Violência Obstétrica em Debate - DTP
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Diálogos Interdisciplinares
www.lumenjuris.com.br
Editores
João Luiz da Silva Almeida
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Impresso no Brasil
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________________________________________
Para Francisco, meu filho, com amor.
Sobre os autores
Doutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito Privado pela PUC/
MG. Especialista em Diritto Civile pela Università degli Studi di Camerino,
Itália. Professora de Direito Civil do Centro Universitário UNA. Coordenado-
ra editorial da RBDCivil. Pesquisadora do CEBID. Advogada.
Bruna Dias Alonso
Laura Uplinger
Malu Stanchi
Maíra Fattorelli
Maíra Fernandes
Olívia Hirsch
Ricardo Chaves
Roberta Calábria
Sara Mendonça
Thula Pires
Vitor Almeida
Considerações iniciais
O Ministério da Saúde, em junho de 2000, instituiu o Programa de Hu-
manização no Pré-natal e Nascimento pela Portaria GM/569, após análise das
necessidades de atenção específica à gestante, ao recém-nascido e à mãe no
período pós-parto. O objetivo primordial do Programa de Humanização no
Pré-natal e Nascimento (PHPN) é assegurar a melhoria do acesso, da cober-
tura e da qualidade do acompanhamento pré-natal, da assistência ao parto
e puerpério às gestantes e ao recém-nascido, na perspectiva dos direitos de
cidadania. O PHPN fundamenta-se nos preceitos de que a humanização da
Assistência Obstétrica e Neonatal é condição primeira para o adequado acom-
panhamento do parto e do puerpério. A humanização compreende pelo me-
nos dois aspectos fundamentais. O primeiro diz respeito à convicção de que é
dever das unidades de saúde receber com dignidade a mulher, seus familiares
e o recém-nascido. Isto requer atitude ética e solidária por parte dos profis-
sionais de saúde e a organização da instituição de modo a criar um ambiente
acolhedor e a instituir rotinas hospitalares que rompam com o tradicional
isolamento imposto à mulher. O outro se refere à adoção de medidas e pro-
cedimentos sabidamente benéficos para o acompanhamento do parto e do
nascimento, evitando práticas intervencionistas desnecessárias, que embora
tradicionalmente realizadas não beneficiam a mulher nem o recém nascido, e
que com frequência acarretam maiores riscos para ambos2.
1 Thomas Beatie.
2 Portaria GM/569 – Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento Disponível: http://
bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2000/prt0569_01_06_2000_rep.html. Acesso 20.02.2018.
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3 Portaria nº 569, de 1º de junho de 2000, Republicada por ter saído com incorreção do original, no
DOU nº 110-E, de 8 de junho de 2000, Seção 1, Páginas 4, 5 e 6. Disponível:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2000/prt0569_01_06_2000_rep.html. Acesso: 20.04.2018.
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mento do parto e puerpério; é uma obrigação das unidades receber com digni-
dade a mulher e o recém-nascido; a adoção de práticas humanizadas e seguras
implica a organização das rotinas, dos procedimentos e da estrutura física, bem
como a incorporação de condutas acolhedoras e não-intervencionistas. Para a
adequada assistência à mulher e ao recém-nascido no momento do parto, são
responsabilidades de todas as Unidades Integrantes do SUS, dentre outras:
1. atender a todas as gestantes que as procurem;
2. garantir a internação de todas as gestantes atendidas e que dela necessitem;
3. estar vinculada à Central de Regulação Obstétrica e Neonatal de modo
a garantir a internação da parturientenos casos de demanda excedente;
4. transferir a gestante e ou o neonato em transporte adequado, mediante
vaga assegurada em outra unidade,quando necessário;
5. estar vinculada a uma ou mais unidades que prestam assistência pré-
-natal, conforme determinação do gestorlocal;
6. garantir a presença de pediatra na sala de parto;
7. realizar o exame de VDRL na mãe;
8. admitir a visita do pai sem restrição de horário;
9. garantir a realização das seguintes atividades: realização de partos nor-
mais e cirúrgicos, e atendimento a intercorrências obstétricas; recepcio-
nar e examinar as parturientes; assistir as parturientes em trabalho de
parto; assegurar a execução dos procedimentos pré-anestésicos e anes-
tésicos; proceder à lavagem e antissepsia cirúrgica das mãos; assistir a
partos normais; realizar partos cirúrgicos; [...] (sem grifos no original)4
4 Anexo II, da Portaria nº 569, de 1º de junho de 2000, republicada por ter saído com incorreção do
original, no DOU nº 110-E, de 8 de junho de 2000, Seção 1, Páginas 4, 5 e 6. Disponível:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2000/prt0569_01_06_2000_rep.html. Acesso: 20.04.2018.
5 De acordo com a Associação de Medicina Intensiva Brasileira-AMIB, “embora o hábito de lavar
as mãos seja cotidiano para todos os profissionais de saúde atualmente, a descoberta científica de
sua importância, além como aspectos técnicos da higienização no ambiente de cuidado intensivo
ainda são desconhecidos. A descoberta sobre a importância de lavar as mãos tem uma história
interessante, por exemplo. Em 1846, quando Ignaz Philipp Semmelweiss era médico assistente da
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Sob o sugestivo título “Parirás com dor”, o dossiê elaborado pela Rede
Parto do Princípio7 para a CPMI da Violência Contra as Mulheres, em 20128,
que informou o Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito-
CPMI, instaurada pelo Senado com a finalidade de investigar a situação da
violência contra a mulher no Brasil, destaca o relato de mulheres que deram à
luz em várias cidades do Brasil, que resume um pouco da dor e da humilhação
que sofreram na assistência ao parto. Outros relatos frequentemente incluem:
comentários agressivos, xingamentos, ameaças, discriminação racial e socio-
econômica, exames de toque abusivos, agressão física e tortura psicológica.
Além disso, a violência no parto é praticada através de inúmeras intervenções
desnecessárias, como cesarianas não recomendadas, a episiotomia, a ausência
de respeito à norma que garante acompanhante durante o parto, dentre ou-
tros comportamentos dos profissionais de saúde que violam os direitos repro-
dutivos das mulheres9. Conforme noticiado pelo Senado, segundo pesquisa
da Fundação Perseu Abramo publicada em 2010, que igualmente informou o
citado Relatório da CPMI, 25% das mães brasileiras sofreram algum tipo de
agressão na fase de pré-natal ou no parto.10
7 A Parto do Princípio – Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa1 é composta por mais de 300
mulheres em 22 Estados brasileiros e que trabalham voluntariamente na divulgação de informações
sobre gestação, parto e nascimento baseadas em evidências científicas e nas recomendações da
Organização Mundial da Saúde. Ver: www.partodoprincipio.com.br. Acesso: 20.04.2018.
8 Disponível: https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20VCM%20367.
pdf. Acesso: 20.04.2018.
9 Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito- CPMI, instaurada “com a finalidade
de investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil e apurar denúncias de omissão por
parte do poder público com relação à aplicação de instrumentos instituídos em lei para proteger as
mulheres em situação de violência”. Senado Federal. Brasília, 2013, p. 62. Disponível:
https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/relatorio-final-da-comissao-
parlamentar-mista-de-inquerito-sobre-a-violencia-contra-as-mulheres. Acesso: 20.04.2018.
10 Disponível: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/06/20/violencia-obstetrica-e-
uma-realidade-cruel-dos-servicos-de-saude-apontam-debatedores. Acesso em 20.06.2018.
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21 TRÍAS, Encarna Roca i. Direitos de reprodução e eugenia. In: CASABONA, Carlos Maria Romeo.
Biotecnologia, direito e bioética. Belo Horizonte: Del Rey; PUC-Minas, 2002. p. 101-103.
22 Idem.
23 De acordo com a referida autora, “esse não é o único caso em que se pode basear uma interpretação
negativa da existência de um direito absoluto de procriar”, citando decisão da Comissão Europeia de
Direitos Humanos que julgou improcedente a demanda do marido (e pai potencial) contra o aborto
efetuado por sua esposa, sem o ter comunicado previamente, com base em seu direito à vida familiar.
Segunda a Comissão, o direito do marido não tem uma interpretação tão ampla que inclua o que
pleiteava, visto que deve se levar em conta, em primeiro lugar, “o direito à privacidade da mulher
grávida, primeira afetada pela gravidez, seu prosseguimento e finalização”. Idem, p. 101-103.
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24 Idem, p. 104.
25 IAGULLI, Paolo. “Diritti Riproduttivi” e Riproduzione artificiale. Torino: G. Giappichelli Editore,
2001, p. 3. Refere-se o autor a International Conference on Population and Development: Cairo,
5-13 set. 1994, e The Beijing Declaration and the Platform for Action: Fourth World Conference on
Women: Beijjing, China, 4-15 set. 1995.
26 Não obstante a referência, a Proclamação da Conferência Internacional sobre Direitos Humanos de
Teerã, de 13.05.1968, estabelecera que: “16. The protection of the family and of the child remains the
concern of the international community. Parents have a basic human right to determine freely and
responsably the number and the spacing of their children.”. The United Nations Blue Books Series.
The United Nations and Human Rights 1945-1995.
27 IAGULLI, Paolo. Op. cit., p. 5.
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os níveis, a garantir programa que inclua como atividades básicas, entre ou-
tras, “a assistência à concepção e contracepção”, devendo ser oferecidos para o
exercício do planejamento familiar “todos os métodos e técnicas de concepção
e contracepção cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a
saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção” (artigos 3º, parágrafo úni-
co, I e 9º). O direito ao planejamento familiar tem expressamente dupla feição,
compreendendo o direito de procriar em seu aspecto negativo e positivo.
Contudo, o direito ao planejamento familiar no Brasil não é absoluto. Em-
bora tenha natureza de direito constitucional, indispensável confrontá-lo com
outros princípios constitucionais, submetendo-o a rigoroso trabalho de ponde-
ração, para que se lhe fixem os limites. 29 À luz dos mandamentos constitucio-
nais, as ações relativas ao planejamento familiar, regido pela autonomia repro-
dutiva, deve sempre levar em conta, além dos princípios da dignidade de pessoa
humana e da paternidade responsável nos quais se fundamentam, especialmen-
te os seguintes princípios: a) melhor interesse da criança e do adolescente (art.
227); plena igualdade entre os filhos (art. 227, § 6º); acesso universal e igualitário
às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde (art. 196).
Nestes termos, ainda que sujeito à ponderação, parece não haver justifi-
cativa para se impedir o exercício do direito ao planejamento familiar, em sua
perspectiva de autonomia reprodutiva positiva, pelos integrantes da popula-
ção LGBTI, em particular pelos transexuais.
29 Guilherme Calmon Nogueira da Gama indica o melhor interesse da futura criança como um dos
limites, e enfatiza a legitimidade do legislador para estabelecer requisitos de ordem subjetiva
(indicando as pessoas legitimadas em razão do estado civil), bem como de ordem formal (exigência
de autorização judicial, escritura pública) para o acesso às técnicas de reprodução assistida. GAMA,
Guilherme Calmon Nogueira da. O Biodireito e as relações parentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003,
p. 719. Na mesma linha, Eduardo de Oliveira Leite observa não haver um direito absoluto à criança, em
respeito à tutela integral que lhe é conferida, inclusive em face de seus pais, legitimando a ingerência
do Estado para limitar necessariamente o exercício e o próprio conteúdo do direito à reprodução,
ressaltando que abusos “inimagináveis” podem ser cometidos na área da procriação. LEITE, Eduardo
de Oliveira. Procriações Artificiais e o Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 133.
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30 Sobre o assunto ver CHOERI, Raul. Direito à identidade na perspectiva civil-constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2010.
31 LGBTI - é a sigla de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros, em uso
desde os anos 1990. Em data mais recente se inclui a letra I para abranger as pessoas intersex
(intersexuais) no movimento.
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quarto do século XIX, até ser oficialmente destruída, em 1992, com a retirada
daquelas categorias da X CID - como esclarece Marilena Vilella Correa.32
Na verdade, mesmo recorrendo à endocrinologia e à genética para cons-
truir um conceito unificado de sexo e de diferença sexual, a medicina não dei-
xa de vinculá-los aos aspectos biológicos, genéticos e somáticos. Dessa vincu-
lação resultou a concepção do “sexo latente” – garantido pelos cromossomos
e hormônios – que após o processo de desenvolvimento físico do indivíduo,
produziria o “sexo manifesto” – revelado pelos órgãos genitais externos, aptos
a exercer sua função reprodutiva e a propiciar prazer. Esse esquema não inclui
a identidade sexual, entendida como “sentimento de pertencimento a um sexo”,
e a escolha de objeto, que diz respeito à função sexual, a qual compreende
desde o seu exercício (ou não), ao modo de fazê-lo, e à escolha do parceiro. Em
consequência desse esquema binário, as pessoas são identificadas em relação
a um dos dois sexos: o heterossexual (que se atrai pelo sexo oposto), o homos-
sexual (que sente atração pelo mesmo sexo), o bissexual (atraído pelos dois
sexos), o transexual (que passa de um a outro sexo), o intersexual (portador de
síndromes orgânicas dos dois sexos).33
O individuo homossexual afronta o sistema da heterossexualidade, de-
safia as normas da sexualidade e do gênero, subvertendo o que é proibido e
permitido, “ameaçando” a ordem social. Por tais razões, longos e árduos têm
sido os caminhos para a conquista de direitos.
Maiores têm sido as dificuldades enfrentadas pela pessoa transexual,
qualificada pela medicina como paciente portador de desvio psicológico per-
manente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à auto-
mutilação e autoextermínio, o que justifica sua submissão à cirurgia de trans-
genitalização, isto é, à cirurgia de transformação plástico-reconstrutiva da
genitália externa, interna e caracteres sexuais secundários, do tipo neocolpo-
vulvoplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres
sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo.34
32 CORREA, Marilena Villela. Sexo, sexualidade e diferença sexual no discurso médico: algumas
reflexões. In: Loyola, MA, organizador. A sexualidade nas ciências humanas. Rio de Janeiro: Eduerj,
1998, p. 69-91.
33 Idem, p. 69-91.
34 Resolução CFM 1955/2010. Disponível: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/
BR/2010/1955. Acesso: 20.04.2018.
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Considerações finais
Embora os avanços na área jurídica sejam significativos como se consta-
ta, a presença de um homem grávido no Brasil, até o momento não noticiada,
causaria igual ou maior repercussão. Não se deve afastar essa possibilidade.
Gabriela Loran, a primeira atriz transexual feminina de conhecida novela de
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televisão (Malhação), revelou seus planos de ser mãe por adoção.39 No plano da
ficção, um personagem (Ivan) de novela transexual masculino engravidou.40
Pelas razões acima expostas, tod@s as pessoas tem direito a exercer sua
autonomia reprodutiva, inclusive as que integram a população LGBT. A situ-
ação dos transexuais é peculiar, especialmente se a gestação ocorre nas situa-
ções acima narradas.
No que respeita à violência obstétrica, o relato de Thomas Beatie merece
transcrição. Segundo Thomas, o casal enfrentou rejeição e chegou a ser recusa-
do por médicos, quando foi procurar inseminação artificial. Acrescenta Beatie:
O primeiro médico que procuramos era um endocrinologista especia-
lizado em reprodução. Ele ficou chocado com a situação e pediu que
eu raspasse os pelos faciais. Depois de uma consulta de US$ 300 ele,
relutantemente, fez meus exames médicos.
O médico ainda ordenou que o casal fosse examinado pelos psiquiatras da
clínica para avaliar se eles tinham “condições psicológicas” de ter um filho.
Mas, segundo Beatie, poucos meses e alguns milhares de dólares de-
pois, o médico suspendeu o tratamento afirmando que ele e seus fun-
cionários se sentiam desconfortáveis por tratar alguém como ele.
Médicos nos discriminaram, nos mandado embora por causa de cren-
ças religiosas. Profissionais de saúde se recusaram a me chamar por um
pronome masculino ou reconhecer Nancy como minha esposa. Recep-
cionistas riram da gente.
Ao todo nove médicos foram envolvidos no processo, até que eles con-
seguiram acesso a um banco de esperma. Mas tiveram que optar pela
inseminação caseira.
Quando engravidou pela primeira vez, foi uma gravidez ectópica
(quando o embrião se fixa fora da cavidade uterina) de trigêmeos, que
fez com que ele perdesse os embriões e uma de suas trompas.
Quando meu irmão soube disso, disse ‘é uma coisa boa isso ter aconte-
cido. Quem sabe que tipo de monstro teria sido?’.” A família de Nancy
sequer sabia que Beatie é um transexual.
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Considerações sobre o direito ao
acompanhante e a violência obstétrica
43 “A companion of choice is recommended for all women throughout labour and childbirth”. Ao editar
a recomendação, a OMS prescreve também que as instituições devem estar atentas para superar as
dificuldades de implementação dessa recomendação nos casos de maior vulnerabilidade, nos quais
haja impossibilidade de recorrer a figuras de apoio não remuneradas. Disponível em:https://apps.
who.int/iris/bitstream/handle/10665/260178/9789241550215eng.pdf;jsessionid=68EFAEDF4190A
05F24695A7885E7F31D?sequence=1. Último acesso: 21 de abril de 2019
44 DINIZ, Carmen Simone Grilo et al. Implementação da presença de acompanhantes durante a
internação para o parto: dados da pesquisa nacional Nascer no Brasil. Cad. Saúde Pública [online].
2014, vol.30, suppl.1, pp.S140-S153. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0102-311X2014001300020&lng=en&nrm=iso>. Último acesso: 12 de dezembro de 2018
45 OLIVEIRA, Zuleyce Maria Lessa Pacheco de; MADEIRA, Anézia Moreira Faria. Vivenciando o parto
humanizado: um estudo fenomenológico sob a ótica de adolescentes. Rev. esc. enferm. USP, São Paulo,
v. 36, n. 2, p. 133-140, Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080
62342002000200005&lng=en&nrm=iso. Último acesso: 20 de dezembro de 2018.
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profissionais da equipe médica que realizaria o seu parto “uma frase que me
faz querer sumir até hoje: ‘Não acredito que no final de um plantão ainda
vou ter que fazer parto em uma baleia’. Fiquei chocada e indignada. Gritei:
‘Vim ganhar um filho, e não ser insultada e despeitada desse jeito!’ Chorei
muito. Queria sair dali”.52As mulheres com deficiência também constituem
um grupo particularmente suscetível à violência obstétrica, que vai desde a
falta de intérprete que possa se comunicar com gestantes surdas até a falta de
aparelhagem adequada para o atendimento médico a mulheres cadeirantes.53/
É preciso ressaltar que não são raras as situações em que as gestantes
sofrem múltiplas modalidades de violência obstétrica, como no emblemáti-
co caso de Mary Dias, mulher negra, estudante, que relatou ter sofrido duas
episiotomias no nascimento de seu filho, em 2014, em um hospital universitá-
rio. Para possibilitar que dois estudantes pudessem realizar a episiotomia em
Mary, um dos profissionais de saúde disse para os alunos: “você corta à direita
e o outro corta à esquerda”, supostamente para que ambos tivessem a opor-
tunidade de treinar o corte e a sutura em sua vagina”54. Longe de ser um caso
isolado, a situação de Mary ilustra duas situações de violência obstétrica bas-
tante recorrentes, que é o uso abusivo da episiotomia, contrariando as reco-
mendações da Organização Mundial de Saúde55, e a utilização das vaginas das
gestantes pobres, usuárias do SUS, para que alunos possam treinar suas ha-
52 O relato está disponível na reportagem “Vítimas da violência obstétrica: o lado invisível do parto”,
da Revista Época. Disponível em: https://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/08/vitimas-da-
violencia-obstetrica-o-lado-invisivel-do-parto.html. Último acesso em: 12 de agosto de 2018
53 Cf. VIVEIROS DE CASTRO, Thamis Dalsenter. Comentários ao artigo 19 do Estatuto da Pessoa
com Deficiência. In: Heloisa Helena Barboza; Vitor Almeida. (Org.). Comentários ao Estatuto da
Pessoa com Deficiência à luz da Constituição da República. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 119-126.
54 DINIZ, Carmen Simone Grilo et al . A vagina-escola: seminário interdisciplinar sobre violência
contra a mulher no ensino das profissões de saúde. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 20, n. 56, p. 253-
259, Mar. 2016 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
32832016000100253&lng=en&nrm=iso>. Último acesso: setembro de 2018.
55 A pesquisa Nascer no Brasil, revela que entre as gestantes que tiveram parto normal, 53,5% sofreram
episiotomia, o corte entre a vagina e o ânus dado supostamente para facilitar a saída do bebê
durante o parto. Esse índice revela a grande distância entre a prática operada no sistema brasileiro e
a recomendação da OMS no sentindo de abolir a episiotomia como rotina. DINIZ, Carmen Simone
Grilo et al. Implementação da presença de acompanhantes durante a internação para o parto:
dados da pesquisa nacional Nascer no Brasil. Cad. Saúde Pública [online]. 2014, vol.30, suppl.1,
pp.S140-S153. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
311X2014001300020&lng=en&nrm=iso>. Último acesso: 12 de dezembro de 2018
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56 Como recomendações para a mudança desse cenário, Simone Diniz et.al. destacam a importância
de das seguintes recomendações: “1) a incorporação e o ensino de evidências científicas sobre as
intervenções no parto, inclusive, a promoção da integridade genital das mulheres; 2) o ensino da
relação médico-paciente e dos direitos das mulheres, incluindo a proteção e promoção do direito à
autonomia e à escolha informada; 3) o fim do uso desregulado e sem indicações médicas dos corpos
das pacientes como material de ensino (‘procedimentos didáticos’), com a remodelagem do ensino
prático de intervenções, inclusive, cirúrgicas; 4) a identificação e responsabilização (accountability)
dos ‘abusos consensuais’ (quando há um consenso entre os envolvidos de que se trata de um abuso),
como fazer duas episiotomias na paciente apenas com fins didáticos; 5) a regulação de práticas
médicas por meio da publicização de informações a esse respeito (como dos procedimentos realizados
na assistência ao parto), a incorporação de protocolos e auditorias clínicas, com o apoio necessário
das gestões locais”. DINIZ, Carmen Simone Grilo et al . A vagina-escola: seminário interdisciplinar
sobre violência contra a mulher no ensino das profissões de saúde. Interface (Botucatu), Botucatu
, v. 20, n. 56, p. 253-259, Mar. 2016 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S1414-32832016000100253&lng=en&nrm=iso>. Último acesso: setembro de 2018.
57 Informações disponíveis em: https://theintercept.com/2018/09/10/pontodomarido/. Último acesso:
janeiro de 2019.
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mais acentuada, sendo muitas vezes obrigadas a lidar com a dor de perder um
filho e permanecer em alojamento conjunto na presença de mães que estão com
seus filhos nos braços, amamentando e acariciando suas crianças. Essas mu-
lheres são expostas a dor continuada de estar em um local de celebração de
nascimento, enquanto precisam lidar com o luto de terem perdido um filho.
Não sem razão, o respeito à privacidade da gestante e dos familiares no caso de
perda gestacional requer a garantia de um espaço privativo nas maternidades,
dedicados exclusivamente às mulheres que se recuperam da perda de um filho
e ainda precisam se manter hospitalizadas, a utilização de métodos de identi-
ficação para evitar a comunicação constrangedora e “vários equívocos causam
danos desnecessários, como receber parabéns do maqueiro ao sair do centro
cirúrgico ou receber kit maternidade”. Como descreve Larissa Lupi a respeito
da perda gestacional que a levou a fundar o grupo “Do Luto à Luta”58, embora
não se possa evitar o luto pela perda de um filho, deve-se buscar o acolhimento
cuidadoso por parte da equipe médico-hospitalar para evitar “em um momento
tão delicado, essas coisas que aumentam a nossa dor”.59
Embora seja reconhecida como uma violação de direitos em nível global, re-
cebendo atenção da comunidade internacional comprometida com a erradicação
das formas de violência contra a mulher, a questão se mostra especialmente de-
licada no contexto brasileiro, no qual pelo menos uma em cada quatro mulheres
foi vítima de violência obstétrica, de acordo com a pesquisa “Mulheres brasileiras
e gênero nos espaços público e privado”, realizada pela Fundação Perseu Abramo
em parceria com o SESC, em 2010.60 Esses indicadores se tornam ainda preocu-
pantes considerando que os nascimentos anuais no Brasil somam mais de três mi-
lhões de crianças e, seguindo a tendência mundial de hospitalização na atenção ao
parto, 98,5% das mulheres brasileiras tiveram seus filhos em uma instituição de
saúde, fato que evidentemente amplia a exposição das gestantes à violência prati-
cada pelos serviços de saúde reprodutiva e torna ainda mais necessária a presença
do acompanhante durante a gestação, o parto e o pós-parto.
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61 Constituição Federal de 1988: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana;
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62 Como a ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar, a Anvisa e o Ministério Público. Destaca-se
também a importante atuação das Defensorias Públicas no combate à violência obstétrica.
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educação, sem prejuízo, é claro, do amparo emocional que permite que todas as
outras circunstâncias sejam de fato aproveitadas pela criança e pelo adolescente.
Desde o nascimento com vida e daí em diante65 se desdobra uma série de
direitos, poderes e deveres que fazem parte daquilo que se convencionou cha-
mar poder familiar, instituto que obriga pais e mães no exercício da parentali-
dade responsável em benefício de seus filhos, sempre na direção do princípio
do melhor interesse da criança.66 Com um marco da igualdade familiar67, a
Constituição Federal de 1988 estabeleceu que na família democrática brasilei-
ra não há lugar para discriminações ou desigualdades, de modo que, desde o
primeiro momento da parentalidade, pais e mães deverão compartilhar res-
ponsabilidades e exercer em condições de igualdade as diretrizes do projeto
parental e do poder familiar.68
65 Embora se verifiquem deveres desde o momento da concepção, com ocorre no caso dos alimentos
gravídicos, referentes às despesas que devem ser custeadas desde a gravidez e previstos pela Lei nº
11.804, de 5 de novembro de 2008 (mais conhecida como Lei de Alimentos Gravídicos)
66 Como elucida Maria Celina BODIN DE MORAES, “O marco inicial desse tratamento privilegiado
foi a Convenção Internacional sobre os direitos das crianças (Resolução n. 44/25 da ONU), de
1989, o documento internacional que mais interesse atraiu, tendo sido assinado e ratificado pelo
mundo inteiro. O princípio germinal da Convenção, que dela se espraiou para substituir a até então
invisibilidade social da infância, é o princípio do “melhor interesse da criança”, segundo o qual
os pais, os responsáveis, as instituições, as autoridades, os tribunais ou quaisquer entidades, ao
tomarem decisões acerca de crianças, devem optar por aquelas que lhes ofereçam o máximo de
bem-estar (art. 3º)”. A nova família, de novo. Estruturas e funções das famílias contemporâneas.
Pensar, Fortaleza, v. 18, n. 2, p. 587-628, mai./ago. 2013, p. 603.
67 A importância desse marco é evidente também na vedação constitucional de tratamento desigual
entre filhos prevista nos artigos 226 e mais especificamente o art. 227 da Constituição Federal de
1988, § 6º “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos
direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
68 O Código Civil de 2002 prescreve que o exercício do poder familiar compete a ambos os pais,
evidentemente em igualdade de condições de direitos e deveres por força da Constituição Federal
de 1988, nos seguintes termos: art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação
conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I - dirigir-lhes a
criação e a educação; II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584;
III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV - conceder-lhes ou negar-lhes
consentimento para viajarem ao exterior V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para
mudarem sua residência permanente para outro Município; VI - nomear-lhes tutor por testamento
ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer
o poder familiar VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos
atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o
consentimento; VIII - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha IX - exigir que lhes prestem
obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
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69 Waldrow, Vera Regina. Abrigo e alternativas de acolhimento familiar, in: PEREIRA, Tânia da Silva;
OLIVEIRA, Guilherme de. O cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 309.
70 . STJ, REsp. nº 1.159.242/SP, Rel. Min. Fátima Nancy Andrighi, 3ª T, j.: 24.04.12. CIVIL E
PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO
MORAL. POSSIBILIDADE. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no
ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam
suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição
legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil,
sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-
se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da
imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por
abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno
cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais
que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade,
condições para uma adequada formação psicológica e inserção social.
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Violência Obstétrica em Debate
71 O termo humanização ganhou destaque na assistência à saúde nas primeiras décadas do século XXI,
sendo recorrentemente utilizado para a defesa da dignidade humana do atendimento cuidadoso
dos pacientes, o “respeito à unicidade de cada pessoa, personalizando a assistência. Além disso,
humanizar a saúde relaciona-se com a política e a economia, ou seja, no sentido de igualitarismo
no acesso à assistência; afeta também a estrutura e a funcionalidade organizacional no sentido
de acessibilidade, organização e conforto”. WALDOW, Vera Regina; BORGES, Rosália Figueiró.
Cuidar e humanizar: relações e significados. Acta paul. enferm., São Paulo, v. 24, n. 3, p. 414-418,
2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010321002011000
300017&lng=en&nrm=iso>. Último acesso: 10 de março de 2019.
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Violência Obstétrica em Debate
72 Informe de la Relatora Especial sobre la violencia contra la mujer, sus causas y consecuencias
acerca de un enfoque basado en los derechos humanos del maltrato y la violencia contra la mujer
en los servicios de salud reproductiva, con especial hincapié en la atención del parto y la violencia
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imobilização física, privação de água e alimentos, lavagens retais, raspagem de pelos pubianos, entre
outras. Este movimento chama a atenção para intervenções agressivas praticadas rotineiramente,
como episiotomia (corte da vagina durante o parto), fórceps, aceleração do parto, entre outras.
Nas últimas três décadas, o movimento da MBE construiu a evidência ‘dura’ de ensaios clínicos
e revisões sistemáticas a favor de rotinas menos agressivas, mais amigáveis a mulheres e bebês,
protegendo-os de abusos. Destacam-se os benefícios: da atenção ao conforto físico e emocional da
mulher, da presença de acompanhantes e doulas, da liberdade de movimentar-se e escolher a posição
de parir, da valorização da integridade genital materna, do contato pele a pele entre mãe e bebê
na primeira hora de vida, do corte tardio do cordão, entre outros”. DINIZ, Carmen Simone Grilo
et al. A vagina-escola: seminário interdisciplinar sobre violência contra a mulher no ensino das
profissões de saúde. Interface (Botucatu), Botucatu , v. 20, n. 56, p. 253-259, Mar. 2016 . Disponível
em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832016000100253&lng=en
&nrm=iso>. Último acesso: setembro de 2019.
74 TJ-PR - RI: 000370871201481600260 PR 0003708-71.2014.8.16.0026/0 (Acórdão), Relator: Renata
Ribeiro Bau, Data de Julgamento: 12/05/2015, 1ª Turma Recursal, Data de Publicação: 14/05/2015
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caso aqui citado, no qual foi afastado o dever de reparação do dano moral
pela ausência de acompanhante durante o parto de emergência, foi reconhe-
cido o dever de indenizar o dano por conta do período do pós-parto. Em sua
defesa, o hospital sustentou que sua enfermaria era exclusivamente feminina
e que, nesse cenário, não seria possível a presença de acompanhante do sexo
masculino. Na decisão, os juízes da Turma Recursal entenderam que a alega-
ção de que uma enfermaria exclusivamente feminina não afasta a responsa-
bilidade do hospital, tendo em vista, inclusive, que a “Portaria nº 2.418/2005
estabeleceu prazo de 06 meses, a contar de sua publicação em 02/12/2005,
para que os hospitais públicos e conveniados com o SUS tomassem as provi-
dências necessárias para atender as disposições constantes na Portaria e na
Lei nº 11.108/2005, que consagrou o direito da parturiente a contar com um
acompanhante, sem qualquer discriminação de sexo”.78
Uma das peculiaridades da violação do direito ao acompanhante ser hi-
pótese autônoma de violência obstétrica é o fato de que poderá existir, em
tais situações, pluralidade de vítimas. Isso significa que os danos gerados pela
lesão ao direito ao acompanhante poderão alcançar não só a própria gestante,
como também o genitor que, estando também na figura de acompanhante, se
veja impedido de acompanhar a mulher durante ou após o parto. Em tais ca-
sos, reconhece-se a existência do dano moral diretamente ao genitor, restando
“caracterizado, pois, o dever de indenizar, pois não se tem dúvida de que hou-
ve afronta à dignidade do autor, bem como supressão de um momento único
da sua vida, um direito que lhe era assegurado”.79
Conclusão
Como um importante mecanismo para prevenção e combate à violência
obstétrica, o direito ao acompanhante deve ser assegurado a fim de garantir o
amparo emocional, a dignidade e a autonomia da gestante durante e após o parto.
A lei que assegura a presença de acompanhante só revela o seu correto sentido
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Mortalidade materna:
precariedade e invisibilidade
Maíra Fattorelli
81 SAUAIA, Artenira e SERRA, Maiane. Uma dor além do parto: violência obstétrica em foco. Revista
de direitos humanos e efetividade. V. 2, n.1, p. 128-147. Brasília: Jan/Jun, 2016, p. 129.
82 LEAL, Maria do Carmo, GAMA, Silvana Granado Nogueira e outras. A cor da dor: iniquidades
raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad. Saúde Pública. Vol. 33, suppl.1, 2017, p. 2.
83 SMS. Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Mortalidade materna no município do Rio de Janeiro.
Disponível em http://www.rio.rj.gov.br/web/sms/exibeconteudo?id=1368696. Acesso em 03/03/2018.
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Violência Obstétrica em Debate
terna ainda vigentes no Brasil, o presente ensaio concederá enfoque aos avanços
e retrocessos atestados no país no período fixado entre 1990 e 2015, buscando os
limites das normas abstratas de direitos humanos e o alcance de suas diretrizes
frente as mulheres vítimas de violência e morte no âmbito do sistema de saúde. As
contribuições de Costas Douzinas e de Judith Butler serão analisadas na tentativa
de compreender os paradoxos dos direitos humanos e sua insuficiência frente a
vidas que parecem não alcançar o status normativo de vida humana para fins de
incidência das normas edificadas no campo do direito à saúde das mulheres.
Nesta conjuntura, serão identificadas vulnerabilidades específicas que
diferenciam a violência vivida por distintos grupos de mulheres. Uma abor-
dagem interseccional da temática dos direitos sexuais e reprodutivos será de-
senvolvida a partir dos eixos de raça e classe. Condições estruturais e aspectos
dinâmicos de desempoderamento84 serão analisados a partir das contribui-
ções teóricas de Kimberlé Crenshaw com o intuito de apreender de forma am-
pla o quadro de violação dos direitos humanos reprodutivos vivenciado por
mulheres, em especial negras e pobres.
Por fim, o presente artigo analisará os desdobramentos das mortes ma-
ternas no campo do luto. A teoria de Butler será mais uma vez articulada no
intuito de se identificar a vulnerabilidade e a precariedade ínsita à mortalida-
de materna e à invisibilidade que a acompanha. Mortes evitáveis atestadas em
altos números todos os anos refletem vidas que não se enquadram no conceito
normativo de vida e mortes desmerecedoras de comoção. As temáticas do luto
público e da morte materna serão, então, abordadas a partir da perspectiva da
morte digna ou não de lamento.
84 CRENSHAW, Kimberle. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence
Against Women of Color, p. 1244. Disponível em https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/
mapping-the-margins-intersectionality-identity-politics-and-violence-against-women-of-color-
kimberle-crenshaw1.pdf. Acesso em 24/07/2017.
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Violência Obstétrica em Debate
85 ÁVILA, Betânia. IN: CAMPOS, Carmen e OLIVEIRA, Guacira. Saúde Reprodutiva das Mulheres – direitos,
políticas públicas e desafios. CFEMEA: IWHC, Fundação H.Boll, Fundação Ford. Brasília, 2009, p. 18.
86 ONU. Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher.
Adotada pela Assembleia Geral em 1979, arts. 11. f e 12.
87 ONU. Comitê CEDAW. Recomendação Geral n. 24: 02/02/99: Mulheres e Saúde, parágrafo 11.
88 EMMERICK, Rulian. Corpo e poder: um olhar sobre o aborto à luz dos direitos humanos e da
democracia. Rio de Janeiro, 2007. Dissertação de mestrado: PUC-Rio, p. 92.
89 Ibid, p. 96 e 97.
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Violência Obstétrica em Debate
de bem estar físico, mental e social a ser observado em todas as matérias rela-
cionadas com o sistema reprodutivo, suas funções e processos, incluindo vida
sexual satisfatória e segura, capacidade e liberdade de reprodução e acesso a
serviços de saúde adequados90.
Mais tarde, a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Bei-
jing no ano de 1995, reitera a qualificação dos direitos sexuais e reprodutivos
enquanto direitos humanos e consolida o dever dos Estados de respeitar e
garantir a saúde das mulheres91. A saúde reprodutiva passa a ser tratada como
uma questão de desenvolvimento na seara dos direitos humanos, figurando
como aspecto fundamental do bem estar da vida das mulheres92. Os direitos
sexuais e reprodutivos deixam, então, de encontrar alicerce apenas no âmbito
da autonomia das mulheres e passam a englobar um conjunto de direitos,
como vida, liberdade, segurança, saúde, proteção contra discriminação, tor-
tura e outros tratos cruéis e degradantes, dentre outros93.
Na ordem interna, a Constituição de 88 garante acesso universal e iguali-
tário aos serviços de proteção, promoção e recuperação da saúde, a serem ofe-
recidos de forma gratuita pelo Sistema Único de Saúde (SUS)94, e a Lei 9.263/96
garante o direito ao planejamento familiar e dispõe sobre a promoção de aten-
dimento de saúde reprodutiva por meio do SUS95. Um sistema de saúde público,
irrestrito e equânime passa a ser desenvolvido a partir de 88, com a ampliação
de programas e iniciativas públicas relacionados à saúde da mulher.
Todo este arcabouço normativo internacional e interno representa, des-
de uma perspectiva teórica, um importante avanço. Entretanto, na prática a
maioria das mulheres continua vivenciado violações reiteradas em seus di-
reitos sexuais e reprodutivos, que ainda não conquistaram no plano fático o
mesmo prestígio verificado na retórica positiva. Esterilização forçada, crimi-
90 CAMPOS, Carmem e OLIVEIRA, Guacira. Saúde reprodutiva das mulheres – direitos, políticas e
desafios. Brasília: CFEMEA: IWHC, Fundação H.Boll, Fundação Ford, 2009, p. 49.
91 ONU. Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, Beijing, 1995, par. 97. Disponível
em: http://www.unfpa.org.br/novo/index.php/biblioteca/publicacoes/onu/413- declaracao-e-
plataforma-de-acao-da-iv-conferencia-mundial-sobre-a-mulher. Acesso em: 29/03/2018.
92 COOK, Rebecca. IN: CAMPOS, Carmem e OLIVEIRA, Guacira. Op cit., p. 50.
93 Ibid., p. 49.
94 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Arts. 196 a 200.
95 BRASIL. Lei n. 9.263/96. Regula o art. 226 da CF e trata do planejamento familiar.
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26,3% das mulheres negras possuíam níveis de renda médios ou altos e que
cerca de 74% das mulheres negras encontravam-se residindo em regiões com
menos ou nenhuma água encanada, esgotamento sanitário, coleta regular de
lixo, acesso à alimentação, à escola e aos serviços de saúde101.
A pesquisa Nascer no Brasil reafirma este cenário, indicando que dentre
as mulheres que dependem da rede pública de saúde e utilizam pagamento
público para o parto estão em maior concentração as mulheres negras. Da
mesma forma, são as mulheres negras que apresentam maior concentração
para maternidade entre adolescentes, entre mulheres menos escolarizadas,
entre as pertencentes às classes econômicas D e E e, ainda, dentre as com três
ou mais partos anteriores102.
Embora existam projetos específicos para a atenção da saúde da popula-
ção negra, como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra103,
é patente a vulnerabilidade diferenciada vivenciada pelos negros ao buscarem
serviços de saúde. O relatório da Comissão Interamericana de Direitos Hu-
manos sobre Pobreza e Direitos Humanos afirma que a discriminação racial
direta é uma constante na prestação de serviços de saúde à população afro-
descendente no Brasil e na região104. A raça ainda não foi identificada pelas
autoridades locais como uma categoria que precisa ser levada em conta com
especial atenção na avaliação dos serviços sociais e de saúde. José Marmo da
Silva, coordenador da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde,
afirma que o racismo dificulta o acolhimento das pessoas negras no SUS e que
muitas vezes os profissionais sequer percebem suas atitudes racistas105.
46
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109 WENECK, Jurema. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde Soc. São Paulo, V.
25, N. 3, pp. 535-549, 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v25n3/1984-0470-
sausoc-25-03-00535.pdf. Acesso em: 04/05/2018, p. 540.
110 CRENSHAW, Kimberlé. 2002, Op. cit., p. 173.
111 Ibid., p. 177.
112 Ibid., p. 177.
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116 BUTLER, Judith. Vida precária: el poder del duelo y la violencia. 1a Edição. Buenos Aires: Paidós,
2006, p. 46.
117 Ibid., p. 59. Tradução livre do espanhol.
118 DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p. 252.
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mente pelo que ela estima sobre os riscos na gravidez e no parto mas
também pelo que significa sobre a saúde, em geral, da mulher e, por
extensão, seu status social e econômico.122
122 OMS. Maternal Health and Safe Motherhood Programme Unicef. Revised 1990 estimates of maternal
mortality. Genebra, 1996, p. 2. Disponível em: http://apps.who.int/iris/handle/10665/63597. Acesso
em: 04/12/2017. Tradução do inglês.
123 VIANA, Rosane; NOVAES, Maria Rita e CALDERON, Iracema. Mortalidade materna – uma
abordagem atualizada. Com. Ciências Saúde, 22 (sup. esp. 1):141-152, 2011, p. 142. Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/artigos/mortalidade_materna.pdf . Acesso em: 29/03/2018.
124 SOUZA, João Paulo. Mortalidade maternal e os novos objetivos de desenvolvimento sustentável
(2016-2030). Rev Bras Ginecol Obstet, 37(12): 549-551, 2015, p. 549. Disponível em: http://www.
scielo.br/pdf/rbgo/v37n12/0100-7203-rbgo-37-12-00549.pdf. Acesso em: 29/03/2018.
125 VIANA, Rosane; NOVAES, Maria Rita e CALDERON, Iracema. Op. cit., p. 141 e 142.
126 SOUZA, João Paulo. Op. cit., p. 550.
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127 UNFPA. Promovendo o direito à saúde sexual e reprodutiva. Cooperação entre a Prefeitura
Municipal de Salvador e o Fundo de População das Nações Unidas. Salvador, 2008, p. 10.
128 ONU. Objetivos de Desenvolvimento do milênio. Objetivo n. 5. Disponível em https://nacoesunidas.
org/novo-relatorio-da-onu-avalia-implementacao-mundial-dos-objetivos-de-desenvolvimento-
do-milenio-odm/. Acesso em 24/07/2017.
129 WHO, UNICEF, UNPA, World Bank Group and United Nations Population Division Maternal
Mortality Estimation Inter-Agency Group. Maternal mortality in 1990-2015: Brazil. Disponível em
http://www.who.int/reproductivehealth/publications/monitoring/maternal-mortality-2015/en/.
Acesso em 24/07/2017.
130 MORSE, Marcia, FONSECA, Sandra e outras. Mortalidade materna no Brasil: o que mostra a produção
científica nos últimos 30 anos? Cad. Saúde Pública, 27(4): 623-638. Rio de Janeiro, 2011, p. 624.
131 DIAS, Júlia Maria; Oliveira, Ana Patrícia e outras. Mortalidade materna. Revista Médica de Minas
Gerais, v. 25.2, p. 173-179, 2014, p. 178. Disponível em http://www.rmmg.org/artigo/detalhes/1771.
Acesso em 24/03/2018.
132 Ibid., p. 174.
133 REDE FEMINISTA DE SAÚDE. Dossiê Aborto: mortes preveníveis e evitáveis. Belo Horizonte: Rede
Feminista de Saúde, 2005, p. 23.
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134 CANUTO, Luiz Cláudio. Mortalidade materna entre negras aumentou no Brasil. Rádio Câmara,
publicação de 09/06/2015. Disponível em http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/
mater ias/R A DIOAGENCI A /489786 -MORTA LIDA DE-M ATER NA-EN TR E-N EGR AS -
AUMENTOU-NO-BRASIL.html. Acesso em 24/07/2017.
135 LEAL, Maria do Carmo, GAMA, Silvana Granado Nogueira e outras. Op. Cit., p. 2.
136 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política
para o SUS. 3a Edição. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2017, p. 15.
137 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: Princípios e
Diretrizes. 1a Edição. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2011, p. 51.
138 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Op. cit., p. 15.
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139 JORNAL DO BRASIL. A mortalidade materna no Rio aumentou nos últimos três anos,
aponta relatório. Matéria publicada em 29/05/2017. Disponível em http://www.jb.com.br/rio/
noticias/2017/05/29/mortalidade-materna-no-rio-aumentou-nos-ultimos-tres-anos-aponta-
relatorio/. Acesso em 24/07/2017.
140 CENTER FOR REPRODUCTIVE RIGHTS. Caso Alyne da Silva Pimentel (“Alyne”) V. Brasil.
Disponível em https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=r
ja&uact=8&ved=0ahUKEwi7vK2DjqLVAhWC6SYKHfEUBlQQFggnMAA&url=https%3A%2F%
2Fwww.reproductiverights.org%2Fsites%2Fcrr.civicactions.net%2Ffiles%2Fdocuments%2FLAC_
Alyne_Factsheet_Portuguese_10%252024%252014_FINAL_0.pdf&usg=AFQjCNGnH80T3q_
yctysoctsmLTPWRem6w. Acesso em 24/07/2017.
141 ONU. Comitê CEDAW. Comunicação n. 17/2008. 49 Períodos de Sessões, 11 a 29 de julho de 2011.
Caso Alyne da Silva Pimentel Teixeira vs. Brasil, Recomendações.
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Nos termos propostos por Butler, todas as vidas são marcadas pela pre-
cariedade na medida em que demandam para sua manutenção a realização de
condições materiais e que encontram-se sujeitas à violência e à morte. A autora
pontua, neste viés, que em algumas vidas esta condição é maximizada. É o que
ocorre, pois, com as mulheres vítimas de morte materna, em sua maioria negras
e pobres. Evidencia-se, de acordo com a autora, que embora a precariedade seja
identificada enquanto um atributo compartilhado, ela é alocada de forma assi-
métrica no bojo da sociedade. A condição de precariedade é, então, identificada
como uma condição politicamente induzida que recai sobre as vidas que não
são consideradas valiosas e que são fadadas a suportar a privação de direitos e a
exposição diferenciada à violência e à morte144. Nas palavras de Butler:
A condição precária também caracteriza a condição politicamente in-
duzida de maximização da precariedade para populações expostas à
violência arbitrária do Estado que com frequência não têm opção a não
ser recorrer ao próprio Estado contra o qual precisam de proteção. Em
outras palavras, elas recorrem ao Estado em busca de proteção, mas o
Estado é precisamente aquilo do que elas precisam ser protegidas.145
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contínuo de falta de vida146. A perda desta vida que não é vida não desperta
lamento, não merece comoção e é fadada à invisibilidade.
O luto, identificado por Butler como uma forma de conexão com a vul-
nerabilidade do outro147, deixa de ser registrado diante das vidas irreais. Nas
palavras da autora, tem-se que “se uma vida não é digna de lamento, não é re-
almente uma vida. Essa vida não se qualifica como vida e não é digna de nota.
É, de fato, (...) o insepultável”148. A dimensão pública e simbólica do luto deixa
de se fazer presente diante de perdas que não são consideradas perdas, sendo
possível identificar, no âmbito da morte materna, a distribuição desigual do
luto político149. Diante das mortes vivenciadas no âmbito do sistema de saúde
não há indignação ou comoção.
Cumpre frisar que a inexistência de luto público, enquanto ato políti-
co capaz de, nos termos propostos por Butler, proporcionar um sentido de
responsabilidade coletiva ante a vulnerabilidade humana150, não significa que
estas mortes não se encontrem permeadas por um sentimento de tristeza.
Ocorre que este sofrimento, embora presente, não é projetado ou registra-
do politicamente. Como demonstra Thula Pires, a afirmação da existência de
corpos sobre os quais normalmente não há luto não pressupõe a ausência de
choro. De acordo com a autora, existe corrosão por cada vida perdida mas esta
nem sempre é reconhecida como dor humana ou como dor política151.
A morte materna pode ser verificada, nesta perspectiva, como morte in-
visível, calada, consentida. Não traz consigo o luto em sua dimensão pública
e não mobiliza responsabilidade coletiva frente às vidas perdidas. Sua reper-
cussão parece adstrita ao velho âmbito privado que o movimento feminista há
muito luta para ultrapassar. Estas mortes toleradas imprimem em si um mo-
delo de Estado ainda ancorado no patriarcalismo, no racismo e na desigualda-
58
Violência Obstétrica em Debate
Considerações finais
O presente ensaio, ao se debruçar sobre o cenário de violência vivencia-
do no campo da saúde da mulher, busca conceder visibilidade à temática da
mortalidade materna, ainda abafada e negligenciada. Considerando a mate-
rialidade do corpo e a sua exposição à violência e à morte atenta-se, seguindo
as formulações de Butler, à precariedade da vida humana e busca-se um cami-
nho possível para a tarefa ainda malsucedida de identificação com o outro e de
criação de responsabilidades compartilhadas. A percepção da precariedade
enquanto atributo comum como propõe Butler e o reconhecimento de sua
maximização pelo maquinário estatal ante a corpos específicos impõe urgên-
cia na construção de novas bases epistemológicas que se mostrem capazes de
conceder luz às violações estruturais de direitos humanos atestadas em nossa
sociedade e a traçar novos parâmetros normativas para o reconhecimento do
humano e a incidência das normas humanísticas protetivas.
A morte materna verificada enquanto morte evitável reflete a opção do
Estado pelo fazer morrer e escancara o desvalor associado às vidas ceifadas,
consideradas desmerecedoras de investimentos em saúde básica e preventiva
e, assim, de existência. A ausência de comoção pública pelas mortes maternas,
de luto em seu sentido simbólico e transformador na instância social, reflete a
59
Violência Obstétrica em Debate
hierarquia do luto identificada por Butler152. Neste deslinde entre morte, vio-
lência e invisibilidade, os direitos humanos distanciam-se das razões e lutas
que motivaram sua criação.
A efetividade do arcabouço protetivo dos direitos humanos, seu valor in-
surgente e seu real significado associado à resistência e à luta contra a opressão153
dependem de estruturas reais hábeis a materializar seus ideais. Novos cami-
nhos, identificações e responsabilidades mostram-se necessários para iluminar
a temática da mortalidade materna e reivindicar o valor das vidas humanas e o
real significado dos direitos humanos. A normativa abstrata dos direitos huma-
nos depende, nestes termos, de uma reformulação comprometida com as vidas
concretas que estão sofrendo com o controle e a morte. Enquanto seus termos
não se mostrarem hábeis a atender e amparar demandas encarnadas, não pode-
remos ter nos direitos humanos a esperança de alteração do quadro político de
violência atualmente experienciado por mulheres, notoriamente mulheres ne-
gras e pobres. Apesar dos avanços que paulatinamente vêm sendo identificados
na redução dos índices de morte materna, muito ainda é preciso galgar para a
real consagração do direito à saúde reprodutiva das mulheres.
60
Violência obstétrica, cuidado
neonatal e desafios para humanização
da assistência ao parto
61
Violência Obstétrica em Debate
62
Violência Obstétrica em Debate
Com essas análises também encontramos respaldo técnico para práticas que
eram realizadas de forma intuitiva, como colocar o bebê que acabou de nascer
no colo da mãe, prática esta que vinha sendo adotada como ato de humanização
e de bom senso e que, após a análise de inúmeros artigos publicados, passou a
ser evidenciada, por recursos estatísticos, como a mais adequada a ser adotada,
sendo comprovado que o melhor lugar para o bebê estar após o nascimento é no
colo da mãe. O que era uma decisão intuitiva, tomada em prol do bem estar da
mulher e da humanização, se torna uma prática com respaldo cientifico.
63
Violência Obstétrica em Debate
professores do curso e ele visa fornecer material para atuação em casos de emer-
gência, sendo focado em treinar o médico a reconhecer a emergência e reagir
em 30 segundos tomando as devidas providências. Esse curso não tem como
propósito a humanização, mas parte do reconhecimento de situações que exi-
gem demandas de intervenção. O grande desvio do pediatra é tratar 99% dos
casos como 1%, já que na prática médica identificamos que mais de 90% dos
nascimentos ocorrerem sem intercorrências ou necessidades de intervenção.
64
Violência Obstétrica em Debate
65
Violência Obstétrica em Debate
66
Violência Obstétrica em Debate
Ricardo Chaves: Esse marco de 39 semanas é o mínimo. Pode ser até que ele
represente alguma segurança. Mas imagine a situação: eu estou de plantão
no hospital conveniado ao SUS e aparece uma mulher humilde, sem plano de
saúde, com cartão de pré-natal identificando a última data de menstruação, a
realização de sete consultas de acompanhamento, mostrando que não possui
nenhuma doença e que não possui alteração de pressão, e essa mulher indica
que está na 39a semana e que foi ao hospital para realizar uma cesárea porque
tem direito. Como eu, sem ter acompanhado essa mulher, poderia fazer isso?
67
Violência Obstétrica em Debate
Isso será um caos. Com todas as críticas que podemos realizar à saúde suple-
mentar, o médico que sem indicação faz uma cesárea a pedido da mulher a
acompanha, normalmente, há pelo menos 10 meses. Esse projeto de lei é ir-
responsável, não atentou às considerações da área técnica e foi aprovado sem o
devido debate público. O projeto já foi sancionado e agora existem deputados
questionando sua constitucionalidade.
Pergunta: A Lei nº 17137 /2019 pretende tocar uma disputa feminista sobre
a autonomia corporal e o direito de escolha, mas deixa de considerar fatores
essenciais nesse debate, como a garantia de outros direitos das gestantes,
que muitas vezes não são atendidos. Como você compreende esse embate?
Ricardo Chaves: Acho que nós pediatras estamos no mesmo cenário, mas não
estamos em tanta evidência porque o processo não começa conosco. Somos
convidados a participar. A recepção da mulher e a organização da dinâmica
de funcionamento do parto não é feita pelo pediatra. Mas enquanto corpora-
ção, nos enquadramos igualmente nesse cenário e é preciso reconhecer isso.
68
Violência Obstétrica em Debate
Para humanizar uma sala de parto cirúrgico podemos deixar apenas um foco
de luz, e apagar a luz em volta. Não há mal, muito pelo contrário, em trabalhar
na penumbra. É mais fisiológico. Apenas o obstetra precisa de luz. Em 90%
dos casos o bebê apresenta boa frequência cardíaca e vai respirar naturalmen-
te, sendo possível acompanhar esse bebê no colo da mãe e com pouca luz ver
esse bebê. É preciso que os pediatras reconheçam a necessidade de garantir
condições de fisiologia, conforme prevê o manual de regras da sociedade de
pediatria. A sociedade de pediatria segue o paradigma da fisiologia. O que fal-
ta na prática é reforçar a condição de fisiologia referenciado no corpo da mãe,
reforçar que a não intervenção é uma atitude de humanização e reforçar que o
pediatra deve participar desse movimento de humanização do parto.
69
Violência Obstétrica em Debate
70
Violência Obstétrica em Debate
71
Violência Obstétrica em Debate
72
Violência obstétrica: um novo termo
que engloba novas e velhas demandas
Olivia Hirsch
Sara Mendonça
154 RATTNER, D. Sobre a hipótese de estabilização das taxas de cesárea do Estado de São Paulo, Brasil.
Revista de Saúde Pública. 30(1),19-33, 1996.
155 LEAL, M. C.; GAMA, S. G. N. Sumário executivo temático da pesquisa. In: LEAL, M. C. (Org.).
Nascer no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2015.
73
Violência Obstétrica em Debate
156 CHACHAM, A. S. Doctors, Women and Cesareans: The construction of normal birth as risky and
the medicalization of birth in Brazil. In: Annual Meeting of the Population Association of America,
Boston. Book of Abstracts, 1: 19, 2004.
157 Idem, p. 09.
74
Violência Obstétrica em Debate
pedir que a mulher faça o movimento de empurrar quando seu corpo não está
produzindo os puxos naturais; episiotomia, corte realizado no períneo para
aumentar a passagem para o bebê; recurso ao fórceps, aparelho para extração
do feto, dentre outros. A anestesia peridural também é entendida como uma
intervenção para as ativistas, porém constitui um direito parcamente contem-
plado na saúde publica, o que será explorado ao longo do artigo. Existe ainda
a concepção de que uma intervenção gera a necessidade de mais intervenções,
de forma que estes procedimentos se fariam necessários em cadeia, o que cos-
tuma ser chamado por profissionais da saúde ligados à humanização e por
ativistas de “cascata de intervenções”.
É válido acrescentar que, diferentemente do que parece sugerir o traba-
lho de Chacham158, nas camadas populares a definição pelo parto cirúrgico
tampouco pode ser atribuída exclusivamente a uma questão de “necessida-
de”, isto é, a uma indicação clínica. A cesariana, em algumas situações, pode
ser realizada como forma de atender a um acordo tácito existente entre os
médicos, que prevê que o “pré-parto” deva ser “limpo” antes da troca de tur-
nos, isto é, que todas as parturientes que se encontram em trabalho de parto
devam dar à luz, evitando que o profissional que está para assumir o plantão
tenha que se ocupar daquelas que fizeram a internação mais cedo. Segundo
Dias159, que observou esta prática durante pesquisa realizada em uma mater-
nidade pública, trata-se
de um acordo velado entre os profissionais de que cada equipe deve
resolver os casos que interna (...). O acordo implícito entre eles é o de
que não é correto deixar muito ‘trabalho’ para o plantão noturno. No
dia seguinte todos terão que trabalhar e, portanto, é preciso garantir
que será possível ter um descanso durante a noite.
158 Idem.
159 DIAS, M. A. B. Humanização da assistência ao parto. Conceitos, lógicas e práticas no cotidiano de
uma maternidade pública, 2006. Tese de Doutorado, Rio de Janeiro: Departamento de Ensino e Pós-
Graduação em Saúde da Mulher e da Criança, IFF/FIOCRUZ, p. 117.
75
Violência Obstétrica em Debate
160 MARTIN, E. A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução. Rio de Janeiro: Garamond,
2006, p. 233.
161 Segundo a pesquisa “Nascer no Brasil”, anteriormente referida, apenas 5% das mulheres tiveram
partos sem nenhuma destas intervenções.
162 OMS. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Care in normal birth. A practical guide: maternal
and newborn health/safe motherhood unit family and reproductive health. Genebra: World Health
Organization, 1996.
76
Violência Obstétrica em Debate
77
Violência Obstétrica em Debate
167 BECK, U. Sociedade de risco. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 337.
168 TORNQUIST, C. S; SPINELLI, C. S. Um jeito soviético de dar à luz: o parto sem dor no sul da
América do Sul. In: História oral, v. 12, n. 1-2, p. 129-156, jan.-dez. 2009, p. 130.
169 ELIAS, N.; SCOTSON, J. L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir
de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
170 MENDONÇA, S. S. Parir na Maria Amélia: uma etnografia dos dilemas, possibilidades e disputas da
humanização em uma maternidade pública carioca. Programa de Pós-graduação em Antropologia,
Universidade Federal Fluminense, Tese de Doutorado, 2018.
171 HIRSCH, O. N. O parto “natural” e “humanizado”: um estudo comparativo entre mulheres de
camadas populares e médias no Rio de Janeiro. Programa de Doutorado em Ciências Sociais,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Tese de doutorado, 2014, 354 p.
78
Violência Obstétrica em Debate
sobre o processo, algo que essas unidades de saúde, regidas por seus protocolos,
não podem se comprometer plenamente.
79
Violência Obstétrica em Debate
173 SALEM, T. O casal grávido: disposições e dilemas da parceria igualitária. Rio de Janeiro: FGV, 2007.
174 DUMONT, L. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de
Janeiro: Rocco. 2000.
175 SIMMEL, G. Freedom and the individual, in Levine, D. (org.), Georg Simmel on individuality and
social forms. Chicago: The University of Chicago Press, 1971.
80
Violência Obstétrica em Debate
176 McCALLUM, C.; REIS, A. P. Re-significando a dor e superando a solidão: experiências do parto
entre adolescentes de classes populares atendidas em uma maternidade pública de Salvador, Bahia,
Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 22(7): 1483-1491, 2006.
177 GOMES, A. et al. “Stepped on like a floor mat”: human experience of hospital violence in the
Northeast of Brazil. Revista Tempus: Actas de Saúde Coletiva, 04(4): 79-91, 2010.
178 DENYER, L. M. Call me “at-risk”: Maternal health in São Paulo’s public health clinics and the desire
for cesarean technology, 2008. Master of Science, Cambridge: Department of Urban Studies and
Planning, Massachussets Institute of Technology (MIT).
179 DALSGAARD, A. L. Vida e esperanças: esterilização feminina no Nordeste. São Paulo: Editora
UNESP, 2006.
180 AGUIAR, J. M. Violência institucional em maternidades públicas: hostilidade ao invés de
acolhimento como uma questão de gênero, 2010. Tese de Doutorado, São Paulo: Faculdade de
Medicina, Universidade de São Paulo.
81
Violência Obstétrica em Debate
181 DENYER, L. M. Call me “at-risk”: Maternal health in São Paulo’s public health clinics and the desire
for cesarean technology, 2008. Master of Science, Cambridge: Department of Urban Studies and
Planning, Massachusetts Institute of Technology (MIT).
182 Idem: p. 02.
183 DINIZ, S. G. et al. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens,
definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Journal of
Human Growth and Development. 25 (3): 377-384, 2015.
184 TESSER, C. et al. Violência obstétrica e prevenção quaternária: o que é e o que fazer. Revista
Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. 10 (35): 01-12, 2015, p. 02.
82
Violência Obstétrica em Debate
83
Violência Obstétrica em Debate
188 PULHEZ, M. M. “Parem a violência obstétrica”: a construção das noções de ‘violência’ e ‘vítima’ nas
experiências de parto. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, 12 (35): 544-564, 2013, p. 559.
189 Idem, p. 545
84
Violência Obstétrica em Debate
85
Violência Obstétrica em Debate
86
Violência Obstétrica em Debate
cenário, não era incomum que, quando em trabalho de parto, tais mulheres se
encaminhassem ou fossem levadas por suas famílias198 a maternidades públicas
convencionais para dar à luz, onde tinham a possibilidade de serem assistidas
por médicos e de terem acesso a procedimentos médicos e farmacológicos.
Nesse sentido, enquanto há mulheres que se esforçam por escapar da cesá-
rea e de outros procedimentos médicos, os quais consideram formas de violência,
é possível observar situações em que ocorre inclusive o contrário: para algumas
mulheres a não realização de procedimentos reconhecidos como compondo o ato
obstétrico pode, no limite, ser até mesmo avaliado como negligência por parte da
equipe, que estaria sendo cruel ao as deixar sofrer as dores do trabalho de parto
sem oferecer meios de encurtá-lo. Assim procedimentos execrados pelas ativistas
são pedidos por essas mulheres enquanto “ajudas”. O descaso, tratamento rude,
insensibilidade aparecem como violências e maus tratos para ambos os grupos,
porém em relação às intervenções as concepções podem divergir. As percepções
das mulheres de camadas populares apontam que não há algo inerentemente vio-
lento em ações como empurrar barrigas e cortar vaginas e outros significados –
como “ajuda” – podem ser atribuídos a elas.
Durante a investigação conduzida por Hirsch199 na casa de parto foi possível
notar que o tempo de duração do trabalho de parto despontou como um aspecto
decisivo para a satisfação (ou não) das mulheres com a experiência vivida. Naque-
le contexto, o parto considerado “bom” era o parto rápido, pois significava que
a mulher ficou menos tempo exposta à dor. É como se o nascimento da criança,
após um curto trabalho de parto, compensasse a dor, mesmo nos casos em que
esta fosse considerada extremamente aguda e intensa. E, para uma parte das mu-
lheres que davam à luz ali, as intervenções – não ofertadas, mas por algumas al-
mejadas – apareciam de maneira positiva, uma vez que poderiam contribuir para
acelerar o trabalho de parto e parto, como sugere o relato de Adriana:
Eu só focava nele sair, eu não pensava em outra coisa, era só ele sair
[risos]. Eu falava [para as enfermeiras]: ‘Vocês não querem acabar logo
com isso não? Anda logo e me ajuda aqui!’ [risos] (Adriana)
198 Idem, para uma reflexão sobre a participação da família, em especial da mãe, nas decisões que
envolvem o parto no contexto das camadas populares.
199 Idem.
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Violência Obstétrica em Debate
200 LEAL, M. C.; GAMA, S. G. N. Sumário executivo temático da pesquisa. In: LEAL, M. C. (Org.).
Nascer no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2015.
201 SCAVONE, L. Dar a vida e cuidar da vida: feminismo e ciências sociais. São Paulo: Editora Unesp, 2004.
88
Violência Obstétrica em Debate
acessível para as mulheres que podem pagar por ela, o que leva a autora a afir-
mar que “a utilização destas técnicas é um privilégio, não um direito, ao mes-
mo tempo em que divulga um padrão de modernidade inacessível à maioria
da população. Daí decorre a supervalorização da tecnologia médica e maior
aceitação e justificação de seu uso”202.
Considerações finais
A ampliação na definição das formas de violência exercidas durante a as-
sistência ao parto, como proposta pelo termo “violência obstétrica”, ampliou
também o número de mulheres que passaram a se reconhecer como vítimas
dela. Isto é, passaram a se incluir também aquelas provenientes de camadas
médias, mais expostas à medicalização e para as quais a cesárea se tornou qua-
se que inescapável203, porém, em geral menos afetadas por violências físicas,
verbais, discriminações sociais e negligência – que atingem principalmente
mulheres de camadas populares204. Com efeito, “quanto maior a vulnerabili-
dade da mulher, mais rude e humilhante tende a ser o tratamento oferecido a
ela”, como sugerem Diniz et al.205, acrescentando que:
mulheres pobres, negras, adolescentes, sem pré-natal, sem acompanhante,
prostitutas, usuárias de drogas, vivendo em situação de rua ou encarcera-
mento estão mais sujeitas a negligência e omissão de socorro. A banalização
da violência contra as usuárias relaciona-se com estereótipos de gênero pre-
sentes na formação dos profissionais de saúde e na organização dos serviços.
89
Violência Obstétrica em Debate
206 Para mais detalhes sobre essa produção, ver: DINIZ, S. G. et al. Violência obstétrica como questão
para a saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e
propostas para sua prevenção. Journal of Human Growth and Development. 25 (3): 377-384, 2015.
207 DAVIS, A. Mulheres, cultura e política. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 30.
90
Violência obstétrica nos estudos
brasileiros sobre assistência ao
parto: definições em construção
Introdução
Atualmente, no Brasil, praticamente todas as crianças nascem em hospi-
tais ou outros estabelecimentos de saúde e em 66,4% dos casos as mães realizam
pelo menos sete consultas pré-natais.208 Todavia, a melhoria no acesso aos servi-
ços de saúde e o atendimento por profissional treinado não têm se refletido em
melhores indicadores de saúde. Ao contrário, a mortalidade materna permane-
ce como importante problema: segundo os Indicadores e Dados Básicos para
a Saúde no Brasil (IDB), a taxa elevou-se de 45,8 óbitos maternos por 100 mil
nascidos vivos, em 2000, para 68,2 por 100 mil, em 2010.209 Dessa maneira, o
país não alcançou a meta de reduzir em três quartos a razão de morte materna,
conforme proposto pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.210
Fatores relacionados ao perfil da população (taxa de fecundidade, enve-
lhecimento, doenças crônico-degenerativas, entre outros) e a excessiva me-
dicalização conformam um cenário em que se exige ir além do combate à
91
Violência Obstétrica em Debate
92
Violência Obstétrica em Debate
218 RICH, A. On Lies, Secrets and Silence. Selected Prose 1966-1978. New York: WW Norton, 1979. p. 314.
219 HOTIMSKY, S. N.; AGUIAR, J. M. de; VENTURI, G. A violência institucional no parto em
maternidades brasileiras. In: Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado - Uma
década de mudanças da opinião pública. São Paulo: Perseu Abramo/Sesc-SP, 2013. p. 217–229.
220 SILVEIRA, M. M. da. Violência contra o obstetra. Revista da Sociedade Goiana de Ginecologia e
Obstetrícia, v. 10, n. 66, p. 3, 2017.
221 DINIZ, S. G.; SALGADO, H. O.; ANDREZZO, H. F. A.; DE CARVALHO, P. G. C.; CARVALHO, P.
C. A.; AGUIAR, C. A.; NIY, D. Y. Abuse and disrespect in childbirth care as a public health issue in
Brazil: Origins, definitions, impacts on maternal health, and proposals for its prevention. Journal of
Human Growth and Development, v. 25, n. 3, 2015b.
222 ARGENTINA. Ley de Parto Humanizado No 25.929. 2004, p. 1–2.
223 ASAMBLEA NACIONAL DE LA REPÚBLICA BOLIVARIANA DE VENEZUELA. Ley orgánica
sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violencia. 2014, p. 46.
224 Esta revisão integra um projeto de pesquisa sobre a incorporação de inovações na assistência ao
parto e ao recém-nascido financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp),
processo número 2015/50498-0, e também é parte dos estudos de doutorado da autora principal.
93
Violência Obstétrica em Debate
2. Métodos
Nesta revisão, os termos de busca foram “violência obstétrica” e “Brasil”,
em português, inglês e espanhol, nas bases de dados PubMed, JBI Library,
Scielo e Google Scholar. As buscas foram realizadas em junho de 2017, sem
limitação temporal.
Formulou-se uma planilha eletrônica com dados sobre os estudos identi-
ficados, incluindo título do estudo, autores, resumo e base de dados em que foi
recuperado. Essa mesma planilha foi usada para a avaliação do título e resu-
mo por duas revisoras, que trabalharam independentemente e selecionaram
os estudos que potencialmente atendiam aos critérios de inclusão: relacionar-
-se à experiência com violência obstétrica na perspectiva das mulheres, dos
gestores ou dos profissionais de saúde na assistência ao pré-natal, ao parto, ao
puerpério e ao abortamento no Brasil. Foram considerados estudos qualitati-
vos, quantitativos e de métodos mistos, sem restrições de tempo nem quanto
à metodologia usada para a análise de dados.
O texto completo desses estudos foi recuperado para avaliação e para
decisão sobre sua inclusão ou não na revisão. As divergências foram solucio-
nadas por uma terceira revisora.
Foram excluídos os estudos que:
• não se referiam ao Brasil;
• não definiam a violência obstétrica;
• não discutiam a assistência ao pré-natal, ao parto, ao puerpério ou ao
abortamento;
• não tinham texto completo disponível em inglês, português ou espanhol.
225 O protocolo da revisão foi registrado na base de dados do Centre for Reviews and Dissemination
(CRD), da Universidade de York (Reino Unido), sob o número CRD42017068223, em junho
de 2017. Nesse mesmo mês não se localizaram nessa base de dados registros de outras revisões
concluídas sobre o mesmo tema, apenas o protocolo de uma revisão semelhante em andamento,
mas compreendendo o território da América Latina e Caribe e com foco ampliado para abuso,
desrespeito e maus-tratos.
94
Violência Obstétrica em Debate
3. Resultados e discussão
Foram identificados 930 estudos a partir das buscas nas bases de dados
e 223 foram excluídos por estarem duplicados. Assim, consideraram-se 707
estudos e, a partir da análise do seu título e resumo, 147 foram selecionados
para a leitura integral. Excluíram-se 105 deles, porque não se referiam ao tema
estudado, não tinham o Brasil como local de estudo ou seu texto completo
não foi localizado (Figura 1). Entre os estudos deste último grupo, 17 eram
trabalhos apresentados em congressos, apenas com resumo disponível.
95
Violência Obstétrica em Debate
96
Violência Obstétrica em Debate
Quatro puérperas
que residiam na área Entrevista semiestruturada
ANDRADE;
Guarapuava (PR) de abrangência do e análise de conteúdo
AGGIO, 2014 4
Centro Integrado segundo Bardin
de Atendimento
103.905 mulheres
que tiveram bebê e Análise descritiva de dados
ARRUDA, 20155 Brasil aceitaram responder secundários disponibilizados
pesquisa telefônica da pela Ouvidoria Geral do SUS
Ouvidoria Geral do SUS
Mulheres que
CARVALHO, Comunidade postaram seus relatos
Pesquisa etnográfica
20157 do Facebook na comunidade
virtual estudada
97
Violência Obstétrica em Debate
3.765 puérperas de
parto transpelviano Questionário respondido pela
CUNHA
Fortaleza e que se encontravam participante da pesquisa e
RODRIGUES
Cascavel (CE) nas unidades de complementado por dados do
et al., 201710
alojamento conjunto das prontuário; análise estatística
referidas instituições
DAMASCENO,
Ceilândia (DF) 50 puérperas Entrevista semiestruturada
201611
Observação participante,
DANELUCI, Município não Gestantes e puérperas
entrevistas individuais
201612 declarado atendidas pela instituição
e grupos focais
Literatura acadêmica,
produções dos
DINIZ et al., movimentos sociais Revisão crítico-narrativa
Revisão
2015a13 e documentos sobre violência obstétrica
institucionais, do
Brasil e do exterior
Audiências públicas
realizadas em São Paulo e
Análise do vídeo dos
DINIZ et palestrantes de seminário
São Paulo (SP) relatos das mulheres e os
al., 201614 sobre violência contra
discursos dos palestrantes
a mulher no ensino das
profissões de saúde
FABBRO;
Nove puérperas que Entrevistas; metodologia
MACHADO, São Carlos (SP)
deram à luz no SUS comunicativa crítica
201715
13 mulheres da etnia
Tupinambá que
Entrevistas semiestruturadas
FAREIRA, 201616 Ilhéus (BA) tinham pelo menos um
e análise crítica
filho e uma midwife
de Serra Negra
98
Violência Obstétrica em Debate
Mulheres participantes
do Ato Público Pesquisa encarnada e o
‘partir de si’ como propostas
MANFRINI; Florianópolis ‘Somos Todxs Adelir’, feministas que pressupõem
CIMA, 201622 (SC) contra a violência que o corpo é o lugar principal
obstétrica, em de se fazer pesquisa
Florianópolis em 2014
Entrevista semiestruturada;
14 puérperas assistidas para a análise, consideraram-
na maternidade do se unidades temáticas,
MOURA, 201423 Niterói (RJ)
Hospital Estadual agrupadas em categorias,
Azevedo Lima para os tipos mais relatados
de violência obstétrica
99
Violência Obstétrica em Debate
20 mulheres que
buscaram atendimento na Grupos focais e entrevistas
OLIVEIRA
Teresina (PI) complementares; análise
et al., 201725 referida maternidade em de conteúdo temático
processo parturitivo
Participantes da “Marcha
do Parto em Casa”,
PULHEZ, ocorrida em Campinas
Campinas (SP) Observação e entrevista
2013b27 em 2012 e o vídeo
“Violência obstétrica - a
voz das brasileiras”
Blog Mamíferas
PULHEZ, 201528 Blog Mamíferas Etnografia do blog Mamíferas
e suas leitoras
100
Violência Obstétrica em Debate
Formulário sobre a
caracterização socioeconômica,
obstétrica, intervenções
RENNÓ, 201631 Itajubá (MG) 25 puérperas
ocorridas no parto,
entrevista; análise de
conteúdo segundo Bardin
Usuárias de internet
que se voluntariaram a
Coleta via formulário
responder ao Teste da
SENA; TESSER, Brasil; eletrônico autopreenchido,
Violência Obstétrica
201734 documentário no caso do teste, e
e documentário
videodocumentário
“Violência obstétrica – a
voz das brasileiras”
Trabalhadores dos
setores de pré-parto e
Relato de experiência de estágio
SILVA et al., Município centro obstétrico de um
curricular de estudantes de
2015b36 baiano (BA) hospital público estadual
enfermagem de 10º semestre
do sudoeste baiano e
mulheres aí atendidas
Entrevista semiestruturada;
Oito mulheres que
SILVA et análise por meio de
João Pessoa (PB) deram à luz na
al., 201637 identificação de temas
maternidade de estudo
segundo Fiorin
101
Violência Obstétrica em Debate
Questionário disponibilizado
por meio eletrônico; análise
102 estudantes da
SILVA, 201738 Brasília (DF) estatística; questões abertas
área de saúde
foram analisadas por meio
da análise de conteúdo
11 mulheres com
SIQUEIRA, Campina Entrevista com roteiro
idades de 18 a 28 anos,
201639 Grande (PB) semiestruturado
primigestas e primíparas
Literatura científica,
Revisão crítico-narrativa sobre
TESSER et literatura cinza
Brasil violência obstétrica e propostas
al., 201541 e documentos de
para prevenção quaternária
domínio público
Observação participante e
Rio de Janeiro Parturientes atendidas
VALLE, 201542 entrevistas com médicos,
(RJ) no serviço
residentes e internos
102
Violência Obstétrica em Debate
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Violência Obstétrica em Debate
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226 PULHEZ, M. M. A “Violência Obstétrica” e as diputas em torno dos direitos sexuais e reprodutivos.
In: Fazendo Gênero 10 - desafios Atuais do Feminismo, Florianópolis. Anais... Florianópolis: 2013a.
227 PULHEZ, M. M. “Parem a violência obstétrica!” Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 12, n. 1,
p. 522–537, 2013b. Disponível em: <http://www.cchla.ufpb.br/rbse/RBSEv12n35Ago2013completo.
pdf#page=69>.
228 CARNEIRO, R. “Para chegar ao Bojador, é preciso ir além da dor”: sofrimento no parto e suas
potencialidades. Sexualidad, Salud y Sociedad (Rio de Janeiro), n. 20, p. 91–112, 2015. Disponível
em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-64872015000200091&lng=en
&nrm=iso&tlng=pt>.
229 SENA, L. M.; TESSER, C. D. Violência obstétrica no Brasil e o ciberativismo de mulheres mães: Relato
de duas experiências. Interface: Communication, Health, Education, v. 21, n. 60, p. 209–220, 2017.
230 LUZ, L. H.; GICO, V. de V. Violência obstétrica: ativismo nas redes sociais. Cad. Ter. Ocup. UFSCar,
v. 23, n. 3, p. 475–484, 2015. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.4322/0104-4931.ctoAO0622>.
231 PULHEZ, M. M. Mulheres mamíferas: práticas da maternidade ativa. 2015. Dissertação (Mestrado
em Antropologia Social)–Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, 2015.
232 CARVALHO, C. S. de. Violência obstétrica: etnografia de uma comunidade no Facebook. In:
Reunião Equatorial de Antropologia, Reunião de Antropologia do Norte e Nordeste, 2015. Anais...,
v. 1, n. 1, 2015.
107
Violência Obstétrica em Debate
233 AGUIAR, C. de A. “Por um fio”: memórias e representações de mulheres que vivenciaram o near-miss
materno. 2016. Teste (Doutorado em Ciências)–Faculdade de Saúde Pública da USP, 2016.
234 LIMA, K. D. de. Raça e violência obstétrica no Brasil. 2016. Monografia (Especialização em Saúde
Coletiva)–Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães da Fundação Oswaldo Cruz, 2016.
LUZ, N. F.; ASSIS, T. R.; REZENDE, F. R. Puérperas adolescentes: percepções relacionadas ao pré-natal
e ao parto. Abcs Health Sciences, v. 40, n. 2, p. 80–84, 2015.
235 ARRUDA, K. G. M. Violência contra a mulher no parto: Um olhar sobre a pesquisa da Rede Cegonha
do SUS. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva)–Universidade de Brasília, Brasília, 2015.
236 SOUZA, K. J. de. Violência institucional na atenção obstétrica: proposta de modelo preditivo para
depressão pós-parto. 2014. Dissertação (Mestrado em Saúde ColetivA)–Faculdade de Ciências da
Saúde da UNB, 2014. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/handle/10482/17225>.
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Violência Obstétrica em Debate
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Violência Obstétrica em Debate
AMORIM, 2015: Tratamentos prestados por profissionais de saúde que não atendam às emergências
obstétricas de forma oportuna e eficaz; que forcem a mulher a dar à luz em decúbito dorsal, com as
pernas levantadas, havendo meios para o parto vertical; que impeçam o contato entre a mulher e seu
bebê sem justificativa médica ou que impeçam a mulher de segurar e amamentar imediatamente
após o nascimento. Interpreta a lei venezuelana e concebe como violência obstétrica as
técnicas de aceleração do parto sem consentimento expresso e informado e a realização de
cesariana sem consentimento quando as condições forem favoráveis a um parto natural.
110
Violência Obstétrica em Debate
ANDRADE; AGGIO, 2014: Entendido a partir de Juárez et al. (2012) como qualquer ato
exercido por profissionais da saúde no que cerne ao corpo e aos processos reprodutivos das
mulheres, exprimido através de uma atenção desumanizada, abuso de ações intervencionistas,
medicalização e a transformação patológica dos processos de parturição fisiológicos.
ARRUDA, 2015: Entendido a partir de Juárez et al. (2012) como violência exercida
por qualquer ato dos profissionais da saúde nos processos reprodutivos da mulher
que possam interferir no domínio do seu corpo, demonstrado através de uma atenção
desumanizada, com abuso de utilização de ações intervencionistas, com alta medicalização
e transformação patológica dos processos naturais fisiológicos do parto.
CARVALHO, 2015: A partir de Juárez et al. (2012), entende como violência obstétrica qualquer ato
exercido por profissionais de saúde no que cerne ao corpo e aos processos reprodutivos das mulheres,
expresso através de uma atenção desumanizada, abuso de ações intervencionistas, medicalização e
transformação patológica dos processos de parturição fisiológicos, bem como a negação do direito
de ser informada e de opinar em relação aos procedimentos a serem exercidos em seu corpo.
111
Violência Obstétrica em Debate
DINIZ et al., 2016: Interpreta diversos estudos e propõe abordar a violência obstétrica como abuso,
desrespeito, forma de indignidade na assistência ao parto e uma forma de violação de direitos.
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Violência Obstétrica em Debate
LUZ; ASSIS; REZENDE, 2015: A partir da definição de Juárez (2012), violência obstétrica é
qualquer ato exercido por profissionais da saúde, no que cerne ao corpo e aos processos
reprodutivos das mulheres, exprimido através de uma atenção desumanizada,
abuso de ações intervencionistas, medicalização e a transformação
patológica dos processos de parturição fisiológicos.
LUZ; GICO, 2015: Definida a partir de D’Gregorio (2010) como qualquer ato – ou intervenção
– direcionado à mulher grávida, parturiente ou puérpera (que deu à luz recentemente),
ou ao seu bebê, praticado sem o consentimento explícito e informado da mulher e/ou em
desrespeito à sua autonomia, integridade física e mental, e aos seus sentimentos, opções e
preferências. Engloba a violência física, moral e emocional, incluindo abuso verbal e realização
de procedimentos dolorosos, exposição física, contenção e impedimento de ser acompanhada
MOURA, 2014: Desrespeito aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, com falta de atenção
qualificada e humanizada à mulher nas unidades hospitalares no processo parturitivo.
113
Violência Obstétrica em Debate
OLIVEIRA et al., 2017: Adota-se conceito de Sadler et al. (2016), segundo o qual a violência
obstétrica é caracterizada pela apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres
pelos profissionais da saúde, tratamento desumanizado, abuso da medicação e patologização
dos processos naturais, causando a perda da autonomia e da capacidade de decidir livremente
sobre os seus corpos e sexualidade, impactando negativamente em sua qualidade de vida.
PULHEZ, 2013a: De acordo com a definição de Debert & Gregori, reflete-se sobre a
noção de violência contraposta à de crime: “Crime implica a tipificação de abusos, a
definição das circunstâncias envolvidas nos conflitos e a resolução destes no plano
jurídico. Violência [...] implica reconhecimento social (não apenas legal) de que certos
atos constituem abuso, o que exige decifrar dinâmicas conflitivas que supõem processos
interativos atravessados por posições de poder desiguais entre os envolvidos”.
PULHEZ, 2013b: Violência obstétrica é uma categoria acionada por certos grupos de mulheres,
entre outros para “denunciar a violação de direitos humanos quando da adoção de certos
procedimentos que escapam às políticas públicas já direcionadas à saúde reprodutiva e sexual
da mulher” (políticas referentes à cesariana, ao aborto, à morte materna, ao câncer de colo
uterino, de mama, etc.), como, por exemplo, os casos de negligência médica, violência física,
violência verbal e violência sexual que parecem ocorrer dentro dos hospitais durante os partos.
REGIS, 2016: Adota a definição da legislação venezuelana, segundo a qual violência obstétrica é a
apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profissionais da saúde, que se
expressa por um tratamento desumanizador, pelo abuso de medicalização e pela patologização dos
processos naturais, resultando numa perda da autonomia e da capacidade de decidir livremente
sobre seus corpos e sua sexualidade, impactando negativamente a qualidade de vida das mulheres.
REGIS; RESENDE, 2015: Adota definição de D’Gregorio (2010), segundo a qual violência
obstétrica é a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por
profissionais de saúde de maneira expressa por tratamento desumano, pelo uso abusivo
de medicação, pela conversão de processos fisiológicos em processos patológicos,
acarretando com isso perda de autonomia a da habilidade de decidir livremente sobre seus
corpos e sexualidade, impactando negativamente a qualidade de vida das mulheres
114
Violência Obstétrica em Debate
RENNÓ, 2016: A violência nas maternidades tem sido denominada violência obstétrica,
expressão utilizada para todas as formas de violência e danos que ocorrem durante a
assistência obstétrica e se caracteriza por desrespeito aos direitos da mulher. Apresenta
várias formas como: a omissão, a negligência, a violência física, a psicológica, abusos
sexuais, uso de intervenções e medicamentos sem evidências científicas e outras
situações que geram sofrimento para as mulheres e podem prejudicar o seu filho.
SENA; TESSER, 2017: Violência obstétrica é uma expressão que agrupa as formas
de violência e danos originados no cuidado obstétrico profissional.
SILVA et al., 2014: Qualquer ato ou intervenção direcionada à parturiente ou ao seu bebê,
praticado sem o consentimento explícito e informado da mulher e/ou em desrespeito à sua
autonomia, integridade física e mental, aos seus sentimentos, opções e preferências.
SILVA et al., 2015b: Adota conceitos de Aguiar e D’Oliveira (2011) para definir violência
obstétrica como uma agressão contra a saúde sexual, mental e reprodutiva da mulher,
podendo ser causada por profissionais de saúde que atuam em setores públicos e privados.
SILVA, 2017: Baseia-se na declaração da OMS sobre desrespeito e abuso na assistência ao parto
para definir violência obstétrica como toda violência praticada no contexto da assistência
à gestação, parto, pós-parto e abortamento, caracterizada por agressão física, psicológica,
verbal, simbólica e sexual, assim como pela negligência na assistência e pela discriminação.
115
Violência Obstétrica em Debate
SIQUEIRA, 2016: Interpreta o estudo de Tesser et al. (2014) e entende a violência obstétrica como
danos físicos e emocionais acometidos contra a mulher no cuidado obstétrico profissional, dentre
os quais destaca-se a prática rotineira de procedimentos desnecessários e danosos para mulher,
como: episiotomias (corte perineal lateral), restrição ao leito no pré-parto, enema (lavagem
intestinal), tricotomia (raspagem dos pelos pubianos), ocitocina de rotina (uso do hormônio
sintético), ausência de acompanhante e o excesso do número de cesarianas. Além disso, considera
a definição da OMS (2014) e afirma que violência obstétrica é toda e qualquer intervenção
desnecessária, negligência por omissão de informação, agressão física e psicológica realizada no
período gravídico (no parto e no pós-parto) por parte dos profissionais que acompanham a mulher.
SOUZA, 2014: A partir de D’Gregorio (2010), coloca como violência obstétrica todo ato ou omissão
do profissional de saúde que leve à apropriação indevida dos processos corporais e reprodutivos
das mulheres e que se expressem no tratamento desumano, no abuso da medicalização e no tornar
patológico os processos naturais, fazendo com que a mulher perca a sua capacidade de decidir
livremente sobre o seu corpo e sexualidade, impactando negativamente em sua qualidade de vida.
TESSER et al., 2015: A expressão “violência obstétrica” é utilizada para descrever e agrupar diversas
formas de violência (e danos) durante o cuidado obstétrico profissional. Inclui maus tratos físicos,
psicológicos e verbais, assim como procedimentos desnecessários e danosos – episiotomias,
restrição ao leito no pré-parto, clister, tricotomia e ocitocina (quase) de rotina, ausência de
acompanhante – dentre os quais destaca-se o excesso de cesarianas, crescente no Brasil há décadas.
VALLE, 2015: Questões éticas relacionadas ao abuso de intervenções e maus tratos por
parte dos médicos para com as parturientes e definição da legislação venezuelana.
240 D’GREGORIO, R. P. Obstetric violence: A new legal term introduced in Venezuela. International
Journal of Gynecology and Obstetrics, v. 111, n. 3, p. 201–202, 2010. Disponível em: <http://dx.doi.
org/10.1016/j.ijgo.2010.09.002>.
116
Violência Obstétrica em Debate
VENEZUELA, 2007 (1):44 Em sua lei orgânica sobre o direito das mulheres a uma vida livre
de violência, a Venezuela define como violência contra a mulher todo ato sexista ou conduta
inadequada que possa resultar em dano ou sofrimento físico, sexual, psicológico, emocional,
laboral, econômico ou patrimonial; a coação ou privação arbitrária da liberdade, assim como a
ameaça de executar tais atos. Reconhece que a violência pode se dar em âmbito público ou privado
e engloba, entre suas formas, a violência obstétrica. Esta é entendida como a apropriação do
corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profissional de saúde, que se expressa em
um tratamento desumanizador, em um abuso de medicalização ou patologização dos processos
naturais, tendo como consequência a perda de autonomia e de capacidade de decidir livremente
sobre seus corpos e sua sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida as mulheres.
A lei define ainda a violência institucional como ações ou omissões que autoridades, funcionários
e qualquer agente do poder público que, contrariamente ao devido exercício de suas atribuições,
retardem, obstaculizem ou impeçam que as mulheres tenham acesso a políticas públicas ou exerçam
seus direitos previstos na lei que lhes garante o direito a uma vida sem violência. Outro aspecto
definido pela legislação diz respeito à violência simbólica, entendida como valores, ícones, signos
que transmitem e reproduzem as relações de dominação, desigualdade e discriminação nas relações
sociais que se estabelecem entre as pessoas e naturalizam a subordinação da mulher na sociedade.
Entre os atos considerados como de violência obstétrica citam-se aqueles executados por
profissionais de saúde, como não atender oportuna e eficazmente as emergências obstétricas; obrigar
a mulher a parir em posição supina e com as pernas elevadas, existindo meios necessários para a
realização do parto em posição verticalizada; impor obstáculos ao contato precoce entre mãe e bebê
sem causa médica justificada, negando à mulher a possibilidade de segurar a criança e amamentá-
la imediatamente após o nascimento; alterar o processo natural do parto de baixo risco, mediante
o uso de técnicas de aceleração, sem obter o consentimento voluntário e expresso e informado da
mulher; praticar a cesariana, existindo condições para o parto natural, sem obter o consentimento
voluntário expresso e informado da mulher. A legislação define uma multa aos responsáveis
por tais atos, além de determinar que a sentença condenatória seja encaminhada ao respectivo
conselho profissional para que se realizem os procedimentos disciplinares correspondentes.
117
Violência Obstétrica em Debate
DEBERT; GREGORI, 2008:45 O estudo aborda as relações entre as concepções de gênero e violência
a partir do entendimento de que são significados construídos historicamente que permitem atribuir
sentidos de danos, abusos e lesões a determinados atos. Analisam-se o surgimento e funcionamento
das Delegacias de Defesa da Mulher, evidenciando que por vezes a mulher como sujeito de direitos
não estava no centro da discussão e atuação do órgão, de modo que as assimetrias de gênero
não eram colocadas em xeque. Nesse contexto, o Judiciário também não foi capaz de instituir
parâmetros, procedimentos e práticas que pudessem impedir a ocorrência dos crimes contra a
mulher. O texto não aborda a violência obstétrica nem a saúde sexual e reprodutiva da mulher.
BOWSER; HILL, 2010:46 Trata-se de uma extensa revisão da literatura (científica e cinza)
sobre desrespeito e abuso na assistência ao parto em estabelecimentos de saúde, a partir
do reconhecimento de que esse constitui um problema multifatorial e que pode ser
percebido de formas diferentes, ou mesmo naturalizado, a depender dos contextos de
sua ocorrência. Define sete categorias de desrespeito e abuso: abuso físico, cuidado não
consentido, cuidado não confidencial, cuidado indigno, discriminação com base em
atributos específicos da paciente, abandono do cuidado e detenção na instituição.
LUZ, 2014:50 A partir de D’Gregorio (2010), define violência obstétrica como qualquer ato ou
intervenção direcionado à mulher grávida, parturiente ou puérpera (que deu à luz recentemente), ou
ao seu bebê, praticado sem o consentimento explícito e informado da mulher e/ou em desrespeito
a sua autonomia, integridade física e mental, aos seus sentimentos, opções e preferências.
118
Violência Obstétrica em Debate
TESSER et al., 2015:51 A expressão violência obstétrica (VO) é utilizada para descrever e agrupar
diversas formas de violência (e danos) durante o cuidado obstétrico profissional. Inclui maus tratos
físicos, psicológicos, e verbais, assim como procedimentos desnecessários e danosos – episiotomias,
restrição ao leito no pré-parto, clister, tricotomia e ocitocina (quase) de rotina, ausência de
acompanhante – dentre os quais destaca-se o excesso de cesarianas, crescente no Brasil há décadas.
SADLER et al., 2016:52 Refere-se à fundação da Rehuna, aos marcos legais da Venezuela e
Argentina e coloca que a violência obstétrica “além de focalizar o tratamento desumanizado,
destaca sua dimensão obstétrica, das raízes da especialidade médica à educação contemporânea
e estruturas de poder. Emoldura a discussão do abuso e desrespeito dentro do campo
mais amplo das desigualdades estruturais e da violência contra a mulher” (p. 4).
(1) A lei venezuelana foi reformada em 2014 para incluir o delito de feminicídio e de indução
ou ajuda ao suicídio.
Notas de rodapé Quadro 3
119
Violência Obstétrica em Debate
120
Violência Obstétrica em Debate
241 D’GREGORIO, R. P. Obstetric violence: A new legal term introduced in Venezuela. International
Journal of Gynecology and Obstetrics, v. 111, n. 3, p. 201–202, 2010. Disponível em: <http://dx.doi.
org/10.1016/j.ijgo.2010.09.002>.
242 VENEZUELA. Ley orgánica sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violencia. . 2007, p. 1–41.
243 ARGENTINA. MINISTERIO DE SALUD; JUÁREZ, D. P.; BAGNASCO, M. E.; CANAL, W.;
GYGLI, M. S.; QUIROGA, M.; SANTANDREA, C. Violencia sobre las mujeres. p. 134, 2012.
244 LUZ, L. H. O renascimento do parto e a reinvenção da emancipação social na blogosfera brasileira: contra
o desperdicio das experiências. 2014. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da UFRN, 2014.
245 SADLER, M.; SANTOS, M. J. D. S.; RUIZ-BERDÚN, D.; ROJAS, L.; SKOKO, E.; GILLEN, P.;
CLAUSEN, A. Moving beyond disrespect and abuse : addressing the structural dimensions
of obstetric violence. Reproductive health matters, p. 1–9, 2016. Disponível em: <http://dx.doi.
org/10.1016/j.rhm.2016.04.002>.
246 D’OLIVEIRA, A. F. P. L.; DINIZ, S. G.; SCHRAIBER, L. B. Violence against women in health-care
institutions: An emerging problem. Lancet, v. 359, n. 9318, p. 1681–1685, 2002.
247 AGUIAR, J. M. de. Violência institucional em maternidades públicas: hostilidade ao invés de
acolhimento como uma questão de gênero. 2010. Faculdade de Medicina da USP, 2010. Disponível
em: <http://www.social.org.br/relatorio_RH_2013.pdf>.
248 MOURA, G. do N. A percepção das mulheres puérperas acerca da violência da assistência obstétrica. 2014.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Enfermagem)–Escola de Enfermagem da UFF, 2014.
249 DEBERT, G. G.; GREGORI, M. F. Violência e gênero: novas propostas, velhos dilemas. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 66, p. 165–185, 2008.
121
Violência Obstétrica em Debate
sejam entendidas como tal ou mesmo sejam tidas como naturais ou inerentes
ao ato de ter uma criança, conforme propõem Bowser e Hill (2010).250
Considerações finais
Os abusos, desrespeitos e maus-tratos sofridos pela mulher na assistência
à gestação, ao parto e ao aborto não constituem um problema recente, contu-
do, nomear tal problema como uma forma de violência é um fenômeno relati-
vamente novo.251 Nesta revisão, os estudos científicos que empregam o termo
“violência obstétrica” foram publicados a partir de 2013, o que confirma sua
emergência como campo de estudo no país.
As agressões físicas e verbais e a negligência são situações de violência
que a mulher enfrenta nos serviços de saúde sobre as quais não pairam muitas
dúvidas: devem ser combatidas. Todavia, uma definição de violência obstétri-
ca que seja significativa à realidade nacional e que contribua para o aprimora-
mento da assistência e das políticas públicas precisa ir além disso.
Entre outras maneiras, a violência obstétrica pode ser definida a partir das
condutas consideradas inadequadas na assistência ao pré-natal, parto, puer-
pério e aborto, como episiotomia de rotina e manobra de Kristeller. Assim, o
apontamento de tais condutas como atos de violência (uma vez que desneces-
sárias do ponto de vista clínico e impostas à mulher sem possibilidade de ne-
gociação) torna-se instrumental para visibilizá-las como danosas à integridade
física (e por vezes emocional) da mulher. Individualmente, tais intervenções po-
deriam ser classificadas simplesmente como má prática ou imperícia. Todavia,
quando se considera o contexto brasileiro, nota-se que o modelo hegemônico
250 BOWSER, D.; HILL, K. Exploring Evidence for Disrespect and Abuse in Facility-Based Childbirth:
Report of a Landscape Analysis. Harvard: USAID-TRAction Project, 2010.
251 DINIZ, S. G.; SALGADO, H. de O.; ANDREZZO, H. F. de A.; DE CARVALHO, P. G. C.;
CARVALHO, P. C. A.; AGUIAR, C. de A.; NIY, D. Y. Violência obstétrica como questão para a
saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas
para sua prevenção. Journal of Human Growth and Development, v. 25, n. 3, p. 377–382, 2015a.
122
Violência Obstétrica em Debate
252 LEAL, M. do C.; PEREIRA, A. P. E.; DOMINGUES, R. M. S. M.; FILHA, M. M. T.; DIAS, M. A.
B.; NAKAMURA-PEREIRA, M.; BASTOS, M. H.; GAMA, S. G. N. da. Intervenções obstétricas
durante o trabalho de parto e parto em mulheres brasileiras de risco habitual. Cad. Saúde Pública,
v. 30, Sup., p. S17–S32, 2014.
253 LEAL, M. D. C.; GAMA, S. G. N. da. Nascer no Brasil. Cad. Saúde Pública, v. 30, Sup., p. S5–S7, 2014.
254 OSIS, M. J. M. D. Paism: um marco na abordagem da saúde reprodutiva no Brasil. Cad. Saúde
Pública, v. 14, n. Supl. 1, p. 25–32, 1998.
255 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria no 569, de 1 de junho de 2000. Institui o Programa de
Humanização no Pré-natal e Nascimento, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário
Oficial da União, p. Seção 1, 2000.
256 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Parto , Aborto e Puerpério Assistência Humanizada à Mulher. Brasília,
DF: Ministério da Saúde, 2001.
257 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Programa humanização do parto: humanização no pré-natal e
nascimento. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2002.
258 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e
diretrizes. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2004.
259 Ver: <http://www.mppe.mp.br/mppe/comunicacao/campanhas/4240-campanha-humanizacao-
do-parto>.
123
Violência Obstétrica em Debate
260 WHO. The prevention and elimination of disrespect and abuse during facility-based
childbirth: WHO statement. Geneva: WHO, 2014. Disponível em: <http://apps.who.int/iris/
bitstream/10665/134588/1/WHO_RHR_14.23_eng.pdf?ua=1&ua=1>.
261 INTERNATIONAL FEDERATION OF GYNECOLOGY AND OBSTETRICS; WHITE
RIBBON ALLIANCE; INTERNATIONAL PEDIATRIC ASSOCIATION; WORLD HEALTH
ORGANIZATION. Mother−baby friendly birthing facilities. International Journal of Gynecology &
Obstetrics, v. 128, n. 2, p. 95–99, 2015. Disponível em: <http://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/
S0020729214005451>.
262 Ver: <http://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/apice/>.
124
Violência Obstétrica em Debate
125
O dever de informação na relação
médico-gestante como forma de garantia
da autonomia existencial no parto
263 CC, Art. 2º. A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo,
desde a concepção, os direitos do nascituro.
264 “Na verdade, a denominada “medicalização” da sociedade não é algo inteiramente novo, visto ser um
processo que teve início com as revoluções científicas dos séculos XVII e XVIII, as quais subverteram
a ordem até então existente, ao desafiarem e questionarem a “lei natural” considerada imutável à
época. Ao desvendar alguns dos mistérios naturais, pertencentes à ordem do “sagrado”, o homem,
por meio da ciência, deu ensejo a uma contínua “dessacralização da natureza”, que até a atualidade
se desenvolve de forma crescente e acelerada. (...) O saber científico, em todas as suas expressões,
encontrou na medicina, um de seus principais instrumentos e tornou a vida humana objeto do saber
teórico, especialmente do conhecimento biológico”. BARBOZA, Heloisa Helena. A pessoa na era da
biopolítica: autonomia, corpo e subjetividade. Cadernos IHU ideias, ano 11, n. 194, 2013, p. 4.
127
Violência Obstétrica em Debate
265 “O parto e o nascimento, que eram vistos como um evento fisiológico e feminino, começam a ser
encarados como um evento médico e masculino, incluindo a noção do risco e da patologia como
regra, e não mais exceção. Neste modelo tecnocrático, a mulher deixou de ser protagonista, cabendo
ao médico a condução do processo”. ZANARDO, Gabriela Lemos de Pinho; URIBE, Magaly
Calderón; NADAL, Ana Hertzog Ramos De; HABIGZANG, Luísa Fernanda. Violência obstétrica
no brasil: uma revisão narrativa. Psicologia & Sociedade, v. 29, Belo Horizonte, 2017, p. 3.
266 “A gravidez e o parto são eventos sociais que integram a vivência reprodutiva de homens e mulheres.
Este é um processo singular, uma experiência especial no universo da mulher e de seu parceiro,
que envolve também suas famílias e a comunidade. A gestação, parto e puerpério constituem uma
experiência humana das mais significativas, com forte potencial positivo e enriquecedora para
todos que dela participam”. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticos de Saúde. Área
Técnica de Saúde da Mulher. Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher. Brasília:
Ministério da Saúde, 2001, Prefácio.
128
Violência Obstétrica em Debate
267 OMS, Organização Mundial de Saúde. World report on violence and health. Genebra: OMS, 2002, p.
5. Grifos adicionados.
268 “A reprodução afeta a mulher de uma forma que transcende as divisões de classe e permeia todas
as suas atividades: sua educação, seu trabalho, seu envolvimento político e social, sua saúde, sua
sexualidade, enfim, sua vida e seus sonhos. É necessário que se deixe de romantizar o poder que pode
existir da conexão biológica da mulher com a Maternidade. É fundamental deixar de subestimar o
poder repressivo sobre as mulheres que se estabelece com essa conexão. Pois essa visão “reprodutiva”
das mulheres é muito menos o resultado de sua condição biológica e, acima de tudo, determinada
pela organização social e cultural. E não se pode deixar de reconhecer que essa organização tem,
até hoje, buscado cercear os esforços das mulheres para ganhar um pouco de espaço de controle
sobre suas vidas e seus corpos e para expressar livremente sua sexualidade”. BRASIL. Ministério da
Saúde. Secretaria de Políticos de Saúde. Área Técnica de Saúde da Mulher. Parto, aborto e puerpério:
assistência humanizada à mulher. Brasília: Ministério da Saúde, 2001, p. 15.
269 “A violência obstétrica corresponde a uma forma específica da violência de gênero, uma vez que
há utilização arbitrária do saber por parte de profissionais da saúde no controle dos corpos e da
sexualidade das parturientes. Esta modalidade de violência caracteriza-se pela apropriação do
corpo e dos processos reprodutivos da mulher pelos agentes de saúde, mediante um tratamento
desumanizado, abuso de medicalização e patologização dos processos naturais, causando a
perda de autonomia da parturiente e da sua capacidade de decidir livremente sobre seu corpo e
sexualidade, o que pode culminar com consequências negativas e desastrosas para a qualidade de
vida das mulheres”. SAUAIA, Artenira da Silva e Silva; SERRA, Maiane Cibele de Mesquita. Uma
129
Violência Obstétrica em Debate
dor além do parto: violência obstétrica em foco. Revista de Direitos Humanos e Efetividade, Brasília,
v. 2, n. 1, p. 128 - 147, Jan/Jun. 2016, p. 129.
270 FIOCRUZ. Nascer no Brasil: pesquisa revela número excessivo de cesarianas. Disponível em:
<https://portal.fiocruz.br/noticia/nascer-no-brasil-pesquisa-revela-numero-excessivo-de-
cesarianas>. Acesso em: 19.8.2018.
271 “Em distintas partes do mundo, essa modalidade de violência tem se alastrado de maneira preocupante
e silenciosa, haja vista que as mulheres vítimas desta prática não a percebem como tal. Por questões
culturais, o parto ainda é encarado como um momento de ‘dor necessária’”. SAUAIA, Artenira da
Silva e Silva; SERRA, Maiane Cibele de Mesquita. Uma dor além do parto: violência obstétrica em
foco. Revista de Direitos Humanos e Efetividade, Brasília, v. 2, n. 1, p. 128 - 147, Jan/Jun. 2016, p. 132.
130
Violência Obstétrica em Debate
272 “Note-se que nos textos atribuídos a Hipócrates, recomendava-se que o médico escondesse tudo o
que pudesse do doente, desviando mesmo a atenção dele daquilo que lhe estava a fazer e omitindo
o prognóstico que lhe reservava... Mas há quem afirme que o exercício da medicina nunca foi tão
autoritário como estas passagens fazem crer senão porventura, durante a Idade Média, quando
a prática clínica esteve confiada aos monges, habituados a relações organizadas de uma forma
hierárquica severa, e ao dogma”. OLIVEIRA, Guilherme. Estrutura jurídica do acto médico,
consentimento informado e responsabilidade médica. In: OLIVEIRA, Guilherme. Temas de direito
da medicina. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 60.
273 “Os médicos, para além de, em épocas longas, terem beneficiado da condição cumulativa e
privilegiada de eclesiásticos, estiveram sempre tão próximos do divino quanto a própria doença:
desde o velho culto de Asclépio até à mistura que ainda hoje persiste entre um saber racional e um
saber mágico, toda a caminhada do sofrimento humano garantiu à medicina um estatuto superior
e estabilizado que não se compadecia com a humana prestação de contas”. OLIVEIRA, Guilherme.
O fim da “arte silenciosa”. In: OLIVEIRA, Guilherme. Temas de direito da medicina. Coimbra:
Coimbra Editora, 2005, p. 107.
274 OLIVEIRA, Guilherme. O fim da “arte silenciosa”. In: OLIVEIRA, Guilherme. Temas de direito da
medicina. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 110.
131
Violência Obstétrica em Debate
sentido de beneficiar os outros, que não apenas não os prejudique, mas tam-
bém contribua para o seu bem-estar.
Foi em razão dessa posição de poder, como detentores do conhecimento,
que os médicos foram, aos poucos, tomando o lugar das parteiras, num crescen-
te processo de industrialização e medicalização do parto275 – na contramão do
que era até então, um ritual de mulheres, não era considerado um ato médico
(que só era chamado se houvesse complicações), e por isso, ficava a cargo das
parteiras.276 O desenvolvimento de drogas que tiravam a dor, de técnicas que
modificavam a forma na qual a cesariana era feita, organização de transfusão
de sangue, antibióticos, acabaram tornando a cesariana um procedimento cada
vez mais confiável. A partir da década de 70, o parto passou a ser feito, como re-
gra, no hospital, com a paciente monitorada, infusão de ocitocina para o auxílio
das contrações, o que o tornou mais seguro.277 Nesse novo modelo tecnocrático
de parto, o obstetra se ocupa muito mais do útero, das contrações e do bebê do
que da visão da mulher como um todo, o que acabou fazendo com que a mulher
deixasse de ser o sujeito do parto para que o médico passasse a ter a condução do
parto. Além disso, passou a ignorar as condições emocionais da mulher como
fator dificultador ou facilitador para o trabalho de parto.
275 “Joseph DeLee, renomado professor de obstetrícia norte-americano, teve um papel proeminente
no advento do parto industrializado. Foi autor de vários livros textos, um orador requisitado e
inventor de muitas ferramentas obstétricas. No seu famoso artivo e discurso a colegas obstetras,
feito em 1920 e intitulado: “O uso profilático de fórceps”, ele observou que “o parto é um processo
patológico”. Ele recomendou o uso rotineiro do fórceps e a episiotomia em cada parto. Ele sugeriu
que a “paciente” deveria ser sedada e que o éter deveria ser administrado. O tratado de DeLee foi de
tanta influência nos EUA que, pela década de 30, a “obstetrícia profilática” já tinha se tornado a
norma”. Disponível em: <http://institutonascer.com.br/historia-parto/>. Acesso em: 19.8.18.
276 MAIA, Mônica Bara. A assistência à saúde e ao parto no Brasil. In: Humanização do parto: política
pública, comportamento organizacional e ethos profissional [online]. Rio de Janeiro: Editora
FIOCRUZ, 2010, p. 29. Disponível em: <http://books.scielo.org/id/pr84k/pdf/maia-9788575413289-
03.pdf>. Acesso em: 20.8.18.
277 “(...) o evento complexo do parto e nascimento se tornou, ao longo dos últimos séculos, um assunto
médico e hospitalar, separado da vida familiar e comunitária. O parto hospitalar serviu à obstetrícia
de três maneiras: restringindo a competição com as parteiras, estabelecendo o princípio do controle
médico sobre as pacientes e permitindo o treinamento de novos médicos (Domingues, 2002). O
parto medicalizado e hospitalar tornou-se sinônimo de modernidade, de segurança e de ausência
de dor”. MAIA, Mônica Bara. A assistência à saúde e ao parto no Brasil. In: Humanização do parto:
política pública, comportamento organizacional e ethos profissional [online]. Rio de Janeiro:
Editora FIOCRUZ, 2010, p. 33. Disponível em: <http://books.scielo.org/id/pr84k/pdf/maia-
9788575413289-03.pdf>. Acesso em: 20.8.18.
132
Violência Obstétrica em Debate
278 FERRANDO, Gilda. Il principio di gratuità, biotecnologie e atti di disposizione del corpo. In:
BONELL, Joaquim; CASTRONOVO, Carlo; DI MAJO, Adolfo; MAZZAMUTO, Salvatore (a cura
di). Europa e diritto privato. Milano: Giuffrè, jul./set. 2002, p. 768.
279 STANCIOLI, Brunello Souza. Relação jurídica médico-paciente. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 27.
280 “O princípio da autonomia pode ser entendido como o reconhecimento de que a pessoa possui
capacidade para se autogovernar. Assim, de modo livre e sem influências externas, preceitua-se o
respeito pela capacidade de decisão e ação do ser humano”. NAVES, Bruno Torquato de Oliveira;
SÁ, Maria de Fátima Freire de. Manual de biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 34.
281 Entendemos que essa mudança ocorreu em virtude da tutela da pessoa humana e da necessidade do
paciente de participar do seu processo terapêutico. Por isso, ousamos discordar de Roxana Borges
que imputa essa mudança de perspectiva à consideração do paciente como cliente: “No meio médico,
tem-se buscado uma maior humanização da medicina. Um reflexo dessa tentativa é a consideração
do paciente como cliente. A troca das expressões é significativa. Ao tratar o doente como cliente e
não como paciente, aquele é elevado a sujeito, deixando de ser meramente aquele que espera, como a
expressão paciente significa”. BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direito de morrer dignamente:
eutanásia, ortotanásia, consentimento informado, testamento vital, análise constitucional e penal e
direito comparado. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Biodireito: ciência da vida, os novos
desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 296.
133
Violência Obstétrica em Debate
282 Esta expressão é de Guilherme de Oliveira. OLIVEIRA, Guilherme. Estrutura jurídica do acto
médico, consentimento informado e responsabilidade médica. In: OLIVEIRA, Guilherme. Temas
de direito da medicina. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 61.
283 Já afirmou Judith Martins-Costa que o paternalismo é um modo de ser autoritário. MARTINS-
COSTA, Judith. Pessoa, personalidade, dignidade: ensaio de uma qualificação. Tese de livre-
docência em direito civil apresentada à congregação da Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo. Maio, 2003, p. 185.
284 RODOTÀ, Stefano. Perché laico. Roma-Bari: Laterza, 2009, p. 85.
285 PESSINI, Leo. Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo: Centro Universitário São
Camilo, Loyola, 2001, p. 171.
286 CASABONA, Carlos Maria Romeo. El derecho y la bioética ante los limites de la vida humana.
Madrid: Centro de Estúdios Ramón Aceres, 1994, p. 42.
134
Violência Obstétrica em Debate
287 BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola,
2002, p. 143-144.
288 GUIMARÃES, Maria Carolina S.; NOVAES, Sylvia Caiuby. Autonomia reduzida e vulnerabilidade:
liberdade de decisão, diferença e desigualdade. Disponível em: <http://revistabioetica.cfm.org.br/
index.php/revista_bioetica/article/view/288/427>. Acesso em: 11.8.2018.
289 MARQUE, Flávia Carvalho; DIAS, Ieda Maria Vargas; AZEVEDO, Leila. A percepção da equipe de
enfermagem sobre humanização do parto e do nascimento. Esc Anna Nery R Enferm, dez. 2006, p. 441.
290 MAIA, Mônica Bara. A assistência à saúde e ao parto no Brasil. In: Humanização do parto: política
pública, comportamento organizacional e ethos profissional [online]. Rio de Janeiro: Editora
FIOCRUZ, 2010, p. 44. Disponível em: <http://books.scielo.org/id/pr84k/pdf/maia-9788575413289-
03.pdf>. Acesso em: 20.8.18.
135
Violência Obstétrica em Debate
291 “O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 14, caput, prevê a responsabilidade objetiva aos
fornecedores de serviço pelos danos causados ao consumidor em virtude de defeitos na prestação
do serviço ou nas informações prestadas - fato do serviço. Todavia, no § 4º do mesmo artigo,
excepciona a regra, consagrando a responsabilidade subjetiva dos profissionais liberais. Não há,
assim, solidariedade decorrente de responsabilidade objetiva, entre o cirurgião-chefe e o anestesista,
por erro médico deste último durante a cirurgia”. STJ, EREsp 605435 / RJ, S2, Rel. p/ acórdão Min.
Raul Araújo, julg. 14.9.2011, DJ 28.11.2011.
292 TEPEDINO, Gustavo. A responsabilidade médica na experiência brasileira contemporânea. In:
_____. Temas de direito civil. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 90.
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Violência Obstétrica em Debate
reclamou que a veia da minha mão era muito torta.” Thais Stella, aten-
dida na rede pública no Hospital Sorocabana, Lapa em São Paulo-SP300
300 Parto do Princípio – Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa. Violência Obstétrica “Parirás com
dor”. Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres.
2012. Disponível em: <https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20
VCM%20367.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2018.
301 Parto do Princípio – Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa. Violência Obstétrica “Parirás com
dor”. Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres.
2012. Disponível em: <https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20
VCM%20367.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2018.
302 “No entanto, também se pode pensar como violência obstétrica a mulher ser privada da escolha da via
de parto. Isso porque culturalmente as mulheres são levadas a pensar que o parto normal é sempre
a melhor escolha para ela e seu bebê. No entanto, não são informadas de forma adequada sobre as
vantagens e desvantagens de cada um dos métodos. De acordo com a Doutora em Ciências da Saúde,
Nilza Alves Marques Almeida, essa concepção sobre o parto normal está mudando. Como triunfo
social, a obstetrícia médica, além de manter o modelo intervencionista de assistência, passou a apontar
o parto cirúrgico como uma das soluções para o problema da dor do parto normal, com base na ideia
de que a mulher não é a culpada pela dor, mas sim vítima de sua própria natureza. Assim, por meio de
uma cesárea eletiva, a dor do parto normal poderia ser evitada para a maioria das mulheres assistidas
no setor privado, tornando-se uma intervenção, muitas vezes realizada por conveniências diversas da
equipe médica, e até mesmo, da própria mulher grávida”. ALVARENGA, Sarah Pereira; KALIL, José
141
Violência Obstétrica em Debate
Helvécio. Violência obstétrica: como o mito “parirás com dor” afeta a mulher brasileira. Revista da
Universidade Vale do Rio Verde, Três Corações, v. 14, n. 2, p. 641-649, ago./dez. 2016, p. 645.
303 Parto do Princípio – Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa. Violência Obstétrica “Parirás com
dor”. Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres.
2012. Disponível em: <https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20
VCM%20367.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2018.
142
Violência Obstétrica em Debate
“Quando eu ouvi ele pedindo o bisturi, meu Deus, quase morri! Eu pedi
para que não fizesse a episio, mas ele me respondeu: ‘O seguro morreu
de velho. Quem manda aqui sou eu.’” Danielle Moura, que procurou
informações sobre episiotomia durante a gestação, que decidiu por não
se submeter ao procedimento e comunicou ao médico sobre a decisão.
Atendida através de plano de saúde em Belém-PA304
A incisão feita sem a anuência da parturiente que lhe acarrete dano pode ge-
rar, inclusive, o dever de indenizar. Nesse sentido, a 2ª Turma do STF, em acórdão
de relatoria do Ministro Celso de Mello, já reconheceu a responsabilidade civil
do ente público por danos causados a paciente em razão de lesão esfincteriana
304 Parto do Princípio – Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa. Violência Obstétrica “Parirás com
dor”. Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres.
2012. Disponível em: <https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20
VCM%20367.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2018.
305 Parto do Princípio – Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa. Violência Obstétrica “Parirás com
dor”. Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres.
2012. Disponível em: <https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20
VCM%20367.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2018.
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Violência Obstétrica em Debate
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Violência Obstétrica em Debate
309 Parto do Princípio – Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa. Violência Obstétrica “Parirás com
dor”. Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres.
2012. Disponível em: <https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20
VCM%20367.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2018.
310 Alguns estados estão regulamentando a violência obstétrica, como foi o caso recente de Mato Grosso
do Sul, que editou a lei 5.217, de 26 de junho de 2018, que dispõe sobre a implantação de medidas de
informação e de proteção à gestante e à parturiente contra a violência obstétrica. A lei caracteriza
145
Violência Obstétrica em Debate
como violência obstétrica: “I - tratar a gestante ou a parturiente de forma agressiva, não empática,
grosseira, zombeteira, ou de qualquer outra forma que a faça se sentir mal pelo tratamento recebido;
II - fazer graça ou recriminar a parturiente por qualquer comportamento como gritar, chorar, ter
medo, vergonha ou dúvidas; III - fazer graça ou recriminar a mulher por qualquer característica ou
ato físico como, por exemplo, obesidade, pelos, estrias, evacuação e outros; IV - não ouvir as queixas
e as dúvidas da mulher internada e em trabalho de parto; V - tratar a mulher de forma inferior,
dando-lhe comandos e nomes infantilizados e diminutivos, tratando-a como incapaz; VI - fazer a
gestante ou a parturiente acreditar que precisa de uma cesariana quando esta não se faz necessária,
utilizando de riscos imaginários ou hipotéticos não comprovados e sem a devida explicação dos
riscos que alcançam ela e o bebê; VII - recusar atendimento de parto, haja vista este ser uma
emergência médica; VIII - promover a transferência da internação da gestante ou da parturiente
sem a análise e a confirmação prévia de haver vaga e garantia de atendimento, bem como tempo
suficiente para que esta chegue ao local; IX - impedir que a mulher seja acompanhada por alguém
de sua preferência durante todo o trabalho de parto; X - impedir a mulher de se comunicar com
o “mundo exterior”, tirando-lhe a liberdade de telefonar, fazer uso de aparelho celular, caminhar
até a sala de espera, conversar com familiares e com seu acompanhante; XI - submeter a mulher
a procedimentos dolorosos, desnecessários ou humilhantes, como lavagem intestinal, raspagem
de pelos pubianos, posição ginecológica com portas abertas, exame de toque por mais de um
profissional; XII - deixar de aplicar anestesia na parturiente quando esta assim o requerer; XIII -
proceder a episiotomia quando esta não é realmente imprescindível;”
146
Violência Obstétrica em Debate
311 Seja consentido remeter ao nosso TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Autonomia existencial.
Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCilvil, Belo Horizonte, v. 16, p. 75-104, abr./jun. 2018.
312 “O conceito de atenção humanizada é amplo e envolve um conjunto de conhecimentos,
práticas e atitudes que visam a promoção do parto e do nascimento saudáveis e a prevenção da
morbimortalidade materna e perinatal. Inicia-se no pré-natal e procura garantir que a equipe de
147
Violência Obstétrica em Debate
saúde realize procedimentos comprovadamente benéficos para a mulher e o bebê, que evite as
intervenções desnecessárias e que preserve sua privacidade e autonomia”. BRASIL. Ministério da
Saúde. Secretaria de Políticos de Saúde. Área Técnica de Saúde da Mulher. Parto, aborto e puerpério:
assistência humanizada à mulher. Brasília: Ministério da Saúde, 2001, p. 9.
313 “É preciso que se reconheça à pessoa a possibilidade de autopromover o desenvolvimento da sua
personalidade através da regulamentação dos seus interesses existenciais. Ora, se a função das
situações existenciais é imedia-tamente a promoção do livre desenvolvimento da personalidade do
seu titular, não tem esse condão a mera observância de um dever negativo”. MEIRELES, Rose Melo
Vencelau. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 60.
314 “O preparo da gestante para o parto abrange a incorporação de um conjunto de cuidados, medidas
e atividades que têm como objetivo oferecer à mulher a possibilidade de vivenciar a experiência do
trabalho de parto e parto como processos fisiológicos, sentindo-se protagonista desse processo”.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticos de Saúde. Área Técnica de Saúde da Mulher.
Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher. Brasília: Ministério da Saúde, 2001, p. 26.
315 “Assim, as interdições feitas sobre a matéria corporal geram consequências inafastáveis na
constituição mental da pessoa. Dessa forma, a autonomia corporal refere-se diretamente à
integridade de maneira global, considerando a inseparabilidade das respectivas esferas. As
restrições impostas à autodeterminação no tocante ao corpo devem A autonomia existencial
nos atos de disposição do próprio corpo atentar para o fato de que, no âmbito do resguardo da
dimensão física, estão sempre incluídas objeções que se referem ao plano psíquico”. BODIN DE
MORAES, Maria Celina. CASTRO, Thamis Dalsenter Viveiros de. A autonomia existencial nos atos
de disposição do próprio corpo. Pensar, Fortaleza, v. 19, n. 3, p. 779-818, set./dez. 2014, p. 802.
148
Violência Obstétrica em Debate
cimentos que deveriam ser feitos à gestante, o que acarretou desrespeito à sua
autonomia.316 Também foi determinado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo
o dever do hospital de reparar em caso de ocorrência de violência no parto,
que envolveu privação do direito ao acompanhante durante todo o período
de trabalho de parto, ofensas verbais, e negativa de contato com filho após
o nascimento. O Tribunal considerou que restou configurado, na hipótese,
abalo psicológico in re ipsa e que o parto humanizado é direito fundamental
da gestante, devendo haver atendimento individualizado, que considere as ne-
cessidades individuais de cada parturiente.317
A inobservância do necessário dever de informação e a prática de atos
que desconsiderem a autonomia da gestante consistem, portanto, em reconhe-
cidas violações aos direitos da mulher, que o ordenamento jurídico brasileiro
busca prevenir e reparar.
6. Notas conclusivas
A garantia da autonomia existencial no parto perpassa pela superação
da visão da mulher como instrumento para o nascimento de uma criança,
passando-se a considerá-la como protagonista do parto e titular do direito ao
seu próprio corpo. Deve ser afastada a visão do parto como um momento pa-
tológico ou traumático para dar lugar à busca pela melhoria da experiência do
316 TJRS, 9ª CC, Apelação Cível 70056595937, Rel. Des. André Luiz Planella Villarinho, j. 14.5.2014, DJ
16.5.2014.
317 RESPONSABILIDADE CIVIL – DANO MORAL - VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA. Direito ao parto
humanizado é direito fundamental. Direito da apelada à assistência digna e respeitosa durante o parto
que não foi observado. As mulheres têm pleno direito à proteção no parto e de não serem vítimas de
nenhuma forma de violência ou discriminação. Privação do direito à acompanhante durante todo o
período de trabalho de parto. Ofensas verbais. Contato com filho negado após o nascimento deste.
Abalo psicológico in re ipsa. Recomendação da OMS de prevenção e eliminação de abusos, desrespeito
e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde. Prova testemunhal consistente e uniforme
acerca do tratamento desumano suportado pela parturiente. Cada parturiente deve ter respeitada
a sua situação, não cabendo a generalização pretendida pelo hospital réu, que, inclusive, teria que
estar preparado para enfrentar situações como a ocorrida no caso dos autos. Paciente que ficou doze
horas em trabalho de parto, para só então ser encaminhada a procedimento cesáreo. Apelada que teve
ignorada a proporção e dimensão de suas dores. O parto não é um momento de “dor necessária”. Dano
moral mantido. Quantum bem fixado, em razão da dimensão do dano e das consequências advindas.
Sentença mantida. Apelo improvido. TJSP, 5ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível 0001314-
07.2015.8.26.0082, Rel. Des. Fábio Podestá, j. 11.10.2017, DJ 11.10.2017
149
Violência Obstétrica em Debate
150
A informação como forma de combate
à violência obstétrica na relação
médico-paciente e os impactos na
seara da responsabilidade civil
“a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como uma
coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silên-
cio, de modo que, quando a atividade e a fala de outrem são impe-
didas ou anuladas, há violência”.318
(Marilene Chauí)
318 CHAUÍ, M. Participando do debate sobre mulher e violência. In: CHAUÍ, M.; CARDOSO, R.;
PAOLI, M.C. (Orgs.). Perspectivas antropológicas da mulher. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. v. 4. p.35.
319 Dados disponibilizados no estudo intitulado “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público
e privado”, realizado pela Fundação Perseu Abramo e SESC, em 2010. Disponível em <https://
fpabramo.org.br/publicacoes/publicacao/pesquisa-mulheres-brasileiras-e-genero-nos-espacos-
publico-e-privado-2010/>. Acesso em: 06 set. 2018.
151
Violência Obstétrica em Debate
320 BRENES, Anayansi Correa. História da parturição no Brasil século XIX. Cadernos de Saúde Pública
(ENSP. Impresso), v. VII, p. 9-15, 1991.
321 VENDRÚSCOLO, Cláudia Tomasi; KRUEL, Cristina Saling. A história do parto: do domicílio ao
hospital; das parteiras ao médico; de sujeito a objeto. Disciplinarum Scientia / Ciências Humanas, v.
16, p. 95-107, 2015.
322 PATAH, Luciano Eduardo Maluf, MALIK, Ana Maria. Modelos de assistência ao parto e taxa de
cesárea em diferentes países. Revista de Saúde Pública [online]. 2011, v. 45, n.1, p.185-194.
323 O Ministério da Saúde divulgou que dos 3 milhões de partos realizados no Brasil, 55,5% foram cesáreas
e 44,5% partos normais. Disponível em <http://portalms.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/27782-
pela-primeira-vez-numero-de-cesarianas-nao-cresce-no-pais> Acesso em: 06 set. 2018.
324 “O conflito ético está posto e materializado: na rede privada de assistência à saúde, onde os usuários
são pessoas com nível de renda e escolaridade notavelmente superiores, prevalecem as cesarianas;
na rede pública, com usuários provenientes de classes sociais menos favorecidas, prevalecem os
partos normais, não por opção das parturientes, mas em decorrência de rotinas de serviço impostas
às mulheres pobres que recorrem ao serviço público de saúde por não dispor de recursos financeiros
para a assistência médica.” FERRARI, José. A autonomia da gestante e o direito pela cesariana a
pedido. Revista Bioética 2009, v. 17, n. 3, p. 473-495.
325 A Lei n. 3.363/2013 do Estado de São Paulo define violência obstétrica em seu artigo 2º como “todo
ato praticado pelo médico, pela equipe do hospital, por um familiar ou acompanhante que ofenda,
152
Violência Obstétrica em Debate
Como uma reação a esses fatos, surgiram diversas campanhas, tais como
a da Revista Época – “Parto com respeito” –, e as por parte do governo, do
Ministério da Saúde – MS e órgãos competentes (Agência Nacional de Saúde
– ANS) a fim de incentivar o parto normal, como, por exemplo, a Rede Ce-
gonha (Portaria n. 1.459 do MS);326 o Projeto Parto Adequado;327 328 o uso de
cartilhas com Direitos das Gestantes329 e de cartazes. Tudo em busca do par-
to humanizado,330 331 seja o normal, que ocorre em ambiente domiciliar332 ou
hospitalar, podendo ter a presença de doula,333 seja a cesárea, quando houver
indicação médica ou quando for uma opção da própria gestante.
de forma verbal ou física, as mulheres gestantes, em trabalho de parto ou, ainda, no período de
puerpério.” Essa mesma definição se encontram nas seguintes leis estaduais: Lei n. 17.097/2017, de
Santa Catarina; Lei n. 5.217/2018, de Mato Grosso do Sul e Lei n. 14.598/2015, de Curitiba.
326 Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt1459_24_06_2011.html>
Acesso em 06 set. 2018.
327 Disponível em: <http://www.ans.gov.br/gestao-em-saude/projeto-parto-adequado> Acesso em 06
set. 2018.
328
Disponível em: <https://www.abramge.com.br/portal/index.php/pt-BR/2014-04-11-17-45-11/
parto-e-normal>. Acesso em: 06 set. 2018.
329 Artigo 4º da Lei n. 3.363/2013 do Estado de São Paulo.
330 A Portaria n. 569 de 2000 do MS instituiu o programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento
no âmbito do SUS. Disponível em <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2000/
prt0569_01_06_2000_rep.html> Acesso em 06 set. 2018.
331 Hemmerson Magioni, médico obstetra do Instituto Nascer, define que o Parto Humanizado significa
direcionar toda atenção às necessidades da mulher e dar-lhe o controle da situação na hora do
nascimento, mostrando as opções de escolha baseados em evidências científicas e nos direitos que
tem. Disponível em: <http://institutonascer.com.br/parto-humanizado/> Acesso em 06 set. 2018.
332 No Estado do Rio de Janeiro, a Lei Ordinária n. 7.191/2016 dispõe que a Secretaria Estadual de
Saúde deverá estipular, por meio de regulamento, as condições em que o parto domiciliar poderá
ser realizado por decisão voluntária da gestante. Disponível em <http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/
CONTLEI.NSF/e9589b9aabd9cac8032564fe0065abb4/a01e1d414bdb967a83257f3300580ec7?Open
Document> Acesso em 06 set. 2018.
333 “Estudos internacionais do tipo metanálise apontaram os benefícios do suporte da doula,
demonstrando que as mulheres acompanhadas aumentam duas vezes a chance de ter parto vaginal,
comparadas ao grupo que não recebeu este suporte, além de apresentarem melhoria no pós-parto,
avaliados por meio de características físicas e emocionais.” SILVA, Raimunda Magalhães da; BARROS,
Nelson Filice de; JORGE, Herla Maria Furtado; MELO, Laura Pinto Torres de; FERREIRA JUNIOR,
Antonio Rodrigues. .Evidências qualitativas sobre o acompanhamento por doulas no trabalho de
parto e no parto. Ciência e Saúde Coletiva (Impresso), 2012, v. 17, p. 2.783-2.794.
153
Violência Obstétrica em Debate
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Violência Obstétrica em Debate
338 “Desde os tempos de Hipócrates até os nossos dias, busca-se o bem do paciente, ou seja, aquilo
que, do ponto de vista da medicina, se considera benéfico para o paciente, sem que esse em nada
intervenha na decisão. Esse tipo de relação, apropriadamente chamada de paternalista, atribui ao
médico o poder de decisão sobre o que é melhor para o paciente. Similar à relação dos pais para
com os filhos, foi durante longo tempo considerada a relação ética ideal, a despeito de negar ao
enfermo sua capacidade de decisão como pessoa adulta”. BARBOZA, Heloisa Helena. A autonomia
da vontade e a relação médico-paciente no Brasil. Lex Medicinae. Revista Portuguesa de Direito da
Saúde, Coimbra, v. 1, n. 2, jul./dez. 2004, p. 7.
339 PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos. Relação médico-paciente: o respeito à autonomia do
paciente e a responsabilidade civil do médico pelo dever de informar. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011. p. 76.
155
Violência Obstétrica em Debate
340 Código de Ética Médica – Resolução n. 2.217/2018. Capítulo I, Princípios Fundamentais, XXVI – A
medicina será exercida com a utilização dos meios técnicos e científicos disponíveis que visem aos
melhores resultados.
341 “Vamos questionar se e em que medida os seguintes tópicos, entre outros, devem ser objecto do
dever de informação: o diagnóstico; os meios e os fins do tratamento; os efeitos secundários; o
prognóstico; as alternativas terapêuticas com os seus efeitos secundários, riscos e benefícios
respectivos; os riscos e benefícios do tratamento; a urgência da intervenção e o risco da demora
no tratamento; os riscos e consequências da recusa do tratamento; a duração aproximada do
tratamento e as condições materiais que lhe são associadas; a possibilidade de levar a cabo o
tratamento num centro de saúde mais adequado; a competência ou falta de competência do médico
e o custo do tratamento; o dever de comunicar novos riscos identificados posteriormente à execução
de exames de diagnóstico, tratamentos ou acções e prevenção e o eventual dever de comunicar os
erros médicos praticados”. PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento informado na relação
médico-paciente. Portugal: Coimbra, 2004. p. 371.
342 Apesar de a jurisprudência majoritária considerar que a relação médico-paciente é de consumo,
aplicando a lei consumerista, a doutrina já tem se pronunciado de forma contrária, da mesma forma
que o Conselho Federal de Medicina, que no preâmbulo do atual Código de Ética Médica (Resolução
n. 1.931/2009 do CFM, em vigor em 13 de abril de 2010) é expresso ao afastar o contrato médico como
de consumo, conforme se depreende do inciso XX do Capítulo I. Nesse sentido: SOUZA, Eduardo
Nunes de. Do erro à culpa: Na responsabilidade civil do médico. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. p.
95-96. SOUZA, Alex Pereira, COUTO FILHO, Antonio Ferreira. Responsabilidade civil médica e
hospitalar. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 44. Quanto à aplicação do Código de Defesa
do Consumidor: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial n.
844.197/SP da 4ª turma. Relator: Ministro Antonio Carlos Ferreira. Brasília, 7 de junho de 2016.
156
Violência Obstétrica em Debate
343 Artigo 2º – São direitos dos usuários dos serviços de saúde no Estado de São Paulo: [...] VI – receber
informações claras, objetivas e compreensíveis sobre: a) hipóteses diagnósticas; b) diagnósticos
realizados; c) exames solicitados; d) ações terapêuticas; e) riscos, benefícios e inconvenientes das
medidas diagnósticas e terapêuticas propostas; f) duração prevista do tratamento proposto; g) no caso
de procedimentos de diagnósticos e terapêuticos invasivos, a necessidade ou não de anestesia, o tipo de
anestesia a ser aplicada, o instrumental a ser utilizado, as partes do corpo afetadas, os efeitos colaterais,
os riscos e consequências indesejáveis e a duração esperada do procedimento; h) exames e condutas a
que será submetido; i) a finalidade dos materiais coletados para exame; j) alternativas de diagnósticos e
terapêuticas existentes, no serviço de atendimento ou em outros serviços; e l) o que julgar necessário;
344 Tom L. Beauchaump e James Childress consagraram a Bioética principialista, que tem o objetivo de
estabelecer uma teoria capaz de orientar a prática médica e biomédica por meio de princípios que
orientarão as decisões morais tomadas diante de conflitos éticos concretos. BEAUCHAMP, Tom
L.; CHILDRESS, James F. Princípios da ética Biomédica. Tradução Luciana Pudenzi. São Paulo:
Loyola, 2002. p. 579. Para além da teoria principialista da Bioética, na década de 1990, novas teorias
ganharam corpo, como: i) a bioética da intervenção; ii) a bioética da proteção; iii) a bioética feminista
e antirracista; e iv) a bioética da teologia da libertação. Cf. SCHRAMM, Fermin Roland. A Bioética
da Proteção: uma proposta para os desafios morais dos países em desenvolvimento. In: VII simpósio
catarinense de Bioética, 2005, Joinville. p. 9. Disponível em: http://www.unesco.org.uy/ci/fileadmin/
shs/redbioetica/Artigo_pa._1_.doc. Acesso em: 11 out. 2016. DINIZ, Debora; GUILHEM, Dirce.
Bioética feminista: O resgate político do conceito de vulnerabilidade. Revista Bioética. Brasília:
Conselho Federal de Medicina, v. 7, n. 2, 1999. p. 181-188. Disponível em: <http://www.jovensmedicos.
org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/310/449>. Acesso em: 19 ago. 2016. BOFF, Leonardo.
Quarenta anos da teologia da libertação. [S.l: s.n.], 2011. Disponível em: <https://leonardoboff.
wordpress.com/2011/08/09/quarenta-anos-da-teologia-da-libertacao>. Acesso em: 30 out. 2016.
157
Violência Obstétrica em Debate
345 ROBERTO, Luciana Mendes Pereira. Responsabilidade civil do profissional de saúde & consentimento
informado. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2009.
346 Esse é o posicionamento de Paula Moura Francesconi Pereira, conforme se depreende de sua tese
intitulada “A responsabilidade civil como instrumento de proteção à pessoa humana nos ensaios
clínicos”, apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora ao Programa de
Pós-Graduação da Faculdade de Direito, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de
Direito Civil. No prelo.
347 Art. 34. Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do
tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer
a comunicação a seu representante legal.
348 O Conselho Federal de Medicina dispôs sobre o processo de obtenção de consentimento livre e
esclarecido na assistência médica por meio da Recomendação CFM n. 1/2016.
158
Violência Obstétrica em Debate
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sim, o Estatuto reconhece, em seu artigo 3º, inciso IX,361 que a gestante é pessoa
com mobilidade reduzida, o que só ressalta sua vulnerabilidade.
Todas essas medidas e normas direcionadas à gestante são mecanismos,
planos para prevenir até mesmo a violência obstétrica. Esse tipo de violência
tem relação direta com o instituto da responsabilidade civil,362 363 tanto no
plano preventivo, ex ante, quanto no reparatório. Primeiro, busca-se evitar a
ocorrência de dano pelo princípio da prevenção, que deve se concretizar por
meio de medidas que minimizem ou evitem riscos já conhecidos, certos e
comprovados. No entanto, quando ocorre a lesão de bem jurídico merecedor
de tutela, faz nascer, ex post, o dever de indenizar.
O princípio bioético e jurídico da prevenção deve nortear a relação entre
médico-paciente, a fim de evitar a ocorrência de danos, inclusive de ordem
não patrimonial, com desrespeito à autonomia.
O princípio da prevenção possui viés jurídico (artigo 5º, XXXV, 1º, III,
3º, I, 16, §4º, 225, todos da CF e artigo 6º do CDC) e se concretiza por meio de
medidas que visam minimizar ou evitar riscos já conhecidos, certos e com-
provados e integra a responsabilidade preventiva, cuja função precípua é evi-
tar os danos. Entretanto, quando são inoperantes essas medidas preventivas,
que coloca o Estatuto em lugar de destaque no quadro legislativo nacional, ao lado da Portaria n.
569, de 1º de junho de 2000, do Ministério da Saúde, que instituiu o Programa de Humanização
no Pré-natal e Nascimento, no âmbito do SUS, e constitui um marco no direito das gestantes.”
VIVEIROS DE CASTRO, Thamis Dalsenter. In: Heloisa Helena Barboza; Vitor Almeida. (Org.).
Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência à luz da Constituição da República. 1. ed. Belo
Horizonte: Fórum, 2018. p. 119-126.
361 Art. 3º Para fins de aplicação desta Lei, consideram-se: […] IX - pessoa com mobilidade reduzida:
aquela que tenha, por qualquer motivo, dificuldade de movimentação, permanente ou temporária,
gerando redução efetiva da mobilidade, da flexibilidade, da coordenação motora ou da percepção,
incluindo idoso, gestante, lactante, pessoa com criança de colo e obeso;
362 “Enunciado 466 – Art. 927: A responsabilidade civil prevista na segunda parte do parágrafo
único do art. 927 do Código Civil deve levar em consideração não apenas a proteção da vítima e a
atividade do ofensor, mas também a prevenção e o interesse da sociedade.” BRASIL. Conselho de
Justiça Federal. V Jornada de Direito Civil, de 10 de novembro de 2011. São Paulo - SP.
363 Thaís Goveia sustenta a existência de uma responsabilidade civil preventiva, que visa prevenir a
ocorrência da violação dos direitos e os consequentes danos, que atende melhor à sociedade, pois
não atua no campo reparatório, mas evita ou dissuade condutas que possam causar acidentes. Ela
se aplica tanto na responsabilidade extracontratual quanto na contratual. VENTURI, Thaís Goveia
Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva: A proteção contra a violação dos direitos e a tutela
inibitória material. São Paulo: Malheiros, 2014, passim.
162
Violência Obstétrica em Debate
364 A respeito da responsabilidade civil do médico pelo inadimplemento do dever de informar merece
citar: STJ, REsp 1540580/DF, Relator(a) Ministro Lázaro Guimarães, Relator(a) p/ Acórdão
Ministro Luis Felipe Salomão, Órgão Julgador Quarta Turma, Data do Julgamento 02/08/2018, Data
da Publicação/Fonte DJe 04/09/2018.
365 O artigo 3º da Lei 3.363/2013, do Estado de São Paulo enumera algumas condutas que configuram
violência obstétrica.
366 Cabe trazer à baila decisão que condenou o hospital na reparação dos danos morais sofridos pelo
pai em razão da negativa de seu direito de assistir o parto de sua filha na condição de acompanhante,
o que está assegurado na Lei n. 11.108/2005. (Apelação Cível n. 70074397753, Quinta Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Lusmary Fatima Turelly da Silva, Julgado em 25/10/2017).
No mesmo sentido: (TJRJ, Apelação n. 0009775-35.2014.8.19.0037, Des(a). Edson Aguiar de
Vasconcelos, Décima Sétima Câmara Cível, Julgamento: 18/11/2015; TJRJ, Apelação Cível n.
0007566-98.2012.8.19.0058, Des(a). Natacha Nascimento Gomes Tostes Gonçalves de Oliveira,
Vigésima Sexta Câmara Cível, Julgamento: 12/03/2015).
367 Em 2015, quando a Lei n. 11.108/2005, conhecida como a Lei do Acompanhante, completou 10 anos de
vigência, a Revista Época divulgou pesquisa realizada pelo “Nascer do Brasil”, de 2012, única a medir
163
Violência Obstétrica em Debate
recebem informações claras sobre seu estado de saúde; iv) não lhes são ofere-
cidas opções para o alívio da dor;368 v) são impedidas de se movimentar, beber
água ou de se alimentarem de forma leve durante o trabalho de parto;369 vi)
são submetidas a exames de toque vaginal repetidas vezes; vii) são submetidas
à manobra de Kristeller;370 371 e viii) fazem piadas, recebem broncas ou não
lhes é permitido que se expressem.
o atendimento às gestantes no Brasil, em que indica que apenas uma a cada quatro mulheres tem
o acompanhamento o tempo todo. Disponível em <https://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/08/
violencia-obstetrica-por-que-mulheres-ficam-sozinhas-no-parto.html>. Acesso em: 06/09/2018.
368 Quanto à aplicação do instituto da responsabilidade civil, em caso de utilização do parto normal
quando era indicado procedimento de cesariana, causando sequelas funcionais na criança, merece
fazer menção a seguinte decisão: TJRS, Apelação Cível n. 70037514452, Des. Iris Helena Medeiros
Nogueira, Nona Câmara Cível, Julgado em 25/08/2010.
369 “O trabalho de parto requer enormes quantidades de energia. Como não se pode prever a sua
duração, é preciso repor as fontes de energia, a fim de garantir o bem-estar fetal e materno. A
restrição severa de ingesta oral pode levar à desidratação e à cetose. Esta situação é comumente
tratada por uma infusão intravenosa de soluções contendo glicose.” (World Health Organization.
Maternal and newborn haelth/safe motherhood division of reproductive health. Care in Normal
Birth: a practical guide. Report of a Technical Working Group. Ginebra 1996; [Citado: 12 feb.
2008]. Disponível em: <http://www.who.int/making_pregnancy_safer/publications/archived_
publications/care_in_normal_birth_practical_guide.pdf> Acesso em: 06 set. 2018.
370 “A manobra de Kristeller consiste na compressão do fundo uterino durante o segundo período do trabalho
de parto objetivando a sua abreviação. Embora rotineiras, tais medidas necessitam de uma análise crítica
das evidências disponíveis para se determinar os seus reais benefícios, assim como os riscos associados
à sua utilização.” Diretriz Nacional de Assistência ao Parto Normal - Relatório de recomendação, da
Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. Disponível em <http://conitec.gov.br/images/
Consultas/2016/Relatorio_Diretriz-PartoNormal_CP.pdf> Acesso em: 06 set. 2018.
371 Em relação à responsabilidade civil caracterizada em virtude dos danos sofridos pela prática da manobra
de Kristeller no parto ver a seguinte decisão: TJRJ, Apelação cível n. 0000790-55.2005.8.19.0017, Des.
Caetano Ernesto da Fonseca Costa, Sétima Câmara Cível, Julgamento: 12/04/2017.
164
Violência Obstétrica em Debate
372 O conceito de vulnerabilidade (do latim vulnerabilis, “que pode ser ferido”, de vulnerare, “ferir”, de
vulnus, “ferida”) refere-se a qualquer ser vivo, sem distinção, que pode, eventualmente, ser “vulnerado”
em situações contingenciais”. Como ressaltado por Heloisa Helena Barboza, a vulnerabilidade é uma
característica ontológica de todos os seres vivos, o que reforça a justificação da plena “tutela geral
(abstrata) da pessoa humana, ontologicamente vulnerável, não só nas relações econômicas, como nas de
consumo, mas em todas as suas relações, especialmente as de natureza existencial, e a tutela específica
(concreta), de todos os que se encontrem em situação de desigualdade, por força de contingências
(vulnerabilidade potencializada ou vulnerados), como forma de assegurar a igualdade e a liberdade,
expressões por excelência da dignidade humana”. BARBOZA, Heloisa Helena. Reflexões sobre a
autonomia negocial. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Coords.). O direito e o tempo:
embates jurídicos e utopias contemporâneas. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 420. Ver. KONDER,
Carlos Nelson, Vulnerabilidade patrimonial e vulnerabilidade existencial: por um sistema diferenciador.
Revista de Direito do consumidor: RDC, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 24, n. 99, 2015. p. 101-123.
373 As gestantes em razão de sua vulnerabilidade encontram restrições para participação de pesquisas.
Para que ocorra a pesquisa nessas hipóteses, deve-se verificar se há riscos de efeitos abortivos,
teratogênicos dos medicamentos em estudo, admite-se, tão somente, em caso de risco mínimo e que
não possa ser realizada em outra pessoa (Item III.2, alíneas “r” e “s”, Resolução n. 466/12 do CNS).
A respeito da participação de gestantes em pesquisa clínica, a Diretriz 17 do CIOMS – Council
for International Organizations of Medical Sciences dispõe que as mulheres grávidas, que sejam
sujeitos potenciais, devem ser informadas adequadamente sobre os riscos e benefícios para elas,
sua gravidez, o feto, seus descendentes e sua fecundidade. PESSINI, Leocir. Problemas atuais da
bioética. 8. ed. revista e ampliada. São Paulo: Centro Universitário São Camilo: Loyola, 2007. p. 226.
374 SAUAIA, Artenira da Silva e Silva; SERRA, Cibele de Mesquita Serra. Violência obstétrica no Brasil: um
enfoque a partir dos acórdãos do STF e STJ. REVISTA QUAESTIO IURIS, v. 10, p. 2.430-2.457, 2017.
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Violência Obstétrica em Debate
375 Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a violência contra a mulher, realizada
em Belém do Pará. – arts. 5º e 6º, Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San
José da Costa Rica, de 22/11/1969, ratificada pelo Brasil em 25/09/1992, arts. 7, 12 e 17. Declaração
Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que em seu preâmbulo e artigo 1º consagrou a dignidade
da pessoa humana, que abrange a liberdade, a igualdade, e a fraternidade; a Declaração Universal
do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, artigo 2º, de 1997; e a Convenção sobre Direitos do
Homem e Biomedicina, artigo 1º, de 1996.
376 “No âmbito da discussão em torno da melhor terminologia a ser adotada, é de se destacar o uso
mais recente da expressão “direitos humanos fundamentais” por alguns autores. Esta terminologia,
ao menos em nosso entender, embora não tenha o condão de afastar a pertinência da distinção
traçada entre direitos humanos e direitos fundamentais, revela, contudo, a nítida vantagem de
ressaltar, relativamente aos direitos humanos de matriz internacional, que também estes dizem
com reconhecimento e proteção de certos valores e reivindicações essenciais de todos os seres
humanos, destacando, neste sentido, a fundamentalidade em sentido material, que – diversamente
da fundamentalidade formal – é comum aos direitos humanos e aos direitos fundamentais
constitucionais, consoante, aliás, será objeto de posterior análise.” SARLET, Ingo Wolfgang. A
eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 33.
377 Declaração da OMS intitulada “Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos
durante o parto em instituições de saúde”. Disponível em <http://www.who.int/reproductivehealth/
topics/maternal_perinatal/statement-childbirth/pt/>. Acessado em 01/09/2018.
378 VIVEIROS DE CASTRO, Thamis Dalsenter. Comentários ao artigo 19 do Estatuto da Pessoa com
Deficiência. In: Heloisa Helena Barboza; Vitor Almeida. (Org.). Comentários ao Estatuto da Pessoa
com Deficiência à luz da Constituição da República. 1ed.Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 119-126.
166
Violência Obstétrica em Debate
nobra de Kristeller – prática banida pela OMS;379 380 381 o direito de não ser insul-
tada, direito de não ficar isolada, direito de amamentar seu filho nos primeiros
minutos de vida;382 o direito de ter suas dúvidas esclarecidas, entre outros.
O combate à violência perpetrada contra a mulher pode ocorrer de di-
versas formas,383 entre as quais: com a concessão de maior acesso e assistência
à saúde; com a garantia da presença de acompanhante no momento do parto,
379 World Health Organization. Maternal and newborn haelth/safe motherhood division
of reproductive health. Care in Normal Birth: a practical guide. Report of a Technical
Working Group. Ginebra 1996;[Citado: 12 feb. 2008]. Disponível em: <http://www.who.
i nt /ma k i ng _ preg na nc y_ sa fer/publ ic at ions/a rch ived _ publ ic at ions/c a re _ i n _ nor ma l _
birth_practical_guide.pdf> Acesso em: 06 set. 2018.
380 Em decisão do Coren/RS de n. 095/2016 foi vedada a participação de profissionais de enfermagem
na realização da manobra de Kristeller. Disponível em <https://www.portalcoren-rs.gov.br/docs/
Legislacoes/legislacao_cdaea2dc629c8089b0948e9eea4c7491.pdf> Acesso em: 06 set. 2018.
381 O Hospital Geral de Pedreira, instituição de saúde pública situado na zona sul da cidade de São
Paulo aboliu em dezembro de 2014 a prática chamada de manobra de Kristeller durante os partos
após uma paciente procurar o Ministério Público Federal para relatar as dores que sentiu durante
o procedimento, tendo a Procuradoria reconhecido que a manobra se trata de violência obstétrica.
Disponível em <https://www.geledes.org.br/hospital-proibe-manobra-de-kristeller-e-reconhece-
violencia-obstetrica/> Acesso em: 06 set. 2018.
382 “Os primeiros 60 minutos de vida do bebê após o nascimento, chamado de golden hour, representam
o período no qual são realizadas intervenções para minimizar as complicações neonatais(8). Dentre
tais intervenções, o contato pele a pele e a amamentação na primeira hora de vida promovem vínculo
entre mãe e bebê e estimulam o reflexo de sucção da criança (9). Dessa forma, medidas de promoção
do aleitamento materno (AM) e do contato pele a pele na primeira hora de vida são necessárias
para a maior taxa de sobrevida do neonato e menores índices de desmame precoce.” ARRUDA,
Guilherme Tavares; BARRETO, Sabrina Cabreira; MORIN, Vanessa Lago; PETTER, Gustavo do
Nascimento; BRAZ, Melissa Medeiros; PIVETTA, Hedioneia Maria Foletto. Existe relação da via
de parto com a amamentação na primeira hora de vida? Revista Brasileira em Promoção da Saúde
(Online), v. 31, p. X-e7, 2018.
383 A Organização Mundial de Saúde em publicação de 2014 intitulada “Prevenção e eliminação de
abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde”, prevê como medidas
necessárias a serem tomadas: 1. Maior apoio dos governos e de parceiros do desenvolvimento
social para a pesquisa e ação contra o desrespeito e os maus-tratos; 2. Começar, apoiar e manter
programas desenhados para melhorar a qualidade dos cuidados de saúde materna, com forte
enfoque no cuidado respeitoso como componente essencial da qualidade da assistência; 3. Enfatizar
os direitos das mulheres a uma assistência digna e respeitosa durante toda a gravidez e o parto; 4.
Produzir dados relativos a práticas respeitosas e desrespeitosas na assistência à saúde, com sistemas
de responsabilização e apoio significativo aos profissionais; e 5. Envolver todos os interessados,
incluindo as mulheres, nos esforços para melhorar a qualidade da assistência e eliminar o
desrespeito e as práticas abusivas. Disponível em: <http://www.who.int/reproductivehealth/topics/
maternal_perinatal/statement-childbirth/pt/>. Acesso em: 1º set. 2018.
167
Violência Obstétrica em Debate
Considerações finais
O parto e o nascimento das crianças passam, na contemporaneidade,
por uma verdadeira transformação, com novos atores (enfermeiros, técnicos
de enfermagem, funcionários do hospital, médico obstetra, anestesistas etc.), e
novas formas de atos de violência obstétrica. Por isso, é importante que a mu-
lher recupere sua posição de protagonista no parto de forma consciente, que
384 O Instituto Nascer define plano de parto como sendo uma lista de itens relacionados ao parto, sobre
os quais você pensou e refletiu. Isto inclui escolher onde você quer ter seu bebê, quem vai estar
presente, quais são os procedimentos médicos que você aceita e quais você prefere evitar. Disponível
em <http://institutonascer.com.br/como-escrever-seu-plano-de-parto/> Acesso em: 06 set. 2018.
385 “A informação é elemento essencial da precaução porque garante o acesso das pessoas ao conteúdo
das decisões tomadas, permitindo a devida fiscalização. A informação permite que cada um, em
última análise, tome para si parte do gerenciamento dos riscos que lhe assombram. A informação
é indispensável para o exercício da escolha, da autodeterminação, sempre que há espaço para
tanto.” HARTMANN, Ivar Alberto Martins. O princípio da precaução e sua aplicação no direito do
consumidor: Dever de informação. Revista de Direito do Consumidor: RDC, São Paulo: Revista dos
Tribunais, v. 18, n. 70, 2009. p. 162.
168
Violência Obstétrica em Debate
este deixe de ser na maioria das vezes um ato cirúrgico e volte a ser um evento
fisiológico, um parto humanizado, o que se dá por meio da informação.
A falta de conhecimento pela gestante sobre os procedimentos possíveis
de parto, os riscos e benefícios, acarreta a violação de sua livre disposição cor-
poral, seu direito de autodeterminação, sua autonomia e integridade psicofísi-
ca, que constituem direitos humanos fundamentais já consagrados.
A intervenção médica se tornará lícita e legítima quando a gestante con-
ceder seu consentimento livre e esclarecido, quando lhe for assegurado o exer-
cício da livre escolha quanto à forma como quer que se realize o parto e sua
interação com a criança. A relação médico-paciente deve se dar por meio de
um processo dialógico, pela troca transparente de informações e mediante a
boa-fé de ambas as partes. Deve-se recuperar o viés personalíssimo da relação
e seu distanciamento do caráter hoje atribuído de consumo.
A melhor arma para reduzir a violência que as mulheres têm sofrido em
uma posição de extrema vulnerabilidade é, portanto, a informação, pois esta
promove o empoderamento da mulher, o exercício da autonomia feminina e
previne os atos arbitrários contra a mulher.
A informação atua em observância à função preventiva, dissuasória da
responsabilidade civil, que não se afasta, contudo, da função reparatória, com-
pensatória da responsabilidade civil quando o dano decorre de sua ausência.
169
Notas sobre a autonomia da gestante
e os requisitos de validade dos planos
de parto no direito brasileiro
Vitor Almeida
386 “O parto é um processo normal e natural, um período vulnerável para a saúde da mulher, em
que o ambiente e as atividades sanitárias exercem grande influência. Na metade do século XX foi
institucionalizado o processo de parto, passando dos partos em domicílio aos partos hospitalares.
Quando o parto foi considerado um processo hospitalar, foram incluídas determinadas práticas
rotineiras e protocolizadas, tais como a episiotomia, a depilação, os enemas, a indução do parto, sem
que seu uso rotineiro fosse avalizado por evidências científicas. O parto foi incluído no modelo de
saúde baseado em doenças, considerando a mulher como uma doente que necessita atenção médica.
Diante desta situação, em 1985, com as recomendações da OMS sobre o nascimento, inicia-se um
processo de ‘estandardização do parto’, os estados são incitados a revisar a tecnologia aplicada aos
partos e admite-se que cada mulher deve eleger o tipo de parto que deseja, contribuindo assim
para devolver o protagonismo à mulher”. SUÁREZ-CORTÉS, María; ARMERO-BARRANCO,
David; CANTERAS-JORDANA, Manuel; MARTÍNEZ-ROCHE, María Emilia. Uso e influência
dos Planos de Parto e Nascimento no processo de parto humanizado In: Revista Latino-Americana
de Enfermagem, 2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rlae/2015nahead/pt_0104-1169-
rlae-0067-2583.pdf>. Acesso em 07 set. 2019.
171
Violência Obstétrica em Debate
172
Violência Obstétrica em Debate
389 Marilena C. D. V. Corrêa e Maria Cristina R. Guilam registram que: “A espetacular expansão da
medicalização a qualquer aspecto da existência individual e da vida social permite ao discurso
médico englobar virtualidades – os riscos – alterando de forma fundamental a topologia daquele
discurso. Antes referido estritamente à positividade dos sinais e sintomas circunscritos aos corpos
individuais, o discurso médico passa a englobar ‘estilos de vida’ (comportamentos individuais) e
os mais diferentes fatores ‘de risco para a saúde’ (qualidade do ar, da água, hábitos culturais etc.)”
(O discurso do risco e o aconselhamento genético pré-natal. In: Cadernos de Saúde Pública, Rio de
Janeiro, v. 22, n. 10, out., 2006, p. 2.142).
173
Violência Obstétrica em Debate
berado, mas, sem dúvida, definitivo”.390 Tal processo foi acelerado “no século
XX, graças à marcante atuação da biomedicina”.391
Conforme observou Heloisa Helena Barboza:
[...] nascimento, desenvolvimento e preservação da vida, e mesmo a morte
deixaram de ser fatos naturais, transformando-se em ações médicas, de
todo influentes para o direito. Nascimentos e mortes ocorrem em hospi-
tais, para grande parte da população brasileira, incluídos os mais carentes.
A medicina determina como nascer, quando morrer, como viver: o que
comer, o que fazer ou não, num processo contínuo de acompanhamento
do indivíduo, de forma direta ou indireta, como a que ocorre por meio de
campanhas ou orientação pelos meios de comunicação em massa.392
390 BARBOZA, Heloisa Helena. Reprodução humana como direito fundamental. In: DIREITO, Carlos
Alberto Menezes; TRINDADE, Antônio Augusto Cançado; PEREIRA, Antônio Celso Alves (Org.).
Novas Perspectivas do direito internacional contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 778.
391 BARBOZA, Heloisa Helena. Reprodução humana como direito fundamental. In: DIREITO, Carlos
Alberto Menezes; TRINDADE, Antônio Augusto Cançado; PEREIRA, Antônio Celso Alves (Org.).
Novas Perspectivas do direito internacional contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 778.
392 BARBOZA, Heloisa Helena. Reprodução humana como direito fundamental. In: DIREITO, Carlos
Alberto Menezes; TRINDADE, Antônio Augusto Cançado; PEREIRA, Antônio Celso Alves (Org.).
Novas Perspectivas do direito internacional contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 778-779.
393 CORRÊA Marilena C. D. V.; GUILAM Maria Cristina R. O discurso do risco e o aconselhamento
genético pré-natal, cit., p. 2.142.
394 CORRÊA, Marilena C. D. V.; GUILAM, Maria Cristina R. O discurso do risco e o aconselhamento
genético pré-natal, cit., p. 2.142.
174
Violência Obstétrica em Debate
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Violência Obstétrica em Debate
176
Violência Obstétrica em Debate
nas escolhas genéticas que interferem na formação do nascituro não deve ser
acobertada pelo Direito, sob pena de demasiada interferência na vida da futu-
ra criança; por outro lado, não se pode desconsiderar que certas preferências
reprodutivas integram a autonomia concedida, sobretudo, à gestante.
Imperioso constatar que no plano fático-social, apesar da proclamada
igualdade de gêneros na Constituição de 1988, a mulher continua sendo víti-
ma de discriminação e preconceito, e tem agravada sua situação de vulnerabi-
lidade, tornando-se vítima tanto em sua integridade física, como em tudo que
respeita à igualdade de oportunidade e condições no ambiente profissional400.
Tal cenário se agrava no caso de mulheres grávidas, uma vez que o quadro de
afronta à dignidade e à autonomia da mulher alcança seu corpo de forma mais
incisiva, tornando-a ainda mais vulnerável.
Impõe-se, nesse caso, em razão da grave questão sociocultural da vulnerabi-
lidade de gênero, um quadro de afronta à dignidade e à autonomia da mulher, que
alcança seu corpo, especialmente no campo da reprodução humana, em especial
no momento do parto. Cabe ao legislador promover a substancial e real igualdade
entre os gêneros, eliminando as situações de discriminação e desigualdade em
relação à mulher, sobretudo no que concerne ao controle de seu próprio corpo.
400 Cf. BARBOZA, Heloisa Helena Gomes; ALMEIDA, Vitor. (Des)igualdade de gênero: a mulher
como sujeito de direito. In TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA,
Vitor (coords.). O direito civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem ao Professor Stefano
Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016, pp. 163-189.
177
Violência Obstétrica em Debate
401 Cf. KITZINGER, Sheila. Birth your way: choosing birth at home or in a birth center. Chester, United
Kingdom: Fresh Heart Publishing, 2011.
402 “O uso do Plano de Parto e Nascimento foi rapidamente generalizado em alguns países da Europa.
Em 1993, na Inglaterra, era usado em 78% das salas de partos. Na Espanha, sua implantação é recente,
em 2007. A Estratégia de Atenção ao Parto Normal no Sistema Nacional de Saúde (Ministério da
Saúde e Consumo)(6) e a Iniciativa ao Parto Normal (FAME)(4) mencionam este documento, mas
será apenas em fevereiro de 2012 que o Ministério da Saúde, Política Social e Igualdade publica
um modelo de Plano de Parto e Nascimento”. SUÁREZ-CORTÉS, María; ARMERO-BARRANCO,
David; CANTERAS-JORDANA, Manuel; MARTÍNEZ-ROCHE, María Emilia. Uso e influência
dos Planos de Parto e Nascimento no processo de parto humanizado In: Revista Latino-Americana
de Enfermagem, 2015, p. 2. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rlae/2015nahead/pt_0104-
1169-rlae-0067-2583.pdf>. Acesso em 07 set. 2019.
403 SUÁREZ-CORTÉS, María; ARMERO-BARRANCO, David; CANTERAS-JORDANA, Manuel;
MARTÍNEZ-ROCHE, María Emilia. Uso e influência dos Planos de Parto e Nascimento no processo
de parto humanizado In: Revista Latino-Americana de Enfermagem, 2015, p. 2. Disponível em: <http://
www.scielo.br/pdf/rlae/2015nahead/pt_0104-1169-rlae-0067-2583.pdf>. Acesso em 07 set. 2018.
404 SUÁREZ-CORTÉS, María; ARMERO-BARRANCO, David; CANTERAS-JORDANA, Manuel;
MARTÍNEZ-ROCHE, María Emilia. Uso e influência dos Planos de Parto e Nascimento no processo
de parto humanizado In: Revista Latino-Americana de Enfermagem, 2015, p. 2. Disponível em: <http://
www.scielo.br/pdf/rlae/2015nahead/pt_0104-1169-rlae-0067-2583.pdf>. Acesso em 07 set. 2018.
178
Violência Obstétrica em Debate
179
Violência Obstétrica em Debate
409 Um exemplo de Plano de Parto foi desenvolvido pela Defensoria Pública de São Paulo em conjunto
com a ONG Artemis e se encontra disponível em http://artemis.org.br/wpcontent/uploads/2014/07/
Modelo-de-plano-de-Parto-Artemis-Defensoria.pdf.. Acesso em 08 set. 2018.
410 PENALVA, Luciana Dadalto. Declaração prévia de vontade do paciente terminal. In: Revista
Bioética, v. 17, n. 3, 2009, p. 524.
180
Violência Obstétrica em Debate
pelham o projeto de vida do seu autor, logo, devem ser valorizadas porque
traduzem suas escolhas e opções existenciais, permitindo que a pessoa possa
construir sua personalidade de acordo com suas decisões mesmo nos perío-
dos em que não é possível exprimir sua vontade.
Não há regulamentação legislativa específica para as diretivas antecipa-
das, mas parece não haver impedimento jurídico para sua admissão. À míngua
de regulamentação legal específica, o Conselho Federal de Medicina editou a
Resolução n. 1.995/2012, que dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade
dos pacientes, que foram definidas nos termos do art. 1º da citada resolução:
Art. 1º Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de
desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cui-
dados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que
estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.
181
Violência Obstétrica em Debate
411 Cf. ALMEIDA, Vitor. A capacidade civil das pessoas com deficiência e os perfis da curatela. Belo
Horizonte: Fórum, 2019; BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA, Vitor (orgs.). Comentários ao
Estatuto da Pessoa com Deficiência à luz da Constituição da República. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
182
Violência Obstétrica em Debate
412 Dispõe sobre a proibição de adesão, por parte de médicos, a quaisquer documentos, dentre eles
o plano de parto ou similares, que restrinjam a autonomia médica na adoção de medidas de
salvaguarda do bem estar e da saúde para o binômio materno-fetal.
413 O Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU) movem ação civil
pública (ACP) contra o Cremerj. Antes de judicializar a questão, o MPF e a DPU recomendaram
ao Cremerj a revogação da resolução, apontando, basicamente, a necessidade de adequação da
resolução à Constituição Federal, à Lei Estadual 7.191/2016, que assegura o plano de parto no
Estado do Rio de Janeiro, ao Código de Ética Médica e às Diretrizes Nacionais de Assistência ao
Parto do Ministério da Saúde bem como às recomendações da Organização Mundial de Saúde para
assistência ao parto. O Cremerj não atendeu a recomendação.
183
Violência Obstétrica em Debate
Considerações finais
Com a forte medicalização do processo gestacional, cujo ápice é alcança-
do pelo momento do parto hospitalar, indispensável construir instrumentos
para a promoção da autodeterminação da gestante, de modo a minimizar sua
agravada vulnerabilidade, atendendo sua vontade e expectativa, bem como
evitar a violência obstétrica no país. Neste passo, os planos de parto e nasci-
mento são negócios jurídicos unilaterais plenamente válidos em nosso orde-
namento, cuja eficácia depende do prévio conhecimento pelos profissionais
envolvidos e do evento parto. No entanto, eventual responsabilização civil em
razão do descumprimento ou mera inobservância do conteúdo do plano de
parto exige uma cuidadosa avaliação da conduta profissional, uma vez que
intercorrências não planejadas de forma esmiuçada no documento podem
forçar os envolvidos a atuarem fora do inicialmente planejado, mas sem atrair
a responsabilidade civil.
184
Violência obstétrica contra a gestante com deficiência
414 O episódio é narrado em reportagem da Revista Época, sob o título “Vítimas da violência obstétrica:
o lado invisível do parto”, de autoria de Thais Lazzarei. Disponível em: https://epoca.globo.com/vida/
noticia/2015/08/vitimas-da-violencia-obstetrica-o-lado-invisivel-do-parto.html. Acesso em 3.9.2018.
415 “25% das mulheres entrevistadas afirmaram ter sofrido alguma forma de violência institucional,
desatacando-se a realização de exame de toque doloroso e negativa para alívio da dor (10%), ausência
de explicação quanto aos procedimentos adotados e gritos de profissionais durante o atendimento
(9%), negativa de atendimento (8%) e xingamento e humilhações (7%). Ainda, a pesquisa apontou
que cerca de 23% das entrevistadas sofreram coação verbal pelos profissionais, por meio de frases
como ´não chora que ano que vem você está aui de novo´(15%), ´na hora de fazer não chorou, não
chamou a mamãe´ (14%), ´se gritar eu paro e não vou te atender´ (6%), ´se ficar gritando vai fazer mal
pro neném, ele vai nascer surdo´ (5%)”. Dados extraídos da pesquisa Mulheres Brasileiras e Gênero
nos Espaços Público e Privado, divulgada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo, p. 173 e seguintes.
185
Violência Obstétrica em Debate
to de não ser recente,416 começa a ganhar a atenção, cada vez maior, dos juristas
nacionais. De acordo com a cartilha informativa lançada pela Defensoria Pú-
blica do Estado de São Paulo, em 2013, a violência obstétrica se caracteriza pela
apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres pelos pro-
fissionais de saúde, através do tratamento desumanizado, abuso da me-
dicalização e patologização dos processos naturais, causando a perda
da autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e
sexualidade, impactando negativamente na vida das mulheres.417
Disponível em https://apublica.org/wpcontent/uploads/2013/03/www.fpa_.org_.br_sites_default_
files_pesquisaintegra.pdf. Acesso em 5.9.2018.
416 A título de exemplo, confira-se o seguinte trecho de Henci Goer, que remete a artigo publicado
há mais de 50 anos, nos Estados Unidos, acerca da violência obstétrica que então já se verificava:
“‘Cruelty in Maternity Wards’ was the title of a shocking article published just over 50 years ago in
Ladies’ Home Journal in which nurses and women told stories of inhumane treatment in labor and
delivery wards during childbirth (Schultz, 1958). Stories included women being strapped down for
hours in the lithotomy position, a woman having her legs tied together to prevent birth while her
obstetrician had dinner, women being struck and threatened with the possibility of giving birth to a
dead or brain damaged baby for crying out in pain, and a doctor cutting and suturing episiotomies
without anesthetic (he had once nearly lost a patient to an overdose) while having the nurse stifle the
woman’s cries with a mask” (HENCI, Goer. Cruelty in maternity wards: fifty years later. The Journal
of Perinatal Education. 2010. Disponível em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2920
649/?tool=pmcentrez&report=abstract#bib24. Acesso em 5.9.2018).
417 Disponível em https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/41/violencia%20obstetrica.pdf.
Acesso em 5.9.2018.
186
Violência Obstétrica em Debate
418 Segundo João Álvaro Dias: “Consentimento esclarecido é aquele que tem como base o integral
cumprimento do dever médico de explicar ao doente, de modo compreensível e leal, o tratamento
que se propõe fazer, quais os prováveis efeitos e quais os riscos possíveis, ainda que pouco usuais. Do
mesmo modo exige-se que o médico explique ao doente quais as possibilidades de tratamento” (DIAS.
João Álvaro. Procriação assistida e responsabilidade médica. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 292).
419 TJ-RS, 6ª CC, Apelação Civel n. 70021336938, Rel. Des. Artur Arnildo Ludwig. J. 13.9.2009.
187
Violência Obstétrica em Debate
420 Os “procedimentos hospitalares padrões” nos partos podem ser considerados como um modo de
exercício de poder sobre os corpos femininos, revelando técnicas de dominação e reforçando uma
obediência não opcional. Nesse sentido aproximamos tais críticas com as reflexões a respeito dos
chamados corpos dóceis: “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que
pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Editora
Vozes, 1997, p.132). Fazer nota sobre a docilização do corpo feminino.
421 O termo “vagina-escola” foi usado por entrevistados em uma pesquisa do grupo, realizada no âmbito de
evento intitulado “A vagina-escola: seminário sobre violência contra a mulher no ensino das profissões
de saúde”, em março de 2015, na Faculdade de Saúde Pública da USP, para se referir à formação dos
profissionais médicos (DINIZ, Carmen Simone Grilo; NIY, Denise Yoshie; ANDREZZO, Alana Faria
de Aguiar; CARVALHO, Priscila Cavalcanti Albuquerque; SALGADO, Heloisa de Oliveira. A vagina-
escola: seminário interdisciplinar sobre violência contra a mulher no ensino das profissões de saúde.
Interface - Comunicação, Saúde, Educação. vol. 20, núm. 56, jan.-mar., 2016 p. 253).
188
Violência Obstétrica em Debate
ência em grupo fechado de mães em rede social. Segundo seu relato, ao chegar à
maternidade, o marido foi impedido de acompanha-la, sendo-lhe negado direito
assegurado, desde 2005, pela Lei nº 11.108, que obriga hospitais, maternidades e
assemelhados a permitir um acompanhante, à escolha da gestante, no trabalho
de parto, durante o parto e no pós-parto imediato (até 10 dias após o parto).422
Mas não foi só. Quando começou a sentir as fortes dores das contrações, ouviu
da equipe médica: “Na hora de fazer, não gostou?” e “Não grita, vai assustar as
outras mães”. Após o nascimento do bebê, deram-lhe o que designaram “ponto
do marido”, para “continuar casada”: não bastasse a realização de episiotomia sem
o conhecimento de Kelly, o médico, ao fazer a sutura, deu um ponto a mais, para
apertar a abertura da vagina. As dores decorrentes do procedimento realizado à
sua revelia acompanham Kelly desde então.423
Percebe-se, então, que “as questões de saúde, de nascer e morrer, originaria-
mente objeto de preocupação e cuidados femininos, passaram às mãos e mentes
dos homens com o desenvolvimento da medicina moderna. O mesmo processo
ocorreu com o parto tendo os médicos assumido o posto tradicionalmente ocupa-
do pelas parteiras, desvalorizando a sensibilidade e o papel das mães.”424
A fim de combater episódios como esses, a Organização Mundial de
Saúde (OMS) publicou, em 23 de setembro de 2014, declaração oficial para
prevenção e eliminação da violência obstétrica, que qualificou como violação
dos direitos humanos fundamentais. De acordo com a OMS, os relatos sobre
os abusos praticados incluem
violência física, humilhação profunda e abusos verbais, procedimentos
médicos coercivos ou não consentidos (incluindo a esterilização), falta de
422 A Lei nº 11.108/2005 incluiu o art. 19-J na Lei nº 8.080/1990, com a seguinte redação: “Art. 19-
J. Os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde - SUS, da rede própria ou conveniada, ficam
obrigados a permitir a presença, junto à parturiente, de 1 (um) acompanhante durante todo o
período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. § 1o O acompanhante de que trata o caput
deste artigo será indicado pela parturiente. § 2o As ações destinadas a viabilizar o pleno exercício
dos direitos de que trata este artigo constarão do regulamento da lei, a ser elaborado pelo órgão
competente do Poder Executivo.”
423 O episódio é narrado em reportagem da Revista Época, sob o título “Vítimas da violência obstétrica:
o lado invisível do parto”, de autoria de Thais Lazzarei. Disponível em: https://epoca.globo.com/vida/
noticia/2015/08/vitimas-da-violencia-obstetrica-o-lado-invisivel-do-parto.html. Acesso em 3.9.2018.
424 COSTA, Mariana V. de M; LUNA, Maria J.de M. A Violência obstétrica e a dominação masculina de
bourdieu. IX Seminário Internacional de Direitos Humanos da UFPB. Brasil, 2016. Disponível em:
http:www.ufpb.br/evento/lti/ocs/index.php/ixsidh/paper/view/4245/159. Acesso em: 6.9.2018.
189
Violência Obstétrica em Debate
190
Violência Obstétrica em Debate
428 TJ-SP 00013140720158260082. 5ª Câmera de Direito Privado. Rel. Des. Fábio Podestá. Data de
julgamento 11/10/2017
429 “A difusão do termo tem origem na decisão: STJ, REsp 1.064.009/SC, 2.ª T., Rel. Min. Herman
Benjamin, j. 04.08.2009, DJe 27.04.2011. Nessa linha, NISHIYAMA, Adolfo Mamoru; DENSA,
Roberta. A proteção dos consumidores hipervulneráveis: os portadores de deficiência, os idosos,
as crianças e os adolescentes. Revista de Direito do Consumidor, vol. 76, p. 13 e ss., São Paulo, out.
2010, explicam: “O prefixo hiper (do grego hypér), designativo de alto grau ou aquilo que excede a
medida normal, acrescido da palavra vulnerável, quer significar que alguns consumidores possuem
vulnerabilidade maior do que a medida normal, em razão de certas características pessoais”.
KONDER, C. N. Vulnerabilidade patrimonial e vulnerabilidade existencial: por um sistema
diferenciador. Revista de Direito do Consumidor, vol. 99, p. 101-123, 2015. Disponível em: <http://
konder.adv.br/wp-content/uploads/2018/01/Carlos-Nelson-Konder-Vulnerabilidade-patrimonial-
e-vulnerabilidade-existencial-In-Revista-de-Direito-do-Consumidor.pdf>. Acesso em 11.9.2018.
430 BARBOZA, Heloisa Helena. Vulnerabilidade e cuidado: aspectos jurídicos. In: PEREIRA, Tânia da
Silva; OLIVEIRA, Guilherme de (coord.). Cuidado e vulnerabilidade. São Paulo: Atlas, 2009, p. 110-111.
431 BARBOZA, Heloisa Helena. O princípio do melhor interesse do idoso. In: PEREIRA, Tânia da Silva;
OLIVEIRA, Guilherme de (coord.). O cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 61.
191
Violência Obstétrica em Debate
432 BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2015, p. 46-47.
192
Violência Obstétrica em Debate
433 Nas palavras do autor: “Batizou o filho adotivo e deu-lhe o nome de Quasímodo, por querer lembrar
o dia em que fora encontrado, ou por querer caracterizar com esse nome o quanto a pobre pequena
criatura era incompleta e malfeita. Quasímodo, de fato, caolho, corcunda e capenga, não passava de
um quase.” Disponível em: https://sanderlei.com.br/PDF/Victor-Hugo/Victor-Hugo-O-Corcunda-
de-Notre-Dame.pdf, p. 180. Acesso em 11.9.2018.
193
Violência Obstétrica em Debate
434 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao direito civil constitucional. Tradução
Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 18.
435 Butler destaca que reações de comoção são tacitamente reguladas por certos tipos de enquadramento
interpretativo, fazendo com que as pessoas sintam mais horror e repulsa moral por vidas humanas.
Segundo a autora, a resposta moral à violência decorre da concepção de que ela é justa ou justificada,
sentimento criado por um poder regulatório, pois a comoção sempre é transmitida de outro lugar,
predispondo a percepção do mundo de determinada maneira, acolhendo certas dimensões e
resistindo a outras. Daí afirma que a diferenciação da resposta afetiva e valoração moral são os
enquadramentos que fazem com que certas vidas sejam consideradas dignas de proteção e outras
não, pois ´não são completamente vidas´ (BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é
passível de luto? p. 68).
436 O episódio é narrado na Carta Capital, sob o título “Precisamos falar sobre violência contra mulheres
com deficiência”, de autoria de Deborah Prates. Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.
br/2016/11/21/precisamos-falar-sobre-violencia-contra-mulheres-com-deficiencia/. Acesso em 3.9.2018.
194
Violência Obstétrica em Debate
437 O episódio é narrado em reportagem da Revista Época, sob o título “Vítimas da violência obstétrica:
o lado invisível do parto”, de autoria de Thais Lazzarei. Disponível em: https://epoca.globo.com/vida/
noticia/2015/08/vitimas-da-violencia-obstetrica-o-lado-invisivel-do-parto.html. Acesso em 3.9.2018.
195
Violência Obstétrica em Debate
196
Violência Obstétrica em Debate
197
Violência Obstétrica em Debate
ra do corpo, tais como, um desvio importante ou uma perda”,442 que nem sem-
pre, contudo, importam em limitação da capacidade ou da funcionalidade.443
Referido modelo foi adotado expressamente pela Convenção da ONU
sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, aprovada pelo Decreto Legisla-
tivo nº 186, em 9 de julho de 2008, passando a integrar o ordenamento jurí-
dico brasileiro com status de emenda constitucional. Ainda no preâmbulo da
Convenção, reconhece-se que a deficiência, um conceito em evolução, “resulta
da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes
e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na
sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”.444 Ao pro-
pósito, afirma Mary Keys: “previous reliance solely on a narrower medical ap-
proach is no longer considered appropriate, and instead a social and human
rights approach focused on removing barriers to participation is essential to the
achievement of equality”.445
O Estatuto da Pessoa com Deficiência446 contemplou o mesmo modelo,
já em seu art. 2º, de acordo com o qual “considera-se pessoa com deficiência
aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, inte-
lectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode
obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condi-
ções com as demais pessoas”. Nos termos do § 1º “a avaliação da deficiência,
quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissio-
198
Violência Obstétrica em Debate
199
Violência Obstétrica em Debate
447 BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA JÚNIOR, Vitor. A capacidade civil à luz do Estatuto da
Pessoa com Deficiência. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de (org.). Direito das pessoas com deficiência
psíquica e intelectual nas relações privadas: Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência
e Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016, p. 265, grifou-se. No mesmo sentido,
confira-se Joyceane Bezerra de Menezes: “Em verdade, o dispositivo procura evitar a coisificação
da pessoa curatelada que não pode ter a sua integridade fisiopsíquica comprometida pela atuação
indevida do curador. Porém, se o curatelado não tiver qualquer capacidade de agir, estiver sob
tratamento médico, houver a necessidade de se decidir sobre certa intervenção em matéria de saúde
e não existir familiar em condição de fazê-lo? Haveria sim a possibilidade de intervenção do curador,
mas sempre com a intenção de realizar o interesse fundamental do curatelado, assim entendido como
200
Violência Obstétrica em Debate
as suas preferências genuínas, sua percepção do mundo, suas convicções pessoais acerca da própria
identidade. Caso o curatelado houver nascido sem qualquer competência volitiva e, por isso, não
houver registrado por seu modo de viver, quais seriam esses interesses fundamentais, a atuação do
curador deverá se guiar pelo princípio da beneficência, seguindo padrões respeitáveis à dignidade
da pessoa humana e os direitos do curatelado, na tentativa de atender, sempre que possível, às
suas inclinações e relações afetivas” (MENEZES, Joyceane Bezerra de. O direito protetivo após a
Convenção sobre a proteção da pessoa com deficiência, o novo CPC e o Estatuto da Pessoa com
Deficiência. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de (org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica
e intelectual nas relações privadas: Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência e Lei
Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016, p. 532, grifou-se).
448 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. 3. ed.
Tradução de Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 2-3.
201
Violência Obstétrica em Debate
202
Violência Obstétrica em Debate
449 FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 86.
450 A assinatura do tratado se deu em 30/03/2007 e sua ratificação ocorreu em 2008 pelo Congresso
Nacional seguindo-se o procedimento previsto no art. 5º, §3º da Constituição Federal. Não se olvida
do tema do “controle de Convencionalidade” das normas internas do direito brasileiro, a respeito
do qual Flávia Piovesan destaca que a proteção dos direitos humanos (human rights approach)
constitui o ápice do sistema internacional e que o “controle de convencionalidade” é importante
instrumento para a concretização de medidas protetivas aos direitos humanos constantes de
tratados internacionais. (PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e diálogo entre jurisdições. Revista
Brasileira de Direito Constitucional – RBDC. n.19 – jan./jun. 2012, p. 91)
203
Violência Obstétrica em Debate
451 FLORES, Joaquín Herrera. A (re)invenção dos direitos humanos. Trad. DIAS, Jefferson Aparecido;
GARCIA, Carlos Roberto Diogo; SUXBERGER, Antônio Henrique Graciano. Florianópolis:
Fundação Boiteux, 2009, p. 18.
452 “Art. 1.783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege
pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança,
para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos
e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.”
453 MENEZES, Joyceane Bezerra de. Tomada de decisão apoiada: instrumento de apoio ao exercício
da capacidade civil da pessoa com deficiência instituído pela Lei Brasileira de Inclusão (Lei n.
13.146/2015), Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 9, jul./set. 2016, p. 44.
454 MENEZES, Joyceane Bezerra de. Tomada de decisão apoiada: instrumento de apoio ao exercício
da capacidade civil da pessoa com deficiência instituído pela Lei Brasileira de Inclusão (Lei n.
13.146/2015), Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 9, jul./set. 2016, p. 42/43.
204
Violência Obstétrica em Debate
reitos humanos.455 Por isso almeja-se que a Tomada de Decisão Apoiada se torne
realmente uma prática emancipadora para a realidade brasileira atual.
Não é despiciendo ressaltar que, em qualquer situação, por mais severa
que seja a deficiência, ainda que, em hipótese excepcionalíssima, a gestante
não tenha condições de exprimir sua vontade, pelo simples (e inafastável) fato
de ser sujeito de direito, dotada de inerente dignidade humana, ela sempre terá
o direito fundamental ao parto humanizado. Embora o termo seja polissêmi-
co, as propostas de humanização do parto, de uma forma geral, “têm o méri-
to de criar novas possibilidades de imaginação e de exercício de direitos, de
viver a maternidade, a sexualidade, a paternidade, a vida corporal. Enfim, de
reinvenção do parto como experiência humana, onde antes só havia a escolha
precária entre a cesárea como parto ideal e a vitimização do parto violento”.456
E esse é um direito de todas as mulheres, independentemente de sua condição
física, psíquica, social ou racial.
4. Conclusão
O núcleo central da temática desse trabalho é tutelar a autodeterminação
dos direitos sexuais e reprodutivos, inclusive do “plano de parto”, para todas as
mulheres numa concepção humanizada, o que exige especificidades para as pes-
soas com deficiência física, psíquica ou intelectual, bem como a desvinculação de
um enfoque substitutivo da vontade, sem descurar da proteção de seus interesses.
Contudo, a violência obstétrica é prática reiterada no cotidiano médi-
co-hospitalar e se consubstancia no conjunto de ações, métodos e procedi-
mentos clínicos adotados pelos profissionais da saúde, durante a realização
do parto, ou em momentos anteriores ou posteriores a ele, e que tendem a
se apropriar do corpo e dos processos reprodutivos da mulher pela supres-
são de sua capacidade e autonomia na decisão livre sobre o próprio corpo e
sexualidade, pelo abuso da medicalização e pelo tratamento desumanizado
dispensado às gestantes. Entre os exemplos dessa prática estão o uso de vio-
455 RUBIO, David Sanchez. Encantos e desencantos dos direitos humanos: de emancipações, libertações
e dominações. Porto Alegre: livraria do advogado, 2014, p.43.
456 DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos
de um movimento. Ciência e Saúde Coletiva. 10 (3), 2005, p. 635.
205
Violência Obstétrica em Debate
206
Violência Obstétrica em Debate
deficiência passa a ser, como regra e a priori, absolutamente capaz para o exer-
cício de sua autodeterminação, especialmente no que diz respeito aos atos de
natureza personalíssima.
Essa nova perspectiva se afigura, portanto, como importante mecanismo
que respeita e tutela a autonomia da gestante para decidir sobre as questões rela-
tivas ao planejamento familiar, à gestação, ao parto (possibilitando-lhe decidir,
no “plano de parto” ou por meio da tomada de decisão apoiada, sobre os pro-
cedimentos a que aceita ou não se submeter) e ao próprio corpo, no exercício
de seus direitos e liberdades existenciais de maneira humanizada. Para tanto,
devem-se reduzir as barreiras (físicas, comunicacionais, de conhecimento etc.)
que afastam a pessoa com deficiência do exercício de sua autodeterminação e do
poder de decisão sobre questões relativas à sua personalidade, conjugando-se a
proteção formal à material da dignidade da gestante com deficiência.
Conquistas e retrocessos constituem a dinâmica dialética de movimentos
e práticas de reconhecimento e afirmação de direitos humanos e fundamentais
de grupos vulneráveis. As pessoas com deficiência passam pelo mesmo dificul-
toso trilhar. Urge na contemporaneidade reflexões a fim de expandir a compre-
ensão dos nortes traçados pela Convenção, sob pena de a autonomia persistir
restrita e condicionada a padrões culturais que inferiorizam, daí a necessidade
do juízo critico e emancipatório em prol da efetiva autodeterminação.
207
Racismo institucional e violência
obstétrica: dispositivo sistêmico de
genocídio da população negra
Thula Pires
Malu Stanchi
Introdução
A mulher-mãe culpada, a mulher-mãe vítima, a mulher-mãe protagonis-
ta do processo gestacional e puerperal. A construção semântica do conceito de
humanização da assistência ao parto transfigurou-se a partir da abertura, dis-
cussões e liberdades que os movimentos de mulheres conquistaram na socie-
dade patriarcal brasileira face às particularidades e desafios de cada momento
histórico. Contudo, a consideração do sujeito mulher a partir de uma perspec-
tiva uniformizadora é ponto que transpassa as diferentes disputas certificadas
contra a violência obstétrica ao longo dos tempos e espaços.
Trata-se de um universalismo secularmente atrelado à supremacia branca
e à naturalização da hierarquia racial que promovem a subordinação e o apaga-
mento das existências, projetos e perspectivas pretas. A construção da mulher
universal branca constituiu o padrão de normalização desse sujeito de direito-
-mulher-mãe. E esse padrão de normalização é definido a partir das configura-
ções hegemônicas socialmente estruturais e estruturantes, que impõem delimi-
tações hermenêuticas, consolidações epistêmicas e, consequentemente, condi-
cionam a efetividade e alcance prático das garantias que se verificam a partir da
possibilidade de tutela da dignidade humana e dos direitos que delas decorrem.
A mulher universal branca que representa nesse texto a zona do ser457
estabelece o parâmetro para a seleção e consideração social dos corpos e exis-
tências femininas dignas de um processo gestacional que atenda aos padrões
de bem-estar estabelecidos socialmente. A sua proteção e possibilidade con-
457 FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Tradução Renato da Silveira; Salvador: EDUFBA, 2008.
209
Violência Obstétrica em Debate
458 BAIRROS, L. Entrevista concedida a Edson Cardoso, Jonas Conceição e Sayonara. Jornal do MNU,
n. 20, out-dez. 1991.
210
Violência Obstétrica em Debate
211
Violência Obstétrica em Debate
462 DINIZ, S. et. al. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições,
tipologias, impactos para a saúde maternas, e propostas para sua prevenção, in Journal of Human
Growth and Development, 2015.
463 ‘’Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação,
do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a
gente considera como o não-saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história
que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção.
Consciência exclui o que memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, consciência
se expressa como discurso dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando
memória, mediante a imposição do que ela, consciência, afirma como a verdade. Mas a memória
tem suas astúcias, seu jogo de cintura: por isso, ela fala através das mancadas do discurso da
consciência.’’ GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira, in Revista Ciências Sociais
Hoje, ANPOCS, 1984, p. 226.
464 GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira, in Revista Ciências Sociais Hoje, ANPOCS,
1984, p. 226.
212
Violência Obstétrica em Debate
da memória tramada e à análise da história que não é contada. ‘’A pele preta
ainda nos marca e nos mata na escala inferior da sociedade” .465
Nos séculos, XVIII e XIX - a partir de uma análise temporal sintética,
face às múltiplas nuances e transversalidades inerentes às práticas racistas -
destaca-se o instituto da escravidão e do racismo científico. Os senhores de
engenho, Darwin, Nina Rodrigues e Cesare Lombroso contribuíram para a
difusão da teoria do determinismo racial que fundamentava a desumanização
das negras e negros na sociedade brasileira.
No pólo oposto à figura da mãe-santinha branca estava a mulher pre-
ta escravizada violada sexualmente pelo senhor de engenho. A mulher que,
privada de sua liberdade física e sexual, servia compulsoriamente ao senhor
branco para prestação de bens e serviços laborais e para a prestação de servi-
ços sexuais, mucama, bode expiatório do projeto de normatização e estratifi-
cação. ‘’Se a mulher branca era tida como sacralizada em sua função de esposa
e mãe, à negra escravizada só restava a função de objeto sexual, consolidada
via estupro institucionalizado’’.466 Objeto de propriedade do senhor de enge-
nho, a mulher negra não era considerada pessoa humana, sujeito, por estar
na zona do não ser. Seus corpos eram violados pelo estupro, pela chibata e
pelos trabalhos exaustivos. De certo, a Igreja Católica também agia sobre a
maternidade preta, por meio da própria legitimação da escravidão e através
da “desfaçatez dos padres a quem as Ordenações Filipinas, com seus castigos
pecuniários e degredo para a África, não intimidavam nem os fazia desis-
tir dos concubinatos e mancebias com as escravas”. 467Inicialmente contando
com a ajuda comunitária de outras negras e negros escravizados no processo
gestacional e puerperal, expostas à precarização sanitária dos espaços insa-
lubres determinados como moradia para as negras e negros, a mulher preta
escravizada encontrava no conhecimento ancestral os caminhos para o parto
nas condições impostas pelo processo de dominação.468
465 PIEDADE, V. Dororidade; São Paulo: Noz, 2017, p. 14, 16, 47.
466 ARAÚJO, A. A mulher negra no pós abolição, in Revista Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as,
ABPN, v.5. N.9, 2018, p. 25.
467 GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira, in Revista Ciências Sociais Hoje, ANPOCS,
1984, p. 226, 229.
468 CARNEIRO, F. Nossos passos vêm de longe…, in O livro da saúde das mulheres negras - nossos passos
vêm de longe, organização WERNECK, J., MENDONÇA, M. WHITE, E. Tradução Maisa Mendonça,
Marilena Agostini e Maria Cecília MacDowell dos Santos, Rio de Janeiro: Pallas: Criola, 2000.
213
Violência Obstétrica em Debate
469 BARRETO, M. Maternidade para escravas no Rio de Janeiro (1850-1859), in Revista de História
Regional, v. 21, n. 2, 2016, p. 396.
470 GOES, E. Racismo científico, definindo humanidades de negras e negros, Geledes, 2016.
214
Violência Obstétrica em Debate
471 FREYRE, G. Casa-grande e senzala, 49 edição, São Paulo: Global, 2004, p. 343, 372.
472 FREYRE, G. Casa-grande e senzala, 49 edição, São Paulo: Global, 2004, p. 343, 372.
473 GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira, in Revista Ciências Sociais Hoje, ANPOCS,
1984, p. 226, 229.
474 GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira, in Revista Ciências Sociais Hoje, ANPOCS,
1984, p. 226, 229.
215
Violência Obstétrica em Debate
475 BAHIA, L. Sistema Único de Saúde, in PEREIRA, I. e LIMA, J., Dicionário de educação profissional
em saúde, 2ed; Rio de Janeiro: EPSJV, 2009, p. 357.
476 SILVA, A. Desmonte e sucateamento do SUS: o ataque neoliberal à política de saúde no Brasil, in
Anais Seminário FNCPS, 2017.
216
Violência Obstétrica em Debate
vada. Ainda hoje são vitimizadas pelo racismo inúmeras Rafaelas477, jovens,
pretas que falecem de morte materna pelas práticas intencionais de violência:
‘’Tinha que ser! Olha aí, pobre, preta, tatuada e drogada! Isso não é eclamp-
sia, é droga!” - fala atribuída ao anestesista que deveria prestar assistência de
emergência a uma jovem parceira de um homem privado de liberdade por trá-
fico de drogas478. A prática da violência obstétrica é acentuada e direcionada
para corpos e existências definidas, e funciona como ferramenta de um tecido
esparso e bem consolidado na sociedade brasileira: o racismo institucional.
477 Rafaela Cristina Souza dos Santos faleceu aos 15 anos por descaso e negligência Estatal durante
a gestação. Rafaela sofreu negligência durante todo o pré-natal. Apesar de ter feito o pré-natal
‘’direitinho. Não faltou nenhuma vez’’ (relato de Ana Cláudia Silva de Souza, mãe de Rafaela)
e apresentando indicativo de risco devido ao aumento da pressão arterial aliado ao aumento
expressivo de peso, a gestante não foi direcionada, em nenhum momento, ao Serviço Pré-Natal
de Risco. No dia 23 de abril de 2015, com 40 semanas de gestação, ao se dirigir ao Hospital Rocha
Faria - maternidade pública de referência no Rio de Janeiro - foi constatado que Rafaela tinha perda
discreta de líquidos e variação expressiva da pressão. Apesar de haver indicativo de alterações,
apontados no exame pré-natal, os profissionais de plantão dispensaram a gestante sem a realização
de qualquer medida de controle ou avaliação. No dia seguinte, 24 de abril de 2015, Rafaela retornou
ao referido hospital com quadro sintomático semelhante, somado a sangramento vaginal. Mais uma
vez, a equipe médica ignorou a hipertensão progressiva e indicou o encaminhamento da gestante
ao Hospital da Mulher, devido à impossibilidade de realização do parto face à greve de funcionário
que estava ocorrendo. Contudo, não foi oferecida a remoção. Dirigindo-se por meios próprios ao
Hospital da Mulher, sem encaminhamento formal, Rafaela foi direcionada ao Centro de Parto
Normal, classificada como gestante de baixo risco. Horas depois, Rafaela apresentou quadro de
vômito, diante do qual houve completa inação dos profissionais de saúde da unidade, que sequer
aferiram a pressão de Rafaela. Após 12 horas, no dia 25 de abril de 2015 , visto as dores de cabeça
intensas, pressão elevada, quadro convulsivo e parada cardíaca, foi acionada a equipe médica
da unidade. No entanto, só houve resposta da equipe após a terceira tentativa de comunicação,
decorrida 1 hora. A cesárea ocorreu sem a administração dos medicamentos necessários em caso de
pressão alta, ocasionando hemorragia e choque hipovolêmico na adolescente. Rafaela foi transferida
para outra unidade de saúde, havendo ausência de administração de métodos capazes de conter a
hemorragia. No momento da entrada no Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, Rafaela apresentava
edema agudo pulmonar, taquicardia, diagnóstico de rotura uterina, eclâmpsia e histerectomia
parcial. Após várias paradas cardíacas, Rafaela veio a óbito. (Informações extraídas de relatórios
disponibilizados por CRIOLA, pela Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Mulher sobre o caso,
assim como de reportagens jornalísticas e do documento ‘’Mortalidade Materna e o Impacto sobre
as Mulheres Negras’’ produzido por Jurema Werneck e disponibilizado em: http://www2.camara.
leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cssf/audiencias-publicas/audiencia-
publica-2015/aud-09-06-subpasne/apresentacao-6 . Acesso em 28 de agosto de 2018)
478 Depoimento extraído Dossiê da Violência Obstétrica “Parirás com dor”, elaborado para a CPMI da
Violência Contra as Mulheres no Senado Federal, em 2012.
217
Violência Obstétrica em Debate
218
Violência Obstétrica em Debate
219
Violência Obstétrica em Debate
480 FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Tradução Renato da Silveira; Salvador: EDUFBA, 2008.
481 MELLO, D. ‘’Esterelização de morada de rua não é caso isolado, dizem entidades’’, Agencia Brasil.
Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-06/esterilizacao-
de-moradora-de-rua-nao-e-caso-isolado-dizem-entidades, Acesso em: 27 de agosto de 2018.
482 ‘’Quase um terço das pardas e negras não conseguiram atendimento no primeiro estabelecimento
pro- curado e no parto vaginal receberam menos anestesia.’’ em LEAL, M., GAMA, S., CUNHA,
C. Desigualdades raciais, sociodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto, 1999-2001, in
Revista de Saúde Pública: FSP- USP, P. 106.
220
Violência Obstétrica em Debate
483 DAVIS, A. Mulheres, raça e classe; São Paulo: Boitempo, 2016., cap. 11.
484 Para maiores informações ver o discurso da Defensora Pública Lívia Miranda Muller Drummond
Casseres na audiência pública para debater a legalização do aborto realizada entre os dias 03 e 06
de agosto de 2018 no STF e ‘’Entre a morte e a prisão quem são as mulheres criminalizadas pela
prática de aborto no Rio de Janeiro’’, levantamento e estudo realizado pela Defensoria Pública do
Estado do Rio de Janeiro em 2018. CASSERES, L. Discurso na audiência pública para o debate sobre
a legalização do aborto até a 12 semana. STF, 06 de agosto de 2018.
485 CEDAW. Alyne da Silva Pimentel Teixeira (deceased) v. Brazil. CEDAW/C/49/D/17/2008.
486 PIEDADE, V. Dororidade; São Paulo: Noz, 2017, p. 14, 16, 47.
487 PIEDADE, V. Dororidade; São Paulo: Noz, 2017, p. 14, 16, 47.
221
Violência Obstétrica em Debate
3. Racismo Institucional
488 CARMICHAEL, S.; HAMILTON, C. Black power:the politics of liberation in America. New York:
Vintage, 1967, p. 4
222
Violência Obstétrica em Debate
Tabela 2
Branca, antes
Preta Branca, após
do pareamento
(%) pareamento pelo escore
pelo escore OR (IC95%)
de propensão (%)
[n = propensão (%)
1.840] [n = 4.849]
[n = 8.077]
Adequação do pré-
67,9 57,7 58,7 1,62 (1,38-1,91)
natal Inadequado
Parcialmente
19,6 23,6 23,8 1,16 (0,96-1,40)
adequado
Orientação
sobre início do
trabalho de parto 53,9 54,0 48,9 1,22 (1,09-1,36)
Não
Orientação sobre
complicações
na gravidez 41,4 33,8 36,9 1,21 (1,08-1,35)
Não
Vinculação à
maternidade 45,3 37,3 40,2 1,23 (1,10-1,37)
Não
Peregrinação
para o parto 82,5 87,8 86,3 1,00
Não
223
Violência Obstétrica em Debate
Presença de
acompanhante
durante
hospitalização 33,8 18,9 23,7 1,67 (1,42-1,97)
Em nenhum
momento
Em algum
50,0 56,1 57,3 1,02 (0,88-1,19)
momento
Em todos os
16,2 25,0 19,0 1,00
momentos
Tipo de parto
53,9 39,4 43,2 1,00
Vaginal
Episiotomia *
58,5 50,5 51,2 1,00
Não
Anestesia local
para episiotomia * 10,7 8,5 8,0 1,49 (1,06-2,08)
Não
Sim, antes
40,0 38,8 37,1 1,20 (0,98-1,47)
dos pontos
Uso de ocitocina **
54,0 45,4 46,9 1,00
Não
Anestesia
peridural * 97,9 96,1 97,9 1,00
Não
Idade gestacional
2,4 2,8 2,7 0,93 (0,66-1,32)
Pré-termo precoce
224
Violência Obstétrica em Debate
Satisfação com
o atendimento
para o parto 46,5 53,5 49,9 1,00
Excelente
Regular/Ruim/
11,7 8,9 10,3 1,22 (0,97-1,52)
Péssimo
489 LEAL, MC., GAMA, S., PEREIRA, AP., PACHECO, V. CARMO, C., SANTOS, R., A cor da dor:
iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil, in Cad. Saúde Pública, v. 33, 2017, p. 8.
225
Violência Obstétrica em Debate
Tabela 3
Branca,
antes do
pareamento Branca, após
pelo pareamento
Parda (%)
pelo escore de OR (IC95%)
[n = 6.659] escore propensão (%)
propensão
(%) [n = 4.849]
[n = 8.077]
Adequação do
pré-natal 65,2 57,7 60,0 1,24 (1,12-1,36)
Inadequado
Parcialmente
19,4 23,6 22,6 0,98 (0,87-1,09)
adequado
Orientação
sobre início do
trabalho de parto 47,0 54,0 45,5 1,06 (0,99-1,14)
Não
Orientação sobre
complicações
na gravidez 35,4 33,8 34,4 1,04 (0,97-1,12)
Não
Vinculação à
maternidade 38,2 37,3 37,3 1,04 (0,97-1,11)
Não
226
Violência Obstétrica em Debate
Peregrinação
para o parto 87,8 87,8 88,4 1,00
Não
Presença de
acompanhante
durante
hospitalização 24,1 18,9 20,0 1,41 (1,27-1,57)
Em nenhum
momento
Em algum
55,6 56,1 56,3 1,16 (1,06-1,26)
momento
Em todos os
20,3 25,0 23,7 1,00
momentos
Tipo de parto
41,7 39,4 37,2 1,00
Vaginal
Episiotomia *
58,5 50,5 49,7 1,00
Não
Anestesia local
para episiotomia * 9,4 8,5 8,6 1,18 (0,92-1,50)
Não
Sim, antes
39,7 38,8 36,4 1,18 (1,02-1,36)
dos pontos
Uso de ocitocina **
53,5 45,4 47,1 1,00
Não
227
Violência Obstétrica em Debate
Anestesia
peridural * 97,2 96,1 96,5 1,00
Não
Idade gestacional
2,7 2,8 2,5 1,06 (0,86-1,32)
Pré-termo precoce
Satisfação com
o atendimento
para o parto 50,0 53,5 53,0 1,00
Excelente
Regular/Ruim/
9,8 8,9 9,0 1,15 (0,99-1,33)
Péssimo
490 Ibdem, p. 8.
228
Violência Obstétrica em Debate
entre 2000 e 2013 constatou disparidades acentuadas nos dados sobre a morta-
lidade materna segundo raça/cor491. Os dados atestam o racismo institucional
como gênero do qual a violência obstétrica é espécie. A institucionalização do
racismo promove a explícita desconsideração das humanidades das mulheres
negras, imprimindo às suas gestações os estigmas forjados historicamente.
Observa-se também que a maior parte das usuárias do SUS são as mulheres
negras. O sucateamento do sistema, a insuficiência operacional e a morosidade
para a prestação de serviços de saúde é mais um exemplo da inadequação do Es-
tado no que se refere à obrigatoriedade de adoção de postura positiva frente ao
direito à saúde. O Estado mostra-se violador através de atitudes comissivas que
optam pela ausência de planejamento, execução, fiscalização e continuidade às
políticas públicas direcionada à assistência humanizadas das mulheres negras.
Está engendrada a estrutura contemporânea institucional que regula e
condiciona legitimamente práticas racistas, naturalizando os meios de efeti-
vação da violência: ‘’Apesar da intensidade e profundidade de seus efeitos de-
letérios, o racismo produz a naturalização das iniquidades produzidas, o que
ajuda a explicar a forma como muitos o descreve, como sutil ou invisível’’492.
Além disso, o racismo institucional fomenta a desconsideração de disputas e
a eufemização de tensões centrais, promovendo o deslocamento higienista do
debate. Através das dinâmicas operacionalizadas e da escolha de termos limi-
tados, o racismo institucional funda pactos que excluem, pela morte e pelos
processos de morte em vida, as consideradas não (plenamente) humanas.
Nas palavras de Abdias do Nascimento: “é este racismo coletivo, este
racismo institucionalizado que dá origem a todo tipo de violência contra um
491 WERNECK, J. Mortalidade Materna e o Impacto sobre as Mulheres Negras. Audiência pública sobre
mortalidade materna na vida de mulheres negras. Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados
e a Subcomissão Especial das Políticas de Assistência Social e Saúde da População Negra,
Procuradoria da Mulher do Senado, 2015. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cssf/audiencias-publicas/audiencia-publica-2015/
aud-09-06-subpasne/apresentacao-6. Acesso em 28 de agosto de 2018.
492 WERNECK, J. Mortalidade Materna e o Impacto sobre as Mulheres Negras. Audiência pública sobre
mortalidade materna na vida de mulheres negras. Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados
e a Subcomissão Especial das Políticas de Assistência Social e Saúde da População Negra,
Procuradoria da Mulher do Senado, 2015. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cssf/audiencias-publicas/audiencia-publica-2015/
aud-09-06-subpasne/apresentacao-6. Acesso em 28 de agosto de 2018.
229
Violência Obstétrica em Debate
230
Violência Obstétrica em Debate
Considerações finais
O debate sobre a humanização do parto ainda hoje é centralizado nos pri-
vilégios inerentes à branquitude. A mulher universal branca - não racializada
- representa a zona do ser e define o padrão de normalização nas atuais disputas
contra a violência obstétrica. Logo, desafiar os lugares sociais e as estruturas
de poder próprios da estrutura colonial embutidos nessa luta, questionando os
privilégios não enunciados, silenciados e negados é retirar a discussão de uma
lógica identitária e pôr em evidência as múltiplas formas em que a violência de
Estado é mobilizada para perpetuar o secular extermínio do povo negro.
É preciso romper com o determinismo histórico e (re)fundar o conceito
em disputa, compreendendo os processos de não reconhecimento e apaga-
mento, normalizados pelo racismo. Deslocar a memória tramada e analisar
a história que não é enunciada faz emergir as perspectivas das humanidades
desconsideradas. A partir dessas narrativas, é apresentada a possibilidade de
231
Violência Obstétrica em Debate
498 WERNECK, J. Mortalidade Materna e o Impacto sobre as Mulheres Negras. Audiência pública sobre
mortalidade materna na vida de mulheres negras. Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados
e a Subcomissão Especial das Políticas de Assistência Social e Saúde da População Negra,
Procuradoria da Mulher do Senado, 2015. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cssf/audiencias-publicas/audiencia-publica-2015/
aud-09-06-subpasne/apresentacao-6. Acesso em 28 de agosto de 2018.
232
Maternidade e violência atrás das grades
Maíra Fernandes
Mariana Paganote Dornellas
Introdução
O progressivo interesse nos temas relacionados à violência obstétrica nos
faz refletir sobre as diversas formas de violência a que as mulheres ainda são
submetidas, e que sequer são reconhecidas como tais, diante de sua natura-
lização. A discussão sobre a violência obstétrica traz, então, um desconforto
generalizado, de muitas vezes a mulher se descobrir como vítima de violência,
em um processo não raro doloroso, posto que relacionado a um momento tão
pleno de vulnerabilidade e de expectativas, que é o momento do parto. Nossa
contribuição ao debate parte de uma perspectiva pouco usual, que é a de ana-
lisar as condições de maternidade no cárcere, um espaço que se contrapõe aos
cuidados básicos que se espera nessa fase da vida.
Se para as mulheres “livres” a violência obstétrica se manifesta de di-
versas formas preocupantes, para as mulheres em privação de liberdade essas
violações são ainda mais intensas, posto que legitimadas pela posição da mu-
lher de infratora da lei, e potencializada pela estrutura de um poder punitivo
que não atende às necessidades específicas de mulheres. Dessa forma, pensar
o grande aumento do encarceramento feminino no Brasil requer pensar em
todas as demandas de ordem física e social que atravessam a experiência da
mulher no sistema penitenciário, inclusive as relacionadas à maternidade, e
que são invisibilizadas e ignoradas. Essas questões evidenciam o fracasso de
uma política criminal repressiva, que, na tentativa vã de solucionar problemas
sociais por meio do encarceramento, só promove e reforça a violência já viven-
ciada pelas mulheres em outros âmbitos da vida social.
233
Violência Obstétrica em Debate
e 29 anos), negras (62%), com baixa escolaridade (50% sequer concluiu o en-
sino fundamental), solteiras (62%) e acusadas de tráfico de drogas: 62% estão
encarceradas por esse crime, que prende 26% dos homens segundo o relatório
publicado pelo Departamento Penitenciário Nacional em maio de 2018, refe-
rente a dados coletados até junho de 2016499.
Tal como no mercado formal de trabalho, também os chefes do tráfico de
drogas destinam às mulheres as posições mais subalternas e menos remunera-
das, principalmente no transporte e revenda das substâncias, não possuindo
grande participação no mercado de drogas. São raras as que chegam a ocupar
postos mais altos nessa hierarquia, de modo que a maioria está em posição
mais vulnerável à repressão policial e portanto mais suscetível ao encarce-
ramento. Nessa seara, a feminização da pobreza e a seletividade do sistema
penal mostram seus efeitos mais perversos, como inferido por Zaccone:
Isso explica, por exemplo, o aumento do número de mulheres e crian-
ças envolvidas com o narcotráfico. Para ser “sacoleiro” de drogas não
é preciso portar nenhuma arma e sequer integrar alguma dita organi-
zação criminosa. Basta ter crédito junto aos fornecedores. Autônomo
no comércio ilegal, o “estica” é presa fácil, uma vez que não apresenta
nenhuma resistência às ordens de prisão e passa a participar do negó-
cio ilegal oferecendo a sua própria liberdade como caução. Desprovido
do capital necessário para fazer parte como acionista do negócio ilícito,
o “estica” se transforma em revendedor comissionado no comércio de
drogas, oferecendo o único bem de valor que lhe resta, qual seja, sua
própria liberdade de ir e vir. 500
234
Violência Obstétrica em Debate
no mesmo espaço de tempo, foi de 293%, dados que não nos orgulham501. O
grande aumento do número de mulheres presas, principalmente devido às
suas atividades no comércio de substâncias ilícitas, é uma realidade que preci-
samos compreender e enfrentar.
A intensificação do encarceramento feminino traz à tona diversas ques-
tões, relativas à posição que as mulheres ainda ocupam no seio de suas famílias.
Ressalvada a baixa representatividade da amostra coletada, o último relatório
apontou que, dentre as mulheres presas, 74% são mães, enquanto apenas 47%
dos homens presos têm filhos. Ainda segundo esse relatório, atualmente há 536
gestantes e 350 lactantes presas no país. Das gestantes, 50% estão em unidades
que não possuem cela adequada à sua condição, e apenas 14% das unidades fe-
mininas ou mistas têm berçário ou centro de referência materno-infantil, para
que as mulheres permaneçam com os seus bebês logo após o nascimento.
Diante desses números, podemos perceber que o sistema penitenciário
permanece construído por homens, para homens, e apenas (mal) adaptado
para mulheres. Não há uma perspectiva de gênero, o que torna a privação de
liberdade ainda mais cruel para as mulheres, que em muitos casos recorrem
ao tráfico justamente para garantir a sua subsistência e a de seus filhos, que
sem dúvida são os maiores afetados pelo encarceramento de suas mães.
Ainda assim, um número surpreendente de mulheres é presa antes mesmo
do julgamento: de acordo com o Infopen Mulher 2016, 45% das encarceradas
não possuem condenação, sendo impedidas de aguardar o resultado do pro-
cesso em liberdade, o que deveria ser a regra, e não a exceção, se o princípio da
presunção de inocência, previsto em nossa Constituição Federal, fosse devida-
mente observado. Além disso, embora exista previsão expressa de substituição
da prisão preventiva por prisão domiciliar no artigo 318 do Código de Processo
Penal502, para grávidas, lactantes ou mulheres com filhos delas dependentes, o
que se observa, rotineiramente, são essas mulheres sendo compelidas a perma-
235
Violência Obstétrica em Debate
necer presas por todo o processo, pelo qual, ao final – meses ou anos depois –,
podem ser absolvidas ou condenadas a uma pena não privativa de liberdade.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus coletivo
nº 143641/SP503, determinou, com validade para todo o território nacional,
que seja substituída a prisão preventiva por domiciliar caso as mulheres sejam
gestantes ou mães de crianças de até 12 anos, ou de pessoas com deficiência.
Ocorre que esta louvável decisão não parece estar sendo cumprida, segundo
alerta da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef)504.
Desse modo, podemos perceber que o sistema de justiça criminal não
atinge a todas as mulheres de forma equânime, ele é seletivo, direcionado
principalmente às mulheres jovens, negras, com baixa escolaridade, mães,
presas principalmente por crimes relacionados ao tráfico de drogas, em que
ocupam posições de menor prestígio e maior vulnerabilidade. O número de
mulheres encarceradas está aumentando em ritmo alarmante, e não vem sen-
do acompanhado de políticas públicas que atendam às necessidades dessas
mulheres, com todas as suas peculiaridades, no sistema prisional. Essa ques-
tão é particularmente crítica quando tratamos das mulheres que vivenciam
a maternidade na prisão, que convivem com a condição de gravidez, parto e
puerpério em um ambiente absolutamente inadequado às demandas físicas e
psicológicas desse momento, e que é muitas vezes hostil e degradante.
503 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 143641/SP. Impetrante: Defensoria Pública da
União. Coatores: juízes e juízas das Varas Criminais estaduais, Tribunais dos estados e do Distrito
Federal e territórios, juízes e juízas federais com competência criminal, Tribunais Regionais
Federais e Superior Tribunal de Justiça. Relator Ministro Ricardo Lewandowski. Decisão proferida
em 20 de fevereiro de 2018.
504 “Defensores Públicos pedem cumprimento de medida que beneficia grávidas e mães presidiárias”.
Anadef alerta que decisão do STF vem sendo descumprida em vários estados do País. Disponível em:
http://www.aguaboanews.com.br/noticias/exibir.asp?id=13612¬icia=defensores_publicos_pedem_
cumprimento_de_medida_que_beneficia_gravidas_e_maes_presidiarias. Acesso em 02/05/2018.
236
Violência Obstétrica em Debate
505 BOITEUX, Luciana, FERNANDES, Maíra, PANCIERI, Aline e CHERNICARO, Luciana. Mulheres
e Crianças Encarceradas: Um Estudo Jurídico-Social sobre a Experiência da Maternidade no Sistema
Prisional do Rio De Janeiro. LADIH, UFRJ. Disponível em: http://fileserver.idpc.net/library/M--es-
encarceradas-UFRJ.pdf. Acesso em 02.05.2018.
237
Violência Obstétrica em Debate
em que a prisão afeta não apenas as mulheres em si, mas de forma despropor-
cional e inaceitável, seus filhos, quer estejam no seu ventre, quer sejam seus de-
pendentes. Impedir que a mulher viva sua gestação em um ambiente digno,
e sequestra-la da convivência com seus filhos desnecessariamente, ainda que
existam leis e, mais recentemente, jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
em sentido oposto, é não apenas contrário ao direito, é perverso.
Importa notar que a maioria delas declarou possuir dois filhos (31,7%),
ou três filhos (26,8%) e afirmou que não teve a oportunidade de entrar em
contato com a sua família no momento da prisão. Essa situação importa na
violação à Constituição Federal (artigo 5º, incisos LXII e LXIII506) e, não bas-
tasse, à normas internacionais firmadas pelo Brasil. A segunda recomendação
das Regras de Bangkok determina que o procedimento de ingresso de mulhe-
res no cárcere deve receber especial atenção, considerando a vulnerabilidade
delas nesse momento, e que as mulheres responsáveis pela guarda de crianças
devem ter a oportunidade de tomar as providências necessárias em relação a
elas, inclusive prevendo a suspensão da medida privativa de liberdade por um
período razoável, considerando o melhor interesse das crianças.507
Esta previsão já foi incorporada ao direito brasileiro por meio do Marco
Legal da Primeira Infância (Lei 13.257/16), que alterou o Código de Processo
Penal, incluindo disposições que determinam que a autoridade policial inda-
gue à pessoa presa sobre a existência de filhos, respectivas idades e se possuem
alguma deficiência, bem como o nome e o contato de eventual responsável
pelos cuidados deles. Tais informações devem ser colhidas pela polícia, seja no
momento em que tiver conhecimento da prática da infração penal, conforme
o inciso X do artigo 6º; no interrogatório, de acordo com o artigo 185, § 10; e
também na lavratura do auto de prisão em flagrante, segundo o art. 304, § 4o
todos do referido diploma legal. Em que pese a previsão legal, contudo, essa
medida não vem sendo utilizada para assegurar o bem estar da criança quan-
506 Constituição Federal, Artigo 5º, LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão
comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada;
LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe
assegurada a assistência da família e de advogado.
507 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Regras de Bangkok: Regras das Nações Unidas para
o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras.
Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/03/27fa43cd9998bf5b43aa2cb3e
0f53c44.pdf. Acesso em 02.05.2018.
238
Violência Obstétrica em Debate
508 BRAMAN, Donald. Families and incarceration. In: Mauer, Marc; Chesney-Lind, Meda. Invisible
punishment: the collateral consequences of mass imprisonment. New York: The New Press, 2002. p. 127.
239
Violência Obstétrica em Debate
509 VARELLA, Drauzio. Prisioneiras. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 45.
240
Violência Obstétrica em Debate
510 MATTAR, Laura Davis; DINIZ, Carmen Simone Grilo. Hierarquias reprodutivas: maternidade e
desigualdades no exercício de direitos humanos pelas mulheres. Interface - Comunic., Saude, Educ.,
v.16, n.40, p.107-19, jan./mar. 2012. p. 115
511 Confira-se: ALVES, José Eustáquio Diniz - Demografia, democracia e direitos humanos. Rio de Janeiro
: Escola Nacional de Ciências Estatísticas, 2005 e ÁVILA, Maria Betânia. Modernidade e cidadania
reprodutiva, em Revista Estudos Feministas da UFSC, volume 1, número 2, Florianópolis, 1993.
Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16070>. Acesso em 22/05/2018.
512 Sérgio Cabral, quando ainda era governador do Estado do Rio de Janeiro, declarou: “Tem tudo a ver
com violência. Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e
Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica
de produzir marginal”. Confira-se em: http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-
5601,00-CABRAL+DEFENDE+ABORTO+CONTRA+VIOLENCIA+NO+RIO+DE+JANEIRO.
html. Acesso em 26/05/2018.
513 MATTAR, Laura Davis; DINIZ, Carmen Simone Grilo. Op.cit., p. 115
241
Violência Obstétrica em Debate
pre uma gravidez de risco. Não há estrutura mínima de saúde para as grávidas
no sistema, elas não recebem um adequado acompanhamento médico no pré-
-natal, o que faz com que existam casos de nascimento dos bebês com sequelas
de sífilis, por exemplo, que poderiam ter sido evitadas com diagnóstico e tra-
tamento precoce. As frequentes demoras no atendimento, por outro lado, po-
dem ser fatais tanto para as mulheres quanto para os bebês, visto que o parto
nessas circunstâncias é sempre arriscado, devido às condições insalubres do
local e às condições de vida das gestantes nesse espaço. E ainda, as mulheres
presas são culpabilizadas por trazer seus filhos ao mundo nessas péssimas
condições, por agentes penitenciários recrudescidos pela rotineira violência
nos presídios. Como é possível não se sensibilizar e ignorar os lamentos de
uma mulher em trabalho de parto?
Embora pareça impensável, foi o que ocorreu com Bárbara Oliveira de
Souza no Rio de Janeiro, no dia 11 de outubro de 2015. Enfurnada em uma
cela de isolamento aos nove meses de gravidez, começou a clamar por ajuda
ao entrar em trabalho de parto. Diante dos ouvidos moucos das agentes peni-
tenciárias, deu à luz sozinha na escuridão da cela. Acudida tardiamente pelas
funcionárias do Estado, Bárbara foi encaminhada ao hospital com sua filha
ainda presa pelo cordão umbilical. 514
Casos como este, de indiscutível desumanidade, não são isolados, ape-
nas não alcançam a grande imprensa e parecem normalizados pelo sistema
penitenciário. São frequentes os partos nas celas ou nas viaturas – estas só
chegam após uma súplica generalizada. Nos hospitais, as presas, em geral, dão
à luz ou amamentam algemadas – verdadeira tortura psicológica imposta por
agentes e acatada por profissionais de saúde, evidenciando que a pena imposta
às mulheres é muito superior à privação de liberdade, envolvendo todo tipo de
desconforto e humilhação possível.
Os relatos obtidos no curso da pesquisa acima referida515 ilustram o tipo
de violação e desrespeito aos direitos das mulheres que as gestantes enfren-
514 http://www.ebc.com.br/noticias/2015/10/presa-gravida-da-luz-em-solitaria-de-presidio-no-rio
Acesso em 18/05/2018
515 BOITEUX, Luciana, FERNANDES, Maíra, PANCIERI, Aline e CHERNICARO, Luciana. Mulheres
e Crianças Encarceradas: Um Estudo Jurídico-Social sobre a Experiência da Maternidade no Sistema
Prisional do Rio De Janeiro. LADIH, UFRJ. Disponível em: http://fileserver.idpc.net/library/M--es-
encarceradas-UFRJ.pdf. Acesso em 02/05/2018.
242
Violência Obstétrica em Debate
tam antes, durante e após o parto. As principais denúncias dizem respeito aos
agentes do Serviço de Operações Especiais (SOE) responsáveis pela escolta
na movimentação das presas ao hospital. Elas relatam o descaso com suas
demandas, a demora injustificada no atendimento, e o constrangimento pro-
posital que os agentes, homens, se esforçam para incutir nas presas, impondo
sua presença durante procedimentos médicos íntimos, o que em nosso enten-
dimento configura uma forma de assédio sexual, como exposto a seguir:
“Comecei a sentir dor desde a madrugada. Quando foi pela manhã eu
pedi para chamar a SOE porque eu ia ganhar o neném. Aí a guarda
pediu para eu aguardar um pouco porque ia ter a troca de plantão e às
9h iam me buscar. Nisso, me chamaram para eu ir ao ambulatório, pois
achavam que eu não tava sentindo tanta dor para o meu filho nascer.
Falaram que iam fazer o pedido da emergência novamente, e já eram
dez e pouco. Aí me mandaram para a cela de novo, quando foi 14:50
minha bolsa estourou e eu estava na cela. Só nessa hora que chamaram
o SOE e o SOE chegou eram 15h, 15:15 eu estava dentro do carro e ela
nasceu. A SOE disse: “Não fica fazendo força não que você vai arrumar
ideia”. Mas eu continuei fazendo porque vi que ia nascer. Quando o
SOE viu a cabecinha da minha filha ela segurou pra mim, mas eu tive a
minha filha praticamente sozinha.”
“O SOE dizia que o que a gente tinha na barriga era cachaça ou lom-
briga. Dizia que grávida só toma na cara. No dia que fui tomar toque,
o SOE que era homem ficou lá dentro da sala junto comigo olhando”.
243
Violência Obstétrica em Debate
244
Violência Obstétrica em Debate
ção da mulher, seja pelo isolamento que provoca, seja pela tutela mais rígida de seu
comportamento em toda e qualquer atividade.
E então, geralmente ao final do prazo mínimo de 6 meses previsto na Lei de
Execuções Penais, a criança é abruptamente retirada da mãe, com um rompimen-
to do vínculo sem uma devida fase de adaptação517, e uma transição imediata da
hipermaternidade para a hipomaternidade, processo descrito por Braga e Angotti:
Chamamos de hipo (diminuição) e não de nula maternidade a vivência
da ruptura, pois as marcas da maternagem interrompida, da ausência
advinda da presença de antes, seguem no corpo e na mente da presa.
Os inúmeros relatos de remédios para secar o leite, de “febre emocio-
nal”, de “desespero” ao ouvir o choro de outras crianças, evidenciam
que a maternidade segue no corpo. As expectativas e o medo da se-
paração definitiva, advindos das falas daquelas que ainda não haviam
experimentado o momento, mas o temiam ainda na gestação.518
517 Aos seis meses o bebê ainda é profundamente dependente da mãe e afastar esse vínculo, de modo
súbito, afeta não só sua saúde física, mas também a psicológica, com efeitos danosos para ambos
(mãe e filho). A recomendação da Organização Mundial de Saúde é a de amamentação exclusiva por
seis meses e complementar até dois anos. Drauzio Varella menciona a experiência da Penitenciária
feminina de São Paulo e considera que “A retirada do bebê do colo da mãe ainda com leite nos seios
é uma experiência especialmente dolorosa”. VARELLA, Drauzio. Op. Cit., p. 46.
518 Ibidem p. 236
245
Violência Obstétrica em Debate
246
Violência Obstétrica em Debate
247
A responsabilidade penal nas
hipóteses de violência obstétrica
Introdução
A violência obstétrica é um tema que tem ganhado projeção nos últi-
mos tempos, especialmente pelos esforços de militância de mulheres, com o
objetivo de tornar público uma série de atos praticados por equipes de saúde
antes, durante e logo após o parto. Tais atos são compreendidos pelo senso
comum como normais desse momento, sustentando um ar de inexorabilidade
para as mais variadas formas de violência que as mulheres recentemente têm
narrado em suas experiências de parto. É ainda comum que mulheres sejam
humilhadas com xingamentos, ou ainda com julgamentos morais por parte
de médicos e auxiliares de saúde nesses momentos durante o parto. Além dis-
so, também é frequente a violação à integridade física da mulher, com proce-
dimentos que não são acordados entre a gestante e os médicos, muitas vezes
afetando permanentemente a saúde da mulher.
O presente artigo tem o objetivo de estabelecer uma definição para vio-
lência obstétrica, que considere as diretrizes internacionais de conceituação e
enfrentamento dessa forma de violência e articular essas diretrizes com tipos
penais do ordenamento jurídico brasileiro. Nesses termos, será possível per-
ceber que boa parte das condutas relacionadas pela Organização Mundial de
Saúde como formas de violência obstétrica já estão tipificadas pela legislação
penal brasileira. Nesse processo, além das diretrizes internacionais, será tam-
bém utilizado o relatório final da Comissão de Inquérito Parlamentar da Mu-
lher, que traz a consagração de diferentes espécies de condutas como formas
de violência de gênero, bem como apresentada uma proposta de legislação
específica para tratar do tema, apresentada pelo deputado federal Jean Willys.
249
Violência Obstétrica em Debate
250
Violência Obstétrica em Debate
251
Violência Obstétrica em Debate
252
Violência Obstétrica em Debate
524 Em relação às ofensas, cabe ressaltar que a autora Judith Butler já demonstrou como os corpos
minoritários são afetados e constituídos por elas. Neste sentido, não se pode ignorar as ofensas
dirigidas às gestantes e parturientes em razão de sua condição, como forma de violência. Sobre o tema
das ofensas na obra da autora: BULTER, Judith. Excitable speech: a politics of the performative. 1999.
253
Violência Obstétrica em Debate
525 Relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da violência contra a mulher,
2013, p. 63.
254
Violência Obstétrica em Debate
Nesse sentido, a CPMI identifica que as ações adotadas pelo Ministério da Saú-
de têm sido insuficiente, sugerindo sua intensificação frente aos estados para preve-
nir e punir a violência obstétrica e a tomada das seguintes medidas, dentre outras:
1. Que o Ligue 180, da Secretaria de Políticas para as Mulheres receba
denúncias de violência no parto e capacite as atendentes para isso;
2. Alteração na Lei 11.108/2005 para incluir punição em caso de des-
cumprimento;
3. Alteração da Lei 8.080/1990 garantir expressamente no texto legal
o direito a acompanhante no parte nos serviços de saúde públicos e
privados e inclusão de punição em caso de descumprimento.
4. Capacitação dos profissionais de saúde para o abortamento humani-
zado em conformidade com a Norma Técnica do Ministério da Saúde;
5. Desenvolvimento de campanhas para que as mulheres possam co-
nhecer seus direitos e não aceitarem procedimentos que firam o direito
a um procedimento médico adequado e não invasivo.526
526 Relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da violência contra a mulher,
2013, p. 63.
527 Dossiê Parirás com Dor. Parto do Princípio, p. 60-61.
255
Violência Obstétrica em Debate
Partindo dessa noção ampla, será possível perceber que boa parte das
condutas relacionadas pela Organização Mundial da Saúde e pelo Relatório
Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre a Violência Contra
as Mulheres como formas de violência obstétrica se inserem na proteção ofe-
recida por meio da Lei Maria da Penha, na exata medida em que se expressam
como violência moral, psicológica, sexual e física. Mais do que isso, tais atos
se encontram previstos na legislação penal brasileira em diferentes crimes es-
palhados pelo Código Penal.
Antes de se alcançar essa etapa, no entanto, cabe uma análise quanto a
alguns dos elementos constitutivos desses delitos objetivando sistematizar os
256
Violência Obstétrica em Debate
pressupostos comuns. No que concerne aos sujeitos dos delitos, temos que o
sujeito ativo do crime será em regra o profissional de saúde, podendo ser o mé-
dico, enfermeiro, técnico em enfermagem, bem como aquele que de alguma
maneira intervenha no processo do parto. É certo, ainda, que a responsabili-
dade penal será sempre determinada de acordo com o grau de culpabilidade
do agente. O sujeito passivo será a parturiente (mulher gestante ou aquela que
acaba de ter o bebê) e/ou o bebê.
Quanto ao tipo objetivo, cumpre ressaltar que a responsabilidade penal
nesses casos poderá ocorrer em virtude de uma ação ou mesmo de uma omis-
são. Nesse último caso deve-se ter especial atenção ao fato de que os profissio-
nais de saúde, muitas vezes, se encontrarão na posição de agentes garantidores,
nos termos do artigo 13, § 2º, inciso I, do Código Penal, devendo responder pelo
que se chama de omissão imprópria. Nesse caso, o sujeito tem o dever jurídico
de evitar o resultado em virtude da posição que ocupa, sendo responsabilizado
pelo crime comissivo, na forma omissiva. Além disso, o tipo subjetivo compor-
-se-á pelo dolo e, para os crimes que assim a admitirem, pela culpa.
Isto posto, o tratamento das condutas e a adequação aos tipos penais
serão divididos por categorias de violência – física, psicológica, moral e sexual
– para melhor percepção de seu enquadramento.
No que concerne à violência física é possível identificar que muitos dos
procedimentos entendidos como expressão de violência obstétrica represen-
tam a prática dos crimes de homicídio ou de lesão corporal, dependendo das
circunstâncias específicas do caso concreto.
As condutas de (1) agendar cesárea sem necessidade, (2) induzir a mu-
lher a aceitar uma cirurgia cesariana sem que seja necessária, mentindo sobre
riscos imaginários, hipotéticos e não comprovados, (3) forçar o parto normal,
mesmo contra indicação clínica, (4) recusar o fornecimento de analgesia como
forma de promover dor ou sofrimento, (5) realizar episiotomia desnecessária,
(6) induzir soro com ocitocina para acelerar o trabalho de parto por conveni-
ência médica e (7) submeter a mulher a procedimentos predominantemente
invasivos, dolorosos, desnecessários ou humilhantes, ofendem a integridade
física das mulheres, de modo que se inserem nas condutas descritas no artigo
129 do Código Penal, configurando o crime de lesão corporal.
Importa observar que nesses casos exemplificativos é a desnecessidade
do ato ou a ausência de consentimento e informação à gestante que irá im-
257
Violência Obstétrica em Debate
528 De acordo com o Dossiê Parirás com Dor. Parto do Princípio, 15% das mulheres que relataram ter
sofrido violência obstétrica ouviram “não chora que ano que vem você está aqui de novo”; 14%, “na
hora de fazer não chorou, não chamou a mamãe”; e 5%, “se ficar gritando vai fazer mal pro neném,
ele vai nascer surdo”. Vide p. 60-61 do Dossiê.
258
Violência Obstétrica em Debate
Outras menções, como por exemplo, “se gritar eu paro e não vou te atender”529,
irão configurar o crime de ameaça do artigo 147 do mesmo diploma legal.
Por outro lado, caso o profissional de saúde proíba ou dificulte que a mu-
lher se comunique com pessoas externas ao serviço de saúde, privando-lhe da
liberdade de telefonar ou receber telefonemas, caminhar, conversar com fami-
liares, amigos e acompanhantes, e receber visitas em quaisquer horários e dias,
estar-se-á diante da hipótese de prática do crime previsto no artigo 148 do Có-
digo Penal, em razão da privação da liberdade por meio do cárcere privado.
Por fim, outro caso que merece atenção diz respeito às mulheres grávidas
ou parturientes que cumprem pena privativa de liberdade. Diante de situações
em que sejam algemadas durante o parto ou no puerpério, notoriamente se
identifica a prática do crime de constrangimento ilegal (artigo 146 do Código
Penal), uma vez que tal violência não encontra amparo legal.
Essa análise demonstra que a legislação brasileira não se encontra ausen-
te de resposta de caráter penal ao problema da violência obstétrica. Ao contrá-
rio, as variadas manifestações de violência no parto correspondem a crimes
já tipificados. Ainda assim, a maior dificuldade está em se compreender a real
violação perpetrada por tais condutas, muitas vezes naturalizadas como ine-
rentes ao momento do parto.
Nesse sentido, o debate sobre o assunto precisa se desenvolver para que a
resposta estatal também se mostre mais presente. Embora haja um paradigma
internacional de conceituação da violência obstétrica, o estabelecimento de
um conceito interno pode se mostrar importante para a disseminação e tra-
tamento mais adequado do tema. Além disso, o recurso ao direito penal nesse
sentido é uma importante forma de proteção aos direitos humanos.
Considerações finais
O nascimento de um filho é um momento determinante na vida da
mulher, por essa razão a experiência desse momento pode ser traumática na
medida em que tem crescido o relato de agressões e humilhações por parte
529 De acordo com o Dossiê Parirás com Dor. Parto do Princípio, 5% das mulheres que relataram ter
sofrido violência obstétrica na pesquisa realizada ouviram essa frase do médico que realizou seus
partos. Vide p. 60-61 Dossiê.
259
Violência Obstétrica em Debate
260
O Plano de parto como instrumento
de autonomia, privacidade e garantia
da proteção ao indivíduo face aos
casos de violência obstétrica.
Introdução
A dignidade da pessoa humana, importante princípio que foi destacado
pelo constituinte de 1988 como um dos fundamentos da República, visa ga-
rantir que a pessoa seja protegida de forma integral em todas as suas relações,
e isso significa dizer que os seus direitos existenciais não podem ser negli-
genciados. Apesar de sua amplitude, o princípio que salvaguarda a dignidade
pode ser observado através da garantia de determinados subprincípios, tais
como a liberdade, a integridade psicofísica, a solidariedade e, também, a pri-
vacidade que será analisada de forma especial no presente trabalho.
Como desdobramento da dignidade, a concepção de privacidade foi se
transformando ao longo do tempo e, o que antes era relacionada ao conceito
de propriedade, hoje permite interligar o direito à privacidade a um ambiente
livre, sadio, para o desenvolvimento e exercício da autonomia e personalidade.
No âmbito da assistência ao parto, as violações à dignidade e seus subprincípios
podem ser notadas especialmente nos casos em que a mulher gestante é negli-
genciada na sua vontade e, muitas vezes, vítima de violência física e psicológica
no momento do parto. Nesses casos, além de não lhe ser garantido o protagonis-
mo do momento do nascimento de seus filhos, ainda é possível vislumbrar casos
em que o seu direito à privacidade, em meio a tantos outros, é violado, tanto na
concepção da ausência de um espaço físico privado e adequado para o parto,
quanto na ausência de escuta da mãe, seus medos anseios e desejos.
Deste modo, a fim de verificar os instrumentos para garantir que o direito
à privacidade da gestante seja observado, além dos demais direitos existenciais, é
preciso analisar a possibilidade de elaboração de um plano de parto, documento
261
Violência Obstétrica em Debate
530 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios
e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição.
262
Violência Obstétrica em Debate
531 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos
danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 82.
532 SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. Revista
de Direito Administrativo, vol. 212, p. 90, 1998.
263
Violência Obstétrica em Debate
533 BODIN DE MORAES, Maria Celina. O princípio da dignidade da pessoa humana. In: Na medida
da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 85.
534 BODIN DE MORAES, Maria Celina. O princípio da dignidade da pessoa humana. In: Na medida
da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 88.
535 BODIN DE MORAES, Maria Celina. O princípio da dignidade da pessoa humana. In: Na medida
da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 96.
264
Violência Obstétrica em Debate
536 SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson. Uma agenda para o direito civil-constitucional.
Revista Brasileira de Direito Civil. vol. 10, n. 04, p. 16, out./dez. 2016. Disponível em: <https://
rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/42> Acesso em: 15 fev. 2018.
537 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. 3ª ed. Rio
de Janeiro: Renovar, p. 33
265
Violência Obstétrica em Debate
266
Violência Obstétrica em Debate
concedido ou retirado, mas que faz parte da característica humana e não tem pre-
ço, estando presente em todo e qualquer ser humano, independentemente, inclu-
sive, de razão, uma vez que “a singularidade da natureza humana é uma combi-
nação de características e traços inerentes que incluem inteligência, sensibilidade
e capacidade de se comunicar”. Apesar desse valor intrínseco aos seres humanos
que os diferencia das demais espécies não lhes dá o poder de agir com “arrogância
e indiferença em relação à natureza em geral, incluindo os animais irracionais,
que possuem sua própria espécie de dignidade.”541
A partir do valor intrínseco é possível encontrar uma série de direitos ine-
rentes à pessoa humana: em primeiro lugar, o direito à vida “uma pré-condição
básica para que o desfrute de qualquer outro direito”, o direito à igualdade que
proíbe a discriminação em relação à “raça, cor, etnia ou nacionalidade, sexo, ida-
de ou capacidade mental e no respeito pela diversidade cultural, linguística ou
religiosa”. O direito à integridade física e psíquica também é abrangido pelo valor
intrínseco à pessoa humana como, a título de exemplo, a proibição de torturas. O
autor chama a atenção para o fato de que em muitos países de tradição do civil law
na Europa, o direito à integridade psíquica abrange o direito à honra, à imagem e
a privacidade, principais temas do debate deste trabalho. 542
Como segundo elemento do conceito de dignidade humana, a autono-
mia é vista como o elemento ético pois “é o fundamento do livre arbítrio dos
indivíduos, que lhes permite buscar a sua própria maneira, o ideal de viver
bem e de ter uma vida boa.”. A autonomia é a autodeterminação que cada
pessoa tem de reger a sua vida segundo seus próprios valores e desejos. A au-
tonomia compreende os conceitos de razão para tomar decisões informadas,
independência como “ausência de coerção, de manipulação e de privações
existenciais” e escolha diante da “existência real de alternativas”543.
A autonomia de que fala o autor no seu conceito de dignidade humana
é a autonomia existencial onde o indivíduo tem o direito de fazer escolhas de
541 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional contemporâneo.
Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 77.
542 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional contemporâneo.
Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 78.
543 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional contemporâneo.
Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 82.
267
Violência Obstétrica em Debate
544 “Historicizar um instituto, dar-lhe uma abordagem histórica, não é traçar um longo histórico in
abstrato, que lhe reconheça uma continuidade evolutiva ao longo dos séculos, imune e apartado do
restante da experiência social. Trata-se, ao contrário, de inseri-lo no grande fluxo da história, de
maneira a compreender toda a rica complexidade social na qual ele desempenha – ou desempenhou –
sua função. Impõe compreender os interesses sociais envolvidos no seu significado prático, as forças
econômicas que desencadearam sua existências, os anseios culturais que movem sua aplicação,
a influencia das peculiaridades educacionais e religiosas próprias daquela comunidade na sua
interpretação, enfim, compreender como todo instituto jurídico, em um dado momento, representa
um delicado e transitório equilíbrio entre forças sociais de conservação e de transformação. Trata-
se, afinal de contas, de descer o pensamento jurídico de seu pedestal de abstração, reconhecendo
o direito como uma experiência social não autônoma. KONDER, Carlos Nelson. Apontamentos
iniciais sobre a contingencialidade dos institutos de direito civil. In: MONTEIRO FILHO, Carlos
Edison do Rêgo; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz Costa; MEIRELES, Rose Melo Vencelau.
(Org.). Direito Civil. Vol. 2. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015, p. 34.
545 Nas palavras de Pietro Perlingieri: “Não existem instrumentos válidos em todos os tempos e em
todos os lugares: os instrumentos devem ser construídos pelos juristas levando-se em conta a
268
Violência Obstétrica em Debate
realidade que ele deve estudar. (...) O conhecimento jurídico é uma ciência jurídica relativa: precisa-
se levar em conta que os conceitos e os instrumentos caracterizam-se pela sua relatividade e por sua
historicidade. É grave erro pensar que, para todas as épocas e para todos os tempos haverá sempre os
mesmos instrumentos jurídicos. É justamente o oposto: cada lugar, em cada época terá seus próprios
mecanismos. ”PERLINGIERI, Pietro apud KONDER, Carlos Nelson. Apontamentos iniciais sobre
a contingencialidade dos institutos de direito civil. In: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo;
GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz Costa; MEIRELES, Rose Melo Vencelau. (Org.). Direito Civil.
Vol. 2. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015, p. 31.
546 “Segundo o professor Milton Fernandes, não se sabe ao certo qual teria sido a primeira vez que a
proteção da vida privada foi acolhida. Comumente se aponta o julgamento do tribunal Civil de
Sena, em 16 de junho de 1858, referente à divulgação do retrato de uma famosa atriz no seu leito
mortuário. Outro caso de celebridade se deu com a morte de Balzac. Com o ocorrido, Alexandre
Dumas tomou a iniciativa de uma subscrição para ergue-se um monumento do falecido. Como a
viúva se opôs, seguiu-se processo em que o Tribunal de Sena, em 1854, julgou se a família poderia
reivindicar o direito de construir um tumulo, isto é, agir na esfera privada.” AIETA, Vânia Siciliano.
A garantia da intimidade como direito fundamental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 80.
547 BARBOSA, Fernanda Nunes. Biografias e liberdade de expressão: Critérios para a publicação de
histórias de vida. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2016, p. 172.
548 “Antes do artigo de Warren e Bradeis, vamos encontrar na obra do juiz Thomas Cooley, publicada
em 1880, sob o título ‘A Treatise on the Law of Torts’, a primeira utilização da expressão ‘right to
bel et alone’. Apesar de ter cunhado a expressão, Cooley não a relacionou com a noção de privacy,
mencionando-a em seu trabalho sobre responsabilidade civil (torts) como parte do seguinte trecho:
‘The right to one’s person may be said to be a right of complete immunity: to bel et alone’” ZANINI,
Leonardo Estevam de Assis. O surgimento e o desenvolvimento do right of privacy nos Estados
Unidos. Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 03, p. 09, jan./mar. 2015. Disponível em: <https://
www.ibdcivil.org.br/image/data/revista/volume3/ibdcivil_volume_3_leonardo-estevam-de-assis-
zanini_pag9-28.pdf>. Acesso em: 15 jan. 2018.
549 WARREN, Samuel; BRANDEIS, Louis. The right to privacy. Harvard Law Review, vol. IV, n. 5, dez. 1890.
Disponível em: <http://faculty.uml.edu/sgallagher/Brandeisprivacy.htm>. Acesso em: 13 jan. 2018.
269
Violência Obstétrica em Debate
profunda ofensa, que lesionaria o senso da própria pessoa sobre sua indepen-
dência, individualidade, dignidade e honra.” 550
Warren e Bandreis afirmaram que, no sistema da common law, era an-
tiga a ideia de que o indivíduo deve ser protegido de forma integral, tanto
pessoal, quanto em relação à suas propriedades. No entanto, esses conceitos
devem ser atualizados de tempos em tempos para que possam atingir novas
demandas que não eram questões no passado, o sistema da common law pre-
cisa crescer para acompanhar essas novas demandas que surgem através das
novas tecnologias e das mudanças políticas, sociais e econômicas.
O conceito de privacidade, portanto, foi se modificando e, de uma no-
ção inicial burguesa551 de que só tinha privacidade quem fosse proprietário,
pois poderia se isolar no interior de sua propriedade, passando pelo direito a
ser deixado em paz, ou o direito a ser deixado só, para a ideia de privacidade
como controle das suas próprias informações em uma sociedade atual onde o
volume de dados pessoais recolhidos é preocupante. O início do conceito de
privacidade foi elitista e individualista e essa forma de interpretação durou até
a década de 1960, quando, “como consequência dos movimentos sociais e das
reivindicações da classe trabalhadora” e com aumento no fluxo de informa-
ções, aumentou o número dos sujeitos atingidos pela ofensa à privacidade. As
informações que circulavam tinham importância e atingiam as formas mais
diversificadas de indivíduos, não mais restringindo esse acesso ao direito à
privacidade a uma elite proprietária. 552
Deste modo, é possível interligar o direito à privacidade ao exercício da
autonomia, onde o indivíduo é livre para exercer e desenvolver a sua persona-
lidade vivenciar as suas escolhas de vida em um ambiente livre de julgamen-
tos, é a dimensão decisional da privacidade, que “é o tipo de proteção que se
550 ZANINI, Leonardo Estevam de Assis. O surgimento e o desenvolvimento do right of privacy nos
Estados Unidos. Revista Brasileira de Direito Civil. Vol.03. jan-mar 2015, p. 22.
551 “À medida que as condições sociais e econômicas conduziam ao desenvolvimento dos núcleos
urbanos, crescia na burguesia emergente a expectativa de proteger a intimidade. Portanto, o direito
à intimidade se sedimentou como uma aspiração burguesa, transformando um privilégio de poucos
numa expectativa de muitos.” AIETA, Vânia Siciliano. A garantia da intimidade como direito
fundamental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 78.
552 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 12
270
Violência Obstétrica em Debate
553 PEIXOTO, Erick Lucena Campos; EHRHARDT JÚNIOR, Marcos. Breves notas sobre a
ressignificação da privacidade. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCilvil, Belo Horizonte, v.
16, p. 35-56, abr./jun. 2018.
271
Violência Obstétrica em Debate
554 ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar. O desafio do direito à autonomia: Uma experiência de Plano
de parto no SUS. 2016.109f. Dissertação (Mestrado em Ciências). Faculdade de Saúde Pública,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016, p. 32. Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/
disponiveis/6/6136/tde-07112016 141429/publico/HalanaFariaDeAguiarAndrezzo.pdf Acesso em
20 set 2018.
272
Violência Obstétrica em Debate
555 BELLEZIA, Marcela Luiza de Faria; BAGGIO, Manuela Estrela; KURIMOTO, Teresa Cristina
da Silva.. Percepções de mulheres relacionadas à gestação e parto que participaram de grupos de
gestantes para elaboração de plano de parto. REAS, Revista Eletrônica Acervo Saúde. vol. 10, n. 04, p.
1837, 2018. Disponível em: < https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/179356/001069084.
pdf?sequence=1&isAllowed=y> Acesso em: 20 set. 2018
556 BELLEZIA, Marcela Luiza de Faria; BAGGIO, Manuela Estrela; KURIMOTO, Teresa Cristina da
Silva.. Percepções de mulheres relacionadas à gestação e parto que participaram de grupos de gestantes
para elaboração de plano de parto. REAS, Revista Eletrônica Acervo Saúde. vol. 10, n. 04, p. 1840,
2018. Disponível em: < https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/179356/001069084.
pdf?sequence=1&isAllowed=y> Acesso em: 20 set. 2018
557 BELLEZIA, Marcela Luiza de Faria; BAGGIO, Manuela Estrela; KURIMOTO, Teresa Cristina da
Silva.. Percepções de mulheres relacionadas à gestação e parto que participaram de grupos de gestantes
para elaboração de plano de parto. REAS, Revista Eletrônica Acervo Saúde. vol. 10, n. 04, p. 1840,
2018. Disponível em: < https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/179356/001069084.
pdf?sequence=1&isAllowed=y> Acesso em: 20 set. 2018
273
Violência Obstétrica em Debate
qualificada que permitirá uma melhor visão e entendimento por parte dos
profissionais da saúde a respeito dos desejos das mulheres gestantes e, assim,
informa-las das possíveis situações durante o parto para que elas possam dar
um consentimento informado a respeito do que gostaria ou não que se apli-
casse em seu caso. Deste modo, “subsidiados, profissionais e população, po-
dem construir estratégias efetivas para a tomada de decisões em prática como
Plano de parto ou outras.”558
É possível observar com o estudo acima mencionado, que a atenção dis-
ponibilizada às gestantes é também uma forma de garantir o seu direito à
autonomia, uma vez que a liberdade de escolha só é plena quando exercida
de forma informada, e as gestantes necessitam que a equipe médica dispense
essa atenção a elas com as informações necessárias para a tomada de deci-
são. O acolhimento é o primeiro passo para o fortalecimento da mulher para
que ela busque conhecer e se informar dos seus direitos e das possibilidades
relacionadas à sua gestação. Acolher, informar, garantir o exercício da auto-
nomia e reservar um ambiente adequado para o parto são práticas positivas
que evitam a surpresa no momento do nascimento e possíveis violências que
poderiam ser destinadas à parturiente.
Considerações finais
A proteção integral da pessoa humana, presente no ordenamento jurí-
dico brasileiro através da previsão constitucional do Princípio da Dignidade
da Pessoa Humana, permite que aos indivíduos seja garantida a observância
de seus direitos existenciais, tais como o direito à privacidade, à intimidade,
à integridade psicofísica, dentre muitos outros. Proteger a pessoa humana é
garantir que seus direitos sejam observados em diferentes situações.
Ao considerar o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana como um
fundamento da República, o constituinte de 1988 colocou a pessoa humana
no centro do ordenamento jurídico, a fim de garantir que tais direitos sejam
558 BELLEZIA, Marcela Luiza de Faria; BAGGIO, Manuela Estrela; KURIMOTO, Teresa Cristina da
Silva.. Percepções de mulheres relacionadas à gestação e parto que participaram de grupos de gestantes
para elaboração de plano de parto. REAS, Revista Eletrônica Acervo Saúde. vol. 10, n. 04, p. 1842,
2018. Disponível em: < https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/179356/001069084.
pdf?sequence=1&isAllowed=y> Acesso em: 20 set. 2018
274
Violência Obstétrica em Debate
275
Violência Obstétrica em Debate
sobre a gestação e o parto, ferindo, desta forma, o seu direito fundamental à pri-
vacidade Deste modo, informar sobre a existência do documento, a possibilida-
de de elaboração, os procedimentos cirúrgicos, os riscos, a escolha do ambiente
e o total acesso à mulher a respeito das informações relacionadas à sua gestação
e parto é também prevenir que a violência obstétrica ocorra, além de permitir
que a mulher, de fato, seja protagonista deste momento tão único de sua vida.
276
A violência obstétrica e seu
impacto sobre o bebê
Laura Uplinger
Nascer nos traz uma abrupta e definitiva mudança, que serve de mode-
lo para futuras mudanças, como por exemplo, mudar de bairro ou de cidade,
de escola ou de profissão, empreender um novo projeto, casar... Mudanças im-
portantes, que exigem muito do nosso psiquismo buscam “orientação” junto à
possante memória da nossa chegada ao mundo, fielmente registrada no nosso
subconsciente. Uma mulher pode dar à luz vários filhos, mas cada filho só nasce
uma vez e vários aspectos do seu nascimento ecoam nele para o resto da vida.
Parir com privacidade, livre de seus movimentos, em um ambiente silen-
cioso, no aconchego de uma luz bem tênue, sem ocitocina sintética na veia e sem
anestesia, é um evento hormonal dos mais intensos. Endorfinas naturais aju-
dam o corpo da mulher a modular as sensações de dor, muitas vezes associadas
às contrações uterinas. Uma possante entrega a essas contrações e um profundo
relaxar entre cada uma delas permitem em poucas horas uma dilatação total do
colo uterino, um trabalho de parto sem exaustão. Logo após esse tipo de parto, a
mulher tem uma extraordinária vivência: um pico altíssimo de ocitocina em sua
corrente sanguínea preside o encontro com seu bebê. O afeto flui em abundân-
cia nesse primeiro abraço, nesse primeiro olhar entre mãe e filho. Os olhos bem
despertos do bebê recebem através do olhar da mãe um verdadeiro download
de sinais neuronais, orientando seus hemisférios cerebrais em como se calibrar.
Tal é a importante missão da mãe, verdadeira educadora neurofisiológica
na chegada ao mundo dos seus filhos. Concordo com a psiquiatra e analista
junguiana Eleanor Luzes, quando ela qualifica esse nascer em plenitude como
o primeiro direito do ser humano.
277
Violência Obstétrica em Debate
559 FILDES, Valerie. Wet Nursing, A History from Antiquity to the Present, Blackwell Pub, 1988
278
Violência Obstétrica em Debate
560 Increased Risk of Autism Development in Children Whose Mothers Experienced Birth Complications
or Received Labor and Delivery Drugs by Melissa Smallwood, Ashley Sareen, Emma Baker, Rachel
Hannusch, Eddy Kwessi and Tyisha Williams – https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/
PMC4984315/Obstetric care and proneness of offspring to suicide as adults: case-control study, de
Bertil Jacobson e Marc Bygdeman
561 Hattori R, Desimaru M, Nagayama I, InoueK, Autistic development disorders after general
anaethetic delivery. Lancet 1991; 337;1357-58
279
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562
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281
Violência Obstétrica em Debate
282
Violência Obstétrica em Debate
566 DEMAUSE, Lloyd. Fundamentos da Psico-História: O estudo das motivações históricas, Editora
KBR, 2014.
567 LIPTON, Bruce; BHAERMAN, Steve. Evolução Espontânea. São Paulo: Editora Butterfly, 2013.
283
Violência Obstétrica em Debate
568 www.anepbrasil.org.br
569 http://anepbrasil.org.br/as-10-regras-de-ouro/
284
Violência Obstétrica em Debate
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Violência Obstétrica em Debate
286
Doula à brasileira: as idiossincrasias
do cenário obstétrico contemporâneo e
a figura da doula no Rio de Janeiro
Roberta Calábria
Diante desta tela vazia, me pergunto como organizar as ideias para escrever
sobre o papel das doulas no cenário obstétrico do Rio de Janeiro, como quem bus-
ca a ponta de um novelo de lã que já passeou por horas e horas pelas patas de um
gatinho filhote. São nós, voltas, caminhos, avanços e retrocessos para contar uma
história que remete a um saber ancestral e que, alavancada pelos novos modelos
de interação social, vive hoje um potente momento de exposição.
Acredito, contudo, que nenhuma história é neutra, nenhuma história é
pura, e todas carregam as cores da subjetividade de quem as conta. Eu sou
doula, mulher, mãe, branca, acadêmica e atravessada por privilégios diversos,
e por essas facetas venho contar pra vocês um pouquinho do que aprendi ob-
servando minha trajetória e a de tantas outras mulheres com as quais convivo;
estudando e praticando, nos últimos anos. Se estivéssemos frente a frente, eu
perguntaria se você sabe o que é uma doula. E a partir da sua resposta, con-
versaríamos sobre o nossos entendimentos. No formato que se apresenta, faço
suposições e tento, de peito aberto, validar uma comunicação dialética que
construa e seja construída pelo diálogo, essencialmente empático.
A doula é, por definição, uma mulher que porta saberes específicos para
auxiliar outra mulher durante o período gravídico puerperal, tendo seu foco
de atuação centrado no trabalho de parto, parto e pós parto imediato. Nosso
trabalho em nada se confunde com o de demais profissionais da atenção obs-
tétrica. A doula cumpre uma função a serviço da mulher, buscando propor-
cioná-la ferramentas para atravessar a passagem entre a existência anterior e
a existência posterior à chegada da nova criança. Os instrumentos desta tra-
vessia devem ser escolhidos em comum acordo, balanceando a autonomia e
o protagonismo da mulher com os conhecimentos da doula, que partem do
princípio de que a gestação e o parto são eventos fisiológicos e como tais de-
287
Violência Obstétrica em Debate
vem ser respeitados, salvo indicações reais que os patologizem. Cada doula faz
uso de seu arcabouço de práticas, informações, técnicas e metódos, seguindo
um caminho individual de construção profissional, sempre atentando ao ob-
jetivo macro de favorecer que a mulher tenha uma experiência de gestação e
parto mais satisfatórias e em conformidade com os desejos de cada uma.
Etmologicamente, a palavra doula tem origem no grego clássico usado
para designar “escrava”: δούλη ("dúli")570. A definição comumente encontrada
mascara essa origem e qualifica a doula como “mulher que serve”, e ainda
hoje na Grécia este termo encontra certa dificuldade de aceitação, dada sua
carga histórica que remete a um contexto de violência e opressão. Lá algumas
mulheres preferem se apresentar como “paramana”, que significa ‘ao lado da
mãe’. No Brasil, a figura da doula foi por muito tempo relacionada a figura da
comadre571, mas a profissionalização da atuação incorporou o título interna-
cional para que não houvesse dúvidas entre os papéis, considerando outros
significados do termo comadre. O primeiro uso contemporâneo do termo do
qual se tem conhecimento foi pela antropóloga Dana Raphael, no livro The
Tender Gift: Breastfeeding, assim chamando as mulheres que prestavam apoio
profissional à lactantes e puérperas nas Filipinas, na década de 1970.
Mas o uso do termo com o qual a palavra doula mais é identificada hoje
vem das pesquisas de Marshall H. Klauss, neonatologista, e John H. Kennel, pe-
diatra, sobre o apoio entre mulheres durante o parto. Eles chamaram de doula
a mulher que auxiliava continuamente à parturiente no trabalho de parto, num
formato de atenção individualizada 1 para 1. Em 1979, com a fundação da casa
de parto “The Birth Place” (fechada em 1994), na Califórnia, encontra-se a pri-
meira referência profissional do uso da palavra doula, chamada inicialmente de
“assistente de parto”. A partir da pesquisa de Marhall e Kennel, as fundadoras
da casa de parto incluíram a doula como membra da equipe. Em 1985, “The
Birth Place” ofereceu o primeiro curso de treinamento para doulas572.
Em 1992, é fundada a DONA International, (Doulas of North America),
primeira associação certificadora de doulas, de acordo com a qual a doula é:
“Uma profissional treinada que provém apoio , físico, emocional e informa-
288
Violência Obstétrica em Debate
tivo contínuo para a mãe antes, durante e logo após o parto, para ajudá-la a
alcançar a mais saudável e satisfatória experiência possível.573” Me aproximo
do nome acreditando que a linguagem é um organismo vivo que se constrói
e se adapta relacionando-se com o uso que se faz dela. Reconhecendo e res-
peitando o passado e as mulheres que ocuparam esta função ainda que contra
sua vontade, na antiguidade, hoje vejo que o termo doula se fundiu a outras
interpretações e nomeia mulheres que seguem a vocação de auxiliar a outras
mulheres nos temas da gestação, do parto e do puerpério. Não tenho como ob-
jetivo, com este texto, renomear, requalificar ou ‘explicar’ o que é uma doula,
mesmo porque acredito que cada mulher que assim se denomina, tem em si a
carga do que busca significar. Como nos diz o filósofo argelino Jacques Derri-
da: “para que houvesse um nome verdadeiramente próprio, seria preciso que
houvesse senão um único nome próprio, que não seria então nem mesmo um
nome, mas pura convocação do outro puro, vocativo absoluto”574.
Há muita fragilidade no status de verdade do nome doula. A construção
desse lugar remonta à épocas ancestrais, e seu papel comunga o paradoxo entre
o imutável poder do momento do nascimento e as novas práticas que respondem
ao papel social da mulher mãe na atualidade ocidental brasileira, considerando
a conjuntura de contextos sociais, econômicos, políticos e as particularidades
inerentes à subjetividade. O que viso neste texto, portanto, é, a partir de um
levantamento incipiente sobre a história do parto, apresentar questionamentos
que nos levem a perceber como a figura profissional da doula é única quando
focamos nosso olhar no cenário obstétrico brasileiro contemporâneo.
289
Violência Obstétrica em Debate
575 Esta informação se baseia em relato oral da antropóloga Hanna Limulja (doutoranda em antropologia
pela UFSC), em conversa sobre sua vivência de cerca de 1 ano em aldeias yanomamis em Roraima e
na Venezuela e em entrevistas cedidas pelo antropólogo Erwin Frank, disponíveis em http://www.
proyanomami.org.br/v0904/index.asp?pag=noticia&id=3980 . Acessado em 13/03/2018.
290
Violência Obstétrica em Debate
para se ter bebês, caso alguma coisa saísse do controle. Aconteceu, então, uma
mudança radical: os partos deixaram de ser um fenômeno privado, feminino e
natural e passaram a ser um evento médico, patologizado e padronizado. Vale
ressaltar que, apesar da presença de mulheres nas Universidade remeter a 1879
(Reforma do Ensino Primário e Secundário do Município da Corte e o Superior
em todo o Império – instituída pelo Decreto nº 7.247, de 19 de abril de 1879, e
que ficou conhecida como Reforma Leôncio de Carvalho), o acesso era abso-
lutamente restrito a uma categoria progressista de mulheres de classe alta. Até
hoje o ensino universitário brasileiro está submetido ao poder econômico e à
desigualdades de gênero e raça. Ou seja, os partos passaram a ser e ainda o são -
em sua maioria - um evento centrado na figura do homem médico.
Aproveitando a chegada deste novo público: as mulheres que vinham
ter seus partos no hospital, nossos corpos femininos passaram a ser também
fonte de estudos e aplicação de práticas que buscavam adentrar no campo da
“inovação técnica”. Como podemos ler nas palavras de Michel Foucault,
A construção e a legitimação de conhecimentos biomédicos e o desen-
volvimento de tecnologias possibilitaram uma crescente intervenção
profissional no processo do nascimento,transformando os corpos das
mulheres grávidas em corpos-pacientes. A legitimidade dos saberes e
fazeres médicos ocorreu no bojo do nascimento do hospital como má-
quina de curar, sendo nesse cenário que os corpos das mulheres se tor-
nam corpos apacientados e a gravidez de evento social passa a evento
médico, ou seja, doença que deve ser curada.
576 Segundo o SIM (Sistema de Informações de Mortalidade) do Ministério da Saúde de 2015, 53,6%
das vítimas de mortalidade materna são negras. E segundo os Cadernos de Saúde Pública 30/2014
da Fiocruz, 65,9% das vítimas de violência obstétrica são mulheres negras.
291
Violência Obstétrica em Debate
577 De acordo com a pesquisa Nascer no Brasil, publicada no Cadernos de Saúde Pública, vol. 30, em
2014, a taxa de cesáreas no sistema de saúde suplementar ou financiado por desembolso direto,
ou seja: pelo plano de saúde ou particular, chega a 90%, enquanto no SUS ela gira em 43%,
totalizando 55% dos nascimentos no país. Índice muito além dos 15% estimados pela ONU como
meta para os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM).
292
Violência Obstétrica em Debate
293
Violência Obstétrica em Debate
580 Klaus et al 1986, Hodnett e Osborn 1989, Hemminki et al 1990, Horfmeyr et al 1991
294
Violência Obstétrica em Debate
295
Violência Obstétrica em Debate
ensível para as partes envolvidas. A doula fica com a mulher até que esta esteja
acomodada e amamentando, sempre que este cenário seja possível.
No puerpério, a doula visita a família para auxiliar no estabelecimento da
nova realidade que se formata a partir da experiêcia de nascimento vivenciada. A
doula auxilia no estabelecimento de uma amamentação de qualidade e nas dúvi-
das com os cuidados do bebê. O puerpério é uma fase repleta de ressignificações
e a doula ajuda para que as transições físicas, emocionais e familiares sejam mais
positivas. Com o suporte adequado, a tendência é que a experiência do puerpério
seja mais tranquila e efetiva na formatação de um vínculo de maior qualidade
entre mãe e bebê. A presença da doula no pós parto reduz o risco de depressão
pós-parto, tristeza materna e aumenta o sucesso do aleitamento materno.
Agora que já apreciamos mais detalhes sobre a a doula conforme ela figu-
ra nos manuais e protocolos de assistência, vamos conhecer um pouquinho do
que acontece atualmentei, e para isso usarei como base as mudanças surgidas
no cenário da cidade do Rio de Janeiro, que vem se mostrando, há quase uma
década, como um território potente de mudanças e resistência aos avanços
da violência obstétrica. Nesta narrativa, peço licença para comentar a partir
do ponto de vista das particularidades da minha vivência, que se misturam
como personagem e espectadora deste processo, visto que estou intimamente
inserida ao movimento carioca desde 2011, tendo me formado doula em 2012,
e acompanho diariamente os debates e ações feitos por outras mulheres, em
sua maioria doulas, aqui pela cidade. É uma linha do tempo muitas vezes atra-
vessada por reviravoltas, casos dramáticos e bastante acolhimento e transmu-
tação de experiências de dor e luto em luta e ativismo.
Até pouco mais de uma década atrás, a cidade do Rio de Janeiro podia
contar nos dedos de uma mão as mulheres que se denominavam doulas ou que
acompanhavam profissionalmente parturientes, e estas práticas se misturavam
bastante com visões holísticas, espiritualizadas e por vezes elitizadas sobre o
nascimento. Sabemos de professoras de yoga e terapeutas de mais variadas ver-
tentes que faziam e ainda fazem este tipo de acompanhamento. Talvez a pri-
meira doula assim chamada da cidade – e uma das primeiras do Brasil – seja
a Fadynha (digo talvez porque, apesar de não haver registro de nenhuma outra
doula à época, não há nenhuma referência que possa ser usada para embasar
esta informação). Fadynha, segundo informações disponíveis em suas publica-
296
Violência Obstétrica em Debate
ções581, prepara mulheres para o parto desde 1978, e neste processo, começa a
acompanhar as gestantes durante o trabalho de parto. Posteriormente capaci-
tada pela DONA, funda, em 2003, a ANDO (Associação Nacional de Doulas),
primeiro curso profissionalizante do Rio de Janeiro e de suma importância para
a regulação da atuação com o estabelecimento de um código de ética e normas
de conduta, formando, assim, as primeiras turmas de doulas da cidade.
Até mais ou menos esta época, a função da doula estava bastante limitada
a auxiliar à parturiente no caminho para o parto natural, ou seja, fisiológico e
sem intervenções; e estava, infelizmente, circunscrita a um número pequeno
de mulheres que, com maior acesso à informação, buscavam não só este tipo
de parto, como o acompanhamento da doula em si. Entretanto em menos de
uma década as coisas mudariam bastante. São muitos os vetores possíveis de
serem traçados para acompanhar esta mudança, mas penso que muito dela se
pelo crescente número de mulheres que se sentiram enganadas e violentadas
pelos profissionais da assistência médica ao passarem por cesarianas desne-
cessárias582 ou partos traumáticos como primeira experiência e começaram a
fissurar o sistema na busca de uma chance de parir com respeito. É no começo
dos anos 2010 que a figura da doula vai se misturando com mais nitidez e es-
trutura à luta contra a violência obstétrica, pois há não só um aumento nítido
de vítimas, como uma crescente conscientização contra um tipo de atitude
ainda reconhecidamente naturalizada na nossa sociedade.
Vale ressaltar que durante as primeiras turmas de formação de doulas da
ANDO, havia uma parceria bastante frutífera entre a Associação e algumas
maternidades públicas da cidade, para a realização de instruções práticas de
atendimento. Neste período, foi iniciado o programa de doulas voluntárias
na Maternidade Municipal Heculano Pinheiro, em Madureira, reimplantado
de forma independente por um grupo de doulas em 2013. O programa segue
até o presente e tem papel fundamental na melhoria da atenção obstétrica na
cidade, além de auxiliar muito na difusão de informação a respeito do papel
da doula e na horizontalidade do acesso.
É em 2010 que a doula Ingrid Lotfi, formada na primeira turma de dou-
las da Fadynha, traz para o Rio de Janeiro o primeiro núcleo do Ishtar, grupo
297
Violência Obstétrica em Debate
gratuito para gestantes com foco no parto natural. Pouco se falava ainda sobre
humanização do nascimento e o objetivo estava voltado para garantir que as
mulheres não tivessem seu direito ao parto usurpado pela conveniência médica.
Nestes encontros, aos poucos, os relatos de sucesso, de fugas mirabolantes de
mulheres em trabalho de parto e de muito amor e respeito se misturavam a
relatos de dor, de violência e, por vezes, de luto. No começo os encontros aconte-
ciam em Copacabana, mas pouco tempo depois já era possível encontrar rodas
do Ishtar em várias partes da cidade. Atualmente, o Estado do Rio de Janeiro
conta com cerca de 11 núcleos, tendo sua coordenação dividida por quase 20
mulheres, sendo a maioria doulas. O espaço serviu para aumentar e fortalecer o
número de mulheres e famílias que se uniam contra o sistema vigente.
Os acontecimentos foram muitos e rápidos a partir daí – e não se trata de
fazer uma relação de causa e consequência entre os fatos, e sim de compreen-
der como um conjunto de fatores e ações concomitantes nos trouxe até o ce-
nário atual. Em 2012 o GAMA, Grupo de Apoio à Maternidade Ativa, de São
Paulo, promove no Rio de Janeiro, em parceria com o então existente Nucleo
Carioca de Doulas, mais um curso de formação de doulas.
Neste mesmo ano, um evento fundamental ressignifica a atuação do mo-
vimento pelo parto natural por aqui: a denúncia feita pelo Conselho Regional
de Medicina contra o obstetra Jorge Kuhn (de São Paulo) após ele defender em
entrevista concedida ao programa Fantástico, no dia 10 de junho, a escolha pe-
los partos domiciliares por parte de gestantes de risco habitual. Esta denúncia
daria margem às resoluções 265 e 266 publicadas no Diário Oficial da União
pelo CREMERJ em 19 de julho de 2012. Nelas “fica proibida a participação de
médicos em partos domiciliares e na assistência perinatal que não seja realizada
em maternidades. Está proibida também a ação de parteiras ou qualquer pessoa
que não seja profissional de saúde no parto em ambientes hospitalares”583. Em
uma ação inédita, em menos de uma semana após a denúncia, mulheres de todo
o Brasil organizaram a Marcha do Parto em Casa que, no Rio de Janeiro, acon-
teceu no dia 17 de junho, na orla de Copacabana. Muitas das mulheres que to-
maram a frente na organização do ato se tornaram doulas pouco tempo depois.
298
Violência Obstétrica em Debate
299
Violência Obstétrica em Debate
584 Definição retirada das leis que tipificam a violência obstétrica na Argentina e na Venezuela.
Disponível em: https://www.artemis.org.br/violencia-obstetrica. Acessado em 29/03/2018.
585 Arquivo pessoal.
300
Violência Obstétrica em Debate
301
Violência Obstétrica em Debate
Conclusão
Considerando tudo o que foi escrito neste texto, convido a quem o lê
que faça uma colagem entre a figura da doula, conforme sua representação
mais tradicional, que foca a atuação da “mulher que serve” no suporte físico e
emocional da parturiente; a “acompanhante treinada”, que com isso constrói
uma formação que tangencia o conhecimento obstétrico com mais veemên-
cia, conferindo a ela a função de oferecer informação à gestante, não apenas
sobre a fisiologia do nascimento, como sobre toda a conjuntura envolvendo
o cenário da assistência obstétrica; a imagem da mulher que reconhece, tes-
temunha e vivencia a violência obstétrica, criando a partir da dor a força e a
coragem para mudar esta realidade; e finalmente a imagem da profissional au-
daciosa e combatente, capaz de mobilizar-se a à outras mulheres para garantir
o exercício de seu trabalho.
Esta é a imagem da doula contemporânea do Rio de Janeiro: um novo
papel social da doula, que se constrói como lança e escudo, para fissurar o
sistema e proteger a mulher, pois é insuficiente abordar o papel da doula aqui
apenas considerando sua atuação técnica com o objetivo de auxiliar a mulher
a lidar com as dores, desconfortos e emoções do trabalho de parto.
O contato com a violência obstétrica inerente ao padrão de nascimento
no Brasil acabou por causar uma mudança estrutural na maneira como boa
parte das doulas encara sua profissão. O que temos, essencialmente se fechar-
mos nosso recorte temporal na última década, na cidade do Rio de Janeiro,
são dois caminhos que levam uma mulher a se tornar doula por aqui:
uma experiência muito prazerosa de parto, seja da própria doula ou de
alguma mulher próxima e/ou uma experiência de violência obstétrica, tam-
bém própria ou de outra.
No desenrolar da formação e da atuação, ambas realidades se misturam
e nós lidamos cotidianamente com nascimentos que respeitam a dignidade
e a humanização da atenção; e nascimentos enxarcados de violências obsté-
tricas, explícitas ou veladas, pois com a lacuna entre a educação perinatal de
qualidade e o tipo de informação que é propagada a respeito do nascimento o
resultado é a naturalização deste tipo de experiência.
Fato é que, seja pela motivação de repercutir uma experiência positiva
ou modificar uma realidade de sofrimento, as doulas do Rio de Janeiro são
302
Violência Obstétrica em Debate
forjadas na luta contra a Violência Obstétrica e isso agrega uma função ao seu
papel. As doulas do Rio são vistas – e muitas vezes assim se colocam – como
escudos de proteção contra este tipo de violência, tendo como um de seus
principais focos de atuação instrumentalizar a gestante na busca de não sofrer
violência ou minimizar seus danos.
Corre pelos corredores de algumas maternidades a prática do “parto
amenizado”: onde não é possível adequar o cenário ao conceito de humani-
zação que individualiza a atenção ao protagonismo e aos desejos da mulher,
o esforço é para que ao menos a parturiente tenha algum tipo de blindagem
contra a violência obstétrica, e com isso me refiro a tentarmos desde impedir
que esta mulher sofra procedimentos desnecessários – alguns, como a mano-
bra de kristeller que são contraindicados pela OMS mas seguem como prática
rotineira em alguns locais -, diminuir as chances de que ela seja vítima de
ridicularização e preconceito por tentar fazer escolhas que não correspondem
às expectativas da equipe, até auxiliar para que se façam valer leis e protoco-
los, como as do acompanhante, das doulas e do plano de parto, bem como as
resoluções da OMS e do Ministério da Saúde.
As doulas do Rio debatem incansavelmente sobre áreas que, iniciamente,
não deveriam nos dizer respeito, como condutas obstétricas e aspectos jurídi-
cos, mas que se deixadas ao prazer do senso comum e da abordagem médica
padrão, invariavelmente encaminham a parturiente a um parto violento. Elas
precisam conhecer as equipes, recolher relatos, articular mulheres. Precisam
conhecer as instituições, quebrar barreiras culturais graves que impedem
uma atuação multidisciplinar de qualidade que supere batalhas de egos para
priorizar a gestante, precisam acionar canais de denúncias, ouvidorias, minis-
tério público e secretarias para fazer valer leis já aprovadas. Por vezes montam
verdadeiras forças-tarefas para tentar viabilizar um nascimento respeitoso,
com planos mirabolantes para deslocar gestantes de locais onde a atenção não
prevê possibilidades de nascimentos respeitosos. As doulas precisam ainda
lidar com a mercantilização profissional, com a quebra de paradigma da eli-
tização da humanização, para que toda mulher que deseje uma doula possa
ter uma. Para que toda mulher saiba o que é uma doula e os seus benefícios,
a fim de fazer uma escolha verdadeiramente informada. Toda mulher merece
uma doula, e nosso horizonte deve ser que nosso trabalho esteja disponível
para todas as mulheres, usuárias do sistema de saúde público e suplementar.
303
Violência Obstétrica em Debate
304
Ampliação do direito à saúde da gestante:
inclusão da aromaterapia no atendimento
do Sistema Único de Saúde (SUS)
Introdução
A saúde da gestante está inserida no contexto geral do Direito à saú-
de consagrado na Constituição Federal como um direito de todos e dever do
Estado. Neste contexto, o crescente movimento de humanização do parto
abrange diversas técnicas, terapias e usos, sendo necessário identificá-los e
contextualizá-los para que os profissionais e as gestantes tenham ciência da
possibilidade de utilização de tais métodos e possam requerê-los de acordo
com a necessidade no momento da gestação, do parto e pós-parto.
Uma dessas possibilidades é o uso das práticas integrativas, recomenda-
das ao uso da saúde primária pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e
que, em razão da legislação vigente, poderá estar disponível no Sistema Único
de Saúde (SUS). Estas práticas aumentam as possibilidades de tratamentos e
terapias para a população como um todo. Portanto, é uma forma de ampliação
do direito à saúde e, consequentemente, à saúde da mulher.
A informação e o conhecimento sobre estes métodos, para a mulher, em
especial durante a gravidez, no parto ou pós-parto, faz parte do conceito de
autonomia que se busca na humanização, onde a mulher, bem informada, tem
efetiva participação nas escolhas sobre a sua saúde e nas diretrizes de seu parto.
São múltiplas as possibilidades de utilização de medidas não alopáticas
para diversos diagnósticos e situações, havendo o Ministério da Saude inte-
grado ao SUS a política nacional de práticas integrativas. Dezoito tipos destas
medicinas alternativas foram integradas oficialmente em 2006. Em 2018 nove
novos tipos dessas praticas foram integradas, incluindo a aromaterapia que é
a análise central deste artigo.
305
Violência Obstétrica em Debate
306
Violência Obstétrica em Debate
586 JÚNIOR, Emílio Telesi. Práticas integrativas e complementares em saúde, uma nova eficácia para o
SUS. In: Estudos Avançados, n. 30, p. 99-112, 2016, p. 99.
307
Violência Obstétrica em Debate
587 MS, Ministério da Saúde. PNPIC Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no
SUS. Brasília, DF, 2 ed., p. 8, 2015. Disponível em <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/
politica_nacional_praticas_integrativas_complementares_2ed.pdf> Acesso em 16 jun. 2018.
308
Violência Obstétrica em Debate
588 MATTA, Gustavo Corrêa. Princípios e Diretrizes do Sistema Único de Saúde. Políticas de Saúde: organização
e operacionalização do Sistema Único de Saúde. Rio de Janeiro, Fiocruz, p. 61-80, 2007, p. 71-72.
309
Violência Obstétrica em Debate
589 JÚNIOR, Emílio Telesi. Práticas integrativas e complementares em saúde, uma nova eficácia para o
SUS. In: Estudos Avançados, n. 30, p. 99-112, 2016, p. 110.
310
Violência Obstétrica em Debate
590 PRICE, Penny. Aromatologia. Tradução do original em inglês: Fábián László. 2004, p. 1-2.
Disponível em <http://www.ibraromatologia.com.br/userfiles/file/ARTIGOS%20EM%20PDF/
AROMATOLOGIA.pdf> Acesso em 16 jun. 2018.
311
Violência Obstétrica em Debate
591 PRICE, Penny. Aromatologia. Tradução do original em inglês: Fábián László. 2004, p. 2.
Disponível em <http://www.ibraromatologia.com.br/userfiles/file/ARTIGOS%20EM%20PDF/
AROMATOLOGIA.pdf> Acesso em 16 jun. 2018.
312
Violência Obstétrica em Debate
592 “muitas mulheres gostariam de evitar métodos farmacológicos ou invasivos para alivio da dor no
trabalho de parto e isso pode ser o que contribui para a popularidade dos métodos complementares
de alívio da dor.” (Tradução própria) (Bennett, 1999 apud SMITH Caroline A.; COLLINS Carmel
T.; CROWTHER Caroline A.. Aromatherapy for pain management in labour. Cochrane Database of
Systematic Reviews, n. 7, 2011, p. 3.
593 SMITH Caroline A.; COLLINS Carmel T.; CROWTHER Caroline A.. Aromatherapy for pain
management in labour. Cochrane Database of Systematic Reviews, n. 7, 2011, p. 30.
313
Violência Obstétrica em Debate
594 DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos
sentidos de um movimento. Ciênc. saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 627-637,
set., 2005, p. 633. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
81232005000300019&lng=en&nrm=iso> Acesso em 16 jun. 2018.
595 DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos
sentidos de um movimento. Ciênc. saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 627-637,
set., 2005, p. 634. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
81232005000300019&lng=en&nrm=iso> Acesso em 16 jun. 2018.
314
Violência Obstétrica em Debate
596 LIMA, Karla Morais Seabra Vieira; SILVA Kênia Lara; TESSER Charles Dalcanale. Práticas
integrativas e complementares e relação com promoção da saúde: experiência de um serviço
municipal de saúde. Interface (Botucatu), nov. 2013, p. 8.
597 DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos
sentidos de um movimento. Ciênc. saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 627-637,
set., 2005, p. 634. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
81232005000300019&lng=en&nrm=iso> Acesso em 16 jun. 2018.
598 LIMA, Karla Morais Seabra Vieira; SILVA Kênia Lara; TESSER Charles Dalcanale. Práticas
integrativas e complementares e relação com promoção da saúde: experiência de um serviço
municipal de saúde. Interface (Botucatu), nov. 2013, p. 8.
315
Violência Obstétrica em Debate
Considerações finais
O direito a saúde e em especial o direito à saúde da mulher é um dever do
Estado. Visando ampliar esse direito surgem as práticas integrativas e com-
plementares ou “ramos da medicina alternativa”, no sistema de saúde como
uma resposta à busca da população por alternativas à prática medicamentosa
e muitas vezes não humanizada.
A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC)
teve início atendendo às diretrizes e recomendações de conferencias nacionais
de saúde e da Organização Mundial da Saúde, tendo em 2006 sido regulamen-
tada a possibilidade de disponibilidade no SUS de algumas práticas integrati-
vas. Mas somente em 2018 é que Ministério da Saúde inseriu a aromaterapia
à rede publica de saúde.
Esta PNPIC liga-se e interage com os princípios da universalidade, da
equidade e da integralidade que regem o SUS, exatamente por ampliar o con-
ceito de saúde e já ter um olhar mais humanizado. A modificação desse olhar
traz a questão da interdisciplinariedade. O ser humano é visto de uma forma
mais holística e humanizada. Não obstante não tenham evidências suficientes
sobre a eficácia da aromaterapia na gestação, parto e pós-parto, é certo que
existem evidências científicas no sentido desta utilização pelo indivíduo como
um todo, necessitando unicamente de mais pesquisas nesta área.
Se utilizarmos a formação inglesa da aromaterapia empregaremos os
óleos essenciais de maneira mais restritiva e em massagens, sendo proibida
qualquer forma de utilização oral. Entretanto, a formação francesa é a que
mais se coaduna com a interesse da saúde da mulher uma vez que se baseia
em estudos e formas de utilização oral, além de massagens. A utilização da
aromaterapia na gestação acaba por se inserir na utilização geral, em razão da
necessidade de mais pesquisas na área, podendo ser usada como alternativa à
medicalização atual como forma, por exemplo, de alívio da dor e, para fatores
emocionais, como forma de diminuir o estresse.
316
Violência Obstétrica em Debate
317
A expansão do conceito de
violência obstétrica e as práticas
de esterilização compulsória
Introdução
Violência obstétrica não é mais um conceito estranho ao vocabulário ju-
rídico. Apesar de não haver definição unívoca, é possível afirmar que as con-
dutas realizadas em razão da gestação que violem o direito ao parto e ao nas-
cimento humanizado serão consideradas como violência obstétrica. Todavia,
essa concepção, por demais genérica, se mostra insuficiente para tutelar todos
os direitos que podem ser violados no cenário da atenção obstétrica no Brasil.
De fato, ao confrontar a construção teórica com a realidade, é flagran-
te a sua insuficiência diante da pluralidade de vivências que, em comum, só
possuem o adjetivo “brasileiras”. O caso da esterilização forçada de Janaína
Quirino foi um exemplo emblemático de uma das principais causas de violên-
cia obstétrica praticada contra mulheres vulneradas pela pobreza. Diante da
análise direcionada a quem serve o atual conceito, é imperativa a proposição
de sua ampliação, com base tanto nos fundamentos do Direito Civil Cons-
titucional, como em recortes, necessários, de raça e classe. Para tanto, será
analisado o caso em comento, com o desdobramento de uma nova perspectiva
do que deve ser entendido como violência obstétrica.
319
Violência Obstétrica em Debate
599 Por exemplo, é possível citar: KEUNECKE, Ana Lúcia; MARQUES, Raquel de Almeida; SOUSA, Valéria.
Violência obstétrica é violação de Direitos Humanos. Publicação Oficial Juízes para a Democracia, a. 16,
n. 69, jan. 2016, p. 7. Disponível em: <http://ajd.org.br/jornal-69/>. Acesso em: 16 set. 2018; SANTOS,
Mariana Beatriz B. dos. Violência Obstétrica: violação dos direitos da parturiente e a desumanização do
parto. Revista de Direito UNIFACEX. Natal-RN, v.7, n.1, 2018. ISSN: 2179-216X. Disponível em: <https://
periodicos.unifacex.com.br/direito/article/view/869>. Acesso em: 16 set. 2018; NOGUEIRA, Beatriz
Carvalho; SEVERI, Fabiana Cristina. O tratamento jurisprudencial da violência obstétrica nos Tribunais
de Justiça da região Sudeste. In: XI Seminário Internacional Fazendo Gênero, 2017, Florianópolis. Anais do
XI Seminário Internacional Fazendo Gênero [recurso eletrônico]. Disponível em: <http://www.wwc2017.
eventos.dype.com.br/resources/anais/1518015798_ARQUIVO_NOGUEIRA,Beatriz;SEVERI,Fabiana.
OtratamentojurisprudencialdaviolenciaobstetricanosTribunaisdeJusticadaregiaoSudeste.pdf>. Acesso em:
16 set. 2018.Todavia, é necessário destacar que a produção no campo da saúde supera largamente a jurídica.
600 Ver DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Conversando sobre violência
obstétrica, jul. 2018, 19 p. Disponível em: <https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/0/
Cartilha_VO_JUL_2018%20(3).pdf>. Acesso em: 15 set. 2018.
601 Ibid., p. 4.
602 Ibid., p. 6.
320
Violência Obstétrica em Debate
603 Seção sobre Violência Obstétrica do site da Organização Artemis. Disponível em: <https://www.
artemis.org.br/violencia-obstetrica>. Acesso em: 16 set. 2019.
604 SALGADO, Heloisa de Oliveira; NIY, Denise Yoshie; DINIZ, Carmen Simone Grilo. Meio grogue e
com as mãos amarradas: o primeiro contato com o recém-nascido segundo mulheres que passaram
por uma cesárea indesejada. Rev. bras. crescimento desenvolv. hum., São Paulo, v. 23, n. 2, 2013, p.2
(190-197). Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
12822013000200011&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 16 set. 2018.
605 DINIZ, Simone. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um
movimento. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2005, vol. 10, n.3, p. 628.
321
Violência Obstétrica em Debate
2. A esterilização compulsória
Janaína Aparecida Quirino, 36 anos, foi submetida a uma laqueadura du-
rante a cesárea na qual teve seu oitavo filho em fevereiro deste ano. Tal laqueadu-
ra, entretanto, ocorreu devido à decisão do juiz Djalma Moreira Gomes Júnior,
da comarca de Mococa, SP, que condenava a Prefeitura de Mococa a realizar tal
procedimento. O pedido, todavia, não veio de Janaína, mas sim do Ministério
Público. Em uma ação de obrigação de fazer, em momento algum foi designada
representação à Janaína, ainda que dependente química. Em situação de rua, vul-
322
Violência Obstétrica em Debate
nerada pela pobreza, quando a decisão foi anulada pelo TJ-SP608, a laqueadura já
havia sido feita, violando flagrantemente a lei 9263/96.609
Após a denúncia do ocorrido por um professor de direito constitucional da
FGV-SP na Folha de São Paulo610, a repercussão e repreensão do caso foram múl-
tiplas611. O sentimento retratado em muitas das publicações e postagens em redes
sociais era, entretanto, de choque e surpresa, sentimento esse não compartilhado
pela filósofa Djamila Ribeiro. Em sua página de rede social, se manifestou:
Importante que o caso [de Janaína Quirino] tenha ganhado visibilida-
de e se tenha posturas de repúdio a essa atitude tão violenta. Porém,
me assusta ver feministas não conhecerem essa realidade no Brasil ou
pessoas progressistas tratando como algo pontual. Práticas como a es-
terilização forçada [foram] amplamente utilizada[s] no Brasil com o
intuito de diminuir o contingente de negros e pobres.612
608 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Acórdão nº 2018.0000380733. Apelante:
Prefeitura Municipal de Mococa. Apelado: Ministério Público do Estado de São Paulo. Relator:
Paulo Dimas Mascaretti. São Paulo, 23 mai. 2018.
609 BERTOLINI, Fernando, RODRIGUES, Fábio. Justiça obriga Prefeitura de Mococa a fazer
laqueadura em mulher usuária de drogas. G1 São Carlos e Araraquara, 11 jun. 2018. Disponível
em: <https://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/noticia/justica-obriga-prefeitura-de-mococa-a-
fazer-laqueadura-em-mulher-usuaria-de-drogas.ghtml>. Acesso em: 15 set. 2018; DEFENSORIA
PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Nota Pública. Facebook, 11 jun. 2018. Disponível em:
<https://www.facebook.com/DefensoriaPublicaSP/photos/a.132028353534375/1976800729057119/
?type=3&theater>. Acesso em: 15 set. 2018.
610 VIEIRA, Oscar Vilhena. Justiça, ainda que tardia. Folha de São Paulo, 9 jun. 2018. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/colunas/oscarvilhenavieira/2018/06/justica-ainda-que-tardia.
shtml>. Acesso em: 3 jul. 2018.
611 Como exemplo é possível citar matérias em jornal eletrônico: (1) ANTUNES, Leda. MARTINELLI,
Andréa. Janaína, a mulher que foi submetida a uma laqueadura sem consentimento. Huffpost Brasil,
11 jun. 2018. Disponível em: <https://www.huffpostbrasil.com/2018/06/11/janaina-a-mulher-
que-foi-submetida-a-uma-laqueadura-sem-consentimento_a_23456403/>; (2) REDAÇÃO. Juiz e
procurador ordenam esterilização de mulher em Mococa. Revista Fórum, 10 jun. 2018. Disponível
em: < https://www.revistaforum.com.br/juiz-e-procurador-ordenam-esterilizacao-de-mulher-em-
mococa/>; bem como a nota de repúdio do Instituto de Garantias Penais (IGP), disponível em:
<https://www.conjur.com.br/dl/esterilizacao-compulsoria-igp.pdf>, além de muitos outros na
internet. Todos os links com acesso em 15 set. 2018.
612 RIBEIRO, Djamila. Postagem no Facebook (verificado). Facebook, 12 jun. 2018. Disponível em: <https://
www.facebook.com/djamila.ribeiro.1/posts/2012560518777496>. Acesso em: 15 set. 2018. Ver, ainda,
sobre o mesmo tópico: CRUZ, Eliana Alves. O Caso Janaína me Lembrou que o Brasil Já Fez Esterilização
em Massa – Com Apoio dos EUA. The Intercept_ Brasil, 18 jul. 2018. Disponível em: <https://theintercept.
com/2018/07/18/laqueaduras-esterilizacao-forcada-mulheres/>. Acesso em: 15 set 2018.
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Violência Obstétrica em Debate
613 RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, Justificando, 2017, p. 42.
614 BRASIL (Congresso Nacional). Relatório nº2 de 1993 (Relatório Final da Comissão Parlamentar
Mista de Inquérito). Brasília, 1993, p. 1. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/
handle/id/85082/CPMIEsterilizacao.pdf?sequence=7>. Acesso em 15 set. 2018.
615 Ibid., p. 36 e 39..
616 Ibid., p. 45.
617 Cabe destacar no texto também o pioneirismo da denúncia de esterilização por estas entidades, que
começou em 1983, a partir da constituição de um grupo de assessoria e participação em São Paulo durante
o governo de Paulo Maluf, cujo objetivo era redução da natalidade entre os negros. Ibid., p. 49 a 51.
618 Destaca-se, ainda, o trecho: “A maior incidência de esterilização em mulheres da raça negra foi
denunciada pelo movimento negro, como um aspecto do racismo praticado no Brasil. Os dados
levantados pelo IBGE, na PNAD/86, não confirmam a denúncia, mas é fato notório a dificuldade
de se apurar com precisão a informação relativa à cor da pele dos brasileiros”, considerando que no
próprio documento consta que a inclusão da cor em censos demográficos foi conquista da luta do
movimento negro. Ibid., p. 116-117.
619 WERNECK, Jurema. Ou belo ou o puro? Racismo, eugenia e novas (bio)tecnologias. UNFPA, 2010,
p. 3-5. Disponível em: <http://www.criola.org.br/artigos/artigo_ou_o_belo_ou_o_puro.pdf>.
Acesso em: 15 set. 2018.
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Violência Obstétrica em Debate
620 Ibid., p. 6.
621 DAVIS, Lennard J. Enforcing Normalcy. Disability, Deafness and the Body. London/New York:
Verso, 1995, p. 36-38.
622 WERNECK, Jurema. Op. cit., p. 7-8.
623 Ibid., p. 10-11.
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Violência Obstétrica em Debate
624 Sobre a luta e o protagonismo existente, mas não reconhecido, dos movimentos de mulheres negras,
ver: WERNECK, Jurema. Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias
políticas contra o sexismo e o racismo. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/
as (ABPN), [S.l.], v. 1, n. 1, p. 07-17, jun. 2010. ISSN 2177-2770. Disponível em: <http://abpnrevista.
org.br/revista/index.php/revistaabpn1/article/view/303>. Acesso em: 15 set. 2018.
625 Simone Diniz destaca, por exemplo, que a maioria das listas eletrônicas que formavam redes
de mulheres em prol da humanização do parto no fim dos anos 90 no Brasil era criada por
“consumidoras organizadas de classe média” em DINIZ, Simone. Op. cit., p. 631.
626 É possível notar tais diferenças na pesquisa de Olivia Hirsch, quando aponta os diferentes sentidos
de parto normal e humanizado para camadas médias e populares. A partir deste, é consequente a
reflexão de que diferentes vivências apresentariam diferentes concepções do que é ou não violência.
HIRSCH, Olivia Nogueira. O parto “natural” e “humanizado”: um estudo comparativo entre
mulheres de camadas populares e médias no Rio de Janeiro. Tese (doutorado). Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Ciências Sociais, 2014.
326
Violência Obstétrica em Debate
627 BRASIL. Constituição Federal de 1988. Vade Mecum Compacto. São Paulo: Saraiva, 15ª ed., 2016.
628 Vide MORAES, Maria Celina Bodin de; VIVEIROS DE CASTRO, Thamis Ávila Dalsenter. A
autonomia existencial nos atos de disposição do próprio corpo. Pensar. Fortaleza: v. 19, n. 3, set./
dez. 2014, p. 784-785.
629 Para saber mais, ver MORAES, Maria Celina Bodin de. O princípio da dignidade da pessoa humana.
In: Na Medida da Pessoa Humana, Estudos de Direito Civil Constitucional. Renovar, 2010, p. 71-
120.
630 Ibid., p. 96.
631 Ibid., p. 102.
632 Ibid., p. 106.
633 Ibid., p. 106-109.
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Violência Obstétrica em Debate
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Violência Obstétrica em Debate
638 MORAES, Maria Celina Bodin de; VIVEIROS DE CASTRO, Thamis Ávila Dalsenter. Ibid., p. 796-803.
639 “Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar
diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”.
640 Como se nota em DINIZ, Simone. Op. cit., p. 633-635.
641 MORAES, Maria Celina Bodin de; VIVEIROS DE CASTRO, Thamis Ávila Dalsenter. Op. cit.., p. 784.
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Violência Obstétrica em Debate
4. Aplicação
A partir desta ampliação do conceito, é possível afirmar que a decisão
de determinar a realização de uma laqueadura sem o claro consentimento da
mulher se configura claramente uma violência obstétrica. A partir de uma
falsa pretensão de agir em nome de sua saúde, Janaína foi submetida a um
procedimento arriscado642 para que fosse impedida de gestar. Assim, tal de-
cisão fere o princípio da dignidade da pessoa humana, causando-lhe dano
irreversível não somente físico, mas também psicológico. Atinge seu direito à
saúde e sua autonomia corporal, além de contrariar frontalmente os artigos 2º
p. ú. e 10 da lei 9623/96.
Acerca do caso em comento e de toda prática de esterilização compulsó-
ria, cabe destacar trechos do Relatório Final da “CPI da esterilização”, um dos
quais ressalta o cumprimento das recomendações constantes no documento
para que se respeitem os princípios da paternidade responsável e da livre de-
cisão do casal, presentes na Carta Magna. É pertinente também apontar o
depoimento do presidente da OAB à época, no qual afirmou que a previsão
constitucional do planejamento familiar (art. 227 § 7º CF) não pode ser con-
fundida com controle de natalidade, que é o que ocorreu, propositalmente,
nos anos 90, e este ano com Janaína e outras mulheres que não chegaram às
manchetes dos jornais.
É possível, ainda, além de reconhecer a prática da esterilização com-
pulsória como uma violência obstétrica, ampliar a aplicação do conceito para
violências fora dos hospitais. Preconceitos ou exclusões no ambiente de tra-
balho em razão do gestar, e quaisquer outras situações direcionadas à mulher
grávida em razão de sua gravidez também seriam encaradas como violência
obstétrica com base nos fundamentos supracitados.
A partir da identificação e nomeação de uma violência específica, que
atinge grupos específicos de formas diferenciadas, é possível então investi-
gar soluções direcionadas às especificidades do problema. Assim, a marca de
raça e classe e um estudo mais aprofundado desta marca são imprescindíveis
330
Violência Obstétrica em Debate
Conclusão
A partir da leitura bibliográfica e da análise do caso de Janaína, propõe-
-se o entendimento da prática da esterilização forçada como uma forma de
violência obstétrica, além de uma violência de gênero com recorte classista e
racial. Nesta conduta, pois viola – dentre diversas outras violações – uma das
expressões da autonomia corporal da mulher, que é gestar. Desta classificação,
somam-se situações não entendidas originalmente como violência obstétrica,
mas que devem ser. Hoje não são reconhecidas devido às limitações do próprio
conteúdo, decorrentes em muitos casos da experiência na qual se baseou sua
formulação, de mulheres brancas com vasto acesso a estudo majoritariamente.
Assim, com o intuito de efetivar a proteção desejada pelos princípios
deste ordenamento e pela reivindicação e denúncia de violência obstétrica,
propõe-se uma flexibilização e expansão do conceito. A pluralidade de reali-
dades e a vulnerabilidade latente em certos grupos demandam um olhar críti-
co e atento voltado à prática jurídica e a quem esta realmente atende ou torna
invisível ao ignorar as demandas. Desta forma, ao estabelecer críticas e, em se-
guida, parâmetros com fundamento legal e principiológico vigente, busca-se
propor o início de um caminho teórico e prático, de uma compreensão mais
complexa da violência obstétrica, de forma que atente a todas as suas vítimas.
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