A Compaixão - Dalai Lama

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A Compaixão: Fundamento da Felicidade Humana

por Sua Santidade o Dalai Lama

Conferência pública de Sua Santidade o Dalai Lama no Free Trade Hall, em Manchester, no
Reino Unido, a 19 de Julho de 1996.

Penso que todos os seres humanos têm um sentimento inato de ‘si’. Não podemos explicar por que
razão este sentimento está presente - o facto é que está. Este sentimento é acompanhado do desejo de
sermos felizes e da vontade de acabarmos com o sofrimento, o que é plenamente justificado: temos
naturalmente o direito de alcançar tanta felicidade quanta nos for possível, tal como temos o direito
de pôr fim ao sofrimento.

Foi a partir deste sentimento que se desenvolveu toda a história da humanidade. Na verdade, ele não
se limita aos seres humanos; na perspectiva budista, mesmo o mais pequeno insecto tem este
sentimento e tenta, em função das suas capacidades, evitar situações infelizes e obter alguma
felicidade.

Todavia, há diferenças fundamentais entre os seres humanos e as outras espécies animais. Essas
diferenças resultam da inteligência humana. Graças à nossa inteligência, estamos muito mais
avançados e temos maiores capacidades. Podemos pensar no futuro com muito mais alcance e a
nossa memória é suficientemente poderosa para nos fazer recuar muitos anos no tempo. Além disso,
temos tradições orais e escritas que nos recordam eventos que se passaram há muitos séculos. Hoje
em dia, graças aos métodos científicos, podemos mesmo examinar eventos que ocorreram há milhões
de anos.

Portanto, a nossa inteligência faz de nós seres muito espertos, mas, ao mesmo tempo e precisamente
por causa disso, temos mais dúvidas e suspeições e, por conseguinte, mais medos. Creio que a
imaginação do medo está muito mais desenvolvida nos humanos do que nos outros animais. Já para
não falar dos muitos conflitos no seio da família humana ou da nossa própria família, dos conflitos
entre comunidades e nações ou dos conflitos internos de cada indivíduo - tudo conflitos e
contradições que surgem das diferentes ideias e visões que a nossa inteligência proporciona.
Portanto, por vezes a inteligência também serve, infelizmente, para criar estados de espírito muito
infortunados. Nesse sentido, talvez a inteligência seja uma fonte suplementar de miséria para os
homens. Ao mesmo tempo, creio que, apesar de tudo, a inteligência é em última análise o
instrumento que nos permite vencer todos esses conflitos e diferenças.

Nesta perspectiva, entre todas as espécies animais deste planeta, os seres humanos são os maiores
desordeiros. Isso é claro. Imagino que se deixasse de haver seres humanos neste planeta, o planeta
em si tornar-se-ia um lugar mais seguro! Milhões de peixes, de galinhas e de outros pequenos
animais iriam certamente beneficiar de uma verdadeira espécie de libertação!

Por conseguinte, é importante utilizarmos a inteligência humana de um modo construtivo. Essa é a


chave. Se utilizássemos as suas faculdades adequadamente, não só os seres humanos causariam
menos dano uns aos outros e ao planeta, como cada ser humano, individualmente, seria mais feliz.
Isso está nas nossas mãos. Utilizar bem ou mal a nossa inteligência depende de nós. Ninguém nos
pode impor os seus valores. Como podemos aprender a utilizar as nossas capacidades construtivas?
Primeiro, devemos começar por reconhecer a nossa natureza; só então, caso estejamos determinados
a tanto, temos a possibilidade de transformar realmente o nosso coração de ser humano.

A partir destas ideias, hoje vou falar sobre o modo como um ser humano, enquanto indivíduo, pode
encontrar a felicidade - porque eu acredito que a chave de todo o resto está no indivíduo. Para que a
mudança surja numa comunidade, a iniciativa tem de partir do indivíduo. Se o indivíduo se tornar
uma pessoa boa, calma e tranquila, isso cria automaticamente uma atmosfera positiva na família que
o, ou a, rodeia. Em geral, quando os pais estão cheios de ternura e são pessoas calmas e pacíficas, os
filhos desenvolvem o mesmo tipo de atitudes e comportamentos.

O nosso modo de ser funciona de tal maneira que somos frequentemente perturbados por factores
exteriores, pelo que um dos lados da questão consiste em eliminarmos os problemas que nos
rodeiam. O meio-ambiente, no sentido da situação ou daquilo que nos rodeia, é um factor muito
importante para estabelecermos um estado de espírito feliz. Contudo, o outro lado da questão, a
nossa própria atitude mental, é ainda mais importante.

O ambiente que nos rodeia pode não ser muito favorável, pode mesmo ser hostil, mas se a nossa
atitude interior for adequada, essa situação acaba por não perturbar a nossa paz de espírito. Por outro
lado, se a nossa atitude não for correcta, mesmo rodeados de amigos e de facilidades seremos
incapazes de ser felizes. Por isso, a atitude mental é mais importante do que as condições exteriores.
Apesar disso, parece-me que a maior parte das pessoas está mais preocupada com condições
exteriores, negligenciando a sua atitude de espírito interior. A minha sugestão é que devíamos dar
mais atenção às nossas qualidades interiores.

Há inúmeras qualidades que são importante para a paz de espírito, mas, pela pouca experiência que
tenho, creio que um dos elementos mais importantes é a atitude humana de afeição e de compaixão:
o sentimento que nos leva a interessar-nos pelos outros.

Permitam-me que explique o que entendo por compaixão. Habitualmente, o nosso conceito de
compaixão ou de amor refere-se ao sentimento de proximidade que temos pelos nossos amigos e
entes queridos. Por vezes a compaixão acarreta também um sentimento de piedade, o que não está
certo - qualquer sentimento de amor ou de compaixão que implique olhar de cima para os outros não
é uma verdadeira compaixão. Para ser autêntica, a compaixão deve basear-se no respeito pelo outro e
na compreensão de que os outros, tal como nós, têm o direito de ser felizes e de acabar com o
sofrimento. A partir daí, porque tomamos consciência do seu sofrimento, desenvolvemos um
verdadeiro sentimento de preocupação pelos outros.

Quanto à proximidade que sentimos pelos nossos amigos, em geral esse sentimento é mais um tipo
de apego do que compaixão. A verdadeira compaixão deve ser imparcial. Se nos sentimos próximos
dos nossos amigos, mas não dos inimigos ou do grande número de pessoas que nos são
desconhecidas e indiferentes, nesse caso, apenas temos uma compaixão parcial ou preconcebida.

Como disse atrás, a verdadeira compaixão baseia-se no reconhecimento de que o direito dos outros à
felicidade é idêntico ao nosso e que, por conseguinte, mesmo um inimigo é um ser humano que, tal
como nós, aspira à felicidade e, tal como nós, tem o direito de ser feliz. Chamamos compaixão ao
sentimento de interesse pelos outros que se desenvolve nesta base - uma compaixão que se estende a
todos, independentemente da atitude amigável ou hostil que possam ter por nós.

Um aspecto deste tipo de compaixão é o sentimento de responsabilidade pelos outros. Quando


desenvolvemos semelhante motivação, a nossa autoconfiança cresce automaticamente. Isso, por sua
vez, reduz o medo, o que nos serve de base para uma grande determinação. Se logo à partida
estivermos firmemente determinados a cumprir uma tarefa difícil, pouco importa se falharmos à
primeira, à segunda ou à terceira vez. O nosso objectivo é muito claro, pelo que continuamos a
esforçar-nos. Esta espécie de optimismo e de atitude determinada é um factor crucial para o sucesso.
A compaixão dá-nos igualmente uma grande força interior. Uma vez desenvolvida, ela abre-nos,
naturalmente, uma porta interior, através da qual podemos comunicar facilmente e de coração a
coração com os nossos semelhantes, os seres humanos, e mesmo com os outros seres sensíveis. Por
outro lado, se tivermos ódio e maus sentimentos pelos outros, eles poderão sentir o mesmo por nós.
Em consequência, a suspeição e o medo acabam por criar uma grande distância entre nós e os outros,
ao ponto da comunicação tornar-se muito difícil e de acabarmos por nos sentir sós e isolados. Não
significa que todos os membros da comunidade vão nutrir sentimentos negativos para connosco, mas
talvez alguns olhem para nós de uma maneira negativa, por causa da nossa própria atitude.

Se cultivarmos sentimentos negativos pelos outros e ainda assim esperarmos que eles nos tratem com
amizade, não estamos a ser razoáveis. Se quisermos que a atmosfera que nos rodeia seja mais
amigável, temos de começar por criar um terreno que o proporcione. Caso mesmo assim os outros
reajam negativamente connosco, temos então todo o direito de agir em consequência.

Eu tento criar sempre um terreno propício à amizade com as pessoas. Quando encontro alguém pela
primeira vez, por exemplo, dispenso apresentações. Essa pessoa é, obviamente, um outro ser
humano. Talvez algures no futuro os avanços da tecnologia me façam confundir um robot com um
ser humano, mas até agora isso nunca me aconteceu. Vejo um sorriso, uns dentes a espreitar, um
olhar... e reconheço logo essa pessoa como um ser humano! Sendo assim, do ponto de vista
emocional somos idênticos e mesmo ao nível físico somos basicamente idênticos, excepto, talvez, na
cor. Mas quer os ocidentais tenham o cabelo louro, azul ou branco, isso pouco importa. O importante
é sermos emocionalmente idênticos. Com esta convicção, sinto que a outra pessoa é um irmão
humano e aproximo-me dela espontaneamente. Na maior parte dos casos, a pessoa reage
imediatamente em sintonia e tornamo-nos amigos. Às vezes falho e, nesse caso, tenho a liberdade de
reagir segundo as circunstâncias.

Por conseguinte, devemos basicamente aproximar-nos dos outros com abertura, reconhecendo em
cada pessoa um ser humano igual a nós. Não há assim diferenças tão grandes entre todos nós.

A compaixão cria naturalmente uma atmosfera positiva e, em consequência, sentimo-nos tranquilos e


contentes. Onde quer que viva uma pessoa compassiva, reina sempre uma atmosfera agradável.
Mesmo os cães e os pássaros aproximam-se facilmente de pessoas assim. Há já quase cinquenta
anos, eu costumava guardar alguns pássaros no jardim do Norbulingka, o Palácio de Verão em
Lhasa. Entre eles havia um pequeno papagaio. Nessa altura, eu tinha um velho servidor com ar de
poucos amigos - com um olhar muito duro, de olhos esbugalhados - que passava a vida a dar de
comer ao papagaio, (nozes e esse tipo de coisas). Por isso, sempre que esse servidor aparecia - às
vezes bastava o simples som dos seus passos ou uma tossidela - o papagaio ficasse todo excitado. Ele
tinha uns modos extremamente amigáveis com esse passaroco e era retribuído de uma maneira
espantosa. Nalgumas raras ocasiões, eu também tentei dar-lhe umas nozes, mas ele nunca me
demonstrou grande afeição; um dia pus-me então a espicaçá-lo com um pau, na esperança que ele
reagisse melhor; o resultado foi totalmente negativo. Como eu estava a usar mais força do que a dele,
o pássaro reagiu em consequência.

Portanto, se quisermos ter verdadeiros amigos, temos de começar por criar uma atmosfera positiva à
nossa volta. Nós somos, apesar de tudo, animais sociais e os amigos são muito importantes. Como
havemos de fazer para provocar um sorriso nas pessoas? Se ficarmos carrancudos e desconfiados, é
muito difícil. Se tiverem muito dinheiro ou poder, talvez consigam obter de algumas pessoas um
sorriso artificial, mas um verdadeiro sorriso só pode surgir da compaixão.
A questão é: como desenvolver a compaixão? Com efeito, será que podemos realmente cultivar uma
compaixão imparcial por todos? A minha resposta é sim, absolutamente. Eu acredito que a natureza
humana é gentil e compassiva, embora haja pessoas, tanto agora como no passado, que pensam que
ela é basicamente agressiva. Examinemos este ponto.

Quando somos concebidos e enquanto estamos no ventre da nossa mãe, a sua atitude compassiva e a
tranquilidade do seu estado mental são factores muito positivos para o nosso desenvolvimento. Se o
espírito da mãe for muito agitado, isso prejudica-nos. E ainda mal começamos a nossa vida! Aliás, no
próprio momento da concepção o estado de espírito dos pais é importante. Uma criança concebida
através de uma violação, por exemplo, não será uma criança desejada, o que é horrível. Para que tudo
se passe da melhor maneira, a concepção deve proceder de um amor verdadeiro, de um respeito
mútuo, e não de uma paixão desenfreada. Não basta um caso amoroso pontual, os dois parceiros
devem conhecer-se bem e respeitar-se - é a base de um casamento feliz. Além disso, o casamento
devia ser para a vida inteira ou, pelo menos, durar muito tempo. Nessas condições é possível dar
origem a uma nova vida convenientemente.

Nas primeiras semanas que se seguem ao nascimento, isto segundo a ciência médica, o cérebro da
criança ainda está em desenvolvimento. Durante esse período, dizem os especialistas, o contacto
físico é um factor crucial para um desenvolvimento adequado do cérebro. Só por si, isso mostra-nos
que o simples crescimento do nosso corpo requer a afeição de outrém.

Após o nascimento um dos primeiros actos da mãe é dar de mamar ao bebé. Por sua vez, um dos
primeiros actos do bebé é mamar. O leite é muitas vezes considerado o símbolo da compaixão.
Tradicionalmente, sem ele a criança não consegue sobreviver. Graças ao mamar, a proximidade entre
a mãe e a criança aumenta. Se essa proximidade não existisse, a criança não procuraria o peito da
mãe e se a mãe estiver desgostosa com o bebé, o leite pode não correr abundante. Isto significa que o
primeiro acto da nossa vida, o acto de mamar, é um símbolo de afeição. Sempre que vou a uma igreja
e vejo imagens de Nossa Senhora com o Menino Jesus nos braços lembro-me disso; para mim, isso é
um símbolo do amor e da afeição.

Descobriu-se que as crianças que crescem em lares onde o amor e a afeição estão presentes têm um
desenvolvimento físico mais saudável e são melhores alunos. Em contrapartida, as crianças carentes
de afeição têm mais dificuldades em desenvolver-se física e mentalmente. Mais tarde, quando forem
crescidas, ser-lhes-á igualmente mais difícil mostrar afeição, o que é uma grande tragédia.

Vejamos agora os últimos momentos da nossa vida - a morte. Mesmo no momento da morte, apesar
do moribundo não poder realmente beneficiar por aí além da presença dos amigos, se estiver bem
acompanhado, talvez o seu espírito esteja mais calmo. Por conseguinte, ao longo de toda a nossa
vida, desde o primeiro instante até à morte, a afeição tem um papel muito importante a desempenhar.

Uma disposição afectiva não só torna o espírito mais calmo e tranquilo, como afecta positivamente o
nosso corpo. Por outro lado, o ódio, a inveja e o medo perturbam a nossa paz de espírito, tornam-nos
agitados e afectam negativamente o nosso corpo. O próprio corpo precisa de paz de espírito e não lhe
apraz a agitação. Isto mostra-nos que o apreço pela paz está-nos no sangue.

Por conseguinte, embora haja quem não esteja de acordo, creio que apesar do lado agressivo da nossa
natureza fazer parte da vida, a força dominante da vida é a afeição. Razão pela qual é possível
fortalecer esta bondade fundamental, que é a nossa natureza humana.

Podemos igualmente abordar a importância da compaixão através da inteligência e do raciocínio. Se


eu ajudar uma pessoa e lhe mostrar o interesse que tenho por ela, acabo por também beneficiar disso.
Todavia, se eu fizer mal aos outros, talvez venha a encontrar-me em dificuldades. Às vezes digo,
meio a sério meio a brincar, que se quisermos realmente ser egoístas, mais vale sermos egoístas
espertos do que egoístas tolos. A nossa inteligência pode ajudar-nos a ajustar a nossa atitude a este
respeito. Se a utilizarmos bem, podemos descobrir como levar a cabo o nosso interesse próprio
levando um tipo de vida compassiva. Podemos, inclusivamente, usar o argumento de que ser
compassivo é, em última análise, a melhor forma de egoísmo.

Neste contexto, não creio que o egoísmo esteja errado. Gostar de si próprio é fundamental. Se não
gostarmos de nós, como havemos de amar os outros? Parece-me que há pessoas que ao falarem de
compaixão têm a noção que isso implica um desprezo completo pelo seu interesse próprio - um
sacrifício dos seus interesses. Ora, isso não está certo. Com efeito, o verdadeiro amor deve começar
por ser direccionado para nós.

Há dois sentimentos de ‘eu’ diferentes. Um deles, que não hesita em fazer mal às pessoas, é negativo
e só nos traz problemas. O outro, baseado na determinação, na força de vontade e na autoconfiança, é
um sentimento de ‘eu’ absolutamente necessário. Sem ele, como poderíamos cultivar a confiança
necessária para cumprirmos os objectivos que nos impomos? De modo semelhante, há igualmente
dois tipos de desejo. O ódio, no entanto, é invariavelmente negativo e destruidor da harmonia.

Como diminuir o ódio? Geralmente, o ódio é precedido pela irritação. A irritação surge como uma
reacção emotiva e desenvolve-se gradualmente até ao sentimento de ódio. Neste caso, a habilidade
consiste em saber, antes de mais, que a irritação é algo de negativo. Muitas vezes, as pessoas pensam
que a irritação faz parte de si e que é melhor exprimi-la; creio, no entanto, que isso é uma ideia pouca
sensata. Talvez as pessoas que se sentem ofendidas ou ressentidas por questões do passado tenham a
expectativa de resolver esses sentimentos exprimindo a sua raiva. Talvez isso não seja impossível.
Contudo, em geral é preferível estarem atentos à vossa irritação, de modo a que, gradualmente, ano
após ano, ela vá diminuindo. Segundo a minha experiência, isso é mais fácil se adoptarmos a posição
de que a irritação é negativa e que é melhor deixarmos de a sentir. Esta postura, em si, faz uma
grande diferença.

Sempre que a irritação está prestes a surgir, podemos treinar-nos a ver o objecto da nossa raiva sob
um prisma diferente. Basicamente, toda e qualquer pessoa ou circunstância que nos provoca raiva é
relativa; vista de um certo ângulo provoca-nos raiva, mas, se a virmos noutra perspectiva, talvez
possamos descobrir algumas coisas boas nela. Por exemplo, eu perdi o meu país e tornei-me um
refugiado. Se olhar para esta situação sob este ângulo, talvez me sinta frustrado e triste. Todavia, o
mesmo acontecimento criou-me novas oportunidades - encontrar-me com pessoas de outras tradições
religiosas e assim por diante. Desenvolver uma maneira mais flexível de ver as coisas ajuda-nos a
cultivar uma atitude mental mais equilibrada. Este é um dos métodos.

Noutras situações, por exemplo, ficamos doentes e quanto mais pensamos na nossa doença mais
frustrados ficamos. Neste caso, talvez seja útil compararmos a nossa situação com o pior cenário
possível relacionado com essa doença ou com o que aconteceria se tivéssemos apanhado uma doença
ainda pior, etc. Deste modo, podemos consolar-nos, ao compreendermos que podia ser pior. Uma vez
mais, treinamo-nos em ver a relatividade da nossa situação. Se a compararmos com algo de muito
pior, isso reduz imediatamente a nossa frustração.

Similarmente, quando as dificuldades surgem, talvez elas nos pareçam enormes se as olharmos de
perto, mas, se olharmos para o mesmo problema numa perspectiva mais alargada, ele parece logo
menos importante. Graças a estes métodos e ao desenvolvimento de uma perspectiva mais vasta das
coisas, sempre que tivermos de enfrentar problemas poderemos diminuir a frustração. Talvez
precisem de um esforço constante, mas, se o aplicarem deste modo, verão que o vosso lado irritado
irá diminuir. Enquanto isso, o vosso lado compassivo vai-se fortalecendo e o vosso potencial positivo
desenvolvendo. Combinando estas duas abordagens, uma pessoa negativa pode tornar-se numa boa
pessoa. É este método que utilizamos para efectuar esta transformação.

Por acréscimo, talvez uma fé religiosa, caso a tenham, seja útil para alargarem essas qualidades. Os
Evangelhos, por exemplo, ensinam-nos a dar a outra face, o que nos mostra claramente a prática da
tolerância. Para mim, a mensagem principal dos Evangelhos é o amor pelos seres humanos, nossos
semelhantes, e a razão pela qual o desenvolvemos é o amor que temos por Deus - o que eu
compreendo no sentido de ter um amor infinito. Este tipo de ensinamentos religiosos são muito
poderosos para desenvolver e ampliar as nossas qualidades. A abordagem budista apresenta um
método muito preciso. Primeiro, procuramos considerar todos os seres sensíveis como iguais.
Depois, consideramos que a vida de todos os seres é tão preciosa como a nossa e desenvolvemos
assim um sentimento de interesse pelos demais.

E no caso de uma pessoa sem fé religiosa? Seguir ou não uma religião é um assunto do foro de cada
indivíduo. Pode-se muito bem passar sem religião e, nalguns casos, isso torna inclusivamente a vida
mais simples! Mas o facto de não terem qualquer interesse pela religião não deve fazer com que
negligenciem o valor das qualidades humanas. Enquanto seres humanos e membros da sociedade
humana, temos necessidade da compaixão. Sem ela não podemos ser felizes. Uma vez que todos
desejamos ser felizes e ter amigos e uma família feliz, temos de cultivar a compaixão e a afeição. É
importante reconhecer que há dois níveis de espiritualidade: um com fé religiosa, outro sem. Com
este último, devemos tentar simplesmente ser pessoas de bom coração.

Devemos também lembrar-nos que ao cultivarmos uma atitude compassiva a não-violência surge
automaticamente. Não-violência não é um termo diplomático, é a compaixão em acção. Se tiverem o
coração repleto de ódio, as vossas acções serão frequentemente violentas, enquanto se tiverem o
coração cheio de compaixão elas serão não-violentas.

Como disse atrás, enquanto houver seres humanos nesta Terra haverá sempre desacordos e visões
conflituosas. Podemos tomar isso por garantido. Se utilizarmos a violência para reduzir os
desacordos e os conflitos, cada vez podemos esperar mais violência e creio que o resultado disso será
terrível. Além do mais, na verdade é impossível eliminar os desacordos através da violência. A
violência só serve para aumentar os ressentimentos e a insatisfação.

Não-violência, por sua vez, significa diálogo, significa usar a linguagem para comunicar. E diálogo
significa compromisso: ouvir a opinião dos outros e respeitar os direitos dos outros num espírito de
reconciliação. Ninguém sai cem por cento vencedor e ninguém sai cem por cento vencido. Esta é
uma via praticável. Na verdade, é a única via. Hoje em dia, à medida que o mundo se vai tornando
cada vez mais pequeno, o conceito de ‘nós’ e de ‘eles’ praticamente passou de validade. Se os nossos
interesses pudessem existir independentemente dos interesses dos outros, talvez fosse possível
ganhar ou perder completamente, mas uma vez que, na realidade, todos nós dependemos uns dos
outros, os nossos interesses e os dos outros estão consideravelmente interligados. Por isso, como
pode alguém obter uma vitória a cem por cento? É impossível. Temos de partilhar; metade para cada
lado, ou talvez sessenta por cento de um lado e quarenta por cento do outro! Sem esta abordagem, a
reconciliação é impossível.

A realidade do mundo de hoje implica que temos de aprender a pensar deste modo. Esta é a base da
minha abordagem das coisas - a abordagem do ‘caminho do meio’. Nós, os tibetanos, não poderemos
obter uma vitória a cem por cento, porque, quer queiramos ou não, o futuro do Tibete depende em
grande parte da China. Por conseguinte, num espírito de reconciliação, eu advogo uma partilha de
interesses, de modo a que seja possível um verdadeiro progresso. O compromisso é a única via.
Através de meios não-violentos podemos partilhar visões, sentimentos e direitos e, deste modo,
podemos resolver os problemas.

Por vezes digo que o Século XX foi o século do sangue derramado, um século de guerras. Ao longo
do Século XX houve mais conflitos, mais derramamento de sangue e mais armas do que em qualquer
outro. Portanto, com a experiência que todos nós tivemos desse século e com tudo o que
aprendemos, creio que devíamos considerar o próximo como um século de diálogo. O princípio da
não-violência deve ser praticado por toda a parte. Ora, isso não se consegue se ficarmos
simplesmente aqui sentados a rezar. Isso implica trabalho, esforço e mais esforço.

Muito obrigado.

Apêndice ao livro de Sua Santidade o Dalai Lama “As Quatro Nobres Verdades”, a publicar em
2001 por: Editorial Livros e Leituras, Colecção Espiritualidades, série Budismo.

2003-2004 © União Budista Portuguesa

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