Arquétipos Literários FEMININOS
Arquétipos Literários FEMININOS
Arquétipos Literários FEMININOS
Bolsa: FAPESP
Araraquara/SP
2009
Azenha, Jucely Aparecida
O eterno feminino: arquétipos literários em Mujeres de Eduardo
Galeano / Jucely Aparecida Azenha – 2010
100 f.; 30 cm
O Eterno Feminino:
Arquétipos Literários em Mujeres de Eduardo Galeano
Presidente e Orientador:
Profa. Dra. María Dolores Aybar Ramírez
Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências e Letras – Araraquara/SP
Membro Titular:
Profa. Dra. Karin Volobuef
Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências e Letras – Araraquara/SP
Membro Titular:
Prof. Dr. Dagoberto José da Fonseca
Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências e Letras – Araraquara/SP
Nos caminhos por onde passei, encontrei pessoas que muito contribuíram para
que eu me tornasse a pessoa que hoje sou. Todas elas me ensinaram algo importante
sobre viver, às vezes de maneira positiva, outras não.
No meu trajeto de vida, curto, porém nem por isso menos sinuoso, fui agraciada
pela experiência de conhecer pessoas que muito estimo, gente que considero minha
família; muitas pessoas que foram importantes numa fase decisiva de minha vida e as
quais dedico o presente trabalho.
Agradeço profundamente à Luciane, pelo constante estímulo, por me falar sobre
a imensidão do mundo e assim aguçar a minha curiosidade, por me ensinar sobre o que
é ser mulher, o que é ter coragem e dignidade. Sou profundamente grata pela sua
amizade e pelo apoio incondicional. Obrigada Emerson, João Pedro e Adrián.
Agradeço imensamente ao Leandro, pelo companheirismo, pelo apoio em todas
as horas, pela paciência, por me motivar, por acreditar em mim.
Agradeço à minha mãe, Solange, pelo exemplo de força, ao meu irmão Davi, a
adorada vovó Isabel, que sem saber muito me estimulou, ao meu padrinho Gumercindo,
a tia e afilhada que mora no meu coração, Giuliana, o tio Rafael, o primo Diego.
Àquela que me orientou não só na pesquisa, mas em todos esses anos difíceis da
graduação, grande amiga e pessoa muito querida, Lola. Sou profundamente grata pela
sua infinda paciência, por me ensinar desde os passos mais elementares da pesquisa
acadêmica, me acompanhando e apoiando em todos os momentos. Caçoando de mim
quando escrevo bobagens, ao invés de criticar asperamente, assim me ensinou
muitíssimo mais.
Agradeço ainda ao prof. Dagoberto pelas valiosas críticas e sugestões, pelo
estímulo em forma de desafio com que brinda diariamente todos ao seu redor.
À memorável professora Júlia, Dario (em Memória), Helder- irmão urso, Daiane
Toffani e sua mãe Magali-Meg, Janaina e Margarete, Conceição, Keco-Ricardo, Gisele,
Tony, Mariane Fornari, Maria Helena, Cláudia, Nátila Renata, Vanessa Rosado, Renato
Capelovski, Jéssy, Mário-Ñoño, Tati e Riquinho, Alfredo-Feo, Patrícia-Márcia, Bia e
Borges, Flávia, Anderson, Keds, Isra-Pompeu, Amandinha, Célia, Cinthia Galelli,
Roselaine Almeida.
Sylvia da Seção de Graduação, muito obrigada pela inigualável seriedade e
dedicação ao seu trabalho, fundamental para nós da primeira turma do espanhol dessa
instituição. Seu Jesus da portaria, astuto e brincalhão, muito obrigada!
Pelas aulas valiosas, sou grata aos professores Márcia Gobbi, Silvia Telarolli,
Arnaldo, Edivanda, Dejalma, Ricardo, Guacira, Márcio Prado, Silvia Adoue, Laura e
Alexandre.
Finalmente, agradeço o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (Fapesp), sem o qual não seria possível que eu realizasse o presente trabalho,
muito menos que eu tivesse obtido reconhecimento da competência como pesquisadora,
que para mim é tão valiosa.
É parte desse reconhecimento ter sido laureada com o primeiro lugar na
Premiação de Melhor Trabalho do XXI Congresso de Iniciação Científica da Área de
Humanas, em 2010.
Muito obrigada!
RESUMO
O universo literário está repleto de obras que remetem a mitos. O compêndio Mujeres,
de Eduardo Galeano possui como temática a mulher e é composto por microcontos,
gênero narrativo que promove uma máxima condensação de elementos temáticos e
estruturais. Trata-se de relatos literários em que a síntese é priorizada simultaneamente
ao lirismo. Com o objetivo de analisar a natureza arquetípica dos mitos acerca da
feminilidade, estudamos especificamente os contos de Mujeres em que se reconstroem
poeticamente mitos da feminilidade. Metodologicamente, nos fundamentamos na
mitocrítica e na teoria das estruturas antropológicas do imaginário idealizadas por
Gilbert Durand. Através destes alicerces, realizamos a análise das narrativas que se
articulam em nosso corpus, no intuito de identificar os diversos artifícios narrativos
específicos que nele operam. Por meio dos mitemas presentes nas narrativas, revelamos
as estruturas arquetípicas do texto e averiguamos como elas se edificam literariamente.
Ademais, elucidamos o teor da representatividade arquetípica sobre a feminilidade
inerente às narrativas e finalmente, agrupamos as situações e combinatórias existentes
no conjunto de micronarrativas, traçando as possíveis conexões existentes. Assim,
fizemos um estudo propriamente dito, de análise mitocrítica.
Le champ littéraire est plein d’œuvres qui remettent à des mythes. L’ensemble de récits
Mujeres, de Eduardo Galeano, a comme thématique la femme et il est composé par des
micro-contes, genre narratif qui promeut une condensation maximale d’eléments
thématiques et structuraux. Il s’agit des descriptions littéraires où la synthèse est placée
ou même niveau que le lyrisme. Ayant pour objectif d’analiser la nature archétypique
des mythes sur la féminité, nous avons travaillé spécifiquement les contes de Mujeres
où se reconstruisent poétiquement des mythes de la féminité. Méthodologiquement,
notre notre étude a pour base la mythocritique et la théorie des structures
anthropologiques de l’imaginaire ídéalisées par Gilbert Durand. En partant de ces bases,
nous avons réalisé l’analyse des récits qui s’articulent en notre corpus, ayant pour but,
celui d’identifier les divers artifices narratifs spécifiques qui y opèrent. Par le moyen des
mythèmes présents dans les récits, nous avons révélé les structures archétypiques du
texte et nous avons constaté comment elles s’édifient littérairement. En outre, nous
avons élucidé la teneur de la représentativité archétypique de la feminité inhérente aux
récits et finalement, nous avons rassemblé les situations et les combinatoires qui
existent dans l’ensemble de microrécits, traçant les connexions possibles qui y existent.
Ainsi, nous avons fait une étude proprement dite, d´analyse mythocritique.
Apresentação ...................................................................................................................10
1. Introdução ....................................................................................................................11
2. Mitos e Gêneros Literários ..........................................................................................13
2.1 O lirismo dos microcontos.................................................................................... 13
2.2 Imbricações entre Mito e Literatura ..................................................................... 14
2.3 Arquétipos femininos em Eduardo Galeano ......................................................... 18
3. Metodologia: interpretando a obra literária .................................................................21
4. Mujeres: perspectivas do gênero literário ...................................................................26
4.1 Estudando o conto curto “Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar a
sus mujeres”................................................................................................................ 28
4.2 Estudando o conto muito curto “1542, Conlapayara: Las amazonas” ................. 31
4.3 Estudando os contos ultracurtos ........................................................................... 33
4.4 Considerações parciais sobre as perspectivas do gênero literário ........................ 40
5. Análise mitocrítica de Mujeres ....................................................................................42
5.1 Interpretando o texto: narrativas da Dominante Cíclica ....................................... 43
5.1.1 “1711, Paramaribo: Ellas llevan la vida en el pelo” ...................................... 44
5.1.2 “1739, al este de Jamaica: Nanny” ................................................................ 45
5.1.3 “La Pachamama” ........................................................................................... 47
5.2 Interpretando o texto: narrativas da Dominante Digestiva ................................... 49
5.2.1 “El miedo” ..................................................................................................... 50
5.2.2 “La autoridad” ............................................................................................... 54
5.2.3 “Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus mujeres” ........... 57
5.2.4 “1542, Conlapayara: Las amazonas” ............................................................. 61
5.2.5 “Maria Padilha” ............................................................................................. 67
5.2.6 “Ventana sobre una mujer” ........................................................................... 69
5.3 Considerações parciais sobre as narrativas da Dominante Cíclica ................... 72
5.4 Considerações parciais sobre as narrativas da Dominante Digestiva ............... 75
6. O Eterno Feminino ......................................................................................................78
6.1 Apontamentos sobre o tempo em Mujeres ........................................................... 78
6.2 Conexões: representações literárias da feminilidade mítica ................................. 80
6.3 O Arquétipo Materno ........................................................................................... 83
6.4 A representação da feminilidade em Mujeres ...................................................... 88
7. Considerações Finais ...................................................................................................89
Bibliografia Consultada ...................................................................................................93
Bibliografia de Apoio ......................................................................................................95
Anexos .............................................................................................................................97
10
Apresentação
1
Atualmente, Mujeres encontra-se esgotado no mercado editorial brasileiro, motivo pelo qual
disponibilizaremos em anexo as micronarrativas que compõem nosso corpus.
11
1. Introdução
Dessa forma, nosso corpus é composto por narrativas específicas que integram o
compêndio Mujeres. Constituem-se, pois, como objeto de nossa pesquisa, unicamente
os relatos em que se reconstroem poeticamente mitos femininos. Dessa perspectiva,
estudaremos os seguintes contos de escrita sintética: 1. “El miedo”, 2. “La autoridad”,
3. “Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus mujeres”, 4. “1542,
Conlapayara: Las amazonas”, 5. “1711, Paramaribo: Ellas llevan la vida en el pelo”,
6. “1739, al este de Jamaica: Nanny”, 7. “La Pachamama”, 8. “Maria Padilha”, e
ainda 9. “Ventana sobre una mujer” que, a despeito de não remeter diretamente a mitos
femininos, destoando da linha de representação mitopoética das demais narrativas,
condensa em seu bojo imagens arquetípicas acerca da feminilidade, o que nos permite
realizar uma concatenação entre todos os relatos.
Nos microcontos que constituem nosso corpus, Galeano aborda primorosamente
os aspectos que concernem à temática da feminilidade arquetípica, sobretudo, através de
uma recriação literária de mitos ancestrais nos quais se manifesta o peculiar hibridismo
cultural da América Latina. Quer dizer, nos deparamos com relatos que denotam
explicitamente características das culturas latino-americanas, mas que são permeados
por aspectos cujas significações arquetípicas convergem para as culturas pré-
colombiana, africana e europeia. “También otros tipos de cuentos que se han recogido
entre los sectores campesinos e incluso indígenas de América revelan marcadas
influencias de Europa, de Asia y hasta de África” (COLOMBRES, 1993, p. 153-154).
Paralelamente, o escritor uruguaio articula e transubstancia literariamente o
conteúdo das narrativas, pois ao mesmo tempo em que evidencia relatos pertencentes às
culturas latino-americanas, percebemos referências a mitos de marcada presença na
literatura universal.
Dessa forma, os relatos que compõem nosso corpus inserem-se no âmbito
literário como expressão dos mitos universais criados acerca da feminilidade e seus
respectivos arquétipos. São micronarrativas da literatura latino-americana, que, no
entanto, justamente por seu caráter arquetípico, dialogam com a literatura universal.
13
Ademais, devemos ainda levar em conta que, como salienta Turchi (2003), a
ligação existente entre mito e literatura, numa perspectiva mais ampla, indica que ambos
estabelecem um vínculo no qual a literatura pode ser considerada, de maneira mais
ousada, um meio pelo qual os mitos são atualizados e se perpetuam. A conexão entre
ambos possibilita “al mito cambiar de máscara, responder a las nuevas situaciones”
(COLOMBRES, 1995, p. 139), ou seja, a literatura possibilita ao mito uma
transformação, uma espécie de atualização que permite eternizá-lo.
Em A ordem dos sexos, Eugène Enriquez (1999), ao estudar as primeiras
relações de desigualdade estabelecidas entre homens e mulheres, expressa que seu
estudo só foi possível mediante a análise minuciosa de obras artísticas e literárias. Nesse
texto, Enriquez aponta questões bastante elucidativas para o entendimento do estudo
sobre os arquétipos femininos na literatura.
Paralelamente, Durand (1997) põe em destaque inúmeras obras literárias para
fundamentar toda a sua teoria. A literatura é o universo por meio do qual ele fomenta
suas afirmações acerca da potencialidade das imagens e do uso da simbologia, que
velam os arquétipos universais transformados, dessa forma, em arquétipos literários.
A escolha por se realizar esta pesquisa, partindo do ponto de vista da teoria
formulada por Durand, não significa uma redução a um único enfoque, mas exatamente
o contrário, representa o intento de situar a reflexão numa concepção mais abrangente
(TURCHI, 2003, p. 29).
Sob nosso ponto de vista, existe uma diferença entre Durand e outros teóricos –
tão renomados quanto ele, como por exemplo, Northrop Frye (1957) – que justificam a
escolha que fizemos. Como outros autores, Durand busca embasamento teórico na
literatura universal, porém, se destaca porque inclui em suas discussões a literatura
pertencente ao Ocidente e às Américas, fator de fundamental importância para nós, dada
a especificidade de nosso objeto de estudo.
2
Durante sua trajetória intelectual, o uruguaio Eduardo Galeano realizou mudanças significativas
concernentes desde seu estilo de escrita, os temas escolhidos, até o seu modo de narrar. Tal fato pode ser
considerado, inclusive, uma espécie de “metamorfose” artística, especialmente se recordarmos que
Galeano é o autor de Veias Abertas da América Latina. Uma obra de impacto, que obteve grande
repercussão durante décadas após a data de seu lançamento e que, em suma, trata da questão da
exploração econômico-cultural da América Latina, as raízes de sua pobreza e de seu subdesenvolvimento.
Por sua vez, é o mesmo autor de Mujeres, que figura em outra linha estética e temática. Uma abordagem
bastante diferenciada, se não, completamente díspar.
18
As mulheres dos microcontos que compõem nosso corpus têm seus nomes e
seus sobrenomes, muitas vezes, explícitos na narrativa e compartilham entre si aspectos
de uma feminilidade primordial, arcaica (WHITMONT, 1991; SICUTERI, 1998;
EISLER, 1996; ENRIQUEZ, 1999).
Nos microcontos selecionados para compor nosso corpus, detectamos que o mito
se faz matriz da gênese literária, quer dizer, cada relato possui em seu bojo um mito,
mais que isso, trata-se de mitos acerca da feminilidade que norteiam a produção das
narrativas. Esses contos, permeados de simbologias próprias e de constelações de
imagens, são a expressão visível de estruturas mais complexas, os arquétipos, na
acepção de Durand (1997).
Entre as múltiplas definições de mito existentes, neste primeiro momento, por
melhor convir ao nosso estudo, tomamos a acepção de Mielietínski (1987, p. 197), para
quem:
simbologia do Regime Noturno é a única que se faz sempre presente em nosso corpus, e
sendo assim, é sobre ela que nos debruçamos com maior afinco. Contudo, recorremos
ao Regime Diurno, nos momentos necessários, para traçar possíveis oposições ou
identificar eventuais paralelos.
Na tessitura de ponderações acerca das estruturas antropológicas do imaginário,
se faz indispensável partirmos para o trato dos arquétipos. Na acepção de Durand, os
arquétipos são estruturas que constituem a conexão entre o imaginário e os processos
racionais. “Os gestos dominantes, diferenciados em esquemas no contato com o
ambiente ao redor, natural e social, determinam os grandes arquétipos” (TURCHI,
2003, p. 28). Conforme salienta Turchi (2003), Durand – de modo semelhante à Gustav
Jung – define os arquétipos como imagens primordiais localizadas no inconsciente
coletivo. Porém, diferentemente de Jung, Durand os avalia como substantivações dos
esquemas. Considerado uma generalização dinâmica e afetiva da imagem, o esquema
permite a junção entre os gestos inconscientes e as representações, expressão dinâmica
da imaginação (DURAND, 1997; TURCHI, 2003). Desse modo, se o arquétipo é uma
imagem primordial:
Essa visão ampla foi indispensável à hora de analisarmos nosso corpus, que é
provido de uma imensa gama de imagens e de simbologias específicas conectadas ao
Regime Noturno da imagem, além de se comunicar diretamente aos esquemas e de
possuir em seu âmago arquétipos universais referentes à feminilidade.
De tudo o que foi dito até aqui, e a partir de agora, podemos entender o mito,
numa concepção mais próxima da literatura como “um sistema dinâmico de símbolos,
arquétipos e esquemas, sistema dinâmico que, sob o impulso de um esquema, tende a
compor-se em narrativa” (DURAND, 1997, p.62-63).
21
3
Em nosso entendimento, o termo “sincronicidade mítica da obra” significa que devemos atentar ao fato
de que os microcontos de Galeano, por mais que tenham sido escritos em contextos mais próximos à nós,
aduzem, necessariamente, a um passado mítico que o “orienta” em sua experiência com o mundo atual.
25
Mitanálise é um termo elaborado por Durand (1993) para definir “um método de
análise científico dos mitos que procura extrair não apenas o seu sentido psicológico,
mas, sobretudo, o sociológico” (TURCHI, 2003, p. 41). A metodologia proposta pela
mitanálise tenta agrupar num mesmo círculo, os grandes mitos diretores dos
acontecimentos históricos, separando-os dos mitos que pertencem, especificadamente, a
grupos e a relações sociais específicas.
A mitanálise põe em revelo a ideia de que, em cada época, há um mito
dominante que tende a se institucionalizar, servindo de modelo à totalidade do
imaginário. Ao mesmo tempo, este mito triunfante suscita um contramito que se
mantém latente (TURCHI, 2003, p. 42). Isso corresponde a afirmar que, após
detectarmos os mitos relacionados às obras de um determinado autor, caberia ainda o
esforço de tentarmos conectar estes mitos específicos aos mitos universais
institucionalizados.
A metodologia proposta pela mitanálise tenta agrupar num mesmo círculo, os
grandes mitos diretores dos acontecimentos históricos, separando-os dos mitos que
pertencem, especificadamente, a grupos e a relações sociais específicas. Ora, como é
bem sabido, o estudo das relações estabelecidas no campo social suscita o conhecimento
de teorias, metodologias e cuidados específicos àquele que quer compreender e
interpretar e até mesmo entender como se dão as relações humanas. Nesse sentido, a
mitanálise é uma metodologia que prescinde de uma detalhada e complexa pesquisa
sobre os comportamentos e as relações sociais, de modo que se configurou como um
caminho a ser descartado na realização de nossa pesquisa.
Nesse sentido, a mitanálise é uma metodologia que prescinde de uma detalhada e
complexa pesquisa sobre os comportamentos e as relações sociais. Dito de outra
maneira, a mitanálise propõe que abandonemos o texto literário para que possamos
enveredar pelo campo conflituoso e contraditório do contexto histórico no qual a obra
foi escrita.
Ora, como é bem sabido, o estudo das relações estabelecidas no campo social
suscita o conhecimento de teorias, metodologias e cuidados específicos àquele que quer
compreender e interpretar e até mesmo entender como se dão as relações humanas.
26
4.1 Estudando o conto curto “Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar
a sus mujeres”
De acordo com a proposição de Zavala (2006), entre os três tipos de contos cuja
extensão é menor que a convencional, está situado o conto curto como o primeiro em
escala decrescente de tamanho, contabilizando de 1.000 a 2.000 palavras. Em nosso
corpus há apenas uma narrativa com esse perfil, a de número 3. “Historia del lagarto
que tenía la costumbre de cenar a sus mujeres”. Trata-se, assim, de um conto curto, que
possui 1.201 palavras, entretanto, é o mais longo dos que compõem nosso objeto de
estudo.
O conto curto “Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus
mujeres” é praticamente o único que segue, de certa forma, uma linearidade narrativa
com um encadeamento direto e causal dos acontecimentos, e assim, desenvolve um
breve contexto narrativo que auxilia o leitor na compreensão dos elementos míticos da
história. Os episódios se dão numa sequência concisa, porém mais estendida que nas
demais narrativas de nosso corpus.
Em acordo com Lauro Zavala (2006, s. n.), atentamos que “Un cuento corto
puede narrar un incidente o condensar una vida, o bien puede adoptar un tono lírico o
alegórico”, ademais, entre as possibilidades de desenvolvimento narrativo desse tipo de
texto literário, podemos incluir a “condensación de toda una vida, lograda gracias a la
capacidad de comprimirla en una imagen paradigmática” (HOWE, Irving apud
ZAVALA, 2006, s.n.).
Notamos que o conto curto em questão versa de modo condensado e incisivo
sobre a vida de uma personagem emblemática, ou melhor, duas. Primeiro, trata do
transcorrer de toda a vida de Dulcidio; é sobre ele, nomeadamente, a “Historia del
lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus mujeres”, ao passo que,
concomitantemente, se sobressai na narrativa uma personagem feminina que com
Dulcidio divide a centralidade no enredo. Ambas são personagens cerceadas por
imagens paradigmáticas. Ela é apresentada inicialmente como uma personagem
feminina, mas ao final do conto descobrimos que é, ademais, assim como Dulcidio, um
ser híbrido, metade mulher e metade lagarto.
Dulcidio é filho do dono de uma grande propriedade rural, Lucanamara, onde se
passa a ação da narrativa. Quando compreendemos, por referências extratextuais que
29
(HOWE, Irving apud ZAVALA, 2006, s.n.). Com isso, salientamos a posição que
adquirem as circunstâncias narradas, de galgar maior destaque que as próprias
personagens. No entanto, queremos atentar que a narrativa, tanto em seu percurso
quanto no desfecho, não aporta de nenhuma maneira um maniqueísmo, mas justamente
a refutação desse. De modo contrário a Dulcidio, que exerce com lascividade e
crueldade desmedida a própria sexualidade, pode-se interpretar que a mulher-lagarto em
seu ato devorador age no intento de cessar a carnificina protagonizada por Dulcidio, ela
parece possuidora desse propósito, indiciado ao longo da narrativa e desvelado ao final.
Na narrativa de que tratamos, condensada de modo abrupto e intenso, a
circunstância do engolimento tem destaque, em detrimento do percurso das
personagens, afinal não esperamos que Dulcidio devore suas esposas e, muito menos
sem uma desaprovação da sua comunidade. Entretanto isso ocorre e quando já estamos
propensos a pensar que ele continuará realizando a manducação das noivas até que se
sacie, ele é devorado, numa situação extrema em que se opera uma inversão.
A ambiguidade do discurso, a ironia, o perfil dos protagonistas, também
ambíguos, misteriosos e híbridos; o livro que a personagem feminina lê, livro de lendas
que conta uma história sem princípio nem fim, assim como a convergência dos
elementos do conto para a epifania da última janta, para a deglutição redentora, são
elementos estruturais que nos conduzem para o mito que se constrói a partir de
elementos literários. Da natureza desse mito, dessas imagens, falaremos no momento
oportuno deste trabalho.
O conto muito curto é aquele segundo tipo de narrativa de extensão menor que o
convencional, em escala decrescente, que consta de 200 a 1.000 palavras, de acordo
com as proposições de Zavala (2006). Entre as narrativas que compõem nosso objeto de
estudo, apenas uma se enquadra na categoria de conto muito curto, a de número 4.
“1542, Conlapayara: Las amazonas”, que contém somente 307 palavras.
Através de uma abordagem muito condensada, essa narrativa aduz ao que se
considera o mais importante relato sobre as míticas guerreiras amazonas. O conto faz
referência quase imediata a um texto documental, aliás, o único de que se tem notícia,
32
inimigos no curso do rio Amazonas, que estes, mesmo que em número maior, ao menos
sejam homens.
Conforme apontamos, a linguagem é articulada e implantada com uma acuidade
especial nos contos muito curtos. Trata-se de uma narrativa que, como as demais de
nosso corpus, prima fundamentalmente pela escritura sintética e, de fato, “En todas las
formas del cuento muy corto se condensan las estrategias que hemos visto utilizadas en
el cuento corto” (ZAVALA, 2006, s.n.). Isto é, a ironia, o humor, as possíveis formas de
intertextualidade e os fragmentos ou expressões que possuem ambiguidade semântica.
Salientamos ainda que até o presente momento, o conto curto de número 3.
“Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus mujeres” e o conto muito
curto de número 4. “1542, Conlapayara: Las amazonas”, compõem as raras narrativas
de nosso corpus que pactuam de uma certa linearidade narrativa. A partir da ocasião em
que iniciaremos a análise dos contos ultracurtos, será mais difícil encontrar uma
caracterização sequencial nas narrativas, quer dizer, os relatos incidem geralmente numa
alinearidade dos fatos narrados, o que certamente influencia nossas perspectivas de
análise e possibilita uma abordagem aplicável de modo conjunto às narrativas
ultracurtas.
Por sua vez, no conto ultracurto “1711, Paramaribo: Ellas llevan la vida en el
pelo”, é explorada com maestria a economia da linguagem e o arranjo dos termos
dentro do texto, formando uma espécie de encadeamento de palavras. Com uma
brevidade extrema, em apenas dois parágrafos sucintos, a narrativa infere sobre o longo
período de dominação colonial holandesa na costa do Suriname, os castigos e a fuga dos
escravizados que lá eram mantidos. Como referente narrativo de cunho mítico, está a
expressão do poder fecundador feminino, pois as escravizadas levavam consigo, de
modo oculto, diversas sementes incrustadas nos cabelos à hora da fuga, com a
finalidade de posteriormente fecundar a nova terra que pretendiam habitar.
Podemos notar, inclusive, que há nesse conto ultracurto um nível elevado de
preocupação com a linguagem, que se destaca por ser extremamente lírica e
mitopoética. Ademais, a narrativa dialoga explicitamente com os inúmeros relatos sobre
Pachamama, a Mãe Terra e o poder gerador da mulher. Em relação a este último
aspecto, há uma espécie de inversão na narrativa ultracurta de que tratamos, pois
sabemos que o elemento fecundador geralmente é masculino, enquanto o elemento
gerador é feminino; contudo, no conto a fecundação da terra parte das mulheres,
ambivalência que ressalta uma inversão e à ambiguidade. A narrativa aduz ao mito da
Grande Deusa e das Deusas da Agricultura da tradição Greco-latina.
Por sua vez, a narrativa “1739, al este de Jamaica: Nanny”, se relaciona com a
anterior por também tratar da luta pela libertação do mesmo segmento de escravizados
fugitivos, os cimarrones, desta vez na Jamaica. Paralelamente, em ambos os contos a
mulher possui um protagonismo que desdiz o esquecimento e o silêncio sobre a mulher
no discurso histórico convencional.
A narrativa começa com uma tentativa de negociação de paz dos ingleses com os
fugitivos. Quao, o chefe dos cimarrones acaba por aceitar as condições propostas pelos
ingleses, porém, Quao é um chefe simbólico, pois de fato, “en los precipicios del
oriente, más poder que Quao tiene Nanny” (GALEANO, 1995, p. 32). Assim aparece
na narrativa Nanny, uma figura mítica de mais destaque que Quao, por representar o
estandarte da luta pela liberdade dos escravizados cimarrones.
A imagem de Nanny orienta a ação beligerante dos grupos de fugitivos
dispersos, ela é uma figura mítica a que obedecem, inclusive, os elementos da natureza,
tais como os esquadrões de moscas e os copos de algodão. Há quem diga que está
37
morta, enquanto outros afirmam que a veem nos campos de batalha. Nela se condensa a
imagem mítica de guerreira e imortal ligada aos animais e à vegetação.
A narrativa sobre Nanny, personagem mítica latino-americana, condensa
imagens poéticas que se estruturam através de “claves de ambigüedad semántica (final
sorpresivo o enigmático)” (ZAVALA, 2006, s.n.), quer dizer, em torno dela situa-se a
captura e/ou a devolução das balas atiradas pelo inimigo – por meio das próprias
nádegas – além da ocasional conversão, também inusitada, dos projéteis em copos de
algodão, uma espécie de vegetação comum na flora central e sul-americana. Nanny vista
como a amante dos deuses, cobre o próprio corpo com nada além de um colar de dentes
dos soldados ingleses. Calcada em lirismo, a orla de mistério que envolve a personagem
Nanny, bem como os elementos enigmáticos que a circundam, são características de
presença marcante e que confluem, como recursos expressivos admitidos no tipo de
gênero literário com o qual estamos trabalhando, para a re-construção literária de um
mito preexistente.
A referência de uma entidade feminina mítica transposta para o texto literário
como personagem que protagoniza e que dá a tônica para ação da narrativa verifica-se,
também, em “La Pachamama”. Conforme anunciado no título desse conto ultracurto, é
a vez de Pachamama, ou simplesmente mama, ser apreciada literariamente.
Inserida como uma das divindades ancestrais femininas mais potentes na cultura
hispano-americana, Pachamama, é mais uma das personagens emblemáticas de que
trataremos.
A narrativa em questão explora a polivalência, ou melhor, as multifaces da
divindade conhecida como Pachamama. A personagem condensa em si os aspectos, em
certa medida antitéticos para nossa sociedade ocidental e judaico-cristã, porém aspectos
naturalizados na personagem, a saber, a condição de ser mama (mãe) e também Virgem.
Além disso, Pachamama, concomitantemente, é a personificação dos ciclos da Terra e
do tempo. Trataremos com maior afinco de tais características dialéticas de “La
Pachamama” adiante, ao realizarmos o estudo das imagens e dos arquétipos de nosso
corpus.
No presente momento, nos interessa pôr em relevo o semantismo dos termos
incrustados na narrativa ultracurta. Podemos considerar a estruturação desse conto
ultracurto como agudamente coesa e possuidora de uma carga semântica dilatada de
38
repertório de leitura de quem recepta o texto. É necessário ter ao menos uma idéia de
como funciona a religiosidade de matriz africana da qual a personagem faz parte para
compreender os elementos fundamentais que a circundam no conto. A noção quem foi a
histórica Doña Maria de Padilla e dos meandros que a tornaram Maria Padilha da
Umbanda acrescentam e corroboram muito positivamente na apreciação do conto.
A linguagem poética que permeia essa narrativa ultracurta é concisa e também
amplamente provida de um semantismo plural, além de contar com recursos linguísticos
tais como a metáfora e a antítese, ou até mesmo a alusão.
Entre tais aspectos podemos ilustrar o fragmento que faz referência a Maria
Padilha como aquela que “Brilla más que todos los soles la basura de la noche”
(GALEANO, 1995, p. 45). Através de uma linguagem poética e carregada de
semantismo, somos remetidos à metáfora da concessão de um brilho semelhante ao do
sol, atribuído às mulheres prostituídas, num momento em que acabam alcançando um
estado de semiredenção, sendo dignificadas assim que incorporam a divindade Maria
Padilha; compõe-se desse modo a imagem paradoxal do ladeamento de Maria Padilha à
podridão e à escuridão da noite que estaria supostamente incrustado nos corpos das
prostitutas do Rio de Janeiro, no Brasil, em contraste com o brilho do sol atribuído as
mesmas como resultado advindo do contato com a personagem mítica central da
narrativa.
Como exposto até aqui, é uma das especificidades marcantes das narrativas que
compõem nosso corpus a exploração de uma potencial brevidade e condensação
concomitantes. Nesse sentido, situado no extremo da concisão e do adensamento está o
conto ultracurto de número 9. “Ventana sobre una mujer”. Trata-se da menor de todas
as narrativas de nosso corpus, em que constam apenas 62 palavras. Entretanto, é um dos
mais ricos relatos sobre a feminilidade na perspectiva da mitocrítica, se não o mais
interessante, pois permite encadear a totalidade das narrativas anteriormente
mencionadas.
Por hora, em referência ao gênero literário de “Ventana sobre una mujer”,
destacamos na narrativa a densidade que cada termo concentra em seu nível semântico,
a presença de metáforas, alusões e estratégias de humor e de ironia, necessariamente
instáveis (ZAVALA, 2006, s. n.).
40
A narrativa em questão prima pelo arranjo das orações que a compõem, que
possuem uma gradação e culminam ao final do conto, de certo modo em uma forma
estratégica de humor e de ironia. Temos logo no início da narrativa a metáfora da
mulher como uma casa secreta, uma espécie de receptáculo. Em seguida, se informa
poeticamente que essa mulher possui em seus cantos (“rincones”) vozes e fantasmas
escondidos, configurando-se assim uma alusão aos ditos segredos e mistérios femininos.
É explorada uma faceta de “esa mujer”, uma mulher determinada e não nomeada, e, ao
mesmo tempo a Mulher, no sentido universal do termo, como podemos inferir
considerando os pronomes utilizados para fazer referência a ela do princípio ao fim do
conto.
Outro aspecto a ser destacado no relato literário é a presença de certa dose de
humor, mas dessa vez um humor equipado de nuances de ironia, que transparece ao
final da narrativa, quando o narrador, ciente dos perigos que circundam aqueles que se
aproximam da “mulher-casa fantasma”, bate à porta e espera ingressar. Podemos
inclusive, perceber fatalmente a junção das imagens polissêmicas do medo masculino da
mulher, uma mulher que é provida de segredos e circundada por mistérios que
amedrontam, assustam ou provocam ou tensão, caracteres outrora perceptíveis também
no medo da vagina dentada, da autoridade feminina ou nas amazonas.
Essa análise preliminar sobre o gênero literário que estrutura os nove contos de
escrita menor que o convencional que compõe nosso corpus visa destacar os artifícios
literários mais proeminentes das narrativas com o intuito de promover uma prévia
tessitura dos elementos fundamentais que permeiam tais contos. Dessa forma,
destacamos os aspectos principais de nosso objeto de estudo e facilitamos a aplicação da
análise mitocrítica a ser apresentada adiante.
A aplicação da mitocrítica ao texto literário tem como ponto inicial o estudo das
imagens poéticas. Por meio da observância das imagens que estão enredadas nas
narrativas de nosso corpus, imagens cujo dinamismo interno possui um estreito
parentesco com o mito, podemos constatar a existência de mitos, por vezes em estado
latente ou em forma de reminiscências nas narrativas.
Inseridas nos microcontos, tais imagens estão carregadas de simbolismos que
circundam a feminilidade e, sobretudo, veiculam em seu âmago os arquétipos
universais. “As narrativas míticas, por sua vez, veiculam imagens simbólicas, calcadas
em arquétipos universais, que reaparecem, periodicamente, nas criações artísticas
individuais, entre elas, a literária” (TURCHI, 2003, p. 39). Os relatos que compõem
nosso objeto de estudo estão alicerçados em narrativas míticas reveladoras de múltiplas
facetas femininas, por meio de uma gama de imagens simbólicas explicitamente
arquetípicas.
Gilbert Durand (1997) optou por considerar a totalidade das motivações
simbólicas, quer dizer, delimitou em grandes eixos os trajetos antropológicos que os
símbolos constituem, recorrendo a um método de convergência inclinado a evidenciar
as constelações de imagens constantes e que aparentam ser estruturadas por certo
isomorfismo dos símbolos convergentes (TURCHI, 2003, p. 26). As constelações de
imagens, como podemos observar, são um ponto de partida (DURAND, 1993; 1997;
TURCHI, 2003). Tomadas como elementos providos de polivalência interpretativa, as
constelações de imagens são úteis no tracejo de uma intersecção ao redor de núcleos
organizadores, os arquétipos universais. Tais imagens são organizadas por Durand
(1997) na bipartição entre o Regime Noturno e o Regime Diurno. Sendo que esse
último, por sua vez, se subdivide nas Dominantes Digestiva e Cíclica.
Nesta perspectiva, ao analisarmos nosso corpus, que em sua totalidade pertence,
na acepção de Durand (1997), ao Regime Noturno, inferimos que as micronarrativas 1.
“El miedo”, 2. “La autoridad”, 3. “Historia del lagarto que tenía la costumbre de
cenar a sus mujeres”, 4. “1542, Conlapayara: Las amazonas”, 8. “Maria Padilha”, e
9. “Ventana sobre una mujer” se circunscrevem na Dominante Digestiva, ao passo que
as micronarrativas 5. “1711, Paramaribo: Ellas llevan la vida en el pelo”, 6. “1739, al
43
Pero en los precipicios del oriente, más poder que Quao tiene Nanny.
Las bandas dispersas de Barlovento obedecen a Nanny, como la
obedecen los escuadrones de mosquitos. Nanny, gran hembra de
barrio encendido, amante de los dioses, viste no más que un collar de
dientes de soldados ingleses (GALEANO, 1995, p. 32).
anterior às cronologias registradas e que não atua de forma linear, mas elíptica. Nessa
visão temporal, designada também illo tempore, uma ação que se desenvolvera em um
momento e espaço são passíveis de repetição, posto que se desenvolveram num tempo
elíptico, quer dizer, que se repete e que pode ser regenerado, um tempo de eterno
retorno (ELIADE, 1981, 1992). Retornaremos, mais adiante, à questão da
temporalidade que permeia nosso corpus.
Por hora, incluímos a ponderação de que nesse ínterim, o mitema que
averiguamos presente em estado de latência na narrativa de que tratamos é o da
feminilidade lúgubre, que permuta os espaços da beligerância em paralelo ao comando
dos elementos naturais. Nanny é retratada sempre desnuda, uma grande figura mítica de
barro que carrega em seu pescoço apenas um artefato como “enfeite”, um colar de
dentes dos inimigos ingleses, objeto que remete à sua força guerreira e simboliza seu
poder, ora manso (concedido a seus protegidos, os cimarrones), ora cruel (franqueado
aos inimigos).
La diosa tierra recoge en sus brazos a los cansados y a los rotos, que
de ella han brotado, y se abre para darles refugio al fin del viaje.
Desde abajo de la tierra, los muertos la florecen (GALEANO, 1995, p.
37).
No âmbito literário, o tema da vagina dentada recebe fruição estética, por ser a
literatura uma forma de arte. Expresso nesse plano, apresentamos o conto ultracurto 1.
“El miedo”, que versa sobre a vagina dentada através de um discurso extremamente
mitopoético e conciso:
Esos cuerpos nunca vistos los llamaban, pero los hombres nivakle no
se atrevían a entrar. Habían visto comer a las mujeres: ellas tragaban
la carne de los peces con la boca de arriba, pero antes la mascaban
con la boca de abajo. Entre las piernas, tenían dientes (GALEANO,
1995, p. 7).
enfurecido com a transgressão, amaldiçoa Lilith, que é banida para sempre da Terra; ela
passa então a habitar os domínios infernais (SICUTERI, 1998).
Assim, criada da costela de Adão, Eva, a segunda mulher, com sua
desobediência, apenas incorre novamente no estreitamento das relações com o
demoníaco, em face de sua obediência à serpente e de sua desobediência contra a ordem
de Deus. Desse modo, considerou-se que foi pelo sexo feminino que o mal foi
introduzido no mundo e que há um estreito vínculo entre ambos.
É justamente nessa consideração que o conto ultracurto de que tratamos
desemboca ao ilustrar, por meio de uma linguagem lírica e concisa, uma feminização da
queda, uma eufemização cujo terror é traduzido no medo venial do coito e da vagina, na
feminização da malignidade (DURAND, 1997, p. 117).
Na narrativa de que tratamos estão registradas imagens da misoginia e do medo
masculino de uma vagina dentada, devoradora, maligna. As mulheres, a princípio, são
definidas apenas como “corpos nunca vistos”. Entretanto, contraditoriamente, informa-
se que os homens nivakle já haviam presenciado tais mulheres comerem, utilizando-se
da boca para tragar o alimento, mas antes da vagina para mastigá-lo. Tal contradição
acentua o caráter mítico do relato. Na narrativa mítica não há uma orientação que forme
parte da lógica concebida pela nossa sociedade, quer dizer, não há uma linearidade, nem
um encadeamento das circunstâncias que acompanhe a relação de causa e efeito, ou de
continuidade dos fatos.
As mulheres da narrativa eram temidas e os anfitriões nivakle não aceitaram seu
chamado. Ao invés disso, “Los hombres bailaron durante toda la noche. Ondularon,
giraron y volaron como el humo y los pájaros. Cuando llegó el amanecer, cayeron
desvanecidos. Las mujeres los alzaron suavemente y les dieron de beber” (GALEANO,
1995, p. 7). Quer dizer, os homens nivakle optaram por dançar até a exaustão para
manter um distanciamento das mulheres.
Vale ressaltar que originalmente, a dança, em todas as suas formas e
manifestações, era considerada parte do universo sagrado, sendo executada com
finalidades ritualísticas, tais como celebrações iniciáticas, matrimoniais, de manutenção
da ordem cósmica, entre outros (ELIADE, 1992, p. 33 – 34). Desse modo, a dança
retratada no conto é um elemento relacionado com um gesto sacro e arquetípico.
53
como caçar e pescar, além de ir e vir à mercê de suas vontades, ao passo que
incumbiram às meninas, que se tornariam futuramente as mulheres da nação, as tarefas
que por eles realizadas anteriormente.
Outro elemento interessante introduzido na narrativa é o esclarecimento de como
as mulheres haviam exercido, até aquele momento, a autoridade sobre os homens, ou
seja, o método da dominação pelo medo, imposta através do uso de máscaras por elas
inventadas para causar terror.
Podemos perceber o uso de máscaras com a finalidade de impor o medo,
primeiramente pelas mulheres e depois pelos homens. As máscaras nesse caso podem
ser tanto um artefato, o objeto em si, quanto remeter a uma “máscara social”, quer dizer,
aduzir a um conjunto de discursos que teriam a força diretiva de impor o conformismo
ao oponente, ou ainda, assegurar a legitimidade do papel desempenhado por cada um
dentro das sociedades indígenas ona e yagane. A manutenção de uma ordem instaurada
passa pela aceitação do novo sistema de crenças, as chamadas “máscaras sociais” que
determinam os papéis a serem assumidos entre homens e mulheres (MAUSS, 2005, p.
207 – 241).
Pontuamos, dessa maneira, que o uso de máscaras tange, inclusive, ao nível da
representação. Tem-se notícia de que na Grécia Antiga os atores faziam uso de máscaras
tanto na comédia como na tragédia, com o intuito de conferir maior substantividade
representativa às personagens. A intenção do uso da máscara é criar uma personalidade
superposta. Acrescentamos ainda que:
5.2.3 “Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus mujeres”
história. Ela aparece nas primeiras linhas do relato, entregue ao exercício de sua leitura.
Em seguida, deixa de ser focalizada para dar lugar ao relato sobre Dulcidio, mas ela
reaparece logo em seguida, para prevalecer até o final da narrativa, contrapondo-se ao
herdeiro híbrido.
Ao longo do conto essa personagem feminina não recebe um nome, entretanto, é
crescente o destaque recebido por ela. Primeiramente retratada à beira de um rio e
camuflada em meio à vegetação local, ela conserva-se durante largo tempo lendo um
livro que conta a história de um “señor de vasto señorío” a quem tudo pertencia, o
“pueblo de Lucanamarca”, “lo seco y lo mojado”, “lo que tenía memoria y lo que tenía
olvido”, “lo de más acá y lo de más allá” (GALEANO, 1995, p. 9) e cujo único filho era
Dulcidio.
Em contraste à conduta de Dulcidio, a personagem feminina que foi apresentada
no começo da narrativa, com a qual o herdeiro híbrido passa a flertar em momento
dado, até o dia do casamento entre ambos, não exterioriza em seu comportamento
nenhuma característica animalesca ou ferina até o último parágrafo da narrativa,
passagem em que, surpreendentemente, ela devora Dulcidio enquanto este dorme, de
modo vagaroso, “Lo va tragando de a poquito, desde la cola hasta la cabeza, sin hacer
ruido ni mascar fuerte, cuidadosa de no despertarlo, para que él no vaya a llevarse una
fea impresión” (GALEANO, 1995, p. 14).
Dessa forma, o modo como a personagem feminina procede, faz com que ela vá
adquirindo nuances enigmáticas ao longo do conto, e, inclusive, pode ser interpretado
como um requinte de crueldade, pois ela age premeditadamente e preocupa-se em
manter as aparências, ao passo que o ato devorador de Dulcidio é defendido por ele
como sendo parte intrínseca à sua natureza, ao declarar que “el destino cruel quiere que
enviude” (GALEANO, 1995, p. 11). Quer dizer, para o herdeiro de Lucanamara sua
conduta devoradora faz parte de sua essência animalesca, como se não dependesse dele
a iniciativa ou a interrupção do ato nupcial devorador; nisso, predomina sua condição
parte animal irracional, e, portanto imputável, visto que sua conduta é aceita pela
comunidade em que ele vive.
Embora ambas as personagens compartilhem da mesma natureza híbrida, a
personagem feminina vive e age em surdina, quase sempre autorrelegada ao mesmo
espaço: a beira do rio, entre as folhagens; ao passo que, por sua vez, Dulcidio perambula
59
estando; y así mira al intruso ése que lagartea al sol”, quer dizer, a existência dela e a
permanência e posse do lugar é afirmada como anterior à de Dulcidio – que por sua vez,
presunçosamente afiança a própria posse não apenas da superfície onde ela está sentada,
mas de tudo que está incluído na extensão territorial daquele espaço, quer dizer, a terra,
o ar, a água e até mesmo as pessoas que ali habitam.
Mas para a mulher-lagarto, que é retratada com vestimentas típicas das índias
incaicas, Dulcidio é o intruso. Entretanto, não ocorre uma discussão entre ambos sobre
esse assunto, ele nem sabe da reivindicação dela, que não é exteriorizada. Ela ouve
pacificamente a concessão de Dulcidio para que ela esteja sentada no pedaço de areia do
qual ele se declara possuidor, simplesmente se mantém silêncio e desaparece assim que
ele se distrai, o que juntamente com os outros fatores apontados envolve essa mulher
numa atmosfera de mistério.
O desaparecimento da personagem enigmática, provoca o desespero em
Dulcidio, que pela primeira vez demonstra-se apaixonado. Passadas algumas semanas
ele a encontra. Sem delongas e com exasperos sentimentalistas na declaração de seus
sentimentos de afeto, ele a pede em casamento. Na narrativa, em nenhum momento há
menção integral sobre a reação da personagem feminina ao pedido, apenas sabemos que
na sequência, prontamente, eles se casam. E na noite de núpcias ela o devora.
Constatamos, que nessa narrativa, assim como ocorre “especialmente no mito, o
casamento apresenta-se antes como meio do que como fim” (MIELIETÍNSKI, 2002, p.
63). Como se realizasse uma vingança pelas outras ex-esposas de Dulcidio que foram
deglutidas a recém-casada o devora, não deixando de tomar as devidas precauções para
não despertá-lo, um cuidado e um desvelo que camuflam a vergonha desprovida de
piedade e aduz a uma máscara de falso cuidado feminino, em certa medida
desnecessário, mas que suaviza, com o sorriso cúmplice do leitor, toda a crueldade da
inversão de papéis entre os antagonistas glutões.
Nesse entorno, evidenciamos os pontos de fundamentação da narrativa no
agrupamento da Dominante Digestiva do Regime Noturno da Imagem. Apontamos a
presença, nesse conto curto, do relevo dos valores alimentares e digestivos evidentes na
conduta de Dulcidio, que na realização incondicional da satisfação de seus desejos
devora sucessivamente suas esposas, uma após a outra, sem escrúpulos ou o mínimo
61
indício de remorso. Até que chega sua vez de ser devorado, pela única mulher por quem
se apaixonou na vida. Ora:
Verificamos que desde o primeiro ato devorador em diante, Dulcidio passa a ter
o caráter do glutão que entra no deleite da própria sexualidade lascívia através da ação
de comer suas esposas, cujos retratos revestem as paredes do quarto do herdeiro híbrido.
No entanto, é inserida na narrativa àquela que irá se contrapor a ele e inverter a situação,
utilizando-se para isso do mesmo método: a devoração. Por conseguinte, inferimos que
uma vez mais é o mitema da inversão, da substituição ou da troca que está circunscrita
em nosso corpus.
A festa de São João era, primordialmente, uma festa dionisíaca dos sentidos,
também conhecida como bacanal e cujo elemento central, a fogueira, era a representante
simbólica do fogo sexual. Isto é, trata-se de uma data em que se celebrava o prazer e a
libido, além de relacionar-se com as forças ctônicas das trevas e do caos, que
supostamente estariam livres na data do festejo.
Nossa insistência com relação a esse elemento da narrativa se deve a sua
extrema relevância na fundamentação da análise mitocrítica do conto, conforme
demonstraremos. A referência à festividade do dia de São João aparece logo na primeira
linha da narrativa curta:
No tenía mala cara la batalla, hoy, día de San Juan. Desde los
bergantines, los hombres de Francisco de Orellana estaban vaciando
de enemigos, a ráfagas de arcabuz y de ballestra, las blancas canoas
venidas de la costa. Pero peló los dientes la bruja. Aparecieron las
mujeres guerreras, tan bellas y feroces que eran un escándalo, y
entonces las canoas cubrieron el río y los navíos salieron disparados,
río arriba, como puercoespines asustados, erizados de flechas de proa
a popa y hasta en el palo mayor (GALEANO, 1995, p. 24).
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quando, adiante, as guerreiras amazonas são caracterizadas como “tan bellas y feroces
que eran un escándalo” (GALEANO, 1995, p. 24). Tal definição é provida de um
semantismo que aproxima a existência das amazonas à um agravo, um paralelo à
imoralidade e até causador de revolta nos soldados, ou seja, a existência das mulheres
guerreiras era uma afronta aos navegantes, mas além disso, uma afronta aos homens em
geral. Isso porque, afinal:
De fato, sabemos que Exu foi personificado como elemento maligno, ou seja,
com o diabo, propriamente dito, da tradição cristã. Isso porque Exu é uma entidade que
se caracteriza por uma conduta considerada autenticamente sombria, quer dizer, na
maioria das vezes tida como funesta, maligna. A entidade denominada Maria Padilha é
identificada com um Exu, entre outros, por conta da manifestação de traços
comportamentais específicos, tais como o consumo deliberado de álcool e de fumo,
somado ainda à liberação das repressões sexuais e de uma lascividade extremada,
expressa por meio de movimentos corporais ou até mesmo na fala, que é carregada de
palavras obscenas (DELGADO SOBRINHO, 1974, p. 125 – 127).
As informações que apontamos são importantes e extremamente necessárias para
podermos demonstrar o quão intensamente o conto ultracurto de que tratamos condensa,
literariamente, todos os aspectos a que nos referimos sobre a feminilidade de Maria
Padilha, isto é, a presença do transe e a manifestação lasciva da personagem.
corpus. Entretanto, convém nos determos no estudo dessa narrativa, uma vez que ela
condensa em seu núcleo efígies arquetípicas acerca da feminilidade, nos permitindo
estabelecer uma concatenação entre todos os relatos.
Por meio de “Ventana sobre una mujer”, somos remetidos a uma ampla gama
de imagens que circundam a feminilidade, ou seja, entramos em contato com o ideário
que envolve a caracterização que se atribui à mulher, qual seja, o fascínio e o encanto
que exerce a beleza feminina em paralelo com os mistérios de nuances telúricos que lhe
são conferidos ao longo de milênios.
A mulher representa o primeiro habitat humano. Teoriza-se acerca de que,
quando não se sabia ainda como se dava o processo de fecundação, a capacidade de
gerar outro ser era atribuída somente à mulher, que era considerada um ser mágico e
sagrado. Com a suposta descoberta de que o homem também participava desse processo
de fecundação, a mulher foi relegada a condição de portadora da criança, enquanto o
homem obteve plenos poderes para impor, inclusive, a virgindade à mulher antes do
casamento, como garantia da legitimidade da prole (EISLER, 1989; 1996; KOSS,
2000).
Na narrativa poética “Ventana sobre una mujer”, prontamente aparece a
comparação da mulher com uma casa secreta. Essa aproximação entre ambas é
edificada gradualmente e vai se desenvolvendo dentro da narrativa de modo intenso até
atingir um ponto culminante. “Esta feminização da casa, como a da pátria, é traduzida
pelo gênero gramatical feminino das línguas indo-européias, domus e patria latinas, ê
oikia grega” (DURAND, 1997, p. 242).
A feminização da casa trás consigo uma carga de significação simbólica para a
narrativa. “A casa inteira é mais do que um lugar para se viver, é um vivente. A casa
redobra, sobredetermina a personalidade daquele que a habita” (DURAND, 1997, p.
243). A narrativa nos apresenta uma casa portadora de mistérios, do desconhecido:
“Quien en ella entra, dicen, nunca más sale” (GALEANO, 1995, p.17). Essa casa,
feminizada, guarda enigmas intimidadores, que repelem e causam atração
concomitantemente; no conto, por fim, quem está do lado de fora dessa “casa” acaba
por sucumbir a ela e se deixa arrebatar, adentrando em seu interior.
Essa casa feminizada apresenta-se, por meio da linguagem extremamente
incisiva de Galeano, como um microcosmo cujos contornos são muito peculiares. Por
71
regresso à mãe Pachamama, à origem da vida, em algo que não deve ser temido, ainda
mais porque representa não um fim, mas um recomeço.
Permeada pelo elemento mítico e tendo visivelmente colhido elementos
provenientes da cultura popular, as narrativas de Mujeres categorizadas como
pertencentes à Dominante Cíclica do Regime Noturno transmutam em matéria literária,
através de brevíssimas linhas, toda essa estrutura arquetípica materna, que conjuga ao
mesmo tempo elementos telúricos e cíclicos.
Reiterando o que dissemos anteriormente, notamos que Galeano, pautado numa
linguagem poética, densa e concisa, estrutura suas narrativas aproveitando-se de
elementos provenientes de mitos ancestrais sobre a feminilidade, em grande parte das
vezes suprimindo informações acerca do mito a que se refere o texto literário, contudo
salientando outros aspectos que venham a corroborar com a poeticidade das narrativas.
Em “1711, Paramaribo: Ellas llevan la vida en el pelo”, “1739, al este de Jamaica:
Nanny” e “La Pachamama”, o autor retoma partes de eventos considerados míticos,
adensa, porventura, outros componentes em prol de seu discurso artístico-literário,
orientado especialmente em direção à valorização de uma feminilidade primordial.
Contudo, existe uma diferença essencial entre Nanny, a Pachamama e as
mulheres-celeiro sem nome. Nanny é venerada num dado espaço-tempo, assim como
em maior escala, a conhecida Pachamama. Elas pertencem, respectivamente aos mitos e
às religiões pré-colombianas da América e suas histórias, muito complexas, condensam-
se num esboço básico e literário próximo ao mito das amazonas, por exemplo. Por sua
vez, a figura das mulheres-celeiro não é tão notória.
Por sua vez, notamos que em “El miedo” e “1542, Conlapayara: Las
amazonas”, a sexualidade feminina é retratada literariamente como abismal, perigosa,
engolidora, vertiginosa e indômita. As personagens centrais são mulheres que fogem às
regras sociais para elas estabelecidas. Em sentido de continuidade destas, na narrativa
ultracurta titulada “Maria Padilha”, a feminilidade representada como nefasta ganha
maior relevo, ao extremar-se na figura infernal e sinistra que dá título ao conto.
Transformadas em personagens de ficção, Maria Padilha e as Amazonas fazem
ecoar explicitamente as representações de uma feminilidade envolta em contornos
malignos e infernais. Quer dizer, por meio das personagens são retratadas as atribuições
negativas dadas à feminilidade, especialmente , quando são colocadas como expressão
de perversidade as atitudes das personagens de negação das condutas morais e sociais, o
exercício de uma sexualidade desregrada e a reivindicação de paridade com o
masculino. São ambas as personagens que melhor ilustram a negativização do feminino.
No caso de “El miedo”, é retomado o tema da feminilidade aglutinadora,
devoradora, na decodificação literária de imagens míticas, nas quais “os seres humanos
conseguem distanciar-se do que eles simultaneamente temem e sonham: a volta ao
estado feliz anterior ao nascimento” (ENRIQUEZ, 1999, p. 191). A expressão de um
feminino engolidor é retratada por Galeano com uma brevidade e concisão que não furta
a densidade do assunto, mas o insere através de elementos líricos e mitopoéticos.
Manifestadamente, o conto ultracurto de número 9. “Ventana sobre una mujer”,
conforme informamos outrora, não remete diretamente a mitos femininos, operando de
modo independente da orientação mitopoética das demais narrativas. No entanto, trata-
se de uma micronarrativa de extraordinária valia, uma vez que também condensa em seu
núcleo representações arquetípicas sobre a feminilidade, e que, ademais, nos ampara no
estabelecimento de um fio de encadeamento entre todos os textos que compõem nosso
corpus.
“Ventana sobre una mujer”, conforme demonstramos anteriormente, nos remete
a uma ampla gama de imagens que circundam a feminilidade, qual seja, a comparação
da mulher com uma casa secreta, o que aduz, no âmbito do imaginário, a uma
microcosmicização do corpo da própria mulher, que ainda é caracterizada como sendo,
concomitantemente, sedutora e perigosa.
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Percebemos que nessa narrativa atuam, assim como nas anteriores, uma
representação do feminino que congrega as imagens próprias da Dominante Cíclica e da
Dominante Digestiva do Regime Noturno do imaginário. O movimento de incursão do
narrador no interior de uma casa feminóide funde, em concomitância, imagens de
engolimento e de totalização. Apesar de ser o menor dos contos que compõem nosso
objeto de estudo, esse texto literário de Galeano causa surpresa por empreender a
significações arquetípicas tão densas sobre a feminilidade em pouquíssimas palavras e
com uma linguagem poética apuradíssima.
6. O Eterno Feminino
6.1 Apontamentos sobre o tempo em Mujeres
As narrativas que estudamos estão repletas de mulheres que transitam entre essas
instâncias polarizadas durante todo o tempo. No percurso que decorremos ao longo do
presente trabalho, nos deparamos com imagens de mulheres que seduzem e arruínam o
homem, mulheres demonizadas por seu erotismo, amor, ódio, rejeição, personagens
sedutoras ofuscantes e malévolas, mas ainda o retrato maternal, nutridor, inspirador;
figuras de uma feminilidade arquetípica intercambiante e, acima de tudo, materna – a
qual nenhum de nós pode se furtar, conforme apontamos.
Inseridas na representatividade do Regime Noturno da Imagem, versamos sobre
narrativas que estão englobadas pelo arquétipo materno, o Eterno Feminino que inclui
todas as polaridades, claro e escuro, dia e noite. “A vivência feminina é portanto
propensa – ou está entremeada – aos processo de crescimento e decadência, aos ciclos
naturais de vida, ao amadurecimento e morte, e aos ritmos e períodos de natureza,
espírito e tempo” (WHITMONT, 1991, p.152). Dessa forma, podendo ser vinculada ao
céu noturno, representante do feminino e seus mistérios, bem como à lua e às águas.
Atestando o elo entre esses elementos e a mulher, podemos concordar com
Durand (1997, p.103), para quem “o isomorfismo da lua e das águas é, ao mesmo
tempo, uma eufemização, sendo o ciclo menstrual que constitui o termo intermédio. A
lua está ligada à menstruação, como ensina o folclore universal”, lembrando-nos ainda
que em tempos primevos, o sincronismo entre o ciclo da lua e o ritmo mensal da mulher
foi considerado uma evidencia do elo misterioso entre ambas.
Durand (1997, p. 103) confirma que são abundantes os casos em que deusas
lunares, tais como Diana, Ártemis, Hécate, Anaitis ou Freyja tenham atribuições
ginecolátricas. Em referência a outra deusa ancestral, incluímos o exemplo de Ishtar,
deusa da catástrofe que ata e desata o fio do mal, o fio do destino. Como ambivalência
cíclica potencializada, o simbolismo do fio antecipa eufemizações de símbolos
terrificantes.
A cabeleira não se liga à água por ser feminina, mas, pelo contrário,
feminiza-se por ser hieróglifo da água, água cujo suporte fisiológico é
o sangue menstrual. Mas o arquetipal do elo vem sobredeterminar
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Entretanto, “El miedo”, “La autoridad”, “Historia del lagarto que tenía la
costumbre de cenar a sus mujeres”, “1542, Conlapayara: Las amazonas”, “Maria
Padilha” e ainda “Ventana sobre una mujer” são narrativas que por vezes, ainda que na
busca por uma valorização de uma feminilidade primordial, acabam por afiançar, em
certa medida, os discursos convencionais sobre a mulher, quais sejam, o de que o
feminino é possuidor de potencialidades nefastas, procedimento que ocorre por meio da
atribuição de elementos malignos como qualidades consideradas inatas às personagens
femininas e que assim, denotam a negativização da feminilidade.
Direciona-se nesse sentido, por exemplo, conforme apontamos outrora, na
“Historia del lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus mujeres”, os indícios da
possível premeditação arquitetada pela personagem feminina híbrida no ato de devorar
Dulcidio, personagem que figura apenas aquele que atende os chamados de sua
natureza, ou seja, que sucumbe ao seu instinto animal toda vez que devora suas esposas,
sendo, portanto, desprovido de culpa.
Num movimento semelhante, reiterando a negativização da feminilidade,
ordena-se o discurso de “La autoridad”, quando, de modo implícito, justifica-se a
dominação sobre a mulher como uma estratégia de defesa masculina na Terra do Fogo.
Ressoa um dito velado de “Foram elas que começaram!” durante toda a narrativa, quer
dizer, apaga-se a culpa pelo extermínio de um grupo de mulheres e ainda legitima-se a
dominação posterior sobre aquelas que restaram.
Reafirma ainda o discurso convencional sobre a mulher, em determinado
aspecto, “Ventana sobre una mujer” quando laureia afamados mistérios femininos, e
ainda afirma que eles podem consumir aqueles com os quais entram em contato.
7. Considerações Finais
Bibliografia Consultada
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Santos. Rio de Janeiro: Imago, 1989.
EISLER, Riane. O Prazer Sagrado: Sexo, mito e a política do corpo. Trad. Ana Luiza
Dantas Borges. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
ELIADE, Mircea. Mito do Eterno Retorno. Trad. José Antonio Ceschin. São Paulo:
Mercurio, 1992.
FRAZER, James George. O Ramo de Ouro. Trad. Waltensi Dutra. São Paulo: Círculo
do Livro, 1986.
FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos. São
Paulo: Cultrix, 1957.
94
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Trad. Maria Luíza Appy,
Dora Mariana R. Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2000.
KOSS, Monika Von. Feminino + Masculino: uma nova coreografia para a eterna
dança das polaridades. São Paulo: Escrituras Editora, 2000.
SICUTERI, Roberto. Lilith: a lua negra. Trad. Norma Telles e J. Adolfo S. Gordo. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
WHITMONT, Eduard. Retorno da Deusa. Trad. Maria Sílvia Mourão. São Paulo:
Summus, 1991.
95
ZAVALA, Lauro. El cuento ultracorto: hacia un nuevo canon literario. In: Nouvelles,
Cuentos, Short Stories. Universidad autónoma metropolitana, Xochimilco, México,
2006. Disponível em: http://www.fl.ulaval.ca/cuentos/lzcorto.htm. Acessado em
10.04.2007.
Bibliografia de Apoio
BARSTOW, Anne Llewellyn. Chacina das feiticeiras: uma revisão histórica da caça
às bruxas na Europa. Trad. Ismênia Tupy. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.
BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. José Augusto Seabra. Lisboa: Edições 70, 1957.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas
Athena, 1990.
CAMPBELL, Joseph; et al. Todos os nomes da Deusa. Trad. Beatriz Pena. Rio de
Janeiro: Record, 1997.
ELIADE, Mircea. Mitos, sonhos e mistérios. Trad. Samuel Soares. Lisboa: Edições 70,
1989.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. Pola Civelli. 6ed. São Paulo: Perspectiva,
2002.
GALEANO, Eduardo. Las palabras andantes. 4ed. Con grabados de José Francisco
Borges. Uruguay: Imprenta Rosgal, 2007.
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Anexos
1 - “El miedo”
Esos cuerpos nunca vistos los llamaban, pero los hombres nivakle no se atrevían
a entrar. Habían visto comer a las mujeres: ellas tragaban la carne de los peces con la
boca de arriba, pero antes la mascaban con la boca de abajo. Entre las piernas, tenían
dientes.
Entonces los hombres encendieron hogueras, llamaron a la música y cantaron y
danzaron para las mujeres. Ellas se sentaron alrededor, con las piernas cruzadas.
Los hombres bailaron durante toda la noche. Ondularon, giraron y volaron como
el humo y los pájaros.
Cuando llegó el amanecer, cayeron desvanecidos. Las mujeres los alzaron
suavemente y les dieron de beber.
Donde ellas habían estado sentadas, quedó la tierra toda regada de dientes.
2 - “La autoridad”
A la orilla del río, oculta por el pajonal, una mujer está leyendo. Érase que se
era, cuenta el libro, un señor de vasto señorío. Todo le pertenecía: el pueblo de
Lucanamarca y lo de más acá y lo de más allá, las bestias señaladas y las cimarronas, las
gentes mansas y las alzadas, todo: lo medido y lo baldío, lo seco y lo mojado, lo que
tenía memoria y lo que tenía olvido.
Pero aquel dueño de todo no tenía heredero. Cada día su mujer rezaba mil
oraciones, suplicando la gracia de un hijo, y cada noche encendía mil velas.
Dios estaba harto de los ruegos de aquella pesada, que pedía lo que Él no había
querido dar. Y al fin, por no escucharla más o por divina misericordia, hizo el milagro.
Y llegó la alegría del hogar.
El niño tenía cara de gente y cuerpo de lagarto.
Con el tiempo el niño habló, pero caminaba arrastrándose sobre la barriga. Los
mejores maestros de Ayacucho le enseñaron a leer, pero sus pezuñas no podían escribir.
A los dieciocho años, pidió mujer.
Su opulento padre le consiguió una; y con gran pompa se celebró la boda en la
casa del cura.
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Con la barriga acariciada por el agua del río, Dulcidio duerme la siesta.
Cuando abre un ojo, la ve. Ella está leyendo. Él nunca en su vida ha visto una
mujer con anteojos.
Dulcidio arrima la nariz:
— ¿Qué lees?
Ella aparta el libro y lo mira, sin asombro, y dice:
— Leyendas.
— ¿Leyendas?
— Voces viejas.
— ¿Y para qué sirven?
Ella se encoge de hombros:
— Acompañan – dice.
Esta mujer no parece de la sierra, ni de la selva, ni de la costa.
— Yo también sé leer – dice Dulcidio.
Ella cierra el libro y da vuelta la cara.
Cuando Dulcidio le pregunta quién es y de dónde, la mujer desaparece.
El domingo siguiente, cuando Dulcidio despierta de la siesta, ella está allí. Sin
libro, pero de anteojos.
Sentada en la arenita, los pies guardados bajo las muchas polleras de colores,
ella está muy estando, desde siempre estando; y así mira al intruso ése que lagartea al
sol.
Dulcidio pone las cosas en su lugar. Alza una para uñuda y la pasea sobre el
horizonte de montañas azules:
— Hasta donde llegan los ojos, hasta donde llegan los pies. Todo. Dueño soy.
Ella no echa ni una ojeada al vasto reino y calla. Un silencio muy.
El heredero insiste. Las ovejitas y los indios están a su mandar. Él es amo de
todas estas leguas de tierra y agua y aire; y también del pedazo de arena donde ella está
sentada:
— Te doy permiso – concede.
Ella echa a bailar su larga trenza de pelo negro, como quien oye llover, y el
saurio aclara que él es rico pero humilde, estudioso y trabajador, y ante todo un
caballero con intenciones de formar un hogar, pero el destino cruel quiere que enviude.
Inclinando la cabeza, ella medita ese misterio.
Dulcidio vacila. Susurra:
— ¿Puedo pedirte un favor?
Y se le arrima de costadito, ofreciendo el lomo.
— Ráscame la espalda - suplica -, que yo no llego.
Ella extiende la mano, acaricia la ferruginosa coraza y elogia:
— Es una seda.
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Dulcidio se estremece y cierra los ojos y abre la boca y alza la cola y siente lo
que nunca.
Pero cuando da vuelta la cabeza, ella ya no está.
Arrastrándose a toda velocidad a través del pajonal, la busca al derecho y al
revés y por los cuatro costados. No hay rastros.
Y el domingo siguiente, ella no viene a la orilla del río. Y tampoco viene el otro
domingo, ni el otro.
Y cuando los dos quedan al fin solos, y llega la hora de la verdad, él ofrece:
— Te doy mi corazón. Písalo sin compasión.
Ella apaga la vela de un soplido, deja caer su vestido de novia, esponjoso de
encajes, se saca lentamente los anteojos y le dice:
— No seas huevón. Déjate de pendejadas.
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No tenía mala cara la batalla, hoy, día de San Juan. Desde los bergantines, los
hombres de Francisco de Orellana estaban vaciando de enemigos, a ráfagas de arcabuz y
de ballesta, las blancas canoas venidas de la costa.
Pero peló los dientes la bruja. Aparecieron las mujeres guerreras, tan bellas y
feroces que eran un escándalo, y entonces las canoas cubrieron el río y los navíos
salieron disparados, río arriba, como puercoespines asustados, erizados de flechas de
proa a popa y hasta en el palo mayor.
Las capitanas pelearon riendo. Se pusieron al frente de los hombres, hembras de
mucho garbo y trapío, y ya no hubo miedo en la aldea de Conlapayara. Pelearon riendo
y danzando y cantando, las tetas vibrantes al aire, hasta que los españoles se perdieron
más allá de la boca del río Tapajós, exhaustos de tanto esfuerzo y asombro.
Habían oído hablar de estas mujeres, y ahora creen. Ellas viven al sur, en
señoríos sin hombres, donde ahogan a los hijos que nacen varones. Cuando el cuerpo
pide, dan guerra a las tribus de la costa y les arrancan prisioneros. Los devuelven a la
mañana siguiente. Al cabo de una noche de amor, el que ha llegado muchacho regresa
viejo.
Orellana y sus soldados continuarán recorriendo el río más caudaloso del mundo
y saldrán a la mar sin piloto, ni brújula, ni carta de navegación. Viajan en los dos
bergantines que ellos han construido o inventado a golpes de hacha, en plena selva,
haciendo clavos y bisagras con las herraduras de los caballos muertos y soplando el
carbón con borceguíes convertidos en fuelles. Se dejan ir al garete por el río de las
Amazonas, costeando selva, sin energías para el remo, y van musitando oraciones:
ruegan a Dios que sean machos, por muchos que sean, los próximos enemigos.
Los ingleses pactan la paz con los esclavos fugitivos de Jamaica. Quao, jefe de
los cimarrones de Barlovento, acepta las condiciones luciendo espadín y sombrero
plateado.
Pero en los precipicios del oriente, más poder que Quao tiene Nanny. Las bandas
dispersas de Barlovento obedecen a Nanny, como la obedecen los escuadrones de
mosquitos. Nanny, gran hembra de barrio encendido, amante de los dioses, viste no más
que un collar de dientes de soldados ingleses.
Nadie la ve, todos la ven. Dicen que ha muerto, pero ella se arroja desnuda,
negra ráfaga, al centro del tiroteo. Se agacha de espaldas al enemigo, y su culo
magnífico atrae las balas y las atrapa. A veces las devuelve, multiplicadas, y a veces las
convierte en copos de algodón.
7 - “La Pachamama”
8 - “María Padilla”
Ella es Exu y también es una de sus mujeres, espejo y amante: María Padilha, la
más puta de las diablas con las que Exu gusta revolcarse en las hogueras.
No es difícil reconocerla cuando entra en algún cuerpo. María Padilha chilla,
aúlla, insulta y ríe de muy mala manera, y al fin del trance exige bebidas caras y
cigarrillos importados. Hay que darle trato de gran señora y rogarle mucho para que ella
se digne ejercer su reconocida influencia ante los dioses y los diablos que más mandan.
María Padilha no entra en cualquier cuerpo. Ella elige, para manifestarse en este
mundo, a las mujeres que en los suburbios de Río se gana la vida entregándose por
monedas. Así, las despreciadas se vuelven dignas de devoción: la carne de alquiler sube
al centro del altar. Brilla más que todos los soles la basura de la noche.