Violência Obstétrica em Debate - DTP

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Violência Obstétrica em Debate:

Diálogos Interdisciplinares
www.lumenjuris.com.br

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João Luiz da Silva Almeida

Conselho Editorial

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Adriano Pilatti Gustavo Noronha de Ávila Manoel Messias Peixinho
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Coordenadora:
Thamis Dalsenter Viveiros de Castro

Violência Obstétrica em Debate:


Diálogos Interdisciplinares

Editora Lumen Juris


Rio de Janeiro
2019
Copyright © 2019 by Thamis Dalsenter Viveiros de Castro

Categoria:

Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Diagramação: Rômulo Lentini

A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.


não se responsabiliza pelas opiniões
emitidas nesta obra por seu Autor.

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer


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constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei nº 6.895,
de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e
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Todos os direitos desta edição reservados à


Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
________________________________________
Para Francisco, meu filho, com amor.
Sobre os autores

Adriana Vidal de Oliveira

Doutora em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio. Profes-


sora de Direito Constitucional e Direito Comparado da Pontifícia Universida-
de Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio.

Aline de Miranda Valverde Terra

Professora do Departamento de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio. Dou-


tora e Mestre em Direito Civil pela UERJ. Coordenadora editorial da Revista
Brasileira de Direito Civil – RBDCivil. Associada fundadora ao Instituto Bra-
sileiro de Direito Civil - IBDCivil e associada à Association Henri Capitant des
Amis de la Culture Juridique Française. Membro da Comissão de Direito Civil
da OAB/RJ. Advogada.

Ana Carla Harmatiuk Matos

Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná e mestre


em Derecho Humano pela Universidad Internacional de Andalucía. Tutora in
Diritto na Universidade di Pisa-Italia. Professora na graduação, mestrado e
doutorado em Direito da Universidade Federal do Paraná. Vice-Coordena-
dora do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do
Paraná. Vice-Presidente do IBDCivil. Diretora Regional-Sul do IBDFAM.

Ana Carolina Brochado Teixeira

Doutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito Privado pela PUC/
MG. Especialista em Diritto Civile pela Università degli Studi di Camerino,
Itália. Professora de Direito Civil do Centro Universitário UNA. Coordenado-
ra editorial da RBDCivil. Pesquisadora do CEBID. Advogada.
Bruna Dias Alonso

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Faculdade


de Saúde Pública da Universidade de São Paulo – USP.

Bruna Silveira Moreno

Estudante de Graduação em Obstetrícia da Escola de Artes, Ciências e Huma-


nidades da Universidade de São Paulo – USP.

Carmen Simone Grilo Diniz

Professora titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Pau-


lo - USP.

Cecília Ribeiro Dâmaso

Pesquisadora e graduanda do curso de Direito da Pontifícia Universidade Ca-


tólica do Rio de Janeiro – PUC-Rio.

Consuello Alcon Fadul Cerqueira

Mestranda em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Uni-


versidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio.

Denise Yoshie Niy

Doutora em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São


Paulo – USP.

Gláucia Nascimento da Silva

Pós-graduada em Responsabilidade Civil e Direito do Consumidor pela Uni-


versidade Estácio de Sá e em Processo Civil com capacitação para o Ensino no
Magistério Superior pela Faculdade Damásio de Jesus. Advogada
Heloisa Helena Barboza

Professora titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade


do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Doutora em Direito pela UERJ e em
Ciências pela ENSP/FIOCRUZ. Procuradora de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro (aposentada). Advogada, parecerista e árbitra em Direito Privado.

Laura Uplinger

Psicóloga licenciada em psicologia experimental - Sorbonne, Paris. Educadora


pré-natal e perinatal.

Livia Teixeira Leal

Doutoranda e Mestre em Direito Civil pela UERJ. Pós-Graduada pela EMERJ.


Professora Substituta da Faculdade Nacional de Direito – UFRJ. Monitora
Acadêmica da EMERJ. Advogada.

Malu Stanchi

Pesquisadora, mulher de axé, graduanda em Direito pela PUC-Rio, estagiária


do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio de
Janeiro e graduada em Artes Cênicas pela UNIRIO.

Maíra Fattorelli

Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Univer-


sidade Católica do Rio de Janeiro. Professora do curso de Especialização em
Direito das Famílias e Sucessões da PUC-Rio. Advogada.

Maíra Fernandes

Mestra em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, ex-presidente


do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro. Advogada Criminal.
Mariana Paganote Dornellas

Mestra em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense,


e integrante da Associação Elas Existem- Mulheres Encarceradas.

Mariana Silveira Sacramento

Mestre em Direito PUC-Rio. Doutoranda em Direito Civil pela UERJ. Pro-


fessora do curso de Especialização em Direito das Famílias e Sucessões da
PUC-Rio. Advogada.

Olívia Hirsch

Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de


Janeiro (PUC-Rio), professora do Departamento de Ciências Sociais da PUC-
-Rio e mãe de Lia e Morena.

Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira

Doutora e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de


Janeiro - UERJ. Pós-graduada em Direito da Medicina pelo Centro de Direito
Biomédico da Universidade de Coimbra. Professora de Direito Civil do De-
partamento de Direito da PUC-Rio. Advogada.

Ricardo Chaves

Médico pediatra. Mestre em Saúde Pública IMS/ UERJ, professor do Departa-


mento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ.

Roberta Calábria

Doula, educadora perinatal e consultora em amamentação. Militante e ativista


pela erradicação da violência obstétrica, causa em que atua desde 2010. Membra
da Rede Parto do Princípio e da Associação Artemis. Mãe do Miguel e do Vicente.
Rodrigo de Souza Costa

Professor Adjunto de Direito Penal da Universidade Federal Fluminense e do


Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Veiga de Almeida.

Samara Amaral Freitas

Doula. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de


Janeiro – PUC-Rio.

Sara Mendonça

Doutora e mestre em Antropologia pelo Programa de Pós-graduação em An-


tropologia da Universidade Federal Fluminense – UFF.

Thamis Dalsenter Viveiros de Castro

Mãe do Francisco. Doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio


de Janeiro – UERJ. Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela
PUC-Rio. Professora de Direito Civil do Departamento de Direito da PUC-Rio.

Thula Pires

Mulher preta de axé, mãe da Dandara e bailarina. Doutora em Teoria do Es-


tado e Direito Constitucional da PUC-Rio. Professora da graduação, do pro-
grama de pós-graduação em Direito e coordenadora do NIREMA (Núcleo
Interdisciplinar de Reflexão e Memória Afrodescendente) na PUC-Rio.

Vitor Almeida

Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Ja-


neiro (UERJ). Professor Adjunto de Direito Civil da Universidade Federal Ru-
ral do Rio de Janeiro (ITR/UFRRJ). Professor da PUC-Rio, CEPED-UERJ,
EMERJ e ESAP-Rio.
Prefácio

A presente obra apresenta um aspecto pouco comum: trata de um tema


praticamente desconhecido ou esquecido pelo Direito: a violência obstétrica.
Questões relacionadas ao parto são cogitadas pelo Código Penal que utiliza o
termo em quatro dispositivos penais, dois para punir a mulher (infanticídio e
parto suposto) e dois em que esta é considerada vítima (lesão corporal grave
por aceleração de parto e feminicídio). Deve-se destacar que o feminicídio foi
incluído na Lei Penal em data recente (2015) e que a menção ao parto é feita
para aumento de pena, se o crime for praticado durante a gestação ou nos 3
(três) meses posteriores ao parto.
Não se encontra qualquer referência ao parto no Código Civil, onde a vio-
lência obstétrica só entra pela larga porta da responsabilidade civil, sem qual-
quer especificidade. Na verdade, apenas às vésperas do início do século XXI
(2000) se instaurou uma política voltada para o pré-natal e o nascimento, atra-
vés do Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento (PHPN) cujo
objetivo primordial é assegurar a melhoria do acesso, da cobertura e da qua-
lidade do acompanhamento pré-natal, da assistência ao parto e puerpério às
gestantes e ao recém-nascido, na perspectiva dos direitos de cidadania. O PHPN
fundamenta-se nos preceitos de que a humanização da Assistência Obstétrica e
Neonatal é condição primeira para o adequado acompanhamento do parto e do
puerpério. Deve-se, portanto, à saúde a promoção de ações que, para além das
questões sanitárias, buscam acolher a mulher em momento de alta vulnerabili-
dade e, principalmente, assegurar sua dignidade e a do recém-nascido.
A definição dada pelo Ministério da Saúde à violência obstétrica, por de-
linear bem o âmbito do problema e o alcance que tem a presente obra, merece
transcrição: “Entende-se como violência obstétrica a que acontece no momen-
to da gestação, parto, nascimento e/ou pós-parto, inclusive no atendimento ao
abortamento. Pode ser física, psicológica, verbal, simbólica e/ou sexual, além
de negligência, discriminação e/ou condutas excessivas ou desnecessárias ou
desaconselhadas, muitas vezes prejudiciais e sem embasamento em evidências
científicas. Essas práticas submetem mulheres a normas e rotinas rígidas e mui-
tas vezes desnecessárias, que não respeitam os seus corpos e os seus ritmos natu-
rais e as impedem de exercer seu protagonismo. Atinge boa parte das mulheres
e bebês em todo o país. Muitas dessas vítimas acabam ficando com sequelas.
Algumas nem ao menos sobrevivem”. 
Quando se considera a situação de indigência e deterioração pela qual pas-
sa a saúde no Brasil, é possível melhor compreender que, apesar de todos os es-
forços e de alguns passos terem sido dados, muito ainda falta a fazer em prol da
efetiva proteção da mulher no momento do parto e do bebê em seu nascimento.
É na zona cinzenta entre a invisibilidade jurídica e a falta de maior efe-
tividade da política já formalizada que se desenvolvem os estudos que com-
põem este livro, que se deve à sensibilidade e percepção de sua Coordenadora
quanto à gravidade dos problemas que se multiplicam exponencialmente pelo
Brasil no tocante à violência na hora do parto.
A violência obstétrica tem muitas faces e algumas delas foram enfrenta-
das aqui, em estudos que revelam esforço e interesse pela temática que busca,
ainda, definições. O amplo espectro dos debates permite incursões em aspec-
tos de repercussão prática, como os planos de parto e os direitos das gestantes,
o papel da doula, até a inclusão da aromaterapia no atendimento do Sistema
Único de Saúde (SUS).
Destaque deve ser dado para as reflexões jurídicas, que a partir de fontes
tradicionais, como as da responsabilidade civil e penal, bem como do direito à in-
formação, se voltam para a violência obstétrica especificamente, o que representa
uma contribuição valiosa na construção das soluções de há muito demandas.
A feição mais cruel da violência obstétrica se revela, contudo, quando se
cuida de populações vulneradas: negra, carcerária, com deficiência e transexual.
Insista-se em “vulnerada” e não “vulnerável”, porque para essas pessoas a lesão já
se verificou, não apenas por suas condições individuais, que as colocam em situ-
ação de exclusão e discriminação social, mas por estarem grávidas. Há tendência
a se considerar assexuadas essas pessoas, inclusive no sentido erótico, as quais, de
certo modo, devem ser “punidas” por quererem ter filhos.
Essa última vertente dos estudos remete à origem da palavra obstetra, que
vem do latim obstare, de ob-, “à frente”, mais stare, quem “fica à frente” de outra
pessoa e a está impedindo de chegar onde quer. Por derivação se refere à posição
em que fica o parteiro(a), na frente da mulher, para ajudar, não para atrapalhar.
Em muitos casos, todavia, a ajuda não acontece ou não é a que se espera.
Já é hora de se trabalhar eficazmente para que a ciência médica, hoje
senhora do parto e do nascimento, dê espaço para que a “arte” de ajudar a
nascer, desenvolvida anteriormente pelas "aparadeiras" ou "comadres", que as-
sistiam as mulheres, no trabalho de parto e nos cuidados pré e pós-parto. Não
se veja nessa frase nenhuma demonização da medicina ou qualquer proposta
de seu afastamento, mas sim um alerta para que se procure acabar com a vio-
lência obstétrica, especialmente em relação a pessoas vulneradas.
Nesse sentido, a presente obra se inscreve dentre as pioneiras e constitui
leitura necessária para todos que querem partos verdadeiramente humanos.

Rio de Janeiro, setembro 2018.


Heloisa Helena Barboza
Apresentação

Desde agosto de 2015, o grupo de pesquisa em “Direitos da gestante e vio-


lência obstétrica”, vinculado ao Departamento de Direito da Pontifícia Univer-
sidade do Rio de Janeiro – PUC-Rio, sob minha orientação, agrega pesquisado-
res dedicados ao estudo crítico das consequências jurídicas da violência sofrida
pelas mulheres em razão da gestação. Dos trabalhos desenvolvidos pelo grupo
surgiu a série de palestras “Diálogos sobre Violência Obstétrica”, que promoveu
o encontro de pesquisadores do Direito, das áreas de Saúde, da Psicologia e da
Antropologia para debater o tema a partir de uma abordagem interdisciplinar.
Esse livro tem a missão de reunir e permitir o compartilhamento de
grande parte das reflexões produzidas no âmbito do grupo de pesquisas da
PUC-Rio, contando com a contribuição de pesquisadores que se dedicam aos
desdobramentos da violência obstétrica em diferentes perspectivas jurídicas,
considerando que os efeitos das privações de direitos se alteram diante das
diferentes marcas da vulnerabilidade, como é o caso da gestante transexual,
da gestante com deficiência, das mulheres grávidas que se encontram encar-
ceradas, e das mulheres grávidas que se encontram especialmente suscetíveis
à mortalidade materna tendo em vista a institucionalização do racismo no
sistema obstétrico brasileiro.
Diante da necessidade de ampliar a proteção da autonomia da gestante
antes, durante e após o parto, esta obra coletiva apresenta reflexões sobre ins-
trumentos destinados à tutela preventiva, utilizados na prevenção à violência
obstétrica, como é o caso do plano de parto, do direito ao acompanhante, da
efetividade do direito à informação e dos parâmetros para que o consentimento
seja de fato informado a respeito dos procedimentos adotados na assistência
ao nascimento. Tendo em vista que é urgente a tarefa de tutelar as vítimas já
produzidas pela violência obstétrica, esta obra também conta com ponderações
sobre a responsabilidade penal e a responsabilidade civil geradas pelos danos à
gestante, considerando o tratamento jurídico dado pelos tribunais brasileiros.
Embora seja tema novo para o universo jurídico, a violência obstétrica
é intensamente debatida há décadas em outras áreas que cuidam da promo-
ção da saúde materno-infantil, razão pela qual este livro buscou atender à
abordagem interdisciplinar que o tema exige, contando com a participação
de pesquisadores e profissionais que se destacam pela atuação em diferentes
áreas que envolvem o nascimento no Brasil, como as doulas, e de profissionais
das áreas da psicologia, pediatria, ginecologia e obstetrícia.
Gostaria de agradecer a todas as pesquisadoras e pesquisadores que se
uniram no esforço conjunto de produzir essa obra coletiva, assumindo como
prioritário o desafio de romper com a negligência teórica que a violência obs-
tétrica sofre no âmbito jurídico, buscando construir as bases para um direito
ao nascimento na medida da dignidade da pessoa humana e de suas vulne-
rabilidades. Além das autoras e dos autores dessa obra, é preciso agradecer a
colaboração dos professores Vitor Almeida, fundamental para a concepção
e realização desse projeto, do início ao fim dessa jornada, e Maíra Fattorelli,
essencial na produção do conteúdo interdisciplinar que marca esse livro.
Agradeço também à Cecília Dâmaso, aluna de graduação em Direito da PUC-
-Rio e participante do grupo de pesquisa, que se empenhou na organização
administrativa inicial dessa coletânea. Agradeço especialmente à PUC-Rio e
ao Departamento de Direito pelo apoio na realização dos eventos e nas ativi-
dades do grupo de pesquisa que geraram esse livro.
A violência obstétrica é mais uma consequência da violência de gênero
que marca nossa sociedade. Enfrentar o tema da violência contra a gestante
é, portanto, reafirmar o direito à autonomia corporal da mulher na busca in-
cansável pela igualdade de gênero em sua plenitude, do início ao fim da vida.

Thamis Dalsenter Viveiros de Castro


Rio de Janeiro, 12 de setembro de 2019.
Sumário

Violência Obstétrica e os direitos da pessoa transexual gestante...................... 1


Heloisa Helena Barboza
Considerações sobre o direito ao acompanhante e a violência obstétrica...... 21
Thamis Dalsenter Viveiros de Castro
Mortalidade materna: precariedade e invisibilidade......................................... 41
Maíra Fattorelli
Violência obstétrica, cuidado neonatal e desafios para
humanização da assistência ao parto .................................................................. 61
Ricardo L. Chaves
Violência obstétrica: um novo termo que engloba novas e velhas demandas.......73
Olivia Hirsch
Sara Mendonça
Violência obstétrica nos estudos brasileiros sobre
assistência ao parto: definições em construção.................................................. 91
Denise Yoshie Niy
Bruna Dias Alonso
Bruna Silveira Moreno
Carmen Simone Grilo Diniz
O dever de informação na relação médico-gestante como
forma de garantia da autonomia existencial no parto.....................................127
Ana Carolina Brochado Teixeira
Livia Teixeira Leal
A informação como forma de combate à violência obstétrica na relação
médico-paciente e os impactos na seara da responsabilidade civil............... 151
Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira
Gláucia Nascimento da Silva
Notas sobre a autonomia da gestante e os requisitos de
validade dos planos de parto no direito brasileiro........................................... 171
Vitor Almeida
Violência obstétrica contra a gestante com deficiência .................................. 185
Aline de Miranda Valverde Terra
Ana Carla Harmatiuk Matos
Racismo institucional e violência obstétrica: dispositivo
sistêmico de genocídio da população negra......................................................209
Thula Pires
Malu Stanchi
Maternidade e violência atrás das grades..........................................................233
Maíra Fernandes
Mariana Paganote Dornellas
A responsabilidade penal nas hipóteses de violência obstétrica....................249
Rodrigo de Souza Costa
Adriana Vidal de Oliveira
Consuello Alcon Fadul Cerqueira
O Plano de parto como instrumento de autonomia, privacidade e garantia
da proteção ao indivíduo face aos casos de violência obstétrica........................261
Mariana Silveira Sacramento
A violência obstétrica e seu impacto sobre o bebê...........................................277
Laura Uplinger
Doula à brasileira: as idiossincrasias do cenário obstétrico
contemporâneo e a figura da doula no Rio de Janeiro.....................................287
Roberta Calábria
Ampliação do direito à saúde da gestante: inclusão da aromaterapia
no atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS)..........................................305
Samara Amaral Freitas
A expansão do conceito de violência obstétrica
e as práticas de esterilização compulsória......................................................... 319
Cecília Ribeiro Dâmaso
Violência Obstétrica e os direitos
da pessoa transexual gestante

Heloisa Helena Barboza

“ter um filho biológico não é um desejo feminino


ou masculino, é um desejo humano”. 1

Considerações iniciais
O Ministério da Saúde, em junho de 2000, instituiu o Programa de Hu-
manização no Pré-natal e Nascimento pela Portaria GM/569, após análise das
necessidades de atenção específica à gestante, ao recém-nascido e à mãe no
período pós-parto. O objetivo primordial do Programa de Humanização no
Pré-natal e Nascimento (PHPN) é assegurar a melhoria do acesso, da cober-
tura e da qualidade do acompanhamento pré-natal, da assistência ao parto
e puerpério às gestantes e ao recém-nascido, na perspectiva dos direitos de
cidadania. O PHPN fundamenta-se nos preceitos de que a humanização da
Assistência Obstétrica e Neonatal é condição primeira para o adequado acom-
panhamento do parto e do puerpério. A humanização compreende pelo me-
nos dois aspectos fundamentais. O primeiro diz respeito à convicção de que é
dever das unidades de saúde receber com dignidade a mulher, seus familiares
e o recém-nascido. Isto requer atitude ética e solidária por parte dos profis-
sionais de saúde e a organização da instituição de modo a criar um ambiente
acolhedor e a instituir rotinas hospitalares que rompam com o tradicional
isolamento imposto à mulher. O outro se refere à adoção de medidas e pro-
cedimentos sabidamente benéficos para o acompanhamento do parto e do
nascimento, evitando práticas intervencionistas desnecessárias, que embora
tradicionalmente realizadas não beneficiam a mulher nem o recém nascido, e
que com frequência acarretam maiores riscos para ambos2.

1 Thomas Beatie.
2 Portaria GM/569 – Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento Disponível: http://
bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2000/prt0569_01_06_2000_rep.html. Acesso 20.02.2018.

1
Violência Obstétrica em Debate

Após a instituição do PHPN algumas medidas foram adotada no âmbito


administrativo e legislativo para sua implementação, de que são exemplo a Lei
do Acompanhante (Lei n° 11.108/2005) e a Lei que reconhece o direito da ges-
tante ao conhecimento e a vinculação à maternidade onde receberá assistência
no âmbito do Sistema Único de Saúde (Lei n° 11.634/2007).
Todas as medidas acima referidas, que só merecem aplauso, se destinam à
proteção da mulher gestante e do recém-nascido, mormente dos que se encon-
tram em situação de maior vulnerabilidade social, e decorrem, sob o ponto de
vista jurídico, da cláusula geral de proteção da pessoa humana em sua dignidade.
A medicina aliada aos avanços biotecnocientificos tem de tal modo in-
terferido nos processos humanos, até então resultantes exclusivamente das
leis naturais, que situações de todo inéditas emergiram e passaram a exigir
do Direito soluções condizentes com os princípios que regem o ordenamento
jurídico. Nessa linha de interferências, as técnicas de reprodução assistida e a
possibilidade de mudança de sexo, através do denominado processo transe-
xualizador, revolucionam as estruturas da sociedade, ao permitir a procriação
por pessoas do mesmo sexo e por pessoa do sexo masculino. Fatos que ime-
morialmente eram considerados impossíveis tornaram-se realidade e desa-
fiam o Direito existente no Brasil, em particular o Direito Civil, pensado e
legislado, ainda hoje, sob as luzes do início do século XX.
No momento em que a homofobia é um problema nacional, com núme-
ros alarmantes, é possível imaginar e entender as dificuldades e sofrimentos
que atingem a gestante homossexual feminina. Mais grave, porém, é a re-
produção por pessoa transexual. Embora no Brasil essa possibilidade tenha
ficado restrita ao mundo da ficção - até onde se sabe - as fotos de homens
grávidos assombraram o mundo. Essa situação, alocada por muitos no campo
das aberrações, é fruto dos avanços médicos e se inscreve nas cada vez mais
frequentes mutações que se constatam nas relações familiares ocidentais.
Já é tempo, portanto, de se trazer o complexo tema da pessoa transexual
gestante ao debate jurídico, não apenas para que se identifiquem as responsabili-
dades envolvidas nesse processo, mas principalmente para se minimizar, se não
evitar, toda violência, em especial obstétrica, a que estará exposta essa pessoa.

2
Violência Obstétrica em Debate

1. Parto humanizado x violência obstétrica


O primeiro contato com a denominada “violência obstétrica” causa sur-
presa: como pode haver violência num parto? Como o momento de “dar à luz”
pode ser tão sombrio? Mas se os relatos e as estatísticas não são suficientes
para revelar o que poderia parecer um absurdo, as ações do Ministério da Saú-
de, do Legislativo e da Defensoria Pública espancam qualquer dúvida sobre a
gravidade do tema, mais um dos que se inscreve no rol dos esquecidos pelo
Direito, lamentavelmente.
Um breve corte cronológico merece ser feito para demonstrar o “estado
da arte”. Em 1º de junho de 2000, portanto há dezoito anos, o Ministério da
Saúde, pela Portaria 569/2000, resolveu instituir o Programa de Humanização
no Pré-natal e Nascimento, no âmbito do Sistema Único de Saúde3, que deve-
ria ser executado de forma articulada pelo Ministério da Saúde e pelas Secre-
tarias de Saúde dos estados, municípios e do Distrito Federal, com o objetivo
de desenvolvimento de ações de promoção, prevenção e assistência à saúde de
gestantes e recém-nascidos. Foram ali estabelecidos os seguintes princípios e
diretrizes para o referido Programa, nos termos do art. 2º da Portaria:
a - toda gestante tem direito ao acesso a atendimento digno e de qualida-
de no decorrer da gestação, parto e puerpério;
b - toda gestante tem direito ao acompanhamento pré-natal adequado
de acordo com os princípios gerais e condições estabelecidas no Anexo
I desta Portaria;
c - toda gestante tem direito de saber e ter assegurado o acesso à mater-
nidade em que será atendida no momento do parto;
d - toda gestante tem direito à assistência ao parto e ao puerpério e que
esta seja realizada de forma humanizada e segura, de acordo com os
princípios gerais e condições estabelecidas no Anexo II desta Portaria;
(sem grifos no original)

De acordo com o citado Anexo II, da Portaria 569/2000: a humanização


da Assistência Obstétrica e Neonatal é condição para o adequado acompanha-

3 Portaria nº 569, de 1º de junho de 2000, Republicada por ter saído com incorreção do original, no
DOU nº 110-E, de 8 de junho de 2000, Seção 1, Páginas 4, 5 e 6. Disponível:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2000/prt0569_01_06_2000_rep.html. Acesso: 20.04.2018.

3
Violência Obstétrica em Debate

mento do parto e puerpério; é uma obrigação das unidades receber com digni-
dade a mulher e o recém-nascido; a adoção de práticas humanizadas e seguras
implica a organização das rotinas, dos procedimentos e da estrutura física, bem
como a incorporação de condutas acolhedoras e não-intervencionistas. Para a
adequada assistência à mulher e ao recém-nascido no momento do parto, são
responsabilidades de todas as Unidades Integrantes do SUS, dentre outras:
1. atender a todas as gestantes que as procurem;
2. garantir a internação de todas as gestantes atendidas e que dela necessitem;
3. estar vinculada à Central de Regulação Obstétrica e Neonatal de modo
a garantir a internação da parturientenos casos de demanda excedente;
4. transferir a gestante e ou o neonato em transporte adequado, mediante
vaga assegurada em outra unidade,quando necessário;
5. estar vinculada a uma ou mais unidades que prestam assistência pré-
-natal, conforme determinação do gestorlocal;
6. garantir a presença de pediatra na sala de parto;
7. realizar o exame de VDRL na mãe;
8. admitir a visita do pai sem restrição de horário;
9. garantir a realização das seguintes atividades: realização de partos nor-
mais e cirúrgicos, e atendimento a intercorrências obstétricas; recepcio-
nar e examinar as parturientes; assistir as parturientes em trabalho de
parto; assegurar a execução dos procedimentos pré-anestésicos e anes-
tésicos; proceder à lavagem e antissepsia cirúrgica das mãos; assistir a
partos normais; realizar partos cirúrgicos; [...] (sem grifos no original)4

A determinação da responsabilidade de todas as Unidades Integrantes


do SUS pela garantia de lavagem e antissepsia cirúrgica das mãos5, bem como

4 Anexo II, da Portaria nº 569, de 1º de junho de 2000, republicada por ter saído com incorreção do
original, no DOU nº 110-E, de 8 de junho de 2000, Seção 1, Páginas 4, 5 e 6. Disponível:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2000/prt0569_01_06_2000_rep.html. Acesso: 20.04.2018.
5 De acordo com a Associação de Medicina Intensiva Brasileira-AMIB, “embora o hábito de lavar
as mãos seja cotidiano para todos os profissionais de saúde atualmente, a descoberta científica de
sua importância, além como aspectos técnicos da higienização no ambiente de cuidado intensivo
ainda são desconhecidos. A descoberta sobre a importância de lavar as mãos tem uma história
interessante, por exemplo. Em 1846, quando Ignaz Philipp Semmelweiss era médico assistente da

4
Violência Obstétrica em Debate

pela execução dos procedimentos pré-anestésicos e anestésicos induz concluir


que as práticas obstétricas, às vésperas do século XX, eram as mesmas de me-
ados do século XIX (!). Mais grave, certamente, foi a constatação - nove anos
depois - de que várias das determinações administrativas acima transcritas,
que objetivavam a humanização do parto, não eram observadas. “Diante des-
se quadro tão peculiar”, como afirmaram as pesquisadoras Maria do Car-
mo Leal e Silvana Granado Nogueira da Gama, o Ministério da Saúde lançou
um edital via Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológi-
co (CNPq) para a realização de uma grande pesquisa nacional visando estu-
dar o parto e o nascimento em nosso país. O estudo, realizado entre fevereiro
de 2011 e outubro de 2012, é representativo dos nascimentos hospitalares de
um universo onde ocorrem 83% dos partos do país6.
De acordo com as citadas pesquisadoras, por ocasião da publicação do
resultado da ampla pesquisa:
Nascer no Brasil não tem sido uma experiência natural nem para pobres
nem para ricos. O parto vaginal, mais frequente nos estabelecimentos pú-
blicos, quase sempre ocorre com muita dor e excesso de intervenções. Nos
estabelecimentos privados, a cesariana, uma cirurgia muitas vezes des-

primeira clínica obstétrica do Allgemeine Krankenhaus, em Viena (Áustria), a mortalidade dos


pacientes era de três a dez vezes mais alta do que de a da clínica do mesmo hospital onde os partos
eram realizados por parteiras. Nessa unidade obstétrica, os médicos que faziam os partos também
realizavam as autópsias nas parturientes que não resistiam. Logo, Semmelweiss percebeu que os
profissionais deviam estar levando micróbios das autópsias às pacientes em trabalho de parto,
contaminando-as. Infelizmente somente após sua morte, suas observações foram valorizadas e a
higienização das mãos passou a ser reconhecida como importante ação na prevenção de infecções
[...]”. A higienização das mãos integra as práticas internacionais de segurança do paciente e no Brasil
é objeto de Programa específico da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, como tema
prioritário. Ver sobre o assunto:
http://www.anvisa.gov.br/hotsite/higienizacao_maos/manual_integra.pdf e
https://www20.anvisa.gov.br/segurancadopaciente/index.php/publicacoes/category/higienizacao-
das-maos. Acesso em 20.04.2018.
6 O estudo foi coordenado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), tendo contemplado 266
maternidades com 500 ou mais partos por ano, sendo representativo dos nascimentos hospitalares
neste universo onde ocorrem 83% dos partos do país. [...] O projeto INOVA-ENSP e a Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) também deram importante suporte
a essa investigação. LEAL, Maria do Carmo e GAMA, Silvana Granado Nogueira da. Editorial.
Cadernos de Saúde Pública, v. 30, supl 1. Rio de Janeiro, 2014. Disponível: http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0102-311X20140013. Acesso: 20.04.2018. 

5
Violência Obstétrica em Debate

necessária e quase sempre pré-agendada, vem se constituindo em uma


opção para minimizar esse sofrimento. (sem grifos no original)

Sob o sugestivo título “Parirás com dor”, o dossiê elaborado pela Rede
Parto do Princípio7 para a CPMI da Violência Contra as Mulheres, em 20128,
que informou o Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito-
CPMI, instaurada pelo Senado com a finalidade de investigar a situação da
violência contra a mulher no Brasil, destaca o relato de mulheres que deram à
luz em várias cidades do Brasil, que resume um pouco da dor e da humilhação
que sofreram na assistência ao parto. Outros relatos frequentemente incluem:
comentários agressivos, xingamentos, ameaças, discriminação racial e socio-
econômica, exames de toque abusivos, agressão física e tortura psicológica.
Além disso, a violência no parto é praticada através de inúmeras intervenções
desnecessárias, como cesarianas não recomendadas, a episiotomia, a ausência
de respeito à norma que garante acompanhante durante o parto, dentre ou-
tros comportamentos dos profissionais de saúde que violam os direitos repro-
dutivos das mulheres9. Conforme noticiado pelo Senado, segundo pesquisa
da Fundação Perseu Abramo publicada em 2010, que igualmente informou o
citado Relatório da CPMI, 25% das mães brasileiras sofreram algum tipo de
agressão na fase de pré-natal ou no parto.10 

7 A Parto do Princípio – Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa1 é composta por mais de 300
mulheres em 22 Estados brasileiros e que trabalham voluntariamente na divulgação de informações
sobre gestação, parto e nascimento baseadas em evidências científicas e nas recomendações da
Organização Mundial da Saúde. Ver: www.partodoprincipio.com.br. Acesso: 20.04.2018.
8 Disponível: https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20VCM%20367.
pdf. Acesso: 20.04.2018.
9 Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito- CPMI, instaurada “com a finalidade
de investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil e apurar denúncias de omissão por
parte do poder público com relação à aplicação de instrumentos instituídos em lei para proteger as
mulheres em situação de violência”. Senado Federal. Brasília, 2013, p. 62. Disponível:
https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/relatorio-final-da-comissao-
parlamentar-mista-de-inquerito-sobre-a-violencia-contra-as-mulheres. Acesso: 20.04.2018.
10 Disponível: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/06/20/violencia-obstetrica-e-
uma-realidade-cruel-dos-servicos-de-saude-apontam-debatedores. Acesso em 20.06.2018.

6
Violência Obstétrica em Debate

O Relatório da CPMI indica, ainda, que estudos e pesquisas relacionadas


à discriminação racial demonstram como as mulheres negras são mais vul-
neráveis e atingidas pela discriminação institucional dos serviços públicos,
inclusive os de saúde.11
Neste cenário manifesta-se a lesbofobia. Contudo, as políticas de gênero
nem sempre abarcam essa dimensão da discriminação, que não é registrada.
A pouca informação sobre tais fatos dificulta a formulação das políticas de
enfrentamento à lesbofobia. “As mulheres lésbicas são invisíveis aos olhos dos
poderes públicos, mas sofrem discriminações de todo o tipo”.12
Embora reconhecida e até quantificada, a violência obstétrica ainda carece
de conceituação e disciplina formal, o que talvez venha a imprimir maior efetivi-
dade a sua regulamentação. A consulta ao site da Câmara sobre o tema revela a
“árvore de projetos apensados e outros documentos da matéria” que constitui um
cipoal de projetos, requerimentos e “outros” que tramitam pelo menos desde 2013.
Nessa árvore, três Projetos de Lei (PL) que tem por objetivo dispor sobre
a violência obstétrica praticada por médicos e/ou profissionais de saúde contra
mulheres em trabalho de parto ou logo após se destacam. De acordo com o PL
8.219/201713, a violência obstétrica é a imposição de intervenções danosas à inte-
gridade física e psicológica das mulheres nas instituições e por profissionais em
que são atendidas, bem como o desrespeito a sua autonomia. Consta do referido
PL um rol de condutas que configuram a violência obstétrica (art. 2º), que inclui
a realização de procedimento cirúrgico sem o conhecimento e consentimento da
mulher, que é penalizado com detenção, de seis meses a dois anos, e multa (art. 2º,
IX). Disposições similares se encontram no PL 7.867/201714.
De forma mais abrangente o PL 7.633/2014 caracteriza a violência obsté-
trica como a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres
pelos(as) profissionais de saúde, através do tratamento desumanizado, abuso
da medicalização e patologização dos processos naturais, que cause a perda da

11 Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito- CPMI, cit., p. 63.


12 Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito- CPMI, cit., p. 65.
13 PL 8219/2017. Disponível: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idPropos
icao=2147144. Acesso: 25.04.2018.
14 PL 7.867/2017. Disponível: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idPropo
sicao=2141402&ord=1. Acesso: 25.04.2018.

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Violência Obstétrica em Debate

autonomia e capacidade das mulheres de decidir livremente sobre seus cor-


pos e sua sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das
mulheres. Considera-se violência obstétrica todo ato praticado pelo(a) profis-
sional da equipe de saúde que ofenda, de forma verbal ou física, as mulheres
gestantes em trabalho de parto, em situação de abortamento e no pós-parto/
puerpério (art. 13 e parágrafo único), constando da proposta um longo elenco
(vinte e dois itens) de condutas que podem ser consideradas como ofensas ver-
bais ou físicas às gestantes em trabalho de parto, em situação de abortamento
e no pós-parto/puerpério (art. 14).15
Dois aspectos chamam a atenção nesse processo legislativo. O primeiro
é a presença de projetos de lei recentes (2017), o que indica estar a matéria,
ainda, em plena discussão. O segundo é que há pelo menos cinco anos os pro-
jetos e seus apensos se arrastam pelo Congresso sem perspectiva de solução
em médio prazo.
Nesse cenário, bastante útil tem sido o trabalho das Defensorias Públi-
cas Estaduais que não só esclarecem e orientam mulheres sobre a violência
obstétrica, como as defendem quando necessário, através de Núcleos especia-
lizados desde 2014.16 Merece destaque a cartilha17 elaborada pela Defensoria
Pública de São Paulo e disponibilizada à população.

2. O direito ao planejamento familiar


Atualmente é possível reconhecer a possibilidade de “construção” do indi-
víduo, tão diversificadas e profundas são as intervenções no corpo humano, que
chegam ao ponto de promover a “troca de sexos”. Como observam Ana Maria
C. Aleksandrowicz e Maria Cecília de Souza Minayo, “a nossa espécie teria al-
terado a ordem ‘natural’ de sua existência por meio da tecnologia: drogas, peças
de reposição para virtualmente todos os sistemas corporais, técnicas de repro-

15 PL 7.633/2014. Disponível: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idPropo


sicao=617546. Acesso: 25.04.2018.
16 Ver: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2014-03/defensoria-publica-orienta-
mulheres-sobre-violencia-obstetrica. Acesso: 20.04.2018.
17 Ver: https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/41/Violencia%20Obstetrica.pdf. Acesso:
20.04.2018.

8
Violência Obstétrica em Debate

dução assistida e promessas de clonagem”. Vários rótulos circunscrevem a nova


condição humana: “pós-humano”, “pós-orgânico” e “pós-biológico”.18
Nessa senda de interferências a própria reprodução humana foi atingida.
Embora o controle da concepção com o uso da pílula anticoncepcional, mé-
todo simples e eficaz, tenha alterado de modo profundo a sociedade no século
passado, especialmente no tocante aos costumes, verdadeira revolução se ini-
ciou a partir do uso das técnicas que viabilizam a concepção. As repercus-
sões decorrentes de seu uso e, principalmente, a variedade de possibilidades e
consequências que provocam beiram o que se considerava impossível, como a
procriação por casais do mesmo sexo.
O reconhecimento da reprodução humana como direito é recente e se
verificou no já longo e diversificado caminho percorrido pelos direitos repro-
dutivos. A construção desses direitos, como esclarece Miriam Ventura, é fruto
dos movimentos reivindicatórios das mulheres. Segundo a autora, a Organi-
zação Internacional do Trabalho (OIT), em 1919, regulou a proteção à mater-
nidade, tendo papel pioneiro19.
O “right to procreate” foi admitido inicialmente para ensejar a defesa do
indivíduo contra qualquer privação ou limitação, por parte do Estado, da li-
berdade de escolha quanto a procriar ou não. O conceito de “procriar” com-
preende, sobretudo, o fato meramente genético, ou seja, de dar origem a um
filho que derive do próprio patrimônio genético. Acresceu-se posteriormente
um conteúdo positivo ao direito de procriar, consistente no direito de desen-
volver, em concreto, a função de genitor20. A questão não se pacificou, mor-
mente em face das técnicas de reprodução assistida. A controvérsia se acirra
no caso da utilização das técnicas de reprodução assistida por homossexuais,
possibilidade que desperta vivo debate ético-jurídico. Encontra-se em discus-
são, portanto, o reconhecimento do direito de procriar, no que respeita a sua
abrangência e titularidade.

18 ALEKSANDROWICZ, Maria C.; MINAYO, Maria Cecília de Souza. Humanismo, liberdade e


necessidade: compreensão dos hiatos cognitivos entre ciências da natureza e ética. In: Ciência &
Saúde Coletiva, v. 10, n. 3, p. 518.
19 VENTURA, Miriam. Direitos Reprodutivos no Brasil. 2 ed., Brasil: UNFPA, 2004, p. 23.
20 LENTI, Leonardo. La procreazione artificiale. Genoma della persona e attribuzione della paternità.
Padova: Cedam, 1993 p. 42.

9
Violência Obstétrica em Debate

Em nível internacional, a indagação quanto à existência de um direito à


reprodução encontra diferentes respostas. Os entendimentos sobre a liberdade
de procriar foram bem sintetizados por Encarna Roca i Trias. A questão é pos-
ta, especialmente, em face da necessidade (ou não) de suporte legal para a uti-
lização das técnicas de reprodução assistida. Como esclarece a autora, a base
da questão envolve a existência de um “hipotético” direito a ter filhos, deriva-
do do próprio direito à vida, bem como do direito à privacidade, compreen-
dendo não só a proteção da vida já existente (sentido negativo), mas também a
possibilidade de criar uma vida por meio de técnicas médicas (sentido ativo)21.
Duas correntes se formaram. Nos Estados Unidos, com base em julga-
dos que adotaram fundamentos diversificados, ao decidir lides envolvendo o
direito de procriar em diferentes aspectos (esterilização de delinquentes con-
denados por abusos sexuais, uso de contraceptivos por pessoas casadas, liber-
dade da mulher levar adiante ou não uma gravidez, mesmo contra a vontade
do marido). Muitos autores passaram a entender que a Corte Suprema Ameri-
cana admite o direito de procriar em todos os aspectos. Nessa linha, o direito
de ter filhos está assegurado aos casais férteis ou não, inexistindo, portanto,
distinção quanto ao modo de exercê-lo, se por meio de relação sexual ou uti-
lizando técnicas de reprodução assistida.22
Na Europa, formulou-se em 1987 uma consulta ao Comitê Diretor dos
Direitos Humanos (CDDH) sobre a existência ou não do direito de procriar,
mas precisamente sobre a garantia, na Carta Europeia, de um direito absoluto
de procriar, incluído no direito à vida. A resposta do Comitê foi negativa23.
Para Encarna Roca i Trías, no que se refere ao direito de procriar, esta “decisão
pode levar a uma conclusão: não se reconhece diretamente esse direito”. Apli-
cando os argumentos da decisão às técnicas de reprodução assistida, afirma

21 TRÍAS, Encarna Roca i. Direitos de reprodução e eugenia. In: CASABONA, Carlos Maria Romeo.
Biotecnologia, direito e bioética. Belo Horizonte: Del Rey; PUC-Minas, 2002. p. 101-103.
22 Idem.
23 De acordo com a referida autora, “esse não é o único caso em que se pode basear uma interpretação
negativa da existência de um direito absoluto de procriar”, citando decisão da Comissão Europeia de
Direitos Humanos que julgou improcedente a demanda do marido (e pai potencial) contra o aborto
efetuado por sua esposa, sem o ter comunicado previamente, com base em seu direito à vida familiar.
Segunda a Comissão, o direito do marido não tem uma interpretação tão ampla que inclua o que
pleiteava, visto que deve se levar em conta, em primeiro lugar, “o direito à privacidade da mulher
grávida, primeira afetada pela gravidez, seu prosseguimento e finalização”. Idem, p. 101-103.

10
Violência Obstétrica em Debate

a autora que “se não se reconhece um direito absoluto, a consequência lógica


será a ampla liberdade de regulamentação para os Estados da Comunidade”,
ou seja, “não se reconhece diretamente esse direito nessa matéria”.24
O reconhecimento da denominação “direitos reprodutivos” (reproductive
rights), explicitados inequivocamente como direitos fundamentais ou humanos,
ocorreu pela primeira vez de modo formal após a Conferência Internacional
de Cairo de 1994, sobre população e desenvolvimento e de Beijing de 199525.
Entendeu-se como tal o direito de “decidir livremente e responsavelmente sobre
o número de filhos e sobre o intervalo entre eles, e de acessar as informações,
instruções e serviços sobre planejamento familiar” 26. Desse modo, “o direito
à escolha reprodutiva”, como direito à liberdade reprodutiva, relativa a “se” e
“quando” reproduzir-se, permitiu incluir nessa escolha o “como” reproduzir-se,
relacionado às técnicas de reprodução artificial, compreendidas, portanto, nos
mesmos termos, como opção pessoal absolutamente fundamental27.
De acordo com Wilson R. Buquetti Pirotta e Flávia Piovesan, “o conceito de
direitos reprodutivos fixado internacionalmente no Programa de Ação da Confe-
rência Internacional para População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em
1994, [abrange] certos direitos humanos já reconhecidos em leis nacionais e do-
cumentos internacionais e [os direitos reprodutivos] têm como base o reconheci-
mento do direito de todos os casais e indivíduos decidirem livremente as questões
ligadas à sua vida reprodutiva, além do reconhecimento do direito de atingir o
mais elevado padrão de saúde reprodutiva e sexual (ONU, 1994, item 7.2)”. Para
os citados autores, desta definição “se destacam o reconhecimento internacional

24 Idem, p. 104.
25 IAGULLI, Paolo. “Diritti Riproduttivi” e Riproduzione artificiale. Torino: G. Giappichelli Editore,
2001, p. 3. Refere-se o autor a International Conference on Population and Development: Cairo,
5-13 set. 1994, e The Beijing Declaration and the Platform for Action: Fourth World Conference on
Women: Beijjing, China, 4-15 set. 1995.
26 Não obstante a referência, a Proclamação da Conferência Internacional sobre Direitos Humanos de
Teerã, de 13.05.1968, estabelecera que: “16. The protection of the family and of the child remains the
concern of the international community. Parents have a basic human right to determine freely and
responsably the number and the spacing of their children.”. The United Nations Blue Books Series.
The United Nations and Human Rights 1945-1995.
27 IAGULLI, Paolo. Op. cit., p. 5.

11
Violência Obstétrica em Debate

da importância dos direitos reprodutivos na promoção da saúde reprodutiva e a


inserção dos direitos reprodutivos no rol dos direitos humanos.”28
Considerando a abrangência dos direitos reprodutivos e os entendimen-
tos divergentes acima referidos, necessário indagar se o “direito reprodutivo
positivo” tem natureza de direito fundamental. Observe-se que a inclusão do
direito à reprodução em tal categoria gera efeitos importantes e irreversíveis,
que alcançam todas as pessoas indistintamente, uma vez que os direitos hu-
manos são universais, no que respeita a sua titularidade.
Em decorrência de tais características, emergem tormentosas questões de
natureza ético-jurídica, notadamente tendo em vista a multiplicidade de arran-
jos reprodutivos possibilitados pelas técnicas de reprodução assistida. Inscre-
vem-se nas referidas questões a procriação por um único indivíduo, por casais
homossexuais e transexuais (individualmente ou como parte de um casal).
O Brasil acolheu esse último entendimento, tendo em vista o disposto no
parágrafo 7º, do artigo 226, da Constituição da República de 1988, segundo o qual
o planejamento familiar, fundado nos princípios da dignidade da pessoa huma-
na e da paternidade responsável, é livre decisão do casal, competindo ao Estado
propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada
qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. Em face
dessa previsão constitucional é razoável reconhecer a presença em nosso ordena-
mento da denominada “autonomia reprodutiva”, bem como a garantia de acesso
às informações e meios para sua efetivação, cabendo ao Estado o dever de propi-
ciar recursos educacionais e científicos para o livre exercício desse direito.
O referido dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei nº 9.263,
de 12.01.96, que expressamente declara ser o planejamento familiar direito de
todo cidadão (art. 1º), entendendo como tal “o conjunto de ações de regu-
lação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação
ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal”, proibindo a
utilização dessas ações para qualquer tipo de controle demográfico (artigo 2º
e parágrafo único). O planejamento familiar integra as ações de atendimento
global e integral à saúde, obrigando-se o Sistema Único de Saúde, em todos

28 PIOVESAN, Flávia; PIROTTA, Wilson R. Buquetti. Direitos Reprodutivos e o Poder Judiciário no


Brasil. In: Maria Coleta Oliveira e Maria Isabel Baltar da Rocha (orgs.) Saúde reprodutiva na esfera
pública e política na América Latina. Campinas, SP: Unicamp/Nepo, 2001, p. 155.

12
Violência Obstétrica em Debate

os níveis, a garantir programa que inclua como atividades básicas, entre ou-
tras, “a assistência à concepção e contracepção”, devendo ser oferecidos para o
exercício do planejamento familiar “todos os métodos e técnicas de concepção
e contracepção cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a
saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção” (artigos 3º, parágrafo úni-
co, I e 9º). O direito ao planejamento familiar tem expressamente dupla feição,
compreendendo o direito de procriar em seu aspecto negativo e positivo.
Contudo, o direito ao planejamento familiar no Brasil não é absoluto. Em-
bora tenha natureza de direito constitucional, indispensável confrontá-lo com
outros princípios constitucionais, submetendo-o a rigoroso trabalho de ponde-
ração, para que se lhe fixem os limites. 29 À luz dos mandamentos constitucio-
nais, as ações relativas ao planejamento familiar, regido pela autonomia repro-
dutiva, deve sempre levar em conta, além dos princípios da dignidade de pessoa
humana e da paternidade responsável nos quais se fundamentam, especialmen-
te os seguintes princípios: a) melhor interesse da criança e do adolescente (art.
227); plena igualdade entre os filhos (art. 227, § 6º); acesso universal e igualitário
às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde (art. 196).
Nestes termos, ainda que sujeito à ponderação, parece não haver justifi-
cativa para se impedir o exercício do direito ao planejamento familiar, em sua
perspectiva de autonomia reprodutiva positiva, pelos integrantes da popula-
ção LGBTI, em particular pelos transexuais.

29 Guilherme Calmon Nogueira da Gama indica o melhor interesse da futura criança como um dos
limites, e enfatiza a legitimidade do legislador para estabelecer requisitos de ordem subjetiva
(indicando as pessoas legitimadas em razão do estado civil), bem como de ordem formal (exigência
de autorização judicial, escritura pública) para o acesso às técnicas de reprodução assistida. GAMA,
Guilherme Calmon Nogueira da. O Biodireito e as relações parentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003,
p. 719. Na mesma linha, Eduardo de Oliveira Leite observa não haver um direito absoluto à criança, em
respeito à tutela integral que lhe é conferida, inclusive em face de seus pais, legitimando a ingerência
do Estado para limitar necessariamente o exercício e o próprio conteúdo do direito à reprodução,
ressaltando que abusos “inimagináveis” podem ser cometidos na área da procriação. LEITE, Eduardo
de Oliveira. Procriações Artificiais e o Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 133.

13
Violência Obstétrica em Debate

3. Pessoas transexuais: o homem grávido


O sexo é tido como natural e imutável, por conseguinte integrando o
conjunto de elementos fixos ou rígidos da identidade do indivíduo30. O re-
conhecimento do sexo é feito na hora do nascimento, com base na genitália
externa, e este dado constará do registro civil do recém-nato, acompanhando-
-o por toda vida. O sexo genital não é, porém, o único fator determinante da
identidade sexual de uma pessoa. Na verdade, tão ou mais importante que o
sexo é o gênero, ou seja, o papel social que ela representa, o qual deve ser con-
dizente com o seu sexo genital.
Contudo, nem sempre a natureza é precisa, assim como os comportamen-
tos sociais nem sempre são os esperados. Constatam-se estados intersexuais, de
origem biológica e/ou psicológica, que conduziram ao reconhecimento, mesmo
pelo direito, do que se denomina identidade de gênero. As incongruências entre
o sexo biológico e o psicossocial, especialmente no que respeita à orientação
sexual, deu origem a diferentes denominações que são atribuídas aos indivíduos
que não se enquadram nas categorias convencionais: mulher/feminino, homem/
masculino. Tais designações são, em geral, confundidas, ignoradas, acarretan-
do, não raro estigmatização e cerceamento de direitos. Encontram-se fora des-
sas duas categorias as lésbicas, os gays, os bissexuais e os transgêneros (travestis
e transexuais), que se organizaram no movimento LGBT(I)31, que há muito luta
pelo reconhecimento da situação social diferenciada de seus integrantes, e que
só em data recente finalmente começou a ser atendida.
Constata-se que as categorias convencionais apresentadas não incluem a
distinção entre estado sexual, relativo ao modo de ser, e orientação sexual, per-
tinente às escolhas relativas à função. A falta dessa percepção, legitimada pelo
poder-saber (ou, ao menos, pela falta do saber científico), permitiu durante mui-
to tempo, a inclusão do homossexualismo no rol dos desvios sexuais, das “do-
enças sexuais” tipificadas pela “medicina das perversões”, que vigorou do último

30 Sobre o assunto ver CHOERI, Raul. Direito à identidade na perspectiva civil-constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2010.
31 LGBTI - é a sigla de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros, em uso
desde os anos 1990. Em data mais recente se inclui a letra I para abranger as pessoas intersex
(intersexuais) no movimento.

14
Violência Obstétrica em Debate

quarto do século XIX, até ser oficialmente destruída, em 1992, com a retirada
daquelas categorias da X CID - como esclarece Marilena Vilella Correa.32
Na verdade, mesmo recorrendo à endocrinologia e à genética para cons-
truir um conceito unificado de sexo e de diferença sexual, a medicina não dei-
xa de vinculá-los aos aspectos biológicos, genéticos e somáticos. Dessa vincu-
lação resultou a concepção do “sexo latente” – garantido pelos cromossomos
e hormônios – que após o processo de desenvolvimento físico do indivíduo,
produziria o “sexo manifesto” – revelado pelos órgãos genitais externos, aptos
a exercer sua função reprodutiva e a propiciar prazer. Esse esquema não inclui
a identidade sexual, entendida como “sentimento de pertencimento a um sexo”,
e a escolha de objeto, que diz respeito à função sexual, a qual compreende
desde o seu exercício (ou não), ao modo de fazê-lo, e à escolha do parceiro. Em
consequência desse esquema binário, as pessoas são identificadas em relação
a um dos dois sexos: o heterossexual (que se atrai pelo sexo oposto), o homos-
sexual (que sente atração pelo mesmo sexo), o bissexual (atraído pelos dois
sexos), o transexual (que passa de um a outro sexo), o intersexual (portador de
síndromes orgânicas dos dois sexos).33
O individuo homossexual afronta o sistema da heterossexualidade, de-
safia as normas da sexualidade e do gênero, subvertendo o que é proibido e
permitido, “ameaçando” a ordem social. Por tais razões, longos e árduos têm
sido os caminhos para a conquista de direitos.
Maiores têm sido as dificuldades enfrentadas pela pessoa transexual,
qualificada pela medicina como paciente portador de desvio psicológico per-
manente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à auto-
mutilação e autoextermínio, o que justifica sua submissão à cirurgia de trans-
genitalização, isto é, à cirurgia de transformação plástico-reconstrutiva da
genitália externa, interna e caracteres sexuais secundários, do tipo neocolpo-
vulvoplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres
sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo.34

32 CORREA, Marilena Villela. Sexo, sexualidade e diferença sexual no discurso médico: algumas
reflexões. In: Loyola, MA, organizador. A sexualidade nas ciências humanas. Rio de Janeiro: Eduerj,
1998, p. 69-91.
33 Idem, p. 69-91.
34 Resolução CFM 1955/2010. Disponível: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/
BR/2010/1955. Acesso: 20.04.2018.

15
Violência Obstétrica em Debate

O transexual durante longo tempo encontrou grande dificuldade em ob-


ter sua requalificação civil, ou seja, a alteração de seu nome e sexo no registro
civil, indispensável para seu reconhecimento como pessoa de sexo diverso da-
quele de seu nascimento. Para tanto era necessário obter autorização judicial,
algumas vezes negada, mesmo se submetendo às denominadas cirurgias para
mudança de sexo.
Em 01 de março de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu ser
possível a alteração de nome e gênero no assento de registro civil mesmo sem
a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo. A decisão
ocorreu em sessão plenária no julgamento da Ação Direta de Inconstitucio-
nalidade (ADI) 4275.
Igualmente coube ao STF, e sessão Plenária de 15.8.2018, dar mais um
passo adiante na questão ao decidir, por maioria e nos termos do voto do
Relator, apreciando o tema 761 da repercussão geral e dando provimento ao
Recurso Extraordinário 670.422 – RS. O Tribunal fixou na ocasião a seguinte
tese: “i) O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu
prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo,
para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual po-
derá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via
administrativa; ii) Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de
nascimento, vedada a inclusão do termo ‘transgênero’; iii) Nas certidões do
registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a
expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio inte-
ressado ou por determinação judicial; iv) Efetuando-se o procedimento pela
via judicial, caberá ao magistrado determinar de ofício ou a requerimento do
interessado a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais
registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão pre-
servar o sigilo sobre a origem dos atos”.35
Grandes barreiras, sem dúvida, foram vencidas, mas resta talvez se não
a maior, a que certamente propicia situação inusitada: a possibilidade de re-
produção por pessoa transexual masculino, vale dizer, por um homem – um
homem grávido.

35 Disponível: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4192182. Acesso: 15.08.2018.

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Violência Obstétrica em Debate

As fotos do americano Thomas Beatie assombraram o mundo em menos


de vinte e quatro horas, graças à internet. Beatie nasceu mulher, mas trocou
de sexo. Sua mulher Nancy, sofreu uma histerectomia (retirada do útero) e
quando o casal decidiu iniciar uma família, coube a ele engravidar. Para tanto,
parou de tomar suas doses regulares de testosterona e voltou a ovular natu-
ralmente, não sendo necessário o uso de nenhuma droga para aumentar a
fertilidade. Quando trocou de sexo, Beatie se submetera a uma mastectomia e
teve seus seios retirados, iniciando uma terapia com hormônios masculinos.
Segundo Beatie, que se considera “um transexual, legalmente um homem, e
legalmente casado com Nancy”, “com todos os direitos federais de um casa-
mento”, “ter um filho biológico não é um desejo feminino ou masculino, é
um desejo humano”. Destaca ainda ter mantido seus “direitos reprodutivos”,
esclarecendo que a sua mudança de sexo não incluiu nenhuma modificação
dos seus órgãos sexuais femininos.36 Os Beatie tiveram três filhos, gerados
com gametas masculinos doados. 37
Um segundo caso de homem grávido igualmente teve grande reper-
cussão. Após trinta horas de trabalho de parto, Trystan Reese, americano de
trinta e quatro anos, deu à luz a um menino de quatro quilos. Trystan e o seu
parceiro Biff Chaplow já eram pais adotivos de duas crianças, quando decidi-
ram ter seu próprio filho.38

Considerações finais
Embora os avanços na área jurídica sejam significativos como se consta-
ta, a presença de um homem grávido no Brasil, até o momento não noticiada,
causaria igual ou maior repercussão. Não se deve afastar essa possibilidade.
Gabriela Loran, a primeira atriz transexual feminina de conhecida novela de

36 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2008/03/080327_transexualgravido_


ba.shtml. Acesso em 20.04.2018.
37 Disponível em: http://g1.globo.com/planeta-bizarro/noticia/2014/11/americano-conhecido-com-
homem-gravido-e-preso-por-perseguir-ex.html. Acesso em 20.04.2018.
38 Disponível em: https://revistamarieclaire.globo.com/Noticias/noticia/2017/06/homem-transgenero-mostra-
evolucao-de-sua-gravidez-nas-redes-e-declara-profundamente-abencoado.html. Acesso em 20.04.2018.

17
Violência Obstétrica em Debate

televisão (Malhação), revelou seus planos de ser mãe por adoção.39 No plano da
ficção, um personagem (Ivan) de novela transexual masculino engravidou.40
Pelas razões acima expostas, tod@s as pessoas tem direito a exercer sua
autonomia reprodutiva, inclusive as que integram a população LGBT. A situ-
ação dos transexuais é peculiar, especialmente se a gestação ocorre nas situa-
ções acima narradas.
No que respeita à violência obstétrica, o relato de Thomas Beatie merece
transcrição. Segundo Thomas, o casal enfrentou rejeição e chegou a ser recusa-
do por médicos, quando foi procurar inseminação artificial. Acrescenta Beatie:
O primeiro médico que procuramos era um endocrinologista especia-
lizado em reprodução. Ele ficou chocado com a situação e pediu que
eu raspasse os pelos faciais. Depois de uma consulta de US$ 300 ele,
relutantemente, fez meus exames médicos.
O médico ainda ordenou que o casal fosse examinado pelos psiquiatras da
clínica para avaliar se eles tinham “condições psicológicas” de ter um filho.
Mas, segundo Beatie, poucos meses e alguns milhares de dólares de-
pois, o médico suspendeu o tratamento afirmando que ele e seus fun-
cionários se sentiam desconfortáveis por tratar alguém como ele.
Médicos nos discriminaram, nos mandado embora por causa de cren-
ças religiosas. Profissionais de saúde se recusaram a me chamar por um
pronome masculino ou reconhecer Nancy como minha esposa. Recep-
cionistas riram da gente.
Ao todo nove médicos foram envolvidos no processo, até que eles con-
seguiram acesso a um banco de esperma. Mas tiveram que optar pela
inseminação caseira.
Quando engravidou pela primeira vez, foi uma gravidez ectópica
(quando o embrião se fixa fora da cavidade uterina) de trigêmeos, que
fez com que ele perdesse os embriões e uma de suas trompas.
Quando meu irmão soube disso, disse ‘é uma coisa boa isso ter aconte-
cido. Quem sabe que tipo de monstro teria sido?’.” A família de Nancy
sequer sabia que Beatie é um transexual.

39 Disponível em: https://universa.uol.com.br/noticias/redacao/2018/09/02/gabriela-loran-1-atriz-


trans-de-malhacao-revela-planos-de-ser-mae.htm. Acesso em 20.04.2018.
40 Disponível em: https://www.terra.com.br/economia/carros-motos/salao-do-automovel-de-detroit/
autora-desafia-publico-conservador-com-trans-homem-gravido,4596e2b5ba3d7aa6f32a22bd2162
bcc343m07wnc.html. Acesso em 20.04.2018.

18
Violência Obstétrica em Debate

Segundo Thomas, há até pouco tempo, os vizinhos na pequena comu-


nidade de Oregon consideravam ele e Nancy um casal normal, traba-
lhador e apaixonado, até que eles decidiram ter o primeiro filho.41

O depoimento de Thomas Beatie é, sobretudo, bastante eloquente quanto


ao que provavelmente ocorrerá quando o Brasil tiver seu primeiro homem
grávido. Se há violência obstétrica em relação às mulheres, o que é de se espe-
rar quanto ao parto de um homem?
Beatie fez um interessante comentário sobre sua gravidez:
Apesar de minha barriga estar crescendo com uma nova vida dentro
de mim, estou estável e confiante sendo o homem que sou. De forma
técnica, me vejo como minha própria ‘mãe de aluguel’, apesar de que
minha identidade como homem é constante. Para Nancy, sou o marido
dela carregando nosso filho.42
Rio de Janeiro, agosto 2018.

41 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2008/03/080327_transexualgravido_


ba.shtml. Acesso em 20.04.2018.
42 https://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2008/03/080327_transexualgravido_ba.shtml

19
Considerações sobre o direito ao
acompanhante e a violência obstétrica

Thamis Dalsenter Viveiros de Castro

1. O papel do acompanhante na prevenção


e no combate à violência obstétrica
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a presença de acom-
panhante durante o parto é importante medida para prevenção e combate
a condutas reconhecidas como violência obstétrica. O resultado positivo de
diversos ensaios clínicos, realizados na década de 1990, com mulheres acom-
panhadas durante o período do parto indicou importantes efeitos positivos da
presença do acompanhante para a saúde materna e neonatal, gerando como
consequência a recomendação internacional da OMS43 que consagrou que “o
apoio contínuo ao trabalho tem benefícios clinicamente significativos para as
mulheres e crianças e nenhum prejuízo conhecido, e que todas as mulheres
devem ter apoio durante o parto e o nascimento”.44
A recomendação da OMS, principal organização das Nações Unidas no âm-
bito da saúde, se dirige a um problema criado especialmente a partir da institu-
cionalização do parto: o isolamento emocional e familiar45 das gestantes durante

43 “A companion of choice is recommended for all women throughout labour and childbirth”. Ao editar
a recomendação, a OMS prescreve também que as instituições devem estar atentas para superar as
dificuldades de implementação dessa recomendação nos casos de maior vulnerabilidade, nos quais
haja impossibilidade de recorrer a figuras de apoio não remuneradas. Disponível em:https://apps.
who.int/iris/bitstream/handle/10665/260178/9789241550215eng.pdf;jsessionid=68EFAEDF4190A
05F24695A7885E7F31D?sequence=1. Último acesso: 21 de abril de 2019
44 DINIZ, Carmen Simone Grilo et al.  Implementação da presença de acompanhantes durante a
internação para o parto: dados da pesquisa nacional Nascer no Brasil. Cad. Saúde Pública [online].
2014, vol.30, suppl.1, pp.S140-S153. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0102-311X2014001300020&lng=en&nrm=iso>. Último acesso: 12 de dezembro de 2018
45 OLIVEIRA, Zuleyce Maria Lessa Pacheco de; MADEIRA, Anézia Moreira Faria. Vivenciando o parto
humanizado: um estudo fenomenológico sob a ótica de adolescentes. Rev. esc. enferm. USP, São Paulo, 
v. 36, n. 2, p. 133-140, Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080
62342002000200005&lng=en&nrm=iso. Último acesso: 20 de dezembro de 2018.

21
Violência Obstétrica em Debate

o nascimento de seus filhos. Com a ascensão do modelo hospitalar de assistência


ao parto, muitas mulheres passaram a parir sem contar com o suporte emocional
e afetivo de ter uma pessoa que próxima ao seu ao lado durante e após o parto46,
gerando um quadro de grande desamparo e ansiedade para as gestantes.
O suporte emocional que a mulher recebe durante o nascimento do seu filho
não é fundamental apenas para diminuir a sensação de medo e ansiedade que
muitas gestantes sentem no momento do parto, ampliando a integridade psicofí-
sica da mãe e de seu recém-nascido. Os comprovados benefícios do suporte contí-
nuo promovido pela presença de um acompanhante incluem também “a redução
do uso de fármacos para o alívio da dor e a redução no índice de cesarianas e
episiotomias; ao mesmo tempo, os bebês receberam melhores índices de Apgar”,
além de fortalecer os vínculos familiares quando a figura do acompanhante coin-
cide com a do/a genitor/a da criança, que também tem a oportunidade de viven-
ciar emoções singulares típicas do momento do nascimento da prole.47
A privação do direito ao acompanhante no parto ou no pós-parto constitui
grave violação do direito fundamental ao parto humanizado48, e além de confi-
gurar uma das mais recorrentes modalidades de violência obstétrica acaba por
contribuir para que outras condutas violadoras da autonomia da gestante acon-
teçam no momento do parto. O acompanhamento feito por uma pessoa que lhe
seja próxima pode contribuir não só para ampliar a sensação de conforto físico
e emocional, mas também para auxiliar a mulher a expressar a sua vontade no

46 DINIZ, Carmen Simone Grilo et al.  Implementação da presença de acompanhantes durante a


internação para o parto: dados da pesquisa nacional Nascer no Brasil. Cad. Saúde Pública [online].
2014, vol.30, suppl.1, pp.S140-S153. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0102-311X2014001300020&lng=en&nrm=iso>. Último acesso: 12 de dezembro de 2018
47 SOUZA, Silvana Regina Rossi Kissula; GUALDA, Dulce Maria Rosa. A EXPERIÊNCIA DA MULHER
E DE SEU ACOMPANHANTE NO PARTO EM UMA MATERNIDADE PÚBLICA.  Texto contexto -
enferm., Florianópolis, v. 25, n. 1, e4080014,    2016 .   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S010407072016000100309&lng=en&nrm=iso> Último acesso: 12 de maio de 2019
48 Reconhecimento que vem sendo feito pelos tribunais brasileiros: ”RESPONSABILIDADE
CIVIL – DANO MORAL - VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA. Direito ao parto humanizado é direito
fundamental. Direito da apelada à assistência digna e respeitosa durante o parto que não foi
observado. As mulheres tem pleno direito à proteção no parto e de não serem vítimas de nenhuma
forma de violência ou discriminação. Privação do direito à acompanhante durante todo o período
de trabalho de parto. Dano moral mantido. Quantum bem fixado, em razão da dimensão do dano
e das consequências advindas. Sentença mantida. Apelo improvido”. TJ-SP 00013140720158260082
SP 0001314-07.2015.8.26.0082, Relator: Fábio Podestá, Data de Julgamento: 11/10/2017, 5ª Câmara
de Direito Privado, Data de Publicação: 11.10.2017

22
Violência Obstétrica em Debate

momento do parto. Como ferramenta que ajuda a assegurar o respeito à autono-


mia da gestante, a presença do acompanhante constitui, consequentemente, um
importante fator de desestímulo à ocorrência da violência obstétrica.
O termo violência obstétrica é reconhecido pela Organização das Nações
Unidas – ONU como uma violação de direitos humanos de mulheres e meninas.
Durante a 74ª sessão da Organização das Nações Unidas – ONU, em julho de
2019, a Relatora Especial do Conselho de Direitos Humanos sobre a violência con-
tra a mulher, suas causas e consequências, Dubravka Šimonović, apresentou in-
forme analisando a questão da violência contra as mulheres nos serviços de saúde
reprodutiva, com particular atenção às causas e problemas estruturais que levam
à violência contra as gestantes antes, durante ou após o pós-parto.
Além de reconhecer a violência obstétrica como uma violação de direitos
humanos de mulheres e meninas, a ONU sistematiza importantes recomen-
dações para combater essa forma de privação de direitos que vem gerando,
desde a última década, grande interesse na comunidade jurídica nacional e
internacional. O destaque atual do tema se deve, em grande parte, ao aumento
do número de denúncias e testemunhos feitos por gestantes sobre os terrí-
veis episódios violentos que sofreram durante e após a gestação, justamente
em um dos momentos de maior vulnerabilidade49 para a mulher que precisa
recorrer aos serviços de saúde no nascimento de seus filhos. A esse respeito,
o ativismo que ocorre nas plataformas digitais é ressaltado pelo informe da
ONU como um dos mais influentes fatores para romper o silêncio e dar maior
visibilidade para o relato das vítimas.
A violência obstétrica é uma das modalidades de violência de gênero50,
praticada contra mulheres em razão da gestação, podendo ocorrer antes, duran-
te ou após o parto. Essa forma de violência sofrida pelas mulheres nos serviços

49 DINIZ, Debora; GUILHEM, Dirce. Bioética feminista: O resgate político do conceito de


vulnerabilidade. Revista Bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, v.7, n. 2, 1999. p. 181-188.
Disponível em:. Acesso em: 19 ago. 2018.
50 Embora tal afirmação não esteja livre de disputas teóricas, cumpre salientar que a Declaração sobre a
Eliminação da Violência contra a Mulher aplica-se a todas as situações de violência contra a mulher,
incluindo-se nesse contexto, evidentemente, a violência sofrida pela mulher durante a sua gestação.
Nos termos consignados pela Declaração, “a expressão “violência contra as mulheres” significa
qualquer acto de violência baseado no género do qual resulte, ou possa resultar, dano ou sofrimento
físico, sexual ou psicológico para as mulheres, incluindo as ameaças de tais actos, a coacção ou a
privação arbitrária de liberdade, que ocorra, quer na vida pública, quer na vida privada.”

23
Violência Obstétrica em Debate

de saúde reprodutiva e na assistência ao parto viola o direito à vida e à saúde


da gestante, representando afronta grave ao princípio da dignidade da pessoa
humana e todos os seus desdobramentos, como privacidade, intimidade, auto-
nomia e integridade psicofísica. Partindo dessa premissa, mesmo não sendo vi-
ável, tampouco desejável, apontar taxativamente todas as hipóteses que contra-
dizem as diretrizes de humanização da assistência ao parto, é possível afirmar
que qualquer conduta que prive de direitos fundamentais e viole a autonomia
da gestante configurará violência obstétrica e comprometerá a garantia de um
parto humanizado e seguro, como é o caso de agressões físicas, abusos verbais
e humilhações que expõem as mulheres a constrangimentos, procedimentos
médicos realizados sem o consentimento médico da gestante e a recusa de anal-
gésicos, como prescreve a “Declaração de Prevenção e eliminação de abusos,
desrespeito e maus-tratos durante o parto”, publicada em 2014 pela OMS.
Como uma violação de direitos da mulher em razão da sua gestação e
uma espécie de violência de gênero, é possível que a violência obstétrica ocor-
ra antes, durante ou após o parto. Nos relatos das vítimas, estão presentes com
muita frequência a violência física sofrida pela gestante diante da manobra de
Kristeller ou de procedimentos realizados de maneira desnecessária e violenta
como os toques vaginais repetitivos, realização de cesarianas desnecessárias
e sem indicação terapêutica real, imobilização física e contenção de braços e
pernas. Também são recorrentes os episódios de abusos verbais e psicológicos
que incluem a culpabilização da mulher em casos de sofrimento fetal e gesta-
ções de risco, ameaças e intimidações diante do comportamento das pacien-
tes; chantagens feitas pela equipe, e “dificuldade de realizar puxos no período
expulsivo e atribuição de incapacidade à mulher de parir”.51
Constituem igualmente violência obstétrica a discriminação social, o
preconceito e todo tratamento que inferioriza a mulher diante de sua condi-
ção social, cor, raça/etnia, situação socioeconômica, em razão do seu arranjo
familiar conjugal hetero ou homoafetivo, de sua crença ou escolaridade ou
pelo fato de ser uma mulher obesa, como ocorreu com Rosângela Silvério,
que ao chegar ao hospital para o nascimento de seu filho escutou de um dos

51 JARDIM, Danúbia Mariane Barbosa; MODENA, Celina Maria. A violência obstétrica no


cotidiano assistencial e suas características. Rev. Latino-Am. Enfermagem,  Ribeirão Preto ,  v. 26, 
e3069,    2018 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
11692018000100613&lng=en&nrm=iso>. Último acesso: março de 2019.

24
Violência Obstétrica em Debate

profissionais da equipe médica que realizaria o seu parto “uma frase que me
faz querer sumir até hoje: ‘Não acredito que no final de um plantão ainda
vou ter que fazer parto em uma baleia’. Fiquei chocada e indignada. Gritei:
‘Vim ganhar um filho, e não ser insultada e despeitada desse jeito!’ Chorei
muito. Queria sair dali”.52As mulheres com deficiência também constituem
um grupo particularmente suscetível à violência obstétrica, que vai desde a
falta de intérprete que possa se comunicar com gestantes surdas até a falta de
aparelhagem adequada para o atendimento médico a mulheres cadeirantes.53/
É preciso ressaltar que não são raras as situações em que as gestantes
sofrem múltiplas modalidades de violência obstétrica, como no emblemáti-
co caso de Mary Dias, mulher negra, estudante, que relatou ter sofrido duas
episiotomias no nascimento de seu filho, em 2014, em um hospital universitá-
rio. Para possibilitar que dois estudantes pudessem realizar a episiotomia em
Mary, um dos profissionais de saúde disse para os alunos: “você corta à direita
e o outro corta à esquerda”, supostamente para que ambos tivessem a opor-
tunidade de treinar o corte e a sutura em sua vagina”54. Longe de ser um caso
isolado, a situação de Mary ilustra duas situações de violência obstétrica bas-
tante recorrentes, que é o uso abusivo da episiotomia, contrariando as reco-
mendações da Organização Mundial de Saúde55, e a utilização das vaginas das
gestantes pobres, usuárias do SUS, para que alunos possam treinar suas ha-

52 O relato está disponível na reportagem “Vítimas da violência obstétrica: o lado invisível do parto”,
da Revista Época. Disponível em: https://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/08/vitimas-da-
violencia-obstetrica-o-lado-invisivel-do-parto.html. Último acesso em: 12 de agosto de 2018
53 Cf. VIVEIROS DE CASTRO, Thamis Dalsenter. Comentários ao artigo 19 do Estatuto da Pessoa
com Deficiência. In: Heloisa Helena Barboza; Vitor Almeida. (Org.). Comentários ao Estatuto da
Pessoa com Deficiência à luz da Constituição da República. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 119-126.
54 DINIZ, Carmen Simone Grilo et al . A vagina-escola: seminário interdisciplinar sobre violência
contra a mulher no ensino das profissões de saúde. Interface (Botucatu), Botucatu,  v. 20, n. 56, p. 253-
259,  Mar.  2016 .   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
32832016000100253&lng=en&nrm=iso>. Último acesso: setembro de 2018.
55 A pesquisa Nascer no Brasil, revela que entre as gestantes que tiveram parto normal, 53,5% sofreram
episiotomia, o corte entre a vagina e o ânus dado supostamente para facilitar a saída do bebê
durante o parto. Esse índice revela a grande distância entre a prática operada no sistema brasileiro e
a recomendação da OMS no sentindo de abolir a episiotomia como rotina. DINIZ, Carmen Simone
Grilo et al.  Implementação da presença de acompanhantes durante a internação para o parto:
dados da pesquisa nacional Nascer no Brasil.  Cad. Saúde Pública  [online]. 2014, vol.30, suppl.1,
pp.S140-S153. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
311X2014001300020&lng=en&nrm=iso>. Último acesso: 12 de dezembro de 2018

25
Violência Obstétrica em Debate

bilidades, contribuindo para que “tais abusos permanecem normalizados por


uma cultura institucional que não os reconhece como violações de direitos”.56
De fato, a episiotomia de rotina e a ausência de privacidade e intimida-
de diante da imposição de um acompanhante desconhecido da gestante des-
pontam como frequentes violações aos dos direitos das mulheres que recorrem
às maternidades de hospitais universitários para o nascimento de seus filhos,
quando os alunos de medicina são apresentados ao treinamento prático de suas
habilidades cirúrgicas. Um exemplo que serve bem para ilustrar a violência da
episiotomia e de seus desdobramentos é o ‘husband stich’, também chamado de
ponto do marido ou do papai, que é um ponto a mais feito pelo médico ao tér-
mino da sutura de uma episiotomia com intuito de estreitar a entrada da vagina
e gerar, em tese, o aumento do prazer sexual masculino. Nesse sentido, Cema
Alves, vítima dessa conduta, relata que sentiu a dor invadir o seu corpo quando
“mal havia dado à luz, veio a fisgada da agulha. Sozinha na sala de parto, ela
conta ter ouvido um diálogo entre uma enfermeira e o médico. “Ela perguntou:
‘Doutor, vai fazer o [ponto] do marido?’ Ele falou: ‘Vou fazer dois pra garantir’”,
lembra”57. Trata-se de prática corriqueira nos hospitais, situação que se torna
ainda mais usual quando a gestante está desacompanhada, como relatou Celma.
Ainda sobre a privacidade e a intimidade, a não observância desses direi-
tos se torna ainda mais danosa nas hipóteses de perdas gestacionais e neonatais,
nas quais as mulheres se encontram numa situação de vulnerabilidade ainda

56 Como recomendações para a mudança desse cenário, Simone Diniz et.al. destacam a importância
de das seguintes recomendações: “1) a incorporação e o ensino de evidências científicas sobre as
intervenções no parto, inclusive, a promoção da integridade genital das mulheres; 2) o ensino da
relação médico-paciente e dos direitos das mulheres, incluindo a proteção e promoção do direito à
autonomia e à escolha informada; 3) o fim do uso desregulado e sem indicações médicas dos corpos
das pacientes como material de ensino (‘procedimentos didáticos’), com a remodelagem do ensino
prático de intervenções, inclusive, cirúrgicas; 4) a identificação e responsabilização (accountability)
dos ‘abusos consensuais’ (quando há um consenso entre os envolvidos de que se trata de um abuso),
como fazer duas episiotomias na paciente apenas com fins didáticos; 5) a regulação de práticas
médicas por meio da publicização de informações a esse respeito (como dos procedimentos realizados
na assistência ao parto), a incorporação de protocolos e auditorias clínicas, com o apoio necessário
das gestões locais”. DINIZ, Carmen Simone Grilo et al . A vagina-escola: seminário interdisciplinar
sobre violência contra a mulher no ensino das profissões de saúde. Interface (Botucatu),  Botucatu
,  v. 20, n. 56, p. 253-259,  Mar.  2016 .   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S1414-32832016000100253&lng=en&nrm=iso>. Último acesso: setembro de 2018.
57 Informações disponíveis em: https://theintercept.com/2018/09/10/pontodomarido/. Último acesso:
janeiro de 2019.

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Violência Obstétrica em Debate

mais acentuada, sendo muitas vezes obrigadas a lidar com a dor de perder um
filho e permanecer em alojamento conjunto na presença de mães que estão com
seus filhos nos braços, amamentando e acariciando suas crianças. Essas mu-
lheres são expostas a dor continuada de estar em um local de celebração de
nascimento, enquanto precisam lidar com o luto de terem perdido um filho.
Não sem razão, o respeito à privacidade da gestante e dos familiares no caso de
perda gestacional requer a garantia de um espaço privativo nas maternidades,
dedicados exclusivamente às mulheres que se recuperam da perda de um filho
e ainda precisam se manter hospitalizadas, a utilização de métodos de identi-
ficação para evitar a comunicação constrangedora e “vários equívocos causam
danos desnecessários, como receber parabéns do maqueiro ao sair do centro
cirúrgico ou receber kit maternidade”. Como descreve Larissa Lupi a respeito
da perda gestacional que a levou a fundar o grupo “Do Luto à Luta”58, embora
não se possa evitar o luto pela perda de um filho, deve-se buscar o acolhimento
cuidadoso por parte da equipe médico-hospitalar para evitar “em um momento
tão delicado, essas coisas que aumentam a nossa dor”.59 
Embora seja reconhecida como uma violação de direitos em nível global, re-
cebendo atenção da comunidade internacional comprometida com a erradicação
das formas de violência contra a mulher, a questão se mostra especialmente de-
licada no contexto brasileiro, no qual pelo menos uma em cada quatro mulheres
foi vítima de violência obstétrica, de acordo com a pesquisa “Mulheres brasileiras
e gênero nos espaços público e privado”, realizada pela Fundação Perseu Abramo
em parceria com o SESC, em 2010.60 Esses indicadores se tornam ainda preocu-
pantes considerando que os nascimentos anuais no Brasil somam mais de três mi-
lhões de crianças e, seguindo a tendência mundial de hospitalização na atenção ao
parto, 98,5% das mulheres brasileiras tiveram seus filhos em uma instituição de
saúde, fato que evidentemente amplia a exposição das gestantes à violência prati-
cada pelos serviços de saúde reprodutiva e torna ainda mais necessária a presença
do acompanhante durante a gestação, o parto e o pós-parto.

58 Mais informações disponíveis em: https://dolutoalutaapoioaperdagestacional.wordpress.com/.


Último acesso: maio de 2019.
59 Relato disponível na reportagem do jornal O Globo, Luto perinatal: a dor silenciosa de mães que
perdem seus bebês ainda na barriga: https://oglobo.globo.com/celina/luto-perinatal-dor-silenciosa-
de-maes-que-perdem-seus-bebes-ainda-na-barriga-23639528. Último acesso: janeiro de 2019.
60 VENTURI, Gustavo, GODINHO, Tatau. Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado: uma
década de mudanças na opinião pública São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, SESC-SP; 2013

27
Violência Obstétrica em Debate

2. A tutela jurídica do direito ao acompanhante e o


exercício do poder familiar
Decorre desse cenário obstétrico de elevado índice de violência contra a
gestante a incontestável importância do respeito ao direito ao acompanhante,
tendo em vista a necessidade de empreender todos os esforços para alterar o
quadro de afronta aos direitos das mulheres e meninas gestantes. Daí porque a
“Lei do Acompanhante”, Lei Federal nº 11.108, de 07 de abril de 2005, alterou a
Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, determinando que os serviços de saú-
de do SUS, da rede própria ou conveniada, são obrigados a permitir à gestante
o direito à presença de acompanhante durante todo o período de trabalho de
parto, parto e pós-parto. A Lei foi regulamentada pela Portaria nº 2.418/2005
do Ministério da Saúde, que fixou prazo de 06 (seis) meses para que os hospi-
tais públicos e conveniados com o SUS tomassem as providências necessárias
para o atendimento do comando legal.
Ainda que o direito a ser acompanhada durante o parto derive do prin-
cípio da dignidade da pessoa humana previsto na Constituição Federal desde
1988 como um dos fundamentos da República61, a Lei do Acompanhante veio
conferir maior concretude à tutela jurídica da gestante, afastando qualquer
dúvida sobre a liberdade de escolha da parturiente e explicitando que todas
as instituições, públicas ou privadas, são obrigadas a assegurar esse direito.
Assim, no mesmo sentido que prescreve a recomendação da OMS, a lei
brasileira garante que o acompanhante será de livre escolha da gestante, nos
seguintes termos:
Art. 19-J. Os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde - SUS, da
rede própria ou conveniada, ficam obrigados a permitir a presença,
junto à parturiente, de 1 (um) acompanhante durante todo o período
de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato.
§ 1º O acompanhante de que trata o caput deste artigo será indicado
pela parturiente.

61 Constituição Federal de 1988: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana;

28
Violência Obstétrica em Debate

Diante dessa previsão legal, fica assegurado à gestante o direito de optar


pelo acompanhante que melhor atenda às suas necessidades, não sendo lícito
impor restrições que não tenham sido previstas pela legislação. Não é possível
restringir, portanto, o acompanhante às hipóteses de parto normal ou de ce-
sárea, a períodos determinados como apenas durante o dia ou durante a noite,
ou ao gênero feminino ou masculino. Assim também a autonomia da gestante
deve ser respeitada integralmente sem que ela precise justificar a sua opção e
sem que lhe sejam impostas exigências de preparação prévia do seu acompa-
nhante. Isso significa, por sua vez, que nenhum estabelecimento poderá exigir
que o acompanhante participe de reuniões ou cursos preparatórios, tampouco
é lícito exigir qualquer cobrança adicional pela presença do acompanhante
durante ou no pós-parto.
A esse respeito, é preciso ressaltar que qualquer cobrança para o cum-
primento da legislação de acompanhante é indevida, tendo em vista que o
dever de adequação dos estabelecimentos às determinações da Lei do Acom-
panhante não pode ser repassado para a parturiente. Todavia, são frequentes
os relatos de gestantes que sofreram com a exigência de taxas para permitir
a entrada do acompanhante, para que suas vestimentas sejam devidamente
esterilizadas, ou ainda para permitir que o acompanhante possa pernoitar ou
fazer as refeições adequadas no ambiente hospitalar. Todas essas cobranças
são ilícitas e devem ser denunciadas aos órgãos responsáveis62, além de ense-
jarem ação indenizatória em virtude dos prejuízos materiais e do constrangi-
mento causado justamente em um momento de grande vulnerabilidade para
a mulher e para a sua família.
Outra questão que se coloca é a aplicabilidade da Lei do Acompanhante
às mulheres encarceradas. Em conformidade com a previsão constitucional
dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, é preciso su-
blinhar que a Lei Federal nº 11.108/2005 não faz qualquer ressalva quanto à
condição de liberdade da gestante, de modo que as mulheres presas também
devem ter assegurado o direito ao acompanhante, nos mesmos termos que as
mulheres não encarceradas, devendo a autoridade competente providenciar
as condições necessárias para que o acompanhante seja comunicado do mo-
mento indicado para o seu comparecimento. Evidentemente, não só o acom-

62 Como a ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar, a Anvisa e o Ministério Público. Destaca-se
também a importante atuação das Defensorias Públicas no combate à violência obstétrica.

29
Violência Obstétrica em Debate

panhante, mas todos os demais direitos assegurados às mulheres gestantes


devem ser garantidos também às mulheres presas, como o direito a se mo-
vimentar durante o parto, sendo repulsivas e ilícitas as tentativas de manter
a gestante algemada ou de limitar o seu contato físico ou sua comunicação
constante com o seu acompanhante.
A gestante tem ainda o direito de escolher livremente o seu acompa-
nhante, não havendo qualquer imposição que a limite ao/a genitor/a. Embora
a ideia seja permitir a liberdade da gestante para escolher quem deverá seguir
ao seu lado durante e após o parto, as ações de conscientização do direito ao
acompanhante centraram-se na figura paterna e na necessidade de constru-
ção de um modelo de paternidade ativa e consciente. Em folheto explicativo
do Ministério da Saúde, a lei foi apresentada sob o slogan “Amigo, gravidez,
parto e cuidado também são coisas de homem. Seja pai, esteja presente”63.
Ainda que sejam louváveis os esforços de trazer a figura paterna para o mo-
mento do parto como medida de suporte psíquico e emocional para a ges-
tante, a Lei do Acompanhante deve ser compreendida de modo mais amplo,
sob o risco de oferecer perspectiva restritiva e equivocada à luz das diretrizes
constitucionais e infraconstitucionais que determinam que o poder familiar
deve ser exercido em igualdade de direitos entre ambos os genitores.
Quando as famílias democratizadas são ampliadas pela presença dos fi-
lhos e enteados, entra em cena a figura do melhor interesse da criança, princípio
que tem suas raízes no parens patriae inglês e no best interest americano64. No
plano jurídico nacional, a Constituição Federal de 1988 incorporou a doutrina
da proteção integral em seu art. 227, e no Estatuto da Criança e do Adolescen-
te – Lei nº 8.069/1990, que indica como dever geral – da família, do Estado e
da sociedade – que se dê a esse grupo de vulneráveis o tratamento prioritário
na defesa de seus direitos e na promoção da dignidade da pessoa humana que,
neste caso, encontra-se em desenvolvimento. Trata-se, sobretudo, de garantir
as condições de vida necessárias para que as pessoas possam desenvolver suas
potencialidades com autonomia, segurança, amplo acesso à saúde, à cultura e à

63 Informação disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/folder/lei_acompanhante.pdf. Último


acesso: julho de 2019.
64 PEREIRA, Tânia da Silva. O melhor interesse da criança. In: PEREIRA, Tânia da Silva (coord.). O
melhor interesse da criança: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pp. 1-3.

30
Violência Obstétrica em Debate

educação, sem prejuízo, é claro, do amparo emocional que permite que todas as
outras circunstâncias sejam de fato aproveitadas pela criança e pelo adolescente.
Desde o nascimento com vida e daí em diante65 se desdobra uma série de
direitos, poderes e deveres que fazem parte daquilo que se convencionou cha-
mar poder familiar, instituto que obriga pais e mães no exercício da parentali-
dade responsável em benefício de seus filhos, sempre na direção do princípio
do melhor interesse da criança.66 Com um marco da igualdade familiar67, a
Constituição Federal de 1988 estabeleceu que na família democrática brasilei-
ra não há lugar para discriminações ou desigualdades, de modo que, desde o
primeiro momento da parentalidade, pais e mães deverão compartilhar res-
ponsabilidades e exercer em condições de igualdade as diretrizes do projeto
parental e do poder familiar.68

65 Embora se verifiquem deveres desde o momento da concepção, com ocorre no caso dos alimentos
gravídicos, referentes às despesas que devem ser custeadas desde a gravidez e previstos pela Lei nº
11.804, de 5 de novembro de 2008 (mais conhecida como Lei de Alimentos Gravídicos)
66 Como elucida Maria Celina BODIN DE MORAES, “O marco inicial desse tratamento privilegiado
foi a Convenção Internacional sobre os direitos das crianças (Resolução n. 44/25 da ONU), de
1989, o documento internacional que mais interesse atraiu, tendo sido assinado e ratificado pelo
mundo inteiro. O princípio germinal da Convenção, que dela se espraiou para substituir a até então
invisibilidade social da infância, é o princípio do “melhor interesse da criança”, segundo o qual
os pais, os responsáveis, as instituições, as autoridades, os tribunais ou quaisquer entidades, ao
tomarem decisões acerca de crianças, devem optar por aquelas que lhes ofereçam o máximo de
bem-estar (art. 3º)”. A nova família, de novo. Estruturas e funções das famílias contemporâneas.
Pensar, Fortaleza, v. 18, n. 2, p. 587-628, mai./ago. 2013, p. 603.
67 A importância desse marco é evidente também na vedação constitucional de tratamento desigual
entre filhos prevista nos artigos 226 e mais especificamente o art. 227 da Constituição Federal de
1988, § 6º “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos
direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
68 O Código Civil de 2002 prescreve que o exercício do poder familiar compete a ambos os pais,
evidentemente em igualdade de condições de direitos e deveres por força da Constituição Federal
de 1988, nos seguintes termos: art. 1.634.  Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação
conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I - dirigir-lhes a
criação e a educação; II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584;
III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV - conceder-lhes ou negar-lhes
consentimento para viajarem ao exterior V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para
mudarem sua residência permanente para outro Município; VI - nomear-lhes tutor por testamento
ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer
o poder familiar VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos
atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o
consentimento; VIII - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha IX - exigir que lhes prestem
obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.

31
Violência Obstétrica em Debate

O exercício adequado do poder familiar pressupõe o respeito ao dever de


cuidado, que evidentemente se aplica de forma integral a todas as necessida-
des que envolvem o momento do nascimento e do parto. Sobre a importância
desse dever, já se disse que o cuidado assume verdadeira expressão huma-
nizadora, pelo que “o ser humano precisa cuidar de outro ser humano para
realizar a sua humanidade, para crescer no sentido ético do termo. Da mesma
maneira, o ser humano precisa ser cuidado para atingir sua plenitude, para
que possa superar obstáculos e dificuldades da vida humana”.69 Concretamen-
te, o cuidado alcança a qualidade de valor jurídico, pois, “constituindo-se o
cuidado fator curial à formação da personalidade do infante, deve ele ser al-
çado a um patamar de relevância que mostre o impacto que tem na higidez
psicológica do futuro adulto”. 70
Nesse contexto, a repartição equilibrada das tarefas que dizem respeito
à criação cuidadosa da prole assume especial destaque, indicando como de-
ver jurídico que pais e mãe se responsabilizem conjuntamente pelos cuidados
com seus filhos. Essa ideia se aplica a todos os momentos de exercício do po-
der familiar, inclusive e especialmente ao seu evento inaugural, o nascimento.
Como desdobramento, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei
8069 de 13 de julho de 1990, trouxe ainda maior clareza sobre a necessidade de
considerar o exercício do poder familiar como desdobramento do princípio
constitucional da igualdade, como se verifica na redação dos artigos 21 e 22,
incluindo o parágrafo único do dispositivo:

69 Waldrow, Vera Regina. Abrigo e alternativas de acolhimento familiar, in: PEREIRA, Tânia da Silva;
OLIVEIRA, Guilherme de. O cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 309.
70 . STJ, REsp. nº 1.159.242/SP, Rel. Min. Fátima Nancy Andrighi, 3ª T, j.: 24.04.12. CIVIL E
PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO
MORAL. POSSIBILIDADE. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no
ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam
suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição
legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil,
sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-
se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da
imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por
abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno
cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais
que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade,
condições para uma adequada formação psicológica e inserção social.

32
Violência Obstétrica em Debate

Art. 21. O poder familiar será exercido, em igualdade de condições, pelo


pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado
a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à auto-
ridade judiciária competente para a solução da divergência.
Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos
filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de
cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.
Parágrafo único. A mãe e o pai, ou os responsáveis, têm direitos iguais
e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado e na educação
da criança, devendo ser resguardado o direito de transmissão familiar
de suas crenças e culturas, assegurados os direitos da criança estabele-
cidos nesta Lei. (grifou-se)

Além da previsão expressa da igualdade parental feita nos referidos arti-


gos, o compromisso do ECA com a promoção do melhor interesse da criança
se torna ainda mais robusto diante dos dispositivos legais que determinam a
garantia de nascimento em condições dignas de existência. Para alcançar esse
objetivo, a tutela jurídica do nascimento feita pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente alcança os direitos da gestante, assegurando a atenção humani-
zada ao parto71, pré-parto e ao puerpério, nos termos dos artigos 7º e 8º:
Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saú-
de, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam
o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições
dignas de existência.
Art. 8o    É assegurado a todas as mulheres o acesso aos programas e
às políticas de saúde da mulher e de planejamento reprodutivo e, às
gestantes, nutrição adequada, atenção humanizada à gravidez, ao par-
to e ao puerpério e atendimento pré-natal, perinatal e pós-natal inte-
gral no âmbito do Sistema Único de Saúde.     

71 O termo humanização ganhou destaque na assistência à saúde nas primeiras décadas do século XXI,
sendo recorrentemente utilizado para a defesa da dignidade humana do atendimento cuidadoso
dos pacientes, o “respeito à unicidade de cada pessoa, personalizando a assistência. Além disso,
humanizar a saúde relaciona-se com a política e a economia, ou seja, no sentido de igualitarismo
no acesso à assistência; afeta também a estrutura e a funcionalidade organizacional no sentido
de acessibilidade, organização e conforto”. WALDOW, Vera Regina; BORGES, Rosália Figueiró.
Cuidar e humanizar: relações e significados. Acta paul. enferm., São Paulo, v. 24, n. 3, p. 414-418,
2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010321002011000
300017&lng=en&nrm=iso>. Último acesso: 10 de março de 2019.

33
Violência Obstétrica em Debate

Considerando que atenção integral à infância e o melhor interesse da


criança assegurados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente se relacionam
diretamente à garantia da assistência humanizada do parto, que o exercício do
poder parental se dá em igualdade de condições por ambos os genitores e que
as recomendações da Organização Mundial de Saúde prescrevem a presença de
acompanhante como medida fundamental para a saúde materna e neonatal,
não há espaço para a interpretação que reduz o papel do genitor ou da genitora à
figura do acompanhante. Na legalidade constitucional, o sentido normativo de
todo e qualquer dispositivo legal somente se revela diante da Constituição Fede-
ral de 1988, pelo que não se pode admitir que a igualdade parental seja violada
por uma interpretação tão restritiva e contrária à democratização da família.
Como síntese desse raciocínio, não só que pais e mães possuem o dever de
participar ativamente e de forma equilibrada do cuidado com a prole, mas tam-
bém que esse dever se impõe desde o momento do nascimento. Mais ainda, é
preciso considerar que a presença dos genitores no parto deve ser compreendida
também como direito do recém-nascido, como direito ao nascimento humani-
zado e em condições dignas de existência. De acordo com essa ideia que indica
a presença dos genitores no momento do nascimento como dever jurídico ine-
rente ao exercício do poder familiar, é evidente que a figura do acompanhante
prevista legalmente desde 2015 se refere a presença de uma pessoa de confiança
da gestante, que poderá ser ou não o pai ou a outra mãe do recém-nascido. Na
hipótese de a gestante manifestar o seu desejo de ter um acompanhante distinto
da figura do outro genitor, é preciso assegurar que essa vontade será cumprida.
Para garantir a efetividade do direito ao acompanhante, recomenda-se a
adoção de medidas preventivas para assegurar a tutela da gestante, como é o
caso do plano de parto que pode atuar na garantia relativos ao acompanhan-
te, mas também serve para ampliar o direito à informação e ao consentimento
informado. A esse respeito, é preciso ressaltar que como consequência de um
modelo de direitos reprodutivos marcado pela desigualdade estrutural, pela dis-
criminação e pelo patriarcado, também a falta de educação e informação sobre
a igualdade e os direitos das mulheres na atenção à saúde contribui para a ocor-
rência da violência obstétrica.72 De fato, a informação é um fator tão importante

72 Informe de la Relatora Especial sobre la violencia contra la mujer, sus causas y consecuencias
acerca de un enfoque basado en los derechos humanos del maltrato y la violencia contra la mujer
en los servicios de salud reproductiva, con especial hincapié en la atención del parto y la violencia

34
Violência Obstétrica em Debate

para a redução da violência obstétrica que o recente informe da ONU enfatiza


a relevância do consentimento informado ser tutelado como direito humano.
Para além do direito à informação que deve pautar toda e qualquer relação
entre médico e pacientes, no que diz respeito à assistência ao parto o consenti-
mento informado é documentado na forma do plano de parto, instrumento que
decorre da autonomia privada da gestante para elaborar disposições de vontade
com relação ao momento do seu parto e pós-parto. Embora careça de parâme-
tros claros de validade e eficácia que lhe assegurem maior segurança jurídica,
o plano de parto possui grande potencial para combater as práticas violentas,
além de auxiliar na quebra do paradigma paternalista que impede uma discus-
são sobre riscos e benefícios de tratamentos terapêuticos mais horizontalizada
e compartilhada entre a gestante e os profissionais de saúde. Dentre as diversas
disposições que podem estar contidas no plano de parto, é de grande valia a
determinação do acompanhante escolhido pela gestante. Ainda que o direito ao
acompanhante independa de elaboração prévia de qualquer documentação, não
se pode ignorar que as disposições de vontade da gestante tendem a tornar-se
mais resguardada através da sua previsão no plano de parto, o que traz maior
segurança jurídica e facilita qualquer medida judicial no caso de violência obs-
tétrica por violação do direito ao acompanhante.

3. Considerações sobre a responsabilidade civil e o direito


ao acompanhante na visão dos tribunais
Embora a previsão legal do acompanhante seja de 2005, ainda são co-
muns os relatos de que a garantia do acompanhante muitas vezes é suprimida
diante de critérios internos das instituições sem qualquer amparo jurídico ou
de alegações de segurança de procedimentos que não estão consagrados no
âmbito da medicina baseada em evidências.73

obstétrica . Disponível em:https://undocs.org/es/a/74/137?fbclid=IwAR2srV_vkVa6nmcxWWNW


byalAPaHyBENfk_7ibgS6bvOdmOOdtCW-7E4iBM. Último acesso: setembro de 2019.
73 A esse respeito, é oportuna a transcrição esclarecedora acerca da medicina baseada em evidência
e do seu papel no enfrentamento à violência obstétrica: “Pode-se dizer que a medicina baseada em
evidências (MBE), que começa na área de saúde perinatal, é um movimento de profissionais de
saúde aliados a movimentos de mulheres6 preocupado em dar visibilidade às rotinas de sofrimento
desnecessário no parto e aos seus efeitos prejudiciais, como: proibição da presença de familiares,

35
Violência Obstétrica em Debate

Não raro os casos de violação do direito ao acompanhante são justifi-


cados com base nas circunstâncias atípicas do parto, que caracterizam como
procedimento de emergência. Nesse tipo de situação, é comum a alegação
de que “não haveria tempo suficiente para a preparação do reclamante para
acompanhamento do parto, sem que isto resultasse em prejuízo à parturiente
e ao bebê”. Se de fato restar comprovada a impossibilidade de colocar o acom-
panhante em condições de estar presente um evento cirúrgico, considerando
todos os cuidados que devem ser empregados em ambiente de alto risco de
contaminação, deve-se, por óbvio, afastar a ilicitude da conduta que impediu
a presença do acompanhante, de modo que, conforme decisão da 1ª Turma
Recursal Juizados Especiais do Estado do Paraná, afasta-se a configuração de
dano moral durante o parto:
[...] embora seja direito da parturiente contar com um acompanhante
durante o período do parto, não se pode olvidar que tal direito quando
em confronto com a vida da autora e do seu filho deve ser relativizado,
inexistindo, portanto, neste ponto, conduta ilícita da reclamada que
enseje a indenização pleiteada, ainda que seja sabidamente frustrante
ao genitor não participar do parto do seu filho74.

Embora seja razoável o raciocínio apresentado pelos magistrados na de-


cisão acima, é muito importante que a impossibilidade de presença do acom-
panhante seja robustamente comprovada e devidamente consubstanciada nos
autos, tornando inequívoco o caráter emergencial do procedimento e o impedi-

imobilização física, privação de água e alimentos, lavagens retais, raspagem de pelos pubianos, entre
outras. Este movimento chama a atenção para intervenções agressivas praticadas rotineiramente,
como episiotomia (corte da vagina durante o parto), fórceps, aceleração do parto, entre outras.
Nas últimas três décadas, o movimento da MBE construiu a evidência ‘dura’ de ensaios clínicos
e revisões sistemáticas a favor de rotinas menos agressivas, mais amigáveis a mulheres e bebês,
protegendo-os de abusos. Destacam-se os benefícios: da atenção ao conforto físico e emocional da
mulher, da presença de acompanhantes e doulas, da liberdade de movimentar-se e escolher a posição
de parir, da valorização da integridade genital materna, do contato pele a pele entre mãe e bebê
na primeira hora de vida, do corte tardio do cordão, entre outros”. DINIZ, Carmen Simone Grilo
et al. A vagina-escola: seminário interdisciplinar sobre violência contra a mulher no ensino das
profissões de saúde. Interface (Botucatu), Botucatu ,  v. 20, n. 56, p. 253-259,  Mar.  2016 . Disponível
em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832016000100253&lng=en
&nrm=iso>. Último acesso: setembro de 2019.
74 TJ-PR - RI: 000370871201481600260 PR 0003708-71.2014.8.16.0026/0 (Acórdão), Relator: Renata
Ribeiro Bau, Data de Julgamento: 12/05/2015, 1ª Turma Recursal, Data de Publicação: 14/05/2015

36
Violência Obstétrica em Debate

mento temporal para preparar devidamente o acompanhante. A questão tem-


poral parece ser, aliás, uma importante chave para compreender a questão. Em
ação indenizatória que condenou a Santa Casa de Misericórdia São Francisco
de Buritama ao pagamento de R$ 15.000,00 (quinze mil reais), o Tribunal de
Justiça do Estado de Rondônia desconsiderou a alegação da ré de que, dian-
te da emergência do parto, o acompanhante não pode permanecer ao lado da
gestante, tendo em vista o prontuário médico demonstrou que a gestante deu
entrada no hospital às 7 horas e 08 minutos, que o acompanhante chegou às 8h
e foi solicitado o início do preparo de parto às 8 horas e 30 minutos. De acordo
com o magistrado, houve tempo suficiente para preparar o acompanhante, es-
pecialmente por ser um hospital que realiza partos com frequência e que deve
dominar, portanto, todos os aspectos técnicos necessários.75
Outra questão que se relaciona a esses casos é o argumento de que a
presença do acompanhante aumentaria os riscos de contaminação durante o
procedimento cirúrgico, especialmente nos casos que envolvem risco adicio-
nal trazido pela condição emergencial. É preciso considerar que nem a Lei do
Acompanhante, tampouco a Portaria que a regulamentou, fez qualquer dis-
tinção entre partos normais ou por cesárea, de modo que não cabe ao hospital
outra conduta senão providenciar que todas as gestantes tenham a presença
do acompanhante, dentro ou fora do centro cirúrgico, sob pena de configura-
ção de conduta abusiva do hospital ou maternidade.76
Verifica-se, com frequência, a alegação de que a enfermaria feminina se-
ria um obstáculo para a realização do direito ao acompanhante77. No primeiro

75 TJ-SP - AC: 10002998820168260651 SP 1000299-88.2016.8.26.0651, Relator: Carlos Alberto de Salles,


Data de Julgamento: 14/08/2019, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 14/08/2019
76 Confira, nesse sentido: TJ-RO - RI: 70161427520178220001 RO 7016142-75.2017.822.0001, Data de
Julgamento: 02/09/2019. Ementa: Ação de indenização por danos morais. Responsabilidade civil.
Paciente gravida. Direito de acompanhante durante o parto. Previsão na lei 11.108/2005. Negativa
indevida. abusividade da maternidade. Quantum idenizatório. Razoabilidade e proporcionalidade.
77 Veja-se a esse respeito, a decisão absolutamente equivocada do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro,
segundo a qual: “o Plano de saúde da primeira autora, ex-gestante, que não é dotado de quarto
privado. Rés que não negaram todo e qualquer acompanhante à primeira autora no ambulatório,
mas sim, restringiu ao sexo feminino. Trata-se de disposição razoável e, tem suas razões de ser, uma
vez que num ambiente ambulatorial de gestantes, exclusivamente, do sexo feminino, por óbvio, a
presença de algum marido importará em constrangimentos que não trazem qualquer benefício às
pacientes”. TJ-RJ - APL: 00069428020188190206, Relator: Des(a). CARLOS EDUARDO MOREIRA
DA SILVA, Data de Julgamento: 20/08/2019, VIGÉSIMA SEGUNDA CÂMARA CÍVEL

37
Violência Obstétrica em Debate

caso aqui citado, no qual foi afastado o dever de reparação do dano moral
pela ausência de acompanhante durante o parto de emergência, foi reconhe-
cido o dever de indenizar o dano por conta do período do pós-parto. Em sua
defesa, o hospital sustentou que sua enfermaria era exclusivamente feminina
e que, nesse cenário, não seria possível a presença de acompanhante do sexo
masculino. Na decisão, os juízes da Turma Recursal entenderam que a alega-
ção de que uma enfermaria exclusivamente feminina não afasta a responsa-
bilidade do hospital, tendo em vista, inclusive, que a “Portaria nº 2.418/2005
estabeleceu prazo de 06 meses, a contar de sua publicação em 02/12/2005,
para que os hospitais públicos e conveniados com o SUS tomassem as provi-
dências necessárias para atender as disposições constantes na Portaria e na
Lei nº 11.108/2005, que consagrou o direito da parturiente a contar com um
acompanhante, sem qualquer discriminação de sexo”.78
Uma das peculiaridades da violação do direito ao acompanhante ser hi-
pótese autônoma de violência obstétrica é o fato de que poderá existir, em
tais situações, pluralidade de vítimas. Isso significa que os danos gerados pela
lesão ao direito ao acompanhante poderão alcançar não só a própria gestante,
como também o genitor que, estando também na figura de acompanhante, se
veja impedido de acompanhar a mulher durante ou após o parto. Em tais ca-
sos, reconhece-se a existência do dano moral diretamente ao genitor, restando
“caracterizado, pois, o dever de indenizar, pois não se tem dúvida de que hou-
ve afronta à dignidade do autor, bem como supressão de um momento único
da sua vida, um direito que lhe era assegurado”.79

Conclusão
Como um importante mecanismo para prevenção e combate à violência
obstétrica, o direito ao acompanhante deve ser assegurado a fim de garantir o
amparo emocional, a dignidade e a autonomia da gestante durante e após o parto.
A lei que assegura a presença de acompanhante só revela o seu correto sentido

78 TJ-PR - RI: 000370871201481600260 PR 0003708-71.2014.8.16.0026/0 (Acórdão), Relator: Renata


Ribeiro Bau, Data de Julgamento: 12/05/2015, 1ª Turma Recursal, Data de Publicação: 14/05/2015
79 TJRS; AC 0203890-60.2017.8.21.7000; Caxias do Sul; Quinta Câmara Cível; Relª Desª Lusmary
Fátima Turelly da Silva; Julg. 25/10/2017; DJERS 01/11/2017

38
Violência Obstétrica em Debate

quando interpretada à luz da Constituição Federal e também dos demais instru-


mentos legais que tratam e tutelam o melhor interesse das crianças no contexto
familiar, devendo ser considerada na sua máxima potencialidade para garantir o
cuidado integral e a dignidade da gestante e do recém-nascido. Dessa premissa
decorre que a presença da outra figura genitora, que poderá ser o pai ou a outra
mãe, a depender do arranjo familiar escolhido, é assegurada pela própria Cons-
tituição Federal, pelo Código Civil brasileiro e, ainda mais especialmente, pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente, não sendo adequado reduzir a participação
dessas pessoas à condição de acompanhante de livre escolha quando se trata, na
realidade, de dever jurídico que deriva do próprio poder familiar.
Assim, em síntese, embora possa haver coincidência entre o/a genitor/a
e o acompanhante, muitas mulheres escolhem figuras femininas além dos ge-
nitores como amigas, mães, irmãs e primas, além das doulas, para acompa-
nha-las durante o parto.80 Isso significa, por seu turno, que a rede de suporte
emocional da mulher pode contar com mais de uma pessoa, sem que haja
qualquer problema ou vedação legal nisso. E qualquer limitação do exercício
do direito ao acompanhante pode ensejar a reparação dos danos sofridos.

80 HOTIMSKY, Sonia Nussenzweig; ALVARENGA, Augusta Thereza de. A definição do acompanhante


no parto: uma questão ideológica?. Rev. Estud. Fem.,  Florianópolis ,  v. 10, n. 2, p. 461-481,  July 
2002 Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X200200
0200015&lng=en&nrm=iso>. Último acesso: 12 de fevereiro de 2019

39
Mortalidade materna:
precariedade e invisibilidade

Maíra Fattorelli

Após intensa luta por reconhecimento e proteção legal, os direitos sexuais


e reprodutivos foram consagrados internacionalmente como direitos huma-
nos, dando ensejo a uma nova abordagem no âmbito do direito internacional.
O novo status jurídico, fruto de grande mobilização, proporcionou conquistas
e muitos avanços. Entretanto, um cenário de violência ainda marca o desen-
volvimento reprodutivo das mulheres. A normativa internacional acerca da
temática, embora enfática ao garantir proteção especial às mulheres e acesso
integral a serviços de saúde reprodutiva, parece não alcançar, na prática, as
mulheres concretas que demandam assistência médica reprodutiva, que não
raras as vezes são submetidas a práticas autoritárias e violentas no âmbito do
sistema de saúde. Em nosso país, a precariedade do serviço, a ausência de in-
fraestrutura e de pessoal e a invisibilidade das irregularidades verificadas nas
dependências médicas permanecem como traços marcantes.
Dentre as violações de direitos reprodutivos destaca-se a violência obsté-
trica, que é suscitada enquanto uma forma específica de violência de gênero81
e que evidencia necessária melhoria no âmbito da saúde materna. Paralela-
mente, destaca-se a mortalidade materna enquanto outra importante violação
dos direitos sexuais e reprodutivos, estando associada a falhas na assistência
obstétrica82 .
A morte materna é identificada enquanto importante indicador das condi-
ções de vida das mulheres e da qualidade da assistência médica a elas prestada nos
períodos de gestação e puerpério83. Considerando os altos índices de morte ma-

81 SAUAIA, Artenira e SERRA, Maiane. Uma dor além do parto: violência obstétrica em foco. Revista
de direitos humanos e efetividade. V. 2, n.1, p. 128-147. Brasília: Jan/Jun, 2016, p. 129.
82 LEAL, Maria do Carmo, GAMA, Silvana Granado Nogueira e outras. A cor da dor: iniquidades
raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad. Saúde Pública. Vol. 33, suppl.1, 2017, p. 2.
83 SMS. Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Mortalidade materna no município do Rio de Janeiro.
Disponível em http://www.rio.rj.gov.br/web/sms/exibeconteudo?id=1368696. Acesso em 03/03/2018.

41
Violência Obstétrica em Debate

terna ainda vigentes no Brasil, o presente ensaio concederá enfoque aos avanços
e retrocessos atestados no país no período fixado entre 1990 e 2015, buscando os
limites das normas abstratas de direitos humanos e o alcance de suas diretrizes
frente as mulheres vítimas de violência e morte no âmbito do sistema de saúde. As
contribuições de Costas Douzinas e de Judith Butler serão analisadas na tentativa
de compreender os paradoxos dos direitos humanos e sua insuficiência frente a
vidas que parecem não alcançar o status normativo de vida humana para fins de
incidência das normas edificadas no campo do direito à saúde das mulheres.
Nesta conjuntura, serão identificadas vulnerabilidades específicas que
diferenciam a violência vivida por distintos grupos de mulheres. Uma abor-
dagem interseccional da temática dos direitos sexuais e reprodutivos será de-
senvolvida a partir dos eixos de raça e classe. Condições estruturais e aspectos
dinâmicos de desempoderamento84 serão analisados a partir das contribui-
ções teóricas de Kimberlé Crenshaw com o intuito de apreender de forma am-
pla o quadro de violação dos direitos humanos reprodutivos vivenciado por
mulheres, em especial negras e pobres.
Por fim, o presente artigo analisará os desdobramentos das mortes ma-
ternas no campo do luto. A teoria de Butler será mais uma vez articulada no
intuito de se identificar a vulnerabilidade e a precariedade ínsita à mortalida-
de materna e à invisibilidade que a acompanha. Mortes evitáveis atestadas em
altos números todos os anos refletem vidas que não se enquadram no conceito
normativo de vida e mortes desmerecedoras de comoção. As temáticas do luto
público e da morte materna serão, então, abordadas a partir da perspectiva da
morte digna ou não de lamento.

1. Direitos humanos sexuais e reprodutivos:


limites e paradoxos
Com o movimento desencadeado após a Segunda Guerra Mundial de
positivação dos direitos humanos começaram a surgir diversos documentos

84 CRENSHAW, Kimberle. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence
Against Women of Color, p. 1244. Disponível em https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/
mapping-the-margins-intersectionality-identity-politics-and-violence-against-women-of-color-
kimberle-crenshaw1.pdf. Acesso em 24/07/2017.

42
Violência Obstétrica em Debate

internacionais comprometidos com a proteção da vida humana e com a ga-


rantia de dignidade e segurança. Entretanto, apenas depois de intensa mobili-
zação e articulação são firmados documentos próprios aos direitos das mulhe-
res, voltados a suas demandas e condições específicas. Surge então, em 1979, a
Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discrimina-
ção contra a Mulher, despontando como primeiro documento internacional
voltado à proteção dos direitos das mulheres.
A partir deste marco, os direitos sexuais e reprodutivos começaram a ser
delineados enquanto reivindicações e construções das mulheres, sendo tradi-
cionalmente formulados em associação às garantias de autonomia, liberdade
e igualdade85, e como forma de proteção de seus corpos de formas de controle.
Nos termos firmados pela Convenção, o direito à proteção da saúde das mu-
lheres deve ser efetivado sem qualquer discriminação por parte dos Estados86.
No mesmo sentido, a Recomendação Geral n. 24 sobre Mulheres e Saúde do
Comitê da Convenção afirma que a negação dos Estados em garantir serviços
de saúde reprodutiva às mulheres em condições legais deve ser classificada
como uma forma de discriminação contra as mulheres87. A Recomendação
prevê, ainda, o dever dos Estados de adotarem políticas no sentido de garantir
o acesso das mulheres à saúde em todos os ciclos de sua vida, versando expres-
samente sobre a necessidade dos Estados priorizarem a redução de suas taxas
de mortalidade materna por meio de serviços para a maternidade segura88.
Após o advento de outros importantes documentos voltados aos direitos
das mulheres, a Conferência Internacional de Populações e Desenvolvimento,
realizada no Cairo em 1994, proporcionou uma mudança fundamental de pa-
radigma. Pela primeira vez os direitos sexuais e reprodutivos foram firmados
de forma expressa como direitos humanos89. O conceito de saúde reprodutiva
foi delineado pelo Programa de Ação da Conferência de 1994 como um estado

85 ÁVILA, Betânia. IN: CAMPOS, Carmen e OLIVEIRA, Guacira. Saúde Reprodutiva das Mulheres – direitos,
políticas públicas e desafios. CFEMEA: IWHC, Fundação H.Boll, Fundação Ford. Brasília, 2009, p. 18.
86 ONU. Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher.
Adotada pela Assembleia Geral em 1979, arts. 11. f e 12.
87 ONU. Comitê CEDAW. Recomendação Geral n. 24: 02/02/99: Mulheres e Saúde, parágrafo 11.
88 EMMERICK, Rulian. Corpo e poder: um olhar sobre o aborto à luz dos direitos humanos e da
democracia. Rio de Janeiro, 2007. Dissertação de mestrado: PUC-Rio, p. 92.
89 Ibid, p. 96 e 97.

43
Violência Obstétrica em Debate

de bem estar físico, mental e social a ser observado em todas as matérias rela-
cionadas com o sistema reprodutivo, suas funções e processos, incluindo vida
sexual satisfatória e segura, capacidade e liberdade de reprodução e acesso a
serviços de saúde adequados90.
Mais tarde, a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Bei-
jing no ano de 1995, reitera a qualificação dos direitos sexuais e reprodutivos
enquanto direitos humanos e consolida o dever dos Estados de respeitar e
garantir a saúde das mulheres91. A saúde reprodutiva passa a ser tratada como
uma questão de desenvolvimento na seara dos direitos humanos, figurando
como aspecto fundamental do bem estar da vida das mulheres92. Os direitos
sexuais e reprodutivos deixam, então, de encontrar alicerce apenas no âmbito
da autonomia das mulheres e passam a englobar um conjunto de direitos,
como vida, liberdade, segurança, saúde, proteção contra discriminação, tor-
tura e outros tratos cruéis e degradantes, dentre outros93.
Na ordem interna, a Constituição de 88 garante acesso universal e iguali-
tário aos serviços de proteção, promoção e recuperação da saúde, a serem ofe-
recidos de forma gratuita pelo Sistema Único de Saúde (SUS)94, e a Lei 9.263/96
garante o direito ao planejamento familiar e dispõe sobre a promoção de aten-
dimento de saúde reprodutiva por meio do SUS95. Um sistema de saúde público,
irrestrito e equânime passa a ser desenvolvido a partir de 88, com a ampliação
de programas e iniciativas públicas relacionados à saúde da mulher.
Todo este arcabouço normativo internacional e interno representa, des-
de uma perspectiva teórica, um importante avanço. Entretanto, na prática a
maioria das mulheres continua vivenciado violações reiteradas em seus di-
reitos sexuais e reprodutivos, que ainda não conquistaram no plano fático o
mesmo prestígio verificado na retórica positiva. Esterilização forçada, crimi-

90 CAMPOS, Carmem e OLIVEIRA, Guacira. Saúde reprodutiva das mulheres – direitos, políticas e
desafios. Brasília: CFEMEA: IWHC, Fundação H.Boll, Fundação Ford, 2009, p. 49.
91 ONU. Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, Beijing, 1995, par. 97. Disponível
em: http://www.unfpa.org.br/novo/index.php/biblioteca/publicacoes/onu/413- declaracao-e-
plataforma-de-acao-da-iv-conferencia-mundial-sobre-a-mulher. Acesso em: 29/03/2018.
92 COOK, Rebecca. IN: CAMPOS, Carmem e OLIVEIRA, Guacira. Op cit., p. 50.
93 Ibid., p. 49.
94 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Arts. 196 a 200.
95 BRASIL. Lei n. 9.263/96. Regula o art. 226 da CF e trata do planejamento familiar.

44
Violência Obstétrica em Debate

nalização do aborto, violência obstétrica e mortalidade materna96 são algumas


facetas de uma realidade cruel que ainda marca a saúde sexual e reprodutiva
das mulheres no Brasil.
A situação de precariedade do serviço de saúde atinge as mulheres que
clamam por diretos reprodutivos, mas é identificada, sobretudo, frente as de-
mandas de mulheres negras e de baixa renda. Os modelos público e privado
de assistência à saúde reprodutiva evidenciam distintos cenários. Nos termos
propostos por Diniz, cumpre diferenciar as formas de medicalização e de am-
paro que operam em cada um destes modelos, com desigual aceitação em
relação a práticas que vulneram os direitos das parturientes97. A diferenciação
a partir da forma de parir, verificada com a oferta de serviços expendiosos na
rede privada, com a tendência de maior amparo e cuidado, acaba por deixar
à rede pública um espectro de maior aceitabilidade à violência. Marcadores
como classe e raça acabam por diferenciar a vivência da maternidade e a as-
sistência à saúde. Angela Davis, ao versar sobre a prestação deficitária dos
serviços de saúde pelos Estados Unidos, ressalta que “situadas na intersecção
entre racismo, sexismo e injustiça econômica, as mulheres negras têm sido
obrigadas a suportar o peso desse processo opressivo complexo”98.
Enfatizando a relação existente entre raça e classe, a autora chama aten-
ção à realidade de 1987, momento em que expunha suas ideias, em que duas
em cada três pessoas adultas pobres nos Estados Unidos eram mulheres e que
80% da população pobre era composta por mulheres e crianças99. Este refe-
rencial continua presente atualmente, com a pobreza monetária atingindo
crianças e jovens e tendo alta incidência em relação à população negra e às
mulheres100. No Brasil os dados do Ipea demonstraram que em 2011 apenas

96 GOES, Emanuelle. População negra e saúde. Arquivo digital disponível em http://


populacaonegraesaude.blogspot.com.br/2014/11/mulheres-e-negras-o-todas-as-formas-de.html.
Acesso em 24/03/2018.
97 DINIZ, Simone Grilo. Gênero, saúde materna e o paradoxo perinatal. Revista Bras Crescimento
Desenvolvimento Hum. 2009, 19(2): pp. 313-326. Disponível em:https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.
php/204921/mod_resource/content/1/genero_saude_materna.pdf. Acesso em: 02/11/2018, p. 319.
98 DAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2017, p. 56.
99 Ibid., p. 56.
100 IBGE. Síntese de indicadores sociais: Uma análise das condições de vida da população brasileira.
Estudos & Pesquisa Informação Demográfica e Socioeconomica 37. Rio de Janeiro, 2017. Disponível

45
Violência Obstétrica em Debate

26,3% das mulheres negras possuíam níveis de renda médios ou altos e que
cerca de 74% das mulheres negras encontravam-se residindo em regiões com
menos ou nenhuma água encanada, esgotamento sanitário, coleta regular de
lixo, acesso à alimentação, à escola e aos serviços de saúde101.
A pesquisa Nascer no Brasil reafirma este cenário, indicando que dentre
as mulheres que dependem da rede pública de saúde e utilizam pagamento
público para o parto estão em maior concentração as mulheres negras. Da
mesma forma, são as mulheres negras que apresentam maior concentração
para maternidade entre adolescentes, entre mulheres menos escolarizadas,
entre as pertencentes às classes econômicas D e E e, ainda, dentre as com três
ou mais partos anteriores102.
Embora existam projetos específicos para a atenção da saúde da popula-
ção negra, como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra103,
é patente a vulnerabilidade diferenciada vivenciada pelos negros ao buscarem
serviços de saúde. O relatório da Comissão Interamericana de Direitos Hu-
manos sobre Pobreza e Direitos Humanos afirma que a discriminação racial
direta é uma constante na prestação de serviços de saúde à população afro-
descendente no Brasil e na região104. A raça ainda não foi identificada pelas
autoridades locais como uma categoria que precisa ser levada em conta com
especial atenção na avaliação dos serviços sociais e de saúde. José Marmo da
Silva, coordenador da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde,
afirma que o racismo dificulta o acolhimento das pessoas negras no SUS e que
muitas vezes os profissionais sequer percebem suas atitudes racistas105. 

em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101459.pdf. Acesso em: 04/12/2018, p. 67.


101 CASTRO, Clarisse. SUS, população negra e racismo: para promover saúde é preciso reconhecer e
eliminar o preconceito. Pense SUS, Fiocruz, 2016, p. 1. Disponível em https://pensesus.fiocruz.
br/sus-população-negra-e-racismo-para-promover-saúde-é-preciso-reconhecer-e-eliminar-o-
preconceito. Acesso em 24/07/2017.
102 LEAL, Maria do Carmo; GAMA, Silvana; PEREIRA, Ana Paula e outros. Op. Cit., p. 5.
103 Ibid., p. 1.
104 OEA. CIDH. Informe sobre Pobreza y Derechos Humanos em las Américas. OEA/Ser.L/V/II.164, 2017,
par. 387, p. 139. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/PobrezaDDHH2017.pdf.
Acesso em: 29/03/2018.
105 CASTRO, Clarisse. Op. Cit., p. 1.

46
Violência Obstétrica em Debate

Como afirma Kimberlé Crenshaw, discriminações estruturais, engen-


dradas por forças econômicas, culturais e sociais muitas vezes passam a ocu-
par um status de normalidade no imaginário social. Com isso, o potencial
de crítica desta estruturação se esvazia e o problema existente em sua base é
mascarado. O pano de fundo das discriminações se torna encoberto por um
véu de naturalidade e a população reproduz de forma reiterada iniquidades e
discriminações. Nas palavras da autora:
A discriminação interseccional é particularmente difícil de ser identi-
ficada em contextos onde forças econômicas, culturais e sociais silen-
ciosamente moldam o pano de fundo, de forma a colocar as mulheres
em uma posição onde acabam sendo afetadas por outros sistemas de
subordinação. Por ser tão comum, a ponto de parecer um fato da vida,
natural ou pelo menos imutável, esse pano de fundo (estrutural) é,
muitas vezes, invisível106.

Neste sentido, o racismo deflagrado contra mulheres negras e de baixa


renda no âmbito do sistema de saúde passa muitas vezes a ditar os parâmetros
de atendimento, refletindo o panorama político e social do país, estruturado
a partir da discriminação racial e calcado sobre o paradigma do racismo ins-
titucional. De acordo com a conceituação apresentada no Dossiê Mulheres
Negras formulado pelas organizações Criola e Geledés, racismo institucional
refere-se a um quadro de ineficiência, negligência e insuficiência institucio-
nal107 que tem como base a questão racial. Nos termos do dossiê, trata-se de
uma “falha coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado e
profissional às pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica”108. As-
sim, verifica-se, como propõe Jurema Werneck, o racismo como fator central

106 CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação


racial relativos ao gênero, p. 176 Rev. Estud. Fem.,  Florianópolis,  v. 10, n. 1, p. 171-188,  Jan.  2002.  
Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X200200010001
1&lng=en&nrm=iso. Acesso em 29/03/2018.
107 WERNECK, Jurema e IRACI, Nilza (orgs.). GELEDES, Instituto da Mulher Negra e CRIOLA,
Organização de Mulheres Negras. A situação dos direitos humanos das mulheres negras no Brasil:
violências e violações, p. 38. Disponível em https://www.geledes.org.br/dossie-situacao-direitos-
humanos-mulheres-negras-brasil-violencias-violacoes/#gs.sf72dww. Acesso em 24/07/2017.
108 Ibid., p. 38.

47
Violência Obstétrica em Debate

para compreensão das iniquidades experienciadas pelos negros no sistema de


saúde109, em especial pelas mulheres negras.
A temática merece ser analisada a partir do conceito de interseccionali-
dade proposto por Crenshaw, que demonstra que a sobreposição de condições
de discriminação torna a violência sofrida por mulheres negras no âmbito do
sistema de saúde distinta daquela atestada por mulheres brancas. Tratar de
forma ambivalente as condições de proteção e promoção da saúde reprodutiva
das mulheres negras e das mulheres brancas, das mulheres de baixas classes
sociais e das mulheres de altas e médias classes sociais significa invisibilizar
uma violação específica dos direitos das mulheres negras de baixas classes
sociais. Nos termos delineados por Crenshaw, “o tratamento simultâneo das
várias ‘diferenças’ que caracterizam os problemas e dificuldades de diferentes
grupos de mulheres pode operar no sentido de obscurecer ou de negar a pro-
teção aos direitos humanos que todas as mulheres deveriam ter”110.
Deste modo, para se compreender o acesso à saúde reprodutiva das mulhe-
res de forma ampla, deve-se colocar em destaque a análise das implicações de
raça e de classe presentes na abordagem. Um estudo interseccional, nos termos
propostos por Crenshaw, deve buscar capturar as consequências estruturais e
dinâmicas presentes na interação entre dois ou mais eixos de subordinação111.
O conceito se propõe a identificar as formas diferenciais de opressão atestadas a
partir da conjugação de fatores como o racismo, o patriarcalismo, a opressão de
classes, dentre outros sistemas de desigualdade112. A análise das problemáticas a
partir de apenas um dos sistemas de opressão presentes no caso gera uma visão
parcial e distorcida da questão, mascarando sua raiz e suas consequências.
Ressalta-se, nestes termos, o conceito de “hierarquias reprodutivas” for-
mulado por Laura Mattar e Simone Diniz, que refere-se à aceitação social da
maternidade e à garantia de direitos humanos às mulheres em função da aná-
lise de aspectos concretos que marcam suas identidades. Dentre estes aspectos
as autoras destacam as categorias de raça, classe, idade e parceria sexual para

109 WENECK, Jurema. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde Soc. São Paulo, V.
25, N. 3, pp. 535-549, 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v25n3/1984-0470-
sausoc-25-03-00535.pdf. Acesso em: 04/05/2018, p. 540.
110 CRENSHAW, Kimberlé. 2002, Op. cit., p. 173.
111 Ibid., p. 177.
112 Ibid., p. 177.

48
Violência Obstétrica em Debate

identificar o status de subalternidade que pode ser associado às maternidades


desvalorizadas113, maternidades estas que poderiam conviver com a não inci-
dência das normas dos direitos humanos.
Atesta-se, nos termos apresentados, que os avanços verificados no âm-
bito formal dos direitos humanos acabam não encontrando correspondência
prática na vida das mulheres concretas que necessitam assistência médica. As
demandas por direitos sexuais e reprodutivos continuam marcadas por um
cenário de reiterada violência.
Neste contexto, verifica-se que as normas positivas não alcançam as
mulheres reais e, com isso, identifica-se o papel dos esquemas normativos na
constituição do sujeito. Nos termos delineados por Judith Butler, a nomeação
do ser do sujeito depende de normas que facilitem este reconhecimento. Sendo
o sujeito constituído a partir das normas através das quais a vida é reconheci-
da ele é passível de ser identificado enquanto sujeito e sua vida é passível de ser
identificada enquanto vida. Em contrapartida, para autora, “há “sujeitos” que
não são exatamente reconhecíveis como sujeitos e há “vidas” que dificilmente
– ou, melhor, nunca – serão reconhecidas como vidas”114 . Assim, é possível
a identificação de figuras vivas que, por situarem-se fora do enquadramento
fornecido pela norma, não são reconhecidas como vidas115.
O arcabouço positivo existente no âmbito dos direitos humanos repro-
dutivos acaba, nesta perspectiva, figurando muitas vezes apenas a partir do
plano simbólico. Deste modo, em muitos casos é visualizado como um con-
junto de enunciados vazios, que não encontram correspondência prática e que
figuram como elemento de despolitização de demandas e de exoneração de
responsabilidade estatal. As mulheres concretas vítimas de violência no sis-
tema de saúde, nestes termos, não alcançam a titularidade do direito que, no
plano abstrato, é a elas direcionado.

113 MATTAR, Laura e DINIZ, Simone. Hierarquias reprodutivas: maternidade e desigualdades no


exercício de direitos humanos pelas mulheres. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.16, n.40, p. 107-
19, jan./mar. 2012, p. 114/115.
114 BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?. 3a Edição. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2017, p. 17.
115 Ibid., p. 22.

49
Violência Obstétrica em Debate

Depara-se, assim, com os questionamentos formulados por Butler acerca


de quem conta como humano e de que vida conta como vida116. A autora versa
sobre humanos não humanos e identifica que o reconhecimento do humano
está constituído em si na exclusão de todos aqueles que escapam à normativa
humana. Nas suas palavras:
Me refiro não apenas aos seres humanos que, em certa medida, não
são humanos, mas também à concepção de humano que está baseada
na exclusão destes. Não é assunto de uma simples inclusão do excluído
dentro de uma ontologia estabelecida, mas de uma insurreição ao nível
da ontologia, de uma abertura crítica das perguntas sobre o que é real,
sobre quais vidas são reais, sobre como se poderá refazer a realidade117.

Deste modo, o plano fático, ao representar a subversão da estrutura protetora


formalmente estabelecida, coloca em xeque os direitos reprodutivos das mulheres
e evidencia um limite ínsito ao sujeito de direito, sujeito este que no plano formal
não parece abalar-se com o cenário de violações silenciadas de direitos humanos
vivenciadas pelos não sujeitos. Nesta perspectiva, tem-se que a limitação da in-
cidência dos direitos reprodutivos às vidas que enquadram-se no esquema nor-
mativo de vida e que a qualificação dos direitos reprodutivos enquanto humanos
apenas a partir da positivação jurídica parece tão somente acobertar as violências
vivenciadas na prática a partir de um discurso vazio e apaziguador.
Resgata-se, esse panorama, o pensamento de Costas Douzinas, que apre-
senta a temática dos direitos humanos a partir de seus paradoxos. Como iden-
tificado pelo autor, os direitos humanos, que são inicialmente reivindicados
enquanto elemento de crítica e de valorização do homem, ao serem intensa-
mente positivados perdem sua força dissidente e passam a servir como base
para sustentar a ordem dos Estados e de Organizações Internacionais e a le-
gitimar as formas de poder existente118. Desta forma, direitos humanos asso-
ciam-se ao ideal abstrato e universal da lei e transformam pessoas concretas

116 BUTLER, Judith. Vida precária: el poder del duelo y la violencia. 1a Edição. Buenos Aires: Paidós,
2006, p. 46.
117 Ibid., p. 59. Tradução livre do espanhol.
118 DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p. 252.

50
Violência Obstétrica em Debate

em sujeitos jurídicos genéricos119, afastando- se das demandas de indivíduos


encarnados e ensejando um verdadeiro paradoxo teórico-concreto.
Apreende-se, nestes termos, conforme sugerido por Letícia Paes em sua lei-
tura de Douzinas, o caráter dissimulado da retórica universal e o enorme abismo
existente entre o sujeito abstrato dos direitos humanos e seus reais beneficiários120.
Identifica-se que a estrutura abstrata das normas humanísticas acabam, na prá-
tica, por conferir legitimação a demandas de indivíduos específicos – em geral
homens, brancos, de altas classes sociais – e a chancelar para todos os demais
violações de direitos não como exceção, mas como parâmetro social e existencial.
Atestada a contradição entre o arcabouço normativo positivo e a prática
de violência verificada no campo da saúde da mulher, passar-se-á a analisar
uma forma específica de violência, a morte materna.

2. Morte materna: morte invisível e indigna de luto


A mortalidade materna é conceituada pela Organização Mundial da
Saúde (OMS), na Classificação Internacional de Doenças (CID-10), como a
“morte de uma mulher durante a gestação ou dentro de um período de 42
dias após o término da gravidez, independentemente da duração ou da lo-
calização da gravidez, devida a qualquer causa relacionada ou agravada pela
gravidez ou por medidas tomadas em relação a ela, porém não devida a causas
acidentais ou incidentais”121. Nos termos firmados pela OMS e pelo Fundo
das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) os índices de morte materna
funcionam como um indicador do status da mulher, evidenciando o nível da
assistência à saúde a ela oferecido. Veja-se:
A mortalidade materna representa um indicador do status da mulher,
seu acesso à assistência à saúde e a adequação do sistema de assistên-
cia à saúde em responder às suas necessidades. É preciso, portanto, ter
informações sobre níveis e tendências da mortalidade materna, não so-

119 Ibid., p. 246.


120 PAES, Letícia. A política dos direitos humanos: entre paradoxos e perspectivas. Rio de Janeiro, 2011.
Dissertação de mestrado: PUC-Rio, p. 53.
121 OMS. CID-10: Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde.
10a edição. São Paulo: Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde para classificação de
Doenças em Português.

51
Violência Obstétrica em Debate

mente pelo que ela estima sobre os riscos na gravidez e no parto mas
também pelo que significa sobre a saúde, em geral, da mulher e, por
extensão, seu status social e econômico.122

Em uma dimensão mais ampla, a mortalidade materna tem sido iden-


tificada como o melhor indicador de saúde da população feminina123 e, no
contexto dos direitos sexuais e reprodutivos, tem sido delineada enquanto um
indicador de desenvolvimento social124. Estudos são categóricos ao afirmarem
que cerca de 90% dos óbitos maternos são evitáveis e apontarem a necessidade
de comprometimento político, social e econômico com a saúde125 e dedicação
de esforços para a redução das desigualdades existentes entre as mulheres126
para o enfrentamento da temática.
A partir da expressiva estatística acerca da evitabilidade da quase to-
talidade dos casos de morte materna, tem-se que esta pode ser identificada
como consequência de um sistema de saúde reprodutivo negligente, que opera
a partir do consentimento da violação de direitos e da retirada de vidas. O
cenário nacional de produção de mortes evitáveis coloca em xeque os compro-
missos firmados no pacto democrático e em documentos internacionais que
garantem o direito à vida das mulheres e revela, através da tolerância e da ne-
gligência, um pano de fundo patriarcal, que convive com mortes de mulheres
em razão da gravidez – evento apenas por estas vivenciado – sem a adoção de
esforços e políticas eficazes para sua prevenção.

122 OMS. Maternal Health and Safe Motherhood Programme Unicef. Revised 1990 estimates of maternal
mortality. Genebra, 1996, p. 2. Disponível em: http://apps.who.int/iris/handle/10665/63597. Acesso
em: 04/12/2017. Tradução do inglês.
123 VIANA, Rosane; NOVAES, Maria Rita e CALDERON, Iracema. Mortalidade materna – uma
abordagem atualizada. Com. Ciências Saúde, 22 (sup. esp. 1):141-152, 2011, p. 142. Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/artigos/mortalidade_materna.pdf . Acesso em: 29/03/2018.
124 SOUZA, João Paulo. Mortalidade maternal e os novos objetivos de desenvolvimento sustentável
(2016-2030). Rev Bras Ginecol Obstet, 37(12): 549-551, 2015, p. 549. Disponível em: http://www.
scielo.br/pdf/rbgo/v37n12/0100-7203-rbgo-37-12-00549.pdf. Acesso em: 29/03/2018.
125 VIANA, Rosane; NOVAES, Maria Rita e CALDERON, Iracema. Op. cit., p. 141 e 142.
126 SOUZA, João Paulo. Op. cit., p. 550.

52
Violência Obstétrica em Debate

Atentando à qualificação da morte materna enquanto indicador de não-


-proteção e não-efetivação dos direitos das mulheres127, as Metas de Desen-
volvimento do Milênio promovidas pelas Nações Unidas e adotadas pelos Es-
tados em 2000 traçaram dois objetivos relacionados à saúde reprodutiva e ao
tema da morte materna, a serem alcançados pelos Estados até o ano de 2015.
São eles: (i) a redução da taxa de mortalidade materna verificada em 1990 em
75% e (ii) a universalização do acesso à saúde sexual e reprodutiva128.
Embora o Brasil tenha diminuído o índice de mortalidade materna, não al-
cançou a meta estipulada pela ONU. Em 1990 foram registradas no país 3.800
mortes maternas e em 2015 este número caiu para 1.300. De 104 mortes para cada
100.000 nascidos vivos, passou-se para 44 mortes para cada 100.000 nascidos vi-
vos129. A redução alcançada foi de 52%, com velocidade média anual de queda de
4%130. Cumpre salientar que um dos grandes desafios referentes à diminuição da
mortalidade materna refere-se à identificação de sua real magnitude131. São mui-
tos os casos de sub-registros, fazendo com que tenhamos uma grande cifra oculta
acerca do tema. Estima-se que o sistema de dados sobre mortalidade materna do
Ministério da Saúde tenha cobertura de apenas de 85% dos óbitos ocorridos no
país132, havendo especial dificuldade de apurar os óbitos maternos verificados nas
regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e nas áreas rurais133.

127 UNFPA. Promovendo o direito à saúde sexual e reprodutiva. Cooperação entre a Prefeitura
Municipal de Salvador e o Fundo de População das Nações Unidas. Salvador, 2008, p. 10.
128 ONU. Objetivos de Desenvolvimento do milênio. Objetivo n. 5. Disponível em https://nacoesunidas.
org/novo-relatorio-da-onu-avalia-implementacao-mundial-dos-objetivos-de-desenvolvimento-
do-milenio-odm/. Acesso em 24/07/2017.
129 WHO, UNICEF, UNPA, World Bank Group and United Nations Population Division Maternal
Mortality Estimation Inter-Agency Group. Maternal mortality in 1990-2015: Brazil. Disponível em
http://www.who.int/reproductivehealth/publications/monitoring/maternal-mortality-2015/en/.
Acesso em 24/07/2017.
130 MORSE, Marcia, FONSECA, Sandra e outras. Mortalidade materna no Brasil: o que mostra a produção
científica nos últimos 30 anos? Cad. Saúde Pública, 27(4): 623-638. Rio de Janeiro, 2011, p. 624.
131 DIAS, Júlia Maria; Oliveira, Ana Patrícia e outras. Mortalidade materna. Revista Médica de Minas
Gerais, v. 25.2, p. 173-179, 2014, p. 178. Disponível em http://www.rmmg.org/artigo/detalhes/1771.
Acesso em 24/03/2018.
132 Ibid., p. 174.
133 REDE FEMINISTA DE SAÚDE. Dossiê Aborto: mortes preveníveis e evitáveis. Belo Horizonte: Rede
Feminista de Saúde, 2005, p. 23.

53
Violência Obstétrica em Debate

Apesar de o número total de mortes maternas ter diminuído, foi constatado


no país um crescimento de mortes maternas dentre as mulheres negras. Segundo
matéria veiculada pelo sítio eletrônico da Câmara dos Deputados, “o número de
mortes maternas provocadas por intercorrências vem diminuindo entre as mu-
lheres brancas e aumentando entre as negras. De 2000 pra 2012 as mortes por
hemorragia entre mulheres brancas caíram de 141 casos por 100 mil partos para
93 casos. Entre mulheres negras aumentou de 190 para 202. Por aborto, a morte
de mulheres brancas caiu de 39 para 15 por 100 mil partos. Entre negras, aumen-
tou de 34 pra 51”134. Os dados, mesmo parciais e camuflados pelo sub-registro,
demonstram uma atuação desigual no enfrentamento do tema.
O significativo índice de morte materna e a agravada conjuntura verifica-
da entre as mulheres negras demonstram, nos termos firmados por Maria do
Carmo Leal e outras, falhas na atenção obstétrica ofertada desde o pré-natal
até o parto. Nas palavras da autoras, “muito embora tenham sido alcançadas
coberturas universais de pré-natal e assistência hospitalar ao parto, estudos
têm mostrado falhas na qualidade da assistência prestada, contribuindo para
esses desfechos negativos”135.
De acordo com o relatório da Política Nacional de Saúde Integral
da População Negra, os dados de 2013 do Ministério da Saúde demonstram
que a proporção de mulheres negras que tiveram ao menos seis consultas de
pré-natal foi de 69,8%, enquanto que entre mulheres brancas foi de 84,9%136.
Ademais, os dados oficiais demonstram que apenas 27% das mulheres negras
contam com companhante no momento do parto, enquanto 46,2% das mulhe-
res brancas tem este direito efetivado137. Como parte deste cenário, tem-se que
atualmente 60% das vítimas de morte materna no país são mulheres negras138.

134 CANUTO, Luiz Cláudio. Mortalidade materna entre negras aumentou no Brasil. Rádio Câmara,
publicação de 09/06/2015. Disponível em http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/
mater ias/R A DIOAGENCI A /489786 -MORTA LIDA DE-M ATER NA-EN TR E-N EGR AS -
AUMENTOU-NO-BRASIL.html. Acesso em 24/07/2017.
135 LEAL, Maria do Carmo, GAMA, Silvana Granado Nogueira e outras. Op. Cit., p. 2.
136 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política
para o SUS. 3a Edição. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2017, p. 15.
137 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: Princípios e
Diretrizes. 1a Edição. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2011, p. 51.
138 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Op. cit., p. 15.

54
Violência Obstétrica em Debate

Grandes números de mortes maternas evitáveis refletem um cenário de


violência institucional. Embora significativos esforços estejam sendo adota-
dos por parte de profissionais de saúde, dos Comitês de Morte Materna e dos
Fóruns Perinatais, e ainda que o SUS represente um modelo em termos de
acesso universal a serviços de saúde, atesta-se falha na atuação do Estado.
Este, menosprezando a saúde reprodutiva e a prioritária atenção que deve ser
concedida às mulheres nos períodos de pré e pós natal, guarda para elas ações
negligentes e discriminatórias, revelando um quadro de sistemática violação
de direitos humanos. Nas palavras de Samanta Rodrigues, integrante do Gru-
po Mães do Hospital de Acari, que vivenciou a perda da sobrinha de 16 anos
por morte materna, “a mulher negra, pobre, oriunda de comunidade, é assas-
sinada nas maternidades municipais do Rio de Janeiro até hoje”139.
O Brasil foi responsabilizado internacionalmente, pelo Comitê das Nações
Unidas para Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
(Comitê CEDAW), pela morte materna de Alyne Pimentel. Alyne era uma mu-
lher negra e pobre que apresentava sintomas de gravidez de alto risco. Ao bus-
car atendimento médico em 2002 recebeu tratamento negligente e acabou, após
longas horas de espera, dando à luz a um feto natimorto e vindo a óbito.140 As
conclusões acerca do caso evidenciaram mau atendimento e indolência estatal.
O caso, de expressiva importância para o Direito Internacional, é o pri-
meiro precedente sobre morte materna do Sistema ONU. Nesta oportunidade,
o Comitê proferiu recomendações ressaltando o dever do Brasil de assegurar
o direito das mulheres à maternidade segura, efetivar o acesso à assistência
obstétrica emergencial adequada e reduzir o número de mortes maternas141.

139 JORNAL DO BRASIL. A mortalidade materna no Rio aumentou nos últimos três anos,
aponta relatório. Matéria publicada em 29/05/2017. Disponível em http://www.jb.com.br/rio/
noticias/2017/05/29/mortalidade-materna-no-rio-aumentou-nos-ultimos-tres-anos-aponta-
relatorio/. Acesso em 24/07/2017.
140 CENTER FOR REPRODUCTIVE RIGHTS. Caso Alyne da Silva Pimentel (“Alyne”) V. Brasil.
Disponível em https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=r
ja&uact=8&ved=0ahUKEwi7vK2DjqLVAhWC6SYKHfEUBlQQFggnMAA&url=https%3A%2F%
2Fwww.reproductiverights.org%2Fsites%2Fcrr.civicactions.net%2Ffiles%2Fdocuments%2FLAC_
Alyne_Factsheet_Portuguese_10%252024%252014_FINAL_0.pdf&usg=AFQjCNGnH80T3q_
yctysoctsmLTPWRem6w. Acesso em 24/07/2017.
141 ONU. Comitê CEDAW. Comunicação n. 17/2008. 49 Períodos de Sessões, 11 a 29 de julho de 2011.
Caso Alyne da Silva Pimentel Teixeira vs. Brasil, Recomendações.

55
Violência Obstétrica em Debate

A morte de Alyne figura como exemplo de tantas outras, que ocorrem


em moldes bastante semelhantes à sua. Dentre as considerações proferidas
pelo Comitê CEDAW ressalta-se (i) o reconhecimento da morte de Alyne
como uma morte materna; (ii) a declaração de que a falta de serviços de saúde
materna apropriados produzem efeitos diferenciais sobre o direito da mulher
à vida, ensejando uma forma de discriminação contra a mulher; (iii) o reco-
nhecimento de que a vítima foi alvo de dupla discriminação pelo Estado por
ser mulher e negra142.
A responsabilização internacional foi publicada em 2011, o Estado bra-
sileiro não atingiu as Metas do Milênio e convive com um número inaceitável
de mortes maternas, cenário que tende a apresentar consequências ainda mais
severas diante da Emenda Constitucional 95, aprovada em 2016, que aponta
para a diminuição de verbas para a área da saúde, estipulando o congelamen-
to das despesas primárias do Governo Federal pelo período de 20 anos. O
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) produziu uma nota técnica
versando sobre as consequências que serão provocadas pela nova norma cons-
titucional e sobre o impacto no orçamento da saúde que esta deve provocar. A
partir de estimativas, se for atestada ao longo dos 20 anos de vigência da nova
norma uma taxa de crescimento real do PIB de 2% ao ano, a perda para a área
da saúde, ao final do período, será de R$654 bilhões143.
O cenário exposto não deixa dúvidas: o Estado brasileiro, furtando-se
dos compromissos assumidos internacionalmente de garantia de direitos
humanos e de direitos no campo da saúde, tem adotado sólida posição no
sentido de esvaziar as estruturas materiais existentes comprometidas com as-
sistência integral e universal de saúde e tem firmado a negativa do valor da
saúde e da vida, em um contexto de produção de mortes já em curso, que
inevitavelmente irá se acentuar. Neste contexto, identifica-se a morte materna
enquanto possível fruto de uma atuação do Estado de precarização de vidas e
de estigmatização de corpos.

142 Ibid., parágrafos 7.1 a 7.7.


143 VIEIRA, Fabíola Sulpino e BENEVIDES, Rodrigo Pucci de Sá (Orgs.). Os impactos do novo regime
fiscal para o financiamento do sistema único de saúde e para a efetivação do direito à saúde no Brasil.
IPEA. Nota Técnica, N. 28, 2016. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/
PDFs/nota_tecnica/160920_nt_28_disoc.pdf. Acesso em: 15/01/2019, p. 10 e 12.

56
Violência Obstétrica em Debate

Nos termos propostos por Butler, todas as vidas são marcadas pela pre-
cariedade na medida em que demandam para sua manutenção a realização de
condições materiais e que encontram-se sujeitas à violência e à morte. A autora
pontua, neste viés, que em algumas vidas esta condição é maximizada. É o que
ocorre, pois, com as mulheres vítimas de morte materna, em sua maioria negras
e pobres. Evidencia-se, de acordo com a autora, que embora a precariedade seja
identificada enquanto um atributo compartilhado, ela é alocada de forma assi-
métrica no bojo da sociedade. A condição de precariedade é, então, identificada
como uma condição politicamente induzida que recai sobre as vidas que não
são consideradas valiosas e que são fadadas a suportar a privação de direitos e a
exposição diferenciada à violência e à morte144. Nas palavras de Butler:
A condição precária também caracteriza a condição politicamente in-
duzida de maximização da precariedade para populações expostas à
violência arbitrária do Estado que com frequência não têm opção a não
ser recorrer ao próprio Estado contra o qual precisam de proteção. Em
outras palavras, elas recorrem ao Estado em busca de proteção, mas o
Estado é precisamente aquilo do que elas precisam ser protegidas.145

Supõe-se, então, a condição precária como uma condição politicamente


induzida mobilizada no âmbito de um projeto político estatal que, a partir de
uma atuação discriminatória calcada nos eixos de gênero, raça e classe, acaba
por selecionar as vidas que merecem viver. A violência e o controle efetiva-
dos a partir da mortalidade materna são identificados como uma forma de
atuação do Estado que impõe às mulheres a redução de suas existências e a
autorização para a não incidência de direitos humanos, em um contexto em
que o próprio valor da vida e a disposição à morte estão em constante disputa.
Nestes termos, tem-se que as vidas que não se enquadram na moldura
normativa do humano acabam por desafiar a experiência do viver a partir de
um estado espectral, proposto por Butler, de ausência de vida. Para a autora,
estas vidas tratadas como irreais já estão perdidas ou nunca sequer foram vi-
das, devendo ser mortas por seguirem vivendo, teimosamente, em um estado

144 BUTLER, Judith. 2017. Op. cit., p. 45/46.


145 Ibid., p. 46/47.

57
Violência Obstétrica em Debate

contínuo de falta de vida146. A perda desta vida que não é vida não desperta
lamento, não merece comoção e é fadada à invisibilidade.
O luto, identificado por Butler como uma forma de conexão com a vul-
nerabilidade do outro147, deixa de ser registrado diante das vidas irreais. Nas
palavras da autora, tem-se que “se uma vida não é digna de lamento, não é re-
almente uma vida. Essa vida não se qualifica como vida e não é digna de nota.
É, de fato, (...) o insepultável”148. A dimensão pública e simbólica do luto deixa
de se fazer presente diante de perdas que não são consideradas perdas, sendo
possível identificar, no âmbito da morte materna, a distribuição desigual do
luto político149. Diante das mortes vivenciadas no âmbito do sistema de saúde
não há indignação ou comoção.
Cumpre frisar que a inexistência de luto público, enquanto ato políti-
co capaz de, nos termos propostos por Butler, proporcionar um sentido de
responsabilidade coletiva ante a vulnerabilidade humana150, não significa que
estas mortes não se encontrem permeadas por um sentimento de tristeza.
Ocorre que este sofrimento, embora presente, não é projetado ou registra-
do politicamente. Como demonstra Thula Pires, a afirmação da existência de
corpos sobre os quais normalmente não há luto não pressupõe a ausência de
choro. De acordo com a autora, existe corrosão por cada vida perdida mas esta
nem sempre é reconhecida como dor humana ou como dor política151.
A morte materna pode ser verificada, nesta perspectiva, como morte in-
visível, calada, consentida. Não traz consigo o luto em sua dimensão pública
e não mobiliza responsabilidade coletiva frente às vidas perdidas. Sua reper-
cussão parece adstrita ao velho âmbito privado que o movimento feminista há
muito luta para ultrapassar. Estas mortes toleradas imprimem em si um mo-
delo de Estado ainda ancorado no patriarcalismo, no racismo e na desigualda-

146 BUTLER, Judith. 2003, Op. cit., p. 10.


147 Ibid., p. 8.
148 Ibid., p. 11. Tradução livre do espanhol.
149 Ibid., p. 65.
150 Ibid., p. 8.
151 PIRES, Thula. Não solte a minha mão, que eu não soltarei a de vocês. Empório Direito, Coluna
Empório Descolonial, Coordenador Mário Berclaz, mídia digital, públicado em 19/03/2018.
Disponível em: http://emporiododireito.com.br/leitura/nao-solte-a-minha-mao-que-eu-nao-
soltarei-a-de-voces. Acesso em: 29/03/2018.

58
Violência Obstétrica em Debate

de, incapaz de nomear as mulheres vítimas de uma estrutura organizada para


perpetuar violências e de empenhar esforços prioritários em setores essenciais
à vida das mulheres, como a seara da saúde.
Tolerar mortes evitáveis significa desmantelar a estrutura formal con-
quistada no âmbito do direito internacional e do direito interno e rechaçar o
valor dos direitos humanos, deslegitimando as lutas das mulheres por exis-
tência e proteção legal. A morte de mulheres, em sua maioria negras e pobres,
evidencia então um projeto político racista e cruel, que ao não ecoar politi-
camente parece ser endossado pela sociedade. A urgência de uma responsa-
bilidade comum desponta e com ela buscam-se os caminhos para o alcance
do outro, sua inclusão, e para a reestruturação dos conceitos normativos que
permitem o reconhecimento.

Considerações finais
O presente ensaio, ao se debruçar sobre o cenário de violência vivencia-
do no campo da saúde da mulher, busca conceder visibilidade à temática da
mortalidade materna, ainda abafada e negligenciada. Considerando a mate-
rialidade do corpo e a sua exposição à violência e à morte atenta-se, seguindo
as formulações de Butler, à precariedade da vida humana e busca-se um cami-
nho possível para a tarefa ainda malsucedida de identificação com o outro e de
criação de responsabilidades compartilhadas. A percepção da precariedade
enquanto atributo comum como propõe Butler e o reconhecimento de sua
maximização pelo maquinário estatal ante a corpos específicos impõe urgên-
cia na construção de novas bases epistemológicas que se mostrem capazes de
conceder luz às violações estruturais de direitos humanos atestadas em nossa
sociedade e a traçar novos parâmetros normativas para o reconhecimento do
humano e a incidência das normas humanísticas protetivas.
A morte materna verificada enquanto morte evitável reflete a opção do
Estado pelo fazer morrer e escancara o desvalor associado às vidas ceifadas,
consideradas desmerecedoras de investimentos em saúde básica e preventiva
e, assim, de existência. A ausência de comoção pública pelas mortes maternas,
de luto em seu sentido simbólico e transformador na instância social, reflete a

59
Violência Obstétrica em Debate

hierarquia do luto identificada por Butler152. Neste deslinde entre morte, vio-
lência e invisibilidade, os direitos humanos distanciam-se das razões e lutas
que motivaram sua criação.
A efetividade do arcabouço protetivo dos direitos humanos, seu valor in-
surgente e seu real significado associado à resistência e à luta contra a opressão153
dependem de estruturas reais hábeis a materializar seus ideais. Novos cami-
nhos, identificações e responsabilidades mostram-se necessários para iluminar
a temática da mortalidade materna e reivindicar o valor das vidas humanas e o
real significado dos direitos humanos. A normativa abstrata dos direitos huma-
nos depende, nestes termos, de uma reformulação comprometida com as vidas
concretas que estão sofrendo com o controle e a morte. Enquanto seus termos
não se mostrarem hábeis a atender e amparar demandas encarnadas, não pode-
remos ter nos direitos humanos a esperança de alteração do quadro político de
violência atualmente experienciado por mulheres, notoriamente mulheres ne-
gras e pobres. Apesar dos avanços que paulatinamente vêm sendo identificados
na redução dos índices de morte materna, muito ainda é preciso galgar para a
real consagração do direito à saúde reprodutiva das mulheres.

152 BUTLER, Judith. 2003, Op. cit., p. 9.


153 DOUZINAS, Costas. Op. cit., p. 383.

60
Violência obstétrica, cuidado
neonatal e desafios para humanização
da assistência ao parto 

Entrevista com Dr. Ricardo L. Chaves, médico pediatra, professor de pediatria


da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ1 

Pergunta: Quais os principais vetores que caracterizam a assistência humani-


zada e quais os desafios para sua implementação no sistema de saúde nacional? 

Ricardo Chaves: O principal vetor da assistência humanizada é ter a mulher


no centro do processo de atenção. Isso  parte  do entendimento do que está
se passando no corpo da mulher, direcionando o olhar a partir da fisiologia,
e da compreensão de que em mais de 90% das vezes a gravidez se passa em
um cenário de saúde. Ter a mulher no foco, no centro do atendimento, é uma
garantia de humanização.  

A segunda garantia diz respeito ao entendimento dos processos fisiológicos


que estão acontecendo durante a gravidez e, muito especialmente, no momen-
to do parto. Vemos transformações biológicas acontecerem naturalmente ao
longo do processo de amadurecimento do bebê intra-útero e essas transfor-
mações são fundamentais para o bebê nascer bem. Reconhecer e garantir que
elas aconteçam também diz respeito à humanização.  

A humanização é um gancho muito importante para chamar atenção a muitas


situações que estão ocorrendo com a mulher e o bebê ao longo do parto e do
nascimento, mas precisamos ampliar o olhar de modo a abarcar o aspecto da
fisiologia.  Uma intervenção desnecessária em um processo fisiológico  pode
ser danosa e pode ser um indicativo de não humanização, na medida em que
rompe com a fisiologia. Deste modo, a não humanização envolve o reconhe-
cimento de que uma parte das mulheres que  estão  grávidas e tendo bebês
não são respeitadas nesse processo. Eu participo de debates no âmbito jurí-
dico e escuto relatos desesperadores a partir de contribuições de membros

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Violência Obstétrica em Debate

do Ministério Público a respeito de violências no desenrolar da gravidez e do


parto. Casos de mulheres amarradas, de gritos com as mulheres para elas não
gritarem. E não se pode negar que a violência não é necessariamente praticada
de forma claramente violenta. Muitas formas de violência são praticadas de
maneira mais sutil, educada e essas formas são talvez tão danosas quanto às
demais. Se eu amarrar uma mulher na cama e não deixar ela se movimentar
para encontrar a melhor posição para parir, mas pedir licença para isso, esta-
rei desrespeitando os direitos que essa mulher tem para parir, já que ela não é
uma pessoa doente, mas uma mulher grávida.  

O conceito de condição de saúde, de condição de funcionamento do corpo,


é essencial para demarcar a atuação médica. Diante da constatação de que o
batimento cardíaco do bebê dentro do útero está abaixo da normalidade, ou
de que a bolsa está sem nenhum líquido, ou de que a relação de pressão entre a
placenta e o bebê está alterada, não há o que se discutir, devendo ser realizado
o parto por cesárea. Contudo, analisando as estatísticas vê-se que essas situ-
ações não chegam a 10% dos casos. É preciso primar pelo direito de escolha,
pelo direito de ser ouvido e de poder se posicionar quando temos condições
favoráveis de fisiologia, condições de normalidade, ou seja, prova de que mãe
e bebê estão passando bem, e isso ocorre mais de 90% das vezes.  Então o
conceito de humanização passa pelo posicionamento da mulher no centro do
processo, reconhecendo ainda que a gravidez, na imensa maioria dos casos,
não tem a ver com doença, sendo um processo fisiológico transitório na vida
de uma mulher que, na maior parte dos casos, é jovem, saudável e cuidada. 

Pergunta: Como compreender a assistência ao parto hoje no Brasil atentando


à importância das práticas de medicina baseadas em evidências científicas? 

Ricardo Chaves: A medicina,  durante anos, publicou trabalhos científicos e


existe uma técnica que vem sendo desenvolvida e que ganhou muita força na
orientação e na produção do trabalho científico referente às meta-análises, as
revisões sistemáticas, que condensam as tão famosas evidências científicas. A
partir dessas condensações de pesquisa pudemos rever várias práticas que não
refletiam a melhor forma de atenção para a mulher e o bebê. Um exemplo é o
corte do cordão umbilical, que era feito imediatamente após o nascimento do

62
Violência Obstétrica em Debate

bebê. Essa prática, após revisões de trabalhos científicos, foi modificada já que


ficou demonstrado que esperar o cordão desacelerar ou parar de bater traz
benefícios para o momento do parto e para o resto da vida da criança.  

Com essas análises também encontramos respaldo técnico para práticas que
eram realizadas de forma intuitiva, como colocar o bebê que acabou de nascer
no colo da mãe, prática esta que vinha sendo adotada como ato de humanização
e de bom senso e que, após a análise de inúmeros artigos publicados, passou a
ser evidenciada, por recursos estatísticos, como a mais adequada a ser adotada,
sendo comprovado que o melhor lugar para o bebê estar após o nascimento é no
colo da mãe. O que era uma decisão intuitiva, tomada em prol do bem estar da
mulher e da humanização, se torna uma prática com respaldo cientifico.  

Pergunta: Apesar das evidências científicas firmadas no campo teóri-


co, identificamos relatos de não adesão a essas técnicas. Como você identi-
fica essa situação prática?  

Ricardo Chaves: Esse é um embate técnico. As Boas Práticas da Organização


Mundial da Saúde (OMS) sobre parto e nascimento preveem, por exemplo, a
escolha por parte da mulher da posição de parir. Contudo, existe um grupo
de profissionais que não reconhece essas práticas enquanto evidências cien-
tíficas e que colocam a sua experiência profissional e ideológica em primeiro
plano, o que é muito grave. Em qualquer área há uma luta ideológica. Em um
Brasil hoje tão dividido essa luta chegou à sala de parto.  

Pergunta:  Como as  evidências científicas  e os preceitos de humanização


são apresentados no curso de medicina?   

Ricardo Chaves: Não há uma matéria curricular obrigatória dedicada somen-


te à  abordagem de evidências científicas, mas a forma de fazer pesquisa é cur-
ricular e está inserida na faculdade de medicina. Temos que saber interpretar
um artigo médico. Temos que ensinar e aprender na universidade a ler criti-
camente um artigo cientifico. 

Em relação à humanização, a pediatria possui um comitê nacional de reanima-


ção neonatal, um curso direcionado para residentes médicos. Eu sou um dos

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Violência Obstétrica em Debate

professores do curso e ele visa fornecer material para atuação em casos de emer-
gência, sendo focado em treinar o médico a reconhecer a emergência e reagir
em 30 segundos tomando as devidas providências. Esse curso não tem como
propósito a humanização, mas parte do reconhecimento de situações que exi-
gem demandas de intervenção. O grande desvio do pediatra é tratar 99% dos
casos como 1%, já que na prática médica identificamos que mais de 90% dos
nascimentos ocorrerem sem intercorrências ou necessidades de intervenção.  

Pergunta: E como avaliar os casos em que são utilizadas técnicas emergen-


ciais sem a real necessidade clínica para embasá-las? 

Ricardo Chaves: Isso se chama iatrogenia, e ocorre quando a técnica é utilizada


sem necessidade. É preciso reconhecer que existem obstetras que gritam com a
mulher no momento do nascimento, que cortam o períneo sem haver necessi-
dade, mas não podemos dizer que todos agem dessa forma. É preciso falar que
isso existe justamente para que  pare de existir. A violência obstétrica existe.
Quando as mulheres se sentem à vontade para falar sobre seus partos muitas re-
latam casos de violência obstétrica. Então precisamos falar sobre ela e reconhe-
cer que ela existe. Qualquer generalização é irresponsável, mas se não falarmos
sobre a violência obstétrica não poderemos nunca acabar com ela. 

A condição fisiológica mais importante para o bebê nascer é a privacidade. A


privacidade é o que garante o funcionamento fisiológico e a produção de hor-
mônios. O primeiro filme da série Renascimento do Parto mostra que muitas
mulheres, ao recuperarem a ideia de seus partos, percebem que viveram expe-
riências de não humanização ao relembrarem que não viram seus bebes, que
não foram ouvidas, que ficaram à parte do processo. Esse filme destampa uma
panela de pressão que estava fechada e pressionada, que se refere à condição de
nascimento, e é curioso perceber que isso só foi possível porque as mulheres
que participaram do filme concordaram em ceder as imagens de seus partos e
abrirem seus relatos íntimos. Todas as evidências científicas a respeito da hu-
manização estão sendo produzidas, mas se as mulheres não comprarem essa
discussão não teremos como avançar.  Existe um pano de fundo ideológico
muito forte nessa temática. 

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Violência Obstétrica em Debate

Pergunta: Quais seriam os desafios referentes à humanização do parto nos


setores público e privado? Poderíamos pensar em formas próprias de im-
pacto em relação à mencionada necessidade de privacidade?   

Ricardo Chaves: As coisas são muito misturadas. O hospital onde eu trabalho


é público e ligado à Universidade, sendo referência em gravidez de risco. In-
felizmente,  não conseguimos resguardar a intimidade das mulheres  já que o
local não apresenta uma estrutura física que conceda facilidades. Lá o foco é o
atendimento de mulheres hipertensas, coronarianas etc. Mas a taxa de cesárea
no meu hospital é menor do que a taxa da imensa maioria de maternidades
privadas, aonde não chega a 10% o número de mulheres com gravidez de risco.
Temos essa zona mista. No Sistema Único de Saúde (SUS) as taxas de cesárea
são muito menores em relação à rede privada. Isso é uma vantagem. A pesquisa
Nascer no Brasil mostrou que a taxa de cesárea na saúde suplementar é de 93%,
enquanto a taxa de cesárea no SUS é de 53%. Nesse ponto temos uma vantagem
em parir no SUS. Defendemos que o SUS é maravilhoso e que deve ser univer-
sal, estamos inclusive com o SUS com risco de ser inviabilizado por políticas
públicas que não investem nele, mas temos que reconhecer também que existem
portas do SUS que abrimos e que são terríveis. Não é porque essas portas exis-
tem que o SUS tenha que acabar, evidentemente. Ao mesmo tempo, é importan-
te ressaltar que há portas no SUS que são maravilhosas, tendo pessoas que talvez
apenas tenham sobrevivido porque foram encaminhados para o SUS e não para
a rede privada diante de um evento emergencial qualquer.  

Existe uma questão que apresenta uma curva, que é referente à participação de


enfermeiras obstétricas. O SUS tem a chance de avançar na humanização com
muito mais força do que a saúde privada, pois o SUS não é movido formalmente
por interesses mercadológicos, financeiros, sendo universal e regido por uma po-
lítica pública. A questão é brigar para que continuem existindo políticas públicas.  

Pergunta:  Em relação ao tema políticas públicas, recentemente circulou


um ofício do Poder Público exigindo que não mais se mencionasse o termo
“violência obstétrica”. Após manifestação do Ministério Público, o Poder
Público voltou atrás,  mas continua presente uma disputa política  sobre
esse termo. Como a área médica encara essa disputa?   

65
Violência Obstétrica em Debate

Ricardo Chaves: Acho que a área médica, como toda corporação, tende a en-


carar o tema da violência obstétrica na defensiva. A violência obstétrica existe
e  pode  ser representada pelo aspecto físico do lugar  em que o médico está
trabalhando,  podendo não ter relação direta com o seu trabalho.  Ela pode
ser perpetrada  diante do atendimento do  nascimento de uma criança  em
um  box  onde dez  mulheres  estão parindo  ao mesmo tempo, sem privaci-
dade,  sem a devida limpeza,  com  cortina quebrada. Pode ser vista no caso
de mulheres nuas parindo ao lado de outras pessoas que não escolheram. Os
colegas que se posicionam  contra o termo violência obstétrica  reagem, na
maior parte das vezes, corporativamente. ‘Não vista essa camisa’, posso dizer
aos meus colegas. Vista se você tiver agredido uma mulher para ela parar de
gritar no momento do parto. Há relatos disso. Mas quem não adota essas ati-
tudes não deve vestir essa camisa. 

Sou desconfortável com a judicialização da assistência médica, mas tenho que re-


conhecer que a ouvidoria do Ministério Público e os Defensores Públicos apre-
sentam relatos que nos fazem chorar. Quem é pai e mãe sabe que não tem dia
mais importante na sua vida do que o dia do nascimento do seu filho. Algumas
mulheres, não poucas, estão no dia do nascimento de seus filhos sendo amar-
radas, cortadas,  parindo  publicamente. A primeira maneira de mudar esse
quadro é reconhecer que tais práticas existem. A questão da episiotomia, por
exemplo,  merece ser comentada, pois o rasgo que o bebê provoca naturalmente
é sempre menor do que o corte realizado. O corte atinge musculatura, mucosa e
pele. O bebê naturalmente corta a pele e, raramente, a mucosa. Temos também
o famoso ponto do marido, com alguns profissionais perguntando se os mari-
dos querem um ponto “mais apertadinho” para terem mulheres “virgens”. Isso
é machismo. Eu posso trazer o marido mais perto da decisão, compartilhar a
decisão, mas o respeito ao direito reprodutivo e sexual é da mulher. 

Pergunta: Temos uma desafio enorme ao tratar do tema violência obstétri-


ca referente a argumentos que têm surgido nos campos jurídico e político
em relação ao direito de escolha da via de parto pela mulher e da conse-
quente  configuração  da cesárea  “à  la  carte”. Quais as repercussões desta
escolha, que se encontra tão mal colocada na Lei nº 17137 /2019 do Esta-

66
Violência Obstétrica em Debate

do de São Paulo, cujo projeto é de autoria da Deputada Janaina Paschoal,


que deixa de exigir indicação médica para opção pela cesárea no SUS?  

Ricardo Chaves: As pessoas que possuem plano de saúde, pagando diretamen-


te por ele ou recebendo-o como benefício empregatício, sentem que possuem
um direito adquirido a utilizá-lo quando necessitarem e como quiserem. Com
isso, 93% dos partos realizados na rede privada são cesáreas. A indicação pela
cesárea precisa de uma consubstanciação técnica e científica em nome da saú-
de do bebê e da mãe. Enquanto temos taxa de 93% de cesáreas na rede privada,
a OMS indica uma taxa de 15%. As mulheres que optam pela cesárea sem
indicação médica estão comprando gato por lebre. Talvez fosse melhor ter o
bebê no SUS, e então a mulher não seria operada desnecessariamente. Con-
tudo, existem mulheres que chegam no SUS gritando com medo de ter parto
normal. A lei deveria prever garantia de melhores condições de trabalho nas
maternidades, garantia de direito à informação, garantia de condições de cui-
dado da melhor maneira possível.  Deveríamos ter garantias  para cuidar de
um ato tão nobre, tão fisiológico, da melhor maneira possível. Com isso terí-
amos melhores condições para realizar a cesárea das mulheres que possuem
indicação para essa via de parto. No sistema de saúde privado, onde temos
maiores índices de cesárea, temos também maiores índices de prematuridade,
pois se tira o bebê fora do trabalho de parto.  

Pergunta: Ainda em relação à Lei nº 17137/2019 do Estado de São Paul,


você considera que o marco de 39 semanas de gestação identificado pela lei
para a realização da cesárea concede segurança para a gestante ou apenas
uma falsa aparência de legitimidade para essa prática da cesárea eletiva?  

Ricardo Chaves: Esse marco de 39 semanas é o mínimo. Pode ser até que ele
represente alguma segurança. Mas imagine a situação: eu estou de plantão
no hospital conveniado ao SUS e aparece uma mulher humilde, sem plano de
saúde, com cartão de pré-natal identificando a última data de menstruação, a
realização de sete consultas de acompanhamento, mostrando que não possui
nenhuma doença e que não possui alteração de pressão, e essa mulher indica
que está na 39a semana e que foi ao hospital para realizar uma cesárea porque
tem direito. Como eu, sem ter acompanhado essa mulher, poderia fazer isso?

67
Violência Obstétrica em Debate

Isso será um caos. Com todas as críticas que podemos realizar à saúde suple-
mentar,  o médico que sem indicação faz uma cesárea a pedido da mulher a
acompanha, normalmente, há pelo menos 10 meses. Esse projeto de lei é ir-
responsável, não atentou às considerações da área técnica e foi aprovado sem o
devido debate público. O projeto já foi sancionado e agora existem deputados
questionando sua constitucionalidade.  

Pergunta: A Lei nº 17137 /2019 pretende tocar uma disputa feminista sobre
a autonomia corporal e o direito de escolha, mas deixa de considerar fatores
essenciais nesse debate, como a garantia de outros direitos das gestantes,
que muitas vezes não são atendidos. Como você compreende esse embate? 

Ricardo Chaves: A mulher historicamente é invadida, violentada. Se for jo-


vem, negra e pobre isso se acentua ainda mais. Temos um hiato absurdo a ser
observado em relação às boas práticas, às práticas respeitosas. Entendo isso
perfeitamente. Precisamos de uma lei para garantir a presença do acompa-
nhante. As mulheres de classe média já exerciam o direito ao acompanhante
há muito tempo. O acompanhante entra na sala de parto na hora H. Mas isso
deveria acontecer antes, no momento da anestesia. Apesar de termos a lei que
garanta hoje a presença do acompanhante, precisamos garantir que a mulher
de fato possa ter uma pessoa ao seu lado. Já escutei que o pai não poderia en-
trar na sala de parto porque poderia trazer contaminação ou desmaiar. Conto
em uma mão os pais que desmaiaram no momento do parto. A pessoa mais
obediente na sala de parto é o pai. O pai está entregue, ele não contamina. 

Pergunta: Quando falamos  sobre a violência obstétrica  também  podemos


pensar a violência pediátrica como uma possível consequência desse cenário?  

Ricardo Chaves: Acho que nós pediatras estamos no mesmo cenário, mas não
estamos em tanta evidência porque o processo não começa conosco. Somos
convidados a participar. A recepção da mulher e a organização da dinâmica
de funcionamento do parto não é feita pelo pediatra. Mas enquanto corpora-
ção, nos enquadramos igualmente nesse cenário e é preciso reconhecer isso. 

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Violência Obstétrica em Debate

No campo da  humanização temos um dado muito interessante. Dois aspec-


tos do corpo do bebê funcionam como fio condutor para atestar um bom nas-
cimento:  tonus, comandados pelo sistema neurológico do bebê; e respiração,
que é a grande transformação do parto. Temos o nascimento, funcionalmen-
te marcado, com o corte do cordão umbilical. Nesse momento o bebê já deve
estar respirando. Dentro do útero temos exatamente o bebê que vai nascer, só
que sem respirar. O respirar é o pressuposto da vida. No nascimento é preciso
acompanhar o bebê para ver se ele vai respirar e se vai ter tônus. O fio condutor
desses processos é a frequência cardíaca avaliada em todo o trabalho de parto
de modo intermitente. A cor lentamente vai mudando com o estabelecimento
da respiração. E todo esse processo de adaptação ao nascimento tem um pressu-
posto importantíssimo que é a existência de trabalho de parto, com contrações
que são medidas pela síntese de ocitocina materna, idealmente natural.    

Para humanizar uma sala de parto cirúrgico podemos deixar apenas um foco
de luz, e apagar a luz em volta. Não há mal, muito pelo contrário, em trabalhar
na penumbra. É mais fisiológico. Apenas o obstetra precisa de luz. Em 90%
dos casos o bebê apresenta boa frequência cardíaca e vai respirar naturalmen-
te, sendo possível acompanhar esse bebê no colo da mãe e com pouca luz ver
esse bebê. É preciso que os pediatras reconheçam a necessidade de garantir
condições de fisiologia, conforme prevê o manual de regras da sociedade de
pediatria. A sociedade de pediatria segue o paradigma da fisiologia. O que fal-
ta na prática é reforçar a condição de fisiologia referenciado no corpo da mãe,
reforçar que a não intervenção é uma atitude de humanização e reforçar que o
pediatra deve participar desse movimento de humanização do parto.  

Pergunta: Quais os benefícios e os desafios que você identificaria no Plano


de Parto, prática que tem sido desenvolvida por algumas gestantes? 

Ricardo Chaves: O plano de parto é um recurso que as mulheres encontraram


para se defenderem de práticas que consideram que não devem acontecer. O
plano de parto deve ser bem vindo e o profissional deve reconhecer esse direito
e ter a humildade de conversar com a mulher. Eu tenho interesse em atender a
mulher de maneira fisiológica. Essa prática reflete informações adquiridas por
parte da mulher. É verdade que nem tudo que reluz é ouro e que nem tudo que

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Violência Obstétrica em Debate

está na internet é honesto. Mas eu acredito que as mulheres começaram a fazer


plano de parto como uma forma de se defender. E está na hora do dia mais
feliz da vida dela. Qualquer um quer escolher como ter o seu dia mais feliz. Os
ajustes necessários para praticar o plano de parto poderão ser feitos na inter-
nação, especialmente se a mãe não estiver na fase ativa do parto, porque nesse
momento ela deverá sempre ficar protegida, em privacidade e o mais à vontade
possível. Falamos da importância da neutralização do neocortex para que ela
alcance o maior nível possível de síntese de ocitocina, fundamental para haver
contração e todas as modificações corporais no parto, da mãe e dos bebês. 

Pergunta: Embora o dia do parto seja o mais importante, a violência obstétrica


também pode acontecer no pós-parto. Nesse momento muitas vezes a saúde da
criança é utilizada como argumento para a realização de práticas danosas e,
nesses casos, poderíamos pensar em formas de violência pediátrica?  

Ricardo Chaves: Eu não tenho escutando como produto de pesquisa de pro-


dução acadêmica o termo violência pediátrica. Mas podemos e devemos fa-
zer uma reflexão sobre a prática pediátrica. Se essa reflexão trouxer questio-
namento de práticas, de condutas ainda que bem intencionadas que sejam
danosas para o bebe, então iremos começar a falar em violência pediátrica.
O uso da fórmula – leite de vaca modificado artificialmente – pode ser tão
bem vindo quanto à cirurgia cesárea, se tiver indicação técnica, por exemplo.
Em casos emergenciais é recomendado o uso da fórmula. Contudo, muitos
pediatras utilizam a fórmula como “S.O.S de rotina” e essa situação pode ser
identificada, por exemplo, quando o bebê está chorando demais ou quanto o
peito da mulher está doendo. O uso da fórmula deve ser manejado mediante
comunicação com o pediatra, não podendo ser utilizada por decisão da mãe
ou da enfermeira. O uso indevido da fórmula acaba acarretando a diminuição
do índice de aleitamento e o aumento do risco de alergia. Esse uso indevido
muitas vezes passa desapercebido. 

Temos no Brasil o dobro da taxa de bebês prematuros do que a Inglaterra, e


isso não ocorre porque proporcionalmente temos a metade da qualidade na
assistência médica do que os ingleses. Certamente isso se deve ao fato de que
nosso modelo assistencial é de muita  intervenção, vide nossas taxas de cesá-

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Violência Obstétrica em Debate

reas, produzindo mais bebês prematuros. Ninguém faz a opção do pior pra


si. Contudo, falta informação. Muitas mulheres estão escolhendo a cesárea. A
pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz mostrou que a opção pela cesárea virou
uma questão cultural e de muita desinformação e que as mulheres não estão
sendo informadas durante o pré-natal sobre as vantagens e as desvantagens da
cesárea e do parto normal. Precisamos informar mais e propiciar condições
de conforto para que o parto seja humanizado. Com certeza precisamos con-
versar mais sobre a dor do parto. 

Na vida, vi pouquíssimas mulheres parirem sorrindo. Mas quando a gen-


te propicia condições de privacidade, de conforto, de produção hormonal e
de não intervenção o processo é facilitado. O parto é oxitocina pura. A mu-
lher que  entra em um lugar que não escolheu, onde não se sente acolhida e
protegida, onde ela não conhece ninguém e sem ter recebido informações so-
bre o procedimento, se vê em desespero. É só se colocar no lugar dessa mulher.
A maior parte das mulheres faz pré-natal com um profissional e o parto com
outro e não sabe onde seu filho irá nascer. Com certeza o nível de produção de
ocitocina nessas mulheres será bem menor. 

Pergunta: Voltando ao tema da Lei Paulista sobre a cesárea, podemos afirmar


que a realização de cesárea eletiva pode aumentar a mortalidade neonatal?

Ricardo Chaves: Acredito que a cesárea realizada com 39 semanas não apre-


senta esse risco.    Pode-se  falar que  a  cesárea  eletiva  aumenta  a  morbida-
de, mas não a mortalidade. Com a cesárea eletiva aumenta-se, por exemplo,
as internações em CTI. Nas vésperas de grandes eventos os índices de cesá-
rea no Brasil aumentam. Isso é muito estranho. A previsão da realização do
procedimento com 39 semanas pelo menos pode ser visto como uma forma
de pressão, já que garante que a mulher não vai ser operada na 37a semana.
Mas como fiscalizar esse marco de 39 semanas? Com a data da última mens-
truação? Com data  prevista  na ultrassom? Será que o Conselho Federal de
Medicina e a Sociedade Brasileira de Pediatria terão condições de controlar,
de norte a sul do país, todas as cesáreas realizadas e terão a garantia de que o
procedimento está sendo realizado com 39 semanas? 

71
Violência Obstétrica em Debate

Pergunta: Para a realização de cirurgia cesárea é necessário que a unidade


possua UTI neonatal? Como garantir a qualidade do atendimento?

Ricardo Chaves: Na prática  não  temos a regionalização dos  atendimen-


tos. Não é uma condição sine qua non ter uma UTI neonatal para que a unida-
de possa realizar uma cesárea. Contudo, a Lei paulista não trata desse ponto.
Gostaria de saber como os médicos vão atender à demanda prevista na lei se
não tiverem acompanhado a mulher que deseja realizar a cesárea ao longo
do pré-natal. Ainda, será que os hospitais ligados ao SUS terão leitos disponí-
veis para todas as cirurgias cesáreas? Como fica a situação se trinta mulheres
com 39 semanas de gestação chegarem à porta da unidade hospitalar durante
o final de semana? Para qual unidade serão encaminhadas as mulheres que
chegarem em trabalho de parto? Qual o cirurgião que opera uma pessoa que
não quer o seu apêndice? Nenhum. E qual será o médico que irá operar uma
mulher que diz que não quer um parto normal?  

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Violência obstétrica: um novo termo
que engloba novas e velhas demandas

Olivia Hirsch
Sara Mendonça

A proposta de “humanização” do parto e do nascimento disseminou-se


inicialmente em um pequeno segmento de mulheres de camadas médias, pro-
venientes dos grandes centros urbanos brasileiros. Por outro lado, foi também
nesse estrato social, em especial nas regiões mais afluentes do país, onde, nos
últimos 30 anos, registrou-se um aumento expressivo da taxa de partos cesá-
reos no Brasil, país que lidera o ranking mundial no que se refere à realização
da cirurgia. Mais precisamente, no ano de 2015, 55,5% de todos os partos re-
alizados foram cesáreos.
Em 1970, a taxa de cesáreas no Brasil era de 14,6%154 e veio crescendo
paulatinamente até atingir 57% em 2014 e, por ora, apresentar leve recuo. Esse
quadro tem levado alguns ativistas e formuladores de políticas públicas a afir-
mar que o Brasil estaria experimentando uma “epidemia” de cesáreas. No se-
tor privado, onde cerca de ¼ de todos os partos são realizados, a situação cha-
ma ainda mais a atenção, tendo em vista que a taxa de cesáreas chega a 84,6%,
mais do que o dobro daquela registrada no setor público, que é de 40,2%,
segundo dados divulgados pelo Ministério da Saúde relativos ao ano de 2015.
Os resultados da pesquisa “Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre
Parto e Nascimento”155, conduzida pela Fiocruz e que ouviu 23.894 mulheres
que deram à luz em maternidades públicas e privadas de 191 municípios do
país, confirmam a tese, já apontada por outros estudos, de que a cesariana é
realizada especialmente naquelas que integram as camadas médias e altas da
sociedade. Com efeito, entre as entrevistadas que tinham sido submetidas à

154 RATTNER, D. Sobre a hipótese de estabilização das taxas de cesárea do Estado de São Paulo, Brasil.
Revista de Saúde Pública. 30(1),19-33, 1996.
155 LEAL, M. C.; GAMA, S. G. N. Sumário executivo temático da pesquisa. In: LEAL, M. C. (Org.).
Nascer no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2015.

73
Violência Obstétrica em Debate

cirurgia, 84,4% possuíam ensino superior e 79,2% eram conveniadas a planos


privados de saúde. Dentre estas, a maioria se autodeclarava branca e residia
nas regiões Sudeste e Centro-Oeste do país, onde é possível localizar mater-
nidades privadas nas quais mais de 90% dos partos realizados são cirúrgicos.
Diferentemente do que se observa entre as mulheres de camadas médias,
para aquelas provenientes de camadas populares, atendidas no setor público
de saúde, a regra parece ser o parto “normal”. Ainda que a maioria das pes-
quisas aponte a preferência entre as mulheres desse segmento por essa via de
parto, concretamente elas apresentam muito pouca ingerência sobre o proces-
so. Como sugere o estudo de Chacham156, para citar apenas um exemplo, uma
parcela inclusive gostaria de dar à luz por via cirúrgica, o que em momento
algum é levado em consideração pelo profissional de saúde que lhes presta
assistência – em evidente contraste com o que ocorre no setor privado.
Para [mulheres de classe média] é mais fácil obter uma cesariana quan-
do a desejam. No caso de mulheres pobres e trabalhadoras que dão à
luz em hospitais públicos, mesmo quando elas querem uma cesariana
não têm, a menos que o médico decida que elas precisam de uma. Na
maioria das vezes elas não sabem quem as irá prestar assistência em
seus partos ou sequer têm a chance de expressar seus desejos.157

Para as mulheres de camadas populares, portanto, o padrão nas ma-


ternidades e hospitais públicos brasileiros é o parto “normal” que, da forma
como é rotineiramente realizado, prevê uma série de procedimentos médicos
de rotina. Entre eles estão: alta frequência de exames de toque; impedimento
de deambulação e de assumir outras posições que não a deitada de barriga
para cima; impedimento de alimentação; realização de enema para lavagem
intestinal; aplicação de ocitocina sintética, hormônio que aumenta as contra-
ções uterinas, acelerando o trabalho de parto; amniotomia, ou ruptura da bol-
sa amniótica, que também aceleraria o trabalho de parto; manobra Kristeller,
que consiste em pressionar a barriga da mulher no momento da contração,
empurrando o bebê em direção ao canal vaginal; puxos dirigidos, ou seja,

156 CHACHAM, A. S. Doctors, Women and Cesareans: The construction of normal birth as risky and
the medicalization of birth in Brazil. In: Annual Meeting of the Population Association of America,
Boston. Book of Abstracts, 1: 19, 2004.
157 Idem, p. 09.

74
Violência Obstétrica em Debate

pedir que a mulher faça o movimento de empurrar quando seu corpo não está
produzindo os puxos naturais; episiotomia, corte realizado no períneo para
aumentar a passagem para o bebê; recurso ao fórceps, aparelho para extração
do feto, dentre outros. A anestesia peridural também é entendida como uma
intervenção para as ativistas, porém constitui um direito parcamente contem-
plado na saúde publica, o que será explorado ao longo do artigo. Existe ainda
a concepção de que uma intervenção gera a necessidade de mais intervenções,
de forma que estes procedimentos se fariam necessários em cadeia, o que cos-
tuma ser chamado por profissionais da saúde ligados à humanização e por
ativistas de “cascata de intervenções”.
É válido acrescentar que, diferentemente do que parece sugerir o traba-
lho de Chacham158, nas camadas populares a definição pelo parto cirúrgico
tampouco pode ser atribuída exclusivamente a uma questão de “necessida-
de”, isto é, a uma indicação clínica. A cesariana, em algumas situações, pode
ser realizada como forma de atender a um acordo tácito existente entre os
médicos, que prevê que o “pré-parto” deva ser “limpo” antes da troca de tur-
nos, isto é, que todas as parturientes que se encontram em trabalho de parto
devam dar à luz, evitando que o profissional que está para assumir o plantão
tenha que se ocupar daquelas que fizeram a internação mais cedo. Segundo
Dias159, que observou esta prática durante pesquisa realizada em uma mater-
nidade pública, trata-se
de um acordo velado entre os profissionais de que cada equipe deve
resolver os casos que interna (...). O acordo implícito entre eles é o de
que não é correto deixar muito ‘trabalho’ para o plantão noturno. No
dia seguinte todos terão que trabalhar e, portanto, é preciso garantir
que será possível ter um descanso durante a noite.

Como é possível notar, diversos e complexos fatores convergem para de-


finir que tipo de parto as mulheres de diferentes estratos sociais irão vivenciar.
Nesse sentido, é possível afirmar que a probabilidade de uma gestante vir a ter
um parto cesáreo ou “normal” não depende necessariamente de seu histórico

158 Idem.
159 DIAS, M. A. B. Humanização da assistência ao parto. Conceitos, lógicas e práticas no cotidiano de
uma maternidade pública, 2006. Tese de Doutorado, Rio de Janeiro: Departamento de Ensino e Pós-
Graduação em Saúde da Mulher e da Criança, IFF/FIOCRUZ, p. 117.

75
Violência Obstétrica em Debate

individual de saúde, como já destacara Martin160, que chamou a atenção para


o fato de que “a origem social de uma mulher, juntamente com sua raça, afeta
profundamente o tipo de experiência de parto que ela terá na maternidade”.

1. Movimento pela humanização do parto e do


nascimento: mapeando categorias e conceitos
Antes de adentrar a discussão acerca da violência obstétrica, foco desse
artigo, é necessário fazer uma contextualização, situando como o movimento
pela humanização do parto e do nascimento se constrói, dentre outros aspec-
tos, pela elaboração de categorias e conceituações.
Embora a oposição colocada em primeiro plano seja entre a cesárea e o
parto “normal” essa se desdobra e complexifica, acionando outras categorias
como: o parto natural, aquele onde não são realizadas intervenções médicas
ou farmacológicas161; o parto humanizado, no qual a mulher tem suas escolhas
e seus direitos respeitados, e, a depender do desejo da mulher, pode englobar
o parto natural ou com um mínimo de intervenções; e o parto “normal” ou
vaginal, que no dizer das ativistas “não tem nada de normal”, realizado com
todo ou com boa parte do “pacote” de intervenções médicas disponíveis, de
forma padronizada. Este último pode se tornar categoria de acusação aos mé-
dicos que os realizam, denominados pelas ativistas de “vaginalistas”.
A demanda pela evitação de intervenções possui duas instâncias de legi-
timação: a Medicina Baseada em Evidências (MBE) e a Organização Mundial
de Saúde (OMS), que endossa as proposições da primeira. Em 1996, a OMS
lançou uma publicação científica sobre as práticas utilizadas rotineiramente
na assistência obstétrica a despeito da devida comprovação de seus benefí-
cios, nas quais os procedimentos citados acima foram classificados entre as
categorias de prejudiciais ou ineficientes162. A MBE e as diretrizes da OMS se

160 MARTIN, E. A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução. Rio de Janeiro: Garamond,
2006, p. 233.
161 Segundo a pesquisa “Nascer no Brasil”, anteriormente referida, apenas 5% das mulheres tiveram
partos sem nenhuma destas intervenções.
162 OMS. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Care in normal birth. A practical guide: maternal
and newborn health/safe motherhood unit family and reproductive health. Genebra: World Health
Organization, 1996.

76
Violência Obstétrica em Debate

constroem com base na noção de que o parto que propõem é cientificamente


superior do que outras práticas. Como Beck163 analisa, a ciência não se refere
mais puramente à dimensão do esclarecimento e desvelamento da verdade:
através de sua construção enquanto crítica produz a crítica de si mesma. Ob-
jetivando produzir verdades, somente às produz em caráter provisório, o que
tanto impulsiona o seu desenvolvimento quanto produz descrenças e insegu-
ranças em relação às suas proposições.
A questão do parto ocupa um lugar relevante na crítica ao modelo mé-
dico hegemônico e na construção de propostas que visam sua humanização.
O movimento pelo “Parto Sem Dor” foi iniciado na década de 1950, com as
ideias dos obstetras Grantly Dick-Read e Fernand Lamaze164, sendo seguido
na década de 1970 por teorias e métodos “mais revolucionários”, com os obs-
tetras Fredrik Leboyer, Michel Odent e a antropóloga Sheila Kitzinger165.
Em resposta à medicalização considerada excessiva surge a Medicina Ba-
seada em Evidências, que propõe que intervenções médicas somente sejam re-
alizadas quando haja evidências científicas de que trarão benefícios. Tal como
define Lopes166, em artigo publicado em revista da área médica:
MBE se traduz pela prática da medicina em um contexto em que a ex-
periência clínica é integrada com a capacidade de analisar criticamente
e aplicar de forma racional a informação científica de forma a melhorar
a qualidade da assistência médica. Na MBE, as dúvidas que surgem ao
resolver problemas de pacientes são os principais estímulos para que se
procure atualizar os conhecimentos.

163 BECK, U. Sociedade de risco. São Paulo: Editora 34, 2016.


164 TORNQUIST, C. S. Armadilhas da nova era: natureza e maternidade no ideário da Humanização.
Revista Estudos Feministas, 10(2), 483-492, 2002.
165 SALEM, T. O casal grávido: disposições e dilemas da parceria igualitária. Rio de Janeiro: FGV, 2007.
166 LOPES, A.A. Medicina Baseada em Evidências: a arte de aplicar o conhecimento científico na
prática clínica. In: Revista da Associação Médica Brasileira, 2000; 46(3), p. 285.

77
Violência Obstétrica em Debate

Nesse sentido, opera através do que Beck167 aponta como “a oportunida-


de de emancipação da práxis social em relação à ciência através da ciência”.
Entendendo, assim como Tornquist e Spinelli168, que:
[...] a obstetrícia é um campo marcado por disputas políticas, mas que
as vanguardas obstétricas não rompem com as linhas mestras que
compõem o campo da medicina moderna (no sentido bourdieusiano),
campo de saber central no dispositivo do biopoder, portanto ocupam o
lugar de importantes críticos do interior, instigantes para pensar tan-
to nas relações internas a biomedicina como nas conexões entre esse
campo, já que o campo científico é, inevitavelmente, atravessado de
relações de poder (Bourdieu, 1986) [...].

As linhas mestras desse campo seriam justamente a valorização da ciência,


passando por disputas entre o que seria ciência, elemento que os defensores da
humanização não podem abrir mão ao fazer frente aos estabelecidos do campo169.
Nos serviços públicos da cidade do Rio de Janeiro ligados à humanização
estas categorias são acionadas pela administração e pelas equipes de assistência
como forma de se poupar de receber críticas por algo que teria sido prometido e
não entregue: no Hospital Maternidade Maria Amélia de Hollanda a denomina-
ção mais utilizada é “parto normal”, a escolha pelo termo mais amplo permite que
se transite com menos contradições entre a evitação e o recurso a determinadas
intervenções170; já na Casa de Parto David Capistrano Filho a denominação ele-
gida é “parto natural”, apontando um compromisso da equipe com a evitação às
intervenções, porém abrindo pouca margem para a participação da mulher nas
decisões que as envolvem171. Assim, em ambas instituições se busca distanciar do
termo “parto humanizado”, categoria que pressupõe maior ingerência da mulher

167 BECK, U. Sociedade de risco. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 337.
168 TORNQUIST, C. S; SPINELLI, C. S. Um jeito soviético de dar à luz: o parto sem dor no sul da
América do Sul. In: História oral, v. 12, n. 1-2, p. 129-156, jan.-dez. 2009, p. 130.
169 ELIAS, N.; SCOTSON, J. L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir
de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
170 MENDONÇA, S. S. Parir na Maria Amélia: uma etnografia dos dilemas, possibilidades e disputas da
humanização em uma maternidade pública carioca. Programa de Pós-graduação em Antropologia,
Universidade Federal Fluminense, Tese de Doutorado, 2018.
171 HIRSCH, O. N. O parto “natural” e “humanizado”: um estudo comparativo entre mulheres de
camadas populares e médias no Rio de Janeiro. Programa de Doutorado em Ciências Sociais,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Tese de doutorado, 2014, 354 p.

78
Violência Obstétrica em Debate

sobre o processo, algo que essas unidades de saúde, regidas por seus protocolos,
não podem se comprometer plenamente.

2. Mulheres de camadas médias e a busca por singularidade


Como mencionado, o Movimento pela Humanização do Parto e do Nasci-
mento é composto, em sua maior parte, por mulheres de classe média, com ensino
superior e moradoras de grandes centros urbanos. A maioria delas possui plano
de saúde e, raramente, as mulheres pagam por atendimento médico, além do con-
vênio. Ocorre que os hospitais – tanto públicos quanto particulares – costumam
ser ordenados a partir de uma lógica totalizadora, nos quais o atendimento e os
partos têm os procedimentos padronizados, pensados para indivíduos genéricos,
a partir de uma cultura hegemônica sobre o que significa a saúde reprodutiva. As
ativistas criticam esta hegemonia da cesárea nos dias atuais e o modelo de assis-
tência obstétrica destas instituições e querem um atendimento que siga as diretri-
zes do movimento, considerando que cada mulher pode decidir individualmente
sobre as regras para o seu corpo, questionando o próprio caráter igualitário e ho-
mogeneizador dos procedimentos aos quais são submetidas.
Os direitos demandados não se esgotam por meio de procedimentos es-
tritamente formais, as mulheres não pleiteiam apenas a entrega das crianças
com vida e a sua própria vida garantida na atenção obstétrica, elas querem um
parto prazeroso, que elas se sintam plenas e possam ter voz para escolher os
caminhos da atuação sobre seus corpos e de seus filhos. Na teoria, os hospitais
brasileiros, que seguem o modelo daqueles de uma sociedade ocidental indivi-
dualista, deveriam ser ordenados pela lógica do individualismo do tipo igua-
litário172. Contudo, tratar de forma igualitária todos os indivíduos também
fere determinadas concepções de individualismo, por dar pouco espaço de
atuação individual sobre os procedimentos padrões da instituição, abrindo,
assim, uma arena de disputas. Coloca-se, assim, um estranho paradoxo, onde
a lógica individualista priva o indivíduo de sua individualidade.

172 DUMONT, L. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de


Janeiro: Rocco. 2000.

79
Violência Obstétrica em Debate

Salem173, ao pesquisar o fenômeno do “casal grávido”, se depara com o mes-


mo paradoxo, afirmando que apenas a teoria de Louis Dumont174 não dá conta da
questão e de que devemos pensar o individualismo em suas diversas modalidades.
A análise de Dumont, ao se ancorar nas dimensões políticas, econômicas, for-
mais e jurídicas, deixa de abarcar um aspecto fundamental do sujeito moderno:
sua dimensão interna e psíquica. Autores como Georg Simmel175 se dedicaram à
análise dessa dimensão, assim, às noções de liberdade e igualdade se somam às de
unicidade e singularidade, onde o mundo interior do sujeito passa a ser o locus de
sua “verdade”. Simmel utiliza os conceitos de individualismo quantitativo para se
referir à dimensão jurídica e qualitativo para a psicológica.
A noção de liberdade se mantém da passagem de um tipo para o outro, pri-
meiramente relacionada à liberdade civil e autodeterminação em relação a vonta-
des alheias, passa a ser vista como liberdade para sua autodeterminação interna e
aprimoramento. Assim, se torna possível que duas ideologias de individualismo
entrem em choque. No caso um individualismo igualitário, há uma padroniza-
ção nos direitos e formas de tratamentos dos sujeitos, já no de tipo qualitativo,
a oposição entre indivíduo e sociedade se amplia, uma vez que as normas desta
são lidas como camisas de força para o desenvolvimento subjetivo destes sujeitos.
Ressalte-se que, se nos protocolos dos hospitais as determinações são dispostas
para os indivíduos genéricos, na prática, tal aspiração por igualdade não é atingi-
da, existindo uma diferenciação de tratamento no atendimento concreto.
Por outro lado, o Movimento pela Humanização do Parto, ao defender
um modelo ideal de parir, também busca, atuando na construção de políti-
cas públicas, homogeneizar procedimentos que consideram benéficos, mes-
mo quando estes desagradam a mulher que quer uma cesárea, por exemplo.
Novamente o cenário se complexifica, uma vez que há uma diferença entre
as concepções do que seria um “bom parto” para essas mulheres de camadas
médias ligadas ao movimento e para as mulheres de camadas populares que
tem seus filhos pelo SUS, no qual políticas de saúde estão sendo formuladas
sob a influência dos pleitos das ativistas.

173 SALEM, T. O casal grávido: disposições e dilemas da parceria igualitária. Rio de Janeiro: FGV, 2007.
174 DUMONT, L. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de
Janeiro: Rocco. 2000.
175 SIMMEL, G. Freedom and the individual, in Levine, D. (org.), Georg Simmel on individuality and
social forms. Chicago: The University of Chicago Press, 1971.

80
Violência Obstétrica em Debate

3. Violência obstétrica: um termo,


diferentes percepções
É importante mencionar que, historicamente, as mulheres que dão à luz
no setor público com frequência manifestam insatisfação com o tratamento
dispensado por profissionais de saúde durante a assistência ao parto. Pesqui-
sas realizadas em maternidades públicas de diferentes estados do país apon-
tam nessa direção, como sugerem os estudos de McCallum e Reis176, Gomes et
al.177, Denyer178, Dalsgaard179, entre outros.
Em sua tese de doutorado, Aguiar180 chamou a atenção para as diferentes
formas através das quais a violência, que a autora denomina de “institucio-
nal”, é exercida nas maternidades públicas. De acordo com Aguiar, o termo
“violência institucional” faz alusão, de maneira ampla, aos abusos e maus-
-tratos cometidos pela equipe de assistência durante o parto, compreendendo
desde episódios de negligência, discriminação social e violência verbal (trata-
mento grosseiro, ameaças, reprimendas, gritos, humilhação intencional) até
situações de violência física e abuso sexual.
Em seu estudo, a autora destaca que com alguma frequência os profis-
sionais de saúde fazem declarações moralistas e preconceituosas sobre a vida
pessoal e o comportamento da paciente, com frases do tipo: “Está gritando
por quê? Na hora de fazer gostou!”, que explicitam estereótipos de classe e de
gênero. É como se a dor do parto devesse ser o preço a ser pago pelo prazer

176 McCALLUM, C.; REIS, A. P. Re-significando a dor e superando a solidão: experiências do parto
entre adolescentes de classes populares atendidas em uma maternidade pública de Salvador, Bahia,
Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 22(7): 1483-1491, 2006.
177 GOMES, A. et al. “Stepped on like a floor mat”: human experience of hospital violence in the
Northeast of Brazil. Revista Tempus: Actas de Saúde Coletiva, 04(4): 79-91, 2010.
178 DENYER, L. M. Call me “at-risk”: Maternal health in São Paulo’s public health clinics and the desire
for cesarean technology, 2008. Master of Science, Cambridge: Department of Urban Studies and
Planning, Massachussets Institute of Technology (MIT).
179 DALSGAARD, A. L. Vida e esperanças: esterilização feminina no Nordeste. São Paulo: Editora
UNESP, 2006.
180 AGUIAR, J. M. Violência institucional em maternidades públicas: hostilidade ao invés de
acolhimento como uma questão de gênero, 2010. Tese de Doutorado, São Paulo: Faculdade de
Medicina, Universidade de São Paulo.

81
Violência Obstétrica em Debate

sexual e pelo exercício da sexualidade, supostamente fora de controle, nas mu-


lheres de camadas populares.
Nesse contexto, não é de surpreender que a cesárea possa representar
para essas mulheres uma via para driblar os maus-tratos aos quais são sub-
metidas durante o parto “normal”, como sugere o trabalho de Denyer181, re-
alizado na periferia de São Paulo. Segundo a autora, “mulheres grávidas se
esforçam para serem classificadas como ‘de risco’ por médicos, enfermeiras e
técnicos da área da saúde durante o atendimento pré-natal, de modo a evitar
serem alvo de discriminação e abusos físicos frequentemente associados ao
parto vaginal”182 (tradução livre).
Segundo Diniz et al.183, é possível localizar registros da violência associa-
da ao parto em diversos momentos ao longo da história e diferentes termos
foram utilizados para denominá-la. Em anos recentes, contudo, a expressão
“violência obstétrica” ganhou grande projeção no Brasil e tem sido a mais
amplamente utilizada.
A visibilidade em torno da questão parece encontrar relação direta com a
disseminação do ideário da “humanização” em anos recentes no país. Nesse sen-
tido, é importante destacar que o termo “violência obstétrica” geralmente inclui
em sua definição aspectos diretamente relacionados às demandas do movimento,
como é possível apreender a partir da definição proposta por Tesser et al.184:
A expressão ‘violência obstétrica é utilizada para descrever e agrupar
diversas formas de violência (e danos) durante o cuidado obstétrico
profissional. Inclui maus tratos físicos, psicológicos, e verbais, assim
como procedimentos desnecessários e danosos – episiotomias, restri-
ção ao leito no pré-parto, clister, tricotomia e ocitocina (quase) de ro-
tina, ausência de acompanhante – dentre os quais destaca-se o excesso
de cesarianas, crescente no Brasil há décadas, apesar de algumas ini-
ciativas governamentais a respeito.

181 DENYER, L. M. Call me “at-risk”: Maternal health in São Paulo’s public health clinics and the desire
for cesarean technology, 2008. Master of Science, Cambridge: Department of Urban Studies and
Planning, Massachusetts Institute of Technology (MIT).
182 Idem: p. 02.
183 DINIZ, S. G. et al. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens,
definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Journal of
Human Growth and Development. 25 (3): 377-384, 2015.
184 TESSER, C. et al. Violência obstétrica e prevenção quaternária: o que é e o que fazer. Revista
Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. 10 (35): 01-12, 2015, p. 02.

82
Violência Obstétrica em Debate

Nota-se que, diferentemente da definição de “violência institucional”


apontada por Aguiar185, o termo “violência obstétrica” considera como atos vio-
lentos certos procedimentos obstétricos, como o uso de tecnologia considerada
inapropriada durante o parto ou a falta de consentimento da mulher em relação
à sua realização. Tomando como inspiração o trabalho de Simião186, que inves-
tigou como se deu o processo que denomina de invenção da “violência domés-
tica” no Timor-Leste, é possível argumentar que um ato só passa a ser visto e
sentido como violento a partir do momento que ele assim o é conceitualizado, o
que faz com que categorias como “violência doméstica” e “violência obstétrica”
funcionem como canalizadoras, contribuindo para que isso ocorra.
Em seu trabalho, Simião chama a atenção para o fato de que para haver uma
denúncia é preciso, antes, haver um caso a ser denunciado. Noutras palavras,
“é preciso que um gesto de agressão seja percebido como atitude intolerável por
parte de alguém, percebido como violação e como violência”187. No contexto do
Timor-Leste, argumenta Simião, essa percepção foi resultado de um processo de
construção de uma narrativa de gênero que veio a romper com a forma como a
corporalidade era vivida pela maioria da população. Assim, gestos e atitudes que
antes eram considerados naturais passaram a ser percebidos como atos violentos.
Segundo o autor, teve papel fundamental nesse processo a disseminação de va-
lores, projetos e recursos internacionais, efeito da presença de duas missões das
Nações Unidas após os conflitos que levaram à independência do país.
Traçando um paralelo com a “violência obstétrica”, é importante ressaltar
que a percepção de determinados atos como violentos – como, por exemplo, o
uso de ocitocina e a realização de episiotomia durante o trabalho de parto – im-
plica em um contato com o ideário da “humanização” e seus preceitos, fazendo
com que procedimentos que durante anos foram considerados “padrão” ou “de
rotina” passassem a ser percebidos a partir de outra chave de entendimento.
Entre as mulheres de camadas médias, a conceituação e ampla disseminação da

185 AGUIAR, J. M. Violência institucional em maternidades públicas: hostilidade ao invés de


acolhimento como uma questão de gênero, 2010. Tese de Doutorado, São Paulo: Faculdade de
Medicina, Universidade de São Paulo.
186 SIMIÃO, D. S. Representando corpo e violência: a invenção da “violência doméstica” em Timor-
Leste. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 21 (61), 133-145, 2006.
187 SIMIÃO, D. S. Representando corpo e violência: a invenção da “violência doméstica” em Timor-
Leste. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 21 (61), 133-145, 2006, p. 134.

83
Violência Obstétrica em Debate

categoria “violência obstétrica”, em especial no que diz respeito ao uso conside-


rado inapropriado e abusivo de tecnologia – dentre os quais destaca-se o recurso
massivo à cesariana –, levou muitas delas a avaliarem ter sido alvo desse tipo de
violência em seus partos, inclusive mudando a forma como encaravam experi-
ências prévias até então não problematizadas. Como destaca Pulhez188:
O que chama a atenção no seu discurso não é elas dizerem que leva-
ram tapas no rosto ou que foram amarradas à maca – essas são formas
de violência há tempos reconhecidas enquanto tais –, mas sim afirmar
que certos procedimentos realizados em seus corpos são atos violentos.
Afinal, se são procedimentos rotineiros e próprios do saber médico,
por que se haveria de vê-los como violentos? O que há na efetuação
desses procedimentos que lhes agrega o ingrediente de violência? [...] O
fato de terem sido submetidas a tais condutas contra a sua vontade faz
com se sintam violentadas, feridas, maltratadas. [...] Cria-se um ressen-
timento, um trauma, uma vontade de falar. Mas a vocalização dessas
dores choca, pois ainda não se entende esses atos como algo violento,
que possa traumatizar, que possa causar dor.

Protagonismo, autonomia, escolha e consentimento serão os elementos


acionados nessa construção que, como a autora desenvolve, emerge a partir
de uma configuração específica possibilitada pela Declaração Universal dos
Direitos Humanos, de 1948:
A partir dali crimes contra a humanidade passariam a ter consequências
políticas e jurídicas significativas, e a noção de “direitos” começaria a se
disseminar em tempo e espaço, atingindo o cotidiano dos cidadãos co-
muns. A memória dolorosa do Holocausto e a construção da noção de que
toda violência infligida sobre os seres humanos é constitutiva de trauma
e, portanto, passível de reparação (Fassin & Rechtman, 2011), impactaria
sobre o modo como movimentos sociais passariam, mais tarde, a reivindi-
car os seus direitos, como foi o caso de movimentos de cunho identitário
empreendidos a partir da década de 80 (Sarti, 2009; 2011).189

188 PULHEZ, M. M. “Parem a violência obstétrica”: a construção das noções de ‘violência’ e ‘vítima’ nas
experiências de parto. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, 12 (35): 544-564, 2013, p. 559.
189 Idem, p. 545

84
Violência Obstétrica em Debate

A partir dessas noções abordadas por Fassin e Rechtman190, isto é, do


surgimento e reconhecimento da categoria “trauma”, é possível pensar os usos
políticos da categoria vítima, que insere uma experiência individual causa-
dora de trauma em algo coletivo, que exige reconhecimento e reparação. A
vítima aqui não é aquela figura “coitada”, que sofre sua dor solitariamente:
o ato de falar sobre é reconhecido como terapia, as experiências individuais
são percebidas como compartilhadas, e a vítima se torna agente política na
denúncia e exigência por reparação.
Em artigo, Simas e Mendonça191 analisaram o caso Adelir192, enfocando
tanto as lógicas médicas quanto jurídicas envolvidas, para pensar também a
demanda pela tipificação da violência obstétrica enquanto crime. Utilizando
os autores aqui citados, foi acrescentado também o conceito de insulto moral,
desenvolvido por Cardoso de Oliveira193.
O insulto moral envolve sentimentos que são compartilhados social-
mente e a agressão atinge a dignidade da vítima, mesmo que não haja
a intencionalidade do agente. O reconhecimento da demanda não é
resolvido por uma simples obediência à norma legal, necessita-se, para
a não efetivação do insulto moral, que haja um apreço pela identidade
do sujeito e esse deve ser cultivado constantemente.
Para relacionar com o caso de Adelir e do movimento, de maneira ge-
ral, podemos pensar que o atendimento hospitalar pode ter seguido
as regras e procedimentos conforme a legislação em vigor, contudo,
desconsiderou que aquela mulher queria ver assegurada outra forma
de atendimento que também estaria baseada em um pleito legítimo.
Os procedimentos que serviriam e seriam vistos como benéficos por
outras grávidas, a maioria das mulheres, representam uma agressão
para este grupo de ativistas. A universalização dos direitos é concebida
para um indivíduo genérico, algo que desconsidera o ideal de saúde
reprodutiva destas mulheres. Elas buscam ser reconhecidas em suas
particularidades e suas demandas não se esgotariam facilmente nem

190 FASSIN, D.; RECHTMAN, R. L’empire du traumatisme. Paris: Flammarion, 2011.


191 SIMAS, R.; MENDONÇA, S. S. O caso Adelir e o movimento pela humanização do parto: reflexões
sobre violência, poder e direito. In: Vivência, v. 1, n48 (jul/dez. de 2016). Natal: UFRN, 2016.
192 Trata-se do caso, amplamente divulgado na imprensa, de uma gestante que, por determinação judicial,
foi conduzida ao hospital e submetida a uma cirurgia cesariana, mesmo contra a sua vontade.
193 CARDOSO DE OLIVEIRA, L. R. Direito legal e insulto moral: dilemas da cidadania no Brasil,
Quebec e EUA. Rio de Janeiro: Relume Dumará / Núcleo de Antropologia da Política, 2002.

85
Violência Obstétrica em Debate

tornando leis os seus pleitos, pois aglutinam sentimentos e pertenci-


mentos que não são passíveis de ser cristalizados em uma norma.194

Falar a respeito da construção da categoria violência obstétrica não signi-


fica dizer que ela não existe, não seja sentida. Significa simplesmente apontar
que ela emerge e é reconhecida como tal dentro de um conjunto de percepções
particulares a respeito da gestação e do parto. Como Pulhez195 destaca, ela
não exclui formas de violência mais compartilhadas, mas traz outras à mesa.
Entendê-la enquanto uma construção que necessita de um conjunto específico
de valores para ser articulada implica que ela não é homogênea.
Enquanto as ativistas militam que “as mulheres não querem esse parto
cheio de intervenções”, há de se apontar que sim, um número significativo
de mulheres às querem. Talvez não um parto “cheio” de intervenções, mas
com algumas. A partir da etnografia realizada em uma maternidade pública,
Mendonça196 elabora como este grupo não tem “o corpo que sabe parir” como
um valor – não passou por uma pedagogia de desconstrução e positivação do
parto natural, tal como ocorre com as ativistas – de modo que realizar alguma
intervenção não significa para elas a perda de algo.
No contexto da casa de parto, investigado por Hirsch197, as mulheres de
camadas populares vinculadas ao pré-natal tinham que assistir a uma série de
oficinas ou grupos educativos e alguns deles tematizavam justamente o parto
natural, procurando valorizar esse tipo de experiência, considerada “empode-
radora”, ao mesmo tempo em que buscavam ressignificar a dor. Ocorre que,
enquanto uma parcela aderia ao projeto, outra, mesmo sendo exposta a essa pe-
dagogia, demonstrava resistência à proposta e, deve-se acrescentar, também ao
fato de o atendimento prestado no local ser feito exclusivamente por enfermei-
ras obstetras, tendo em vista que na casa de parto não há médicos. Diante desse

194 Idem, p. 99.


195 PULHEZ, M. M. “Parem a violência obstétrica”: a construção das noções de ‘violência’ e ‘vítima’ nas
experiências de parto. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, 12 (35): 544-564, 2013, p. 559.
196 MENDONÇA, S. S. Parir na Maria Amélia: uma etnografia dos dilemas, possibilidades e disputas da
humanização em uma maternidade pública carioca. Programa de Pós-graduação em Antropologia,
Universidade Federal Fluminense, Tese de Doutorado, 2018.
197 HIRSCH, O. N. O parto “natural” e “humanizado”: um estudo comparativo entre mulheres de
camadas populares e médias no Rio de Janeiro. Programa de Doutorado em Ciências Sociais,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Tese de doutorado, 2014, 354 p.

86
Violência Obstétrica em Debate

cenário, não era incomum que, quando em trabalho de parto, tais mulheres se
encaminhassem ou fossem levadas por suas famílias198 a maternidades públicas
convencionais para dar à luz, onde tinham a possibilidade de serem assistidas
por médicos e de terem acesso a procedimentos médicos e farmacológicos.
Nesse sentido, enquanto há mulheres que se esforçam por escapar da cesá-
rea e de outros procedimentos médicos, os quais consideram formas de violência,
é possível observar situações em que ocorre inclusive o contrário: para algumas
mulheres a não realização de procedimentos reconhecidos como compondo o ato
obstétrico pode, no limite, ser até mesmo avaliado como negligência por parte da
equipe, que estaria sendo cruel ao as deixar sofrer as dores do trabalho de parto
sem oferecer meios de encurtá-lo. Assim procedimentos execrados pelas ativistas
são pedidos por essas mulheres enquanto “ajudas”. O descaso, tratamento rude,
insensibilidade aparecem como violências e maus tratos para ambos os grupos,
porém em relação às intervenções as concepções podem divergir. As percepções
das mulheres de camadas populares apontam que não há algo inerentemente vio-
lento em ações como empurrar barrigas e cortar vaginas e outros significados –
como “ajuda” – podem ser atribuídos a elas.
Durante a investigação conduzida por Hirsch199 na casa de parto foi possível
notar que o tempo de duração do trabalho de parto despontou como um aspecto
decisivo para a satisfação (ou não) das mulheres com a experiência vivida. Naque-
le contexto, o parto considerado “bom” era o parto rápido, pois significava que
a mulher ficou menos tempo exposta à dor. É como se o nascimento da criança,
após um curto trabalho de parto, compensasse a dor, mesmo nos casos em que
esta fosse considerada extremamente aguda e intensa. E, para uma parte das mu-
lheres que davam à luz ali, as intervenções – não ofertadas, mas por algumas al-
mejadas – apareciam de maneira positiva, uma vez que poderiam contribuir para
acelerar o trabalho de parto e parto, como sugere o relato de Adriana:
Eu só focava nele sair, eu não pensava em outra coisa, era só ele sair
[risos]. Eu falava [para as enfermeiras]: ‘Vocês não querem acabar logo
com isso não? Anda logo e me ajuda aqui!’ [risos] (Adriana)

198 Idem, para uma reflexão sobre a participação da família, em especial da mãe, nas decisões que
envolvem o parto no contexto das camadas populares.
199 Idem.

87
Violência Obstétrica em Debate

Como mencionado, “ajuda” é a forma como algumas mulheres de cama-


das populares costumam referir-se aos procedimentos de rotina realizados
nos hospitais e maternidades, como a administração de ocitocina sintética (a
que chamam de “soro”), episiotomia (por elas denominada de “corte”), mano-
bra de Kristeller, entre outros.
O relato de Marisa, transcrito abaixo, também aponta nessa direção. Du-
rante a entrevista, ela comemorou a rapidez do parto do primeiro filho, em
uma maternidade pública, mostrando-se satisfeita com as intervenções reali-
zadas naquela ocasião, pois, na sua avaliação, estas teriam contribuído para o
desfecho esperado:
Marisa: “[N]O [parto] dele: fiz a força. Ela [a enfermeira]: ‘Agora, mais
um pouquinho’. Eu: ‘Aaaam’. Aí, a mulher viu que eu estava com difi-
culdade, porque eu era marinheira de primeira viagem, veio aqui, em
cima da minha barriga, e pulou aqui. Uma enfermeira deste tamanho,
uma negona. Apertou, assim, e ele fez assim: vulp!”
Pesquisadora: Apertou em cima da barriga?
Marisa: “É. Só levei aquele ‘corte’ [episiotomia] mesmo. Ela costurou para
o lado, assim. Aí foi a maior alegria. Eu falei: ‘Pô, graças a Deus, não é?’”

Como é possível notar, longe de ser considerada uma forma de violência, as


intervenções, a depender do contexto, podem ser positivadas e até mesmo deseja-
das, na medida em que reduzem o tempo em que as mulheres precisam lidar com
a dor. Uma dor que, deve-se ressaltar, não foi propriamente escolhida. De fato,
a anestesia não é algo que esteja disponível a essas mulheres, não só na casa de
parto, mas também nas maternidades públicas de maneira geral. Segundo dados
da pesquisa “Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento”200, a
anestesia foi aplicada em apenas 27% das mulheres que deram à luz em materni-
dades e hospitais públicos. A taxa cai ainda mais, chegando a 21%, entre aquelas
com menor escolaridade, isto é, que possuem 7 anos ou menos de estudo.
Como observa Scavone201, a tecnologia para prevenção pré-natal (como
exames) e também aquela utilizada no parto (como a anestesia) se faz mais

200 LEAL, M. C.; GAMA, S. G. N. Sumário executivo temático da pesquisa. In: LEAL, M. C. (Org.).
Nascer no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2015.
201 SCAVONE, L. Dar a vida e cuidar da vida: feminismo e ciências sociais. São Paulo: Editora Unesp, 2004.

88
Violência Obstétrica em Debate

acessível para as mulheres que podem pagar por ela, o que leva a autora a afir-
mar que “a utilização destas técnicas é um privilégio, não um direito, ao mes-
mo tempo em que divulga um padrão de modernidade inacessível à maioria
da população. Daí decorre a supervalorização da tecnologia médica e maior
aceitação e justificação de seu uso”202.

Considerações finais
A ampliação na definição das formas de violência exercidas durante a as-
sistência ao parto, como proposta pelo termo “violência obstétrica”, ampliou
também o número de mulheres que passaram a se reconhecer como vítimas
dela. Isto é, passaram a se incluir também aquelas provenientes de camadas
médias, mais expostas à medicalização e para as quais a cesárea se tornou qua-
se que inescapável203, porém, em geral menos afetadas por violências físicas,
verbais, discriminações sociais e negligência – que atingem principalmente
mulheres de camadas populares204. Com efeito, “quanto maior a vulnerabili-
dade da mulher, mais rude e humilhante tende a ser o tratamento oferecido a
ela”, como sugerem Diniz et al.205, acrescentando que:
mulheres pobres, negras, adolescentes, sem pré-natal, sem acompanhante,
prostitutas, usuárias de drogas, vivendo em situação de rua ou encarcera-
mento estão mais sujeitas a negligência e omissão de socorro. A banalização
da violência contra as usuárias relaciona-se com estereótipos de gênero pre-
sentes na formação dos profissionais de saúde e na organização dos serviços.

A partir do exposto, é possível afirmar que um sentimento de insatis-


fação atingia mulheres provenientes de diferentes estratos sociais: seja por se

202 Idem, p. 95.


203 DINIZ, S. G. “Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento”.
Ciência & Saúde Coletiva, 10 (3): 627-637, 2005.
204 Como indicam os resultados da pesquisa  “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e
privado”, publicada pela Fundação Perseu Abramo em parceira com o Sesc e disponível em: https://
fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2017/05/pesquisaintegra_0.pdf. Último
acesso em 18/06/2018.
205 DINIZ, S. G. et al. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens,
definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Journal of
Human Growth and Development. 25 (3): 377-384, 2015, p. 04.

89
Violência Obstétrica em Debate

perceber alvo de negligência, discriminação social e julgamento moral duran-


te a assistência ao parto – algo que historicamente afeta mulheres de camadas
populares –, seja por se sentir agredida com a realização de procedimentos
médicos e farmacológicos. Como mencionado, estes passaram a ser percebi-
dos como inapropriados e abusivos em especial a partir da disseminação da
crítica à medicalização, que ganhou força com o ideário da humanização.
O termo “violência obstétrica”, nesse sentido, tornou-se um guarda-chuva
que, de maneira ampla, agrega as diferentes percepções acerca do que seja violên-
cia, propiciando uma aproximação entre mulheres de diferentes classes sociais. É
possível aventar que se hoje o debate acerca do tema ganhou tamanha projeção – o
que se pode apreender a partir de um sem número de pesquisas acadêmicas, gru-
pos de estudo, seminários, mostras artísticas, documentários, além de três Proje-
tos de Lei no Congresso, investigações parlamentares e ações no judiciário206 – é
justamente porque nele passaram a se incluir demandas sensíveis a mulheres de
camadas médias, que não encapavam essa pauta até começarem, em anos recen-
tes, a se perceberem como sendo também afetadas por ela.
Nesse sentido, é possível traçar um paralelo com o debate público em torno
da “feminização da pobreza” nos Estados Unidos, fazendo uma reflexão que per-
passa a questão da classe e da raça. De acordo com Angela Davis207, tal fenômeno
não foi reconhecido como uma questão legítima entre as mulheres até
começar a afetar as mulheres brancas antes abastadas. Contudo, as
mulheres negras têm estado dolorosamente familiarizadas com a reali-
dade da privação econômica desde os tempos da escravidão.

Se a crítica de Davis é pertinente, os benefícios que podem ser extraídos


dessa aproximação tampouco devem ser ignorados. Com efeito, na medida
em que as mulheres de camadas médias entraram no debate público sobre a
“violência obstétrica”, o potencial de mobilização política em torno do tema
ampliou-se sensivelmente, dando visibilidade e reconhecimento a formas de
violência há muito exercidas contra mulheres provenientes de camadas popu-
lares, cujas vozes não eram ouvidas.

206 Para mais detalhes sobre essa produção, ver: DINIZ, S. G. et al. Violência obstétrica como questão
para a saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e
propostas para sua prevenção. Journal of Human Growth and Development. 25 (3): 377-384, 2015.
207 DAVIS, A. Mulheres, cultura e política. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 30.

90
Violência obstétrica nos estudos
brasileiros sobre assistência ao
parto: definições em construção

Denise Yoshie Niy


Bruna Dias Alonso
Bruna Silveira Moreno
Carmen Simone Grilo Diniz

Introdução
Atualmente, no Brasil, praticamente todas as crianças nascem em hospi-
tais ou outros estabelecimentos de saúde e em 66,4% dos casos as mães realizam
pelo menos sete consultas pré-natais.208 Todavia, a melhoria no acesso aos servi-
ços de saúde e o atendimento por profissional treinado não têm se refletido em
melhores indicadores de saúde. Ao contrário, a mortalidade materna permane-
ce como importante problema: segundo os Indicadores e Dados Básicos para
a Saúde no Brasil (IDB), a taxa elevou-se de 45,8 óbitos maternos por 100 mil
nascidos vivos, em 2000, para 68,2 por 100 mil, em 2010.209 Dessa maneira, o
país não alcançou a meta de reduzir em três quartos a razão de morte materna,
conforme proposto pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.210
Fatores relacionados ao perfil da população (taxa de fecundidade, enve-
lhecimento, doenças crônico-degenerativas, entre outros) e a excessiva me-
dicalização conformam um cenário em que se exige ir além do combate à

208 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Datasus. Disponível em: <http://datasus.saude.gov.br>. Acesso em: 10


jul. 2017.
209 RIPSA. Indicadores e Dados Básicos para a Saúde no Brasil. Disponível em: <http://tabnet.datasus.
gov.br/cgi/idb2012/matriz.htm>. Acesso em: 1 out. 2017.
210 SOUZA, J. P. A mortalidade materna e os novos objetivos de desenvolvimento sustentável (2016-
2030). Rev. Bras. Ginecol. Obstet., v. 37, n. 12, p. 549–551, 2015. Disponível em: <http://www.scielo.
br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-72032015001200549&lng=pt&nrm=iso&tlng=en>.

91
Violência Obstétrica em Debate

mortalidade em si,211 o que suscita debates sobre a segurança e a qualidade


da assistência prestada às mulheres, em especial em contextos onde predo-
minam as causas diretas de morte materna, como no Brasil.212,213 Em termos
de condutas adotadas na atenção ao trabalho de parto e parto, as boas práti-
cas são usufruídas por uma parcela reduzida de mulheres no país, ao mesmo
tempo em que abundam as intervenções desnecessárias ou potencialmente
danosas,214 de modo que a cesariana, muitas vezes, corresponde a uma opção
para minimizar o sofrimento do parto vaginal.215
A ideia de que o parto é necessariamente uma experiência de sofrimento
para a mulher está tão disseminada em nossa sociedade que, para alguns profis-
sionais de saúde, quando ela chora ou expressa dor e insatisfação, “esse sofrimen-
to deve ser interpretado como prazeroso”, como o dia mais feliz da sua vida.216
Todavia, há muitas décadas as mulheres tentam romper com essa ideia, denun-
ciando as práticas assistenciais como formas de tortura, crueldade, maus-tratos e
violações aos direitos humanos.217 Rich, por exemplo, há décadas já narrava o ato
de dar à luz como um evento de indignidade: “parimos nos hospitais, rodeadas

211 SOUZA, J. P. A mortalidade materna e os novos objetivos de desenvolvimento sustentável (2016-


2030). Rev. Bras. Ginecol. Obstet., v. 37, n. 12, p. 549–551, 2015. Disponível em: <http://www.scielo.
br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-72032015001200549&lng=pt&nrm=iso&tlng=en>
212 SOUZA, J. P. Mortalidade materna e desenvolvimento: a transição obstétrica no Brasil. Rev. Bras.
Ginecol. Obstet., v. 35, n. 2, p. 533–536, 2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbgo/
v35n12/01.pdf>.
213 SOUZA, J.; TUNÇALP, Ö.; VOGEL, J.; BOHREN, M.; WIDMER, M.; OLADAPO, O.; SAY, L.;
GÜLMEZOGLU, A.; TEMMERMAN, M. Obstetric transition: the pathway towards ending
preventable maternal deaths. BJOG: An International Journal of Obstetrics & Gynaecology, v. 121, p.
1–4, 2014. Disponível em: <http://doi.wiley.com/10.1111/1471-0528.12735>.
214 LEAL, M. do C.; PEREIRA, A. P. E.; DOMINGUES, R. M. S. M.; FILHA, M. M. T.; DIAS, M. A.
B.; NAKAMURA-PEREIRA, M.; BASTOS, M. H.; GAMA, S. G. N. da. Intervenções obstétricas
durante o trabalho de parto e parto em mulheres brasileiras de risco habitual. Cad. Saúde Pública,
v. 30, Sup., p. S17–S32, 2014.
215 LEAL, M. D. C.; GAMA, S. G. N. da. Nascer no Brasil. Cad. Saúde Pública, v. 30, Sup., p. S5–S7, 2014.
216 LINO, H. da C. O bem-estar no parto sob o ponto de vista das pacientes e profissionais na assistência
obstétrica. 2010. Dissertação (Mestrado em Ciências)–Faculdade de Saúde Pública da USP, São
Paulo, 2010. p. 39.
217 DINIZ, S. G.; SALGADO, H. de O.; ANDREZZO, H. F. de A.; DE CARVALHO, P. G. C.;
CARVALHO, P. C. A.; AGUIAR, C. de A.; NIY, D. Y. Violência obstétrica como questão para a
saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas
para sua prevenção. Journal of Human Growth and Development, v. 25, n. 3, p. 377–382, 2015a.

92
Violência Obstétrica em Debate

de especialistas homens, negligentemente drogadas e imobilizadas contra nossa


vontade, tendo nossos bebês arrancados de nós no momento de nascer”.218
No Brasil, estima-se que 25% das mulheres sofrem algum tipo de vio-
lência oriunda da assistência ao parto.219 No entanto, o uso do termo “violên-
cia” tem gerado polêmicas no país, sobretudo entre os profissionais médicos,
que propõem ainda a categoria “violência contra o obstetra”.220 Dessa forma,
recorre-se a outras denominações, como: desumanização, abuso, desrespeito,
maus-tratos, entre outros,221 como maneira de possibilitar o diálogo com os
diferentes atores envolvidos na assistência à gestação e ao parto.
O termo violência obstétrica ganhou relevância em especial na América La-
tina, a partir das iniciativas de Argentina e Venezuela, onde é considerada uma
forma de violência contra a mulher. Nesses países, a violência obstétrica é caracte-
rizada pela apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres pelos
profissionais de saúde, através do tratamento desumanizado, do abuso da medi-
calização e da patologização dos processos naturais, causando a perda da autono-
mia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sua sexualidade.222,223
Diante da inexistência de um consenso sobre a definição de violência
obstétrica e considerando a relevância do tema, esta revisão224 analisa os estu-
dos sobre violência obstétrica na assistência ao pré-natal, ao parto e ao puer-
pério no Brasil, os conceitos associados a esse fenômeno e os indicadores pro-

218 RICH, A. On Lies, Secrets and Silence. Selected Prose 1966-1978. New York: WW Norton, 1979. p. 314.
219 HOTIMSKY, S. N.; AGUIAR, J. M. de; VENTURI, G. A violência institucional no parto em
maternidades brasileiras. In: Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado - Uma
década de mudanças da opinião pública. São Paulo: Perseu Abramo/Sesc-SP, 2013. p. 217–229.
220 SILVEIRA, M. M. da. Violência contra o obstetra. Revista da Sociedade Goiana de Ginecologia e
Obstetrícia, v. 10, n. 66, p. 3, 2017.
221 DINIZ, S. G.; SALGADO, H. O.; ANDREZZO, H. F. A.; DE CARVALHO, P. G. C.; CARVALHO, P.
C. A.; AGUIAR, C. A.; NIY, D. Y. Abuse and disrespect in childbirth care as a public health issue in
Brazil: Origins, definitions, impacts on maternal health, and proposals for its prevention. Journal of
Human Growth and Development, v. 25, n. 3, 2015b.
222 ARGENTINA. Ley de Parto Humanizado No 25.929. 2004, p. 1–2.
223 ASAMBLEA NACIONAL DE LA REPÚBLICA BOLIVARIANA DE VENEZUELA. Ley orgánica
sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violencia. 2014, p. 46.
224 Esta revisão integra um projeto de pesquisa sobre a incorporação de inovações na assistência ao
parto e ao recém-nascido financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp),
processo número 2015/50498-0, e também é parte dos estudos de doutorado da autora principal.

93
Violência Obstétrica em Debate

postos para sua mensuração, a fim contribuir para o desenvolvimento de uma


definição de violência obstétrica que seja significativa à realidade nacional.225

2. Métodos
Nesta revisão, os termos de busca foram “violência obstétrica” e “Brasil”,
em português, inglês e espanhol, nas bases de dados PubMed, JBI Library,
Scielo e Google Scholar. As buscas foram realizadas em junho de 2017, sem
limitação temporal.
Formulou-se uma planilha eletrônica com dados sobre os estudos identi-
ficados, incluindo título do estudo, autores, resumo e base de dados em que foi
recuperado. Essa mesma planilha foi usada para a avaliação do título e resu-
mo por duas revisoras, que trabalharam independentemente e selecionaram
os estudos que potencialmente atendiam aos critérios de inclusão: relacionar-
-se à experiência com violência obstétrica na perspectiva das mulheres, dos
gestores ou dos profissionais de saúde na assistência ao pré-natal, ao parto, ao
puerpério e ao abortamento no Brasil. Foram considerados estudos qualitati-
vos, quantitativos e de métodos mistos, sem restrições de tempo nem quanto
à metodologia usada para a análise de dados.
O texto completo desses estudos foi recuperado para avaliação e para
decisão sobre sua inclusão ou não na revisão. As divergências foram solucio-
nadas por uma terceira revisora.
Foram excluídos os estudos que:
• não se referiam ao Brasil;
• não definiam a violência obstétrica;
• não discutiam a assistência ao pré-natal, ao parto, ao puerpério ou ao
abortamento;
• não tinham texto completo disponível em inglês, português ou espanhol.

225 O protocolo da revisão foi registrado na base de dados do Centre for Reviews and Dissemination
(CRD), da Universidade de York (Reino Unido), sob o número CRD42017068223, em junho
de 2017. Nesse mesmo mês não se localizaram nessa base de dados registros de outras revisões
concluídas sobre o mesmo tema, apenas o protocolo de uma revisão semelhante em andamento,
mas compreendendo o território da América Latina e Caribe e com foco ampliado para abuso,
desrespeito e maus-tratos.

94
Violência Obstétrica em Debate

Para os estudos incluídos, os dados foram extraídos com uso de um


formulário eletrônico padronizado elaborado para esse fim. As informações
extraídas incluíram: ano de publicação, local do estudo, população estuda-
da, metodologia de produção e de análise dos dados, conceito de violência
obstétrica, experiências das mulheres ou dos profissionais de saúde e gestores
com violência obstétrica e indicadores e variáveis utilizados para mensurar
violência obstétrica, quando o caso.
Os estudos incluídos foram lidos para identificar a definição de violên-
cia obstétrica operacionalizada, assim como autores ou textos referenciados
como fontes dessa informação. Essas definições foram reunidas em quadros
para sua leitura exaustiva e identificação de termos relevantes e aspectos em
comum, além de textos que tenham influenciado na sua construção, mesmo
que de forma não declarada.

3. Resultados e discussão
Foram identificados 930 estudos a partir das buscas nas bases de dados
e 223 foram excluídos por estarem duplicados. Assim, consideraram-se 707
estudos e, a partir da análise do seu título e resumo, 147 foram selecionados
para a leitura integral. Excluíram-se 105 deles, porque não se referiam ao tema
estudado, não tinham o Brasil como local de estudo ou seu texto completo
não foi localizado (Figura 1). Entre os estudos deste último grupo, 17 eram
trabalhos apresentados em congressos, apenas com resumo disponível.

95
Violência Obstétrica em Debate

Figura 1: Diagrama de estudos identificados, excluídos e incluídos.

96
Violência Obstétrica em Debate

Quadro 1: Características dos estudos incluídos.

Estudo Local do estudo População estudada Observações sobre métodos


12 mulheres que Entrevista face a face com
AGUIAR, 20161 Brasil vivenciaram o near- questões norteadoras
miss materno e história oral
33 mulheres, mães de Entrevista face a face,
AMORIM, 20152 Goiânia (GO) crianças usuárias de análise de discurso segundo
uma creche pública Foucault e Fairclough

Dados obtidos do prontuário


e de entrevista com a mulher;
análise dos fatores associados
Amostra de 603 puérperas à violência obstétrica por meio
ANDRADE
Recife (PE) de um hospital-escola de regressão multivariada
et al., 20163
de alta complexidade de Poisson, estimando-se as
razões de prevalência brutas
e ajustadas e os respectivos
intervalos de confiança de 95%

Quatro puérperas
que residiam na área Entrevista semiestruturada
ANDRADE;
Guarapuava (PR) de abrangência do e análise de conteúdo
AGGIO, 2014 4
Centro Integrado segundo Bardin
de Atendimento

103.905 mulheres
que tiveram bebê e Análise descritiva de dados
ARRUDA, 20155 Brasil aceitaram responder secundários disponibilizados
pesquisa telefônica da pela Ouvidoria Geral do SUS
Ouvidoria Geral do SUS

Participantes de dois Etnografia e análise do


grupos de gestantes documentário e de discussões
CARNEIRO, Redes sociais; e puérperas e do sobre parto e violência
20156 documentário documentário “Violência obstétrica recentemente
obstétrica - a voz divulgadas em grupos
das brasileiras” abertos das redes sociais

Mulheres que
CARVALHO, Comunidade postaram seus relatos
Pesquisa etnográfica
20157 do Facebook na comunidade
virtual estudada

COSTA 38 puérperas que Entrevista com um roteiro


MEDEIROS Patos (PB) vivenciaram o semiestruturado; análise
et al., 20168 parto normal descritiva dos dados

97
Violência Obstétrica em Debate

Estudo Local do estudo População estudada Observações sobre métodos

Gestantes participantes Análise de rodas de conversa


Campina das atividades de para discussão de temas ligados
COSTA, 2014 9
Grande (PB) educação pré-natal à gestação e ao parto e para
da unidade confecção de artesanato

3.765 puérperas de
parto transpelviano Questionário respondido pela
CUNHA
Fortaleza e que se encontravam participante da pesquisa e
RODRIGUES
Cascavel (CE) nas unidades de complementado por dados do
et al., 201710
alojamento conjunto das prontuário; análise estatística
referidas instituições

DAMASCENO,
Ceilândia (DF) 50 puérperas Entrevista semiestruturada
201611

Observação participante,
DANELUCI, Município não Gestantes e puérperas
entrevistas individuais
201612 declarado atendidas pela instituição
e grupos focais

Literatura acadêmica,
produções dos
DINIZ et al., movimentos sociais Revisão crítico-narrativa
Revisão
2015a13 e documentos sobre violência obstétrica
institucionais, do
Brasil e do exterior

Audiências públicas
realizadas em São Paulo e
Análise do vídeo dos
DINIZ et palestrantes de seminário
São Paulo (SP) relatos das mulheres e os
al., 201614 sobre violência contra
discursos dos palestrantes
a mulher no ensino das
profissões de saúde

FABBRO;
Nove puérperas que Entrevistas; metodologia
MACHADO, São Carlos (SP)
deram à luz no SUS comunicativa crítica
201715

13 mulheres da etnia
Tupinambá que
Entrevistas semiestruturadas
FAREIRA, 201616 Ilhéus (BA) tinham pelo menos um
e análise crítica
filho e uma midwife
de Serra Negra

FUJITA; Maternidade Enfermeiras obstetras


NASCIMENTO; pública no Sul recém-inseridas na Observação participante
SHIMO, 201517 do Brasil maternidade

98
Violência Obstétrica em Debate

Estudo Local do estudo População estudada Observações sobre métodos

Entrevistas guiadas por um


GUIMARÃES,
TO 56 puérperas roteiro e categorização segundo
201418
percepção das mulheres

Estudo transversal de base


Mulheres atendidas em populacional realizado
maternidades públicas e com dados secundários
LIMA, 201619 Recife (PE)
privadas conveniadas ao provenientes da pesquisa da
SUS em todo o Brasil Rede Cegonha realizada pela
Ouvidoria Geral do SUS

Entrevista a partir das


11 puérperas com idade questões: “Fale sobre o
entre 12 e 19 anos, atendimento que você recebeu
LUZ; ASSIS; primíparas de parto dos profissionais de saúde
REZENDE, Jataí (GO) durante o seu pré-natal” e “Fale
201520 vaginal de feto único a sobre a assistência que você
termo e que estavam no recebeu durante o trabalho
pós-parto imediato de parto”, com análise de
conteúdo segundo Minayo

Análise qualitativa de 131


textos publicados no blog,
LUZ; GICO, Blog “A cientista Blog “A cientista com elaboração de fichas
201521 que virou mãe” que virou mãe” catalográficas individuais,
a partir de categorização
proposta por Davis-Floyd

Mulheres participantes
do Ato Público Pesquisa encarnada e o
‘partir de si’ como propostas
MANFRINI; Florianópolis ‘Somos Todxs Adelir’, feministas que pressupõem
CIMA, 201622 (SC) contra a violência que o corpo é o lugar principal
obstétrica, em de se fazer pesquisa
Florianópolis em 2014

Entrevista semiestruturada;
14 puérperas assistidas para a análise, consideraram-
na maternidade do se unidades temáticas,
MOURA, 201423 Niterói (RJ)
Hospital Estadual agrupadas em categorias,
Azevedo Lima para os tipos mais relatados
de violência obstétrica

99
Violência Obstétrica em Debate

Estudo Local do estudo População estudada Observações sobre métodos

Entrevistas antes do parto


(entre a 36ª e a 39ª semana
de gestação)e após o mesmo
NOGUEIRA, Oito casais residentes (cerca de 45 dias após o
Uberlândia (MG)
201624 em Uberlândia (MG) parto); a análise dos dados foi
qualitativa, influenciada pela
perspectiva construcionista
social de Rasera e Japur e Spink

20 mulheres que
buscaram atendimento na Grupos focais e entrevistas
OLIVEIRA
Teresina (PI) complementares; análise
et al., 201725 referida maternidade em de conteúdo temático
processo parturitivo

Documentário Transcrição de alguns trechos


PULHEZ, “Violência Obstétrica –
Documentário do documentário e análise das
2013a 26
A voz das brasileiras” estratégias discursivas em jogo

Participantes da “Marcha
do Parto em Casa”,
PULHEZ, ocorrida em Campinas
Campinas (SP) Observação e entrevista
2013b27 em 2012 e o vídeo
“Violência obstétrica - a
voz das brasileiras”

Blog Mamíferas
PULHEZ, 201528 Blog Mamíferas Etnografia do blog Mamíferas
e suas leitoras

Relatos de parto e cartas


REGIS, 201629 Brasília (DF) Relatos de parto e cartas à/ao obstetra; análise
de discurso crítica

Carta cedida voluntariamente


Carta de uma mulher à
REGIS; pela autora à pesquisadora;
Carta a uma obstetra que a atendeu
RESENDE, análise discursiva crítica
obstetra no nascimento de
201530 segundo Fairclough e
seu primeiro filho
Magalhães, Resende e Ramalho

100
Violência Obstétrica em Debate

Estudo Local do estudo População estudada Observações sobre métodos

Formulário sobre a
caracterização socioeconômica,
obstétrica, intervenções
RENNÓ, 201631 Itajubá (MG) 25 puérperas
ocorridas no parto,
entrevista; análise de
conteúdo segundo Bardin

56 puérperas que Entrevista semiestruturada


RODRIGUES, tiveram parto vaginal individual; análise estatística
Niterói (RJ)
201432 nas maternidades e análise de conteúdo na
públicas estudadas modalidade temática

Entrevistas via Internet com


30 mulheres que
questionário semiestruturado;
SENA, 2016 33
Brasil responderam entrevista
análise de conteúdo
via Internet
temática segundo Bardin

Usuárias de internet
que se voluntariaram a
Coleta via formulário
responder ao Teste da
SENA; TESSER, Brasil; eletrônico autopreenchido,
Violência Obstétrica
201734 documentário no caso do teste, e
e documentário
videodocumentário
“Violência obstétrica – a
voz das brasileiras”

“Tempestade de ideias” para


exposição de opiniões, reflexões
SILVA et e experiências vivenciadas
São Paulo (SP) 5 enfermeiras obstetras
al., 201435 por cada uma a respeito da
temática em discussão; análise
de conteúdo temático

Trabalhadores dos
setores de pré-parto e
Relato de experiência de estágio
SILVA et al., Município centro obstétrico de um
curricular de estudantes de
2015b36 baiano (BA) hospital público estadual
enfermagem de 10º semestre
do sudoeste baiano e
mulheres aí atendidas

Entrevista semiestruturada;
Oito mulheres que
SILVA et análise por meio de
João Pessoa (PB) deram à luz na
al., 201637 identificação de temas
maternidade de estudo
segundo Fiorin

101
Violência Obstétrica em Debate

Estudo Local do estudo População estudada Observações sobre métodos

Questionário disponibilizado
por meio eletrônico; análise
102 estudantes da
SILVA, 201738 Brasília (DF) estatística; questões abertas
área de saúde
foram analisadas por meio
da análise de conteúdo

11 mulheres com
SIQUEIRA, Campina Entrevista com roteiro
idades de 18 a 28 anos,
201639 Grande (PB) semiestruturado
primigestas e primíparas

Instrumento para coleta


Participantes de um
aplicado à mãe; análise
estudo transversal
SOUZA, 2014 40 Brasília (DF) estatística descritiva e a análise
denominado “Chamada
bivariada, por meio do teste
Neonatal”, de 2011, no DF
Qui-quadrado de Pearson

Literatura científica,
Revisão crítico-narrativa sobre
TESSER et literatura cinza
Brasil violência obstétrica e propostas
al., 201541 e documentos de
para prevenção quaternária
domínio público

Observação participante e
Rio de Janeiro Parturientes atendidas
VALLE, 201542 entrevistas com médicos,
(RJ) no serviço
residentes e internos

Notas de rodapé Quadro 1

1 AGUIAR, C. de A. “Por um fio”: memórias e representações de mulheres que


vivenciaram o near-miss materno. 2016. Teste (Doutorado em Ciências)–Fa-
culdade de Saúde Pública da USP, 2016.
2 AMORIM, M. da C. Experiências de parto e violações aos direitos humanos:
um estudo sobre relatos de violência na assistência obstétrica. 2015. Disserta-
ção (Mestrado em Direitos Humanos)–Universidade Federal de Goiás, 2015.
Disponível em: <http://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/4943>.
3 ANDRADE, P. de O. N.; SILVA, J. Q. P. da; DINIZ, C. M. M.; CAMINHA,
M. de F. C. Fatores associados à violência obstétrica na assistência ao parto
vaginal em uma maternidade de alta complexidade em Recife, Pernambuco.
Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, v. 16, n. 1, p. 29–37, 2016. Dis-

102
Violência Obstétrica em Debate

ponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-


-38292016000100029&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>.
4 ANDRADE, B. P.; AGGIO, C. de M. Violência obstétrica: a dor que cala. In:
SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS, 3., 2014. Anais..., p. 1–7, 2014.
5 ARRUDA, K. G. M. Violência contra a mulher no parto: Um olhar sobre a
pesquisa da Rede Cegonha do SUS. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva)–
Universidade de Brasília, Brasília, 2015.
6 CARNEIRO, R. “Para chegar ao Bojador, é preciso ir além da dor”: sofrimento
no parto e suas potencialidades. Sexualidad, Salud y Sociedad (Rio de Janeiro), n.
20, p. 91–112, 2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S1984-64872015000200091&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>.
7 CARVALHO, C. S. de. Violência obstétrica: etnografia de uma comunidade
no Facebook. In: Reunião Equatorial de Antropologia, Reunião de Antropo-
logia do Norte e Nordeste, 2015. Anais..., v. 1, n. 1, 2015.
8 COSTA MEDEIROS, N.; MARTINS, E. N. X.; CAMBOIM, F. E. F.; PAL-
MEIRA, M. N. F. A. L. Violência obstétrica: percepções acerca do parto nor-
mal. Temas em saúde, v. 16, n. 3, p. 503–528, 2016.
9 COSTA, E. M. F. Humanização do pré-natal através da vivência em grupos de ges-
tantes: um relato de experiência. 2014. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação
em Enfermagem)– Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da UEPB, 2014.
10 CUNHA RODRIGUES, F. A.; GAMA LIRA, S. V.; MAGALHÃES, P. H.;
FREITAS, A. L. e. V.; SILVA MITROS, V. M. da; ALMEIDA, P. C. Violência
obstétrica no processo de parturição em maternidades vinculadas à Rede Ce-
gonha. Reprodução e Climaterio, v. 32, n. 2, p. 78–84, 2017. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1016/j.recli.2016.12.001>.
11 DAMASCENO, T. de M. Um olhar sobre o nascer: vozes e vivências de parto
e puerpério no Hospital Regional de Ceilândia. 2016. Trabalho de Conclusão de
Curso (Graduação em Enfermagem)–Faculdade de Ceilândia da UNB, 2016.
12 DANELUCI, R. de C. Instituições públicas de saúde e mulheres gestantes:
(im)possibilidades de escolhas? 2016. Tese (Doutorado em Psicologia)–Insti-
tuto de Psicologia da USP, 2016.

103
Violência Obstétrica em Debate

13 DINIZ, S. G.; SALGADO, H. de O.; ANDREZZO, H. F. de A.; DE CARVA-


LHO, P. G. C.; CARVALHO, P. C. A.; AGUIAR, C. de A.; NIY, D. Y. Violência
obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições,
tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção.
Journal of Human Growth and Development, v. 25, n. 3, p. 377–382, 2015a.
14 DINIZ, C. S. G.; NIY, D. Y.; ANDREZZO, H. F. de A.; CARVALHO, P.
C. A.; SALGADO, H. de O. A vagina-escola: seminário interdisciplinar so-
bre violência contra a mulher no ensino das profissões de saúde. Interface
- Comunicação, Saúde, Educação, v. 20, n. 56, p. 253–259, mar. 2016. Dispo-
nível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
-32832016000100253&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 4 abr. 2016.
15 FABBRO, M. R. C.; MACHADO, G. P. dos R. A Violência Obstétrica se-
gundo a percepção das mulheres que a vivenciaram. In: Atas CIAIQ2017, Sa-
lamanca. Anais... Salamanca: CIAIQ, 2017.
16 FAREIRA, C. Obstetric Violence within the Brazilian Healthcare System:
A Critical Analysis of the Childbirth Narratives of Tupinambá Indigenous
Women from the Olivença, Ilhéus Community. 2016. Independent Study Pro-
ject (ISP) Collection. Paper 2299.
17 FUJITA, J. A. L. da M.; NASCIMENTO, P. de L.; SHIMO, A. K. K. Coping
the Obstetrical Violence and Its Repercussions on the Practice of Nurses Obs-
tetricians. Journal of Nursing UFPE / Revista de Enfermagem UFPE, v. 9, n.
12, p. 1360–1369, 2015. Disponível em: <http://search.ebscohost.com/login.as
px?direct=true&db=jlh&AN=111749870&site=ehost-live>.
18 GUIMARÃES, L. B. E. Violência Institucional em maternidades públicas
do Estado do Tocantins. 2014. Dissertação (Mestrado em Ciências Ambientais
e Saúde)–PUC Goiás, 2014.
19 LIMA, K. D. de. Raça e violência obstétrica no Brasil. 2016. Monografia
(Especialização em Saúde Coletiva)–Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães
da Fundação Oswaldo Cruz, 2016.
20 LUZ, N. F.; ASSIS, T. R.; REZENDE, F. R. Puérperas adolescentes: percepções
relacionadas ao pré-natal e ao parto. Abcs Health Sciences, v. 40, n. 2, p. 80–84, 2015.

104
Violência Obstétrica em Debate

21 LUZ, L. H.; GICO, V. de V. Violência obstétrica: ativismo nas redes sociais.


Cad. Ter. Ocup. UFSCar, v. 23, n. 3, p. 475–484, 2015. Disponível em: <http://
dx.doi.org/10.4322/0104-4931.ctoAO0622>.
22 MANFRINI, D. B.; CIMA, R. Pesquisa encarnada e “partir de si”: a arti-
culação teóricometodológica na narrativa de mulheres sobre o Ato Público
“Somos Todxs Adelir” (Florianópolis, 2014). Revista de Historia Regional, v.
21, n. 2, p. 459–484, 2016.
23 MOURA, G. do N. A percepção das mulheres puérperas acerca da violên-
cia da assistência obstétrica. 2014. Trabalho de Conclusão de Curso (Gradua-
ção em Enfermagem)–Escola de Enfermagem da UFF, 2014.
24 NOGUEIRA, N. S. A. Sentidos da participação de pais e mães no nasci-
mento de seus filhos. 2016. Dissertação (Mestrado em Psicologia Aplicada)–
Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, 2016.
25 OLIVEIRA, T. R. de; COSTA, R. E. O. L.; MONTE, N. L.; VERAS, J. M. de M.
F.; SÁ, M. Í. M. da R. Percepção de mulheres sobre violência obstétrica. Rev en-
ferm UFPE on line, v. 11, n. 1, p. 40–6, 2017. Disponível em: <http://www.revista.
ufpe.br/revistaenfermagem/index.php/revista/article/view/10539/pdf_2097>.
26 PULHEZ, M. M. A “Violência Obstétrica” e as diputas em torno dos direi-
tos sexuais e reprodutivos. In: Fazendo Gênero 10 - desafios Atuais do Femi-
nismo, Florianópolis. Anais... Florianópolis: 2013a.
27 PULHEZ, M. M. “Parem a violência obstétrica!” Revista Brasileira de So-
ciologia da Emoção, v. 12, n. 1, p. 522–537, 2013b. Disponível em: <http://
www.cchla.ufpb.br/rbse/RBSEv12n35Ago2013completo.pdf#page=69>.
28 PULHEZ, M. M. Mulheres mamíferas: práticas da maternidade ativa. 2015.
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)–Instituto de Filosofia e Ciên-
cias Humanas da Unicamp, 2015.
29 REGIS, J. F. da S. Violência e resistência: representação discursiva da assis-
tência obstétrica no Brasil em relatos de parto e cartas à / ao obstetra. 2016.
Tese (Doutorado em Linguística)–Instituto de Letras da UNB, 2016.
30 REGIS, J. F. da S.; RESENDE, V. de M. “Daí você nasceu minha filha”: análise
discursiva crítica de uma carta ao obstetra. D.E.L.T.a., v. 31–2, p. 573–602, 2015.

105
Violência Obstétrica em Debate

31 RENNÓ, G. M. Percepção das mulheres sobre a violência no trabalho de


parto e parto. 2016. Dissertação (Mestrado em Enfermagem)–Universidade Fe-
deral de Alfenas, 2016.
32 RODRIGUES, D. P. Violência obstétrica no processo do parto e nascimento
da Região Metropolitana II do Estado do Rio de Janeiro: percepção de mulhe-
res/puérperas. 2014. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Ciências do Cuida-
do em Saúde)–Escola de Enfermagem da UFF, 2014.
33 SENA, L. M. Ameaçada e sem voz, como num campo de concentração. A
medicalização do parto como porta e palco para a violência obstétrica. 2016.
Tese (Doutorado em Saúde Coletiva)–Centro de Ciências da Saúde da Univer-
sidade Federal de Santa Catarina, 2016.
34 SENA, L. M.; TESSER, C. D. Violência obstétrica no Brasil e o ciberativis-
mo de mulheres mães: Relato de duas experiências. Interface: Communica-
tion, Health, Education, v. 21, n. 60, p. 209–220, 2017.
35 SILVA, M. G. da; MARCELINO, M. C.; RODRIGUES, L. S. P.; TORO, R. C.;
SHIMO, A. K. K. Obstetric violence according to obstetric nurses. Revista da Rede
de Enfermagem do Nordeste, v. 15, n. 4, p. 720–728, 2014. Disponível em: <http://
www.revistarene.ufc.br/revista/index.php/revista/article/view/1514/pdf_1>.
36 SILVA, J. K. da; MERCÊS, M. C. das; MESSIAS, J. M. A.; GUIMARÃES,
K. P.; JESUS, L. M. S. B. de. Violência obstétrica no ambiente hospitalar: rela-
to de experiência sobre incoerências e controvérsias. Revista de Enfermagem
UFPE, v. 9, n. 12, p. 1345–1351 7p, 2015b. Disponível em: <http://search.ebsco-
host.com/login.aspx?direct=true&db=jlh&AN=111749884&site=ehost-live>.
37 SILVA, R. L. V. da S.; LUCENA, K. D. T. de; DEININGER, L. de S. C.;
MARTINS, V.-D.-M. da S.; MONTEIRO, A. C. C.; MOURA, R. de M. A. Vio-
lência obstétrica sob o olhar das usuárias. Revista de Enfermagem UFPE, v.
10, n. 12, p. 4474–4480, 2016. Disponível em: <http://www.revista.ufpe.br/re-
vistaenfermagem/index.php/revista/article/view/9982/pdf_1791>.
38 SILVA, R. A. Violência obstétrica à luz da declaração universal sobre bioéti-
ca e direitos humanos: percepção dos estudantes da área da saúde. 2017. Facul-
dade de Ciências da Saúde da UNB, 2017.

106
Violência Obstétrica em Debate

39 SIQUEIRA, L. C. C. Violência Obstétrica Na Assistência Ao Parto. Journal


of Chemical Information and Modeling, v. 53, n. 9, p. 1689–1699, 2016.
40 SOUZA, K. J. de. Violência institucional na atenção obstétrica: proposta
de modelo preditivo para depressão pós-parto. 2014. Dissertação (Mestrado em
Saúde ColetivA)–Faculdade de Ciências da Saúde da UNB, 2014. Disponível
em: <http://repositorio.unb.br/handle/10482/17225>.
41 TESSER, C. D.; KNOBEL, R.; ANDREZZO, H. F. de A.; DINIZ, S. G. Vio-
lência obstétrica e prevenção quaternária: o que é e o que fazer. Revista Brasi-
leira de Medicina de Família e Comunidade, v. 10, n. 35, p. 1–12, 2015.
42 VALLE, A. S. de M. Uma análise psicossocial da prática obstétrica em uma Ma-
ternidade de ensino no Rio de Janeiro. 2015. Instituto de Psicologia da UFRJ, 2015.

Publicados a partir de 2013, os estudos incluídos foram realizados


nas Regiões Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil. Alguns ana-
lisavam especificamente o documentário “Violência obstétrica – a voz das
brasileiras”,226227228229 ao passo que outros referiam-se aos blogs Cientista que
Virou Mãe230 e Mamíferas231 ou a uma comunidade virtual.232 A maioria deles

226 PULHEZ, M. M. A “Violência Obstétrica” e as diputas em torno dos direitos sexuais e reprodutivos.
In: Fazendo Gênero 10 - desafios Atuais do Feminismo, Florianópolis. Anais... Florianópolis: 2013a.
227 PULHEZ, M. M. “Parem a violência obstétrica!” Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 12, n. 1,
p. 522–537, 2013b. Disponível em: <http://www.cchla.ufpb.br/rbse/RBSEv12n35Ago2013completo.
pdf#page=69>.
228 CARNEIRO, R. “Para chegar ao Bojador, é preciso ir além da dor”: sofrimento no parto e suas
potencialidades. Sexualidad, Salud y Sociedad (Rio de Janeiro), n. 20, p. 91–112, 2015. Disponível
em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-64872015000200091&lng=en
&nrm=iso&tlng=pt>.
229 SENA, L. M.; TESSER, C. D. Violência obstétrica no Brasil e o ciberativismo de mulheres mães: Relato
de duas experiências. Interface: Communication, Health, Education, v. 21, n. 60, p. 209–220, 2017.
230 LUZ, L. H.; GICO, V. de V. Violência obstétrica: ativismo nas redes sociais. Cad. Ter. Ocup. UFSCar,
v. 23, n. 3, p. 475–484, 2015. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.4322/0104-4931.ctoAO0622>.
231 PULHEZ, M. M. Mulheres mamíferas: práticas da maternidade ativa. 2015. Dissertação (Mestrado
em Antropologia Social)–Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, 2015.
232 CARVALHO, C. S. de. Violência obstétrica: etnografia de uma comunidade no Facebook. In:
Reunião Equatorial de Antropologia, Reunião de Antropologia do Norte e Nordeste, 2015. Anais...,
v. 1, n. 1, 2015.

107
Violência Obstétrica em Debate

tinha caráter qualitativo, com emprego de técnicas como entrevista, observa-


ção participante e grupo focal para a produção de dados, com posterior em-
prego de análise temática, de conteúdo ou de discurso, entre outras. Apenas
um estudo233 utilizou metodologia de história oral, a partir de entrevista face
a face com questões norteadoras a respeito do near miss materno. Embora a
violência obstétrica não estivesse no centro desse estudo, a categoria mostrou-
-se relevante no curso da pesquisa, por ser referida pelas participantes.
Entre os estudos quantitativos (seis no total), dois foram realizados a partir
de dados de pesquisa telefônica da Ouvidoria do SUS, mas com abordagens dis-
tintas. Um deles234 agrupou as respostas em violência física (manobra de Kris-
teller, episiotomia com e sem anestesia, toques vaginais constantes); violência
psicológica (debocharam do comportamento da mulher, mandaram parar de
gritar, criticaram seus sentimentos ou emoções); negligências praticadas pelos
serviços de saúde (o serviço não permitiu acompanhante, demorou a ser aten-
dida, não teve leito para internação, considerou o ambiente sujo ou inadequado,
não recebeu atenção quando solicitou) e não sofreu violência. O outro estudo235
adaptou as respostas obtidas pela Ouvidoria do SUS para compor os seguintes
indicadores: indicador da violência institucional na relação da parturiente com
o Sistema de saúde – VSis; indicador da violência institucional na relação da
parturiente com o Serviço de saúde – VSer; e indicador da violência institucio-
nal na relação da parturiente com os profissionais de saúde – VP, separado em
três tipos: relacionados à violência física – VPF, relacionados à violência verbal
– VPV e outros relacionados à violência por negligência – VPN. Esses indicado-
res foram propostos por trabalho também incluído nesta revisão,236 baseado em

233 AGUIAR, C. de A. “Por um fio”: memórias e representações de mulheres que vivenciaram o near-miss
materno. 2016. Teste (Doutorado em Ciências)–Faculdade de Saúde Pública da USP, 2016.
234 LIMA, K. D. de. Raça e violência obstétrica no Brasil. 2016. Monografia (Especialização em Saúde
Coletiva)–Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães da Fundação Oswaldo Cruz, 2016.
LUZ, N. F.; ASSIS, T. R.; REZENDE, F. R. Puérperas adolescentes: percepções relacionadas ao pré-natal
e ao parto. Abcs Health Sciences, v. 40, n. 2, p. 80–84, 2015.
235 ARRUDA, K. G. M. Violência contra a mulher no parto: Um olhar sobre a pesquisa da Rede Cegonha
do SUS. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva)–Universidade de Brasília, Brasília, 2015.
236 SOUZA, K. J. de. Violência institucional na atenção obstétrica: proposta de modelo preditivo para
depressão pós-parto. 2014. Dissertação (Mestrado em Saúde ColetivA)–Faculdade de Ciências da
Saúde da UNB, 2014. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/handle/10482/17225>.

108
Violência Obstétrica em Debate

banco de dados de um estudo transversal realizado em Brasília (DF) em 2001,


com questionário elaborado para esse fim.
Um estudo237 considerou como ocorrência de violência obstétrica a uti-
lização de pelo menos uma das práticas consideradas pela OMS como clara-
mente desnecessárias, prejudiciais, ineficazes ou sem evidências científicas de
apoio.238 Estudo realizado no Ceará com mais de 3 mil puérperas239 agrupou
os dados em necessidades humanas básicas durante o trabalho de parto e par-
to (liberdade de movimentação e ingestão de líquidos e alimentos); ações de
suporte emocional (acompanhante, visita, presença de profissional que pro-
porcione conforto físico e emocional, esclarecimentos sobre procedimentos e
sobre trabalho de parto e parto); ações que caracterizam o não cumprimento
das orientações das boas práticas (episiotomia, manobra de Kristeller, exame
de toque por pessoas diferentes, aminotomia precoce, curagem sem analgesia
farmacológica, inexistência de contato pele a pele, não promoção da amamen-
tação na primeira hora, manobra de Valsalva, uso de soro, de sonda, de oci-
tocina, tricotomia e enema); e ações que ocasionam sentimentos de hesitação
(sentimento de segurança ou medo, ser alvo de ameaças, críticas, ironias, pia-
das, apelidos, gritos, receber ordens de parar de gritar).
Apenas estudos que traziam a definição de violência obstétrica foram
incluídos na análise, conforme Quadro 2. Alguns restringiam a violência obs-
tétrica à realização de condutas não baseadas em evidências científicas ou não
recomendadas por representantes da comunidade científica internacional, es-
pecialmente a Organização Mundial da Saúde. Nessa acepção, práticas como
manobra de Kristeller e episiotomia de rotina, por exemplo, foram conside-
radas formas de violência obstétrica, assim como a cesariana desnecessária e
não desejada pela mulher.

237 ANDRADE, P. de O. N.; SILVA, J. Q. P. da; DINIZ, C. M. M.; CAMINHA, M. de F. C. Fatores


associados à violência obstétrica na assistência ao parto vaginal em uma maternidade de alta
complexidade em Recife, Pernambuco. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, v. 16, n. 1,
p. 29–37, 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-
38292016000100029&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>.
238 WHO. Care in normal birth: a practical guide. Geneva: WHO, 1996.
239 CUNHA RODRIGUES, F. A.; GAMA LIRA, S. V.; MAGALHÃES, P. H.; FREITAS, A. L. e. V.;
SILVA MITROS, V. M. da; ALMEIDA, P. C. Violência obstétrica no processo de parturição em
maternidades vinculadas à Rede Cegonha. Reprodução e Climaterio, v. 32, n. 2, p. 78–84, 2017.
Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1016/j.recli.2016.12.001>.

109
Violência Obstétrica em Debate

Em outros estudos, procurou-se relacionar a assistência baseada em evidên-


cias com os direitos da mulher, tanto aqueles assegurados por legislação nacional,
como o direito a acompanhante de livre escolha da mulher no pré-parto, parto e
pós-parto, como aqueles assegurados por instrumentos internacionais de que o
Brasil é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Os termos mais recorrentemente empregados nas definições de violência
obstétrica mostram a existência de alguns consensos quanto ao que constitua
esse fenômeno, com importantes conexões com a legislação venezuelana re-
lativa à erradicação da violência contra a mulher. Assim, a atenção desuma-
nizada aparece como principal qualificador da violência obstétrica, seguida
de negligência, patologização, medicalização e desrespeito à autonomia da
mulher. As intervenções desnecessárias, o excesso de intervenções, a violência
física e as intervenções não consentidas conformam outro bloco importante,
referindo-se às condutas realizadas nos serviços de saúde e sua relação com as
evidências e com o consentimento da mulher.
Quadro 2. Definição de violência obstétrica nos estudos incluídos.

Estudo e definição de violência obstétrica

AGUIAR, 2016: Tratamento desumano, maus-tratos verbais, psicológicos e físicos; o excesso


de intervenções e o uso desnecessário destas para aceleração do processo de nascimento;
tratamento indigno e não consentido; discriminação de gênero no contexto hospitalar.

AMORIM, 2015: Tratamentos prestados por profissionais de saúde que não atendam às emergências
obstétricas de forma oportuna e eficaz; que forcem a mulher a dar à luz em decúbito dorsal, com as
pernas levantadas, havendo meios para o parto vertical; que impeçam o contato entre a mulher e seu
bebê sem justificativa médica ou que impeçam a mulher de segurar e amamentar imediatamente
após o nascimento. Interpreta a lei venezuelana e concebe como violência obstétrica as
técnicas de aceleração do parto sem consentimento expresso e informado e a realização de
cesariana sem consentimento quando as condições forem favoráveis a um parto natural.

ANDRADE et al., 2016: Considerou-se como desfecho a violência


obstétrica, definida como a utilização de pelo menos uma das práticas consideradas
claramente desnecessárias, prejudiciais, ineficazes e/ou sem evidências científicas de acordo
com a OMS: uso da posição supina ou litotômica no momento do parto, infusão venosa
de rotina, exame retal, administração de ocitocina sem indicação precisa, incentivo ao
puxo prolongado, amniotomia precoce, manobra de Kristeller, toques vaginais repetitivos,
restrição hídrica e alimentar, episiotomia e clampeamento precoce do cordão.

110
Violência Obstétrica em Debate

Estudo e definição de violência obstétrica

ANDRADE; AGGIO, 2014: Entendido a partir de Juárez et al. (2012) como qualquer ato
exercido por profissionais da saúde no que cerne ao corpo e aos processos reprodutivos das
mulheres, exprimido através de uma atenção desumanizada, abuso de ações intervencionistas,
medicalização e a transformação patológica dos processos de parturição fisiológicos.

ARRUDA, 2015: Entendido a partir de Juárez et al. (2012) como violência exercida
por qualquer ato dos profissionais da saúde nos processos reprodutivos da mulher
que possam interferir no domínio do seu corpo, demonstrado através de uma atenção
desumanizada, com abuso de utilização de ações intervencionistas, com alta medicalização
e transformação patológica dos processos naturais fisiológicos do parto.

CARNEIRO, 2015: Violência obstétrica como violência no parto, considerando


que, no Brasil de hoje, a maioria dos partos acontece nos hospitais.

CARVALHO, 2015: A partir de Juárez et al. (2012), entende como violência obstétrica qualquer ato
exercido por profissionais de saúde no que cerne ao corpo e aos processos reprodutivos das mulheres,
expresso através de uma atenção desumanizada, abuso de ações intervencionistas, medicalização e
transformação patológica dos processos de parturição fisiológicos, bem como a negação do direito
de ser informada e de opinar em relação aos procedimentos a serem exercidos em seu corpo.

COSTA MEDEIROS et al., 2016: Uma forma de violência contra a mulher,


atos realizados por profissionais da saúde em relação ao corpo e os processos reprodutivos das
mulheres, ocorrendo ao longo do processo de parto. Esse tipo de violência ocorre através do
excesso de intervenções e onde os processos naturais sejam medicalizados e patologizados

COSTA, 2014: Interpreta o estudo de D’Oliveira, Diniz e Schraiber (2002) e entende


que a violência obstétrica é manifestada pela negligência na assistência, discriminação,
violência verbal (reprimendas, gritos, tratamento grosseiro, uso de jargões, humilhação),
violência sexual ou abuso e preconceito com certos grupos populacionais.

CUNHA RODRIGUES et al., 2017: O termo violência obstétrica agrupa


atos de desrespeito, assédio moral e físico, abuso e negligência.

DAMASCENO, 2016: Entende que a violência obstétrica é um conceito em construção, usado


para caracterizar as mais diversas violências físicas, psíquicas e patrimoniais sofridas pelas
mulheres na hora do parto, inclusive com a violação de diversas normativas legais e de políticas
já estruturadas pelo Ministério da Saúde. Caracteriza-se como uma violência de gênero, por ser
cometida contra a mulher em todas as etapas da gravidez e do pós-parto, incluindo os casos de
abortamento, considerando-a como parte integrante de uma sociedade que violenta as mulheres
pela sua identidade de gênero, massacrada pelo machismo, tanto institucional quanto pessoal
nas diversas relações da mulher com seu corpo, sua posição na sociedade e sua dignidade.

111
Violência Obstétrica em Debate

Estudo e definição de violência obstétrica

DANELUCI, 2016: Reproduz definição da Defensoria Pública do Estado de São Paulo,


por sua vez fortemente inspirada na legislação venezuelana, mencionando a apropriação
do corpo e processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde, através
do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos
naturais, causando a perda da autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus
corpos e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres.

DINIZ et al., 2015a: Reconhecimento de que há diversas formas de nomear e conceituar


o fenômeno, que abarca diversas formas de violência ocorridas na assistência à gravidez,
ao parto, ao pós-parto e ao abortamento, como violência de gênero no parto e aborto,
violência no parto, abuso obstétrico, violência institucional de gênero no parto e
aborto, desrespeito e abuso, crueldade no parto, assistência desumana/desumanizada,
violações dos Direitos Humanos das mulheres no parto, abusos, desrespeito e
maus-tratos durante o parto, entre outros. Utiliza as categorias de desrespeito e abuso
construídas por Tesser et al. (2015), por sua vez baseada na síntese de Bowser e Hill (2010).

DINIZ et al., 2016: Interpreta diversos estudos e propõe abordar a violência obstétrica como abuso,
desrespeito, forma de indignidade na assistência ao parto e uma forma de violação de direitos.

FABBRO; MACHADO, 2017: Assistência à saúde da mulher em processo reprodutivo


prestada de forma desumana por profissionais de saúde, que se baseiam no uso
excessivo de medicalização, instrumentalização e intervenções iatrogênicas; as
quais desencadeiam uma cascata de eventos negativos sobre o corpo das mulheres
durante a gestação, trabalho de parto, parto, pós -parto e amamentação.

FAREIRA, 2016: Abuso físico; imposição de intervenções por parte de um profissional


médico, sem consentimento informado da mulher; negação do direito à privacidade
ou falta de privacidade; cuidado indigno, o que inclui abuso verbal; discriminação
por profissionais médicos com base em atributos da paciente; abandono, negligência
ou recusa a prover assistência; detenção nos serviços; despreparo institucional.

FUJITA; NASCIMENTO; SHIMO, 2015: Tipo de violência contra a mulher e sua


família cometido em serviços de saúde durante a assistência pré-natal, ao parto e pós-
parto, na cesárea e no abortamento. Pode ser psicológica, física ou mesmo sexual.

GUIMARÃES, 2014: Interpretou-se como a imposição de intervenções


danosas à integridade física e psicológica das mulheres nas instituições em
que são atendidas, bem como o desrespeito à sua autonomia.

112
Violência Obstétrica em Debate

Estudo e definição de violência obstétrica

LIMA, 2016: Consideraram-se situações de violência obstétrica: a manobra de Kristeller;


a epsiotomia; toques vaginais repetitivos e/ou realizados com brutalidade; agressões
verbais como gritos, críticas e deboches à mulher pelo seu comportamento; situações
consideradas como de negligência pelos serviços de saúde, como impedimento à
presença de acompanhante; demora no atendimento; falta de leito para internação;
ambiente sujo e inadequado; falta de atenção quando solicitada pela mulher.

LUZ; ASSIS; REZENDE, 2015: A partir da definição de Juárez (2012), violência obstétrica é
qualquer ato exercido por profissionais da saúde, no que cerne ao corpo e aos processos
reprodutivos das mulheres, exprimido através de uma atenção desumanizada,
abuso de ações intervencionistas, medicalização e a transformação
patológica dos processos de parturição fisiológicos.

LUZ; GICO, 2015: Definida a partir de D’Gregorio (2010) como qualquer ato – ou intervenção
– direcionado à mulher grávida, parturiente ou puérpera (que deu à luz recentemente),
ou ao seu bebê, praticado sem o consentimento explícito e informado da mulher e/ou em
desrespeito à sua autonomia, integridade física e mental, e aos seus sentimentos, opções e
preferências. Engloba a violência física, moral e emocional, incluindo abuso verbal e realização
de procedimentos dolorosos, exposição física, contenção e impedimento de ser acompanhada

MANFRINI; CIMA, 2016: Diversas formas de imposições no período gestacional e puerperal ou


ausência de protagonismo da mulher no parto. Concorda com a interpretação de Luz (2014), de que
compreende ‘qualquer ato ou intervenção direcionado à mulher grávida, parturiente ou puérpera ou
ao seu bebê, praticado sem o consentimento explícito e informado da mulher e/ou em desrespeito
a sua autonomia, integridade física e mental, aos seus sentimentos, opções e preferências’.

MOURA, 2014: Desrespeito aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, com falta de atenção
qualificada e humanizada à mulher nas unidades hospitalares no processo parturitivo.

NOGUEIRA, 2016: Forma de violência que pode estar constituída de atos de


negligência, discriminação social, violência verbal (tratamento grosseiro, ameaças,
reprimendas, gritos, humilhação intencional) e violência física (incluindo não utilização
de medicação analgésica quando tecnicamente indicada), até o abuso sexual.

113
Violência Obstétrica em Debate

Estudo e definição de violência obstétrica

OLIVEIRA et al., 2017: Adota-se conceito de Sadler et al. (2016), segundo o qual a violência
obstétrica é caracterizada pela apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres
pelos profissionais da saúde, tratamento desumanizado, abuso da medicação e patologização
dos processos naturais, causando a perda da autonomia e da capacidade de decidir livremente
sobre os seus corpos e sexualidade, impactando negativamente em sua qualidade de vida.

PULHEZ, 2013a: De acordo com a definição de Debert & Gregori, reflete-se sobre a
noção de violência contraposta à de crime: “Crime implica a tipificação de abusos, a
definição das circunstâncias envolvidas nos conflitos e a resolução destes no plano
jurídico. Violência [...] implica reconhecimento social (não apenas legal) de que certos
atos constituem abuso, o que exige decifrar dinâmicas conflitivas que supõem processos
interativos atravessados por posições de poder desiguais entre os envolvidos”.

PULHEZ, 2013b: Violência obstétrica é uma categoria acionada por certos grupos de mulheres,
entre outros para “denunciar a violação de direitos humanos quando da adoção de certos
procedimentos que escapam às políticas públicas já direcionadas à saúde reprodutiva e sexual
da mulher” (políticas referentes à cesariana, ao aborto, à morte materna, ao câncer de colo
uterino, de mama, etc.), como, por exemplo, os casos de negligência médica, violência física,
violência verbal e violência sexual que parecem ocorrer dentro dos hospitais durante os partos.

PULHEZ, 2015: A proposta é explorar os significados mobilizados em torno da categoria


violência obstétrica operada por mulheres que vivenciaram partos onde teriam sofrido
algum tipo de mau-trato. Entende-se que a apropriação do discurso dos direitos humanos
seria constitutiva da formação de sujeitos políticos e do modo pelo qual seria operada a
vocalização de suas experiências, de maneira a dar visibilidade a suas demandas, através
da construção de subjetividades e da produção de discursos sobre a violência

REGIS, 2016: Adota a definição da legislação venezuelana, segundo a qual violência obstétrica é a
apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profissionais da saúde, que se
expressa por um tratamento desumanizador, pelo abuso de medicalização e pela patologização dos
processos naturais, resultando numa perda da autonomia e da capacidade de decidir livremente
sobre seus corpos e sua sexualidade, impactando negativamente a qualidade de vida das mulheres.

REGIS; RESENDE, 2015: Adota definição de D’Gregorio (2010), segundo a qual violência
obstétrica é a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por
profissionais de saúde de maneira expressa por tratamento desumano, pelo uso abusivo
de medicação, pela conversão de processos fisiológicos em processos patológicos,
acarretando com isso perda de autonomia a da habilidade de decidir livremente sobre seus
corpos e sexualidade, impactando negativamente a qualidade de vida das mulheres

114
Violência Obstétrica em Debate

Estudo e definição de violência obstétrica

RENNÓ, 2016: A violência nas maternidades tem sido denominada violência obstétrica,
expressão utilizada para todas as formas de violência e danos que ocorrem durante a
assistência obstétrica e se caracteriza por desrespeito aos direitos da mulher. Apresenta
várias formas como: a omissão, a negligência, a violência física, a psicológica, abusos
sexuais, uso de intervenções e medicamentos sem evidências científicas e outras
situações que geram sofrimento para as mulheres e podem prejudicar o seu filho.

RODRIGUES, 2014: A violência obstétrica, caracterizada pela falta de respeito aos


direitos sexuais, reprodutivos e humanos, que vem sendo objeto de estudo, em especial
na perspectiva dos direitos das mulheres durante o parto e nascimento e, sobretudo, nas
maternidades públicas, desvelando o (des)cuidado com as mulheres durante a parturição,
submetidas que são a frequentes intervenções e procedimentos, muitas vezes interferências
desnecessárias ao mecanismo fisiológico do parto em face das atuais evidências científicas.
Essas práticas do (des)cuidado decorrem da utilização de protocolos, regras, normas e
rotinas institucionais na assistência obstétrica durante o processo de parturição.

SENA, 2016: Violência obstétrica é expressa desde a negligência na assistência, discriminação


social, violência verbal (tratamento grosseiro, ameaças, reprimendas, gritos, humilhação
intencional) e violência física (incluindo não utilização de medicação analgésica quando
tecnicamente indicada), até o abuso sexual. Também o uso inadequado de tecnologias, intervenções
e procedimentos desnecessários frente às evidências científicas, resultando numa cascata de
intervenções com potenciais riscos e sequelas, pode ser considerado como prática violenta.

SENA; TESSER, 2017: Violência obstétrica é uma expressão que agrupa as formas
de violência e danos originados no cuidado obstétrico profissional.

SILVA et al., 2014: Qualquer ato ou intervenção direcionada à parturiente ou ao seu bebê,
praticado sem o consentimento explícito e informado da mulher e/ou em desrespeito à sua
autonomia, integridade física e mental, aos seus sentimentos, opções e preferências.

SILVA et al., 2015b: Adota conceitos de Aguiar e D’Oliveira (2011) para definir violência
obstétrica como uma agressão contra a saúde sexual, mental e reprodutiva da mulher,
podendo ser causada por profissionais de saúde que atuam em setores públicos e privados.

SILVA et al., 2016: Baseia-se na definição de Dias et al (2015). Compreende


imposições de intervenções que causem danos, ou comprometam a integridade
física e psicológica da mulher, extraindo assim sua autonomia e respeito.

SILVA, 2017: Baseia-se na declaração da OMS sobre desrespeito e abuso na assistência ao parto
para definir violência obstétrica como toda violência praticada no contexto da assistência
à gestação, parto, pós-parto e abortamento, caracterizada por agressão física, psicológica,
verbal, simbólica e sexual, assim como pela negligência na assistência e pela discriminação.

115
Violência Obstétrica em Debate

Estudo e definição de violência obstétrica

SIQUEIRA, 2016: Interpreta o estudo de Tesser et al. (2014) e entende a violência obstétrica como
danos físicos e emocionais acometidos contra a mulher no cuidado obstétrico profissional, dentre
os quais destaca-se a prática rotineira de procedimentos desnecessários e danosos para mulher,
como: episiotomias (corte perineal lateral), restrição ao leito no pré-parto, enema (lavagem
intestinal), tricotomia (raspagem dos pelos pubianos), ocitocina de rotina (uso do hormônio
sintético), ausência de acompanhante e o excesso do número de cesarianas. Além disso, considera
a definição da OMS (2014) e afirma que violência obstétrica é toda e qualquer intervenção
desnecessária, negligência por omissão de informação, agressão física e psicológica realizada no
período gravídico (no parto e no pós-parto) por parte dos profissionais que acompanham a mulher.

SOUZA, 2014: A partir de D’Gregorio (2010), coloca como violência obstétrica todo ato ou omissão
do profissional de saúde que leve à apropriação indevida dos processos corporais e reprodutivos
das mulheres e que se expressem no tratamento desumano, no abuso da medicalização e no tornar
patológico os processos naturais, fazendo com que a mulher perca a sua capacidade de decidir
livremente sobre o seu corpo e sexualidade, impactando negativamente em sua qualidade de vida.

TESSER et al., 2015: A expressão “violência obstétrica” é utilizada para descrever e agrupar diversas
formas de violência (e danos) durante o cuidado obstétrico profissional. Inclui maus tratos físicos,
psicológicos e verbais, assim como procedimentos desnecessários e danosos – episiotomias,
restrição ao leito no pré-parto, clister, tricotomia e ocitocina (quase) de rotina, ausência de
acompanhante – dentre os quais destaca-se o excesso de cesarianas, crescente no Brasil há décadas.

VALLE, 2015: Questões éticas relacionadas ao abuso de intervenções e maus tratos por
parte dos médicos para com as parturientes e definição da legislação venezuelana.

Muitos estudos não mencionaram qualquer fonte para a definição de vio-


lência obstétrica operacionalizada, ainda que para alguns casos fosse possível re-
conhecer textualmente as legislações argentina e venezuelana, por exemplo. Esta
última foi citada literalmente por D’Gregorio (2010),240 cujo artigo publicado em
periódico internacional foi referido numerosas vezes entre os estudos incluídos.
O Quadro 3 traz os textos explicitamente referenciados pelos estudos
incluídos quando da definição de violência obstétrica. Alguns deles não abor-
daram a saúde sexual e reprodutiva da mulher, outros não trataram especi-
ficamente da violência obstétrica, contudo, todos referiam-se de forma mais
ampla à violência contra a mulher.

240 D’GREGORIO, R. P. Obstetric violence: A new legal term introduced in Venezuela. International
Journal of Gynecology and Obstetrics, v. 111, n. 3, p. 201–202, 2010. Disponível em: <http://dx.doi.
org/10.1016/j.ijgo.2010.09.002>.

116
Violência Obstétrica em Debate

Quadro 3: Textos referenciados pelos estudos incluídos e contribuições


para a definição de violência obstétrica.

Texto referenciado por estudos incluídos e contribuições

D’OLIVEIRA; DINIZ; SCHRAIBER, 2002:43 O estudo discute que as mortes maternas e


os adoecimentos relacionados à gestação e ao parto se devem em parte à violência contra a
mulher cometida por profissionais de saúde. Reconhece que não há consenso sobre a definição
a ser empregada e, à semelhança do que propõem os estudos sobre violência interpessoal,
considera quatro formas de violência: negligência, violência verbal (incluindo tratamento
grosseiro, ameaças, repreensões, gritos e humilhações), violência física (incluindo recusa a
empregar métodos de alívio da dor) e violência sexual. Coloca que há outras formas de violência
contra a mulher na assistência a sua saúde sexual e reprodutiva, como condutas excessivas
ou inadequadas na assistência ao parto, o impedimento à presença de acompanhante, a
participação de médicos em cirurgias de ablação do clitóris ou de esterilização não consentida,
entre outros. Entende que diferentes formas de violência estão interconectadas.

VENEZUELA, 2007 (1):44 Em sua lei orgânica sobre o direito das mulheres a uma vida livre
de violência, a Venezuela define como violência contra a mulher todo ato sexista ou conduta
inadequada que possa resultar em dano ou sofrimento físico, sexual, psicológico, emocional,
laboral, econômico ou patrimonial; a coação ou privação arbitrária da liberdade, assim como a
ameaça de executar tais atos. Reconhece que a violência pode se dar em âmbito público ou privado
e engloba, entre suas formas, a violência obstétrica. Esta é entendida como a apropriação do
corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profissional de saúde, que se expressa em
um tratamento desumanizador, em um abuso de medicalização ou patologização dos processos
naturais, tendo como consequência a perda de autonomia e de capacidade de decidir livremente
sobre seus corpos e sua sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida as mulheres.
A lei define ainda a violência institucional como ações ou omissões que autoridades, funcionários
e qualquer agente do poder público que, contrariamente ao devido exercício de suas atribuições,
retardem, obstaculizem ou impeçam que as mulheres tenham acesso a políticas públicas ou exerçam
seus direitos previstos na lei que lhes garante o direito a uma vida sem violência. Outro aspecto
definido pela legislação diz respeito à violência simbólica, entendida como valores, ícones, signos
que transmitem e reproduzem as relações de dominação, desigualdade e discriminação nas relações
sociais que se estabelecem entre as pessoas e naturalizam a subordinação da mulher na sociedade.
Entre os atos considerados como de violência obstétrica citam-se aqueles executados por
profissionais de saúde, como não atender oportuna e eficazmente as emergências obstétricas; obrigar
a mulher a parir em posição supina e com as pernas elevadas, existindo meios necessários para a
realização do parto em posição verticalizada; impor obstáculos ao contato precoce entre mãe e bebê
sem causa médica justificada, negando à mulher a possibilidade de segurar a criança e amamentá-
la imediatamente após o nascimento; alterar o processo natural do parto de baixo risco, mediante
o uso de técnicas de aceleração, sem obter o consentimento voluntário e expresso e informado da
mulher; praticar a cesariana, existindo condições para o parto natural, sem obter o consentimento
voluntário expresso e informado da mulher. A legislação define uma multa aos responsáveis
por tais atos, além de determinar que a sentença condenatória seja encaminhada ao respectivo
conselho profissional para que se realizem os procedimentos disciplinares correspondentes.

117
Violência Obstétrica em Debate

Texto referenciado por estudos incluídos e contribuições

DEBERT; GREGORI, 2008:45 O estudo aborda as relações entre as concepções de gênero e violência
a partir do entendimento de que são significados construídos historicamente que permitem atribuir
sentidos de danos, abusos e lesões a determinados atos. Analisam-se o surgimento e funcionamento
das Delegacias de Defesa da Mulher, evidenciando que por vezes a mulher como sujeito de direitos
não estava no centro da discussão e atuação do órgão, de modo que as assimetrias de gênero
não eram colocadas em xeque. Nesse contexto, o Judiciário também não foi capaz de instituir
parâmetros, procedimentos e práticas que pudessem impedir a ocorrência dos crimes contra a
mulher. O texto não aborda a violência obstétrica nem a saúde sexual e reprodutiva da mulher.

BOWSER; HILL, 2010:46 Trata-se de uma extensa revisão da literatura (científica e cinza)
sobre desrespeito e abuso na assistência ao parto em estabelecimentos de saúde, a partir
do reconhecimento de que esse constitui um problema multifatorial e que pode ser
percebido de formas diferentes, ou mesmo naturalizado, a depender dos contextos de
sua ocorrência. Define sete categorias de desrespeito e abuso: abuso físico, cuidado não
consentido, cuidado não confidencial, cuidado indigno, discriminação com base em
atributos específicos da paciente, abandono do cuidado e detenção na instituição.

D’GREGORIO, 2010:47 O editorial da International Journal of Gynecology and Obstetrics, assinado


por um membro da Sociedade Venezuelana de Ginecologia e Obstetrícia, traz citações literais dos
principais pontos da legislação venezuelana acerca da violência obstétrica. Faz críticas pontuais sobre
a incompatibilidade da legislação com a realidade da assistência na Venezuela, pois na opinião do
autor, a lei leva à responsabilização do médico por uma situação que seria de encargo institucional.

AGUIAR, 2010:48 Trata da violência institucional na assistência ao parto, entendendo que


violência é a “transformação de uma diferença em desigualdade numa relação hierárquica
de poder com objetivo de explorar, dominar e oprimir o outro que é tomado como objeto
de ação, tendo sua autonomia, subjetividade e fala impedidas ou anuladas” (p. 8), sob as
óticas de gênero e das relações de poder entre profissionais de saúde e pacientes.

ARGENTINA. MINISTERIO DE SALUD et al., 2012:49 O manual do Ministério da Saúde


da Argentina sobre violência contra a mulher é voltado para os profissionais de saúde que
trabalham na atenção básica. Com base na lei argentina nº 25.929, também chamada de
Lei do Parto Humanizado (ARGENTINA, 2004), define a violência obstétrica como aquela
que o profissional de saúde exerce sobre o corpo e os processos reprodutivos das mulheres,
expressa em um tratamento desumanizado, um abuso de medicalização e patologização
dos processos naturais. A legislação argentina mencionada não se refere a violência,
mas estabelece os direitos das parturientes, dos recém-nascidos e de mães e pais.

LUZ, 2014:50 A partir de D’Gregorio (2010), define violência obstétrica como qualquer ato ou
intervenção direcionado à mulher grávida, parturiente ou puérpera (que deu à luz recentemente), ou
ao seu bebê, praticado sem o consentimento explícito e informado da mulher e/ou em desrespeito
a sua autonomia, integridade física e mental, aos seus sentimentos, opções e preferências.

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Violência Obstétrica em Debate

Texto referenciado por estudos incluídos e contribuições

TESSER et al., 2015:51 A expressão violência obstétrica (VO) é utilizada para descrever e agrupar
diversas formas de violência (e danos) durante o cuidado obstétrico profissional. Inclui maus tratos
físicos, psicológicos, e verbais, assim como procedimentos desnecessários e danosos – episiotomias,
restrição ao leito no pré-parto, clister, tricotomia e ocitocina (quase) de rotina, ausência de
acompanhante – dentre os quais destaca-se o excesso de cesarianas, crescente no Brasil há décadas.

SADLER et al., 2016:52 Refere-se à fundação da Rehuna, aos marcos legais da Venezuela e
Argentina e coloca que a violência obstétrica “além de focalizar o tratamento desumanizado,
destaca sua dimensão obstétrica, das raízes da especialidade médica à educação contemporânea
e estruturas de poder. Emoldura a discussão do abuso e desrespeito dentro do campo
mais amplo das desigualdades estruturais e da violência contra a mulher” (p. 4).

SILVA et al., 2015a:53 Entende a violência obstétrica como um evento relacionado


à assistência ao parto, com a “imposição de intervenções danosas à integridade
física e emocional das mulheres nas instituições em que são atendidas, bem como
o desrespeito a sua autonomia, como quando o profissional obstetra transformar
o processo fisiológico do parto em um evento medicalizado” (p. 1-2).

(1) A lei venezuelana foi reformada em 2014 para incluir o delito de feminicídio e de indução
ou ajuda ao suicídio.
Notas de rodapé Quadro 3

43 D’OLIVEIRA, A. F. P. L.; DINIZ, S. G.; SCHRAIBER, L. B. Violence against


women in health-care institutions: An emerging problem. Lancet, v. 359, n.
9318, p. 1681–1685, 2002.
44 VENEZUELA. Ley orgánica sobre el derecho de las mujeres a una vida
libre de violencia. . 2007, p. 1–41.
45 DEBERT, G. G.; GREGORI, M. F. Violência e gênero: novas propostas, ve-
lhos dilemas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 66, p. 165–185, 2008.
46 BOWSER, D.; HILL, K. Exploring Evidence for Disrespect and Abuse in
Facility-Based Childbirth: Report of a Landscape Analysis. Harvard: USAID-
-TRAction Project, 2010.
47 D’GREGORIO, R. P. Obstetric violence: A new legal term introduced in
Venezuela. International Journal of Gynecology and Obstetrics, v. 111, n. 3, p.
201–202, 2010. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1016/j.ijgo.2010.09.002>.

119
Violência Obstétrica em Debate

48 AGUIAR, J. M. de. Violência institucional em maternidades públicas: hos-


tilidade ao invés de acolhimento como uma questão de gênero. 2010. Faculdade
de Medicina da USP, 2010. Disponível em: <http://www.social.org.br/relatorio_
RH_2013.pdf>.
49 ARGENTINA. MINISTERIO DE SALUD; JUÁREZ, D. P.; BAGNASCO,
M. E.; CANAL, W.; GYGLI, M. S.; QUIROGA, M.; SANTANDREA, C. Vio-
lencia sobre las mujeres. p. 134, 2012.
50 LUZ, L. H. O renascimento do parto e a reinvenção da emancipação social
na blogosfera brasileira: contra o desperdicio das experiências. 2014. Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes da UFRN, 2014.
51 TESSER, C. D.; KNOBEL, R.; ANDREZZO, H. F. de A.; DINIZ, S. G. Vio-
lência obstétrica e prevenção quaternária: o que é e o que fazer. Revista Brasi-
leira de Medicina de Família e Comunidade, v. 10, n. 35, p. 1–12, 2015.
52 SADLER, M.; SANTOS, M. J. D. S.; RUIZ-BERDÚN, D.; ROJAS, L.;
SKOKO, E.; GILLEN, P.; CLAUSEN, A. Moving beyond disrespect and abu-
se : addressing the structural dimensions of obstetric violence. Reproducti-
ve health matters, p. 1–9, 2016. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1016/j.
rhm.2016.04.002>.
53 SILVA, A. A.; PEREIRA, B. B.; PEREIRA, J. dos S. C.; AZEVEDO, M. B. de;
DIAS, R. L.; GOMES, S. K. da C. Violência Obstétrica: Perspectiva da Enfer-
magem. Revista Rede de Cuidados em Saúde, v. 9, n. 2, p. 6–9, 2015a.

Os 11 textos que embasam as definições sobre violência obstétrica ope-


racionalizadas nos estudos incluídos nesta revisão foram todos publicados
neste século e referem-se principalmente ao Brasil, mas também a outros
países da América Latina e do mundo. Um deles é a legislação venezuelana
sobre o direito das mulheres a uma vida livre de violência, três outros textos
referem-se diretamente a essa lei, ao passo que um outro menciona uma lei

120
Violência Obstétrica em Debate

argentina sobre humanização da assistência ao parto241242243244245. A referência


a marcos legais reforça a legitimidade do tema e permite levar o debate para
outras instâncias além das práticas clínicas. Assim, a liberalidade do profis-
sional de saúde e sua capacidade e autoridade para julgar sobre a necessidade
de determinadas condutas perdem a ênfase, que passa a recair sobre a relação
estabelecida com a mulher e sobre seus direitos. Esse enfoque é privilegiado
por três estudos,246247248 que propõem diferentes tipologias da violência contra
a mulher na assistência a sua saúde sexual e reprodutiva, mas sem empregar
especificamente o termo “violência obstétrica”. Não menos importante é a re-
ferência a estudo de Debert e Gregori (2008)249 sobre gênero e violência, que
não aborda questões relativas à saúde, conforme já mencionado, mas permi-
te problematizar como os conceitos podem ser transformados ou deslocados
conforme o entendimento do problema em cada local ou momento histórico.
Assim, não é de espantar que por vezes as situações de violência no parto não

241 D’GREGORIO, R. P. Obstetric violence: A new legal term introduced in Venezuela. International
Journal of Gynecology and Obstetrics, v. 111, n. 3, p. 201–202, 2010. Disponível em: <http://dx.doi.
org/10.1016/j.ijgo.2010.09.002>.
242 VENEZUELA. Ley orgánica sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violencia. . 2007, p. 1–41.
243 ARGENTINA. MINISTERIO DE SALUD; JUÁREZ, D. P.; BAGNASCO, M. E.; CANAL, W.;
GYGLI, M. S.; QUIROGA, M.; SANTANDREA, C. Violencia sobre las mujeres. p. 134, 2012.
244 LUZ, L. H. O renascimento do parto e a reinvenção da emancipação social na blogosfera brasileira: contra
o desperdicio das experiências. 2014. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da UFRN, 2014.
245 SADLER, M.; SANTOS, M. J. D. S.; RUIZ-BERDÚN, D.; ROJAS, L.; SKOKO, E.; GILLEN, P.;
CLAUSEN, A. Moving beyond disrespect and abuse : addressing the structural dimensions
of obstetric violence. Reproductive health matters, p. 1–9, 2016. Disponível em: <http://dx.doi.
org/10.1016/j.rhm.2016.04.002>.
246 D’OLIVEIRA, A. F. P. L.; DINIZ, S. G.; SCHRAIBER, L. B. Violence against women in health-care
institutions: An emerging problem. Lancet, v. 359, n. 9318, p. 1681–1685, 2002.
247 AGUIAR, J. M. de. Violência institucional em maternidades públicas: hostilidade ao invés de
acolhimento como uma questão de gênero. 2010. Faculdade de Medicina da USP, 2010. Disponível
em: <http://www.social.org.br/relatorio_RH_2013.pdf>.
248 MOURA, G. do N. A percepção das mulheres puérperas acerca da violência da assistência obstétrica. 2014.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Enfermagem)–Escola de Enfermagem da UFF, 2014.
249 DEBERT, G. G.; GREGORI, M. F. Violência e gênero: novas propostas, velhos dilemas. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 66, p. 165–185, 2008.

121
Violência Obstétrica em Debate

sejam entendidas como tal ou mesmo sejam tidas como naturais ou inerentes
ao ato de ter uma criança, conforme propõem Bowser e Hill (2010).250

Considerações finais
Os abusos, desrespeitos e maus-tratos sofridos pela mulher na assistência
à gestação, ao parto e ao aborto não constituem um problema recente, contu-
do, nomear tal problema como uma forma de violência é um fenômeno relati-
vamente novo.251 Nesta revisão, os estudos científicos que empregam o termo
“violência obstétrica” foram publicados a partir de 2013, o que confirma sua
emergência como campo de estudo no país.
As agressões físicas e verbais e a negligência são situações de violência
que a mulher enfrenta nos serviços de saúde sobre as quais não pairam muitas
dúvidas: devem ser combatidas. Todavia, uma definição de violência obstétri-
ca que seja significativa à realidade nacional e que contribua para o aprimora-
mento da assistência e das políticas públicas precisa ir além disso.
Entre outras maneiras, a violência obstétrica pode ser definida a partir das
condutas consideradas inadequadas na assistência ao pré-natal, parto, puer-
pério e aborto, como episiotomia de rotina e manobra de Kristeller. Assim, o
apontamento de tais condutas como atos de violência (uma vez que desneces-
sárias do ponto de vista clínico e impostas à mulher sem possibilidade de ne-
gociação) torna-se instrumental para visibilizá-las como danosas à integridade
física (e por vezes emocional) da mulher. Individualmente, tais intervenções po-
deriam ser classificadas simplesmente como má prática ou imperícia. Todavia,
quando se considera o contexto brasileiro, nota-se que o modelo hegemônico

250 BOWSER, D.; HILL, K. Exploring Evidence for Disrespect and Abuse in Facility-Based Childbirth:
Report of a Landscape Analysis. Harvard: USAID-TRAction Project, 2010.
251 DINIZ, S. G.; SALGADO, H. de O.; ANDREZZO, H. F. de A.; DE CARVALHO, P. G. C.;
CARVALHO, P. C. A.; AGUIAR, C. de A.; NIY, D. Y. Violência obstétrica como questão para a
saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas
para sua prevenção. Journal of Human Growth and Development, v. 25, n. 3, p. 377–382, 2015a.

122
Violência Obstétrica em Debate

compreende uma assistência excessivamente medicalizada,252253254 apesar das


políticas e programas que propõem uma assistência humanizada e centrada na
mulher.255,256,257,258 Não menos importante, a dimensão legal não pode escapar à
definição de violência obstétrica, por implicar as noções de justiça e cidadania,
em um contexto em que normas e leis há muito estabelecidas no país são viola-
das diariamente, como a que garante à mulher o direito a um acompanhante de
sua escolha durante o pré-parto, parto e pós-parto imediato.
Ciente desse contexto, o Ministério Público Federal promoveu audiências
públicas sobre violência obstétrica e temas correlatos, envolvendo diversos se-
tores da sociedade. O Ministério Público Estadual de Pernambuco elaborou
um material informativo ricamente ilustrado sobre o tema,259 contribuindo
para a disseminação de informações, inclusive para as usuárias do sistema
de saúde. Estas, por sua vez, têm obtido importantes conquistas na última
década, como a inclusão da violência obstétrica como categoria de denúncia
no disque-180, a incorporação de um vasto dossiê sobre o assunto no relatório
final da CPMI da violência contra a mulher, além da elaboração e divulgação
de cartazes, folhetos e cartilhas sobre o tema.

252 LEAL, M. do C.; PEREIRA, A. P. E.; DOMINGUES, R. M. S. M.; FILHA, M. M. T.; DIAS, M. A.
B.; NAKAMURA-PEREIRA, M.; BASTOS, M. H.; GAMA, S. G. N. da. Intervenções obstétricas
durante o trabalho de parto e parto em mulheres brasileiras de risco habitual. Cad. Saúde Pública,
v. 30, Sup., p. S17–S32, 2014.
253 LEAL, M. D. C.; GAMA, S. G. N. da. Nascer no Brasil. Cad. Saúde Pública, v. 30, Sup., p. S5–S7, 2014.
254 OSIS, M. J. M. D. Paism: um marco na abordagem da saúde reprodutiva no Brasil. Cad. Saúde
Pública, v. 14, n. Supl. 1, p. 25–32, 1998.
255 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria no 569, de 1 de junho de 2000. Institui o Programa de
Humanização no Pré-natal e Nascimento, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário
Oficial da União, p. Seção 1, 2000.
256 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Parto , Aborto e Puerpério Assistência Humanizada à Mulher. Brasília,
DF: Ministério da Saúde, 2001.
257 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Programa humanização do parto: humanização no pré-natal e
nascimento. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2002.
258 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e
diretrizes. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2004.
259 Ver: <http://www.mppe.mp.br/mppe/comunicacao/campanhas/4240-campanha-humanizacao-
do-parto>.

123
Violência Obstétrica em Debate

Ações internacionais, como o reconhecimento do problema pela Organiza-


ção Mundial de Saúde260 e a recente Iniciativa Hospital Amigo da Mulher e da
Criança,261 podem contribuir para visibilizar a violência obstétrica, e operacio-
nalizar o conceito em indicadores concretos, de forma a promover e monitorar a
mudança, permitindo a responsabilização dos serviços e as mudanças de práticas.
No campo da formação dos profissionais de saúde, o Projeto Aprimoramen-
to e Inovação no Cuidado e Ensino em Obstetrícia e Neonatologia (ApiceON)262
foi proposto pelo Ministério da Saúde para qualificar os processos de atenção, ges-
tão e ensino-formação em relação ao parto e nascimento, ao planejamento repro-
dutivo, ao atendimento a mulheres em situação de violência e ao aborto previsto
em lei, em quase cem hospitais com atividades de ensino em todo o país. Numa
perspectiva de análise-intervenção, propõe implicar profissionais e gestores em
um processo de mudança, para garantir às mulheres um atendimento baseado em
evidências e em consonância a diretrizes ministeriais.
Muitos estudos aqui analisados recorreram a entrevistas e outras meto-
dologias qualitativas para evidenciar situações de abusos, negligências, opres-
sões e outras formas de violência contra a mulher que colocam em cena as
desigualdades de poder nos serviços de saúde. Pareceu especialmente impor-
tante, nesses casos, considerar os direitos humanos da mulher em primeiro
plano, o que inclui o direito a uma assistência segura e que respeite sua inte-
gridade física e emocional.
A partir do que foi exposto, e de forma tentativa, propõe-se compreender
a violência obstétrica como situações ou condutas vivenciadas pela mulher na
assistência a sua saúde sexual e reprodutiva e que possam resultar em dano ou
sofrimento físico ou emocional ou impedimento ao exercício de seu direito de
desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e emocional, incluindo-
-se aí o seu direito a receber informações claras sobre seu estado de saúde e seu

260 WHO. The prevention and elimination of disrespect and abuse during facility-based
childbirth: WHO statement. Geneva: WHO, 2014. Disponível em: <http://apps.who.int/iris/
bitstream/10665/134588/1/WHO_RHR_14.23_eng.pdf?ua=1&ua=1>.
261 INTERNATIONAL FEDERATION OF GYNECOLOGY AND OBSTETRICS; WHITE
RIBBON ALLIANCE; INTERNATIONAL PEDIATRIC ASSOCIATION; WORLD HEALTH
ORGANIZATION. Mother−baby friendly birthing facilities. International Journal of Gynecology &
Obstetrics, v. 128, n. 2, p. 95–99, 2015. Disponível em: <http://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/
S0020729214005451>.
262 Ver: <http://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/apice/>.

124
Violência Obstétrica em Debate

direito a decidir autonomamente sobre seu corpo e seus processos reproduti-


vos, com garantia de atendimento livre de discriminação e coerção. Entendida
dessa maneira, a violência obstétrica pode ser operacionalizada não apenas
como forma de avaliar a relação entre profissionais de saúde e as mulheres
atendidas, mas também como medida de qualidade e segurança dos serviços e
do sistema de saúde, de modo mais amplo, e de respeito, pelo sistema de saúde,
aos direitos humanos, sexuais e reprodutivos das mulheres.

125
O dever de informação na relação
médico-gestante como forma de garantia
da autonomia existencial no parto

Ana Carolina Brochado Teixeira


Livia Teixeira Leal

Introdução: retirando a violência no parto da invisibilidade


O nascimento é a etapa originária da vida humana, constituindo mo-
mento central da vivência reprodutiva dos indivíduos. Juridicamente é dotado
de destacada relevância, sendo na legislação brasileira o marco inicial para a
constituição da personalidade civil.263 Trata-se, portanto, de acontecimento
permeado por importantes reflexos individuais e sociais, do qual emanam di-
reitos e deveres na ordem jurídica.
Originalmente considerado um procedimento fisiológico e feminino,
realizado por parteiras ou familiares no próprio lar da gestante, o parto tam-
bém sofreu os reflexos das transformações decorrentes das revoluções cientí-
ficas dos séculos XVII e XVIII,264 passando a constituir uma prática médica.
Contudo, a hospitalização do parto enfraqueceu aos poucos o protagonismo
da gestante, transferindo para o médico as principais escolhas atinentes ao

263 CC, Art. 2º. A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo,
desde a concepção, os direitos do nascituro.
264 “Na verdade, a denominada “medicalização” da sociedade não é algo inteiramente novo, visto ser um
processo que teve início com as revoluções científicas dos séculos XVII e XVIII, as quais subverteram
a ordem até então existente, ao desafiarem e questionarem a “lei natural” considerada imutável à
época. Ao desvendar alguns dos mistérios naturais, pertencentes à ordem do “sagrado”, o homem,
por meio da ciência, deu ensejo a uma contínua “dessacralização da natureza”, que até a atualidade
se desenvolve de forma crescente e acelerada. (...) O saber científico, em todas as suas expressões,
encontrou na medicina, um de seus principais instrumentos e tornou a vida humana objeto do saber
teórico, especialmente do conhecimento biológico”. BARBOZA, Heloisa Helena. A pessoa na era da
biopolítica: autonomia, corpo e subjetividade. Cadernos IHU ideias, ano 11, n. 194, 2013, p. 4.

127
Violência Obstétrica em Debate

procedimento, sob o dogma do risco e da patologização.265 A mulher, sob


essa ótica, passou a ser considerada fragilizada e incapacitada de vivenciar
o momento do parto sem a intervenção médica, e o parto normal passou a
ser considerado um procedimento arriscado e “sujo”, fatores que acarretaram
considerável acréscimo no número de cesáreas, que passaram a ser realizadas
inclusive sem a necessidade clínica – as denominadas cesáreas eletivas.
As transformações sociais e econômicas ocorridas nas últimas décadas,
com o avanço do movimento feminista e a revolução sexual promovida pelo
advento da pílula anticoncepcional, vêm ressaltando a importância, por outro
lado, de maior protagonismo da mulher na experiência de parto. Caminha-se
para o reconhecimento do necessário respeito pela autonomia da gestante em
relação aos procedimentos a serem empregados nesse momento tão significa-
tivo para a vida humana, a fim de que ele configure uma experiência positiva
para aquelas que o vivenciam.266
É nesse contexto que passa a ser repudiada qualquer forma de interfe-
rência que desconsidere a vontade da gestante ou que não esteja justificada
por uma necessidade médica imperiosa, como contraponto à intensa medi-
calização do corpo feminino e às inúmeras situações de violação de direitos
vivenciadas pelas mulheres em suas experiências de parto nos hospitais.
A Organização Mundial da Saúde define violência como o “uso intencio-
nal da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra
outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha
grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência

265 “O parto e o nascimento, que eram vistos como um evento fisiológico e feminino, começam a ser
encarados como um evento médico e masculino, incluindo a noção do risco e da patologia como
regra, e não mais exceção. Neste modelo tecnocrático, a mulher deixou de ser protagonista, cabendo
ao médico a condução do processo”. ZANARDO, Gabriela Lemos de Pinho; URIBE, Magaly
Calderón; NADAL, Ana Hertzog Ramos De; HABIGZANG, Luísa Fernanda. Violência obstétrica
no brasil: uma revisão narrativa. Psicologia & Sociedade, v. 29, Belo Horizonte, 2017, p. 3.
266 “A gravidez e o parto são eventos sociais que integram a vivência reprodutiva de homens e mulheres.
Este é um processo singular, uma experiência especial no universo da mulher e de seu parceiro,
que envolve também suas famílias e a comunidade. A gestação, parto e puerpério constituem uma
experiência humana das mais significativas, com forte potencial positivo e enriquecedora para
todos que dela participam”. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticos de Saúde. Área
Técnica de Saúde da Mulher. Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher. Brasília:
Ministério da Saúde, 2001, Prefácio.

128
Violência Obstétrica em Debate

de desenvolvimento ou privação”.267 Da definição exposta, pode-se identificar


que a própria compreensão da violência não se restringe ao aspecto físico, mas
também envolve as desigualdades que permeiam as relações humanas, das
quais emanam configurações do exercício de poder.
Sob esse aspecto, não se pode ignorar o poder repressivo sobre as mu-
lheres que se estabelece com a ideia de conexão biológica da mulher com a
maternidade, devendo-se considerar que muitos fatores atinentes à visão da
maternidade dizem respeito a razões de ordem social e cultural,268 e não ao
fato biológico em si.
A violência no parto é uma espécie de violência contra a mulher, sendo essa
última definida pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradi-
car a Violência contra a Mulher - “Convenção de Belém do Pará” (Decreto n.
1.973/96), como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte,
dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera públi-
ca como na esfera privada” (art. 1º). A violência no parto encontra-se, portanto,
relacionada à desigualdade de gênero, consistindo, em certo sentido, forma de
violência institucional, que se opera por meio da apropriação do corpo e dos
processos reprodutivos da mulher pelos agentes de saúde.269

267 OMS, Organização Mundial de Saúde. World report on violence and health. Genebra: OMS, 2002, p.
5. Grifos adicionados.
268 “A reprodução afeta a mulher de uma forma que transcende as divisões de classe e permeia todas
as suas atividades: sua educação, seu trabalho, seu envolvimento político e social, sua saúde, sua
sexualidade, enfim, sua vida e seus sonhos. É necessário que se deixe de romantizar o poder que pode
existir da conexão biológica da mulher com a Maternidade. É fundamental deixar de subestimar o
poder repressivo sobre as mulheres que se estabelece com essa conexão. Pois essa visão “reprodutiva”
das mulheres é muito menos o resultado de sua condição biológica e, acima de tudo, determinada
pela organização social e cultural. E não se pode deixar de reconhecer que essa organização tem,
até hoje, buscado cercear os esforços das mulheres para ganhar um pouco de espaço de controle
sobre suas vidas e seus corpos e para expressar livremente sua sexualidade”. BRASIL. Ministério da
Saúde. Secretaria de Políticos de Saúde. Área Técnica de Saúde da Mulher. Parto, aborto e puerpério:
assistência humanizada à mulher. Brasília: Ministério da Saúde, 2001, p. 15.
269 “A violência obstétrica corresponde a uma forma específica da violência de gênero, uma vez que
há utilização arbitrária do saber por parte de profissionais da saúde no controle dos corpos e da
sexualidade das parturientes. Esta modalidade de violência caracteriza-se pela apropriação do
corpo e dos processos reprodutivos da mulher pelos agentes de saúde, mediante um tratamento
desumanizado, abuso de medicalização e patologização dos processos naturais, causando a
perda de autonomia da parturiente e da sua capacidade de decidir livremente sobre seu corpo e
sexualidade, o que pode culminar com consequências negativas e desastrosas para a qualidade de
vida das mulheres”. SAUAIA, Artenira da Silva e Silva; SERRA, Maiane Cibele de Mesquita. Uma

129
Violência Obstétrica em Debate

A violência no parto pode ocorrer por meio de condutas diversas por


parte dos profissionais de saúde, de desrespeito, negligência e maus-tratos em
face da gestante, que envolve, inclusive, a interferência indevida na escolha do
modo de parto a ser adotado pela mulher. Nesse sentido, a pesquisa “Nascer
no Brasil”, coordenada pela Fiocruz, revelou que a cesariana é realizada em
52% dos nascimentos brasileiros, enquanto a recomendação da Organização
Mundial da Saúde (OMS) é no sentido de que somente 15% dos partos se-
jam realizados por meio desse procedimento cirúrgico.270 Questiona-se, des-
se modo, as razões das elevadas taxas de cesáreas entre gestantes brasileiras,
considerando-se que o parto, a princípio, constitui um acontecimento biológi-
co e natural, que não demandaria em regra a intervenção cirúrgica.
O que se pode verificar, em muitos casos, é uma insuficiência informativa,
alicerçada ainda na centralização do saber científico na figura do médico. As-
sim, o primeiro passo para retirar a violência no parto da invisibilidade é via-
bilizar o seu reconhecimento pela própria gestante, na medida em que muitas
vezes a mulher sequer possui consciência de que está vivenciando uma situação
de violação de seus direitos.271 Na esfera jurídica, o instrumento que se destaca é
o necessário dever de informação que deve permear a relação médico-paciente
e que se reflete especialmente na relação entre obstetra-gestante, antes, durante
e após o parto. É nesse sentido que o presente estudo tem por escopo analisar
como o dever de informação na relação médico-gestante pode constituir um
importante instrumento de garantia da autonomia existencial no parto.

dor além do parto: violência obstétrica em foco. Revista de Direitos Humanos e Efetividade, Brasília,
v. 2, n. 1, p. 128 - 147, Jan/Jun. 2016, p. 129.
270 FIOCRUZ. Nascer no Brasil: pesquisa revela número excessivo de cesarianas. Disponível em:
<https://portal.fiocruz.br/noticia/nascer-no-brasil-pesquisa-revela-numero-excessivo-de-
cesarianas>. Acesso em: 19.8.2018.
271 “Em distintas partes do mundo, essa modalidade de violência tem se alastrado de maneira preocupante
e silenciosa, haja vista que as mulheres vítimas desta prática não a percebem como tal. Por questões
culturais, o parto ainda é encarado como um momento de ‘dor necessária’”. SAUAIA, Artenira da
Silva e Silva; SERRA, Maiane Cibele de Mesquita. Uma dor além do parto: violência obstétrica em
foco. Revista de Direitos Humanos e Efetividade, Brasília, v. 2, n. 1, p. 128 - 147, Jan/Jun. 2016, p. 132.

130
Violência Obstétrica em Debate

2. As transformações da relação médico-paciente


A relação médico-paciente (inclusive, a médico-gestante) tem sofrido
transformações importantes, a partir da crescente consideração da vontade do
paciente, em razão da relevância do seu consentimento para as decisões sobre
o seu corpo. O Código de Nuremberg foi o primeiro documento internacional
que tratou da necessidade do consentimento do paciente em pesquisas, juízo
que se expandiu para a relação médico-paciente. Não é por acaso que, atual-
mente, o fortalecimento da autonomia na área biomédica tem sua origem recen-
te na expressiva mudança na relação médico-paciente. Existe uma tendência em
se abandonar a relação paternalista, na qual o médico era obrigado, a qualquer
custo, a salvar a vida do enfermo – decorrência do juramento hipocrático272 –,
de modo que outro não poderia ser o status do paciente que não o de objeto,
pois o médico era o responsável pela tomada de todas as decisões sobre seu tra-
tamento. O paternalismo se justificava na premissa de o médico sempre ter sido
considerado portador de verdades que tinham a solução para as doenças.273
Por essa razão, subsistia uma relação paternalista, na qual “o médico é o
pai e o doente é um incapaz; é um enfermo, um infirmus, um ente sem firmeza
de julgamento e de vontade. O paciente não decidia nada; obedecia ao médico,
com a convicção de que este procuraria, segundo o seu critério técnico, o seu
bem”.274 Preponderava o princípio da beneficência, que pressupõe ações no

272 “Note-se que nos textos atribuídos a Hipócrates, recomendava-se que o médico escondesse tudo o
que pudesse do doente, desviando mesmo a atenção dele daquilo que lhe estava a fazer e omitindo
o prognóstico que lhe reservava... Mas há quem afirme que o exercício da medicina nunca foi tão
autoritário como estas passagens fazem crer senão porventura, durante a Idade Média, quando
a prática clínica esteve confiada aos monges, habituados a relações organizadas de uma forma
hierárquica severa, e ao dogma”. OLIVEIRA, Guilherme. Estrutura jurídica do acto médico,
consentimento informado e responsabilidade médica. In: OLIVEIRA, Guilherme. Temas de direito
da medicina. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 60.
273 “Os médicos, para além de, em épocas longas, terem beneficiado da condição cumulativa e
privilegiada de eclesiásticos, estiveram sempre tão próximos do divino quanto a própria doença:
desde o velho culto de Asclépio até à mistura que ainda hoje persiste entre um saber racional e um
saber mágico, toda a caminhada do sofrimento humano garantiu à medicina um estatuto superior
e estabilizado que não se compadecia com a humana prestação de contas”. OLIVEIRA, Guilherme.
O fim da “arte silenciosa”. In: OLIVEIRA, Guilherme. Temas de direito da medicina. Coimbra:
Coimbra Editora, 2005, p. 107.
274 OLIVEIRA, Guilherme. O fim da “arte silenciosa”. In: OLIVEIRA, Guilherme. Temas de direito da
medicina. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 110.

131
Violência Obstétrica em Debate

sentido de beneficiar os outros, que não apenas não os prejudique, mas tam-
bém contribua para o seu bem-estar.
Foi em razão dessa posição de poder, como detentores do conhecimento,
que os médicos foram, aos poucos, tomando o lugar das parteiras, num crescen-
te processo de industrialização e medicalização do parto275 – na contramão do
que era até então, um ritual de mulheres, não era considerado um ato médico
(que só era chamado se houvesse complicações), e por isso, ficava a cargo das
parteiras.276 O desenvolvimento de drogas que tiravam a dor, de técnicas que
modificavam a forma na qual a cesariana era feita, organização de transfusão
de sangue, antibióticos, acabaram tornando a cesariana um procedimento cada
vez mais confiável. A partir da década de 70, o parto passou a ser feito, como re-
gra, no hospital, com a paciente monitorada, infusão de ocitocina para o auxílio
das contrações, o que o tornou mais seguro.277 Nesse novo modelo tecnocrático
de parto, o obstetra se ocupa muito mais do útero, das contrações e do bebê do
que da visão da mulher como um todo, o que acabou fazendo com que a mulher
deixasse de ser o sujeito do parto para que o médico passasse a ter a condução do
parto. Além disso, passou a ignorar as condições emocionais da mulher como
fator dificultador ou facilitador para o trabalho de parto.

275 “Joseph  DeLee, renomado  professor de obstetrícia norte-americano, teve um papel proeminente
no advento do parto industrializado. Foi autor de vários livros textos, um orador requisitado e
inventor de muitas ferramentas obstétricas.  No seu famoso artivo e discurso a colegas obstetras,
feito em 1920 e intitulado: “O uso profilático de fórceps”, ele observou que “o parto é um processo
patológico”. Ele recomendou o uso rotineiro do fórceps e a episiotomia em cada parto. Ele sugeriu
que a “paciente” deveria ser sedada e que o éter deveria ser administrado. O tratado de DeLee foi de
tanta influência nos EUA que, pela década de 30, a “obstetrícia profilática” já tinha se tornado a
norma”. Disponível em: <http://institutonascer.com.br/historia-parto/>. Acesso em: 19.8.18.
276 MAIA, Mônica Bara. A assistência à saúde e ao parto no Brasil. In: Humanização do parto: política
pública, comportamento organizacional e ethos profissional [online]. Rio de Janeiro: Editora
FIOCRUZ, 2010, p. 29. Disponível em: <http://books.scielo.org/id/pr84k/pdf/maia-9788575413289-
03.pdf>. Acesso em: 20.8.18.
277 “(...) o evento complexo do parto e nascimento se tornou, ao longo dos últimos séculos, um assunto
médico e hospitalar, separado da vida familiar e comunitária. O parto hospitalar serviu à obstetrícia
de três maneiras: restringindo a competição com as parteiras, estabelecendo o princípio do controle
médico sobre as pacientes e permitindo o treinamento de novos médicos (Domingues, 2002). O
parto medicalizado e hospitalar tornou-se sinônimo de modernidade, de segurança e de ausência
de dor”. MAIA, Mônica Bara. A assistência à saúde e ao parto no Brasil. In: Humanização do parto:
política pública, comportamento organizacional e ethos profissional [online]. Rio de Janeiro:
Editora FIOCRUZ, 2010, p. 33. Disponível em: <http://books.scielo.org/id/pr84k/pdf/maia-
9788575413289-03.pdf>. Acesso em: 20.8.18.

132
Violência Obstétrica em Debate

As mudanças do papel da mulher no parto são coincidentes com uma


transformação paulatina que ocorreu na relação médico-paciente, a partir da
assunção do papel da gestante como sujeito da sua própria vida, tratamento e
parto. Essa mudança ocorreu em razão de a pessoa ter sido colocada no centro
dos sistemas jurídicos, sendo-lhe atribuído um catálogo de direitos fundamen-
tais para que ela possa deles se utilizar, em nome da dignidade e do livre desen-
volvimento da sua personalidade, de modo que ela possa se construir livremen-
te. Logo, não poderia ficar alheia a interferências ou manipulações no seu corpo
sem sua permissão ou contra a sua vontade, pois a “inviolabilidade física cons-
titui o próprio núcleo da liberdade pessoal”.278 Trata-se da liberdade de decidir
o que melhor lhe convém sobre o seu corpo, de autodeterminar-se em escolhas
que envolvam também a sua dimensão física. É a possibilidade de edificar a
própria esfera privada, a identidade pessoal com ações que incidem sobre a in-
tegridade física, uma vez que o consentimento é exercício da liberdade pessoal.
Busca-se, hoje, uma relação mais aberta, na qual o médico detém um
papel mais informativo e aconselhador, de interlocutor, dialogando com o
enfermo,279 transferindo para este a decisão sobre os rumos do seu tratamen-
to, pois é ele o maior interessado em decidir sobre o destino a ser dado à sua
saúde, à sua doença e ao seu tratamento.280 Não há mais uma relação de su-
perioridade do médico sobre o paciente, mas sim, de igualdade entre eles.281

278 FERRANDO, Gilda. Il principio di gratuità, biotecnologie e atti di disposizione del corpo. In:
BONELL, Joaquim; CASTRONOVO, Carlo; DI MAJO, Adolfo; MAZZAMUTO, Salvatore (a cura
di). Europa e diritto privato. Milano: Giuffrè, jul./set. 2002, p. 768.
279 STANCIOLI, Brunello Souza. Relação jurídica médico-paciente. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 27.
280 “O princípio da autonomia pode ser entendido como o reconhecimento de que a pessoa possui
capacidade para se autogovernar. Assim, de modo livre e sem influências externas, preceitua-se o
respeito pela capacidade de decisão e ação do ser humano”. NAVES, Bruno Torquato de Oliveira;
SÁ, Maria de Fátima Freire de. Manual de biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 34.
281 Entendemos que essa mudança ocorreu em virtude da tutela da pessoa humana e da necessidade do
paciente de participar do seu processo terapêutico. Por isso, ousamos discordar de Roxana Borges
que imputa essa mudança de perspectiva à consideração do paciente como cliente: “No meio médico,
tem-se buscado uma maior humanização da medicina. Um reflexo dessa tentativa é a consideração
do paciente como cliente. A troca das expressões é significativa. Ao tratar o doente como cliente e
não como paciente, aquele é elevado a sujeito, deixando de ser meramente aquele que espera, como a
expressão paciente significa”. BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direito de morrer dignamente:
eutanásia, ortotanásia, consentimento informado, testamento vital, análise constitucional e penal e
direito comparado. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Biodireito: ciência da vida, os novos
desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 296.

133
Violência Obstétrica em Debate

Em razão dessas mudanças, é necessário abandonar a ideia de infantili-


zação do paciente, que tem como pano de fundo um genuíno “paternalismo
clínico”,282 que trata o paciente como incapaz de decidir, de participar do seu
processo terapêutico, poupando-lhe de informações ruins sobre seu estado de
saúde ou sobre a evolução da doença. O caminho para maior humanização
desse relacionamento é o diálogo. Na verdade, a manutenção do paternalismo
significa a continuidade de um grande autoritarismo, pois retira do enfermo
a possibilidade de ele decidir sobre si mesmo, sobre suas condições de vida,
sobre como quer viver sua vida ante o diagnóstico.283
Tal transformação só foi possível em razão do reconhecimento à pessoa
do direito de governar a própria vida, com o pleno exercício de soberania so-
bre seu corpo. “A revolução do consentimento informado modifica as hierar-
quias sociais recebidas, dando voz a quem era silencioso diante do poder do
terapeuta e define uma nova categoria geral constitutiva da pessoa. Consentir
equivale a ser.”284 A pessoa assume a condição de sujeito, dispondo do antigo
tratamento de “objeto” de tratamento cujos rumos sempre foram decididos
apenas pelo médico, fazendo nascer outros aspectos da sua subjetividade.
Há pouco tempo, a autonomia evoluiu de um caráter negativo de recusar
tratamento médico para um direito positivo de participar das escolhas de tra-
tamentos.285 Isso foi possível na relação médico-paciente em razão da paulatina
superação do princípio do paternalismo e a assunção do princípio da autorres-
ponsabilidade, pois cada um tem o direito de determinar o seu destino, vital e pes-
soal, respeitando seus próprios valores, visões de mundo, mesmo que lhe sejam, a
priori, prejudiciais.286 Beauchamp e Childress afirmam que a autonomia tem um

282 Esta expressão é de Guilherme de Oliveira. OLIVEIRA, Guilherme. Estrutura jurídica do acto
médico, consentimento informado e responsabilidade médica. In: OLIVEIRA, Guilherme. Temas
de direito da medicina. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 61.
283 Já afirmou Judith Martins-Costa que o paternalismo é um modo de ser autoritário. MARTINS-
COSTA, Judith. Pessoa, personalidade, dignidade: ensaio de uma qualificação. Tese de livre-
docência em direito civil apresentada à congregação da Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo. Maio, 2003, p. 185.
284 RODOTÀ, Stefano. Perché laico. Roma-Bari: Laterza, 2009, p. 85.
285 PESSINI, Leo. Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo: Centro Universitário São
Camilo, Loyola, 2001, p. 171.
286 CASABONA, Carlos Maria Romeo. El derecho y la bioética ante los limites de la vida humana.
Madrid: Centro de Estúdios Ramón Aceres, 1994, p. 42.

134
Violência Obstétrica em Debate

lado negativo e outro positivo, de todo aplicado na relação médico-paciente. O


aspecto negativo assegura que “ações autônomas não devem ser sujeitas a pressões
controladoras de outros”; já o positivo determina “o tratamento respeitoso na re-
velação de informações e no encorajamento da decisão autônoma”.287
Pelo fato de não mais haver paternalismo, quando há discernimento, não se
pode negar ao paciente todas as informações, os riscos que cada decisão envolve,
de forma que a pessoa possa compreender a situação de doença de forma global,
para que, formado este contexto, ele possa decidir. “A expressão da autonomia
do sujeito, da sua liberdade para consentir, se concretiza no consentimento após-
-informação e esta permissão é dada por cada sujeito, individualmente.”288
A gestação e o parto são momentos essenciais que também devem ser
abrangidos por essa mudança na relação da gestante com o médico e toda
a equipe de saúde, de modo que ela “deve receber todas as informações ne-
cessárias para a prevenção e controle da ansiedade e do medo. Isso a tornará
mais preparada para o fenômeno da parturição, podendo, inclusive, resultar
na escolha mais adequada do tipo de parto”.289 É para melhor alcançar esse
objetivo que está se transformando a visão de parto, para que ele seja mais
humanizado, o que pressupõe uma série de condutas, tais como “um acom-
panhante de sua escolha em todo o processo do pré-parto, parto e puerpério;
tenha liberdade de movimentação; possa receber métodos não farmacológicos
para alívio da dor; tenha privacidade e a presença constante de um profissio-
nal capacitado para acompanhar o parto; possa escolher a posição de parir;
seja a primeira a ver seu bebê e a pegá-lo; e tenha seu medo e sua dor percebi-
dos como legítimos e integrantes do processo”.290

287 BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola,
2002, p. 143-144.
288 GUIMARÃES, Maria Carolina S.; NOVAES, Sylvia Caiuby. Autonomia reduzida e vulnerabilidade:
liberdade de decisão, diferença e desigualdade. Disponível em: <http://revistabioetica.cfm.org.br/
index.php/revista_bioetica/article/view/288/427>. Acesso em: 11.8.2018.
289 MARQUE, Flávia Carvalho; DIAS, Ieda Maria Vargas; AZEVEDO, Leila. A percepção da equipe de
enfermagem sobre humanização do parto e do nascimento. Esc Anna Nery R Enferm, dez. 2006, p. 441.
290 MAIA, Mônica Bara. A assistência à saúde e ao parto no Brasil. In: Humanização do parto: política
pública, comportamento organizacional e ethos profissional [online]. Rio de Janeiro: Editora
FIOCRUZ, 2010, p. 44. Disponível em: <http://books.scielo.org/id/pr84k/pdf/maia-9788575413289-
03.pdf>. Acesso em: 20.8.18.

135
Violência Obstétrica em Debate

3. O dever de informação como pilar


da relação médico-paciente
A relação médico-paciente deixou de ser pessoal para ser qualificada
como relação de consumo. O Superior Tribunal de Justiça já pacificou enten-
dimento no sentido de que a relação entre médico e paciente é contratual e
a prestação de serviços configura obrigação de meio291 (exceto em cirurgias
com fins estéticos). O Código de Defesa do Consumidor prevê, em seu art.
6º, III, ser direito básico do consumidor a informação clara e adequada. Esses
novos contornos representam um desafio à criação de vínculos entre médicos
e pacientes, o que não pode ser um obstáculo à efetivação do diálogo, do dever
de informar, do esclarecimento. Independente da proximidade entre médico
e enfermo, os deveres inerentes a esta relação devem ser implementados pois
são essenciais, vez que se referem aos “riscos do tratamento, a ponderação
quanto às vantagens e às desvantagens” 292 da situação – no caso em estudo,
das circunstâncias do parto.
A informação é, portanto, o eixo principal dessa relação, que tem como
escopo a construção do diálogo, do entendimento e da verdadeira comunicação
entre médico e paciente, para que seja possível a implementação da melhor al-
ternativa para gestante no parto, de acordo com as suas expectativas para esse
momento especial da sua vida e que, simultaneamente, resguarde a vida do feto.
Em razão de a paciente, a princípio, não deter o conhecimento técnico,
é necessário que o médico lhe forneça a maior gama possível de informações,
em linguagem compreensível, para que o a gestante entenda o que está lhe
acontecendo. De acordo com Gustavo Tepedino, cabe ao médico “o dever de
fornecer ampla informação quanto ao diagnóstico e ao prognóstico”, além do
“emprego de todas as técnicas disponíveis para a recuperação do paciente,

291 “O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 14, caput, prevê a responsabilidade objetiva aos
fornecedores de serviço pelos danos causados ao consumidor em virtude de defeitos na prestação
do serviço ou nas informações prestadas - fato do serviço. Todavia, no § 4º do mesmo artigo,
excepciona a regra, consagrando a responsabilidade subjetiva dos profissionais liberais. Não há,
assim, solidariedade decorrente de responsabilidade objetiva, entre o cirurgião-chefe e o anestesista,
por erro médico deste último durante a cirurgia”. STJ, EREsp 605435 / RJ, S2, Rel. p/ acórdão Min.
Raul Araújo, julg. 14.9.2011, DJ 28.11.2011.
292 TEPEDINO, Gustavo. A responsabilidade médica na experiência brasileira contemporânea. In:
_____. Temas de direito civil. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 90.

136
Violência Obstétrica em Debate

aprovados pela comunidade científica e legalmente permitidas”, uma vez que


o foco é “a tutela do melhor interesse do enfermo em favor de sua dignidade e
integridade física e psíquica”.293 No entanto, a visão externa do “melhor inte-
resse” deve estar em segundo plano frente ao direito da pessoa, devidamente
informada, exercer suas escolhas. Quando se fala do parto, muito se tem pen-
sado em uso de tecnologias de intervenção, o que acaba demonstrando ser
aquele um momento de forte medicalização e baixa expressão dos desejos.
Estudos demonstram que a mulher tem grande insegurança, que acaba por
afastá-la da posição de protagonista do parto, submetendo-se a ordens e orien-
tações, não obstante seja ela quem sente as dores e que vai parir.294
É o aprimoramento da comunicação, do diálogo entre médico e paciente
por meio do esclarecimento de todas as possibilidades, que facultará à gestan-
te a opção pela alternativa mais adequada para si e seu filho no momento do
parto, atendendo ao binômio escolha da gestante e saúde do feto.
Esse mecanismo é que diminuirá a distância, a desigualdade da relação
médico-paciente, de modo a aproximá-los, mesmo que seja pela linguagem,
o que se faz necessário para evitar uma relação arbitrária do médico sobre a
integridade física da paciente sem sua autorização. É por este canal em que
se busca estabelecer uma verdadeira comunicação que a pessoa passa a atuar,
a participar do processo relacionado a todos os aspectos de sua saúde, prin-
cipalmente num momento de máxima intimidade como é o parto. Esses as-
pectos são de tal forma relevantes que o Ministério da Saúde estabelece que a
assistência ao parto deve ser segura, garantindo a cada mulher os benefícios
dos avanços científicos, as informações necessárias, mas também, permitir e
estimular o exercício da cidadania feminina, por meio do resgate da autono-
mia da mulher no parto.295
Não se trata apenas de proporcionar a informação. Mas nessa específica
relação entre médico obstetra e paciente, a forma como se presta a informação
também faz diferença, pois a mulher está num momento hormonal e emocio-

293 TEPEDINO, Gustavo. A responsabilidade médica na experiência brasileira contemporânea. In:


_____. Temas de direito civil. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 90.
294 WOLF, L. R., MOURA, M. A. V. A institucionalização do parto e a humanização da assistência:
revisão da literatura. Esc Anna Nery Ver Enferm 2004 ago, p. 279-85.
295 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticos de Saúde. Área Técnica de Saúde da Mulher.
Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher. Brasília: Ministério da Saúde, 2001.

137
Violência Obstétrica em Debate

nal bastante particular e delicado. A informação deve significar acolhimento e


cuidado, para que o médico seja o principal aliado da gestante no momento do
parto. É preparando para essa ocasião que se pretende a construção do consen-
timento livre e esclarecido da gestante, que tem duplo caráter: i) reproduz um
acordo de vontades entre médico e paciente após o adimplemento do dever de
informar; ii) é condição de legitimidade da ação do médico, considerado tercei-
ro, já que o ponto de referência é gozo de direitos de personalidade pela gestante.
O consentimento livre e esclarecido pode ser definido como “manifestação
de concordância do portador do bem jurídico que é o paciente com a intervenção
ou tratamento médico que, para ser válida, pressupõe, não apenas uma simples
informação, mas um verdadeiro e completo esclarecimento, decorrente de um de-
ver especial e funcional do médico de prestar ao seu paciente esclarecimentos com
lealdade, em linguagem acessível e apropriados ao seu estado sobre os meios de
diagnósticos, inconvenientes, diagnóstico estabelecido, prognóstico, tratamentos
indicados, alternativas terapêuticas, efeitos colaterais, etc.”.296
Deve-se buscar sempre uma relação aberta e transparente, para que a par-
turiente possa tomar decisões da forma mais esclarecida possível, por meio da
construção paulatina de uma confiança mútua, pois o consentimento não é sim-
plesmente um ato, mas um processo “perspectivado como um diálogo entre o
doente e o médico em que ambas as partes trocam informações e se interrogam
reciprocamente”.297 É necessário que a gestante tenha sanada todas as suas dúvi-
das e esclarecidas as situações que ela, muitas vezes, sequer imagina que possam
acontecer no parto, sendo respeitadas as circunstâncias particulares que o mo-
mento envolve: dor, amor, responsabilidade, incertezas, abandono, etc.
Podemos afirmar que o consentimento informado se configura num direito
fundamental da paciente-gestante, posto ser decorrente da sua autonomia e da sua
integridade psicofísica. Ela detém um direito à autodeterminação nos cuidados de
saúde, garantia que se origina na dignidade e na liberdade e, por essa razão, tem
foro constitucional. Se esse direito é negado, o médico responde civilmente.298

296 RODRIGUES, Álvaro da Cunha Gomes. Consentimento informado – pedra angular da


responsabilidade criminal do médico. In: OLIVEIRA, Guilherme (Coord.). Direito da medicina.
Coimbra: Coimbra Editora/Centro de Direito Biomédico, 2002, p. 31.
297 DIAS, J. Álvaro. Procriação assistida e responsabilidade médica. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 281.
298 “RESPONSABILIDADE CIVIL. Hospital. Santa Casa. Consentimento informado. A Santa Casa,
apesar de ser instituição sem fins lucrativos, responde solidariamente pelo erro do seu médico, que

138
Violência Obstétrica em Debate

Para melhor assegurar esse direito, o consentimento informado não se


limita à simples assinatura em um formulário, quase como um “contrato de
adesão”. Ele deve ser entendido como um processo de diálogo e de compreen-
são da gestante sobre o parto, através da construção de uma relação de con-
fiança entre o enfermo e os profissionais de saúde, na qual a gestante participa,
pergunta, esclarece e compreende a situação no âmbito da própria concepção
de vida boa, para então, decidir o que é melhor para si, dentro do próprio pro-
jeto de vida que construiu para si mesmo.
Diante dessa realidade, o atual Código de Ética Médica reconhece a im-
portância da consideração da autonomia do paciente pelo médico, prevendo,
em seus arts. 22 e 24, que o médico deve obter o consentimento do paciente
ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser
realizado, salvo em caso de risco iminente de morte, e garantir ao paciente o
exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar,
bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.299
Em contrapartida ao direito do paciente de expressar-se de forma livre
por meio do consentimento livre e esclarecido, o médico tem o dever de acatar
a sua escolha, tutelando-lhe a privacidade e a confidencialidade. Desse modo,
a conduta do médico é modulada e condicionada à vontade da paciente/ges-
tante, que pode autorizar ou não determinados tratamentos ou formas de par-
to, segundo a própria concepção de saúde. Logo, a forma de operacionalização
do parto e as circunstâncias que este ocorrerá devem ser resolvidas pelo pa-
ciente, após informações do médico. Mas independente destas, cabe à pessoa,
sempre, a tomada de decisões sobre a gestão da própria saúde.

deixa de cumprir com a obrigação de obter consentimento informado a respeito de cirurgia de


risco, da qual resultou a perda da visão da paciente. Recurso não conhecido”. STJ, REsp 467878 /
RJ, 4ª T., Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 5.12.2002, DJU 10.2.2003); “RESPONSABILIDADE
CIVIL. Médico. Consentimento informado. A despreocupação do facultativo em obter do paciente
seu consentimento informado pode significar - nos casos mais graves - negligência no exercício
profissional. As exigências do princípio do consentimento informado devem ser atendidas com
maior zelo na medida em que aumenta o risco, ou o dano. Recurso conhecido”. STJ, REsp 436827 /
SP, 4ª T., Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 1.10.2002, DJU 18.11.2002.
299 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Código de Ética Médica. Disponível em: <http://www.
portalmedico.org.br/novocodigo/integra.asp>. Acesso em: 20.8.2018.

139
Violência Obstétrica em Debate

4. As várias formas da violência no parto


O parto é um dos marcos centrais da experiência reprodutiva humana,
sendo, para a mulher, um momento de vulnerabilidade acentuada, ainda per-
meado por certo mistério e temor, em grande parte pelas experiências trau-
máticas relatadas por muitas mulheres e pela insuficiência ou tendenciosidade
das informações disponíveis. A violência no parto pode se manifestar por di-
ferentes formas, tanto no âmbito físico, psicológico e sexual quanto no insti-
tucional, material e midiático, e a sua identificação é a primeira dificuldade
vivenciada por muitas mulheres, na medida em que há determinadas práticas
tão arraigadas na prática médica que acabam por ser banalizadas como pro-
cedimentos intrínsecos ao parto.
Fisicamente, a violência pode se manifestar por meio da utilização de
procedimentos que causem dor ou dano físico sem recomendação baseada em
evidências científicas, como manobra de Kristeller, uso rotineiro de ocitocina,
cesariana eletiva sem indicação clínica, não utilização de analgesia quando
tecnicamente indicada, etc.
A manobra de Kristeller é um procedimento que tem por objetivo acele-
rar a expulsão do feto, por meio do qual o profissional de saúde busca “empur-
rar” o nascituro em direção à pelve, podendo usar o braço, o antebraço e até
o joelho com essa finalidade. Trata-se de manobra que pode apresentar riscos
para a gestante e para o nascituro, além de constituir uma intervenção física
que desconsidera as necessidades e peculiaridades de cada parturiente.
O uso de ocitocina como forma de acelerar o parto também pode repre-
sentar uma forma de violação dos direitos da parturiente, sobretudo nos casos
em que ela não é informada a respeito do uso da substância ou se manifesta
expressamente contra, como relatado na experiência de parto a seguir:
“A enfermeira disse que, como eu estava “quase lá”, ela colocaria o “sori-
nho” em mim primeiro. Perguntei o que tinha no soro e ela falou que tinha
ocitocina. Eu disse NÃO. Ela não deu importância. Pelo contrário, disse
que ia me colocar, porque ninguém ali queria um bebê morto, não é mes-
mo? As pessoas vão para o Hospital para ter um bebê vivo, e se eu tivesse
que ir para a UTI ninguém perderia tempo achando minha veia. Ainda

140
Violência Obstétrica em Debate

reclamou que a veia da minha mão era muito torta.” Thais Stella, aten-
dida na rede pública no Hospital Sorocabana, Lapa em São Paulo-SP300

Além dessas formas de violência, pode ser destacada a restrição da posi-


ção para o parto conforme a preferência da mulher. Em muitos casos, descon-
sidera-se as manifestações de vontade da parturiente por uma ou outra posi-
ção que a deixe mais confortável, como pode ser observado no relato abaixo:
“Perguntei ao meu médico se eu podia escolher a posição para o parto,
por exemplo de cócoras. Ele riu e falou que é pra eu tirar essas ideias de
‘parto hippie’ da cabeça. Eu insisti e ele disse que não estudou tanto para
ficar agachado igual a um mecânico.” G. atendida através de plano de
saúde no Rio de Janeiro-RJ301

A indução das pacientes para a realização de cesáreas eletivas também


representa um grande obstáculo à garantia da autonomia da gestante. Como a
mulher não possui conhecimento técnico para identificar os casos em que se
faz necessário este procedimento cirúrgico, a decisão acaba por competir ao
médico, que pode indicar o parto cirúrgico sem a real necessidade. Além dis-
so, muitas mulheres acabam optando pela cesárea por já terem vivenciado ou
tomado conhecimento de formas de violência comuns em partos normais,302 o

300 Parto do Princípio – Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa. Violência Obstétrica “Parirás com
dor”. Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres.
2012. Disponível em: <https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20
VCM%20367.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2018.
301 Parto do Princípio – Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa. Violência Obstétrica “Parirás com
dor”. Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres.
2012. Disponível em: <https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20
VCM%20367.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2018.
302 “No entanto, também se pode pensar como violência obstétrica a mulher ser privada da escolha da via
de parto. Isso porque culturalmente as mulheres são levadas a pensar que o parto normal é sempre
a melhor escolha para ela e seu bebê. No entanto, não são informadas de forma adequada sobre as
vantagens e desvantagens de cada um dos métodos. De acordo com a Doutora em Ciências da Saúde,
Nilza Alves Marques Almeida, essa concepção sobre o parto normal está mudando. Como triunfo
social, a obstetrícia médica, além de manter o modelo intervencionista de assistência, passou a apontar
o parto cirúrgico como uma das soluções para o problema da dor do parto normal, com base na ideia
de que a mulher não é a culpada pela dor, mas sim vítima de sua própria natureza. Assim, por meio de
uma cesárea eletiva, a dor do parto normal poderia ser evitada para a maioria das mulheres assistidas
no setor privado, tornando-se uma intervenção, muitas vezes realizada por conveniências diversas da
equipe médica, e até mesmo, da própria mulher grávida”. ALVARENGA, Sarah Pereira; KALIL, José

141
Violência Obstétrica em Debate

que ressalta ainda mais a importância de se criar instrumentos de prevenção a


este tipo de violação de direitos e de acesso à informação adequada às gestan-
tes. A narrativa abaixo revela a ocorrência deste tipo de violência:
“Meu médico sabia que eu queria parto normal. Pedi a ele que tentasse
esperar mais, que preferia repetir os exames mais pra perto e pelo me-
nos sentir as contrações para então fazer a operação. Ele me disse que
era muito arriscado” esperar, que cesariana não era tão perigoso assim
como dizem, que não era nada demais. Ele abriu a agenda dele e falou:
‘Ingrid, quarta-feira que vem você se interna e a gente faz a cesárea.’.
Meu marido virou pra ele e falou: ‘Poderia ser na sexta-feira, assim no
final de semana eu poderia ficar com ela direto?’. Ele respondeu: ‘E eu
vou perder o meu final de semana???’” Ingrid Lotfi, atendida através de
plano de saúde Unimed no Rio de Janeiro-RJ. Depois de nascer, seu
bebê passou 14 horas na UTIn por desconforto respiratório303

Buscando dar maior visibilidade e garantir o direito à informação, a Reso-


lução Normativa n. 368/15, da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS,
em seu art. 2º, determina que, sempre que for solicitado por uma de suas benefi-
ciárias ou seu representante legal, a Operadora de Planos de Assistência à Saúde
deverá disponibilizar o percentual de cirurgias cesáreas e de partos normais.
A violência sexual, que incide sobre a integridade sexual e reprodutiva
da mulher, também constitui forma comum de violência no parto, podendo
se manifestar por meio de assédio, exames de toque invasivos, constantes ou
agressivos, lavagem intestinal, cesariana sem consentimento informado, epi-
siotomia, dentre outros.
A episiotomia (ou “pique) constitui em uma incisão realizada na vulva
da parturiente com a finalidade de aumentar a abertura do canal vaginal no
momento do parto, muitas vezes realizada sem o consentimento da gestante.
No dossiê “Violência Obstétrica Parirás com dor”, elaborado pela Rede Parto
do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres, foi apontado o re-
lato de uma gestante que passou pelo procedimento sem o seu consentimento:

Helvécio. Violência obstétrica: como o mito “parirás com dor” afeta a mulher brasileira. Revista da
Universidade Vale do Rio Verde, Três Corações, v. 14, n. 2, p. 641-649, ago./dez. 2016, p. 645.
303 Parto do Princípio – Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa. Violência Obstétrica “Parirás com
dor”. Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres.
2012. Disponível em: <https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20
VCM%20367.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2018.

142
Violência Obstétrica em Debate

“Quando eu ouvi ele pedindo o bisturi, meu Deus, quase morri! Eu pedi
para que não fizesse a episio, mas ele me respondeu: ‘O seguro morreu
de velho. Quem manda aqui sou eu.’” Danielle Moura, que procurou
informações sobre episiotomia durante a gestação, que decidiu por não
se submeter ao procedimento e comunicou ao médico sobre a decisão.
Atendida através de plano de saúde em Belém-PA304

Este procedimento apresenta uma série de riscos, podendo causar lesão a


músculos, vasos sanguíneos e tendões presentes na região, além de outras com-
plicações, como dor nas relações sexuais, risco de infecções e laceração perineal
em partos subsequentes. Além disso, alguns médicos, ao realizar a sutura, dei-
xam um ponto mais apertado, com a finalidade de deixar a vagina mais estreita
para “preservar” o prazer masculino nas relações sexuais depois do parto (o que
ficou conhecido como “ponto do marido”). Em relato de parto, uma gestante
descreveu o momento em que o médico realizou a referida sutura:
“Num determinado momento da sutura, ele disse que ia dar dois pontos
que iam doer um pouco mais, depois comentou que era o “ponto do ma-
rido”. Perguntei a ele o que era isso e ele disse que era um ponto que era
dado para que “as coisas voltassem a ser parecidas com o que era antes”
e que, se eles não fizessem isso, depois o marido voltava para reclamar.
Como a referência ao marido é uma constante, perguntamos se eles já
viram um marido reclamar, ao que responderam que não, uma vez que
esse ponto era sempre feito”.305

A incisão feita sem a anuência da parturiente que lhe acarrete dano pode ge-
rar, inclusive, o dever de indenizar. Nesse sentido, a 2ª Turma do STF, em acórdão
de relatoria do Ministro Celso de Mello, já reconheceu a responsabilidade civil
do ente público por danos causados a paciente em razão de lesão esfincteriana

304 Parto do Princípio – Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa. Violência Obstétrica “Parirás com
dor”. Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres.
2012. Disponível em: <https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20
VCM%20367.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2018.
305 Parto do Princípio – Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa. Violência Obstétrica “Parirás com
dor”. Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres.
2012. Disponível em: <https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20
VCM%20367.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2018.

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Violência Obstétrica em Debate

obstétrica grave resultante de episiotomia realizada durante o parto, apontando a


prestação deficiente de atividade médico-hospitalar de hospital público.306
Também pode ser apontada a violência psicológica no parto, que confi-
gura “toda ação verbal ou comportamental que cause na mulher sentimentos
de inferioridade, vulnerabilidade, abandono, instabilidade emocional, medo,
acuação, insegurança, dissuação, ludibriamento, alienação, perda de integri-
dade, dignidade e prestígio”,307 tais como: ameaças, ofensas, humilhações, e
até mesmo a omissão de informações importantes. Na experiência relatada a
seguir, pode ser verificada a ocorrência de violência psicológica:
“Eles gritavam comigo assim: ‘Faz força direito!’, ‘Faz força de fazer cocô’,
‘Você vai matar seu filho! É isso que você quer?’, ‘Pára de gritar senão seu
filho vai morrer!’.” C. atendida na rede pública, em Vila Velha-ES308

Destacam-se, ainda, a violência institucional, configurada por ações que


impeçam ou dificultem de algum modo o acesso da mulher a seus direitos,
podendo se manifestar sob omissão ou violação dos direitos da mulher duran-
te seu período de gestação, parto e puerpério, a violência material, por meio

306 RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO PODER PÚBLICO – ELEMENTOS ESTRUTURAIS


– PRESSUPOSTOS LEGITIMADORES DA INCIDÊNCIA DO ART. 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO
DA REPÚBLICA – TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO – HOSPITAL PÚBLICO QUE
INTEGRAVA, À ÉPOCA DO FATO GERADOR DO DEVER DE INDENIZAR, A ESTRUTURA
DO MINISTÉRIO DA SAÚDE – RESPONSABILIDADE CIVIL DA PESSOA ESTATAL QUE
DECORRE, NA ESPÉCIE, DA INFLIÇÃO DE DANOS CAUSADOS A PACIENTE EM RAZÃO
DE PRESTAÇÃO DEFICIENTE DE ATIVIDADE MÉDICO-HOSPITALAR DESENVOLVIDA
EM HOSPITAL PÚBLICO – LESÃO ESFINCTERIANA OBSTÉTRICA GRAVE – FATO DANOSO
PARA A OFENDIDA RESULTANTE DE EPISIOTOMIA REALIZADA DURANTE O PARTO –
OMISSÃO DA EQUIPE DE PROFISSIONAIS DA SAÚDE, EM REFERIDO ESTABELECIMENTO
HOSPITALAR, NO ACOMPANHAMENTO PÓS-CIRÚRGICO – DANOS MORAIS E
MATERIAIS RECONHECIDOS – RESSARCIBILIDADE – DOUTRINA – JURISPRUDÊNCIA –
RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. STF, 2ª Turma, Agravo Regimental no AI 852237, Rel.
Min. Celso de Mello, j. 25.6.2013, publ. 9.9.2013.
307 Parto do Princípio – Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa. Violência Obstétrica “Parirás com
dor”. Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres.
2012. Disponível em: <https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20
VCM%20367.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2018.
308 Parto do Princípio – Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa. Violência Obstétrica “Parirás com
dor”. Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres.
2012. Disponível em: <https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20
VCM%20367.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2018.

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Violência Obstétrica em Debate

de cobranças indevidas por planos e profissionais de saúde, e a violência mi-


diática, com incentivo a práticas que desrespeitem a integridade psicofísica da
mulher, como cenas de novelas que reproduzem de forma acrítica o quadro
tradicional de parto hospitalar, desconsiderando a autonomia da parturiente.
A cobrança pela presença de acompanhante ou a proibição deste no mo-
mento do parto constituem também formas de violação de direitos da gestan-
te. Em relato de parto, uma mulher atendida pela rede pública narrou uma
situação de violação vivenciada por ela:
“Quando o médico chegou, pedi para deixar o meu marido entrar. Ele
não quis deixar, mas meu marido estava com o papel da Lei que permite
acompanhante no parto e ele mostrou para o médico. O médico se virou
para o meu marido e disse ‘Então eu vou embora e você faz o parto’.”
C.M., atendida na rede pública, Barbacena (MG)309

Este tipo de prática viola a Lei n. 11.108/05, que garante às parturientes o


direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-
-parto imediato, no âmbito do SUS, alterando a Lei n. 8.080/90, e a Resolução
Normativa nº 211/10 da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que
considera ilegal a cobrança de despesas do acompanhante para planos de saú-
de que contemplem o atendimento hospitalar com obstetrícia.
Muitas dessas formas de violência são naturalizadas como procedimen-
tos comuns nos hospitais e algumas delas, como a injeção de ocitocina e a
própria cesárea, consistem em intervenções médicas necessárias em diversos
casos, o que dificulta a identificação dos casos em que ocorre a violação de di-
reitos. O dever do médico de informar à gestante os riscos e as peculiaridades
de cada procedimento, além das razões da sua utilização, é imprescindível,
nesse sentido, para prevenir e viabilizar a identificação da violência no parto,
conferindo maior autonomia para que a gestante possa realizar suas próprias
escolhas, de forma consciente.310

309 Parto do Princípio – Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa. Violência Obstétrica “Parirás com
dor”. Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres.
2012. Disponível em: <https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20
VCM%20367.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2018.
310 Alguns estados estão regulamentando a violência obstétrica, como foi o caso recente de Mato Grosso
do Sul, que editou a lei 5.217, de 26 de junho de 2018, que dispõe sobre a implantação de medidas de
informação e de proteção à gestante e à parturiente contra a violência obstétrica. A lei caracteriza

145
Violência Obstétrica em Debate

5. Autonomia existencial no momento do parto


Nota-se, inicialmente, que a violência no parto é questão de saúde pú-
blica. Sob esse aspecto, deve-se observar que a saúde envolve não apenas a
ausência de doença, mas o efetivo bem-estar do indivíduo e a preservação de
sua integridade psicofísica. O art. 2º da Lei n. 8.080/90 prevê a saúde como
direito fundamental do ser humano, estabelecendo como dever do Estado a
promoção das condições indispensáveis ao seu pleno exercício. Pelo art. 3º da
mesma lei, os “níveis de saúde expressam a organização social e econômica do
País”, dizendo respeito, ainda, à saúde, as ações que “se destinam a garantir às
pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social”.
Tendo em vista que, numa realidade plural chancelada pelo Estado De-
mocrático de Direito, em que cada pessoa pode livremente viver de acordo
com o seu projeto de vida – desde que não viole os mesmos direitos de liber-
dade de terceiros – o conceito de saúde passa a ser individual, vez que “boas
condições de bem-estar físico, mental e social” consubstancia-se em um con-
ceito particular que espelham valores e experiências de vida aptos a realizar a
própria dignidade. É nesse sentido que o moderno conceito de saúde resguar-
dado pela OMS coincide com o exercício da autonomia corporal, de modo
que cada pessoa viva a sua experiência de saúde, de opções de tratamento ou

como violência obstétrica: “I - tratar a gestante ou a parturiente de forma agressiva, não empática,
grosseira, zombeteira, ou de qualquer outra forma que a faça se sentir mal pelo tratamento recebido;
II - fazer graça ou recriminar a parturiente por qualquer comportamento como gritar, chorar, ter
medo, vergonha ou dúvidas; III - fazer graça ou recriminar a mulher por qualquer característica ou
ato físico como, por exemplo, obesidade, pelos, estrias, evacuação e outros; IV - não ouvir as queixas
e as dúvidas da mulher internada e em trabalho de parto; V - tratar a mulher de forma inferior,
dando-lhe comandos e nomes infantilizados e diminutivos, tratando-a como incapaz; VI - fazer a
gestante ou a parturiente acreditar que precisa de uma cesariana quando esta não se faz necessária,
utilizando de riscos imaginários ou hipotéticos não comprovados e sem a devida explicação dos
riscos que alcançam ela e o bebê; VII - recusar atendimento de parto, haja vista este ser uma
emergência médica; VIII - promover a transferência da internação da gestante ou da parturiente
sem a análise e a confirmação prévia de haver vaga e garantia de atendimento, bem como tempo
suficiente para que esta chegue ao local; IX - impedir que a mulher seja acompanhada por alguém
de sua preferência durante todo o trabalho de parto; X - impedir a mulher de se comunicar com
o “mundo exterior”, tirando-lhe a liberdade de telefonar, fazer uso de aparelho celular, caminhar
até a sala de espera, conversar com familiares e com seu acompanhante; XI - submeter a mulher
a procedimentos dolorosos, desnecessários ou humilhantes, como lavagem intestinal, raspagem
de pelos pubianos, posição ginecológica com portas abertas, exame de toque por mais de um
profissional; XII - deixar de aplicar anestesia na parturiente quando esta assim o requerer; XIII -
proceder a episiotomia quando esta não é realmente imprescindível;”

146
Violência Obstétrica em Debate

não-tratamento, de vida, de morte e de parto, segundo o seu conceito de “vida


boa”. Uma vez que a gestação e o parto são momentos tão marcantes da vida
de uma mulher, deve ela alçar o lugar de efetivo protagonismo desse momen-
to, que encontra limites apenas na saúde do seu bebê.
No âmbito dos direitos fundamentais, pode a pessoa agir de acordo com
o que entende ser melhor para si, principalmente no que tange às decisões
referentes a si mesma, ao seu corpo, à sua individualidade, desde que sua ação
seja responsável, que tenha plenas informações sobre os efeitos dos seus atos.
Assim, a possibilidade de se fazerem escolhas autorreferentes deriva, poten-
cialmente, da tutela da privacidade e da vida privada. Em questões de maior
intimidade – como o parto –, o fio norteador exclusivo deve ser a autonomia
privada – exercida pós-informação e com responsabilidade –, pois a vontade
individual é a única legítima a guiar tais decisões, não a imposição do Estado
ou de terceiros (médicos, enfermeiros, etc.).311
Tem crescido substancialmente as normas que visam resguardar o exer-
cício das liberdades existenciais femininas nesses momentos, como expressão
do que almeja para a especial circunstância em que a mulher se torna mãe.
A autonomia da mulher foi ressaltada com a Lei nº 13.257/16, conhecida
como “Marco Legal da Primeira Infância”, que alterou diversos dispositivos
do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, visando conferir maior pro-
teção à gestante e também à criança nos primeiros anos de vida. O ECA, em
seu art. 8º, com as modificações da lei, passou a assegurar expressamente às
gestantes nutrição adequada, atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao
puerpério e atendimento pré-natal, perinatal e pós-natal integral no âmbito do
Sistema Único de Saúde, determinando que os profissionais de saúde devem
garantir o direito de opção da mulher. De acordo com o Ministério da Saúde,
a atenção humanizada envolve um conjunto de práticas pelos profissionais do
sistema de saúde que tenham como objetivo garantir a autonomia e a priva-
cidade da gestante e adotar procedimentos benéficos para a mulher e para o
bebê, evitando-se intervenções desnecessárias.312

311 Seja consentido remeter ao nosso TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Autonomia existencial.
Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCilvil, Belo Horizonte, v. 16, p. 75-104, abr./jun. 2018.
312 “O conceito de atenção humanizada é amplo e envolve um conjunto de conhecimentos,
práticas e atitudes que visam a promoção do parto e do nascimento saudáveis e a prevenção da
morbimortalidade materna e perinatal. Inicia-se no pré-natal e procura garantir que a equipe de

147
Violência Obstétrica em Debate

Desse modo, a garantia de autonomia existencial no contexto do par-


to envolve não apenas um dever negativo, de não interferência indevida nas
escolhas individuais da gestante, mas também a possibilidade de auto-regu-
lamentação de seus interesses existenciais,313 que, por sua vez, demanda a ade-
quada informação sobre os procedimentos e riscos envolvidos. A preparação
da mulher para o momento do parto é imprescindível para garantir o seu
protagonismo no ato de parir.314
Trata-se, nos termos da concepção de saúde já destacada, de importante
instrumento para preservação não apenas da autonomia corporal da mulher,
mas sobretudo da sua integridade psíquica,315 transformando a experiência de
parto e a própria vivência da maternidade. O respeito à autodeterminação da
gestante é dever de todos os profissionais de saúde, de modo que, diante de sua
inobservância, estes ficam sujeitos ao dever de indenizar.
Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já reconheceu
o dever de indenizar em caso envolvendo morte de recém-nascida decorrente
de complicações pela antecipação do parto, identificando como um dos prin-
cipais fatores para a configuração do dever de reparar a ausência de esclare-

saúde realize procedimentos comprovadamente benéficos para a mulher e o bebê, que evite as
intervenções desnecessárias e que preserve sua privacidade e autonomia”. BRASIL. Ministério da
Saúde. Secretaria de Políticos de Saúde. Área Técnica de Saúde da Mulher. Parto, aborto e puerpério:
assistência humanizada à mulher. Brasília: Ministério da Saúde, 2001, p. 9.
313 “É preciso que se reconheça à pessoa a possibilidade de autopromover o desenvolvimento da sua
personalidade através da regulamentação dos seus interesses existenciais. Ora, se a função das
situações existenciais é imedia-tamente a promoção do livre desenvolvimento da personalidade do
seu titular, não tem esse condão a mera observância de um dever negativo”. MEIRELES, Rose Melo
Vencelau. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 60.
314 “O preparo da gestante para o parto abrange a incorporação de um conjunto de cuidados, medidas
e atividades que têm como objetivo oferecer à mulher a possibilidade de vivenciar a experiência do
trabalho de parto e parto como processos fisiológicos, sentindo-se protagonista desse processo”.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticos de Saúde. Área Técnica de Saúde da Mulher.
Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher. Brasília: Ministério da Saúde, 2001, p. 26.
315 “Assim, as interdições feitas sobre a matéria corporal geram consequências inafastáveis na
constituição mental da pessoa. Dessa forma, a autonomia corporal refere-se diretamente à
integridade de maneira global, considerando a inseparabilidade das respectivas esferas. As
restrições impostas à autodeterminação no tocante ao corpo devem A autonomia existencial
nos atos de disposição do próprio corpo atentar para o fato de que, no âmbito do resguardo da
dimensão física, estão sempre incluídas objeções que se referem ao plano psíquico”. BODIN DE
MORAES, Maria Celina. CASTRO, Thamis Dalsenter Viveiros de. A autonomia existencial nos atos
de disposição do próprio corpo. Pensar, Fortaleza, v. 19, n. 3, p. 779-818, set./dez. 2014, p. 802.

148
Violência Obstétrica em Debate

cimentos que deveriam ser feitos à gestante, o que acarretou desrespeito à sua
autonomia.316 Também foi determinado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo
o dever do hospital de reparar em caso de ocorrência de violência no parto,
que envolveu privação do direito ao acompanhante durante todo o período
de trabalho de parto, ofensas verbais, e negativa de contato com filho após
o nascimento. O Tribunal considerou que restou configurado, na hipótese,
abalo psicológico in re ipsa e que o parto humanizado é direito fundamental
da gestante, devendo haver atendimento individualizado, que considere as ne-
cessidades individuais de cada parturiente.317
A inobservância do necessário dever de informação e a prática de atos
que desconsiderem a autonomia da gestante consistem, portanto, em reconhe-
cidas violações aos direitos da mulher, que o ordenamento jurídico brasileiro
busca prevenir e reparar.

6. Notas conclusivas
A garantia da autonomia existencial no parto perpassa pela superação
da visão da mulher como instrumento para o nascimento de uma criança,
passando-se a considerá-la como protagonista do parto e titular do direito ao
seu próprio corpo. Deve ser afastada a visão do parto como um momento pa-
tológico ou traumático para dar lugar à busca pela melhoria da experiência do

316 TJRS, 9ª CC, Apelação Cível 70056595937, Rel. Des. André Luiz Planella Villarinho, j. 14.5.2014, DJ
16.5.2014.
317 RESPONSABILIDADE CIVIL – DANO MORAL - VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA. Direito ao parto
humanizado é direito fundamental. Direito da apelada à assistência digna e respeitosa durante o parto
que não foi observado. As mulheres têm pleno direito à proteção no parto e de não serem vítimas de
nenhuma forma de violência ou discriminação. Privação do direito à acompanhante durante todo o
período de trabalho de parto. Ofensas verbais. Contato com filho negado após o nascimento deste.
Abalo psicológico in re ipsa. Recomendação da OMS de prevenção e eliminação de abusos, desrespeito
e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde. Prova testemunhal consistente e uniforme
acerca do tratamento desumano suportado pela parturiente. Cada parturiente deve ter respeitada
a sua situação, não cabendo a generalização pretendida pelo hospital réu, que, inclusive, teria que
estar preparado para enfrentar situações como a ocorrida no caso dos autos. Paciente que ficou doze
horas em trabalho de parto, para só então ser encaminhada a procedimento cesáreo. Apelada que teve
ignorada a proporção e dimensão de suas dores. O parto não é um momento de “dor necessária”. Dano
moral mantido. Quantum bem fixado, em razão da dimensão do dano e das consequências advindas.
Sentença mantida. Apelo improvido. TJSP, 5ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível 0001314-
07.2015.8.26.0082, Rel. Des. Fábio Podestá, j. 11.10.2017, DJ 11.10.2017

149
Violência Obstétrica em Debate

nascimento. Essa transformação se revela benéfica não apenas para a gestante,


mas também para o bebê e para todos os familiares.
Essa mudança na visão do parto que coloca a mulher “no comando” des-
se momento de máxima intimidade, que constitui um ponto alto da experi-
ência pessoal e de maternidade acabou tirando da invisibilidade uma série
de condutas da equipe de saúde que dificultam – e, até mesmo impedem – o
alcance desse objetivo, chamadas violência no parto. Ao tomar consciência
dessas situações, faz-se possível combater qualquer tipo de procedimento
pelos profissionais de saúde que impliquem em violência em relação à mu-
lher, que vão desde reprimendas, xingamentos, manejo de procedimentos não
acordados com a parturiente, omissão de informações, intervenções médicas
desnecessárias com o escopo de reduzir o tempo da equipe hospitalar.
O que se busca com esse estudo é entender que o processo de informa-
ção – essencial à relação médico-paciente – como o elemento fundante para
reduzir (e quiçá, eliminar) a violência no parto, pois é o conhecimento das
inúmeras possibilidades que podem ocorrer no parto que empoderarão a mu-
lher a tomar decisões em conjunto com seu médico.
O exercício da autonomia existencial no parto depende, portanto, dessa
relação dialógica entre médico e gestante, por meio da qual se pode viabilizar
o protagonismo da mulher em relação aos processos atinentes a esse momen-
to tão significativo para a vida humana. Trata-se de importante instrumento
para a tutela dos direitos da mulher em uma sociedade que, cada vez mais,
busca romper com os mecanismos de apropriação do corpo feminino.

150
A informação como forma de combate
à violência obstétrica na relação
médico-paciente e os impactos na
seara da responsabilidade civil

Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira


Gláucia Nascimento da Silva

“a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como uma
coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silên-
cio, de modo que, quando a atividade e a fala de outrem são impe-
didas ou anuladas, há violência”.318
(Marilene Chauí)

Notas introdutórias: a violência obstétrica


e a relação médico-paciente
“Uma em cada quatro mulheres brasileiras é vítima de violência no mo-
mento do parto ou pré-natal,” conforme pesquisa realizada pela Fundação
Perseu Abramo.319 Esse dado demonstra a importância de se definir o conceito
de violência obstétrica e o papel do médico ginecologista e obstetra, a fim de
se assegurar os direitos das gestantes, a proteção de sua integridade psicofísi-
ca, sua saúde e o poder de autodeterminação corporal.

318 CHAUÍ, M. Participando do debate sobre mulher e violência. In: CHAUÍ, M.; CARDOSO, R.;
PAOLI, M.C. (Orgs.). Perspectivas antropológicas da mulher. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. v. 4. p.35.
319 Dados disponibilizados no estudo intitulado “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público
e privado”, realizado pela Fundação Perseu Abramo e SESC, em 2010. Disponível em <https://
fpabramo.org.br/publicacoes/publicacao/pesquisa-mulheres-brasileiras-e-genero-nos-espacos-
publico-e-privado-2010/>. Acesso em: 06 set. 2018.

151
Violência Obstétrica em Debate

A medicina obstétrica foi sofrendo alterações ao longo dos anos,320 in-


clusive no que diz respeito ao ambiente e às técnicas para realização do parto.
O parto que inicialmente era realizado por meio de parteiras e em domicílio
passa a ter seu atendimento hospitalizado321 e com a atuação de vários profis-
sionais de saúde (enfermeiros, técnicos de enfermagem, funcionários do hos-
pital, médico obstetra, médico anestesista etc.).
Os avanços (bio)tecnológicos entre outros fatores acabaram por propi-
ciar a industrialização do parto, a medicalização do nascimento, com maior
intervenção na gestação e no parto, tornando-se rotineira sua realização em
ambiente hospitalar e com maior controle do processo por parte dos médicos.
Além disso, no Brasil houve aumento substancial do número de partos pelo
método cesárea em detrimento do natural, o que o conferiu status de líder
mundial de cesáreas,322 principalmente no sistema particular de saúde323 com
aumento da violência obstétrica.324
A expressão violência obstétrica apresenta uma pluralidade semântica,
pois abarca várias situações e não comporta uma única definição. Segundo a
Organização Mundial de Saúde – OMS é um conjunto de atos desrespeitosos,
abusos, maus-tratos, negligência e o desrespeito contra a mulher e o bebê,
antes, durante e depois do parto.325

320 BRENES, Anayansi Correa. História da parturição no Brasil século XIX. Cadernos de Saúde Pública
(ENSP. Impresso), v. VII, p. 9-15, 1991.
321 VENDRÚSCOLO, Cláudia Tomasi; KRUEL, Cristina Saling. A história do parto: do domicílio ao
hospital; das parteiras ao médico; de sujeito a objeto. Disciplinarum Scientia / Ciências Humanas, v.
16, p. 95-107, 2015.
322 PATAH, Luciano Eduardo Maluf, MALIK, Ana Maria. Modelos de assistência ao parto e taxa de
cesárea em diferentes países. Revista de Saúde Pública [online]. 2011, v. 45, n.1, p.185-194.
323 O Ministério da Saúde divulgou que dos 3 milhões de partos realizados no Brasil, 55,5% foram cesáreas
e 44,5% partos normais. Disponível em <http://portalms.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/27782-
pela-primeira-vez-numero-de-cesarianas-nao-cresce-no-pais> Acesso em: 06 set. 2018.
324 “O conflito ético está posto e materializado: na rede privada de assistência à saúde, onde os usuários
são pessoas com nível de renda e escolaridade notavelmente superiores, prevalecem as cesarianas;
na rede pública, com usuários provenientes de classes sociais menos favorecidas, prevalecem os
partos normais, não por opção das parturientes, mas em decorrência de rotinas de serviço impostas
às mulheres pobres que recorrem ao serviço público de saúde por não dispor de recursos financeiros
para a assistência médica.” FERRARI, José. A autonomia da gestante e o direito pela cesariana a
pedido. Revista Bioética 2009, v. 17, n. 3, p. 473-495.
325 A Lei n. 3.363/2013 do Estado de São Paulo define violência obstétrica em seu artigo 2º como “todo
ato praticado pelo médico, pela equipe do hospital, por um familiar ou acompanhante que ofenda,

152
Violência Obstétrica em Debate

Como uma reação a esses fatos, surgiram diversas campanhas, tais como
a da Revista Época – “Parto com respeito” –, e as por parte do governo, do
Ministério da Saúde – MS e órgãos competentes (Agência Nacional de Saúde
– ANS) a fim de incentivar o parto normal, como, por exemplo, a Rede Ce-
gonha (Portaria n. 1.459 do MS);326 o Projeto Parto Adequado;327 328 o uso de
cartilhas com Direitos das Gestantes329 e de cartazes. Tudo em busca do par-
to humanizado,330 331 seja o normal, que ocorre em ambiente domiciliar332 ou
hospitalar, podendo ter a presença de doula,333 seja a cesárea, quando houver
indicação médica ou quando for uma opção da própria gestante.

de forma verbal ou física, as mulheres gestantes, em trabalho de parto ou, ainda, no período de
puerpério.” Essa mesma definição se encontram nas seguintes leis estaduais: Lei n. 17.097/2017, de
Santa Catarina; Lei n. 5.217/2018, de Mato Grosso do Sul e Lei n. 14.598/2015, de Curitiba.
326 Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt1459_24_06_2011.html>
Acesso em 06 set. 2018.
327 Disponível em: <http://www.ans.gov.br/gestao-em-saude/projeto-parto-adequado> Acesso em 06
set. 2018.
328
Disponível em: <https://www.abramge.com.br/portal/index.php/pt-BR/2014-04-11-17-45-11/
parto-e-normal>. Acesso em: 06 set. 2018.
329 Artigo 4º da Lei n. 3.363/2013 do Estado de São Paulo.
330 A Portaria n. 569 de 2000 do MS instituiu o programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento
no âmbito do SUS. Disponível em <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2000/
prt0569_01_06_2000_rep.html> Acesso em 06 set. 2018.
331 Hemmerson Magioni, médico obstetra do Instituto Nascer, define que o Parto Humanizado significa
direcionar toda atenção às necessidades da mulher e dar-lhe o controle da situação na hora do
nascimento, mostrando as opções de escolha baseados em evidências científicas e nos direitos que
tem. Disponível em: <http://institutonascer.com.br/parto-humanizado/> Acesso em 06 set. 2018.
332 No Estado do Rio de Janeiro, a Lei Ordinária n. 7.191/2016 dispõe que a Secretaria Estadual de
Saúde deverá estipular, por meio de regulamento, as condições em que o parto domiciliar poderá
ser realizado por decisão voluntária da gestante. Disponível em <http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/
CONTLEI.NSF/e9589b9aabd9cac8032564fe0065abb4/a01e1d414bdb967a83257f3300580ec7?Open
Document> Acesso em 06 set. 2018.
333 “Estudos internacionais do tipo metanálise apontaram os benefícios do suporte da doula,
demonstrando que as mulheres acompanhadas aumentam duas vezes a chance de ter parto vaginal,
comparadas ao grupo que não recebeu este suporte, além de apresentarem melhoria no pós-parto,
avaliados por meio de características físicas e emocionais.” SILVA, Raimunda Magalhães da; BARROS,
Nelson Filice de; JORGE, Herla Maria Furtado; MELO, Laura Pinto Torres de; FERREIRA JUNIOR,
Antonio Rodrigues. .Evidências qualitativas sobre o acompanhamento por doulas no trabalho de
parto e no parto. Ciência e Saúde Coletiva (Impresso), 2012, v. 17, p. 2.783-2.794.

153
Violência Obstétrica em Debate

Outra forma de tentativa de combate à violência obstétrica é a edição de me-


didas regulatórias,334 de leis estaduais e federais, além de projetos de lei,335 projetos
por parte do Estado para garantir de forma efetiva a autonomia da gestante.336
O crescimento do número de cesáreas337 é resultado do modelo atual-
mente adotado, que se foi desenvolvendo em virtude de diversas falhas apre-
sentadas no sistema de saúde, entre as quais, a falta de informação à gestante,
principalmente na fase do pré-natal, quanto à forma que pode ocorrer o parto,
quais são os riscos a que estão expostos a mãe e o feto.
No entanto, para além desses projetos, necessário se faz revisitar a ma-
neira como deve se dar a relação entre ginecologistas, obstetras e gestantes,
com ênfase para o recrudescimento da informação.
A violência obstétrica deve ser combatida, tanto de forma preventiva, por
meio da informação, da obtenção de consentimento livre e esclarecido, de me-
didas capazes de minimizar e até mesmo excluir certos impactos, como pela
reparação integral dos danos sofridos pela parturiente utilizando o instituto
da responsabilidade civil (artigo 5º, V e X da CF e no artigo 944 do CC).

334 Resolução n. 2.144/2016 do CFM. Disponível em < https://portal.cfm.org.br/images/stories/pdf/


res21442016.pdf> Acesso em: 06 set. 2018.
335 Destacam-se os projetos que visam parto humanizado: i) Projeto de Lei n. 7.633/2014 do deputado
Jean Wyllys e o Projeto de Lei do Senado n. 8/2013 do ex-senador Gim. Disponíveis em <https://
www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=617546> e <https://
www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/110487> Acesso em: 06 set. 2018.
336 Consoante essas linhas argumentativas, o Estado deve diminuir a vulnerabilidade e promover a
autonomia da parturiente, fornecendo meios para que efetivamente decida sobre o futuro parto.
Cabe mencionar que a proteção social é também papel do governo, o responsável legal pela definição
de parâmetros normativos para as ações individuais e coletivas, bem como elaboração e aplicação de
políticas públicas de saúde. O presente trabalho defende a ideia de que a autonomia da gestante deverá
ser estimulada e respeitada na definição da via de parto, salvo recomendações médicas em contrário.
Para tanto, faz-se necessário que os profissionais de saúde, especificamente os médicos, compreendam
que o paternalismo, mesmo quando cercado das melhores intenções, tende a aumentar a vulnerabilidade
das mulheres, contribuindo para que deixem de exercer o direito de defender seus interesses legítimos.
BARCELLOS, Luiza Gonçalves; SOUZA, André Oliveira Rezende de; MACHADO, César Augusto
Frantz. Cesariana: uma visão bioética. Revista Bioética 2009, v. 17, n. 3, p. 497-510.
337 “Nos últimos 30 anos, a comunidade internacional de saúde tem considerado que a taxa ideal de
cesáreas seria entre 10% e 15% de todos os partos. Essa taxa surgiu de uma declaração feita por um
grupo de especialistas em saúde reprodutiva durante uma reunião promovida pela OMS em 1985,
em Fortaleza, no Brasil” Declaração sobre taxas de cesáreas, publicado pela Organização Mundial
de Saúde. Disponível em <https://www.unasus.gov.br/noticia/declaracao-da-oms-sobre-taxas-de-
cesareas>. Acesso em: 06 set. 2018.

154
Violência Obstétrica em Debate

2. A relação médico-paciente de obstetrícia


e ginecologia e o dever de informar
A relação médico-paciente tem passado por diversas transformações não
só no que diz respeito àquelas proporcionadas pelas novas descobertas, pela
biotecnologia, mas também em relação à forma como se estabelece o contato
entre o médico e o paciente.
A atuação do médico sempre esteve presa a um paternalismo hipocrático,338
em que ele determinava sozinho como seria o tratamento do paciente. Não ha-
via uma relação de parceria terapêutica, ou seja, o profissional não compartilha-
va decisões com aquele que é diretamente afetado por elas. Apenas o médico,
detentor dos conhecimentos de medicina, tinha condições de decidir; o paciente
era considerado incapaz de entender as peculiaridades do tratamento médico,
seu diagnóstico, devido, entre outros fatores, à sua condição débil em razão da
doença. Todavia, esse perfil lógico-autoritário não se sustenta, pois a relação
médico-paciente deve ocorrer mediante um processo cooperativo e dialógico,
com troca de informações a respeito dos dados de suas condições de saúde e o
tratamento proposto339 para, só assim, o paciente decidir.
A relação médico-paciente envolve os direitos da personalidade, o poder
de disposição sobre situações existenciais, tendo como focos a saúde, a vida,
a integridade psicofísica, a dignidade do paciente, constituindo uma relação
obrigacional complexa e dinâmica.
Independentemente das variadas formas como pode se dar a relação en-
tre médico e paciente, já que o médico pode assumir mais de uma posição
no desenvolver de sua atividade (empregado, empresário, sócio de sociedade,

338 “Desde os tempos de Hipócrates até os nossos dias, busca-se o bem do paciente, ou seja, aquilo
que, do ponto de vista da medicina, se considera benéfico para o paciente, sem que esse em nada
intervenha na decisão. Esse tipo de relação, apropriadamente chamada de paternalista, atribui ao
médico o poder de decisão sobre o que é melhor para o paciente. Similar à relação dos pais para
com os filhos, foi durante longo tempo considerada a relação ética ideal, a despeito de negar ao
enfermo sua capacidade de decisão como pessoa adulta”. BARBOZA, Heloisa Helena. A autonomia
da vontade e a relação médico-paciente no Brasil. Lex Medicinae. Revista Portuguesa de Direito da
Saúde, Coimbra, v. 1, n. 2, jul./dez. 2004, p. 7.
339 PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos. Relação médico-paciente: o respeito à autonomia do
paciente e a responsabilidade civil do médico pelo dever de informar. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011. p. 76.

155
Violência Obstétrica em Debate

associado, conveniado, profissional liberal, servidor público estadual, federal,


contratado temporário pelo poder público, militar), ou, até mesmo de forma
cumulativa, a prestação de serviços médicos deve sempre observar os direitos
e deveres de ambas as partes, e que são de cunho existencial: i) dever de sigilo
e abstenção; ii) dever de cuidado; iii) dever de empregar todas as técnicas dis-
poníveis para a recuperação do paciente;340 e iv) dever de informar acerca do
diagnóstico, do prognóstico, dos riscos e benefícios do tratamento.341
Atualmente, o serviço médico no setor privado de saúde passa por um
processo de despersonalização, atendimento de massa, sendo enquadrado como
serviço de consumo.342 No serviço público, por sua vez, a precariedade no aten-
dimento; a falta de estrutura; o elevado número de pacientes e a existência de
poucos profissionais acabam afetando o atendimento médico. A consequência
é o afastamento entre o médico e o paciente; o comprometimento de uma me-
lhor anamnese (queixas, antecedentes, história mórbida pregressa e história da
doença atual); a falta de dados e a consequente violação de um dos principais

340 Código de Ética Médica – Resolução n. 2.217/2018. Capítulo I, Princípios Fundamentais, XXVI – A
medicina será exercida com a utilização dos meios técnicos e científicos disponíveis que visem aos
melhores resultados.
341 “Vamos questionar se e em que medida os seguintes tópicos, entre outros, devem ser objecto do
dever de informação: o diagnóstico; os meios e os fins do tratamento; os efeitos secundários; o
prognóstico; as alternativas terapêuticas com os seus efeitos secundários, riscos e benefícios
respectivos; os riscos e benefícios do tratamento; a urgência da intervenção e o risco da demora
no tratamento; os riscos e consequências da recusa do tratamento; a duração aproximada do
tratamento e as condições materiais que lhe são associadas; a possibilidade de levar a cabo o
tratamento num centro de saúde mais adequado; a competência ou falta de competência do médico
e o custo do tratamento; o dever de comunicar novos riscos identificados posteriormente à execução
de exames de diagnóstico, tratamentos ou acções e prevenção e o eventual dever de comunicar os
erros médicos praticados”. PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento informado na relação
médico-paciente. Portugal: Coimbra, 2004. p. 371.
342 Apesar de a jurisprudência majoritária considerar que a relação médico-paciente é de consumo,
aplicando a lei consumerista, a doutrina já tem se pronunciado de forma contrária, da mesma forma
que o Conselho Federal de Medicina, que no preâmbulo do atual Código de Ética Médica (Resolução
n. 1.931/2009 do CFM, em vigor em 13 de abril de 2010) é expresso ao afastar o contrato médico como
de consumo, conforme se depreende do inciso XX do Capítulo I. Nesse sentido: SOUZA, Eduardo
Nunes de. Do erro à culpa: Na responsabilidade civil do médico. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. p.
95-96. SOUZA, Alex Pereira, COUTO FILHO, Antonio Ferreira. Responsabilidade civil médica e
hospitalar. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 44. Quanto à aplicação do Código de Defesa
do Consumidor: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial n.
844.197/SP da 4ª turma. Relator: Ministro Antonio Carlos Ferreira. Brasília, 7 de junho de 2016.

156
Violência Obstétrica em Debate

direitos do paciente que é a obtenção de informações em linguagem clara e com-


preensível, para que ele possa conceder o consentimento livre e esclarecido.
O direito à informação está previsto na Constituição Federal – CF (ar-
tigo 5º, XIV, XXXIII, LXXII), no Código de Defesa do Consumidor – CDC
(artigos 4º, IV, 6º, III, 8º, 9º, 12, 14, 20, 30, 31, 36, 37, 38 e 46), Lei n. 10.241, de
17 de março de 1999, do Estado de São Paulo, que dispõe sobre os direitos dos
pacientes (art. 2º, VI343), e também tem sustentáculo nos princípios jurídicos
(dignidade da pessoa humana, autonomia) e bioéticos344 (autonomia, benefi-
cência, não maleficência, justiça, precaução e prevenção, solidariedade – arti-
gos 12, 13, 22, 34, 36, §1º, 42, 44, 53, 54, 55 do Código de Ética Médica – CEM).
No âmbito internacional, alguns diplomas fazem menção ao direito de
informação e à autodeterminação do paciente, tais como: a Declaração Uni-
versal sobre Bioética e Direitos Humanos, de 2005, da UNESCO e o Parecer
sobre os Direitos dos Pacientes, elaborado pelo Comitê Econômico e Social
Europeu e a Declaração de Lisboa sobre os Direitos do Paciente, emitido pela
Associação Médica Mundial, em 1995, em Bali, na Indonésia.

343 Artigo 2º – São direitos dos usuários dos serviços de saúde no Estado de São Paulo: [...] VI – receber
informações claras, objetivas e compreensíveis sobre: a) hipóteses diagnósticas; b) diagnósticos
realizados; c) exames solicitados; d) ações terapêuticas; e) riscos, benefícios e inconvenientes das
medidas diagnósticas e terapêuticas propostas; f) duração prevista do tratamento proposto; g) no caso
de procedimentos de diagnósticos e terapêuticos invasivos, a necessidade ou não de anestesia, o tipo de
anestesia a ser aplicada, o instrumental a ser utilizado, as partes do corpo afetadas, os efeitos colaterais,
os riscos e consequências indesejáveis e a duração esperada do procedimento; h) exames e condutas a
que será submetido; i) a finalidade dos materiais coletados para exame; j) alternativas de diagnósticos e
terapêuticas existentes, no serviço de atendimento ou em outros serviços; e l) o que julgar necessário;
344 Tom L. Beauchaump e James Childress consagraram a Bioética principialista, que tem o objetivo de
estabelecer uma teoria capaz de orientar a prática médica e biomédica por meio de princípios que
orientarão as decisões morais tomadas diante de conflitos éticos concretos. BEAUCHAMP, Tom
L.; CHILDRESS, James F. Princípios da ética Biomédica. Tradução Luciana Pudenzi. São Paulo:
Loyola, 2002. p. 579. Para além da teoria principialista da Bioética, na década de 1990, novas teorias
ganharam corpo, como: i) a bioética da intervenção; ii) a bioética da proteção; iii) a bioética feminista
e antirracista; e iv) a bioética da teologia da libertação. Cf. SCHRAMM, Fermin Roland. A Bioética
da Proteção: uma proposta para os desafios morais dos países em desenvolvimento. In: VII simpósio
catarinense de Bioética, 2005, Joinville. p. 9. Disponível em: http://www.unesco.org.uy/ci/fileadmin/
shs/redbioetica/Artigo_pa._1_.doc. Acesso em: 11 out. 2016. DINIZ, Debora; GUILHEM, Dirce.
Bioética feminista: O resgate político do conceito de vulnerabilidade. Revista Bioética. Brasília:
Conselho Federal de Medicina, v. 7, n. 2, 1999. p. 181-188. Disponível em: <http://www.jovensmedicos.
org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/310/449>. Acesso em: 19 ago. 2016. BOFF, Leonardo.
Quarenta anos da teologia da libertação. [S.l: s.n.], 2011. Disponível em: <https://leonardoboff.
wordpress.com/2011/08/09/quarenta-anos-da-teologia-da-libertacao>. Acesso em: 30 out. 2016.

157
Violência Obstétrica em Debate

Somente após a informação prestada pelo médico é possível obter o con-


sentimento livre e esclarecido, também denominado consentimento informa-
do, pós-informado, que constitui um ato de decisão voluntária e consciente do
paciente, essencial nessa relação. Ele representa a exteriorização do exercício
da autonomia privada, a liberdade de livre disposição corporal e a garantia da
preservação da dignidade da pessoa humana.
A doutrina345 diverge quanto à natureza jurídica do consentimento livre
e esclarecido, mas este pode ser enquadrado como autorização, um negócio
jurídico unilateral, que legitima qualquer interferência médica.346
Não existe uma forma prescrita em lei para obtenção do consentimento,
mas este é indispensável, pelo que se extrai do disposto no artigo 15 do Código
Civil e artigo 34 do CEM.347 Todavia, recomenda-se que ele seja escrito348 para
que se tenha uma melhor avaliação por parte do paciente acerca do procedi-
mento médico, assim ele terá a chance de refletir sobre os riscos e benefícios
de seu tratamento. E até o próprio médico terá seu respaldo. Em se tratando,
por exemplo, de cirurgia de esterilização, a lei de planejamento familiar, Lei n.
9.263/1996, prevê, em seu artigo 10, §1º, que é
condição para que se realize a esterilização o registro de expressa mani-
festação da vontade em documento escrito e firmado, após a informação
a respeito dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldades
de sua reversão e opções de contracepção reversíveis existentes.

Na medicina obstétrica e ginecológica, uma das especialidades médi-


cas previstas na Resolução n. 2.162/2017, do Conselho Federal de Medicina

345 ROBERTO, Luciana Mendes Pereira. Responsabilidade civil do profissional de saúde & consentimento
informado. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2009.
346 Esse é o posicionamento de Paula Moura Francesconi Pereira, conforme se depreende de sua tese
intitulada “A responsabilidade civil como instrumento de proteção à pessoa humana nos ensaios
clínicos”, apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora ao Programa de
Pós-Graduação da Faculdade de Direito, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de
Direito Civil. No prelo.
347 Art. 34. Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do
tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer
a comunicação a seu representante legal.
348 O Conselho Federal de Medicina dispôs sobre o processo de obtenção de consentimento livre e
esclarecido na assistência médica por meio da Recomendação CFM n. 1/2016.

158
Violência Obstétrica em Debate

– CFM,349 a relação pode se iniciar antes ou no período gestacional. À gestante


devem ser prestadas todas as informações acerca de seu filho; de seu estado
de saúde; dos procedimentos que poderão ser adotados; dos tipos de parto
(natural, normal, cesárea);350 351 dos tipos de anestesia; dos riscos e benefícios
para a mulher e para o bebê; do direito à acompanhante (Lei n. 11.108/2005)
etc. Tudo deve ter uma linguagem clara e compatível com a capacidade de
compreensão da parturiente.
Além do médico obstetra, assume importante papel o radiologista que
realiza os exames de ultrassonografia obstétrico, que também assume, duran-
te o exame, o dever de informar sobre o feto e o dia de parto, por exemplo,
mesmo com uma certa margem de erro, devendo atuar com observância dos
cuidados com a gestante.352
O Ministério da Saúde elaborou “Diretrizes nacionais de assistência ao
parto normal”353 nas quais estabelece recomendações pautadas na informa-
ção e na comunicação acerca do local do parto, dos cuidados gerais, do alívio
da dor no trabalho de parto, da assistência no primeiro, segundo e terceiro
períodos do parto, dos cuidados maternos imediatamente após o parto e da
assistência ao recém-nascido.
A escolha do tipo de parto deve ser baseada em dados reais, inclusive
em relação às consequências que envolvem a modalidade de parto escolhi-
da, a curto prazo (parto pré-termo, baixo peso ao nascer, dificuldades com
amamentação, vínculo etc.) e a médio e longo prazo (aumento de sobrepeso

349 Disponível em <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2016/2149_2016.pdf>. Acesso


em: 06 set. 2018.
350 COSTA, Judith Martins. Entendendo problemas médico-jurídicos em ginecologia e obstetrícia. in
Revista dos Tribunais, ano 94, volume 831, janeiro de 2005, p. 106-131.
351 Parto natural é aquele que não conta com intervenções para o alívio da dor (medicamentos e
anestesias) ou substâncias para antecipação do parto (caso da ocitocina artificial). Já o parto normal
possui intervenções médicas, tanto para o alívio da dor como para aceleração do trabalho de parto,
sendo via vaginal. Quanto ao parto humanizado, este é definido pela OMS como um conjunto de
condutas que promovem um parto e um nascimento que respeitam processos naturais e evitam
condutas desnecessárias e/ou de risco para mãe e bebê. Disponível em <https://universa.uol.com.
br/especiais/violencia-obstetricia/index.htm#imagem-5>. Acesso em: 06 set. 2018.
352 LEGUIZAMON JUNIOR, Teodoro; STEFFANI, Jovani Antônio; Bonamigo, Elcio Luiz. Escolha da via
de parto: expectativa de gestantes e obstetras (B2). Revista Bioética (Impresso), 2013, v. 21, p. 509-517.
353 Disponível em <http://redehumanizasus.net/96047-diretrizes-nacional-de-assistencia-ao-parto-
normal/>. Acesso em: 06 set. 2018.

159
Violência Obstétrica em Debate

e obesidade, asma, diabetes tipo 1, alergias, disfunções metabólicas e outras


doenças não transmissíveis).
Outrossim, a gestante deve escolher o que gostaria ou não que aconteces-
se no seu parto: o hospital de sua preferência; quem será seu acompanhante;
quando ocorreria a visita de seus outros filhos; se quer que o filho seja ime-
diatamente colocado no colo para amamentar etc., podendo ser reduzido a
termo, com a elaboração de um plano de parto.
O Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução n. 2.144/2016,354
trata do respeito à autonomia da gestante na opção pelo parto cesárea, garan-
tida mediante o recebimento de todas as informações da forma pormenori-
zada, bem como de seus benefícios e riscos, devendo a decisão ser registrada
num termo de consentimento livre e esclarecido. Da mesma forma, assevera o
respeito à autonomia do médico em discordar da vontade da gestante, caben-
do-lhe, nesse caso, indicar um profissional para atender a paciente, exercendo
a objeção de consciência (Capítulo I, inciso VII, do CEM).355
Os deveres dos pacientes são menos explorados pelos doutrinadores do que
seus direitos, pois a análise da relação médico-paciente sempre se ateve à respon-
sabilização do médico pelos danos causados ao paciente ao infringir seus direitos.
No entanto, cabe acentuar que o paciente também deve observar deter-
minados comportamentos decorrentes do princípio da boa-fé e necessários
tanto para o desenvolvimento da relação, quanto para o sucesso do tratamen-
to médico. O paciente tem o dever de colaborar para o êxito do procedimento,
atendo-se ao que foi recomendado pelo profissional.

354 Disponível em < https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2016/2144>. Acesso


em: 06 set. 2018.
355 Em pesquisa feita por Teodoro Leguizamon Junior, Jovani Antônio Steffani, Elcio Luiz Bonamigo,
concluiu-se: “A maioria das gestantes (74,1%) manifestou preferência pelo parto natural, sobretudo
as católicas e portadoras de ensino superior completo ou médio incompleto. Entre os obstetras
houve preferência pelo parto cesariano (58,3%) e, se fossem instados a aconselhar, todos (100%)
recomendariam parto natural. Caso fossem solicitados a realizar cesariana a pedido, 54,5% dos
obstetras concordariam de imediato, porém somente 27,3% admitiriam este direito para gestantes
do sistema público de saúde.” LEGUIZAMON JUNIOR, Teodoro; STEFFANI, Jovani Antônio;
Bonamigo, Elcio Luiz. Escolha da via de parto: expectativa de gestantes e obstetras (B2). Revista
Bioética (Impresso), 2013, v. 21. p. 509.

160
Violência Obstétrica em Debate

No caso da paciente gestante, a ANS dispõe, em sua Resolução n.


368/2015,356 que o Cartão da Gestante é um instrumento de registro das con-
sultas de pré-natal que contém os principais dados de acompanhamento da
gestação, devendo permanecer com a gestante e ser apresentado em todos os
estabelecimentos de saúde em que for consultada durante a gestação e na pró-
pria maternidade quando for admitida em trabalho de parto.
A resolução veio como uma das medidas de incentivo ao parto normal
e, consequentemente, à redução das cesarianas desnecessárias. Além disso, foi
uma resposta à ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal357
perante a ANS e que tramita junto à Justiça Federal, Seção Judiciária do Esta-
do de São Paulo (Proc. n. 0017488-30.2010.4.03.6100).358
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 8º, entre outros
serviços, assegura à gestante o acesso aos programas e às políticas de saúde
da mulher e de planejamento reprodutivo; nutrição adequada; atenção huma-
nizada durante a gravidez e ao parto e ao puerpério e atendimento pré-natal,
perinatal e pós-natal integral no âmbito do Sistema Único de Saúde.
Já o Estatuto da Pessoa com Deficiência, em seu 19ª artigo,359 aborda sobre
a competência do SUS para desenvolver ações e programas com o objetivo de
prevenir deficiências evitáveis, indicando ser necessário que o parto humaniza-
do e seguro seja garantido, pelo que, como afirma Thamis Dalsenter Viveiros de
Castro,360 “a violência obstétrica é a antítese de um parto humanizado”. Outros-

356 Disponível em <http://www.ans.gov.br/component/legislacao/?view=legislacao&task=TextoLei&fo


rmat=raw&id=Mjg5Mg==>. Acesso em: 06 set. 2018.
357 Tribunal Federal do Estado de São Paulo. Jurisdição. Ação Civil Pública, 0017488-30.2010.4.03.6100,
autor: Ministério Público Federal, réu: Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Agosto de 2010.
358 Brasil. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Consulta Pública n. 55 e 56. Disponível em:
<http://www.ans.gov.br/participacao-da-sociedade/consultas-e-participacoes-publicas/consultas-
publicas-encerradas/consulta-publica-55-e-56-parto>. Acesso em: 06 set. 2018.
359 Art. 19. Compete ao SUS desenvolver ações destinadas à prevenção de deficiências por causas
evitáveis, inclusive por meio de: I - acompanhamento da gravidez, do parto e do puerpério, com
garantia de parto humanizado e seguro; II - promoção de práticas alimentares adequadas e
saudáveis, vigilância alimentar e nutricional, prevenção e cuidado integral dos agravos relacionados
à alimentação e nutrição da mulher e da criança; III - aprimoramento e expansão dos programas de
imunização e de triagem neonatal; IV - identificação e controle da gestante de alto risco.
360 Thamis Dalsenter Viveiros de Castro, comentando o art. 19 do Estatuto da Pessoa com Deficiência
(Lei n. 13.146/2015), ressalta que a redação contida na legislação é pioneira sobre o tema, sendo
“premissa fundamental para uma política eficaz de prevenção de causas evitáveis de deficiência, o

161
Violência Obstétrica em Debate

sim, o Estatuto reconhece, em seu artigo 3º, inciso IX,361 que a gestante é pessoa
com mobilidade reduzida, o que só ressalta sua vulnerabilidade.
Todas essas medidas e normas direcionadas à gestante são mecanismos,
planos para prevenir até mesmo a violência obstétrica. Esse tipo de violência
tem relação direta com o instituto da responsabilidade civil,362 363 tanto no
plano preventivo, ex ante, quanto no reparatório. Primeiro, busca-se evitar a
ocorrência de dano pelo princípio da prevenção, que deve se concretizar por
meio de medidas que minimizem ou evitem riscos já conhecidos, certos e
comprovados. No entanto, quando ocorre a lesão de bem jurídico merecedor
de tutela, faz nascer, ex post, o dever de indenizar.
O princípio bioético e jurídico da prevenção deve nortear a relação entre
médico-paciente, a fim de evitar a ocorrência de danos, inclusive de ordem
não patrimonial, com desrespeito à autonomia.
O princípio da prevenção possui viés jurídico (artigo 5º, XXXV, 1º, III,
3º, I, 16, §4º, 225, todos da CF e artigo 6º do CDC) e se concretiza por meio de
medidas que visam minimizar ou evitar riscos já conhecidos, certos e com-
provados e integra a responsabilidade preventiva, cuja função precípua é evi-
tar os danos. Entretanto, quando são inoperantes essas medidas preventivas,

que coloca o Estatuto em lugar de destaque no quadro legislativo nacional, ao lado da Portaria n.
569, de 1º de junho de 2000, do Ministério da Saúde, que instituiu o Programa de Humanização
no Pré-natal e Nascimento, no âmbito do SUS, e constitui um marco no direito das gestantes.”
VIVEIROS DE CASTRO, Thamis Dalsenter. In: Heloisa Helena Barboza; Vitor Almeida. (Org.).
Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência à luz da Constituição da República. 1. ed. Belo
Horizonte: Fórum, 2018. p. 119-126.
361 Art. 3º Para fins de aplicação desta Lei, consideram-se: […] IX - pessoa com mobilidade reduzida:
aquela que tenha, por qualquer motivo, dificuldade de movimentação, permanente ou temporária,
gerando redução efetiva da mobilidade, da flexibilidade, da coordenação motora ou da percepção,
incluindo idoso, gestante, lactante, pessoa com criança de colo e obeso;
362 “Enunciado 466 – Art. 927: A responsabilidade civil prevista na segunda parte do parágrafo
único do art. 927 do Código Civil deve levar em consideração não apenas a proteção da vítima e a
atividade do ofensor, mas também a prevenção e o interesse da sociedade.” BRASIL. Conselho de
Justiça Federal. V Jornada de Direito Civil, de 10 de novembro de 2011. São Paulo - SP.
363 Thaís Goveia sustenta a existência de uma responsabilidade civil preventiva, que visa prevenir a
ocorrência da violação dos direitos e os consequentes danos, que atende melhor à sociedade, pois
não atua no campo reparatório, mas evita ou dissuade condutas que possam causar acidentes. Ela
se aplica tanto na responsabilidade extracontratual quanto na contratual. VENTURI, Thaís Goveia
Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva: A proteção contra a violação dos direitos e a tutela
inibitória material. São Paulo: Malheiros, 2014, passim.

162
Violência Obstétrica em Debate

a responsabilidade civil reparatória será a forma de ressarcir as gestantes pelos


danos sofridos, sejam eles de ordem extrapatrimonial ou patrimonial.
A inobservância pelo médico do dever de informar e a não obtenção do
consentimento livre e esclarecido da gestante pode atrair a aplicação do instituto
da responsabilidade civil em razão dos danos por ela sofridos, principalmente na
esfera não patrimonial. Nesse caso, a responsabilidade civil médica ultrapassa até
mesmo a existência de eventual erro médico e se caracteriza pela negligência mé-
dica no dever de informar e pela prática do ato sem a devida autorização, atraindo
o disposto no artigo 951 do Código Civil e artigo 14, §4º, do CDC.364
A responsabilidade civil pela violação do dever de informar à gestante
decorre da obstaculização de sua autonomia da vontade, maculando o ato pla-
nejado pela parturiente ao longo dos meses de gestação. Configurar-se-ia ato
de violência obstétrica por furtar da gestante sua autodeterminação corporal.

3. O combate à violência obstétrica por meio da


informação e o instituto da responsabilidade civil
O ato de violência365 contra as gestantes pode se verificar, a título de
exemplo, quando: i) elas são impedidas de ter acompanhante durante o parto
(Lei n. 11.108/2005)366 ou quando a sua presença é condicionada à autorização
médica;367 ii) são realizados procedimentos sem o seu consentimento; iii) não

364 A respeito da responsabilidade civil do médico pelo inadimplemento do dever de informar merece
citar: STJ, REsp 1540580/DF, Relator(a) Ministro Lázaro Guimarães, Relator(a) p/ Acórdão
Ministro Luis Felipe Salomão, Órgão Julgador Quarta Turma, Data do Julgamento 02/08/2018, Data
da Publicação/Fonte DJe 04/09/2018.
365 O artigo 3º da Lei 3.363/2013, do Estado de São Paulo enumera algumas condutas que configuram
violência obstétrica.
366 Cabe trazer à baila decisão que condenou o hospital na reparação dos danos morais sofridos pelo
pai em razão da negativa de seu direito de assistir o parto de sua filha na condição de acompanhante,
o que está assegurado na Lei n. 11.108/2005. (Apelação Cível n. 70074397753, Quinta Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Lusmary Fatima Turelly da Silva, Julgado em 25/10/2017).
No mesmo sentido: (TJRJ, Apelação n. 0009775-35.2014.8.19.0037, Des(a). Edson Aguiar de
Vasconcelos, Décima Sétima Câmara Cível, Julgamento: 18/11/2015; TJRJ, Apelação Cível n.
0007566-98.2012.8.19.0058, Des(a). Natacha Nascimento Gomes Tostes Gonçalves de Oliveira,
Vigésima Sexta Câmara Cível, Julgamento: 12/03/2015).
367 Em 2015, quando a Lei n. 11.108/2005, conhecida como a Lei do Acompanhante, completou 10 anos de
vigência, a Revista Época divulgou pesquisa realizada pelo “Nascer do Brasil”, de 2012, única a medir

163
Violência Obstétrica em Debate

recebem informações claras sobre seu estado de saúde; iv) não lhes são ofere-
cidas opções para o alívio da dor;368 v) são impedidas de se movimentar, beber
água ou de se alimentarem de forma leve durante o trabalho de parto;369 vi)
são submetidas a exames de toque vaginal repetidas vezes; vii) são submetidas
à manobra de Kristeller;370 371 e viii) fazem piadas, recebem broncas ou não
lhes é permitido que se expressem.

o atendimento às gestantes no Brasil, em que indica que apenas uma a cada quatro mulheres tem
o acompanhamento o tempo todo. Disponível em <https://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/08/
violencia-obstetrica-por-que-mulheres-ficam-sozinhas-no-parto.html>. Acesso em: 06/09/2018.
368 Quanto à aplicação do instituto da responsabilidade civil, em caso de utilização do parto normal
quando era indicado procedimento de cesariana, causando sequelas funcionais na criança, merece
fazer menção a seguinte decisão: TJRS, Apelação Cível n. 70037514452, Des. Iris Helena Medeiros
Nogueira, Nona Câmara Cível, Julgado em 25/08/2010.
369 “O trabalho de parto requer enormes quantidades de energia. Como não se pode prever a sua
duração, é preciso repor as fontes de energia, a fim de garantir o bem-estar fetal e materno. A
restrição severa de ingesta oral pode levar à desidratação e à cetose. Esta situação é comumente
tratada por uma infusão intravenosa de soluções contendo glicose.” (World Health Organization.
Maternal and newborn haelth/safe motherhood division of reproductive health. Care in Normal
Birth: a practical guide. Report of a Technical Working Group. Ginebra 1996; [Citado: 12 feb.
2008]. Disponível em: <http://www.who.int/making_pregnancy_safer/publications/archived_
publications/care_in_normal_birth_practical_guide.pdf> Acesso em: 06 set. 2018.
370 “A manobra de Kristeller consiste na compressão do fundo uterino durante o segundo período do trabalho
de parto objetivando a sua abreviação. Embora rotineiras, tais medidas necessitam de uma análise crítica
das evidências disponíveis para se determinar os seus reais benefícios, assim como os riscos associados
à sua utilização.” Diretriz Nacional de Assistência ao Parto Normal - Relatório de recomendação, da
Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. Disponível em <http://conitec.gov.br/images/
Consultas/2016/Relatorio_Diretriz-PartoNormal_CP.pdf> Acesso em: 06 set. 2018.
371 Em relação à responsabilidade civil caracterizada em virtude dos danos sofridos pela prática da manobra
de Kristeller no parto ver a seguinte decisão: TJRJ, Apelação cível n. 0000790-55.2005.8.19.0017, Des.
Caetano Ernesto da Fonseca Costa, Sétima Câmara Cível, Julgamento: 12/04/2017.

164
Violência Obstétrica em Debate

Essas condutas atingem as mulheres que estão em posição de vulnera-


bilidade potencializada372 373 em razão de seu estado de saúde. E afrontam a
dignidade humana (art. 1º, III, CF); o direito à vida (art. 5º, CF); à igualdade
(art. 5º, I, CRFB/88); à saúde (art. 6º; art. 196 CRFB/88); à liberdade; a pro-
teção à maternidade e à infância (art. 6º; art. 203, I, CRFB/88);374 o direito à
humanização do parto; o direito de não ser submetida à tortura (art. 5º, III,

372 O conceito de vulnerabilidade (do latim vulnerabilis, “que pode ser ferido”, de vulnerare, “ferir”, de
vulnus, “ferida”) refere-se a qualquer ser vivo, sem distinção, que pode, eventualmente, ser “vulnerado”
em situações contingenciais”. Como ressaltado por Heloisa Helena Barboza, a vulnerabilidade é uma
característica ontológica de todos os seres vivos, o que reforça a justificação da plena “tutela geral
(abstrata) da pessoa humana, ontologicamente vulnerável, não só nas relações econômicas, como nas de
consumo, mas em todas as suas relações, especialmente as de natureza existencial, e a tutela específica
(concreta), de todos os que se encontrem em situação de desigualdade, por força de contingências
(vulnerabilidade potencializada ou vulnerados), como forma de assegurar a igualdade e a liberdade,
expressões por excelência da dignidade humana”. BARBOZA, Heloisa Helena. Reflexões sobre a
autonomia negocial. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Coords.). O direito e o tempo:
embates jurídicos e utopias contemporâneas. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 420. Ver. KONDER,
Carlos Nelson, Vulnerabilidade patrimonial e vulnerabilidade existencial: por um sistema diferenciador.
Revista de Direito do consumidor: RDC, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 24, n. 99, 2015. p. 101-123.
373 As gestantes em razão de sua vulnerabilidade encontram restrições para participação de pesquisas.
Para que ocorra a pesquisa nessas hipóteses, deve-se verificar se há riscos de efeitos abortivos,
teratogênicos dos medicamentos em estudo, admite-se, tão somente, em caso de risco mínimo e que
não possa ser realizada em outra pessoa (Item III.2, alíneas “r” e “s”, Resolução n. 466/12 do CNS).
A respeito da participação de gestantes em pesquisa clínica, a Diretriz 17 do CIOMS – Council
for International Organizations of Medical Sciences dispõe que as mulheres grávidas, que sejam
sujeitos potenciais, devem ser informadas adequadamente sobre os riscos e benefícios para elas,
sua gravidez, o feto, seus descendentes e sua fecundidade. PESSINI, Leocir. Problemas atuais da
bioética. 8. ed. revista e ampliada. São Paulo: Centro Universitário São Camilo: Loyola, 2007. p. 226.
374 SAUAIA, Artenira da Silva e Silva; SERRA, Cibele de Mesquita Serra. Violência obstétrica no Brasil: um
enfoque a partir dos acórdãos do STF e STJ. REVISTA QUAESTIO IURIS, v. 10, p. 2.430-2.457, 2017.

165
Violência Obstétrica em Debate

CF); enfim, a todos direitos humanos fundamentais consagrados não só na


Constituição Federal como em tratados e convenções internacionais.375 376 377
Esses atos se enquadram como uma espécie de violência de gênero378 no
âmbito das relações médicas e representam um verdadeiro retrocesso às con-
quistas das mulheres por direitos iguais, pela não discriminação (artigos 5º,
incisos I, XX, L, 6º, 7º, XVIII, 201, II, 226, §5º, todos da CF).
À mulher é assegurado o direito de ter seu acompanhante (Lei n. 11.108/2005);
o direito de não ser lesionada pelas manobras desnecessárias e costumeiras, ma-

375 Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a violência contra a mulher, realizada
em Belém do Pará. – arts. 5º e 6º, Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San
José da Costa Rica, de 22/11/1969, ratificada pelo Brasil em 25/09/1992, arts. 7, 12 e 17. Declaração
Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que em seu preâmbulo e artigo 1º consagrou a dignidade
da pessoa humana, que abrange a liberdade, a igualdade, e a fraternidade; a Declaração Universal
do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, artigo 2º, de 1997; e a Convenção sobre Direitos do
Homem e Biomedicina, artigo 1º, de 1996.
376 “No âmbito da discussão em torno da melhor terminologia a ser adotada, é de se destacar o uso
mais recente da expressão “direitos humanos fundamentais” por alguns autores. Esta terminologia,
ao menos em nosso entender, embora não tenha o condão de afastar a pertinência da distinção
traçada entre direitos humanos e direitos fundamentais, revela, contudo, a nítida vantagem de
ressaltar, relativamente aos direitos humanos de matriz internacional, que também estes dizem
com reconhecimento e proteção de certos valores e reivindicações essenciais de todos os seres
humanos, destacando, neste sentido, a fundamentalidade em sentido material, que – diversamente
da fundamentalidade formal – é comum aos direitos humanos e aos direitos fundamentais
constitucionais, consoante, aliás, será objeto de posterior análise.” SARLET, Ingo Wolfgang. A
eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 33.
377 Declaração da OMS intitulada “Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos
durante o parto em instituições de saúde”. Disponível em <http://www.who.int/reproductivehealth/
topics/maternal_perinatal/statement-childbirth/pt/>. Acessado em 01/09/2018.
378 VIVEIROS DE CASTRO, Thamis Dalsenter. Comentários ao artigo 19 do Estatuto da Pessoa com
Deficiência. In: Heloisa Helena Barboza; Vitor Almeida. (Org.). Comentários ao Estatuto da Pessoa
com Deficiência à luz da Constituição da República. 1ed.Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 119-126.

166
Violência Obstétrica em Debate

nobra de Kristeller – prática banida pela OMS;379 380 381 o direito de não ser insul-
tada, direito de não ficar isolada, direito de amamentar seu filho nos primeiros
minutos de vida;382 o direito de ter suas dúvidas esclarecidas, entre outros.
O combate à violência perpetrada contra a mulher pode ocorrer de di-
versas formas,383 entre as quais: com a concessão de maior acesso e assistência
à saúde; com a garantia da presença de acompanhante no momento do parto,

379 World Health Organization. Maternal and newborn haelth/safe motherhood division
of reproductive health. Care in Normal Birth: a practical guide. Report of a Technical
Working Group. Ginebra 1996;[Citado: 12 feb. 2008]. Disponível em: <http://www.who.
i nt /ma k i ng _ preg na nc y_ sa fer/publ ic at ions/a rch ived _ publ ic at ions/c a re _ i n _ nor ma l _
birth_practical_guide.pdf> Acesso em: 06 set. 2018.
380 Em decisão do Coren/RS de n. 095/2016 foi vedada a participação de profissionais de enfermagem
na realização da manobra de Kristeller. Disponível em <https://www.portalcoren-rs.gov.br/docs/
Legislacoes/legislacao_cdaea2dc629c8089b0948e9eea4c7491.pdf> Acesso em: 06 set. 2018.
381 O Hospital Geral de Pedreira, instituição de saúde pública situado na zona sul da cidade de São
Paulo aboliu em dezembro de 2014 a prática chamada de manobra de Kristeller durante os partos
após uma paciente procurar o Ministério Público Federal para relatar as dores que sentiu durante
o procedimento, tendo a Procuradoria reconhecido que a manobra se trata de violência obstétrica.
Disponível em <https://www.geledes.org.br/hospital-proibe-manobra-de-kristeller-e-reconhece-
violencia-obstetrica/> Acesso em: 06 set. 2018.
382 “Os primeiros 60 minutos de vida do bebê após o nascimento, chamado de golden hour, representam
o período no qual são realizadas intervenções para minimizar as complicações neonatais(8). Dentre
tais intervenções, o contato pele a pele e a amamentação na primeira hora de vida promovem vínculo
entre mãe e bebê e estimulam o reflexo de sucção da criança (9). Dessa forma, medidas de promoção
do aleitamento materno (AM) e do contato pele a pele na primeira hora de vida são necessárias
para a maior taxa de sobrevida do neonato e menores índices de desmame precoce.” ARRUDA,
Guilherme Tavares; BARRETO, Sabrina Cabreira; MORIN, Vanessa Lago; PETTER, Gustavo do
Nascimento; BRAZ, Melissa Medeiros; PIVETTA, Hedioneia Maria Foletto. Existe relação da via
de parto com a amamentação na primeira hora de vida? Revista Brasileira em Promoção da Saúde
(Online), v. 31, p. X-e7, 2018.
383 A Organização Mundial de Saúde em publicação de 2014 intitulada “Prevenção e eliminação de
abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde”, prevê como medidas
necessárias a serem tomadas: 1. Maior apoio dos governos e de parceiros do desenvolvimento
social para a pesquisa e ação contra o desrespeito e os maus-tratos; 2. Começar, apoiar e manter
programas desenhados para melhorar a qualidade dos cuidados de saúde materna, com forte
enfoque no cuidado respeitoso como componente essencial da qualidade da assistência; 3. Enfatizar
os direitos das mulheres a uma assistência digna e respeitosa durante toda a gravidez e o parto; 4.
Produzir dados relativos a práticas respeitosas e desrespeitosas na assistência à saúde, com sistemas
de responsabilização e apoio significativo aos profissionais; e 5. Envolver todos os interessados,
incluindo as mulheres, nos esforços para melhorar a qualidade da assistência e eliminar o
desrespeito e as práticas abusivas. Disponível em: <http://www.who.int/reproductivehealth/topics/
maternal_perinatal/statement-childbirth/pt/>. Acesso em: 1º set. 2018.

167
Violência Obstétrica em Debate

e com sua maior participação no pré-natal, no plano de parto384 e durante


todo o processo de cuidado médico.
O fornecimento de informações à gestante sobre a sua situação de saúde,
as condutas e procedimentos disponíveis para a realização do parto, os riscos
e benefícios, permitem o exercício de seu direito de escolha, assegurando sua
autonomia corporal. É na relação médico-paciente que se inicia a efetivação
desse direito, o que impõe uma revisitação dos deveres e direitos a ela atinen-
tes, do papel do médico no que tange à informação.
A informação prestada à gestante deve ser vista como um processo gra-
dual, eis que, durante o período gestacional, ela terá contato com diversos pro-
fissionais, sendo que o momento do parto, ainda que previsto, como acontece
no caso das cesáreas, pode ser antecipado por questões fisiológicas naturais.
Ou seja, o profissional que faz o acompanhamento pré-natal não é necessaria-
mente o que procede com o parto.
Apenas munida de informações385 a gestante poderá exercer efetivamen-
te seu direito de escolha.

Considerações finais
O parto e o nascimento das crianças passam, na contemporaneidade,
por uma verdadeira transformação, com novos atores (enfermeiros, técnicos
de enfermagem, funcionários do hospital, médico obstetra, anestesistas etc.), e
novas formas de atos de violência obstétrica. Por isso, é importante que a mu-
lher recupere sua posição de protagonista no parto de forma consciente, que

384 O Instituto Nascer define plano de parto como sendo uma lista de itens relacionados ao parto, sobre
os quais você pensou e refletiu. Isto inclui escolher onde você quer ter seu bebê, quem vai estar
presente, quais são os procedimentos médicos que você aceita e quais você prefere evitar. Disponível
em <http://institutonascer.com.br/como-escrever-seu-plano-de-parto/> Acesso em: 06 set. 2018.
385 “A informação é elemento essencial da precaução porque garante o acesso das pessoas ao conteúdo
das decisões tomadas, permitindo a devida fiscalização. A informação permite que cada um, em
última análise, tome para si parte do gerenciamento dos riscos que lhe assombram. A informação
é indispensável para o exercício da escolha, da autodeterminação, sempre que há espaço para
tanto.” HARTMANN, Ivar Alberto Martins. O princípio da precaução e sua aplicação no direito do
consumidor: Dever de informação. Revista de Direito do Consumidor: RDC, São Paulo: Revista dos
Tribunais, v. 18, n. 70, 2009. p. 162.

168
Violência Obstétrica em Debate

este deixe de ser na maioria das vezes um ato cirúrgico e volte a ser um evento
fisiológico, um parto humanizado, o que se dá por meio da informação.
A falta de conhecimento pela gestante sobre os procedimentos possíveis
de parto, os riscos e benefícios, acarreta a violação de sua livre disposição cor-
poral, seu direito de autodeterminação, sua autonomia e integridade psicofísi-
ca, que constituem direitos humanos fundamentais já consagrados.
A intervenção médica se tornará lícita e legítima quando a gestante con-
ceder seu consentimento livre e esclarecido, quando lhe for assegurado o exer-
cício da livre escolha quanto à forma como quer que se realize o parto e sua
interação com a criança. A relação médico-paciente deve se dar por meio de
um processo dialógico, pela troca transparente de informações e mediante a
boa-fé de ambas as partes. Deve-se recuperar o viés personalíssimo da relação
e seu distanciamento do caráter hoje atribuído de consumo.
A melhor arma para reduzir a violência que as mulheres têm sofrido em
uma posição de extrema vulnerabilidade é, portanto, a informação, pois esta
promove o empoderamento da mulher, o exercício da autonomia feminina e
previne os atos arbitrários contra a mulher.
A informação atua em observância à função preventiva, dissuasória da
responsabilidade civil, que não se afasta, contudo, da função reparatória, com-
pensatória da responsabilidade civil quando o dano decorre de sua ausência.

169
Notas sobre a autonomia da gestante
e os requisitos de validade dos planos
de parto no direito brasileiro

Vitor Almeida

Notas introdutórias: da violência obstétrica à


humanização do parto
A excessiva medicalização do processo gestacional nas últimas décadas
tem provocado debates necessários em relação aos limites do papel dos médi-
cos na tomada de decisão a respeito das escolhas médico-sanitárias durante
o pré-natal e o parto, que ao longo do tempo foram subtraídos das mulheres
com a chamada “estandardização do parto” por meio de protocolos e práticas
rotineiras nos ambientes hospitalares386. A institucionalização do parto au-
mentou a vulnerabilidade da mulher grávida, uma vez que o processo natural
da gestação passou a ser totalmente medicalizado. É de se destacar, ainda, que
não somente a desconsideração da vontade das mulheres é reinante neste ce-
nário, mas práticas médicas violentas e desumanas se naturalizaram a ponto
de socialmente sequer serem compreendidas como violência obstétrica.

386 “O parto é um processo normal e natural, um período vulnerável para a saúde da mulher, em
que o ambiente e as atividades sanitárias exercem grande influência. Na metade do século XX foi
institucionalizado o processo de parto, passando dos partos em domicílio aos partos hospitalares.
Quando o parto foi considerado um processo hospitalar, foram incluídas determinadas práticas
rotineiras e protocolizadas, tais como a episiotomia, a depilação, os enemas, a indução do parto, sem
que seu uso rotineiro fosse avalizado por evidências científicas. O parto foi incluído no modelo de
saúde baseado em doenças, considerando a mulher como uma doente que necessita atenção médica.
Diante desta situação, em 1985, com as recomendações da OMS sobre o nascimento, inicia-se um
processo de ‘estandardização do parto’, os estados são incitados a revisar a tecnologia aplicada aos
partos e admite-se que cada mulher deve eleger o tipo de parto que deseja, contribuindo assim
para devolver o protagonismo à mulher”. SUÁREZ-CORTÉS, María; ARMERO-BARRANCO,
David; CANTERAS-JORDANA, Manuel; MARTÍNEZ-ROCHE, María Emilia. Uso e influência
dos Planos de Parto e Nascimento no processo de parto humanizado In: Revista Latino-Americana
de Enfermagem, 2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rlae/2015nahead/pt_0104-1169-
rlae-0067-2583.pdf>. Acesso em 07 set. 2019.

171
Violência Obstétrica em Debate

Tal perspectiva começou a ser alterada no Brasil com a o Programa de


Humanização no Pré-natal e Nascimento (PHPN), instituído pela Portaria
GM/569, em junho de 2000, pelo Ministério da Saúde, após análise das neces-
sidades de atenção específica à gestante, ao recém-nascido e à mãe no período
pós-parto. O objetivo primordial do PHPN é assegurar a melhoria do acesso,
da cobertura e da qualidade do acompanhamento pré-natal, da assistência ao
parto e puerpério às gestantes e ao recém-nascido, com a mira na promoção
dos direitos de cidadania das mulheres grávidas.
O PHPN tem o propósito de efetivar formas de combate à violência obs-
tétrica, reduzir a mortalidade materna e neonatal e melhorar o tratamento
dado as gestantes e parturientes, bem como oferece diretrizes para um amplo
processo de humanização da assistência obstétrica, fundamentado nas reco-
mendações da Organização Mundial de Saúde (OMS). O programa visa aten-
der às necessidades de cada mulher no processo de parturição de forma digna,
com o intuito de minimizar intervenções desnecessárias e inapropriadas ao
parto, buscando a humanização do ciclo gravídico-puerperal.387
Fundamental, nesse contexto, reconhecer a importância da autonomia
das mulheres no processo de parto e nascimento. Para tanto, o papel de pro-
tagonismo das mulheres no processo de parto e nascimento implica o forta-
lecimento e a adoção de novos métodos e instrumentos na assistência à saúde
que preservem ao máximo sua autonomia corporal e seus desejos e vontades,
sobretudo, no momento do parto.
Dentre as estratégias possíveis para fortalecer sua autonomia encontra-se
a elaboração pela gestante de um plano de parto e nascimento388, que consiste,

387 “O Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento fundamenta-se nos preceitos de


que a humanização da Assistência Obstétrica e Neonatal é condição primeira para o adequado
acompanhamento do parto e do puerpério. A humanização compreende pelo menos dois aspectos
fundamentais. O primeiro diz respeito à convicção de que é dever das unidades de saúde receber com
dignidade a mulher, seus familiares e o recém-nascido. Isto requer atitude ética e solidária por parte
dos profissionais de saúde e a organização da instituição de modo a criar um ambiente acolhedor e a
instituir rotinas hospitalares que rompam com o tradicional isolamento imposto à mulher. O outro se
refere à adoção de medidas e procedimentos sabidamente benéficos para o acompanhamento do parto
e do nascimento, evitando práticas intervencionistas desnecessárias, que embora tradicionalmente
realizadas não beneficiam a mulher nem o recém nascido, e que com frequência acarretam maiores
riscos para ambos”. BRASIL. Ministério da Saúde. Programa humanização do parto: humanização no
pré-natal e nascimento. Brasília: Ministério da Saúde; 2002, p. 5-6.
388 No presente trabalho prefere-se denominar simplesmente de plano de parto.

172
Violência Obstétrica em Debate

basicamente, num documento escrito, de caráter legal, em que, após processo


de consentimento livre e informado por meio das informações sobre a gra-
videz e o parto, e considerando seu valores, desejos e expectativas sobre seu
parto e suas necessidades médicas particulares, deixará registrado suas von-
tades e que deve ser respeitado pelos profissionais que a assistem. Nessa linha,
o plano de parto e nascimento torna-se um instrumento importante para as
mulheres grávidas refletirem sobre o momento do parto e definir suas esco-
lhas a partir das suas particularidades e condição de saúde.
O presente trabalho tem por fim analisar os contornos jurídicos do cha-
mado plano de parto no direito brasileiro como importante instrumento de
garantia da autodeterminação da gestante, de modo a delinear os possíveis
efeitos das diretrizes contidas no documento e a vinculação dos profissionais
envolvidos no ciclo gravídico-puerperal.

1. Autonomia corporal e fase gestacional:


a vulnerabilidade da mulher grávida
Os avanços da biotecnologia e da biomedicina no último quartel do
século passado atingiram centralmente a reprodução humana, operando
verdadeiras transformações no antes tido como natural fato da gestação e,
consequentemente, no nascimento. A crescente interferência (bio)médica na
reprodução humana integra o chamado processo de medicalização da vida
humana,389 que, segundo Heloisa Helena Barboza, constitui “fenômeno social
difuso nas sociedades ocidentais, que se instaurou talvez de modo não deli-

389 Marilena C. D. V. Corrêa e Maria Cristina R. Guilam registram que: “A espetacular expansão da
medicalização a qualquer aspecto da existência individual e da vida social permite ao discurso
médico englobar virtualidades – os riscos – alterando de forma fundamental a topologia daquele
discurso. Antes referido estritamente à positividade dos sinais e sintomas circunscritos aos corpos
individuais, o discurso médico passa a englobar ‘estilos de vida’ (comportamentos individuais) e
os mais diferentes fatores ‘de risco para a saúde’ (qualidade do ar, da água, hábitos culturais etc.)”
(O discurso do risco e o aconselhamento genético pré-natal. In: Cadernos de Saúde Pública, Rio de
Janeiro, v. 22, n. 10, out., 2006, p. 2.142).

173
Violência Obstétrica em Debate

berado, mas, sem dúvida, definitivo”.390 Tal processo foi acelerado “no século
XX, graças à marcante atuação da biomedicina”.391
Conforme observou Heloisa Helena Barboza:
[...] nascimento, desenvolvimento e preservação da vida, e mesmo a morte
deixaram de ser fatos naturais, transformando-se em ações médicas, de
todo influentes para o direito. Nascimentos e mortes ocorrem em hospi-
tais, para grande parte da população brasileira, incluídos os mais carentes.
A medicina determina como nascer, quando morrer, como viver: o que
comer, o que fazer ou não, num processo contínuo de acompanhamento
do indivíduo, de forma direta ou indireta, como a que ocorre por meio de
campanhas ou orientação pelos meios de comunicação em massa.392

Nesse cenário de medicalização da vida humana já se observou que “é


possível falar em uma maior concentração de intervenção médica (práticas e
discursos) sobre o corpo feminino se comparado ao masculino”,393 especial-
mente no campo da reprodução humana. Marilena C. D. V. Corrêa e Maria
Cristina R. Guilam, por exemplo, afirmam que a gravidez é “[...] um dos mo-
mentos mais medicalizados da vida da mulher. Por meio do discurso biomé-
dico, a mulher grávida se vê cercada, hoje, de uma rede de vigilância de seu
corpo, passando a ser responsabilizada não só pela própria saúde, mas tam-
bém pela produção de um feto saudável”.394
De obra da natureza, o processo reprodutivo foi medicalizado desde a possi-
bilidade de fertilização dos gametas em laboratório, passando pela exigência mé-
dica de acompanhamento pré-natal até a indicação da técnica mais adequada no

390 BARBOZA, Heloisa Helena. Reprodução humana como direito fundamental. In: DIREITO, Carlos
Alberto Menezes; TRINDADE, Antônio Augusto Cançado; PEREIRA, Antônio Celso Alves (Org.).
Novas Perspectivas do direito internacional contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 778.
391 BARBOZA, Heloisa Helena. Reprodução humana como direito fundamental. In: DIREITO, Carlos
Alberto Menezes; TRINDADE, Antônio Augusto Cançado; PEREIRA, Antônio Celso Alves (Org.).
Novas Perspectivas do direito internacional contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 778.
392 BARBOZA, Heloisa Helena. Reprodução humana como direito fundamental. In: DIREITO, Carlos
Alberto Menezes; TRINDADE, Antônio Augusto Cançado; PEREIRA, Antônio Celso Alves (Org.).
Novas Perspectivas do direito internacional contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 778-779.
393 CORRÊA Marilena C. D. V.; GUILAM Maria Cristina R. O discurso do risco e o aconselhamento
genético pré-natal, cit., p. 2.142.
394 CORRÊA, Marilena C. D. V.; GUILAM, Maria Cristina R. O discurso do risco e o aconselhamento
genético pré-natal, cit., p. 2.142.

174
Violência Obstétrica em Debate

momento do parto. Todas essas fases foram, indiscutivelmente, medicalizadas,


viabilizando novas possibilidades de exames, diagnósticos e tratamentos in utero.
Tal panorama de forte intervenção no corpo da mulher grávida não só
reduz sua autonomia de decidir sobre os aspectos ligados ao parto, mas des-
cortina formas de violência obstétrica, que pode ser definida como “é o des-
respeito à mulher, seu corpo e seus processos reprodutivos. Isso acontece atra-
vés de tratamento desumano, transformação de processos naturais do parto
em doença ou abuso da medicalização, negando às mulheres a possibilidade
de decidir sobre seus corpos”. A violência obstétrica pode acontecer tanto du-
rante a gestação, quanto no parto e pós-parto. “Além da mulher, a violência
obstétrica pode ocorrer com o bebê e com seus familiares, podendo causar
danos físicos, psicológicos e sexuais”.395
Em 2014, a Organização Mundial de Saúde publicou declaração sobre
Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto
em instituições de saúde, em razão de “evidências sugerirem que as experiên-
cias de desrespeito e maus-tratos das mulheres durante a assistência ao parto
são amplamente disseminadas”.396
De acordo com Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a
CPMI da Violência contra as Mulheres, em pesquisa realizada em parceria
pela Fundação Perseu Abramo e SESC, em 2010, apontou que 25% das mu-
lheres entrevistadas sofreram algum tipo de agressão durante a gestação, em
consultas pré-natais ou no parto. O dossiê esclarece que a violência obstétrica
se caracteriza por meio de “todos aqueles praticados contra a mulher no exer-
cício de sua saúde sexual e reprodutiva, podendo ser cometidos por profissio-
nais de saúde, servidores públicos, profissionais técnico-administrativos de
instituições públicas e privadas, bem como civis”, de caráter físico, psicológi-
co, sexual, institucional e midiático.397

395 Disponível em: <https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/0/Cartilha_VO_JUL_2018%20


(3).pdf.>. Acesso em 10 set. 2018.
396 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-
tratos durante o parte em instituições de saúde, 2014. Disponível em: < http://apps.who.int/iris/
bitstream/10665/134588/3/WHO_RHR_14.23_por.pdf>. Acesso em 27 dez. 2018.
397 PARTO DO PRINCÍPIO - MULHERES EM REDE PELA MATERNIDADE ATIVA. Dossiê da
Violência Obstétrica - “Parirás com dor”, 2012, p. 57 e 61. Disponível em: <http://www.senado.gov.
br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20VCM%20367.pdf>. Acesso em 29 dez. 2018.

175
Violência Obstétrica em Debate

No Brasil, a discussão ganhou destaque com caso que ocorreu na cidade


de Torres, no Rio Grande do Sul, quando a Justiça gaúcha determinou que
uma gestante de 42 semanas fosse submetia a uma cesariana contra sua von-
tade, por considerar que a gestante e o nascituro corriam risco de morte. O
pedido foi feito pelo Ministério Público após ter sido procurado pela médica.
A decisão foi bastante discutida, exatamente pela forma como ocorreu o cum-
primento da decisão judicial, visto que a gestante foi levada de casa por força
policial até o hospital para realizar o parto.398
Embora pareça irrefreável o fenômeno da medicalização do parto hodier-
namente, deve-se ter cautela em relação à situação de vulnerabilidade na qual se
encontra a gestante, seja por razões médicas ou psicológicas. Isso não quer dizer
redução da capacidade, mas sim um estado de fragilidade, que é realçado pelas
prescrições médicas, subjugando as grávidas a um modelo de comportamen-
to condizente e compatível com um discurso médico de “gestação saudável” e,
consequentemente, com o nascimento de uma “criança perfeita”.
Em que pese, algumas situações jurídicas extrapatrimoniais, titulariza-
das pelos nascituros como merecedoras de tutela, impinjam à mulher grávida
alguns deveres, ensejando limitações à sua autonomia corporal, é preciso de-
marcar que a sua liberdade não pode ser subtraída, sendo que, ao contrário,
em inúmeros casos deve preponderar o direito à autodeterminação da gestan-
te face os direitos do nascituro.
É necessário, portanto, um olhar crítico do Direito quanto ao discurso
médico de aconselhamento e acompanhamento durante a fase pré-natal, que
precisa coincidir com os valores albergados no ordenamento, sob pena de se
desconsiderar a autodeterminação existencial da mulher grávida.
Por outro lado, a partir das modernas técnicas de diagnóstico pré-natal
e do avanço da engenharia genética, têm se ampliado as possibilidades de es-
colhas reprodutivas,399 sendo que, nesse caso, a irresponsabilidade dos pais

398 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/04/1434570-justica-do-rs-manda-


gravida-fazer-cesariana-contra-sua-vontade.shtml>. Acesso em 10 jan. 2019.
399 Debora Diniz já analisou o caso da surdez, no qual a comunidade Surda defende a preferência
pelo nascimento de crianças surdas como forma de manutenção da identidade cultural surda,
discutindo-se os limites das decisões reprodutivas dos futuros pais no desenvolvimento de seus
futuros filhos. DINIZ, Debora. Autonomia reprodutiva: um estudo de caso sobre a surdez. In:
Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 175-181, 2003.

176
Violência Obstétrica em Debate

nas escolhas genéticas que interferem na formação do nascituro não deve ser
acobertada pelo Direito, sob pena de demasiada interferência na vida da futu-
ra criança; por outro lado, não se pode desconsiderar que certas preferências
reprodutivas integram a autonomia concedida, sobretudo, à gestante.
Imperioso constatar que no plano fático-social, apesar da proclamada
igualdade de gêneros na Constituição de 1988, a mulher continua sendo víti-
ma de discriminação e preconceito, e tem agravada sua situação de vulnerabi-
lidade, tornando-se vítima tanto em sua integridade física, como em tudo que
respeita à igualdade de oportunidade e condições no ambiente profissional400.
Tal cenário se agrava no caso de mulheres grávidas, uma vez que o quadro de
afronta à dignidade e à autonomia da mulher alcança seu corpo de forma mais
incisiva, tornando-a ainda mais vulnerável.
Impõe-se, nesse caso, em razão da grave questão sociocultural da vulnerabi-
lidade de gênero, um quadro de afronta à dignidade e à autonomia da mulher, que
alcança seu corpo, especialmente no campo da reprodução humana, em especial
no momento do parto. Cabe ao legislador promover a substancial e real igualdade
entre os gêneros, eliminando as situações de discriminação e desigualdade em
relação à mulher, sobretudo no que concerne ao controle de seu próprio corpo.

1. Conteúdo e contornos jurídicos


dos planos de parto e nascimento
Registra-se que o primeiro modelo de plano de parto foi elaborado em
1980, nos Estados Unidos, tendo seu conceito cunhado por Sheila Kitzinger,
considerada a “sacerdotisa do parto natural”, que defendia que o parto não
deveria ser compreendido como uma patologia, posicionando-se contra o mo-
vimento de medicalização da gestação. Para ela, o excessivo controle do pro-
cesso do parto pelos médicos interferia na autonomia das gestantes e defendia
que o nascimento precisaria ser vivido de forma pessoal, considerando os de-

400 Cf. BARBOZA, Heloisa Helena Gomes; ALMEIDA, Vitor. (Des)igualdade de gênero: a mulher
como sujeito de direito. In TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA,
Vitor (coords.). O direito civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem ao Professor Stefano
Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016, pp. 163-189.

177
Violência Obstétrica em Debate

sejos da parturiente, e com a menor intervenção médica possível401. A partir


daí, tais documentos começaram a ser usados nos países anglo-saxões com o
objetivo de exigir um parto o menos intervencionista possível.402
A relevância dos chamados planos de parto encontra fundamento no respei-
to ao princípio bioético de autonomia, que garante a autodeterminação e o contro-
le das mulheres sobre o processo do parto a partir das informações e comunicação
estabelecida com os profissionais envolvidos e serve como forma de reflexão para
as mulheres sobre os desejos e expectativas sobre esse ciclo403. Cabe ressaltar que
as “mulheres gestantes sempre têm sentido a necessidade de planejar e comunicar
a suas famílias e profissionais de saúde o que é importante para elas, para assim
poder sentir-se seguras e apoiadas durante o processo de parto”. Ademais, “não
se deve esquecer que a gravidez e o parto são as etapas prévias da maternidade,
constituindo o início da aquisição do papel maternal”. 404
Segundo Milene Silva Rodrigues, “o plano de parto é uma carta destina-
da aos profissionais de saúde que farão a assistência ao parto da gestante”, cujo
conteúdo deverá ser construído durante o período gestacional, baseado em in-
formações que a mulher colheu sobre o processo do parto, de maneira a realizar
um planejamento pautado em seus desejos e expectativas. “O plano de parto é tão
significante nesse momento que está inserido no contexto de discussão de práticas

401 Cf. KITZINGER, Sheila. Birth your way: choosing birth at home or in a birth center. Chester, United
Kingdom: Fresh Heart Publishing, 2011.
402 “O uso do Plano de Parto e Nascimento foi rapidamente generalizado em alguns países da Europa.
Em 1993, na Inglaterra, era usado em 78% das salas de partos. Na Espanha, sua implantação é recente,
em 2007. A Estratégia de Atenção ao Parto Normal no Sistema Nacional de Saúde (Ministério da
Saúde e Consumo)(6) e a Iniciativa ao Parto Normal (FAME)(4) mencionam este documento, mas
será apenas em fevereiro de 2012 que o Ministério da Saúde, Política Social e Igualdade publica
um modelo de Plano de Parto e Nascimento”. SUÁREZ-CORTÉS, María; ARMERO-BARRANCO,
David; CANTERAS-JORDANA, Manuel; MARTÍNEZ-ROCHE, María Emilia. Uso e influência
dos Planos de Parto e Nascimento no processo de parto humanizado In: Revista Latino-Americana
de Enfermagem, 2015, p. 2. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rlae/2015nahead/pt_0104-
1169-rlae-0067-2583.pdf>. Acesso em 07 set. 2019.
403 SUÁREZ-CORTÉS, María; ARMERO-BARRANCO, David; CANTERAS-JORDANA, Manuel;
MARTÍNEZ-ROCHE, María Emilia. Uso e influência dos Planos de Parto e Nascimento no processo
de parto humanizado In: Revista Latino-Americana de Enfermagem, 2015, p. 2. Disponível em: <http://
www.scielo.br/pdf/rlae/2015nahead/pt_0104-1169-rlae-0067-2583.pdf>. Acesso em 07 set. 2018.
404 SUÁREZ-CORTÉS, María; ARMERO-BARRANCO, David; CANTERAS-JORDANA, Manuel;
MARTÍNEZ-ROCHE, María Emilia. Uso e influência dos Planos de Parto e Nascimento no processo
de parto humanizado In: Revista Latino-Americana de Enfermagem, 2015, p. 2. Disponível em: <http://
www.scielo.br/pdf/rlae/2015nahead/pt_0104-1169-rlae-0067-2583.pdf>. Acesso em 07 set. 2018.

178
Violência Obstétrica em Debate

baseadas em evidências para melhorar a qualidade da assistência”405. Sua impor-


tância é reiterada pelo Ministério da Saúde ao apontar o plano de parto como um
dos passos para um pré-natal de qualidade e baixo risco no Brasil.406
Os planos de parto constituem importante ferramenta de manifestação
de vontade da mulher grávida, “que envolve suas preferências para a gestão
de seu trabalho de parto”, e permitem uma experiência e ressignificação da
vivência do processo de parturição.407
Os planos de parto se voltam à informação e empoderamento das mu-
lheres grávidas, “estimulando-as a tomar decisões compartilhadas e expor as
suas expectativas, bem como criar uma relação de confiança entre elas e os
profissionais de saúde”408. Sua finalidade, portanto, é promover a autonomia
existencial prospectiva da gestante, que previamente emite sua vontade, após
diálogo prévio com doulas e a equipe médica, que estarão envolvidos no tra-
balho de parto e nascimento, com o registro de seus desejos para futuro cum-
primento e respeito à sua dignidade.
Inegável, portanto, que o plano de parto projeta a vontade da gestante
para o futuro, e que tal registro é um documento de caráter legal, que uma vez
aceito pelo médico responsável e demais profissionais da saúde envolvidos,
deve ser fielmente observado em nome da autonomia da paciente gestante.
Contudo, as diretrizes registradas em tal ato não podem violar os preceitos
éticos da medicina e nem ações que importem em risco à saúde ou à vida da
gestante. A rigor, os planos de parto são processos comunicacionais baseados
em diálogos travados ao longo do período gestacional entre gestante, familia-
res, médicos, doulas, entre outros, que será registrado num termo para conhe-

405 RODRIGUES, Milena Silva. Humanização no processo de parto e nascimento: implicações do


plano de parto. Belo Horizonte, 2017. 102 f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) – Escola de
Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, p. 31.
406 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica.
Atenção ao pré-natal de baixo risco [recurso eletrônico] / Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à
Saúde. Departamento de Atenção Básica. – 1. ed. rev. – Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2013.
407 RODRIGUES, Milena Silva. Humanização no processo de parto e nascimento: implicações do
plano de parto. Belo Horizonte, 2017. 102 f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) – Escola de
Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, p. 31.
408 RODRIGUES, Milena Silva. Humanização no processo de parto e nascimento: implicações do
plano de parto. Belo Horizonte, 2017. 102 f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) – Escola de
Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, p. 31.

179
Violência Obstétrica em Debate

cimento dos envolvidos. A validade e os efeitos jurídicos dos planos de parto


serão analisados no próximo item.

2. Validade e efeitos jurídicos dos


planos de parto e nascimento
Os planos de parto e nascimento, como visto, são documentos elabora-
dos pela própria gestante a partir das informações absorvidas ao longo da ges-
tação nos quais as vontades da gestante no momento do parto e pós-parto são
registrados. Suas diretrizes são basicamente aquelas relativas às intervenções
desejadas ou não pela gestante409. Tais documentos constituem declaração ex-
pressa de vontade da mulher, que deve ser respeitado durante a assistência da
parturição e puerpural, e retrata, a rigor, o consentimento previamente dado
pela gestante para os procedimentos que ela autoriza que sejam realizados.
Na linha de preocupação com a vontade dos pacientes em fase terminal
ou de impossibilidade de exprimir sua vontade, foram concebidas as decla-
rações antecipadas de vontade ou diretivas antecipadas de vontade, que são
uma modalidade de negócio jurídico unilateral com viés existencial, no qual
a pessoa com capacidade civil plena faz escolhas a serem efetivadas no futuro,
caso, naquele momento, não possa exprimir sua vontade. A projeção futura da
autonomia existencial por meio das diretivas antecipadas tem sido crescente-
mente pleiteada em razão dos avanços da medicina. Segundo Luciana Dadal-
to, as diretivas antecipadas “são gênero e suas espécies, o mandato duradouro
e a declaração prévia de vontade do paciente terminal”410, entre outras.
O respeito à autonomia existencial prospectiva permite que as manifes-
tações de autonomia voltadas para o futuro sejam plenamente admitidas em
nosso ordenamento, para garantir as escolhas pessoais nas fases da vida em
que a pessoa não consegue declarar autonomamente sua vontade, obstacu-
lizando a realização de seus desejos. As diretivas antecipadas, em regra, es-

409 Um exemplo de Plano de Parto foi desenvolvido pela Defensoria Pública de São Paulo em conjunto
com a ONG Artemis e se encontra disponível em http://artemis.org.br/wpcontent/uploads/2014/07/
Modelo-de-plano-de-Parto-Artemis-Defensoria.pdf.. Acesso em 08 set. 2018.
410 PENALVA, Luciana Dadalto. Declaração prévia de vontade do paciente terminal. In: Revista
Bioética, v. 17, n. 3, 2009, p. 524.

180
Violência Obstétrica em Debate

pelham o projeto de vida do seu autor, logo, devem ser valorizadas porque
traduzem suas escolhas e opções existenciais, permitindo que a pessoa possa
construir sua personalidade de acordo com suas decisões mesmo nos perío-
dos em que não é possível exprimir sua vontade.
Não há regulamentação legislativa específica para as diretivas antecipa-
das, mas parece não haver impedimento jurídico para sua admissão. À míngua
de regulamentação legal específica, o Conselho Federal de Medicina editou a
Resolução n. 1.995/2012, que dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade
dos pacientes, que foram definidas nos termos do art. 1º da citada resolução:
Art. 1º Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de
desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cui-
dados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que
estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.

A medida que as diretivas antecipadas de vontade se voltam ao geren-


ciamento da própria vida em momentos de impossibilidade de declaração da
própria vontade, os planos de parto cuidam das preferências e desejos para
a gestão do trabalho de parto e pós-parto, assemelhando-se bastante com a
estrutura e a função das declarações prévias de vontade. A rigor, são negócios
jurídicos unilaterais receptícios, cujo conteúdo é exclusivamente existencial,
uma vez que cuida do consentimento informado das intervenções possíveis
durante o parto e o pós-parto. Médicos e demais profissionais podem objetar
de consciência e não concordarem com o conteúdo do plano de parto ante-
riormente, permitindo que a gestante escolha profissionais com o perfil dese-
jado. Uma vez que a equipe envolvida toma conhecimento do plano de parto
e não apresenta recusa ao seu cumprimento, as diretrizes contidas no docu-
mento devem ser observadas pelos destinatários.
Os termos de planos de parto são documentos simples, sem formalidade
prévia, nos termos do art. 107 do Código Civil, à luz do princípio da liberdade
de formas, mas podem ser registrados em Cartório ou acostados nos prontuá-
rios médicos. Fundamental, no entanto, o conhecimento por parte dos médicos
para seu cumprimento. Apesar da natureza jurídica unilateral, relevante que o
conteúdo do plano de parte seja construído em diálogo com a equipe médica, eis
que a informação é essencial para a elaboração das diretrizes emanadas.

181
Violência Obstétrica em Debate

Questão controvertida reside na exigência da capacidade civil plena da


gestante para a realização do plano de parto. A princípio, sua natureza nego-
cial impõe a observância do art. 104, I, do Código Civil. No entanto, desconsi-
derar a autonomia de adolescentes grávidas contraria o respeito à liberdade de
acordo com o grau de amadurecimento e discernimento apresentado à luz das
circunstâncias do caso concreto. Afirmar que a manifestação de vontade de
adolescentes em estado gravídico não pode ser levada em conta em razão da
formalidade contida na Lei Civil não se apresenta como razoável, na medida
em que os planos de parto têm coo propósito resguardar a autonomia corpo-
ral das gestantes e não questões patrimoniais. Por isso, cabe uma avaliação in-
dividual para identificar se a adolescente tem condições de exprimir a vontade
a respeito do ciclo de parturição.
No caso das pessoas com deficiência, submetidas ou não ao regime da
curatela, igualmente deve ser verificado no caso concreto a sua competência
para exprimir sua vontade, uma vez que o plano de parto visa sobretudo tute-
lar o direito ao próprio corpo da gestante. A Lei 13.146/2015 (Estatuto da Pes-
soa com Deficiência), na linha da Convenção Internacional dos Direitos das
Pessoas com Deficiência, internalizada com status de emenda constitucional,
reforça a capacidade da pessoa com deficiência e exclui do alcance da curatela
o direito ao próprio corpo (art. 6º c/c art. 85, § 1º).411
Além disso, o referido Estatuto tem especial preocupação com a proteção
dos direitos sexuais e reprodutivos das pessoas com deficiência, bem como em
conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória. De forma ex-
pressa, é assegurado à pessoa com deficiência com prioridade a efetivação do di-
reito à sexualidade, sendo um dever do Estado, da sociedade e da família (art. 8º).
É de se frisar, portanto, que o EPD foi claro ao assegurar o exercício dos
direitos sexuais e reprodutivos das pessoas com deficiência, além de protegê-la
de toda forma de “negligência, discriminação, exploração, violência, tortura,
crueldade, opressão e tratamento desumano ou degradante” (art. 5º). No caso
das mulheres, é reconhecida sua especial vulnerabilidade se for pessoa com
deficiência (art. 5º, p. u.), o que exige reforçada atenção nos casos de violência
e discriminação de gênero, em especial no caso de violência obstétrica que

411 Cf. ALMEIDA, Vitor. A capacidade civil das pessoas com deficiência e os perfis da curatela. Belo
Horizonte: Fórum, 2019; BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA, Vitor (orgs.). Comentários ao
Estatuto da Pessoa com Deficiência à luz da Constituição da República. Belo Horizonte: Fórum, 2018.

182
Violência Obstétrica em Debate

atinge especialmente esse grupo. Especialmente em razão disso os planos de


parto são importantes instrumentos de resgate da autonomia das mulheres
grávidas com deficiência e devem ser utilizados mesmo em situação de toma-
da de decisão apoiada e curatela.
Desse modo, a aferição da capacidade civil voltada para a validade dos
planos de parto não pressupõe sua plenitude, mas a competência para com-
preender as informações sobre o parto e nascimento e exprimir sua vontade
em relação às intervenções ao seu próprio corpo. Por isso, mesmo mulheres
grávidas declaradas relativamente incapazes e submetidas à curatela podem, a
depender do caso, deixar registrado sua vontade em planos de parto.
Indispensável compreender que a eficácia do plano de parto depende em
larga medida da atuação dos médicos em respeitar a vontade dos paciente, por
meio de um processo de consentimento livre e informado, no qual a autono-
mia e a dignidade da gestante será devidamente promovida.
Nessa linha, o plano de parto se apresenta como mecanismo que visa
diminuir o forte modelo intervencionista médico no parto e amplia a autono-
mia da gestante. No entanto, na contramão desse movimento de humanização
do parte e respeito às decisões do paciente, o Cremerj editou a Resolução nº
293/2019412, de 6 de fevereiro de 2019, que proíbe os profissionais médicos de
observar e atender planos de parto e demais documentos pelos quais a gestan-
te registra suas disposições de vontade acerca de seu próprio trabalho de par-
to413. Tal postura destoa de todo processo de afirmação dos direitos da mulher
sobre seu próprio corpo, do movimento de repulsa à violência obstétrica e de
respeito à autonomia e à dignidade da gestante. Ao proibir os planos de parto,
o Cremerj restringe a liberdade sobre o próprio corpo da gestante e incorre em
nítida inconstitucionalidade.

412 Dispõe sobre a proibição de adesão, por parte de médicos, a quaisquer documentos, dentre eles
o plano de parto ou similares, que restrinjam a autonomia médica na adoção de medidas de
salvaguarda do bem estar e da saúde para o binômio materno-fetal.
413 O Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU) movem ação civil
pública (ACP) contra o Cremerj. Antes de judicializar a questão, o MPF e a DPU recomendaram
ao Cremerj a revogação da resolução, apontando, basicamente, a necessidade de adequação da
resolução à Constituição Federal, à Lei Estadual 7.191/2016, que assegura o plano de parto no
Estado do Rio de Janeiro, ao Código de Ética Médica e às Diretrizes Nacionais de Assistência ao
Parto do Ministério da Saúde bem como às recomendações da Organização Mundial de Saúde para
assistência ao parto. O Cremerj não atendeu a recomendação.

183
Violência Obstétrica em Debate

Os planos de parto são declarações de vontade válidas no direito brasi-


leiro, desde que atendidos os requisitos acima indicados, plenamente admi-
tidos e que encontram amparo em princípios de envergadura constitucional.
Projetar em registro documental manifestação de vontade acerca de direitos
personalíssimos, como o direito ao próprio corpo, somente encontra obstá-
culo quando duela com valores constitucionais de peso maior. Desse modo,
somente em hipótese de risco à vida da gestante ou do feto/recém-nascido, os
planos de parto podem ser descumprimento sem repercussão no plano ju-
rídico. Em todos os demais casos, nada justifica desconsiderar a vontade da
gestante em nome do sacrifício da sua própria dignidade.

Considerações finais
Com a forte medicalização do processo gestacional, cujo ápice é alcança-
do pelo momento do parto hospitalar, indispensável construir instrumentos
para a promoção da autodeterminação da gestante, de modo a minimizar sua
agravada vulnerabilidade, atendendo sua vontade e expectativa, bem como
evitar a violência obstétrica no país. Neste passo, os planos de parto e nasci-
mento são negócios jurídicos unilaterais plenamente válidos em nosso orde-
namento, cuja eficácia depende do prévio conhecimento pelos profissionais
envolvidos e do evento parto. No entanto, eventual responsabilização civil em
razão do descumprimento ou mera inobservância do conteúdo do plano de
parto exige uma cuidadosa avaliação da conduta profissional, uma vez que
intercorrências não planejadas de forma esmiuçada no documento podem
forçar os envolvidos a atuarem fora do inicialmente planejado, mas sem atrair
a responsabilidade civil.

184
Violência obstétrica contra a gestante com deficiência

Aline de Miranda Valverde Terra


Ana Carla Harmatiuk Matos

1. Violência obstétrica: novas luzes


sobre um revelho problema
Em 2006, aos sete meses de gestação, a bolsa estourou. Eva se dirigiu à ma-
ternidade, onde ficou internada por dois dias, e encaminhada para casa. Ao re-
tornar ao hospital, três dias depois, de acordo com a orientação que recebera, foi
recebida com agressões e acusações: “Por que não veio mais cedo?”, “Queria for-
çar um parto normal?”, “Quem manda no procedimento sou eu”. Eva foi então
encaminhada à sala de cirurgia, e ouviu de um dos profissionais que a atendiam
que iria “arcar com as consequências” de suas escolhas. A equipe médica tentou
realizar a manobra de Kristeller, e uma das enfermeiras, sem a consultar, deitou
sobre sua barriga. Eva reagiu ao procedimento, e teve suas mãos amarradas. O
bebê não sobreviveu. A mãe ouviu que a morte de seu filho ocorrera por ela ter
“forçado” o parto. Eva sequer teve acesso ao prontuário médico.414
Esse é apenas um relato chocante em meio a milhares de outros que re-
tratam uma lamentável realidade, que afeta uma em cada quatro mulheres no
Brasil.415 A violência obstétrica, prática abusiva contra as gestantes que, a despei-

414 O episódio é narrado em reportagem da Revista Época, sob o título “Vítimas da violência obstétrica:
o lado invisível do parto”, de autoria de Thais Lazzarei. Disponível em: https://epoca.globo.com/vida/
noticia/2015/08/vitimas-da-violencia-obstetrica-o-lado-invisivel-do-parto.html. Acesso em 3.9.2018.
415 “25% das mulheres entrevistadas afirmaram ter sofrido alguma forma de violência institucional,
desatacando-se a realização de exame de toque doloroso e negativa para alívio da dor (10%), ausência
de explicação quanto aos procedimentos adotados e gritos de profissionais durante o atendimento
(9%), negativa de atendimento (8%) e xingamento e humilhações (7%). Ainda, a pesquisa apontou
que cerca de 23% das entrevistadas sofreram coação verbal pelos profissionais, por meio de frases
como ´não chora que ano que vem você está aui de novo´(15%), ´na hora de fazer não chorou, não
chamou a mamãe´ (14%), ´se gritar eu paro e não vou te atender´ (6%), ´se ficar gritando vai fazer mal
pro neném, ele vai nascer surdo´ (5%)”. Dados extraídos da pesquisa Mulheres Brasileiras e Gênero
nos Espaços Público e Privado, divulgada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo, p. 173 e seguintes.

185
Violência Obstétrica em Debate

to de não ser recente,416 começa a ganhar a atenção, cada vez maior, dos juristas
nacionais. De acordo com a cartilha informativa lançada pela Defensoria Pú-
blica do Estado de São Paulo, em 2013, a violência obstétrica se caracteriza pela
apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres pelos pro-
fissionais de saúde, através do tratamento desumanizado, abuso da me-
dicalização e patologização dos processos naturais, causando a perda
da autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e
sexualidade, impactando negativamente na vida das mulheres.417

O tratamento desumanizado se verifica sempre que a mulher tem sua


dignidade aviltada, seja por meio de atos que violem sua integridade psíquica,
como se passa quando a equipe médica dispensa à mulher tratamento humi-
lhante, xingando-a ou depreciando-a, bem como quando lesam sua integridade
física, a exemplo do que ocorre quando se adotam procedimentos sem o seu
consentimento, como lavagem intestinal, tricotomia (raspagem dos pelos pu-
bianos), imobilização física, exames de toques constantes e desnecessários, ma-
nobra de Kristeller (procedimento pelo qual o profissional de saúde “empurra”
a barriga da gestante a fim de acelerar a expulsão do feto), episiotomia (corte
cirúrgico na região do períneo para ampliar o canal de parto) de rotina e mes-
mo cesariana sem anestesia. Cuida-se de práticas abusivas, muitas sem respaldo
científico, adotadas por decisão exclusiva do médico, sem o consentimento livre

Disponível em https://apublica.org/wpcontent/uploads/2013/03/www.fpa_.org_.br_sites_default_
files_pesquisaintegra.pdf. Acesso em 5.9.2018.
416 A título de exemplo, confira-se o seguinte trecho de Henci Goer, que remete a artigo publicado
há mais de 50 anos, nos Estados Unidos, acerca da violência obstétrica que então já se verificava:
“‘Cruelty in Maternity Wards’ was the title of a shocking article published just over 50 years ago in
Ladies’ Home Journal in which nurses and women told stories of inhumane treatment in labor and
delivery wards during childbirth (Schultz, 1958). Stories included women being strapped down for
hours in the lithotomy position, a woman having her legs tied together to prevent birth while her
obstetrician had dinner, women being struck and threatened with the possibility of giving birth to a
dead or brain damaged baby for crying out in pain, and a doctor cutting and suturing episiotomies
without anesthetic (he had once nearly lost a patient to an overdose) while having the nurse stifle the
woman’s cries with a mask” (HENCI, Goer. Cruelty in maternity wards: fifty years later. The Journal
of Perinatal Education. 2010. Disponível em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2920
649/?tool=pmcentrez&report=abstract#bib24. Acesso em 5.9.2018).
417 Disponível em https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/41/violencia%20obstetrica.pdf.
Acesso em 5.9.2018.

186
Violência Obstétrica em Debate

e esclarecido da parturiente.418 Trata-se, com efeito, de procedimentos rotineiros


nos hospitais do país, ineficazes ou pouco eficazes, alguns reconhecidamente
inseguros, e que causam desconforto, dor, humilhação ou constrangimento. Tal
realidade tem sido enfrentada pelos tribunais brasileiros:
Apelação cível. Responsabilidade civil. Danos materiais e morais.
Lucros cessantes. Parto normal. Episiotomia. Laceração perineal de
4º grau. Sutura. Descontrole na eliminação dos dejetos. Insucesso na
tentativa de correção. Danos evidentes. Erro grosseiro. Imperícia. Ne-
gligência. Nexo causal. Culpa reconhecida. Dever de indenizar. 1. Res-
ponsabilidade do médico: a relação de causalidade é verificada em toda
ação do requerido, evidente o desencadeamento entre o parto, a alta
prematura e os originada de dilaceração perinal de 4º grau. Configura-
do erro grosseiro, injustificável, com resultado nefasto, o qual teve por
causa a imprudência e negligência do requerido. Dever de indenizar.
2. Danos morais: evidentes, procedimento realizado de forma atécni-
ca, causando sofrimento físico e moral, constrangimento, humilhação,
angústia, impossibilidade de levar uma vida normal, desemprego, alto
estresse familiar. Procedência. 3. Danos materiais: comprovados atra-
vés de recibos e notas fiscais. Procedência. 4. Pensionamento: paralisa-
ção da atividade produtiva da vítima, enquanto perdurou o tratamento
para reconstrução do períneo. Parcial procedência.419

O abuso da medicalização, por sua vez, é identificado sempre que se re-


alizam intervenções médicas desnecessárias, levadas a cabo com a finalidade
exclusiva de beneficiar o médico ou o hospital no qual o parto é realizado, e
cujos resultados poderiam ser alcançados por meio de intervenções menos
gravosas para a gestante, como quando se usa indiscriminadamente a versão
sintética da ocitocina para agilizar o trabalho de parto e se realiza cesárea
sem indicação clínica, contrariando a vontade da gestante de realizar parto
normal, por simples conveniência de agenda do obstetra.
Por fim, a patologização dos processos naturais se caracteriza pela utili-
zação de procedimentos, por vezes também dispensáveis e desproporcionais,

418 Segundo João Álvaro Dias: “Consentimento esclarecido é aquele que tem como base o integral
cumprimento do dever médico de explicar ao doente, de modo compreensível e leal, o tratamento
que se propõe fazer, quais os prováveis efeitos e quais os riscos possíveis, ainda que pouco usuais. Do
mesmo modo exige-se que o médico explique ao doente quais as possibilidades de tratamento” (DIAS.
João Álvaro. Procriação assistida e responsabilidade médica. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 292).
419 TJ-RS, 6ª CC, Apelação Civel n. 70021336938, Rel. Des. Artur Arnildo Ludwig. J. 13.9.2009.

187
Violência Obstétrica em Debate

com o objetivo de promover maior segurança para a gestante e para o bebê,


a exemplo do que se passa quando se realiza uma cesárea porque a gestante
ainda não alcançou a dilatação suficiente.
Durante anos, assistiu-se com certa naturalidade a todas essas práticas,
decorrentes, em grande medida, da medicalização do parto, cujo escopo se
concentra em atribuir a tais profissionais o absoluto controle sobre todas as
etapas da gestação, desde a fase anterior à concepção, até o pós-parto, colo-
cando em suas mãos todas as decisões relativas ao processo gestacional, bem
como da disseminação da concepção segundo a qual os profissionais de saúde
têm o direito de acessar livremente o corpo feminino.420 Referida postura, so-
mada à perpetuação do ensino acrítico aos estudantes de medicina de proce-
dimentos dolorosos e, não raro, prescindíveis, acaba por normalizar aquelas
práticas antes referidas, estabelecendo uma cultura institucional que não as
reconhece como violações aos direitos da gestante.
Exemplo eloquente dessa cultura institucional é a episiotomia, dissemi-
nada nas escolas médicas como a primeira oportunidade de os estudantes,
de qualquer especialidade, praticarem habilidades cirúrgicas, cortando e su-
turando a vagina de mulheres pobres. Emblemática, ao propósito, foi a ex-
pressão cunhada para ilustrar essa exposição desmedida e não consentida da
genitália feminina nos hospitais universitários: “vagina-escola”.421
Nesse cenário, o desrespeito aos desejos e vontades da gestante se natu-
ralizou e institucionalizou de tal forma que, muitas vezes, ela sequer consegue
se perceber vítima de violência obstétrica. Foi justamente o que aconteceu com
Kelly, que só entendeu o que lhe havia acontecido após compartilhar sua experi-

420 Os “procedimentos hospitalares padrões” nos partos podem ser considerados como um modo de
exercício de poder sobre os corpos femininos, revelando técnicas de dominação e reforçando uma
obediência não opcional. Nesse sentido aproximamos tais críticas com as reflexões a respeito dos
chamados corpos dóceis: “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que
pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Editora
Vozes, 1997, p.132). Fazer nota sobre a docilização do corpo feminino.
421 O termo “vagina-escola” foi usado por entrevistados em uma pesquisa do grupo, realizada no âmbito de
evento intitulado “A vagina-escola: seminário sobre violência contra a mulher no ensino das profissões
de saúde”, em março de 2015, na Faculdade de Saúde Pública da USP, para se referir à formação dos
profissionais médicos (DINIZ, Carmen Simone Grilo; NIY, Denise Yoshie; ANDREZZO, Alana Faria
de Aguiar; CARVALHO, Priscila Cavalcanti Albuquerque; SALGADO, Heloisa de Oliveira. A vagina-
escola: seminário interdisciplinar sobre violência contra a mulher no ensino das profissões de saúde.
Interface - Comunicação, Saúde, Educação. vol. 20, núm. 56, jan.-mar., 2016 p. 253).

188
Violência Obstétrica em Debate

ência em grupo fechado de mães em rede social. Segundo seu relato, ao chegar à
maternidade, o marido foi impedido de acompanha-la, sendo-lhe negado direito
assegurado, desde 2005, pela Lei nº 11.108, que obriga hospitais, maternidades e
assemelhados a permitir um acompanhante, à escolha da gestante, no trabalho
de parto, durante o parto e no pós-parto imediato (até 10 dias após o parto).422
Mas não foi só. Quando começou a sentir as fortes dores das contrações, ouviu
da equipe médica: “Na hora de fazer, não gostou?” e “Não grita, vai assustar as
outras mães”. Após o nascimento do bebê, deram-lhe o que designaram “ponto
do marido”, para “continuar casada”: não bastasse a realização de episiotomia sem
o conhecimento de Kelly, o médico, ao fazer a sutura, deu um ponto a mais, para
apertar a abertura da vagina. As dores decorrentes do procedimento realizado à
sua revelia acompanham Kelly desde então.423
Percebe-se, então, que “as questões de saúde, de nascer e morrer, originaria-
mente objeto de preocupação e cuidados femininos, passaram às mãos e mentes
dos homens com o desenvolvimento da medicina moderna. O mesmo processo
ocorreu com o parto tendo os médicos assumido o posto tradicionalmente ocupa-
do pelas parteiras, desvalorizando a sensibilidade e o papel das mães.”424
A fim de combater episódios como esses, a Organização Mundial de
Saúde (OMS) publicou, em 23 de setembro de 2014, declaração oficial para
prevenção e eliminação da violência obstétrica, que qualificou como violação
dos direitos humanos fundamentais. De acordo com a OMS, os relatos sobre
os abusos praticados incluem
violência física, humilhação profunda e abusos verbais, procedimentos
médicos coercivos ou não consentidos (incluindo a esterilização), falta de

422 A Lei nº 11.108/2005 incluiu o art. 19-J na Lei nº 8.080/1990, com a seguinte redação: “Art. 19-
J. Os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde - SUS, da rede própria ou conveniada, ficam
obrigados a permitir a presença, junto à parturiente, de 1 (um) acompanhante durante todo o
período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. § 1o O acompanhante de que trata o caput
deste artigo será indicado pela parturiente. § 2o As ações destinadas a viabilizar o pleno exercício
dos direitos de que trata este artigo constarão do regulamento da lei, a ser elaborado pelo órgão
competente do Poder Executivo.”
423 O episódio é narrado em reportagem da Revista Época, sob o título “Vítimas da violência obstétrica:
o lado invisível do parto”, de autoria de Thais Lazzarei. Disponível em: https://epoca.globo.com/vida/
noticia/2015/08/vitimas-da-violencia-obstetrica-o-lado-invisivel-do-parto.html. Acesso em 3.9.2018.
424 COSTA, Mariana V. de M; LUNA, Maria J.de M. A Violência obstétrica e a dominação masculina de
bourdieu. IX Seminário Internacional de Direitos Humanos da UFPB. Brasil, 2016. Disponível em:
http:www.ufpb.br/evento/lti/ocs/index.php/ixsidh/paper/view/4245/159. Acesso em: 6.9.2018.

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Violência Obstétrica em Debate

confidencialidade, não obtenção de consentimento esclarecido antes da


realização de procedimentos, recusa em administrar analgésicos, graves
violações da privacidade, recusa de internação nas instituições de saúde,
cuidado negligente durante o parto levando a complicações evitáveis e si-
tuações ameaçadoras da vida, e detenção de mulheres e seus recém-nasci-
dos nas instituições, após o parto, por incapacidade de pagamento.425

A gravidade da situação é, com efeito, inquestionável, e revela violação


frontal ao direito fundamental ao parto humanizado, garantidor à gestante da
escolha de um modelo não padronizado de parto, que atenda à sua singulari-
dade e personalidade, conferindo-lhe poder de decisão sobre os procedimen-
tos a serem seguidos e aqueles que não deseja que sejam adotados, retomando
o protagonismo feminino.426 Ao propósito, a Organização Mundial da Saúde
corrobora a proposta de parto humanizado, cujo foco é na transformação do
nascimento em experiência positiva para a mulher e o bebê, e define diretrizes
práticas para os variados protagonistas desse momento: mãe, médico, partei-
ra, doula, enfermeiros, acompanhantes, entre outros.427
Nessa toada, decisão recente do Tribunal de Justiça de São Paulo enfrentou caso
de violência obstétrica afirmando ser o parto humanizado um direito fundamental:
RESPONSABILIDADE CIVIL-DANO MORAL-VIOLÊNCIA OBS-
TÉTRICA. Direito ao parto humanizado é direito fundamental. Direi-
to da apelada à assistência digna e respeitosa durante o parto que não
foi observado. As mulheres têm pleno direito à proteção no parto e de
não serem vítimas de nenhuma outra forma de violência ou discrimi-
nação. Privação do direito à acompanhante durante todo o período do
parto. Ofensas verbais. Contato com o filho negado após o nascimento
deste. Abalo psicológico in re ipsa. Recomendação da OMS de preven-

425 Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/134588/WHO_RHR_14.23_por.


pdf;jsessionid=C49D2B650CF14F6CBFB75244721125D6?sequence=3. Acesso em 3.9.2018.
426 “Parto humanizado é essencialmente aquele parto centrado na mulher, com respeito à autonomia e
ao protagonismo feminino. Parto natural é o parto que acontece sem intervenções, como ocitocina,
analgesia e fórceps. É possível se ter um parto humanizado não inteiramente natural, porque algumas
intervenções podem ser necessárias. Por isso, o fundamental é essa retomada do protagonismo
feminino no parto” (AMORIM, Melania. A retomada do protagonismo feminino no parto. Revista do
Instituto Humanitas Unisinos, Porto Alegre, n.396, p.11-14, 2 de julho de 2016. Entrevista).
427 WORLD HEALTH ORGANIZATION. “individualized, supportive care key to positive childbirth
experience says who”. Disponível em: http://www.who.int/mediacentre/news/releases/2018/
positive-childbirth-experience/en/. Acesso em: 14.5.2018.

190
Violência Obstétrica em Debate

ção da eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto


em instituições de saúde. Prova testemunhal consistente e uniforme
acerca do tratamento desumano suportado pela parturiente. Cada par-
turiente deve ser respeitada a sua situação, não cabendo a generaliza-
ção pretendida pelo hospital réu, que, inclusive teria que estar prepa-
rado para enfrentar situações como a ocorrida no caso dos autos(...)
Apelada que teve ignorada a proporção e dimensão de suas dores. O
parto não é um momento de “dor necessária” (...).428

Há, contudo, um grupo de mulheres ainda mais indefesas, hipervulneráveis,429


que se encontram em situação de maior desamparo e que sofrem de forma mais
intensa e cruel com práticas violentas e hostis ligadas à gestação: as mulheres com
deficiência. Nessa perspectiva, Heloisa Helena Barboza entende que os idosos, as-
sim como crianças, adolescentes e pessoas com deficiência, são circunstancial-
mente afetados e fragilizados, isto é, são “vulnerados”430 e demandam a aplicação
de normas que compreendam a desigualdade materialmente reproduzida para
que sua dignidade seja resguardada. 431
Esse contingente populacional, dado as sobreposições de gênero e deficiên-
cia, vivencia especificidades que tornam ainda mais evidente a sua precarização.
Nesse sentido, destaca-se o pensamento de Judith Butler quando afirma que:
Vidas são, por definição, precárias: podem ser eliminadas de maneira
proposital ou acidental; sua persistência não está, de modo algum, ga-

428 TJ-SP 00013140720158260082. 5ª Câmera de Direito Privado. Rel. Des. Fábio Podestá. Data de
julgamento 11/10/2017
429 “A difusão do termo tem origem na decisão: STJ, REsp 1.064.009/SC, 2.ª T., Rel. Min. Herman
Benjamin, j. 04.08.2009, DJe 27.04.2011. Nessa linha, NISHIYAMA, Adolfo Mamoru; DENSA,
Roberta. A proteção dos consumidores hipervulneráveis: os portadores de deficiência, os idosos,
as crianças e os adolescentes. Revista de Direito do Consumidor, vol. 76, p. 13 e ss., São Paulo, out.
2010, explicam: “O prefixo hiper (do grego hypér), designativo de alto grau ou aquilo que excede a
medida normal, acrescido da palavra vulnerável, quer significar que alguns consumidores possuem
vulnerabilidade maior do que a medida normal, em razão de certas características pessoais”.
KONDER, C. N. Vulnerabilidade patrimonial e vulnerabilidade existencial: por um sistema
diferenciador. Revista de Direito do Consumidor, vol. 99, p. 101-123, 2015. Disponível em: <http://
konder.adv.br/wp-content/uploads/2018/01/Carlos-Nelson-Konder-Vulnerabilidade-patrimonial-
e-vulnerabilidade-existencial-In-Revista-de-Direito-do-Consumidor.pdf>. Acesso em 11.9.2018.
430 BARBOZA, Heloisa Helena. Vulnerabilidade e cuidado: aspectos jurídicos. In: PEREIRA, Tânia da
Silva; OLIVEIRA, Guilherme de (coord.). Cuidado e vulnerabilidade. São Paulo: Atlas, 2009, p. 110-111.
431 BARBOZA, Heloisa Helena. O princípio do melhor interesse do idoso. In: PEREIRA, Tânia da Silva;
OLIVEIRA, Guilherme de (coord.). O cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 61.

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Violência Obstétrica em Debate

rantida. Em certo sentido, essa é uma característica de todas as vidas, e


não há como pensar a vida como não precária [...]. A condição precária
designa a condição politicamente induzida na qual certas populações
sofrem com redes sociais e econômicas de apoio deficientes e ficam
expostas de forma diferenciada às violações, à violência e à morte.432

Essa realidade decorre, em alguma medida, da histórica adoção de um


regime das incapacidades baseado no modelo médico da deficiência, que não
apenas negava capacidade e autonomia à pessoa com deficiência, resultando
na sua objetificação e completa desconsideração de seus desejos e vontades,
como também entendia a deficiência como um “problema” exclusivamente da
pessoa que a apresentava, impondo-lhe o – no mais das vezes – intransponível
ônus de se adaptar à sociedade. É o que se constata a seguir.

2. O modelo médico da deficiência e o regime abstrato da


incapacidade da pessoa com deficiência: portas abertas
para a violência obstétrica
No Brasil, como em todo o mundo, o conceito de deficiência vem passan-
do por profundas transformações a fim de acompanhar as inovações na área
da saúde, bem como a forma pela qual a sociedade se relaciona com a parcela
da população que apresenta algum tipo de deficiência.
O modelo médico de deficiência considerava somente a patologia física e
o sintoma a ela associado que dava origem a uma incapacidade. Esse modelo
foi adotado pelo Código Civil de 1916 e reproduzido no Código Civil de 2002,
que estabeleceu disciplina abstrata das incapacidades baseada no sistema de
tudo-ou-nada: a pessoa com deficiência mental, que não tivesse o necessário
discernimento para a prática dos atos civis, seria considerada absolutamente
incapaz, sendo-lhe negado o exercício autônomo de qualquer ato da vida civil;
fazia-se imperioso um representante para, em seu lugar, manifestar a vontade
necessária à prática de referidos atos. A vontade do representante, portanto,
substituía inteiramente a vontade da pessoa com deficiência. Se, no entanto, a

432 BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2015, p. 46-47.

192
Violência Obstétrica em Debate

pessoa com deficiência mental ostentasse discernimento reduzido, seria con-


siderada relativamente incapaz, e a validade de sua manifestação de vontade
se vinculava à conjunta manifestação de vontade de seu assistente. Para os atos
da vida civil, de maneira geral, exigia-se também a manifestação do assistente.
O modelo médico acabou por negar a inúmeras pessoas com deficiência,
em primeiro lugar, o exercício de parcela de autonomia em relação a atos que
teriam plenas condições de exercer livremente, a produzir um regime exclu-
dente, que retira da pessoa com deficiência a possibilidade de decidir mesmo
sobre os atos mais prosaicos da vida. Em verdade, embora absoluta ou re-
lativamente incapaz, a pessoa com deficiência raramente será desprovida de
qualquer possibilidade de manifestação de vontade autônoma, sendo neces-
sário assegurar-lhe espaços de liberdade dentro dos quais possa exercer sua
autonomia, por menor e mais singela que seja.
Além disso, e ainda mais grave, o sistema das incapacidades codificado
permitia, como regra, a dissociação entre titularidade e exercício também dos
direitos inerentes à pessoa humana. Em um sistema abstrato – do tudo-ou-
-nada –, isso acaba por impedir que a pessoa com deficiência pratique todo e
qualquer ato ligado diretamente à realização do seu projeto de vida e ao livre
desenvolvimento de sua personalidade. E mais, no extremo, semelhante mo-
delo pode mesmo permitir que lhe seja negada a própria qualidade de pessoa
humana: a dissociação abstrata e absoluta entre titularidade e exercício de
direitos inerentes à pessoa humana acaba, na prática, por promover a própria
desconsideração das titularidades, fomentando um processo de reificação da
pessoa com deficiência, que passa a ser, no máximo, um “quase alguém”, à
semelhança de Quasímodo, assim qualificado por Victor Hugo em seu “O
Corcunda de Notre Dame”.433
O estabelecimento de disciplina única para a aferição da capacidade ne-
cessária à validade dos atos patrimoniais e existenciais, nos moldes do modelo
codificado, se revela, no entanto, incompatível com a axiologia constitucional.
O ordenamento jurídico brasileiro atribui tutela prioritária às situações jurí-

433 Nas palavras do autor: “Batizou o filho adotivo e deu-lhe o nome de Quasímodo, por querer lembrar
o dia em que fora encontrado, ou por querer caracterizar com esse nome o quanto a pobre pequena
criatura era incompleta e malfeita. Quasímodo, de fato, caolho, corcunda e capenga, não passava de
um quase.” Disponível em: https://sanderlei.com.br/PDF/Victor-Hugo/Victor-Hugo-O-Corcunda-
de-Notre-Dame.pdf, p. 180. Acesso em 11.9.2018.

193
Violência Obstétrica em Debate

dicas existenciais, e instrumentaliza as situações jurídicas patrimoniais à sua


realização. Nessa direção, parece equivocado igualar, a priori e abstratamente,
os requisitos relativos ao elemento vontade para a prática de atos patrimoniais
e para a prática de atos existenciais. A diferença entre os atos de autonomia
patrimonial e existencial é, sobretudo, de fundamento constitucional,434 o que
deve se refletir na identificação de diferentes requisitos de validade da vontade
para o exercício de cada um deles.
Nesse contexto, a prática de violência obstétrica contra mulheres com
deficiência se tornou ainda mais “normalizada” e institucionalizada do que
aquela praticada contra mulheres sem deficiência.435 Ora, se a deficiência era
uma patologia física e o seu sintoma, cuidava-se de questão afeta exclusiva-
mente à pessoa dela portadora, que deveria, então, envidar todos os esforços
para se adaptar à sociedade. A partir dessa percepção, se não era a sociedade
que deveria criar mecanismos para superação das barreiras que impediam a
total inclusão das pessoas com deficiência, como exigir dos hospitais e clíni-
cas, por exemplo, a utilização de equipamentos adaptados às diversas defici-
ências físicas, ou que os profissionais estejam aptos a lidar com as especifici-
dades inerentes a cada tipo de deficiência?
Retrato desse despreparo é emblemático caso de uma parturiente surda
que, embora soubesse que estava grávida, não sabia que eram gêmeos. Após o
nascimento da primeira criança, como a equipe médica, por total ignorância
e despreparo, não conseguiu se comunicar com a mulher, a segunda criança
acabou vindo a óbito.436

434 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao direito civil constitucional. Tradução
Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 18.
435 Butler destaca que reações de comoção são tacitamente reguladas por certos tipos de enquadramento
interpretativo, fazendo com que as pessoas sintam mais horror e repulsa moral por vidas humanas.
Segundo a autora, a resposta moral à violência decorre da concepção de que ela é justa ou justificada,
sentimento criado por um poder regulatório, pois a comoção sempre é transmitida de outro lugar,
predispondo a percepção do mundo de determinada maneira, acolhendo certas dimensões e
resistindo a outras. Daí afirma que a diferenciação da resposta afetiva e valoração moral são os
enquadramentos que fazem com que certas vidas sejam consideradas dignas de proteção e outras
não, pois ´não são completamente vidas´ (BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é
passível de luto? p. 68).
436 O episódio é narrado na Carta Capital, sob o título “Precisamos falar sobre violência contra mulheres
com deficiência”, de autoria de Deborah Prates. Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.
br/2016/11/21/precisamos-falar-sobre-violencia-contra-mulheres-com-deficiencia/. Acesso em 3.9.2018.

194
Violência Obstétrica em Debate

A barreira física encerra, contudo, apenas uma das formas de violência


contra a gestante com deficiência. Mesmo quando portadoras apenas de de-
ficiência física, com preservação de sua plena autonomia e capacidade civil,
constata-se que, na realidade da vida, sua vontade é reiteradamente descon-
siderada, como se constata a partir dos relatos feitos por Joyce, portadora de
deficiência visual que, ao dar entrada em maternidade em Guaxupé, Minas
Gerais, em 2007, recebeu a notícia de que havia mecônio no líquido amni-
ótico, sem que fosse feito qualquer exame adicional ou lhe informassem de
qualquer outra coisa que indicasse eventual gravidade da situação. Joyce soli-
citou, então, que ligassem sua médica, mas não foi atendida. A equipe decidiu
realizar uma cesárea, e não admitiu a entrada de acompanhante ao centro
cirúrgico. Depois de duas tentativas frustradas de anestesiá-la, optou-se por
prosseguir a cirurgia “a sangue frio”. “O anestesista puxava meu cabelo para
eu não desmaiar de dor”, relatou Joyce.437
Cuidando-se de pessoa com deficiência intelectual, a situação se mostra
ainda mais dramática: se o regime codificado a considerava, a priori, incapaz,
desprovida de autonomia inclusive para a prática de atos existenciais, autor-
referentes, se sua vontade era irrelevante para o Direito, como exigir o respei-
to aos seus desejos pelos médicos? Em um sistema abstrato de incapacidade,
afigurava-se, como se apontou, impossível a dissociação da capacidade para a
prática de atos patrimoniais daquela necessária para atos existenciais.
Com efeito, ainda que a gestante com deficiência mental ostentasse fun-
cionalidade suficiente para a compreensão das consequências de determinada
escolha acerca de sua gestação, se ela fosse incapaz, o sistema codificado ig-
norava sua vontade, recusando à titular do direito existencial qualquer par-
cela de autonomia e capacidade para exercê-lo, o que acabava por lhe negar
a própria qualidade de pessoa humana, a conduzir à sua objetificação. E a
consequência mais perversa desse processo é a naturalização da prática de
atos violentos e cruéis contra a gestante com deficiência: se lhe é recusada a
qualidade de pessoa humana, não há dignidade a ser tutelada, admitindo-se
que lhe seja direcionada toda sorte de violência.

437 O episódio é narrado em reportagem da Revista Época, sob o título “Vítimas da violência obstétrica:
o lado invisível do parto”, de autoria de Thais Lazzarei. Disponível em: https://epoca.globo.com/vida/
noticia/2015/08/vitimas-da-violencia-obstetrica-o-lado-invisivel-do-parto.html. Acesso em 3.9.2018.

195
Violência Obstétrica em Debate

No Brasil, o exemplo mais emblemático e chocante desse fenômeno de


reificação da pessoa com deficiência a partir da própria negação da titula-
ridade de direitos inerentes à pessoa humana se passou no Hospital Colô-
nia de Barbacena, fundado em 12 de outubro de 1903. O Hospital Colônia de
Barbacena se tornou conhecido pelo público na década de 1980, em razão do
tratamento desumano que oferecia aos pacientes, aos quais eram negados os
mais básicos direitos inerentes à pessoa. O psiquiatra italiano Franco Basaglia,
pioneiro na luta antimanicomial na Itália, esteve no Brasil e conheceu o Hos-
pital Colônia em 1979. Na ocasião, em uma coletiva de imprensa, desabafou:
“Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mun-
do, presenciei uma tragédia como essa”.438
Os pacientes chegavam ao local em grandes vagões de carga, conheci-
dos como “trem do doido”. Estima-se que pelo menos 60 mil pessoas tenham
morrido no Hospital Colônia de Barbacena de frio, de fome, de doenças e de
eletrochoques. Diante da degradante condição de asilamento, a fim de prote-
ger suas gestações, as mulheres besuntavam suas barrigas de fezes para não se-
rem tocadas pelos funcionários; quando conseguiam levar a gravidez a termo,
após o parto, retiravam-lhes à força os bebês, que eram adotados, no mais das
vezes, de forma irregular. Não havia sequer salas de partos; as parturientes
tinham seus filhos nas enfermarias gerais.439
A superação de referido processo de negação da autonomia da gestante
com deficiência e, consequentemente, da violência obstétrica a que está sujeita
com maior intensidade, passa, evidentemente, pela mudança de concepção
acerca da própria deficiência, como se passa a examinar.

438 Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2015/03/05/o-holocausto-manicomial-


trechos-da-historia-do-maior-hospicio-do-brasil/. Acesso em 28.2.2018.
439 DUARTE, Maristela Nascimento. De “Ares e Luzes” a “Inferno Humano”. Concepções e práticas
psiquiátricas no Hospital Colônia de Barbacena: 1946-1979. Estudo de caso. Tese de Doutorado
apresentada na Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia,
Departamento de História, Niterói, 2009, p. 188. Disponível em: http://www.historia.uff.br/stricto/
td/1100.pdf. Acesso em 4.9.2018.

196
Violência Obstétrica em Debate

3. O modelo social da deficiência e o regime da incapacidade


estabelecido pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência: a
caminho da garantia de acesso ao parto humanizado
O Estatuto da Pessoa com Deficiência superou algumas críticas ao regime
codificado das incapacidades, estabelecendo regramento diverso para a capaci-
dade das pessoas com deficiência no que tange, sobretudo e ao que interessa a
esta análise, à prática de atos existenciais, e mitigou, em parte, a abstrativização
do regime. Ao propósito, importa sublinhar que a adoção de um novo modelo
da deficiência contribuiu decisivamente para referidas mudanças.
A Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saú-
de – CIF, divulgada pela Organização Mundial da Saúde em 2001, passou a
conjugar, ao modelo médico de deficiência, o modelo social, que considera a
questão da deficiência mormente um problema criado pela sociedade, e cujo
principal desafio é a integração plena do indivíduo na sociedade. Sob tal pers-
pectiva, a incapacidade não é um atributo inerente ao indivíduo, mas “um
conjunto complexo de condições, muitas das quais criadas pelo ambiente so-
cial”. Com efeito, a solução do problema requer uma ação social consistente na
realização das “modificações ambientais necessárias para a participação plena
das pessoas com incapacidades em todas as áreas da vida social”. Cuida-se,
portanto, a incapacidade de uma questão política.440
A integração do modelo médico e do modelo social inaugura aborda-
gem biopsicossocial da deficiência, que oferece compreensão das diferentes
perspectivas de saúde: biológica, individual e social. Nesse contexto, a incapa-
cidade é, necessariamente, “resultado tanto da limitação das funções e estru-
turas do corpo quanto da influência de fatores sociais e ambientais sobre essa
limitação”.441 De acordo com a Classificação Internacional de Funcionalidade,
Incapacidade e Saúde, deficiências “são problemas nas funções ou na estrutu-

440 Disponível em: http://www.inr.pt/uploads/docs/cif/CIF_port_%202004.pdf, p. 22.


441 Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.
pdf, p. 71.

197
Violência Obstétrica em Debate

ra do corpo, tais como, um desvio importante ou uma perda”,442 que nem sem-
pre, contudo, importam em limitação da capacidade ou da funcionalidade.443
Referido modelo foi adotado expressamente pela Convenção da ONU
sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, aprovada pelo Decreto Legisla-
tivo nº 186, em 9 de julho de 2008, passando a integrar o ordenamento jurí-
dico brasileiro com status de emenda constitucional. Ainda no preâmbulo da
Convenção, reconhece-se que a deficiência, um conceito em evolução, “resulta
da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes
e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na
sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”.444 Ao pro-
pósito, afirma Mary Keys: “previous reliance solely on a narrower medical ap-
proach is no longer considered appropriate, and instead a social and human
rights approach focused on removing barriers to participation is essential to the
achievement of equality”.445
O Estatuto da Pessoa com Deficiência446 contemplou o mesmo modelo,
já em seu art. 2º, de acordo com o qual “considera-se pessoa com deficiência
aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, inte-
lectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode
obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condi-
ções com as demais pessoas”. Nos termos do § 1º “a avaliação da deficiência,
quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissio-

442 Disponível em: http://www.inr.pt/uploads/docs/cif/CIF_port_%202004.pdf, p. 14.


443 A CIF entende capacidade como a “aptidão de um indivíduo para executar uma tarefa ou uma acção
devido a uma ou mais deficiências” e funcionalidade como “uma interacção ou relação complexa
entre a condição de saúde e os factores contextuais (i.e. factores ambientais e pessoais)” (Disponível
em: http://www.inr.pt/uploads/docs/cif/CIF_port_%202004.pdf, p. 20).
444 Disponível em: http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/publicacoes/
convencaopessoascomdeficiencia.pdf.
445 KEYS, Mary. Article 12 [Equal Recognition Before the Law]. In: Della Fina et al. (eds.). The United
Nations Convention on the Rights of Persons with Disabilities: a commentary. Switzerland: Springer
International Publishing, 2017, p. 265.
446 No Brasil, o Estatuto veio tutelar aproximadamente 45,5 milhões de pessoas que, de acordo com o
Censo Demográfico de 2010, declararam ter pelo menos uma das deficiências investigadas, o que
corresponde a 23,9% da população brasileira. No que tange a cada uma das deficiências analisadas,
18,8% das pessoas declararam ter deficiência visual; 5,1%, auditiva; 7,0%, motora; e 1,4%, mental
ou intelectual. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_
religiao_deficiencia.pdf, p. 73.

198
Violência Obstétrica em Debate

nal e interdisciplinar e considerará: I - os impedimentos nas funções e nas


estruturas do corpo; II - os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais; III
- a limitação no desempenho de atividades; e IV - a restrição de participação.”
Essa nova perspectiva da deficiência permitiu a reformulação do regime
brasileiro das incapacidades da pessoa com deficiência. De acordo com o Es-
tatuto, “a pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua
capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas” (art. 84).
Afirma-se, ainda, que “a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa,
inclusive para: I - casar-se e constituir união estável; II - exercer direitos sexuais
e reprodutivos; III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de
ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;
IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; V -
exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e VI - exercer
o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando,
em igualdade de oportunidades com as demais pessoas” (art. 6º).
Diante dessa nova normativa, constata-se que a regra passou a ser a ca-
pacidade e a autonomia da pessoa com deficiência. Se é assim, resta evidente
que qualquer decisão médica acerca da mulher com deficiência deve ser a ela
submetida, inclusive todas aquelas que, de qualquer forma, digam respeito a
sua autonomia reprodutiva e ao seu planejamento familiar. Significa, em defi-
nitivo, que a escolha entre parto normal ou cesárea, a opção por certo método
contraceptivo ou ligadura de trompas, a decisão acerca de episiotomia e trico-
tomia, dentre diversas outras, deve ser feita, sempre que ela ostente funciona-
lidade suficiente para entender as consequências de tais decisões, pela mulher,
que deverá ser informada acerca de todos os procedimentos, suas vantagens e
desvantagens, bem como os riscos envolvidos. A informação, evidentemente,
deve ser prestada de forma acessível, em linguagem clara e compatível com a
possibilidade de compreensão da gestante com deficiência, devendo o médico
se valer, sempre que necessário, de equipe multidisciplinar a fim de garantir a
mais perfeita apreensão da informação.
Tais decisões, de regra, sequer podem ser submetidas ao curador. De
acordo com o Estatuto, a curatela é excepcional, constituindo “medida prote-
tiva extraordinária e proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada
caso, e durará o menor tempo possível”, nos termos do art. 84, caput , §§ 1º
e 3º. Ademais, de acordo com o art. 85, caput e § 1º, “a curatela afetará tão

199
Violência Obstétrica em Debate

somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial”


e não alcançará “o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à
privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto”.
Pela dicção dos dispositivos mencionados, em linha de princípio, a res-
trição da capacidade de fato das pessoas com deficiência apenas se afigura
possível para a prática de atos e negócios jurídicos relativos a situações jurí-
dicas patrimoniais. Em relação ao exercício de direitos existenciais, o EPD
impede a restrição da capacidade civil (art. 6º), além de excluir expressamente
do alcance da curatela alguns direitos existenciais, dentre os quais aqueles
relativos à sexualidade e ao próprio corpo (art. 85, § 1º).
No entanto, não se pode ignorar que, em casos extremos, considerando-
-se a vulnerabilidade exacerbada da pessoa com deficiência, tendo em vista o
grave comprometimento de sua funcionalidade, a pessoa com deficiência não
terá condições de se manifestar até mesmo sobre questões existenciais, autorre-
ferentes, que apenas a ela digam respeito. Nesses casos, a fim de melhor apoiá-la,
não se vislumbra outra solução senão a intervenção protetiva do curador, que
deve buscar a manifestação presumida da pessoa pautando-se em seu histórico
biográfico, não procedendo puramente a uma substituição da vontade. Nessa
direção, confira-se a lição de Heloisa Helena Barboza e Vitor Almeida Júnior:
[...] a afirmativa de que os direitos existenciais da pessoa interdita são
intangíveis, há de ser entendida nos limites da razoabilidade. O respeito
a esses direitos não significa o abandono da pessoa a suas próprias de-
cisões, quando se sabe não haver evidentemente condições de tomá-las,
por causas físicas ou mentais. Não seria razoável permitir que pessoa
com deficiência se autoamputasse, a pretexto de lhe assegurar o direito
sobre o próprio corpo. Certamente, porém, haverá situações em que
o curador deverá tomar providências que impliquem interferência no
corpo do curatelado, por exemplo, para cuidar de sua saúde. 447

447 BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA JÚNIOR, Vitor. A capacidade civil à luz do Estatuto da
Pessoa com Deficiência. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de (org.). Direito das pessoas com deficiência
psíquica e intelectual nas relações privadas: Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência
e Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016, p. 265, grifou-se. No mesmo sentido,
confira-se Joyceane Bezerra de Menezes: “Em verdade, o dispositivo procura evitar a coisificação
da pessoa curatelada que não pode ter a sua integridade fisiopsíquica comprometida pela atuação
indevida do curador. Porém, se o curatelado não tiver qualquer capacidade de agir, estiver sob
tratamento médico, houver a necessidade de se decidir sobre certa intervenção em matéria de saúde
e não existir familiar em condição de fazê-lo? Haveria sim a possibilidade de intervenção do curador,
mas sempre com a intenção de realizar o interesse fundamental do curatelado, assim entendido como

200
Violência Obstétrica em Debate

A solução se justifica. Embora o direito ostente importante papel trans-


formador da sociedade,448 há de se reconhecer que há limites para essa trans-
formação. O fato de o Estatuto determinar que as pessoas com deficiência go-
zam de plena capacidade para a prática de certos atos existenciais não as fará
capazes, de fato, de exercê-los por si só. A depender do grau da deficiência, do
comprometimento da sua funcionalidade, do ponto de vista prático, a pessoa
não conseguirá exercer tais atos autonomamente, e o direito precisará intervir
a fim de assegurar seu adequado apoio e proteção.
Destarte, a Convenção preconiza o atendimento às preferências da pes-
soa com deficiência psíquica ou intelectual e observa suas potencialidades
para exercício de autodeterminação. Contudo, há casos extremos que exigem
uma leitura excepcional, tais como o quadro concernente à pessoa com de-
ficiência que não possui meios para exteriorizar a sua vontade, e a presença
de fatores a indicar forte intensificação de sua vulnerabilidade ou ainda um
contexto de outras violências e abusos.
Com efeito, em casos excepcionais, há de se admitir a flexibilização do §
1º do art. 85 – que proíbe a curatela para os direitos nele referidos –, e do art.
6º – que proíbe a restrição da capacidade civil para o exercício dos direitos que
elenca –, para admitir que, em situação específica e pontual, para a prática de
certo ato existencial, o curador submeta a questão ao juiz, que decidirá se a
pessoa com deficiência pode ou não o praticar. Se, no caso concreto, a partir
de análise biopsicossocial por equipe multidisciplinar, o juiz concluir que a
mitigação da capacidade civil da pessoa com deficiência é o único instrumen-
to adequado para a concretização do princípio constitucional da promoção
da proteção dos direitos humanos da pessoa com deficiência e do respeito à

as suas preferências genuínas, sua percepção do mundo, suas convicções pessoais acerca da própria
identidade. Caso o curatelado houver nascido sem qualquer competência volitiva e, por isso, não
houver registrado por seu modo de viver, quais seriam esses interesses fundamentais, a atuação do
curador deverá se guiar pelo princípio da beneficência, seguindo padrões respeitáveis à dignidade
da pessoa humana e os direitos do curatelado, na tentativa de atender, sempre que possível, às
suas inclinações e relações afetivas” (MENEZES, Joyceane Bezerra de. O direito protetivo após a
Convenção sobre a proteção da pessoa com deficiência, o novo CPC e o Estatuto da Pessoa com
Deficiência. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de (org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica
e intelectual nas relações privadas: Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência e Lei
Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016, p. 532, grifou-se).
448 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. 3. ed.
Tradução de Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 2-3.

201
Violência Obstétrica em Debate

dignidade que lhe é inerente, poderá afastar a regra do Estatuto, autorizando


o curador a manifestar de acordo com a “vontade e as preferências da pessoa”,
vale dizer, de acordo com sua história biográfica.
Seja como for, a regra passou a ser, repita-se à exaustão, a plena capaci-
dade da pessoa com deficiência para a prática dos atos civis e, ainda que haja
alguma limitação de sua capacidade, isso não afetará o exercício de alguns di-
reitos existenciais. Inauguram-se, assim, dois regimes jurídicos diferentes, um
para o exercício de direitos patrimoniais, e outro para o exercício de direitos
existenciais. Trata-se de mudança fundamental voltada a garantir à conside-
rável parcela da população brasileira a necessária autonomia para o controle
sobre suas próprias decisões existenciais, interrompendo perverso ciclo de de-
sempoderamento das pessoas com deficiência.
Essa nova perspectiva se afigura particularmente relevante para as ges-
tantes com deficiência, já que lhes reconhece não apenas a autonomia para
decidir, sempre que ostentem a necessária funcionalidade, sobre todas as
questões relativas à reprodução e ao planejamento familiar, como o direito
de que todo o atendimento médico lhes seja oferecido da forma mais acessí-
vel possível, com a remoção de todas as barreiras físicas e informacionais ao
pleno exercício dessa autonomia. Nesta esteira, não apenas os equipamentos
médicos devem ser adequados e adaptados às gestantes com qualquer tipo de
deficiência, como os médicos e enfermeiros devem ser especialmente qualifi-
cados, de modo a serem capazes, por exemplo, de se comunicar em Libras, a
fim de evitar a tragédia relatada páginas acima.
Há de se assegurar, ademais, o direito às gestantes com deficiência de
fazer uso do plano de parto, instrumento elaborado durante o pré-natal e que
estabelece os procedimentos aos quais a gestante aceita se submeter e aqueles
aos quais ela não aceita. Cuidando-se de gestante com deficiência psíquica, o
plano de parto, enquanto negócio jurídico unilateral existencial, será válido,
mediante sua exclusiva manifestação de vontade, se ela apresentar funcionali-
dades suficientes para entender as consequências de suas escolhas.
Desse modo, almeja-se aliar a proteção da pessoa com deficiência à
emancipação e à liberdade substantiva em atuação prospectiva do Direito, a
qual, de acordo com Luiz Edson Fachin “é a atuação hermenêutica da recons-

202
Violência Obstétrica em Debate

trução permanente, correta e adequada, dos significados que se aplicam aos


significantes que integram a teoria e a prática do Direito Civil”.449
O reconhecimento, no caso concreto, de que a gestante com deficiência
ostenta a funcionalidade necessária ao exercício de sua autonomia no que tan-
ge às decisões relativas à gestação afasta, consequentemente, qualquer possi-
bilidade de o curador se imiscuir nessas questões, inclusive no plano de parto.
Se o médico optar por ignorar a vontade e os desejos da gestante – corporifi-
cados ou não no plano de parto –, e seguir a eventual orientação do curador
– que, repita-se, não tem, em princípio, poderes para atuar nessa seara, salvo
situação ultra excepcional já aventada –, poderá ser responsabilizado solida-
riamente com o curador por violência obstétrica.
Sempre relevante recordar que, apesar de serem direitos fundamentais,
de aplicabilidade imediata por controle de convencionalidade, somente meia
década após a internalização da Convenção ao direito brasileiro com status
material e formal de Emenda à Constituição450 é que houve a promulgação
da Lei Brasileira de Inclusão ou Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei n.
13.146/2015 – na tentativa de adequar a legislação interna ao paradigma da
Convenção e dar efetividade aos direitos por ela enunciados.
Daí a denúncia das dificuldades de garantia de direitos positivados em
tratado internacional visando à proteção de um grupo vulnerável e os obstá-
culos formais e materiais colocados à frente das efetivas práticas de direitos
humanos. Nessa toada, Joaquín Herrera Flores defende que os direitos hu-
manos devem ser vistos como processos institucionais e sociais que possibi-
litem a abertura e consolidação de espaços de luta pela dignidade humana,
reconhecendo e respeitando a pluralidade e a diversidade como marcos de
uma concepção material e concreta de dignidade e destaca a necessidade de
reafirmação destes direitos no dia-a-dia e por diversos agentes:

449 FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 86.
450 A assinatura do tratado se deu em 30/03/2007 e sua ratificação ocorreu em 2008 pelo Congresso
Nacional seguindo-se o procedimento previsto no art. 5º, §3º da Constituição Federal. Não se olvida
do tema do “controle de Convencionalidade” das normas internas do direito brasileiro, a respeito
do qual Flávia Piovesan destaca que a proteção dos direitos humanos (human rights approach)
constitui o ápice do sistema internacional e que o “controle de convencionalidade” é importante
instrumento para a concretização de medidas protetivas aos direitos humanos constantes de
tratados internacionais. (PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e diálogo entre jurisdições. Revista
Brasileira de Direito Constitucional – RBDC. n.19 – jan./jun. 2012, p. 91)

203
Violência Obstétrica em Debate

As normas jurídicas poderão cumprir uma função mais em concor-


dância com o “que ocorre em nossas realidades” se as colocarmos em
funcionamento – a partir de cima, mas sobretudo a partir de baixo
–, assumindo desde o princípio uma perspectiva contextual e crítica,
quer dizer, emancipadora.451

Nada impede, evidentemente, que a própria gestante com deficiência


opte pela tomada de decisão apoiada (art. 1.783-A, CC),452 que não repercute
na sua capacidade civil, e encerra instrumento “voltado a auxiliar a pessoa que
se sente fragilizada no exercício de sua autonomia”,453 mas que reúne “condi-
ções de, por si, realizar suas escolhas e celebrar quaisquer negócios jurídicos
sem a necessidade de assistência ou representação”.454 Assim, o instrumento
da Tomada de Decisão Apoiada poderia ser utilizado para ampliar a autode-
terminação da pessoa com deficiência capaz, mas que demanda algum tipo
de apoio para compreender o contexto de uma situação que exige sua escolha.
Discute-se na doutrina nacional acerca dos objetivos da Tomada de Decisão
Apoiada; dentre esses debates encontra-se aquele sobre sua (im)prescindibi-
lidade para a realização exclusivamente de atos patrimoniais e a discussão
sobre se a referência a “atos civis” também abarcaria as relações existências,
como aqueles relativos aos direitos reprodutivos.
Contudo, como alerta David Sanchez Rubio, não basta a positivação de um
direito ou um reconhecimento judicial, pois as normas jurídicas e o fenômeno
jurídico se encontram em contínuo processo de significação e ressignificação, o
que faz das lutas incessantes em busca do reconhecimento e efetivação dos di-

451 FLORES, Joaquín Herrera. A (re)invenção dos direitos humanos. Trad. DIAS, Jefferson Aparecido;
GARCIA, Carlos Roberto Diogo; SUXBERGER, Antônio Henrique Graciano. Florianópolis:
Fundação Boiteux, 2009, p. 18.
452 “Art. 1.783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege
pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança,
para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos
e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.”
453 MENEZES, Joyceane Bezerra de. Tomada de decisão apoiada: instrumento de apoio ao exercício
da capacidade civil da pessoa com deficiência instituído pela Lei Brasileira de Inclusão (Lei n.
13.146/2015), Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 9, jul./set. 2016, p. 44.
454 MENEZES, Joyceane Bezerra de. Tomada de decisão apoiada: instrumento de apoio ao exercício
da capacidade civil da pessoa com deficiência instituído pela Lei Brasileira de Inclusão (Lei n.
13.146/2015), Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 9, jul./set. 2016, p. 42/43.

204
Violência Obstétrica em Debate

reitos humanos.455 Por isso almeja-se que a Tomada de Decisão Apoiada se torne
realmente uma prática emancipadora para a realidade brasileira atual.
Não é despiciendo ressaltar que, em qualquer situação, por mais severa
que seja a deficiência, ainda que, em hipótese excepcionalíssima, a gestante
não tenha condições de exprimir sua vontade, pelo simples (e inafastável) fato
de ser sujeito de direito, dotada de inerente dignidade humana, ela sempre terá
o direito fundamental ao parto humanizado. Embora o termo seja polissêmi-
co, as propostas de humanização do parto, de uma forma geral, “têm o méri-
to de criar novas possibilidades de imaginação e de exercício de direitos, de
viver a maternidade, a sexualidade, a paternidade, a vida corporal. Enfim, de
reinvenção do parto como experiência humana, onde antes só havia a escolha
precária entre a cesárea como parto ideal e a vitimização do parto violento”.456
E esse é um direito de todas as mulheres, independentemente de sua condição
física, psíquica, social ou racial.

4. Conclusão
O núcleo central da temática desse trabalho é tutelar a autodeterminação
dos direitos sexuais e reprodutivos, inclusive do “plano de parto”, para todas as
mulheres numa concepção humanizada, o que exige especificidades para as pes-
soas com deficiência física, psíquica ou intelectual, bem como a desvinculação de
um enfoque substitutivo da vontade, sem descurar da proteção de seus interesses.
Contudo, a violência obstétrica é prática reiterada no cotidiano médi-
co-hospitalar e se consubstancia no conjunto de ações, métodos e procedi-
mentos clínicos adotados pelos profissionais da saúde, durante a realização
do parto, ou em momentos anteriores ou posteriores a ele, e que tendem a
se apropriar do corpo e dos processos reprodutivos da mulher pela supres-
são de sua capacidade e autonomia na decisão livre sobre o próprio corpo e
sexualidade, pelo abuso da medicalização e pelo tratamento desumanizado
dispensado às gestantes. Entre os exemplos dessa prática estão o uso de vio-

455 RUBIO, David Sanchez. Encantos e desencantos dos direitos humanos: de emancipações, libertações
e dominações. Porto Alegre: livraria do advogado, 2014, p.43.
456 DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos
de um movimento. Ciência e Saúde Coletiva. 10 (3), 2005, p. 635.

205
Violência Obstétrica em Debate

lência física, verbal ou moral, a utilização de procedimentos não consentidos


(como a esterilização, a episiotomia e a tricotomia), a recusa em administrar
analgésicos, entre outros.
Vê-se que os saberes médico-científicos dos profissionais da saúde se
sobrepõem e tolhem as liberdades individuais das gestantes e, a partir daí,
possível se constatar que a violência obstétrica se configura como ofensa aos
direitos sexuais, reprodutivos e à liberdade e autonomia da mulher, numa evi-
dente violação de direitos humanos fundamentais. Se a prática da violência
obstétrica já é gravosa em si própria, maior ainda é a ofensa quando intenta-
da contra pessoas em situações de hipervulnerabilidade, como adolescentes e
pessoas com deficiência.
Conforme se procurou demonstrar, as pessoas com deficiência, duran-
te anos, encontraram-se sob um modelo médico que classificava a deficiên-
cia como algo ontológico, dissociado de aspectos exteriores à própria pessoa.
Este modelo, que encontrou respaldo na codificação civil de 1916 e de 2002,
estabeleceu a disciplina abstrata do regime das incapacidades, baseado num
sistema de tudo-ou-nada, ou seja, se a pessoa fosse considerada desprovida
do discernimento necessário à prática de seus atos, era considerada incapaz.
Desta forma, a partir da concepção una da incapacidade, não se estabeleciam
diferenças entre a autonomia necessária para a prática de atos patrimoniais
e atos relativos ao exercício de sua personalidade, de modo que se acabava
por retirar da pessoa com deficiência os espaços de autonomia e liberdade
existenciais. Esse regime tem por consequência a naturalização da prática de
condutas violentas e cruéis contra a gestante com deficiência, uma vez que
negada, integralmente, sua condição de pessoa com autonomia e dignidade.
Contudo, com as discussões proporcionadas pelo movimento das pesso-
as com deficiência, que culminou, no Brasil, com a internalização da Conven-
ção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e, posterior-
mente, em 2015, com a edição do Estatuto da Pessoa com Deficiência, há subs-
tancial alteração sobre o tratamento jurídico dado às pessoas com deficiência.
Primeiramente, concebe-se a deficiência a partir de um complexo de
condições biopsicossociais, considerando-se fatores sociais e ambientais ex-
teriores, mas também aspectos individuais. Posteriormente, vislumbra-se um
novo regime jurídico conferido às incapacidades, tidas estas como excepcio-
nais: delimitam-se atos patrimoniais e existenciais, sendo que a pessoa com

206
Violência Obstétrica em Debate

deficiência passa a ser, como regra e a priori, absolutamente capaz para o exer-
cício de sua autodeterminação, especialmente no que diz respeito aos atos de
natureza personalíssima.
Essa nova perspectiva se afigura, portanto, como importante mecanismo
que respeita e tutela a autonomia da gestante para decidir sobre as questões rela-
tivas ao planejamento familiar, à gestação, ao parto (possibilitando-lhe decidir,
no “plano de parto” ou por meio da tomada de decisão apoiada, sobre os pro-
cedimentos a que aceita ou não se submeter) e ao próprio corpo, no exercício
de seus direitos e liberdades existenciais de maneira humanizada. Para tanto,
devem-se reduzir as barreiras (físicas, comunicacionais, de conhecimento etc.)
que afastam a pessoa com deficiência do exercício de sua autodeterminação e do
poder de decisão sobre questões relativas à sua personalidade, conjugando-se a
proteção formal à material da dignidade da gestante com deficiência.
Conquistas e retrocessos constituem a dinâmica dialética de movimentos
e práticas de reconhecimento e afirmação de direitos humanos e fundamentais
de grupos vulneráveis. As pessoas com deficiência passam pelo mesmo dificul-
toso trilhar. Urge na contemporaneidade reflexões a fim de expandir a compre-
ensão dos nortes traçados pela Convenção, sob pena de a autonomia persistir
restrita e condicionada a padrões culturais que inferiorizam, daí a necessidade
do juízo critico e emancipatório em prol da efetiva autodeterminação.

207
Racismo institucional e violência
obstétrica: dispositivo sistêmico de
genocídio da população negra

Thula Pires
Malu Stanchi

Introdução
A mulher-mãe culpada, a mulher-mãe vítima, a mulher-mãe protagonis-
ta do processo gestacional e puerperal. A construção semântica do conceito de
humanização da assistência ao parto transfigurou-se a partir da abertura, dis-
cussões e liberdades que os movimentos de mulheres conquistaram na socie-
dade patriarcal brasileira face às particularidades e desafios de cada momento
histórico. Contudo, a consideração do sujeito mulher a partir de uma perspec-
tiva uniformizadora é ponto que transpassa as diferentes disputas certificadas
contra a violência obstétrica ao longo dos tempos e espaços.
Trata-se de um universalismo secularmente atrelado à supremacia branca
e à naturalização da hierarquia racial que promovem a subordinação e o apaga-
mento das existências, projetos e perspectivas pretas. A construção da mulher
universal branca constituiu o padrão de normalização desse sujeito de direito-
-mulher-mãe. E esse padrão de normalização é definido a partir das configura-
ções hegemônicas socialmente estruturais e estruturantes, que impõem delimi-
tações hermenêuticas, consolidações epistêmicas e, consequentemente, condi-
cionam a efetividade e alcance prático das garantias que se verificam a partir da
possibilidade de tutela da dignidade humana e dos direitos que delas decorrem.
A mulher universal branca que representa nesse texto a zona do ser457
estabelece o parâmetro para a seleção e consideração social dos corpos e exis-
tências femininas dignas de um processo gestacional que atenda aos padrões
de bem-estar estabelecidos socialmente. A sua proteção e possibilidade con-

457 FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Tradução Renato da Silveira; Salvador: EDUFBA, 2008.

209
Violência Obstétrica em Debate

creta de fruição de direitos se sustenta na violência permanente e naturalizada


sobre os corpos de mulheres que habitam a zona do não ser, cuja experiência
da maternidade se constitui e exerce em termos atravessados pela negação de
sua humanidade plena, bem como de seus/suas filhos/as.
O debate sobre a humanização do parto, portanto, ainda hoje é centra-
lizado nos privilégios inerentes à branquitude: desatende a necessidade de fo-
calizar a discussão sobre violência obstétrica a partir dos efeitos do racismo
institucional estabelecido pelos processos colonialistas de dominação brasi-
leira e nas ações potencialmente violentas que esses refluxos e reinvenções do
sistema colonial provocam nos corpos femininos não brancos.
Desse modo, escurecer o debate sobre a violência obstétrica no Brasil
tem como premissa recentrar a discussão, evidenciando quem são as mulhe-
res-sujeitos de direito da práxis humanizada. Disputar outras formas de apre-
sentar esse debate passa por reconhecer o alcance dos avanços promovidos
através da busca pela humanização do parto, mas exige sobretudo que se de-
safie os lugares sociais e as estruturas de poder próprios da estrutura colonial
embutidos nessa luta, questionando os privilégios não enunciados, silenciados
e negados que fundam e reforçam a lógica da branquitude. Racializar o debate
sobre a violência obstétrica é retirar a discussão de uma lógica identitária e
pôr em evidência as múltiplas formas em que a violência de Estado é mobiliza-
da para perpetuar o secular genocídio do povo negro e reivindicar um projeto
de humanização da assistência ao parto desde uma perspectiva antirracista.458

458 BAIRROS, L. Entrevista concedida a Edson Cardoso, Jonas Conceição e Sayonara. Jornal do MNU,
n. 20, out-dez. 1991.

210
Violência Obstétrica em Debate

1. “A Branquitude poderia ser um pouco mais


criativa e se dar ao luxo de pensar que a história
é mais dinâmica que as palavras’’459

“Onde estão os negros? Onde está a história?


Onde estão os negros na história?”460

As disputas atuais contra a violência obstétrica legitimam a historici-


dade delineada para explicar a constituição social dos estigmas da mulher-
-culpada, da mulher-vítima e da mulher-protagonista no percurso temporal
da reinvenção das significâncias produzidas pela violência obstétrica461. To-
davia, a narrativa corrente retoma uma compreensão histórica forjada a par-
tir da concepção hegemônica de humanidade, da memória e da consciência
social sobre a trajetória da assistência humanizada ao parto. Dessa forma, o
fulcro das discussões é essencialmente fundado na revisão das intervenções
violentas contra os corpos das mulheres (não racializadas como brancas) e
nas possibilidades de transformação dos procedimentos, forjando um suposto
nivelamento entre a realidade que determina o que é violência na zona do ser
como parâmetro capaz de dar conta de violências (nem sempre entendidas
nesses termos) para os corpos da zona do não ser.
Nesta perspectiva, retoma-se a figura forjada da mulher culpada, conce-
bida por instituições religiosas cristãs que impuseram aos corpos femininos
o estigma da mulher virgem, ascética e casta. Nesse contexto, são resgatadas
criticamente as funções sociais estipuladas às mulheres brancas, a patologiza-
ção do parto, a naturalização da cesárea e a comercialização do processo ges-

459 PIEDADE, V. Dororidade; São Paulo: Noz, 2017, p. 47.


460 Trecho extraído do documentário Zumbi Somos Nós; Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=jVHmoqHciD8&t=1673s. Acesso em: 28 de agosto de 2018.
461 Para acesso à perspectiva analítica supracitada, ver DINIZ, S. Humanização da assistência ao parto
no Brasil: os muito sentidos de um movimento, in Ciênc. saúde coletiva, v. 10, n. 3, jul-set; Rio de
Janeiro, 2005.

211
Violência Obstétrica em Debate

tacional e puerperal462. Nesses termos, as tensões postas têm grande relevância


ao arranjo da luta contra a violência obstétrica.
No entanto, ao desconsiderarem as posições sociais ocupadas por mu-
lheres não brancas, as expectativas politicamente construídas sobre seus com-
portamentos e, acima de tudo, a negação de sua humanidade, da memória dos
corpos e existências femininas negras, são propostas que acabam por recalcar
a consciência social463 racista estruturante e estruturada pela sociedade bra-
sileira. No lugar de uma proteção humanizada ao parto, tem-se a reprodução
das hierarquias desumanizadoras entre nós inclusive nesse momento, além
de despolitizar. Nos é retirada, por exemplo, a possibilidade de tensionarmos
alguns aspectos fundamentais da experiência da maternidade em cada uma
das duas zonas, como o acesso desproporcional a analgesia, aos exames pré-
-natais, às causas de morte evitável, ao acompanhamento durante o parto, aos
efeitos do puerpério, entre outros.
É preciso romper com o determinismo histórico e (re)fundar o conceito
em disputa desde as perspectivas das humanidades desconsideradas. Identifi-
car as “mancadas do discurso da consciência’’464 pressupõe a emergência das
narrativas das mães escravizadas, das amas de leite, dos filhos ilegítimos, das
mulheres submetidas aos experimentos ginecológicos, das mães encarceradas,
das mães periféricas, das mães submetidas ao sucateamento do Sistema Único
de Saúde (doravante SUS) e de todas as mães negras que têm desconsideradas
suas humanidades. A compreensão dos processos de apagamento e não reco-
nhecimento, normalizados pelo racismo, abre caminho para o deslocamento

462 DINIZ, S. et. al. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições,
tipologias, impactos para a saúde maternas, e propostas para sua prevenção, in Journal of Human
Growth and Development, 2015.
463 ‘’Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação,
do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a
gente considera como o não-saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história
que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção.
Consciência exclui o que memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, consciência
se expressa como discurso dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando
memória, mediante a imposição do que ela, consciência, afirma como a verdade. Mas a memória
tem suas astúcias, seu jogo de cintura: por isso, ela fala através das mancadas do discurso da
consciência.’’ GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira, in Revista Ciências Sociais
Hoje, ANPOCS, 1984, p. 226.
464 GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira, in Revista Ciências Sociais Hoje, ANPOCS,
1984, p. 226.

212
Violência Obstétrica em Debate

da memória tramada e à análise da história que não é contada. ‘’A pele preta
ainda nos marca e nos mata na escala inferior da sociedade” .465
Nos séculos, XVIII e XIX - a partir de uma análise temporal sintética,
face às múltiplas nuances e transversalidades inerentes às práticas racistas -
destaca-se o instituto da escravidão e do racismo científico. Os senhores de
engenho, Darwin, Nina Rodrigues e Cesare Lombroso contribuíram para a
difusão da teoria do determinismo racial que fundamentava a desumanização
das negras e negros na sociedade brasileira.
No pólo oposto à figura da mãe-santinha branca estava a mulher pre-
ta escravizada violada sexualmente pelo senhor de engenho. A mulher que,
privada de sua liberdade física e sexual, servia compulsoriamente ao senhor
branco para prestação de bens e serviços laborais e para a prestação de servi-
ços sexuais, mucama, bode expiatório do projeto de normatização e estratifi-
cação. ‘’Se a mulher branca era tida como sacralizada em sua função de esposa
e mãe, à negra escravizada só restava a função de objeto sexual, consolidada
via estupro institucionalizado’’.466 Objeto de propriedade do senhor de enge-
nho, a mulher negra não era considerada pessoa humana, sujeito, por estar
na zona do não ser. Seus corpos eram violados pelo estupro, pela chibata e
pelos trabalhos exaustivos. De certo, a Igreja Católica também agia sobre a
maternidade preta, por meio da própria legitimação da escravidão e através
da “desfaçatez dos padres a quem as Ordenações Filipinas, com seus castigos
pecuniários e degredo para a África, não intimidavam nem os fazia desis-
tir dos concubinatos e mancebias com as escravas”. 467Inicialmente contando
com a ajuda comunitária de outras negras e negros escravizados no processo
gestacional e puerperal, expostas à precarização sanitária dos espaços insa-
lubres determinados como moradia para as negras e negros, a mulher preta
escravizada encontrava no conhecimento ancestral os caminhos para o parto
nas condições impostas pelo processo de dominação.468

465 PIEDADE, V. Dororidade; São Paulo: Noz, 2017, p. 14, 16, 47.
466 ARAÚJO, A. A mulher negra no pós abolição, in Revista Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as,
ABPN, v.5. N.9, 2018, p. 25.
467 GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira, in Revista Ciências Sociais Hoje, ANPOCS,
1984, p. 226, 229.
468 CARNEIRO, F. Nossos passos vêm de longe…, in O livro da saúde das mulheres negras - nossos passos
vêm de longe, organização WERNECK, J., MENDONÇA, M. WHITE, E. Tradução Maisa Mendonça,
Marilena Agostini e Maria Cecília MacDowell dos Santos, Rio de Janeiro: Pallas: Criola, 2000.

213
Violência Obstétrica em Debate

No início do século XIX surge a primeira maternidade objetivando a


assistência das mulheres escravizadas no Rio de Janeiro- a Maternidade Santa
Isabel. Esse propósito simulado encobria a real intencionalidade do projeto: “
um lucrativo negócio hospitalar, ao aluguel de amas de leite e à constituição
da ginecologia e da obstetrícia como especialidades médicas”.469As mães ne-
gras eram instrumentalizadas mercadologicamente para ganhos financeiros
da própria instituição de saúde através do aluguel das amas de leite com do-
cumentos que atestavam a sua boa saúde. A disposição do próprio corpo como
amas de leite era estabelecida como moeda de troca para que as mulheres ne-
gras escravizadas pudessem usufruir dos serviços médicos da casa de saúde.
Através de experimentos e testes de medicamentos, sob os corpos femininos
escravizados também foram sedimentados conhecimentos obstétricos e gine-
cológicos - áreas, à época, em desenvolvimento.
Acerca do desenvolvimento científico, é igualmente importante não es-
quecer de James Marion Sims, estadunidense conhecido como o pai da mo-
derna ginecologia:
Ele relatou que “os africanos tinham uma tolerância fisiológica inco-
mum para a dor, que era desconhecida pelos brancos”, desta forma ele
não usava anestesia em seus pacientes negros/as. O médico Sims contri-
buiu para a saúde reprodutiva com inovação de técnicas e procedimen-
tos, no entanto, nunca se discutiu como, pois na época ele inaugurou
uma série de longas e chocantes cirurgias ginecológicas experimen-
tais, em mulheres escravas, e tudo feito sem o benefício de anestesia ou
qualquer tipo de antisséptico, o que levava à morte de muitas dessas
mulheres. Um dos seus experimentos foi com uma mulher jovem es-
cravizada chamada Anarcha. No momento do nascimento do seu filho,
dr. Sims fez uso de uma pinça na cabeça do feto na hora do parto – ele
relatava ter pouca experiência de usar o instrumento. O bebê nasceu
– nenhum registro se vivo ou morto – e a mãe sofreu várias fístulas,
resultando em incontinência470.

469 BARRETO, M. Maternidade para escravas no Rio de Janeiro (1850-1859), in Revista de História
Regional, v. 21, n. 2, 2016, p. 396.
470 GOES, E. Racismo científico, definindo humanidades de negras e negros, Geledes, 2016.

214
Violência Obstétrica em Debate

Essas são algumas das práticas racistas institucionais promovidas para


o surgimento e desenvolvimento da ciência ginecológica, fruto da escravidão
laboral e sexual a que eram submetidas as mulheres negras.
Admitindo um salto temporal imensurável, é imprescindível a análise do
século XX e suas diversas implicações a partir da falsa democracia racial e do
racismo à brasileira. Gilberto Freyre publica Casa Grande e Senzala e a violên-
cia perpetrada pelo senhor branco contra a mulher preta escravizada é vista
como benigna, fruto da harmonia romântica que originaria a mestiçagem:
A negra corrompeu a vida sexual da sociedade brasileira, iniciando
precocemente no amor físico os filhos-família. Mas essa corrupção não
foi pela negra que se realizou, mas pela escrava. Onde não se realizou
através da africana, realizou-se através da escrava índia471.

O servilismo da mulher negra ainda impõe a identidade multifuncional,


categorizadas no imaginário social como a macuma, a babá e a mãe preta,
acumulando as funções maternas próprias e das senhoras brancas
da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que
nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida.
Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-
-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma
coceira tão boba. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao
ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem472.

O filho da mulher escravizada preta e do senhor de engenho, ilegítimo, é


estigmatizado como figura da miscigenação salvacionista brasileira, instituin-
do o embranquecimento da população como característica social que funda-
menta o discurso sobre a impossibilidade de qualquer tentativa de estabeleci-
mento do racismo no Brasil.473 Como irrompe Lélia: ‘’Aqui não tem diferença
porque todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus”. 474O horror

471 FREYRE, G. Casa-grande e senzala, 49 edição, São Paulo: Global, 2004, p. 343, 372.
472 FREYRE, G. Casa-grande e senzala, 49 edição, São Paulo: Global, 2004, p. 343, 372.
473 GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira, in Revista Ciências Sociais Hoje, ANPOCS,
1984, p. 226, 229.
474 GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira, in Revista Ciências Sociais Hoje, ANPOCS,
1984, p. 226, 229.

215
Violência Obstétrica em Debate

antropológico se fortalece - ainda mais - engendrando o imaginário racista


impregnado na consciência social.
Os arranjos institucionais também perpetuam e reinventam o projeto
escravista por meio da legitimação da suficiência da igualdade material, fun-
dando os mitos étnicos da meritocracia e da convivência pacífica. Na área
sanitária e ambiental, o racismo adquiriu faces institucionalizadas na rede-
mocratização política, no final do século XX. A constituinte e, posteriormen-
te, a promulgação da Constituição de 1988, estabeleceram no texto da Carta
Magna mudanças significativas no âmbito da saúde e seguridade social.
Foram colocadas em pauta disputas pelo reconhecimento do dever positi-
vo do Estado em garantir o direito social à saúde e a universalização da saúde,
rompendo formalmente com os modelos médicos assistencialistas mercadoló-
gicos privados. No âmbito desta consolidação democrática, foi instituído o Sis-
tema Única de Saúde (SUS) marcando a discussão sobre a Reforma Sanitária.
O SUS foi pensado constitucionalmente a partir da pretensão de ser ins-
tituído um
‘Sistema’, entendido como um conjunto de ações e instituições, que de
forma ordenada e articulada contribuem para uma finalidade comum,
qual seja, a perspectiva de ruptura com os esquemas assistenciais dire-
cionados a segmentos específicos, que recortados segundo critérios so-
cioeconômicos, que definidos a partir de fundamentos nosológicos 475

Não obstante, a consolidação do SUS foi permeada por flexibilizações,


precarizações e vácuos Estatais em prol de alianças com interesses privatistas
do capital neoliberal, afirmando a perpetuação das estruturas de segregação
sanitária anteriores e prevendo precocemente seu sucateamento. 476
As senzalas contemporâneas se espargem em toda configuração consti-
tutiva social e sustentam a institucionalização das práticas racistas. Limitam,
consequentemente, os direitos sexuais e reprodutivos na esfera pública e pri-

475 BAHIA, L. Sistema Único de Saúde, in PEREIRA, I. e LIMA, J., Dicionário de educação profissional
em saúde, 2ed; Rio de Janeiro: EPSJV, 2009, p. 357.
476 SILVA, A. Desmonte e sucateamento do SUS: o ataque neoliberal à política de saúde no Brasil, in
Anais Seminário FNCPS, 2017.

216
Violência Obstétrica em Debate

vada. Ainda hoje são vitimizadas pelo racismo inúmeras Rafaelas477, jovens,
pretas que falecem de morte materna pelas práticas intencionais de violência:
‘’Tinha que ser! Olha aí, pobre, preta, tatuada e drogada! Isso não é eclamp-
sia, é droga!” - fala atribuída ao anestesista que deveria prestar assistência de
emergência a uma jovem parceira de um homem privado de liberdade por trá-
fico de drogas478. A prática da violência obstétrica é acentuada e direcionada
para corpos e existências definidas, e funciona como ferramenta de um tecido
esparso e bem consolidado na sociedade brasileira: o racismo institucional.

477 Rafaela Cristina Souza dos Santos faleceu aos 15 anos por descaso e negligência Estatal durante
a gestação. Rafaela sofreu negligência durante todo o pré-natal. Apesar de ter feito o pré-natal
‘’direitinho. Não faltou nenhuma vez’’ (relato de Ana Cláudia Silva de Souza, mãe de Rafaela)
e apresentando indicativo de risco devido ao aumento da pressão arterial aliado ao aumento
expressivo de peso, a gestante não foi direcionada, em nenhum momento, ao Serviço Pré-Natal
de Risco. No dia 23 de abril de 2015, com 40 semanas de gestação, ao se dirigir ao Hospital Rocha
Faria - maternidade pública de referência no Rio de Janeiro - foi constatado que Rafaela tinha perda
discreta de líquidos e variação expressiva da pressão. Apesar de haver indicativo de alterações,
apontados no exame pré-natal, os profissionais de plantão dispensaram a gestante sem a realização
de qualquer medida de controle ou avaliação. No dia seguinte, 24 de abril de 2015, Rafaela retornou
ao referido hospital com quadro sintomático semelhante, somado a sangramento vaginal. Mais uma
vez, a equipe médica ignorou a hipertensão progressiva e indicou o encaminhamento da gestante
ao Hospital da Mulher, devido à impossibilidade de realização do parto face à greve de funcionário
que estava ocorrendo. Contudo, não foi oferecida a remoção. Dirigindo-se por meios próprios ao
Hospital da Mulher, sem encaminhamento formal, Rafaela foi direcionada ao Centro de Parto
Normal, classificada como gestante de baixo risco. Horas depois, Rafaela apresentou quadro de
vômito, diante do qual houve completa inação dos profissionais de saúde da unidade, que sequer
aferiram a pressão de Rafaela. Após 12 horas, no dia 25 de abril de 2015 , visto as dores de cabeça
intensas, pressão elevada, quadro convulsivo e parada cardíaca, foi acionada a equipe médica
da unidade. No entanto, só houve resposta da equipe após a terceira tentativa de comunicação,
decorrida 1 hora. A cesárea ocorreu sem a administração dos medicamentos necessários em caso de
pressão alta, ocasionando hemorragia e choque hipovolêmico na adolescente. Rafaela foi transferida
para outra unidade de saúde, havendo ausência de administração de métodos capazes de conter a
hemorragia. No momento da entrada no Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, Rafaela apresentava
edema agudo pulmonar, taquicardia, diagnóstico de rotura uterina, eclâmpsia e histerectomia
parcial. Após várias paradas cardíacas, Rafaela veio a óbito. (Informações extraídas de relatórios
disponibilizados por CRIOLA, pela Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Mulher sobre o caso,
assim como de reportagens jornalísticas e do documento ‘’Mortalidade Materna e o Impacto sobre
as Mulheres Negras’’ produzido por Jurema Werneck e disponibilizado em: http://www2.camara.
leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cssf/audiencias-publicas/audiencia-
publica-2015/aud-09-06-subpasne/apresentacao-6 . Acesso em 28 de agosto de 2018)
478 Depoimento extraído Dossiê da Violência Obstétrica “Parirás com dor”, elaborado para a CPMI da
Violência Contra as Mulheres no Senado Federal, em 2012.

217
Violência Obstétrica em Debate

2. Repactuando: Racismo sistêmico e violência obstétrica


Para entender as disputas contemporâneas pela humanização do parto,
é necessário contrapor o marco fático apresentado como ‘oficial’ em relação
às narrativas sobrepujadas no exercício de recuperação da memória. São evi-
dentes as tensões entre as reivindicações das mulheres pretas e da branquitude
arrolada em múltiplos privilégios. Os próprios âmbitos de confronto diferem-
-se fundamentalmente: a violência obstétrica contra as mulheres negras é prá-
tica inserida na lógica racista institucionalizada. Desconsiderar a urgência do
debate sobre racismo institucional - que tem a violência obstétrica como uma
de suas forças motrizes - é negar a abolição inconclusa a favor da superação
falaciosa das estruturas colonialistas, reforçando o sustentáculo estrutural e a
sistemática hodierna de extermínio das mulheres negras.
A Professora Simone Diniz enuncia em sua obra479 os sete sentidos na
busca pela humanização do parto. Nesse desenvolvimento destacam-se três
sentidos, anunciados como facilitadores da análise transversal à atual discus-
são sobre o acesso material e substancial do direito social à saúde: i) humani-
zação como a legitimidade científica da medicina, ou da assistência baseada
na evidência, ii) humanização como a legitimidade política da reivindicação
e defesa dos direitos das mulheres (e crianças, e famílias) na assistência ao
nascimento e iii) humanização como direito ao alívio da dor, da inclusão para
pacientes do SUS no consumo de procedimentos tidos como humanitários,
antes restritos às pacientes do âmbito privado de assistência à saúde.
De acordo com Diniz, o primeiro sentido atribuído à humanização da
assistência ao parto está vinculado à já referida Medicina Baseada em Evidên-
cias (MEB). A vertente admite como preceito fundante o respeito à fisiologia
da mulher e o uso adequado e proporcional da tecnologia no processo ges-
tacional. Busca uma intervenção técnica crítica - baseada em evidências - e
com o máximo de satisfação possível da parturiente, afastando o imaginário
estigmatizante do parto como processo primitivo e arcaico. Os ativistas que
adotam essa concepção de humanização também afirmam que as técnicas e
procedimentos de rotina da assistência ao parto são políticas, e nelas se ins-
crevem as relações de desigualdade social baseadas na raça, no gênero e na

479 DINIZ, S. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muito sentidos de um movimento, in


Ciênc. saúde coletiva, v. 10, n. 3, jul-set; Rio de Janeiro, 2005.

218
Violência Obstétrica em Debate

classe da parturiente. O segundo conceito, de humanização como legitimida-


de política e jurídica de reivindicação e defesa dos direitos das mulheres, traz
como escopo central a análise da assistência ao parto sob a ótica do direito
à não-violência, baseado em princípio dos Direitos Humanos. Suscita para
o estabelecimento do diálogo diretrizes gerais do direito internacional dos
Direitos Humanos como o respeito à integridade pessoal, à equidade, à esco-
lha livre e informada e à vedação aos tratamentos cruéis, desumanos ou de-
gradantes. Parte ainda da consideração necessária da efetividade dos direitos
sociais para a concretização do direito individual à liberdade da parturiente.
Por fim, a segunda vertente estabelece uma crítica apropriada ao termo huma-
nização, entendendo o caráter diplomático do afastamento de outras caracte-
rizações às situação de violência obstétrica, como a de violência institucional
de gênero. Em relação à humanização como possibilidade ao alívio da dor,
terceiro significado atribuído ao conceito e considerado para a presente análi-
se, é pleiteada a adoção no SUS de procedimentos restritos às pacientes da rede
privada de saúde. A discussão central se dá em torno da humanização como
acesso à anestesia peridural, sendo condição inerente ao alívio da dor. Muitos
médicos e médicas que defendem essa vertente da humanização à assistência
ao parto pontuam a inexistência de analgesia para o alívio da dor no sistema
público de saúde, apesar da existência de portaria que expressamente prevê o
pagamento desse recurso (portaria GM/MS/ 2815).
De fato, as concepções supracitadas apresentam maior abertura dentre
as disputas enunciadas discursivamente na luta contra a violência obstétrica.
Além disso, estabelecem um diálogo inicial entre direito e medicina através
do reconhecimento da convergência entre os campos de conhecimento no
debate sobre o direito social à saúde. Contudo, essa reivindicada transversa-
lidade anunciada pelos três sentidos em destaque não dá conta da intersec-
cionalidade de opressões potencializadas pela violência institucional pauta-
da no racismo sistêmico e estrutural. Para uma análise holística da situação
atual da parturiente brasileira é necessário repactuar os termos e o núcleo da
discussão, racializando para politizar os processos seculares de não acesso a
métodos de alívio da dor e da autonomia de escolha e protagonismo de deci-
são. E a partir das análises apresentadas é inviável a impressão de um corte
interseccional de raça, gênero, classe, sexualidade e deficiência na luta pela
humanização do parto.

219
Violência Obstétrica em Debate

Esse exercício pressupõe o reconhecimento das mães pretas a partir da


sua própria perspectiva, afastando a lógica assistencialista inclusiva de con-
tenção das demandas das mulheres negras no domínio da disputa já existente,
com pautas ineptas face ao contínuo racismo de Estado e à abolição incon-
clusa. A intenção não é reproduzir a agenda branca contra a violência obs-
tétrica ou pautar a discussão na lógica da “inclusão”, mas produzir um novo
enfrentamento a partir do reconhecimento da dor agravada e da imobilidade
programada pelo racismo institucional contra as mães negras.
Procura-se deslocar a régua do mundo - atualmente assentada no sujeito
branco soberano - desobjetificando o sujeito negro por meio da centralização
da sua subjetividade a partir dos seus próprios termos.480 Discutir a violência
obstétrica contra as mulheres pretas e a possibilidade de humanização do par-
to é, em grande medida, confrontar o racismo institucional. É trazer a tona
as novas políticas públicas de colonização que definem a vida e a morte de
Bárbara Oliveira de Souza, parturiente que deu a luz à uma menina em uma
cela de isolamento na Unidade Prisional Talavera Bruce, em 2015. É dar prota-
gonismo às 06 mulheres pretas gestantes em situação de privação de liberdade
provisória na Unidade Materno Infantil do Rio de Janeiro até junho deste ano
(e às tantas outras gestantes e parturientes detidas em situação irregular no
sistema penitenciário). É encarar o racismo institucional do Poder Judiciário
que ceifou os direitos reprodutivos sexuais de Janaína, moradora em situação
de rua a quem foi direcionada uma das decisões que autorizavam a esteriliza-
ção compulsória481. É compreender que a pluralidade de desigualdades sociais
é permeada pela marca do componente racial e as mulheres negras usuárias
do Sistema Único de Saúde (SUS) recebem menos analgesia ao parir482. É re-
cordar o recente caso de Serena Williams, tenista negra e rica norte-america
que foi tratada com descaso até conseguir o devido tratamento. É lembrar o

480 FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Tradução Renato da Silveira; Salvador: EDUFBA, 2008.

481 MELLO, D. ‘’Esterelização de morada de rua não é caso isolado, dizem entidades’’, Agencia Brasil.
Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-06/esterilizacao-
de-moradora-de-rua-nao-e-caso-isolado-dizem-entidades, Acesso em: 27 de agosto de 2018.
482 ‘’Quase um terço das pardas e negras não conseguiram atendimento no primeiro estabelecimento
pro- curado e no parto vaginal receberam menos anestesia.’’ em LEAL, M., GAMA, S., CUNHA,
C. Desigualdades raciais, sociodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto, 1999-2001, in
Revista de Saúde Pública: FSP- USP, P. 106.

220
Violência Obstétrica em Debate

passado também recente de esterilização compulsória como estratégia racista


de controle populacional. 483É falar sobre a prisão e morte de mulheres negras
brasileiras em decorrência da criminalização do aborto484. É pautar devida-
mente as violações contra Alyne da Silva Pimentel. 485É cindir o discurso de
autoridades públicas que declaram que as mães faveladas são “uma fábrica de
produzir marginais”. É não esquecer de Anarcha, Lucy e Betsy, feitas de cobaia
pelo já referido pai da ginecologia. É fazer viver a memória das Iyás, mães an-
cestrais que pariram no ventre dos navios, oceano sem fim.
As mães pretas não suportam toda dor, não são mais resistentes a dor, e
tampouco carregam o mundo nas costas e de nada reclamam. A imagem de
resistência desumana das mães pretas que habita o imaginário social das insti-
tuições - fundadas a partir dos privilégios da branquitude e servindo secular-
mente à justificação da escravidão - marca os corpos negros como descartáveis
e produz visceralmente “o vazio, a ausência, a fala silenciada, a dor causada pelo
Racismo. E essa Dor é preta’’. 486Dororidade: ‘’Foi-se a Abolição Inconclusa, e a
Carne Preta ainda continua sendo a mais barata do mercado’’. 487
Perpetua-se a institucionalização das práticas obstétricas racistas. Para
uma análise que resgate a memória e as verdadeiras disputas das narrativas
negras para a humanização do parto, é preciso disputar o conceito em debate
percebendo criticamente os componentes que o constituem. É preciso des-
pertar o olhar crítico e racialmente informado sobre a consciência forjada na
constituição e manutenção das instituições brasileiras, reconhecendo a pro-
dução necropolítica da colonialidade contemporânea.

483 DAVIS, A. Mulheres, raça e classe; São Paulo: Boitempo, 2016., cap. 11.
484 Para maiores informações ver o discurso da Defensora Pública Lívia Miranda Muller Drummond
Casseres na audiência pública para debater a legalização do aborto realizada entre os dias 03 e 06
de agosto de 2018 no STF e ‘’Entre a morte e a prisão quem são as mulheres criminalizadas pela
prática de aborto no Rio de Janeiro’’, levantamento e estudo realizado pela Defensoria Pública do
Estado do Rio de Janeiro em 2018. CASSERES, L. Discurso na audiência pública para o debate sobre
a legalização do aborto até a 12 semana. STF, 06 de agosto de 2018.
485 CEDAW. Alyne da Silva Pimentel Teixeira (deceased) v. Brazil. CEDAW/C/49/D/17/2008.
486 PIEDADE, V. Dororidade; São Paulo: Noz, 2017, p. 14, 16, 47.
487 PIEDADE, V. Dororidade; São Paulo: Noz, 2017, p. 14, 16, 47.

221
Violência Obstétrica em Debate

3. Racismo Institucional

Só o meu corpo me pertence, mas o meu corpo tem que me pertencer


para eu poder morar bem, vestir bem, andar bem, comer bem, parir
bem ou não parir, entendeu? (Nossos passos, p68)

O racismo institucional se constitui como ‘’a falha coletiva de uma colo-


nização em prover um serviço apropriado e profissional às pessoas por causa
de sua cor, cultura ou origem étnica’’ .488 Logo, produz tratamentos e conse-
quências precarizadas aos corpos e existências subalternizados, a partir de
estruturas sistêmicas públicas e privadas fundadas e respaldadas pelo Estado.
Ultrapassa, desse modo, a dimensão individual e interpessoal, sobrepondo a
indisponibilidade e o inalcance material das políticas públicas à discriciona-
riedade do acesso à informação e controle social. À vista disso, a discussão so-
bre violência obstétrica contra as mulheres negras é inerente ao enfrentamen-
to contra o racismo institucional. Mais ainda, a violência obstétrica contra as
mulheres negras é ferramenta funcional ao modus operandi racista institucio-
nal que legitima políticas de vida e morte.
Em 2011, a pesquisa “Nascer no Brasil: Pesquisa Nacional sobre Parto
e Nascimento” apontou dados que revelavam a disparidade nas práticas de
violência obstétrica no Brasil:

488 CARMICHAEL, S.; HAMILTON, C. Black power:the politics of liberation in America. New York:
Vintage, 1967, p. 4

222
Violência Obstétrica em Debate

Tabela 2

Indicadores de atenção pré-natal e obstétrica: comparação entre mulhe-


res brancas e pretas antes e após pareamento pelo escore de propensão.

Branca, antes
Preta Branca, após
do pareamento
(%) pareamento pelo escore
pelo escore OR (IC95%)
de propensão (%)
[n = propensão (%)
1.840] [n = 4.849]
[n = 8.077]

Adequação do pré-
67,9 57,7 58,7 1,62 (1,38-1,91)
natal Inadequado

Parcialmente
19,6 23,6 23,8 1,16 (0,96-1,40)
adequado

Adequado 12,4 18,7 17,5 1,00

Orientação
sobre início do
trabalho de parto 53,9 54,0 48,9 1,22 (1,09-1,36)

Não

Sim 46,1 46,0 51,1 1,00

Orientação sobre
complicações
na gravidez 41,4 33,8 36,9 1,21 (1,08-1,35)

Não

Sim 58,6 66,2 63,1 1,00

Vinculação à
maternidade 45,3 37,3 40,2 1,23 (1,10-1,37)
Não

Sim 54,7 62,7 59,8 1,00

Peregrinação
para o parto 82,5 87,8 86,3 1,00
Não

223
Violência Obstétrica em Debate

Sim 17,5 12,2 13,7 1,33 (1,15-1,54)

Presença de
acompanhante
durante
hospitalização 33,8 18,9 23,7 1,67 (1,42-1,97)

Em nenhum
momento

Em algum
50,0 56,1 57,3 1,02 (0,88-1,19)
momento

Em todos os
16,2 25,0 19,0 1,00
momentos

Tipo de parto
53,9 39,4 43,2 1,00
Vaginal

Cesariana 46,2 60,6 56,8 0,65 (0,58-0,72)

Episiotomia *
58,5 50,5 51,2 1,00
Não

Sim 41,5 49,5 48,8 0,74 (0,64-0,87)

Anestesia local
para episiotomia * 10,7 8,5 8,0 1,49 (1,06-2,08)
Não

Sim, antes do corte 49,3 52,7 54,9 1,00

Sim, antes
40,0 38,8 37,1 1,20 (0,98-1,47)
dos pontos

Uso de ocitocina **
54,0 45,4 46,9 1,00
Não

Sim 46,0 54,6 53,1 0,75 (0,65-0,87)

Anestesia
peridural * 97,9 96,1 97,9 1,00
Não

Sim 2,1 3,9 2,1 0,98 (0,55-1,76)

Idade gestacional
2,4 2,8 2,7 0,93 (0,66-1,32)
Pré-termo precoce

224
Violência Obstétrica em Debate

Pré-termo tardio 8,1 8,4 8,2 1,03 (0,84-1,26)


Termo precoce 35,7 37,6 34,3 1,09 (0,97-1,22)

Termo completo 50,4 49,5 52,7 1,00

Pós-termo 3,4 1,6 2,0 1,72 (1,24-2,39)

Satisfação com
o atendimento
para o parto 46,5 53,5 49,9 1,00

Excelente

Bom 41,8 37,5 39,8 1,13 (0,98-1,30)

Regular/Ruim/
11,7 8,9 10,3 1,22 (0,97-1,52)
Péssimo

IC95%: intervalo de 95% de confiança; OR: odds ratio.


* Apenas para as mulheres que realizaram parto vaginal com
o total de 992 pretas e 2.094 brancas;
** Uso de ocitocina para acelerar o trabalho de parto. Apenas para mulheres
que entraram em trabalho de parto com total de
1.148 pretas e 2.513 brancas.

Tabela 1489- Indicadores de atenção pré-natal e obstétrica: comparação en-


tre mulheres brancas e pretas antes e após pareamento pelo escore de propensão.

489 LEAL, MC., GAMA, S., PEREIRA, AP., PACHECO, V. CARMO, C., SANTOS, R., A cor da dor:
iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil, in Cad. Saúde Pública, v. 33, 2017, p. 8.

225
Violência Obstétrica em Debate

Tabela 3

Indicadores de atenção pré-natal e obstétrica: comparação entre mulhe-


res pardas e brancas antes e após pareamento pelo escore de propensão.

Branca,
antes do
pareamento Branca, após
pelo pareamento
Parda (%)
pelo escore de OR (IC95%)
[n = 6.659] escore propensão (%)
propensão
(%) [n = 4.849]

[n = 8.077]

Adequação do
pré-natal 65,2 57,7 60,0 1,24 (1,12-1,36)
Inadequado

Parcialmente
19,4 23,6 22,6 0,98 (0,87-1,09)
adequado

Adequado 15,4 18,7 17,5 1,00

Orientação
sobre início do
trabalho de parto 47,0 54,0 45,5 1,06 (0,99-1,14)

Não

Sim 53,0 46,0 54,5 1,00

Orientação sobre
complicações
na gravidez 35,4 33,8 34,4 1,04 (0,97-1,12)

Não

Sim 64,6 66,2 65,6 1,00

Vinculação à
maternidade 38,2 37,3 37,3 1,04 (0,97-1,11)
Não

Sim 61,8 62,7 62,7 1,00

226
Violência Obstétrica em Debate

Peregrinação
para o parto 87,8 87,8 88,4 1,00
Não

Sim 12,2 12,2 11,6 1,07 (0,96-1,18)

Presença de
acompanhante
durante
hospitalização 24,1 18,9 20,0 1,41 (1,27-1,57)

Em nenhum
momento

Em algum
55,6 56,1 56,3 1,16 (1,06-1,26)
momento

Em todos os
20,3 25,0 23,7 1,00
momentos

Tipo de parto
41,7 39,4 37,2 1,00
Vaginal

Cesariana 58,3 60,6 62,8 0,83 (0,77-0,89)

Episiotomia *
58,5 50,5 49,7 1,00
Não

Sim 41,5 49,5 50,3 0,70 (0,63-0,78)

Anestesia local
para episiotomia * 9,4 8,5 8,6 1,18 (0,92-1,50)
Não

Sim, antes do corte 50,9 52,7 55,0 1,00

Sim, antes
39,7 38,8 36,4 1,18 (1,02-1,36)
dos pontos

Uso de ocitocina **
53,5 45,4 47,1 1,00
Não

Sim 46,5 54,6 52,9 0,77 (0,69-0,86)

227
Violência Obstétrica em Debate

Anestesia
peridural * 97,2 96,1 96,5 1,00
Não

Sim 2,8 3,9 3,5 1,29 (0,92-1,80)

Idade gestacional
2,7 2,8 2,5 1,06 (0,86-1,32)
Pré-termo precoce

Pré-termo tardio 7,5 8,4 8,1 0,92 (0,81-1,05)

Termo precoce 36,7 37,6 37,0 0,99 (0,92-1,07)

Termo completo 50,8 49,5 50,8 1,00

Pós-termo 2,2 1,6 1,6 1,42 (1,10-1,83)

Satisfação com
o atendimento
para o parto 50,0 53,5 53,0 1,00

Excelente

Bom 40,2 37,5 38,1 1,12 (1,03-1,22)

Regular/Ruim/
9,8 8,9 9,0 1,15 (0,99-1,33)
Péssimo

IC95%: intervalo de 95% de confiança; OR: odds ratio.


* Apenas para as mulheres que realizaram parto vaginal com o
total de 2.479 pardas e 2.775 brancas;
** Uso de ocitocina para acelerar o trabalho de parto. Apenas para mulheres que
entraram em trabalho de parto com total 3.019 pardas e 3.276 brancas.

Tabela 2490 - Indicadores de atenção pré-natal e obstétrica: comparação en-


tre mulheres pardas e brancas antes e após pareamento pelo escore de propensão.
É importante ressaltar que, de acordo com o levantamento, 70% das mu-
lheres negras não têm acompanhamento pré-natal adequado, 80% não contam
com a possibilidade da presença de um acompanhante na integralidade do pro-
cesso de parto, e mais da metade das mulheres negras não recebem orienta-
ção no período gestacional e puerperal. Também é imprescindível destacar que
97,9% das mulheres pretas não recebem anestesia peridural. Ainda devem ser
evidenciados os dados da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro, que

490 Ibdem, p. 8.

228
Violência Obstétrica em Debate

entre 2000 e 2013 constatou disparidades acentuadas nos dados sobre a morta-
lidade materna segundo raça/cor491. Os dados atestam o racismo institucional
como gênero do qual a violência obstétrica é espécie. A institucionalização do
racismo promove a explícita desconsideração das humanidades das mulheres
negras, imprimindo às suas gestações os estigmas forjados historicamente.
Observa-se também que a maior parte das usuárias do SUS são as mulheres
negras. O sucateamento do sistema, a insuficiência operacional e a morosidade
para a prestação de serviços de saúde é mais um exemplo da inadequação do Es-
tado no que se refere à obrigatoriedade de adoção de postura positiva frente ao
direito à saúde. O Estado mostra-se violador através de atitudes comissivas que
optam pela ausência de planejamento, execução, fiscalização e continuidade às
políticas públicas direcionada à assistência humanizadas das mulheres negras.
Está engendrada a estrutura contemporânea institucional que regula e
condiciona legitimamente práticas racistas, naturalizando os meios de efeti-
vação da violência: ‘’Apesar da intensidade e profundidade de seus efeitos de-
letérios, o racismo produz a naturalização das iniquidades produzidas, o que
ajuda a explicar a forma como muitos o descreve, como sutil ou invisível’’492.
Além disso, o racismo institucional fomenta a desconsideração de disputas e
a eufemização de tensões centrais, promovendo o deslocamento higienista do
debate. Através das dinâmicas operacionalizadas e da escolha de termos limi-
tados, o racismo institucional funda pactos que excluem, pela morte e pelos
processos de morte em vida, as consideradas não (plenamente) humanas.
Nas palavras de Abdias do Nascimento: “é este racismo coletivo, este
racismo institucionalizado que dá origem a todo tipo de violência contra um

491 WERNECK, J. Mortalidade Materna e o Impacto sobre as Mulheres Negras. Audiência pública sobre
mortalidade materna na vida de mulheres negras. Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados
e a Subcomissão Especial das Políticas de Assistência Social e Saúde da População Negra,
Procuradoria da Mulher do Senado, 2015. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cssf/audiencias-publicas/audiencia-publica-2015/
aud-09-06-subpasne/apresentacao-6. Acesso em 28 de agosto de 2018.
492 WERNECK, J. Mortalidade Materna e o Impacto sobre as Mulheres Negras. Audiência pública sobre
mortalidade materna na vida de mulheres negras. Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados
e a Subcomissão Especial das Políticas de Assistência Social e Saúde da População Negra,
Procuradoria da Mulher do Senado, 2015. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cssf/audiencias-publicas/audiencia-publica-2015/
aud-09-06-subpasne/apresentacao-6. Acesso em 28 de agosto de 2018.

229
Violência Obstétrica em Debate

povo inteiro”.493 É essa operacionalização sistêmica do racismo que promove o


extermínio físico e cultural dos negros. Dessa forma, mecanismos de norma-
lização da violência são legitimados pela estrutura racista social, articulando
políticas públicas para gerência da vida e da morte dos corpos que excedem a
funcionalidade e serventia neocolonialista. Corpos que, paradoxalmente, são
explorados e expurgados como sustentáculo primeiro das engrenagens que os
oprimem. Corpos negros que, uma vez objetificados, tiveram gravados em seu
passado ancestral, no presente eliminatório e no futuro sem perspectivas de
sobrevivência a marca diaspórica, que inclui a desumanização e a permissivi-
dade de aniquilamento irrestrito.
[A raça é] o meio pelo qual certas formas de subvida são produzidas e
institucionalizadas, a indiferença e o abandono justificados, a parte hu-
mana no outro violada, velada, ocultada e certas formas de encarcera-
mento e até mesmo de abate toleradas. Abordando o racismo em parti-
cular e sua inscrição nos mecanismos do Estado e do poder, não foi Mi-
chel Foucault quem disse a respeito disso que não havia funcionamento
moderno do Estado que, “em certo momento, em certo limite e em certas
condições, não passe pelo racismo? A raça, o racismo, explicou, “é a con-
dição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização”.
E conclui: “A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde
que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo494

Assim, os dispositivos de morte continuam sendo verificados. No en-


tanto, a produção da morte e a precarização da vida é reinventada, transmu-
tada em meios civilizados de matar, justificados racionalmente. 495Massacre e
burocracia se interpelam, estendendo e remodelando políticas de “subjuga-
ção do corpo, regulamentações médicas, darwinismo social, eugenia, teorias
médico-legais sobre hereditariedade, degeneração e raça”, 496definindo quem
é, ou não, descartável.

493 NASCIMENTO. A. O genocídio do negro brasileiro processo de um racismo mascarado; Rio de


Janeiro: Paz e Terra S/A, 1978, p. 134.
494 MBEMBE, A. A crítica da razão negra. Traduzido por Sebastião Nascimento; São Paulo: n-1 edições,
2018a, p. 70.
495 MBEMBE, A. A crítica da razão negra. Traduzido por Sebastião Nascimento; São Paulo: n-1 edições,
2018a, p. 70.
496 MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Traduzido
por Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018b, p. 32, 33.

230
Violência Obstétrica em Debate

O racismo institucional contra a mulher negra que sofre violência obsté-


trica é, dessa maneira, peça da máquina social engendrada sistematicamente
para o extermínio da população negra. Ao regular as possibilidades de morte
das mulheres negras - inseridas em uma estrutura secular de legitimação ins-
titucional da violência - o Estado interrompe vidas e não permite a gestação e
continuidade da existência física e identitária negra.
O sustento dos privilégios da branquitude é pautado pelo vilipêndio das
mulheres negras. As políticas públicas que não se adequam ao mínimo da ges-
tão à saúde, respaldadas constantemente pela fundamentação de insuficiência
econômica, planejadas para operar nos moldes como se apresentam fatica-
mente, carregam em si a constante exceção que, ao fazer viver, deixa morrer.
O racismo institucional contra a mulher negra que sofre violência obstétrica
é, dessa maneira, peça da máquina social engendrada sistematicamente para
o extermínio da população negra.
“Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração”497
Nem todas as mães vivem.

Considerações finais
O debate sobre a humanização do parto ainda hoje é centralizado nos pri-
vilégios inerentes à branquitude. A mulher universal branca - não racializada
- representa a zona do ser e define o padrão de normalização nas atuais disputas
contra a violência obstétrica. Logo, desafiar os lugares sociais e as estruturas
de poder próprios da estrutura colonial embutidos nessa luta, questionando os
privilégios não enunciados, silenciados e negados é retirar a discussão de uma
lógica identitária e pôr em evidência as múltiplas formas em que a violência de
Estado é mobilizada para perpetuar o secular extermínio do povo negro.
É preciso romper com o determinismo histórico e (re)fundar o conceito
em disputa, compreendendo os processos de não reconhecimento e apaga-
mento, normalizados pelo racismo. Deslocar a memória tramada e analisar
a história que não é enunciada faz emergir as perspectivas das humanidades
desconsideradas. A partir dessas narrativas, é apresentada a possibilidade de

497 ASSIS. M. Pai contra Mãe. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/


DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1951 . Acesso em: 28 de agosto de 2018.

231
Violência Obstétrica em Debate

um corte interseccional de raça, gênero, classe, sexualidade e deficiência na


luta contra a violência obstétrica. Ademais, pressupõe o reconhecimento das
mães pretas a partir da sua própria perspectiva, afastando a lógica assistencia-
lista inclusiva de contenção das demandas das mulheres negras no domínio
da disputa já existente.
Os dados sobre a violência obstétrica atestam a institucionalização do racis-
mo, que reproduz e reinventa nos processos gestacionais e puerperais das mulhe-
res negras os estigmas forjados historicamente. A precarização da vida transmu-
ta-se através de meio civilizados de matar e sustenta os privilégios da branquitude
a partir das violações contra as mulheres negras. O racismo institucional contra a
mulher negra que sofre violência obstétrica é, dessa forma, desvelado como uma
das ferramentas para a contínua produção necropolítica do Estado.
Portanto, é preciso romper a reprodução das hierarquias desumaniza-
doras. As ações desenvolvidas contra a violência obstétrica devem ser capazes
de tensionar aspectos fundamentais para o enfrentamento ao racismo sistê-
mico e aproximar os objetivos institucionais das necessidades das mulheres
negras498 reivindicando um projeto de humanização da assistência ao parto
desde uma perspectiva antirracista.

498 WERNECK, J. Mortalidade Materna e o Impacto sobre as Mulheres Negras. Audiência pública sobre
mortalidade materna na vida de mulheres negras. Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados
e a Subcomissão Especial das Políticas de Assistência Social e Saúde da População Negra,
Procuradoria da Mulher do Senado, 2015. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cssf/audiencias-publicas/audiencia-publica-2015/
aud-09-06-subpasne/apresentacao-6. Acesso em 28 de agosto de 2018.

232
Maternidade e violência atrás das grades

Maíra Fernandes
Mariana Paganote Dornellas

Introdução
O progressivo interesse nos temas relacionados à violência obstétrica nos
faz refletir sobre as diversas formas de violência a que as mulheres ainda são
submetidas, e que sequer são reconhecidas como tais, diante de sua natura-
lização. A discussão sobre a violência obstétrica traz, então, um desconforto
generalizado, de muitas vezes a mulher se descobrir como vítima de violência,
em um processo não raro doloroso, posto que relacionado a um momento tão
pleno de vulnerabilidade e de expectativas, que é o momento do parto. Nossa
contribuição ao debate parte de uma perspectiva pouco usual, que é a de ana-
lisar as condições de maternidade no cárcere, um espaço que se contrapõe aos
cuidados básicos que se espera nessa fase da vida.
Se para as mulheres “livres” a violência obstétrica se manifesta de di-
versas formas preocupantes, para as mulheres em privação de liberdade essas
violações são ainda mais intensas, posto que legitimadas pela posição da mu-
lher de infratora da lei, e potencializada pela estrutura de um poder punitivo
que não atende às necessidades específicas de mulheres. Dessa forma, pensar
o grande aumento do encarceramento feminino no Brasil requer pensar em
todas as demandas de ordem física e social que atravessam a experiência da
mulher no sistema penitenciário, inclusive as relacionadas à maternidade, e
que são invisibilizadas e ignoradas. Essas questões evidenciam o fracasso de
uma política criminal repressiva, que, na tentativa vã de solucionar problemas
sociais por meio do encarceramento, só promove e reforça a violência já viven-
ciada pelas mulheres em outros âmbitos da vida social.

1. Perfil da mulher encarcerada no Brasil


Invisíveis e silenciadas, as mulheres presas carregam o preconceito e o
estigma em todas as suas formas: são em sua maioria jovens (50% tem entre 18

233
Violência Obstétrica em Debate

e 29 anos), negras (62%), com baixa escolaridade (50% sequer concluiu o en-
sino fundamental), solteiras (62%) e acusadas de tráfico de drogas: 62% estão
encarceradas por esse crime, que prende 26% dos homens segundo o relatório
publicado pelo Departamento Penitenciário Nacional em maio de 2018, refe-
rente a dados coletados até junho de 2016499.
Tal como no mercado formal de trabalho, também os chefes do tráfico de
drogas destinam às mulheres as posições mais subalternas e menos remunera-
das, principalmente no transporte e revenda das substâncias, não possuindo
grande participação no mercado de drogas. São raras as que chegam a ocupar
postos mais altos nessa hierarquia, de modo que a maioria está em posição
mais vulnerável à repressão policial e portanto mais suscetível ao encarce-
ramento. Nessa seara, a feminização da pobreza e a seletividade do sistema
penal mostram seus efeitos mais perversos, como inferido por Zaccone:
Isso explica, por exemplo, o aumento do número de mulheres e crian-
ças envolvidas com o narcotráfico. Para ser “sacoleiro” de drogas não
é preciso portar nenhuma arma e sequer integrar alguma dita organi-
zação criminosa. Basta ter crédito junto aos fornecedores. Autônomo
no comércio ilegal, o “estica” é presa fácil, uma vez que não apresenta
nenhuma resistência às ordens de prisão e passa a participar do negó-
cio ilegal oferecendo a sua própria liberdade como caução. Desprovido
do capital necessário para fazer parte como acionista do negócio ilícito,
o “estica” se transforma em revendedor comissionado no comércio de
drogas, oferecendo o único bem de valor que lhe resta, qual seja, sua
própria liberdade de ir e vir. 500

Por serem mulheres, também no universo prisional pagam caro por


ocupar um lugar predominantemente masculino – elas somam 42.355 pre-
sas, num total de 726.712 pessoas privadas de liberdade no Brasil. Contudo,
o Infopen Mulher 2016 mostra que a população carcerária feminina aumen-
tou em 656% no período de 2000 a 2016, enquanto o crescimento masculino,

499 BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de


Informações Penitenciárias - INFOPEN Mulheres 2016. 2ª edição. Brasília, maio de 2018. Disponível
em: https://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-
no-brasil.http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres . Acesso em 18/05/2018
500 D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone. Acionistas do nada: quem são os traficantes de droga. 3ª edição.
Rio de Janeiro: Revan, 2011.

234
Violência Obstétrica em Debate

no mesmo espaço de tempo, foi de 293%, dados que não nos orgulham501. O
grande aumento do número de mulheres presas, principalmente devido às
suas atividades no comércio de substâncias ilícitas, é uma realidade que preci-
samos compreender e enfrentar.
A intensificação do encarceramento feminino traz à tona diversas ques-
tões, relativas à posição que as mulheres ainda ocupam no seio de suas famílias.
Ressalvada a baixa representatividade da amostra coletada, o último relatório
apontou que, dentre as mulheres presas, 74% são mães, enquanto apenas 47%
dos homens presos têm filhos. Ainda segundo esse relatório, atualmente há 536
gestantes e 350 lactantes presas no país. Das gestantes, 50% estão em unidades
que não possuem cela adequada à sua condição, e apenas 14% das unidades fe-
mininas ou mistas têm berçário ou centro de referência materno-infantil, para
que as mulheres permaneçam com os seus bebês logo após o nascimento.
Diante desses números, podemos perceber que o sistema penitenciário
permanece construído por homens, para homens, e apenas (mal) adaptado
para mulheres. Não há uma perspectiva de gênero, o que torna a privação de
liberdade ainda mais cruel para as mulheres, que em muitos casos recorrem
ao tráfico justamente para garantir a sua subsistência e a de seus filhos, que
sem dúvida são os maiores afetados pelo encarceramento de suas mães.
Ainda assim, um número surpreendente de mulheres é presa antes mesmo
do julgamento: de acordo com o Infopen Mulher 2016, 45% das encarceradas
não possuem condenação, sendo impedidas de aguardar o resultado do pro-
cesso em liberdade, o que deveria ser a regra, e não a exceção, se o princípio da
presunção de inocência, previsto em nossa Constituição Federal, fosse devida-
mente observado. Além disso, embora exista previsão expressa de substituição
da prisão preventiva por prisão domiciliar no artigo 318 do Código de Processo
Penal502, para grávidas, lactantes ou mulheres com filhos delas dependentes, o
que se observa, rotineiramente, são essas mulheres sendo compelidas a perma-

501 BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Op. Cit.


502 Art. 318 do CPP. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for:
(Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). III - imprescindível aos cuidados especiais de pessoa
menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011). IV  -
gestante; (Redação dada pela Lei nº 13.257, de 2016). V - mulher com filho de até 12 (doze) anos de
idade incompletos; (Incluído pela Lei nº 13.257, de 2016)

235
Violência Obstétrica em Debate

necer presas por todo o processo, pelo qual, ao final – meses ou anos depois –,
podem ser absolvidas ou condenadas a uma pena não privativa de liberdade.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus coletivo
nº 143641/SP503, determinou, com validade para todo o território nacional,
que seja substituída a prisão preventiva por domiciliar caso as mulheres sejam
gestantes ou mães de crianças de até 12 anos, ou de pessoas com deficiência.
Ocorre que esta louvável decisão não parece estar sendo cumprida, segundo
alerta da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef)504.
Desse modo, podemos perceber que o sistema de justiça criminal não
atinge a todas as mulheres de forma equânime, ele é seletivo, direcionado
principalmente às mulheres jovens, negras, com baixa escolaridade, mães,
presas principalmente por crimes relacionados ao tráfico de drogas, em que
ocupam posições de menor prestígio e maior vulnerabilidade. O número de
mulheres encarceradas está aumentando em ritmo alarmante, e não vem sen-
do acompanhado de políticas públicas que atendam às necessidades dessas
mulheres, com todas as suas peculiaridades, no sistema prisional. Essa ques-
tão é particularmente crítica quando tratamos das mulheres que vivenciam
a maternidade na prisão, que convivem com a condição de gravidez, parto e
puerpério em um ambiente absolutamente inadequado às demandas físicas e
psicológicas desse momento, e que é muitas vezes hostil e degradante.

2. Grávidas e puérperas encarceradas no Rio de Janeiro


Entre junho e agosto de 2015, a pesquisa “Mulheres e Crianças Encar-
ceradas: Um Estudo Jurídico-Social sobre a Experiência da Maternidade no
Sistema Prisional do Rio de Janeiro” entrevistou 41 mulheres nos dois espaços
destinados a gestantes e puérperas no Complexo Penitenciário do Rio de Ja-

503 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 143641/SP. Impetrante: Defensoria Pública da
União. Coatores: juízes e juízas das Varas Criminais estaduais, Tribunais dos estados e do Distrito
Federal e territórios, juízes e juízas federais com competência criminal, Tribunais Regionais
Federais e Superior Tribunal de Justiça. Relator Ministro Ricardo Lewandowski. Decisão proferida
em 20 de fevereiro de 2018.
504 “Defensores Públicos pedem cumprimento de medida que beneficia grávidas e mães presidiárias”.
Anadef alerta que decisão do STF vem sendo descumprida em vários estados do País. Disponível em:
http://www.aguaboanews.com.br/noticias/exibir.asp?id=13612&noticia=defensores_publicos_pedem_
cumprimento_de_medida_que_beneficia_gravidas_e_maes_presidiarias. Acesso em 02/05/2018.

236
Violência Obstétrica em Debate

neiro: a Unidade Talavera Bruce, na qual havia 24 grávidas e a Unidade Mater-


no Infantil, na qual 17 mulheres estavam com seus bebês recém-nascidos505.
O perfil das pesquisadas diz muito sobre o encarceramento feminino
em nosso estado, especificamente sobre a realidade das mulheres que atra-
vessam o período de gestação e puerpério no cárcere: elas são predominan-
temente jovens (78% tem até 27 anos), negras/pardas (77%), solteiras (82%), e
não recebem visitas na prisão (65,9%). A maioria (75,6%) não possui o ensi-
no fundamental completo e 9,8% afirmaram não saber ler, nem escrever. Os
principais motivos alegados para terem abandonado os estudos foram: porque
não se sentiam mais motivadas a estudar na época (33,3%), porque engravi-
daram (25,6), porque se casaram (7,7), porque tiveram que cuidar da casa/
filhos (7,7%) ou porque vivenciaram problemas familiares (7,7%). Apenas duas
concluíram o ensino médio.
Ao contrário do que se pode imaginar, metade delas estava trabalhan-
do na época em que foi presa, em empregos precarizados (85% sem carteira
assinada) e grande parte delas era responsável pelo sustento do lar: 19% inte-
gralmente e 22% em parte. Engana-se quem pensa que a mulher recorre ao
crime por amor, a pedido de um companheiro. Esses casos até de fato existem,
mas a grande maioria das entrevistadas afirmou que a razão pela qual veio a
delinquir se relaciona a dificuldades financeiras. Ainda mais considerando o
contexto em que vivem, no qual a baixa escolaridade, associada a fatores de
gênero e raça e à necessidade de cuidar dos filhos, diminuem suas possibili-
dade de inserção no mercado de trabalho formal, o que contribui para que o
tráfico de drogas se apresente como uma estratégia de sobrevivência.
Dois dados da pesquisa, particularmente, impressionam: a maioria era ré
primária (70%) e estava presa provisoriamente (73,2%). Isso mostra a absolu-
ta desnecessidade da prisão cautelar, especialmente considerando-se a situação
das entrevistadas – grávidas ou com bebês recém-nascidos. A manutenção do
encarceramento de mulheres que sequer foram julgadas, e que não constituem
nenhum perigo efetivo à ordem pública, já é suficientemente condenável, e mais
ainda se nos atentarmos para as condições particulares em que se encontram,

505 BOITEUX, Luciana, FERNANDES, Maíra, PANCIERI, Aline e CHERNICARO, Luciana. Mulheres
e Crianças Encarceradas: Um Estudo Jurídico-Social sobre a Experiência da Maternidade no Sistema
Prisional do Rio De Janeiro. LADIH, UFRJ. Disponível em: http://fileserver.idpc.net/library/M--es-
encarceradas-UFRJ.pdf. Acesso em 02.05.2018.

237
Violência Obstétrica em Debate

em que a prisão afeta não apenas as mulheres em si, mas de forma despropor-
cional e inaceitável, seus filhos, quer estejam no seu ventre, quer sejam seus de-
pendentes. Impedir que a mulher viva sua gestação em um ambiente digno,
e sequestra-la da convivência com seus filhos desnecessariamente, ainda que
existam leis e, mais recentemente, jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
em sentido oposto, é não apenas contrário ao direito, é perverso.
Importa notar que a maioria delas declarou possuir dois filhos (31,7%),
ou três filhos (26,8%) e afirmou que não teve a oportunidade de entrar em
contato com a sua família no momento da prisão. Essa situação importa na
violação à Constituição Federal (artigo 5º, incisos LXII e LXIII506) e, não bas-
tasse, à normas internacionais firmadas pelo Brasil. A segunda recomendação
das Regras de Bangkok determina que o procedimento de ingresso de mulhe-
res no cárcere deve receber especial atenção, considerando a vulnerabilidade
delas nesse momento, e que as mulheres responsáveis pela guarda de crianças
devem ter a oportunidade de tomar as providências necessárias em relação a
elas, inclusive prevendo a suspensão da medida privativa de liberdade por um
período razoável, considerando o melhor interesse das crianças.507
Esta previsão já foi incorporada ao direito brasileiro por meio do Marco
Legal da Primeira Infância (Lei 13.257/16), que alterou o Código de Processo
Penal, incluindo disposições que determinam que a autoridade policial inda-
gue à pessoa presa sobre a existência de filhos, respectivas idades e se possuem
alguma deficiência, bem como o nome e o contato de eventual responsável
pelos cuidados deles. Tais informações devem ser colhidas pela polícia, seja no
momento em que tiver conhecimento da prática da infração penal, conforme
o inciso X do artigo 6º; no interrogatório, de acordo com o artigo 185, § 10; e
também na lavratura do auto de prisão em flagrante, segundo o art. 304, § 4o
todos do referido diploma legal. Em que pese a previsão legal, contudo, essa
medida não vem sendo utilizada para assegurar o bem estar da criança quan-

506 Constituição Federal, Artigo 5º, LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão
comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada;
LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe
assegurada a assistência da família e de advogado.
507 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Regras de Bangkok: Regras das Nações Unidas para
o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras.
Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/03/27fa43cd9998bf5b43aa2cb3e
0f53c44.pdf. Acesso em 02.05.2018.

238
Violência Obstétrica em Debate

do do momento de prisão de sua mãe, mas apenas como um mero registro


burocrático que não produz grandes efeitos, tendo em vista o imenso número
de mulheres presas cautelarmente que são mães.
“Como está meu filho?”. Esta é a pergunta que se repete na voz das deten-
tas. Nada é capaz de aplacar a angústia de uma separação que não foi determi-
nada pelo juiz, mas é o efeito prático da decisão judicial, uma das consequências
mais dramáticas do encarceramento feminino, que não encontra simetria no
masculino. Em geral, quando o homem é encarcerado, sua família se mantém
unida, principalmente pelos esforços de sua companheira, que se desdobra para
realizar as visitas e contribui não só para a manutenção dos laços familiares,
como para a própria subsistência do apenado, com a entrega de itens de primei-
ra necessidade, como alimentos, remédios e material de higiene.
O mesmo não se verifica com as mulheres, que são abandonadas após a
prisão, pois com a sua ausência há em geral um deslocamento do núcleo fami-
liar, com efeitos imensuráveis não só para a presa, mas principalmente para seus
filhos. Privadas abruptamente do convívio materno, as crianças ficam sob os
cuidados de sua família extensa, sendo muitas vezes separadas dos irmãos, cor-
rendo o risco até mesmo de serem desligadas definitivamente de seus parentes.
Pesquisas sobre o tema revelam os diversos efeitos negativos do encarceramento
dos genitores no comportamento e no rendimento escolar das crianças, e ex-
põe a maior vulnerabilidade dessas crianças a abusos sexuais e ao envolvimento
com o sistema de justiça criminal, contribuindo para um ciclo de abuso e negli-
gência que perpassa gerações508. Nos casos em que a presa possui uma mãe, irmã
ou tia, essa mulher fica responsável pelas crianças, durante todo o cumprimento
da pena. Ocorre que, na maior parte das vezes, essa familiar também possui
seus próprios filhos, seu trabalho, sua vida, o que lhe impede de dar assistência
à mulher encarcerada e manter frequentes seus laços afetivos.
Drauzio Varella dedica um capítulo de seu livro “Prisioneiras” especial-
mente para o tema “Os filhos”, e sentencia:
A separação dos filhos é um martírio à parte. Privado da liberdade,
resta ao homem o consolo de que a mãe de seus filhos cuidará deles.
Poderão lhes faltar recursos materiais, mas não serão abandonados. A

508 BRAMAN, Donald. Families and incarceration. In: Mauer, Marc; Chesney-Lind, Meda. Invisible
punishment: the collateral consequences of mass imprisonment. New York: The New Press, 2002. p. 127.

239
Violência Obstétrica em Debate

mulher, ao contrário, sabe que é insubstituível e que a perda do conví-


vio com as crianças, ainda que temporária, será irreparável, porque se
ressentirão da ausência de cuidados maternos, serão maltratadas por
familiares e estranhos, poderão enveredar pelo caminho das drogas e
do crime, e ela não os verá crescer, a dor mais pungente.
Mães de muitos filhos, como é o caso da maioria, são forçadas a acei-
tar a solução de vê-los espalhados por casas de parentes ou vizinhos e,
na falta de ambos, em instituições públicas sob a responsabilidade do
Conselho Tutelar, condições em que podem passar anos sem vê-los ou
até perdê-los para sempre.
Nem sei quantas mulheres atendi em estado de choque pela perda de
um filho adolescente, morto em troca de tiros com a polícia ou assassi-
nado por desentendimentos na rotina do crime509.

Assim, a separação e ausência de informações sobre o destino dos filhos


pode ser considerada um incremento de punição para as mulheres presas.
Esse efeito do encarceramento feminino faz das unidades prisionais
verdadeiros  “cemitérios de mulheres vivas”, locais de saudade e solidão. A
pesquisa acima referida identificou que muitas sequer recebem visita, e entre
as que recebem , a maior parte é visitada pela mãe (50%), enquanto apenas
14,3% recebem visitas de marido/companheiro. Abandonadas à própria sorte,
as presas sonham com os mais elementares itens de higiene e limpeza, como
sabonetes, pasta de dentes e absorventes, raramente fornecidos pelo Estado, e
têm que se contentar com a péssima alimentação fornecida, que é sempre alvo
de reclamações, bem como com a escassez de medicamentos.
Assim, podemos observar que a situação das gestantes e puérperas no
sistema prisional é ainda mais crítica, não só em relação à vulnerabilidade
socioeconômica e ao alarmante número de mulheres presas sem condenação,
como também ao abandono a que são submetidas. A situação de seus filhos
também merece atenção, pelo afastamento que lhes é imposto, que causa
grande sofrimento às mulheres e diversos efeitos prejudiciais para o desenvol-
vimento das crianças.

509 VARELLA, Drauzio. Prisioneiras. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 45.

240
Violência Obstétrica em Debate

3. Hierarquia reprodutiva e violência obstétrica no cárcere


Inicialmente, é importante notar que a maternidade não é vivida de for-
ma equânime entre as mulheres, nem mesmo validada pela sociedade da mes-
ma forma. Em uma sociedade marcada por discriminação de gênero, raça,
sexualidade, classe, geração, há modelos ditos “ideais” de maternidade, mais
prestigiados e respeitados, enquanto outros são considerados ilegítimos ou
subalternos e, portanto, destinatários de preconceito e violação de direitos,
configurando uma verdadeira hierarquia reprodutiva510. Esse modelo exclu-
dente se sustenta nas teorias neomalthusianas, para as quais os culpados pela
pobreza são os pobres, que deveriam deixar de se reproduzir, pois assim estão
gerando “futuros bandidos”. Tais teorias já foram acertadamente refutadas
em muitas obras acadêmicas511, no entanto, na prática, permanecem sendo
reproduzidas em diversos espaços, como no ambiente prisional, em uma ma-
nifesta criminalização da pobreza512. Nesse contexto, as mulheres presas têm
a aceitação de sua maternidade ainda mais comprometida, posto que as po-
sições de mãe e transgressora se contrapõem no imaginário social, fazendo
com que estejam na posição inferior da pirâmide hierárquica da reprodução,
exercendo uma maternidade considerada subalterna513.
Por esse motivo, as mulheres presas são submetidas a todo tipo de vio-
lência antes, durante, e após o parto, que se manifestam de diversas formas,
seja com desrespeito, assédio moral, negligência, ou até mesmo violência física
ou verbal. Em princípio, cabe destacar que qualquer gravidez na prisão é sem-

510 MATTAR, Laura Davis; DINIZ, Carmen Simone Grilo. Hierarquias reprodutivas: maternidade e
desigualdades no exercício de direitos humanos pelas mulheres. Interface - Comunic., Saude, Educ.,
v.16, n.40, p.107-19, jan./mar. 2012. p. 115
511 Confira-se: ALVES, José Eustáquio Diniz - Demografia, democracia e direitos humanos. Rio de Janeiro
: Escola Nacional de Ciências Estatísticas, 2005 e ÁVILA, Maria Betânia. Modernidade e cidadania
reprodutiva, em Revista Estudos Feministas da UFSC, volume 1, número 2, Florianópolis, 1993.
Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16070>. Acesso em 22/05/2018.
512 Sérgio Cabral, quando ainda era governador do Estado do Rio de Janeiro, declarou: “Tem tudo a ver
com violência. Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e
Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica
de produzir marginal”. Confira-se em: http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-
5601,00-CABRAL+DEFENDE+ABORTO+CONTRA+VIOLENCIA+NO+RIO+DE+JANEIRO.
html. Acesso em 26/05/2018.
513 MATTAR, Laura Davis; DINIZ, Carmen Simone Grilo. Op.cit., p. 115

241
Violência Obstétrica em Debate

pre uma gravidez de risco. Não há estrutura mínima de saúde para as grávidas
no sistema, elas não recebem um adequado acompanhamento médico no pré-
-natal, o que faz com que existam casos de nascimento dos bebês com sequelas
de sífilis, por exemplo, que poderiam ter sido evitadas com diagnóstico e tra-
tamento precoce. As frequentes demoras no atendimento, por outro lado, po-
dem ser fatais tanto para as mulheres quanto para os bebês, visto que o parto
nessas circunstâncias é sempre arriscado, devido às condições insalubres do
local e às condições de vida das gestantes nesse espaço. E ainda, as mulheres
presas são culpabilizadas por trazer seus filhos ao mundo nessas péssimas
condições, por agentes penitenciários recrudescidos pela rotineira violência
nos presídios. Como é possível não se sensibilizar e ignorar os lamentos de
uma mulher em trabalho de parto?
Embora pareça impensável, foi o que ocorreu com Bárbara Oliveira de
Souza no Rio de Janeiro, no dia 11 de outubro de 2015. Enfurnada em uma
cela de isolamento aos nove meses de gravidez, começou a clamar por ajuda
ao entrar em trabalho de parto. Diante dos ouvidos moucos das agentes peni-
tenciárias, deu à luz sozinha na escuridão da cela. Acudida tardiamente pelas
funcionárias do Estado, Bárbara foi encaminhada ao hospital com sua filha
ainda presa pelo cordão umbilical. 514
Casos como este, de indiscutível desumanidade, não são isolados, ape-
nas não alcançam a grande imprensa e parecem normalizados pelo sistema
penitenciário. São frequentes os partos nas celas ou nas viaturas – estas só
chegam após uma súplica generalizada. Nos hospitais, as presas, em geral, dão
à luz ou amamentam algemadas – verdadeira tortura psicológica imposta por
agentes e acatada por profissionais de saúde, evidenciando que a pena imposta
às mulheres é muito superior à privação de liberdade, envolvendo todo tipo de
desconforto e humilhação possível.
Os relatos obtidos no curso da pesquisa acima referida515 ilustram o tipo
de violação e desrespeito aos direitos das mulheres que as gestantes enfren-

514 http://www.ebc.com.br/noticias/2015/10/presa-gravida-da-luz-em-solitaria-de-presidio-no-rio
Acesso em 18/05/2018
515 BOITEUX, Luciana, FERNANDES, Maíra, PANCIERI, Aline e CHERNICARO, Luciana. Mulheres
e Crianças Encarceradas: Um Estudo Jurídico-Social sobre a Experiência da Maternidade no Sistema
Prisional do Rio De Janeiro. LADIH, UFRJ. Disponível em: http://fileserver.idpc.net/library/M--es-
encarceradas-UFRJ.pdf. Acesso em 02/05/2018.

242
Violência Obstétrica em Debate

tam antes, durante e após o parto. As principais denúncias dizem respeito aos
agentes do Serviço de Operações Especiais (SOE) responsáveis pela escolta
na movimentação das presas ao hospital. Elas relatam o descaso com suas
demandas, a demora injustificada no atendimento, e o constrangimento pro-
posital que os agentes, homens, se esforçam para incutir nas presas, impondo
sua presença durante procedimentos médicos íntimos, o que em nosso enten-
dimento configura uma forma de assédio sexual, como exposto a seguir:
“Comecei a sentir dor desde a madrugada. Quando foi pela manhã eu
pedi para chamar a SOE porque eu ia ganhar o neném. Aí a guarda
pediu para eu aguardar um pouco porque ia ter a troca de plantão e às
9h iam me buscar. Nisso, me chamaram para eu ir ao ambulatório, pois
achavam que eu não tava sentindo tanta dor para o meu filho nascer.
Falaram que iam fazer o pedido da emergência novamente, e já eram
dez e pouco. Aí me mandaram para a cela de novo, quando foi 14:50
minha bolsa estourou e eu estava na cela. Só nessa hora que chamaram
o SOE e o SOE chegou eram 15h, 15:15 eu estava dentro do carro e ela
nasceu. A SOE disse: “Não fica fazendo força não que você vai arrumar
ideia”. Mas eu continuei fazendo porque vi que ia nascer. Quando o
SOE viu a cabecinha da minha filha ela segurou pra mim, mas eu tive a
minha filha praticamente sozinha.”
“O SOE dizia que o que a gente tinha na barriga era cachaça ou lom-
briga. Dizia que grávida só toma na cara. No dia que fui tomar toque,
o SOE que era homem ficou lá dentro da sala junto comigo olhando”.

Elas descrevem ainda os variados casos de violência psicológica por meio


de insultos e da imposição de algemas em momentos absolutamente inacei-
táveis, como enquanto uma mulher aguardava atendimento para cessar sua
hemorragia, ou de modo a impedi-la de dormir ou de amamentar seu bebê.
“O SOE demora muito a chegar, quando vem. No hospital, eu dormi
algemada e amamentei o meu filho algemada. A enfermeira perguntou
se eu tinha alguma coisa e o SOE foi e falou: “já viu presa ter alguma
coisa? Presa não tem direito a nada!”.
“Depois do parto, comecei a dar hemorragia e ele me algemou no cor-
redor. Fiquei passando mal ali algemada”.
“Eles tentaram fazer parto normal em mim, mas não tinha passagem.
Estava com muita dor, sentei no carro. A SOE achou um absurdo eu
estar sentada e me algemou. Disse que meu neném ia nascer e cair no
chão. Depois, quando tive meu filho, a noitinha eu tava deitada para

243
Violência Obstétrica em Debate

dormir e eles me algemaram. Não dava pra trocar a fralda do meu


filho, nem amamentar ele”.

Cabe ressaltar que, de acordo com a Súmula Vinculante n° 11, do Supre-


mo Tribunal Federal, só é lícito o uso de algemas em casos de resistência, de
fundado receio de fuga, ou de perigo à integridade física própria ou alheia,
e duvidamos que haja quem ouse defender que uma mulher em trabalho de
parto ou imediatamente após o mesmo, se encontre em qualquer uma dessas
condições capazes de justificar a excepcionalidade da medida.
Em boa hora, o parágrafo único do art. 292 do Código de Processo Penal,
acrescentado pela Lei 13.434/17 passou a vedar o uso de algemas em mulheres
grávidas durante os atos médico-hospitalares preparatórios para a realização
do parto, durante o trabalho de parto, e no período de puerpério imediato, em
conformidade com a Regra de Bangkok nº 24. Tal previsão legal parecia intei-
ramente dispensável em um país cuja Constituição Federal traz a dignidade da
pessoa humana como princípio fundamental e que proíbe a tortura e os trata-
mentos degradantes. No entanto, em que pese as previsões constitucionais e a
bem vinda alteração legislativa, não são raros os relatos de utilização de algemas
durante todo o processo, dificultando o parto e primeiros cuidados com o bebê
e criando um enorme, desnecessário e ilegal constrangimento.
Não bastasse, quando as mulheres voltam ao sistema penitenciário, após o
parto, são constrangidas a abandonar todas as atividades a que porventura se de-
diquem, como trabalho ou estudo, para se devotarem exclusivamente, em tempo
integral, a seus filhos, num fenômeno denominado hipermaternidade516. Durante
esse período, a permanência ininterrupta com o bebê é a regra, e todos os cui-
dados dispendidos a eles são submetidos a vigilância constante das agentes pe-
nitenciárias com rigor disciplinar, com uma permanente tutela do exercício da
maternidade por essas mulheres, a partir do modelo ideal dentro da hierarquia
reprodutiva descrita por Mattar e Diniz. Nesse caso, embora as estruturas físicas
das áreas destinadas à permanência das presas com os bebês sejam melhores, o
que se verifica é que a maternidade se torna um fator para o incremento da puni-

516 BRAGA, Ana Gabriela Mendes; ANGOTTI, Bruna. Da hipermaternidade à hipomaternidade no


cárcere feminino brasileiro. SUR Revista Internacional de Direitos Humanos 22 - v.12 n.22 • 229 -
239 | 2015. p. 235

244
Violência Obstétrica em Debate

ção da mulher, seja pelo isolamento que provoca, seja pela tutela mais rígida de seu
comportamento em toda e qualquer atividade.
E então, geralmente ao final do prazo mínimo de 6 meses previsto na Lei de
Execuções Penais, a criança é abruptamente retirada da mãe, com um rompimen-
to do vínculo sem uma devida fase de adaptação517, e uma transição imediata da
hipermaternidade para a hipomaternidade, processo descrito por Braga e Angotti:
Chamamos de hipo (diminuição) e não de nula maternidade a vivência
da ruptura, pois as marcas da maternagem interrompida, da ausência
advinda da presença de antes, seguem no corpo e na mente da presa.
Os inúmeros relatos de remédios para secar o leite, de “febre emocio-
nal”, de “desespero” ao ouvir o choro de outras crianças, evidenciam
que a maternidade segue no corpo. As expectativas e o medo da se-
paração definitiva, advindos das falas daquelas que ainda não haviam
experimentado o momento, mas o temiam ainda na gestação.518

Nesse mesmo sentido, Drauzio Varella destaca que:


As celas para onde as mães são transferidas ao dar à luz contêm um ber-
cinho e prateleiras com mamadeiras e fraldas, roupinhas penduradas
para secar em varais de barbante e boa parte dos utensílios das casas
com um recém-nascido. Passam o tempo todo envolvidas com a criança,
dando de mamar, lavando roupa, trocando experiências com as compa-
nheiras, as mais velhas orientando as marinheiras de primeira viagem.
Quando menos esperam, vem a separação. De uma hora para a outra,
voltam ao pavilhão de origem e à rotina dos dias repetitivos que se
arrastam em ócio, gritaria, tranca, solidão e saudade do bebê que aca-
baram de perder de vista.
Uma semana depois de ver a filhinha levada por uma prima do na-
morado, Margarete, presa duas vezes por receptação de mercadorias
roubadas, comentou em um fiapo de voz:

517 Aos seis meses o bebê ainda é profundamente dependente da mãe e afastar esse vínculo, de modo
súbito, afeta não só sua saúde física, mas também a psicológica, com efeitos danosos para ambos
(mãe e filho). A recomendação da Organização Mundial de Saúde é a de amamentação exclusiva por
seis meses e complementar até dois anos. Drauzio Varella menciona a experiência da Penitenciária
feminina de São Paulo e considera que “A retirada do bebê do colo da mãe ainda com leite nos seios
é uma experiência especialmente dolorosa”. VARELLA, Drauzio. Op. Cit., p. 46.
518 Ibidem p. 236

245
Violência Obstétrica em Debate

- Só não me suicido porque tenho esperança de recuperar minha filha


quando sair519.

Dessa forma, a vivência da maternidade no cárcere é permeada por di-


versas formas de violência que, em nosso entendimento, equivalem à tortu-
ra, e esse tratamento degradante destinado às mulheres, que é potencializado
quando se tornam mães, evidencia o descaso do Estado brasileiro com suas
cidadãs e a urgência da mobilização feminina para combater todas essas vio-
lações de direitos e situações de indignidade.
A nossa aspiração é que as pautas feministas possam incluir TODAS as
mulheres, não atuando como legitimadoras de um sistema que demarca hie-
rarquias reprodutivas, menosprezando as experiências consideradas subalter-
nas. Um feminismo efetivamente transformador deve integrar as mulheres,
e não ignorar aquelas já reputadas invisíveis para o sistema, principalmente
as negras, que ocupam, predominantemente, e cada vez mais, os cárceres520.
Trata-se de um evidente problema de gênero, posto que a maioria delas é presa
por cometer delitos com motivação econômica, por enfrentarem dificuldades
para manter seus filhos, mas que são excluídas da agenda geral dos grupos
feministas por representarem somente um subgrupo, em um fenômeno que
Crenshaw denomina subinclusão.521
Para isso, é preciso atuar em conjunto com outras mulheres que, embora
pareçam muito distantes de nossa realidade, estão subordinadas a diversas for-
mas de opressão como nós, com atenção aos diferentes tipos e intensidades em
que se manifestam. Que possamos aprender com o conceito de dororidade522 e
perceber que, no fim, o que nos une é a dor imposta por nossa condição femi-
nina e que a nossa resistência deve ser coletiva, em defesa dos direitos de todas
as mulheres, considerando toda a diversidade. Assim, a luta pelo desencarcera-
mento é também uma luta feminista, é uma luta pela dignidade de todas.

519 VARELLA, Drauzio. Op. Cit., p. 46/47.


520 Sobre encarceramento, racismo e feminismo, confira-se: BORGES, Juliana. O que é encarceramento
em massa? Belo Horizonte/MG: Letramento: Justificando, 2018.
521 CRENSHAW, Kimberle W. A interseccionalidade na discriminação de raça e gênero. In:
VV.AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem, 2004. p. 15
522 PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: Editora Nós, 2017.

246
Violência Obstétrica em Debate

Nesse contexto, é nossa responsabilidade tornar os espaços mais demo-


cráticos e representativos, para que a diversidade enriqueça nossas relações e
potencialize nossa luta por um mundo mais justo e igualitário. Sigamos re-
lembrando constantemente a profunda reflexão de Audre Lorde: “Eu não serei
livre enquanto outra mulher for prisioneira, ainda que as correntes dela sejam
diferentes das minhas”.

247
A responsabilidade penal nas
hipóteses de violência obstétrica

Rodrigo de Souza Costa


Adriana Vidal de Oliveira
Consuello Alcon Fadul Cerqueira

Introdução
A violência obstétrica é um tema que tem ganhado projeção nos últi-
mos tempos, especialmente pelos esforços de militância de mulheres, com o
objetivo de tornar público uma série de atos praticados por equipes de saúde
antes, durante e logo após o parto. Tais atos são compreendidos pelo senso
comum como normais desse momento, sustentando um ar de inexorabilidade
para as mais variadas formas de violência que as mulheres recentemente têm
narrado em suas experiências de parto. É ainda comum que mulheres sejam
humilhadas com xingamentos, ou ainda com julgamentos morais por parte
de médicos e auxiliares de saúde nesses momentos durante o parto. Além dis-
so, também é frequente a violação à integridade física da mulher, com proce-
dimentos que não são acordados entre a gestante e os médicos, muitas vezes
afetando permanentemente a saúde da mulher.
O presente artigo tem o objetivo de estabelecer uma definição para vio-
lência obstétrica, que considere as diretrizes internacionais de conceituação e
enfrentamento dessa forma de violência e articular essas diretrizes com tipos
penais do ordenamento jurídico brasileiro. Nesses termos, será possível per-
ceber que boa parte das condutas relacionadas pela Organização Mundial de
Saúde como formas de violência obstétrica já estão tipificadas pela legislação
penal brasileira. Nesse processo, além das diretrizes internacionais, será tam-
bém utilizado o relatório final da Comissão de Inquérito Parlamentar da Mu-
lher, que traz a consagração de diferentes espécies de condutas como formas
de violência de gênero, bem como apresentada uma proposta de legislação
específica para tratar do tema, apresentada pelo deputado federal Jean Willys.

249
Violência Obstétrica em Debate

No decorrer desse processo, o artigo trará também o conceito de violência


contra a mulher chancelado pela Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha, que alterou
o paradigma da violência para reconhecer de forma adequada todas as formas de
agressão que podem incidir em mulheres em situação de violência. Sendo assim,
a análise do tema da violência obstétrica será feita a partir da identificação das
ações de equipes médicas consideradas abusivas para a mulher considerando as
diferentes formas de violências – física, moral, psicológica e sexual.
A partir da identificação das diretrizes sobre o que compreende violência
obstétrica e as condutas relacionadas, serão apresentados os dispositivos legais
que comportariam essas condutas, demonstrando quais são as possíveis respos-
tas jurídicas de caráter penal previstas na lei brasileira e, posteriormente, dimen-
sionando se essas respostas são suficientes para tratar do problema da violência
obstétrica ou se há necessidade de alteração das leis vigentes para tratar do tema.
Fica nítido, portanto, que quando se identifica uma insuficiência jurídica no tra-
tamento de alguma tensão social, a alteração no Direito pode ser um instrumental
importante, não o único, para produzir impacto na vida de vítimas de violência e
transformar essas relações sociais perpetuadoras de violência.

1. Paradigmas para a conceituação da violência obstétrica


A violência obstétrica é caracterizada pela utilização arbitrária do saber
por parte dos profissionais de saúde, bem como pelas instituições públicas e
privadas, sobre as mulheres grávidas, em trabalho de parto ou em pós-parto,
mediante um tratamento desumanizado causando perda da autonomia da
mulher523. Tal prática corresponde, dessa maneira, a uma forma específica de
violência de gênero, como se verá mais adiante.
Um dos marcos importantes alcançados com relação a esse problema
pode ser identificado na Argentina, com a regulação legal da violência obs-
tétrica dentro de um marco jurídico. A Lei 25.929 de 2004 ficou conhecida
como Lei do Parto Humanizado em razão de estabelecer uma série de direi-
tos às mulheres grávidas e parturientes. Em 2009, com a promulgação da Lei

523 AGUIAR, J.M., D’OLIVEIRA, A.F.P.L. Violência Institucional em Maternidades Públicas:


hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão de gênero. Tese de doutorado. Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010, p. 14-21; DOSSIÊ PARIRÁS COM DOR.
Parto do Princípio – Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa, p. 59-64.

250
Violência Obstétrica em Debate

26.485, estabeleceu-se uma legislação voltada à proteção da mulher, definin-


do, em seu artigo 6º as diversas formas de violência contra a mulher, dentre
elas a violência obstétrica, nos seguintes termos:
Violencia obstétrica: aquélla que ejerce el personal de salud sobre el
cuerpo y los procesos reproductivos de las mujeres, expresada en un
trato deshumanizado, un abuso de medicalización y patologización de
los procesos naturales, de conformidad con la Ley 25.929.

Dois anos antes, em 2007, a Venezuela já havia definido violência obsté-


trica e a tipificado como crime. O artigo 51 da “Ley orgânica sobre el derecho
de las mujeres a una vida libre de violência” preceitua que
Se considerarán actos constitutivos de violencia obstétrica los ejecutados
por el personal de salud, consistentes en: 1. No atender oportuna y eficaz-
mente las emergencias obstétricas. 2. Obligar a la mujer a parir en posici-
ón supina y con las piernas levantadas, existiendo los medios necesarios
para la realización del parto vertical. 3. Obstaculizar el apego precoz del
niño o niña con su madre, sin causa médica justificada, negándole la
posibilidad de cargarlo o cargarla y amamantarlo o amamantarla inme-
diatamente al nacer. 4. Alterar el proceso natural del parto de bajo riesgo,
mediante el uso de técnicas de aceleración, sin obtener el consentimiento
voluntario, expreso e informado de la mujer. 5. Practicar el parto por vía
de cesárea, existiendo condiciones para el parto natural, sin obtener el
consentimiento voluntario, expreso e informado de la mujer.

A grande maioria dos países, no entanto, não acompanhou essa inova-


ção, sendo certo que nem todos os ordenamentos jurídicos trazem um con-
ceito internamente estabelecido. Tal ausência pode significar dificuldades de
identificação e reconhecimento dessas práticas violentas, de modo que a con-
ceituação deve ser vista como um movimento inicial ao tratar do tema. Por
essa razão a necessidade de se recorrer ao campo do direito internacional, cujo
grande paradigma é o estabelecido pela Organização Mundial da Saúde.
A OMS, em 2014, entendeu que a violência obstétrica é composta por um
conjunto de ações adotadas por profissionais de saúde no período anterior,
durante e após o parto, tais como
violência física, humilhação profunda e abusos verbais, procedimentos
médicos coercivos ou não consentidos (incluindo a esterilização), falta
de confidencialidade, não obtenção de consentimento esclarecido antes

251
Violência Obstétrica em Debate

da realização de procedimentos, recusa em administrar analgésicos,


graves violações da privacidade, recusa de internação nas instituições
de saúde, cuidado negligente durante o parto levando a complicações
evitáveis e situações ameaçadoras da vida, e detenção de mulheres e
seus recém-nascidos nas instituições, após o parto, por incapacidade
de pagamento (OMS, 2014).

Dessa forma, utilizando-se dos paradigmas aqui listados de conceituação


do tema é possível identificar alguns pressupostos básicos. Primeiramente que
a violência obstétrica contra a mulher pode ocorrer em momentos diferentes:
no pré-natal, no parto, no pós-parto ou mesmo em casos de abortamento.
Além desse reconhecimento de etapas diferentes, a violência cometida contra
a mulher grávida ou parturiente pode ser expressa de forma verbal, física,
psicológica ou sexual. Quanto à maneira de se manifestar, é possível que seja
explícita ou mesmo velada, quando, por exemplo, ocorre a patologização de
processos naturais do parto.
A partir do estabelecimento desses pressupostos essenciais de acordo
com diretrizes internacionais, passa-se a apresentar uma proposta de legisla-
ção específica sobre o tema no âmbito interno e as conclusões apontadas pelo
relatório final da Comissão de Inquérito Parlamentar da Mulher, que apresen-
ta uma série de condutas consideradas como formas de violência obstétrica.

2. O caso brasileiro: legislação e práticas violentas


Atualmente tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n. 7633/14
do Deputado Federal Jean Willys, que dispõe sobre a humanização da assistên-
cia à mulher e ao neonato durante o ciclo gravídico-puerperal. O Projeto traz,
em seu artigo 13, a caracterização e conceito de violência obstétrica, in verbis:
Art. 13 – Caracteriza-se a violência obstétrica como a apropriação do
corpo e dos processos reprodutivos das mulheres pelos(as) profissio-
nais de saúde, através do tratamento desumanizado, abuso da medi-
calização e patologização dos processos naturais, que cause a perda da
autonomia e capacidade das mulheres de decidir livremente sobre seus
corpos e sua sexualidade, impactando negativamente na qualidade de
vida das mulheres.

252
Violência Obstétrica em Debate

Parágrafo único. Para efeitos da presente Lei, considera-se violência


obstétrica todo ato praticado pelo(a) profissional da equipe de saúde
que ofenda, de forma verbal ou física, as mulheres gestantes em traba-
lho de parto, em situação de abortamento e no pós-parto/puerpério.

Da leitura do Projeto é perceptível a reprodução dos pressupostos já tra-


tados na legislação internacional sobre o tema e elencados no tópico anterior.
Pode-se identificar, ainda, a concepção pela qual se deixa transparecer que a
violência obstétrica está condicionada por preconceitos de gênero, uma vez
que se manifesta como opressão de gênero.
A maternidade é um dos possíveis campos de expressão da mulher, seja
em razão do exercício da função biológica, seja pelo papel de mãe atribuído
socialmente a ela, ou ainda em virtude de adoção. Uma vez que a noção de
gênero é entendida como resultado de condicionamentos históricos e sociais,
repercutindo constitutivamente nas relações sociais e institucionais, a mani-
festação de qualquer violência nesse campo essencialmente atravessa questões
de gênero. Nesses termos, é interessante observar que a violência cometida
contra mulher grávida ou parturiente em virtude dessa sua condição faz parte
das dinâmicas sociais que estabelecem assimetrias de gênero.
Quando uma violência verbal acontece para, por exemplo, atacar a mu-
lher que grita no trabalho de parto ao sentir dor, essa repressão é carregada
de concepções de ordem moral ou religiosa, que entendem que a mulher deve
sofrer ao parir e aguentar o sofrimento como uma forma de expiação de culpa
pelo exercício da sexualidade. Esse é um dos dispositivos mais impostos às
minorias, o processo de garantir que elas fiquem “em seus devidos lugares”,
ou seja, garantir o esvaziamento de demandas por direitos524
O ordenamento jurídico brasileiro tem levado muitas mulheres à ma-
ternidade compulsória em virtude de restrições aos direitos sexuais e repro-
dutivos. Por outro lado, essa maternidade compulsória nunca significou uma
posição de prestígio para mulheres mães e a violência obstétrica exerce essa
função de subjugar essas mulheres que se tornam mães. É um dispositivo cul-

524 Em relação às ofensas, cabe ressaltar que a autora Judith Butler já demonstrou como os corpos
minoritários são afetados e constituídos por elas. Neste sentido, não se pode ignorar as ofensas
dirigidas às gestantes e parturientes em razão de sua condição, como forma de violência. Sobre o tema
das ofensas na obra da autora: BULTER, Judith. Excitable speech: a politics of the performative. 1999.

253
Violência Obstétrica em Debate

tural de subordinação de parte substancial das mulheres brasileiras, que têm


filhos em condições precárias.
Os relatos que dão conta de episódios de violência obstétrica expressam
formas de apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres,
transformando-os por meio de tratamentos desumanizados. Dessa forma, a
violência obstétrica é indubitavelmente manifestação da violência de gênero.
Outro marco de especial relevância no âmbito interno foi a publicação
do Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre a Vio-
lência Contra as Mulheres de 2013. Esse documento dedica uma de suas se-
ções a apresentar dados relativos a práticas de violência no parto, destacando
que as mulheres são, muitas vezes, submetidas a procedimentos desnecessá-
rios que violam seus direitos.
Esse relatório foi apresentado com base em dados originários de visitas a
alguns estados da federação para coleta de relatos de movimentos de mulheres
sobre violência no parto e, em especial, utilizando-se do Dossiê “Parirás com
Dor” da ONG Parto do Princípio. Os resultados das pesquisas relatam que as
mulheres estão submetidas a inúmeros procedimentos violadores de direitos
e desnecessários e que, no entanto, essa realidade parece ser ignorada pelos
serviços e profissionais de saúde.
Dentre os principais procedimentos violentos a que são submetidas as
mulheres gestantes nos serviços de saúde, o Relatório destaca o exame de to-
que doloroso, a negativa de alívio da dor, a falta de explicação e consentimento
sobre os procedimentos adotados, gritos, humilhações e xingamentos ao ser
atendida, negativa de atendimento, a episiotomia de rotina (corte da vulva e
vagina), intervenções de verificação e aceleração do parto e restrição de posi-
ção para o parto, de local de parte e a imposição da cesariana.
Os comportamentos descritos demonstram a gravidade das violências a
que as mulheres gestantes estão submetidas nos serviços de saúde. Tal situa-
ção requer atenção e adoção de medidas efetivas pelos poderes públicos, não
só no âmbito da saúde, como também do Direito525.

525 Relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da violência contra a mulher,
2013, p. 63.

254
Violência Obstétrica em Debate

Nesse sentido, a CPMI identifica que as ações adotadas pelo Ministério da Saú-
de têm sido insuficiente, sugerindo sua intensificação frente aos estados para preve-
nir e punir a violência obstétrica e a tomada das seguintes medidas, dentre outras:
1. Que o Ligue 180, da Secretaria de Políticas para as Mulheres receba
denúncias de violência no parto e capacite as atendentes para isso;
2. Alteração na Lei 11.108/2005 para incluir punição em caso de des-
cumprimento;
3. Alteração da Lei 8.080/1990 garantir expressamente no texto legal
o direito a acompanhante no parte nos serviços de saúde públicos e
privados e inclusão de punição em caso de descumprimento.
4. Capacitação dos profissionais de saúde para o abortamento humani-
zado em conformidade com a Norma Técnica do Ministério da Saúde;
5. Desenvolvimento de campanhas para que as mulheres possam co-
nhecer seus direitos e não aceitarem procedimentos que firam o direito
a um procedimento médico adequado e não invasivo.526

As práticas descritas são exemplo das diversas formas de violência obs-


tétrica e podem configurar violência física, psicológica, institucional, sexu-
al, material (cobranças indevidas) ou midiática527, de modo que se insere nas
mesmas categorias já definidas pela Lei Maria da Penha.

3. A responsabilidade penal da violência


obstétrica no direito brasileiro
O artigo 7º da Lei n. 11.340/06 define, dentre outras, as seguintes formas
de violência contra a mulher: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
Essa previsão legal alterou o paradigma da violência, reconhecendo outras
formas de agressão a que a mulher em situação de violência são submetidas
além da física, tradicionalmente entendida como única forma de violência.

526 Relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da violência contra a mulher,
2013, p. 63.
527 Dossiê Parirás com Dor. Parto do Princípio, p. 60-61.

255
Violência Obstétrica em Debate

Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher,


entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua
integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe
cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe pre-
judique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou
controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante
ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vi-
gilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicu-
larização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro
meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a cons-
tranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não de-
sejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a
induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexuali-
dade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a
force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante
coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o
exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que
configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus ob-
jetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e
direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer
suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure
calúnia, difamação ou injúria.

Partindo dessa noção ampla, será possível perceber que boa parte das
condutas relacionadas pela Organização Mundial da Saúde e pelo Relatório
Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre a Violência Contra
as Mulheres como formas de violência obstétrica se inserem na proteção ofe-
recida por meio da Lei Maria da Penha, na exata medida em que se expressam
como violência moral, psicológica, sexual e física. Mais do que isso, tais atos
se encontram previstos na legislação penal brasileira em diferentes crimes es-
palhados pelo Código Penal.
Antes de se alcançar essa etapa, no entanto, cabe uma análise quanto a
alguns dos elementos constitutivos desses delitos objetivando sistematizar os

256
Violência Obstétrica em Debate

pressupostos comuns. No que concerne aos sujeitos dos delitos, temos que o
sujeito ativo do crime será em regra o profissional de saúde, podendo ser o mé-
dico, enfermeiro, técnico em enfermagem, bem como aquele que de alguma
maneira intervenha no processo do parto. É certo, ainda, que a responsabili-
dade penal será sempre determinada de acordo com o grau de culpabilidade
do agente. O sujeito passivo será a parturiente (mulher gestante ou aquela que
acaba de ter o bebê) e/ou o bebê.
Quanto ao tipo objetivo, cumpre ressaltar que a responsabilidade penal
nesses casos poderá ocorrer em virtude de uma ação ou mesmo de uma omis-
são. Nesse último caso deve-se ter especial atenção ao fato de que os profissio-
nais de saúde, muitas vezes, se encontrarão na posição de agentes garantidores,
nos termos do artigo 13, § 2º, inciso I, do Código Penal, devendo responder pelo
que se chama de omissão imprópria. Nesse caso, o sujeito tem o dever jurídico
de evitar o resultado em virtude da posição que ocupa, sendo responsabilizado
pelo crime comissivo, na forma omissiva. Além disso, o tipo subjetivo compor-
-se-á pelo dolo e, para os crimes que assim a admitirem, pela culpa.
Isto posto, o tratamento das condutas e a adequação aos tipos penais
serão divididos por categorias de violência – física, psicológica, moral e sexual
– para melhor percepção de seu enquadramento.
No que concerne à violência física é possível identificar que muitos dos
procedimentos entendidos como expressão de violência obstétrica represen-
tam a prática dos crimes de homicídio ou de lesão corporal, dependendo das
circunstâncias específicas do caso concreto.
As condutas de (1) agendar cesárea sem necessidade, (2) induzir a mu-
lher a aceitar uma cirurgia cesariana sem que seja necessária, mentindo sobre
riscos imaginários, hipotéticos e não comprovados, (3) forçar o parto normal,
mesmo contra indicação clínica, (4) recusar o fornecimento de analgesia como
forma de promover dor ou sofrimento, (5) realizar episiotomia desnecessária,
(6) induzir soro com ocitocina para acelerar o trabalho de parto por conveni-
ência médica e (7) submeter a mulher a procedimentos predominantemente
invasivos, dolorosos, desnecessários ou humilhantes, ofendem a integridade
física das mulheres, de modo que se inserem nas condutas descritas no artigo
129 do Código Penal, configurando o crime de lesão corporal.
Importa observar que nesses casos exemplificativos é a desnecessidade
do ato ou a ausência de consentimento e informação à gestante que irá im-

257
Violência Obstétrica em Debate

portar na prática criminosa. Quando houver indicação clínica para os atos


adotados pelos profissionais de saúde, não há que se falar em crime.
No caso concreto a adequada incursão legal irá variar entre as figuras tipi-
ficadas no caput (lesão corporal simples) e nos parágrafos (lesão corporal de na-
tureza grave e gravíssima). Assim, caso a ação ou omissão gere incapacidade por
mais de trinta dias à mulher, perigo de vida ou aceleração do parto, estaremos
diante da hipótese de lesão corporal de natureza grave (artigo 129, § 1º, incisos I,
II e III, respectivamente). Se, por outro lado, a violência praticada causar aborto,
tratar-se-á de lesão corporal de natureza gravíssima (artigo 129, § 2º, inciso V).
Quando o aborto é praticado sem consentimento da gestante, como for-
ma de violência sexual, estar-se-á diante da hipótese de incidência do crime
previsto no artigo 125 do Código Penal. A distinção entre essa situação e a
de incidência do artigo 129, § 2º, inciso V, do Código Penal está no dolo do
agente. Enquanto aqui o dolo é o de interromper, direta ou indiretamente, a
gravidez e provocar a eliminação do feto, na hipótese exarada no parágrafo
anterior o dolo é de violar a integridade física da mulher e o aborto se apresen-
ta como consequência dessa agressão.
As práticas que envolvem violência psicológica e moral se incutem nos
crimes contra a honra ou contra a liberdade pessoal. Assim, quando são pro-
feridos comentários ofensivos e/ou humilhantes por parte dos profissionais de
saúde em direção à mulher, dependendo da circunstância em que se inseri-
rem, pode-se configurar ora o crime de difamação ora o crime de injúria, pre-
vistos nos artigos 139 e 140 do Código Penal. A mesma solução é dada quando
o profissional de saúde ironiza ou censura a mulher por comportamentos que
externem sua dor física ou psicológica.
É o que se verifica, por exemplo, nas seguintes frases: “não chora que ano
que vem você está aqui de novo”, “na hora de fazer não chorou, não chamou
a mamãe”, “se ficar gritando vai fazer mal pro neném, ele vai nascer surdo”528.

528 De acordo com o Dossiê Parirás com Dor. Parto do Princípio, 15% das mulheres que relataram ter
sofrido violência obstétrica ouviram “não chora que ano que vem você está aqui de novo”; 14%, “na
hora de fazer não chorou, não chamou a mamãe”; e 5%, “se ficar gritando vai fazer mal pro neném,
ele vai nascer surdo”. Vide p. 60-61 do Dossiê.

258
Violência Obstétrica em Debate

Outras menções, como por exemplo, “se gritar eu paro e não vou te atender”529,
irão configurar o crime de ameaça do artigo 147 do mesmo diploma legal.
Por outro lado, caso o profissional de saúde proíba ou dificulte que a mu-
lher se comunique com pessoas externas ao serviço de saúde, privando-lhe da
liberdade de telefonar ou receber telefonemas, caminhar, conversar com fami-
liares, amigos e acompanhantes, e receber visitas em quaisquer horários e dias,
estar-se-á diante da hipótese de prática do crime previsto no artigo 148 do Có-
digo Penal, em razão da privação da liberdade por meio do cárcere privado.
Por fim, outro caso que merece atenção diz respeito às mulheres grávidas
ou parturientes que cumprem pena privativa de liberdade. Diante de situações
em que sejam algemadas durante o parto ou no puerpério, notoriamente se
identifica a prática do crime de constrangimento ilegal (artigo 146 do Código
Penal), uma vez que tal violência não encontra amparo legal.
Essa análise demonstra que a legislação brasileira não se encontra ausen-
te de resposta de caráter penal ao problema da violência obstétrica. Ao contrá-
rio, as variadas manifestações de violência no parto correspondem a crimes
já tipificados. Ainda assim, a maior dificuldade está em se compreender a real
violação perpetrada por tais condutas, muitas vezes naturalizadas como ine-
rentes ao momento do parto.
Nesse sentido, o debate sobre o assunto precisa se desenvolver para que a
resposta estatal também se mostre mais presente. Embora haja um paradigma
internacional de conceituação da violência obstétrica, o estabelecimento de
um conceito interno pode se mostrar importante para a disseminação e tra-
tamento mais adequado do tema. Além disso, o recurso ao direito penal nesse
sentido é uma importante forma de proteção aos direitos humanos.

Considerações finais
O nascimento de um filho é um momento determinante na vida da
mulher, por essa razão a experiência desse momento pode ser traumática na
medida em que tem crescido o relato de agressões e humilhações por parte

529 De acordo com o Dossiê Parirás com Dor. Parto do Princípio, 5% das mulheres que relataram ter
sofrido violência obstétrica na pesquisa realizada ouviram essa frase do médico que realizou seus
partos. Vide p. 60-61 Dossiê.

259
Violência Obstétrica em Debate

das equipes médicas que deveriam prestar assistência à parturiente. O deba-


te sobre esse tema tem crescido no Brasil, demonstrando que tais violências
dos profissionais de saúde reforçam sentimentos depreciativos sobre a mulher.
Nesse sentido, tais violências passaram a ser naturalizadas na cultura institu-
cional e social, o que favorece sua perpetuação.
Partindo da hipótese de que a violência obstétrica encontra-se institu-
cionalizada como violência de gênero, por estar determinada por estereóti-
pos de desvalorização da mulher, o presente trabalho buscou estabelecer um
paradigma de conceituação do tema. Especialmente em razão da ausência de
um parâmetro na legislação brasileira, o recurso ao direito internacional e às
organizações internacionais se mostram importantes para tratar o tema. Nes-
se sentido, foi feito um esforço de se estabelecer alguns pressupostos básicos
para delimitação da violência obstétrica.
Assim, temos que a violência obstétrica pode ocorrer em três etapas do
desenvolvimento da gravidez, o pré-natal, parto e pós-parto. Além disso, as
formas de violências são variadas, podendo ser verbais, físicas, psicológicas
ou sexuais, explícitas ou veladas. Dessa forma entende-se que mesmo a pato-
logização de processos naturais do parto é uma forma de agressão. Por fim,
na grande maioria dos casos é a desnecessidade do tratamento ou ausência de
consentimento ou informação à gestante que importará na prática violenta.
A partir da identificação das práticas violentas relatadas pelas mulheres,
foi possível estabelecer a incidência de responsabilidade penal referente a cada
uma delas. Nesse sentido, mostrou-se que a possibilidade de um uso subversivo
do Direito Penal, que pode ser utilizado para proteção de direitos e garantias
fundamentais, como aposta a Constituição brasileira. Assim, ainda que o Di-
reito Penal não seja a única possibilidade de resposta ao problema da violência
obstétrica, é plenamente possível sua utilização desde logo para reprimir as prá-
ticas violentas a que forem submetidas as mulheres grávidas ou parturientes.

260
O Plano de parto como instrumento
de autonomia, privacidade e garantia
da proteção ao indivíduo face aos
casos de violência obstétrica.

Mariana Silveira Sacramento

Introdução
A dignidade da pessoa humana, importante princípio que foi destacado
pelo constituinte de 1988 como um dos fundamentos da República, visa ga-
rantir que a pessoa seja protegida de forma integral em todas as suas relações,
e isso significa dizer que os seus direitos existenciais não podem ser negli-
genciados. Apesar de sua amplitude, o princípio que salvaguarda a dignidade
pode ser observado através da garantia de determinados subprincípios, tais
como a liberdade, a integridade psicofísica, a solidariedade e, também, a pri-
vacidade que será analisada de forma especial no presente trabalho.
Como desdobramento da dignidade, a concepção de privacidade foi se
transformando ao longo do tempo e, o que antes era relacionada ao conceito
de propriedade, hoje permite interligar o direito à privacidade a um ambiente
livre, sadio, para o desenvolvimento e exercício da autonomia e personalidade.
No âmbito da assistência ao parto, as violações à dignidade e seus subprincípios
podem ser notadas especialmente nos casos em que a mulher gestante é negli-
genciada na sua vontade e, muitas vezes, vítima de violência física e psicológica
no momento do parto. Nesses casos, além de não lhe ser garantido o protagonis-
mo do momento do nascimento de seus filhos, ainda é possível vislumbrar casos
em que o seu direito à privacidade, em meio a tantos outros, é violado, tanto na
concepção da ausência de um espaço físico privado e adequado para o parto,
quanto na ausência de escuta da mãe, seus medos anseios e desejos.
Deste modo, a fim de verificar os instrumentos para garantir que o direito
à privacidade da gestante seja observado, além dos demais direitos existenciais, é
preciso analisar a possibilidade de elaboração de um plano de parto, documento

261
Violência Obstétrica em Debate

no qual a gestante poderá optar pelos procedimentos, escolher o acompanhante


e manifestar os seus desejos. No momento da elaboração, a ela deve ser dispen-
sada toda a atenção da equipe de saúde, com as informações necessárias para
que a gestante possa tomar as suas decisões de forma consciente.
Para tanto, será analisado de forma detalhada o princípio da dignidade
da pessoa humana e a proteção que este oferece aos direitos existenciais, após,
o direito à privacidade será destacado sem suas diferentes concepções e, por
fim, o Plano de parto será analisado como possível resposta para uma dimi-
nuição da violência moral durante a gestação e parto, pois permite uma maior
interação entre o médico e a parturiente, além da possibilidade de garantir
que a mulher gestante possa, de algum modo, ser ouvida nas decisões deste
momento tão importante de sua vida.

1. O Princípio da dignidade da pessoa humana


O princípio da dignidade da pessoa humana, previsto na Constituição
da República no artigo 1º, III530 possui uma importância ímpar no ordena-
mento jurídico brasileiro, pois norteia a interpretação das leis e dos casos con-
cretos visando a proteção integral do indivíduo. Diante dessa importância, o
constituinte de 1988 o colocou no patamar de fundamento da República e, por
essa razão, a tutela deve ser reforçada sempre que houver violação à dignidade
do indivíduo, mas também, sempre que estiver sob ameaça de ser violada.
Em sua obra, Maria Celina Bodin de Moraes traz um estudo acerca da
dignidade humana, ligando o conceito jurídico ao filosófico, ao afirmar que “a
reflexão jurídica sobre o tema se desenvolve, necessariamente, com o recurso

530 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios
e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição.

262
Violência Obstétrica em Debate

à filosofia. Ao ordenamento jurídico, enquanto tal, não cumpre determinar


seu conteúdo, suas características ou permitir que se avalie essa dignidade” 531
Barroso identifica como marco histórico importante e significativo para
o entendimento atual do conceito de dignidade humana: “os horrores do na-
cional-socialismo e do fascismo e a reação que eles provocaram após o fim
da Segunda Guerra Mundial.” A dignidade humana passou a ser vista como
fundamental para a proteção dos direitos humanos após esse período repleto
de lesões aos direitos fundamentais e humanos. Por esse motivo, a dignidade
humana passou a ser incorporada ao discurso jurídico e, segundo o autor, em
função de duas principais causas: a primeira seria “a inclusão em diferentes
tratados e documentos internacionais, bem como em diversas constituições
nacionais, de referências textuais à dignidade humana” e também em razão da
“ascensão de uma cultura jurídica pós-positivista, que reaproximou o direito
da moral e da filosofia política, atenuando a separação radical imposta pelo
positivismo pré-Segunda Guerra.”
As pessoas possuem dignidade, não apenas por estar previsto na Consti-
tuição da República, mas por ser uma característica intrínseca à sua condição
de pessoa. Sobre a dignidade humana, “a Constituição, reconhecendo a sua
existência e a sua eminência, transformou-a em um valor supremo da ordem
jurídica, quando a declara como um dos fundamentos da República Federati-
va do Brasil constituída em Estado Democrático de Direito.”532 Não é possível
“objetificar” o ser humano porque ali não se encontra preço, valor monetário,
mas sim dignidade e essa dignidade garante a preservação de direitos também
inerentes à pessoa humana, por essa razão o constituinte considerou impor-
tante caracterizar a dignidade humana como fundamento da República, para
que fosse sempre observada.
Partindo da concepção Kantiana da dignidade “como valor intrínseco
às pessoas humanas”, Maria Celina Bodin de Moraes constrói o conteúdo do
princípio da dignidade humana relacionando-o com quatro outros subprin-
cípios: a igualdade, a integridade física e moral, também chamada de psico-
física, a liberdade e a solidariedade, isso porque no princípio da igualdade

531 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos
danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 82.
532 SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. Revista
de Direito Administrativo, vol. 212, p. 90, 1998.

263
Violência Obstétrica em Debate

encontramos um sujeito moral que “reconhece a existência dos outros como


sujeitos iguais a ele”. Tais sujeitos são “merecedores do mesmo respeito à in-
tegridade psicofísica” que o primeiro sujeito moral é titular. A liberdade e a
autodeterminação são encontradas no reconhecimento de que os sujeitos são
dotados de vontade livre e, por fim, o princípio da solidariedade aponta para
um sujeito que é parte de um grupo social “em relação ao qual tem a garantia
de não vir a ser marginalizado.”533
O princípio da igualdade relaciona-se ao da dignidade humana ao não
permitir que os indivíduos sejam tratados de forma discriminatória, mas sim,
que todos tenham os mesmos direitos, principalmente diante da visão de
igualdade substancial, onde as diferenças de cada indivíduo são observadas
não para que seja discriminado, mas para garantir que cada diferença seja
respeitada, “esta ideia parte do princípio de que, em lugar de reivindicar uma
‘identidade humana comum’, é preciso que sejam contempladas, desde sem-
pre, as diferenças existentes entre as pessoas.”534
A integridade psicofísica garante à pessoa humana a proteção de diver-
sos direitos da personalidade, como “vida, nome, imagem, honra, privacida-
de, corpo e identidade pessoal” como um amplo direito à saúde, tanto física
quanto psíquica. Nesse caso, é possível encontrar vários exemplos, como con-
gelamento de embriões, atos de disposição do próprio corpo, privacidade no
que tange a informações médicas, mudança de sexo e tantas outras questões
envolvendo a biomedicina e a biotecnologia.535
Também faz parte do conteúdo da dignidade humana o direito à liber-
dade que, conforme Maria Celina Bodin de Moraes explica, era considerado
sinônimo apenas de autonomia privada patrimonial para o direito civil tradi-
cional, pois ao indivíduo era dada a liberdade desde que este possuísse bens
para contratar, testar, enfim, para exercer os atos de proprietário, que era visto
como o verdadeiro protagonista do Código Civil. O movimento de repersona-
lização e despatrimonialização do direito civil, fez com que as questões exis-

533 BODIN DE MORAES, Maria Celina. O princípio da dignidade da pessoa humana. In: Na medida
da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 85.
534 BODIN DE MORAES, Maria Celina. O princípio da dignidade da pessoa humana. In: Na medida
da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 88.
535 BODIN DE MORAES, Maria Celina. O princípio da dignidade da pessoa humana. In: Na medida
da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 96.

264
Violência Obstétrica em Debate

tenciais fossem observadas além do patrimônio, colocando a pessoa humana


no centro de todo o ordenamento jurídico.
Tendo em vista que os textos constitucionais em questão consagram
um viés prioritariamente personalista, a superioridade normativa da
Constituição e a unidade do sistema com base nesses valores conduzi-
ram ao que se costuma referir por primazia do “ser” sobre o “ter”, ou
“despatrimonialização do direito civil”. Não se pode entender, contu-
do, se tratar de segregação entre os interesses ou mera primazia: trata-
-se de uma diferenciação de instrumentos normativos para a realiza-
ção da dignidade da pessoa humana, como explica Pietro Perlingieri:
“Não é suficiente, portanto, insistir na afirmação da importância dos
‘interesses da personalidade no direito privado’; é preciso predispor-se
a reconstruir o Direito Civil não com uma redução ou um aumento da
tutela das situações patrimoniais, mas com uma tutela qualitativamen-
te diversa”. Não há, assim, segregação entre os dois tipos de situação,
mas funcionalização do ter ao ser. 536

Neste sentido, despatrimonializar “não significa esvaziar a carga valo-


rativa da tutela dos interesses patrimoniais, mas sim de funcionalizá-la de
modo que sejam asseguradas as condições materiais para o desenvolvimento
da personalidade. ” Thamis Dalsenter Viveiros de Castro aponta que, neste
caso, a patrimonialidade existiria não voltada para si, mas vislumbrando os
valores existenciais. Pietro Perlingieri, em sua obra Perfis do Direito Civil,
afirma, por sua vez, que, com a despatrimonialização “se operou uma opção
que, lentamente, se vai concretizando, entre personalismo (superação do in-
dividualismo) e patrimonialismo (superação da patrimonialidade fim em si
mesma, do produtivismo, antes, e do consumismo, depois, como valores).” 537
A autonomia, antes observada como uma autonomia meramente pa-
trimonial “alicerçada na concepção jurídica da personalidade como atributo
do sujeito de direito capaz de realizar livremente negócios jurídicos” hoje, no
direito civil contemporâneo, pode-se falar em autonomia existencial “como

536 SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson. Uma agenda para o direito civil-constitucional.
Revista Brasileira de Direito Civil. vol. 10, n. 04, p. 16, out./dez. 2016. Disponível em: <https://
rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/42> Acesso em: 15 fev. 2018.
537 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. 3ª ed. Rio
de Janeiro: Renovar, p. 33

265
Violência Obstétrica em Debate

expressão da força normativa do princípio da dignidade da pessoa humana


nas relações jurídicas no âmbito privado.” 538
Mais uma vez a vida privada e a intimidade são encontradas no conceito de
dignidade humana, tanto no princípio da integridade psicofísica quanto na liberda-
de. Isso mostra a importância de garantir que as pessoas possam ter acesso a me-
canismos que permitam manter em sua esfera íntima parte de suas informações.
Por fim, o princípio da solidariedade também faz parte do conceito de
dignidade humana, uma vez que “os direitos só podem ser exercidos em con-
textos sociais, contextos nos quais se dão as relações entre as pessoas, seres
humanos ‘fundamentalmente organizados’ para viverem uns em meio aos ou-
tros.” À solidariedade, em conjunto com a dignidade humana e com a igual-
dade substancial, foi atribuído pelo constituinte de 1988 o calor de funda-
mento do nosso Estado Democrático de Direito, em busca de uma “igual dig-
nidade social”. Nas palavras de Maria Celina Bodin de Moraes, “o princípio
constitucional da solidariedade identifica-se, desse modo, como o conjunto de
instrumentos voltados para garantir uma existência digna, comum a todos,
numa sociedade que se desenvolva como livre e justa.” 539
Ainda sobre a composição do princípio da dignidade humana, Luís Ro-
berto Barroso afirma não ser uma tarefa fácil trazer um conteúdo transnacional
ao princípio, no entanto, para trazer uma objetividade maior ao princípio, o au-
tor entende ser necessário construir um conteúdo mínimo para o conceito que
abrange “1. o valor intrínseco de todos os seres humanos; 2. A autonomia de cada
indivíduo; 3. Limitada por algumas restrições legítimas impostas a ela em nome
de valores sociais ou interesses estatais (valor comunitário).” Esses elementos são
analisados sob a perspectiva filosófica laica, neutra e universalista. 540
O valor intrínseco é o valor que cada ser humano possui em razão das ca-
racterísticas comuns a todos “e que lhes confere um status especial e superior no
mundo, distinto do de outras espécies”. Não é um valor atribuído, que pode ser

538 VIVEIROS DE CASTRO, Thamis Dalsenter. Corpo e autonomia: a interpretação do artigo 13 do


Código Civil Brasileiro. 2009. 161f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Departamento de Direito,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009, p. 56-58.
539 BODIN DE MORAES, Maria Celina. O princípio da dignidade da pessoa humana. In: Na medida
da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 111.
540 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional contemporâneo.
Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 72.

266
Violência Obstétrica em Debate

concedido ou retirado, mas que faz parte da característica humana e não tem pre-
ço, estando presente em todo e qualquer ser humano, independentemente, inclu-
sive, de razão, uma vez que “a singularidade da natureza humana é uma combi-
nação de características e traços inerentes que incluem inteligência, sensibilidade
e capacidade de se comunicar”. Apesar desse valor intrínseco aos seres humanos
que os diferencia das demais espécies não lhes dá o poder de agir com “arrogância
e indiferença em relação à natureza em geral, incluindo os animais irracionais,
que possuem sua própria espécie de dignidade.”541
A partir do valor intrínseco é possível encontrar uma série de direitos ine-
rentes à pessoa humana: em primeiro lugar, o direito à vida “uma pré-condição
básica para que o desfrute de qualquer outro direito”, o direito à igualdade que
proíbe a discriminação em relação à “raça, cor, etnia ou nacionalidade, sexo, ida-
de ou capacidade mental e no respeito pela diversidade cultural, linguística ou
religiosa”. O direito à integridade física e psíquica também é abrangido pelo valor
intrínseco à pessoa humana como, a título de exemplo, a proibição de torturas. O
autor chama a atenção para o fato de que em muitos países de tradição do civil law
na Europa, o direito à integridade psíquica abrange o direito à honra, à imagem e
a privacidade, principais temas do debate deste trabalho. 542
Como segundo elemento do conceito de dignidade humana, a autono-
mia é vista como o elemento ético pois “é o fundamento do livre arbítrio dos
indivíduos, que lhes permite buscar a sua própria maneira, o ideal de viver
bem e de ter uma vida boa.”. A autonomia é a autodeterminação que cada
pessoa tem de reger a sua vida segundo seus próprios valores e desejos. A au-
tonomia compreende os conceitos de razão para tomar decisões informadas,
independência como “ausência de coerção, de manipulação e de privações
existenciais” e escolha diante da “existência real de alternativas”543.
A autonomia de que fala o autor no seu conceito de dignidade humana
é a autonomia existencial onde o indivíduo tem o direito de fazer escolhas de

541 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional contemporâneo.
Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 77.
542 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional contemporâneo.
Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 78.
543 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional contemporâneo.
Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 82.

267
Violência Obstétrica em Debate

vida de acordo com o próprio entendimento, são questões existenciais e pes-


soais como a escolha de uma religião ou um estilo de vida.
Os dois autores, portanto, seguem uma linha comum no sentido de carregar
a dignidade humana de um conceito envolvendo a igualdade entre os seres huma-
nos, a importância do direito à integridade psicofísica, a autonomia ou liberdade
e o valor social, ou a solidariedade, que nos permite usufruir dos nossos direitos,
mas sempre observando os direitos dos demais. Dessa forma, a dignidade huma-
na está ligada principalmente aos direitos existenciais dos indivíduos, destacando
a privacidade e intimidade, presentes nos dois conceitos apresentados.

2. O direito à privacidade como autonomia.


Ao falar sobre privacidade, é preciso analisar o caminho pelo qual o con-
ceito percorreu para chegar à concepção atual que se adota no presente traba-
lho, que é da privacidade como autodeterminação informativa. A importância
em estudar a historicidade do conceito de privacidade544 existe diante do fato
de que os conceitos não são os mesmos ao longo dos anos, isso ocorre porque
eles precisam ser interpretados e adaptados de acordo com a realidade em que
se encontram. A privacidade defendida em 1890 por Warren e Bandreis, por
exemplo, já não se mostra suficiente para a visão atual de preservação de dados.
Isso não significa que os conceitos antigos não mereçam ser estudados, mas que
devem ser analisados de acordo com o contexto em que foram elaborados. 545

544 “Historicizar um instituto, dar-lhe uma abordagem histórica, não é traçar um longo histórico in
abstrato, que lhe reconheça uma continuidade evolutiva ao longo dos séculos, imune e apartado do
restante da experiência social. Trata-se, ao contrário, de inseri-lo no grande fluxo da história, de
maneira a compreender toda a rica complexidade social na qual ele desempenha – ou desempenhou –
sua função. Impõe compreender os interesses sociais envolvidos no seu significado prático, as forças
econômicas que desencadearam sua existências, os anseios culturais que movem sua aplicação,
a influencia das peculiaridades educacionais e religiosas próprias daquela comunidade na sua
interpretação, enfim, compreender como todo instituto jurídico, em um dado momento, representa
um delicado e transitório equilíbrio entre forças sociais de conservação e de transformação. Trata-
se, afinal de contas, de descer o pensamento jurídico de seu pedestal de abstração, reconhecendo
o direito como uma experiência social não autônoma. KONDER, Carlos Nelson. Apontamentos
iniciais sobre a contingencialidade dos institutos de direito civil. In: MONTEIRO FILHO, Carlos
Edison do Rêgo; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz Costa; MEIRELES, Rose Melo Vencelau.
(Org.). Direito Civil. Vol. 2. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015, p. 34.
545 Nas palavras de Pietro Perlingieri: “Não existem instrumentos válidos em todos os tempos e em
todos os lugares: os instrumentos devem ser construídos pelos juristas levando-se em conta a

268
Violência Obstétrica em Debate

O direito à privacidade foi defendido primeiramente 546 pelos juristas


americanos Samuel Warren e Louis Bandreis, no artigo publicado na Harvard
Law Review, vol. IV, nº5 de dezembro de 1890 intitulado The right to privacy.
547 548
Neste artigo, os autores explicaram a ideia de privacidade como um di-
reito a ser deixado só, onde a parte da vida e as relações vividas no ambiente
doméstico precisam ser protegidas dos olhares curiosos, principalmente em
razão do surgimento da fotografia e outros inventos que colocava, cada vez
mais, a privacidade em risco. Para os autores, a lei deveria regular, por exem-
plo, a circulação não autorizada de fotografias e o mal que a invasão da priva-
cidade praticada pelos jornais causa. 549 “Assim, utilizando o termo ‘right to be
let alone’, propõem um novo tort, a invasão do privacy que constituiria uma

realidade que ele deve estudar. (...) O conhecimento jurídico é uma ciência jurídica relativa: precisa-
se levar em conta que os conceitos e os instrumentos caracterizam-se pela sua relatividade e por sua
historicidade. É grave erro pensar que, para todas as épocas e para todos os tempos haverá sempre os
mesmos instrumentos jurídicos. É justamente o oposto: cada lugar, em cada época terá seus próprios
mecanismos. ”PERLINGIERI, Pietro apud KONDER, Carlos Nelson. Apontamentos iniciais sobre
a contingencialidade dos institutos de direito civil. In: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo;
GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz Costa; MEIRELES, Rose Melo Vencelau. (Org.). Direito Civil.
Vol. 2. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015, p. 31.
546 “Segundo o professor Milton Fernandes, não se sabe ao certo qual teria sido a primeira vez que a
proteção da vida privada foi acolhida. Comumente se aponta o julgamento do tribunal Civil de
Sena, em 16 de junho de 1858, referente à divulgação do retrato de uma famosa atriz no seu leito
mortuário. Outro caso de celebridade se deu com a morte de Balzac. Com o ocorrido, Alexandre
Dumas tomou a iniciativa de uma subscrição para ergue-se um monumento do falecido. Como a
viúva se opôs, seguiu-se processo em que o Tribunal de Sena, em 1854, julgou se a família poderia
reivindicar o direito de construir um tumulo, isto é, agir na esfera privada.” AIETA, Vânia Siciliano.
A garantia da intimidade como direito fundamental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 80.
547 BARBOSA, Fernanda Nunes. Biografias e liberdade de expressão: Critérios para a publicação de
histórias de vida. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2016, p. 172.
548 “Antes do artigo de Warren e Bradeis, vamos encontrar na obra do juiz Thomas Cooley, publicada
em 1880, sob o título ‘A Treatise on the Law of Torts’, a primeira utilização da expressão ‘right to
bel et alone’. Apesar de ter cunhado a expressão, Cooley não a relacionou com a noção de privacy,
mencionando-a em seu trabalho sobre responsabilidade civil (torts) como parte do seguinte trecho:
‘The right to one’s person may be said to be a right of complete immunity: to bel et alone’” ZANINI,
Leonardo Estevam de Assis. O surgimento e o desenvolvimento do right of privacy nos Estados
Unidos. Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 03, p. 09, jan./mar. 2015. Disponível em: <https://
www.ibdcivil.org.br/image/data/revista/volume3/ibdcivil_volume_3_leonardo-estevam-de-assis-
zanini_pag9-28.pdf>. Acesso em: 15 jan. 2018.
549 WARREN, Samuel; BRANDEIS, Louis. The right to privacy. Harvard Law Review, vol. IV, n. 5, dez. 1890.
Disponível em: <http://faculty.uml.edu/sgallagher/Brandeisprivacy.htm>. Acesso em: 13 jan. 2018.

269
Violência Obstétrica em Debate

profunda ofensa, que lesionaria o senso da própria pessoa sobre sua indepen-
dência, individualidade, dignidade e honra.” 550
Warren e Bandreis afirmaram que, no sistema da common law, era an-
tiga a ideia de que o indivíduo deve ser protegido de forma integral, tanto
pessoal, quanto em relação à suas propriedades. No entanto, esses conceitos
devem ser atualizados de tempos em tempos para que possam atingir novas
demandas que não eram questões no passado, o sistema da common law pre-
cisa crescer para acompanhar essas novas demandas que surgem através das
novas tecnologias e das mudanças políticas, sociais e econômicas.
O conceito de privacidade, portanto, foi se modificando e, de uma no-
ção inicial burguesa551 de que só tinha privacidade quem fosse proprietário,
pois poderia se isolar no interior de sua propriedade, passando pelo direito a
ser deixado em paz, ou o direito a ser deixado só, para a ideia de privacidade
como controle das suas próprias informações em uma sociedade atual onde o
volume de dados pessoais recolhidos é preocupante. O início do conceito de
privacidade foi elitista e individualista e essa forma de interpretação durou até
a década de 1960, quando, “como consequência dos movimentos sociais e das
reivindicações da classe trabalhadora” e com aumento no fluxo de informa-
ções, aumentou o número dos sujeitos atingidos pela ofensa à privacidade. As
informações que circulavam tinham importância e atingiam as formas mais
diversificadas de indivíduos, não mais restringindo esse acesso ao direito à
privacidade a uma elite proprietária. 552
Deste modo, é possível interligar o direito à privacidade ao exercício da
autonomia, onde o indivíduo é livre para exercer e desenvolver a sua persona-
lidade vivenciar as suas escolhas de vida em um ambiente livre de julgamen-
tos, é a dimensão decisional da privacidade, que “é o tipo de proteção que se

550 ZANINI, Leonardo Estevam de Assis. O surgimento e o desenvolvimento do right of privacy nos
Estados Unidos. Revista Brasileira de Direito Civil. Vol.03. jan-mar 2015, p. 22.
551 “À medida que as condições sociais e econômicas conduziam ao desenvolvimento dos núcleos
urbanos, crescia na burguesia emergente a expectativa de proteger a intimidade. Portanto, o direito
à intimidade se sedimentou como uma aspiração burguesa, transformando um privilégio de poucos
numa expectativa de muitos.” AIETA, Vânia Siciliano. A garantia da intimidade como direito
fundamental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 78.
552 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 12

270
Violência Obstétrica em Debate

dá ao modo de vida do indivíduo, incluindo aí as suas escolhas, seus gostos,


seus projetos, suas características.”553
O direito à privacidade, portanto, também no que diz respeito às mulheres
gestantes, deve ser observado em todas as suas dimensões, seja no ambiente
físico privado para o parto, ou mesmo na garantia da autonomia para as esco-
lhas informadas sobre os procedimentos clínicos. Para tanto, é preciso analisar
a possibilidade de formulação de um documento denominado Plano de parto,
onde a gestante poderá relatar quais são suas escolhas para o parto, quem ela
gostaria que estivesse presente acompanhando-a, dentre outras questões.

3. O Plano de parto como instrumento de


autonomia e privacidade da gestante
Diante das considerações acima, certo é que o princípio da dignidade da pes-
soa humana precisa ser observado em todas as situações do dia a dia, a fim de pro-
teger de forma integral o indivíduo em suas relações. No caso específico da mulher
gestante deve haver o cuidado em preservar a sua dignidade garantindo que esta
possa escolher a forma que se sinta mais confortável no momento de dar à luz.
A observância do princípio da dignidade da pessoa humana pode ser re-
alizada quando os direitos existenciais da mulher são garantidos. Como visto
anteriormente, o direito à privacidade, tão caro ao indivíduo, não deve ficar
restrito apenas em garantir um ambiente seguro, longe dos olhares estranhos,
para que a mulher, em companhia da pessoa que escolheu para acompanha-la,
possa ficar à vontade para vivenciar o momento do nascimento de um filho.
Apesar deste conceito de interligar a privacidade ao direito de estar só ter sido
superado por um conceito mais amplo e independente do ambiente físico livre
de intervenção e bisbilhotice alheia, é certo que este ambiente também precisa
ser proporcionado para que o nascimento de uma nova vida seja vivido em
sua plenitude. O ambiente físico privado precisa ser proporcionado, mas não
é garantindo-o que se observa, de forma integral, o direito existencial à priva-
cidade da mulher gestante.

553 PEIXOTO, Erick Lucena Campos; EHRHARDT JÚNIOR, Marcos. Breves notas sobre a
ressignificação da privacidade. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCilvil, Belo Horizonte, v.
16, p. 35-56, abr./jun. 2018.

271
Violência Obstétrica em Debate

Hoje o conceito de privacidade ultrapassa a barreira do físico, podendo ser


considerado, igualmente, como o direito do indivíduo em manter o controle sob
as suas próprias informações e, desta forma, agir com autonomia nas decisões
que dizem respeito à sua existência. Deste modo, é preciso oferecer à mulher
gestante a oportunidade de exercer a sua autonomia decidindo sobre questões
que envolvam a hora do parto, o que pode ser feito através da elaboração de
um Plano de parto, onde a mulher será questionada a respeito de determinados
tipos de situações que podem ocorrer durante o parto e a sua posição sobre os
procedimentos a serem tomados pela equipe médica. Sobre o plano de parto:
Impulsionado pela noção de “decisão informada”, o uso de plano de
parto está descrito na literatura de países industrializados desde a dé-
cada de 1980 e foi proposto inicialmente como uma maneira de infor-
mar e proteger as mulheres, diante da percepção de que era crescente
a medicalização do parto na sociedade norte-americana e europeia
(LOTHIAN, 2006). Seu uso também está descrito como intervenção
visando impactar o modelo das três demoras implicadas na mortali-
dade materna (demora na decisão da mulher e/ou da família em pro-
curar cuidados; demora para chegar a uma unidade de saúde demora
em receber os cuidados adequados na instituição de referência), como
instrumento para melhorar a comunicação entre a mulher e a equipe
que atende seu parto e como instrumento de diálogo cultural sobre a
experiência do parto entre mulheres filipinas residindo na Austrália. 554

A elaboração do plano de parto permite que as mulheres assumam um


maior protagonismo durante a gravidez e no momento do nascimento do seu
filho. Ao poder expressar suas preferências e, principalmente, ao ter as suas
escolhas reconhecidas e respeitadas, a mulher consegue exercer a sua autono-
mia e preservar a sua privacidade e a do bebê que está para chegar.
O projeto “Construindo estratégias para o fortalecimento e o resgate da
autonomia das mulheres no processo de parto e nascimento”, desenvolvido
pelas pesquisadoras da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de
Minas Gerais e apoiado pela Escola de Enfermagem da Universidade Federal

554 ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar. O desafio do direito à autonomia: Uma experiência de Plano
de parto no SUS. 2016.109f. Dissertação (Mestrado em Ciências). Faculdade de Saúde Pública,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016, p. 32. Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/
disponiveis/6/6136/tde-07112016 141429/publico/HalanaFariaDeAguiarAndrezzo.pdf Acesso em
20 set 2018.

272
Violência Obstétrica em Debate

do Rio Grande do Sul, em parceria com o Movimento BH pelo Parto Normal,


da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte foi objeto de estudo e
análise da percepção de 106 mulheres inscritas em 21 Unidades Básicas de
Saúde de Belo Horizonte/MG a respeito da gestação e do parto. A pesquisa foi
dividida em cinco categorias temáticas: “Percepções sobre a gestação; A idea-
lização do bebê e os preparativos para sua chegada; Percepções sobre o parto;
Expectativas para a vivência do parto; Apoio humano durante o parto”.555
Quanto à categoria “apoio humano durante o processo de parto” foram
destacadas palavras que indicavam os cuidados que as gestantes esperavam
receber dos profissionais da saúde, “A atenção é a palavra que se sobressai. Ou-
tras palavras são: carinho, respeito, amor, assistência, cuidado e paciência.”556
A maioria das mulheres desejou uma assistência de qualidade, pres-
tada por profissionais atenciosos e cuidadosos, que fossem capazes de
escutá-las e informa-las sobre o parto. ‘Quero ter bastante atenção dos
profissionais e que eles estejam dispostos a me ajudar de maneira cor-
dial e sem falta de educação (M5).Gostaria de ser respeitada e ouvida...’
(M45). Além da assistência do profissional da saúde, as mulheres ma-
nifestaram o desejo da presença de um acompanhante de sua preferên-
cia conforme segue: ‘...Com atenção de uma pessoa da minha família,
marido ou irmão’ (M102) 557

As pesquisadoras observaram que “todas as formas de cuidado refe-


ridas pelas mulheres para o parto se relacionaram exclusivamente ao apoio
humano”, além da importância na utilização de metodologias para a escuta

555 BELLEZIA, Marcela Luiza de Faria; BAGGIO, Manuela Estrela; KURIMOTO, Teresa Cristina
da Silva.. Percepções de mulheres relacionadas à gestação e parto que participaram de grupos de
gestantes para elaboração de plano de parto. REAS, Revista Eletrônica Acervo Saúde. vol. 10, n. 04, p.
1837, 2018. Disponível em: < https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/179356/001069084.
pdf?sequence=1&isAllowed=y> Acesso em: 20 set. 2018
556 BELLEZIA, Marcela Luiza de Faria; BAGGIO, Manuela Estrela; KURIMOTO, Teresa Cristina da
Silva.. Percepções de mulheres relacionadas à gestação e parto que participaram de grupos de gestantes
para elaboração de plano de parto. REAS, Revista Eletrônica Acervo Saúde. vol. 10, n. 04, p. 1840,
2018. Disponível em: < https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/179356/001069084.
pdf?sequence=1&isAllowed=y> Acesso em: 20 set. 2018
557 BELLEZIA, Marcela Luiza de Faria; BAGGIO, Manuela Estrela; KURIMOTO, Teresa Cristina da
Silva.. Percepções de mulheres relacionadas à gestação e parto que participaram de grupos de gestantes
para elaboração de plano de parto. REAS, Revista Eletrônica Acervo Saúde. vol. 10, n. 04, p. 1840,
2018. Disponível em: < https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/179356/001069084.
pdf?sequence=1&isAllowed=y> Acesso em: 20 set. 2018

273
Violência Obstétrica em Debate

qualificada que permitirá uma melhor visão e entendimento por parte dos
profissionais da saúde a respeito dos desejos das mulheres gestantes e, assim,
informa-las das possíveis situações durante o parto para que elas possam dar
um consentimento informado a respeito do que gostaria ou não que se apli-
casse em seu caso. Deste modo, “subsidiados, profissionais e população, po-
dem construir estratégias efetivas para a tomada de decisões em prática como
Plano de parto ou outras.”558
É possível observar com o estudo acima mencionado, que a atenção dis-
ponibilizada às gestantes é também uma forma de garantir o seu direito à
autonomia, uma vez que a liberdade de escolha só é plena quando exercida
de forma informada, e as gestantes necessitam que a equipe médica dispense
essa atenção a elas com as informações necessárias para a tomada de deci-
são. O acolhimento é o primeiro passo para o fortalecimento da mulher para
que ela busque conhecer e se informar dos seus direitos e das possibilidades
relacionadas à sua gestação. Acolher, informar, garantir o exercício da auto-
nomia e reservar um ambiente adequado para o parto são práticas positivas
que evitam a surpresa no momento do nascimento e possíveis violências que
poderiam ser destinadas à parturiente.

Considerações finais
A proteção integral da pessoa humana, presente no ordenamento jurí-
dico brasileiro através da previsão constitucional do Princípio da Dignidade
da Pessoa Humana, permite que aos indivíduos seja garantida a observância
de seus direitos existenciais, tais como o direito à privacidade, à intimidade,
à integridade psicofísica, dentre muitos outros. Proteger a pessoa humana é
garantir que seus direitos sejam observados em diferentes situações.
Ao considerar o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana como um
fundamento da República, o constituinte de 1988 colocou a pessoa humana
no centro do ordenamento jurídico, a fim de garantir que tais direitos sejam

558 BELLEZIA, Marcela Luiza de Faria; BAGGIO, Manuela Estrela; KURIMOTO, Teresa Cristina da
Silva.. Percepções de mulheres relacionadas à gestação e parto que participaram de grupos de gestantes
para elaboração de plano de parto. REAS, Revista Eletrônica Acervo Saúde. vol. 10, n. 04, p. 1842,
2018. Disponível em: < https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/179356/001069084.
pdf?sequence=1&isAllowed=y> Acesso em: 20 set. 2018

274
Violência Obstétrica em Debate

respeitados, além da observância dos subprincípios que garantem uma inte-


gral visão e proteção da pessoa humana.
A mulher gestante que passará por um momento delicado e único em
sua vida necessita de cuidado, de amparo, de atenção e, acima de tudo, precisa
que suas opiniões e convicções sejam ouvidas, a fim de que possa exercer o
seu direito de autodeterminar-se em qualquer esfera de sua vida, inclusive ao
decidir como se dará o parto.
Para tanto, é preciso garantir que a gestante possa exercer o seu direito à
privacidade em diferentes enfoques. Isso demonstra que é importante que o parto
ocorra em um ambiente físico sadio, privado do olhar do desconhecido, onde a
mulher entrará em contato com o filho que acaba de nascer rodeada da equipe
médica em quem confia e pela pessoa por ela indicada para acompanha-la. Do
mesmo modo, esse ambiente também deve ser um ambiente de escuta, de consen-
timento, onde o direito à privacidade será exercido além do ambiente físico, mas
nas escolhas realizadas pela mulher para quando o momento do parto chegasse.
O plano de parto é um instrumento destinado às gestantes onde é possível
que elas de fato exerçam esse direito ao privado. Neste documento, a ser redigido
pela gestante com o acompanhamento do profissional da saúde, ela poderá optar
pelo melhor caminho, segundo a sua visão, para o momento do nascimento.
No entanto, é importante frisar que a autonomia só é exercida de forma
plena quando envolve tomadas de decisão que são efetivamente informadas.
Ou seja, para que a gestante possa, de fato, optar pelos procedimentos médi-
cos ela precisa ter acesso a todas as informações possíveis relacionadas a tais
procedimentos, inclusive e principalmente, em relação aos riscos que ela e o
bebê podem correr quando da opção por esse ou aquele método.
Por essa razão, é importante que o plano de parto seja desenvolvido em
conjunto com a gestante e o profissional da saúde de sua confiança, para que
suas dúvidas possam ser esclarecidas, os riscos apontados e as questões iden-
tificadas durante o pré-natal e, assim, o documento será elaborado de maneira
informada, ciente dos riscos e, principalmente, ciente de que a equipe médica
poderá não observar determinada opção feita pela gestante caso possa gerar
um risco à sua vida ou à do bebê.
A violência obstétrica não ocorre apenas quando há, de fato, violência físi-
ca, mas também quando não é dada à gestante a oportunidade de se manifestar

275
Violência Obstétrica em Debate

sobre a gestação e o parto, ferindo, desta forma, o seu direito fundamental à pri-
vacidade Deste modo, informar sobre a existência do documento, a possibilida-
de de elaboração, os procedimentos cirúrgicos, os riscos, a escolha do ambiente
e o total acesso à mulher a respeito das informações relacionadas à sua gestação
e parto é também prevenir que a violência obstétrica ocorra, além de permitir
que a mulher, de fato, seja protagonista deste momento tão único de sua vida.

276
A violência obstétrica e seu
impacto sobre o bebê

Laura Uplinger

“Se quiser ter prosperidade por um ano, cultive grãos.


Por dez, cultive árvores.
Mas para ter sucesso por 100 anos, cultive gente.”
Confúcio

Nascer nos traz uma abrupta e definitiva mudança, que serve de mode-
lo para futuras mudanças, como por exemplo, mudar de bairro ou de cidade,
de escola ou de profissão, empreender um novo projeto, casar... Mudanças im-
portantes, que exigem muito do nosso psiquismo buscam “orientação” junto à
possante memória da nossa chegada ao mundo, fielmente registrada no nosso
subconsciente. Uma mulher pode dar à luz vários filhos, mas cada filho só nasce
uma vez e vários aspectos do seu nascimento ecoam nele para o resto da vida.
Parir com privacidade, livre de seus movimentos, em um ambiente silen-
cioso, no aconchego de uma luz bem tênue, sem ocitocina sintética na veia e sem
anestesia, é um evento hormonal dos mais intensos. Endorfinas naturais aju-
dam o corpo da mulher a modular as sensações de dor, muitas vezes associadas
às contrações uterinas. Uma possante entrega a essas contrações e um profundo
relaxar entre cada uma delas permitem em poucas horas uma dilatação total do
colo uterino, um trabalho de parto sem exaustão. Logo após esse tipo de parto, a
mulher tem uma extraordinária vivência: um pico altíssimo de ocitocina em sua
corrente sanguínea preside o encontro com seu bebê. O afeto flui em abundân-
cia nesse primeiro abraço, nesse primeiro olhar entre mãe e filho. Os olhos bem
despertos do bebê recebem através do olhar da mãe um verdadeiro download
de sinais neuronais, orientando seus hemisférios cerebrais em como se calibrar.
Tal é a importante missão da mãe, verdadeira educadora neurofisiológica
na chegada ao mundo dos seus filhos. Concordo com a psiquiatra e analista
junguiana Eleanor Luzes, quando ela qualifica esse nascer em plenitude como
o primeiro direito do ser humano.

277
Violência Obstétrica em Debate

No entanto, é raro nascer em plenitude, muito raro.


Pelo mundo afora, protocolos de trabalho de parto, parto e puerpério,
ignoram absurdamente a inteligência fisiológica tanto da mãe como do bebê.
Segundo Michel Odent, obstetra e autor francês de renome mundial, a ciência
sabe ainda pouco sobre as necessidades básicas da mulher em trabalho de
parto, mas nem esse pouco é levado em consideração pelos profissionais do
nascimento, tanto nos partos hospitalares como nos domiciliares e nas casas
de parto. Aliás, explica ele, há milênios perturbamos o nascimento nas sel-
vas, nos vilarejos, nos castelos e nas cidades. Por exemplo, é comum encon-
trarmos algum pretexto para separar o bebê da mãe durante a primeira hora
de vida: uma bênção do xamã ou uma celebração do bebê pelas crianças da
tribo; proibir que o bebê mame colostro antes de ser batizado a fim de evitar
que o demônio entre nele; pesar, medir, lavar o bebê e deixá-lo drasticamente
sozinho dentro de uma incubadora, em observação... Como se não fôssemos
mamíferos, como se a mãe humana não tivesse o direito de aconchegar seu
recém-nascido, na paz alegre do íntimo do seu corpo, como se o bebê não esti-
vesse etologicamente preparado exatamente para isso, e como se pudéssemos
impunemente prejudicar a determinação do perfil do seu microbioma!
Faz muito tempo que não é fácil chegar ao planeta Terra: ao longo dos
séculos, as classes dirigentes não atentaram para a comunhão mãe-filho no
início da vida, e até pouco tempo ter uma ama de leite era de praxe559. Os livros
de história contam como os chefes preferiram guerrear a zelar pela paz. Quan-
ta insegurança, tirania, violência e abuso permeiam as culturas, de todos os
tempos! Essa falta de amor a si próprio e ao outro – seja ele um ser mineral,
vegetal animal ou humano – denota uma grave falta de segurança e de empa-
tia. Lembremos que a neurofisiologia da empatia, esse fascinante aspecto do
amor, é regida por um sistema orquestrado pela ocitocina, hormônio e neuro-
transmissor do bem-estar, do crescimento e da cura, que preside ao trabalho
de parto, mas cuja liberação na corrente sanguínea é facilmente inibida pela
presença antagônica de hormônios do estresse – adrenalina e seus parceiros.
Por que todo tipo de violência obstétrica acarreta prejuízo à sociedade?
Porque a natureza planejou, arquitetou em seus mínimos detalhes uma gesta-
ção e um nascimento harmoniosos para o filhote humano, e a maneira como

559 FILDES, Valerie. Wet Nursing, A History from Antiquity to the Present, Blackwell Pub, 1988

278
Violência Obstétrica em Debate

nascemos é relevante para a nossa futura saúde física, intelectual e psicológi-


ca. A epigenética revela que dependendo da maneira como nascemos, certos
genes são ativados e outros silenciados, adaptando nosso genoma para o meio
ambiente aonde chegamos, e conferindo ao nosso organismo mais aptidões
para a saúde, ou menos. Respeitar, proteger a gestação e o nascimento de cada
ser humano será um dia a ocupação primeira de todas as nações, pois a qua-
lidade de uma civilização depende em grande parte do entusiasmo, da gene-
rosidade, da inteligência social e emocional dos seus cidadãos. Ao ter uma
vida intrauterina difícil e ao mal nascer, a expressão dessas qualidades ficam
comprometidas, tolhendo a qualidade da atuação do futuro adulto. Por tudo
isso é tão importante sempre tratar muito bem toda gestante, toda mulher em
trabalho de parto e seu bebê.
No hospital, é comum administrar ocitocina sintética na veia da par-
turiente a fim de induzir ou acelerar seu trabalho de parto, e na maioria das
vezes essa intervenção é acoplada a uma anestesia peridural, pois quando ar-
tificialmente induzidas ou estimuladas, as contrações podem doer de manei-
ra alucinante. Mas como a barreira hematoencefálica do bebê ainda não está
madura, os analgésicos opióides atravessam a placenta e viajam livremente até
o seu cérebro, ficando assim gravada em seu psiquismo, uma associação entre
uma transição difícil e o alívio trazido por substâncias opiáceas. Intervir arti-
ficialmente na fisiologia do bebê durante o trabalho de parto comporta sérios
riscos que a ciência mal começou a pesquisar, mas já existem estudos sobre a
correlação entre o forte aumento de casos de autismo no período que vai dos
anos 80 ao ano 2016, e o significante aumento – durante esse mesmo período
– do uso de ocitocina sintética para induzir ou acelerar o trabalho de parto560.
No ano de 1991, em Kumamoto no Japão, a pedopsiquiatra Ryoko Hat-
tori561, publicou na prestigiosa revista médica The Lancet, um estudo sobre os
riscos de autismo segundo o lugar de nascimento: os bebês nascidos num hos-
pital onde era rotina induzir o trabalho de parto uma semana antes da data

560 Increased Risk of Autism Development in Children Whose Mothers Experienced Birth Complications
or Received Labor and Delivery Drugs by Melissa Smallwood, Ashley Sareen, Emma Baker, Rachel
Hannusch, Eddy Kwessi and Tyisha Williams – https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/
PMC4984315/Obstetric care and proneness of offspring to suicide as adults: case-control study, de
Bertil Jacobson e Marc Bygdeman
561 Hattori R, Desimaru M, Nagayama I, InoueK, Autistic development disorders after general
anaethetic delivery. Lancet 1991; 337;1357-58

279
Violência Obstétrica em Debate

provável do parto, corriam mais risco de se tornar autistas do que os nascidos


num outro hospital do mesmo bairro, onde se respeitava o momento de nascer
de cada bebê. Por incrível que pareça, seus achados não foram considerados
de bom tom, e depois da publicação desse estudo ela foi convidada pela Uni-
versidade de Kumamoto a retirar-se de suas funções! No entanto sua pesquisa
havia sido inspirada pelo trabalho do biólogo holandês Nikolaas Tinbergen
– um dos fundadores da etologia e Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina –
que, ao estudar uma população nascida nos anos 70, havia notado fatores de
risco no período perinatal para condições patológicas como o autismo. Esses
fatores eram a indução de trabalho de parto, um parto difícil de fórceps e o
uso de anestesia durante o trabalho de parto.
Para explorar o imprinting duradouro que o nascimento deixa no nosso
subconsciente tal uma misteriosa memória que ecoa em nós ao longo da vida,
o cientista sueco Dr. Bertil Jacobson, do prestigioso Instituto Karolinska, e
seu time de pesquisadores conduziram um estudo retrospectivo publicado
em 1998,562 no qual examinaram os prontuários de parto de 412 suecos que
haviam cometido suicídio ou morrido devido ao abuso de drogas ou álcool,
entre os anos 1978 e 1984. Todos tinham menos de 44 anos e a maioria era
do sexo masculino. Esses prontuários foram comparados com os prontuários
de outras 2.910 pessoas nascidas no mesmo grupo de hospitais e nos mesmos
anos. O estudo mostrou que os que se asfixiaram – morte por enforcamento,
estrangulamento, afogamento, ou asfixia por gás – eram quatro vezes mais
suscetíveis de haver sofrido algum tipo de asfixia ao nascer do que os que
se suicidaram tomando veneno. Os cientistas leram no modo escolhido para
suicidar-se, uma reencenação de um trauma de nascimento, e uma das prin-
cipais recomendações da pesquisa foi a escolha de procedimentos obstétricos
que reduzam ao máximo o trauma perinatal a fim de minimizar o possível
risco de comportamentos autodestrutivos na idade adulta.
O profissional do nascimento é chamado a zelar pelo bem-estar da par-
turiente, do neonato e da puérpera. Transcrevo aqui o texto emocionante
de uma neonatologista espanhola, que relata o percurso de seu despertar de
consciência e fortalecimento profissional (tradução minha):

562

280
Violência Obstétrica em Debate

Às vezes nós médicos precisamos ouvir as coisas de uma determinada


maneira para poder acreditar nelas. Desconfiamos muito da nature-
za e dos processos da vida. Em muitas ocasiões manejamos o parto-
-nascimento com tanto medo, que distorcemos esse momento único,
sagrado, tão especial em que nasce um novo ser. Ainda resta muito a
ser feito, segundo minha experiência de seis anos como neonatologista
em diferentes hospitais de Tenerife, Lanzarote, Madrid, tentando der-
rubar barreiras mentais e físicas das infraestruturas que não apoiam
nem consideram a importância do vínculo mãe-bebê. Me vi tantas ve-
zes pressionada pelos profissionais que me entregavam o bebê às pres-
sas, quando de fato o que eu queria era observar o bebê respirando
em cima da mãe. Senti na pele a dor da sua respiração ao ter o cordão
cortado antes do tempo, o imenso cansaço com o qual alguns chega-
ram às minhas mãos depois de tantas agressões desnecessárias, dessa
violência que recebem ao nascer, “para que chorem”, como se viver e
chorar fossem sinônimos. Lembro-me da angústia dos colegas durante
as reanimações, e eu querendo dar tempo ao bebê para que recuperasse
seu ritmo... Fui feliz quando não precisei fazer nada, quando encontrei
parteiras sensíveis que me respaldaram e me permitiram auscultar o
coração do bebê ou tomar seu pulso enquanto ele aprendia a respirar
aconchegado sobre a mãe... tais ocasiões foram raras.
Senti na pele cada bebê que separamos da mãe sem motivo... Pedi per-
dão a tantos recém-nascidos por procedimentos com os quais não con-
cordo mas que fiz e vi fazer: vitamina K intramuscular, medi-los assim
que nascem, aspirações gástricas desnecessárias, deixá-los em incu-
badoras para uma “esquentadinha” nas primeiras 2-3 horas de vida,
água glicosada e mamadeiras de fórmula artificial sem razão de ser...
quantas vezes tive que suportar o choro intenso, profundo, lancinante,
de um recém nascido totalmente desperto, disponível, à espera, que
não entendia ESSE VÁCUO no qual o havíamos colocado, nem ESSAS
AGRESSÕES que recebia continuamente... Minhas perguntas sempre
foram “POR QUE?” e “PARA QUE?” Assumir a responsabilidade pela
dor que geramos, pelas consequências dos nossos atos, é uma neces-
sidade imperiosa para sairmos da ignorância dos “aqui sempre se fez
assim” ou dos “porque sim”, que povoaram os meus anos de formação e
de prática médica. Temos também que pedir perdão pelas vezes em que
nossa falta de valor nos impediu de dizer basta, pelo medo das críticas,
por deixar de nos definirmos devido à falta de tempo, porque estamos
assoberbados de trabalho, porque estamos cansados, porque a direto-
ria não muda as coisas ou porque “aqui isso não se pode”. Sinceramen-
te, há coisas que não deveríamos permitir, e todos nós que trabalhamos
em centros de parto e unidades neonatais carregamos por dentro essa
dor, em maior ou menor grau. SEMPRE pensei assim, mas anos de

281
Violência Obstétrica em Debate

vivências arraigaram ainda mais profundamente em mim essa manei-


ra de pensar. Ter revivido várias vezes a experiência do meu próprio
nascimento me fez sentir muitas coisas, que me levaram a abandonar
locais de trabalho e a encontrar profissionais que compartilhassem e
vivessem minha visão do parto-nascimento. Desde aqui, gostaria de
convidar aqueles que, assim como eu, trabalham no universo do nas-
cimento, para uma reflexão a sós, a fim de desvendar medos, sarar a
vivência de como foi recebido ao nascer e saber se colocar na pele de
um bebê, para poder ESTAR numa sala de parto com a sensibilidade, o
amor e o respeito que cada ser que chega ao mundo merece.
Gratidão, Monica Delgado Guerrero563

A violência obstétrica pode ser considerada semente de violência social.564


Os mecanismos deletérios do estresse tóxico no período pré-natal e perinatal
foram descritos no livro Scared Sick: The Role of Childhood Trauma in Adult Di-
sease565 (com muito medo: o papel do trauma infantil na doença do adulto) pelas
autoras americanas Robin Karr-Morse, psicoterapeuta de famílias, e Meredith
S. Wiley, advogada, comunicóloga e perita em delinquência juvenil no governo
do Estado de Oregon. O excesso de cortisol produzido por esse estresse tóxico
impede a formação, no neocórtex do bebê, de uma rica rede neuronal, ferra-
menta essencial para o raciocínio abstrato e pensamento de ordem superior.
Em 2010, a Fundação Perseu Abramo declarou que uma em cada qua-
tro mulheres brasileiras era vítima de violência no pré-natal ou no parto. É
imperativo que nossa cultura saiba melhor valorar o bem-estar das mulheres
durante o ciclo gravídico-puerperal, porque toda violência contra elas é tam-
bém violência contra seus bebês. A ansiedade, a tristeza e os sentimentos de
menos valia, que uma grávida, parturiente ou puérpera sofre intensamente,
prejudicam a formação hígida da neurofisiologia do seu bebê. Precisamos que
as novas gerações sejam acolhidas por mães cada vez mais empoderadas, espe-
rançosas e serenas, pois do contrário seguiremos sendo uma nação marcada

563 Disponível em: http://www.quenoosseparen.info/articulos/profesionales/monica.php


564 KARR-MORSE, Robin; WILEY, Meredith. Ghosts from the Nursery: Tracing the Roots of Violence.
New Yoork, NY: Atlantic Monthly Press, 2014.
565 KARR-MORSE, Robin; WILEY, Meredith. Scared Sick: The Role of Childhood Trauma in Adult
Disease. Editora Basic Books, 2012.

282
Violência Obstétrica em Debate

por uma interminável sucessão de abusos e violências, que denotam o mal-


-estar crônico dos seus cidadãos.
A mulher que acaba de dar à luz pelos seus próprios meios, respeitada em
sua capacidade de parir, se sente deliciosamente vitoriosa. No topo do mundo.
Além de uma infinda alegria espiritual, o pico de ocitocina fluindo em suas
artérias lhe confere uma certeza de ser, de poder eternamente amar esse ser
que a vida colocou sob seus cuidados. Essa certeza é ouro para sua trajetória
interior de mãe, a começar pela dança por vezes tão desafiante das próximas
semanas, quando ela e seu recém-nascido percorrerão dias e noites de adap-
tação à vida a dois – o bebê numa dependência absoluta e ela numa entrega
inimaginável às necessidades dele. Essa entrega pode ser percebida como uma
dádiva – e não um calvário –, dependendo da sua história pessoal, claro, mas
principalmente da força, do poder e da plenitude que viveu durante a gesta-
ção, no trabalho de parto e no parto. Ao longo da infância e da juventude do
seu filho, sua autoridade tenderá a ser compreensiva, amorosa, e não abusiva.
São muitos os modos de parentalidade e a psico-história – recente ramo da
história fundado pelo pensador social americano Lloyd deMause566 – estuda
como as crianças foram tratadas ao longo dos séculos e expõe os vários modos
de tratamento como a motivação primeira – e inconsciente – dos eventos his-
tóricos de cada país. Esses achados são duros de ler eles indicam claramente
o quanto até pouquíssimo tempo a parentalidade abusiva era a mais comum,
sendo que o modo infanticida permeou a maior parte da história da humani-
dade! Em seu livro Parenting for a Peaceful World (ser pai e ser mãe para um
mundo de paz), o australiano Robin Grille, psicólogo e admirável porta-voz
do pensamento do Lloyd deMause, nos introduz ao universo da psico-história.
As evidências científicas que corroboram as descobertas da psicologia
pré-natal datam do final do século XX, quando a biologia celular567 pôs um
fim ao determinismo genético. Mas apesar da capa da revista TIME de 4 de
outubro de 2010 – com uma linda mulher nua e grávida, junto à impactante
frase How the first nine months shape the rest of your life (como os primeiros
nove meses dão forma ao resto da sua vida) –, a mídia não tem se interessado
muito pela nova ciência das origens fetais da saúde e da doença no adulto. As

566 DEMAUSE, Lloyd. Fundamentos da Psico-História: O estudo das motivações históricas, Editora
KBR, 2014.
567 LIPTON, Bruce; BHAERMAN, Steve. Evolução Espontânea. São Paulo: Editora Butterfly, 2013.

283
Violência Obstétrica em Debate

universidades de medicina e de psicologia, tampouco. Excelentes livros para o


grande público como O Bebê do Amanhã do psiquiatra Thomas Verny, Win-
dows to the Womb do psicólogo David Chamberlain e Parenting for Peace, da
Marcy Axness, especialista em primeira infância, ainda não foram traduzidos
em inúmeras línguas. Interessar-se pela vida pré-natal e pelo nascimento não
é algo neutro, impessoal: todos nós fomos gestados e paridos, e nem sempre
essa experiência foi prazerosa. Talvez por isso nossa cultura ocidental prefere
postergar a tomada de consciência que a libertaria de tantos males.
Mas desde o século passado, certas organizações se dedicam a explorar o
universo fecundo da vida pré-natal e suas exigências, como a APPPAH (Asso-
ciation for Prenatal & Perinatal Psychology and Health), nos Estados Unidos;
a ISPPM (International Society for Pre-and Perinatal Psychology and Medici-
ne), na Alemanha; La Cause des Bébés, na França; e a OMAEP (Organisation
Mondiale des Associations pour l’Éducation Prénatale), com sede na Suíça e
que reúne mais de 20 associações nacionais – incluindo a ANEP Brasil568 – e
há anos possui status consultivo junto ao Conselho Econômico e Social das
Nações Unidas (ECOSOC).
No entanto são poucos os avanços, e pelo mundo afora gestantes e par-
turientes, portadoras do futuro, continuam sendo tratadas como se seus filhos
só passassem a existir depois de nascidos. Grande erro. Ao roubar diariamen-
te o maravilhoso da gestação, ao perturbar a privacidade do trabalho de parto
e do nascimento, ao atuar nesses momentos tão valiosos com incompreensão,
superficialidade e falta de respeito, abrimos as portas a um futuro planetário
tingido de mais desarmonia, mais violência, menos saúde e menos felicida-
de. Estudiosa do assunto, a juíza administrativa Ioanna Mari conseguiu que
desde 2008, todo funcionário público grego que se casa receba, junto com a
Certidão de Casamento, uma brochura de sua autoria, intitulada 10 Regras de
Ouro para Futuros Pais569. O texto oferece vários conselhos para o dia a dia do
casal e transborda de ternura ao divulgar princípios da psicologia pré-natal e
da epigenética. Essas 10 Regras de Ouro apresentam a gravidez sob um ângulo
inusitado, mas que espero será em breve conhecido por todos.

568 www.anepbrasil.org.br
569 http://anepbrasil.org.br/as-10-regras-de-ouro/

284
Violência Obstétrica em Debate

Em 2012, participei da Mesa Redonda de encerramento da Mid-Pacific


Conference on Birth and Primal Health Research, organizada pelo Michel Odent
e pela Heloisa Lessa, enfermeira obstétrica e parteira domiciliar no Rio de Ja-
neiro. O tema era Childbirth in 4012, e apresentei um texto utópico que ilustra
o ideal pelo qual venho trabalhando há quatro décadas e que me foi inspirado
pelo filósofo, pedagogo e mestre espiritual Omraam Mikhaël Aïvanhov:
Nascer em 4012
Os tempos que desfrutamos hoje em 4012, eram antigamente mera utopia.
O amor havia adoecido– amor a si próprio e aos outros. Durante milênios,
a auto estima, esse núcleo vital do ser humano, nunca havia sido nutrida,
levada em consideração e brotado em nação alguma. Claro, ao longo das
idades houve indivíduos cuja mente e o coração floresceram sem trair: se-
res fraternos com todas as formas de vida. Mas não foram muitos.
As prisões viviam cheias; abuso, traição, falsidade, ganância, guerra, cri-
me e indiferença eram pragas comuns nas elites governantes. Sempre uma
sede asquerosa de diminuir e controlar os outros para sentir-se melhor.
Porém, lá pelo final do século XX e nas primeiras décadas do século XXI,
diversos ramos da ciência derramaram galáxias de luz sobre a gênese de
um ser humano plenamente saudável, confirmando o que muitas tradi-
ções sabias e sagradas ensinavam desde a aurora dos tempos.
A extraordinária orquestração fisiológica do nosso desenvolvimento no
ventre materno finalmente começou a ser compreendida, apreciada e res-
peitada! Os bebês foram tendo condições cada vez melhores para formar
órgãos robustos e resilientes – especialmente o cérebro – graças a ótimos
nutrientes e uma favorável bioquímica fluindo pelo sangue de suas mães.
Nas escolas e universidades, alunos de todas as idades estudaram o plano
da natureza para um pleno período primal. Pelo mundo inteiro, governos
começaram a despertar para a simples e grandiosa realidade de que toda
gestante precisa, acima de tudo de comida, alegria e beleza ao seu redor.
Pela primeira vez em mais de 12.000 anos as sociedades começaram a
dedicar importantes recursos financeiros e culturais para o bem-estar
das grávidas, protegendo assim esse período decisivo da maternidade.
Pela primeira vez em tantos milênios, os poderes governamentais enten-
deram: as Mães são as que dão à luz às civilizações.
O século XXI viu o início dos parques que temos hoje nas cidades, seus
subúrbios e distantes vilarejos. Lugares de encontro construídos em lin-
dos lugares onde as gestantes caminham pela natureza, cantam juntas,
descansam, tecem, pintam, leem, escrevem, dançam, nadam... se ale-

285
Violência Obstétrica em Debate

grando com a deliciosa sinergia entre os pequenos habitantes em seus


ventres. A humanidade aprendeu o quão receptivos nós somos ao mun-
do interior dos nossos pais, que a integridade do nosso corpo adulto e
seus trilhões de células começa na natureza amorosa, do abraço sexual
que nos concebe. Gestações não desejadas ficaram cada vez mais raras.
Até mesmo os meses antecedendo uma concepção começaram a ser
vividos conscientemente.
Ah! E tenho que falar do nascimento! A ignorância que havia submergi-
do a maioria das práticas em torno ao nascer, pouco a pouco diminuiu
e morreu. O uso desenfreado de intervenções tecnológicas – finalmente
reconhecidas como contra produtivas e em muitos casos abusivas – atingi-
ram um ápice no início do século XXI. Mas logo depois, e de uma vez por
todas, os “peritos” confiaram na sabedoria do corpo de cada parturiente e
a deixaram em paz. Tranquilidade e privacidade foram abraçadas como
as principais facilitadoras do trabalho de parto e do nascimento pleno.
A década dos anos 2050 foi o ponto da virada: a primeira geração dos
bem-nascidos atingiu a maturidade. Eles se tornaram professores, ar-
tistas, mercadores, políticos, etc... de uma espécie diferente. A presença
deles no planeta trouxe mais criatividade, empatia, flexibilidade, inte-
ligência social e resiliência no âmago da família humana. Eles tiveram
seus próprios filhos, e, de geração em geração, os benefícios do investi-
mento na saúde primal se revelaram exponenciais. As pessoas passaram
a viver mais tempo, desfrutando de um maior bem-estar. O aleitamento
materno tornou-se incontestável e universal, as amas de leite e os lei-
tes artificiais adentraram a obsolescência. Prisões, asilos psiquiátricos
e UTIs neonatais foram fechando suas portas. As fronteiras artificiais
entre as nações foram declaradas retrógradas e eliminadas.
Bem, foi assim que atingimos essa idade de ouro, tão desejada pelos nos-
sos ancestrais e para a qual tantos trabalharam.

286
Doula à brasileira: as idiossincrasias
do cenário obstétrico contemporâneo e
a figura da doula no Rio de Janeiro

Roberta Calábria

Diante desta tela vazia, me pergunto como organizar as ideias para escrever
sobre o papel das doulas no cenário obstétrico do Rio de Janeiro, como quem bus-
ca a ponta de um novelo de lã que já passeou por horas e horas pelas patas de um
gatinho filhote. São nós, voltas, caminhos, avanços e retrocessos para contar uma
história que remete a um saber ancestral e que, alavancada pelos novos modelos
de interação social, vive hoje um potente momento de exposição.
Acredito, contudo, que nenhuma história é neutra, nenhuma história é
pura, e todas carregam as cores da subjetividade de quem as conta. Eu sou
doula, mulher, mãe, branca, acadêmica e atravessada por privilégios diversos,
e por essas facetas venho contar pra vocês um pouquinho do que aprendi ob-
servando minha trajetória e a de tantas outras mulheres com as quais convivo;
estudando e praticando, nos últimos anos. Se estivéssemos frente a frente, eu
perguntaria se você sabe o que é uma doula. E a partir da sua resposta, con-
versaríamos sobre o nossos entendimentos. No formato que se apresenta, faço
suposições e tento, de peito aberto, validar uma comunicação dialética que
construa e seja construída pelo diálogo, essencialmente empático.
A doula é, por definição, uma mulher que porta saberes específicos para
auxiliar outra mulher durante o período gravídico puerperal, tendo seu foco
de atuação centrado no trabalho de parto, parto e pós parto imediato. Nosso
trabalho em nada se confunde com o de demais profissionais da atenção obs-
tétrica. A doula cumpre uma função a serviço da mulher, buscando propor-
cioná-la ferramentas para atravessar a passagem entre a existência anterior e
a existência posterior à chegada da nova criança. Os instrumentos desta tra-
vessia devem ser escolhidos em comum acordo, balanceando a autonomia e
o protagonismo da mulher com os conhecimentos da doula, que partem do
princípio de que a gestação e o parto são eventos fisiológicos e como tais de-

287
Violência Obstétrica em Debate

vem ser respeitados, salvo indicações reais que os patologizem. Cada doula faz
uso de seu arcabouço de práticas, informações, técnicas e metódos, seguindo
um caminho individual de construção profissional, sempre atentando ao ob-
jetivo macro de favorecer que a mulher tenha uma experiência de gestação e
parto mais satisfatórias e em conformidade com os desejos de cada uma.
Etmologicamente, a palavra doula tem origem no grego clássico usado
para designar “escrava”: δούλη ("dúli")570. A definição comumente encontrada
mascara essa origem e qualifica a doula como “mulher que serve”, e ainda
hoje na Grécia este termo encontra certa dificuldade de aceitação, dada sua
carga histórica que remete a um contexto de violência e opressão. Lá algumas
mulheres preferem se apresentar como “paramana”, que significa ‘ao lado da
mãe’. No Brasil, a figura da doula foi por muito tempo relacionada a figura da
comadre571, mas a profissionalização da atuação incorporou o título interna-
cional para que não houvesse dúvidas entre os papéis, considerando outros
significados do termo comadre. O primeiro uso contemporâneo do termo do
qual se tem conhecimento foi pela antropóloga Dana Raphael, no livro The
Tender Gift: Breastfeeding, assim chamando as mulheres que prestavam apoio
profissional à lactantes e puérperas nas Filipinas, na década de 1970.
Mas o uso do termo com o qual a palavra doula mais é identificada hoje
vem das pesquisas de Marshall H. Klauss, neonatologista, e John H. Kennel, pe-
diatra, sobre o apoio entre mulheres durante o parto. Eles chamaram de doula
a mulher que auxiliava continuamente à parturiente no trabalho de parto, num
formato de atenção individualizada 1 para 1. Em 1979, com a fundação da casa
de parto “The Birth Place” (fechada em 1994), na Califórnia, encontra-se a pri-
meira referência profissional do uso da palavra doula, chamada inicialmente de
“assistente de parto”. A partir da pesquisa de Marhall e Kennel, as fundadoras
da casa de parto incluíram a doula como membra da equipe. Em 1985, “The
Birth Place” ofereceu o primeiro curso de treinamento para doulas572.
Em 1992, é fundada a DONA International, (Doulas of North America),
primeira associação certificadora de doulas, de acordo com a qual a doula é:
“Uma profissional treinada que provém apoio , físico, emocional e informa-

570 Mander, R (2001)


571 FADYNHA, 2003, p. 172.
572 Informações retiradas de https://www.abracodemae.com/o-renascimento-da-doula-parte-ii/

288
Violência Obstétrica em Debate

tivo contínuo para a mãe antes, durante e logo após o parto, para ajudá-la a
alcançar a mais saudável e satisfatória experiência possível.573” Me aproximo
do nome acreditando que a linguagem é um organismo vivo que se constrói
e se adapta relacionando-se com o uso que se faz dela. Reconhecendo e res-
peitando o passado e as mulheres que ocuparam esta função ainda que contra
sua vontade, na antiguidade, hoje vejo que o termo doula se fundiu a outras
interpretações e nomeia mulheres que seguem a vocação de auxiliar a outras
mulheres nos temas da gestação, do parto e do puerpério. Não tenho como ob-
jetivo, com este texto, renomear, requalificar ou ‘explicar’ o que é uma doula,
mesmo porque acredito que cada mulher que assim se denomina, tem em si a
carga do que busca significar. Como nos diz o filósofo argelino Jacques Derri-
da: “para que houvesse um nome verdadeiramente próprio, seria preciso que
houvesse senão um único nome próprio, que não seria então nem mesmo um
nome, mas pura convocação do outro puro, vocativo absoluto”574.
Há muita fragilidade no status de verdade do nome doula. A construção
desse lugar remonta à épocas ancestrais, e seu papel comunga o paradoxo entre
o imutável poder do momento do nascimento e as novas práticas que respondem
ao papel social da mulher mãe na atualidade ocidental brasileira, considerando
a conjuntura de contextos sociais, econômicos, políticos e as particularidades
inerentes à subjetividade. O que viso neste texto, portanto, é, a partir de um
levantamento incipiente sobre a história do parto, apresentar questionamentos
que nos levem a perceber como a figura profissional da doula é única quando
focamos nosso olhar no cenário obstétrico brasileiro contemporâneo.

1. Do saber tradicional à profissionalização do serviço


A presença de uma mulher experiente auxiliando outra durante o parto
faz parte do arcabouço imagético da ideia que temos de nascimento quando
pensamos em um cenário de parto “de antigamente” - assim, posto entre aspas,
por reconhecer que ainda hoje encontramos locais onde o nascimento segue os
mesmos moldes de décadas e mesmo séculos atrás, com tudo o que isso tem, de
bom e de ruim. As representações de parto da antiguidade contam comumente

573 Disponível em: https://www.dona.org/what-is-a-doula/ Acessado em 13/02/2018


574 BENNINGTON. Jacques Derrida, p. 80, 81.

289
Violência Obstétrica em Debate

com a figura da parturiente, da gestante e de outra figura femina, podendo ser


encontradas desde em papiros egípcios, esculturas amazônicas, iluminuras em
livros de horas medievais, pinturas hindus a murais mexicanos. Não raro está
terceira mulher está em uma posição de apoio à gestante, com um abraço, uma
mão, ou mesmo ofertanto água ou comida, o que nos leva a crer que esta mu-
lher ocupava uma posição distinta da “assistente de parteira”. São numerosos os
relatos que identificam esta mulher com alguém da família da parturiente, uma
irmã, uma cunhada ou uma mulher conhecida que mora por perto.
Não é possível determinar, entretando, quando esta figura da ‘mulher que
serve’ adentrou no cenário brasileiro; considerando também que ela não é ine-
rente à todas as culturas. Mesmo no Brasil, as mulheres indígenas yanomami
vienciam os nascimentos de forma diferente, e muitas vezes dão à luz absoluta-
mente sozinhas575. Quando pensamos no parto, devemos contextualizar de que
parto falamos. No presente texto, pretendo me referir criticamente ao contexto
brasileiro. É possível comparar facilmente, entretanto, as experiências vividas
por mulheres na américa latina e caribe, o que constata tratar-se de uma leitura
que em muito se identifica com as construções políticas e econômicas dos países
envolvidos. Aqui vou focar no que acontece no Brasil, utilizando a cidade do
Rio de Janeiro como caso, fazendo um paralelo com os países do recorte citado,
considerando o intervalo temporal dos últimos 70 anos.
Até meados do século XX, o nascimento era um evento doméstico, feminino
e privado. As mulheres tinham suas crianças em casa, em seus quartos, rodeada
por mulheres da família (e criadas, quando as tinham). Os homens não faziam
parte do cenário. O momento assim se construiu, baseado em conhecimento em-
pírico, e a figura da parteira tradicional era o que se tinha como autoridade da
cena. Os partos de risco habitual corriam sem grandes adversidades, e a parteria
entrava como fonte de recursos para situações distócicas e muitas vezes inespe-
radas. A mortalidade materna e neonatal, contudo, era alta, por muitos outros
fatores contribuintes, como a falta de recursos de saneamento, por exemplo.
Com os avanços alcançados pela medicina, houve uma migração do par-
to para o ambiente hospitalar, que passou a ser vendido como o lugar seguro

575 Esta informação se baseia em relato oral da antropóloga Hanna Limulja (doutoranda em antropologia
pela UFSC), em conversa sobre sua vivência de cerca de 1 ano em aldeias yanomamis em Roraima e
na Venezuela e em entrevistas cedidas pelo antropólogo Erwin Frank, disponíveis em http://www.
proyanomami.org.br/v0904/index.asp?pag=noticia&id=3980 . Acessado em 13/03/2018.

290
Violência Obstétrica em Debate

para se ter bebês, caso alguma coisa saísse do controle. Aconteceu, então, uma
mudança radical: os partos deixaram de ser um fenômeno privado, feminino e
natural e passaram a ser um evento médico, patologizado e padronizado. Vale
ressaltar que, apesar da presença de mulheres nas Universidade remeter a 1879
(Reforma do Ensino Primário e Secundário do Município da Corte e o Superior
em todo o Império – instituída pelo Decreto nº 7.247, de 19 de abril de 1879, e
que ficou conhecida como Reforma Leôncio de Carvalho), o acesso era abso-
lutamente restrito a uma categoria progressista de mulheres de classe alta. Até
hoje o ensino universitário brasileiro está submetido ao poder econômico e à
desigualdades de gênero e raça. Ou seja, os partos passaram a ser e ainda o são -
em sua maioria - um evento centrado na figura do homem médico.
Aproveitando a chegada deste novo público: as mulheres que vinham
ter seus partos no hospital, nossos corpos femininos passaram a ser também
fonte de estudos e aplicação de práticas que buscavam adentrar no campo da
“inovação técnica”. Como podemos ler nas palavras de Michel Foucault,
A construção e a legitimação de conhecimentos biomédicos e o desen-
volvimento de tecnologias possibilitaram uma crescente intervenção
profissional no processo do nascimento,transformando os corpos das
mulheres grávidas em corpos-pacientes. A legitimidade dos saberes e
fazeres médicos ocorreu no bojo do nascimento do hospital como má-
quina de curar, sendo nesse cenário que os corpos das mulheres se tor-
nam corpos apacientados e a gravidez de evento social passa a evento
médico, ou seja, doença que deve ser curada.

Registros da primeira cesárea brasileira remetem a 1822, em Pernam-


buco, em uma mulher escrava negra. Vale aqui ressaltar o questionamento
sobre a disponibilidade dos corpos das mulheres negras em situação de vul-
nerabilidade, até os dias de hoje, considerando que são elas as maiores vítimas
de violência obstétrica e mortalidade materna576. Mas é apenas na década de
60, quando os avanços pela descoberta da penincilina, da ocitocina sintética e
das melhorias nos processos anestésicos, que o nascimento por via cirúrgica
se assenta por aqui e vem, por motivos diversos e complexos, sendo enxergado

576 Segundo o SIM (Sistema de Informações de Mortalidade) do Ministério da Saúde de 2015, 53,6%
das vítimas de mortalidade materna são negras. E segundo os Cadernos de Saúde Pública 30/2014
da Fiocruz, 65,9% das vítimas de violência obstétrica são mulheres negras.

291
Violência Obstétrica em Debate

como o cenário ‘normal’ de nascimento no país, tranformando o Brasil no


país com o maior índece de nascimentos via extração cirúrgica no mundo577.
A questão é que, seja por via vaginal ou via cirúrgica, o nascimento se
afastou de sua fisiologia e de seu papel social. E as mulheres ficaram, nesse pro-
cesso, isoladas e desinformadas. Quando mulheres pararam de presenciar os
nascimentos no âmbito doméstico, este saber saiu de suas mãos e de suas trocas,
ficando à mercê das narrativas médicas e em sua maioria, masculinas. O apoio
social foi bastante diminuído, o medo começou a substituir a certeza do parto
como acontecimento fisiológico e a presença do que pode dar errado se tornou
mais forte do que a tranquilidade diante da naturalidade do evento. Ao invés
da tradição familiar oral, as histórias de parto viram narrativas universitárias
de desfechos desfavoráveis e as técnicas aplicadas a diminui-los. Mulheres sem
nome, sem rosto e sem história. Solidão e medo. Um processo veloz que serviu
também - e quem sabe de propósito - para afastar as mulheres do autoconheci-
mento e da participação no processo como protagonistas. Com tantas questões
técnicas aparecendo, o caminho que se deu foi que a responsabilidade do nas-
cimento passou a ser papel do médico, e a gestante teve a potência da gestação
e do parto infantilizada, sendo eximida da construção de seu cenário ideal e
delegando-o exclusivamente ao obstetra - e ao pediatra, num círculo vicioso de
cada vez maior valorização das intervenções e um afastamento dos processos
fisiológicos, numa sociedade cada vez mais medicalocêntrica e patologizada,
em tantas outras áreas, onde as gestantes são “mãezinhas” que estão sofrendo
e precisam ser ajudadas, construindo e reforçando a ideia de que as mulheres
não conseguem parir sem intervenções e cujos corpos são defeituosos. Neste
ínterim, as doulas saíram de cena para ocupar as cochias dos pouquíssimos nas-
cimentos que ainda aconteciam de forma natural.
Mas sempre houve quem não concordasse com isso. Ao mesmo tempo
em que o sistema patologizava e assustava as mulheres, alijando-as de partos
naturais e sem violência, movimentos de mulheres faziam o caminho inverso.
Seja em encontros informais, seja com a formatação de grupos para gestantes e

577 De acordo com a pesquisa Nascer no Brasil, publicada  no Cadernos de Saúde Pública, vol. 30, em
2014, a taxa de cesáreas no sistema de saúde suplementar ou financiado por desembolso direto,
ou seja: pelo plano de saúde ou particular, chega a 90%, enquanto no SUS ela gira em 43%,
totalizando 55% dos nascimentos no país. Índice muito além dos 15% estimados pela ONU como
meta para os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM).

292
Violência Obstétrica em Debate

cursos preparatórios para o parto, as mulheres seguiram encontrando maneiras


para se fortalecerem mutuamente, e foi muito a partir da necessidade desse for-
talecimento mediante um levante de medicalização e institucionalização que se
forjou a figura da doula contemporânea no Brasil. Mas antes de fazermos entra-
mos na leitura contemporânea desta função, vamos olhar um pouquinho para o
que as principais organizações responsáveis por estudar e difundir a qualidade
na atenção de saúde e a profissão em si dizem sobre a doula.

2. Doula: quem a recomenda e porque.


Já se sabe que a presença da doula se relaciona a uma melhora substancial
na experiência de parto, além de auxiliar na redução de intervenções medica-
mentosas e diminuição nos índices de desfecho cirurgico. Segundo os estudos
de Hodnett, Hofmeyer e Sakala, a presença das doulas reduz em 34% os sen-
timentos negativos em relação ao parto, 28% de redução de cesáreas e aumen-
to de 12% nas taxas de parto vaginal espontâneo578. A Organização Mundial
de Saúde e o Ministério da Saúde também já publicaram notas e portarias
reconhecendo a contribuição da doula para a melhoria do desfecho e do sen-
timento em relação ao parto. Faz-se necessário considerar que as vantagens
não se dão apenas para as mulheres, como também para o sistema de saúde,
que tem uma melhora nas taxas de atendimento com maior qualidade bem
como significativa redução dos custos, fruto da diminuição das intervenções
medicamentosas e dos tempos de internação, seja das mães, seja dos bebês579.
No o guia Parto, Aborto e Puerpério - Assistência Humanizada à Mulher (Li-
vro do Ministério da Saúde - 2001 - páginas 64 a 67) a figura da doula é chamada
de acompanhante treinada e assim são definidas suas atribuições e competências:

578 Disponível em: https://doulasrio.wordpress.com/2014/12/18/novasevidencias/. Acessado em:


14/12/2017.
579 O Ministério da Saúde recomenda a presença de acompanhante profissional no livro “Parto, aborto
e puerpério – Assistência humanizada à mulher”. Ministério da Saúde, Secretaria de Políticas de
Saúde, Área Técnica da Mulher. – Brasília: Ministério da Saúde, 2001.
Já a OMS cita, no livro ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. OMS. Maternidade segura.
Assistência ao parto normal: um guia prático. Genebra: OMS, 1996 que”O apoio físico e empático
contínuo oferecido por uma única pessoa durante o trabalho de parto traz muitos benefícios,
incluindo um trabalho de parto mais curto, um volume significativamente menor de medicações e
analgesia epidural, menos escores de Apgar abaixo de 7 e menos partos operatórios.”

293
Violência Obstétrica em Debate

A acompanhante treinada, além do apoio emocional, deve fornecer in-


formações a parturiente sobre todo o desenrolar do trabalho de parto
e parto, intervenções e procedimentos necessários, para que a mulher
possa participar de fato das decisões acerca das condutas a serem to-
madas durante este período.
Durante o trabaho de parto e parto, a acompanhante:
* Orienta a mulher a assumir a posição que mais lhe agrade durante as
contrações:
* Favorece a manutenção de um ambiente tranqüilo e acolhedor, com
silêncio e privacidade;
* Auxilia na utilização de técnicas respiratórias, massagens e banhos
mornos;
* Orienta a mulher sobre métodos para alívio da dor que podem ser
utilizados, se necessários;
* Estimula a participação do marido ou companheiro em todo o processo;
* Apoia e orienta a mulher durante todo o período expulsivo, incluindo
a possibilidade da liberdade de escolha quanto à posição a ser adotada.

Já a OMS, no Manual Apoio durante o Parto, configura a doula como a


profissional que presta suporte contínuo e individual à parturiente, e assim
descreve sua importância:
Relatos e estudos controlados randomizados sobre o apoio por uma única
pessoa durante o parto, uma “doula”, parteira ou enfermeira, mostraram
que o apoio físico e empático contíno durante o trabalho de parto apresen-
tava muitos benefícios, incluindo um trabalho de parto mais curto, um vo-
lume significativamente menor de medicações e analgesia epidural, menos
escores de Apgar abaixo de 7 e menos partos operatórios580

Atualmente os cursos de capacitação de doulas no Brasil podem permitir


que elas tenham ou não a formação como educadoras perinatais. Apesar de
serem duas ocupações diferentes, os trabalhos se mesclam. Ainda que não
tenha a formação específica, o comportamento frequente das relações entre
gestantes e doulas passa por encontros e conversas sobre o parto, mas também

580 Klaus et al 1986, Hodnett e Osborn 1989, Hemminki et al 1990, Horfmeyr et al 1991

294
Violência Obstétrica em Debate

sobre a gestação, quando a contratação se formaliza a tempo; e sobre o pós-


-parto, incluindo auxílio sobre amamentação e primeiros cuidados.
No cenário mais global, a doula é a pessoa experiente que vai oferecer in-
formações (sejam baseadas em evidências científicas ou no saber tradicional)
e orientações sobre o que esperar e como lidar com os acontecimentos comuns
e adversos ao ciclo gravídico puerperal. São utilizadas também ferramentas
práticas variadas, que se vinculam muitas vezes à formações complementa-
res e práticas holísticas, como cromoterapia, aromaterapia, massagens, uso de
ervas, acupuntura e tantas outras. Resguardada sempre a necessidade de se
respeitar os códigos de ética e conduta profissional que impedem a doula de
efetuar qualquer intervenção de cunho médico e de práticas farmacológicas.
Ou seja, a doula não faz ausculta fetal, não monitora dilatação com exames
de toque, não afere pressão e sequer mede a temperatura. A doula não receita
medicação nem aplica tratamentos médicos de nenhum tipo. A doula oferece
apoio físico e emocional para a mulher e não substitui ninguém da equipe
médica nem as pessoas acompanhantes de escolha da mulher.
Outra atividade que faz parte do escopo de atuação da doula é o auxíio
na elaboração do plano de parto. Este nada mais é que um documento escri-
to pela gestante no qual elabora e registra seus desejos no que concerne os
cenários possíveis de nascimento, a recepção ao recém nascido e o pós parto
imediato, listando intervenções que aceita ou não e situações nas quais acha
aceitável que elas aconteçam, bem como demais subjetividades que a mulher
queira incluir e que possam auxiliar para que o momento do nascimento este-
ja o mais alinhado possível a suas expectativas. O plano de parto vem se mos-
trando cada vez mais como um instrumento muito potente para a elaboração
de um cenário de parto que adeque os desejos da mulher às possibilidades
inerentes a sua realidade.
Durante o trabalho de parto, a doula auxilia a parturiente a encontrar posi-
ções e movimentos que a confortem, atua com instrumentos não farmacológicos
para o auxílio das dores, como massagens, técnicas de relaxamento e, quando
possível, o uso da água quente com ou sem imersão. É uma companhia que gera
muita confiança na mulher e em quem a acompanha. A doula serve também para
facilitar a compreensão sobre os procedimentos, termos médicos e intervenções,
que muitas vezes acontecem sem que haja uma comunicação realmente compre-

295
Violência Obstétrica em Debate

ensível para as partes envolvidas. A doula fica com a mulher até que esta esteja
acomodada e amamentando, sempre que este cenário seja possível.
No puerpério, a doula visita a família para auxiliar no estabelecimento da
nova realidade que se formata a partir da experiêcia de nascimento vivenciada. A
doula auxilia no estabelecimento de uma amamentação de qualidade e nas dúvi-
das com os cuidados do bebê. O puerpério é uma fase repleta de ressignificações
e a doula ajuda para que as transições físicas, emocionais e familiares sejam mais
positivas. Com o suporte adequado, a tendência é que a experiência do puerpério
seja mais tranquila e efetiva na formatação de um vínculo de maior qualidade
entre mãe e bebê. A presença da doula no pós parto reduz o risco de depressão
pós-parto, tristeza materna e aumenta o sucesso do aleitamento materno.
Agora que já apreciamos mais detalhes sobre a a doula conforme ela figu-
ra nos manuais e protocolos de assistência, vamos conhecer um pouquinho do
que acontece atualmentei, e para isso usarei como base as mudanças surgidas
no cenário da cidade do Rio de Janeiro, que vem se mostrando, há quase uma
década, como um território potente de mudanças e resistência aos avanços
da violência obstétrica. Nesta narrativa, peço licença para comentar a partir
do ponto de vista das particularidades da minha vivência, que se misturam
como personagem e espectadora deste processo, visto que estou intimamente
inserida ao movimento carioca desde 2011, tendo me formado doula em 2012,
e acompanho diariamente os debates e ações feitos por outras mulheres, em
sua maioria doulas, aqui pela cidade. É uma linha do tempo muitas vezes atra-
vessada por reviravoltas, casos dramáticos e bastante acolhimento e transmu-
tação de experiências de dor e luto em luta e ativismo.
Até pouco mais de uma década atrás, a cidade do Rio de Janeiro podia
contar nos dedos de uma mão as mulheres que se denominavam doulas ou que
acompanhavam profissionalmente parturientes, e estas práticas se misturavam
bastante com visões holísticas, espiritualizadas e por vezes elitizadas sobre o
nascimento. Sabemos de professoras de yoga e terapeutas de mais variadas ver-
tentes que faziam e ainda fazem este tipo de acompanhamento. Talvez a pri-
meira doula assim chamada da cidade – e uma das primeiras do Brasil – seja
a Fadynha (digo talvez porque, apesar de não haver registro de nenhuma outra
doula à época, não há nenhuma referência que possa ser usada para embasar
esta informação). Fadynha, segundo informações disponíveis em suas publica-

296
Violência Obstétrica em Debate

ções581, prepara mulheres para o parto desde 1978, e neste processo, começa a
acompanhar as gestantes durante o trabalho de parto. Posteriormente capaci-
tada pela DONA, funda, em 2003, a ANDO (Associação Nacional de Doulas),
primeiro curso profissionalizante do Rio de Janeiro e de suma importância para
a regulação da atuação com o estabelecimento de um código de ética e normas
de conduta, formando, assim, as primeiras turmas de doulas da cidade.
Até mais ou menos esta época, a função da doula estava bastante limitada
a auxiliar à parturiente no caminho para o parto natural, ou seja, fisiológico e
sem intervenções; e estava, infelizmente, circunscrita a um número pequeno
de mulheres que, com maior acesso à informação, buscavam não só este tipo
de parto, como o acompanhamento da doula em si. Entretanto em menos de
uma década as coisas mudariam bastante. São muitos os vetores possíveis de
serem traçados para acompanhar esta mudança, mas penso que muito dela se
pelo crescente número de mulheres que se sentiram enganadas e violentadas
pelos profissionais da assistência médica ao passarem por cesarianas desne-
cessárias582 ou partos traumáticos como primeira experiência e começaram a
fissurar o sistema na busca de uma chance de parir com respeito. É no começo
dos anos 2010 que a figura da doula vai se misturando com mais nitidez e es-
trutura à luta contra a violência obstétrica, pois há não só um aumento nítido
de vítimas, como uma crescente conscientização contra um tipo de atitude
ainda reconhecidamente naturalizada na nossa sociedade.
Vale ressaltar que durante as primeiras turmas de formação de doulas da
ANDO, havia uma parceria bastante frutífera entre a Associação e algumas
maternidades públicas da cidade, para a realização de instruções práticas de
atendimento. Neste período, foi iniciado o programa de doulas voluntárias
na Maternidade Municipal Heculano Pinheiro, em Madureira, reimplantado
de forma independente por um grupo de doulas em 2013. O programa segue
até o presente e tem papel fundamental na melhoria da atenção obstétrica na
cidade, além de auxiliar muito na difusão de informação a respeito do papel
da doula e na horizontalidade do acesso.
É em 2010 que a doula Ingrid Lotfi, formada na primeira turma de dou-
las da Fadynha, traz para o Rio de Janeiro o primeiro núcleo do Ishtar, grupo

581 Disponível em http://www.institutoaurora.com.br/quemsomos/fadynha/ Acessado em 23/11/2017.


582 Segundo dados da OMS, os índices de cesárea no Brasil saltaram de 37,8% para 52,3% entre 2000 e 2010

297
Violência Obstétrica em Debate

gratuito para gestantes com foco no parto natural. Pouco se falava ainda sobre
humanização do nascimento e o objetivo estava voltado para garantir que as
mulheres não tivessem seu direito ao parto usurpado pela conveniência médica.
Nestes encontros, aos poucos, os relatos de sucesso, de fugas mirabolantes de
mulheres em trabalho de parto e de muito amor e respeito se misturavam a
relatos de dor, de violência e, por vezes, de luto. No começo os encontros aconte-
ciam em Copacabana, mas pouco tempo depois já era possível encontrar rodas
do Ishtar em várias partes da cidade. Atualmente, o Estado do Rio de Janeiro
conta com cerca de 11 núcleos, tendo sua coordenação dividida por quase 20
mulheres, sendo a maioria doulas. O espaço serviu para aumentar e fortalecer o
número de mulheres e famílias que se uniam contra o sistema vigente.
Os acontecimentos foram muitos e rápidos a partir daí – e não se trata de
fazer uma relação de causa e consequência entre os fatos, e sim de compreen-
der como um conjunto de fatores e ações concomitantes nos trouxe até o ce-
nário atual. Em 2012 o GAMA, Grupo de Apoio à Maternidade Ativa, de São
Paulo, promove no Rio de Janeiro, em parceria com o então existente Nucleo
Carioca de Doulas, mais um curso de formação de doulas.
Neste mesmo ano, um evento fundamental ressignifica a atuação do mo-
vimento pelo parto natural por aqui: a denúncia feita pelo Conselho Regional
de Medicina contra o obstetra Jorge Kuhn (de São Paulo) após ele defender em
entrevista concedida ao programa Fantástico, no dia 10 de junho, a escolha pe-
los partos domiciliares por parte de gestantes de risco habitual. Esta denúncia
daria margem às resoluções 265 e 266 publicadas no Diário Oficial da União
pelo CREMERJ em 19 de julho de 2012. Nelas “fica proibida a participação de
médicos em partos domiciliares e na assistência perinatal que não seja realizada
em maternidades. Está proibida também a ação de parteiras ou qualquer pessoa
que não seja profissional de saúde no parto em ambientes hospitalares”583. Em
uma ação inédita, em menos de uma semana após a denúncia, mulheres de todo
o Brasil organizaram a Marcha do Parto em Casa que, no Rio de Janeiro, acon-
teceu no dia 17 de junho, na orla de Copacabana. Muitas das mulheres que to-
maram a frente na organização do ato se tornaram doulas pouco tempo depois.

583 Disponível em http://www.cremerj.org.br/informes/exibe/1328;jsessionid=2C2389B8EA14C63614


8E1BCFD5335690 Acessado em: 27/11/2017. A resolução encontra-se atualmente em vigor, estando
o assunto sub judice.

298
Violência Obstétrica em Debate

No dia 30 de julho, após grande pressão popular, a justiça revoga as resoluções e


as mulheres se vêem diante de um breve período de tranquilidade.
A tranquilidade, contudo, não durou muito tempo e em outubro de 2013
novamente nos encontramos atordoadas diante de um acontecimento que
ameaçaria o já fragilizado cenário de humanização do nascimento na cidade
do Rio: a iminência do fechamento da Maternidade Maria Amélia Buarque de
Holanda. Num momento em que as cesarianas alcançavam taxas de mais de
50% no serviço público, a maternidade Maria Amélia, carinhosamente apeli-
dada de MMA, fundada em 2012, tinha protocolos inovadores e respeitosos,
os mais baixos índices de cesárea da cidade e um atendimento de altíssima
qualidade seguindo diretrizes de humanização que partiam da OMS e do MS.
Ainda assim – ou talvez justamente por isso – a instituição foi alvo de denún-
cias e seu fechamento foi anunciado. Novamente as mulheres se organizaram
com rapidez e efetividade, fazendo um grande ato em apoio à maternidade
e mobilizando a mídia e a sociedade civil a fazerem o mesmo. Pouco tempo
depois, o fechamento foi cancelado.
Tivemos menos de seis meses para celebrarmos a conquista e acreditar-
mos que estávamos seguras. Em 31 de março de 2014, testemunhamos uma
situação que culminaria no engajamento da expressão Violência Obstétrica
em nosso país: o caso Adelir. Adelir Carmem Lemos de Goes, então com 29
anos, era retirada de casa contra a sua vontade, através de uso de força policial,
e conduzida para uma cesariana por ordem médica, após, horas mais cedo,
contra a indicação da obstetra e tendo assinado um termo de responsabilida-
de, sair do hospital. O caso, extremo e inédito por aqui, comoveu mulheres
no mundo todo e sua repercussão mobilizou uma série de manifestações ao
Ministério Público. No Rio de Janeiro, no dia 11 de abril, o ato Somos todxs
Adelir reuniu mais uma vezes centenas de mulheres em busca de respeito,
dignidade e autonomia no momento do parto.
Já não se tratava apenas de buscar um parto natural, ou de melhorar a as-
sistência pura e simplesmente. Era hora de lutar contra a Violência Obstétrica,
esta sendo entendia como “apropriação do corpo e processos reprodutivos das
mulheres pelos profissionais de saúde, através do tratamento desumanizado,
abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, causando a
perda da autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e se-

299
Violência Obstétrica em Debate

xualidade, impactando negativamente na qualidade de vidas das mulheres”584.


É meu entendimento que este foi um momento de virada no qual as mulheres,
de maneira muito dolorosa, se deram conta de que estavam à mercê de um
sistema que não as considerava aptas para decidirem por si mesmas e, de ma-
neira ainda pior, decidia por elas sem qualquer embasamento ou interesse em
prezar por práticas atualizadas e humanização do atendimento.
Apesar de constarem no Cadastro Brasileiro de Ocupações desde 31 de ja-
neiro de 2013, sob o código 3221-35, algumas situações, refletindo as resoluções
265 e 266 do CREMERJ, ainda em vigor, conforme vistas anteriormente, segui-
ram assombrando as doulas até 2016 no Estado do Rio. Porém, com o acúmulo
de aprendizado adquirido nos encontros, mobilizações, atos e rodas nos anos
anteriores, a eficiência com a qual o movimento articulado de doulas resolveu
estas questões pode servir de exemplo para demais categorias que necessitem
de legislação e resolução. Na noite do dia 22 de março de 2016, as doulas cadas-
tradas na Maternidade Maria Amélia Buarque de Holanda receberam um cor-
reio eletrônico no qual estava escrito: “Em cumprimento à resolução Cremerj
nº 265/2012, a maternidade Maria Amélia Buarque de Hollanda (MMABH) in-
forma que a participação de doulas na assistência ao parto nesta instituição está
suspensa até decisão contrária. Cabe esclarecer que a direção da MMABH ape-
nas cumpre determinação legal”585. Há de se imaginar, tendo em vista que a ma-
ternidade era a única instituição pública da cidade que permitia a entrada das
doulas além do acompanhante de escolha da mulher, o grau da comoção gerada
pela comunicação. Muitas gestantes que estavam já a termo, ou seja, poderiam
entrar em trabalho de parto a qualquer momento, sentiram-se desamparadas
e perdidas. Por alguns dias, mulheres precisaram acionar a defensoria pública
para ter o acompanhamento das doulas garantido por liminar. Neste quesito,
vale ressaltar o apoio fundamental do NUDEM (Núcleo de defesa da mulher),
especialmente na figura da dra. Arlanza Maria Rebello, que não apenas acolheu
as denúncias como trabalhou incansavelmente para que as mulheres tivessem
este apoio garantido. Imediatamente após o recebimento das mensagens, ges-
tantes e doulas começaram a elaborar a articulação que resultaria na aprovação
da lei 7314/2016, a Lei das Doulas.

584 Definição retirada das leis que tipificam a violência obstétrica na Argentina e na Venezuela.
Disponível em: https://www.artemis.org.br/violencia-obstetrica. Acessado em 29/03/2018.
585 Arquivo pessoal.

300
Violência Obstétrica em Debate

Quando houve o impedimento, algumas mulheres começaram a pes-


quisar sobre suportes legais para combatê-lo, e assim foram descobertos dois
projetos de lei, um municipal e um estadual, que tratavam de garantir a en-
trada das doulas nas maternidades, hospitais e casas de parto. Como o PL
estadual já tinha tramitação mais avançada, os esforços foram concentrados
na aprovação do mesmo. Durante vários dias, doulas de toda a cidade ocu-
param os corredores e galerias da ALERJ, com documentos, dossiês, relatos
e muita conversa, indo de gabinete em gabinete, conversando com deputadas
e deputados, assessoras e assessores, para acelerar a tramitação do projeto de
lei 2195/2013, de autoria do Dr. Jose Luiz Nanci. No dia 15 de junho a lei era
aprovada com unanimidade. Com a demora para a sanção da lei por parte do
então governador em exercício Francisco Dornelles, as doulas novamente se
organizaram, em ato ocupando a frente do Palácio Guanabara, e conseguiram
que Dornelles sancionasse a lei na data limite para sua publicação, tendo sua
entrada garantida em todas as instituições com cobertura de atenção obstétri-
ca no território do Estado do Rio de Janeiro. Durante o processo de aprovação,
percebeu-se a necessidade de organizar formalmente a categoria e, após uma
temporada de assembléias, debates e espaços de formação, em 14 de maio de
2016, é fundada a Associação de Doulas do Estado do Rio de Janeiro, sob a
presidência de Morgana Eneile.
Com o intuito de melhorar alguns aspectos da lei estadual, assim como
fortalecer sua regulamentação, as doulas iniciaram em 2017 novo processo
de articulação, desta vez na Câmara dos Vereadores da cidade do Rio, para
a aprovação da lei municipal das doulas, a partir do PL1646/2015, de autoria
de Renato Cinco. A lei foi aprovada, porém vetada em 27 de novembro pelo
prefeito Marcelo Crivella. Mas uma oportunidade para a veloz mobilização
das doulas, que fez com que a Câmara derrubasse o veto. Em 26 de dezembro
é promulgada a lei 6305/2017.
No momento em que este texto esté sendo finalizado, acontece a 4ª Con-
venção Nacional de Doulas (CONADOULA), em João Pessoa, que tem dentre os
objetivos debater o PL8363/2017, de autoria da Deputada Federal Erika Kokay, que
busca regulamentar o exercício da profissão de doula, bem como a fundação de
uma entidade representativa nacional, a Federação Nacional de Doulas.

301
Violência Obstétrica em Debate

Conclusão
Considerando tudo o que foi escrito neste texto, convido a quem o lê
que faça uma colagem entre a figura da doula, conforme sua representação
mais tradicional, que foca a atuação da “mulher que serve” no suporte físico e
emocional da parturiente; a “acompanhante treinada”, que com isso constrói
uma formação que tangencia o conhecimento obstétrico com mais veemên-
cia, conferindo a ela a função de oferecer informação à gestante, não apenas
sobre a fisiologia do nascimento, como sobre toda a conjuntura envolvendo
o cenário da assistência obstétrica; a imagem da mulher que reconhece, tes-
temunha e vivencia a violência obstétrica, criando a partir da dor a força e a
coragem para mudar esta realidade; e finalmente a imagem da profissional au-
daciosa e combatente, capaz de mobilizar-se a à outras mulheres para garantir
o exercício de seu trabalho.
Esta é a imagem da doula contemporânea do Rio de Janeiro: um novo
papel social da doula, que se constrói como lança e escudo, para fissurar o
sistema e proteger a mulher, pois é insuficiente abordar o papel da doula aqui
apenas considerando sua atuação técnica com o objetivo de auxiliar a mulher
a lidar com as dores, desconfortos e emoções do trabalho de parto.
O contato com a violência obstétrica inerente ao padrão de nascimento
no Brasil acabou por causar uma mudança estrutural na maneira como boa
parte das doulas encara sua profissão. O que temos, essencialmente se fechar-
mos nosso recorte temporal na última década, na cidade do Rio de Janeiro,
são dois caminhos que levam uma mulher a se tornar doula por aqui:
uma experiência muito prazerosa de parto, seja da própria doula ou de
alguma mulher próxima e/ou uma experiência de violência obstétrica, tam-
bém própria ou de outra.
No desenrolar da formação e da atuação, ambas realidades se misturam
e nós lidamos cotidianamente com nascimentos que respeitam a dignidade
e a humanização da atenção; e nascimentos enxarcados de violências obsté-
tricas, explícitas ou veladas, pois com a lacuna entre a educação perinatal de
qualidade e o tipo de informação que é propagada a respeito do nascimento o
resultado é a naturalização deste tipo de experiência.
Fato é que, seja pela motivação de repercutir uma experiência positiva
ou modificar uma realidade de sofrimento, as doulas do Rio de Janeiro são

302
Violência Obstétrica em Debate

forjadas na luta contra a Violência Obstétrica e isso agrega uma função ao seu
papel. As doulas do Rio são vistas – e muitas vezes assim se colocam – como
escudos de proteção contra este tipo de violência, tendo como um de seus
principais focos de atuação instrumentalizar a gestante na busca de não sofrer
violência ou minimizar seus danos.
Corre pelos corredores de algumas maternidades a prática do “parto
amenizado”: onde não é possível adequar o cenário ao conceito de humani-
zação que individualiza a atenção ao protagonismo e aos desejos da mulher,
o esforço é para que ao menos a parturiente tenha algum tipo de blindagem
contra a violência obstétrica, e com isso me refiro a tentarmos desde impedir
que esta mulher sofra procedimentos desnecessários – alguns, como a mano-
bra de kristeller que são contraindicados pela OMS mas seguem como prática
rotineira em alguns locais -, diminuir as chances de que ela seja vítima de
ridicularização e preconceito por tentar fazer escolhas que não correspondem
às expectativas da equipe, até auxiliar para que se façam valer leis e protoco-
los, como as do acompanhante, das doulas e do plano de parto, bem como as
resoluções da OMS e do Ministério da Saúde.
As doulas do Rio debatem incansavelmente sobre áreas que, iniciamente,
não deveriam nos dizer respeito, como condutas obstétricas e aspectos jurídi-
cos, mas que se deixadas ao prazer do senso comum e da abordagem médica
padrão, invariavelmente encaminham a parturiente a um parto violento. Elas
precisam conhecer as equipes, recolher relatos, articular mulheres. Precisam
conhecer as instituições, quebrar barreiras culturais graves que impedem
uma atuação multidisciplinar de qualidade que supere batalhas de egos para
priorizar a gestante, precisam acionar canais de denúncias, ouvidorias, minis-
tério público e secretarias para fazer valer leis já aprovadas. Por vezes montam
verdadeiras forças-tarefas para tentar viabilizar um nascimento respeitoso,
com planos mirabolantes para deslocar gestantes de locais onde a atenção não
prevê possibilidades de nascimentos respeitosos. As doulas precisam ainda
lidar com a mercantilização profissional, com a quebra de paradigma da eli-
tização da humanização, para que toda mulher que deseje uma doula possa
ter uma. Para que toda mulher saiba o que é uma doula e os seus benefícios,
a fim de fazer uma escolha verdadeiramente informada. Toda mulher merece
uma doula, e nosso horizonte deve ser que nosso trabalho esteja disponível
para todas as mulheres, usuárias do sistema de saúde público e suplementar.

303
Violência Obstétrica em Debate

É imprescindível, inclusive, olhar para a doula como testemunha. Uma


mulher com um olhar crítico, com vasta informação sobre o nascimento e
seus processos fisiológicos que adentra na sala de parto ou centro cirúrgico ca-
paz de compreender as ações das pessoas envolvidas, seja para elaborar junto
à mulher e à família a experiência vivida, em caráter posterior, seja para servir
como testemunha em um processo judicial de denúncia – apesar de a relação
contratual entre as partes muitas vezes não viabilizar o testemunho.
Dito isto, gostaria de finalizar o texto dizendo que é passada a hora de ga-
rantir às mulheres o direito a um atendimento verdadeiramente humanizado
durante o pré natal, o parto e o pós-parto – cesáreas inclusas, que respeite sua
autonomia, firmando-se no consentimento informado, na medicina baseada
em evidências, na empatia e no reconhecimento da diferença e da diversidade.
Ainda que a presença das doulas não seja imprescindível para o alcance deste
objetivo, é inegável que estas profissionais são peça fundamental na engrena-
gem que movimenta o sistema para a erradicação da violência obstétrica.

304
Ampliação do direito à saúde da gestante:
inclusão da aromaterapia no atendimento
do Sistema Único de Saúde (SUS)

Samara Amaral Freitas

Introdução
A saúde da gestante está inserida no contexto geral do Direito à saú-
de consagrado na Constituição Federal como um direito de todos e dever do
Estado. Neste contexto, o crescente movimento de humanização do parto
abrange diversas técnicas, terapias e usos, sendo necessário identificá-los e
contextualizá-los para que os profissionais e as gestantes tenham ciência da
possibilidade de utilização de tais métodos e possam requerê-los de acordo
com a necessidade no momento da gestação, do parto e pós-parto.
Uma dessas possibilidades é o uso das práticas integrativas, recomenda-
das ao uso da saúde primária pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e
que, em razão da legislação vigente, poderá estar disponível no Sistema Único
de Saúde (SUS). Estas práticas aumentam as possibilidades de tratamentos e
terapias para a população como um todo. Portanto, é uma forma de ampliação
do direito à saúde e, consequentemente, à saúde da mulher.
A informação e o conhecimento sobre estes métodos, para a mulher, em
especial durante a gravidez, no parto ou pós-parto, faz parte do conceito de
autonomia que se busca na humanização, onde a mulher, bem informada, tem
efetiva participação nas escolhas sobre a sua saúde e nas diretrizes de seu parto.
São múltiplas as possibilidades de utilização de medidas não alopáticas
para diversos diagnósticos e situações, havendo o Ministério da Saude inte-
grado ao SUS a política nacional de práticas integrativas. Dezoito tipos destas
medicinas alternativas foram integradas oficialmente em 2006. Em 2018 nove
novos tipos dessas praticas foram integradas, incluindo a aromaterapia que é
a análise central deste artigo.

305
Violência Obstétrica em Debate

O movimento do parto humanizado tem vários sentidos e facetas e leva em


conta a reivindicação dos direitos da mulher, a participação da parturiente e méto-
dos de alivio da dor. Desta forma a aromaterapia se conecta ao parto humanizado
com múltiplos usos na gestação, parto, e pós-parto, em que mulher, na plenitude
de sua autonomia, deve participar da escolha do método e tratamento desejável.
A aromaterapia é uma prática terapêutica que se utiliza de óleos essenciais
para curar, tratar e/ou amenizar sintomas e/ou doenças. Dependendo da verten-
te histórica ensinada é usada na forma de compressas, em contato com a pele,
por inalação ou ingestão. Usados no momento do parto, estes óleos ajudam na
diminuição da dor, em questões emocionais ou com respostas fisiológicas.
Apesar da aromaterapia ser uma técnica secular com comprovada eficá-
cia em várias áreas, na questão especifica da dor no parto esta prática necessita
de mais evidências em ensaios randomizados controlados, que corroborem
com os relatos e históricos das mulheres. Contudo, isso não significa dizer que
não haja uma eficácia real no uso. Ao contrário, os relatos de muitas mulheres
corroboram essa eficácia, o que estamos pleiteando é que hajam mais pesqui-
sas nesta área de atuação.

1. O Direito à Saúde e a Política Nacional de Práticas


Integrativas e Complementares (PNPIC) no
Sistema Único de Saúde (SUS)
O direito a saúde esta consagrado no artigo 196 da Constituição da Republi-
ca Federativa do Brasil expressamente dispondo ser a saúde um dever do Estado
através de políticas sociais e econômicas e um direito de toda população, in verbis:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido me-
diante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações
e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Visando ampliar o direito à saúde e uma mudança da sistemática saúde-


-doença, as práticas integrativas e complementares, ou como são conhecidas
popularmente, “ramos da medicina alternativa”, cada vez mais se integram
ao sistema de saúde. Surgem como uma resposta à busca da população por

306
Violência Obstétrica em Debate

alternativas à prática medicamentosa e muitas vezes não humanizada, onde o


contato humano, o cuidado holístico e o integral da vida do paciente é deixa-
do de lado por protocolos e respostas rápidas.
Emílio Telesi Júnior em 2016, no seu artigo As práticas integrativas e
complementares em saúde, uma nova eficácia para o SUS explica, em linhas
gerais, que essas práticas se caracterizam pela interdisciplinariedade, contra-
pondo-se ao regime vigente que trata o paciente em especialidades, não dando
conta do ser humano em sua totalidade.
[…] expressão de um movimento que se identifica com novos modos
de aprender e praticar a saúde, já que essas práticas caracterizam-se
pela interdisciplinaridade e por linguagens singulares, próprias, que
em geral se contrapõem à visão altamente tecnológica de saúde que im-
pera na sociedade de mercado, dominada por convênios de saúde cujo
objetivo precípuo é gerar lucro e fragmentar o tratamento do paciente
em especialidades que não dão conta da totalidade do ser humano em
busca de remédio para seus males.586

É nessa expectativa de alternativa e integralidade da saúde que surgem


os movimentos para promover essa “medicina alternativa” nas comunidades,
culminando com a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementa-
res (PNPIC) no Sistema Único de Saúde (SUS), que tendo suas bases constru-
ídas desde 2003, foi consolidada oficialmente no ano de 2006, ao ser aprovada
com unanimidade pelo Conselho Nacional de Saúde e publicada nas Portarias
Ministeriais nº 971 em 03 de maio de 2006, e nº 1.600, de 17 de julho de 2006.
O movimento para integração de medicinas alternativas ganhou força
a partir da Oitava Conferência Nacional de Saúde ocorrida em 1986 e com a
criação do Programa de Medicina Tradicional pela OMS – Organização Mun-
dial da Saúde, de 2002-2005. Este programa da OMS incentivou os Estados-
-membros a adotarem políticas públicas que impulsionassem a utilização,
pesquisa e integralidade das práticas médicas alternativas nos sistemas de
saúde, principalmente na saúde primária.
Tendo como referência esses documentos e a participação da população,
surgem relatórios, portarias, documentos e eventos nacionais, inicialmente

586 JÚNIOR, Emílio Telesi. Práticas integrativas e complementares em saúde, uma nova eficácia para o
SUS. In: Estudos Avançados, n. 30, p. 99-112, 2016, p. 99.

307
Violência Obstétrica em Debate

com o enfoque de regularizar a homeopatia, a acupuntura, o uso de plantas


medicinais, a fitoterapia, a adoção de práticas corporais e meditativas, dentre
outras, surgindo assim a Política Nacional de Práticas Integrativas e Comple-
mentares (PNPIC). Desta forma a PNPIC teve inicio atendendo às diretrizes e
recomendações de conferências nacionais de saúde e da OMS.
Assim, em 2006, foi regulamentada a possibilidade de disponibilida-
de no SUS das práticas integrativas de apiterapia, aromaterapia, arteterapia,
ayurveda, biodança, bioenergética, constelação familiar, cromoterapia, dança
circular, geoterapia, hipnoterapia, homeopatia, imposição de mãos, medicina
antroposófica/antroposofia aplicada à saúde, medicina tradicional chinesa –
acupuntura, meditação, musicoterapia, naturopatia, osteopatia, plantas medi-
cinais – fitoterapia, quiropraxia, reflexoterapia, reiki, shantala, terapia Comu-
nitária Integrativa, terapia de florais, termalismo social/crenoterapia, yoga.
O Ministério da Saúde incluiu a aromaterapia, apiterapia, bioenergética,
constelação familiar, cromoterapia, geoterapia, hipnoterapia, imposição de
mãos, medicina antroposófica/antroposofia aplicada à saúde, ozonioterapia,
terapia de florais e termalismo social/crenoterapia à rede publica de saúde por
meio da Portaria N° 702, de 21 de março de 2018. Esta portaria é importante,
pois a aromateria será tratada mais adiante neste artigo.
A PNPIC está também intrinsecamente ligada e interage fortemente com
os princípios que regem o SUS, quais sejam: da universalidade; da equidade e
da integralidade.
A PNPIC corrobora para a integralidade da atenção à saúde, princípio
este que requer também a interação das ações e serviços existentes no
SUS. Estudos têm demonstrado que tais abordagens contribuem para a
ampliação da corresponsabilidade dos indivíduos pela saúde, aumen-
tando, assim, o exercício da cidadania.587

Assim, temos três princípios: o princípio da universalidade é a garantia


de atenção à saúde de todo cidadão, requerendo a integração das ações; o da
equidade assegura ações e serviços de todos os níveis; e o da integralidade é o

587 MS, Ministério da Saúde. PNPIC Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no
SUS. Brasília, DF, 2 ed., p. 8, 2015. Disponível em <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/
politica_nacional_praticas_integrativas_complementares_2ed.pdf> Acesso em 16 jun. 2018.

308
Violência Obstétrica em Debate

reconhecimento de que o homem é um ser integral, bio-psico-social e deve ser


atendido com esta visão geral.
A universalidade lida com a saúde como um direito, este se relaciona com
a PNPIC com o fato destas terapias antes estarem disponíveis somente de forma
particular e paga, e agora são disponíveis para toda a população inserida no SUS.
A equidade é exercida quando hoje temos uma política nacional, pois algumas
práticas já estavam sendo utilizadas por algumas poucas unidades de saúde, agora
elas estão sendo incentivadas em todas, então as áreas que mais necessitam dessas
técnicas também terão mais oportunidades de fornecê-las. O terceiro princípio, o
da integralidade, tem vários sentidos, neste enfoque específico dado por Gustavo
Corrêa Matta, este principio evolve o sujeito como um todo e os serviços de saúde
devem estar organizados visando atender a diversidade das pessoas, por outro
lado, identifica a humanização das práticas de saúde, tendo sempre o sujeito como
centro e objetivo da saúde e não apenas a doença.
[…] sentido, que expressa uma concepção do processo saúde/doença, a
noção de atenção integral também diz respeito à crítica ao reducionis-
mo biomédico, incorporando o conceito ampliado de saúde que men-
cionamos anteriormente. Isto é, a compreensão das diversas dimensões
que determinam a produção da saúde e da doença, envolvendo o sujeito
como um todo e suas relações com a sociedade e o meio ambiente, e não
apenas sua descrição biológica. Nesse sentido, mais uma vez, as ações
e serviços de saúde devem se organizar para atender à diversidade de
necessidades das pessoas e dos grupos sociais. Podemos, no sentido pro-
posto, identificar todo o esforço de humanização das práticas de saúde e
da política nacional de humanização, localizando o sujeito como o cen-
tro e objetivo privilegiado da ação em saúde e não a doença ou o corpo.588

Exatamente por ampliar o conceito de saúde e já ter um olhar huma-


nizado, essas PNPICs, de forma intrínseca, se relacionam com o SUS e am-
pliam sua forma de atuação. Mudar o olhar da medicina que é normalmente
usada traz a questão da interdisciplinariedade, com um olhar mais holístico
e humanizado, onde o indivíduo é tratado como um todo, contrastando com
as especializações e especificidades de diagnósticos usadas na alopatia, sendo
um fator complementar entre esses tipos de medicinas. São, portanto, uma

588 MATTA, Gustavo Corrêa. Princípios e Diretrizes do Sistema Único de Saúde. Políticas de Saúde: organização
e operacionalização do Sistema Único de Saúde. Rio de Janeiro, Fiocruz, p. 61-80, 2007, p. 71-72.

309
Violência Obstétrica em Debate

forma de ampliação ao direito à saúde, na medida em que dão à população a


possibilidade de utilização desses tratamentos diferenciados através do SUS.
A questão não é em torno de usar ou não a medicina convencional, esta
continua sendo importante e predominantemente usada, mas tomar conheci-
mento de que outros olhares e outros valores existem, e devem ser respeitados
e/ou até incorporados para que predomine uma assistência com mais enfoque
no cuidado e no ser humano integralmente.
Não é por necessidade de saúde que milhares de pessoas vêm procuran-
do as Práticas como forma de recuperação da saúde. Afinal, temos o que
há de mais moderno e avançado na medicina, tanto no SUS como no sis-
tema privado. Não é por falta de procedimentos diagnósticos, médicos,
medicamentos ou outros recursos que estamos resgatando o valor das
medicinas tradicionais. É por vontade de afirmar uma identidade de cui-
dado oposta à prática de cuidado feita de forma muitas vezes desumana,
que infelizmente prepondera entre nós. As PICS expressam o desejo de
mostrar que é possível implementar outras práticas de saúde.589

Quando se fala em direito à saúde, pode-se inserir aqui o direito das


mulheres, e, em especial das gestantes, que por vezes, em situações de maior
vulnerabilidade, precisam ter seus direitos enfatizados e discutidos especifica-
mente para que eles sejam respeitados.

2. Aromaterapia, gestação e parto


A definição de aromaterapia na legislação brasileira se dá segundo a por-
taria nº 702 do Ministério da Saúde, que dispõe:
A aromaterapia é prática terapêutica secular que consiste no uso in-
tencional de concentrados voláteis extraídos de vegetais - os óleos es-
senciais (OE) - a fim de promover ou melhorar a saúde, o bem-estar e
a higiene. Na década de 30, a França e a Inglaterra passaram a adotar
e pesquisar o uso terapêutico dos óleos essenciais, sendo considerada
prática integrante da aromatologia - ciência que estuda os óleos essen-
ciais e as matérias aromáticas quanto ao seu uso terapêutico em áreas

589 JÚNIOR, Emílio Telesi. Práticas integrativas e complementares em saúde, uma nova eficácia para o
SUS. In: Estudos Avançados, n. 30, p. 99-112, 2016, p. 110.

310
Violência Obstétrica em Debate

diversas como na psicologia, cosmética, perfumaria, veterinária, agro-


nomia, marketing e outros segmentos.

A aromaterapia utiliza como principal ativo para suas técnicas os óleos


essenciais, que se diferenciam das essências, e isso é importante destacar, pois
comumente há uma confusão entre essas duas substâncias. As essências são
produzidas quimicamente em laboratório, enquanto os óleos essenciais são
concentrados voláteis extraídos de vegetais, portanto uma substância mais
natural com propriedades terapêuticas.
A aromatologia como a ciência que estuda os óleos essenciais, mostra a
separação entre a formação baseada na escola francesa e a baseada na escola
inglesa e suas diferentes formas de propagação do uso. A formação inglesa
prioriza o uso dos óleos essenciais em massagens e proíbe qualquer forma
de utilização oral. Já a formação francesa se baseia em estudos e formas de
utilização oral, sendo atualmente usada nesse sentido principalmente para
problemas digestivos. Esta parte da ciência, ligada à formação francesa,é que
costuma ser chamada de aromatologia.
Historicamente, tanto a aromaterapia quanto a aromatologia, compar-
tilham a mesma base indivisível do desenvolvimento de medicamentos
fitoterápicos ou alopáticos. […] Nós precisamos de ter uma definição
da aromatologia como distinta da aromaterapia. Mas essa divisão é um
tanto falsa e forçada, já que a aromatologia é um ramo da aromatera-
pia, entendida de forma apropriada. Devido à idéia difundida na Ingla-
terra de que aromaterapia consiste de massagens com óleos essenciais,
todos os outros usos ficaram obscurecidos. A aromaterapia abraça to-
dos os métodos de se utilizar os óleos essenciais. A falta do uso interno
e intensivo restringiu a aromaterapeuta.590

Assim, a aromaterapia deveria ser o termo que engloba todos os usos


dos óleos essenciais abrangendo todas as possibilidades existentes. A unifica-
ção desses estudos deveria ser o desejo dos profissionais, pois a aromatologia
amplia o potencial de uso terapêutico. Segundo Penny Price em 2004, no seu
artigo Aromatologia, essa divisão existe por um medo de alguns profissionais

590 PRICE, Penny. Aromatologia. Tradução do original em inglês: Fábián László. 2004, p. 1-2.
Disponível em <http://www.ibraromatologia.com.br/userfiles/file/ARTIGOS%20EM%20PDF/
AROMATOLOGIA.pdf> Acesso em 16 jun. 2018.

311
Violência Obstétrica em Debate

pela má utilização dos óleos essenciais e suas consequências, porém qualquer


medicamento mal utilizado será maléfico a saúde. Essas barreiras dificultam
a ampliação da utilização terapêutica ou medicamentosa desses concentrados
que há tempos vem mostrando sua boa utilização.
Hoje em dia, existe um debate sobre uma legislação apropriada ao uso
de óleos verdadeiros. […] Contudo óleos essenciais verdadeiros não
podem ser regulamentados como remédios. Devido a eles serem obti-
dos de uma simples planta, e as plantas estarem sujeitas a uma série de
variáveis (do clima, solo, quantidade de luz, etc), é impossível determi-
nar de forma adiantada a cromatografia (GLC) de qualquer óleo. Até
o presente momento a maioria dos óleos essenciais verdadeiros estão
enquadrados dentro da legislação de alimentos e cosméticos. Este é o
caso para um “padrão base”, não do tipo “padrão de eficácia” que existe
nos EUA, para se estabelecer e que pode permitir um conceito apro-
priadamente adequado dos óleos essenciais, tanto utilizando-os na
aromaterapia pela massagem ou intensivamente em aplicações tópicas
ou internamente como na aromatologia.591

É necessário uma boa utilização de óleos verdadeiros e puros, ou seja,


aqueles que têm a cromatografia - a especificação de seus componentes - e o
acompanhamento de um aromaterapeuta bem qualificado para que haja uma
melhor utilização da aromaterapia, principalmente na utilização oral desses
óleos, além de uma legislação aplicável à sua eficácia.
Não obstante existe muita dificuldade na elaboração desta legislação,
uma vez que os óleos essenciais são obtidos de uma simples planta que recebe
muitas variáveis, o que acaba por influenciar a sua cromatografia e composi-
ção química final, com bons profissionais que usam a cromatografia e a pro-
cedência dos óleos essenciais a seu favor esses desafios são superados e ainda
se tem uma ótima utilização e resultados.
Isso se conecta com o direito a saúde no momento em que a aromate-
rapia, usada com todo seu potencial abrange várias formas de uso, tanto na
massagem, quando para questões psicológicas ou medicamentosas, podendo
até mesmo ser uma área de especialização médica (como ocorre em algumas

591 PRICE, Penny. Aromatologia. Tradução do original em inglês: Fábián László. 2004, p. 2.
Disponível em <http://www.ibraromatologia.com.br/userfiles/file/ARTIGOS%20EM%20PDF/
AROMATOLOGIA.pdf> Acesso em 16 jun. 2018.

312
Violência Obstétrica em Debate

universidades francesas). O uso da aromaterapia na gestação se insere nessa


utilização geral, pois pode ser usada como alternativa ao sistema de medica-
lização atual, com os devidos cuidados, pois não são todos os óleos essenciais
que podem ser usados durante a gestação. Esses óleos também podem ser uti-
lizados para fatores emocionais, como por exemplo em formas de diminuir o
estresse, esteticamente e tantas outras possibilidades.
Na questão do momento do parto os óleos essenciais também têm seu uso,
sendo este normalmente utilizado para o alivio da dor, “Many women would
like to avoid pharmacological or invasive methods of pain relief in labour and
this may contribute towards the popularity of complementary methods of pain
management”592 Também tem sua possibilidade de atuação em questões psi-
cológicas do momento, como por exemplo para o relaxamento da parturiente.
A Biblioteca Cochrane, Banco de Dados de Revisões Sistemáticas (Co-
chrane Library, Database of Systematic Reviews) publicou uma revisão siste-
mática em 2011 sobre Aromaterapia para alivio da dor no parto (Aromathera-
py for pain management in labour (Review). Segundo esta revisão não há evi-
dencias suficientes sobre a eficácia nesse sentido, levando em consideração as
duas pesquisas selecionadas, porém enfatizou a necessidade de mais pesquisas
nesta área593. Isso mostra um descompasso da prática com as pesquisas, que
infelizmente acabam sendo poucas e com muitos desafios, não conseguindo
ainda abarcar a diversidade de possibilidades e possíveis resultados.
O uso da aromaterapia também se liga ao movimento do parto huma-
nizado levando em consideração algumas de suas vertentes e pensamentos.
Esses serão relacionados tomando como marco teórico a Simone Diniz em
2005, no seu artigo Humanização da assistência ao parto no Brasil, mais es-
pecificamente duas definições que ela dá, a segunda e a sexta, de letras b e f. A
primeira citada é a “Humanização como a legitimidade política da reivindica-
ção e defesa dos direitos da mulheres (e crianças, e famílias) na assistência ao

592 “muitas mulheres gostariam de evitar métodos farmacológicos ou invasivos para alivio da dor no
trabalho de parto e isso pode ser o que contribui para a popularidade dos métodos complementares
de alívio da dor.” (Tradução própria) (Bennett, 1999 apud SMITH Caroline A.; COLLINS Carmel
T.; CROWTHER Caroline A.. Aromatherapy for pain management in labour. Cochrane Database of
Systematic Reviews, n. 7, 2011, p. 3.
593 SMITH Caroline A.; COLLINS Carmel T.; CROWTHER Caroline A.. Aromatherapy for pain
management in labour. Cochrane Database of Systematic Reviews, n. 7, 2011, p. 30.

313
Violência Obstétrica em Debate

nascimento”594 e a segunda é “Humanização referida à legitimidade da parti-


cipação da parturiente nas decisões sobre sua saúde”.595
A primeira definição mostra a necessidade de munir as mulheres de in-
formações e centralizar o atendimento com base nos direitos, nesse artigo
relacionamos isso a uma ampliação ao direito à saúde, mas mais especifica-
mente, aquela que pode ser feita pelas práticas integrativas e complementares.
É portanto, uma ampliação ao direito da mulher, como por exemplo, quando
uma mulher com dificuldade para engravidar pode procurar uma forma de
aumentar sua fertilidade com a acupuntura ou a utilização de óleos essenciais
no momento do parto, sendo para massagem como alívio da dor feita por uma
Doula ou seu acompanhante.
É importante definir que é uma ampliação ao direito da mulher, pois até
pouco tempo essas medicinas alternativas não tinham sequer abertura políti-
ca e ainda há muita luta para que haja uma melhora nos tratamentos alopáti-
cos, bem como a maior utilização da medicina baseada em evidências. Estas
não são lutas conflitantes, mas complementares.
Portanto, a disponibilidade das práticas integrativas complementares
no SUS possibilitam à gestante ter seu direito à saude ampliado com maiores
possibilidades de tratamentos e promoção à saude. Como promoção à saúde
entende-se a visão do processo saúde-doença de forma integral e complemen-
tar, usando de uma abordagem holística e de integração, ligada ao empodera-
mento individual e social.
Ressalta-se que as práticas de promoção da saúde visam romper a ex-
cessiva fragmentação na abordagem do processo saúde-adoecimento,
fortalecendo as articulações intersetoriais e promovendo o cuidado
integral. Para tanto, sustentam-se nos princípios da concepção holísti-

594 DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos
sentidos de um movimento. Ciênc. saúde coletiva.  Rio de Janeiro, v. 10,  n. 3,  p. 627-637,
set.,  2005, p. 633. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
81232005000300019&lng=en&nrm=iso> Acesso em 16 jun. 2018.
595 DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos
sentidos de um movimento. Ciênc. saúde coletiva.  Rio de Janeiro, v. 10,  n. 3,  p. 627-637,
set.,  2005, p. 634. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
81232005000300019&lng=en&nrm=iso> Acesso em 16 jun. 2018.

314
Violência Obstétrica em Debate

ca, intersetorialidade, empoderamento, participação social, equidade,


ações multiestratégicas e sustentabilidade.596

A segunda definição citada no artigo da Simone Diniz refere-se à “le-


gitimidade da participação da parturiente nas decisões sobre sua saúde”597 e
reitera esse empoderamento da mulher pois ele se baseia em uma retomada
do protagonismo da mulher tanto no parto como na gestação, para que possa
tomar decisões conscientes sobre os acontecimentos e havendo uma maior
preocupação dos profissionais com o diálogo e bem-estar da mulher.
Contudo esse empoderamento também é influenciado por todos os agen-
tes de saúde com os quais a mulher tem contato e a PNPIC se torna de suma
importância nesse cenário, pois possibilita que no SUS haja essa possibilidade,
no sentido de que esses agentes se envolvam com essas práticas ou possam
se especializar nelas e difundir o conhecimento. Um bom exemplo seria o
caso de uma Enfermeira Obstetra com conhecimentos em aromaterapia po-
der usar dos óleos essenciais para ajudar no relaxamento de uma parturiente
em trabalho de parto num ambiente hostil e desconhecido que é o hospital.
Podem-se afirmar, ainda, as potencialidades das práticas estudadas em
contribuir para o empoderamento do indivíduo, tendo em vista que esse
elemento constitui um eixo central da promoção da saúde. [...] O empo-
deramento “psicológico” tem como objetivo fortalecer a autoestima e a
capacidade de adaptação ao meio e o desenvolvimento de mecanismos de
autoajuda e solidariedade. […] Entende-se o empoderamento comunitá-
rio como uma possibilidade de os indivíduos e coletivos desenvolverem
competências que possam ser compartilhadas na vida em sociedade, in-
cluindo habilidade e pensamento reflexivo sobre as políticas públicas.598

596 LIMA, Karla Morais Seabra Vieira; SILVA Kênia Lara; TESSER Charles Dalcanale. Práticas
integrativas e complementares e relação com promoção da saúde: experiência de um serviço
municipal de saúde. Interface (Botucatu), nov. 2013, p. 8.
597 DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos
sentidos de um movimento. Ciênc. saúde coletiva.  Rio de Janeiro, v. 10,  n. 3,  p. 627-637,
set.,  2005, p. 634. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
81232005000300019&lng=en&nrm=iso> Acesso em 16 jun. 2018.
598 LIMA, Karla Morais Seabra Vieira; SILVA Kênia Lara; TESSER Charles Dalcanale. Práticas
integrativas e complementares e relação com promoção da saúde: experiência de um serviço
municipal de saúde. Interface (Botucatu), nov. 2013, p. 8.

315
Violência Obstétrica em Debate

No momento em que mulher é claramente informada de todas as opções


de tratamento e possibilidades medicamentosas ou não que estão disponíveis
à sua vida e bem estar se tornam empoderadas, fazendo com que exerçam sua
autonomia, que é tão necessária.

Considerações finais
O direito a saúde e em especial o direito à saúde da mulher é um dever do
Estado. Visando ampliar esse direito surgem as práticas integrativas e com-
plementares ou “ramos da medicina alternativa”, no sistema de saúde como
uma resposta à busca da população por alternativas à prática medicamentosa
e muitas vezes não humanizada.
A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC)
teve início atendendo às diretrizes e recomendações de conferencias nacionais
de saúde e da Organização Mundial da Saúde, tendo em 2006 sido regulamen-
tada a possibilidade de disponibilidade no SUS de algumas práticas integrati-
vas. Mas somente em 2018 é que Ministério da Saúde inseriu a aromaterapia
à rede publica de saúde.
Esta PNPIC liga-se e interage com os princípios da universalidade, da
equidade e da integralidade que regem o SUS, exatamente por ampliar o con-
ceito de saúde e já ter um olhar mais humanizado. A modificação desse olhar
traz a questão da interdisciplinariedade. O ser humano é visto de uma forma
mais holística e humanizada. Não obstante não tenham evidências suficientes
sobre a eficácia da aromaterapia na gestação, parto e pós-parto, é certo que
existem evidências científicas no sentido desta utilização pelo indivíduo como
um todo, necessitando unicamente de mais pesquisas nesta área.
Se utilizarmos a formação inglesa da aromaterapia empregaremos os
óleos essenciais de maneira mais restritiva e em massagens, sendo proibida
qualquer forma de utilização oral. Entretanto, a formação francesa é a que
mais se coaduna com a interesse da saúde da mulher uma vez que se baseia
em estudos e formas de utilização oral, além de massagens. A utilização da
aromaterapia na gestação acaba por se inserir na utilização geral, em razão da
necessidade de mais pesquisas na área, podendo ser usada como alternativa à
medicalização atual como forma, por exemplo, de alívio da dor e, para fatores
emocionais, como forma de diminuir o estresse.

316
Violência Obstétrica em Debate

As informação colhidas ou dadas às mulheres sobre todos os recursos,


opções de tratamento e possibilidades medicamentosas ou não que lhe estão
disponíveis, aumentam a sua segurança e empoderam-na, fazendo com que
exerça toda sua autonomia. Necessitando então que estas informações sejam
de qualidade e sem vieses, visando os direitos da mulher.

317
A expansão do conceito de
violência obstétrica e as práticas
de esterilização compulsória

Cecília Ribeiro Dâmaso

Introdução
Violência obstétrica não é mais um conceito estranho ao vocabulário ju-
rídico. Apesar de não haver definição unívoca, é possível afirmar que as con-
dutas realizadas em razão da gestação que violem o direito ao parto e ao nas-
cimento humanizado serão consideradas como violência obstétrica. Todavia,
essa concepção, por demais genérica, se mostra insuficiente para tutelar todos
os direitos que podem ser violados no cenário da atenção obstétrica no Brasil.
De fato, ao confrontar a construção teórica com a realidade, é flagran-
te a sua insuficiência diante da pluralidade de vivências que, em comum, só
possuem o adjetivo “brasileiras”. O caso da esterilização forçada de Janaína
Quirino foi um exemplo emblemático de uma das principais causas de violên-
cia obstétrica praticada contra mulheres vulneradas pela pobreza. Diante da
análise direcionada a quem serve o atual conceito, é imperativa a proposição
de sua ampliação, com base tanto nos fundamentos do Direito Civil Cons-
titucional, como em recortes, necessários, de raça e classe. Para tanto, será
analisado o caso em comento, com o desdobramento de uma nova perspectiva
do que deve ser entendido como violência obstétrica.

1. Considerações sobre o atual conceito


jurídico de violência obstétrica
Nos últimos anos, o tema da violência obstétrica tem alcançado cada
vez mais instâncias e áreas do conhecimento. A produção acadêmica compro-

319
Violência Obstétrica em Debate

metida com a nomeação desta violência já existe no campo do direito599, bem


como se notam instâncias governamentais produzindo material para infor-
mação e conscientização de mulheres600. Todavia, apesar de frequentemente
haver a tentativa de exemplificação de condutas caracterizadas como violência
obstétrica, não há um conceito unívoco per se.
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo apresenta, em uma carti-
lha, a definição de violência obstétrica:
A violência obstétrica é o desrespeito à mulher, seu corpo e seus processos
reprodutivos. Isso acontece através de tratamento desumano, transforma-
ção de processos naturais do parto em doença ou abuso da medicalização,
negando às mulheres a possibilidade de decidir sobre seus corpos.601

Acrescenta, ainda, na mesma página, que esta violência pode ocorrer na


gestação, no parto e no pós-parto, podendo ser vítima não somente a mulher,
mas também seu bebê e familiares, causando danos físicos, psicológicos e/ou
sexuais. Em seguida, exemplifica condutas que podem se enquadrar como vio-
lência obstétrica: amarrar a mulher durante o parto, tricotomia (retirada dos
pelos pubianos), manobra de Kristeller (pressão sobre a barriga da parturiente
para empurrar o bebê), ofensas, humilhações ou xingamentos, episiotomia sem
indicação clínica, infusão intravenosa de ocitocina sintética para acelerar o tra-
balho de parto sem informação e concordância da mulher, entre outros.602

599 Por exemplo, é possível citar: KEUNECKE, Ana Lúcia; MARQUES, Raquel de Almeida; SOUSA, Valéria.
Violência obstétrica é violação de Direitos Humanos. Publicação Oficial Juízes para a Democracia, a. 16,
n. 69, jan. 2016, p. 7. Disponível em: <http://ajd.org.br/jornal-69/>. Acesso em: 16 set. 2018; SANTOS,
Mariana Beatriz B. dos. Violência Obstétrica: violação dos direitos da parturiente e a desumanização do
parto. Revista de Direito UNIFACEX. Natal-RN, v.7, n.1, 2018. ISSN: 2179-216X. Disponível em: <https://
periodicos.unifacex.com.br/direito/article/view/869>. Acesso em: 16 set. 2018; NOGUEIRA, Beatriz
Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. O tratamento jurisprudencial da violência obstétrica nos Tribunais
de Justiça da região Sudeste. In: XI Seminário Internacional Fazendo Gênero, 2017, Florianópolis. Anais do
XI Seminário Internacional Fazendo Gênero [recurso eletrônico]. Disponível em: <http://www.wwc2017.
eventos.dype.com.br/resources/anais/1518015798_ARQUIVO_NOGUEIRA,Beatriz;SEVERI,Fabiana.
OtratamentojurisprudencialdaviolenciaobstetricanosTribunaisdeJusticadaregiaoSudeste.pdf>. Acesso em:
16 set. 2018.Todavia, é necessário destacar que a produção no campo da saúde supera largamente a jurídica.
600 Ver DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Conversando sobre violência
obstétrica, jul. 2018, 19 p. Disponível em: <https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/0/
Cartilha_VO_JUL_2018%20(3).pdf>. Acesso em: 15 set. 2018.
601 Ibid., p. 4.
602 Ibid., p. 6.

320
Violência Obstétrica em Debate

Já a organização Artemis, criada em 2013 com o intuito de combater


as diversas violências contra mulheres, utiliza definição similar, contida nas
legislações venezuelana e argentina. Acrescenta também que, além de poder
ocorrer antes, durante ou após o parto, a violência obstétrica pode ocorrer na
assistência a situações de abortamento. Assim informa:
[...] a violência obstétrica é caracterizada pela apropriação do corpo
e processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde,
através do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e pa-
tologização dos processos naturais, causando a perda da autonomia e
capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, im-
pactando negativamente na qualidade de vidas das mulheres.603

Salgado, Niy e Diniz, diversamente, apontam o uso do termo violência


obstétrica por movimentos de mulheres como uma variação do termo “vio-
lência na assistência ao parto”, que engloba “qualquer tipo de violência que
ocorra durante o período da gestação, do parto e do pós-parto, incluindo a
assistência ao aborto”. Adicionam, no entanto, a necessária categorização da
violência psicológica na violência obstétrica, distinguindo-se das categorias
atribuídas na literatura internacional à violência na assistência à saúde da mu-
lher, quais sejam: negligência, violência física, verbal e sexual.604
Apesar das nuances que as diferem, é possível identificar em comum
nas definições a não aceitação a certos procedimentos e atitudes apontados
também pelos movimentos de humanização do parto. Diniz afirma que tais
movimentos expressam, com suas diferenças, uma “mudança na compreen-
são do parto como experiência humana e, para quem o assiste, uma mudança
no “que fazer” diante do sofrimento (...) da outra, de uma mulher”605. Como
resposta a uma hospitalização do parto e uma assistência prejudicial à par-

603 Seção sobre Violência Obstétrica do site da Organização Artemis. Disponível em: <https://www.
artemis.org.br/violencia-obstetrica>. Acesso em: 16 set. 2019.
604 SALGADO, Heloisa de Oliveira; NIY, Denise Yoshie; DINIZ, Carmen Simone Grilo. Meio grogue e
com as mãos amarradas: o primeiro contato com o recém-nascido segundo mulheres que passaram
por uma cesárea indesejada. Rev. bras. crescimento desenvolv. hum., São Paulo, v. 23, n. 2, 2013, p.2
(190-197).   Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
12822013000200011&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 16  set.  2018.
605 DINIZ, Simone. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um
movimento. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2005, vol. 10, n.3, p. 628.

321
Violência Obstétrica em Debate

turiente, surge nos anos 70 “um movimento internacional para priorizar a


tecnologia apropriada, a qualidade da interação entre parturiente e seus cui-
dadores, e a des-incorporação de tecnologia danosa”, chamado no Brasil de
humanização do parto.606
Dentro deste, Diniz destaca, por exemplo, a Rede pela Humanização do
Parto e do Nascimento (Rehuna), que aponta que a imposição de rotinas, da
posição do parto e intervenções obstétricas desnecessárias contribuem para
a patologização de um fenômeno fisiológico, transformando-o em uma “ex-
periência de terror, impotência, alienação e dor”607. Nota-se, assim, que esta
crítica é amparada pelos conceitos de violência obstétrica acima destacados,
identificando as práticas citadas como formas de violência obstétrica.
Diante da pluralidade de significados e pontos de encontro apontados,
é possível concluir que violência obstétrica representaria, em linhas gerais, a
antítese da humanização ou de um parto humanizado, no qual deveriam estar
ausentes as condutas supracitadas pois representam dano à mulher no pré,
durante ou pós-parto e/ou ao seu bebê. Ressalta-se que a identificação de prá-
ticas não se dá somente pelo tempo em que ocorrem, mas também acontecem
em razão da gravidez. Ao reconhecer uma especificidade reiterada em várias
práticas contra um grupo em condição vulnerável, nomeia-se a violência, para
que enfim ela possa ser combatida, levando em conta suas particularidades.

2. A esterilização compulsória
Janaína Aparecida Quirino, 36 anos, foi submetida a uma laqueadura du-
rante a cesárea na qual teve seu oitavo filho em fevereiro deste ano. Tal laqueadu-
ra, entretanto, ocorreu devido à decisão do juiz Djalma Moreira Gomes Júnior,
da comarca de Mococa, SP, que condenava a Prefeitura de Mococa a realizar tal
procedimento. O pedido, todavia, não veio de Janaína, mas sim do Ministério
Público. Em uma ação de obrigação de fazer, em momento algum foi designada
representação à Janaína, ainda que dependente química. Em situação de rua, vul-

606 Ibid., p. 629.


607 Ibid., p. 631.

322
Violência Obstétrica em Debate

nerada pela pobreza, quando a decisão foi anulada pelo TJ-SP608, a laqueadura já
havia sido feita, violando flagrantemente a lei 9263/96.609
Após a denúncia do ocorrido por um professor de direito constitucional da
FGV-SP na Folha de São Paulo610, a repercussão e repreensão do caso foram múl-
tiplas611. O sentimento retratado em muitas das publicações e postagens em redes
sociais era, entretanto, de choque e surpresa, sentimento esse não compartilhado
pela filósofa Djamila Ribeiro. Em sua página de rede social, se manifestou:
Importante que o caso [de Janaína Quirino] tenha ganhado visibilida-
de e se tenha posturas de repúdio a essa atitude tão violenta. Porém,
me assusta ver feministas não conhecerem essa realidade no Brasil ou
pessoas progressistas tratando como algo pontual. Práticas como a es-
terilização forçada [foram] amplamente utilizada[s] no Brasil com o
intuito de diminuir o contingente de negros e pobres.612

608 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Acórdão nº 2018.0000380733. Apelante:
Prefeitura Municipal de Mococa. Apelado: Ministério Público do Estado de São Paulo. Relator:
Paulo Dimas Mascaretti. São Paulo, 23 mai. 2018.
609 BERTOLINI, Fernando, RODRIGUES, Fábio. Justiça obriga Prefeitura de Mococa a fazer
laqueadura em mulher usuária de drogas. G1 São Carlos e Araraquara, 11 jun. 2018. Disponível
em: <https://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/noticia/justica-obriga-prefeitura-de-mococa-a-
fazer-laqueadura-em-mulher-usuaria-de-drogas.ghtml>. Acesso em: 15 set. 2018; DEFENSORIA
PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Nota Pública. Facebook, 11 jun. 2018. Disponível em:
<https://www.facebook.com/DefensoriaPublicaSP/photos/a.132028353534375/1976800729057119/
?type=3&theater>. Acesso em: 15 set. 2018.
610 VIEIRA, Oscar Vilhena. Justiça, ainda que tardia. Folha de São Paulo, 9 jun. 2018. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/colunas/oscarvilhenavieira/2018/06/justica-ainda-que-tardia.
shtml>. Acesso em: 3 jul. 2018.
611 Como exemplo é possível citar matérias em jornal eletrônico: (1) ANTUNES, Leda. MARTINELLI,
Andréa. Janaína, a mulher que foi submetida a uma laqueadura sem consentimento. Huffpost Brasil,
11 jun. 2018. Disponível em: <https://www.huffpostbrasil.com/2018/06/11/janaina-a-mulher-
que-foi-submetida-a-uma-laqueadura-sem-consentimento_a_23456403/>; (2) REDAÇÃO. Juiz e
procurador ordenam esterilização de mulher em Mococa. Revista Fórum, 10 jun. 2018. Disponível
em: < https://www.revistaforum.com.br/juiz-e-procurador-ordenam-esterilizacao-de-mulher-em-
mococa/>; bem como a nota de repúdio do Instituto de Garantias Penais (IGP), disponível em:
<https://www.conjur.com.br/dl/esterilizacao-compulsoria-igp.pdf>, além de muitos outros na
internet. Todos os links com acesso em 15 set. 2018.
612 RIBEIRO, Djamila. Postagem no Facebook (verificado). Facebook, 12 jun. 2018. Disponível em: <https://
www.facebook.com/djamila.ribeiro.1/posts/2012560518777496>. Acesso em: 15 set. 2018. Ver, ainda,
sobre o mesmo tópico: CRUZ, Eliana Alves. O Caso Janaína me Lembrou que o Brasil Já Fez Esterilização
em Massa – Com Apoio dos EUA. The Intercept_ Brasil, 18 jul. 2018. Disponível em: <https://theintercept.
com/2018/07/18/laqueaduras-esterilizacao-forcada-mulheres/>. Acesso em: 15 set 2018.

323
Violência Obstétrica em Debate

Em sua postagem e, mais detalhadamente, em seu livro613, aponta esta


realidade que acomete mulheres negras e pobres, reconhecida inclusive pos-
teriormente pelo Estado: após pressão do movimento de mulheres negras,
criou-se uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito em 1991 para investi-
gar “incidência de esterilização em massa de mulheres no Brasil”.614
Em mais de um momento, o Relatório Final da CPI supracitada aponta
que o Brasil, em comparação com outros países, apresentava elevados índices
de esterilização de mulheres em idade fértil615. Informa também que havia alta
incidência de laqueaduras realizadas gratuitamente, custeadas indiretamen-
te pelo setor público616, e ressalta a participação de entidades do movimen-
to negro nacional ao denunciarem que não é coincidência que maioria das
mulheres esterilizadas são negras e pobres617. Como conclusão, constatou-se
que havia claro interesse internacional de controle demográfico no Brasil, e
confirmou-se a esterilização em massa de mulheres no país618.
Jurema Werneck, médica e atualmente coordenadora executiva da Anis-
tia Internacional Brasil, também denuncia essa realidade, apontando-a como
parte do projeto eugenista do Estado brasileiro contra a população negra. Ao
delinear historicamente a difusão do pensamento e prática da eugenia positiva
a partir da criação da sociedade eugenista brasileira em 1918 e das estratégias
de embranquecimento da população nos séculos subsequentes619, delimita o

613 RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, Justificando, 2017, p. 42.
614 BRASIL (Congresso Nacional). Relatório nº2 de 1993 (Relatório Final da Comissão Parlamentar
Mista de Inquérito). Brasília, 1993, p. 1. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/
handle/id/85082/CPMIEsterilizacao.pdf?sequence=7>. Acesso em 15 set. 2018.
615 Ibid., p. 36 e 39..
616 Ibid., p. 45.
617 Cabe destacar no texto também o pioneirismo da denúncia de esterilização por estas entidades, que
começou em 1983, a partir da constituição de um grupo de assessoria e participação em São Paulo durante
o governo de Paulo Maluf, cujo objetivo era redução da natalidade entre os negros. Ibid., p. 49 a 51.
618 Destaca-se, ainda, o trecho: “A maior incidência de esterilização em mulheres da raça negra foi
denunciada pelo movimento negro, como um aspecto do racismo praticado no Brasil. Os dados
levantados pelo IBGE, na PNAD/86, não confirmam a denúncia, mas é fato notório a dificuldade
de se apurar com precisão a informação relativa à cor da pele dos brasileiros”, considerando que no
próprio documento consta que a inclusão da cor em censos demográficos foi conquista da luta do
movimento negro. Ibid., p. 116-117.
619 WERNECK, Jurema. Ou belo ou o puro? Racismo, eugenia e novas (bio)tecnologias. UNFPA, 2010,
p. 3-5. Disponível em: <http://www.criola.org.br/artigos/artigo_ou_o_belo_ou_o_puro.pdf>.
Acesso em: 15 set. 2018.

324
Violência Obstétrica em Debate

início da eugenia negativa. O sucesso das estratégias de constituição da nacio-


nalidade brasileira voltada ao padrão do homem branco europeu dependia de
“iniciativas de redução de populações indesejáveis”620, neste caso, uma repres-
são do aumento da população negra.
Neste âmbito, a esterilização cirúrgica aparece como recurso presente
muitas vezes com amparo legal ao redor do mundo. Lennard J. Davis bem
observa, em continuidade com o exposto por Werneck, que, em 1933, a pres-
tigiada revista científica “Nature” elogiava a proposta nazista de uma lei para
evitar doenças hereditárias na posterioridade por meio da esterilização, para
o melhoramento da raça humana. Dentre as “deficiências” para as quais seria
apropriada a esterilização, estava “feeblemindness” congênita. “Feeblemind-
ness”, por sua vez, era um dos focos da teoria eugenista, e incluía baixa inteli-
gência, doenças mentais e até pobreza, posto que baixa renda era associada à
baixa eficiência. Ressalta-se, ainda, que alguns grupos étnicos eram associa-
dos à pobreza e “feeblemindness”.621
Novas e mais eficazes ferramentas surgiram ao longo dos séculos como
forma de eugenia negativa, como o uso de contraceptivos, no Brasil e no mun-
do. A esterilização compulsória, todavia, continuava ocorrendo no Brasil,
como denunciaram diversas organizações de mulheres negras nos anos 1990
por meio da Campanha Nacional Contra Esterilização em Massa. Seu slo-
gan correlacionava este controle de natalidade ao genocídio do povo negro.622
Como afirma Jurema Werneck:
A eugenia já foi condenada pelo ocidente, na figura da derrota do re-
gime nazista pelos países aliados ao fim da II Guerra da Europa. No
entanto, sua condenação política não significou a completa eliminação
das ideias de melhoramento racial, nem impediram que novos ataques
contra populações tidas como inferiores fossem empreendidos.623

620 Ibid., p. 6.
621 DAVIS, Lennard J. Enforcing Normalcy. Disability, Deafness and the Body. London/New York:
Verso, 1995, p. 36-38.
622 WERNECK, Jurema. Op. cit., p. 7-8.
623 Ibid., p. 10-11.

325
Violência Obstétrica em Debate

Assim, é flagrante afirmar que o caso de Janaína Quirino não é isolado. A


partir da denúncia e luta de movimentos de mulheres negras624 é possível iden-
tificar tal prática como, antes de qualquer consideração posterior, uma violência
racista. Se mostra, por conseguinte, necessário avaliar sua dimensão obstétrica.

3. A necessária expansão diante de seus limites


A esterilização forçada é uma violência também em razão da gestação e
viola flagrantemente o direito ao parto, assumindo uma dimensão muito mais
abrangente quando se adotam as lentes da raça e classe. Se é uma prática, em
massa, que afeta a gestação de todo um grupo de mulheres, torna-se inconce-
bível que o termo violência obstétrica não contemple essa realidade.
É possível compreender a limitação do conceito de violência obstétrica a
partir do seu nascimento. A demanda pelo reconhecimento das violências no
pré-parto, durante e pós-parto veio inicialmente de mulheres de classe média
e brancas em sua maioria, com acesso à informação625. Assim, a denúncia de
procedimentos corresponde a práticas que as atingem, não contemplando a
realidade da maioria das brasileiras, às quais os exemplos comuns de prática
de violência obstétrica não atendem suas necessidades626.
A compreensão de limitações deve, todavia, gerar questionamento, não con-
formação. Tal questionamento se mostra claro diante do caso em comento, e en-
contra amparo nos fundamentos da caracterização jurídica da violência obstétrica.

624 Sobre a luta e o protagonismo existente, mas não reconhecido, dos movimentos de mulheres negras,
ver: WERNECK, Jurema. Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias
políticas contra o sexismo e o racismo. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/
as (ABPN), [S.l.], v. 1, n. 1, p. 07-17, jun. 2010. ISSN 2177-2770. Disponível em: <http://abpnrevista.
org.br/revista/index.php/revistaabpn1/article/view/303>. Acesso em: 15 set. 2018.
625 Simone Diniz destaca, por exemplo, que a maioria das listas eletrônicas que formavam redes
de mulheres em prol da humanização do parto no fim dos anos 90 no Brasil era criada por
“consumidoras organizadas de classe média” em DINIZ, Simone. Op. cit., p. 631.
626 É possível notar tais diferenças na pesquisa de Olivia Hirsch, quando aponta os diferentes sentidos
de parto normal e humanizado para camadas médias e populares. A partir deste, é consequente a
reflexão de que diferentes vivências apresentariam diferentes concepções do que é ou não violência.
HIRSCH, Olivia Nogueira. O parto “natural” e “humanizado”: um estudo comparativo entre
mulheres de camadas populares e médias no Rio de Janeiro. Tese (doutorado). Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Ciências Sociais, 2014.

326
Violência Obstétrica em Debate

O ordenamento brasileiro prevê como um dos pilares e princípio infor-


mador a dignidade da pessoa humana, conforme art. 1º, inciso III CF627. A
partir da constitucionalização do direito civil, se aduz que tal princípio deve
guiar todo o ordenamento, inclusive a esfera privada, a partir de uma reno-
vação do conceito de autonomia privada, como aduzem Moraes e Viveiros de
Castro628. Desta forma, à mulher grávida deve ser aplicado o que informam os
subprincípios da integridade psicofísica e liberdade629, inseridos no âmbito do
princípio da dignidade da pessoa humana.
O subprincípio da integridade psicofísica, na esfera cível, garante direi-
tos da personalidade, como o direito à privacidade, honra e corpo, e assim
institui um amplo direito à saúde, podendo ser ainda compreendido como
“completo bem-estar psicofísico e social”630. Neste âmbito, Moraes especifica
que, em relação à saúde física e psíquica do indivíduo, é seu interesse que deve
prevalecer631. Reitera, ainda, a vedação a tratamento desumano ou degradan-
te, a impossibilidade de ser feita qualquer experiência sobre a pessoa humana
sem o seu expresso e informado consentimento e que seu interesse deve ser
protegido, assumindo posição superior nesta circunstância632.
O subprincípio da liberdade refere-se, por sua vez, mas não somente, às
escolhas do indivíduo. Limitado pelo subprincípio da solidariedade, “con-
substancia-se, hoje, numa perspectiva de privacidade, intimidade e livre exer-
cício da vida privada”, aproximando-se da faculdade de escolher “o próprio
projeto de vida, exercendo-o como melhor convier”633.
Assim, é visível a relação entre a luta contra violência obstétrica e estes
subprincípios. O respeito ao plano de parto pelo médico(a) obstetra remete ao

627 BRASIL. Constituição Federal de 1988. Vade Mecum Compacto. São Paulo: Saraiva, 15ª ed., 2016.
628 Vide MORAES, Maria Celina Bodin de; VIVEIROS DE CASTRO, Thamis Ávila Dalsenter. A
autonomia existencial nos atos de disposição do próprio corpo. Pensar. Fortaleza: v. 19, n. 3, set./
dez. 2014, p. 784-785.
629 Para saber mais, ver MORAES, Maria Celina Bodin de. O princípio da dignidade da pessoa humana.
In: Na Medida da Pessoa Humana, Estudos de Direito Civil Constitucional. Renovar, 2010, p. 71-
120.
630 Ibid., p. 96.
631 Ibid., p. 102.
632 Ibid., p. 106.
633 Ibid., p. 106-109.

327
Violência Obstétrica em Debate

consentimento expresso e informado dos procedimentos a serem realizados,


enquanto a possibilidade de realizar escolhas remete ao próprio momento de
confecção do plano de parto, por exemplo. A partir dessas proteções, entre-
tanto, há que construir pontes para novas aplicações e exemplificações.
Moraes informa, explicitamente, que “(o humano) jamais poderá ser
considerado objeto de intervenções e experiências, mas será sempre sujeito de
seu destino e próprias escolhas”634 no âmbito da biomedicina. Tal argumen-
to ampara a necessidade do protagonismo da mulher no momento do parto.
O movimento pela humanização do parto aponta, dentre outros sentidos de
humanização apontados por Diniz, a urgência da legitimidade da parturiente
nas decisões sobre sua saúde635. A partir da medicalização e hospitalização do
parto, este evento passou a contar com o médico como ator obrigatório e pre-
ponderante, e a mulher como objeto636, assim, a humanização busca retomar
o poder de escolha e voz da mulher. Pode-se afirmar, portanto, que a própria
mulher, seja qual for sua vivência, é a mais apta para informar o que ela iden-
tifica como humanização e sua antítese, que seria a violência obstétrica.
Além dos princípios gerais, é necessário ressaltar como fundamento ju-
rídico do combate à violência obstétrica e protagonismo da mulher em defini-
-lo também a previsão explícita do direito à saúde, contida no art. 196 CF e
seguintes, bem como outros direitos decorrentes do princípio da dignidade da
pessoa humana: o direito à liberdade e à segurança, no art. 5º caput CF, a não
ser submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante, então
explícito no art. 5º inciso III CF, e à inviolabilidade da intimidade, da vida
privada, e da honra, no art. 5º inciso X CF637.
Ressalta-se inclusive a necessária leitura do Código Civil e dos direitos
da personalidade à luz dos princípios constitucionais. Diretamente ligada ao
subprincípio da integridade psicofísica, está a autonomia corporal, espécie do

634 Ibid., p. 102.


635 DINIZ, Simone. Op. cit., p. 634.
636 Para mais informações, ver ibid., p. 628-629; NAGAHAMA, Elizabeth Eriko Ishida;  SANTIAGO,
Silvia Maria.  A institucionalização médica do parto no Brasil.  Ciênc. saúde coletiva[online].
2005, vol. 10, n.3, p. 655-656. ISSN 1413-8123.  Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1413-
81232005000300021>. Acesso em: 16 set. 2018.
637 BRASIL. Idem; CORDEIRO, Beatriz Coelho Alves. Violência Obstétrica e Direito ao Parto
Humanizado. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2016, p. 40.

328
Violência Obstétrica em Debate

gênero autonomia existencial por estar inserida na esfera da existencialidade


ou extrapatrimonialidade. Como aduzem Moraes e Viveiros de Castro638, au-
tonomia corporal é a capacidade de autodeterminação da pessoa em relação
ao próprio corpo, limitada pela tutela paternalista do Código em seu artigo
13639, que, entretanto, deve considerar as esferas física e mental da integridade
nesta limitação. Consequentemente, é possível afirmar que a identificação da
violência obstétrica é amparada juridicamente no que tange aos aspectos psí-
quicos e físicos da mulher. Assim ocorre não só na proteção dada pelos sub-
princípios, mas em sua consideração reiterada para a manifestação de vontade
da gestante e suas escolhas no momento do parto.
A amplitude de situações a serem incluídas como violência obstétrica
com base neste arcabouço jurídico é enorme. Não somente as práticas exem-
plificadas no primeiro item deste artigo, mas o que, a partir desta fundamen-
tação, tem relação direta com o ato de gestar. A noção de humanização do
parto é múltipla640, assim, é condizente que a de violência obstétrica também
seja, englobando “a integralidade do indivíduo, levando-se em conta o con-
texto social, econômico, cultural e as necessidades físicas e psíquicas de cada
sujeito”641, conforme o princípio da dignidade da pessoa humana.
Desta forma, apesar de sua origem, de certa forma, elitista, o conceito
deve ser expandido e flexibilizado de forma que seja mais adequado à plurali-
dade das realidades brasileiras. Não há dúvidas que todas gestantes podem ser
vítimas de violência obstétrica. Assim, o conceito e o direito devem atender
todas que a sofrerem, sem excluir diferentes vivências porque não têm voz ou
amparo no mundo jurídico para denunciá-las. A esterilização forçada é uma
forma de violência obstétrica que exemplifica flagrantemente a necessidade
de expansão, pois expõe a seletividade da atual formulação do conceito de
violência obstétrica. Ao vislumbrar quem o conceito não atende, é essencial
retomar os fundamentos para ampliar os casos em que podem estes ser apli-
cados. Assim, passa-se à aplicação de um necessário e estendido uso do que é
e pode ser violência obstétrica.

638 MORAES, Maria Celina Bodin de; VIVEIROS DE CASTRO, Thamis Ávila Dalsenter. Ibid., p. 796-803.
639 “Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar
diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”.
640 Como se nota em DINIZ, Simone. Op. cit., p. 633-635.
641 MORAES, Maria Celina Bodin de; VIVEIROS DE CASTRO, Thamis Ávila Dalsenter. Op. cit.., p. 784.

329
Violência Obstétrica em Debate

4. Aplicação
A partir desta ampliação do conceito, é possível afirmar que a decisão
de determinar a realização de uma laqueadura sem o claro consentimento da
mulher se configura claramente uma violência obstétrica. A partir de uma
falsa pretensão de agir em nome de sua saúde, Janaína foi submetida a um
procedimento arriscado642 para que fosse impedida de gestar. Assim, tal de-
cisão fere o princípio da dignidade da pessoa humana, causando-lhe dano
irreversível não somente físico, mas também psicológico. Atinge seu direito à
saúde e sua autonomia corporal, além de contrariar frontalmente os artigos 2º
p. ú. e 10 da lei 9623/96.
Acerca do caso em comento e de toda prática de esterilização compulsó-
ria, cabe destacar trechos do Relatório Final da “CPI da esterilização”, um dos
quais ressalta o cumprimento das recomendações constantes no documento
para que se respeitem os princípios da paternidade responsável e da livre de-
cisão do casal, presentes na Carta Magna. É pertinente também apontar o
depoimento do presidente da OAB à época, no qual afirmou que a previsão
constitucional do planejamento familiar (art. 227 § 7º CF) não pode ser con-
fundida com controle de natalidade, que é o que ocorreu, propositalmente,
nos anos 90, e este ano com Janaína e outras mulheres que não chegaram às
manchetes dos jornais.
É possível, ainda, além de reconhecer a prática da esterilização com-
pulsória como uma violência obstétrica, ampliar a aplicação do conceito para
violências fora dos hospitais. Preconceitos ou exclusões no ambiente de tra-
balho em razão do gestar, e quaisquer outras situações direcionadas à mulher
grávida em razão de sua gravidez também seriam encaradas como violência
obstétrica com base nos fundamentos supracitados.
A partir da identificação e nomeação de uma violência específica, que
atinge grupos específicos de formas diferenciadas, é possível então investi-
gar soluções direcionadas às especificidades do problema. Assim, a marca de
raça e classe e um estudo mais aprofundado desta marca são imprescindíveis

642 A realização de laqueadura no momento da cirurgia cesariana aumenta o risco de mortalidade


materna conforme afirma advogada e ativista Ana Lúcia Keunecke. ANTUNES, Leda;
MARTINELLI, Andréa. Idem. Ademais, a laqueadura durante a cesárea “agride o equilíbrio
mental” das mulheres conforme BRASIL (Congresso Nacional). Ibid., p. 39.

330
Violência Obstétrica em Debate

na conceituação e aplicação de um ampliado conceito de violência obstétrica,


para que a gravidez seja compreendida como mais um aspecto que vulnera-
biliza estas mulheres, não o único. Assim, as numerosas mulheres na mesma
situação de Janaína poderão ser contempladas por ferramentas pensadas es-
pecificamente para suas numerosas vivências.

Conclusão
A partir da leitura bibliográfica e da análise do caso de Janaína, propõe-
-se o entendimento da prática da esterilização forçada como uma forma de
violência obstétrica, além de uma violência de gênero com recorte classista e
racial. Nesta conduta, pois viola – dentre diversas outras violações – uma das
expressões da autonomia corporal da mulher, que é gestar. Desta classificação,
somam-se situações não entendidas originalmente como violência obstétrica,
mas que devem ser. Hoje não são reconhecidas devido às limitações do próprio
conteúdo, decorrentes em muitos casos da experiência na qual se baseou sua
formulação, de mulheres brancas com vasto acesso a estudo majoritariamente.
Assim, com o intuito de efetivar a proteção desejada pelos princípios
deste ordenamento e pela reivindicação e denúncia de violência obstétrica,
propõe-se uma flexibilização e expansão do conceito. A pluralidade de reali-
dades e a vulnerabilidade latente em certos grupos demandam um olhar críti-
co e atento voltado à prática jurídica e a quem esta realmente atende ou torna
invisível ao ignorar as demandas. Desta forma, ao estabelecer críticas e, em se-
guida, parâmetros com fundamento legal e principiológico vigente, busca-se
propor o início de um caminho teórico e prático, de uma compreensão mais
complexa da violência obstétrica, de forma que atente a todas as suas vítimas.

331

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