Arquétipos Literários FEMININOS

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Universidade Estadual Paulista

“Júlio de Mesquita Filho”


Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara - SP

Jucely Aparecida Azenha

O Eterno Feminino: Arquétipos Literários em Mujeres


de Eduardo Galeano

Universidade Estadual Paulista


“Júlio de Mesquita Filho”
Faculdade de Ciências e Letras
Araraquara/SP
2009
Jucely Aparecida Azenha

O Eterno Feminino: Arquétipos Literários em Mujeres


de Eduardo Galeano

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Departamento de Letras Modernas da Faculdade de
Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” – UNESP – Campus de
Araraquara como pré-requisito para a obtenção do
Título de Bacharel em Letras

Orientadora: Profa. Dra. María Dolores Aybar Ramírez

Bolsa: FAPESP

Araraquara/SP
2009
Azenha, Jucely Aparecida
O eterno feminino: arquétipos literários em Mujeres de Eduardo
Galeano / Jucely Aparecida Azenha – 2010
100 f.; 30 cm

Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Letras) – Universidade


Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara

Orientador: María Dolores Aybar Ramírez

1. Literatura uruguaia – História e crítica.


2. Galeano, Eduardo H., 1940 – Mujeres – Crítica e interpretação.
3. Arquétipos na literatura. 4. Mitologia na literatura.
5. Mulheres na mitologia. I. Título.
Jucely Aparecida Azenha

O Eterno Feminino:
Arquétipos Literários em Mujeres de Eduardo Galeano

Membros Componentes da Banca Examinadora:

Presidente e Orientador:
Profa. Dra. María Dolores Aybar Ramírez
Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências e Letras – Araraquara/SP

Membro Titular:
Profa. Dra. Karin Volobuef
Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências e Letras – Araraquara/SP

Membro Titular:
Prof. Dr. Dagoberto José da Fonseca
Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências e Letras – Araraquara/SP

Local: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP


Faculdade de Ciências e Letras – Campus Araraquara
À minha mãe, Solange
Agradecimentos

Nos caminhos por onde passei, encontrei pessoas que muito contribuíram para
que eu me tornasse a pessoa que hoje sou. Todas elas me ensinaram algo importante
sobre viver, às vezes de maneira positiva, outras não.
No meu trajeto de vida, curto, porém nem por isso menos sinuoso, fui agraciada
pela experiência de conhecer pessoas que muito estimo, gente que considero minha
família; muitas pessoas que foram importantes numa fase decisiva de minha vida e as
quais dedico o presente trabalho.
Agradeço profundamente à Luciane, pelo constante estímulo, por me falar sobre
a imensidão do mundo e assim aguçar a minha curiosidade, por me ensinar sobre o que
é ser mulher, o que é ter coragem e dignidade. Sou profundamente grata pela sua
amizade e pelo apoio incondicional. Obrigada Emerson, João Pedro e Adrián.
Agradeço imensamente ao Leandro, pelo companheirismo, pelo apoio em todas
as horas, pela paciência, por me motivar, por acreditar em mim.
Agradeço à minha mãe, Solange, pelo exemplo de força, ao meu irmão Davi, a
adorada vovó Isabel, que sem saber muito me estimulou, ao meu padrinho Gumercindo,
a tia e afilhada que mora no meu coração, Giuliana, o tio Rafael, o primo Diego.
Àquela que me orientou não só na pesquisa, mas em todos esses anos difíceis da
graduação, grande amiga e pessoa muito querida, Lola. Sou profundamente grata pela
sua infinda paciência, por me ensinar desde os passos mais elementares da pesquisa
acadêmica, me acompanhando e apoiando em todos os momentos. Caçoando de mim
quando escrevo bobagens, ao invés de criticar asperamente, assim me ensinou
muitíssimo mais.
Agradeço ainda ao prof. Dagoberto pelas valiosas críticas e sugestões, pelo
estímulo em forma de desafio com que brinda diariamente todos ao seu redor.
À memorável professora Júlia, Dario (em Memória), Helder- irmão urso, Daiane
Toffani e sua mãe Magali-Meg, Janaina e Margarete, Conceição, Keco-Ricardo, Gisele,
Tony, Mariane Fornari, Maria Helena, Cláudia, Nátila Renata, Vanessa Rosado, Renato
Capelovski, Jéssy, Mário-Ñoño, Tati e Riquinho, Alfredo-Feo, Patrícia-Márcia, Bia e
Borges, Flávia, Anderson, Keds, Isra-Pompeu, Amandinha, Célia, Cinthia Galelli,
Roselaine Almeida.
Sylvia da Seção de Graduação, muito obrigada pela inigualável seriedade e
dedicação ao seu trabalho, fundamental para nós da primeira turma do espanhol dessa
instituição. Seu Jesus da portaria, astuto e brincalhão, muito obrigada!
Pelas aulas valiosas, sou grata aos professores Márcia Gobbi, Silvia Telarolli,
Arnaldo, Edivanda, Dejalma, Ricardo, Guacira, Márcio Prado, Silvia Adoue, Laura e
Alexandre.
Finalmente, agradeço o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (Fapesp), sem o qual não seria possível que eu realizasse o presente trabalho,
muito menos que eu tivesse obtido reconhecimento da competência como pesquisadora,
que para mim é tão valiosa.
É parte desse reconhecimento ter sido laureada com o primeiro lugar na
Premiação de Melhor Trabalho do XXI Congresso de Iniciação Científica da Área de
Humanas, em 2010.

Muito obrigada!
RESUMO

O universo literário está repleto de obras que remetem a mitos. O compêndio Mujeres,
de Eduardo Galeano possui como temática a mulher e é composto por microcontos,
gênero narrativo que promove uma máxima condensação de elementos temáticos e
estruturais. Trata-se de relatos literários em que a síntese é priorizada simultaneamente
ao lirismo. Com o objetivo de analisar a natureza arquetípica dos mitos acerca da
feminilidade, estudamos especificamente os contos de Mujeres em que se reconstroem
poeticamente mitos da feminilidade. Metodologicamente, nos fundamentamos na
mitocrítica e na teoria das estruturas antropológicas do imaginário idealizadas por
Gilbert Durand. Através destes alicerces, realizamos a análise das narrativas que se
articulam em nosso corpus, no intuito de identificar os diversos artifícios narrativos
específicos que nele operam. Por meio dos mitemas presentes nas narrativas, revelamos
as estruturas arquetípicas do texto e averiguamos como elas se edificam literariamente.
Ademais, elucidamos o teor da representatividade arquetípica sobre a feminilidade
inerente às narrativas e finalmente, agrupamos as situações e combinatórias existentes
no conjunto de micronarrativas, traçando as possíveis conexões existentes. Assim,
fizemos um estudo propriamente dito, de análise mitocrítica.

PALAVRAS-CHAVE: Arquétipos Literários; Antropologia do Imaginário; Mito e


Literatura; Mitos da feminilidade; Mitocrítica; Mujeres.
RÉSUMÉ

Le champ littéraire est plein d’œuvres qui remettent à des mythes. L’ensemble de récits
Mujeres, de Eduardo Galeano, a comme thématique la femme et il est composé par des
micro-contes, genre narratif qui promeut une condensation maximale d’eléments
thématiques et structuraux. Il s’agit des descriptions littéraires où la synthèse est placée
ou même niveau que le lyrisme. Ayant pour objectif d’analiser la nature archétypique
des mythes sur la féminité, nous avons travaillé spécifiquement les contes de Mujeres
où se reconstruisent poétiquement des mythes de la féminité. Méthodologiquement,
notre notre étude a pour base la mythocritique et la théorie des structures
anthropologiques de l’imaginaire ídéalisées par Gilbert Durand. En partant de ces bases,
nous avons réalisé l’analyse des récits qui s’articulent en notre corpus, ayant pour but,
celui d’identifier les divers artifices narratifs spécifiques qui y opèrent. Par le moyen des
mythèmes présents dans les récits, nous avons révélé les structures archétypiques du
texte et nous avons constaté comment elles s’édifient littérairement. En outre, nous
avons élucidé la teneur de la représentativité archétypique de la feminité inhérente aux
récits et finalement, nous avons rassemblé les situations et les combinatoires qui
existent dans l’ensemble de microrécits, traçant les connexions possibles qui y existent.
Ainsi, nous avons fait une étude proprement dite, d´analyse mythocritique.

MOTS-CLÈ: Archètypes littéraires; Anthropologie de l’imaginaire; Mythe et


littérature; Mythes de la feminité; Mythocritique; Mujeres.
Sumário

Apresentação ...................................................................................................................10
1. Introdução ....................................................................................................................11
2. Mitos e Gêneros Literários ..........................................................................................13
2.1 O lirismo dos microcontos.................................................................................... 13
2.2 Imbricações entre Mito e Literatura ..................................................................... 14
2.3 Arquétipos femininos em Eduardo Galeano ......................................................... 18
3. Metodologia: interpretando a obra literária .................................................................21
4. Mujeres: perspectivas do gênero literário ...................................................................26
4.1 Estudando o conto curto “Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar a
sus mujeres”................................................................................................................ 28
4.2 Estudando o conto muito curto “1542, Conlapayara: Las amazonas” ................. 31
4.3 Estudando os contos ultracurtos ........................................................................... 33
4.4 Considerações parciais sobre as perspectivas do gênero literário ........................ 40
5. Análise mitocrítica de Mujeres ....................................................................................42
5.1 Interpretando o texto: narrativas da Dominante Cíclica ....................................... 43
5.1.1 “1711, Paramaribo: Ellas llevan la vida en el pelo” ...................................... 44
5.1.2 “1739, al este de Jamaica: Nanny” ................................................................ 45
5.1.3 “La Pachamama” ........................................................................................... 47
5.2 Interpretando o texto: narrativas da Dominante Digestiva ................................... 49
5.2.1 “El miedo” ..................................................................................................... 50
5.2.2 “La autoridad” ............................................................................................... 54
5.2.3 “Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus mujeres” ........... 57
5.2.4 “1542, Conlapayara: Las amazonas” ............................................................. 61
5.2.5 “Maria Padilha” ............................................................................................. 67
5.2.6 “Ventana sobre una mujer” ........................................................................... 69
5.3 Considerações parciais sobre as narrativas da Dominante Cíclica ................... 72
5.4 Considerações parciais sobre as narrativas da Dominante Digestiva ............... 75
6. O Eterno Feminino ......................................................................................................78
6.1 Apontamentos sobre o tempo em Mujeres ........................................................... 78
6.2 Conexões: representações literárias da feminilidade mítica ................................. 80
6.3 O Arquétipo Materno ........................................................................................... 83
6.4 A representação da feminilidade em Mujeres ...................................................... 88
7. Considerações Finais ...................................................................................................89
Bibliografia Consultada ...................................................................................................93
Bibliografia de Apoio ......................................................................................................95
Anexos .............................................................................................................................97
10

Apresentação

O presente trabalho tem como proposta o estudo da feminilidade nas narrativas


míticas de escrita sintética da obra Mujeres,1de Eduardo Galeano. Trata-se de contos de
extensão menor que o convencional que versam especificamente sobre mitos ancestrais
a respeito da feminilidade.
Sendo assim, nosso corpus é composto por microcontos, gênero narrativo que
promove uma máxima condensação de elementos temáticos e estruturais. Ademais,
trata-se de relatos literários em que a síntese é priorizada simultaneamente ao lirismo.
Com o objetivo de analisar a natureza arquetípica dos mitos acerca da
feminilidade, nos fundamentamos metodologicamente, sobretudo, na mitocrítica e na
teoria das estruturas antropológicas do imaginário idealizadas por Gilbert Durand.
Através destes alicerces, realizamos a análise interna das narrativas articuladas em
nosso corpus, de modo que pudéssemos identificar os artifícios narrativos específicos
que nele operam e que são próprios do gênero literário com o qual trabalhamos.
Em conformidade com nossa abordagem metodológica, realizamos o
agrupamento das narrativas de acordo com as consonâncias existentes entre os contos e
evidenciamos os mitemas presentes nas narrativas, fundamentais à posterior revelação
das estruturas arquetípicas dos textos. Finalmente, elucidamos o papel dos recursos
literários na constituição do relato ao agruparmos as situações e combinatórias
existentes no conjunto de micronarrativas, traçando as possíveis conexões existentes
dentro do próprio corpus, conforme previsto em nosso plano de trabalho inicial.

1
Atualmente, Mujeres encontra-se esgotado no mercado editorial brasileiro, motivo pelo qual
disponibilizaremos em anexo as micronarrativas que compõem nosso corpus.
11

1. Introdução

Nossa proposta, para o presente estudo, é identificar as estruturas arquetípicas


referentes à feminilidade em Mujeres, de Galeano, partindo da especificidade do gênero
literário que compõem os textos dessa obra. A escolha dos microcontos que constituem
nosso corpus pautou-se, fundamentalmente, na presença da valorização dos aspectos de
uma feminilidade primordial, quer dizer, em que opera uma explícita fusão entre mito e
literatura, características com as quais as micronarrativas pactuam.
A obra intitulada Mujeres, do uruguaio Eduardo Galeano é composta por contos
de escrita sintética, gênero narrativo que promove uma máxima condensação de
elementos temáticos e estruturais e por meio dos quais, o autor explora, artística e
literariamente, a temática do universo feminino.
Publicado em 1995, Mujeres é um compêndio provido de diversos contos líricos
cuja matéria discursiva sintetiza significativas passagens da vida de mulheres que
renegaram do papel social a elas imposto e que, desafiando à ordem vigente, passaram a
integrar, de maneira individual ou coletiva, a história não oficial. Galeano outorga uma
voz poética a essas mulheres que figuram em suas micronarrativas no intento de
recuperar, num exercício estético, mitopoético e literário, tais vozes perdidas.
Transformadas em personagens de ficção, tais mulheres ganham novas perspectivas
devido ao enfoque distinto arquitetado nos relatos literários de Galeano.
Cabe ressaltar que o compêndio foi construído a partir de textos sobre a mulher
disseminados em obras anteriores do escritor. Em Mujeres encontramos narrativas
procedentes dos livros Días y noches de amor y de guerra, El libro de los abrazos e Las
palabras andantes, assim como da trilogia Memorias del fuego.
Embora exista em Mujeres microcontos que se referem a temas universalmente
ligados à mulher, parte significativa de sua narrativa poética valoriza aspectos de uma
feminilidade primordial, em explícita fusão com o mito. As mulheres míticas, essenciais
na ficção, figuram no compêndio em sucintas linhas literárias, que condensam ao
máximo toda uma estrutura arquetípica, cujo estudo é nosso objetivo. Isto é,
pretendemos analisar a natureza arquetípica dos mitos acerca da feminilidade por meio
do texto literário.
12

Dessa forma, nosso corpus é composto por narrativas específicas que integram o
compêndio Mujeres. Constituem-se, pois, como objeto de nossa pesquisa, unicamente
os relatos em que se reconstroem poeticamente mitos femininos. Dessa perspectiva,
estudaremos os seguintes contos de escrita sintética: 1. “El miedo”, 2. “La autoridad”,
3. “Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus mujeres”, 4. “1542,
Conlapayara: Las amazonas”, 5. “1711, Paramaribo: Ellas llevan la vida en el pelo”,
6. “1739, al este de Jamaica: Nanny”, 7. “La Pachamama”, 8. “Maria Padilha”, e
ainda 9. “Ventana sobre una mujer” que, a despeito de não remeter diretamente a mitos
femininos, destoando da linha de representação mitopoética das demais narrativas,
condensa em seu bojo imagens arquetípicas acerca da feminilidade, o que nos permite
realizar uma concatenação entre todos os relatos.
Nos microcontos que constituem nosso corpus, Galeano aborda primorosamente
os aspectos que concernem à temática da feminilidade arquetípica, sobretudo, através de
uma recriação literária de mitos ancestrais nos quais se manifesta o peculiar hibridismo
cultural da América Latina. Quer dizer, nos deparamos com relatos que denotam
explicitamente características das culturas latino-americanas, mas que são permeados
por aspectos cujas significações arquetípicas convergem para as culturas pré-
colombiana, africana e europeia. “También otros tipos de cuentos que se han recogido
entre los sectores campesinos e incluso indígenas de América revelan marcadas
influencias de Europa, de Asia y hasta de África” (COLOMBRES, 1993, p. 153-154).
Paralelamente, o escritor uruguaio articula e transubstancia literariamente o
conteúdo das narrativas, pois ao mesmo tempo em que evidencia relatos pertencentes às
culturas latino-americanas, percebemos referências a mitos de marcada presença na
literatura universal.
Dessa forma, os relatos que compõem nosso corpus inserem-se no âmbito
literário como expressão dos mitos universais criados acerca da feminilidade e seus
respectivos arquétipos. São micronarrativas da literatura latino-americana, que, no
entanto, justamente por seu caráter arquetípico, dialogam com a literatura universal.
13

2. Mitos e Gêneros Literários

2.1 O lirismo dos microcontos

Ao eleger os contos de escrita menor que o convencional como gênero literário a


compor Mujeres, Eduardo Galeano priorizou, ademais do lirismo, a extrema síntese em
suas narrativas. Determinada forma de organização estrutural resultou em uma
proeminente acuidade narrativa, por se tratar de uma estratégia que leva a uma
intensidade e condensação significativas dentro do relato literário.
Como suporte teórico no trato do gênero literário por meio do qual o escritor
estruturou o compêndio, dispusemos de um estudo do crítico mexicano Lauro Zavala
(2006), denominado “El cuento ultracorto: Hacia un nuevo canon literario”. Nele,
Zavala defende que a “brevedad en la escritura siempre ha ejercido un gran poder de
seducción. Entre las formas de escritura radicalmente breve con valor literario podrían
mencionarse el haiku, el epigrama y la poesía fractal” (ZAVALA, 2006, s.n.).
A partir dessa constatação, Zavala, alicerçado na averiguação de textos de escrita
sintética pertencentes à literatura contemporânea, propõe três nomenclaturas possíveis à
classe narrativa dos textos literários de menor extensão que o convencional: os “cuentos
cortos”, os “cuentos muy cortos” e os “cuentos ultracortos”. Mais do que um problema
de extensão da narrativa, o autor pontua entraves de ordem genérica, estética, nominal,
tipológica e textual (ZAVALA, 2006, s.n.).
Os contos com que trabalhamos compactuam de uma natureza narrativa breve,
porém muito densa. Para Zavala (2006, s.n.), devido a essa extrema condensação, a
micronarrativa resulta numa forma literária de leitura muito mais exigente que o conto
convencional e o romance realista, por ser uma forma poética sintética que, de acordo
com o autor, usa de recursos próprios muito específicos.
Sendo assim, dada a extrema condensação das narrativas que compõem nosso
corpus, adotamos os alicerces teóricos propostos por Zavala à hora de classificar e de
analisar a estrutura do gênero literário de nosso objeto de estudo. Contudo, devido à
instabilidade formal dos contos de escrita sintética que estudamos, restringimos nossa
ação à classificação dos microcontos de acordo com as proposições teóricas do crítico
mexicano, estudando os recursos narrativos que resultam pertinentes para identificar e
14

analisar os arquétipos literários presentes nas narrativas, tais como a intertextualidade


ou a polissemia discursiva.

2.2 Imbricações entre Mito e Literatura

A respeito dos aspectos que compõem a essência estrutural do conto, um de seus


estudiosos, Vladimir Propp (2002), afirma que o conto traz no seu bojo numerosos
costumes e ritos que somente podem ser explicados em sua gênese quando comparados
com os próprios ritos. Tem sido constante a tessitura de hipóteses e teses acerca da
possível conexão entre o conto e as formas de expressão religiosa ancestrais, como os
ritos e os relatos míticos. Dessa forma:

Constitui interesse especial a teoria da transformação do mito em


conto em função da desritualização e dessacralização do espaço
mítico: abala-se a fé na veracidade dos eventos míticos, desenvolve-se
a invenção consciente e individual, substituem-se os heróis míticos
por pessoas comuns, transfere-se a atenção dos destinos coletivos para
os individuais, dos destinos cósmicos para os sociais, abrindo-se
caminho para a ficção literária (BEZERRA, PAULO apud
MIELIETÍNSKI, 1987, p. 477).

Segundo Mielietínski (2003, p. 157-158), os mitos possuem temas tradicionais


que, transformados em arquétipos, conservam-se por muito tempo na literatura e se
manifestam de modo nítido e periódico, mesmo que as suas significações sejam
disfarçadas, quer dizer, passem por algumas modificações que os atualizem. Sobretudo,
a desritualização dos relatos e as transformações operadas no plano literário não fazem
com que o arquétipo originário deixe de aparecer, ele continua presente, ainda que
depositado no nível profundo da narrativa. As transformações dos temas tradicionais e
sua fragmentação apenas disfarçam suas profundas significações arquetípicas.
Como resultado desse processo, no âmbito ficcional, se faz notória a presença e
a relevância do estreito vínculo entre literatura e mitologia. A conexão entre ambos
possibilita “al mito cambiar de máscara, responder a las nuevas situaciones”
(COLOMBRES, 1995, p. 139). Quer dizer, a frequente revisitação dos diversos temas
mitológicos pela literatura opera uma série de transformações no mito, que funcionam
como uma espécie de atualização que permite eternizá-lo no domínio ficcional. De
acordo com Mielietínski (1986, p. 329):
15

A literatura está geneticamente relacionada com a mitologia através do


folclore, e particularmente a literatura narrativa – a que nos dedicamos
em primeiro lugar –, que se liga à mitologia via conto maravilhoso e
epos heróico, que surgiram das profundezas do folclore (naturalmente
muitos monumentos do gênero épico e do conto maravilhoso
continuam a desenvolver-se ou foram até recriados em livros). Nesse
sentido, o drama e, em parte, a lírica assimilaram primordialmente os
elementos do mito pela via direta dos rituais, festejos populares e
mistérios religiosos.

Dessa forma, podemos considerar que a literatura utiliza a mitologia para


fomentar a sua gênese na narrativa. Esse vínculo entre literatura e mito permite a
atualização de diversos temas míticos e sua conservação por um longo tempo.
A relação estabelecida entre o mito e a literatura é a base dos pressupostos
teórico-metodológicos de Gilbert Durand. Por meio do destaque das constelações de
imagens e suas respectivas variações simbólicas, que figuram em consonância com
determinados temas, Durand busca colocar em relevo os elementos de uma herança
mítica na composição de todo texto literário (DURAND, 1988; 1993; 1997; TURCHI,
2003).
Em referência ao vínculo que se estabelece entre mito e literatura associado à
teoria das estruturas antropológicas do imaginário, postulado por Durand, a especialista
Maria Zaira Turchi (2003), defende tratar-se de uma das criações da humanidade que,
por meio das imagens, perpetuam os arquétipos presentes no inconsciente coletivo, de
modo que, permeando a forma literária ficcional, o mito exprime a condição e as
relações humanas, ao mesmo tempo que se faz enredar em formas literárias.
Perpetuado na literatura universal, o mito por vezes é tido como elemento basilar
para a integridade de uma cultura. Para tanto, ele opera em consonância com os
arquétipos universais. “A integridade de uma vida individual, tanto quanto da vida
coletiva, que é a cultura, depende dos mitos. Seus temas arquetípicos lhe conferem
forma e significação. Distanciar-se do significado, perder o contato com a estruturação
arquetípica, significa desintegração” (WHITMONT, 1991, p. 48).
A literatura torna possível a convergência de diversas áreas do conhecimento,
provocando, inclusive, o surgimento de um novo humanismo que envolve toda a cultura
humana, mediante a interdisciplinaridade de várias áreas do conhecimento (TURCHI,
2003, p. 39). Assim podemos considerar, como Frye (1957), que a literatura é parte
central das humanidades.
16

Ademais, devemos ainda levar em conta que, como salienta Turchi (2003), a
ligação existente entre mito e literatura, numa perspectiva mais ampla, indica que ambos
estabelecem um vínculo no qual a literatura pode ser considerada, de maneira mais
ousada, um meio pelo qual os mitos são atualizados e se perpetuam. A conexão entre
ambos possibilita “al mito cambiar de máscara, responder a las nuevas situaciones”
(COLOMBRES, 1995, p. 139), ou seja, a literatura possibilita ao mito uma
transformação, uma espécie de atualização que permite eternizá-lo.
Em A ordem dos sexos, Eugène Enriquez (1999), ao estudar as primeiras
relações de desigualdade estabelecidas entre homens e mulheres, expressa que seu
estudo só foi possível mediante a análise minuciosa de obras artísticas e literárias. Nesse
texto, Enriquez aponta questões bastante elucidativas para o entendimento do estudo
sobre os arquétipos femininos na literatura.
Paralelamente, Durand (1997) põe em destaque inúmeras obras literárias para
fundamentar toda a sua teoria. A literatura é o universo por meio do qual ele fomenta
suas afirmações acerca da potencialidade das imagens e do uso da simbologia, que
velam os arquétipos universais transformados, dessa forma, em arquétipos literários.
A escolha por se realizar esta pesquisa, partindo do ponto de vista da teoria
formulada por Durand, não significa uma redução a um único enfoque, mas exatamente
o contrário, representa o intento de situar a reflexão numa concepção mais abrangente
(TURCHI, 2003, p. 29).
Sob nosso ponto de vista, existe uma diferença entre Durand e outros teóricos –
tão renomados quanto ele, como por exemplo, Northrop Frye (1957) – que justificam a
escolha que fizemos. Como outros autores, Durand busca embasamento teórico na
literatura universal, porém, se destaca porque inclui em suas discussões a literatura
pertencente ao Ocidente e às Américas, fator de fundamental importância para nós, dada
a especificidade de nosso objeto de estudo.

La literatura popular cubre en América una amplia gama de géneros,


muchos de los cuales se dan también, aunque con otras
características, en el ámbito de la literatura dominante. Acaso el
principal de ellos, por su valor arquetípico, siempre con relación a
una cultura determinada, es el mito, que se manifiesta con una gran
riqueza en el mundo indígena, dando lugar a múltiples estilos étnicos
de narración, aún escasamente estudiados (COLOMBRES, 1995, p.
151).
17

Os microcontos com que trabalhamos pactuam de lirismo e concisão extrema.


Os textos de Galeano, além de tratar de mitos e arquétipos que circundam a
feminilidade, primam pela síntese em sua constituição narrativa. Tal espécie de escrita,
que permite uma intensa condensação narrativa, sempre exerceu fascínio ao homem
(ZAVALA, s/d). Assim, de acordo com Colombres (1995, p. 152):

El cuento puede ser visto como la desacralización final de un mito,


pero también como un mito que comienza su aventura desde lo
profano y lo lúdico. Porque siempre el cuento es vivido como una
ficción, algo que es reflejo de la realidad pero no una realidad. Se
trata de un género casi tan antiguo como el mito. Los pasajes del mito
al cuento y del cuento al mito se vuelven en América más naturales, y
hasta pasan casi inadvertidos, pues por momentos se borran las
fronteras. Lévi-Strauss observó que un mismo relato era narrado por
un grupo étnico como mito, y por otro como cuento. Si bien habrá
casi siempre diferencias estructurales entre ambos tipos de relatos, lo
determinante en última instancia será la vivencia que de ellos se
tenga.

Os contos de Mujeres, que estudamos,são narrativas que versam sobre a


especificidade latino-americana, além disso, são micronarrativas permeadas pela marca
peculiar do estilo versátil de seu autor, Eduardo Galeano2. Concedendo um espaço de
expressão para diversas culturas, Galeano incorpora discursos não convencionais sobre
a mulher.
A escolha dos contos que compõem o nosso corpus pautou-se,
fundamentalmente, na presença da valorização de uma feminilidade primordial, em
explícita fusão entre mito e literatura, aspecto que tais narrativas pactuam. Pois as
mulheres desses mitos que versam sobre a feminilidade, em sucintas linhas literárias,
condensam ao máximo toda uma estrutura arquetípica.

2
Durante sua trajetória intelectual, o uruguaio Eduardo Galeano realizou mudanças significativas
concernentes desde seu estilo de escrita, os temas escolhidos, até o seu modo de narrar. Tal fato pode ser
considerado, inclusive, uma espécie de “metamorfose” artística, especialmente se recordarmos que
Galeano é o autor de Veias Abertas da América Latina. Uma obra de impacto, que obteve grande
repercussão durante décadas após a data de seu lançamento e que, em suma, trata da questão da
exploração econômico-cultural da América Latina, as raízes de sua pobreza e de seu subdesenvolvimento.
Por sua vez, é o mesmo autor de Mujeres, que figura em outra linha estética e temática. Uma abordagem
bastante diferenciada, se não, completamente díspar.
18

2.3 Arquétipos femininos em Eduardo Galeano

As mulheres dos microcontos que compõem nosso corpus têm seus nomes e
seus sobrenomes, muitas vezes, explícitos na narrativa e compartilham entre si aspectos
de uma feminilidade primordial, arcaica (WHITMONT, 1991; SICUTERI, 1998;
EISLER, 1996; ENRIQUEZ, 1999).
Nos microcontos selecionados para compor nosso corpus, detectamos que o mito
se faz matriz da gênese literária, quer dizer, cada relato possui em seu bojo um mito,
mais que isso, trata-se de mitos acerca da feminilidade que norteiam a produção das
narrativas. Esses contos, permeados de simbologias próprias e de constelações de
imagens, são a expressão visível de estruturas mais complexas, os arquétipos, na
acepção de Durand (1997).
Entre as múltiplas definições de mito existentes, neste primeiro momento, por
melhor convir ao nosso estudo, tomamos a acepção de Mielietínski (1987, p. 197), para
quem:

O mito explica e sanciona a ordem social e cósmica vigente numa


concepção de mito, própria de uma dada cultura e explica ao homem o
próprio homem e o mundo que o cerca para manter essa ordem; um
dos meios práticos dessa manutenção da ordem é a reprodução dos
mitos em rituais que se repetem regularmente.

Conforme os dizeres de Mielietínski, o mito é um elemento que serve para


ratificar determinada ordem, explicando ao homem a origem e os mecanismos
mantenedores da estrutura a qual se reporta.
“As narrativas míticas, por sua vez, veiculam imagens simbólicas, calcadas em
arquétipos universais, que reaparecem, periodicamente, nas criações artísticas
individuais, entre elas, a literária” (TURCHI, 2003, p. 39). É o que inferimos ao
observar nosso corpus, que está alicerçado em narrativas míticas reveladoras de
múltiplas facetas femininas – como a guerreira, a mãe, a divindade ctônica ou a
prostituta – relatando, inclusive, as respectivas sagas de cada uma das personagens, por
meio de uma gama de imagens simbólicas explicitamente arquetípicas.
As narrativas com que trabalhamos são ricamente providas de imagens, que
figuram impregnadas de significado simbólico e estiveram sob nosso crivo na medida
em que isso foi pertinente à análise do corpus. Tal exame foi realizado na observância
19

minuciosa das constelações de imagens, cujo caráter de polivalência interpretativa


acentua-se ainda mais nas transposições imaginárias. Reiterada a importância dos
objetos simbólicos, que “não são nunca puros, mas constituem tecidos onde várias
dominantes podem imbricar-se” (DURAND, 1997, p. 54) e com destaque para a
condição de o objeto simbólico, por estar sempre sujeito a inversões do sentido, ou
ainda, a redobramentos.
Conforme tentamos demonstrar, as narrativas de nosso corpus possuem em seu
cerne a representação do que Gilbert Durand (1997) chamou de Regime Noturno da
imagem. O teórico fez divisões distintivas no intento de organizar e fazer uma
generalização de seus postulados, sendo que neste momento, a distinção sobre a qual
nos interessa discorrer é a bipartição em regimes do simbolismo, nomeados Diurno e
Noturno:

O Regime Diurno tem a ver com a dominante postural, a tecnologia


das armas, a sociologia do soberano mago e guerreiro, os rituais da
elevação e da purificação; o Regime Noturno subdivide-se nas
dominantes digestiva e cíclica, a primeira subsumindo as técnicas do
continente e do habitat, os valores alimentares e digestivos, a
sociologia matriarcal e alimentadora, a segunda agrupando as técnicas
do ciclo, do calendário agrícola e da indústria têxtil, os símbolos
naturais ou artificiais do retorno, os mitos e os dramas astrobiológicos
(DURAND, 1997, p. 58).

Conforme demonstrado por Durand, o Regime Diurno e o Regime Noturno


possuem distinções em seus trajetos, imagens características peculiares: o Regime
Diurno reúne constelações de imagens da dominante postural, a tecnologia bélica, a
sociologia do soberano mago e guerreiro, além de se relacionar com os rituais da
purificação e da elevação. Já o Regime Noturno é subdividido em Dominante Digestiva
e Dominante Cíclica. A primeira dominante agrupa as imagens das técnicas do
recipiente e do habitat, valores alimentares e digestivos, a sociologia matriarcal e
alimentadora. Concomitantemente, a segunda congrega as técnicas do ciclo, do
calendário agrícola e da indústria têxtil, os símbolos naturais ou artificiais do retorno, os
mitos e os dramas astrobiológicos.
Nos contos com que trabalhamos, o conjunto de imagens erigidas nas narrativas
torna facilmente identificáveis a que eixo, ou melhor, a qual Regime da imagem
pertencem os relatos. Pensando nisso, é importante salientarmos de antemão que a
20

simbologia do Regime Noturno é a única que se faz sempre presente em nosso corpus, e
sendo assim, é sobre ela que nos debruçamos com maior afinco. Contudo, recorremos
ao Regime Diurno, nos momentos necessários, para traçar possíveis oposições ou
identificar eventuais paralelos.
Na tessitura de ponderações acerca das estruturas antropológicas do imaginário,
se faz indispensável partirmos para o trato dos arquétipos. Na acepção de Durand, os
arquétipos são estruturas que constituem a conexão entre o imaginário e os processos
racionais. “Os gestos dominantes, diferenciados em esquemas no contato com o
ambiente ao redor, natural e social, determinam os grandes arquétipos” (TURCHI,
2003, p. 28). Conforme salienta Turchi (2003), Durand – de modo semelhante à Gustav
Jung – define os arquétipos como imagens primordiais localizadas no inconsciente
coletivo. Porém, diferentemente de Jung, Durand os avalia como substantivações dos
esquemas. Considerado uma generalização dinâmica e afetiva da imagem, o esquema
permite a junção entre os gestos inconscientes e as representações, expressão dinâmica
da imaginação (DURAND, 1997; TURCHI, 2003). Desse modo, se o arquétipo é uma
imagem primordial:

O que diferencia precisamente o arquétipo do simples símbolo é


geralmente a sua falta de ambivalência, a sua universalidade constante
e a sua adequação ao esquema: a roda, por exemplo, é o grande
arquétipo do esquema cíclico, porque não se percebe que outra
significação imaginária lhe poderíamos dar, enquanto a serpente é
apenas símbolo do ciclo, símbolo muito polivalente, como veremos.
É que, com efeito, os arquétipos ligam-se a imagens muito
diferenciadas pelas culturas e nas quais vários esquemas se vêm
imbricar (DURAND, 1997, p. 62).

Essa visão ampla foi indispensável à hora de analisarmos nosso corpus, que é
provido de uma imensa gama de imagens e de simbologias específicas conectadas ao
Regime Noturno da imagem, além de se comunicar diretamente aos esquemas e de
possuir em seu âmago arquétipos universais referentes à feminilidade.
De tudo o que foi dito até aqui, e a partir de agora, podemos entender o mito,
numa concepção mais próxima da literatura como “um sistema dinâmico de símbolos,
arquétipos e esquemas, sistema dinâmico que, sob o impulso de um esquema, tende a
compor-se em narrativa” (DURAND, 1997, p.62-63).
21

Nosso estudo, partindo da identificação de quais são os mitos a que os contos


que constituem nosso corpus aduzem, estuda a natureza das imagens e a simbologia
contida nas narrativas. Em seguida, investigamos os arquétipos presentes, que,
conforme salientamos outrora, tratam explicitamente da mulher e dos aspectos
referentes ou atribuídos à feminilidade. Diante da realização de tal feito, tentamos
averiguar se o produto de nossa análise expressa, e em que grau, uma feminilidade
erigida, ou seja, como incidem, literariamente, os conceitos de feminilidade contidos
nas narrativas que são nosso objeto de estudo, os mitos, as imagens e a simbologia, e os
arquétipos literários anunciados nos relatos.
Por meio dos contos específicos de Mujeres, propusemos uma apreciação que
não se prenda a uma simples recorrência, mas ultrapasse esse ponto para alçar-nos a
uma apreciação de significação mais ampla no contexto da crítica arquetípica,
corporificada no pensamento de Gilbert Durand.

3. Metodologia: interpretando a obra literária

Para alcançarmos nosso objetivo, nos pautamos fundamentalmente na teoria de


Gilbert Durand (1993; 1997), que elabora uma metodologia fundamentada no
dinamismo interno das imagens. Para o autor, tais imagens têm a propriedade de se
organizar em narrativa, texto literário ou escrito, objetos peculiares à realização da
análise e da crítica literária. Ademais, para Durand, esse dinamismo é portador de um
estreito parentesco com o próprio mito.
Gilbert Durand (1997) põe em destaque inúmeras obras literárias para
fundamentar toda a sua teoria das estruturas antropológicas do imaginário e a
mitocrítica. A literatura é o universo por meio do qual ele fomenta suas afirmações
acerca da potencialidade das imagens e do uso da simbologia, que velam os arquétipos
universais transformados, dessa forma, em arquétipos literários.
De acordo com Turchi (2003, p. 39), Durand “inaugura um novo método, onde o
mito que existe latente ou manifesto em toda a narrativa, não circunscrito ao tempo e ao
espaço, mas preso à sabedoria de culturas imemoriais e sempre presentes na extensão
visionária, é a razão desta crítica”. Dessa maneira, o arcabouço teórico-metodológico
elaborado por Durand pressupõe que há, através das imagens, uma atualização dos
22

arquétipos no inconsciente coletivo, mediante o relacionamento existente entre mito e


literatura. O mito, conforme salienta Turchi (2003, p. 39), “exprime a condição humana
e as relações sociais no grupo onde ele surge e configura-se em formas narrativas”.
Propomos com Turchi (2003) que o estabelecimento das bases de nosso trabalho
fundamentada nas teorias de Durand não incorre num único enfoque, mas numa
concepção mais ampla. Isso porque Durand busca embasamento teórico na literatura
universal, porém, se destaca porque inclui em suas discussões a literatura pertencente ao
Ocidente e as Américas, atendendo a especificidade de nosso corpus.
Assim sendo, nossas reflexões metodológicas também levaram em conta a
existência desse estreito laço estabelecido entre mito e literatura, que é a base da teoria
de Durand. Sua metodologia também busca destacar, nas respectivas narrativas míticas,
as imagens simbólicas nelas veiculadas, que são calcadas em arquétipos universais,
peculiares às criações artísticas individuais, entre elas a literatura, criações que estão
mais direcionadas à imaginação do que à razão (TURCHI, 2003).
Pois bem, como já mencionamos, os arquétipos são estruturas que constituem a
conexão entre o imaginário e os processos racionais, quer dizer, são imagens
primordiais localizadas no inconsciente coletivo que podemos considerar como
generalizações dinâmicas e afetivas da imagem.
Posta dessa maneira, a abordagem metodológica proposta por Gilbert Durand,
resulta de extrema importância à hora de analisar mitocriticamente os microcontos que
compõem objeto de estudo, cujas narrativas estão repletas de imagens e simbologias que
remetem, invariavelmente, aos arquétipos de uma feminilidade primordial.
Alicerçada nas reflexões teóricas da hermenêutica, a metodologia de Durand,
nominalmente chamada de mitodologia, consiste no alargamento das possibilidades de
interpretação da obra literária, mediante um estudo de mitocrítica e mitanálise
(DURAND, 1993).
Assim, de acordo com a leitura crítica de Maria Zaira Turchi (p. 39, 2003):

Ao construir sua teoria da mitodologia, Durand se fundamenta no


dinamismo interno das imagens, capaz de levá-las a se organizarem
em narrativa, texto literário oral ou escrito, portador de um parentesco
estreito com o mito. A mitodologia inaugura um novo método onde o
mito que existe latente ou manifesto em toda a narrativa, não
circunscrita ao tempo e ao espaço, mas preso à sabedoria de culturas
imemoriais e sempre presente na extensão visionária, é a razão desta
23

crítica. Mito e literatura relacionam-se como criações da humanidade


que atualizam, através de imagens, os arquétipos presentes no
inconsciente coletivo. O mito exprime a condição humana e as
relações sociais no grupo onde ele surge e configura-se em formas
narrativas. As narrativas míticas, por sua vez, veiculam imagens
simbólicas, calcadas em arquétipos universais, que reaparecem,
periodicamente, nas criações artísticas individuais, entre elas a
literária. O símbolo e o mito, modernamente, provocaram um novo
humanismo, envolvendo toda a cultura humana, na
interdisciplinaridade da antropologia, da etnologia, da história das
religiões, da sociologia, da psicopatologia, das estéticas e das
literaturas. A mitodologia necessita pois, de caminhos distintos para
enriquecer as possibilidades hermenêuticas dos textos: a mitocrítica e
a mitanálise.

Desse modo, a abordagem metodológica de Durand denominada mitocrítica,


segundo Turchi (2003), é uma composição teórico-crítica situada na confluência de
diversas críticas literárias, em certa medida, uma antropologia poética.
Segundo Maria Zaira Turchi (2003, p.39), “o termo mitocrítica foi forjado por
Durand, por volta dos anos 70 [...], para significar o uso de um método de crítica
literária ou artística que centra o processo compreensivo no relato mítico, inerente como
Wesenschau (intuição essencial), à significação de todo relato”. Com isso, estamos
considerando que o entendimento de toda e qualquer obra literária vincula-se à
interpretação e à compreensão de que esta obra tem uma ligação direta com episódios
míticos.
Nesse sentido, a análise da obra literária dirige-se para o descobrimento do mito
pessoal da obra de um determinado autor, que é a fonte de onde ele recolhe os materiais
e objetos tomados da sua experiência do mundo. Mais uma vez, é salutar a compreensão
de que, no entendimento de Durand (1993; 1997), as obras artísticas humanas não falam
apenas do homem e dos acontecimentos dispensáveis e corriqueiros da sua vida
cotidiana, elas falam, fundamentalmente, “do homem na sua universalidade que
atravessa as diferenças culturais, históricas e sociais” (TURCHI, 2003, p. 40).
A mitocrítica, nesse sentido, busca perscrutar como é integrado ao âmbito
literário o mito transformado em matéria de ficção, resultando em narrativas que,
invariavelmente, aparecem perpassadas de heranças culturais (TURCHI, 2003).
Metodologicamente, a abordagem mitocrítica de uma obra artística, em nosso
caso particular, a literária, se deu em três etapas principais cujo objetivo principal é a
decomposição interna dos extratos mitêmicos, aí presentes. Primeiramente agrupamos
24

os mitemas, que são as menores unidades de significação do discurso mítico segundo a


articulação que possuem em consoante a determinados temas, incluindo-se os motivos
redundantes que constituem as sincronicidades míticas da obra3. Havemos também de
lembrar que o mitema, cujo conteúdo pode ser um motivo, ou um tema, ou um cenário
mítico, um emblema, ou uma situação dramática, está contido tanto na genealogia do
mito quanto na gênese da mitocrítica.
Concretizado o agrupamento dos mitemas de acordo com os temas em que
podem ser agrupados, realizamos o exame detalhado das situações e das combinatórias
de situações em que cada uma das personagens aparece e dos seus respectivos cenários,
nos quais elas estão inseridas. O objetivo, nesse momento, foi estabelecer as
semelhanças e traçar a intersecção entre elas. Feitas essas duas tarefas, havíamos
realizado a primeira parte de nosso trabalho.
Finalmente, tentamos localizar as diversas lições míticas e as possíveis conexões
que se estipulam entre as lições míticas das narrativas com outros mitos, de épocas e/ou
espaços culturais determinados presentes em outros contos de nosso corpus.
A primeira vista, essa parece ser a tarefa mais difícil de ser realizada em nosso
trabalho dado que tivemos de localizar e estabelecer as devidas conexões entre
determinados mitos. No entanto, nos detivemos às considerações de Turchi (2003, p.
41), defensora de que “na aplicação da mitocrítica, o que se percebe é que há um
número limitado de mitos possíveis, tal como os define as mitologias das grandes
civilizações, que exigem reinvenções míticas constantes e repetidas no curso da história
de uma mesma cultura”. As combinações seriam, pois, limitadas, uma vez que o
pensamento mítico, por estar ligado às imagens pode ser generalizador, empreende-se
por meio de analogias e aproximações (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 40-47).
A mitocrítica, conforme demonstrou Turchi (2003), busca evidenciar como os
mitos diretores e suas múltiplas facetas, perceptíveis em um único autor ou obra literária
específica, se expandem para além da fronteira estrita do literário e se amplia para
aspectos sócio-históricos e culturais. É justamente neste ponto que se abre um outro
caminho para a compreensão do caráter mítico do texto literário, qual seja, o caminho
proposto pela mitanálise.

3
Em nosso entendimento, o termo “sincronicidade mítica da obra” significa que devemos atentar ao fato
de que os microcontos de Galeano, por mais que tenham sido escritos em contextos mais próximos à nós,
aduzem, necessariamente, a um passado mítico que o “orienta” em sua experiência com o mundo atual.
25

Mitanálise é um termo elaborado por Durand (1993) para definir “um método de
análise científico dos mitos que procura extrair não apenas o seu sentido psicológico,
mas, sobretudo, o sociológico” (TURCHI, 2003, p. 41). A metodologia proposta pela
mitanálise tenta agrupar num mesmo círculo, os grandes mitos diretores dos
acontecimentos históricos, separando-os dos mitos que pertencem, especificadamente, a
grupos e a relações sociais específicas.
A mitanálise põe em revelo a ideia de que, em cada época, há um mito
dominante que tende a se institucionalizar, servindo de modelo à totalidade do
imaginário. Ao mesmo tempo, este mito triunfante suscita um contramito que se
mantém latente (TURCHI, 2003, p. 42). Isso corresponde a afirmar que, após
detectarmos os mitos relacionados às obras de um determinado autor, caberia ainda o
esforço de tentarmos conectar estes mitos específicos aos mitos universais
institucionalizados.
A metodologia proposta pela mitanálise tenta agrupar num mesmo círculo, os
grandes mitos diretores dos acontecimentos históricos, separando-os dos mitos que
pertencem, especificadamente, a grupos e a relações sociais específicas. Ora, como é
bem sabido, o estudo das relações estabelecidas no campo social suscita o conhecimento
de teorias, metodologias e cuidados específicos àquele que quer compreender e
interpretar e até mesmo entender como se dão as relações humanas. Nesse sentido, a
mitanálise é uma metodologia que prescinde de uma detalhada e complexa pesquisa
sobre os comportamentos e as relações sociais, de modo que se configurou como um
caminho a ser descartado na realização de nossa pesquisa.
Nesse sentido, a mitanálise é uma metodologia que prescinde de uma detalhada e
complexa pesquisa sobre os comportamentos e as relações sociais. Dito de outra
maneira, a mitanálise propõe que abandonemos o texto literário para que possamos
enveredar pelo campo conflituoso e contraditório do contexto histórico no qual a obra
foi escrita.
Ora, como é bem sabido, o estudo das relações estabelecidas no campo social
suscita o conhecimento de teorias, metodologias e cuidados específicos àquele que quer
compreender e interpretar e até mesmo entender como se dão as relações humanas.
26

4. Mujeres: perspectivas do gênero literário

Para Colombres (1995), o diálogo constante entre o mito e a narrativa, na


América Latina, resulta particularmente intenso quando abordamos a especificidade do
conto. Isso porque suscita uma vivência que reflete a realidade, mas não é uma
realidade, é uma ficção. O conto, porém, é quase tão antigo quanto o mito, podendo ser
considerado uma dessacralização final deste. Para o autor, “Los pasajes del mito al
cuento y del cuento al mito se vuelven en América más naturales, y hasta pasan casi
inadvertidos, pues por momentos se borran las fronteras” (COLOMBRES, 1995, p.
152). Esse hibridismo característico é notado em nosso objeto de estudo, conforme
demonstramos em momento oportuno.
No caso específico dos microcontos que estudamos, para além do lirismo e da
concisão extrema, manteve-se o trânsito direto entre mito e discurso poético. Os textos
de Galeano, além de tratar de mitos e arquétipos que circundam a feminilidade, primam
pela síntese em sua constituição narrativa.
Os contos de escrita sintética que constituem nosso corpus inserem-se no
universo literário como expressão dos mitos criados acerca da feminilidade e aportam
determinados arquétipos literários.
O crítico mexicano Lauro Zavala, em seu estudo denominado “El cuento
ultracorto: Hacia un nuevo canon literario”, após um aprofundamento no estudo dos
microcontos, textos literários de escrita menor que o convencional, propôs três
nomenclaturas plausíveis à tal classe narrativa: os “cuentos cortos”, que possuem de
1.000 a 2.000 palavras, os “cuentos muy cortos”, em que constam de 200 a 1.000
palavras e os “cuentos ultracortos”, de 1 a 200 palavras.
Para Zavala (2006, s.n.), o interesse pelos contos e microcontos tem ressurgido
nos últimos anos e “Las diferencias genéricas que existen entre cada uno de estos tipos
de cuentos dependen de la extensión respectiva”.
Para se ter uma idéia, a extensão do conto convencional oscila entre 2.000 e
30.000 palavras. Entretanto, Zavala sugere o reconhecimento de ao menos três tipos de
contos menores que o convencional, isto é, de extensão inferior a 2.000 palavras.
Por conseguinte, a forma de estruturação dos contos de extensão menor que o
convencional resulta num adensamento significativo da narrativa.
27

Os microcontos de nosso corpus se destacam por sua natureza narrativa


extremamente incisiva, breve e condensada. São textos que em linhas abreviadas
empreendem uma expedição instantânea a uma circunstância emblemática mítica e
universal, quer dizer, remetem a um tema específico e largamente aproveitado como
matéria literária. Como exemplo ilustrativo de nossa afirmativa, apontamos o conto de
número 4. “1542, Conlapayara: Las amazonas”, que versa sobre o mito das guerreiras
amazonas, tratado como objeto literário desde a Antiguidade Clássica e que
frequentemente é revisitado pela literatura.
Assim sendo, os contos de escrita sintética são formas narrativas que exigem
uma leitura mais perspicaz que outros tipos de texto, ou seja, são “una forma de
narrativa mucho más exigente para su lectura que la novela realista o el cuento de
extensión convencional” (ZAVALA, 2006). Isso porque dispõem de diversas estratégias
textuais que, tendentes à condensação, acabam por suprimir certos contextos
intratextuais e acabam por exigir um repertório de leitura anterior e extratextual para
serem apreciados ou até compreendidos, como pretendemos demonstrar.
Entretanto, para além da dificuldade de classificação e de análise advinda da
extensão dos contos de escrita menor que o convencional, Zavala (2006, s.n.) defende
que “Al ser el cuento breve un género proteico, es riesgoso reducir su diversidad a
normas estables”. As narrativas de escrita menor que o convencional utilizam-se de
diversas “estrategias de intertextualidad (hibridación genérica, silepsis, alusión,
citación y parodia)”, “claves de ambigüedad semántica (final sorpresivo o
enigmático)”, “formas de humor (intertextual) y de ironía (necesariamente inestable)”.
Desse modo, cientes da diversidade de questões tangíveis ao cerne dos contos de
escrita sintética que estamos estudando, embasados principalmente na teoria de Zavala
(2006), nos alçamos nesse momento a uma análise das características essenciais de
nosso corpus tendo em vista sua especificidade genérica. Isso por considerá-la de
fundamental importância como estruturas literárias que possuem peculiaridades próprias
e que, por fim, nos servirão como auxílio à hora de perscrutar a identificação dos
mitemas, mitos, imagens e arquétipos literários presentes nas narrativas, quer dizer, para
a aplicação do estudo de mitocrítica que realizamos.
28

4.1 Estudando o conto curto “Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar
a sus mujeres”

De acordo com a proposição de Zavala (2006), entre os três tipos de contos cuja
extensão é menor que a convencional, está situado o conto curto como o primeiro em
escala decrescente de tamanho, contabilizando de 1.000 a 2.000 palavras. Em nosso
corpus há apenas uma narrativa com esse perfil, a de número 3. “Historia del lagarto
que tenía la costumbre de cenar a sus mujeres”. Trata-se, assim, de um conto curto, que
possui 1.201 palavras, entretanto, é o mais longo dos que compõem nosso objeto de
estudo.
O conto curto “Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus
mujeres” é praticamente o único que segue, de certa forma, uma linearidade narrativa
com um encadeamento direto e causal dos acontecimentos, e assim, desenvolve um
breve contexto narrativo que auxilia o leitor na compreensão dos elementos míticos da
história. Os episódios se dão numa sequência concisa, porém mais estendida que nas
demais narrativas de nosso corpus.
Em acordo com Lauro Zavala (2006, s. n.), atentamos que “Un cuento corto
puede narrar un incidente o condensar una vida, o bien puede adoptar un tono lírico o
alegórico”, ademais, entre as possibilidades de desenvolvimento narrativo desse tipo de
texto literário, podemos incluir a “condensación de toda una vida, lograda gracias a la
capacidad de comprimirla en una imagen paradigmática” (HOWE, Irving apud
ZAVALA, 2006, s.n.).
Notamos que o conto curto em questão versa de modo condensado e incisivo
sobre a vida de uma personagem emblemática, ou melhor, duas. Primeiro, trata do
transcorrer de toda a vida de Dulcidio; é sobre ele, nomeadamente, a “Historia del
lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus mujeres”, ao passo que,
concomitantemente, se sobressai na narrativa uma personagem feminina que com
Dulcidio divide a centralidade no enredo. Ambas são personagens cerceadas por
imagens paradigmáticas. Ela é apresentada inicialmente como uma personagem
feminina, mas ao final do conto descobrimos que é, ademais, assim como Dulcidio, um
ser híbrido, metade mulher e metade lagarto.
Dulcidio é filho do dono de uma grande propriedade rural, Lucanamara, onde se
passa a ação da narrativa. Quando compreendemos, por referências extratextuais que
29

Lucanamarca ou Santiago de Lucanamarca ademais de ser um povoado de origens pré-


incáicas é também um distrito do Peru, localizado no departamento de Ayacucho e na
província de Huanca Sancos, sabemos, por um lado, da extensão territorial dos
domínios senhoriais do patriarca, mas, sobretudo, das possíveis implicações culturais e
míticas atreladas a um dado território peruano.
O texto, pois, narra um motivo caro à literatura universal: o temor de um senhor,
rei ou príncipe de um dado reino, de morrer sem herdeiros. A esposa é a encarregada de
suplicar a Deus por um filho, dado recolhido da tradição popular, em que tanto no
Oriente como no Ocidente, a mulher é tornada responsável pela esterilidade do casal.
Perante as insistentes súplicas dela, Deus envia um presente, ou antes, um castigo, o
nascimento de um herdeiro híbrido, cujas características físicas perpassam entre a
animalidade e a humanidade.
Logo na primeira vez que contrai matrimônio, Dulcidio devora sua esposa na
noite de núpcias. Sem receber nenhum manifesto de desaprovação da comunidade da
qual fazia parte, o herdeiro de Lucanamara repete incessantemente o procedimento de
casar-se para em seguida devorar a mulher na noite de núpcias.
Na procura incessante por novas candidatas a noivas, ou melhor, a futuras
vítimas, ressurge no local inicial da história, uma misteriosa personagem feminina que
mantém em seu colo um livro aberto. E assim, na narrativa averiguamos que se inclui
uma história dentro de outra história. Quer dizer, nas tão poucas linhas que compõem
esse conto curto, da narração da leitura de nossa personagem feminina sem nome
situada à beira do rio, passamos ao relato do nascimento e à vida de Dulcidio. É por
meio da personagem feminina emblemática que primeiro aparece na história, bem como
de seu livro de “leyendas”, que somos levados a saber da existência de um opulento
senhor de terras, que teve Dulcidio como único filho.
Entretanto, quando Dulcidio tem contato com a emblemática personagem
feminina de que fala o conto curto inicialmente, duas instâncias narrativas se enredam:
há uma superposição de duas histórias, a contida no livro que estava em posse da fêmea
misteriosa e a vivida por essa mesma personagem e Dulcidio. Quer dizer, há uma
interferência direta por parte da história contida no livro da personagem feminina sem
nome no desfecho da história principal.
30

A imagética da ambivalência entre Dulcidio e a mulher-lagarto começa a


transparecer com maior relevo a partir do momento em que Dulcidio arrisca uma
aproximação física: pede a tal mulher que coce suas costas. Ela estende a mão, acaricia
“la ferruginosa coraza” e emite um elogio “Es una seda”. No discurso da misteriosa
fêmea há traços de ironia, pois a couraça de um lagarto jamais poderia ser agradável ao
toque conforme foi expresso no galanteio.
Por sua vez, “Dulcidio estremece y cierra los ojos y abre la boca y alza la cola y
siente lo que nunca” (GALEANO, 1995, p. 11). Nesse momento da história, de súbito, a
personagem feminina misteriosamente desaparece. Dulcidio a procura por várias
semanas, sem obter sucesso em sua busca. Quando finalmente a encontra, um curto
processo se dá até que se casem. Nessa ocasião, contudo, é Dulcidio quem será
devorado, já que sem saber se unirá a uma criatura semelhante a ele, outro ser híbrido,
metade humano e metade animal. A revelação de que ela, até então retratada apenas
como uma mulher enigmática, é também uma mulher-lagarto que acabará devorando
Dulcidio na noite de núpcias se passa apenas no último parágrafo da narrativa e mostra-
se como um momento com marcados elementos de epifania, quer dizer, de impacto e de
revelação.
A dualidade exacerbada entre as personagens acaba culminando numa inversão.
Dulcidio passa de glutão incansável a um “pordiosero de amor” que termina devorado
na noite de núpcias pela única mulher por quem demonstrou ter se apaixonado. No
deslumbramento causado ao descobrirmos a identidade híbrida daquela que era pra ser
somente mais uma esposa tragada por Dulcidio – que por sua vez, mesmo apaixonado
afirma ter um destino cruel que o condena força à condição de eterno viúvo – temos
caracterizados expressivos recursos narratológicos próprios do gênero literário de que
estamos tratando. O final que teve o apaixonado Dulcidio, de noivo devorado modo
trágico, pactuando do mesmo destino de suas esposas, não deixa de estar provido de
algum requinte de ironia e de ser uma forma de humor, recursos típicos dos contos de
extensão menor que o convencional.
Conforme ocorre nos contos curtos em geral, averiguamos que nessa narrativa,
como “en estas obras maestras de la miniatura, la circunstancia eclipsa al personaje, el
destino se impone sobre la individualidad, y una situación extrema sirve como emblema
de lo universal (...) produciendo una fuerte impresión de estar fuera del tiempo”
31

(HOWE, Irving apud ZAVALA, 2006, s.n.). Com isso, salientamos a posição que
adquirem as circunstâncias narradas, de galgar maior destaque que as próprias
personagens. No entanto, queremos atentar que a narrativa, tanto em seu percurso
quanto no desfecho, não aporta de nenhuma maneira um maniqueísmo, mas justamente
a refutação desse. De modo contrário a Dulcidio, que exerce com lascividade e
crueldade desmedida a própria sexualidade, pode-se interpretar que a mulher-lagarto em
seu ato devorador age no intento de cessar a carnificina protagonizada por Dulcidio, ela
parece possuidora desse propósito, indiciado ao longo da narrativa e desvelado ao final.
Na narrativa de que tratamos, condensada de modo abrupto e intenso, a
circunstância do engolimento tem destaque, em detrimento do percurso das
personagens, afinal não esperamos que Dulcidio devore suas esposas e, muito menos
sem uma desaprovação da sua comunidade. Entretanto isso ocorre e quando já estamos
propensos a pensar que ele continuará realizando a manducação das noivas até que se
sacie, ele é devorado, numa situação extrema em que se opera uma inversão.
A ambiguidade do discurso, a ironia, o perfil dos protagonistas, também
ambíguos, misteriosos e híbridos; o livro que a personagem feminina lê, livro de lendas
que conta uma história sem princípio nem fim, assim como a convergência dos
elementos do conto para a epifania da última janta, para a deglutição redentora, são
elementos estruturais que nos conduzem para o mito que se constrói a partir de
elementos literários. Da natureza desse mito, dessas imagens, falaremos no momento
oportuno deste trabalho.

4.2 Estudando o conto muito curto “1542, Conlapayara: Las amazonas”

O conto muito curto é aquele segundo tipo de narrativa de extensão menor que o
convencional, em escala decrescente, que consta de 200 a 1.000 palavras, de acordo
com as proposições de Zavala (2006). Entre as narrativas que compõem nosso objeto de
estudo, apenas uma se enquadra na categoria de conto muito curto, a de número 4.
“1542, Conlapayara: Las amazonas”, que contém somente 307 palavras.
Através de uma abordagem muito condensada, essa narrativa aduz ao que se
considera o mais importante relato sobre as míticas guerreiras amazonas. O conto faz
referência quase imediata a um texto documental, aliás, o único de que se tem notícia,
32

no qual é descrito um embate direto entre as míticas amazonas e os soldados espanhóis


da expedição de Francisco de Orellana pelo rio Amazonas, relato escrito pelo padre
dominicano Gaspar de Carvajal, que inclusive teria perdido um olho no episódio
(MAGASICH-AIROLA; BEER, 2000, p. 170).
Notadamente a narrativa de Galeano é introduzida em condição de
intertextualidade com o relato de Carvajal a que nos referimos. Mas se em todo texto
requer-se a participação decisiva do leitor, no caso específico do texto muito curto,
como dizíamos, “siempre se requiere que el lector participe activamente para
completar la historia” (ZAVALA, 2006). Quer dizer, é possível apreender algum
sentido numa primeira leitura do conto, contudo, a narrativa faz muito mais sentido se
tivermos acesso às informações que circundam o relato, isto é, se soubermos da
existência do relato do padre Gaspar de Carvajal, se tivermos ciência de quem foi
Orellana, o que faziam ele e seus soldados na expedição pelo rio Amazonas, por volta
do ano de 1542, e em quais circunstâncias. Essas informações resultam fundamentais
para o entendimento da narrativa e ainda mais quando se trata de pesquisar este mito, o
mito das amazonas, em pelo menos uma de suas versões.
Inserida como uma das características basilares do gênero literário a que nos
dedicamos, além das intertextualidades de “1542, Conlapayara: Las amazonas”, que
acabamos de demonstrar, nesse conto muito curto, verificamos a presença de outras
técnicas narrativas estratégicas, tais como ambiguidade semântica, formas de humor
(intertextual) e de ironia, previstas nesse tipo de gênero literário por Zavala (2006, s.n.)
e que já se encontravam no conto anteriormente analisado.
O uso de tais recursos pode ser percebido em diversos momentos da narrativa,
seja na declaração de que “No tenía mala cara la batalla, hoy, día San Juan”, que aduz
ao ímpeto renovado dos soldados espanhóis pelo combate devido à data festiva cristã,
desconhecedores do fato de que fatidicamente perderiam a batalha; seja no emprego de
expressões metafóricas como “Pero peló los dientes la bruja”, que alude ao fracasso
antevisto da expedição de Orellana, ou até mesmo na maneira impregnada de uma
concisão extrema de humor (com nuances de sarcasmo) e de ironia, que ocorre no
último parágrafo da narrativa, quando após o embate com as guerreiras amazonas, os
soldados de Orellana, esgotados fisicamente, ademais de fracassados em seu esforço
belicoso, navegam à deriva, professando orações para que caso encontrem mais
33

inimigos no curso do rio Amazonas, que estes, mesmo que em número maior, ao menos
sejam homens.
Conforme apontamos, a linguagem é articulada e implantada com uma acuidade
especial nos contos muito curtos. Trata-se de uma narrativa que, como as demais de
nosso corpus, prima fundamentalmente pela escritura sintética e, de fato, “En todas las
formas del cuento muy corto se condensan las estrategias que hemos visto utilizadas en
el cuento corto” (ZAVALA, 2006, s.n.). Isto é, a ironia, o humor, as possíveis formas de
intertextualidade e os fragmentos ou expressões que possuem ambiguidade semântica.
Salientamos ainda que até o presente momento, o conto curto de número 3.
“Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus mujeres” e o conto muito
curto de número 4. “1542, Conlapayara: Las amazonas”, compõem as raras narrativas
de nosso corpus que pactuam de uma certa linearidade narrativa. A partir da ocasião em
que iniciaremos a análise dos contos ultracurtos, será mais difícil encontrar uma
caracterização sequencial nas narrativas, quer dizer, os relatos incidem geralmente numa
alinearidade dos fatos narrados, o que certamente influencia nossas perspectivas de
análise e possibilita uma abordagem aplicável de modo conjunto às narrativas
ultracurtas.

4.3 Estudando os contos ultracurtos

De acordo com as proposições de Zavala (2006, s.n.), estão inseridas na


categoria de contos ultracurtos as micronarrativas que contabilizam desde 1 até 200
palavras. De fato podemos assentir, em acordo com Zavala (2006, s.n.), que “Estos
textos constituyen el conjunto más complejos de materiales de la narrativa literaria”.
Isso porque são contos que compactuam de uma natureza narrativa extremamente breve,
e ao mesmo tempo, muito condensada.
As narrativas que compõem nosso objeto de estudo classificam-se
predominantemente como contos ultracurtos. São elas 1. “El miedo”, 2. “La
autoridad”, 5. “1711, Paramaribo: Ellas llevan la vida en el pelo”, 6. “1739, al este de
Jamaica: Nanny”, 7. “La Pachamama”, 8. “Maria Padilha”, e a menor de todas as
narrativas, a de número 9. “Ventana sobre una mujer”.
34

A priori, constatamos que as narrativas ultracurtas de nosso corpus incidem,


geralmente, em intertextualidade e no semantismo plural dos termos empregados no
texto. Conforme apurado por Zavala (2006, s.n.), “La fuerza de evocación que tienen los
minitextos está ligada a su naturaleza propiamente artística, apoyada a su vez en dos
elementos esenciales: la ambigüedad semántica y la intertextualidad literaria o
extraliteraria”, fato compartilhado com os contos anteriores. Entretanto, como as
narrativas ultracurtas devem suprimir aspectos contextuais para provocar uma densidade
máxima da história condensada no menor número de palavras possível, elas apelam com
maior ênfase para elementos extratextuais que o texto apenas evoca.
Como demonstrativo de uma intertextualidade literária e extraliterária
introduzimos o conto ultracurto de número 1. “El miedo”. Trata-se de uma narrativa
que promove a retomada do tema mítico da vagina dentada (DURAND, 1997, p. 104-
111, 488; LÉVI-STRAUSS, 1989, p.123). Trata-se de um tipo de motivo mítico
difundido tanto na Literatura quanto em outros segmentos artísticos, e, em especial, em
meio aos estudos antropológicos. O texto de Galeano, portanto, recolhe um tema mítico
que remete a uma intertextualidade que opera para mais adiante da literatura.
A narrativa põe em destaque os homens que fazem parte de uma nação indígena
pertencente à região do Chaco paraguaio, os nivakle, que creditavam ancestralmente a
posse de uma vagina dentada às mulheres. Desse modo, o conto ilustra metáforas que
são razoavelmente diretas e a articulação do texto é de certa forma explícita no que diz
respeito ao semantismo das palavras empregadas. Apresenta-se o desempenho
masculino na exibição de uma dança de recepção para um grupo de mulheres, na
presença das quais até então eles “no se atrevían a entrar”. Na realização da dança, os
movimentos dos homens da nação nivakle metaforicamente se assemelham à
volatilidade da fumaça ou o vôo dos pássaros, ou seja, a dança atinge um grau de
expressão corporal de nível sublime. Quanto a articulação do texto, o semantismo das
palavras é direto e explícito, sem delongas introduz-se o elemento mítico ao se relatar
que as mulheres do conto possuíam dentes entre as pernas.
Configura-se de modo análogo, quanto a esses dois quesitos de intertextualidade
e estruturação semântica do texto, o conto “La autoridad”. Através de uma narrativa
que prima pela brevidade extrema, é colocado em relevo o tema mítico da existência de
uma sociedade centrada na mulher, ou na qual, pelo menos, essa protagonizasse um
35

papel de destaque e fosse possuidora de autonomia, cabendo aos homens um papel


secundário, o que incluiria o cuidado com a prole e com a manutenção do espaço
doméstico.
Na narrativa adentram em cena os habitantes ona e yaganes, que sabemos
formar parte das nações indígenas ancestrais da Terra do Fogo. Ancestralmente, os onas
eram nômades e os yaganes um povo litorâneo, indígenas pertencentes às culturas
estabelecidas ao extremo sul do Continente Latino-Americano. Sua subsistência,
derivada da relação com a caça e a pesca, é um aspecto pontuado no conto.
Desse modo, também direto, apresenta-se uma sociedade em que os papéis de
gênero seriam invertidos com relação a uma estrutura de ordem patriarcal. Por meio da
alusão ou mesmo da paródia que contrasta o conto com a organização de nossas
sociedades modernas (patriarcais), a narrativa aduz ao mito da existência de uma forma
de organização social denominada matrilinearidade ou matriarcado (EISLER, 1989,
1996; SILVA, 2007).
O conto ultracurto em questão também pode ser considerado possuidor de
intertextualidade literária e extraliterária. No primeiro caso porque trata de um tema
mítico largamente presente no universo da ficção literária, e, no segundo caso, de
intertextualidade extraliterária, porque trata de um tema que é tônica em outros meios de
expressão artística, assim como no âmbito dos estudos antropológicos, sociológicos, etc.
Entre outros recursos literários que podemos encontrar na narrativa em questão,
opera-se a inversão de papéis. Em certa medida, como ocorre no conto curto titulado
“Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus mujeres”, há um conflito
entre um par de opostos, que acaba culminando com a eliminação de uma das partes.
Em “La autoridad”, em virtude de um dualismo exacerbado, quer dizer, do
antagonismo extremo entre os pares que figuram como opostos, homens e mulheres,
ocorre um conflito que promove o extermínio de todas as mulheres, exceto das meninas.
Os homens se debelam contra o abuso de poder das mulheres e instituem uma nova
ordem, inversa da anterior. Assim, os homens passam a assumir outros papéis sociais e
sobrepujam àquelas que futuramente formariam as gerações de mulheres, inaugurando e
impondo o servilismo feminino na sociedade em que viviam, instaurando,
nomeadamente, o patriarcado. Desse modo, constata-se que ocorre uma inversão de
papéis na narrativa.
36

Por sua vez, no conto ultracurto “1711, Paramaribo: Ellas llevan la vida en el
pelo”, é explorada com maestria a economia da linguagem e o arranjo dos termos
dentro do texto, formando uma espécie de encadeamento de palavras. Com uma
brevidade extrema, em apenas dois parágrafos sucintos, a narrativa infere sobre o longo
período de dominação colonial holandesa na costa do Suriname, os castigos e a fuga dos
escravizados que lá eram mantidos. Como referente narrativo de cunho mítico, está a
expressão do poder fecundador feminino, pois as escravizadas levavam consigo, de
modo oculto, diversas sementes incrustadas nos cabelos à hora da fuga, com a
finalidade de posteriormente fecundar a nova terra que pretendiam habitar.
Podemos notar, inclusive, que há nesse conto ultracurto um nível elevado de
preocupação com a linguagem, que se destaca por ser extremamente lírica e
mitopoética. Ademais, a narrativa dialoga explicitamente com os inúmeros relatos sobre
Pachamama, a Mãe Terra e o poder gerador da mulher. Em relação a este último
aspecto, há uma espécie de inversão na narrativa ultracurta de que tratamos, pois
sabemos que o elemento fecundador geralmente é masculino, enquanto o elemento
gerador é feminino; contudo, no conto a fecundação da terra parte das mulheres,
ambivalência que ressalta uma inversão e à ambiguidade. A narrativa aduz ao mito da
Grande Deusa e das Deusas da Agricultura da tradição Greco-latina.
Por sua vez, a narrativa “1739, al este de Jamaica: Nanny”, se relaciona com a
anterior por também tratar da luta pela libertação do mesmo segmento de escravizados
fugitivos, os cimarrones, desta vez na Jamaica. Paralelamente, em ambos os contos a
mulher possui um protagonismo que desdiz o esquecimento e o silêncio sobre a mulher
no discurso histórico convencional.
A narrativa começa com uma tentativa de negociação de paz dos ingleses com os
fugitivos. Quao, o chefe dos cimarrones acaba por aceitar as condições propostas pelos
ingleses, porém, Quao é um chefe simbólico, pois de fato, “en los precipicios del
oriente, más poder que Quao tiene Nanny” (GALEANO, 1995, p. 32). Assim aparece
na narrativa Nanny, uma figura mítica de mais destaque que Quao, por representar o
estandarte da luta pela liberdade dos escravizados cimarrones.
A imagem de Nanny orienta a ação beligerante dos grupos de fugitivos
dispersos, ela é uma figura mítica a que obedecem, inclusive, os elementos da natureza,
tais como os esquadrões de moscas e os copos de algodão. Há quem diga que está
37

morta, enquanto outros afirmam que a veem nos campos de batalha. Nela se condensa a
imagem mítica de guerreira e imortal ligada aos animais e à vegetação.
A narrativa sobre Nanny, personagem mítica latino-americana, condensa
imagens poéticas que se estruturam através de “claves de ambigüedad semántica (final
sorpresivo o enigmático)” (ZAVALA, 2006, s.n.), quer dizer, em torno dela situa-se a
captura e/ou a devolução das balas atiradas pelo inimigo – por meio das próprias
nádegas – além da ocasional conversão, também inusitada, dos projéteis em copos de
algodão, uma espécie de vegetação comum na flora central e sul-americana. Nanny vista
como a amante dos deuses, cobre o próprio corpo com nada além de um colar de dentes
dos soldados ingleses. Calcada em lirismo, a orla de mistério que envolve a personagem
Nanny, bem como os elementos enigmáticos que a circundam, são características de
presença marcante e que confluem, como recursos expressivos admitidos no tipo de
gênero literário com o qual estamos trabalhando, para a re-construção literária de um
mito preexistente.
A referência de uma entidade feminina mítica transposta para o texto literário
como personagem que protagoniza e que dá a tônica para ação da narrativa verifica-se,
também, em “La Pachamama”. Conforme anunciado no título desse conto ultracurto, é
a vez de Pachamama, ou simplesmente mama, ser apreciada literariamente.
Inserida como uma das divindades ancestrais femininas mais potentes na cultura
hispano-americana, Pachamama, é mais uma das personagens emblemáticas de que
trataremos.
A narrativa em questão explora a polivalência, ou melhor, as multifaces da
divindade conhecida como Pachamama. A personagem condensa em si os aspectos, em
certa medida antitéticos para nossa sociedade ocidental e judaico-cristã, porém aspectos
naturalizados na personagem, a saber, a condição de ser mama (mãe) e também Virgem.
Além disso, Pachamama, concomitantemente, é a personificação dos ciclos da Terra e
do tempo. Trataremos com maior afinco de tais características dialéticas de “La
Pachamama” adiante, ao realizarmos o estudo das imagens e dos arquétipos de nosso
corpus.
No presente momento, nos interessa pôr em relevo o semantismo dos termos
incrustados na narrativa ultracurta. Podemos considerar a estruturação desse conto
ultracurto como agudamente coesa e possuidora de uma carga semântica dilatada de
38

significação. A exploração do campo semântico é extremamente expressiva, pois, como


vimos, “la madre tierra, Pachamama” que é mãe e Virgem, ao mesmo tempo, é
também a Terra e o tempo.
A narrativa remete ao mito de Pachamama, literariamente reconstruído em seus
aspectos principais. O conto ultracurto é carregado de metáforas e alusões típicas desse
gênero literário. São construídas com extremo lirismo distintas metáforas acerca de
como Pachamama rege a vida e a morte dos seres humanos; há uma série de obrigações
a serem cumpridas como requisitos para que o recém-nascido viva; para que os casais
continuem apaixonados, ou até mesmo para não desagradar Pachamama.
O último parágrafo ilustra e condensa todas as relações de troca entre essa mãe
Terra e os filhos, acolhidos por ela à hora da morte e em seguida transmutados em
flores.
Dessa forma, podemos destacar que há uma condensação de elementos
estruturais que aduzem ao mito de Pachamama, reconstruído literariamente, conforme
apontamos. Utiliza-se para isso de recursos próprios dos contos ultracurtos, em
concordância com Zavala (2006), tais como metáforas, palavras que guardam um
semantismo significativo na construção do relato, um final surpreendente ou
enigmático, além, obviamente, da brevidade extrema.
De modo semelhante, a narrativa ultracurta “Maria Padilha” faz referência à
uma personagem feminina emblemática e suas facetas, abordadas de modo literário. A
personagem que protagoniza esse conto, nomeadamente, Maria Padilha, tem suas raízes
históricas em séculos passados.
De acordo com Marlyse Meyer (1993), resulta em uma tarefa extremamente
periculosa o intento de construir as passagens, isto é, reencontrar os elos perdidos entre
Doña Maria de Padilla, amante de um rei de Castela, à Maria Padilha, Pomba-Gira de
Umbanda. Restam escassas reminiscências históricas da mulher que teve diversas vezes
papel decisivo nos rumos políticos do império espanhol, por sua influência junto a D.
Pedro I, rei de Castela, de quem foi amante. Integrada à memória popular, na época do
Brasil Colonial, passou a ter o nome invocado em sortilégios de amor; séculos adiante,
sob a alcunha de Maria Padilha, atualmente integra a falange dos Exus da Umbanda.
Nesta narrativa também ocorre o que podemos chamar de hibridação
extraliterária. Novamente, a compreensão da narrativa depende, em certa medida, do
39

repertório de leitura de quem recepta o texto. É necessário ter ao menos uma idéia de
como funciona a religiosidade de matriz africana da qual a personagem faz parte para
compreender os elementos fundamentais que a circundam no conto. A noção quem foi a
histórica Doña Maria de Padilla e dos meandros que a tornaram Maria Padilha da
Umbanda acrescentam e corroboram muito positivamente na apreciação do conto.
A linguagem poética que permeia essa narrativa ultracurta é concisa e também
amplamente provida de um semantismo plural, além de contar com recursos linguísticos
tais como a metáfora e a antítese, ou até mesmo a alusão.
Entre tais aspectos podemos ilustrar o fragmento que faz referência a Maria
Padilha como aquela que “Brilla más que todos los soles la basura de la noche”
(GALEANO, 1995, p. 45). Através de uma linguagem poética e carregada de
semantismo, somos remetidos à metáfora da concessão de um brilho semelhante ao do
sol, atribuído às mulheres prostituídas, num momento em que acabam alcançando um
estado de semiredenção, sendo dignificadas assim que incorporam a divindade Maria
Padilha; compõe-se desse modo a imagem paradoxal do ladeamento de Maria Padilha à
podridão e à escuridão da noite que estaria supostamente incrustado nos corpos das
prostitutas do Rio de Janeiro, no Brasil, em contraste com o brilho do sol atribuído as
mesmas como resultado advindo do contato com a personagem mítica central da
narrativa.
Como exposto até aqui, é uma das especificidades marcantes das narrativas que
compõem nosso corpus a exploração de uma potencial brevidade e condensação
concomitantes. Nesse sentido, situado no extremo da concisão e do adensamento está o
conto ultracurto de número 9. “Ventana sobre una mujer”. Trata-se da menor de todas
as narrativas de nosso corpus, em que constam apenas 62 palavras. Entretanto, é um dos
mais ricos relatos sobre a feminilidade na perspectiva da mitocrítica, se não o mais
interessante, pois permite encadear a totalidade das narrativas anteriormente
mencionadas.
Por hora, em referência ao gênero literário de “Ventana sobre una mujer”,
destacamos na narrativa a densidade que cada termo concentra em seu nível semântico,
a presença de metáforas, alusões e estratégias de humor e de ironia, necessariamente
instáveis (ZAVALA, 2006, s. n.).
40

A narrativa em questão prima pelo arranjo das orações que a compõem, que
possuem uma gradação e culminam ao final do conto, de certo modo em uma forma
estratégica de humor e de ironia. Temos logo no início da narrativa a metáfora da
mulher como uma casa secreta, uma espécie de receptáculo. Em seguida, se informa
poeticamente que essa mulher possui em seus cantos (“rincones”) vozes e fantasmas
escondidos, configurando-se assim uma alusão aos ditos segredos e mistérios femininos.
É explorada uma faceta de “esa mujer”, uma mulher determinada e não nomeada, e, ao
mesmo tempo a Mulher, no sentido universal do termo, como podemos inferir
considerando os pronomes utilizados para fazer referência a ela do princípio ao fim do
conto.
Outro aspecto a ser destacado no relato literário é a presença de certa dose de
humor, mas dessa vez um humor equipado de nuances de ironia, que transparece ao
final da narrativa, quando o narrador, ciente dos perigos que circundam aqueles que se
aproximam da “mulher-casa fantasma”, bate à porta e espera ingressar. Podemos
inclusive, perceber fatalmente a junção das imagens polissêmicas do medo masculino da
mulher, uma mulher que é provida de segredos e circundada por mistérios que
amedrontam, assustam ou provocam ou tensão, caracteres outrora perceptíveis também
no medo da vagina dentada, da autoridade feminina ou nas amazonas.
Essa análise preliminar sobre o gênero literário que estrutura os nove contos de
escrita menor que o convencional que compõe nosso corpus visa destacar os artifícios
literários mais proeminentes das narrativas com o intuito de promover uma prévia
tessitura dos elementos fundamentais que permeiam tais contos. Dessa forma,
destacamos os aspectos principais de nosso objeto de estudo e facilitamos a aplicação da
análise mitocrítica a ser apresentada adiante.

4.4 Considerações parciais sobre as perspectivas do gênero literário

Os microcontos selecionados para compor nosso corpus são cerceados pela


temática da feminilidade, que norteia a estruturação das narrativas. Além disso, tem
destaque a forma como tais relatos literários estão configurados, pois primam em sua
constituição por uma brevidade extrema aliada a um adensamento narrativo, somado,
ainda, ao lirismo e à linguagem mitopoética.
41

Cientes da relevância desse fator de junção entre condensação e concisão


narrativa, pusemos em evidência os recursos literários de maior destaque presentes nos
contos de escritura sintética de nosso corpus.
Seguimos o modelo proposto por Zavala para o estudo dos contos de extensão
menor que o convencional, perscrutando suas distintas instâncias. Partimos da aplicação
da nomenclatura em acordo com a extensão das narrativas, classificando em “cuentos
cortos” as narrativas que constam de 1.000 a 2.000 palavras, denominado “cuentos muy
cortos” os que possuem de 200 a 1.000 palavras e “cuentos ultracortos” aqueles que
apresentam de 1 a 200 palavras.
Em seguida enveredarmos pelos recursos literários próprios desse gênero
literário, tratando de colocar em evidência as diversas estratégias que estão providas as
narrativas. Conforme destacamos outrora através das palavras de Lauro Zavala (2006),
o gênero literário de que tratamos é possuidor de um caráter protéico que pode se
apresentar sob duas modalidades, a hibridação na narrativa com outros gêneros literários
e extraliterários ou a hibridação com gêneros arcaicos.
Buscamos demonstrar que à medida que a presença dos elementos estruturais
indicados se intensifica a leitura das narrativas se torna mais exigente que a realizada
num conto de extensão convencional. Destacamos que, geralmente, nessas narrativas de
escrita sintética há mudanças circunstanciais no enredo das narrativas que se introduzem
de maneira abrupta.
Finalmente, exploramos os possíveis extratos literários munidos de ambiguidade
semântica, sobre os quais fluirá uma melhor apreciação quando for feita uma
abordagem da perspectiva da análise mitocrítica.
Desse modo, considerando a instabilidade formal e o auge relativamente recente
dos contos de escrita sintética de que tratamos, o que os torna ainda pouco estudados,
nossa análise esteve fortemente atrelada, fundamentalmente, às proposições teóricas do
crítico mexicano Lauro Zavala, que propõe, no mais das vezes, a averiguação das
estratégias de intertextualidade, da presença de ambiguidade semântica e das formas de
humor e de ironia das narrativas. Calcada na expressividade dos artifícios literários
presentes no corpus, a análise do gênero literário, contudo, é considerada por nós de
grande valor, tendo em vista que irá nos amparar na aplicação da análise mitocrítica e
corrobora com o intento de atingirmos nosso objetivo no presente estudo.
42

5. Análise mitocrítica de Mujeres

A aplicação da mitocrítica ao texto literário tem como ponto inicial o estudo das
imagens poéticas. Por meio da observância das imagens que estão enredadas nas
narrativas de nosso corpus, imagens cujo dinamismo interno possui um estreito
parentesco com o mito, podemos constatar a existência de mitos, por vezes em estado
latente ou em forma de reminiscências nas narrativas.
Inseridas nos microcontos, tais imagens estão carregadas de simbolismos que
circundam a feminilidade e, sobretudo, veiculam em seu âmago os arquétipos
universais. “As narrativas míticas, por sua vez, veiculam imagens simbólicas, calcadas
em arquétipos universais, que reaparecem, periodicamente, nas criações artísticas
individuais, entre elas, a literária” (TURCHI, 2003, p. 39). Os relatos que compõem
nosso objeto de estudo estão alicerçados em narrativas míticas reveladoras de múltiplas
facetas femininas, por meio de uma gama de imagens simbólicas explicitamente
arquetípicas.
Gilbert Durand (1997) optou por considerar a totalidade das motivações
simbólicas, quer dizer, delimitou em grandes eixos os trajetos antropológicos que os
símbolos constituem, recorrendo a um método de convergência inclinado a evidenciar
as constelações de imagens constantes e que aparentam ser estruturadas por certo
isomorfismo dos símbolos convergentes (TURCHI, 2003, p. 26). As constelações de
imagens, como podemos observar, são um ponto de partida (DURAND, 1993; 1997;
TURCHI, 2003). Tomadas como elementos providos de polivalência interpretativa, as
constelações de imagens são úteis no tracejo de uma intersecção ao redor de núcleos
organizadores, os arquétipos universais. Tais imagens são organizadas por Durand
(1997) na bipartição entre o Regime Noturno e o Regime Diurno. Sendo que esse
último, por sua vez, se subdivide nas Dominantes Digestiva e Cíclica.
Nesta perspectiva, ao analisarmos nosso corpus, que em sua totalidade pertence,
na acepção de Durand (1997), ao Regime Noturno, inferimos que as micronarrativas 1.
“El miedo”, 2. “La autoridad”, 3. “Historia del lagarto que tenía la costumbre de
cenar a sus mujeres”, 4. “1542, Conlapayara: Las amazonas”, 8. “Maria Padilha”, e
9. “Ventana sobre una mujer” se circunscrevem na Dominante Digestiva, ao passo que
as micronarrativas 5. “1711, Paramaribo: Ellas llevan la vida en el pelo”, 6. “1739, al
43

este de Jamaica: Nanny” e 7. “La Pachamama”, podem ser classificadas como


pertencentes à Dominante Cíclica.
Demonstraremos adiante como chegamos a essa inferência, ao perscrutar o
conjunto dos relatos literários. E ainda, detalharemos cada um dos aspectos pertencentes
às Dominantes Cíclica e Digestiva presentes em nosso corpus no decorrer de nossa
análise mitocrítica.
Nossas reflexões, que levam em conta a existência de uma estreita ligação entre
mito e literatura, estão fundamentadas na metodologia das estruturas antropológicas do
imaginário e na mitocrítica, teorias por meio das quais que buscamos destacar, nas
respectivas narrativas míticas, as imagens simbólicas nelas veiculadas, que são calcadas
em arquétipos universais sobre a feminilidade.
Conforme já assinalamos, os arquétipos são estruturas que constituem a conexão
entre o imaginário e os processos racionais, ou seja, são imagens primordiais localizadas
no inconsciente coletivo que podemos considerar como generalizações dinâmicas e
afetivas da imagem. Por meio dos relatos literários de Mujeres que são nosso objeto de
estudo, buscamos estudar a natureza das imagens e a simbologia contida nas narrativas,
para em seguida investigar os arquétipos presentes, que tratam explicitamente da mulher
e de aspectos referentes à feminilidade.

5.1 Interpretando o texto: narrativas da Dominante Cíclica

As narrativas de escrita menor que o convencional que compõem nosso objeto


de estudo, invariavelmente, expressam aspectos fundamentais pertencentes ou
atribuídos à feminilidade na categoria do imaginário mítico, quer dizer, são narrativas
em que a feminilidade está vinculada ao discurso mítico, que é permeado pelos
arquétipos universais; portanto, aduzem a uma feminilidade arcaica.
Na aplicação de nossa análise, cujo embasamento encontra-se na perspectiva
teórica criada por Gilbert Durand (1993, 1997), estão inseridas na Dominante Cíclica do
Regime Noturno da Imagem as narrativas de escrita sintética 5. “1711, Paramaribo:
Ellas llevan la vida en el pelo”, 6. “1739, al este de Jamaica: Nanny” e 7. “La
Pachamama”. Pactuando da característica configuração da Dominante Cíclica, tais
narrativas congregam as técnicas do ciclo, do calendário agrícola, os símbolos naturais
44

ou artificiais do retorno, os mitos e os dramas astrobiológicos, conforme


demonstraremos detalhadamente.

5.1.1 “1711, Paramaribo: Ellas llevan la vida en el pelo”

A narrativa ultracurta “1711, Paramaribo: Ellas llevan la vida en el pelo”


remete, em princípio, à saga do segmento de escravizados denominados cimarrones, os
castigos que eles recebiam e as fugas realizadas na costa do Suriname. É a esse período
da história que remete a data do título do conto ultracurto. Em suma, os escravizados
catalogados como cimarrones eram “aquellos que huyeron individual o colectivamente
refugiándose en los montes donde hicieron algún tipo de vida por un periodo de tiempo
indeterminado, existieron en las décadas anteriores a 1850” (NISTAL-MORET, 1984,
p. 13). Trata-se, pois, de indivíduos que utilizaram racionalmente a natureza e a
configuração topográfica, servindo-se de ambos como aliados e subordinados ao
propósito da fuga, quer dizer, usaram o mundo natural que os rodeava no intuito de
escapar da escravidão a que foram submetidos (NISTAL-MORET, 1984, p. 5).
Percebemos que a abordagem literária dessa narrativa ultracurta mantém
preservada a densidade do assunto, aliada ainda a configuração extremamente breve do
relato:

Por mucho negro que crucifiquen o cuelguen de un gancho de hierro


atravesado en las costillas, son incesantes las fugas desde las 400
plantaciones de la costa de Surinam. Selva adentro, un león negro
flamea en la bandera amarilla de los cimarrones (GALEANO, 1995,
p. 31).

Contextualizado abruta e brevemente esse importante componente do enredo – a


escravização dos cimarrones – em seguida, passa a ser explorada a temática que ocupa a
centralidade da narrativa ultracurta em questão, transparecendo a linha de representação
lírica e mitopoética no tratamento literário dado à relação entre a mulher e a terra:

Antes de escapar, las esclavas roban granos de arroz y de maíz,


pepitas e trigo, frijoles y semillas de calabazas. Sus enormes
cabelleras hacen de graneros. Cuando llegan a los refugios abiertos
en la jungla, las mujeres sacuden sus cabezas y fecundan, así, la
tierra libre (GALEANO, 1995, p. 31).
45

Dessa forma, salienta-se literariamente um estreito vínculo entre a feminilidade e


a fecundação da terra. São as mulheres que se preocupam com a fertilização da
localidade para onde pretendem dirigir-se em fuga, levando consigo, então, toda a
quantia de sementes que conseguem, escondidas nos próprios cabelos. Preocupam-se,
sobretudo, com as sementes das plantas que servem de alimento, como as sementes de
arroz, milho e trigo, entre outras.
De acordo com Gilbert Durand (1997, p. 260) “O simbolismo alimentar é
nitidamente contaminado pelas imagens cósmicas e cíclicas de origem agrária”
específicas da Dominante Cíclica do Regime Noturno. Quer dizer, existe uma
correlação passível de ser estabelecida entre o simbolismo alimentar e as imagens
cósmicas e cíclicas de origem agrária.
Na narrativa de que tratamos, o título passa então a ter uma função de maior
destaque, visto que há uma compreensão, finalmente, sobre a quem o título da narrativa
faz referência: às mulheres escravizadas fugitivas, e ainda, o modo como “Ellas llevan
la vida en el pelo”. Isto é, fazendo os próprios cabelos de depósito para as sementes,
tais mulheres fomentam o ato criativo e exuberante da vida, pois se incumbem de
engendrar as sementes na terra e garantir a fecundidade dessa e, por conseguinte, o
alimento da população local de refugiados.
Diante do exposto, na observância dos fundamentos da narrativa, entendemos
que há uma marcante presença das imagens da fecundidade da terra vinculada à
intervenção feminina, ou seja, gravitam na narrativa ultracurta as imagens de um elo
estabelecido entre a mulher e a terra, sob o engajamento da fecundidade.
Nesse destaque para a capacidade fecundadora feminina na relação estabelecida
com a agricultura, é latente a presença do mitema do vínculo feminino com a nutrição,
aspecto especialmente materno, no âmbito do imaginário. São essas as estruturas
fundamentais que constrói o texto literário a que nos dedicamos.

5.1.2 “1739, al este de Jamaica: Nanny”

Inserida como uma das narrativas de nosso corpus pertencente à Dominante


Cíclica do Regime Noturno da Imagem, está presente “1739, al este de Jamaica:
Nanny”. Trata-se de uma narrativa ultracurta em que se verifica a tônica do
46

estreitamento mítico nas relações entre a mulher e os elementos da natureza,


paralelamente aos motivos de uma beligerância essencialmente feminina.
Uma vez mais, um texto literário que estudamos faz referência aos cimarrones,
personagens sobre as quais discorremos anteriormente. Dessa vez os cimarrones
aparecem como escravizados fugitivos da Jamaica. Inclusive, estão sob o comando
simbólico de Quao, possivelmente às vésperas de um acordo de paz com os
colonizadores ingleses, conforme é indicado na narrativa:

Los ingleses pactan la paz con los esclavos fugitivos de Jamaica.


Quao, jefe de los cimarrones de Barlovento, acepta las condiciones
luciendo espadín y sombrero plateado.

Pero en los precipicios del oriente, más poder que Quao tiene Nanny.
Las bandas dispersas de Barlovento obedecen a Nanny, como la
obedecen los escuadrones de mosquitos. Nanny, gran hembra de
barrio encendido, amante de los dioses, viste no más que un collar de
dientes de soldados ingleses (GALEANO, 1995, p. 32).

O caráter simbólico do comando de Quao é evidenciado quando é apresentada


àquela que se contrapõe à autoridade dele, Nanny. Desse ponto em diante, a narrativa
mítica em questão associa Nanny às imagens simbólicas naturais ou artificiais do
retorno, às técnicas do calendário agrícola e consequentemente, do ciclo, quer dizer, ao
mito do eterno retorno.
Nanny é o estandarte da luta pela liberdade dos escravizados. Na personagem
predominam os motivos de uma beligerância feminina e telúrica, ligada à terra e à
natureza. As moscas estão sob seu comando, os elementos da natureza são regidos por
ela: quando ela se lança, desnuda, frente ao tiroteio, atrai os projéteis a “su culo
magnífico”, os multiplica e remete de volta contra o atirador, ou transmuta as balas em
copos de algodão. Desse modo, ela transforma a violência, também simbólica, de
pesado chumbo em vida vegetal muito leve, algodão.
A simbologia do eterno retorno é salientada com a afirmação mitopoética de que
“Nadie la ve, todos la ven” (GALEANO, 1995, p. 32), pois mesmo que porventura uns
afirmem sua morte, outros afiançam que ela aparece e atua nos campos de batalha.
Desta feita, temporalidades e eventos se entrecruzam, sem maiores problemas, pois
funcionam de modo diverso do tempo cronológico. Isso porque a concepção de tempo
do eterno retorno tem a especificidade de relacionar-se com o tempo do mito, um tempo
47

anterior às cronologias registradas e que não atua de forma linear, mas elíptica. Nessa
visão temporal, designada também illo tempore, uma ação que se desenvolvera em um
momento e espaço são passíveis de repetição, posto que se desenvolveram num tempo
elíptico, quer dizer, que se repete e que pode ser regenerado, um tempo de eterno
retorno (ELIADE, 1981, 1992). Retornaremos, mais adiante, à questão da
temporalidade que permeia nosso corpus.
Por hora, incluímos a ponderação de que nesse ínterim, o mitema que
averiguamos presente em estado de latência na narrativa de que tratamos é o da
feminilidade lúgubre, que permuta os espaços da beligerância em paralelo ao comando
dos elementos naturais. Nanny é retratada sempre desnuda, uma grande figura mítica de
barro que carrega em seu pescoço apenas um artefato como “enfeite”, um colar de
dentes dos inimigos ingleses, objeto que remete à sua força guerreira e simboliza seu
poder, ora manso (concedido a seus protegidos, os cimarrones), ora cruel (franqueado
aos inimigos).

5.1.3 “La Pachamama”

Numa linha de representação explicitamente mitopoética, está situada a narrativa


ultracurta “La Pachamama”. Trata-se de um conto que versa nomeadamente, sobre a
figura mítica da Pachamama. “En el altiplano andino, mama es la Virgen y mama son la
Tierra y el tiempo” (GALEANO, 1995, p. 37).
Divindade dos Andes, mama é, pois, a Virgem, é a Terra e o tempo.
Transformada em personagem de ficção, apresenta-se assim a caracterização da
entidade mítica Pachamama que condensa em torno de si, concomitantemente, o que
Durand (1997) classificaria como as imagens das técnicas do ciclo, do calendário
agrícola e os símbolos do retorno.
O delineamento da narrativa põe em destaque a relação intrínseca entre
Pachamama, ou mama, e a função maternal telúrica, que dá e toma a vida, e que
também rege os ciclos da fecundação e da regeneração do tempo. Desse modo, “A
‘mãe’ expressa o elemento do inconsciente eterno e imortal” (MIELIETINSKI, 2002, p.
21). Tais aspectos acerca de Pachamama transparecem na narrativa na medida em que:
48

A ella se ofrece la placenta del recién nacido, enterrándola entre las


flores para que viva el niño; y para que viva el amor, los amantes
entierran cabellos anudados.

La diosa tierra recoge en sus brazos a los cansados y a los rotos, que
de ella han brotado, y se abre para darles refugio al fin del viaje.
Desde abajo de la tierra, los muertos la florecen (GALEANO, 1995, p.
37).

No conto ultracurto em pauta, as multifaces de Pachamama como personagem


literária também abarcam, como podemos perceber, referências à simbologia do eterno
retorno. Para Durand (1997, p. 302) “O tema da morte e da ressurreição é acrescentado
para indicar a instabilidade do presente que morre e renasce perpetuamente”. Conforme
apontamos na narrativa, os seres humanos, desde o nascimento, durante a vida e após a
morte são regidos por Pachamama, estão invariavelmente sob sua proteção e também
sob sua autoridade.
No conto, é dela que provêem a vida e também a morte. Contudo, os mortos, que
nela são depositados, passam a relacionar-se com a regeneração, pois “los muertos la
florecen”; quer dizer, os vivos e os mortos formam parte de um ciclo vital centrado em
Pachamama, ou apenas mama, havendo uma interconexão entre os seres humanos e a
própria terra, que se alimenta dessa ordem cósmica no ato de geração e regeneração da
vida.

Son muchas las creencias, mitos y rituales referentes a la tierra, a sus


divinidades y a la ‘gran madre’ que han llegado hasta nosotros. La
tierra, que en cierto sentido constituye los cimientos mismos del
cosmos, tiene muchas valencias religiosas. Ha sido adorada por ‘ser’,
por mostrar y mostrarse a sí misma, por devolver, por dar fruto, por
recibir. Estudiando la historia de una sola religión, quizá fuera
posible circunscribir con bastante precisión la función y el desarrollo
de las creencias referentes a las epifanías telúricas (ELIADE, 1981,
p. 250 – 251).

Desse modo, a ordem cósmica estabelecida é sustentada pela manutenção dessa


conexão entre os seres humanos e a Pachamama, a terra feminizada e maternal. A
intensidade narrativa permuta o relato, em meio a uma extrema condensação de
elementos essenciais ao mito cosmogônico de Pachamama, que por sua vez ganham um
entorno estético e artístico através da abordagem literária articulada por Eduardo
Galeano.
49

Ademais da simbologia do eterno retorno, entre os elementos essenciais a que


nos referimos tem relevo na narrativa o vínculo de Pachamama com as estruturas
agrícolas, na medida em que “Se enoja la tierra, la Pachamama, si alguien bebe sin
convidarla. Cuando ella tiene sed, rompe la vasija y las derrama” (GALEANO, 1995,
p. 37).
O “beber sem convidar” à Pachamama salienta a necessidade de oferecer
libações como uma espécie de oferendas de consagração que visam honrar ou prover a
fertilidade do solo, ou ainda, inserir uma manutenção a essa fertilidade da terra
(ELIADE, 1992). Assim, temos a saliência, visivelmente mitopoética, da perspectiva
calendárica e agrícola mencionada por Durand (1997), pois há um caráter de união
intrínseca entre a personagem Pachamama e o cultivo do solo e seus ciclos sazonais.
Desse modo, são estabelecidas, literariamente, relações basilares que permeiam
a figura mítica apelidada mama; estão aí colocados o relevo da ciclicidade do tempo e o
sistema de regeneração periódica da vida, ladeado pelo aspecto agrícola. Por fim, todas
essas perspectivas se conectam, na medida em que dizem respeito à contribuição de
Pachamama em promover a fertilidade do solo, à prodigiosa explosão das forças de
criação telúricas, ao mesmo tempo em que requer o domínio sobre o ciclo de vida dos
seres humanos. Ou seja, a narrativa consegue condensar a essência do mito de
Pachamama, a interface cosmogônica e de regeneração periódica da vida.
Assim sendo, a narrativa constrói as imagens da fertilidade, da regeneração da
vida e da ciclicidade do tempo, que apontam para o mitema da maternidade telúrica de
onde provêem a vida e a morte.

5.2 Interpretando o texto: narrativas da Dominante Digestiva

As narrativas de escrita sintética de nosso corpus que se inserem na Dominante


Digestiva do Regime Noturno da Imagem, em suma, são aquelas que colocam em
relevo os valores alimentares e digestivos, no qual predomina as técnicas do continente
e do habitat e a tônica da sociologia matriarcal e alimentadora (DURAND, 1997, p. 58).
Nesta categoria estão circunscritas as narrativas que numeramos 1. “El miedo”, 2. “La
autoridad”, 3. “Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus mujeres”, 4.
50

“1542, Conlapayara: Las amazonas”, 8. “Maria Padilha”, e 9. “Ventana sobre una


mujer”, conforme demonstraremos.
São narrativas cujo semantismo gira em torno da feminilidade e dos aspectos
fundamentais que ela possui ou que foram a ela atribuídos. O teor discursivo das
narrativas se orienta no sentido de ressaltar o teor arquetípico concernente à
feminilidade, de modo artístico-literário.

5.2.1 “El miedo”

O interesse pelo tema mítico da vagina dentada se estende a distintas áreas do


conhecimento, como ao campo de estudo da psicologia, da antropologia e, inclusive, da
literatura.
Como um tema que vai para além do âmbito ficcional, mais tangente para a
antropologia do imaginário, o mito da vagina dentada postula, de certa forma, a
fundamentação das relações assimétricas entre o sexo feminino e o sexo masculino ao
longo dos séculos (ENRIQUEZ, 1999; EISLER, 1989, 1996).
A difusão das não simetrias na orientação das relações entre homens e mulheres
se dá em diversos níveis sócio-culturais. Nesse ínterim, o tema mítico da vagina dentada
surge em diversas sociedades, conforme demonstra Lévi-Strauss (1989, p. 123):

Se a equivalência mais familiar para nós e sem dúvida também a mais


difundida no mundo coloca o macho como o que come e a mulher
como a que é comida, não se pode esquecer que a fórmula inversa se
dá, muitas vezes, no plano mítico, no tema da vagina dentata que, de
modo significativo, é ‘codificada’ em termos de alimentação, isto é,
em estilo direto (verificando-se, assim, a lei do pensamento mítico em
que a transformação de uma metáfora termina numa metonímia).
Aliás, é possível que o tema da vagina dentata corresponda a uma
perspectiva não mais inversa mas direta na filosofia sexual do
Extremo Oriente, onde, como postulam os trabalhos de Van Gulik, a
arte da cama consiste essencialmente, para o homem, em evitar que
sua força vital seja absorvida pela mulher, tirando proveito próprio
desse risco.

Com isso queremos ilustrar, apropriadamente, que se trata de um tema


concernente à sexualidade, baseado nos condicionamentos e contrastes presentes nas
relações entre homens e mulheres.
51

No âmbito literário, o tema da vagina dentada recebe fruição estética, por ser a
literatura uma forma de arte. Expresso nesse plano, apresentamos o conto ultracurto 1.
“El miedo”, que versa sobre a vagina dentada através de um discurso extremamente
mitopoético e conciso:

Esos cuerpos nunca vistos los llamaban, pero los hombres nivakle no
se atrevían a entrar. Habían visto comer a las mujeres: ellas tragaban
la carne de los peces con la boca de arriba, pero antes la mascaban
con la boca de abajo. Entre las piernas, tenían dientes (GALEANO,
1995, p. 7).

A força de expressão semântica sustentada pelas imagens que estão inseridas


nessa narrativa se completa com a declaração final do conto ultracurto: “Donde ellas
habían estado sentadas, quedó la tierra toda regada de dientes” (GALEANO, 1995, p.
7).
Durand (1997) defende que esse tema específico representa uma feminização da
Queda, ou seja, uma responsabilização da mulher pela mítica Expulsão do Paraíso. Por
outro lado, essa “feminização da queda seria, ao mesmo tempo, a sua eufemização. O
incoercível terror do abismo minimizar-se-ia no medo venial do coito e da vagina”
(DURAND, 1997, p. 116).
Isto é, para suavizar o terror da Expulsão e Queda do Paraíso, logrou-se, de certa
forma, a responsabilização da mulher por tal catástrofe, e ainda, a substituição do medo
abismal, resultante da queda, pelo medo da vagina e do coito.
No relato mítico canônico de nossa sociedade Ocidental, a passagem bíblica da
Expulsão e Queda do Paraíso, sabemos que Adão e Eva foram punidos – ao passo que
somente Eva foi responsabilizada – pela desobediência à ordem proibitiva de Deus de
comerem o fruto da árvore da vida.
Contudo, antes de Eva, existiu Lilith, a primeira mulher de Adão. Lilith não foi
feita da costela de Adão, mas do mesmo pó que ele, pelas mãos de Deus. Ela
reivindicou ficar por cima nas posições do coito e não por baixo, conforme estabelecido
por Adão. Porém, com a recusa de Adão em conceder-lhe essa paridade, Lilith,
enfurecida, profana o nome de Deus e se afasta. Adão procura Deus e reclama do
abandono de Lilith. A primeira companheira de Adão não admite a condição de
inferioridade e submissão e opta por viver exilada na terra dos demônios, com os quais
passa a copular e gerar a quantia de cem demônios por dia. O criador do universo,
52

enfurecido com a transgressão, amaldiçoa Lilith, que é banida para sempre da Terra; ela
passa então a habitar os domínios infernais (SICUTERI, 1998).
Assim, criada da costela de Adão, Eva, a segunda mulher, com sua
desobediência, apenas incorre novamente no estreitamento das relações com o
demoníaco, em face de sua obediência à serpente e de sua desobediência contra a ordem
de Deus. Desse modo, considerou-se que foi pelo sexo feminino que o mal foi
introduzido no mundo e que há um estreito vínculo entre ambos.
É justamente nessa consideração que o conto ultracurto de que tratamos
desemboca ao ilustrar, por meio de uma linguagem lírica e concisa, uma feminização da
queda, uma eufemização cujo terror é traduzido no medo venial do coito e da vagina, na
feminização da malignidade (DURAND, 1997, p. 117).
Na narrativa de que tratamos estão registradas imagens da misoginia e do medo
masculino de uma vagina dentada, devoradora, maligna. As mulheres, a princípio, são
definidas apenas como “corpos nunca vistos”. Entretanto, contraditoriamente, informa-
se que os homens nivakle já haviam presenciado tais mulheres comerem, utilizando-se
da boca para tragar o alimento, mas antes da vagina para mastigá-lo. Tal contradição
acentua o caráter mítico do relato. Na narrativa mítica não há uma orientação que forme
parte da lógica concebida pela nossa sociedade, quer dizer, não há uma linearidade, nem
um encadeamento das circunstâncias que acompanhe a relação de causa e efeito, ou de
continuidade dos fatos.
As mulheres da narrativa eram temidas e os anfitriões nivakle não aceitaram seu
chamado. Ao invés disso, “Los hombres bailaron durante toda la noche. Ondularon,
giraron y volaron como el humo y los pájaros. Cuando llegó el amanecer, cayeron
desvanecidos. Las mujeres los alzaron suavemente y les dieron de beber” (GALEANO,
1995, p. 7). Quer dizer, os homens nivakle optaram por dançar até a exaustão para
manter um distanciamento das mulheres.
Vale ressaltar que originalmente, a dança, em todas as suas formas e
manifestações, era considerada parte do universo sagrado, sendo executada com
finalidades ritualísticas, tais como celebrações iniciáticas, matrimoniais, de manutenção
da ordem cósmica, entre outros (ELIADE, 1992, p. 33 – 34). Desse modo, a dança
retratada no conto é um elemento relacionado com um gesto sacro e arquetípico.
53

A despeito do intento dos dançarinos de manter um distanciamento das


mulheres, uma presença atemorizante, porventura, são elas quem maternalmente os
recolhem quando estes sucumbem à exaustão da dança.
Concordamos com Gilbert Durand (1997, p. 39) em que “As imagens não valem
pelas raízes libidinosas que escondem mas pelas flores poéticas e míticas que revelam”.
A extrema brevidade discursiva, o lirismo e a linguagem mitopoética são a tônica em
toda a narrativa, em consonância com a evocação das imagens da misoginia e do medo
da vagina dentada.
De diferentes modos e sem o cunho artístico do texto literário, essa evocação
também forma parte de outros relatos. Conforme demonstramos anteriormente, na
narrativa bíblica da tradição cristã, o casal primordial, Adão e Eva, é expulso do
Paraíso, e, como resultado direto dessa Queda, a humanidade é fadada a conhecer a
Morte (DURAND, 1997; SICUTERI, 1998; WHITMONT, 1991; ENRIQUEZ, 1999).
Como prospecto, em conformidade com o que foi demonstrado, salientamos que
o tema da vagina denteada diz respeito, sobretudo, à responsabilização da mulher pela
Expulsão do Paraíso; à sua identificação com a Queda, o temor do abismo e à
feminização da catástrofe. Essa, eufemizada, vem a transformar-se em uma fobia
masculina do ventre digestivo feminino, o temor da manducação animal de uma
feminilidade nefasta e ameaçadora. Por sua vez, Durand (1997, p. 113) afirma que
“Numerosos mitos e lendas põem a tônica no aspecto catastrófico da queda, da
vertigem, da gravidade ou do esmagamento”.
Com isso, chegamos, finalmente, a ponderar que a narrativa “El miedo”, ao
evocar, literária e artisticamente, a ambivalência entre os sexos feminino e masculino,
através do tema da vagina dentada como expressão última da feminização da
malignidade proveniente da Queda, revela o mitema que se circunscreve na esfera do
enlace entre a feminilidade e o abismo, o mundo ctônico e a lugubridade.
No caminho percorrido para desvendar esse mitema, além do que expusemos até
agora, consideramos que “é tradição no Ocidente – e veremos que essa tradição repousa
nos próprios dados da arquetipologia – dar aos ‘prazeres do ventre’ uma conotação mais
ou menos tenebrosa ou pelo menos, noturna” (DURAND, 1997, p. 58). De modo que,
“ao gesto do engolimento corresponde o esquema da descida e o acocoramento na
intimidade” (DURAND, 1997, p. 60). Como último fator, de peso decisivo, observamos
54

que, como representante primeira e invariável dessa intimidade digestiva, engolidora e


vertiginosa está a mulher.

5.2.2 “La autoridad”

Expresso numa possível relação de complementaridade com a narrativa de que


tratamos anteriormente, passemos ao estudo de “La autoridad”. Esse conto ultracurto
está igualmente relacionado às condições que compreendem os valores do habitat e a
sociologia matriarcal e alimentadora, pertencentes à Dominante Digestiva do Regime
Noturno.
Enquanto a primeira narrativa mitopoética versa sobre a vagina dentada e a
feminização da malignidade como eufemização do terror do abismo e da Queda,
resultado da Expulsão do Paraíso, a segunda narrativa reflete em si um
(re)desdobramento da primeira.
“La autoridad” aduz a uma polarização das relações entre as personagens
femininas e masculinas de duas nações indígenas da Terra do Fogo, num tempo
narrativo de ancestralidade:

En épocas remotas, las mujeres se sentaban en la proa de la canoa y


los hombres en la popa. Eran las mujeres quienes cazaban y
pescaban. Ellas salían de las aldeas y volvían cuando podían o
querían. Los hombres montaban las chozas, preparaban la comida,
mantenían encendidas las fogatas contra el frío, cuidaban a los hijos
y curtían las pieles del abrigo (GALEANO, 1995, p. 8).

A narrativa apresenta sancionada a ordem social vigente em uma época remota –


ou seja, um tempo mítico, de origens – em que às mulheres cabia o domínio do espaço
exterior, não doméstico. Elas caçavam e pescavam, ou seja, eram as responsáveis pelo
sustento delas e do restante da nação. Enquanto isso, aos homens cabiam as funções
circunscritas ao cuidado dos filhos e a realização das tarefas no âmbito doméstico.
“Así era la vida entre los indios onas y los yaganes, en la Tierra del Fuego,
hasta que un día los hombres mataron a todas las mujeres y se pusieron las máscaras
que las mujeres habían inventado para darles terror” (GALEANO, 1995, p.8).
Entretanto, certo dia os homens se rebelaram e exterminaram todas as mulheres, exceto
as meninas, de modo que inverteram a ordem vigente, contudo repetindo uma estrutura
de dominação, pois passaram a exercer as funções antes desempenhadas pelas mulheres,
55

como caçar e pescar, além de ir e vir à mercê de suas vontades, ao passo que
incumbiram às meninas, que se tornariam futuramente as mulheres da nação, as tarefas
que por eles realizadas anteriormente.
Outro elemento interessante introduzido na narrativa é o esclarecimento de como
as mulheres haviam exercido, até aquele momento, a autoridade sobre os homens, ou
seja, o método da dominação pelo medo, imposta através do uso de máscaras por elas
inventadas para causar terror.
Podemos perceber o uso de máscaras com a finalidade de impor o medo,
primeiramente pelas mulheres e depois pelos homens. As máscaras nesse caso podem
ser tanto um artefato, o objeto em si, quanto remeter a uma “máscara social”, quer dizer,
aduzir a um conjunto de discursos que teriam a força diretiva de impor o conformismo
ao oponente, ou ainda, assegurar a legitimidade do papel desempenhado por cada um
dentro das sociedades indígenas ona e yagane. A manutenção de uma ordem instaurada
passa pela aceitação do novo sistema de crenças, as chamadas “máscaras sociais” que
determinam os papéis a serem assumidos entre homens e mulheres (MAUSS, 2005, p.
207 – 241).
Pontuamos, dessa maneira, que o uso de máscaras tange, inclusive, ao nível da
representação. Tem-se notícia de que na Grécia Antiga os atores faziam uso de máscaras
tanto na comédia como na tragédia, com o intuito de conferir maior substantividade
representativa às personagens. A intenção do uso da máscara é criar uma personalidade
superposta. Acrescentamos ainda que:

A palavra SURVZSRQ tinha o mesmo sentido de persona, máscara;


mas eis que pode também significar o personagem que cada um é e
deseja ser, seu caráter (as duas palavras frequentemente se ligam), sua
verdadeira face. A partir do século II a.C., toma rapidamente o sentido
de persona. Traduzindo exatamente persona, pessoa, direito, conserva
ainda um sentido de imagens superpostas, por exemplo, a figura de
proa do barco (entre os celtas, etc.). Mas significa também
personalidade humana, isto é, divina, tudo dependendo do contexto.
Estende-se a palavra SURVZSRQao indivíduo na sua natureza íntima,
sem máscara alguma, apesar de, diante dele, conservar-se o sentido do
artifício, o sentido do que é a intimidade de tal pessoa e o sentido do
que é personagem (MAUSS, 2005, p. 233).

Conforme podemos perceber, os aspectos referenciais e simbólicos que


circundam o sentido do uso das máscaras são múltiplos, com origem já na etimologia do
56

termo. Na representação de uma personalidade humana, seu sentido pode variar de


acordo com o contexto em que se insere, podendo anunciar o caráter da sobreposição de
personalidade, isto é, aduzir a uma imagem superposta àquele que dela se utiliza.
O exercício estético, mitopoético e literário da estruturação dos contos de escrita
menor que o convencional implica na inserção de elementos estratégicos à narrativa,
que exige recursos que tornem possível a intensidade e a condensação de que estão
providos tais contos. Como um desses recursos está a metáfora imagética do uso das
máscaras em “La autoridad”, como forma sucinta e eficiente de assegurar a prelazia,
primeiramente, das mulheres sobre os homens e depois, o contrário.
Dessa forma, assentimos que no conto ultracurto “La autoridad”, em virtude de
seu contexto narrativo, apresenta-se o uso das máscaras como metáfora imagética de
uma personalidade superposta, quer dizer, o uso das máscaras na narrativa está
relacionado com a personagem que, primeiro as mulheres e depois os homens,
desejavam ser: indivíduos livres para ir e vir conforme “podían o querían”, enquanto
um “outro”, por temor, se habilitava a realizar as tarefas do espaço doméstico. “Aliás, a
presença e a ausência da máscara são mais um traço de arbítrio social, histórico e
cultural, como se diz, do que traços fundamentais” (MAUSS, 2005, p. 222). De modo
que, contudo, o uso da máscara se refere também a uma espécie de “máscara social” se
vista como um elemento de imposição de domínio sob o próximo sem justificativa ou
legitimidade. Na narrativa ultracurta a que nos referimos, a posse da máscara embasa a
usurpação do poder.
Ademais, como “Solamente las niñas recién nacidas se salvaron del exterminio.
Mientras ellas crecían, los asesinos les decían y les repetían que servir a los hombres
era su destino. Ellas lo creyeron. También lo creyeron sus hijas y las hijas de sus hijas”
(GALEANO, 1995, p. 8). Quer dizer, mais tarde, as meninas recém-nascidas, que se
tornaram mulheres, assimilaram o novo papel social a elas imposto, que desse modo foi
perpetuado.
Conforme demonstramos, o uso de máscaras como a imagética de uma
personalidade superposta na narrativa apresenta-se como elemento que corrobora na
manutenção de uma nova ordem, em que se promoveu uma inversão de papéis entre
dois grupos em condição de polaridade, os homens e as mulheres onas e yaganes, da
Terra do Fogo. Diante das reflexões demonstradas, inferimos que é justamente o mitema
57

da inversão, da substituição ou da troca que se encontra em estado latente em “La


autoridad”.
Como expressão da sociologia matriarcal e alimentadora e dos valores do habitat
que empreende o Regime Noturno da Imagem, a narrativa aponta para uma inversão de
papéis que altera bruscamente a condição das personagens do sexo feminino e do sexo
masculino, de modo que assinala a construção de uma organização social em que a
mulher fica subordinada ao homem, apontando, supostas reminiscências mítico-
imaginárias das transubstanciações da relação entre ambos. Os redobramentos dessa
inversão que se opera na narrativa tangem a transposições imaginárias, porque a
narrativa aduz a uma explicação mítica de como se deu a estruturação das relações
sociais entre as mulheres e os homens de duas nações indígenas da Terra do Fogo.

5.2.3 “Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus mujeres”

Outra de nossas inquietantes narrativas de escrita sintética é a “Historia del


lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus mujeres”. Trata-se de mais uma narrativa
curta cuja estrutura contém prolongamentos sexuais de ambivalência entre os gêneros
masculino e feminino.
O enredo tece o relato da vida de Dulcidio, personagem metade lagarto e metade
humano, possuidor de atributos que o impediam de desenvolver plenamente as
atividades humanas, tais como escrever, tendo, contudo, recebido uma alfabetização
digna de sua condição de herdeiro do vasto território de Lucanamara. Entretanto, por
mais que Dulcidio exercitasse certa sociabilidade ao conviver diariamente com a
comunidade local, manifestava sua sexualidade com animalidade extrema, posto que
devorou sua primeira esposa e, sem receber sanção proibitiva alguma, passou a repetir
seu ato sucessivamente. Notemos que “Novias no faltaban. En las casas pobres,
siempre había una hija sobrando” (GALEANO, 1995, p. 10). Desse modo, ao contrair
matrimônio institucionalizado jurídica e religiosamente para em seguida devorar
continuamente suas esposas na noite de núpcias, Dulcidio permuta entre dois espaços, o
humano e o da animalidade.
Na composição de uma ambivalência no interior da narrativa, é proeminente o
modo como se edificam os contornos de uma personagem feminina que não recebe um
nome ao longo de todo o conto curto, mas que tem função decisiva no delineamento da
58

história. Ela aparece nas primeiras linhas do relato, entregue ao exercício de sua leitura.
Em seguida, deixa de ser focalizada para dar lugar ao relato sobre Dulcidio, mas ela
reaparece logo em seguida, para prevalecer até o final da narrativa, contrapondo-se ao
herdeiro híbrido.
Ao longo do conto essa personagem feminina não recebe um nome, entretanto, é
crescente o destaque recebido por ela. Primeiramente retratada à beira de um rio e
camuflada em meio à vegetação local, ela conserva-se durante largo tempo lendo um
livro que conta a história de um “señor de vasto señorío” a quem tudo pertencia, o
“pueblo de Lucanamarca”, “lo seco y lo mojado”, “lo que tenía memoria y lo que tenía
olvido”, “lo de más acá y lo de más allá” (GALEANO, 1995, p. 9) e cujo único filho era
Dulcidio.
Em contraste à conduta de Dulcidio, a personagem feminina que foi apresentada
no começo da narrativa, com a qual o herdeiro híbrido passa a flertar em momento
dado, até o dia do casamento entre ambos, não exterioriza em seu comportamento
nenhuma característica animalesca ou ferina até o último parágrafo da narrativa,
passagem em que, surpreendentemente, ela devora Dulcidio enquanto este dorme, de
modo vagaroso, “Lo va tragando de a poquito, desde la cola hasta la cabeza, sin hacer
ruido ni mascar fuerte, cuidadosa de no despertarlo, para que él no vaya a llevarse una
fea impresión” (GALEANO, 1995, p. 14).
Dessa forma, o modo como a personagem feminina procede, faz com que ela vá
adquirindo nuances enigmáticas ao longo do conto, e, inclusive, pode ser interpretado
como um requinte de crueldade, pois ela age premeditadamente e preocupa-se em
manter as aparências, ao passo que o ato devorador de Dulcidio é defendido por ele
como sendo parte intrínseca à sua natureza, ao declarar que “el destino cruel quiere que
enviude” (GALEANO, 1995, p. 11). Quer dizer, para o herdeiro de Lucanamara sua
conduta devoradora faz parte de sua essência animalesca, como se não dependesse dele
a iniciativa ou a interrupção do ato nupcial devorador; nisso, predomina sua condição
parte animal irracional, e, portanto imputável, visto que sua conduta é aceita pela
comunidade em que ele vive.
Embora ambas as personagens compartilhem da mesma natureza híbrida, a
personagem feminina vive e age em surdina, quase sempre autorrelegada ao mesmo
espaço: a beira do rio, entre as folhagens; ao passo que, por sua vez, Dulcidio perambula
59

livremente entre os espaços da animalidade e da sociabilidade, com uma aceitação


social de sua condição híbrida que a mulher-lagarto efetivamente não possui e não
reivindica abertamente.
Nesse ínterim, verificamos no enredo da narrativa a presença de outros
elementos simbólicos relevantes. No conto destaca-se que a personagem feminina usa
óculos para ler, o que pode ser um indício, de caráter metafórico, de que ela enxerga
melhor, tem discernimento e reflete sobre os fatos. “Uma vez mais não é para o
substantivo que o símbolo nos remete mas para o verbo” (DURAND, 1997, p. 131).
Corrobora com nossa inferência, ademais da maneira como estão inseridos tais
elementos na narrativa, o momento em que “Dulcidio pone las cosas en su lugar”,
insistindo que “Las ovejitas y los indios están a su mandar. Él es amo de todas estas
leguas de tierra y agua y aire; y también del pedazo de arena donde ella está sentada”
e ainda “aclara que él es rico pero humilde, estudioso y trabajador, y ante todo un
caballero con intenciones de formar un hogar, pero el destino cruel quiere que
enviude” e, significativamente, “Inclinando la cabeza, ella medita ese misterio”
(GALEANO, 1995, p. 11). Quer dizer, tal mulher, tendo sido instruída por seu livro de
leyendas, soube por intermédio de “voces viejas” adquirir discernimento a respeito dos
“mistérios” que faziam de Dulcidio um eterno condenado a viuvez.
Podemos considerar como diversos os fatores que fazem despertar o interesse de
Dulcidio por essa personagem feminina. Além de ela não se parecer com nenhuma outra
mulher daquela localidade, é a única mulher que usa óculos e sabe ler que Dulcidio
conhece. Ela ainda está sempre próxima ao rio, onde costuma aparecer e desaparecer
súbita e misteriosamente, de acordo com sua própria vontade. Assim, tal personagem
feminina se destaca por ser tão diferente de todas as mulheres da localidade, o que
desperta o fascínio, a curiosidade e por fim a paixão do herdeiro híbrido de Lucanamara.
Essa mulher-lagarto para Dulcidio não pareceu ser “de la sierra, ni de la selva,
ni de la costa”, ninguém havia ouvido falar a respeito dela ou a tinha visto antes dele, o
que, em certa medida, acaba levando o leitor a cogitar a possibilidade de que seja uma
estrangeira.
Contudo, quase paradoxalmente, a certa altura da narrativa ela aparece como
uma legítima habitante do lugar, quando se alega que “Sentada en la arenita, los pies
guardados bajo las muchas polleras de colores, ella está muy estando, desde siempre
60

estando; y así mira al intruso ése que lagartea al sol”, quer dizer, a existência dela e a
permanência e posse do lugar é afirmada como anterior à de Dulcidio – que por sua vez,
presunçosamente afiança a própria posse não apenas da superfície onde ela está sentada,
mas de tudo que está incluído na extensão territorial daquele espaço, quer dizer, a terra,
o ar, a água e até mesmo as pessoas que ali habitam.
Mas para a mulher-lagarto, que é retratada com vestimentas típicas das índias
incaicas, Dulcidio é o intruso. Entretanto, não ocorre uma discussão entre ambos sobre
esse assunto, ele nem sabe da reivindicação dela, que não é exteriorizada. Ela ouve
pacificamente a concessão de Dulcidio para que ela esteja sentada no pedaço de areia do
qual ele se declara possuidor, simplesmente se mantém silêncio e desaparece assim que
ele se distrai, o que juntamente com os outros fatores apontados envolve essa mulher
numa atmosfera de mistério.
O desaparecimento da personagem enigmática, provoca o desespero em
Dulcidio, que pela primeira vez demonstra-se apaixonado. Passadas algumas semanas
ele a encontra. Sem delongas e com exasperos sentimentalistas na declaração de seus
sentimentos de afeto, ele a pede em casamento. Na narrativa, em nenhum momento há
menção integral sobre a reação da personagem feminina ao pedido, apenas sabemos que
na sequência, prontamente, eles se casam. E na noite de núpcias ela o devora.
Constatamos, que nessa narrativa, assim como ocorre “especialmente no mito, o
casamento apresenta-se antes como meio do que como fim” (MIELIETÍNSKI, 2002, p.
63). Como se realizasse uma vingança pelas outras ex-esposas de Dulcidio que foram
deglutidas a recém-casada o devora, não deixando de tomar as devidas precauções para
não despertá-lo, um cuidado e um desvelo que camuflam a vergonha desprovida de
piedade e aduz a uma máscara de falso cuidado feminino, em certa medida
desnecessário, mas que suaviza, com o sorriso cúmplice do leitor, toda a crueldade da
inversão de papéis entre os antagonistas glutões.
Nesse entorno, evidenciamos os pontos de fundamentação da narrativa no
agrupamento da Dominante Digestiva do Regime Noturno da Imagem. Apontamos a
presença, nesse conto curto, do relevo dos valores alimentares e digestivos evidentes na
conduta de Dulcidio, que na realização incondicional da satisfação de seus desejos
devora sucessivamente suas esposas, uma após a outra, sem escrúpulos ou o mínimo
61

indício de remorso. Até que chega sua vez de ser devorado, pela única mulher por quem
se apaixonou na vida. Ora:

Desde Freud sabemos explicitamente que a gulodice se encontra


ligada à sexualidade, o oral sendo o emblema regressivo do sexual.
Percebemos na história de Eva mordendo a maçã imagens que
reenviam para os símbolos do animal devorador, mas igualmente a
interpretamos considerando a ligação entre o ventre sexual e o ventre
digestivo (DURAND, 1997, p.117).

Verificamos que desde o primeiro ato devorador em diante, Dulcidio passa a ter
o caráter do glutão que entra no deleite da própria sexualidade lascívia através da ação
de comer suas esposas, cujos retratos revestem as paredes do quarto do herdeiro híbrido.
No entanto, é inserida na narrativa àquela que irá se contrapor a ele e inverter a situação,
utilizando-se para isso do mesmo método: a devoração. Por conseguinte, inferimos que
uma vez mais é o mitema da inversão, da substituição ou da troca que está circunscrita
em nosso corpus.

5.2.4 “1542, Conlapayara: Las amazonas”

A narrativa de escrita menor que o convencional de número 4, “1542,


Conlapayara: Las amazonas”, é uma versão mitopoética e literária sobre as guerreias
amazonas, recontada face ao único relato histórico de que se tem notícia, de um
encontro, ou melhor, de um embate, propriamente dito, com tais mulheres. Na narrativa
curta de que trataremos, há uma intertextualidade com o relato histórico escrito pelo
Frei Carvajal.
Através de uma abordagem muito condensada, a narrativa “1542, Conlapayara:
Las amazonas” aduz ao mais importante relato sobre as míticas guerreiras amazonas, o
mais excepcional entre todos os relatos existentes sobre tal reino feminino. Isso porque
o conto faz uma referência quase imediata ao texto documental escrito pelo padre
dominicano Gaspar de Carvajal, o único relato histórico de que se tem notícia, no qual é
descrito um embate direto entre as amazonas e os soldados espanhóis da expedição de
Francisco de Orellana, que estavam perdidos no percurso do rio Amazonas. Organizada
por Gonzalo Pizarro e tendo sido iniciada no Peru, a viagem objetivava descobrir o País
da Canela e os tesouros do Rei Dourado (Eldorado) (MAGASICH-AIROLA; BEER,
2000, p. 170–171).
62

A perceptível constância de relatos e proposições sobre a nação amazona


certamente influenciou o imaginário do povo europeu a ponto de acreditarem estar
entrando no cenário onde se passavam grande parte de suas histórias mítico-lendárias ao
adentrarem o território recém-descoberto das Américas.

No século VI antes de nossa era, o historiador grego Heródoto relata


em suas histórias uma lenda que atravessará os milênios e penetrará
em vários continentes: nas margens de Thermodon, perto do Mar
Negro, viviam tribos de mulheres guerreiras, as Amazonas, que
tinham invadido grande parte do Oriente Próximo, apoderando-se de
Éfeso, Esmirna, Pafos e outras cidades. Desde então, a imagem das
ferozes damas ocupa um lugar importante no imaginário coletivo de
vários povos. O elemento aquático está sempre presente e se manifesta
sob a forma de um poderoso rio ou braço de mar, que
presumivelmente marca a fronteira entre o território feminino e o dos
homens. Quando, nos anos 1500, os conquistadores penetram
penosamente na floresta equatorial, acreditarão estar combatendo os
exércitos das Amazonas e é com esse nome que batizarão a massa
fluvial mais gigantesca do planeta (MAGASICH-AIROLA; BEER,
2000, p. 155).

Especulações sobre as amazonas marcaram presença ao longo da história


literária em narrações de Heródoto no século IV a.C., de Hipócrates no séc. V a.C. e de
Diodoro da Sicília no séc. I; além disso, as guerreiras entraram em cena na Eneida de
Virgílio, tiveram destaque na mitologia grega com Hércules, no nono de seus doze
trabalhos, e obtiveram o respeito do conquistador macedônico Alexandre, a quem elas
supostamente pagaram tributos (MAGASICH-AIROLA; BEER, 2000; MORAIS, 2004;
SICUTERI, 1998).
A despeito da existência de diversos meios difusores, como os compêndios de
antropologia, bem como os mais variados estudos sobre mitologia, é no âmbito da
Literatura que o mito das amazonas – entre tantos outros – culminando num processo
dinâmico e transformador, foi artisticamente disseminado e perpetuado. “En la gran
obra de arte, especialmente literaria, la obra misma, su manera de decir, sus
contornos, constituyen o reconstituyen el mito mismo y su poder numinoso” (DURAND,
1993, p.189)
Na narrativa curta “1542, Conlapayara: Las amazonas”, a intertextualidade com
o relato histórico a que nos referimos anteriormente aparece calcado especialmente na
linguagem mitopoética e no encadeamento narrativo que visa a qualidade estética e
artístico-literária.
63

No referido conto muito curto, a ação se condensa no dia de São João.


Atualmente conhecemos essa data como pertencente ao conjunto de eventos religiosos
do catolicismo, em que é costume acender fogueiras, dançar e saltar em volta delas, em
homenagem àquele que nomeia a data. Contudo, essa festividade é parte de um costume
que pode remontar a Idade Média e cuja origem deve ser perscrutada em um período
anterior à difusão do cristianismo, portanto, tratando-se de uma comemoração
originalmente pagã (FRAZER, 1986, p. 214). Como referência ao assunto, é relevante
apontar as considerações de Mielietínski, para quem:

A festa é um ritual, em grande parte do tipo calendárico, de modo que


se relaciona com a idéia de renovação, que favorece nova abundância
e prosperidade. A abundância e a prosperidade são mantidas pela
magia da multiplicação, pelos motivos sexuais e pelas relações
amorosas, pelo ritual do assim chamado casamento sagrado. Em
tempo de festa admite-se a transgressão de algumas normas sociais,
uma espécie de caos social que pode ser imaginado muitas vezes
como a repetição do caos original, anterior à criação e à
"cosmicização", que inclui o triunfo sobre as forças demônicas, que
sob certo sentido personificam o caos e as forças ctônicas das trevas
(MIELIETÍNSKI, 2002, p. 179).

A festa de São João era, primordialmente, uma festa dionisíaca dos sentidos,
também conhecida como bacanal e cujo elemento central, a fogueira, era a representante
simbólica do fogo sexual. Isto é, trata-se de uma data em que se celebrava o prazer e a
libido, além de relacionar-se com as forças ctônicas das trevas e do caos, que
supostamente estariam livres na data do festejo.
Nossa insistência com relação a esse elemento da narrativa se deve a sua
extrema relevância na fundamentação da análise mitocrítica do conto, conforme
demonstraremos. A referência à festividade do dia de São João aparece logo na primeira
linha da narrativa curta:

No tenía mala cara la batalla, hoy, día de San Juan. Desde los
bergantines, los hombres de Francisco de Orellana estaban vaciando
de enemigos, a ráfagas de arcabuz y de ballestra, las blancas canoas
venidas de la costa. Pero peló los dientes la bruja. Aparecieron las
mujeres guerreras, tan bellas y feroces que eran un escándalo, y
entonces las canoas cubrieron el río y los navíos salieron disparados,
río arriba, como puercoespines asustados, erizados de flechas de proa
a popa y hasta en el palo mayor (GALEANO, 1995, p. 24).
64

Nesse ponto o caráter de intertextualidade com o relato de Carvajal é importante


para sabermos que foram as periculosidades geográficas e a escassez de alimentos para
a numerosa tropa as dificuldades que se impuseram a Francisco de Orellana, a ponto de
obrigá-lo a seguir uma rota diferente de Gonzalo, com um destacamento de apenas
sessenta homens, a fim de arranjar mantimentos. Terminado um prazo de tempo se
reencontrariam em outro ponto determinado. A fome assolava os soldados de Orellana
de tal maneira que, tendo falhado o saque às aldeias indígenas pelas quais passavam,
precisavam comer guisado de macaco ou capturar aves, na pior das hipóteses comiam
sopa de velhas solas de calçado ou qualquer peça de couro (MAGASICH-AIROLA;
BEER, 2000, p. 171). Desta feita, na tentativa de saquear mais uma aldeia indígena,
Conlapayara, foram surpreendidos pelas amazonas que resguardavam os habitantes de
tal aldeia, que possivelmente eram súditos das guerreiras. É sobre esse momento de
tensão que versa a narrativa curta escrita por Eduardo Galeano.
Conlapayara, diferentemente das demais aldeias saqueadas pelos espanhóis, era,
supostamente, protegida pelas amazonas. À frente dos indígenas de Conlapayara, em
posição de comando, as guerreiras “Pelearon riendo y danzando y cantando, las tetas
vibrantes al aire, hasta que los españoles se perdieron más allá de la boca del río
Tapajós, exhaustos de tanto esfuerzo y asombro” (GALEANO, 1995, p. 24).
O saque dos soldados de Orellana não é bem sucedido em virtude da entrada das
guerreiras amazonas em cena, que por sua vez lutaram rindo, daçando, cantando e
destroçando a tropa espanhola, quase aniquilando-os. A reviravolta é introduzida na
narrativa pela expressão “Pero peló los dientes la bruja”, sublinhando o aspecto da
subversão, da ação das forças ctônicas e da introdução do caos à cena; a presença desses
três aspectos é personificada nas guerreiras amazonas. Com relação à expressão
idiomática que as insere e retrata imagéticamente, ressaltamos ainda que a bruxa ou a
feiticeira é uma adutora arquetípica do mal, numa consideração de Mielietínski (2002,
p. 130), para quem “nas narrativas semilendárias a feiticeira ou a mulher ogro
substituem o diabo”.
Com isso, consideramos que a referida expressão idiomática serviu para inserir à
narrativa uma malignidade diabólica, o caráter subversivo das mulheres amazonas,
representando as forças telúricas, tectônicas e maléficas, ou seja, as imagens que
constelam em torno das personagens femininas do conto. Esses aspectos são reforçados
65

quando, adiante, as guerreiras amazonas são caracterizadas como “tan bellas y feroces
que eran un escándalo” (GALEANO, 1995, p. 24). Tal definição é provida de um
semantismo que aproxima a existência das amazonas à um agravo, um paralelo à
imoralidade e até causador de revolta nos soldados, ou seja, a existência das mulheres
guerreiras era uma afronta aos navegantes, mas além disso, uma afronta aos homens em
geral. Isso porque, afinal:

Habían oído hablar de estas mujeres, y ahora creen. Ellas viven al


sur, en señorios sin hombres, donde ahogan a los hijos que nacen
varones. Cuando el cuerpo pide, dan guerra a las tribus de la costa y
les arrancan prisioneros. Los devuelven a la mañana siguiente. Al
cabo de una noche de amor, el que ha llegado muchacho regresa
viejo (GALEANO, 19955, p. 24).

Na narrativa em questão, a existência de um conjunto de mulheres


excepcionalmente autônomas, que vivem em aldeias sem homens e que exercem sua
sexualidade de maneira não regrada e não reprimida acaba por corroborar com a
identificação dessas mulheres com a insubmissão e a beligerância. São mulheres
deslocadas do espaço atribuído a elas, quer dizer, não circunscritas ao âmbito doméstico
e familiar. A partir disso apareceram as crendices de que as amazonas afogavam as
crianças do sexo masculino e que esgotavam a energia vital daqueles com quem
mantinham relações sexuais.
Essa versão do mito das amazonas a que aduz a narrativa, em que além de
viverem em aldeias sem homens, as guerreiras matavam afogados os filhos do sexo
masculino, originou-se na Idade Média, quando as narrativas sobre as amazonas
passaram por algumas modificações significativas. Essas eram motivadas,
fundamentalmente, pela consideração da Igreja Católica de que as mulheres amazonas
não possuíam as qualidades exigidas e apregoadas pela doutrina cristã. Enfim, elas não
eram um bom exemplo à ala feminina da sociedade, mesmo que poucos acreditassem na
existência das guerreiras ou supostamente as tivessem visto. Essa sina de proscrita da
doutrina judaico-cristã, elas compartem com Lilith, primeira mulher de Adão, que foi
amaldiçoada e banida da humanidade. Assim como ocorreu com a figura mítica de
Lilith, as amazonas foram repudiadas por seu caráter reivindicatório de paridade de
direitos (SICUTERI, 1998). Identificadas com a malignidade, elas receberam atributos
demoníacos e foram incorporadas à legião do Anticristo, considerando-se que deveriam
66

ser, no mínimo, repudiadas (MAGASICH-AIROLA; BEER, 2000; SICUTERI, 1998).


Todas essas aproximações transparecem na narrativa de que tratamos.
Ao final do embate com as guerreiras amazonas, os soldados de Orellana, “sin
energias para el remo” se deixam levar pela correnteza do rio mais caudaloso do
planeta e “ruegan a Dios que sean machos, por muchos que sean, los próximos
enemigos” (GALEANO, 1995, p. 25). Logo, as amazonas causam, com sua ferocidade e
beligerância, um temor maior e resultados mais indesejados que aquele provocado pelo
embate com qualquer inimigo do sexo masculino, pois ao terror da batalha é somado ao
assombro e a humilhação diante da inversão de papéis operado pelas guerreiras.
Conforme demonstramos, em “1542, Conlapayara: Las amazonas”, estão em
evidência imagens da incursão feminina na esfera da ferocidade, da beligerância e de
uma insubmissão que se estende ao campo da sexualidade, levada a cabo pelas
guerreiras na experiência de viver em aldeias sem homens. No domínio da sociologia
matriarcal, tais características indicadas pelas imagens da narrativa, são inseridas na
Dominante Digestiva do Regime Noturno (DURAND, 1997, p. 58).
Após a averiguação dessas articulações e particularidades na narrativa curta de
escrita mitopoética sobre as famigeradas amazonas, finalmente, nossa análise aponta
para a detecção do mitema da feminilidade insubmissa, lúgubre e da sexualidade
abismal.
A nossa inferência é justificada pela presença sobressalente, na narrativa, da
tônica da feminilidade beligerante, indômita e abissal em todos os aspectos, inclusive no
âmbito da sexualidade, em que é abrangida a rejeição não apenas de regras para o sexo,
uma vez que há um descarte de vínculos matrimoniais ou afetivos, mas também a
rejeição da maternidade de uma criança do sexo masculino. Inclusive o esgotamento
físico do prisioneiro citado no conto traça uma alusão à ferocidade da deglutição.
O estabelecimento desses elementos atinge maior relevância com o enxerto do
simbolismo representativo da data festiva na narrativa curta – o dia de São João – que,
em certa medida, indicia que, pelo menos naquele dia, quem rege o destino das
personagens são as forças ctônicas das trevas e do caos, as quais as amazonas são
vinculadas – salientado o caráter de subversão de uma ordem cosmogônica na data da
referida festividade. O teor discursivo da narrativa se orienta no sentido de colocar em
evidência o teor abismal atribuído à feminilidade, de modo conciso, artístico e literário.
67

5.2.5 “Maria Padilha”

Manifesta com uma brevidade e condensação extrema, assoma-se a narrativa


ultracurta de número 8. “Maria Padilha”. Trata-se de uma narrativa que, provida de
acuidade literária e mitopoética, enfoca mais uma personagem polêmica de nosso
corpus, nomeadamente Maria Padilha.
O conto põe em relevo contornos muito específicos no delineamento de Maria
Padilha como personagem de ficção; ela “es Exú y también es una de sus mujeres,
espejo y amante: María Padilha, la más puta de las diablas con las que Exú gusta
revolcarse en las hogueras (GALEANO, 1995, p. 45). É desse modo abrupto que se
insere a personagem na configuração da narrativa. O conto ressalta a existência de uma
relação de univocidade Maria Padilha e Exu.
Além de Maria Padilha ser concebida como “la más puta de las diablas”,
amante de um Exu, também é retratada como sendo si própria um Exu. Esse novo par
forma um espelhismo diferente do que foi protagonizado por Dulcidio e a personagem
feminina híbrida da “Historia Del lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus
mujeres”. Por sua vez, a narrativa que versa sobre Maria Padilha aduz a um par que
exerce complementaridade, um espelhismo no qual uma parte não sobrepuja a outra.
Maria Padilha integra a falange dos Exus. Contudo, é unicamente nesse parágrafo que o
termo “Exu” aparece.
Salientamos que Maria Padilha (um Exu) forma parte do panteão de entidades
religiosas africanas que foram sincretizadas com as divindades da religião católica,
durante o passado colonial escravista brasileiro (DELGADO SOBRINHO, 1974, 1978).
O enlevo da narrativa tange à inserção marcante da religiosidade de matriz africana no
Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro.
É importante, ainda, ressaltar que o clímax da prática religiosa de matriz africana
de que forma parte Maria Padilha é atingido com a manifestação das entidades divinas
através do transe, momento em que o indivíduo adquire uma nova personalidade, deixa
de ser um homem ou mulher comum para assumir o papel das divindades incorporadas,
sendo que cada uma delas apresenta manifestações comportamentais próprias
(DELGADO SOBRINHO, 1974, p. 56).
68

De fato, sabemos que Exu foi personificado como elemento maligno, ou seja,
com o diabo, propriamente dito, da tradição cristã. Isso porque Exu é uma entidade que
se caracteriza por uma conduta considerada autenticamente sombria, quer dizer, na
maioria das vezes tida como funesta, maligna. A entidade denominada Maria Padilha é
identificada com um Exu, entre outros, por conta da manifestação de traços
comportamentais específicos, tais como o consumo deliberado de álcool e de fumo,
somado ainda à liberação das repressões sexuais e de uma lascividade extremada,
expressa por meio de movimentos corporais ou até mesmo na fala, que é carregada de
palavras obscenas (DELGADO SOBRINHO, 1974, p. 125 – 127).
As informações que apontamos são importantes e extremamente necessárias para
podermos demonstrar o quão intensamente o conto ultracurto de que tratamos condensa,
literariamente, todos os aspectos a que nos referimos sobre a feminilidade de Maria
Padilha, isto é, a presença do transe e a manifestação lasciva da personagem.

No es difícil reconocerla cuando entra en algún cuerpo. María


Padilha chilla, aúlla, insulta y ríe de muy mala manera, y al fin del
trance exige bebidas caras y cigarrillos importados. Hay que darle
trato de gran señora y rogarle mucho para que ella se digne ejercer
su reconocida influencia ante los dioses y los diablos que más
mandan (GALEANO, 1995, p. 45).

Desse modo, demonstramos a maneira como a narrativa constrói literariamente a


personagem de Maria Padilha, que é considerada uma entidade que se caracteriza por
uma manifesta sexualidade desenfreada, por meio da qual ela exerce sua influência
“ante los dioses y los diablos que más mandan”, intercedendo pelos pedidos de seus
adeptos. Tais favores ela concede desde que tenha suas exigências atendidas, ou seja, é
imprescindível “darle trato de gran señora y rogarle mucho para que ella se digne
ejercer su reconocida influencia”, além de “bebidas caras y cigarrillos importados”
(GALEANO, 1995, p. 45). Quer dizer, a narrativa aduz a um dos elementos
fundamentais do culto à Maria Padilha, divindade que para conceder os favores que lhe
são pedidos, faz necessário a oferta ritualística de objetos que supostamente a agradem,
tais como bebidas caras e cigarros importados.
Os contornos literariamente delineados para Maria Padilha na narrativa, sua
representação, seu comportamento e os preceitos de conduta de seus adeptos operam
dentro da lógica do segmento da religiosidade de matriz africana denominada Umbanda.
69

Apontamos ainda, para a primorosa densidade narrativa que se articula sobre


Maria Padilha. A intensidade narrativa é ladeada pelo retrato veemente da personagem,
cuja conduta é estabelecida pela liberação dos instintos. Maria Padilha está ligada
também à prostituição, uma vez a divindade manifesta-se, prioritariamente, nos corpos
das “mujeres que en los suburbios de Río se ganan la vida entregándose por monedas”,
“la carne de alquiler”. A escrita de Galeano intenta dar contornos poéticos a esse
elemento que forma parte do emaranhado de trejeitos que envolvem a personagem.
Apetece Maria Padilha “revolcarse en las hogueras” simbólicas do prazer
sexual, ou seja, sua conduta é fortemente conectada à sexualidade exacerbada e à
negação das regras sociais. E são justamente essas as imagens que se vinculam
intimamente à personagem Maria Padilha na narrativa.
Na identificação desse conjunto de imagens de uma sexualidade indômita e
tenebrosa, como balanço dos elementos presentes na narrativa, percebemos a
abrangência do mitema da feminilidade aliada à sexualidade nefasta, aos meandros
infernais e telúricos. O agregamento dessa multiplicidade de aspectos abissais insere a
narrativa na Dominante Digestiva do Regime Noturno, por ser uma tônica desse eixo
categórico das estruturas do imaginário (DURAND, 1997, p. 191-280).
De Doña Maria de Padilla, amante do rei D. Pedro I de Castela, transpõe os
limites geográficos do Oceano Atlântico, para ter seu nome invocado em sortilégios
amorosos no Brasil Colônia, e hoje, como Maria Padilha Pomba-Gira da Umbanda, é
transformada em personagem de ficção na escrita de Galeano.
A Maria Padilha da narrativa a qual nos reportamos é identificada culturalmente
com a malignidade, com os prazeres carnais perseguidos de modo desenfreado. Em
nosso objeto de estudo, mais uma vez é especialmente a fêmea indócil, Lilith,
insubordinada que aparece vinculada (ou condenada) à obscuridade; demonstra-se uma
feminização da malignidade, que em certa medida revela uma espécie de alerta sobre os
perigos atribuídos à sexualidade feminina.

5.2.6 “Ventana sobre una mujer”

O conto ultracurto de número 9. “Ventana sobre una mujer”, conforme


apontamos outrora, não remete diretamente a mitos femininos, atuando em separado da
linha de representação explicitamente mitopoética das demais narrativas de nosso
70

corpus. Entretanto, convém nos determos no estudo dessa narrativa, uma vez que ela
condensa em seu núcleo efígies arquetípicas acerca da feminilidade, nos permitindo
estabelecer uma concatenação entre todos os relatos.
Por meio de “Ventana sobre una mujer”, somos remetidos a uma ampla gama
de imagens que circundam a feminilidade, ou seja, entramos em contato com o ideário
que envolve a caracterização que se atribui à mulher, qual seja, o fascínio e o encanto
que exerce a beleza feminina em paralelo com os mistérios de nuances telúricos que lhe
são conferidos ao longo de milênios.
A mulher representa o primeiro habitat humano. Teoriza-se acerca de que,
quando não se sabia ainda como se dava o processo de fecundação, a capacidade de
gerar outro ser era atribuída somente à mulher, que era considerada um ser mágico e
sagrado. Com a suposta descoberta de que o homem também participava desse processo
de fecundação, a mulher foi relegada a condição de portadora da criança, enquanto o
homem obteve plenos poderes para impor, inclusive, a virgindade à mulher antes do
casamento, como garantia da legitimidade da prole (EISLER, 1989; 1996; KOSS,
2000).
Na narrativa poética “Ventana sobre una mujer”, prontamente aparece a
comparação da mulher com uma casa secreta. Essa aproximação entre ambas é
edificada gradualmente e vai se desenvolvendo dentro da narrativa de modo intenso até
atingir um ponto culminante. “Esta feminização da casa, como a da pátria, é traduzida
pelo gênero gramatical feminino das línguas indo-européias, domus e patria latinas, ê
oikia grega” (DURAND, 1997, p. 242).
A feminização da casa trás consigo uma carga de significação simbólica para a
narrativa. “A casa inteira é mais do que um lugar para se viver, é um vivente. A casa
redobra, sobredetermina a personalidade daquele que a habita” (DURAND, 1997, p.
243). A narrativa nos apresenta uma casa portadora de mistérios, do desconhecido:
“Quien en ella entra, dicen, nunca más sale” (GALEANO, 1995, p.17). Essa casa,
feminizada, guarda enigmas intimidadores, que repelem e causam atração
concomitantemente; no conto, por fim, quem está do lado de fora dessa “casa” acaba
por sucumbir a ela e se deixa arrebatar, adentrando em seu interior.
Essa casa feminizada apresenta-se, por meio da linguagem extremamente
incisiva de Galeano, como um microcosmo cujos contornos são muito peculiares. Por
71

sua vez, “A intimidade deste microcosmo vai redobrar-se e sobredeterminar-se como se


quiser. Duplicado do corpo, ela vai tornar-se isomórfica do nicho, da concha, do tosão e
finalmente do colo materno” (DURAND, 1997, p. 244). Quer dizer, essa casa
feminizada, representa literariamente o microcosmo do corpo humano e também é
representante do próprio cosmo, pois a casa é sempre a imagem da intimidade
repousante, seja ela um templo, um palácio ou uma cabana. “De tal modo que um artista
intuitivo pode sentir naturalmente uma correlação entre a caverna ‘obscura e úmida’ e o
mundo ‘intra-uterino’” (DURAND, 1997, p. 243 – 244).
Dessa forma, na narrativa em questão temos o arquétipo da interioridade,
matizado de isolamento, regressão e intimidade, de acordo com os postulados de
Durand (1997, p. 236 – 279). Integra o dinamismo elementar da narrativa a inserção de
imagens que reportam à constelação da intimidade, num esquema de descida e de
involução que formam parte de um movimento de totalização característico do
arquétipo da interioridade. Isso porque tal casa feminizada é representante de uma
feminilidade lúgubre, abissal, que guarda segredos do mundo tectônico, ao mesmo
tempo em que, por meio da sedução, atrai aquele que entra em contato com ela.
Portanto, por mais que o narrador relate: “En ella me espera el vino que me beberá”, ou
seja, tenha consciência de que ao entrar nesse recinto ele será colocado frente ao
desconhecido, um espaço povoado por elementos recônditos, tectônicos e que formam
parte de um cosmos cifrado, o narrador anseia nele adentrar e prossegue em sua
incursão nesse ambiente, mesmo este sendo considerado nefasto.
No entanto, não estamos dizendo que se trata aqui, apenas de um complexo de
regresso à mãe, pois na narrativa não há referências de um espaço sagrado, com
imagens do espaço feliz, intra-uterino, mas a configuração de um espaço microcósmico
cuja constituição é ladeada por elementos telúricos e abismais. “O lugar sagrado é uma
cosmicização maior que o microcosmo da morada, do arquétipo da intimidade
feminóide” (DURAND, 1997, p. 246). “Ventana sobre una mujer” carrega o
simbolismo da viagem mortuária, da incidência fúnebre, do medo, e se opõe ao
arquétipo tranquilizador do invólucro protetor materno. Contudo, a narrativa se arquiteta
a partir da conjunção de ambas as polaridades – quais sejam, as imagens do espaço
telúrico e as imagens de um invólucro protetor – uma vez que o narrador prossegue em
sua incursão nesse cosmos feminizado, mesmo que temeroso em fazê-lo, realizando
72

assim um movimento de busca de totalização. Dessa forma a narrativa infunde a


ambivalência de imagens que circundam a feminilidade, fazendo-o por meio de uma
linguagem muito incisiva e concisa, em que o caráter mitopoético não está explícito,
mas imerso e camuflado.
Na medida em que realizamos a analise de todas as narrativas, agora se torna
mais visível o quanto “Ventana sobre una mujer” estabelece um diálogo com as
demais, porque ilustramos como ela consegue apreender em suas poucas linhas a
ambivalência arquetípica, de significados, de imagens e de simbologias que cercam a
representação da feminilidade, componente que aparece em todas as outras narrativas de
escrita menor que o convencional com as quais trabalhamos.

5.3 Considerações parciais sobre as narrativas da Dominante Cíclica

Conforme tentamos demonstrar, as micronarrativas míticas classificadas como


pertencentes à Dominante Cíclica do Regime Noturno do Imaginário se circunscrevem
na esfera do entrelace entre a feminilidade e os valores cíclicos e agrários da fertilidade,
da fecundidade da terra e os valores da nutrição.
De acordo com Durand (1997, p. 297), existe uma sobredeterminação feminina e
quase menstrual da agricultura: “Ciclos menstruais, fecundidade lunar, maternidade
terrestre vêm criar uma constelação agrícola ciclicamente sobredeterminada”. Quer
dizer, quando se trata de simbolismo vegetal, prevalecem as intenções regeneradoras da
vida, seja esta vegetal ou animal, bem como os valores de fecundidade da semente e da
maternidade.
“1711, Paramaribo: Ellas llevan la vida en el pelo”, “1739, al este de Jamaica:
Nanny” e “La Pachamama”, são narrativas cujas personagens principais mantêm,
respectivamente, uma relação intrínseca com as imagens da nutrição e da maternidade
as imagens da beligerância e da fecundidade e das imagens de uma maternidade
telúrica, que tece aproximações entre a vida e a morte.
Diante dessas imagens poéticas, que compõem também os mitemas latentes nas
narrativas em questão, podemos detectar que de fato, assim como “Em todas as épocas,
portanto, e em todas as culturas os homens imaginaram uma Grande Mãe, uma mulher
materna para a qual regressam os desejos da humanidade” (DURAND, 1997, p. 235). A
Grande Mãe, seguramente a entidade religiosa e psicológica mais universal adquire
73

relevo na composição artístico-literária de tais narrativas, refletida ora como figura


feminina benfazeja, nutridora e protetora, ora como entidade telúrica e mortuária, ou
ainda, por vezes conciliadora de ambas as instâncias.
De acordo com Whitmont (1991, p. 61) “A Grande Deusa representa ser e
tornar-se”, isto é, a forma feminina da consciência global está isenta das dicotomias
dentro-fora, corpo-mente. Ela compatibiliza todas as ambivalências de vida e morte,
corpo e mente, dentro e fora.
Dessa forma, a simbologia que envolve o arquétipo da Grande Deusa é
representada constantemente pelos valores da intimidade, pelo isomorfismo do retorno,
da morte e da morada (ELIADE, 1981, 1992).
Em “1711, Paramaribo: Ellas llevan la vida en el pelo”, representa-se a
feminilidade maternal benfazeja, que urge como fecundadora da terra e que promove a
nutrição. As mulheres desse conto fazem de celeiro suas próprias cabeças, incrustando
sementes em meio aos cabelos no intuito de plantá-las posteriormente. São personagens
que remetem à mulher germinadora da mitologia clássica e dos mitos ameríndios da
agricultura.
Concomitantemente, “1739, al este de Jamaica: Nanny” reverbera uma
feminilidade que não deixa de ser maternal, pois Nanny oferece amparo aos seus
“filhos”, os cimarrones; contudo é uma divindade feminina que inclina-se para o lado
beligerante de uma maternidade protetora. E assim, para exercer o papel de guerreira,
usa-se de seu corpo de “gran hembra de barrio encendido” (GALEANO, 1995, p.32),
mais propriamente de suas nádegas, para pegar e aparar os projéteis disparados contra
os cimarrones. Por vezes atira os objetos de volta nos inimigos, outras, no enlevo de sua
relação com os elementos agrários, da natureza, Nanny transforma os projéteis em
vegetação, denotando assim, inclusive, seu caráter também fecundo, ademais de
guerreiro.
Na sequência, “La Pachamama” atua em consonância com as duas narrativas
anteriores ao reunir todas as imagens nelas presentes. Pachamama é uma personagem
dialética que conjuga os aspectos de uma feminilidade maternal e ao mesmo tempo
telúrica, personagem que condensa e concilia em si a vida e a morte.
74

De uma manifesta relação com os ciclos agrários, de fertilidade da terra e da


fecundidade humana, Pachamama é a mais importante divindade materna do Altiplano
Andino.
Diante dessa narrativa, torna-se evidente que “É essa inversão do sentido natural
da morte que permite o isomorfismo sepulcro-berço, isomorfismo que tem como meio-
termo o berço ctônico. A terra torna-se berço mágico e benfazejo porque é o lugar do
último repouso” (DURAND, 1997, p. 237).
Se por um lado à Pachamama são preparadas libações e oferendas de frutos da
terra a fim de agradá-la e até mesmo com o intuito de não despertar sua ira, posto que
ela é concebida como divindade regente dos ciclos da natureza, quer dizer, responsável
tanto pela boa colheita, quanto pelos desastres naturais e doenças. Por outro lado,
Pachamama rege, inclusive, um ciclo natural diverso, o de vida e morte dos seres
humanos. Por conta desse poder, à tal divindade é oferecida a placenta do recém-
nascido, ritualisticamente enterrada, para que a criança goze de boa saúde e tenha
longevidade. Por conseguinte, quando uma pessoa morre, seu corpo também é enterrado
de maneira ritual, como a representação de um retorno às origens, o regresso ao berço
de onde a vida surgiu.
“O complexo do regresso à mãe vem inverter e sobredeterminar a valorização da
própria morte e do sepulcro. Poder-se-ia consagrar uma vasta obra aos ritos de
enterramento e às fantasias do repouso e da intimidade que os estruturam” (DURAND,
1997, p. 236). Com destacado caráter artístico-literário, a narrativa “La Pachamama”
possui a representatividade arquetípica de uma Grande Mãe; como personagem de
ficção, Pachamama também delineia-se como provedora da fecundidade da terra,
mantenedora da harmonia dos ciclos agrários, da nutrição e do ciclo de vida e morte.
Como protetora da fecundidade da terra e a humana, figura a transmutação do
medo da morte num movimento benfazejo de regresso a um berço repousante, íntimo e
que anuncia um fim que é também recomeço. Ilustração mitopoética desse elemento
aparece na narrativa quando somos remetidos à tradição religiosa pré-colombiana de
enterrar a placenta dos recém-nascidos entre flores para proteger a vida desses: “Desde
abajo de la tierra, los muertos la florecen” (GALEANO, 1995, p.37). Assim,
metamorfoseia-se a morte em flores e o fim da vida num movimento de totalização, de
75

regresso à mãe Pachamama, à origem da vida, em algo que não deve ser temido, ainda
mais porque representa não um fim, mas um recomeço.
Permeada pelo elemento mítico e tendo visivelmente colhido elementos
provenientes da cultura popular, as narrativas de Mujeres categorizadas como
pertencentes à Dominante Cíclica do Regime Noturno transmutam em matéria literária,
através de brevíssimas linhas, toda essa estrutura arquetípica materna, que conjuga ao
mesmo tempo elementos telúricos e cíclicos.
Reiterando o que dissemos anteriormente, notamos que Galeano, pautado numa
linguagem poética, densa e concisa, estrutura suas narrativas aproveitando-se de
elementos provenientes de mitos ancestrais sobre a feminilidade, em grande parte das
vezes suprimindo informações acerca do mito a que se refere o texto literário, contudo
salientando outros aspectos que venham a corroborar com a poeticidade das narrativas.
Em “1711, Paramaribo: Ellas llevan la vida en el pelo”, “1739, al este de Jamaica:
Nanny” e “La Pachamama”, o autor retoma partes de eventos considerados míticos,
adensa, porventura, outros componentes em prol de seu discurso artístico-literário,
orientado especialmente em direção à valorização de uma feminilidade primordial.
Contudo, existe uma diferença essencial entre Nanny, a Pachamama e as
mulheres-celeiro sem nome. Nanny é venerada num dado espaço-tempo, assim como
em maior escala, a conhecida Pachamama. Elas pertencem, respectivamente aos mitos e
às religiões pré-colombianas da América e suas histórias, muito complexas, condensam-
se num esboço básico e literário próximo ao mito das amazonas, por exemplo. Por sua
vez, a figura das mulheres-celeiro não é tão notória.

5.4 Considerações parciais sobre as narrativas da Dominante Digestiva

Inseridas como pertencentes à Dominante Digestiva do Regime Noturno do


Imaginário, as narrativas mitopoéticas que trataremos no presente momento possuem
como tônica o retrato de uma feminilidade abismal, ctônica, enfim, uma sexualidade
feminina nefasta.
De acordo com Durand (1997, p. 279), “A imaginação noturna é, assim,
naturalmente levada da quietude da descida e da intimidade, que a taça simbolizava, à
dramatização cíclica na qual se organiza um mito do retorno”, quer dizer, no Regime
Noturno, os valores preponderantes oscilam entre as imagens do redobramento
76

continente-conteúdo, e assim, da sexualidade e da intimidade (Dominante Digestiva) e


pelas apreciações calendáricas, temporais, cíclicas (de inserção na Dominante Cíclica,
sobre a qual tratamos no item anterior). De modo geral, a imaginação noturna tende ao
movimento de interioridade do cosmo e dos seres à qual se desce e onde se mergulha
por uma série de processos como o engolimento e as fantasias digestivas ou
ginecológicas (DURAND, 1997, p. 281-282). Todas essas nuances foram perceptíveis
durante a aplicação de nossa análise ao corpus, conforme esperamos ter demonstrado.
Entre as narrativas de escrita menor que o convencional classificadas como
concernentes à Dominante Digestiva do Regime Noturno do Imaginário, estão “El
miedo”, “La autoridad”, “Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus
mujeres”, “1542, Conlapayara: Las amazonas”, “Maria Padilha” e por último
“Ventana sobre una mujer”.
Conforme demonstramos, trata-se de narrativas de escrita menor que o
convencional cuja estrutura é permeada por elementos míticos referentes a uma
feminilidade primordial, transpassada pelo destaque de determinados aspectos, com a
finalidade de tornar mais acentuado o lirismo e a poeticidade de seu conteúdo.
Assim como ocorre com os microcontos pertencentes à Dominante Cíclica, nas
narrativas que classificamos como próprias à Dominante Digestiva, a escolha de
Galeano, em priorizar alguns aspectos míticos ao invés de outros, deu-se em prol da
construção de uma literariedade, atenta ainda à extrema concisão e densidade poética
das narrativas.
Podemos observar que nesse conjunto de narrativas, seguindo o viés a que nos
propusemos, qual seja, o da mitocrítica, ocorre a predominância de mitemas que
apontam para o delineamento de uma feminilidade funesta.
Neste sentido se orientam praticamente todos os contos da Dominante Digestiva,
contudo é um indicativo que aparece mais explicitamente as narrativas ultracurtas
denominadas “La autoridad” e “Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar a
sus mujeres”. Nelas ocorrem inversões, com a substituição ou troca de papéis entre as
personagens que representam tradicionalmente os pares opostos, quais sejam, masculino
e feminino, e ainda põem em cena as reminiscências mítico-imaginárias das
transubstanciações das relações entre ambos.
77

Por sua vez, notamos que em “El miedo” e “1542, Conlapayara: Las
amazonas”, a sexualidade feminina é retratada literariamente como abismal, perigosa,
engolidora, vertiginosa e indômita. As personagens centrais são mulheres que fogem às
regras sociais para elas estabelecidas. Em sentido de continuidade destas, na narrativa
ultracurta titulada “Maria Padilha”, a feminilidade representada como nefasta ganha
maior relevo, ao extremar-se na figura infernal e sinistra que dá título ao conto.
Transformadas em personagens de ficção, Maria Padilha e as Amazonas fazem
ecoar explicitamente as representações de uma feminilidade envolta em contornos
malignos e infernais. Quer dizer, por meio das personagens são retratadas as atribuições
negativas dadas à feminilidade, especialmente , quando são colocadas como expressão
de perversidade as atitudes das personagens de negação das condutas morais e sociais, o
exercício de uma sexualidade desregrada e a reivindicação de paridade com o
masculino. São ambas as personagens que melhor ilustram a negativização do feminino.
No caso de “El miedo”, é retomado o tema da feminilidade aglutinadora,
devoradora, na decodificação literária de imagens míticas, nas quais “os seres humanos
conseguem distanciar-se do que eles simultaneamente temem e sonham: a volta ao
estado feliz anterior ao nascimento” (ENRIQUEZ, 1999, p. 191). A expressão de um
feminino engolidor é retratada por Galeano com uma brevidade e concisão que não furta
a densidade do assunto, mas o insere através de elementos líricos e mitopoéticos.
Manifestadamente, o conto ultracurto de número 9. “Ventana sobre una mujer”,
conforme informamos outrora, não remete diretamente a mitos femininos, operando de
modo independente da orientação mitopoética das demais narrativas. No entanto, trata-
se de uma micronarrativa de extraordinária valia, uma vez que também condensa em seu
núcleo representações arquetípicas sobre a feminilidade, e que, ademais, nos ampara no
estabelecimento de um fio de encadeamento entre todos os textos que compõem nosso
corpus.
“Ventana sobre una mujer”, conforme demonstramos anteriormente, nos remete
a uma ampla gama de imagens que circundam a feminilidade, qual seja, a comparação
da mulher com uma casa secreta, o que aduz, no âmbito do imaginário, a uma
microcosmicização do corpo da própria mulher, que ainda é caracterizada como sendo,
concomitantemente, sedutora e perigosa.
78

Percebemos que nessa narrativa atuam, assim como nas anteriores, uma
representação do feminino que congrega as imagens próprias da Dominante Cíclica e da
Dominante Digestiva do Regime Noturno do imaginário. O movimento de incursão do
narrador no interior de uma casa feminóide funde, em concomitância, imagens de
engolimento e de totalização. Apesar de ser o menor dos contos que compõem nosso
objeto de estudo, esse texto literário de Galeano causa surpresa por empreender a
significações arquetípicas tão densas sobre a feminilidade em pouquíssimas palavras e
com uma linguagem poética apuradíssima.

6. O Eterno Feminino
6.1 Apontamentos sobre o tempo em Mujeres

No decorrer do presente trabalho, todavia não nos detivemos no assunto da


categoria de tempo inserida em nosso objeto de estudo, até mesmo porque não se trata
de um fator elementar para nossa pesquisa. Contudo, no presente momento, ponderamos
ser necessária ao menos uma breve tessitura acerca de como se configura a instância
narrativa temporal em nosso corpus.
Tendo em vista a estreita relação com a mitologia na qual estão pautadas as
narrativas que compõem nosso objeto de estudo, iniciaremos discorrendo acerca do
tempo do mito.
O tempo do mito tem a especificamente de ser anterior às cronologias
registradas. Nele, uma ação que se desenvolvera em um momento e espaço sagrados
deve ser repetida periodicamente através de ritos, que têm como função prover a
manutenção de uma ordem cosmogônica. Desse modo, uma ação ocorrida no que se
denomina in illo tempore, está inserida num tempo elíptico, que se repete com a
finalidade de ser regenerado continuamente, um eterno retorno (ELIADE, 1992, 1981).
Por sua vez, em âmbito literário, no tempo da narrativa:

É deslocável o presente, como deslocáveis são o passado e o futuro.


De ‘uma infinita docilidade’, o tempo da ficção liga entre si momentos
que o tempo real separa. Também pode inverter a ordem desses
momentos ou perturbar a distinção entre eles, de tal maneira que será
capaz de dilatá-los indefinidamente ou contraí-los num momento
único, caso em que se transforma no oposto do tempo, figurando o
intemporal e o eterno (NUNES, 1988, p. 25).
79

Dessa perspectiva, a linguagem utilizada na elaboração do texto literário pode


apelar para o deslocamento temporal, para repetições, inversões e até mesmo
reafirmações em função do exercício artístico de estruturação do texto literário.
A hibridação dos gêneros de escritura breve com gêneros arcaicos, como o mito
e sua correspondente temporalidade foram previstas por Zavala (2006).
Na “Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus mujeres”,
verificamos a presença de um diálogo estabelecido entre o tempo do mito e o tempo da
narrativa de extensão menor que o convencional. Esse fator também acaba operando em
consonância nas demais narrativas de nosso corpus, quer dizer, a comunicação de
ambas as espécies de temporalidades, estruturas complexas, conforme demonstramos,
que se enlaçam entre si em todos os microcontos que compõem nosso objeto de estudo.
São narrativas que condensam em seu núcleo efígies arquetípicas acerca da
feminilidade, ora literariamente pautadas na deslocação, contração e dilatação temporal,
ora estabelecendo um diálogo com um tempo ancestral, arcaico, mítico, remetendo à
acontecimentos supostamente ocorridos in illo tempore. Entretanto, alicerçadas
fundamentalmente na (re)construção desses episódios dentro do âmbito literário,
priorizam certos elementos ao invés de outros, dando-lhes contornos poéticos com
vistas à elaboração artisticamente apurada das narrativas. Por vezes é perturbada a
distinção entre as instâncias temporais literárias e as de reminiscências do mito,
motivada ademais do exercício inventivo de Galeano, inclusive, pela extrema brevidade
dos contos.
Um exemplo de como isso produz pode ser ilustrado a partir da narrativa “La
autoridad”, que se inicia fazendo referência a algo ocorrido ficcionalmente há muito
tempo, um tempo das origens da humanidade, quer dizer, um tempo mítico. Em prol de
uma concisão e brevidade extrema, nessa narrativa, privilegia-se o relato de uma versão
dos fatos, uma suposta transubstanciação de como se fundamentaram as relações entre
os homens e as mulheres onas e yaganes, habitantes primitivos da Terra do Fogo.
Literariamente pautada numa acuidade estética e artística, a narrativa prima pela escrita
mitopoética que utiliza para apresentar a exposição a qual nos remete, qual seja, a
origem das relações desiguais entre os gêneros masculino e feminino, aportando,
inclusive, um tempo narrativo que se relaciona com o tempo do mito.
80

6.2 Conexões: representações literárias da feminilidade mítica

Com base em nossas análises, observamos a existência de uma elaboração


literária e estética de temores eróticos e carnais nos mitos a que remetem parte das
narrativas. Tal disposição evidencia-se nos microcontos classificados como pertencentes
à Dominante Digestiva, uma vez que deixam mais visíveis as reminiscentes tendências
operadas no imaginário, de uma progressiva eufemização de terrores brutais/mortais em
temores eróticos/carnais em determinados relatos míticos, que por sua vez foram
transmutados em matéria literária dentro de nosso corpus. Apontamos, por exemplo,
que em “El miedo” é demonstrado o temor masculino de uma suposta vagina dentada,
inversão no plano mítico da condição mais comumente atribuída ao homem de ser
aquele que “come”, passando a categoria daquele que é “comida” – ou comido (LÉVI-
STRAUSS, 1989, p. 123). Transformada em objeto literário, por sua vez, o tema da
vagina dentada é recriado artisticamente na narrativa de Mujeres a que nos referimos.
No mesmo direcionamento de representação artística, em “La autoridad”,uma
inversão de papéis de gênero desenvolve-se no momento em que o quadro de
dominação pelo medo protagonizado pelas mulheres onas e yaganes sobre os homens
da mesma nação, inverte-se através apossamento, por parte dos homens, do artifício até
então mantenedor do poder das mulheres, quer dizer, o uso de máscaras, que, conforme
afirmamos anteriormente, pode tanger mais à esfera da representação e remeter a uma
“máscara social” legitimadora do papel de dominação do que referir-se ao objeto
propriamente dito (MAUSS, 2005, p. 207 – 241).
Notadamente, a narrativa a qual acabamos de nos referir, aduz a reminiscências
míticas de uma ordem social diferente do patriarcado vigorando entre a humanidade.
Trata-se de um suposto momento ancestral em que a mulher não teria um papel
secundário com relação ao homem, pelo contrário, teria papel de destaque, se não de
centralidade, na sociedade (EISLER, 1989, 1996; KOSS, 2000; SILVA, 2007;
WHITMONT, 1991; MARQUETTI, 2001).
Esse item, que prenuncia reminiscências míticas de uma organização social
diversa do patriarcado, tangenciado numa construção artística feita no plano literário,
anuncia-se paralelamente nos microcontos “1542, Conlapayara: Las amazonas”,
“1739, al este de Jamaica: Nanny”, “La Pachamama” e “Historia del lagarto que tenía
81

la costumbre de cenar a sus mujeres”. Na narrativa intitulada “1542, Conlapayara: Las


amazonas”, é retratada uma nação de mulheres guerreiras que teriam existido e vivido
em aldeias sem homens. Em “1739, al este de Jamaica: Nanny”, a personagem feminina
enigmática, Nanny, reverbera uma posição de poder de maior relevo que a do chefe
masculino Quao. Além disso, cristaliza-se a centralidade de uma personagem feminina
na narrativa “La Pachamama”, onde, poeticamente, é retratada uma divindade materna
considerada em algumas culturas hispano-americanas como a criadora e mantenedora
do universo. E ainda, na “Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus
mujeres”, uma personagem feminina de destacada centralidade, que mesmo sem ter um
nome, mas possuidora de um livro de “leyendas”, acaba por fazer papel daquela que
cessa uma carnificina, vindo a ser uma espécie de “justiceira” frente a Dulcidio, ser
híbrido que devorava, uma após a outra, suas esposas na noite de núpcias.
Ainda com base no último conto citado, inferimos que o livro de “leyendas” que
pertence à personagem feminina, juntamente com o uso de óculos por parte dela,
representam o conhecimento que ela possui, a sua intelectualidade. Conforme
apontamos outrora, com base no pensamento de Durand (1997, p. 131), um símbolo
tende a remeter para o verbo por ele representado. Tomado o exemplo do uso dos
óculos, podemos, nesse caso, ser conduzidos ao verbo ver ou enxergar, diante do qual
fica perceptível a metáfora da intelectualidade e capacidade de discernimento da
personagem feminina da narrativa em questão. Além disso, no livro que ela possui
ecoam “Voces viejas”, que “Acompañam - dice” (GALEANO, 1995, p.10), isto é, por
meio de sua leitura a personagem mantém uma comunicação direta com vozes
ancestrais, quer dizer, estabelece contato com conhecimentos antepassados, discursos
que não permitem à ela esquecer-se de um passado que não é informado com exatidão,
apenas indiciado – possivelmente um passado acontecido in illo tempore, num tempo
mítico. Essa sabedoria ancestral reflete em sua conduta, bem como nos indicativos de
alheamento por parte dela à repentina paixão de Dulcidio, pela sua indiferença ao
pedido de casamento, nas ponderações silenciosas que tece consigo mesma quando o
lagarto híbrido reclama de sua condição de constante viuvez.
A “leyenda” conforme Colombres (1995, p. 152), nos conduz à remissiva de um
relato sobre a origem de um acontecimento sem contornos definidos entre o que pode
ser realidade e o que não pode, dentro de um conto parcialmente despojado de sua
82

sacralidade, ou ainda, em processo de sacralização. Trata-se de um material pertencente


ao pensamento simbólico, mais mítico que ao histórico ou lendário.
Atuando nessa linha de representação, a narrativa “Historia del lagarto que tenía
la costumbre de cenar a sus mujeres” apresenta uma personagem feminina central que
estabelece um diálogo com o universo mítico, carregado de elementos simbólicos; ela
reconhece e identifica-se com uma versão de um passado que repercute em sua rotina.
Considerando-se a soberana de um espaço delimitado, a beira do rio, sente seu território
invadido quando Dulcidio se aproxima, mas mesmo assim permanece calada quando,
ousadamente, ele diz que concede a ela a permissão para que permaneça sentada
naquele pedaço de chão. Diante das repetidas incursões dele, ela desaparece por longo
tempo, de modo que posteriormente ao desfecho, o leitor é levado a pensar que ela
estava a refletir, a articular um plano e que, consciente de que Dulcidio era o
responsável pela carnificina de suas esposas, a personagem feminina misteriosa decidira
inverte a situação, devorando o homem-lagarto.
Outra correlação pode ser estabelecida se contrapormos a existência de ambas as
personagens num mesmo espaço. Quer dizer, o herdeiro híbrido e a personagem
feminina que depois revela-se também híbrida, parecem não poder dividir o mesmo
espaço. Mesmo que ela não assumisse a mesma postura devoradora desenfreada que ele,
e que sua atuação (como devoradora) pudesse lhe parecer “justa”, ou, no mínimo,
defensiva, o modo como ela opera acaba sendo ilustrado como mais perverso,
premeditado, e ainda, preocupado em manter as aparências. Entretanto, a carnificina
protagonizada por Dulcidio era justificada por ele como expressão de sua natureza
animal, e dessa forma, aceita socialmente.
De acordo com Eugène Enriquez (1999, p. 182):

Desde Engels e Freud, todos os autores estão de acordo (qualquer que


seja a sociedade abordada) quanto ao estatuto inferior e dominado da
mulher e quanto às características de desordem e vinculação com a
natureza (considerada aqui como antagônica e antinômica da cultura),
que revestem o feminino.

A partir da narrativa em questão podemos traçar um paralelo com a atribuição da


mulher como pertencente ao mundo da natureza, enquanto o homem como aquele que
faz parte do mundo da cultura. Isso porque na natureza as forças destrutivas não são
83

passíveis de controle, ao contrário do que ocorre no mundo da cultura, no qual todos os


impulsos estão sob o domínio da repressão e da moral (ENRIQUEZ, 1999).
Ilustrativo dessa ponderação, de acordo com Lévi-Strauss (1989) é o acordo de
exogamia, na passagem da humanidade do estado de natureza para o estado de cultura.
A partir desse momento dado de nossa história evolutiva estabeleceu-se o tabu do
incesto como forma de negação do mundo da indiferenciação e proibição das relações
sexuais entre parentes. Com isso, inclusive, é feito um pacto de sociabilidade.
Basta refletirmos um pouco ao atentarmos para os resultados obtidos até agora
na análise de nosso corpus para perceber como essa recorrência do pensamento
simbólico permeia e se entrelaça em nossa cultura, que constantemente atribui à mulher
uma perversidade e culpabilidade que é geralmente isenta ao homem.

6.3 O Arquétipo Materno

O estudo aprofundado de nosso corpus, em suas diversas especificidades,


incluindo a identificação e análise das imagens e dos mitemas presentes, nos conduziu a
um grande arquétipo, que permeia todas as narrativas, para o qual voltaremos nossas
reflexões no presente momento.
Através da perspectiva da teoria das estruturas antropológicas do imaginário e da
mitocrítica, constatamos que os elementos essenciais que permeiam nosso objeto de
estudo incorrem, fundamentalmente, na representação do arquétipo materno.
As narrativas com as quais trabalhamos ilustram muito explicitamente a
constatação defendida por Jung (2000, p.46) de que todos os arquétipos possuem um
aspecto positivo e outro negativo.
Conforme demonstramos, a representação da feminilidade em nosso corpus
oscila entre polaridades negativas e positivas, quer dizer, ora a mulher aparece cerceada
por atributos libidinosos, devoradores, belicosos, indômitos e malignos, ora anuncia
uma maternidade benfazeja, que promove a nutrição e a fertilidade. Evidenciamos como
essas duas polaridades se perfazem, respectivamente, na Dominante Digestiva e da
Dominante Cíclica do Regime Noturno da Imagem.
Jung (2000) e Durand (1997) concordam que os aspectos essenciais do arquétipo
materno são a bondade nutridora e protetora, a sexualidade orgiástica e a obscuridade
84

subterrânea. As micronarrativas às quais nos dedicamos conjugam todos esses aspectos,


colocando-os como expressões da feminilidade inseridas no enredo dos textos em
ambas as suas representações polares, quais sejam, a positiva e a negativa.
A unificação de aspectos ambivalentes não é um obstáculo quando nos referimos
às estruturas antropológicas do imaginário. Para Koss (2000, p. 114-115), a
diferenciação entre tais polaridades é um fenômeno tardio de nossa história, um efeito
da consciência discriminativa que emerge com o advento dos valores patriarcais de
dominação. Podendo agora ser comprovado apenas como conteúdo da pré-história ou do
inconsciente, o Grande Feminino foi reprimido; consequentemente, o feminino foi
negativizado e passou a ter uma forma distorcida nos dias de hoje.

Levando em consideração que os elementos positivos da experiência


infantil, como alimento, calor, proteção, segurança e aconchego, estão
associados com a imagem da Grande Mãe, a privação destes
elementos em função da separação e supressão da mãe, está na base da
formação da Mãe Terrível (KOSS, 2000, p. 114-115).

Dessa forma, no âmbito do imaginário, a Grande Mãe contém aspectos positivos


da feminilidade, enquanto o que se chamou de Mãe Terrível é sua expressão negativa.
Sendo assim, o arquetipicamente feminino é ambivalente, receptivo, conectivo e
desfocado, de maneira que não importam os conteúdos culturalmente variados que lhe
sejam conferidos – bom, mau, certo, errado – uma vez que se trata de categorias
arquetípicas, princípios ordenadores indispensáveis ao desenvolvimento ético,
intelectual e estético da humanidade (WHITMONT, 1991, p. 102-111).
A ambivalência positiva e negativa das representações arquetípicas sobre a
feminilidade que se circunscrevem em nosso objeto de estudo é uma evidência quando
tomadas a partir do ponto de vista das estruturas antropológicas do imaginário, no qual
polaridades podem estar conectadas.
Ao ponderar que as grandes deusas mães podem ter atuado tanto como
destruidoras quanto como deusas da vida e também de morte, Eugène Enriquez (1999,
p.185) infere que:

O sentido do mito se decodifica assim: o Amor e a Morte são ambos


da ordem do feminino; é a mãe que procura o primeiro gozo, o
primeiro contato corporal. É ainda a mãe que, ao querer guardar a
criança perto dela, nela, indica-lhe não somente seu fim próximo (ela
saberá pegá-lo em seu seio), mas ainda seu não-nascimento enquanto
85

um ser diferenciado, podendo entrar nos vínculos de aliança e de


reciprocidade. Nem o homem, nem a mulher podem furtar-se à mãe. E
como a mulher, por sua vez, também será mãe, é o reino da mãe que
se estenderá. Reino da repetição, da reprodução do idêntico, do amor
devorador, em síntese, da morte.

As narrativas que estudamos estão repletas de mulheres que transitam entre essas
instâncias polarizadas durante todo o tempo. No percurso que decorremos ao longo do
presente trabalho, nos deparamos com imagens de mulheres que seduzem e arruínam o
homem, mulheres demonizadas por seu erotismo, amor, ódio, rejeição, personagens
sedutoras ofuscantes e malévolas, mas ainda o retrato maternal, nutridor, inspirador;
figuras de uma feminilidade arquetípica intercambiante e, acima de tudo, materna – a
qual nenhum de nós pode se furtar, conforme apontamos.
Inseridas na representatividade do Regime Noturno da Imagem, versamos sobre
narrativas que estão englobadas pelo arquétipo materno, o Eterno Feminino que inclui
todas as polaridades, claro e escuro, dia e noite. “A vivência feminina é portanto
propensa – ou está entremeada – aos processo de crescimento e decadência, aos ciclos
naturais de vida, ao amadurecimento e morte, e aos ritmos e períodos de natureza,
espírito e tempo” (WHITMONT, 1991, p.152). Dessa forma, podendo ser vinculada ao
céu noturno, representante do feminino e seus mistérios, bem como à lua e às águas.
Atestando o elo entre esses elementos e a mulher, podemos concordar com
Durand (1997, p.103), para quem “o isomorfismo da lua e das águas é, ao mesmo
tempo, uma eufemização, sendo o ciclo menstrual que constitui o termo intermédio. A
lua está ligada à menstruação, como ensina o folclore universal”, lembrando-nos ainda
que em tempos primevos, o sincronismo entre o ciclo da lua e o ritmo mensal da mulher
foi considerado uma evidencia do elo misterioso entre ambas.
Durand (1997, p. 103) confirma que são abundantes os casos em que deusas
lunares, tais como Diana, Ártemis, Hécate, Anaitis ou Freyja tenham atribuições
ginecolátricas. Em referência a outra deusa ancestral, incluímos o exemplo de Ishtar,
deusa da catástrofe que ata e desata o fio do mal, o fio do destino. Como ambivalência
cíclica potencializada, o simbolismo do fio antecipa eufemizações de símbolos
terrificantes.

A cabeleira não se liga à água por ser feminina, mas, pelo contrário,
feminiza-se por ser hieróglifo da água, água cujo suporte fisiológico é
o sangue menstrual. Mas o arquetipal do elo vem sobredeterminar
86

sub-repticiamente a cabeleira, porque ela é ao mesmo tempo signo


microcósmico da onda e tecnologicamente o fio natural que serve para
tecer os primeiros nós (DURAND, 1997, p.107)

Diante disso, relevamos uma outra possibilidade interpretativa do conto “1711,


Paramaribo: Ellas llevan la vida en el pelo” em que as mulheres-celeiro também seriam
passíveis de processos de negativização. Seus cabelos, portadores de vida, poderiam
sobredeterminar um movimento de atar, de amarração, e portanto, ser negativizados.
Próprias do arquétipo ao qual nos reportamos, esse tipo de ambivalência, a
caminho da eufemização, é sobretudo lunar, posto que as divindades lunares são
concomitantemente executoras e senhoras da morte e das punições. Nesse entremeio, há
outro simbolismo a ser averiguado, o do ciclo menstrual. Símbolo perfeito da água
negra, para diversos povos o sangue da menstruação sempre foi um tabu, considerado
impuro e prescrevendo uma conduta carregada de particularidade a serem seguidas.
Muitas culturas interditam, entre outros, a realização do ato sexual no período menstrual
da mulher, o contato com os alimentos e até mesmo com outras pessoas (DURAND,
1997, p.108-109).
Assim sendo, encerra-se um retrato, de que:

Em todas essas práticas, a tônica é posta no acontecimento


ginecológico, mais que nunca ‘culpa sexual’, significação que só será
dada pelo esquema da queda. O sangue menstrual é simplesmente a
água nefasta e a feminilidade inquietante que é preciso evitar ou
exorcizar por todos os meios (DURAND, 1997, p.109).

Apresentamos, dessa forma, a valorização excessivamente negativa do sangue


menstrual, cujo semantismo constela em torno da feminilidade. Por muito tempo, a
menstruação foi incorporada como uma nódoa moral de culpa e vista como um castigo
designado para a mulher. Fator correlativo do drama lunar, o sangue feminino é
determinado junto com as dores a serem sofridas no parto após o banimento pelo
Criador – a punição de Eva e de todas as mulheres.
De acordo com Durand (1997, p.297):

A história das religiões mostra-nos, com numerosos exemplos, esta


colusão do ciclo lunar e do ciclo vegetal. É isso que explica a
frequentíssima confusão sob o vocábulo de ‘Grande Mãe’, de terra e
de lua, representando as duas direta ou indiretamente o governo dos
germes e do seu crescimento. É também por essa razão que a lua é
classificada como divindade ctônica, ao lado de Deméter e Cibele.
87

‘Divindade lunar é sempre ao mesmo tempo divindade da vegetação e


da terra, do nascimento e dos mortos’.

Tanto a lua quanto a vegetação apresentam ciclos de início, transformação,


apogeu e declínio, que acabaram gerando a possibilidade de associação entre eles no
imaginário da humanidade, de modo que “Ciclos menstruais, fecundidade lunar,
maternidade terrestre vem criar uma constelação agrícola ciclicamente determinada”
(DURAND, 1997, p.297). Quer dizer, parecem ser regidos pela mesma espécie de ciclos
a lua, a menstruação, a fecundidade da terrestre, seja da vegetação ou dos seres vivos
que na terra habitam.
Tais características transparecem em nosso objeto de estudo, especialmente, nas
narrativas “1711, Paramaribo: Ellas llevan la vida en el pelo”, “1739, al este de
Jamaica: Nanny” e “La Pachamama”, nas quais prevalecem, imagens agrícolas,
calendáricas e do eterno retorno, que se vinculam, no âmbito do imaginário, ao
simbolismo da lua, ao feminino fecundo e maternal, e ainda, com o sangue menstrual.
Assim como a mulher é capaz gerar outro ser, a terra é capaz de dar frutos. O
homem primitivo estabeleceu essa correlação entre ambas, de modo que ainda hoje
“Essa crença na divina maternidade da terra é certamente uma das mais antigas; de
qualquer modo, uma vez consolidada pelos mitos agrários, é uma das mais estáveis”
(DURAND, 1997, p.230). Essa relação sacralizada com a terra e a estabilidade dos
mitos agrários se dá, em especial, porque nos tempos primevos as pessoas dependiam
essencialmente de seus frutos para sobreviver. Enquanto a água era considerada o
“princípio e o fim dos acontecimentos cósmicos”, a terra por longo tempo estivera “na
origem e no fim de qualquer vida”. Tal como a água, a terra era tida como primordial
matéria do mistério.
Reflexos dessa relação sacralizada que era mantida com a natureza podem ser
apreendidos em “La Pachamama”, e ainda que em menor escala, em “1711,
Paramaribo: Ellas llevan la vida en el pelo”. Ambas as narrativas aduzem a esse tipo
de vínculo de veneração com a terra e a sua capacidade nutridora e fecunda.
Paralelamente, todos esses simbolismos cíclicos induzem à meditação sobre o
tempo, a duração da vida e o envelhecimento. A harmonização com esses movimentos
cíclicos e rítmicos da natureza realiza-se periodicamente por meio da realização de
rituais, tais como aqueles que são anunciados em “La Pachamama”,as oferendas de
88

alimento, as libações, o ato de enterrar a placenta dos recém-nascidos ou os nós de


cabelo dos amantes.
A humanidade sempre buscou uma comunicação com o sagrado e desejou a
transcendência de sua condição mundana (KOSS, 2000, p. 135).
Em nosso objeto de estudo, a feminilidade esteve continuamente cerceada pelos
elementos e simbolismos sobre os quais nos detivemos. O encadeamento desses
aspectos em nosso corpus, reitera quão genuinamente “Eterno feminino e sentimento de
natureza caminham lado a lado em literatura” (DURAND, 1997, p.233). E outra vez
ponderamos que o enlevo das narrativas está justamente na extrema poeticidade que as
estrutura.
O estudo do arquétipo materno subjacente nas narrativas de Mujeres com as
quais trabalhamos, orientou de modo significativo as nossas tessituras e ampliou as
perspectivas interpretativas sobre o modo como são construídas as representações da
feminilidade face ao âmbito literário.

6.4 A representação da feminilidade em Mujeres

Vimos que, tendo a literariedade mitopoética como elemento fundamental, as


narrativas de nosso corpus remetem diretamente a mitos femininos e em nível mais
elevado, a vários arquétipos da feminilidade. Nesse entorno, na busca por uma
valorização da feminilidade, contudo, constamos que tais narrativas acabam, por vezes,
repetindo o discurso dominante sobre a mulher. Galeano confere uma voz poética às
personagens míticas e femininas da obra, descontruindo certos discursos convencionais
sobre elas, mas reafirmando outros.
Em “1711, Paramaribo: Ellas llevan la vida en el pelo” e “1739, al este de
Jamaica: Nanny” é desarticulado um discurso implícito, porém preponderante, de
abstenção e inatividade da mulher no processo de luta pela abolição da política de
escravatura nas Américas. Por sua vez, “La Pachamama” aprecia o resgate, em âmbito
literário, das características fundamentais da principal divindade feminina do Altiplano
Andino, revalorizando-a como personagem que conjuga em si a dialética da valoração
maternal, que traz à vida, e ao mesmo tempo telúrica, mortuária, agregando ainda uma
evidente relação com os ciclos agrários e de fertilidade da terra.
89

Entretanto, “El miedo”, “La autoridad”, “Historia del lagarto que tenía la
costumbre de cenar a sus mujeres”, “1542, Conlapayara: Las amazonas”, “Maria
Padilha” e ainda “Ventana sobre una mujer” são narrativas que por vezes, ainda que na
busca por uma valorização de uma feminilidade primordial, acabam por afiançar, em
certa medida, os discursos convencionais sobre a mulher, quais sejam, o de que o
feminino é possuidor de potencialidades nefastas, procedimento que ocorre por meio da
atribuição de elementos malignos como qualidades consideradas inatas às personagens
femininas e que assim, denotam a negativização da feminilidade.
Direciona-se nesse sentido, por exemplo, conforme apontamos outrora, na
“Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus mujeres”, os indícios da
possível premeditação arquitetada pela personagem feminina híbrida no ato de devorar
Dulcidio, personagem que figura apenas aquele que atende os chamados de sua
natureza, ou seja, que sucumbe ao seu instinto animal toda vez que devora suas esposas,
sendo, portanto, desprovido de culpa.
Num movimento semelhante, reiterando a negativização da feminilidade,
ordena-se o discurso de “La autoridad”, quando, de modo implícito, justifica-se a
dominação sobre a mulher como uma estratégia de defesa masculina na Terra do Fogo.
Ressoa um dito velado de “Foram elas que começaram!” durante toda a narrativa, quer
dizer, apaga-se a culpa pelo extermínio de um grupo de mulheres e ainda legitima-se a
dominação posterior sobre aquelas que restaram.
Reafirma ainda o discurso convencional sobre a mulher, em determinado
aspecto, “Ventana sobre una mujer” quando laureia afamados mistérios femininos, e
ainda afirma que eles podem consumir aqueles com os quais entram em contato.

7. Considerações Finais

Ao longo do percurso decorrido até o presente momento de nosso trabalho,


analisamos os recursos literários específicos utilizados na configuração das narrativas de
nosso objeto de estudo. Os elementos literários basilares que compõem os contos,
conforme pudemos averiguar, estão articulados de modo decisivo na construção da
síntese e da condensação narrativa.
São micronarrativas permeadas estrategicamente por referências textuais e
extratextuais, por meio das quais são traçadas, inclusive, alusões decisivas na
90

compreensão e melhor apreciação dos contos, configurando-se como elementos de


intertextualidade. Além disso, são construídas formas de humor e de ironia, ademais de
polissemias, metáforas e ambiguidades semânticas que aparecem investidas de maior
proeminência devido à natureza condensada dos textos de que tratamos.
O gênero literário que estudamos é provido de brevidade e intensidade de
maneira concomitante; são narrativas que devido a sua especificidade estrutural auferem
proveito dos recursos literários destacados em favor de sua extensão, de natureza
abrupta, isso em virtude de que sua dimensão é extremamente pequena, se comparada
com outros gêneros narrativos.
Munidas de uma linguagem poética e de uma escrita menor que o convencional,
as narrativas que compõem nosso objeto de estudo estruturam-se de modo destacado
como ícones pertencentes à literatura contemporânea. Articuladas com uma
preocupação e acuidade estética, são narrativas em que à característica específica da
suma condensação acrescenta-se a hibridez de gênero em seu trânsito entre o discurso
ficcional e o mítico. São microcontos que destacam-se, ainda, ao transitar pelo universo
artístico permeando referências à relatos míticos sobre a feminilidade. Utilizando-se
desses relatos míticos pertencentes ao Continente Americano, mas que
concomitantemente formam parte da cultura universal, as narrativas constituem-se
literariamente de modo peculiar. A comunicação entre literatura e mitos da feminilidade
que integra as micronarrativas demarca um ponto essencial em nosso trabalho.
Na exploração de recursos literários a narrativa de escrita menor que o
convencional tem potencializada sua capacidade de evocação, que em nosso caso,
invariavelmente, tange à uma feminilidade mítica, primordial.
Trata-se de microcontos que preservam em seu cerne representações arquetípicas
acerca da feminilidade. Juntamente com a averiguação do fenômeno da escrita sintética,
realizamos o estudo da articulação das imagens inseridas nas narrativas. Em
conformidade com as proposições teóricas apontadas Gilbert Durand (1993, 1997),
pudemos constatar o dinamismo interno das imagens nos textos literários que
constituem nosso objeto de estudo. Em seguida, averiguamos que as imagens e os
mitemas realmente constelam em torno de um mesmo semantismo comum, de modo
que formam um agrupamento em torno de estruturas isomórficas, que gradualmente
91

vem a desembocar nos mesmos arquétipos da feminilidade sobre os quais trataremos


adiante.
No intuito de perscrutar esse processo, delineando numa trajetória demarcada
pela metodologia de Durand, quer dizer, tendo como pauta o caminho proposto pela
mitocrítica e pela delimitação analítica em grandes eixos antropológicos, constituída
pelo método das constelações e convergência de imagens, chegamos à identificação e ao
agrupamento dos mitemas da feminilidade operantes numa linha de representação
explicitamente poética nas narrativas. Dessa forma, nossa abordagem permitiu a
decomposição interna dos extratos mitêmicos presentes no corpus e posterior análise
das combinatórias de situações em que cada uma das personagens se insere, traçando as
conexões e semelhanças entre elas.
Fundamentados na análise das micronarrativas que compõem nosso objeto de
estudo, agrupamos em torno da Dominante Cíclica do Regime Noturno do Imaginário,
os mitemas representantes de uma feminilidade, ora fecunda e nutridora, ora
beligerante, telúrica e lúgubre, e ainda reunimos, por sua vez, os mitemas representantes
de uma sexualidade feminina nefasta, telúrica e abismal, sob a Dominante Digestiva do
Regime Noturno do Imaginário.
Averiguamos como, de fato, os elementos que compõem a representação do
Regime Noturno do Imaginário delineiam-se invariavelmente como a tônica em todas as
narrativas que compõem nosso objeto de estudo. De um lado, na categoria da
Dominante Cíclica, tivemos contato com a construção mitopoética de narrativas cuja
tônica era o vínculo da feminilidade com os ciclos agrários, rítmicos e calendáricos,
além dos contornos maternais.
Pactuando de uma natureza artística, as narrativas que estudamos apresentaram
aspectos estratégicos sobre a feminilidade, transformando em objeto literário distintas
mulheres míticas. Estas, por sua vez, tiveram suas histórias recontadas a partir da
construção inovadora dos contos. São personagens que nas narrativas de escrita sintética
ganharam diferenciadas nuances a partir da escrita de Galeano. Quer dizer, as
personagens femininas receberam um destaque essencialmente mitopoético, ademais de
uma abordagem que privilegiou facetas pouco tratadas na literatura, que, no entanto, faz
uso o escritor uruguaio, tais como o lirismo e a brevidade extrema, além da valorização
em âmbito literário, de uma feminilidade mítica.
92

Destacamos, por conseguinte, o aspecto mítico das narrativas, sem perder de


vista a linguagem provida de extremo lirismo que as estrutura, pois são narrativas que
destacam, em sua totalidade, aspectos atribuídos a uma feminilidade ancestral. Nesse
ínterim detectamos a presença dos mitemas tangíveis a feminilidade no plano mítico-
literário do corpus, parte indispensável no trabalho de aplicação da análise mitocrítica
que fundamenta metodologicamente nossa pesquisa.
Em concomitância, tendo por base os postulados de Durand (1997, 1993),
realizamos o agrupamento das narrativas tendo como base a consonância com
determinados relevos evidenciados entre elas. Destacamos tais aspectos classificando as
narrativas dentro das Dominantes Cíclica e Digestiva do Regime Noturno da Imagem.
Pontuados tais procedimentos, através dos quais averiguamos aspectos que
circundam a feminilidade de modo significativo das narrativas míticas de que tratamos,
demonstrados, por meio da continuidade da análise de nosso corpus, os múltiplos
elementos que permeiam estruturalmente as narrativas. Diante disso, tendo em vista
nossa hipótese inicial de elucidar a existência e a possível incidência de uma
feminilidade erigida em nosso objeto de estudo, refletimos acerca dos mitos a que as
narrativas aduzem, as imagens, a simbologia e o arquétipo literário presente.
Sendo assim, em conformidade com a nossa hipótese inicial, averiguamos que é
possível, por meio da análise das narrativas de que tratamos, notar a existência de uma
feminilidade construída. Através de nossas ponderações, conferimos, em nosso objeto
de estudo, a existência de liames que ora desconstroem, ora reforçam os discursos
convencionais sobre a mulher.
93

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Anexos

1 - “El miedo”

Esos cuerpos nunca vistos los llamaban, pero los hombres nivakle no se atrevían
a entrar. Habían visto comer a las mujeres: ellas tragaban la carne de los peces con la
boca de arriba, pero antes la mascaban con la boca de abajo. Entre las piernas, tenían
dientes.
Entonces los hombres encendieron hogueras, llamaron a la música y cantaron y
danzaron para las mujeres. Ellas se sentaron alrededor, con las piernas cruzadas.
Los hombres bailaron durante toda la noche. Ondularon, giraron y volaron como
el humo y los pájaros.
Cuando llegó el amanecer, cayeron desvanecidos. Las mujeres los alzaron
suavemente y les dieron de beber.
Donde ellas habían estado sentadas, quedó la tierra toda regada de dientes.

2 - “La autoridad”

En épocas remotas, las mujeres se sentaban en la proa de la canoa y los hombres


en la popa. Eran las mujeres quienes cazaban y pescaban. Ellas salían de las aldeas y
volvían cuando podían o querían. Los hombres montaban las chozas, preparaban la
comida, mantenían encendidas las fogatas contra el frío, cuidaban a los hijos y curtían
las pieles del abrigo.
Así era la vida entre los indios onas y los yaganes, en la Tierra del Fuego, hasta
que un día los hombres mataron a todas las mujeres y se pusieron las máscaras que las
mujeres habían inventado para darles terror.
Solamente las niñas recién nacidas se salvaron del exterminio. Mientras ellas
crecían, los asesinos les decían y les repetían que servir a los hombres era su destino.
Ellas lo creyeron. También lo creyeron sus hijas y las hijas de sus hijas.

3 - “Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus mujeres”

A la orilla del río, oculta por el pajonal, una mujer está leyendo. Érase que se
era, cuenta el libro, un señor de vasto señorío. Todo le pertenecía: el pueblo de
Lucanamarca y lo de más acá y lo de más allá, las bestias señaladas y las cimarronas, las
gentes mansas y las alzadas, todo: lo medido y lo baldío, lo seco y lo mojado, lo que
tenía memoria y lo que tenía olvido.
Pero aquel dueño de todo no tenía heredero. Cada día su mujer rezaba mil
oraciones, suplicando la gracia de un hijo, y cada noche encendía mil velas.
Dios estaba harto de los ruegos de aquella pesada, que pedía lo que Él no había
querido dar. Y al fin, por no escucharla más o por divina misericordia, hizo el milagro.
Y llegó la alegría del hogar.
El niño tenía cara de gente y cuerpo de lagarto.
Con el tiempo el niño habló, pero caminaba arrastrándose sobre la barriga. Los
mejores maestros de Ayacucho le enseñaron a leer, pero sus pezuñas no podían escribir.
A los dieciocho años, pidió mujer.
Su opulento padre le consiguió una; y con gran pompa se celebró la boda en la
casa del cura.
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En la primera noche, el lagarto se lanzó sobre su esposa y la devoró. Cuando el


sol despuntó, en el lecho nupcial no había más que un viudo durmiendo, rodeado de
huesitos.
Y después el lagarto exigió otra mujer. Y hubo nueva boda, y nueva devoración.
Y el glotón necesitó otra más. Y así.
Novias no faltaban. En las casas pobres, siempre había una hija sobrando.

Con la barriga acariciada por el agua del río, Dulcidio duerme la siesta.
Cuando abre un ojo, la ve. Ella está leyendo. Él nunca en su vida ha visto una
mujer con anteojos.
Dulcidio arrima la nariz:
— ¿Qué lees?
Ella aparta el libro y lo mira, sin asombro, y dice:
— Leyendas.
— ¿Leyendas?
— Voces viejas.
— ¿Y para qué sirven?
Ella se encoge de hombros:
— Acompañan – dice.
Esta mujer no parece de la sierra, ni de la selva, ni de la costa.
— Yo también sé leer – dice Dulcidio.
Ella cierra el libro y da vuelta la cara.
Cuando Dulcidio le pregunta quién es y de dónde, la mujer desaparece.

El domingo siguiente, cuando Dulcidio despierta de la siesta, ella está allí. Sin
libro, pero de anteojos.
Sentada en la arenita, los pies guardados bajo las muchas polleras de colores,
ella está muy estando, desde siempre estando; y así mira al intruso ése que lagartea al
sol.
Dulcidio pone las cosas en su lugar. Alza una para uñuda y la pasea sobre el
horizonte de montañas azules:
— Hasta donde llegan los ojos, hasta donde llegan los pies. Todo. Dueño soy.
Ella no echa ni una ojeada al vasto reino y calla. Un silencio muy.
El heredero insiste. Las ovejitas y los indios están a su mandar. Él es amo de
todas estas leguas de tierra y agua y aire; y también del pedazo de arena donde ella está
sentada:
— Te doy permiso – concede.
Ella echa a bailar su larga trenza de pelo negro, como quien oye llover, y el
saurio aclara que él es rico pero humilde, estudioso y trabajador, y ante todo un
caballero con intenciones de formar un hogar, pero el destino cruel quiere que enviude.
Inclinando la cabeza, ella medita ese misterio.
Dulcidio vacila. Susurra:
— ¿Puedo pedirte un favor?
Y se le arrima de costadito, ofreciendo el lomo.
— Ráscame la espalda - suplica -, que yo no llego.
Ella extiende la mano, acaricia la ferruginosa coraza y elogia:
— Es una seda.
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Dulcidio se estremece y cierra los ojos y abre la boca y alza la cola y siente lo
que nunca.
Pero cuando da vuelta la cabeza, ella ya no está.
Arrastrándose a toda velocidad a través del pajonal, la busca al derecho y al
revés y por los cuatro costados. No hay rastros.

Y el domingo siguiente, ella no viene a la orilla del río. Y tampoco viene el otro
domingo, ni el otro.

Desde que la vio, la ve. Y nada más ve.


El dormilón no duerme, el tragón no come. La alcoba de Dulcidio ya no es el
feliz santuario donde él reposaba amparado por sus difuntas esposas. Las fotos de ellas
siguen allí, tapizando las paredes de arriba a bajo, con sus marcos en forma de corazón y
sus guirnaldas de azahares; pero Dulcidio, condenado a la soledad, yace hundido en las
cobijas y en la melancolía. Médicos y curanderos acuden desde lejos, y ninguno puede
nada ante el vuelo de la fiebre y el derrumbe de todo demás.
Prendido a la radio a pilas, que le ha vendido un turco de paso, Dulcidio pena
sus noches y sus días suspirando y escuchando melodías pasadas de moda. Los padres,
desesperados, lo miran marchitarse. Él ya no exige mujer como antes exigía:
— Tengo hambre.
Ahora suplica:
— Yo soy un pordiosero del amor,
y con voz rota, y alarmante tendencia a la rima, musita homenajes de agonía a la dama
que le ha robado la calma y el alma.
Toda la servidumbre se lanza a buscarla. Los perseguidores revuelven cielo y
tierra; pero ni siquiera se sabe el nombre de la evaporada, y nadie ha visto jamás a
ninguna mujer de anteojos en estos valles, ni más allá.

En la tarde de un domingo, Dulcidio tiene una corazonada. Se levanta, a duras


penas, y de mala manera se arrastra hasta la orilla del río.
Y allí está ella.
Bañado en lágrimas, Dulcidio declara su amor a la niñacha desdeñosa y esquiva,
confiesa que de sed perezco por las mieles de tu boca, proclama que ni tu olvido
merezco, palomita que me aloca, y la abruma de lindezas y arrumacos.

Y se viene la boda. Todo el mundo agradecido, porque ya el pueblo lleva largo


tiempo sin fiesta y allí Dulcidio es el único que se casa. El cura hace precio, por tratarse
de un cliente tan especial.
Gira el charango alrededor de los novios y suenan a gloria el arpa y los violines.
Se brinda por el amor eterno de la feliz pareja, y ríos de ponche corren bajo las ramadas
de flores.
Dulcidio estrena piel nueva, rojiza en el lomo y verdiazul en la cola prodigiosa.

Y cuando los dos quedan al fin solos, y llega la hora de la verdad, él ofrece:
— Te doy mi corazón. Písalo sin compasión.
Ella apaga la vela de un soplido, deja caer su vestido de novia, esponjoso de
encajes, se saca lentamente los anteojos y le dice:
— No seas huevón. Déjate de pendejadas.
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De un tirón lo desenvaina y arroja la piel al suelo. Y abraza su cuerpo desnudo, y


lo arde.
Después, Dulcidio se duerme profundamente, acurrucado contra esta mujer, y
sueña por primera vez en la vida.

Ella se lo come dormido. Lo va tragando de a poquito, desde la cola hasta la


cabeza, sin hacer ruido ni mascar fuerte, cuidadosa de no despertarlo, para que él no
vaya a llevarse una fea impresión.

4 - “1542, Conlapayara: Las amazonas”

No tenía mala cara la batalla, hoy, día de San Juan. Desde los bergantines, los
hombres de Francisco de Orellana estaban vaciando de enemigos, a ráfagas de arcabuz y
de ballesta, las blancas canoas venidas de la costa.
Pero peló los dientes la bruja. Aparecieron las mujeres guerreras, tan bellas y
feroces que eran un escándalo, y entonces las canoas cubrieron el río y los navíos
salieron disparados, río arriba, como puercoespines asustados, erizados de flechas de
proa a popa y hasta en el palo mayor.
Las capitanas pelearon riendo. Se pusieron al frente de los hombres, hembras de
mucho garbo y trapío, y ya no hubo miedo en la aldea de Conlapayara. Pelearon riendo
y danzando y cantando, las tetas vibrantes al aire, hasta que los españoles se perdieron
más allá de la boca del río Tapajós, exhaustos de tanto esfuerzo y asombro.
Habían oído hablar de estas mujeres, y ahora creen. Ellas viven al sur, en
señoríos sin hombres, donde ahogan a los hijos que nacen varones. Cuando el cuerpo
pide, dan guerra a las tribus de la costa y les arrancan prisioneros. Los devuelven a la
mañana siguiente. Al cabo de una noche de amor, el que ha llegado muchacho regresa
viejo.
Orellana y sus soldados continuarán recorriendo el río más caudaloso del mundo
y saldrán a la mar sin piloto, ni brújula, ni carta de navegación. Viajan en los dos
bergantines que ellos han construido o inventado a golpes de hacha, en plena selva,
haciendo clavos y bisagras con las herraduras de los caballos muertos y soplando el
carbón con borceguíes convertidos en fuelles. Se dejan ir al garete por el río de las
Amazonas, costeando selva, sin energías para el remo, y van musitando oraciones:
ruegan a Dios que sean machos, por muchos que sean, los próximos enemigos.

5 - “1711, Paramaribo: ellas llevan la vida en el pelo”

Por mucho negro que crucifiquen o cuelguen de un gancho de hierro atravesado


en las costillas, son incesantes las fugas desde las 400 plantaciones de la costa de
Surinam. Selva adentro, un león negro flamea en la bandera amarilla de los cimarrones.
A falta de balas, las armas disparan piedritas o botones de hueso; pero la espesura
impenetrable es la mejor aliada contra los colonos holandeses.
Antes de escapar, las esclavas roban granos de arroz y de maíz, pepitas e trigo,
frijoles y semillas de calabazas. Sus enormes cabelleras hacen de graneros. Cuando
llegan a los refugios abiertos en la jungla, las mujeres sacuden sus cabezas y fecundan,
así, la tierra libre
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6 - “1739, al este de Jamaica: Nanny”

Los ingleses pactan la paz con los esclavos fugitivos de Jamaica. Quao, jefe de
los cimarrones de Barlovento, acepta las condiciones luciendo espadín y sombrero
plateado.
Pero en los precipicios del oriente, más poder que Quao tiene Nanny. Las bandas
dispersas de Barlovento obedecen a Nanny, como la obedecen los escuadrones de
mosquitos. Nanny, gran hembra de barrio encendido, amante de los dioses, viste no más
que un collar de dientes de soldados ingleses.
Nadie la ve, todos la ven. Dicen que ha muerto, pero ella se arroja desnuda,
negra ráfaga, al centro del tiroteo. Se agacha de espaldas al enemigo, y su culo
magnífico atrae las balas y las atrapa. A veces las devuelve, multiplicadas, y a veces las
convierte en copos de algodón.

7 - “La Pachamama”

En el altiplano andino, mama es la Virgen y mama son la Tierra y el tiempo.


Se enoja la tierra, la Pachamama, si alguien bebe sin convidarla. Cuando ella
tiene sed, rompe la vasija y las derrama.
A ella se ofrece la placenta del recién nacido, enterrándola entre las flores para
que viva el niño; y para que viva el amor, los amantes entierran cabellos anudados.
La diosa tierra recoge en sus brazos a los cansados y a los rotos, que de ella han
brotado, y se abre para darles refugio al fin del viaje. Desde abajo de la tierra, los
muertos la florecen.

8 - “María Padilla”

Ella es Exu y también es una de sus mujeres, espejo y amante: María Padilha, la
más puta de las diablas con las que Exu gusta revolcarse en las hogueras.
No es difícil reconocerla cuando entra en algún cuerpo. María Padilha chilla,
aúlla, insulta y ríe de muy mala manera, y al fin del trance exige bebidas caras y
cigarrillos importados. Hay que darle trato de gran señora y rogarle mucho para que ella
se digne ejercer su reconocida influencia ante los dioses y los diablos que más mandan.
María Padilha no entra en cualquier cuerpo. Ella elige, para manifestarse en este
mundo, a las mujeres que en los suburbios de Río se gana la vida entregándose por
monedas. Así, las despreciadas se vuelven dignas de devoción: la carne de alquiler sube
al centro del altar. Brilla más que todos los soles la basura de la noche.

9 - “Ventana sobre una mujer”

Esa mujer es una casa secreta.


En sus rincones, guarda voces y esconde fantasmas.
En las noches de invierno, humea.
Quien en ella entra, dicen, nunca más sale.
Yo atravieso el hondo foso que la rodea. En esa casa seré habitado. En ella me
espera el vino que me beberá. Muy suavemente golpeo a la puerta, y espero.

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