automaticamente um outro absoluto toma o lugar do que foi eliminado".
Hegel chegou a dizer que a afirmação segundo a qual não se deve fazer o percurso
intelectual do mundo a Deus, do finito ao Infinito, significa que não se deve pensar.
Tomás de Aquino sustentava que conhecimento da verdade é o que anima a nossa vida
intelectual, pois nos impulsiona a conhecer a causa final de tudo quanto conhecemos: "O
fim último do homem e de toda substância intelectual se chama felicidade ou beatitude; de
fato é isto o que toda substância intelectual deseja como próprio fim último, e o deseja de
per si. Consequentemente, a beatitude e felicidade última de toda substância intelectual é
conhecimento de Deus" (Summa contra gentiles, III, 25). Isto é verdade porque o sentido e o
valor de toda verdade encontram o próprio fundamento último na verdade primeira, que se
identifica com o Absoluto, e o espírito humano não encontra paz até que não repousa nesta
suma verdade, ou seja, em Deus. Uma tal procura terminará somente no encontro com Deus
e na sua posse, segundo as famosas palavras de S. Agostinho: "Senhor, tu nos fizeste para
Ti, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousa em Ti" (Confissões, I, 1).

Estas afirmações mostram a centralidade do problema de Deus para o homem; e tal


centralidade é tão verdadeira que se chegou a afirmar que a questão da existência de Deus é
o "problema dos problemas", ou melhor, "o problema essencial do homem essencial", do
qual todo outro problema da existência toma a última clareza (a ética, o direito, a economia,
a política...). Na sua solução o homem empenha toda a sua vida escolhendo uma
determinada orientação, e fundamenta a própria conduta.

Historicamente, todos os filósofos enfrentaram o problema de Deus, mesmo se em modos


diferentes. Não existiu um só filósofo que não tenha escrito nada sobre Deus; e isto vale
também para os que com os próprios princípios filosóficos se esforçam em não deixar
espaço para Deus, em eliminá-lo, negá-lo, afirmar a sua morte, ou cancelar até o próprio
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nome, etc... "É característica comum a todas as doutrinas metafísicas, por mais divergentes
que possam ser entre si, a de ir de acordo em admitir a necessidade de encontrar a causa
primeira de tudo o que existe. Que tal necessidade seja chamada matéria com Demócrito,
Deus com Platão, Pensamento de pensamento com Aristóteles, Uno com Plotino, Ser com
todos os filósofos cristãos, Lei moral com Kant, Vontade com Schopenhauer, ou que seja
Ideia absoluta em Hegel, ou outro princípio qualquer entre os muitos que ainda poderiam ser
citados, o metafísico é sempre um homem que busca, além de toda experiência, um
fundamento último de toda experiência real e possível. Mesmo se observarmos apenas a
história da civilização ocidental, continua o fato objetivo que os homens por vinte e cinco
séculos se esforçaram por alcançar tal conhecimento, e que, depois de ter demonstrado que
não se deveria persegui-lo e empenhar-se em tal pesquisa, se recolocaram novamente na
busca de tal conhecimento.
E não poderia ser diferente; se a posição e a solução do problema são universais, isto é, se
este é significante para o espírito humano em qualquer situação em que se encontre, ou seja,
se é uma interrogação profunda para todo homem em qualquer idade, condição, inteligência,
etc..., deverá também se tornar objeto da filosofia. Por outro lado, como já assinalava Tomás
de Aquino, quase toda a filosofia está ordenada ao conhecimento das coisas divinas. De um
modo ou de outro, o estudo das mais variadas questões filosóficas culmina no conhecimento
de Deus e do caráter criatural dos entes. Deus é o argumento central da filosofia, não
somente do ponto de vista histórico, mas também teórico, pois é do tipo de conhecimento de
Deus que uma filosofia consegue a alcançar, em grande parte a solução de todos os
problemas que afronta.
Às vezes, todavia, se diz que o problema do Absoluto tem um interesse somente histórico ou
cultural; a nossa época seria caracterizada, diferentemente das épocas passadas, por uma
falta ou ausência de Deus, de uma natural experiência de ser sem Deus ou de um
desinteresse ou indiferença para o problema do Absoluto. Apesar disso, mesmo se uma tal
análise da condição espiritual da nossa época fosse correta, ou mesmo se um tal clima
tendesse a difundir-se sempre mais, o problema de Deus permanece, enquanto a pergunta a
respeito do último fundamento das coisas, ou seja, em torno do Absoluto, não poderá
extinguir-se enquanto o homem é homem, pois "a posição do homem no universo, o sentido
da sua vida, das suas ansiedades e da sua história, são intimamente condicionadas à atitude
do homem em relação a este problema. Diante dele podem assumir-se atitudes positivas, e
também atitudes negativas, mas que sempre condicionam o homem, visto que sem tal
conhecimento a vida considerada na sua totalidade apareceria sem sentido... Em meio à
turbulência do nosso tempo, se pode afirmar sem temor de errar, que com afirmações ou
com negações, querendo ou não querendo, até mesmo querendo o contrário, a nossa época é
talvez a que mais substancialmente vive o problema de Deus. Deus não é um argumento
superado: é necessário enfrentá-lo. Afirmar o contrário, ou evitar uma tomada de posição,
colocando-o à parte, são atitudes infundadas e sofísticas.

2. As diferentes aproximações cognoscitivas de Deus


O homem pode conhecer Deus de diferentes modos. Antes de tudo só com as forças da
razão: a) em modo pré-científico e espontâneo, e b) em modo científico ou filosófico. Por
meio de uma dedução espontânea, todos os homens podem chegar ao conhecimento de
Deus. Este primeiro grau de conhecimento, mesmo se imperfeito, é suficiente na sua ordem:
a humanidade no curso dos séculos sempre teve uma certa noção de Deus. O segundo modo
tradicional de conhecer Deus é constituído pelas elaborações científico-filosóficas, que,
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obviamente não todos os homens podem realizar. Se trata de um conhecimento válido para
chegar a Deus como causa primeira dos entes com tudo o que tal afirmação implica, ou seja,
as perfeições e os atributos que devem reconhecidos à divindade. Partindo das criaturas,
seus efeitos, alcançamos a Deus, chegamos a saber quem Ele é, e alguma coisa do que ele é.
Deste modo se chega a saber do Absoluto mais o que não é do que Ele é, enquanto a Causa
Primeira supera infinitamente os efeitos dos quais se partiu para conhecê-la.
Em segundo lugar, o homem pode conhecer Deus em modo sobrenatural, isto é, em um
modo que transcende as forças da natureza humana. O conhecimento sobrenatural de Deus é
duplo: a) através da fé (lumen fidei), e b) por visão (lumen gloriae). A fé oferece um
conhecimento de Deus muito mais elevado em relação ao conhecimento obtido pela razão
natural, enquanto o Absoluto neste caso não é somente conhecido através dos seus efeitos,
mas nas manifestações que Ele fez de si através da Revelação. O conhecimento de visão
comporta o ver Deus face a face, em ter experiência: conhecê-lo como é em si mesmo (visão
beatífica e experiência mística).

O nosso curso se deterá no segundo dos quatro modos de acesso ao Absoluto aqui
apresentados, ou seja, através da via filosófica, e mais concretamente, metafísica. Este
percurso, que parece o mais inócuo e, talvez, o mais insatisfatório, porque é bem pouco em
relação às certezas sobre Deus que nos oferecem a fé e a teologia sobrenatural, é o máximo
conhecimento natural ou racional que o homem pode ter do Absoluto. É justamente aí que
consiste a sua grandeza; a sua miséria depende, ao contrário, do fato que Deus supera
completamente a capacidade do nosso intelecto e, consequentemente, o nosso conhecimento
possível de Deus é assaz escasso. Tomás de Aquino, a este respeito, afirmava: "Se o
intelecto humano compreende a substância de uma coisa, por exemplo, de uma pedra ou de
um triângulo, não há nada de inteligível em tal coisa que exceda a capacidade da razão
humana. Mas isto não acontece em relação a Deus. O intelecto humano, de fato, não pode
chegar naturalmente até a Sua substância, pois o conhecimento nesta vida tem a própria
origem nos sentidos, e, portanto, o que não cai sob o poder dos sentidos não pode ser
apreendido pelo intelecto humano senão enquanto deduzido do sensível. Mas os entes
sensíveis não podem conduzir o nosso intelecto a descobrir neles o que a substância divina
é, pois os entes sensíveis são efeitos inadequados à potência da causa. O nosso intelecto,
partindo do sensível, pode chegar a descobrir que Deus é (existe), e outras verdades
semelhantes relativos ao primeiro princípio" (C. G., I, 3). Todavia, mesmo se o homem não
pode conhecer com a própria razão a essência de Deus, pois esta excede a sua capacidade,
deve, por quanto lhe é possível, empenhar-se no conhecimento das coisas imortais e divinas,
dado que o conhecimento imperfeito de Deus confere ao homem uma grande perfeição,
enquanto a razão encontra a própria perfeição máxima no conhecimento das causas últimas,
que é a sabedoria. A metafísica, sabedoria na ordem racional, é como dizia Aristóteles, a
ciência da verdade, e não apenas de uma verdade qualquer, mas sobretudo – acrescenta
Tomás de Aquino – daquela verdade que é a origem de toda verdade e que concerne ao
primeiro princípio do ser de todas as coisas (C. G., I, 1). O conhecimento metafísico de
Deus recebe o nome de teologia natural ou teodiceia, o saber mais elevado que o homem
através da razão pode alcançar.

3. Filosofia de Deus, teologia natural, teodiceia


Para designar este nosso curso utilizaremos indistintamente três denominações: filosofia de
Deus, teologia natural e teodiceia.
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O nome 'teodiceia' foi usado por Leibniz em 1710 com a publicação dos Ensaios de
Teodiceia sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal. Com esta
obra Leibniz pretendia defender ou justificar Deus contra as objeções expostas por Bayle,
demonstrando que a existência do mal no mundo não se opõe à justiça, sabedoria e bondade
divinas. O termo teodiceia passou depois a significar a inteira pesquisa filosófica a respeito
de Deus, e não somente a parte referente aos atributos divinos. O termo se impôs, talvez
pelo temor que a outra expressão "teologia natural", se identificasse com a teologia, termo
que habitualmente é utilizado para designar a teologia sobrenatural. Mas não podemos
esquecer que o termo 'teologia' teve uma origem puramente filosófica com os filósofos
gregos, os quais, obviamente, não conheciam a teologia sobrenatural. A expressão 'teologia
natural' expressa o objeto próprio e o conteúdo próprio do nosso estudo, pois teologia é
simplesmente tratado sobre Deus; naturalmente a nossa teologia será desenvolvida apenas
com a luz da razão natural.

É preciso ainda ter presente a precisa formalidade segundo a qual Deus é considerado na
metafísica: partindo da ratio entis (razão dos entes) se chega à causa primeira do ser de
todas as coisas. Não se chega a Deus secundum quod est in se (segundo o que é em si),
como o que Ele é na sua essência (esta é a formalidade teológica sobrenatural), mas como
causa das coisas. Daí a definição da teologia natural como a parte da metafísica que estuda a
primeira causa dos entes.

Esta definição coloca em evidência dois aspectos: a) a sua diferença em relação à teologia
sobrenatural; b) a perspectiva da teologia natural é essencialmente metafísica e se constitui
como uma parte desta disciplina.

a) O âmbito da filosofia de Deus é claramente definido. Esta se distingue da teologia


sobrenatural, pois esta, mesmo tendo também Deus por objeto, é uma ciência que procede à
luz sobrenatural da Revelação. Enquanto a teologia sobrenatural estuda Deus sub ratione
Deitatis (sob a razão da deidade), e portanto enquanto inatingível pela razão sem ajuda da
Revelação, a filosofia de Deus se ocupa de Deus enquanto Ser e causa dos entes. Portanto, a
expressão "teologia natural" não é uma espécie de teologia, mas é de outro gênero: a
teologia natural é formalmente metafísica, enquanto a teologia sobrenatural é teológica.
b) O tratado completo de uma ciência exige a pesquisa sobre a causa; a metafísica,
estudando os entes enquanto entes, as suas propriedades e estruturas, comporta
necessariamente a pergunta a respeito das causas dos entes. A relativa resposta, que será
como veremos, Deus como causa totius esse, não transcende a metafísica, mas se inscreve
nesta como uma de suas partes. A teologia natural é, portanto, parte integrante da
metafísica, e se constitui o seu vértice. Deus, na metafísica, é estudado com o método e o
rigor próprios da metafísica.

4. O método da teologia natural (filosofia de Deus – teodiceia)


Mesmo sendo duas ciências distintas, a filosofia da religião e a teologia filosófica usam
parcialmente o mesmo método, pois ambas têm o mesmo objeto. O que ambas têm em
comum é a análise fenomenológica e a pesquisa hermenêutica; enquanto a reflexão
metafísica pertence exclusivamente à teologia filosófica (natural).
Vários são os métodos que, no decorrer dos séculos, a inteligência humana utilizou para
compreender a realidade. Os mais importantes são quatro: o método filosófico (lógica –
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dialética – indução – dedução), o método científico, o método fenomenológico e o método
hermenêutico.
O método filosófico consiste na resolução dos efeitos nas suas causas ou princípios: é
essencialmente o método da metafísica.
O método científico se baseia na observação acurada dos dados empíricos (sensíveis) e na
busca de seus nexos constantes (as leis) com o intento de calculá-los com precisão.
O método fenomenológico é uma leitura atenta e objetiva, isto é, livre de pré-julgamentos,
dos fenômenos assim como estes se apresentam à consciência.
O método hermenêutico procura compreender os documentos do passado (e também os
fenômenos em geral) no seu significado mais verdadeiro e mais profundo, situando-os nos
respectivos horizontes culturais.
O método da teologia natural não pode ser o método das ciências experimentais, porque este
é um método rigorosamente positivo, que diz respeito somente ao que é quantificável, que
estabelece leis calculando exatamente os dados. O objeto destas ciências é o mundo físico,
material; ao passo que a realidade da qual nos ocuparemos em nosso curso – Deus –
pertence a uma ordem que transcende a matéria e a quantidade, o espaço e o tempo, e,
portanto, não pode ser objeto de quantificação e cálculo. Pode ser "experienciado" mas não
"experimentado" (no sentido de experiência científica).
Na reflexão filosófica sobre Deus, se não se quer fazer uma especulação vazia e estéril, esta
pressupõe um encontro, uma experiência autêntica, pessoal de Deus. Esta experiência
pessoal constitui a mola e a linfa vital de toda teologia filosófica.
Os quatro métodos estão entrelaçados. No momento metafísico, partindo dos dados
observados (fenomenologia) e interpretados (hermenêutica) a pesquisa faz um passo a mais,
vai além: escavalca o horizonte dos fenômenos e penetra no mistério de Deus.
A metafísica é pura especulação, especulação essencial: uma linha contínua que atravessa
todos os fenômenos naturais e religiosos, físicos e espirituais para alcançar a sua fonte
originária. É uma especulação rigorosa que usa princípios certíssimos e indubitáveis (em
particular os princípios de não contradição e de causalidade) para fornecer uma explicação
conclusiva dos fenômenos. A teologia natural, justamente porque é natural e não revelada
(baseada na razão e não na fé) tem absolutamente necessidade da metodologia filosófica.
Esta não procede intuitivamente, mas argumentativamente ou abstrativamente, assumindo
como ponto de partida (do abstrair e do argumentar) os dados da experiência.
Os dados de partida da teologia natural são fenômenos humanos ou mundanos que induzem
a razão à reflexão e à pesquisa de uma explicação: reflexão e explicação que levam na
direção de Deus. O seu método é, portanto, não o descritivo (próprio das experiências
religiosas) nem o indutivo (que vai do particular ao universal) mas sim o resolutivo (resolve
os fenômenos de contingência que se registram em nós e fora de nó em um ser
transcendente que é o único em grau de satisfazer as instâncias da razão). E como os dados
de partida da pesquisa sobre Deus são os entes e o objetivo é encontrar a razão de seu ser, se
pode definir corretamente a teologia natural como o "estudo do entre supremo". Se trata,
evidentemente, de uma definição redutiva e abstrata, e pode ser mal entendida. Para evitar
tal equívoco é preciso considerar que a metafísica estuda o ente em ordem ao ser (e conclui
o seu processo compreendendo que o sr, perfeição absoluto e plena, e Deus são a mesma
coisa); a teologia natural, ao invés, estuda o ente e o ser mesmo em ordem a Deus e
descobre que o ente e o ser têm em Deus o seu princípio último, o seu fundamento supremo.
Deus não é o objeto direto da metafísica mas simplesmente indireto, enquanto, como
princípio do ser e dos entes, tem um relacionamento necessário com o objeto próprio da
metafísica.
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Em conclusão, tanto a metafísica como a teologia natural tratam de Deus e todas as duas o
tratam filosoficamente, ou seja, raciocinando; mas a metafísica se ocupa dele somente na
fase final de sua pesquisa; enquanto a teologia natural o assume como o único sujeito de sua
pesquisa.
Mediante a demonstração da existência de Deus, a determinação de sua natureza e de seus
atributos, a teologia filosófica leva a cumprimento a filosofia da religião. Esta demonstra
que a mais nobre de todas as atividades humanas, a religião, não se agita no vazio e nem
acaba em ilusão, mas age no modo mais conforme ao seu objeto, Deus, que é o da adoração,
da obediência e da oração, e não da abstrata especulação.
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AS PROVAS "A POSTERIORI" DA EXISTÊNCIA DE DEUS

Premissa
Sobre a existência de Deus se podem elaborar inúmeras provas. De fato cada traço da
ordem cósmica e de contingência radical, se é seguido atentamente, conduz até Deus; e
também qualquer ideia transcendente (bondade, verdade, beleza, unidade, ser, etc...), se
explorada cuidadosamente, revela a existência de Deus.
Sabemos que as metafísicas podem ser construídas em dois modos: do alto ou de
baixo. As metafísicas que partem do alto assumem como ponto de partida a ideia do
Absoluto, do Princípio primeiro e deste derivam todas as outras realidades. O ponto de
partida pode ser o Uno, a Substância, a Mônada, o Espírito, o Bem, a Verdade, o Perfeito,
etc... Partem de baixo as metafísicas que assumem como ponto de partida as coisas
sensíveis, o fenômenos materiais, a realidade humana, o devir, a história, etc... e procurando
as suas razões últimas ascendem até o Princípio primeiro, o Absoluto.
Nas metafísicas construídas do alto, a existência de Deus – o Princípio primeiro – é
argumentada a priori, ou seja, é colocada e confirmada por primeiro; enquanto que nas
construídas de baixo, a existência de Deus é demonstrada a posteriori, ou seja, é colocada
por último.

1. A invalidade das provas a priori – O argumento ontológico.


1. 1. Relevância histórica do argumento ontológico e explicação do nome
Santo Anselmo de Canterbury (1033-1109) formulou pela primeira vez o argumento
conhecido com o nome de ontológico, e que tanto fascinou os filósofos no decurso da
história. O fascínio exercido pelo seu argumento é reconhecido facilmente com a simples
menção de pensadores que de um modo ou de outro o defenderam, precisaram e
repropuseram com algumas variantes: S. Boaventura, Duns Scoto, Descartes, Leibniz e
Hegel. Entre os grandes filósofos que, ao invés, o criticaram estão Tomás de Aquino e Kant.
Foi Kant a denominar de "ontológico" o argumento anselmiano. Na Crítica da Razão
Pura, ele chama a prova que prescinde de toda experiência e deduz, completamente a priori,
partindo de simples conceitos, a existência de uma causa suprema. Por isto alguns autores
consideram que se deva chamar de argumento lógico, enquanto tira da análise da ideia o
conceito de Deus.
Antes de Kant esta prova era chamada prova a simultaneo, pois não se trata de uma
demonstração estritamente a priori (e muito menos a posteriori), mas de uma demonstração
que se baseia na própria essência de Deus, melhor dizendo, no conceito de Deus, no qual
aparece a sua existência. Se denomina a simultaneo porque a prova não parte nem de algo
prévio (a priori) nem de qualquer coisa de posterior (a posteriori) em relação à essência de
Deus, mas propriamente simultâneo a tal essência: da análise desta última se colhe a
existência de Deus como um de seus elementos.

1.2. A formulação anselmiana


Santo Anselmo propôs este argumento no seu Proslogion da seguinte forma: na
mente de todo homem está a ideia do ser do qual não se pode pensar algo maior. Mas tal ser
– Deus – deve existir também na realidade. De fato, existir na mente e na realidade é mais
que existir somente na mente. Ora, se o ser do qual não se pode pensar nada maior não
existe na realidade, não seria então o ser do qual não se pode pensar nada maior, isto é,
aquele que, existindo na mente como o maior que se possa pensar, existisse também na
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realidade. Portanto, o ser do qual não se pode pensar nada de maior que ele existe tanto na
mente como na realidade; ou seja: Deus existe.
Expresso esquematicamente, o raciocínio apresenta os seguintes passos:
1. Deus é o ser perfeitíssimo.
2. Todos consideram Deus o ser perfeitíssimo.
3. A existência é uma perfeição.
4. Portanto, o conceito de Deus só implica a sua existência real.

Note-se que o ponto de partida da prova é a ideia de Deus como aquele do qual não
se pode pensar nada maior (id quo maius cogitari nequit), isto é, o ser que recolhe em si
todas as perfeições: o omniperfeito. Santo Anselmo sustenta que, se também tal perfeição
deriva da fé, estão não é possessão exclusiva do crente, mas é própria de todos, dado que até
mesmo os ateus compreendem o seu significado; caso contrário, a sua negação não teria
sentido. Quando o ateu afirma que Deus não existe, compreende o que diz, e o que
compreende é a noção de um ser perfeitíssimo, o ser do qual não é possível pensar nada
maior. O conceito de Deus é portanto universal.
Todavia, da universalidade do conceito de "Deus" não segue que Deus exista na
realidade. O próprio Anselmo no capítulo II do Proslogion faz uma distinção entre
existência mental e existência real: uma coisa é um quadro na mente do pintor e uma outra é
o quadro na realidade; no primeiro caso, o quadro tem uma existência mental, no segundo
tem uma existência real.
No caso de Deus se tem a ver com uma existência real necessária. O que é devido ao
fato de que o que não se pode pensar nada maior não pode ter somente uma existência
mental, porque a existência real é uma perfeição, algo que o ser perfeitíssimo ou o ser do
qual não se pode pensar nada de maior deve possuir. Assim é porque existir na mente e na
realidade é mais que existir somente na mente. Se existisse somente na mente se cairia em
flagrante contradição, pois se o ser do qual não se pode pensar algo maior existe somente
com existência mental, podemos pensar um outro que possui também a existência real; daí
se pode concluir que o ser do qual nada maior se pode ser pensado seria o ser do qual algo
maior pode ser pensado.
Segundo Anselmo a existência real de Deus ou do ser perfeitíssimo é uma existência
real necessária, porque de outro modo, se o ser quo maius cogitari non potest pudesse ser
pensado como não existente in re, aquele do qual não se pode pensar nada de maior não
seria o ser maior que se pode pensar. E tal existência real necessária compete somente ao ser
perfeitíssimo.

2. As provas a posteriori. As cinco vias de S. Tomás


2.1. Considerações gerais
Tomás de Aquino, na Summa Theologiae (I, q.2, a.3), expõe cinco argumentos ou
percursos, que ele denomina vias, para demonstrar a existência de Deus. A formulação
destas vias é fruto da sistematização de precedentes demonstrações propostas por outros
autores, (sobretudo Aristóteles, Avicena, Platão, e S. João Damasceno), aprofundadas por
Tomás graças à sua própria síntese filosófica original. Neste sentido, se deve dizer, que
embora tenha tomado diversos elementos de diferentes autores, Tomás elaborou provas
originais fundamentadas nos princípios da metafísica do ser. Depois da sistematização
tomista, as demonstrações da existência de Deus deverão levar em conta as cinco vias de
Tomás, mesmo se depois se chegará a deformá-las, a criticá-las em algum ponto ou a
rejeitá-las completamente. Por isto, depois da exposição de cada uma das vias, acenaremos
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aos autores mais significativos que propuseram demonstrações da existência de Deus ou que
lhe negaram a existência usando como referência as provas tomistas.

O artigo no qual Tomás expõe as cinco vias segue o artigo em que trata da
necessidade da demonstração da existência de Deus, visto que a sua existência não é para
nós evidente, e o que interroga sobre a possibilidade da demonstração.

As vias são demonstrações a posteriori, que partem de diferentes aspectos das


criaturas enquanto tais (efeitos), conhecidos através da experiência, e remontam a Deus
como à sua Causa. A simplicidade da exposição tomista não isenta o leitor (o estudante) de
certos conhecimentos metafísicos; ao contrário, cada passagem da argumentação pressupõe
a compreensão dos pontos fundamentais da metafísica: a estrutura transcendental do ente, a
doutrina da participação, a causalidade predicamental intrínseca e extrínseca, e a
necessidade da fundação da causalidade predicamental pela causalidade transcendental. Se
não tivermos bem presente estes conceitos, será difícil entrar no estudo das vias.

Vamos relembrar brevemente algumas considerações fundamentais:

1. A ascensão a Deus das vias tomistas é uma ascensão metafísica. Não se trata de
deduções matemáticas nem de demonstrações de física.
2. A ascensão metafísica a Deus parte sempre da consideração das criaturas enquanto entes
causados que exigem uma causa incausada. Entes causados: as vias, de fato, se fundam
sobre o ente e sobre a causalidade. Se trata da passagem do ser (esse) do ente ao Ser, Ato
puro de ser; do participado ao imparticipado, do finito ao infinito.
3. O ponto metafísico central desta passagem é constituído pelo ente, o qual, mostrando-se
como uma estrutura composta de essência (o que é) e ser (aquilo pelo qual é), levante
imediatamente a pergunta do porque um ente é. Ora, o ser é o ato de todo ato, perfeição
suma, o que de mais imediatamente e intimamente convém a cada coisa; portanto, a sua
causa não está no âmbito predicamental. A causalidade predicamental, de fato, explica o
fieri (tornar-se) do efeito, mas não o seu esse (existir); é necessário então procurar a
causa do ser, ou seja, a causalidade transcendental. Ora, a causa do ser não pode fundar-
se na natureza do ente, pois se assim fosse este produziria a si mesmo no ser, o que é
impossível: "Não se pode admitir que o próprio ser (esse) seja efeito da forma ou
qüididade da coisa; caso contrário, seguira que uma coisa seria causa de si mesma e que
alguma coisa poderia produzir a si mesma no ser, o que é absurdo. Conseqüentemente, é
necessário que toda coisa, cujo ser é distinto de sua natureza, tenham o ser de um outro.
Ora, tudo o que é por outro se reduz àquele que é por si como sua causa primeira, se
conclui que deve existir alguma coisa que é a causa essendi (causa de ser) de todo o
resto, enquanto é somente ser". E não basta dizer que esta causa é, mas é preciso
reconhecer que esta é o Ser: o Ser por essência.
4. Como veremos, a causalidade da qual se fala nas vias é a causalidade metafísica e não
física: causalidade do ser e não causalidade dos fenômenos.
5. Antes de passar ao estudo das vias, é preciso lembrar um princípio, válido para toda a
teodiceia, tirado do sed contra do artigo no qual Tomás expõe as cinco vias: no exercício
racional ou demonstrativo não se prescinde da fé. "Longe de tentar esquecer a sua fé na
palavra de Deus, antes de estabelecer a existência de Deus, Tomás a reafirma de modo
muito decisivo. E não poderia ser diversamente, pois o Deus no qual ele crê é justamente
o mesmo Ser cuja existência a sua razão está para demonstrar. A fé que se volta à razão é
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o moto comum de todos os teólogos cristãos e também dos filósofos cristãos". Todavia,
a fé não é um elemento da demonstração metafísica: e é possível também que alguém
aceite por fé o que per se é demonstrável e cognoscível, por exemplo, porque não
compreende a demonstração.

2.2. O procedimento da demonstração


2.2.1 A via de acesso à demonstração da existência de Deus.
Se trata de provas ou argumentações metafísicas, e não provas científico-positivas.
Não se deve esquecer que a metafísica é ciência, e ciência suprema; se a ciência é um
conhecimento através das causas, o título de ciência compete de modo eminente à
metafísica, sapiência máxima na ordem racional. Esta demonstração, mais rigorosa e certa
em si do que as demonstrações empíricas, será todavia menos facilmente acessível para nós.
Assim observa Aristóteles, as realidades sensíveis são mais dificilmente cognoscíveis em si
enquanto materiais e instáveis (a matéria é repugnante à inteligibilidade, que deve abstraí-la
para compreendê-la) mas são mais facilmente cognoscíveis para nós, porque são objetos de
intuição sensível e porque as nossas ideias derivam dos sentidos. As verdades metafísicas e
as realidades puramente inteligíveis, apesar de serem mais facilmente cognoscíveis em si,
são para nós mais difíceis de conhecer, porque a intuição sensível não as colhe. Todavia,
uma demonstração metafísica pode partir da experiência, mesmo se a sua conclusão não é
nunca experimentável. Todo cristianismo inicia pela experiência, também o conhecimento
metafísico; uma demonstração metafísica a posteriori deverá partir da realidade física,
considerada segundo uma formalidade metafísica.
A inteligência humana pode colher a formalidade metafísica naquilo que é físico e
material. Intuição e abstração são os dois procedimentos noéticos que foram utilizados na
história do pensamento como vias de acesso ao conhecimento metafísico em geral, e à
demonstração da existência de Deus em particular. A intuição, assim como era entendida
por Ockham e depois assumida pela filosofia moderna, aplica-se somente a sujeitos
individuais, singulares; com respeito a Deus, é paradigmática a posição de Descartes: ele
trata do conhecimento intuitivo do ser singular que é Deus. Segundo Descartes este tipo de
conhecimento é possível porque a intuição de Deus nos dá a ideia que dele temos (o
conhecimento da essência divina seria precedente ao conhecimento de sua existência). Tal
posição esquece um ponto bem assinalado por Tomás: na pesquisa de qualquer coisa, por
primeiro se coloca a questão acerca da existência, e depois a questão da essência.
Além disso, porque Deus não é objeto de intuição, Descartes deve recorrer à uma
ideia que represente a essência, o que significa supor que Deus exista. Se deve partir das
coisas, as quais se nos mostram como efeitos, isto é, causadas. (Percebemos isto através da
aplicação da abstração).
Às vezes é preciso lembrar até mesmo aquilo que é óbvio. Neste caso, a obviedade
está no fato que o intelecto humano tem a capacidade de ir além do sensível. Tarefa da
gnosiologia é justamente a de enfrentar a discussão com aqueles que negam a evidência do
valor metafísica do intelecto humano, o qual, como já se tratou ao falar do agnosticismo,
não é prisioneiro dos fenômenos sensíveis.
Além disso, negar que o intelecto possa superar o sensível, significa no fundo negar o
próprio intelecto, enquanto toda faculdade é especificada pelo próprio objeto formal: o
objeto formal dos sentidos é dado pelas realidades sensíveis correspondentes a eles, e o
objeto formal da inteligência (intus legere) é o inteligível enquanto tal.
12
C. Fabro sintetizou adequadamente as teses do valor metafísico do intelecto humano,
no que diz respeito à via de acesso à solução especulativa do problema da existência de
Deus, em três pontos:
1. a aceitação da existência do mundo externo, ou seja, da natureza e dos outros homens:
sem esta, o sujeito não se distingue do objeto, e o homem da natureza, mas a consciência
vive no caos;
2. a consciência do próprio eu como realidade composta de alma e corpo, e sobretudo,
como núcleo pessoal que deve orientar-se ao ser e à vida: sem a consciência da própria
personalidade não surge nenhum interesse ou problema, muito menos o interesse relativo
a Deus;
3. a convicção da validade ou objetividade do conhecer e, portanto, da sua capacidade de
avançar com a experiência e a reflexão até a poder passar das aparências às essências,
das partes ao todo, dos efeitos às causas e vice-versa. Todo homem vive nesta
convicção: as dúvidas a respeito destes pontos são extravagâncias sofistas.

2.2.2 Os elementos constitutivos das vias


Todas as cinco vias expostas por Tomás de Aquino têm estrutura semelhante. Nelas
aparecem 4 elementos:
1. o ponto de partida;
2. a aplicação da causalidade ao ponto de partida;
3. a impossibilidade do proceder ao infinito na série das causas;
4. o momento final: a necessidade da existência de Deus.

É preciso compreender bem estes elementos. O mais importante é o segundo, pois a


causalidade constitui o fundamento sobre o qual repousa toda a demonstração.

1) O ponto de partida deve ser alguma coisa conhecida empiricamente, um fato da


experiência, considerado segundo a perspectiva metafísica. Se bem que o ponto de partida
deve ser sempre um fato da experiência, isto não significa que a demonstração seja
experimental ou física. O ponto de partida deve ser colocado na experiência, mas não deve
ser experimental, mas metafísico. Em outras palavras, o ponto de partida deve ser colhido na
experiência (porque somente nesta nos é dada a existência de alguma coisa), mas não deve
ser considerado enquanto dado na experiência, mas segundo a perspectiva metafísica, a qual
prescinde da experiência. Por exemplo, um ente que se move é um ponto de partida para
poder demonstrar a existência de Deus: a existência de tal ente é percebida pelos sentidos,
mas este não é considerado enquanto é dado aqui e agora na experiência, mas enquanto é
um ser e um ser móvel, e enquanto ente, causado. Deste modo as demonstrações da
existência de Deus, mesmo se têm o próprio ponto de partida na experiência, não são
experimentáveis ou físicas, mas rigorosamente metafísicas. O ponto de partida encontrado
no plano experimental comporta as considerações dos entes limitados, imperfeitos,
mutáveis, etc...

Eis os diferentes pontos de partida de cada uma das vias:


1. as criaturas se movem: experiência do movimento;
2. as criaturas são ativas: experiência da causalidade eficiente;
3. as criaturas não são necessárias por si mesmas: diversos graus de não necessidade;
4. as criaturas são mais ou menos perfeitas: graus de perfeição;
5. as criaturas são finalizadas: experiência da ordem do universo.
13

2) Aplicação da causalidade ao ponto de partida.


Em relação aos diferentes pontos de partida, a causalidade se manifesta em todas as
vias da seguinte forma:
1. Tudo o que se move é movido por outro;
2. toda causa subordinada é causada por uma outra, ou melhor, é impossível que alguma
coisa seja causa eficiente de si mesma;
3. o ser contingente é causado por ser necessário;
4. toda perfeição que se dá segundo os graus diversos é participada (e portanto causada);
5. a ordem a um fim é causado.

Os entes dos quais partimos se mostram como efeitos; então, "porque os efeitos
dependem das suas causas, posto o efeito, é necessário que a sua causa preexista", por isto,
de todo efeito é possível demonstrar a existência da causa própria do seu ser. Não existem
efeitos absolutos, desligados ou independentes; todo efeito pressupõe uma causa da qual
depende no seu ser.
A causalidade tem valor ontológico; não é percebida pelos sentidos, mas é
"intelletta", ou seja, percebida pelo intelecto. Se pode compreender, e de fato se
compreende, que a causa é o que comunica o ser, contra o fenomenismo de Hume e a
particular teoria kantiana da causalidade, já tratada e criticada precedentemente: tudo o que
começa a ser tem necessidade de uma causa eficiente, e todo efeito não tem em si a razão de
seu ser, mas na própria causa.

Como é possível aplicar a causalidade a Deus? Se Deus, uma vez que se demonstra a
sua existência, se nos apresenta como infinito, eterno, imutável, etc..., como pode uma causa
infinita, eterna, imutável produzir, causar efeitos finitos, temporais ou mutáveis? A
causalidade enquanto tal não diz de per se imperfeição; por isto pode ser aplicada a Deus.
Além disso, entre a causa e o efeito não há nenhuma interdependência, correspondência bi-
unívoca ou relação recíproca: necessariamente o efeito mostra sempre uma dependência da
causa, mas o relacionamento inverso não é por nada necessário, como pensava Kant.
Este é um argumento fundamental da teodiceia, que encontra os seus pontos de
aplicação, como veremos, na transcendência de Deus (suprema superioridade do Ser divino)
e na relação de criação (não há relação real entre Deus e a criatura devida à causalidade
criadora: Deus não depende por nada e não é relativo a nada; enquanto que as criaturas,
enquanto efeitos, dependem de Deus: têm uma relação real com o Absoluto). Não existem
efeitos absolutos, mas podem existir uma relação absoluta.
No procedimento argumentativo das vias, se parte do efeito para chegar à causa. O
desenvolvimento do raciocínio leva do efeito próprio à causa própria. Se queremos que a
argumentação seja rigorosa, é preciso ter em conta que a causa sobre a qual estamos nos
interrogando é a causa própria do ser do efeito do qual partimos. Causa própria é aquela
que, por primeiro e por si, imediatamente e por si mesma, pode produzir um efeito
determinado, e da qual em último termo e imediatamente depende o efeito. Não se trata,
portanto, de uma causa qualquer ou de uma outra causa também esta prévia à realização do
efeito, ou de uma causa acidental.

3) Como corolário do princípio precedente, algumas vias apresentam a prova da


impossibilidade de proceder ao infinito na série de causas. Isto se refere às três primeiras
vias; e mesmo se nas outras duas, a quarta e a quinta, não s encontra este elemento comum
14
às três primeiras, este pode facilmente ser aplicado também a elas. Na quarta via, a via
metafísica por excelência, esta aplicação é desnecessária porque toda a série de participantes
e participados está contida no ponto de partida.
O que significa a impossibilidade do processo ao infinito na série das causas?
"Quando se quer demonstrar a existência de Deus a partir de um efeito qualquer que se nos
manifesta na nossa experiência, começamos com o estabelecer que um efeito tal deve ter
necessariamente uma causa, mas que esta causa pode ser segunda, e nós queremos chegar à
causa primeira, então precisamos interrogar-nos acerca da causa da causa segunda, que, por
ser segunda, é também causada, isto é, exigirá uma outra causa, e assim sucessivamente.
Ora, não é possível, digamos, retroceder ao infinito na série das causas subordinadas, mas
devemos necessariamente chegar a uma causa primeira incausada".
A busca e o encontro da causa própria do efeito tomado como ponto de partida, pode
ter valor somente se na série das causas subordinadas em ordem à produção do efeito não é
admissível um processo ao infinito. A série das causas não pode ser infinita, isto é, não é
possível afirmar a possibilidade de um efeito privado de causa. Se se supõe, como fez Franz
Brentano (1838-1917), que o efeito procede de uma série infinita de causas, das quais
nenhuma é a primeira, é evidentemente necessário, também se tirássemos todas as causas
segundas, que permaneça um fundamento explicativo do efeito resultante da série. Se não
permanece absolutamente alguma causa, o efeito poderia ser explicado igualmente bem sem
a necessidade de alguma causa. Em outro termos: quem admite que um efeito possa derivar
de uma série infinita de causas segundas, sem nenhuma necessidade de uma causa primeira,
deve também admitir que um efeito é possível sem nenhuma causa. Para explicar isto,
tomemos um exemplo. Um elo está ligado a um outro e este, por sua vez, a um gancho
fincado no forro de um quarto. Quem acreditará que aquele gancho é supérfluo, e que o
primeiro elo está preso ao segundo, e o segundo ao terceiro e assim sucessivamente in
infinitum? Isto seria tão ilusório, quanto a explicação dos indianos, que justificavam o
estado de quietude da terra no espaço cósmico pensando que o nosso planeta fosse
sustentado por quatro elefantes e cada um destes, por sua vez, por outros quatro, e assim ao
infinito.
A este ponto é necessário fazer uma distinção importante: as vias tratam da
impossibilidade de um processo in infinitum das causas essencialmente subordinadas no
presente (causas subordinadas são aquelas que constituem uma série em ordem à obtenção
de um efeito) e não de causas acidentalmente subordinadas no passado.
Entendemos aqui por causas acidentalmente subordinadas no passado aquelas pelas
quais não ocorre a atuação no presente de todas as causas para que se dê o efeito último. Por
exemplo, na série de causas: o filho, o pai, o avô, etc... não é necessário que as causas
precedentes atuem no presente, para que exista o efeito último. Ao contrário, consideramos
causas essencialmente subordinadas no presente as que devem atuar no presente para que se
obtenha o efeito último. Na série de causas: a pedra que se move, o bastão que move a
pedra, a mão que move o bastão, etc.. é preciso a necessária atuação de cada uma delas no
momento presente, a fim de que se obtenha o efeito último.
As causas acidentalmente subordinadas no passado têm razão de causa particular, ou
causa autônoma, e podem ser infinitas. Em último termo, as causas acidentalmente
subordinadas no passado dão somente razão do fieri (tornar-se) do efeito, enquanto que nós
estamos tratando de encontrar a causa do ser, que pode ser encontrada mediante a pesquisa
das causas essencialmente subordinadas no presente. As primeiras dão razão da causalidade
predicamental, ao passo que as segundas alcançam a causalidade do ser (do existir), a
causalidade transcendente.
15

O que se entende por processo ao infinito? É um percurso sem fim através de uma
série de passagens a partir do efeito considerado. É preciso recordar que o infinito do qual se
trata nas vias é um infinito metafísico (série de causas de efeitos reais metafisicamente
considerados) e não um infinito matemático (que tem valor simplesmente lógico e formal),
nem um infinito físico, no qual as causas são unívocas e explicam somente o fieri (o
acontecer sucessivo) do efeito.
Dois textos, de Tomás e de Aristóteles, que evidenciam como, se se desse um
processo ao infinito na série de causas eficientes (essencialmente subordinadas no presente)
em ordem à produção de um efeito, não existiria causa primeira:
1) "Em todas as causas eficientes ordenadas, o primeiro é causa do meio, e o meio do
último, seja no caso da presença de um só meio, como no caso de mais meios. Ora, tirado o
primeiro, o meio não poderia ser causa. E se se procedesse indefinidamente na série das
causas eficientes, nenhuma seria causa primeira. Portanto, desapareceriam todas as causas
médias. E isto é manifestamente falso" (Summa contra Gentiles, I, 13).
2) "De fato, numa série de termos médios, primeiro e depois dos quais existe um outro
termo, necessariamente o termo anterior é causa daqueles que são sucessivos a este. Se, na
verdade, nós devêssemos determinar qual destes três termos é causa, diríamos sem dúvida
que é o primeiro, já que não é certamente causa nem o posterior, pelo fato que o termo final
não é causa de nada, nem o mediano, sendo este causa só de um outro termo (não há
diferença se se trata de um só termo médio ou mais de um, e se estes são numericamente
infinitos ou finitos). Mas tanto as séries concebidas como infinitas neste modo quanto o
infinito em geral têm todas as suas partes igualmente intermédias até que não se chegue ao
termo ora em questão; portanto, se não existe um primeiro termo, não há absolutamente
nenhuma causa" (Metafísica, livro II, 2)

4) O termo das vias.


Cada uma das vias termina na afirmação necessária da existência de Deus:
a) primeiro motor imóvel (I via);
b) causa eficiente incausada (II via);
c) necessário não por outro (III via);
d) ser por essência (IV via);
e) primeira inteligência ordenadora (V via).
Somente a correta compreensão do significado das passagens, expostas aqui
sinteticamente, pode permitir colher a eficácia probatória da existência de Deus. Tendo
presente o que consideramos, podemos passar agora à análise de cada uma das vias.

2.2.3 As cinco vias de S. Tomás de Aquino

Primeira via: a partir do movimento

a) Partimos do fato de que no mundo existem muitos movimentos. O termo


"movimento", no caso, não significa apenas deslocamento, mas tem o sentido geral de
mudança ou de passagem da potência para o ato: é o vir-a-ser que caracteriza as coisas
deste mundo.
16
b) Ora, qualquer ser que muda (é movido), requer o influxo de algum movente que
seja distinto dele. De fato, quem precisa de mudar para adquirir uma perfeição, não possui
tal perfeição em ato, mas apenas em potência (enquanto pode vir a tê-la). Por outro lado,
mover é comunicar, dar, e, para poder dar uma perfeição, é preciso já tê-la em ato, pois
ninguém dá o que não tem. Por conseguinte, para que alguma coisa se mova ou mude, deve
receber algo (que ela não tem) de outro ser (que chamamos movente), porque ninguém dá a
si mesmo o que ele não possui.

c) Na série de seres movidos-moventes, não é possível proceder ao infinito.

d) Portanto, deve haver um primeiro movente que não seja movido por outrem, mas
que tenha em si mesmo a razão de ser do seu movimento; é o primeiro movente imóvel,
absoluto ou Deus.

Considerações importantes a respeito da primeira via:


1. O fato do vir-a-ser (mudança / movimento). No âmbito da realidade corpórea, o
movimento e a mudança são universais e facilmente experimentáveis. No mundo existem
alguns seres que se movem (mudam). Trata-se, aqui, do movimento metafísico, ou melhor o
movimento considerado metafisicamente. Não está em jogo a noção científica de
movimento. A existência do movimento é o que conta; e o que esta primeira via considera é
justamente uma explicação ao fato que o movimento existe; e esta procura encontrar a
causa, explicar porquê há movimento neste mundo. Considerando a definição metafísica de
movimento: passagem da potência ao ato, ou, como escreve Aristóteles "ato do móvel
enquanto é móvel". Se diz potência o que pode ser alguma coisa, mas ainda não o é; e ato o
que já é. O ato e a potência dividem o ente criado: todo ente finito é realmente composto de
potência e ato; é preciso evidenciar que o ato de per se diz perfeição e não implica limite.
Por isso, ato e ser devem ser considerados como idênticos; e o sujeito que se move está em
ato porque é (existe).

2. Tudo o que se move se move por causa de outro. Se o movimento é explicado


em função da passagem do ser em potência ao ser em ato, a aplicação do princípio da
causalidade ao movimento é logo esclarecida: tudo o que se move se move por causa de
outro. Qual pode ser a causa pela qual um ente progressivamente se torna o que pode ser,
mas ainda não é? Por que ainda não é o que está para tornar-se? O ente que muda não pode
ser a causa da sua mudança. Se assim fosse seria afirmar que pode dar a si mesmo o que não
tem. Conseqüentemente, todo movimento ou mudança é causado por algo que já é o que o
sujeito do movimento está para se tornar. Em termos técnicos dizemos que nada pode ser
levado da potência ao ato, senão por algo que já é em ato. Um corolário imediato desta
conclusão é que nada pode mover a si mesmo. Caso contrário, se vai contra o princípio de
não-contradição, e assim não se dá uma adequada explicação do movimento, que justamente
fundamenta-se neste princípio.

3. Proceder ao infinito (na proposição c). Proceder ao infinito significa retroceder


sem fim... Observamos, porém, que uma série composta de moventes-movidos não pode dar
a razão suficiente das respectivas mudanças; em tal série todos os moventes são
subordinados ou condicionados, são simples intermediários. Por isto, por mais que se
aumente o número dos moventes intermediários, sempre faltará o movente independente, a
fonte primeira, razão suficiente do movimento transmitido; se não, para dispensar a
17
locomotiva, bastaria aumentar o número dos carros da composição! Uma série indefinida de
moventes-movidos poderia ser comparada a um canal que se prolongasse muito, mas fosse
destituído de fonte; porém, se não há fonte, não há nem intermediários (ou canal) nem há
efeito. Um conjunto numeroso (diga-se: infinito) de espelhos a refletir uma imagem não dá
conta, por si só, da imagem neles espelhada; cada um apresenta uma figura refletida,
dependente, que supõe a figura que se espelha, absoluta.
Poder-se-ia replicar que o processo do movimento se verifica desde toda a eternidade; por
isso não tem princípio. Neste caso, porém, seria desde toda a eternidade que a série dos
moventes dependentes exigiria um Movente Absoluto, independente; o simples fato de
haver movimento o pede; o tempo ou a duração é apenas medida do fato, mas não constitui
uma fonte de energia.
Existe, portanto, um princípio de todo movimento, que por si mesmo possui sua atividade,
sem depender de outro. E tal Movente Absoluto é chamado Deus.

4. Como podemos afirmar que o Primeiro Motor imóvel é Deus? Este é Deus
porque move sem ser movido, é absoluto e absolutamente desligado de todo motor e de todo
móvel. Move sem ser movido, isto é, "age sem passar da potência ao ato, mas
permanecendo em ato, ou seja, identificando-se com o próprio agir; e, dado que o agir
depende do ser e o modo de agir segue o modo de ser, o ser que tem por essência o próprio
agir, terá também por essência o próprio ser, e portanto será o ser simplicíssimo e
atualíssimo, o Ser subsistente, isto é, Deus. S. Tomás chega assim à existência de Deus
como Primeiro Motor Imóvel. As características do motor imóvel são as mesmas que todos
atribuem a Deus e somente a Ele.
As conseqüências do fato de haver um Primeiro Motor Imóvel são:
1. O Primeiro Movente imóvel é infinitamente perfeito. Sim, toda mudança implica
imperfeição. Portanto, pelo fato de ser absolutamente imóvel, o Primeiro Motor possui
toda perfeição ou possui a plenitude do ser. Com outras palavras: é Ato Puro.
2. O Primeiro Movente imóvel é espiritual, pois a matéria se desgasta, é essencialmente
imperfeita. Sendo espiritual, O Primeiro Movente deve ser também dotado de
inteligência e de livre vontade, pois estas são propriedades essenciais do seres
espirituais.
3. O Primeiro Movente imóvel é eterno, ou seja, não teve começo nem terá fim, pois a
temporalidade é a medida do movimento.
4. O Primeiro Motor imóvel é todo-poderoso, pois é princípio do movimento do universo
inteiro; por conseguinte, por seu poder está presente a tudo aquilo que ele move ou a
todo o universo.

Segunda via: a partir da causalidade

A segunda via parte do fato de que existem múltiplas causas neste mundo, concatenadas
entre si numa linha de dependência e subordinação: a fruta de uma árvore, por exemplo,
supõe a árvore, a árvore supõe a fecundidade da terra; esta supõe a ação do sol e da chuva;
estes, por sua vez, supõem outros fatores... Já que é impossível o processo ao infinito, é
necessário admitir finalmente uma primeira causa causante e não causada ou a Causa
Absoluta, que é Deus:

CAUSANTE
NÃO CAUSADO
O ABSOLUTO, DEUS
18
causada... 
causada  causante
causada  causante
causa causada  causante

À guisa de objeção, há quem diga que a causalidade poderia circular: os elementos do


universo seriam entre si causas recíprocas; a matéria se transformaria em energias diversas,
para depois retornar ao seu estado original e assim indefinidamente. Tal era a posição de
filósofos gregos, que não tinham a noção de criação; tal é também a de Nietzsche (+1900),
que falava do "eterno retorno". Contudo, a prova apresentada é independente de evolução
(causalidade) linear ou circular; a circularidade refere-se à transmissão de energia, mas não
explica a fonte dessa energia e da causalidade respectiva. Resta explicar a existência do
universo concebido como um todo.

A terceira via: a partir da contingência

O mundo físico é composto de seres contingentes. A realidade que vemos, não era e
veio a ser. Ora, se tudo fosse contingente, não haveria começo de ser, nada existiria – o que
é falso. Donde se conclui: ou Deus, o Ser Absoluto, Necessário, não contingente, existe e é a
razão suficiente de todos os demais seres, que são contingentes... ou nada existe.

Deus não recebeu o ser (existência). Ele é o ser (existência). Todos os demais
receberam o ser (existência).

O panteísmo levanta uma objeção. Admitem, sim, um ser necessário, não, porém, um
Deus pessoal (isto é, inteligente e livre, cheio de amor e bondade); o ser necessário seria o
próprio mundo tomado como conjunto e concebido como um ser único e infinito. Panteísmo
vem de pan (= tudo) e theós (=Deus), em grego; tudo (o universo) seria a Divindade,
substância neutra e poderosa.
Ora, o panteísmo é ilógico, pois identifica a Divindade (que, por definição, é perfeita,
absoluta, eterna) com a realidade material (que é imperfeita, contingente e passageira). Com
outras palavras: o todo, que é a soma das partes, não pode ser de natureza diferente das
partes. Ora, o mundo é composto de seres contingentes e limitados. Por isso, o mundo
também é contingente e imperfeito, como cada uma de suas partes; não existe por si mesmo.
Daí concluir-se que a existência do mundo só pode ser compreendida se há um ser existente
por si mesmo, que é Deus.

Quarta via: os graus de perfeição

Este argumento procede do fato de que existem perfeições em graus limitados neste
mundo (existem mais amor, menos amor, mais bondade, menos bondade...). Desta realidade
se deduz a existência de um ser ilimitadamente perfeito, que é Deus. Já Platão (+ 347 a. C.)
propunha tal argumento, quando exortava a alma a amar a beleza, elevando-se da beleza das
cores, das formas do corpo, para a beleza da alma e das belas ações, para a beleza das
ciências... até contemplar a Beleza em si mesma isenta de acréscimo ou diminuição, "bela
em tudo, sempre e em toda parte", "beleza que não reside num ser diferente dela mesma...,
19
mas que existe eternamente e absolutamente por si mesma e em si mesma; da qual
participam todas as outras belezas, sem que o nascimentos destas ou a sua destruição lhe
traga a menor diminuição ou o menor acréscimo, nem a modifique em qualquer coisa que
seja" (Banquete 211C).

Conceitos básicos:
a) Uma coisa é perfeita (per facta, acabada) quando nada lhe falta do que convém à
sua natureza, isto é, quando está totalmente atualizada ou em ato. É imperfeita, quando está
em potência para adquirir ulterior atualização. Donde ato, por si, diz perfeição; potência
diz imperfeição, capacidade de perfeição.
b) Uma perfeição pode ser:
== simples (pura), quando o seu conceito diz somente perfeição, sem envolver noção
alguma de imperfeição, de modo que em qualquer hipótese é sempre melhor essa perfeição
do que não a possuir; por exemplo, bondade, sabedoria, justiça, vida...
== mista, quando o seu conceito implica alguma imperfeição; por exemplo,
racionalidade, sensibilidade, corporeidade... A racionalidade só chega à verdade mediante
silogismos, ou seja, de modo lento e sujeito a erros; melhor seria a intuição direta.

Explanação
a) Existem nos seres deste mundo perfeições simples diversamente limitadas: mais
amor, menos amor,... mais bondade, menos bondade...

b) Ora uma perfeição simples limitada é necessariamente uma perfeição participada e


causada, que um ser possui como recebida de outro.
Com efeito, uma perfeição simples não tem em sua essência a razão suficiente de
uma limitação. Ela não implica nenhuma imperfeição ou nenhuma falta dessa mesma
perfeição. Assim na essência da justiça, da bondade, da beleza..., enquanto tais, não está
contida alguma negação de justiça, bondade, beleza...
Se portanto alguma perfeição simples existe em grau limitado, ela não subsiste por si
mesma e em si mesma, mas é causada por outrem e recebida numa potência que dela
participa segundo a própria capacidade, e não mais; João é sábio limitadamente, porque não
é a própria sabedoria subsistente, mas dela tem uma participação proporcionada à sua
capacidade, isto é, à sua potência de saber, que passa progressivamente ao ato.
Fica, pois, evidente que uma perfeição simples limitada é necessariamente uma
perfeição participada, recebida num ser como causada por outro.

c) Sendo real a existência de perfeições simples limitadas, real também deve ser a
existência da causa. Tal causa é a própria perfeição existente por si em sua plenitude ou em
grau infinito: a Bondade mesma, a Justiça mesma, o Amor mesmo...

d) Ocorre, porém, que perfeições simples subsistentes de modo ilimitado, implicam-


se umas as outras num único ser infinitamente perfeito, que é Deus.
De fato, qualquer perfeição infinita inclui na sua essência a própria existência. Esta
existência infinita inclui em si todas as modalidades de existência; por identidade, ela é
todos os modos de existência: é a Bondade, a Justiça, o Amor...
Por isto no ser infinitamente perfeito as várias perfeições não constituem realidades
distintas; cada perfeição significa explicitamente aquela perfeição e implicitamente
20
bondade, justiça, amor, verdade... Nós as distinguimos por causa da limitação da nossa
inteligência, incapaz de exprimi-las todas num conceito único, que deveria ser infinito.

Em conclusão: a quarta via nos leva ao conhecimento de Deus como Ato Puro, Ser
infinitamente perfeito, Existência mesma subsistente. Ora tal é o constitutivo mais íntimo da
natureza divina, a sua essência metafísica, da qual, como de sua raiz, segundo o nosso modo
de entender, se derivam todos os atributos de Deus. Esse Ser Supremo, na quarta via,
aparece como:
== causa exemplar, que todos os seres imitam pelo fato de participarem
limitadamente de suas perfeições;
== causa final, para a qual todos tendem;
== causa eficiente, da qual todos os seres recebem a existência participada.

Quinta via: ordem e finalidade no universo

Tal argumento é também chamado finalista, porque parte da atividade de seres que
agem para um fim, em oposição à atividade casual. É outrossim dito "a prova cosmológica"
(de cosmos = ordem, beleza, universo ordenado). Eis como procede:

a) Quem considera o universo, não pode deixar de nele verificar ordem estupenda e
tendência de múltiplos elementos (por si indiferentes a múltiplas possibilidades de
concatenação) em demanda de um fim bem determinado.

O "macrocosmos", por exemplo, ou o mundo dos astros apresenta um conjunto de


corpos sabiamente coordenados dentro de proporções "astronômicas", ou seja, que escapam
às cifras com que o homem habitualmente lida na terra.

O "microcosmos" ou o mundo do átomo reproduz simetricamente a estrutura do


"macrocosmos" ou, mas precisamente, do sistema solar; as minúsculas dimensões e as
enormes velocidades dos corpúsculos que giram dentro de um átomo atingem por sua vez
cifras astronômicas.

No mundo dos viventes, a harmonia dos elementos que constituem um vegetal ou um


animal causa surpresa, dada a complexidade das funções concatenadas em vista da
conservação e da defesa da vida. Basta recordar a estrutura de um olho, de um ouvido.
Tenha-se em vista outrossim que, quando se extrai um rim de um organismo doentio, o
outro logo se desenvolve além das proporções necessárias ao metabolismo normal. Por que
isto? Porque a natureza parece querer possuir uma reserva, "prevendo" o caso eventual de se
tornar necessário o trabalho equivalente ao de dois rins. Tais exemplos se poderiam
multiplicar.

b) Tão maravilhosa ordem, tão segura tendência a um fim supõem exista uma
Inteligência que as tenha concebido e produzido.

Ordem significa adaptação de diversos elementos entre si em vista de certa finalidade


a ser obtida. Ora a adaptação supõe a intuição de um efeito ainda não existente na realidade
concreta, mas existente idealmente, ou seja, num intelecto, de modo espiritualizado,
21
superior ao mundo corpóreo, sensível. Ordem supõe a intuição da natureza íntima ou da
essência de cada um dos seres que estão para ser adaptados; supõe o conhecimento daquilo
que é perene e latente sob os fenômenos sensíveis e variáveis que cada corpo dá a ver.
Somente quem percebe a estrutura íntima dos seres, sabe utilizá-los como meios para obter
determinado efeito.
Pois bem, um conhecimento tal é característico de um espírito ou de um ser dotado
de inteligência (inteligência e espírito se evocam mutuamente). Só a inteligência é capaz de
comparar e apreender as qualidades que podem relacionar ou ligar elementos aparentemente
desconexos entre si.

Quem realiza a análise física e química de um relógio, parece explicar perfeitamente


as propriedades de cada uma das peças: a resistência dos metais, a força das molas, o
processo das alavancas, etc. Contudo esse estudioso não explica a escolha de tais peças, nem
a sua associação em um maquinismo apto à contagem do tempo. A razão de ser de tal
associação não é indicada pela análise das peças do relógio; não se acha latente em nenhuma
de suas molas; nenhuma, por sua natureza, explica por que está assim correlacionada com as
demais. Tal razão de ser está, sim, contida fora do relógio, num ser real existente; foi este
que por sua inteligência concebeu e realizou a combinação de elementos necessária ao fim
preconcebido de marcar o tempo.

c) O Ser Inteligente que, por via destes raciocínios, se chega a descobrir, há de ser
absoluto, ilimitado, incriado, pois a Ele se deve não apenas o ato de dispor em ordem alguns
ou muitos seres que Ele concebe em sua mente (deixando de parte outros seres possíveis),
mas igualmente o de conceber o plano do universo e de cada um de seus componentes.

Essa causa total da ordem natural só pode ser o Autor dessas essências, Aquele que
as tirou do nada e as criou. Por conseguinte, a Inteligência Ordenadora é também a
Inteligência Criadora. Com outras palavras: a Inteligência Ordenadora, para explicar
totalmente a ordem (= ser causa total da ordem), deve necessariamente ser subsistente por si
mesma (não depende d outrem), infinitamente perfeita e criadora, atributos estes que
convêm unicamente ao ser que chamamos Deus.

Assim a ordem do universo é a grande janela aberta sobre o além, pela qual vemos
passar a sombra de Deus: "Deus é o Invisível evidente" (Vitor Hugo). A alguém que pedia
uma prova da existência de Deus, Newton (+1704) indicou o firmamento e disse uma só
palavra: "Vede!".

Objeções
Contra a quinta via se levantam algumas objeções:
1. No universo apontam-se muitas imperfeições e males, que parecem depor contra a
apregoada ordem do mundo.
Não se trata, contudo, no argumento, de saber se o mundo é ou não o mais perfeito
possível. Deus podia ter feito um mundo que nos pareceria melhor: o homem teria asas,
quatro olhos, etc.; mas não o quis, porque criou livremente; escolheu um entre os muitos
mundos possíveis. De resto, a noção de "o melhor mundo possível" é ilógica; não pode
haver um mundo bom em grau superlativo, isto é, em tal grau que não se lhe possa
acrescentar mais bondade, pois o mundo é um conjunto de criaturas limitadamente boas, às
quais sempre se pode atribuir mais bondade; uma série de Perfeições finitas nunca realizará
22
a Perfeição infinita; poderá ser uma série quilométrica, mas sempre finita. No mundo atual
as desordens (o mal no mundo, o acaso) se devem não ao Criador, mas às criaturas.

2. O mal no mundo.
a) Notemos, em primeiro lugar, que o mal não é uma realidade positiva, mas uma
carência; é a ausência de um bem devido. Há dois tipos de ausência: a de um bem que não é
devido (a falta de olhos na pedra), e a de um bem devido (a falta de olhos no homem); a
primeira não é um mal, ao passo que a segunda o é. Da mesma forma, as trevas não são algo
de positivo, mas são a ausência de luz.
b) Por conseguinte, o puro mal não existe; o mal supõe sempre o bem como suporte;
é uma carência que sobrevém ao bem. Comparemos entre o si o bombeiro (extintor de
incêndios) e o ladrão: ambos devem ser corajosos, hábeis, sagazes, inteligentes...; a
diferença, porém, está em que no bombeiro tais valores são aplicados a uma finalidade reta
(salvar vidas), ao passo que no ladrão carecem da orientação para a reta finalidade.

c) Existem dois tipos de mal:


== o mal físico: carência na linha material (cegueira, doença, miséria...);
== o mal moral: carência da reta ordem na linha do comportamento livre do homem
(pecado, vícios...)

d) O mal não tem causa direta. Ele é indiretamente causado por um agente
imperfeito, que seja capaz de falhar em sua atividade. Tal agente só pode ser a criatura;
nunca poderá ser Deus; Este, por definição, é perfeito.

No plano físico, as criaturas são responsáveis pelas deficiências genéticas, pelos


terremotos, pelas tempestades, pelos incêndios... Estes decorrem do exercício das leis
naturais; têm sua explicação na própria natureza das criaturas.
No plano moral, os males (pecados, crimes, guerras...) decorrem do abuso da
liberdade humana.

e) Deus não quer impedir o mal decorrente das limitações das criaturas; para tanto
Ele teria que intervir artificialmente e a todo momento, para coibir o exercício das leis
naturais ou da liberdade humana; teríamos então um mundo de marionetes. Por conseguinte,
Deus permite o mal; Ele não o quer, mas deixa que as criaturas o cometam. Todavia Ele
nunca o permitiria se não tivesse recursos para tirar do mal bens ainda maiores. É S.
Agostinho que afirma: "Deus julgou melhor tirar do mal o bem do que não permitir a
existência de mal nenhum" (Enchiridion XXVIII).
Assim o primeiro pecado tornou-se ocasião para que nos fosse dado o Salvador Jesus
Cristo, com uma riqueza de graças nunca antes possuída: "Ó feliz culpa, que nos mereceu
tal e tão grande Redentor!" (Liturgia da vigília da Páscoa). Quando aos demais casos de
tribulação, não nos é sempre possível assinalar os bens que Deus tinha em vista ao permitir
o mal; como quer que seja, cremos que a Providência Divina não falha, mesmo quando
deixa que uma mãe pereça sem ter educado seus filhos ou que uma criança inocente seja
atormentada pela dor. O fato é que já os antigos pagãos reconheciam o valor positivo do
sofrimento ao dizerem "pathos-mathos": o sofrimento é escola.
23
3. O acaso
O acaso é o cruzamento contingente, isto é, não necessário, nem previsto, de duas
causas independentes uma da outra, das quais cada uma age em vista de um fim
determinado. Assim, por exemplo, dois amigos se encontram por acaso numa cidade para
onde cada um, sem saber do outro, fora a negócios. Vê-se, pois, que o acaso supõe sempre
duas ou mais causas que agem com ordem e finalidade. Os fenômenos ditos casuais só são
casuais para quem ignora as causas que os produziram; por isto o acaso propriamente não
existe como sujeito real.
De resto, a reflexão e o bom senso recusam a hipótese de que este mundo tenha sido
produzido por acaso.
24

II PARTE
A ESSÊNCIA DE DEUS

1. Os atributos entitativos de Deus

1. A simplicidade de Deus
O estudo dos atributos ou propriedades que convêm ao Ser Subsistente inicia com a
simplicidade divina.
Simplicidade significa ausência ou negação de qualquer composição. Não é
equivalente à unidade, pois unidade exprime a negação da divisão. A unidade pode ser
unidade de simplicidade – unidade do ente que não tem partes – e unidade de composição –
a unidade do ente que possui princípios ou partes.
Tomás de Aquino considera os possíveis tipos de composição que acontece nos entes
e depois verifica se estas se dão também em Deus. A conclusão a que ele chega é que Deus
é absolutamente simples, isto é, exclui todo os tipos de composição analisados, que são os
seguintes:
1. Em Deus não há composição de partes quantitativas: Deus não é corpóreo;
2. Em Deus não há composição de matéria e forma: Ele é espírito;
3. Em Deus não há composição de substância e acidentes: Ele é Substância sem
acidentes;
4. Em Deus não há composição de essência e existência: Ele é o Ser Subsistente;
5. Em Deus não há distinção entre suposto e natureza;
6. Deus é absolutamente simples.

1. Deus não é corpóreo


Uma propriedade dos corpos é a quantidade; em Deus não pode haver composição de
partes quantitativas porque não é corpo. Deus é Ato Puro, absolutamente privado de
potencialidade. É evidente que o ato tem prioridade em relação à potência. Do simples
significado dos termos, se compreende que a razão de ato precede à de potência, e que esta
se define em relação ao próprio ato. Isto é evidente porque a potência não passa ao ato senão
em virtude de um ente que já esteja em ato. Ora, tudo o que é em parte em potência,
enquanto está em potência pode não ser, pois o que pode ser poderia também não ser; mas
Deus por essência não pode não ser. Na primeira via vimos que os entes do mundo não
podem passar da potência ao ato em virtude de si mesmos, pois, enquanto estão em
potência, ainda não são; têm necessidade de um ser, anterior a eles, que lhes faça passar da
potência ao ato; e dado que não todos os entes podem ser ao mesmo tempo em ato e em
potência, é necessário recorrer a um ser que seja somente ato sem nenhuma mistura de
potencialidade, que chamamos justamente de Ato Puro ou Deus.
Todos os corpos estão em potência, pois o contínuo é potencialmente divisível ao
infinito. Deus, como Ato Puro, privado de qualquer potencialidade, não pode, portanto, ter
corpo.
Se considerarmos o ponto de chegada da quarta via, ou seja a existência de um ser
veríssimo, ótimo e nobilíssimo; ou melhor; que é Deus a total, digníssima e perfeitíssima
causa de todo ser, se pode compreender com facilidade que a realidade mais perfeita não
pode ser corpórea: de fato, o corpo ou é vivo ou não o é. É claro que o corpo vivente é
25
superior ao corpo não vivente; mas o corpo vivente não vive enquanto é corpo, portanto
deverá viver por outro motivo, assim como o nosso corpo vive graças à alma. Aquilo que
faz o corpo viver é superior ao corpo; portanto, é impossível que Deus seja corpo.
No conhecimento de Deus é preciso evitar todo tipo de antropomorfismo. Deus não é
corpóreo, não tem figura humana nem características corporais. Esta afirmação serve para
refutar a opinião dos primeiros filósofos naturalistas, que julgavam os primeiros princípios
da realidade serem corpos – chamados deuses por eles – e a opinião daqueles que pensaram
Deus dotado de características corporais ou de figura humana.

2. Ausência da composição de matéria e forma: Deus é espírito


Na realidade bastaria mostrar que Deus não é corpo, para excluir dele a composição
de matéria e forma, já que o que é composto de matéria e forma é corpóreo. Todavia, isto
serve para esclarecer ainda mais a necessidade da exclusão de tal composição em Deus.
a) A matéria é potência passiva e Deus é Ato Puro. Em Deus não há matéria, porque
esta se identifica com a potência: a matéria não é outra coisa, na essência de uma realidade,
que a potência, tanto que se denomina ens in potentia. Ora, Deus é Ato Puro privado de toda
potencialidade, como se viu no estudo das vias: portanto, não pode ser composto de matéria
e forma.
b) Todo composto de matéria e forma é bom graças à forma: consequentemente, é
bom por participação, já que a matéria – ens in potentia – participa da forma. Mas Deus é o
primeiro e supremo bem, e não pode ser bom por participação.
c) Todo agente age em virtude da própria forma: o Primeiro Agente per se deve ser
forma per se, sem matéria.
A forma é o princípio da ação enquanto é o princípio de ser: "A mesma forma que dá
o ser à matéria é o princípio da ação, já que tudo o que age, age enquanto está em ato".
Portanto, todo agente age em virtude da sua forma, já que a forma é ato. Consequentemente,
o primeiro agente deve ser forma por primeiro e por si, isto é, por si mesmo e
imediatamente, sem alguma dependência de um agente superior. Já foi demonstrado que
Deus é o primeiro agente: o ponto de chegada da segunda via era justamente a Primeira
Causa incausada, a Primeira Causa Eficiente. Se conclui, assim, que Deus é forma por si e
por essência, e não composto de matéria e forma. Se note que não seria suficiente chegar à
conclusão que Deus tem a forma por primeiro e por si, pois nem mesmo se pode dizer que
tenha o ato de agir, mas é preciso afirmar que é a sua própria atualidade. Ele não é agente
em razão da forma que tem, mas em razão da forma que é, em razão de si mesmo opera por
primeiro e por si.
Deus é forma por si, imaterial e incorpórea, puro espírito.

3. Em Deus não há composição de substância e acidentes: Ele é substância sem


acidentes.
Em Deus não pode existir nada de acidental, pois se assim fosse se encontraria em
um certo modo em potência respeito aos acidentes. Deus é Ato Puro, portanto, não pode
convir-lhe nada como acidente, dado que a relação substância-acidentes corresponde àquela
de potência e ato. Mas em Deus, como vimos, não há nada de potencial.
Além disso, Deus é puro ser, e o ser enquanto tal é a atualidade última de todas as
coisas. Ao ser nada pode ser acrescentado como acidente; antes, os próprios acidentes não
26
são inerentes ao ser, mas à essência (os acidentes, que enquanto tais não têm ser, participam
do ser através da essência ou da substância). E já que se identifica com o próprio ser
subsistente, Deus não pode receber nada como acidente; tudo o que Deus é, o é em modo
substancial: não se pode predicar nada de Deus que inclua na própria noção a razão de
acidente.
Em Deus, portanto, não há composição de matéria e forma nem de substância e
acidentes, e por consequência, aquilo pelo que Deus é Deus – a divindade ou a essência
divina – se identificará com Deus mesmo.

4. Em Deus não há composição de essência e ser: Deus é "O Próprio Ser


Subsistente".
O estudo e a consequente solução do problema se em Deus há composição de
essência e ser, apresenta na realidade a razão última da simplicidade divina. Basta de fato
provar a ausência em Deus de tal composição, para excluir nele os outros tipos de
composição (matéria-forma, substância-acidentes, etc...). Isto é possível porque a diferente
constituição e os diferentes tipos de composição que estamos considerando são alguns entre
aqueles próprios dos entes finitos; mas a composição e a distinção real de essência e ato de
ser é a estrutura última da realidade finita. É esta a estrutura última de todo ente criado.
Consequentemente, se se mostra que em Deus não se dá tal tipo de composição, se
pode facilmente compreender que também os outros tipos em Deus são excluídos e se pode
entrever alguma coisa da simplicidade divina. De uma parte, se se colheu o fundamento
comum, o núcleo teórico das cinco vias, se poderia considerar desnecessária a demonstração
da identidade em Deus de essência e ser: as vias conduzem do ser composto, causado,
participado ao Ser por essência, ao Ser Subsistente, Imparticipado, cuja essência é o seu
próprio ser. Ou, se se preferir, é possível, mediante novos raciocínios que partem das
conclusões de cada uma das vias (exceto a quarta, que oferece já a demonstração no fim da
prova), desenvolve uma argumentação rigorosa que leve a negar em Deus tal tipo de
composição. Todavia, estes raciocínios não são que explicitações do que chamamos o
núcleo teórico comum a todas as vias.

Três são os argumentos de Tomás de Aquino para provar a identidade em Deus de


essência e ser. A ordem dos argumentos parece proceder da menor à maior profundidade
metafísica, culminando no terceiro que se funda na participação.
a) Se o ser divino não se identificasse com a essência divina, deveria ser causado por
alguma coisa de externo. O raciocínio de Tomás é claro. Ei-lo: "Tudo o que em um ente se
distingue (está fora) da sua essência, deve ser causado ou pelos princípios da essência, como
os acidentes próprios procedem da espécie – por exemplo, a capacidade de rir 'segue' a
natureza do homem e é causada pelos princípios essenciais da espécie –, ou por alguma
coisa de externo, como o calor na água é causado pelo fogo. Portanto, se o ser mesmo
(ipsum esse) da coisa se distingue da essência desta última, deve ser causado ou por alguma
coisa de externo ou pelos princípios essenciais da coisa mesma. Ora, é impossível que o ser
seja causado pelos princípios essenciais da coisa, pois nada tem a capacidade de ser causa
do ser de si mesmo. Consequentemente, o que cuja essência é diferente do ser, deve ter o ser
causado por outro. Mas isto não se pode afirmar de Deus, porque Deus é a primeira causa
eficiente. É impossível, portanto, que em Deus o ser seja distinto da sua essência".
b) Um segundo raciocínio parte da tese que se o ser divino não fosse a própria
essência divina, esta seria potência em relação àquela. A este respeito, dois pontos chamam
a atenção: 1) o ser é a atualidade de tudo: não existiriam bondade, humanidade, etc... em ato
27
se não existisse o ser; portanto, se o ser é ato, tudo o que é em um ente além do ser (a
essência) é potência em relação àquele; a relação metafísica de essência e ser é relação de
potência ao ato; 2) Deus é Ato puro, pura atualidade: nada há nele de potencial.
Consequentemente, em Deus não é possível distinguir a sua essência do seu ser, ou seja,
com diz Tomás, sua essência é o seu ser.
c) Enfim, a razão fundamental que explica a ausência de composição de essência e
ser em Deus é tirada da teoria da participação. Se em Deus existisse tal composição, Ele não
seria por si, mas por participação. O ente por participação tem o ser de modo parcial, é
limitado justamente porque não é o ser que tem. Mas se Deus não fosse o próprio ser, teria o
ser, seria por participação e não por essência; receberia o ser de outro e, portanto, não seria
o primeiro ser, o que é absurdo. Em conclusão, Deus é o seu ser, e não somente a sua
essência.

A profundidade e originalidade destas noções tomistas de ato de ser, de ser como ato
da essência, da distinção real de essência e ser de toda realidade criada e a teoria da
participação – núcleo da filosofia de Tomás – se realiza plenamente na reflexão sobre Deus
como o Próprio Ser Subsistente (Ipsum esse subsistens).

5. Em Deus sujeito e natureza se identificam


Em Deus não há composição entre sujeito (ou supposito) – Deus – e natureza –
divindade.
O sujeito é um todo subsistente, e o existente singular completo, uma realidade
individual que existe em si mesmo, com todas as suas perfeições. A natureza (essência
enquanto princípio de operação) é a parte formal. Por exemplo: este homem, João, é um
sujeito (supposito) de natureza racional: pessoa; o seu componente formal é a humanidade,
que o faz ser sujeito especificamente determinado. Do sujeito fazem parte todos os
elementos que tem ou pode ter, enquanto que a natureza compreende somente os que se
referem à espécie.
Tendo presente que as criaturas são sujeitos que tem uma natureza, é fácil
compreender que nos entes corpóreos o sujeito e a natureza se distinguem realmente. Pedro
não é a humanidade. E também nos entes incorpóreos, nas criaturas somente espirituais,
mesmo sendo puras formas (distintas umas das outras em modo específico), enquanto não
são totalmente simples mas compostas de essência e ser), se dá a distinção entre sujeito e
natureza.
Em Deus não há distinção entre sujeito (Deus) e natureza (divindade), pois nele está
excluída a composição de essência e ser, sendo ele O Ser Subsistente, o seu próprio ser.
Deus não tem tudo quanto está nele, mas ele é: não possui a divindade, mas é a divindade.
Enquanto puro ser, a natureza é já o sujeiot; o todo subsistente e a natureza se identificam.
Deus é a Divindade.

6. A absoluta simplicidade divina


O Ser exclui todos os tipos de composição que conhecemos (matéria e forma,
essência e existência; sujeito e natureza) e inclusive a composição de gênero e diferença
específica (espécie). Todas as possíveis composições se reduzem a estas, e com estes
raciocínios se demonstra que em Deus não se dá nenhum tipo de composição: Deus é o
absolutamente simples.
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Para afirmar a simplicidade divina, bastaria mostrar a ausência dos citados tipos de
composição, mas Tomás acrescenta uma série de argumentos para negar, não mais
separadamente, mas no conjunto, todo tipo de divisão em Deus. Ei-los:
- Toda composição é ou implica composição de potência e ato. Mas Deus é Ato Puro
sem mistura alguma de potência; portanto, é absolutamente simples.
- O composto é posterior – ao menos na ordem da natureza – aos seus componentes.
Mas Deus não é posterior a nada, enquanto ele é o Primeiro Ente, como se demonstrou.
- Todo ente composto faz referência à causa da própria unidade, isto é, todo
composto é causado. Mas Deus é a Primeira Causa Incausada; portanto, não há nele
composição: é simples.

Concluímos fazendo duas observações.


A primeira é que a absoluta simplicidade divina não pode ser compreendida pelo
nosso intelecto, visto que nós conhecemos partindo da experiência, na qual encontramos
somente entes que têm uma unidade de composição. O Ser Subsistente, o Ato Puro de ser
não pode ser aferrado pelo nosso intelecto; se o ser participado – ato de tudo quanto há no
ente – resulta inaferrável, por força isto deve valer para O Ser, causa do ser dos entes.
Demonstramos a suprema simplicidade divina, mas não conseguiremos nunca compreender,
por assim dizer, a sua consistência ontológica.
A segunda é que a simplicidade divina não é ausência de conteúdo, mas, ao contrário,
é infinita riqueza, realidade plena possuída em perfeita unidade. A total ausência de
composição não indica nenhum tipo de não ser, não comporta nenhum defeito em Deus; ao
contrário, a suprema simplicidade de Deus é ao mesmo tempo o Todo separado e
infinitamente perfeito.

2. Perfeição e bondade de Deus

1. Deus é maximamente perfeito


A noção de perfeição aplicada ao Absoluto sofreu múltiplas interpretações desde a
antiguidade até hoje. Xenofonte entendeu Deus como suprema perfeição. Utilizaram este
termo Aristóteles, Tomás, Descartes, Spinoza e Leibniz, para os quais é justamente a noção
de ser perfeitíssimo que constitui o atributo mais adequado para Deus.
Para Aristóteles, "perfeito é o que não tem nenhuma parte fora de si". Tomás segue
Aristóteles.
O conceito de perfeição se configura antes de tudo e no seu significado etimológico
como alguma coisa – um efeito – completo na sua realidade; é perfeito o que é realizado
completamente, isto é, o resultado de uma obra levada à termo; por extensão do nome, se
denomina perfeito o que está em ato sem ter sido produzido; e não somente o que chega ao
ato. Assim, é perfeito aquilo (aquele) ao qual (a quem) não falta nada que lhe diz respeito. A
perfeição é chamada também de bondade ou nobilidade. A identificação de perfeição e
bondade deriva do fato que a bondade de um ente depende das suas disposições naturais.
Será todo perfeito aquilo (aquele) ao qual (a quem) se encontram todas as nobilidades que
podemos ver em todos os gêneros.
A perfeição, por outro lado, é sinônimo de forma, pois é esta que coloca nos entes em
um determinado grau ontológico, constituindo-o de modo adequado à sua natureza. Ora, é
perfeito o ato em oposição à potência; perfeição e atualidade se correspondem; por isso,
Tomás, seguindo Aristóteles, identifica formas e perfeições, enquanto justamente as formas
29
são ato; todavia, aprofundando ainda mais as questão do ponto de vista metafísico, as
formas, que são ato na sua própria ordem, devem ser consideradas potências em relação ao
ser, que, enquanto ato dos atos (as formas), se apresenta como a perfeição das perfeições.

O termo "perfeito" não pode ser aplicado a Deus no sentido etimológico, todavia
pode ser aplicado por extensão àquilo que está em ato completo e não foi feito. É preciso
notar que a perfeição não pode ser atribuída em sentido próprio a Deus se olhamos o
significado etimológico do termo: o que não foi feito parece não poder ser chamado
perfeito. Mas, visto que tudo o que é feito passou da potência ao ato e do não-ser ao ser, se
diz com propriedade perfeito, ou seja, totalmente feito, porque a potência é completamente
reduzida ao ato, de modo tal que não há nenhum não-ser e possui o ser completo. Por
extensão do nome, se diz perfeito não somente o que no processo de produção chega ao ato
completo, mas também o que está em ato completo sem ter sido feito. E neste sentido
dizemos que Deus é perfeito.

Perfeito, portanto, é o que no seu ser atual não tem falta de nada. Por isso se afirma
que o ato por si diz perfeição, e a potência imperfeição. O Ato Puro privado de qualquer
potencialidade será o perfeitíssimo. Todo ser é perfeito enquanto está em ato; ao invés, é
imperfeito enquanto está em potência e, portanto, é privado de ato. O que portanto não tem
nenhuma potencialidade, mas é puro ato, deve ser perfeitíssimo. Deus tem tal característica,
portanto, é perfeitíssimo.
Deus é perfeitíssimo e, além do mais, todas as perfeições dos entes existem nele:
todas as perfeições dos entes (efeitos) se encontram em modo indiviso e em grau eminente
no Ser (causa); tal verdade pode ser provada por diferentes pontos de vista, mas
especialmente a partir da causalidade eficiente, e porque Deus é O Próprio Ser Subsistente.
Considerando a causalidade eficiente afirmamos que em Deus existem todas as
perfeições das coisas, pois é Ele a sua causa efetiva. Quanto existe de perfeição no efeito
deve existir na causa efetiva. Deus é a causa primeira dos entes, portanto "é necessário que
pre-existam nele de modo eminente as perfeições de todos os seres. E enquanto existem em
Deus de modo eminente e indiviso todas as perfeições, estas não podem aumentar. A
criação não acrescenta a Deus nenhuma perfeição; os seres criados têm uma série de
perfeições graduadas e não aumentam a perfeição divina.
Considerando Deus como O Próprio Ser Subsistente afirmamos que a perfeição de
todo ser é proporcionada ao seu ser. E porque Deus é O Ser por essência, não pode faltar
nenhuma perfeição que se encontre nos entes. Deus é o Ser Subsistente, portanto, deve ter
em si a inteira perfeição do ser. Se, por exemplo, um corpo quente não tem toda a perfeição
do calor, isto se deve evidentemente ao fato que não participa em toda a sua intensidade;
mas se existisse um calor em si subsistente, não lhe faltaria nada da sua intensidade.
Portanto, se Deus é o próprio ser subsistente, não pode faltar-lhe nada da perfeição do ser.
As perfeições de todas as coisas pertencem à perfeição do ser, portanto, são perfeitas
enquanto têm o ser em um certo modo. Consequentemente, a Deus não pode faltar a
perfeição de nenhum ente.
As perfeições das realidade finitas pertencem à perfeição do ser. Se o ato por si diz
perfeição, o ato de ser significa a máxima perfeição. O Ser é o perfeitíssimo, dado que se
relaciona a todas coisas como seu ato. Nada tem atualidade senão enquanto é; por isto, O
Ser (Ipsum Esse) é a atualidade de todas as coisas, inclusive das próprias formas.
Consequentemente, Deus, enquanto Ser Subsistente, é perfeitíssimo e possui de modo
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eminente as perfeições existentes nas criaturas; assim que se pode considerá-lo Perfeição
suprema, a própria Perfeição Subsistente.

O racionalismo, esquecendo o ser, identifica a perfeição com a essência. Assim fez


Descartes quando nas suas demonstrações da existência de Deus, concebe este como ideia
ou essência perfeitíssima, identificando a perfeição com o conjunto dos atributos que
pertencem a um ente. Para Spinoza, perfeição e realidade ou entidade se identificam, mas
para ele a entidade é a essência, pela qual todo ente existente é perfeito, e Deus ou
Substância divina infinita produz o que é mais perfeito, dado que as coisas não podem
"melhorar", ser mais perfeitas ou diferentes do que são.
Para Leibniz, a perfeição é o "grau de realidade positiva" que coincide com a
"inteligibilidade afirmativa". O mais adequado conceito de Deus, segundo o argumento
ontológico, é o de ser perfeitíssimo. Por motivos diferentes dos de Spinoza, o "otimismo"
metafísico leibniziano se baseia também no conceito de perfeição. Em consonância com tal
teoria que identifica a perfeição com a essência, e esquecendo o ser, Descartes, Spinoza e
Leibniz procuraram demonstrar a existência de Deus, enquanto a existência seria uma das
perfeições da essência. Mas a existência transcende a essência, como mostraram as críticas
de Tomás e de Kant.

2. Deus como Sumo Bem


a) O bem não se distingue realmente do ser.
Ser e bem se convertem. O bem e o ser na realidade se identificam; estes se
distinguem somente no intelecto. De fato, a noção de bem diz respeito ao ente enquanto
apetecível, e por isso Aristóteles diz que o bem é o que todas as coisas apetecem. Mas os
entes são apetecíveis na medida de suas perfeições, dado que toda coisa busca a própria
perfeição, e são tanto mais perfeitas quanto mais em ato estão. É assim evidente que alguma
coisa é boa enquanto é ente, pois o ser é ato universal. Consequentemente, o bem e o ente
são na realidade uma só coisa, mesmo se o bem significa a razão de apetecível, que não é
significada pelo ente.
Algo é bem, portanto, na medida em que é: o bem acrescenta somente ao ser a razão
de apetecibilidade; consiste na própria atualidade do ente, enquanto esta é fonte de
perfeição. Ao contrário o mal propriamente é um não-ser, uma privação. De fato nada é mal
por causa do ser que possui, mas pelo ser que lhe fata: assim se diz que um homem é mau
enquanto lhe falta a virtude; e se dizem maus os olhos aos quais falta uma boa capacidade
visiva; o bem se funda no ato de ser, é um positivo, enquanto o mal, que é o contrário do
bem, é uma privação ou negação.

b) Deus é o bem por essência.


Deus é o Sumo Bem subsistente porque é o Ser por essência ou o Ser Subsistente. Os
seres são bons enquanto são perfeitos. A perfeição se realiza segundo uma tríplice linha: no
ser, no agir, no fim. Ora, nenhum ente criado pode ter por essência tal tríplice perfeição,
pois somente em Deus a essência e o ser se identificam, e porque a Ele nada pode inerir
como acidente: o que nos entes é acidente, como o poder, a sabedoria, etc..., a Ele convêm
essencialmente. Além do mais, Deus não é subordinado a nada como fim, sendo o fim
último de todas as coisas. Consequentemente, é evidente que somente Deus possui por
essência a perfeição total, e portanto, somente Ele é o bem por essência.
Os seres se dizem bons enquanto participam da bondade: o que não se identifica com
a sua própria bondade é bom por participação. O ente pode participar a algumas perfeições,
31
mas o ser mesmo não pode participar a nada, enquanto o que participa é potência, enquanto
o ser é ato. Deus é o seu próprio ser, portanto, não é bom por participação, mas por essência.

Deus, enquanto Ato Puro é a bondade mesma: o bem próprio de todo ente é de fato o
ser em ato. Se afirmou precedentemente que um ente é bom enquanto é perfeito. A perfeição
de todo ser é a sua própria bondade. Deus, que é em si mesmo a perfeição máxima, é bom
por essência: o bem não é alguma coisa que se acrescenta ao seu ser, mas se identifica com
o ser. Deus não é somente bom, e sumo bem, mas é o que por essência é bom, ou seja, a
Bondade mesma subsistente.

Deus é a Suma Bondade e o Sumo Bem, enquanto compreende e supera


infinitamente todo bem criado: por isso, não é bom em relação a algum gênero ou ordem de
realidade, mas em modo absoluto. É o bem de todo bem, porque é absolutamente perfeito, e
com a sua perfeição compreende todas as perfeições: é bom por essência, enquanto todo o
resto é tal somente por participação, e o que se diz por essência é mais verdadeiro do que o
que se diz por participação.

c) Somente Deus é o fim último das criaturas.


O bem tem razão de causa final. Justamente porque é essencialmente apetecível a
bondade é uma causa final. Não somente, mas é também o que é primeiro e último na ordem
da intencionalidade. O bem satisfaz a tendência, é o seu termo, isto é, a tendência apetitiva
objetiva alcançar o termo que é o seu fim. O bem, portanto, tem razão de causa final pois as
criaturas que existem para um fim, não se dizem boas se não em ordem ao seu fim.
Somente o Bem Sumo (Deus) pode ser o fim último de todo o universo. E porque o
bem tem razão de fim, é evidente que o fim último de todo o universo não pode ser outro
que o próprio Deus, que é a bondade por essência e o bem de todo outro bem. Nada de
criado, mesmo que fosse todo o universo ou o conjunto das criaturas, pode constituir o fim
último, dado que se trata sempre de realidade que são por participação.
Somente a causa primeira (Deus) pode ser o fim último, pois se todo agente age por
um fim, Deus como Causa Primeira não pode agir para conseguir um certo fim, mas tende
somente a comunicar a própria perfeição que é a sua bondade, enquanto todas as criaturas se
dirigem ou tendem a obter a própria perfeição, isto é, uma semelhança da perfeição e da
bondade divinas.
Deus é o bem comum sumo de todas as criaturas. Deus é o sumo bem, o bem de
todos os bens: por isto é o bem comum de todo o universo e de todas as suas partes. Daí se
deduz que toda criatura, ao seu modo e segundo a própria natureza, tem Deus, bem por
essência, como seu fim. Perguntamos: que coisa desejam todos os homens? Alguns tendem
a uma coisa, outros a outra; mas nesta coisa e naquela coisa, que coisa desejam? Todos os
homens querem ser felizes, buscam naturalmente a felicidade. Portanto, a felicidade é um
certo bem comum. Mas a felicidade é alcançada somente com a perfeita satisfação do
apetite, quando não permanece mais nada a desejar e a capacidade de amar é atualizada em
modo pleno; portanto, a razão comum da felicidade é o ser um bem comum perfeito, ou
seja, o estado perfeito de agregação de todos os bens.
A identificação de fim e bem leva à identificação de fim último e bem comum. O
bem comum sumo – transcendente – das criaturas é Deus.

3. Infinitude, imensidade e onipresença


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1. Infinitude
a) Conceitos prévios.
O conceito de infinito é o resultado da reflexão e não da experiência; na ordem
noética (do conhecimento) a noção de infinito pressupõe a de finito, à qual se opõe como
contraditória. Infinito significa falta de limites; indefinido significa que os limites se
estendem continuamente; se prescinde da existência dos mesmos e se diz somente que não
podem ser determinados. Tudo o que existe é finito ou infinito, pois ou tem limites ou não
os tem: no primeiro caso é finito, no segundo, infinito. Se trata aqui de infinito real e não do
conceito matemático de infinito, isto é, aquele que pode ser concebido sem fim, como a
série dos números, ou uma extensão indefinida.
O infinito pode ser considerado em dois modos: segundo o ponto de vista da forma
ou da matéria. O infinito formal significa que a forma ou ato não é limitado pela matéria ou
sujeito no qual se encontra. O infinito material é o que não possui a forma que lhe
corresponde por natureza: é este o infinito em relação à quantidade; assim, enquanto o
infinito formal não tem limites em razão de seu ato, o infinito potencial ou material não tem
limites na própria potencialidade.
A ideia de infinito, por outro lado, como negação dos limites, é uma noção em si
mesma positiva; em efeito, o finito exprime limitação e portanto negação; e o infinito,
enquanto nega o finito, significa alguma coisa de positivo em si, pois duas negações
comportam uma afirmação.
A noção de infinito não pode ser encontrada senão partindo do finito; todavia, a
filosofia moderna desenvolverá os pressupostos contrários a respeito desta observação e
tentará chegar ao finito partindo da ideia do infinito. Como já vimos, para Descartes Deus é
a primeira ideia, que não tem necessidade de uma outra ideia para ser pensada e "com o
nome de Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável"; um ser finito não poderia
ter a ideia de Deus, ser infinito, se este último não tivesse posto neste tal ideia. Deste modo,
Descarte pode afirmar: "tenho, em certo modo, em mim antes a noção de infinito que a de
finito, isto é, tenho primeiro a noção de Deus que de mim mesmo. O caráter teologizante é
uma das principais características da metafísica moderna racionalista e idealista; e, apesar
disto tal metafísica não é contraditória, mas deduzida do primado da subjetividade.

b) A infinitude de Deus.
Deus é o próprio ser subsistente; portanto, Deus é infinito de uma infinitude atual
absoluta. O ato puro não admite potencialidade alguma, não tem em si o menor sinal de
limitação; consequentemente é absolutamente infinito. O ser subsistente não é recebido de
outro, nem se determina em alguma coisa de finito: não é nem uma forma na matéria, nem o
seu ser inere em alguma forma ou natureza, visto que se identifica com o seu próprio ser. Se
deduz, portanto, que é infinito.
Esta tese se fundamenta na afirmação de que o ato, que por si mesmo, significa
perfeição, pode ser limitado somente pela potência que o recebe, ou em outras palavras: o
ato não limita a si mesmo. Portanto, um ato que é puro ato, é pura ausência de limites,
infinitude absoluta.
A infinitude, portanto, é um atributo que pertence a Deus enquanto ele é "o próprio
ser". Por isso, não é preciso dizer que Deus é o seu próprio ser porque é infinito, mas vice-
versa, que é infinito enquanto se identifica com o seu próprio ser.
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Ora, visto que o fundamento da infinitude é o Ser subsistente, é claro que a infinitude
compete somente a Deus; e o Ser subsistente seria infinito mesmo se não existisse nenhum
ente finito.

2. A imensidão de Deus
O atributo "imensidão" exprime a capacidade que Deus possui de ser em todos os
lugares, sem ser medido por estes. A onipresença é, pois, a efetiva presença de Deus em
todo ente: tal propriedade se chama também ubiqüidade quando se quer indicar a presença
de Deus em todos os lugares.
A diferença entre imensidão e onipresença pode ser facilmente compreendida em
base à seguinte consideração: mesmo se não existisse nenhuma realidade finita, Deus,
mesmo não tendo criado nada, seria igualmente imenso, pois não seria limitado por
nenhuma extensão; a onipresença, ao invés, é um atributo que convém a Deus em relação às
coisas criadas.
Deus é imenso porque, enquanto sem extensão e espiritual não é sujeito ao espaço. O
que delimita os entes, o que os "define" e os circunscreve, é a quantidade dimensiva, que
não existe em Deus que é pura simplicidade.
Deus é imenso, ou seja, pode estar em todos os lugares e coisas sem ser circunscrito
por estas, por motivo de sua infinitude no ser e no agir: o seu ser e a sua potência ativa
infinita preenchem tudo, e se estendem a todas as coisas que são ou podem ser, a todos os
espaços, compreendendo-os e ao mesmo tempo transcendendo-os.

3. A onipresença divina
Em relação ao espaço da criação visível, Deus é onipresente, não como contido no
espaço, mas como Causa de todas as coisas: Deus inteiro está em todos os lugares e em
todos os entes, por essência, por potência e por presença, no modo mais íntimo.
A presença por essência de Deus nas coisas depende da participação do ser na
criação. Porque Deus é causa do ser, a sua presença criadora permanece sempre, já que se
não existisse tal permanente ação fundante, os entes cairiam no nada.
Em primeiro lugar, Deus está em todas as coisas não como um acidente, nem como
parte da sua essência, mas como causa, "como o agente está presente naquilo que realiza";
de fato, a força (virtus) do agente está presente no efeito de modo imediato e está unida a
este, porque é próprio da relação causal que todo agente esteja presente unido ao que de
modo imediato realiza, e o toque com a sua força e o seu poder. No primeiro agente, isto é,
em Deus, não se dá nenhuma distinção entre o ser agente e a sua força; consequentemente
ele se encontra unido e presente de modo imediato e necessário em todo seu efeito.
Ora, o efeito próprio de Deus é o ser: Deus causa o efeito do ser nas coisas não
somente quando iniciam a existir, mas também por todo o tempo que o conservam, assim
como o sol continua a causar a iluminação do ar por todo o tempo em que esta permanece
iluminada; consequentemente, deve estar presente em tudo o que tem o ser e segundo o
modo em que o ente singular participa do ser. Mas o ser é o que de mais íntimo há em cada
coisa, o seu ato último, o que de mais profundo está presente em cada coisa. Deus está,
portanto, intimamente presente em todos os entes: segundo a sábia expressão de Agostinho,
Deus é mais íntimo às coisas que estas a si mesmas.
A presença por essência de Deus comporta a presença por potência e por presença.
Se diz que Deus está nos entes segundo a potência, enquanto tudo está submetido ao seu
poder e age por força (virtude) dele. Segundo a presença, enquanto imediatamente ordena e
dispõe cada coisa, e tudo é claramente presente ao seu eterno olhar.
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Uma admirável síntese desta doutrina se encontra na Summa Theologiae, I, q. 8, a.
2.: "Se costuma dizer que Deus se encontra em tudo segundo a essência, a presença e a
potência. Para compreender tal afirmação, é preciso saber que algo se diz ser segundo a
potência naquilo que está submetido ao seu poder, como quando se afirma que o rei está em
todo o reino submetido ao seu poder, sem que ele se encontre neste nem segundo a presença
nem segundo a essência. Se diz que está segundo a presença em todas as coisas que estão
diante de seus olhos, assim como o rei está segundo a presença na sua casa. Se diz que se
encontra segundo a essência naquelas coisas em que está a sua substância, assim como o rei
está em um certo lugar determinado. Dizemos que Deus está por toda parte por potência,
enquanto tudo está sujeito ao seu poder, como se lê no Salmo 138: "Se subo aos céus estás
ali.... Se tomo as asas da aurora e vou habitar no extremo do mar, também ali a tua mão
pousa sobre mim e a tua direita me segura". Por presença, porque tudo o que existe no
mundo está nu e evidente diante de seus olhos. E por essência, enquanto a sua essência é
íntima a todas as coisas. Portanto é absolutamente necessário que todo agente, enquanto tal
agente, esteja unido de modo imediato ao próprio efeito, já que o motor e o movido devem
ser simultâneos. Ora, Deus, é o criador e o conservador de todas as coisas segundo o ser que
lhes é próprio. Portanto, sendo o ser íntimo a todo ente, é claro que Deus está em todas as
coisas segundo a essência, através da qual cria".
Se Deus está em toda parte por essência, presença e potência, lhe pertence,
obviamente, a ubiqüidade: Deus está em todos os lugares: mas está presente não como se
ocupasse um lugar, mas enquanto dá o ser ao lugar. Não se pode esquecer que Deus é o Ser
separado, transcende o mundo e é distinto deste; a onipresença divina é comparável com a
transcendência: Deus está em todas as coisas por essência, potência e presença, como a
causa nos efeitos que participam de sua bondade.

4. Imutabilidade e eternidade do Absoluto

1. Imutabilidade
Todo movimento ou mudança pressupõe em certo modo uma potência passiva, dado
que o movimento é passagem da potência ao ato; mas Deus é Ato Puro sem potencialidade
alguma; por consequência é absolutamente imóvel. Deus não pode sofrer nenhuma mudança
observável no mundo (substancial, geração, corrupção, aumento ou diminuição, alteração,
movimento local) porque o sujeito da mutação é sempre composto, pelo menos de ato e
potência; ora, Deus é simplicidade pura, portanto a Ele compete a máxima imobilidade: esta
é necessária e absoluta e própria somente do Ser subsistente. Somente Deus é absolutamente
imóvel. As criaturas, ao invés, são mutáveis, quanto ao seu fim e à aplicação do seu poder
operativo da realidade múltipla (criaturas espirituais); e também quanto ao seu ser
substancial (criaturas materiais). Além disso, todas as criaturas, tanto as espirituais quanto
as materiais, são mutáveis enquanto do poder de Deus depende o ser e o não ser de toda
realidade criada. De uma parte, Deus somente pode dar o ser, dado que conserva-las
significa comunicar-lhes continuamente o ser; por isto, se Deus suspendesse a sua ação
criadora, todas as coisas tornariam ao nada. Consequentemente, assim como era dependente
do poder do Criador que as coisas, antes de ter o ser em si mesmas, recebessem o ser,
depende também do poder do Criador que cessem de ser agora que já tem o ser. Portanto,
todas as coisas são mutáveis em virtude do poder de um outro, isto é, de Deus, enquanto Ele
pode produzi-las no ser do nada, e pode reduzi-las do ser ao nada.
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A completa imutabilidade divina não é ausência de vida ou passividade; não
imobilidade de uma realidade inerte, mas ao contrário é plenitude de vida e plenitude de
ação, enquanto se diz também que é vivente quem atuo a si mesmo em ordem das próprias
operações, mesmo se não através de um movimento, como no caso de desejar e sentir são
ações vitais. Deus age em grau sumo não por outro, mas por si mesmo, enquanto é a
primeira causa agente; portanto a Ele compete o viver em sumo grau. Deus é atividade
vivente – é Vida – mas imutável. Por outro lado, os desígnios divinos são imutáveis: Deus
não tomas "novas" decisões, nem muda os seus projetos.
De um modo ou de outro, a imutabilidade divina foi negada por aqueles pensadores
que negam a transcendência de Deus. Uma boa parte da filosofia moderna e contemporânea
não consegue conceber a imutabilidade divina, enquanto considera que as relações entre
Deus e o mundo não podem ser explicadas pressupondo a "estaticidade" de um Deus
imóvel. Neste sentido, Deus não é, mas se torna. O Deus dialético hegeliano é um Deus que
se torna "sofredor" portanto, privado de imobilidade. Neste sentido, a influência do Deus
dialético de Hegel é muito forte na teologia contemporânea.

2. A eternidade de Deus
O conceito de eternidade se pode entender a partir do conceito de tempo. Este é
definido como o número do movimento segundo um antes e um depois. Implica a medida
do movimento uma sucessão de partes. A noção de tempo está ligada à de movimento; além
do mais, o tempo pode medir somente o que tem princípio e fim, porque em tudo o que se
move é necessário considerar um início e um fim. Se dá o tempo somente há movimento.
A medida do que é imóvel se denomina eternidade. O ser absolutamente imóvel é um
ser que carece de sucessão e que não tem princípio nem fim. Assim sendo, o conceito de
eternidade se pode formar a partir de duas considerações. Em primeiro lugar, porque o
eterno é interminável, isto é, não tem princípio nem fim; além disso, porque a eternidade
não tem sucessão, enquanto nesta tudo existe ao mesmo tempo. Deus como completamente
imutável não é medido pelo tempo: é eterno. Não se trata, portanto, de um tempo ou duração
infinita, mas de algo que não pode ser medido pelo tempo.
A eternidade divina que negativamente indica atemporalidade, positivamente
exprime a auto-posse perfeita do Ser. A duração da eternidade é inteiramente simultânea;
por isso Agostinho afirmava que na eternidade tudo está presente, diferentemente do tempo,
que não pode nunca ser verdadeiramente presente. O tempo diz respeito à criatura; melhor, é
criado com a criação.
Deus não é somente eterno, mas é a sua própria eternidade; nenhuma outra coisa se
identifica com a própria duração, porque se distingue do próprio ser. Mas Deus é um ser
uniforme, pelo qual a própria essência se identifica com a própria eternidade. O ser eterno é
uma propriedade exclusiva de Deus.
Deus é a sua eternidade porque é imutável. A existência da eternidade divina é, até a
um certo ponto, explicável; mas é difícil compreender em que consiste a eternidade: neste
sentido a via remotionis (a via da remoção) exprime aqui muito pouco dizendo que em Deus
não há início nem fim, não se dá sucessão, nem passado nem futuro, etc. Se a própria noção
de tempo é difícil de explicar – "se ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicar a quem
me pergunta, eu não sei", escreveu Agostinho – com maior razão isto vale para a noção de
eternidade. No fundo, tal auto-posse perfeita do Ser, que exprime a eternidade, não é outra
coisa que o modo próprio da "duração" divina, a medida do ser permanente, a duração do
ser completamente imóvel, do próprio Ser subsistente. A plenitude da vida divina é um puro
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presente sempre em ato, é o "agora" absoluto, enquanto o "agora" do tempo é um agora
fluente.

5. Unidade e unicidade do Ser subsistente. O ser e a beleza.

1. Deus é suma unidade


a) A unidade acrescenta ao ente somente a razão de indivisão. Ente e uno significam
a mesa coisa: se distinguem do ponto de vista nocional, enquanto ente é o que tem o ser, e
uno é o que é indiviso. A unidade é uma propriedade transcendental que pertence ao ente em
modo necessário; todo ente é uno, pelo mesmo motivo que o faz ser ente, isto é, pelo seu ato
de ser. A identidade fundamental e a distinção de razão entre entidade e unidade se explica
assim: "o uno não acrescenta ao ente senão a negação de divisão, dado que 'uno' significa
ente indiviso. Por isto o uno é convertível com o ente. Todo ente, de fato, ou é simples ou é
composto. Se é simples, é de fato indiviso e além disso indivisível. Se é composto, não tem
o ser enquanto as suas partes componentes estão separadas, mas somente, quanto, unidas,
constituem o composto. Daí se conclui que o ser de toda coisa consiste na indivisão, e por
isto os entes se esforçam por conservar o seu ser assim como sua unidade.
b) A unidade pode ser unidade de simplicidade (aquela do ente que não tem partes ou
elementos) e unidade de composição (a do ente composto ou estruturado em uma das
possíveis formas de composição ou estruturas). Deus possui unidade de simplicidade,
porque é indiviso em ato e em potência. A unidade divina é máxima porque não somente diz
indivisão, mas também simplicidade, como se viu: a perfeita identidade divina. Porque o ser
indiviso é único, para que alguma coisa seja em grau máximo é indispensável que o seja
como ser e como indivíduo. Ora, Deus possui estas duas propriedades. É o ser em grau
sumo, enquanto não é determinado por uma natureza que o receba, mas é também o ser
mesmo subsistente e completamente indeterminado. É também o mais indiviso, porque não
admite nem em ato nem em potência nenhuma espécie de divisão, dado que, como vimos, é
absolutamente simples. É claro, portanto, que Deus é uno em grau máximo.
c) Assim como existem graus de intensidade em virtude da maior ou menor
participação ao ato de ser, do mesmo modo há graus diversos de unidade. Todo ente criado
participa segundo graus diversos da unidade de Deus, assim como participa do Ser. Todavia,
esta participação implica composição: o que em Deus é simples e idêntico, nas criaturas é
em modo composto e múltiplo; a participação transcendental produz efetivamente uma
semelhança, mas se trata de uma semelhança degradada. Tal degradação consiste justamente
no fato que o participado se encontra no participante limitado e determinado por uma
potência com a qual entra em composição: é esta a passagem do simples ao composto.
Por isso a composição é condição originária da criatura enquanto criatura, de todo
ente criado, de tudo o que não é Deus (portanto, também as substâncias espirituais); toda
criatura tem pelo menos a composição de essência e ato de ser (existência), que exprime a
composição – e distinção real – entre participante e participado.
Plotino, sublinhando a transcendência divina, considerou Deus como o Uno,
completamente incompreensível, além do ser, privado de multiplicidade e divisão. O Uno,
enquanto além do ser, não é pensamento, nem vontade nem atividade: é Uno, perenemente
idêntico a si mesmo, fundamento e origem das coisas pelo modo de emanação.

2. A unicidade de Deus
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Dizer que Deus seja o Uno significa que ele seja uno como o são também os entes
(todo ente é uno), mas que a Unidade divina, a unidade do Próprio Ser subsistente, comporta
a unicidade: Deus é Uno e Único. A tal tese se opõem o politeísmo (admite muitos deuses),
o dualismo (admite dois deuses: o princípio do bem e o princípio do mal) e o henoteísmo
(admite um deus supremo e vários deuses inferiores).
A unicidade de Deus pode ser demonstrada facilmente com as seguintes
considerações:
a) Deus é uno e único pela sua total simplicidade: o que pelo qual Deus é Deus
(natureza divina ou divindade) é o que pelo qual Deus é este Deus, separado de todo o resto.
O que em virtude pela qual uma coisa singular é justamente esta coisa, de nenhuma maneira
pode comunicar-se a outros. Por exemplo, aquilo pelo qual Sócrates é homem pode ser
condividido por muitos; mas aquilo pelo qual é este homem determinado somente um pode
possuir. Consequentemente, se o que pelo qual Sócrates é homem fosse também o que pelo
qual é este homem, assim como não poderiam existir muitos Sócrates, não poderiam
também existir muitos homens. E este é o caso de Deus que, como vimos, se identifica com
a própria natureza: o que pelo qual é Deus é o mesmo pelo qual é este Deus. É portanto
impossível que existam muitos deuses.
b) Pela sua infinita perfeição não recebida de outro. Este raciocínio, afirma Tomás,
obrigou alguns filósofos antigos a admitir a existência de um único Deus. De fato, Deus
encerra em si toda perfeição do ser; se existissem mais deuses, um destes teria alguma coisa
que faltaria ao outro, sem como privação seja como perfeição, e consequentemente não seria
absolutamente perfeito. É impossível, portanto, que existam mais deuses.
c) Pela unidade do mundo. Vemos que todas as coisas existentes são ordenadas entre
elas, dado que algumas se servem de outras. Mas coisas tão diversas não seriam
coordenadas em um mesmo projeto, se uma realidade unitária não as ordenasse, porque em
toda multiplicidade um somente impõe a ordem melhor que outros: o uno, de fato é de per
se causa da unidade, enquanto os muitos não causam a unidade se não acidentalmente, isto
é, enquanto em um certo modo formam uma unidade. Portanto, porque o que ocupa o
primeiro lugar deve ser o mais perfeito enquanto tal e não acidentalmente, aquele primeiro
que submete todas as coisas à mesma ordem, deve ser necessariamente uno e único; e este é
Deus.
d) Só pode existir um ser necessário per se. Se existissem dois, de fato, seria preciso
admitir que se distinguem por alguma coisa que se acrescenta a um dos dois (ou aos dois), e
então um destes, ou todos os dois, seriam compostos. Mas nenhum ser composto é
necessário por si mesmo. A essência de um ser necessário por si mesmo é o seu próprio ser.
Se assim não fosse, o ser necessário receberia o ser de um outro, o que é impossível. Não se
pode, portanto, admitir senão um só ser necessário por si mesmo. A unicidade de Deus
comporta também que o Absoluto seja distinto de tudo o que não é ele, mas não anula nem
abaixa o valor dos entes.

3. O Ser e a beleza
a) A beleza tem o mesmo fundamento do bem; todavia, esta se refere à faculdade
cognoscitiva: alguma coisa é bela na medida em que a sua contemplação agrada. De outra
parte, a beleza, como a bondade, se fundamenta no ser, mas através da forma. A beleza é
uma variante do bem. Afirma Tomás (S. Th. I. q. 5, a. 4, ad 1): "Em um sujeito
determinado, a beleza e a bondade são uma mesma coisa, pois se fundam numa mesma
realidade, isto é, na forma, e por isto o bem se considera também belo. Diferem contudo no
seu conceito, pois o bem em sentido próprio se refere ao apetite, dado que é bom aquilo ao
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qual todas as coisas tendem. Ao invés, o belo se refere à faculdade cognoscitiva; de fato se
dizem belas as coisas que vistas, agradam. Por isto a beleza consiste na devida proporção, já
que os sentidos experimentam predileção pelas coisas devidamente proporcionadas".
b) Se considera a beleza também como harmonia: unidade na variedade. Em Deus há
uma riqueza infinita de perfeições: todas as múltiplas perfeições do mundo se encontram
Nele em plenitude. Mas se existem em Deus todas as perfeições das coisas (reais e
possíveis), estas se encontram Nele num estado de máxima unidade, porque se identificam
com a sua essência, que é o Ser. Deus é, portanto, suma beleza e suma harmonia.
c) Porque Deus é sumo bem e suma beleza, no conhecê-lo e no amá-lo consiste a
máxima felicidade possível para uma criatura espiritual, dado que todas as perfeições que
encontramos nas criaturas e que nos atraem se encontram em Deus elevadas ao grau infinito,
e além do mais privadas de potencialidade e imperfeição.

6. A transcendência de Deus
Deus é simplicidade absoluta, infinitamente perfeito, imutável e eterno, infinito e ao
mesmo tempo onipresente, uno e único. Não tem em si mesmo nenhum tipo de composição;
nem entra em composição com outros seres; se distingue de cada um dos entes do universo
e do seu conjunto chamado mundo. Deus transcende o mundo: se distingue como o que é
infinitamente mais perfeito.

1. Conceitos prévios: transcendência e imanência. As diferentes espécies de


panteísmo.
Transcendência significa o estar fora ou acima de outro, excedê-lo ou ultrapassá-lo.
O termo correlativo e oposto é imanência, que indica a característica pela qual alguma coisa
permanece fechada em si mesma. "A transcendência pressupõe, portanto, a imanência como
um dos seus momentos ao qual se alcança a superação indicada pelo transcender. Em
sentido geral, os sistemas filosóficos que se abrem à transcendência comportam uma visão
qualitativamente pluralista e hierarquizada da realidade. As filosofias da imanência, ao
invés, reduzem o real ao âmbito mais imediatamente acessível à nossa experiência, que se
concebe como insuperável, ou porque se nega a existência de realidades superiores, ou ao
menos porque não se admite a possibilidade de seu conhecimento. Daí surgem as duas
questões fundamentais nas quais se coloca o problema da transcendência: a questão
gnosiológica e a questão metafísica. A questão da transcendência gnosiológica se refere ao
problema se é possível conhecer realidade diferentes da nossa consciência e das suas
representações. A transcendência metafísica, por sua vez, diz respeito à existência de
realidades que superam os dados de fato da nossa experiência empírica, e mais
concretamente, a existência de um ser superior e absoluto. Neste âmbito ontológico,
transcendência significa supramundalidade.
A transcendência de Deus em relação ao mundo é absoluta; Deus é o absoluto em
sentido literal, ou seja, é radicalmente livre ou desligado das coisas.
Todavia, se Deus, como vimos está presente em toda realidade, é onipresente, como
se pode sustentar que ao mesmo tempo é transcendente? A transcendência não exclui a
interioridade, não se identifica sem dúvida com a ausência, assim como a imanência não se
identifica com a presença; antes, presença e transcendência são compatíveis sem a mínima
anulação do que cada uma destas significa. Deus está em todas as coisas segundo uma
presença ontológica, íntima, mas não é ontologicamente imanente a um ente ou ao conjunto
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de todos os entes; é diferente do mundo, distinto e sem nenhuma composição em relação a
este: transcende o mundo.
O problema da transcendência divina diz respeito à distinção de Deus de todas as
coisas. O panteísmo é a doutrina filosófica que nega a transcendência de Deus, ou, a
doutrina que rejeita a distinção absoluta entre Deus e o mundo. O termo foi usado pela
primeira vez por J. Toland, no início do século XVIII, embora se trate de uma doutrina
muito antiga.

No decorrer da história houveram muitos tipos de panteísmo:


a) Panteísmo emanatista, pelo qual somente Deus é verdadeiramente real e o mundo
é absorvido pela divindade, procede e emana necessariamente de Deus; é uma teofania e não
o produto de uma ato criador do Absoluto. Foi este, embora com certas diferenças, o
pensamento de Plotino, Giordano Bruno, etc...
b) Panteísmo evolutivo e materialista, sustentado por Holbach, Diderot, etc...,
segundo o qual o fundamento e princípio do mundo é imanente ao mundo mesmo. Somente
o mundo é real e Deus está dissolvido neste.
c) Panteísmo propriamente dito, que pode ser parcial ou total. O panteísmo parcial
considera que Deus é a forma do mundo ou a sua matéria. E o panteísmo total sustenta que
Deus é a totalidade do mundo. Pode assumir formas diversas: os seus representantes mais
significativos são Spinoza e Hegel com o seu panteísmo idealista. O panteísmo total de
Spinoza e Hegel é o mais importante do ponto de vista filosófico e por isto o
consideraremos com maior atenção.

2. Deus se distingue do mundo


a) Deus não é parte do mundo. Se Deus fosse parte do muno não poderia ser Primeiro
Agente e Causa incausada, pois o que é parte de um composto não pode ser, como tal,
primeiro agente. De fato não é propriamente a mão que age, mas o homem por meio da
mão. Deus é o Ser e a Causa primeira, e portanto, Primeiro Agente: consequentemente não
pode fazer parte de nenhum composto.
Nenhuma das partes de um composto pode ser, pois em todo composto existem pelo
menos dois elementos em recíproca relação, que se comportam como potência e ato, como
participante e participado. Ora, vimos que Deus é o Ser e portanto a realidade originária.
Consequentemente, "Deus não é uma parte do universo, mas está acima de todo universo,
enquanto tem originariamente em si de modo eminentíssimo, toda a perfeição deste".
b) Deus não é nem mesmo "o ser formal de tudo". Os estóicos consideravam que
Deus fosse o ser formal de todas as coisas: o Absoluto faria parte do mundo como seu
princípio formal. Tomás demonstra porque Deus não pode sr o princípio pelo qual todo ente
se constitui formalmente: os entes não se distinguem entre eles pelo fato de ter o ser, dado
que todos os possuem; portanto, se se diferenciam, isto depende ou do diferenciar-se do
mesmo ser por algumas determinações acrescidas, de modo que à diversidade das coisas
corresponda um ser diferente segundo a espécie, ou antes, do convir do mesmo ser a
naturezas diferentes na espécie. Das duas possibilidades, a primeira é impossível, porque ao
ente não se pode acrescentar nada a modo de diferença no gênero (o ente não é um gênero).
Permanece portanto somente a segunda possibilidade: as coisas se diferenciam porque têm
natureza diferentes, através das quais recebem o ser de modo diverso. Tal solução, porém,
não é aplicável a Deus, enquanto o seu ser não se distingue da sua essência, ou melhor,
porque a sua essência é o seu Ser. O ser de Deus não é recebido de uma essência, mas se
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identifica totalmente com esta. Além do mais, se o ser divino fosse o ser formal de tudo,
todas as coisas seriam uma só, o que é manifestamente falso.
Deus não pode ser o ser comum, porque isto tem um valor somente lógico ou mental,
e Deus não é um conceito, mas o Ser realíssimo. Além disso, Deus não é o ser dos entes,
mas a sua causa.
c) Deus não é a matéria primeira. Se no ponto precedente se tratava de panteísmo
formalista (Deus é a forma do mundo), agora se considera Deus como a matéria das coisas
(panteísmo materialista). Já consideramos este erro explicando que Deus não tem corpo. A
matéria primeira é pura potencialidade enquanto que Deus é Ato Puro. Também não se pode
dizer que o mundo é parte de Deus, porque em Deus não existem partes, sendo Ele, como se
mostrou, absolutamente simples.
d) Deus não é a totalidade do que existe. Se os precedentes tipos de panteísmo, que
negam a transcendência de Deus e portanto na sua distinção e alteridade em relação aos
seres do mundo, podem ser considerados como panteísmo parciais, no sentido que Deus é
visto como uma parte do mundo (a sua matéria ou a sua forma) ou vice-versa. O panteísmo
total, ao invés, identifica a totalidade do mundo com Deus: Deus seria a totalidade do que
existe no mundo.
Se pode provar que o mundo todo não se identifica com Deus com a simples
observação que, se isto fosse verdade, não existiriam no mundo nem as imperfeições, nem
qualquer tipo de potencialidade. Afirmando a identificação do mundo todo com Deus resulta
impossível explicar a contingência, a temporalidade, a mutabilidade, etc... Tais realidades
que vemos presentes no mundo, não teriam nenhum sentido. E porque no mundo acontecem
a potencialidade e a finitude é claro que a pretensa identificação não é possível. Justamente
a potencialidade e a finitude exigem o Ato Puro infinito, que deve ser distinto delas. Nós
caracterizamos Deus como o Próprio Ser subsistente, do qual se distingue em modo
essencial, justamente porque o ser divino é subsistente por si e não recebido em outro.
Deus é o Absoluto em sentido próprio e ao mesmo tempo é a causa absoluta dos
entes. Por isso se for bem compreendida a doutrina da participação transcendental do ser, se
pode entender que "Deus é tudo, mas não tudo é Deus. O ser dos entes, mesmo sendo real,
não é igualado com Deus: não pode ser colocado ao lado do ser divino com outro. Deus é
Tudo por essência, enquanto que o universo é tudo por participação; e todo ente outra coisa
não é que uma parte da totalidade participada. Mesmo se o participante não tem razão de
parte em relação ao Todo divino, que é simplicíssimo, tal todo divino se encontra na
intimidade mesma do participante, como o que de mais íntimo age neste. Deus não é
somente um todo diferente do todo criado, mas é Tudo porque é o Tudo fundante, e por isso
absolutamente Tudo, sem anular a realidade do todo participado: ao contrário, funda o
participado como real. Deus é portanto sumamente transcendente ao mundo.

e) O panteísmo metafísico de Espinosa e o panteísmo idealista de Hegel


- Espinosa. Segundo Espinosa se dá uma identificação metafísica entre Deus e o
mundo. As coisas do mundo se distinguem entre elas e de Deus de modo físico; mas o que
importa para Espinosa é que sob a distinção física se dá a completa identidade metafísica.
Isto depende das noções de substância e de causa que Espigosa emprega. A substância é
para ele "aquilo que é em si e se concebe por si, ou seja, aquilo cujo conceito não tem
necessidade de conceito de uma outra coisa da qual deva ser formado". A consequência
deste conceito é que a substância não poderá ser senão uma e única: "fora de Deus não se
pode conceber outra substância". As coisas serão atributos e modos da única substância
divina: Deus resulta ser a causa imanente de tudo. Espigosa entende por causa o que torna
41
um efeito inteligível, em modo claro e distinto: o único valor da causalidade é
consequentemente noético. O monismo da causalidade e o monismo da substância levam
Espigosa a concluir que tudo é Deus, a identificar Deus com o mundo.
espigosa afirmava: "Os escolásticos partem dos seres; Descartes do pensamento; eu
de Deus". A primeira afirmação do seu sistema é justamente a de Deus entendido como
causa sui: "Por causa de si entendo aquilo cuja essência compreende a existência, isto é,
aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como existente". Como se pode notar,
esta argumentação exprime o argumento ontológico na forma de uma definição. Mas tal
definição, no seu significado mais profundo, comporta o panteísmo.
A noção de causa de si, no sentido utilizado por espigosa, é desconhecida à toda
tradição filosófica precedente, menos Descartes, que, em todo caso, é superado totalmente
por espigosa quanto ao conteúdo significado.
Na história precartesiana do conceito de causa de si, dois filósofos – Agostinho e
Tomás – criticam tal expressão; o fundamento comum da crítica de ambos consiste no
princípio pelo qual nada pode vir à existência senão em virtude de uma causa, donde se
segue como imediato corolário que tudo o que muda exige a causa do próprio devir. Por isso
se compreende que um ser por si é um ser que não depende de outro, ou seja, é incausado: a
expressão causa de si, portanto, é privada de sentido. O fio condutor da crítica é a
impossibilidade de causar o próprio ser.

A consideração do Absoluto como causa de si mesmo assim como entende Descartes


comporta uma novidade no seu conteúdo essencial, e prepara a apoteose espinosiana. A
existência real necessária que compete a Deus é tal porque este é causa de si, afirma com
decisão Descartes; e se deve entender que a expressão causa de si ou ente por si não têm
somente um significado negativo (Deus não tem a própria infinita perfeição como recebida
de outro), mas sobretudo positivo. A infinita potência de Deus é a causa pela qual Ele
existe; a essência divina tem o poder de dar-se a existência. E como em Deus, segundo
Descartes, causa formal e causa eficiente fazem constante intercâmbio e em certo modo são
equivalentes, Deus pode ser concebido como realidade que se auto-gera continuamente,
sendo a verdadeira causa de si mesmo. A essência divina é tão fecunda que é capaz de dar a
si mesma o ser.
A noção espinosiana de causa de si é equivalente, em primeiro lugar, à existência
necessária; a existência necessária de Deus causa de si é o princípio de todas as afirmações e
negações em torno da natureza divina. Com a noção de causa de si, espigosa inverte toda a
tradição filosófica a respeito da causalidade, fazendo da causa de si o arquétipo de toda
causalidade. A causa de si não é causa eficiente, nem causa eficiente interna ou causa
lógica. A imanência é a nova figura assumida pela teoria da causalidade. Ou seja, não há
uma causalidade eficiente, na qual o efeito seja diferente da causa. espigosa descobre a
distinção entre a natureza divina e os seus atributos: estes são os elementos formais
imanentes que constituem a natureza absoluta de Deus; e o fato que Deus "produza" nestes
mesmos atributos que constituem a sua essência, implica que Deus é causa de todas as
coisas no mesmo sentido que é causa de si: produz no mesmo modo em que existe. A causa
eficiente é assimilada pela causa de si, e não vice-versa. Por isto somente Deus é causa. A
causalidade é essencialmente imanente, isto é, permanece em si para produzir;
diferentemente da causa transitiva, o efeito não sai desta.
Esta expressão de espigosa comporta a identificação em Deus de finito e infinito.
Não há dependência das coisas em relação a Deus, mas pertença. Se houvesse qualquer
perfeição além de Deus, esta não seria Deus. espigosa não identifica diretamente a
42
substância com os atributos e modos; os distingue, porém, na pertença que lhes conecta. Por
isto é correto dizer que sem Deus o mundo não é o mundo e que sem o mundo Deus não é
Deus.
A substância divina (a única substância) enquanto causa de si é potência, força,
energia, atividade que dá o ser a si mesma e ao que é diferente dela. A substância é absoluta
vontade de desdobramento, em si e nos seus atributos e modos, não pode não desdobrar-se,
e nada pode impedir tal desdobramento, dado que nada pode existir além da substância
absolutamente infinita. Para espigosa, Deus é essência atuante ou realizadora, mas não fora
de si, mas ao interno de si mesma. Por isto a causa de si exprime a infinita totalidade, "é a
expressão analítica do infinito em ato, do Uno que se torna um Tudo idêntico e simultâneo".
Expressão da atividade absoluta, Deus causa de si põe a si mesmo e simultaneamente põe as
próprias diferenças, se desdobra em modo necessário em atributos e modos; como potência
infinita é difusiva, e em modo sumo, é plenitude que se põe como Natureza. Por isto
espigosa pode dizer Deus ou natureza. Deus não cria um mundo fora de si, mas realização a
essência ao interno de si mesmo, põe o outro como plenitude própria. Porque Deus é tudo, é
auto-suficiência absoluta. Estamos diante do panteísmo mais radical.

- O panteísmo de Hegel. Hegel nega abertamente a transcendência de Deus: "Sem o mundo


Deus não é Deus". Critica o panteísmo vulgar, ou seja, a vazia identificação de Deus com as coisas.
O seu panteísmo, ao invés, consiste na realidade de Deus como Espírito absoluto que se atua em
todo finito. Nas provas hegelianas da existência de Deus, o finito se dissolve no infinito, perde a sua
realidade sendo absorvido pelo infinito. Se deduz daí que somente o infinito existe.
O infinito, para Hegel, é somente um "momento" ideal, e não o verdadeiro ser; é pura
aparência, mera transitoriedade; o infinito, ao contrário, é "o real sem dúvida". O verdadeiro ser do
finito é o Infinito; por isto Hegel pode dizer que o finito não está fora do infinito, nem o infinito
fora do finito. O finito não é recusado pelo infinito, mas é compreendido por este. "A totalidade
pertence dialeticamente à essência do Tudo: não somente a totalidade envia constitutivamente ao
Tudo, mas o Tudo inclui dinamicamente em si a totalidade".
Uma passagem dialética recíproca e simétrica do infinito ao finito faz com que o finito sema
essencial ao infinito (Deus é o ser do mundo) e que o infinito necessite do mundo para atualizar a
própria essência (o mundo é a essência de Deus). Sem o mundo, Deus não é Deus.

Paradoxalmente, acontece que esta implacável dialética do Absoluto leva à destruição de


toda verdadeira tensão entre a totalidade e o Tudo; entre o mundo e o homem de um lado, e Deus de
outro. Para que se possa dar uma autêntica relação, é necessário que os termos desta sejam
realmente diversos, e, portanto, estavelmente em si mesmos.
É isto que sustenta eficazmente o realismo metafísico, no qual o pensamento não se fecha
sobre si mesmo, mas abre-se continuamente, esforçando-se em penetrar na insondável profundidade
do Ser por essência, através da atenta consideração reflexiva do ato de ser participado". Como já
vimos, o Tudo está presente por essência, por potência, por presença, na totalidade; mas isto pode
acontecer, somente porque um não é outro. Não há dialética, mas analogia; ou melhor, participação
transcendental do ser, que comporta como correlato a analogia. Na posição do realismo metafísico,
o finito se resolve no Infinito, como seu fundamento e a sua causa transcendental. E a causa
primeira que é Deus não penetra na essência das coisas criadas, mesmo se o ser que estas possuem
não pode ser compreendido senão como procedente do Ser divino. A alteridade entre Deus e os
entes é total, resultado da máxima distinção existente entre Aquele que é, o Ser Subsistente, e as
coisas finitas, que são, sem porém ser o ser, ou seja, são por participação.
43

III PARTE
O AGIR DIVINO

Depois de ter estudado a substância divina, passamos agora a considerar a sua ação.
Depois de considerar o ser divino em si mesmo e as propriedades que procedem do Ser
Subsistente é preciso estudar o agir divino, as divinas operações. Esta ordem depende do
fato que o agir segue ao ser, e o modo de agir ao modo de ser. Ora, porque algumas
operações ficam naquele que as exerce, enquanto que outras passam para efeitos externos,
vamos estudar primeiro a ciência e a vontade divinas (dado que os atos do intelecto e da
vontade permanecem naquele que os exercita), e em seguida o poder (a onipotência) de
Deus, que é considerada como princípio das operações divinas que passam a efeitos
externos.
Quanto à onipotência divina esta compreende duas teses fundamentais: a participação
transcendental do ser na criação (com as suas conseqüências: conservação e causalidade da
Causa primeira nas causas segundas), e a providência divina, com os seguintes pontos: -
Deus é causa eficiente do mundo: a participação transcendental do Ser na criação; - a
conservação; - a moção divina no agir criado; - a providência e o governo divino do mundo.

1. A ciência divina
1. Deus, inteligência infinita
Um ente é inteligente pelo fato de ser imaterial, dado que o conhecimento consiste
em possuir intencionalmente – não fisicamente – a forma do conhecido. O que se conhece
está presente ao cognoscente em um modo imaterial, espiritual. A inteligência é uma
perfeição própria da imaterialidade, porque as formas das coisas são compreendidas pelo
intelecto abstraídas da matéria. Portanto, se as formas são conhecidas emquanto imateriais,
um ser será inteligente porque imaterial. Por conseqüência, a inteligência está em Deus, que
é imaterialidade suma. "Os seres dotados de conhecimento se diferenciam dos que não o
são, porque estes últimos não possuem senão a própria forma, enquanto que os primeiros
podem ter a forma dos outros, já que a forma do conhecido está no cognoscente" (S. Th., I,
q. 14, a. 1).

Daí é evidente que a natureza do ente que não conhece é mais restrita e limitada; ao
passo que a natureza do cognoscente tem uma maior amplidão ou extensão. O que limita a
forma é a matéria, e por isto temos afirmado que quanto mais imateriais são as formas, tanto
mais estas se aproximam a uma certa infinidade. Portanto, é evidente que a imaterialidade
de um ser é a razão pela qual é cognoscente, e o modo da sua imaterialidade corresponde ao
modo da sua inteligência; assim, diz Aristóteles, as plantas não conhecem dada a sua
materialidade, mas o sentido já é capaz de conhecer porque recebe as formas sem a matéria,
e o intelecto o é muito mais, porque é separado da matéria e menos misturado com esta (III
De anima). Portanto, visto que Deus, como vimos, está no vértice da imaterialidade, deve
ter também em grau supremo o conhecimento".

A inteligência de Deus pode ser provada também a partir do fato que todas as coisas
são finalizadas, e porque o fim é o primeiro na intenção, este (o fim) deve estar presente
intencionalmente, isto é, numa inteligência: Deus é este ser inteligente que dirige todas as
44
coisas ao seu fim (como se viu na quinta via da demonstração da existência de Deus). E
porque a inteligência é uma perfeição, e em Deus estão as perfeições de todas as coisas,
Deus deve ser inteligente. E porque as perfeições se encontram em Deus de modo excelso e
infinito, a inteligência divina é infinita: não há nada de inteligível que seja desconhecido a
ela; mas ela conhece tudo em modo total (mediante uma compreensão completa). A ciência
de Deus é universal; se estende a todos os objetos e compreende tudo quando em cada um
destes há. O conhecimento humano é necessariamente seletivo e parcial. O espírito humano
seleciona, consciente ou inconscientemente, determinados objetos ou aspectos particulares
dos mesmos, deixando todo o resto na penumbra ou fragmentariedade... O saber divino não
pode não pode nem aumentar, nem diminuir, diferentemente do conhecimento humano que
se enriquece com a pesquisa ou se perde por causa do esquecimento. A infinita inteligência
divina é absoluta, completamente livre e desligada de qualquer objeto conhecido; não
necessita de nenhum objeto fora di para conhecer: o objeto primário da ciência divina é,
portanto, Deus mesmo.
De um modo ou de outro, os grandes filósofos consideraram Deus como dotado de
conhecimento ou sapiência, tanto na antiguidade como na idade moderna. Há algumas
exceções, como Schopenhauer, que negou que se possa considerar Deus como dotado de
intelecto.

2. Deus conhece a si mesmo primariamente e compreensivamente. Identidade do Ser


e do Saber absolutos.
No modo de conhecer humano, o intelecto compreende passando da potência ao ato;
o intelecto, antes de compreender alguma coisa, está em potência em relação a ela, ou seja,
não se encontra em ato de entender. Em Deus, ao invés, por motivo de sua simplicidade
divina (Deus é Ato Puro), o Ser se identifica com o conhecer; o seu intelecto não é uma
capacidade de conhecer, mas um ato único de conhecimento, que se identifica com o Ser. E
já que no Ser Subsistente não há nada de potencial, o inteligível enquanto tal se identifica
com o seu intelecto. Identificando-se completamente ser e compreender (também aqui é
preciso dizer que Deus não tem inteligência, mas é inteligência) se realiza uma unidade
plena entre o seu intelecto e o inteligível, de modo que não falta nenhuma espécie
inteligível, como acontece no nosso intelecto quando está em potência de conhecer; nem a
espécie inteligível pode ser coisa diferente da substância do seu intelecto, como acontece ao
nosso quando conhece, mas deve identificar-se com o próprio intelecto divino, e justamente
por isto Deus conhece a si mesmo.
Há assim uma total identidade entre Ser e conhecer, assim como entre conhecer e ser
conhecido: Deus não é somente Inteligência, mas também pela sua inteligibilidade (por isso
Aristóteles chama Deus de pensamento do pensamento). Dada esta identidade total entre
Ser, Conhecer e Ser conhecido, Deus primo e per se conhece a si mesmo de modo imediato:
é o Próprio Entender.
Deus conhece primariamente a si mesmo: o objeto originário do conhecimento divino
é a própria essência de Deus, enquanto que a sua inteligência não pode ser especificado por
nenhum objeto externo, porque se assim fosse, não seria imune de qualquer potencialidade:
não seria Ato Puro, mas teria necessidade de um outro distinto de si para conhecer-se. Além
disso, compreende a si mesmo em modo absolutamente perfeito.
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3. A ciência de visão
Aristóteles, como sabemos, considerando o conhecimento intelectivo como o vértice
da perfeição, afirmou que Deus é Pensamento de pensamento, ato puro de pensar,
pensamento que pensa a si mesmo.
Deus, graças à ciência divina que é perfeita, não conhece somente a si mesmo, mas
também as outras realidades. O conhecimento que Deus possui de todos os existentes no
passado, no presente e no futuro se chama de ciência de visão. E o conhecimento que ele
tem do possível enquanto somente possível, isto é, das coisas que não existiram, nem
existem, nem existirão, se chama ciência de simples inteligência.
Consideremos a ciência de visão de Deus. Que Deus possua tal conhecimento pode
ser demonstrado facilmente observando que Deus é a causa do ser de todas as coisas, que
estas são participação do seu ser. A ciência divina, enquanto absolutamente perfeita,
comporta que toda realidade inteligível enquanto tal seja conhecida por Ele. Tudo é efeito
de Deus quanto ao ser; mas o Ser, causa da existência universal, é o Próprio Entender
subsistente; portanto, todo inteligível, que é efeito de Deus (causa primeira), pre-existe nele
(a perfeição do efeito pre-existe na causa, e no mdo desta) e é em Deus o seu próprio ato de
conhecer e nele se encontra em modo inteligível.
Deus inteligência infinita, conseqüentemente, conhece necessariamente todo o
inteligível em modo perfeito: portanto, conhece todas as criaturas na sua totalidade,
individualidade, nas suas recíprocas relações, etc. Assim como Deus está presente a todos os
entes mais que estes a si mesmos – presença do Ser no ser no ente – pelo seu conhecimento,
que se identifica com seu Ser, Ele conhece perfeitamente e com uma compreensão absoluta
tudo o que há nas criaturas.
Todavia, não as conhece por meio das espécies particulares, mas através do
conhecimento de Si. Enquanto o homem conhece as coisas em si mesmas, Deus as conhece
em si mesmo; enquanto o intelecto humano é medido pela realidade; a ciência divina mede
os entes e não é medidas por estas; enquanto são as coisas a causa a verdade no intelecto
humano, a inteligência divina é a causa das coisas.
Deus conhece os entes não neles mesmos, mas em si mesmo. Caso contrário, se Deus
conhecesse alguma coisa fora de si dependeria em parte das criaturas, estaria em potência
em relação a alguma coisa, e isto não é possível; assim como é impossível, dada a
simplicidade divina, que se dêem nele mais de um ato cognoscitivo, o que aconteceria se
conhecesse as coisas fora de si.
Um conhecimento assim, portanto, não coloca nenhuma multiplicidade no Intelecto
divino. Deus tem um conhecimento adequado de todos os seres porque é Ele a razão própria
de cada um destes; mas a essência divina compreende em si as perfeições de todos os seres,
e as compreende a modo de perfeição, e não de composição. Deus vê a si mesmo em si
mesmo, porque vê a si mesmo por essência, enquanto a sua essência contém a imagem
daquilo que Ele não é.
Não havendo nenhuma multiplicidade no intelecto divino, Deus tudo no mesmo e
único ato: o seu conhecimento não é discursivo nem habitual, mas intuitivo e sempre atual.
Enquanto o conhecimento humano conhece um objeto depois do outro, sucessivamente, no
ser de Deus, que se identifica com o seu intelecto, não há nem prioridade nem
posterioridade, mas tudo nele é simultâneo; portanto, o conhecimento divino não admite
antes e depois, não procede em sucessão, mas compreende todas as coisas juntas.
O conhecimento divino não pode, conseqüentemente, ser habitual, dado que o
conhecimento habitual implica uma certa sucessão, enquanto Deus é eterno; implica uma
certa potencialidade, enquanto que Deus é Ato Puro. Com os mesmos raciocínios se pode
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provar que o conhecimento divino não é discursivo, mas intuitivo: Deus vê os efeitos em si
mesmo como na própria causa. A sapiência de Deus não é um simples conhecimento
habitual, mas é ato puro, idêntica à essência divina: se realiza em um modo perfeito,
simultâneo e infinito, isto é, no modo que corresponde à eternidade de Deus. Enquanto o
homem é incapaz de sustentar por longo tempo a consciência de si e deve alternar o estar
acordado com o sono, a atenção com a distração, a profundidade com o divertimento –
sinais evidentes de sua pobreza ontológica – Deus conhece a si mesmo em modo contínua e
sempre com consciência acordada, sem cansaço, nem peso – em nós tão freqüentes – antes,
pelo contrário, experimentando uma felicidade infinita. Esta é uma necessária conseqüência
do fato que Deus é plenitude de toda perfeição. O Ser absoluto é o Saber absoluto.
A ciência de Deus é causa das coisas enquanto está unidade à vontade. A ciência de
Deus é causa das coisas criadas, enquanto é semelhante em certo modo à ciência do artesão
em relação aos produtos de seu trabalho, e o artesão é casua daquilo que fabrica porque age
guiado pelo seu pensamento. Em modo análogo, Deus produz as coisas através de seu
intelecto. Todavia, assim como qualquer natureza inteligível não produz o próprio efeito se
não se acrescenta a tendência, o apetite a produzi-lo – o que é próprio da vontade – é
necessário que a ciência divina seja causa das coisas enquanto está unidade à vontade.
Mas se a ciência divina é causa das coisas, se a inteligência divina é causa, regra e
medida dos entes, e são estes últimos a causar a verdade na inteligência humana, em último
termo a adequação a uma inteligência – nisto consiste a verdade – é antes de tudo adequação
à inteligência divina, e, portanto, à verdade divina, que justamente por isso se chama
verdade que mede e não é medida. A verdade divina é portanto a primeira e suma verdade,
causa de toda verdade participada.

4. Conhecimento humano e ciência divina


Em Deus se dá uma identidade perfeita entre Ser, Conhecer e Ser conhecido. Nele
Ser = Conhecer = Ser conhecido. Uma tal identidade é exclusiva de Deus, enquanto ele é o
Ipsum Intelligere subsistens fundado no Ipsum Esse subsistens. É evidente que no homem
uma tal identificação não acontece, nem mesmo aproximativamente, dado que este conhece
não graças ao seu ser, mas por uma faculdade que possui permanecendo distinto desta (o
intelecto); conhece discursivamente, ao menos no sentido de passar da potência ao ato;
conhece as coisas em si mesmas e não em si mesmo; no conhecimento humano se dão
múltiplos atos conhecitivos, etc... Portanto, é incorreta a extrapolação de algumas filosofias
que querem identificar no homem ser, conhecer e ser conhecido. Uma tal identificação é
sustentada de um modo ou de outro por algumas filosofias imanentistas, como a de
Descartes com o seu Cogito, ergo sum.
Se eu sou o meu pensamento, sou por essência enquanto penso: e então, mesmo na
precaridade do ato em que me penso, posso afirmar, como Deus: eu sou o que sou. E assim
evito reconhecer a minha composição real de essência e ato de ser, própria de toda criatura,
de todo ente criado, que não pode existir por si mesmo: de fato, se eu sou porque penso, me
coloco no ser com o ato de pensamento, sou o meu pensamento, sou o meu criador. Note-se
que, enquanto para o realismo, nós conhecemos as coisas porque estas existem, e Deus
conhecendo-as as faz existir, o imanentismo inverte tal relacionamento, afirmando que as
coisas existem porque as conhecemos, atribuindo assim ao homem o modo divino de
conhecer.
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5. A ciência de simples inteligência
Os seres somente possíveis são aqueles que nunca existiram, nem existem, nem
existirão, mas que poderiam existir, seja pelo poder direto de Deus, seja em virtude das
diferentes pontencialidades existentes nas criaturas, que poderiam causar-lhes. A ciência
que Deus tem destes seres somente possíveis costuma-se chamar de ciência de simples
inteligência. Se chama assim porque Deus conhece todos os possíveis com a sua
inteligência.
Como conhece os possíveis? Como possíveis. Tudo o que Deus pode fazer – e pode
tudo – pode também conhecê-lo; e o conhece na sua essência, enquanto podem ser
participados, podem chegar à existência. Deus conhece simultaneamente todos os infinitos
possíveis, toda a multiplicidade dos entes que podem participar do seu ser.

6. O conhecimento divino dos futuros contingentes e livres


É próprio da onipotência divina conhecer também as coisas futuras, de qualquer
forma que possam ser: necessárias, contingentes e livres.
A razão pela qual Deus conhece os futuros contingentes e livres é a eternidade
divina: todas as coisas temporais são presentes a Deus desde a eternidade.
Deus é um puro presente e sempre atual; tudo é infalivelmente presente ao seu olhar:
também o futuro – inclusive os efeitos de causas contingentes e livres – para Ele não há
futuro, porque em Deus não há nenhuma sucessão; são efeitos futuros se confrontados um
com o outro, mas não em relação a Deus. Sobre esta questão afirma Tomás: "Enquanto
Deus é eterno, o seu conhecimento deve ter a modalidade da eternidade, que consite no ser
tudo simultaneamente sem sucessão. Conseqüentemente, assim como apesar que o tempo
implica sucessão, a sua eternidade única, idêntica e indivisível como um "agora"
permanente está presente a todos os tempos, assim comoo seu conhecimento intui como
presentes todas as coisas temporais, mesmo que sejam sucessivas, sem que nenhuma destas
seja futura em relação a Ele, mas omente uma respeito à outra". Deus, portanto, conhece em
Si mesmo, de modo intuitivo, num único ato, e não simultaneamente mas eternametne, todas
as coisas. Por isto não há incompatibilidade entre conhecimento divino e liberdade humana:
Deus conhece – e com a vontade quer – que existam coisas livremente realizadas pelo
homem, e as conhece neste modo. Por assim dizer, Ele "previu" tudo o que acontece no
modo em que acontece. Este é o motivo pelo qual se denomina presciência divina o
conhecimento que Deus tem dos seres futuros, mesmo ficando claro que se trata de um
nosso modo de dizer para significar alguma coisa que em Deus é ciência infalível e eterna.

7. Deus conhece o mal


Deus conhece todas as coisas; melhor: a ciência de Deus é a causa das coisas. Então
surge a dificuldade: porque Deus daria o ser também ao mal, ou seja, seria a causa do mal.
A aporia é facilmente resolvida se partimos de um reto conhecimento metafísico do mal.
Antes de tudo, Deus conhece o mal como qualquer outra coisa. Todavia, dado que o
mal não é uma coisa, um ente em sentido próprio, mas alguma coisa que tem a própria razão
de ser no bem, ao qual se opõe como privação, Deus, conhecendo o bem, conhece o mal. O
mal é real, mas não é um ente, mas alguma coisa que existe num sujeito: é a ausência,
privação ou corrupção do bem; por ser, o mal tem necessidade de apoiar-se num sujeito, tem
o próprio fundamento no bem e no ser; não é conhecível em si. Ora, porque o que se
conhece pro primeiro é o positivo, o bem – que é algo de positivo – é o primeiro conhecido;
e o mal – ausência ou privação de bem – é conhecido posteriormente e no bem ao qual se
opõe. Conseqüentemente, a razão pela qual se conhece o mal é a mesma pela qual se
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conhece o bem. Porque o ser do mal consiste na privação do bem, Deus conhece o mal
através do bem, como se conhece as trevas graças à luz.
Se pode facilmente compreender que se o mal se pode conhecer somente através do
bem ao qual se opõe como privação, a ciência de Deus, causa de todas as coisas, não é causa
do mal, mas do bem pelo qual o mal é conhecido.

2. A vontade divina
1. O Ser divino é "volens": existência e natureza da vontade divina
Em todo ser inteligente há vontade, porque esta segue necessariamente ao intelecto.
Toda natureza tende ao próprio bem: àquilo conhece como tal quando não o possui, e até
que o possua, como aquilo em que repousa e aquieta o próprio desejo. Tal tendência ao bem
nos seres que carecem de conhecimento se chama apetite natural. Afirma Tomás: "Do
mesmo, portanto, modo deve comportar-se a natureza intelectual em ordem ao bem
conhecido através da forma inteligível, ou seja, possuindo-o repousará neste e não
possuindo o buscará. Ambas estas funções pertencem à vontade; por isso todo ser
inteligente deve ter também a vontade, assim como todo ente que tenha os sentidos não
pode carecer do apetite animal" (S. Th., I. q. 19, a. 1). Neste texto Tomás prova que Deus é
volens em base ao princípio que a vontade segue ao intelecto; todavia, se poderia chegar à
mesma conclusão através da simples consideração que a vontade, enquanto perfeição pura,
não pode faltar a Deus. Se a perfeição da vontade se apresenta em alguns entes, deve dar-se
também em Deus, causa do ser e de todas as perfeições que derivam do ser (quarta via).
Além disso, porque o amor é o primeiro ato da vontade, se deverá afirmar que Deus é Amor.
Como já vimos a respeito do conhecer, também o querer de Deus se identifica com o
seu Ser. A vontade divina não pode ser uma potência de querer, mas uma Vontade atual: em
Deus o ato de vontade é o mesmo ato de ser, a vontade de Deus é a sua própria essência. A
total identificação entre Ser e Querer pode ser mostrada também por via negativa: se a
vontade divina fosse de fato alguma coisa de acrescentada ao ser de Deus, constituiria uma
composição com Ele, que é, ao invés, simples; se fosse alguma coisa acrescentada, os dois
elementos estariam em relação como potência ao ato, ao passo que Deus é Ato Puro. Além
disso, todo agente age enquanto está em ato; Deus que é Ato Puro age por essência. A sua
Vontade é o seu Ser.
Em Deus há identidade perfeita entre Ser, Entender e Querer: Como o conhecer é
perfeição do cognoscente, assim o querer é perfeição do sujeito que quer: ambas as ações
são imanentes ao agente, e não possam a um paciente, como a ação do esquentar. Mas o
conhecimento de Deus, como vimos, é o seu Ser: de fato, sendo o ser divino per se
perfeitíssimo, não se pode acrescentar alguma perfeição; conseqüentemente, a sua vontade é
a sua própria essência.

2. O objeto da vontade divina


a) Deus quer a si mesmo em modo perfeito e absoluto. O objeto principal da vontade
de Deus é Deus mesmo; o objeto da vontade é o bem conhecido pelo intelecto. Mas o
primeiro objeto ao qual tende a inteligência divina é a própria Bondade subsistente, que se
identifica totalmente com a sua essência. Deus conhece perfeitamente a própria essência que
é o Sumo Bem.
Portanto, por primeiro e por si Deus ama somente a si mesmo, porque Ele somente é
a Bondade infinita, objeto próprio do Amor infinito. Dois argumentos para demonstrar isto:
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1) O apetecível está ao apetite, como o motor ao movido. O mesmo acontece entre o
que é querido e a vontade, já que esta pertence ao gênero da potência apetitiva. Se, portanto,
a vontade divina tivesse como objeto principal alguma coisa diferente dea sua própria
essência, seguiria que tal realidade que move a vontade divina seria superior a ela. Mas é
evidente (por tudo o que já consideramos) que isto é impossível;
2) O objeto principal querido está ao querer como a causa ao efeito. Quando dizemos,
por exemplo, querer passear para recuperar a saúde, entendemos indicar uma causa; e se se
busca o porque da busca da saúde, se encontram diversas causas até que se alcance o fim
último, isto é, o objeto principal querido e causa por si mesmo da vontade. Se, portanto,
Deus quisesse como objeto principal alguma coisa diferente de Si, existiria uma causa do
seu ser, o que contradiz a essência do primeiro ser.
O objeto principal querido por Deus é, portanto, Ele mesmo; primeiro e por si se ama
a si mesmo; a Bondade subsistente é antes de tudo o objeto próprio do seu amor infinito.

b) Deus, amando a si mesmo, ama todas as criaturas. De modo semelhante a como o


intelecto divino, conhecendo a própria essência, conhece a si mesmo, conhece todos os
entes, Deus, amando a si mesmo, ama também as coisas diferentes Dele e por Ele causadas.
Justamente porque a vontade compreende a comunicação do bem a outras realidades na
medida do possível. "Se os entes naturais, enquanto perfeitos, comunicam o seu bem a
outros, com maior razão cabe a vontade divina comunicar por semelhança o seu bem a
outras realidades, por quanto é possível. Deus, assim, quer a si mesmo e os outros seres, mas
a si mesmo como fim, e outros seres como ordenados a este fim, porquanto é digno da
bondade de Deus o ser participada por outros seres. Sobre isto é preciso considerar duas
coisas. 1) Antes de tudo que, sendo Deus fim de si mesmo e de toda outra realidade, o
querer divino ama a si mesmo como fim e o resto o ama enquanto ordenado a tal fim. 2)
Além disso, Deus ama as criaturas difundindo nelas as participações da própria bondade.
Pelo fato de amar a si mesmo – o que não é suscetível de aumento – ama todo o resto, que é
uma participação de seu ser; a única forma de multiplicação ou aumento da bondade de
Deus depende justamente da semelhança participada por muitos, em seguida à participação
difundida pela sua Bondade: o amor de Deus é um amor que cria e infunde o Bem nas
criaturas.
É fácil deduzir do que se afirmou que, se Deus ama a multidão das criaturas pelo
mesmo fato de querer e amar a si mesmo, e querer e amar o próprio bem e a própria
perfeição, ama a si mesmo e aos outros seres com um só ato de sua vontade, com um
mesmo e único Ato: uma vez que se provou a identidade entre ser e querer divinos, se
compreende que em Deus há um único ato de vontade, assim como há um só Ser.
Segue daí que os múltiplos objetos queridos não se opõem à simplicidade divina. O
amor de Deus em relação às criaturas não põe nenhuma multiplicidade na sua Vontade, os
atos, de fato, se diferenciam por motivo de seus objetos, e portanto, "se os muitos objetos
queridos por Deus produzissem nele uma multiplicidade, seguiria que Ele não teria uma
única operação volitiva, e isto contradiz o que se demonstrou acima.

3. A vontade divina é causa não necessária, mas livre das criaturas


a) Deus ama a si mesmo e em si todas as criaturas, como vimos. Deus ama
necessariamente a própria bondade, já que, Nele, Ser = Amar = Ser Amado: "A vontade
divina está em relação necessária com a sua bondade, que é o seu objeto próprio, e portanto
Deus quer necessariamente a própria bondade, do mesmo modo em que a vontade humana
50
quer necessariamente a felicidade, e uma outra potência qualquer diz relação ao seu objeto
próprio e principal". Deus ama a si mesmo com necessidade absoluta.

b) Deus não ama em modo necessário, todavia, o que se distingue dele. Ou seja, Ele
não ama as criaturas porque estas são boas, mas estas são boas porque Deus as ama. Deus é
causa da bondade dos entes, e portanto, do seu ser. "Deus causa os entes através de sua
própria vontade e não por necessidade de natureza".
A prova de que Deus é causa dos entes está baseada na relação entre efeito e causa.
De fato, "os efeitos procedem das causas segundo o modo em que preexistem no ser, dado
que todo agente produz algo semelhante a si. Ora, os efeitos preexistem nas suas causas
segundo o modo de ser da causa; e portanto, porque o ser e o conhecer divinos se
identificam, os efeitos preexistem em Deus de modo inteligível. Portanto, estes procedem
dele em modo inteligível, e conseqüentemente através da vontade, já que a inclinação a
fazer o que o intelecto concebe é própria da vontade. Portanto, a vontade de Deus é a causa
dos entes". Para compreender esta última parte do argumento é preciso ter presente que o
intelecto não realiza nenhum efeito senão mediante a vontade, cujo objeto é o bem
conhecido; o intelecto divino traz unido a si a vontade.

c) A vontade de Deus, portanto, é causa dos entes, mas porque Deus age justamente
através da vontade e não por necessidade da natureza, Ele não quer as criaturas de modo
necessário, mas livremente, pois a bondade das criaturas na acrescenta à infinita Bondade
divina: "Dado que a bondade divina é perfeita e pode subsistir sem os outros seres, os quais
não podem acrescentar-lhe nenhuma perfeição, não é por nada necessário que Deus queira
realidades diferentes de si". Deus não quer os seres diferentes de si em modo necessário,
mas livremente; todavia, uma vez que quis, não pode não os querer: os quer com
necessidade condicionada pela sua vontade de criá-los.

Espinoza negou que Deus queira os seres distintos de si de modo livre. Segundo o
panteísmo espinoziano, da natureza divina seguem necessariamente infinitas coisas em
infinitos modos, as coisas não poderiam ter sido produzidas por Deus em modo diverso de
como foram feitas; o querer divino, para Espinoza, é necessário: não pode não querer as
coisas. Deus, portanto, não age através de uma vontade livre; não tem a capacidade de
escolher, age por necessidade da natureza. No pensamento de Espinoza a perfeita imanência
é realizada graças à identificação de intelecto e vontade e de vontade e liberdade; e porque
esta última não consiste em outra coisa senão na simples necessidade da própria natureza, o
espinozismo chega ao conceito contraditório de livre necessidade.
Uma posição oposta a esta sustentou Descartes. Para ele a vontade divina é
absolutamente livre e tudo depende dela. O querer divino não tem nenhum limite: poderia
criar um outro mundo com características diferentes do nosso, e as essências das coisas, as
verdades eternas e morais poderiam ser diferentes se Deus assim estabelecesse; as essências
dependem da vontade de Deus, não do seu intelecto. O racionalismo cartesiano se torna
voluntarismo. Tudo depende do arbítrio divino.

4. Imutabilidade e infalibilidade. A vontade de Deus respeito às criaturas


Porque a vontade divina é causa universal de todas as criaturas, se compreende
facilmente que a vontade de Deus se realiza sempre: alcança sempre o seu próprio objetivo.
"Por isso, tudo o que parece distanciar-se da vontade divina numa certa ordem, aproxima-se
dela em outra ordem, como acontece ao pecador, que pecando se distancia da vontade
51
divina por quanto depende dele, e recai no plano previsto desta mesma vontade que o faz
experimentar a justiça divina". A vontade de Deus é absolutamente imutável e eterna, como
imutável e eterno é o Ser divino com o qual esta se identifica totalmente.
A vontade divina não é mutável, mas absolutamente infalível dado que não há nela
nenhuma potencialidade. Se fosse mutável seria determinada pelos objetos, mas, como já
vivmos, é justamente o contrário: a Votnade de Deus é a causa dos entes, isto é, a bondade
dos seres criados não é a causa pela qual Deus os quer, mas é o querer divino a causa dos
entes e também da sua bondade. Deus não quer as coisas antes em potência e depois em ato,
mas quer o que quer sempre em ato: não somente a Si mesmo, mas também o que diz
respeito aos seus efeitos. Portanto, quando parece que Deus "mude de opinião", "se
arrependa", etc... é preciso tomar consciência que não é o mesmo "mudar a vontade" e
"querer que uma coisa mude". O querer de Deus não muda; a mudança se dá nas coisas (e
Deus quer esta mudança) e não no ato divino pelo qual as quer.

Quando uma vontade muda? Tão logo inicia a querer o que antes não queria e cessa
de querer o que antes queria; mas tais mudanças não podem dar-se senão onde se dá uma
mudança de conhecimento ou nas disposições do sujeito que quer. A razão disto depende do
fato que, sendo o bem o objeto da vontade, esta pode mudar somente em dois modos, ou
seja, ou porque alguma coisa começa a ser ou cessa de ser um bem para a vontade, ou
porque o intelecto começa a conhecer que é um bem o que antes ignorava ser tal. Ora, em
Deus estas duas possibilidades devem ser excluídas, dado que Deus e o conhecimento
divino são absolutamente imutáveis; conseqüentemente deve ser tal também a vontade. A
razão de fundo disto deriva do que já comentamos precedentemente: as coisas criadas
começar a existir por causa da vontade divina, e não tendo esta como fim. Portanto, quando
se diz que Deus "se arrepende", etc..., tal afirmação deve ser entendida em sentido
metafórico, por analogia com o modo de agir do homem.

5. A vontade divina não torna tudo necessário


A vontade divina é sempre efica, mas não impõe a necessidade: Deus quer as coisas e
as modalidades com que são produzidas, ou seja necessariamente, em modo contingente ou
livre. Portanto, a necessidade, contingência ou liberdade dos entes que agem segundo a sua
modalidade específica, são queridas por Deus: "Toda vez que uma causa é eficaz na sua
ação, não somente deriva o efeito quanto à substância do que é produzido, mas também
quanto ao modo de produzir-se ou de ser. Se, portanto, a vontade de Deus é eficacíssima,
segue que não somente produzirá o que Ele quer, mas também no modo em que Ele quer
que se produza. Ora, Deus, olhando a ordem entre os seres para a perfeição do universo,
quer que algumas coisas se produzam necessariamente e outras em modo contingente, e por
isto ligou alguns efeitos a causas necessárias que realizam sempre o seu efeito, e outros a
causas contingentes e defectíveis. O motivo, portanto, porque os efeitos queridos por Deus
derivam em modo contingente, não depende do fato que sejam contingentes as suas causas
próximas, mas porque Deus, querendo que se produzam em modo contingente, lhes atribuiu
causas contingentes". E a mesma coisa é preciso dizer quanto aos efeitos realizados
livremente pela criatura espiritual.

6. Deus não é causa do mal


O sumo bem exclui qualquer tipo de mal: a vontade divina, de fato, não pode de
modo algum inclinar-se ao mal. Se consideramos o mal enquanto tal, não há dificuldade em
entender isto: este, de fato, não pode ser desejado por ninguém – nem pela vontade humana
52
nem pelo apetite natural –, dado que o mal não é senão a privação de um bem devido e,
portanto, deve existir em um sujeito que, como tal, é bom. Quanto ao mal devido a um
defeito natural ou ao mal de pena, Deus os quer querendo cada um dos bens que lhe são
anexos. Por exemplo, querendo a justiça quer o castigo, e querendo que a ordem natural se
conserve, quer que certas coisas morram ou sejam destruídas. Quanto ao mal em sentido
próprio, isto é, o mal moral ou pecado, Deus quer somente permitir que este se realize, e isto
é um bem, porque de outro modo seria suprimida a liberdade.

3. A onipotência divina
1. Existência da potência ativa em Deus
A existência em Deus da potência ativa pode ser provada pela conclusão das cinco
vias da demonstração de sua existência. Deus é o Motor imóvel, a primeira Causa
incausada, etc... e o princípio do movimento ou o ato de causar não se produzem sem uma
efetiva operação, que implica uma potência (no sentido de poder).
A potência ativa é definida justamente como o princípio do movimento ou mudança
em um outro enquanto outro; e é este o significado mais comum do termo potência, isto é,
capacidade de operar. Enquanto a capacidade de receber ou sofrer a ação de um outro se
denomina potência passiva. A potência ativa é o princípio de agir em outro; a passiva é o
princípio de ser modificado por outro.
Um ente é ativo na medida em que está em ato; a potência ativa depende do grau de
atualidade de um ente. Ora, Deus é o ser em ato, portanto, também potência ativa. Deus é
Ato Puro, portanto, ativo: nele há uma potência ativa. E pela própria definição de potência
passiva – sofrer modificação – se conclui que esta não existe em Deus.
Em Deus não pode faltar a potência ativa, pois esta é uma perfeição e Deus encerra
em si todas as perfeições. Ora, perfeição é sinônimo de ato; por isso, o ato de ser é a
perfeição das perfeições e tudo o que age, age enquanto está em ato. Por este motivo, Deus,
Ato puro de ser, é a perfeição máxima ao qual convém o mais alto grau de potência ativa.

2. Identidade de Ser e da potência ativa de Deus. Infinitude da potência ativa de Deus


Deus, sendo Ato Puro, a potência ativa é ação e não princípio de ação: esta somente é
princípio do efeito. A potência ativa de Deus se idenfica com a essência de Deus. Não pode
ser diferentemente, porque Deus é ele mesmo ato, e não um ato em virtude de um outro ato
distinto dele, visto que em Deus não há nenhuma potencialidade. Deus é ele mesmo a sua
potência". A ação e a essência divinas se identificam.
A potência ativa de Deus é infinita. As mesmas razões que provam a presença de
uma potência ativa em Deus levam a reconhecer que a potência ativa divina é infinita. De
fato, a potência ativa se reduz ao ato. O ser de Deus é Ato Puro de ser, ilimitado; portanto, é
uma potência infinita.

3. Deus é onipotente
A potência ativa de Deus, considerada na sua extensão, enquanto nada foge dela, se
denomina onipotência.
Todo ser produz algo semelhante a si; Deus, Ser infinito, compreende em grau sumo
a perfeição de todo ente; e porque todo ente tem a perfeição do ser, todo ente cai sob a
potência de Deus. Tudo o que pode ser, pode ser efeito de Deus; a onipotência de Deus se
estende a todo o âmbito do possível em sentido absoluto, ou em outras palavras, ao
53
absolutamente possível. Que Deus possa fazer todo o possível em sentido absoluto se deduz
do fato que a sua potência é infinita.
A única coisa que Deus não "pode" é o que não tem razão de ente, que repugna a
razão de ente absoluto. Deus não pode fazer o que é absolutamente impossível, ou seja,
aquilo que comporta contradição metafísica. Mas que não o possa fazer não significa que a
sua potência ativa não seja infinita, isto é, se trata de algo impossível não pela falta de poder
ativo, mas pela impossibilidade da coisa mesma. Portanto, não se deve deduzir que Deus
não pode fazer algo, mas que este algo não pode ser feito.
O poder de Deus se estende a tudo o que não implica contradição. A contradição é
não-ser, e portanto, não é uma das possíveis participações de Deus. O contraditório (por
exemplo: que o que existiu não tenha existido) não é compreendido na onipotência divina.
A onipotência divina não é restrita aos efeitos atualmente produzidos, mas pode fazer
coisas diferentes daquelas que faz: pode realizar o que não fez e que não fará.
54

4. A criação

1. Introdução
O termo "criação" exprime, no seu sentido mais radical, a ação produtora por
antonomásia, mediante a qual Deus produz as coisas do nada (creatio ex nihilo). Para
compreender o significado deste conceito, é preciso separá-lo das outras acepções ou termos
e resolver os equívocos que tal vocábulo possui.
O uso do termo criação é usual quando se indica a produção humana de um ente a
partir de alguma coisa existente em precedência (por exemplo: criação artística ou prática);
além disso, "se fala de criar uma associação, de imaginação criadora, de psicanálise dos
processos criativos, de literatura criacionista, etc... Evidentemente nenhumas dessas
expressões se refere a um atributo que seja específico de Deus, já que com estes se
consideram atividades que o homem pode exercer, ou seja, aquela que produz uma
novidade, que repete o já feito. Resumindo, a palavra "criação", nestes casos é sinônimo de
"inovação". Somente Deus pode fazer alguma coisa sem precisar de materiais disponíveis,
que sirvam, pela sua plasticidade, a receber uma nova forma. O homem, ao contrário, se
limita a reformar uma realidade já existente, isto é, se limita a dar uma forma nova a um
ente que lhe está à frente, modelável, maleável, disponível à vontade e ao poder humano de
transformá-lo.
O poder criador do homem implica sempre como pressuposto, em toda sua
manifestação algo de pré-existente; por isso se diz que sempre se trata de um criar relativo;
enquanto o criar absoluto, que é próprio de Deus, é um criar sem nenhum pressuposto. Não
se pode iniciar a compreender o conceito metafísico de criação se não se inicia a distingui-lo
radicalmente de qualquer outro tipo de produção, dado que a criação realizada pelo
Absoluto não é nem a estruturação de algo preexistente, nem informação de uma matéria
preexistente: é produção do nada.
A criação não é, portanto, edução, isto é, o agente extrai a forma inserida na matéria
passiva. A criação também não é emanação: ou seja, o agente extrai de si um ser semelhante
(o resultado desta produção de tipo emanativo pode ser ou algo substancialmente ligado ao
agente, ou algo não necessariamente ligado a ele); o que emana é da mesma natureza do
princípio do qual procede, é seu efeito necessário, não é outra coisa senão um
desdobramento da riqueza do princípio do qual procede.
A criação também não é uma processão, ou seja a comunicação de uma natureza
imutável a uma outra pessoa; com este vocábulo se explicam as relações das Pessoas divinas
na Trindade.
A criação não é, portanto, nem processão, nem edução, nem emanação, nem geração,
nem transformação, nem qualquer outro tipo de produção humana. A criação é a produção
divina de alguma coisa a partir do nada.
Antes de aprofundar a metafísica da criação até colher o seu significado mais próprio
é preciso demonstrar a realidade da criação.

2. Existência da criação. Deus é causa eficiente do mundo: a participação


transcendental do ser na criação
a) A potência criadora. A capacidade de criar que o Absoluto possui deriva da sua
onipotência. A possibilidade de produzir as coisas no ser sem matéria prévia faz parte da
infinitude de Deus, do poder infinito que constitui o próprio Absoluto. Antes, a potência
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divina é potência criadora enquanto o modo peculiar e próprio da ação de Deus se
fundamenta na não necessidade de matéria prévia ou de uma qualquer coisa pré-existente.
Deus, para agir, não tem necessidade de nada, a não ser do seu poder infinito.
b) Deus, causa do ser das coisas. Todo ser participado é causado imediatamente pelo
Ser por essência. Se ficou bem clara a noção de participação e se se compreendeu, na
medida do possível, o seu núcleo teórico, se pode compreender que a participação não
acontece sem uma relação de causalidade. As expressões "o que se diz por essência, é causa
do que se diz por participação" e "tudo o que é por participação, é causado por aquele que é
por essência" encontram o seu sentido último se se compreende as noções de ser por
essência e ser por participação em função da noção de ser como ato (actus essendi). O ser
que atua a potência de ser é um ser participado. Contudo, a noção de participação não anula
a causalidade. Como se viu na apresentação da quarta via tomista, o ato de ser deve ser
entendido como ato metafísico intrínseco e constitutivo da realidade; em virtude deste ato de
ser, a própria resolução formal das diferentes participações que encontramos nas coisas
significa já a fundação e dependência causal dos entes por participação no máximo ou
primeiro, isto é, o ser por essência. Tudo isto se realiza graças à resolução de todas as
diferentes perfeições na perfeição do ser. O ser é o pressuposto universal; por isto, a
fundação e dependência formal das diferentes perfeições implica virtualmente a fundação
real completa, em virtude do ser intensivo, que é a causa do ser.
Que Deus seja causa do ser se pode provar de múltiplos modos mas a prova
definitiva, a mais apropriada, é a realizada em função do ato de ser e da participação.
Todo ser participado é causado imediatamente pelo Ser por essência (quarta via).
Esta via demonstra que o Próprio Ser é causa do ente enquanto ente, ou melhor, que o ato
de ser, pelo qual o ente subsiste, é causado pelo Ser que é Ato puro de ser. Por isso o ser das
coisas criadas não pode ser entendido senão como deduzido do ser divino, assim como nem
mesmo o efeito próprio pode ser entendido senão como procedente da própria causa. O ser
das coisas que age pela essência, postula necessariamente um ser que seja em si e por si, que
não tenha iniciado a ser, que seja absolutamente completo, que seja o Ser, a Verdade, o
Bem, a Beleza e a Unidade, que seja Identidade perfeita sem composição nem relação
alguma senão consigo mesmo, que seja O Ser: O Próprio Ser subsistente, do qual participam
os entes, dos quais, somente por analogia, se diz que são.
Como corolário a tudo isto, o texto de Tomás de Aquino, na S. Th. I, q. 44, a. 1.,
confirma: "É preciso afirmar que tudo o que em um certo modo existe, existe graças a Deus.
Se de fato se encontra alguma coisa por participação em um ente, necessariamente isto deve
ter sido causado neste por aquele a quem esta pertence essencialmente, assim como o ferro
se torna incandescente por causa do fogo. Ora, já se demonstrou precedentemente, falando
da simplicidade divina, que Deus é o Ser subsistente, e se provou que o ser subsistente não
pode ser senão um, do mesmo modo que, a brancura se fosse subsistente, não poderia ser
senão uma, dado que ela se torna múltipla em razão dos sujeitos nos quais é recebida. É
necessário, portanto, que todas as coisas, exceto Deus, não sejam o próprio ser, mas
participem do ser, e consequentemente todos os entes, que são mais ou menos perfeitos em
razão desta diferente participação, devam ter por causa um primeiro ser que seja sumamente
perfeito".
O que se predica essencialmente é causa de tudo o que se predica por participação,
como o fogo é causa de tudo o que esquenta enquanto tal. Ora, Deus é ente por essência
porque é o próprio ser, e tudo o mais é ser por participação; porque o ente que é o seu
próprio ser não pode ser senão um. Portanto, Deus é causa do ser de tudo o que se distingue
dele.
56
c) Deus é Causa primeira; as causas segundas produzem o "tornar-se" do efeito e
não o "ser". As causas segundas agem somente no plano da causalidade predicamental:
intrínseca (matéria e forma) e extrínseca (eficiente e final). A causalidade predicamental
intrínseca nos envia à causalidade transcendental, que mostra a constituição intrínseca de
um ente composto de essência e ato de ser; e a causalidade transcendental extrínseca é a
causa de todo ser, a causa de ser. A participação transcendental constitutiva encontra o
próprio fundamento na participação constituinte ou causal.
Na produção ou no causar o ser (o existir) é preciso, portanto, distinguir dois
momentos: o primeiro, predicamental, no qual o ser segue a forma, e o segundo,
transcendental, no qual o ser de todo ente enquanto tal é causado diretamente por Deus. O
ser, ato último do ente, fundamento da sua unidade e princípio último de sua distinção de
todo o resto, não se atinge por uma causa segunda. Esta atinge o princípio do ser de um
composto, isto é, a forma; mas esta não é o ser.

3. A natureza da criação
a) A criação do ser é criação do nada. O efeito próprio da causalidade divina é o ser
de todo ente. A criação diz respeito propriamente ao ser da coisa; e por isto se diz no livro
De Causis, prop. VIII, que o ser se produz por criação e as outras coisas, ao invés, por
informação. Deus pode ser chamado Criador justamente porque dá o ser à criatura. Pertence
à razão específica da criação a produção do ser em modo absoluto, e não enquanto isto ou
aquilo. O ser é, por assim dizer, o ponto de contato entre o Ser por essência e os entes por
participação, posto que o efeito da causalidade divina criadora, é o ser de todo ente. O ser é
o termo adequado da causalidade divina. "O primeiro efeito de Deus nas coisas é o ser,
porque todos os outros efeitos o pressupõem e sobre este se fundam".
Se a influência do ser é o que caracteriza a criação, a conclusão é que a criação
divina é produção ex nihilo, dado que fora do ser não há nada que tenha o ser (o ser não é
um conteúdo, mas o ato de todo ato; em sentido próprio, o ser não tem uma essência, mas é
a essência que tem o ser); nem há nada precedente ao ser, pois não há um termo a partir do
qual possa ser feito, dado que o ser está implicado em tudo o que existe. O objeto próprio da
criação é o ser; a produção do ser ex nihilo se chama criação. "Quanto mais universal é uma
causa, tanto mais universal é o seu efeito... Toda causa que faz ser alguma coisa em ato,
pressuposto o que está em potência àquele ato, é causa particular em relação a uma causa
mais universal. O que não diz respeito a Deus, dado que é Causa primeira e, portanto, não
tem necessidade de matéria para a sua ação. Conseqüentemente, lhe é próprio produzir as
coisas no ser a partir do nada, que se chama criar".

b) Essência, ser e criação. Porque a essência sem o ser correspondente não é nada,
não somente o ser mas também a essência deve dizer-se criada: "Deus, enquanto dá o ser,
produz o que recebe o ser". Nem mesmo a essência ou qüididade preexiste ao ser, pois sem
este (o ser) esta não é. Todavia, não se trata de uma espécie de dupla produção, como se a
criação fosse, pela criatura, o resultado de duas ações divinas, uma pelo ser e outra por
essência. Não são duas "coisas" criadas que se unem, mas um ser (participação, semelhança
parcial, do Ser de Deus) que, justamente porque participado, é recebido em uma essência; é
ato de uma determinada potência (essência) que limita este ato.
Isto não significa, todavia, que a essência seja simples negatividade, já que é ato
(positividade metafísica) em nível formal. A essência dos entes não deve ser entendida
como negatividade, nem como privação ou limite privativo do ser; a positividade da
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essência deve ser salvaguardada: esta comporta, de fato, um exercício determinado,
mediato, da perfeição do ser.
Não é, contudo, inútil insistir sobre o primado do ser sobre a essência, em ordem a
uma correta compreensão da metafísica da criação. Tomás de Aquino diz que, justamente
porque à essência é atribuído o ser, não se pode reconhecer somente a este último, mas
também à essência, de ser o termo do ato criativo. A participação, porém, é referida
diretamente ao ser, porque uma criatura sem ser é nada, a não ser no intelecto do Criador,
onde não é uma criatura, algo diferente da essência criadora. A essência sem o ser é nada:
isto indica que a essência não pode ser concebida sem fazer referência ao ser, que se
constitui, portanto, como o objeto primário da ação de criação. Quando se afirma que antes
das coisas criadas há o ser não se quer dizer que a realidade criada é somente ser: de fato, é
criado o tudo (o ente, composto de essência e ser), mas a criação tem essencialmente como
termo de referência o ser mesmo da coisa criada, e através do ser, a coisa (essência). A força
de discursos racionais e abstrações, somos fortemente tentados – na história da filosofia as
quedas foram quase contínuas – de conceber as essências sem referência ao ser, como idéias
puras (até mesmo eternas!). Para Tomás de Aquino, ao contrário, "a essência não designa
alguma coisa que possa ser entendida independentemente da sua referência ao ser que é o
seu ato. O conceber a essência como uma realidade em espera de receber, quase do externo,
a existência, e que portanto em um certo sentido reclama tal existência da bondade divina, é
um erro crasso". Isto aconteceu toda vez que se considerou a essência como o elemento
primordial, o que, de outra parte costuma acontecer quando o ser como ato é reduzida à
factum, à existência.

c) Criação ativa e criação passiva. A criação pode ser entendida como ação realizada
por Deus, e como efeito consequente desta ação: no primeiro sentido se denomina criação
ativa; no segundo caso toma o nome de criação passiva.
A criação ativa ou ação de criar é Deus mesmo: não se diferencia da sua causa
criadora. O ser do poder de Deus é idêntico a este poder. Deus não passa da possibilidade de
ser dotado de potência criadora ao ato de possuí-la, nem da potência de causar ao causar em
ato. Ambas as passagens ou mutações são de todo incompatíveis com o Ser que é Ato Puro.
A onipotência divina é totalmente ativa: atividade pura e absoluta. Por isto, a ação de criar é
exercida por Deus sem que aconteça nele nada que o distinga desta. A ação criadora de
Deus é Deus mesmo, porque a sua ação é o seu ser; não se trata, portanto, de alguma coisa
que emane ou flua de Deus: neste sentido se deve dizer que a criação é incriada. A criação
ativa é o próprio Ser Subsistente.
A criação, considerada em sentido passivo, é o efeito resultante: o criado. Como
vimos no parágrafo precedente, Deus dá o ser à criatura tornando-a dependente. Por isto, na
criação, considerada do ponto de vista do criado, existem dois aspectos que não devem ser
esquecidos: a derivação completa da criatura respeito ao Criador; e a dependência absoluta
do criado respeito a Deus. Dito com uma só expressão que resuma estas duas características
essenciais: dependência no ser. Deus dá o ser à criatura tornando-a dependente, e por isso
não é alguma coisa de adjacente às coisas, mas intimamente presente. Todavia, o ser das
criaturas é por elas possuído como próprio, já que este não é pura facticidade, enquanto a
criação não pode ser considerada "um simples factum nem um estado de precariedade
entitativa; é uma situação estável e positiva, como estável e positivo é o ato de ser
participado, que constitui o fundamento de toda realidade. O "ser criatura" não é um ser
jogado na existência, não se reduz a uma mera efetividade diretamente resultante de um
decreto arbitrário, mas reside na estrutura mais profunda do real. O ser é "próprio" do ente,
58
de toda criatura, porque a esta foi dado por Deus; e ao mesmo tempo é impossível que se
desvincule de sua causa transcendental: esta dependência absoluta e radical constitui a
essência da criação; além disso, Deus não pode fazer que a criação não dependa dele. Por
isso, Tomás de Aquino, em algumas ocasiões, define a criação como uma pura dependência.
Pois é criação do nada e nesta o ser é produzido sem nenhum pressuposto, a criação se
realiza sem movimento (antes da criação não há nada que possa "mover-se") e, portanto,
sem sucessão. "A criação não é, portanto, um movimento, mas a dependência do ser criado
respeito ao princípio pelo qual é constituído".

d) A relação de criação. Como vimos, a criação não pode ser considerada como um
movimento. Não há uma mudança no Criador. Há somente a dependência ou relação
daquilo que recebeu o ser respeito àquele do qual recebeu.
Tanto a criação ativa quanto a passiva comportam uma relação; todavia se trata de
uma relação diferente em cada um dos casos. No primeiro caso esta designa a ação de Deus,
que é a sua essência, em relação à criatura: esta não é uma relação real, mas somente de
razão. No segundo caso, visto que a criação não é um movimento, não se pode dizer que
seja alguma coisa no gênero da paixão, mas no gênero da relação.
Todos os entes são efeitos de Deus, que é a sua Causa de ser; por isso, estes
dependem totalmente Dele. Dada esta origem e dependência, as coisas se dizem relativas a
Deus. É evidente que se alguma coisa se relaciona com outro, este último deve dizer-se
relativo ao primeiro; portanto, também Deus está em relação com as coisas. De Deus, de
fato, se predica alguma coisa em relação às criaturas.
As relações, como sabemos, podem ser reais ou de razão. Relação real é a que se dá
nas coisas; e relação de razão se dá quando a referência (o puro "referir-se a" em que
consiste a relação) é colocado na razão. Vejamos agora o modo em que é preciso entender a
relação entre as criaturas e o Criador.
Em primeiro lugar, a referência, "em respeito" ou relação de Deus com as criaturas.
A relação de criação existente entre Deus e as criaturas não pode ser de maneira alguma
real, pois, conforme definimos a relação real, nesta os extremos da relação, o sujeito e o
termo, são simultâneos e simultaneamente conhecidos. Aplicado a Deus, isto colocaria em
Deus uma referência obrigatória em relação às criaturas, isto é, uma referência a estas
(independentemente do tipo de referência: segundo o ser, a quantidade, a qualidade, a ação
ou a paixão); se a relação de Deus para com as criaturas fosse real, Deus dependeria em um
certo modo das coisas. A criação, portanto, não põe em Deus nenhuma relação real respeito
às criaturas.
A relação colocada pela criação não pode ser identificada com a essência divina, nem
pode ser um acidente acrescentado à sua essência. Não é possível identificar esta relação
com a essência divina, porque a criação não é necessária e além do mais, em caso contrário,
Deus mesmo não seria um ser necessário. As relações atribuídas a Deus em ordem às
criaturas não se identificam com a essência divina "pois sendo o relativo o que no seu ser
tem uma certa tendência respeito a outro, como afirma Aristóteles no Livro sobre as
Categorias, seguirá racionalmente que a substância divina em si mesma se predicaria de
outro. Mas o que pelo qual algo tende a outro, depende em certo modo deste, dado que não
pode ser nem ser compreendido sem esse. Portanto, a substância divina dependeria de
alguma coisa de extrínseco, e em tal modo não seria por si mesmo um ser necessário, como
se demonstrou. Portanto, tais relações não são reais da parte de Deus.
Esta relação não pode nem mesmo ser um acidente, pois em Deus não há nada de
acidental. Portanto se existe efetivamente uma relação em Deus respeito às coisas, que não é
59
real, isto é, Deus não está em relacionamento com outras coisas em virtude de uma relação
que existe nele realmente, "fica claro que lhe são atribuídas somente segundo o nosso modo
de entender, ou seja, enquanto todas as coisas se referem a Ele. O nosso intelecto, de fato,
compreendendo a relação que uma coisa tem com outra, colhe junto a relação que esta tem
respeito àquela, mesmo se na realidade às vezes tal relação não exista".
A relação entre Deus e as criaturas é, em Deus, uma relação de razão. Tomás de
Aquino esclarece este ponto, explicando que Deus é relacionável às criaturas como o
conhecível à ciência: não há relação real nem conhecível, mas somente no nosso
conhecimento: Mesmo se o conhecível se diz tal enquanto está em relação com a ciência,
todavia, não se dá relação real neste, mas na ciência. Por isto Aristóteles afirma no livro V
da Metafísica, que o conhecível tem um significado relativo, mas não porque este esteja em
relação, mas porque alguma coisa se refere a ele.
Na criatura, ao invés, a relação a Deus é real; se trata de uma relação entre o
participante e o participado nos termos comporta a participação transcendental; é relação de
origem, de presença fundante do Ser no ser do ente, o que implica a total dependência da
criatura respeito (relação) a Deus. Tal relação é real, assim como real é o que a criatura
adquire na criação, e como o efeito em relação à própria causa; "e é absolutamente radical,
enquanto provém da causa do seu ser... De outra parte, esta relação implica um
relacionamento direto e imediato em relação a Deus, enquanto dar o ser é privilégio divino.
Esta relação é acidental (toda relação é um acidente). Mas acidental não significa pouco
importante; antes, se trata de um relacionamento totalmente necessário que não poderá
nunca deixar de existir. "A acidentalidade desta relação não tolhe nada à sua radical
necessidade. Nem mesmo a onipotência divina poderia – uma vez criado o existente – privá-
lo desta relação. Todavia, tendo sido criados livres, senhores de nossos atos, capazes de
participar o nosso ser substancial aos acidentes, nós mesmos podemos privar-nos de tal
relação nas nossas ações, no nosso dinamismo, e perder assim a semelhança perfeita e
terminal com a nossa causa formal exemplar.

e) A liberdade de Deus na criação. Deus cria o mundo livremente, não por


necessidade. Deus não pode agir por necessidade porque, contendo em si toda a perfeição
do ser, o que o faria agir em tal modo não poderia ser senão um ser ilimitado e infinito, o
que é impossível. O criado não pode nunca ser infinito, justamente pelo fato de ser criado, e,
como já tratamos quando falamos do Absoluto como Causa de si, não é nem mesmo
possível uma autoprodução de Deus mesmo.
Além do mais, a ação divina enquanto criadora se identifica com a própria vontade de
Deus respeito ao mundo. Tal vontade é livre: Deus não quer os seus efeitos
necessariamente, mas livremente, porque a bondade das criaturas não acrescenta nada à
infinita bondade de Deus.
A potência ativa infinita de Deus não deve necessariamente adequar-se a um efeito
finito. A liberdade divina na criação deve ficar absolutamente salvaguardada; e se refere
tanto ao exercício da criação (poderia ter criado ou não ter criado) quanto à especificação ou
escolha (poderia ter criado este mundo ou outro qualquer). Como já foi indicado "a criação
do mundo ou é livre ou não é em absoluto". A esta liberdade absoluta no seu exercício e
escolha não se opõem nem à onipotência nem à bondade divina. "A onipotência é
certamente um poder de criar. Mas é igualmente um poder de não criar. O sim e o não são
neste caso correlativos. À essência da potência divina pertence não somente o poder de
fazer, mas também o de não fazer. Com maior razão isto vale para a onipotência divina. A
liberdade se estende aos dois momentos da alternativa. A criação ativamente considerada
60
não deve entender-se no sentido que Deus deveria criar necessariamente o mundo; deve ao
contrário entender-se também como o poder de não criar nenhum mundo. Deus goza da
liberdade de criar e não criar".
Quando os panteístas, como Espinoza ou Hegel, falam de 'criação necessária' ou não
se referem à criação retamente entendida (porque as criaturas são Deus mesmo ou um
aspecto parcial de Deus), ou não admitem a liberdade em Deus (pois tudo deriva
necessariamente do Absoluto): Deus seria obrigado a criar. Para Espinoza, a liberdade se
fundamenta na ausência de coação externa e por isto afirma que somente Deus é livre: a
Substância é livre porque age por necessidade da própria natureza sem ser obrigada por
nada do externo. O Absoluto espinoziano não externamente, mas internamente cria por
necessidade da própria natureza: a criação seria, assim, absolutamente necessária. O fato
que não haja nenhuma coação externa não comporta no espinozismo ausência de
necessidade; por isto, no pensamento de Espinoza não há lugar para a criação (como
acontece, aliás, para todas as outras formas de panteísmo): se trata sempre de uma emanação
necessária.
Se a criação não fosse livre, propriamente não poderia existir. Por isso, diante da
pergunta leibniziana sobre porque existe o ser e não o nada, foi dito justamente que uma tal
posição "mostra a própria pobreza metodológica. A respeito da reserva originária, a opção
entre o ser e o nada é privada de sentido. Com esta se indica a perfeita liberdade da opção
causal: Deus é livre de criar enquanto cria".
Deus é livre de criar ou não criar, é livre de criar este mundo ou um outro melhor ou
pior, dado que não tem necessidade de nada para criar (exceto a sua infinita potência ativa,
que não é perfeccionável). Mesmo se Leibniz afirma que Deus é livre no ato criador não
salva porém a absoluta liberdade de Deus na criação, pois segundo ele Deus deve escolher o
melhor: este é o melhor dos mundos possíveis. Tal discurso em uma metafísica do ser não
faz nenhum sentido, pois Deus não é de modo algum submisso às coisas que cria. Que Deus
possa criar alguma coisa não significa por nada que tal coisa pode ser criada por Deus: se
assim fosse, ou deveria existir uma potência eterna da criatura, ou Deus não poderia criar
nada. O otimismo metafísico de Leibniz em torno ao decreto divino sobre o melhor dos
mundos possível é uma limitação da liberdade de escolha na criação por parte de Deus.
Deus não se constringe a escolher o melhor, mas cria o que quer e porque quer.

f) O criar é atividade própria e exclusiva de Deus. A criação é uma ação divina


intransferível e incomunicável. Nenhuma criatura pode criar, nem por própria virtude e nem
como instrumento de Deus. Isto porque "os efeitos são proporcionais às suas causas, de
modo que podemos atribuir os efeitos atuais à causas atuais, e os efeitos em potência à
causas em potência, e ao mesmo modo, os efeitos particulares à causas particulares, e os
universais a universais. Mas o ser é o primeiro causado, como é evidente pela sua
universalidade. Portanto a causa própria do ser é o agente primeiro e universal, isto é, Deus.
Os outros agentes não são causa do ser total, mas de um ser determinado, como o ser
homem ou o ser branco. Em tal modo o ser total é causado por criação, sem pressupor nada,
pois não pode haver nada que preexista fora do ser total, enquanto com as outras classes de
ações se produz o tal ser ou o outro. A criação é, portanto, uma ação própria de Deus". É
preciso levar em conta que a criação exige uma potência infinita, dado que nesta se trata da
causa do ser enquanto tal, o que implica o ser ou ter o poder de ser causa de tudo o que pode
existir. Somente Deus pode criar, porque somente Ele pode dar o ser.
61
g) Temporalidade ou eternidade da criação? Um mundo criado não se identifica com
um mundo que tem início no tempo; mesmo se, graças à fé, sabemos que isto que não
aconteceu, todavia poderia existir um mundo criado ab eterno. O fato do início temporal do
mundo se conhece somente graças à Revelação: do ponto de vista somente da razão não se
dá uma demonstração rigorosa apta para provar que o mundo teve um início ou que é
eterno; mas em ambos os casos se pode demonstrar que o mundo é criado. Mesmo se o
mundo existisse ab eterno, nem por isto seria incriado.
Não é necessário que tenham existido coisas criadas desde a eternidade; portanto, não
é impossível que o mundo tenha tido um início. As razões que, partindo de Deus ou das
criaturas ou da menor ação produtiva, são adotadas pelos que sustentam a eternidade do
mundo não são rigorosas, assim como não o são as provas com as quais alguns tentam
demonstrar que o mundo não é eterno. Racionalmente não é demonstrável nem a eternidade
nem o início temporal do mundo. Graças à fé sabemos que o mundo teve um início e
podemos também encontrar argumentos de conveniência que ajudam a compreender o que
já cremos; todavia, do ponto de vista racional se trata de uma tese indemonstrável.

4. Criação e evolução
A doutrina metafísica da criação não pode ser rebatida (ou contrariada) por nenhuma
teoria científico-experimental que explique ou pretenda explicar o modo físico ou biológico
da origem do universo ou a origem da vida. É um pré-julgamento difundido colocar o
problema da criação e da evolução como doutrinas contrapostas radicalmente, de modo tal
que se se admite uma não se pode admitir a outra. Tal falso dilema pode encontrar um apoio
somente pelo abuso de um dos dois versantes da alternativa: abuso da ciência experimental
(que transcende o dado científico observável e analisado) ou abuso da metafísica (que
descuidasse ou desprezasse as realidades físicas). A criação do ser por parte de Deus não
exclui uma evolução posterior; exclui, ao invés, o evolucionismo universal, isto é, aquele
que compreende o próprio Deus (por exemplo, o panteísmo evolutivo, doutrina que não é
nem científica nem filosófica) e a alma humana, ou a doutrina, também essa filosófica, da
origem de tudo por evolução do nada absoluto (o não-ser não pode nem criar nem evoluir).
A criação, como tal, não pode ser um processo evolutivo; de qualquer maneira, a
evolução viria depois. Vimos que a criação não é um movimento: este, o movimento em
qualquer de suas formas (a evolução é um tipo de mudança) vem depois. Enquanto ato do
Criador, a criação das coisas do nada é instantânea, e como já vimos, não é uma mudança,
mesmo se a nossa imaginação a representa primeiro como não existente e depois como
existente: assim não é, justamente porque constitui uma novidade absoluta que comporta um
início absoluto, sem nenhuma mutação. Respeito a que coisa mudaria, se não é possível nem
mesmo falar de um antes? A criação, não comportando nenhum movimento ou processo,
não é processual ou evolutiva por quanto diz respeito ao fato de tirar as coisas do nada por
parte de Deus (o que se chama criar). O evolucionismo científico, em cada uma das suas
modalidades, implica a criação. Esta, como vimos, indica além do mais a precisa situação
metafísica do ser participado. É preciso ressaltar o que já se afirmou acima: a criação é
indiferente tanto à eternidade quando ao início no tempo; a criação, se fosse eterna, seria
mesmo assim criação.
Portanto, em qualquer caso, o ser de todos e de cada um dos indivíduos de todas as
espécies foi dado imediatamente por Deus; o ser de cada uma das coisas não pode ser
entendido senão como procedente do Ser divino, o que corresponde propriamente à criação,
como já afirmamos. Quanto pois ao homem, todo nascimento implica a criação da
respectiva alma: se note que isto não significa que o nascimento de todo vivente exige uma
62
intervenção imediata de Deus como na criação das almas humanas individualmente. A
produção (e conservação) do ser de todos os entes é ação própria de Deus como causa
primeira e universal, mas a fonte do ser de todo o finito deixa subsistir a causalidade das
causas segundas. Estas são causas particulares que não produzem o ser, mas dão razão
somente ao tornar-se (o devir), explicando a causalidade entre estes entes. Um exemplo:
este pai não é causa do ser deste filho, mas é causa somente do gerar do filho enquanto esta
matéria adquire tal forma.
Gerar não significa dar o ser, mas um meio através do qual é transmitido um novo
ser. O homem, por exemplo, não pode produzir a alma espiritual a partir da matéria: a
geração põe as condições para que esta matéria seja determinada por tal alma (criada por
Deus). Como o devir é união do corpo e da alma, assim se pode sem dúvida dizer que cada
indivíduo humano é gerado realmente por seus genitores. O mesmo vale para todas as outras
espécies de coisas naturais, se bem que nos entes simplesmente corpóreos, a forma
substancial é tirada da matéria pré-existente. Consequentemente, o homem não pode surgir
por evolução, já que a sua alma ou forma substancial é espiritual e, portanto, independente
da matéria.
A criação, como dissemos, não exclui uma evolução posterior, e a possibilidade que
alguns seres procedam de outros. O fato que, em linha geral, as doutrinas evolucionistas
atualmente superem os limites do método científico-positivo e algumas considerem que a
origem da vida se explique exclusivamente com a evolução da matéria e das energias físico-
químicas, com uma programação molecular procedente do acaso, etc... não deve levar a uma
rejeição do evolucionismo como teoria científica. O que se deve ao invés rejeitar são as
teses filosóficas, difundidas entre os cientistas, que não atendem rigorosamente às
exigências do método científico positivo. O evolucionismo científico pode ser verdadeiro se
demonstra objetivamente o que afirma (ou seja, o certo como certo, o incerto como incerto,
e o hipotético como hipotético) a respeito da cosmogênese e à biogênese.
Todas as teorias (passadas, presentes e futuras) sobre a cosmogênese e a biogênese
não se opõem ao criacionismo. Por outra parte, um filósofo que demonstre a verdade da
criação não deve temer que uma teoria científica "demonstre" a impossibilidade da criação.
Não deve considerar as teorias científicas com prevenção, e muito menos deve imitar o
modo de raciocinar dos cientistas evolucionistas, rejeitando as descobertas verdadeiramente
científicas e demonstradas que as ciências positivas apresentam em torno às diferentes
modalidades da evolução do mundo e da evolução biológica.

5. A conservação
A conservação é a contínua dependência que as coisas criadas têm respeito ao seu
criador. A presença do Ser nos seres do ente não é passageira, mas permanente. Nenhuma
criatura pode manter o seu ser, perdurar no ser, se a causa criadora não mantém a sua ação
atuante, pois depende desta no seu ser e no seu agir: ser e agir são seus efeitos e tirada a
causa desaparece o efeito. A presença da causa criadora no criado se realiza, não somente
quando as coisas iniciam a ser, mas também enquanto são conservadas no ser. "Deus é por
si diretamente causa do ser, enquanto comunica o ser a todas as coisas, assim como o sol
comunica a luz ao ar e ao resto que é por este iluminado. E como para a conservação da luz
no ar é preciso que perdure a iluminação do sol, assim, para que as coisas sejam
conservadas no seu ser, é preciso que Deus conceda o ser incessantemente; e
consequentemente todas as coisas se refiram a Deus como o que é feito àquele que faz, seja
quando começam a ser, seja quando são conservadas no ser. É necessário que Deus seja
63
presente em todas as coisas enquanto estas tem o ser. O ser é o que mais intimamente está
presente em tudo, portanto, é necessário que Deus seja presente em todas as coisas".
Se tal presença criadora parasse, o ente cairia no nada (o seu ser despareceria), assim
como desaparece o tornar-se (o movimento / a mutação) de um ente quando é suspensa a
ação da causa predicamental. Um exemplo: se a ação de construir um edifício é suspensa,
também a construção do edifício se interrompe; quando a luz que causa a iluminação do ar
desaparece, desaparece também a própria iluminação. Assim do mesmo modo: "o ser de
todas as criaturas depende de tal modo de Deus, que estas não poderiam subsistir nem
mesmo por um instante, mas tornariam ao nada, se não fossem conservadas no ser pela ação
da virtude divina" (S. Th. I, q. 104, a. 1.). Toda criatura está para Deus assim como o ar está
ao sol que o ilumina: como o sol é iluminante por natureza e o ar se torna iluminado
somente participando da luz do sol, do mesmo modo Deus é o ser por essência e toda
criatura é ser por participação. O ser não pode nunca entrar e fazer parte daquilo que a coisa
é, e portanto, se Deus não comunicasse 'continuamente' o ser, pois a essência não pode
apropriar-se dele, o ente cairia no nada. E com isso nos encontramos diante do significado
preciso deste nada, diferente da simples negação lógica: o que seria a criatura antes e fora
do ato criado de Deus. Tal nada atesta a infinita indigência da criatura diante de Deus, e a
infinita potência de Deus que domina e supera qualquer indigência.
Deus não causa a conservação das coisas mediante uma nova ação criadora, mas com
a mesma ação com a qual produz o ser. A conservação é a continuação ou o prolongamento
da mesma ação criadora pela qual é dado o ser às coisas.
Não se insistirá nunca o bastante em ressaltar que criação e conservação são uma
mesma ação. Por isto, o próprio termo "continuidade" (da criação) mal exprime o que se
quer indicar, pois a rigor se dá continuidade quando há uma sucessão contínua, enquanto
que a criação e a conservação constituem a mesma e indivisível ação divina de dar o ser e
continuar a produzi-lo. Por assim dizer, a conservação, mais que uma conservação
continuada, é a continuação ou o prolongamento da criação.
A conservação ou continuação da criação não significa uma recriação contínua, como
pensou o racionalismo cartesiano. Segundo Descartes, a conservação, além de constituir-se
como um argumento para provar a existência de Deus, deve ser uma constante e perpétua
recriação, enquanto o tempo é descontínuo. Tendo como certeza que cada instante é
independente do que o precede e do que o segue, Descartes é constrangido a considerar a
conservação como uma criação reiterada em todo momento: Deus agiria de modo criador a
todo instante. Contra o racionalismo cartesiano é preciso observar que a conservação não é
uma reatualização ou reiteração do ato criador: a conservação é, ao invés, como vimos
precedentemente, o prolongamento no tempo da mesma e única ação criadora.

6. A moção divina no agir da criatura


Da criação e da conservação do ser deriva como consequência a presença divina no
mais íntimo das coisas, dado que o agente está presente nos seus efeitos imediatos, pelo
menos em modo virtual. Todo efeito depende de uma causa, tanto que se se tolhe a causa se
tolhe também o efeito. A causalidade da causa comporta a sua presença no efeito em um
certo modo: pelo menos a virtude ativa da causa está presente no seu efeito próprio e
imediato.
Deus é a causa imediata do ser de todo ente, e Deus se identifica com a própria ação;
portanto, Deus cria o ser do ente fazendo-se presente no mais íntimo das coisas (o seu ato de
ser). "Porque Deus é a causa primeira de tudo, a sua virtus (força) está no modo mais
64
imediato em todas as coisas. Ora, porque Ele mesmo é a sua virtus, não somente é princípio
imediato de operação em tudo, mas age imediatamente em toda coisa; o que não acontece
com as outras causas, pois todo ente tem as próprias operações através das quais produz os
seus efeitos".
Ora, porque o ser é o ato último que dá unidade a todo ente, a realidade mais íntima à
criatura e para as quais esta existe, "a presença divina – presença do Ser no ser do ente –, é,
portanto, a presença por essência, a qual comporta a presença por potência e por presença,
das quais já falamos anteriormente. Segue daí que se deve falar de dependência total da
criatura respeito ao criador: a criação é de uma parte um fato histórico, mas de outra uma
condição metafísica contínua da criatura: o ser-criatura não diz exclusivamente nem
primariamente o ter um início, mas, em base à noção de participação transcendental, indica
o ser sem ser o Ser, o ter um ato de ser: implica a composição radical de essência e
existência. Por isso, esta condição metafísica é um estado de total dependência no ser, que
toda criatura, enquanto participante do ser, tem em relação a Deus, Ser por Essência.
A criatura tem uma relação de total dependência respeito a Deus também no agir:
operari sequitur esse, a participação no âmbito do operar (agir) segue a participação
ontológica. Deus não é somente a causa criadora e conservadora dos entes, mas é também a
causa total das suas operações: Ele causa o agir de todos os agentes, justamente porque as
operações das criaturas dependem do ato de realidade de todo ente, isto é, do ato de ser. Este
é ato último e, portanto, fundante do agir: por isto se diz que o agir segue o ser e o modo de
agir segue o modo de ser. O agir é ato segundo respeito à natureza, que é ato primeiro na sua
ordem formal: todas as coisas agem segundo a sua natureza, mas tanto o ato primeiro na
ordem formal (natureza) quanto o ato segundo (agir) são potência na ordem real respeito ao
ato de ser, ato último que dá realidade a tudo o que existe em um ente. Por isto é o ser que
funda o agir enquanto real, e porque o ser é participado, com tudo o que este comporta, o
Ser por essência não somente é causa primeira, total, íntima, imediata, do ser dos entes, mas
é também causa primeira, total, íntima, imediata das operações (agir) que os entes realizam.
A única diferença entre participação ontológica e participação no âmbito do agir, que
dizem respeito a todas as criaturas enquanto colocadas em relação a Deus, depende do fato
que Deus é causa total e exclusiva do ser da criatura. Ou seja, enquanto o agir é, este é
causado por Deus, mas depende também da causa criada ou causa segunda quanto ao modo
de ser. Isto não implica, como veremos, que as criaturas não possuam uma própria
capacidade de realizar operações, ou que sejam substituídas na sua eficácia causal da
presença causante de Deus. Acontece aqui o mesmo que acontece para a participação
ontológica: o ser da criatura é criado e conservado por Deus, mas todo ente o possui como
próprio (porque assim lhe foi dado e continua a ser-lhe dado), e a presença íntima do criador
na criatura não a priva do seu próprio ser. O mesmo acontece no âmbito do agir: a
causalidade divina causa o agir das criaturas, mas não as priva da sua eficácia. Não há,
portanto, nenhuma diminuição do valor das causas segundas das criaturas. A causalidade da
causa primeira nas operações das criaturas não significa ingerência, nem limitação da
atividade causal dos entes criados.
Os problemas que surgem a este respeito constituem o argumento da moção divina no
agir criado, conhecido com o nome de concurso divino (cooperação de Deus) na ação da
criatura. Embora o termo concurso não seja o mais adequado, porque esta palavra parece
indicar que a causalidade divina não é suficiente para produzir de modo total um efeito
determinado vamos agora esclarecer como ele deve ser entendido.
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1. Em primeiro lugar, a relação e dependência real da criatura respeito ao Criador,
por quanto diz respeito ao agir da criatura é consequência da causalidade transcendental que
implica uma imediata e íntima dependência do ser participado respeito ao Ser por essência.
A moção divina, a moção da Causa primeira nas causas segundas, é consequência da criação
e conservação no ser. A criação, conservação e moção divina nas ações dos entes
participados enquanto são causas segundas não podem ser separadas em Deus. Em relação
aos entes participados, tais diferentes momentos são distintos por motivo do nosso modo de
considerar, mas é claro que, em Deus, Ato Puro, a única relação respeito às criaturas é a do
Ser subsistente, finalização, moção divina na ação, etc... é, "consequência" do fato que Deus
é Ser por essência.
2. Deus é causa primeira do agir de todos os agentes, ou melhor, a Causa primeira
está presente causalmente nas causas participadas: é a presença fundante do agir do Ser no
operar da criatura. A ação divina em toda ação criada, imediata e presente no curso de toda
ação segunda como fonte da eficácia desta, é uma consequência lógica da criação, pela qual
Deus dá o ser às coisas".
3. Segue daí que "a causa da ação é atribuída mais àquele em virtude de quem se
opera, do que em virtude do que opera, assim como é mais propriamente causa o agente
principal que o instrumento. Por isso, Deus é causa de toda ação em modo prioritário
respeito às causas segundas", dado que a causa primeira funda radicalmente não somente a
causa segunda enquanto efeito, mas também a sua própria ação de causalidade: Deus é
causa também da causalidade das causas participadas.
4. Mesmo se a criatura para causar tem necessidade de Deus, todavia a sua
causalidade não se identifica realmente com a causalidade divina, mas somente em sentido
causal. O ocasionalismo e outros sistemas que suprimem a causalidade real das causas
segundas devem ser rejeitados, porque as ações são dos sujeitos. "A moção divina impressa
no agir da criatura não diminui em nada a eficácia própria do sujeito operante, mas o funda
na raiz. A Causa primeira não se opõe à causa segunda, mas, ao contrário, lhe comunica a
razão de causa efetiva, em modo tal que essa última não poderia fazer nada se não estivesse
unida e subordinada à Causa primeira. Em outras palavras: nem separatismo extrínseco,
nem autonomismo; nem verticalismo nem horizontalismo; nem platonismo nem
aristotelismo; mas participação intrínseca e própria no agir, e transcendência fundante de
uma causa superior".
5. Alguns acham difícil compreender como se possa atribuir os efeitos naturais
conjuntamente a Deus e à natureza agente. O efeito não se atribui à causa natural e a Deus
no sentido que seja feito em parte por Deus e em parte pela causa segunda, mas no sentido
que é produzido todo por ambas as causas. O modo de produção, porém, é diferente: um
mesmo efeito pode ser produzido imediatamente por uma causa natural e por Deus, mas
pelo primeiro e pelo segundo em um modo diferente, segundo a sua específica perspectiva.
6. Deus e a criatura não são causas parciais: cada uma delas causa totalmente o efeito.
Mas "mesmo se a Causa primeira e a causa segunda são auto-suficientes na própria ordem, e
não complementares, nenhuma das duas é supérflua para a produção do efeito. É evidente
que a causalidade segunda não torna supérflua a causalidade divina, porque se trata de uma
causalidade antecipada, que deve ser fundada". Vice-versa, a ação divina não torna inútil a
ação da criatura: esta é verdadeira causa daquilo que realiza.
7. Por isso, quando uma coisa natural produz o próprio efeito, não é supérfluo que
também Deus seja a causa, pois a causa natural não o produz senão valendo-se da virtude
divina. "Nem mesmo é supérfluo que Deus, mesmo podendo produzir por si mesmo todos
os efeitos naturais, os produza mediante outras causas. Isto de fato depende não da
66
insuficiência da virtude divina, mas da imensidão da bondade de Deus, pela qual Ele quis
comunicar a sua semelhança às coisas, não somente para que existissem, mas também para
que fossem causas de outras coisas".

7. A providência e o governo divino do mundo

1. Deus é providente
Já vimos que Deus é criador e conservador das coisas. A causa universal criadora e
conservadora se estende a tudo o que existe, tornando independente no ser e no agir tudo o
que se encontra na criatura, incluídos os fins que os entes criados buscam. O cuidado que
Deus dispensa às criaturas para que estas alcancem o próprio fim, é a providência. Esta é
própria de Deus, já que "nas coisas há o bem não somente por quanto diz respeito à sua
natureza, mas também em relação à ordem que essas têm respeito ao fim, e sobretudo
respeito ao fim último, isto é, a bondade divina". Além da ligação que as criaturas têm
respeito a Deus quanto ao ser e ao agir, estas possuem uma ligação correspondente aos seus
fins: as criaturas são finalizadas. A causalidade divina na criação, conservação e no próprio
agir dos entes é ação eficiente. A providência é a ação divina respeito à finalidade. Deus
dirige as coisas ao seu fim, tem cuidado para que tudo alcance o próprio fim particular, e ao
mesmo tempo esteja de acordo com o fim geral do universo.
Posto isto, se compreende a definição de providência, isto é: a ordenação divina das
coisas ao seu fim. Se trata da Inteligência divina enquanto nesta há uma razão de ordem, de
direção rumo a um fim, a ordenação ao fim das ações, operações, movimentos, etc... das
coisas. Portanto, o bem da ordem que se encontra nas criaturas foi criado por Deus. Mas
porque Deus é causa das coisas graças ao seu intelecto, pelo qual deve preexistir nele a
razão de cada um dos seus efeitos, é necessário que preexista na mente divina a razão da
ordem que há nas coisas respeito aos seus fins.
Todas as criaturas estão sujeitas à providência divina. A providência de Deus é
universal: se estende a todos e a cada um dos entes, porque nada foge da causalidade do
Primeiro Agente: "Todo agente age por um fim, por isso a ordem dos efeitos ao fim se
estende absolutamente a todos os entes, e não somente quanto aos seus elementos
específicos, mas também quanto aos seus princípios individuais, seja corruptíveis seja
incorruptíveis: tudo o que participa do ser, deve, portanto, ser odenado por Deus a um fim...
Na mesma media em que as coisas participam do ser, são também sujeitas à providência
divina".

2. Os dois aspectos da providência: o plano divino respeito as coisas que devem ser
dirigidas ao seu fim e a execução de tal ordem
a) Com relação ao plano divino, a providência é imediata para todas as criaturas
"porque no próprio intelecto Deus tem a razão de cada coisa, incluídas as ínfimas, e porque
dotou as causas dispostas a produzir um certo efeito, da atividade suficiente a produzí-lo:
por isto é indispensável que conhecesse em precedência na própria razão a ordem de tais
efeitos". Deus dispõe com a sua providência imediata a ordem das coisas. Se esta não fosse
imediata se daria uma imperfeição na ciência divina: como conhece todas as coisas
imediatamente, assim as ordena ao seu fim sempre de modo imediato.
b) Com relação ao governo efetivo, Deus se serve de causas segundas, participando-
lhes o seu poder de governo. Deus no governo das coisas se serve de intermediários não por
insuficiência do próprio poder, mas "porque a sua bondade é tão grande, que comunica às
67
próprias criaturas as prerrogativas da causalidade". Se deve notar, portanto, que enquanto na
providência enquanto razão de ordem seria sinal de imperfeição não obtê-la imediatamente,
na providência enquanto governo ou execução isto é sinal de perfeição e dignidade. A
perfeição da providência em quanto governo exige que existam causas intermédias que
realizem tal providência. A dignidade de um rei implica que este tenha muitos ministros e
diversos executores dos atos de seu governo, porque o seu poder se mostra tão mais alto e
grande quanto mais homens de hierarquias diferentes estão a eles subordinados. Ora, não há
dignidade que possa ser comparada àquela do reino divino. Portanto é conveniente que Ele
exerça a sua providência mediante diferentes ordens de agentes. Deus participa o seu pode
de governo às causas segundas, que são executoras da providência divina, e isto em
consequência da abundância e do transbordar de sua bondade.

3. A providência divina dirige as criaturas segundo a sua natureza, isto é, se aplica a estas
segundo o modo de ser necessário, contingente ou livre que as criaturas possuem
Isto não vai contra a infalibilidade da providência divina, que se realiza sempre: "a
imobilidade e a certeza da ordem da providência consiste nisto, que as coisas as quais Deus
provê se realizem no modo em que Ele providenciou, ou seja, no modo necessário ou
contingente".
Por que a providência divina se conforma à natureza das coisas? Por que Deus não
impõe a necessidade a todas as criaturas?
A resposta a tais perguntas pode surgir em base à consideração da verdadeira causa
primeira, da distinção entre as coisas, que consiste nisto: sendo cada uma destas boa por si,
todavia, tomadas no seu conjunto são muito boas, em razão da ordem do universo, que é a
última e mais nobre perfeição dos entes.
Ora, se o bem principal presente na criação é a perfeição do universo, este não
existiria se não existissem todos os graus de ser: a presença de diferentes graus de perfeição
nas coisas contribui à perfeição do universo: de fato "todo agente tende a realizar no efeito
uma sua semelhança, proporcionalmente ao tipo de efeito, portanto este age tanto mais
perfeitamente quanto mais perfeita é a causa..., portanto Deus, agente perfeitíssimo, plasma
perfeitamente a própria semelhança nas coisas criadas por quanto convém à natureza criada.
As coisas criadas não podem alcançar uma perfeita semelhança com Deus ao interno de uma
só espécie de criaturas, porque, superando a causa o efeito, isto que está na causa em modo
simples e unificado se encontra no efeito em modo composto e múltiplo... Portanto era
oportuno que existissem multiplicidade e variedade nas coisas criadas, para encontrar nestas
uma semelhança perfeita de Deus, mesmo se ao seu modo.
É próprio portanto da providência divina produzir todos os graus de ser; tal
diversidade e desigualdade não procede por acaso, nem da diversidade da matéria, nem da
intervenção de algum tipo de causa, mas é produzido pelo querer de Deus, que quis dar a
toda criatura uma natureza determinada. Assim fez algumas coisas necessárias, outras
contingentes e outras ainda livres; impôs a necessidade às coisas necessárias, e guia as
contingentes e livres segundo a sua natureza, isto é, tornando-as contingentes e livres. Em
outras palavras, "é efeito da providência divina não somente que surja uma coisa qualquer,
mas que surja necessariamente o que a divina providência dispõe que surja em modo
infalível e necessário, e contingentemente o que na razão da providência divina é previsto
que deve surgir em modo contingente". Os acontecimentos do mundo são realmente
necessários, contingentes e livres, e todavia, cada um destes é causado por Deus, sua Causa
primeira: não acontece nada no mundo que fuja às disposições divinas.
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A infalibilidade e universalidade da providência divina não se opõe à liberdade. Deus
não tolhe a liberdade, mas a causa, faz que exista: a Providência divina se serve das
realidades livres em conformidade ao seu modo de ser livres.

4. A providência universal de Deus e a existência do mal


Já tratamos alguns problemas concernentes ao mal; tais como: o conhecimento que
Deus tem do mal e a dificuldade inerente à vontade divina como causa das coisas mas não
do mal. Agora se trata de estudar como a existência do mal não vai contra a existência de
Deus e a sua providência universal.
Quando se desconhece a causa autêntica do mal, e se considera este (o mal) como
algo de positivo e absoluto, não se admite a providência divina, nem a existência de Deus.
Um representante da absolutização positiva do mal foi Epicuro, que sustentou o
famoso argumento a favor do ateísmo: se existe o mal, Deus não pode existir; por este
motivo Epicuro afirmou resolutamente a ausência de uma providência. Também no
voluntarismo pessimista de Schopenhauer se encontra uma radical absolutização do mal:
este mundo é o pior dos mundos possíveis; "substancialmente toda vida é dor"; "pela sua
origem e pela sua essência, a vontade é condenada à dor"; o mal pior é o ser nascido.
No extremo oposto, existem doutrinas que negam o mal em modo absoluto: o
panteísmo de Espinoza e de Hegel representam estas posições. Para Espinoza, o finito não é
que o auto manifestar-se da única Substância, a substância infinita ou Deus; o mal não tem
nenhum sentido: as coisas são necessariamente como são. Para o saber absoluto hegeliano o
mal é irreal: não é um verdadeiro ser, é somente um momento do desenvolver-se do
Absoluto, que deve ser superado. Por isto o mal quando se coloca, se anula. Também o
imoralismo teórico de Nietzche sustenta a não existência do mal: este é uma invenção dos
fracos para combater a vontade de domínio do super-homem: o mal se dá somente numa
moral de escravos.
Entre os extremos há posições intermediárias, como o dualismo de Platão, Plotino, o
gnosticismo, Schelling, que de um modo ou de outro sublinham a existência de dois
princípios, um do bem e outro do mal.

A resposta a todas estas doutrinas depende da consideração metafísica do mal. O mal


é uma privação. Foi Agostinho a afirmar que o mal não é uma substância, mas a privação de
um bem. Tomás acrescentou que este é a privação de um bem devido; portanto, onde não há
bem não pode existir mal. O mal não tem realidade substancial: se encontra no bem como
em um sujeito; por isto a negatividade do mal implica sempre a positividade do ente ao qual
convém. Por isto, "a existência do mal, longe de ser um argumento a favor do ateísmo –
como alguns continuam a pensar ainda hoje – é um caminho para se chegar ao
conhecimento de Deus como Bem infinito e Criador, transcendente, Autor livre e total do
ser da criatura. À questão "Se Deus existe, por que o mal?" Tomás responde com
simplicidade dizendo que é preciso inverter os termos e afirmar: Se o mal existe, Deus
existe. Não haveria nenhum mal se fosse tirada a ordem do bem, em cuja privação este
consiste; e não existiria esta ordem final se Deus não existisse. Sem o conhecimento de
Deus, não teríamos nem a noção de mal.
A metafísica do mal pressupõe sempre, portanto, o sujeito – um bem – ao qual o mal
é inerente. Todavia, não se deve pensar que o criado como tal, enquanto criado, participado
e portanto limitado, seja mal; todo ente é bom, e o mal é "a privação de um bem particular
em alguma coisa boa"; por isto não tem razão Leibniz em considerar o mal metafísico como
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a imperfeição originária da criatura, ou seja, o limite da criatura: neste caso a finitude seria
um mal. A realidade criada é boa enquanto é: o ente e o bem são equivalentes.
O argumento para demonstrar que a providência de Deus não exclui totalmente o mal
das coisas é o seguinte: Deus não causa o mal, mas enquanto não suprime as operações das
causas segundas, estas podem errar. O defeito de um produto da causa segunda se produz
por defeito desta, e não é imputável à Causa primeira. O fato que apareça um defeito ou um
mal nos seres feitos ou governados por Deus depende do fato que estes agentes secundários
são defeituosos, mesmo se em Deus não há nenhum defeito.
Na perspectiva da totalidade da criação e da sua boa ordem, o mal físico não é um
mal em sentido próprio, mas a consequência da multiplicidade, da composição, etc... do
criado. Ou seja, certos eventos são julgados como males se não se leva em conta a ordem de
todo o universo.
O único verdadeiro mal é o mal moral, o pecado, justamente como desordem em
relação ao fim último, livremente colocado por uma criatura. O mal autêntico é por isso a
culpa, isto é, a única consequência de uma ação voluntária e livre; ao invés, a pena que
segue ao pecado não é um mal em sentido próprio, já que esta tende para restabelecer a
ordem: a pena reordena do externo (a pena não é voluntária) a criatura desordenada, que dá
glória a Deus aceitando ou suportando a pena. No verdadeiro mal, o pecado, a culpa
consistem formalmente na privação de modo, espécie e ordem no ato mesmo da vontade que
é a faculdade pela qual a criatura livre pode alcançar o fim para o qual foi criada.
Além disso, muitos bens não existiriam se não existissem os males. Por exemplo, não
existiria a paciência dos justos sem a maldade dos perseguidores; nem haveria lugar para
justiça se não existissem os delitos; e também no âmbito natural, não poderia haver a
geração de um ente, sem a corrupção de um outro. Portanto, se a divina providência
excluísse totalmente o mal do universo criado, diminuiria necessariamente também a
quantidade de bens. Mas isto não deve acontecer, porque é mais potente o bem na bondade
que o mal na maldade. Portanto, a divina providência não deve tolher totalmente o mal das
coisas. Deus tira bens dos males.

5. O fim da providência: a glória de Deus


O fim da providência é a glória de Deus para a bem-aventurança das criaturas livres,
que são o ápice da criação, da participação das perfeições divinas, entitativas e operativas.
Mesmo se Deus tem cuidado de todas as coisas e lhes provê sendo o fim de todas as
criaturas, todavia o relacionamento que tem com cada uma destas é diferente: é fim de
algumas criaturas enquanto participam de uma certa sua semelhança, que é comum a todas;
por outro lado, é o fim de outras criaturas enquanto estas com as suas operações alcançam a
Ele mesmo como é próprio e exclusivo das criaturas racionais que podem conhecer e amar o
próprio Deus, e com isto se realiza a sua beatitude. Deus, portanto, provê às criaturas
irracionais para o bem da espécie, ou de outras criaturas ao interno da totalidade da criação,
enquanto se cuida de cada um dos homens, tendo presente sobretudo a sua alma imortal,
chamada à felicidade eterna.

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