Questoes Contemporaneas BEATRIZ KUHL

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QUESTÕES

CONTEMPORÂNEAS
QUESTÕES
CONTEMPORÂNEAS
PAT R I M Ô N I O
ARQUITETÔNICO
E URBANO
Rosío Fernández Baca Salcedo
Vladimir Benincasa
ORGANIZADORES

1ª edição – 2017
Bauru/SP
CONSELHO EDITORIAL
Profa. Dra. Cassia Letícia Carrara Domiciano
Profa. Dra. Janira Fainer Bastos
Prof. Dr. José Carlos Plácido da Silva
Prof. Dr. Marco Antônio dos Reis Pereira
Prof. Dr. Maria Angélica Seabra Rodrigues Martins

FOTOS DA CAPA E ABERTURA DE CAPÍTULOS


Vladimir Benincasa

Capa
1. Pátio da Estação de Bauru (SP) – Foto de Rosío F. B. Salcedo
2. Seminário Seráfico de S. Antônio, Agudos (SP)
3. Fazenda do Ribeirão, Dom Joaquim (MG)
4. Casas, Bocaina (SP)

Contracapa
Detalhe da fachada do antigo Banco do Estado de São Paulo, São Paulo (SP)

Abertura de capítulos
Fachadas – Paraty (RJ)

Rua Machado de Assis, 10-35


Vila América | CEP 17014-038 | Bauru, SP
Fone/fax (14) 3313-7968 | www.canal6.com.br

Q58 Questões contemporâneas: patrimônio arquitetônico e urbano /


Rosío Fernández Baca Salcedo e Vladimir Benincasa
(organizadores). — Bauru, SP: Canal 6, 2017.
162 p. ; 23 cm.

ISBN 978-85-7917-417-9

1. Patrimônio arquitetônico. 2. Preservação histórica e cultural.


I. Salcedo, Rosío Fernández Baca II. Benincasa, Vladimir. III. Título.

CDD: 363.69
720.288

Copyright© Canal 6, 2017

Direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial sem a


autorização prévia da Canal 6 Editora e dos organizadores.
APRESENTAÇÃO

As expressões de um determinado período de uma sociedade ficam gra-


vadas em sua organização espacial, através da arquitetura, do urbanismo,
do paisagismo; nas suas manifestações artísticas (música, folclore, etc.); em
sua forma de fazer e de viver.... Elas constituem, assim, o seu patrimônio
cultural.
Diante dos perigos crescentes que ameaçam, mais especificamente, o pa-
trimônio arquitetônico e edificado, ocasionados pela ação do tempo, da
natureza, das negligências humanas que causam sua descaracterização ou
demolição, ou mesmo, das novas construções em desarmonia com o patri-
mônio preexistente, a sociedade tem o dever de protegê-lo e salvaguardá-lo.
Entende-se como salvaguarda a identificação, a proteção, a conservação, a
restauração, a reabilitação dos conjuntos históricos ou tradicionais e de seu
entorno. Essas ações preservam a essência do patrimônio e a sua autenti-
cidade, permitindo sua transmissão para o futuro e ajudando a criar um
sentido de identidade cultural coletiva.
Cabe à gestão pública a definição e implementação de medidas legais e ad-
ministrativas, de financiamento, de estabelecimento de critérios de preser-
vação e salvaguarda dos bens culturais, de sanções, reparações, recompen-
sas, de assessoramento e de programas educativos. Somente dessa forma,
a educação patrimonial e a formação da consciência social possibilitam o
conhecimento do patrimônio e sua preservação.
Neste contexto, as instituições públicas e privadas, juntamente com a socie-
dade organizada, vêm desenvolvendo e colocando em prática programas,
projetos e tecnologias de intervenção que visam à salvaguarda do patri-
mônio cultural. O XII Congresso Internacional de Reabilitação do Patri-
mônio Arquitetônico e Edificado: a dimensão cotidiana e os desafios para

APRESENTAÇÃO 5
sua preservação, promovido pela sede brasileira do Centro Internacional
de Conservação do Patrimônio (CICOP-Brasil) e pela Federação Interna-
cional de Centros CICOP e, organizado pelo Programa de Pós-Graduação
em Arquitetura e Urbanismo da UNESP, Campus de Bauru, entre os dias
21 e 24 de outubro de 2014, pretendeu refletir e discutir a problemática do
patrimônio edificado, desde as grandes obras às mais modestas.
Vários especialistas do Brasil, da América Latina e da Europa foram convi-
dados a participar do evento e compartilhar suas experiências com os assis-
tentes. Foram várias palestras cujos conteúdos julgamos importante para
a alimentação do debate atual sobre o patrimônio, e que agora podemos
compartilhar, pois transformadas em textos e revisadas pelos seus autores.
Esperamos que a repercussão, além do âmbito do congresso, seja fecunda e
produza não só debate, mas ações efetivas e coerentes à dimensão cotidiana
que o patrimônio deve, e pode, ter.

Rosío Fernández Baca Salcedo


Vladimir Benincasa

6 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


PREFÁCIO

O presente é sempre um momento de incertezas. Até que ponto as experi-


ências passadas contribuem para encontrar rumos para o futuro? Aprender
com erros e acertos do passado é fundamental para estabelecer critérios
para decisões a serem tomadas. Mas a visão crítica do passado não se con-
funde com o conservadorismo. Pelo contrário, a crítica é sempre feita com
dados do momento em que é feita, sendo, portanto, mutável.
Para aprender com o passado, é necessário conhecê-lo e entender as suas
motivações. A preservação do patrimônio cultural constitui um elo essen-
cial para o processo de conhecimento do passado, próximo ou remoto.
O conjunto de textos aqui reunido, elaborado por especialistas convidados
para apresentação no XII Congresso Internacional do CICOP, representa
uma importante contribuição para o debate sobre as questões da preser-
vação do patrimônio cultural, em particular do patrimônio arquitetônico
urbano.
Temas como a amplitude do conceito de paisagem para a preservação da vi-
sualidade do patrimônio ambiental urbano, das limitações para o controle
da paisagem e do equilíbrio entre a atenção dispensada ao bem isolado e
à sua ambientação são da maior importância para a definição de ações de
preservação. Miguel Matrán traz, com sua abordagem, uma aguda obser-
vação a esse respeito.
Igualmente importante é a questão do diálogo entre os novos projetos ur-
banos e os espaços e edifícios reconhecidos como patrimônio cultural a
preservar. O conhecimento e valorização das relações dinâmicas de tem-
po e significados presentes nos lugares é essencial para a integração entre

PREFÁCIO 7
passado e futuro. Josep Muntañola e Magda Carulla contribuem com uma
precisa reflexão a respeito.
Ramón Gutiérrez traz um conjunto de proposições para uma visão inte-
gradora dos patrimônios edificado, natural e imaterial, e para a adoção de
uma postura crítica que não impeça a abordagem compreensiva das carac-
terísticas regionais e locais do patrimônio. Esta é uma questão importante
para destravar algumas discussões marcadas por divergências que podem
ser superadas. A crítica dos critérios patrimoniais pode ser o caminho para
superar divergências e levar em conta as mudanças na escala patrimonial,
englobando a sua dimensão cultural e territorial. Gutiérrez aponta, ainda, a
importância de dar maior relevância aos aspectos econômicos, administra-
tivos e políticos das questões patrimoniais e da destinação dos bens patri-
moniais e da ação preservacionista. Outra questão significativa abordada é
a da necessidade de a abordagem patrimonial acompanhar as mudanças da
cidade e da sociedade, salientando que a preservação do patrimônio é um
meio para alcançar melhor qualidade de vida, não um fim em si mesmo.
Como entender a questão da construção do patrimônio? Sob a ótica da acu-
mulação de bens ou sob o ângulo do compartilhamento de bens culturais
significativos para a identidade coletiva? Carrión Mena coloca essa questão
para analisar as ações de preservação do patrimônio. Aponta que a lógica
do mercado conduz à destruição e reconstrução das cidades, produzindo
o esquecimento, e que o reconhecimento de múltiplos significados é parte
essencial da condição de patrimônio cultural.
O campo da restauração no Brasil se encontra em meio a críticas prove-
nientes de diferentes origens e com diferentes propósitos. Beatriz Kühl
analisa essa questão apontando que o reconhecimento do restauro como
um campo disciplinar próprio e a adoção de um embasamento teórico e
metodológico bem estruturado possibilitam fazer frente a críticas e atingir
a viabilidade para intervenções bem-feitas.
Andrea Pane apresenta uma contribuição muito importante para a com-
preensão do panorama atual da questão patrimonial na Itália, mostrando
como, desde os anos 2000, está ocorrendo uma tendência de aproximação
de abordagens entre os partidários das três principais correntes teóricas
divergentes e presentes na Itália desde os anos sessenta, pelo menos: do
restauro crítico-conservativo, da pura conservação e da manutenção e res-
tituição a uma integridade e funcionalidade original. Citando o sociólo-
go Zygmunt Bauman e sua crítica da cultura da sociedade de consumo, e

8 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


evidenciando as consequências da crise econômica de 2008, Pane analisa
a “espetacularização” do patrimônio e o esvaziamento de uma autêntica
política pública de preservação, evidenciado pela redução dos orçamentos
com essa finalidade. Através da análise de diversos exemplos, Pane mostra
essa aproximação de conceitos empregados em projetos de diferentes auto-
res. E mostra que os maiores perigos para a preservação na Itália de hoje
são as intervenções destituídas de uma base teórica consistente.
A questão da preservação dos jardins históricos é abordada por Ana Rita
de Sá Carneiro, traçando um quadro da história e da teoria da paisagem
dos jardins e dos critérios para reconhecimento e intervenção em jardins
históricos. Considerando que a criação de jardins atendeu a determinadas
intenções plásticas e ambientais, assumindo diferentes significados com o
tempo e sendo constituído por organismos vivos sujeitos à ação da natureza
e, portanto, dependentes de constantes ações de manejo, o tema é de gran-
de importância para a conservação de jardins.
Finalmente, João Mascarenhas Mateus traz uma muito oportuna contri-
buição evidenciando a necessidade de conhecer a História da Construção,
das Técnicas e das Tecnologias para, com um enfoque teórico e prático
aprimorado, conduzir as intervenções em construções históricas, evitando
a contraproducente introdução de técnicas estranhas, não na análise, mas
nas próprias intervenções efetuadas.
O amplo leque de questões contido neste conjunto de textos dá conta de
ensejar a discussão dos temas mais candentes relacionados à preservação e
restauro no Brasil nos dias de hoje. Acreditamos que o CICOP cumpre aqui
um de seus papéis mais importantes, qual seja o de subsidiar o debate e a
informação a respeito do Patrimônio Cultural.

José Eduardo de Assis Lefèvre

PREFÁCIO 9
SUMÁRIO

■■ APRESENTAÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
Rosío Fernández Baca Salcedo
Vladimir Benincasa

■■ PREFÁCIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
José Eduardo de Assis Lefèvre

■■ QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE PRESERVAÇÃO . . . . . . . . . . . . 13


José Eduardo de Assis Lefèvre

■■ LA PERCEPCIÓN VISUAL DE LA CIUDAD HISTÓRICA Y


SU RELACIÓN CON EL PAISAJE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
Miguel Ángel Fernandez Matrán

■■ LA REHABILITACIÓN DEL PATRIMONIO


ARQUITECTÓNICO Y EDIFICADO COMO
PROCESO DIALÓGICO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
Josep Muntañola Thornberg
Magda Saura Carulla

■■ REPENSAR UNA MIRADA INTEGRADORA PARA


NUESTRO PATRIMÔNIO DE AMÉRICA LATINA. . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
Ramón Gutiérrez

■■ URBICIDIO O LA PRODUCCIÓN DEL OLVIDO . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71


Fernando Carrión Mena

■■ QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURO: A


VIABILIDADE DA RESTAURAÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
Beatriz Mugayar Kühl

■■ QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURO: UNA


RIFLESSIONE DALL’ITALIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109
Andrea Pane
■■ CONSERVANDO PAISAGEM CULTURAL COMO
PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E JARDIM. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131
Ana Rita Sá Carneiro

■■ DESCONSTRUINDO POLARIDADES: HISTÓRIA DA


CONSTRUÇÃO E TÉCNICAS PARA A CONSERVAÇÃO
DO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147
João Mascarenhas Mateus
QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS
DE PRESERVAÇÃO

José Eduardo de Assis Lefèvre

RESUMO: A questão da preservação é tema de grande relevância na atualida-


de. No entanto, ao mesmo tempo, a destruição do patrimônio cultural ocorre
de forma ampla em todo o mundo. No Oriente Médio, na África, no Extremo
Oriente, assiste-se hoje à destruição sistemática de patrimônio como forma
de destruição deliberada da identidade cultural de determinadas etnias. Na
Europa e na América, o patrimônio cultural consagrado se encontra melhor
protegido, mas o amplo e difuso patrimônio cultural não consagrado, mas
não por isso sem importância, constituído pela arquitetura vernácula, por
exemplo, segue em acelerado processo de transformação e desaparecimen-
to. As políticas de preservação postas em prática são, em grande parte, in-
suficientes para conter ou influir nas transformações em curso. De país para
país, as diferenças culturais, legais e econômicas levam a diferentes níveis de
preservação e diferentes formas de participação dos agentes no campo da
preservação. Nesta apresentação, chamaremos a atenção para três aspectos
da questão: a atuação dos agentes promotores da preservação, a valorização
ou desvalorização associadas à preservação e a inter-relação entre preserva-
ção de bens e preservação de ambientes.

1 A ATUAÇÃO DOS AGENTES PROMOTORES DA


PRESERVAÇÃO

Identificamos, no Brasil, três categorias de agentes significativos nos pro-


cessos de valorização ou destruição de bens de interesse para a preservação:
o Estado, as empresas e os cidadãos. Seus interesses, formas de atuação e
compromissos são diversos, e, dentro de cada uma dessas categorias, pode-
mos apontar ao menos duas subcategorias.

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE PRESERVAÇÃO 13


No âmbito do Estado, a administração, ou seja, o conjunto dos responsáveis
pela condução das políticas e intervenções públicas, não pode ser confun-
dida com a visão dos técnicos que atuam na área da preservação. Estes es-
tão principalmente preocupados com os princípios e premissas da preser-
vação. A administração tem a responsabilidade pela viabilidade econômica
e política da atuação nesse campo. É por vezes difícil a concordância entre
esses diferentes pontos de vista.
No âmbito das empresas, destacamos também duas categorias distintas de
inserção significativa: a das empresas detentoras da propriedade de bens
de interesse para preservação e as empresas prestadoras de serviços na área
de preservação. Estas, pela sua própria natureza, estão diretamente interes-
sadas na valorização da preservação e na sua promoção. As primeiras não
necessariamente se identificam com a valorização da preservação. Apenas
aquelas que vislumbram na preservação de seus bens uma forma de autoi-
dentificação ou de valorização de sua imagem através da preservação de
bens consolidam essa imagem de forma positiva.
No âmbito, finalmente, dos cidadãos, também apontamos duas categorias
significativas: a dos proprietários de bens de interesse e os interessados pela
preservação, mas não proprietários de bens de interesse reconhecido.
Colocados em cena esses diversos agentes, passaremos a tecer considera-
ções sobre as diferentes formas de interação entre eles.
A administração pública no Brasil está calcada em um modelo em que o
Executivo, nos seus três níveis, tem uma ampla margem de manobra na
execução de projetos de seu interesse. Assim, programas de preservação
de bens de interesse cultural dependem do conhecimento e interesse dos
chefes do Poder Executivo e de seus principais colaboradores, ou da pers-
pectiva de ganhos políticos com a sua persecução, ou seja, do interesse do
público pelo assunto.
No campo das empresas, algo semelhante pode ser identificado: há empre-
sas, especialmente as familiares, que identificam com clareza certos bens
de sua propriedade como pontos de honra para preservação de sua identi-
dade. Outras há que identificam na preservação de bens de sua propriedade
uma forma de construir uma imagem positiva perante o público em geral.
A grande maioria, porém, vê a preservação apenas na ótica da matemática
financeira imediata na ponta do lápis.
Quanto aos cidadãos, podemos observar que há um grupo, extremamen-
te reduzido, que se empenha pela preservação de bens arquitetônicos

14 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


associados a familiares que se destacaram em algum campo, como uma
forma de valorização de sua memória e identificação. Prevalece a dispo-
sição mais geral de transformar os bens materiais de origem em gerações
anteriores em bens pecuniários, com a máxima rentabilidade possível. Há
outro grupo, muito mais numeroso, que se manifesta publicamente para
exigir do Poder Público medidas de preservação associadas ao tombamen-
to de bens de propriedade alheia, seja ela privada ou pública.
O Poder Público tem responsabilidades claras na qualificação e manuten-
ção da qualidade dos espaços públicos e dos edifícios públicos. O exemplo
é um forte elemento indutor do apreço pelos ambientes de uma cidade. O
Estado não pode se omitir dessa incumbência inalienável, que tem refle-
xos diretos na preservação do ambiente urbano. O Estado tem também um
papel fundamental na identificação, valorização, promoção e fiscalização
do que ocorre com os bens tombados ou listados para preservação. Mas
o Estado não tem condições para assumir a responsabilidade direta pela
preservação dos bens privados, nem é esse o seu papel. É essencial que os
outros agentes envolvidos assumam iniciativas e responsabilidades.

2 A PRESERVAÇÃO E A VALORIZAÇÃO

Para analisar o comportamento e os resultados da ação dos diferentes agen-


tes que procuramos caracterizar, vamos colocar em foco uma questão – a
nosso ver, essencial – para avaliar os resultados das medidas de preserva-
ção, que é a questão da valorização ou desvalorização dos bens identifica-
dos como de interesse para a preservação. E faremos uma comparação dos
procedimentos e da prática em duas realidades bastante distintas, quais
sejam a do Brasil e a do Reino Unido, sem pretender sugerir que se possam
transferir sem mais as práticas de uma realidade e cultura a outra.
Entre nós, a importância atribuída ao tombamento em si tem resultado em
uma prática adotada já há bastante tempo. Já se tornou por demais evidente
que o tombamento pode impedir, como último instrumento, a demolição
de um bem, mas não garante a sua efetiva preservação, com a sua reinte-
gração a uma utilização social compatível. Por se tratar de um instrumento
forte e constrangedor dos direitos de propriedade em favor do reconheci-
mento de um valor social atribuído ao bem, por si só não se constitui em

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE PRESERVAÇÃO 15


fator de valorização do bem tombado. Não estou aqui questionando a sua
legitimidade nem a sua necessidade, mas sim apontando que, desacompa-
nhado de outros procedimentos, a sua eficácia como instrumento para a
preservação não é suficiente.
Ao se atribuir ao Estado a maior responsabilidade direta para garantir a
preservação de bens, através do tombamento e da fiscalização, a questão da
preservação fica subordinada à eficiência da ação governamental. Sabemos
bem das limitações orçamentárias e políticas da ação dos diferentes níveis
de governo na questão da adoção e persistência de uma efetiva política pú-
blica voltada à preservação. Ficamos, assim, entre o tombamento e a insu-
ficiente promoção da preservação, em um círculo vicioso em que poucos
encontram satisfação.
Para efeito de comparação, vamos trazer para a análise o exemplo das
ações de preservação em curso no Reino Unido. Uma de suas premissas
básicas é a associação entre preservação e valorização, expressas em um
lema singelo: preservar para valorizar e valorizar para preservar. A valo-
rização em questão é a valorização cultural e a valorização de uso, com
reflexos inclusive financeiros associados à preservação. Para início, os re-
cursos destinados às iniciativas de preservação não têm origem no orça-
mento governamental, que é sempre disputado entre os diferentes setores
da administração. Sua origem está no sistema de loterias do Reino Unido,
congregado pela The National Lottery, criada em 1994, que destina re-
cursos de uma porcentagem de sua arrecadação para a distribuição entre
agentes na área cultural, entidades mantenedoras de museus, instituições
voltadas para as artes e para a preservação do Patrimônio Cultural, como
a Heritage Lottery Fund e o Arts Council. Assim, a inclusão de um bem
em uma listagem de bens com interesse para preservação habilita que a
instituição responsável por ele possa receber recursos com essa origem e
para essa finalidade. A exclusão desse bem da listagem, por seu abandono
ou descaracterização, inabilita a recepção de recursos. Esse sistema esti-
mula o empreendimento de iniciativas para a preservação, o que é muito
diferente da ação de cidadãos que apenas se manifestam para exigir que o
Estado tome iniciativas. É claro que o Estado tem responsabilidades que
devem ser assumidas e cobradas, mas é também claro que o Estado não
tem a capacidade para assumir com exclusividade o ônus da preservação
de bens. No caso britânico, os órgãos que administram os procedimentos
de preservação, da listagem de bens à distribuição de recursos e elaboração

16 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


de estudos e pesquisas, também tomam iniciativas para o suporte e valo-
rização coletiva dos bens listados.
Cada um dos quatro países que compõem o Reino Unido tem um sistema
de preservação independente e semelhante, com uma grande quantidade
de instituições públicas e privadas atuando simultaneamente. O sistema
como um todo faz a gestão de uma grande quantidade de bens preserva-
dos, de naturezas diversas, movimentando recursos financeiros muito sig-
nificativos. Definitivamente, esse sistema exerce um importante papel no
quadro econômico do Reino Unido, tanto no campo imobiliário como no
turístico, responsável por empregar um número elevado de pessoas em em-
pregos diretos e indiretos, além de integrar uma quantidade apreciável de
pessoas em serviços voluntários.

2.1 Histórico do English Heritage

O English Heritage foi criado em 1984 para ser o órgão oficial de orientação
ao Governo para agir no meio ambiente histórico e para incentivar a popu-
lação a entender, valorizar, cuidar e apreciar o seu meio ambiente histórico.
O início da responsabilidade legal do Governo pelo meio ambiente históri-
co no Reino Unido pode ser identificado com o Ancient Monuments Act de
1882. Nos 100 anos seguintes, o Estado continuou envolvido com a prote-
ção do Patrimônio construído nacional através de órgãos e departamentos
como o Ministério de Obras Públicas, o Historic Buildings Council, o Gre-
ater London Council e o Departamento do Meio Ambiente.
No início dos anos 1980 – Margareth Thatcher assumiu o cargo de pri-
meira-ministra em 1979 –, Michael Heseltine, Secretário de Estado para
o Meio Ambiente, propôs que o cerne da responsabilidade pelo Meio Am-
biente Histórico fosse transferido para uma agência semiautônoma que
fosse capaz de operar com maior eficiência e iniciativa, livre da supervi-
são ministerial no dia a dia. Na sequência, em 1984, a Historic Buildings
and Monuments Commission – ou, para usar seu nome menos formal, o
English Heritage – foi criada para assegurar a preservação e valorização
do Patrimônio produzido pelo homem na Inglaterra, para benefício das
futuras gerações, e incentivar a população a apreciar e entender seu meio
ambiente histórico.

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE PRESERVAÇÃO 17


2.2 Histórico do National Trust

O National Trust é uma instituição privada de interesse público, totalmente


independente do Governo. Detém a propriedade de uma grande quanti-
dade de construções e sítios históricos que lhe garante rendimentos com
atividades comerciais, além de receber doações e heranças, bem como
anuidades de associação e receitas de entradas para visitação. Tem mais
de 3,7 milhões de associados e conta com a colaboração de mais de 61.000
voluntários. Opera e abre ao público mais de 350 casas e jardins históricos
e monumentos antigos.
O National Trust foi constituído em 1894 como uma associação sem fins
lucrativos nos termos da Companies Act de 1862-1890. A primeira Natio-
nal Trust Act foi aprovada em 1907 pelo Parlamento.
O English Heritage e o National Trust, que atuam na Inglaterra, serviram
de modelo para instituições mais ou menos similares na Escócia, no País de
Gales e na Irlanda do Norte.
Além dessas instituições de caráter nacional, centenas de instituições pri-
vadas de interesse público, sob a forma de fundações, organizaram-se no
Reino Unido para manter e gerir bens patrimoniais de interesse para a pre-
servação. Palácios e castelos, como Blenheim, Longleat, Castle Howard,
casas famosas, como Brantwood (a casa de John Ruskin), Strawberry Hill
(a casa de Horace Walpole), Blackwell (a Casa Arts & Crafts), sítios impor-
tantes para a História da Industrialização, como Ironbridge, são apenas um
pequeno punhado dos bens patrimoniais que têm sua preservação e gestão
suportada por fundações criadas com esse objetivo.
Essas diversas instituições gerem recursos próprios e se habilitam a rece-
ber recursos oriundos da The National Lottery, que desde sua fundação já
destinou mais de 4 bilhões de libras esterlinas a projetos agenciados pela
Heritage Lottery Fund e Arts Council.

3 A PRESERVAÇÃO DE BENS E A PRESERVAÇÃO DE


AMBIENTES

É na preservação de ambientes que fica mais evidente a dificuldade em ob-


ter resultados com os instrumentos atualmente utilizados. Enquanto que

18 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


para a preservação de bens isolados é mais viável identificar responsáveis
diretos, para a preservação de ambientes urbanos é essencial dispor de
um suporte social e difuso. Comportamentos coletivos estão diretamente
ligados aos significados que assumem objetos, intervenções, costumes e
práticas.
Um exemplo claro dessa dificuldade é o caso do ambiente dos chamados
bairros-jardim da capital paulistana. Neles, não é a arquitetura das casas
que é tombada, mas sim as regras de uso e ocupação do solo, a vegetação e
a obediência às regras contidas nos contratos de compra e venda dos lotes,
estabelecidas pelas companhias loteadoras, como a companhia City.
Além de recuos frontais, laterais e de fundo, o fechamento frontal no ali-
nhamento dos lotes para as vias públicas deveria obedecer a um padrão de
muretas de alvenaria com altura limitada a cerca de sessenta centímetros,
encimadas por gradis metálicos ou de madeira e sebes vivas que permitis-
sem a visibilidade dos jardins frontais a partir da rua. Assim, o ambiente
das ruas era definido pela arquitetura das casas e seus jardins frontais,
o que hoje é praticamente inexistente, dada a substituição desses fecha-
mentos de caráter ameno por brutais paredões de três ou mais metros de
altura, geralmente encimados por rolos de arame farpado, como usado
nas trincheiras da Primeira Grande Guerra. As razões alegadas de segu-
rança prevalecem, quase sem discussão, sobre a questão da preservação
ambiental.
Veja-se, como exemplo, o caso da residência projetada em 1958 pelo arqui-
teto Victor Reif na Rua Venezuela, em São Paulo, que recebeu o Prêmio
Governador do Estado de São Paulo no 8º Salão Paulista de Arte Moderna,
em 1959. A integração visual da arquitetura ao espaço público qualificava
o ambiente da rua.

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE PRESERVAÇÃO 19


Figura 1. Residência projetada pelo arquiteto Victor Reif na Rua Venezuela.
Foto: José Moscardi.

Compare-se com a situação atual do mesmo local para se constatar o em-


pobrecimento ambiental decorrente da ruptura da ligação visual com uma
obra primorosa de arquitetura.

Figura 2. A Rua Venezuela nos dias de hoje. Foto: Google StreetView (2011).

20 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


São inúmeros os exemplos eloquentes da perda que o enclausuramento
doméstico traz para a qualidade do ambiente urbano. Abordarei a seguir
outro exemplo cuja eloquência é ampliada pela própria concepção que o
arquiteto autor do projeto explicitou a respeito da relação entre o espaço
público e o espaço privado. Trata-se do projeto do arquiteto Rino Levi para
uma residência localizada na esquina da Rua Venezuela com a Rua Nicará-
gua. Nesse projeto toda a área privada dos recuos frontais obrigatórios para
aquelas duas ruas permaneceu integrada ao espaço público, possibilitando
uma elevada qualificação ambiental a ele. É compreensível que, devido à
agressividade presente atualmente no ambiente urbano, alguma limitação
fosse introduzida entre o espaço público e o particular. Mas a solução para
essa limitação poderia se preocupar em manter um grau de permeabilidade
visual, ao menos.
A integração entre a arquitetura e o espaço público era ponto de princípio
para muitos dos arquitetos modernos em atuação em São Paulo nos anos de
1950 e 1960, o que resultou em obras de elevada qualidade projetados por
Rino Levi, Vilanova Artigas, Eduardo Kneese de Mello, Paulo Mendes da
Rocha, Pedro Paulo Saraiva, entre muitos outros. Edifícios como o Prudên-
cia, o Louveira, o Paulicéia e inúmeras residências estão entre essas obras.

Figura 3. Residência projetada pelo arquiteto Rino Levi na Rua Nicarágua


esquina com Rua Venezuela. Foto: José Moscardi.

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE PRESERVAÇÃO 21


Figura 4. Planta da mesma residência.

Figura 5. Vista recente da mesma esquina. Foto: Google StreetView (2011).

22 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


Figura 6. Rua Marquês de Sabará, Morumbi. Foto: Google StreetView (2011).

A imagem agora escolhida para comparação, da Rua Marquês de Sabará,


no Morumbi, é de um bairro não tombado, predominantemente residen-
cial, e a questão nessa rua não é uma questão de preservação, mas apresenta
aspectos em comum com a degradação ambiental dos bairros-jardim, cuja
preservação foi pretendida por meio do tombamento. A perda da qualidade
ambiental do espaço público parece não incomodar, desde que garantida
a circulação de veículos, a sensação aparente de segurança e a presença
de vegetação. Por onde circulam os carrinhos de criança e as pessoas com
problemas de mobilidade? O ambiente urbano é um todo, composto por
espaços públicos e espaços privados, que dialogam de forma construtiva ou
agressiva. Uma cidade em que as pessoas circulam em carros blindados en-
tre condomínios fechados e shopping centers ou escritórios com garagens é
o oposto da cidade em que a preservação tenha o sentido da dignificação e
valorização da vida urbana. Temos claro que o espaço público é também o
espaço da justaposição de interesses conflitantes, e que não haverá unani-
midade em torno de questões polêmicas. Mas é essencial que, em questões
como a dos muros de enclausuramento ou a das características das calça-
das da cidade, haja um nível de consciência quanto aos prejuízos trazidos

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE PRESERVAÇÃO 23


para a qualidade do ambiente urbano e uma tomada de posição por parte
do Estado e da população de maneira geral.
Para finalizar, apresento outro caso que combina a questão da consciência
coletiva com a atuação dos agentes responsáveis pela preservação ou desca-
racterização de bens patrimoniais. Trata-se do Ginásio Esportivo do Clube
Atlético Paulistano, conhecidíssimo projeto de 1957 dos arquitetos Paulo
Mendes da Rocha e João Eduardo de Gennaro, premiado em 1961 na VI
Bienal de São Paulo. A abertura de processo de tombamento pelo CON-
PRESP (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cul-
tural e Ambiental da Cidade de São Paulo) se deu apenas em 2004, quando
a cobertura do ginásio já estava ocupada por instalações de serviço que
obstruem totalmente a visão desimpedida da elegante estrutura de concre-
to armado da obra, que é o seu marco referencial e elemento que motivou a
sua premiação e o seu tombamento. Considerando-se a data da abertura do
processo, o clube não pode ser obrigado a remover as partes que ali edificou
e que não constavam do projeto de 1957, a menos de orientação que venha a
ser dada pelo CONPRESP em caso de alguma nova intervenção pretendida
pelo clube no ginásio. Mas pode ser convencido a removê-las, se realizar
que detém a propriedade de uma verdadeira joia arquitetônica, cuja valo-
rização só pode trazer mais prestígio e brilho ao clube. Claro que há ques-
tões técnicas, funcionais e financeiras a serem equacionadas e resolvidas,
mas que certamente são solucionáveis. E dependem de uma decisão a ser
tomada pelo clube, decisão que envolve, evidentemente, a participação de
seus associados. Esse caso é exemplar de como, em matéria de preservação
e restauro, é necessário o debate, o convencimento, a difusão de ideias, pro-
cesso que pode ser demorado, mas pode ter efeitos mais duradouros do que
a imposição de medidas à força. Deixo de incluir imagem atual do Ginásio
pois não tenho autorização para tanto do clube.

24 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


Figura 7. Ginásio esportivo do Clube Atlético Paulistano quando
recém-concluído. Foto: José Moscardi.

Figura 8. Foto de conjunto do Ginásio do Clube Atlético Paulistano.


Foto: José Moscardi.

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE PRESERVAÇÃO 25


4 BIBLIOGRAFIA

ACAYABA, Marlene Milan. Residências em São Paulo. 1947-1975. São Paulo: Projeto, 1986.

ANELLI, Aneli, GUERRA, Abílio, KON, Nelson. Rino Levi, arquitetura e cidade. São Paulo:
Romano Guerra, 2001.

BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1981.

DAVIES, Philip, KEATE, Delcia, DUMVILLE, Richard, PARFITT, Clare. Saving London:
20 years of Heritage at risk in the Capital. London: English Heritage, 2011.

DRURY, Paul, McPHERSON, Anna. Conservation Principles – Policies and Guidance for
the Sustainable Management of the Historic Environment. London: English Heritage, 2008.

MINDLIN, Henrique E. Modern Architecture in Brazil. New York: Reinhold, 1956.

MONTANER, Josep María, VILLAC, Maria Isabel, ROCHA, P.M. Mendes da Rocha. Lis-
boa: Blau, 1996.

XAVIER, Alberto, LEMOS, Carlos, CORONA, Eduardo. Arquitetura Moderna Paulistana.


São Paulo: Pini, 1983.

26 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


LA PERCEPCIÓN VISUAL DE
LA CIUDAD HISTÓRICA Y SU
RELACIÓN CON EL PAISAJE

Miguel Ángel Fernandez Matrán

RESUMEN: El trabajo sobre la dimensión paisajística en determinados bienes


de interés cultural que se realizó en España (Junta de Andalucía Cuaderno Nº
28 sobre Patrimonio Histórico) es sumamente aprovechable en sus aplicacio-
nes y enseñanzas, sobre todo en los desequilibrios que se vienen produciendo
de los objetos arquitectónicos de interés cultural y su relación con el paisaje en
todo el mundo. Su referencia especial a España encuentra su justificación en
un doble argumento que es extrapolable al ámbito internacional. Primero: en
la insuficiencia de los conceptos legales actualmente existentes, encaminados
exclusivamente a la protección de determinados lugares con una visión reduci-
da estrictamente a los “objetos arquitectónicos” considerados BIC (Bienes de
Interés Cultural). Segundo: en el escaso y restrictivo entendimiento del con-
cepto de “entorno”. La idea del paisaje y su relación con los objetos arquitec-
tónicos ha estado rondando en los propósitos de las autoridades competentes
que no han acabado de decantarse todavía por el equilibrio entre los objetos
y el medio donde estos se insertan, lo que provoca continuamente opiniones
encontradas sobre la pérdida del valor significativo de lugares con alto valor
patrimonial por ignorar el “paisaje”, por ignorar la relación del paisaje con los
objetos y sobre todo por ignorar lo mas importante que es el reconocimiento
de los individuos a su patrimonio cultural a través de esta relación medio y
objetos. Otro hecho dominante en la última década ha sido primar “turismo
y comercio” bajo la denominación “sostenibilidad” para acosar y deslegitimar
los objetos culturales con construcciones que en muchos casos solo han con-
seguido un desorden territorial. Así se ha puesto de manifiesto en polémicas,
debates y discusiones públicas en torno a este desequilibrio que ha alcanza-
do páginas completas de diarios.(véanse los casos en Sevilla provocados por
la construcción de la Torre de Pelli y la utilización del espacio público de la
plaza de la Encarnación, en Córdoba la construcción de una urbanización en
las proximidades de Medina Azahara y en San Cristóbal de La Laguna ciu-
dad Patrimonio de la Humanidad con la construcción del nuevo edificio de
Juzgados en la Plaza fundacional del Adelantado).
Palabras clave: Entorno. Paisaje

LA PERCEPCIÓN VISUAL DE LA CIUDAD HISTÓRICA Y SU RELACIÓN CON EL PAISAJE 27


1 EL PAISAJE SEGÚN EL CONVENIO DE FLORENCIA

Tal y como se define en el Convenio de Florencia, “Paisaje es cualquier


parte del territorio tal como la percibe la población y cuyo carácter sea re-
sultado de la acción y la interacción de factores naturales y/o humanos”.
Coincido con el estudio de PH cuaderno 28 que esta definición contiene al
menos tres partes:
Una objetiva (“cualquier parte del territorio”)
Una subjetiva (“tal como la percibe la población”)
Una causal y dinámica (“resultado de la acción y interacción de factores
naturales y/o humanos”).
El Convenio de Florencia o Convenio Europeo del Paisaje vincula la idea de
paisaje “a todo el territorio” abarcando áreas naturales, rurales y urbanas”,
comprendidas las “zonas terrestres, marítima y las aguas interiores”, al tiem-
po que señala que deben considerarse paisajes tanto los lugares excepcionales
como los comunes y cotidianos e, incluso los degradados. Figuras 1 y 2.

Figura 1. Sainete en torno a un Figura 2. Pérdida del Valor


rascacielos. Fuente: Periódico el Significativo por el desequilibrio en
País, domingo 29 de enero de el territorio. Fuente: Periódico El
2012. Sección Vida&Artes. Artículo País, domingo 8 de abril de 2012,
de Reyes Rincón. artículo de Manuel J. Albert.

Todo esto nos confirma en la idea que las plazas públicas relacionadas con
la formación u origen de nuestros centros históricos son espacios de un alto

28 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


valor significativo no sólo por su aportación objetiva a la historia sino por
el valor subjetivo de como la perciben generaciones y generaciones, siendo
al final este valor el más sostenible, ya que a pesar de los cambios introdu-
cidos por la intervención en el territorio (edificaciones singulares, viarios,
usos etc), el valor significativo que atribuye la población a los diferentes
elementos o partes del territorio, son de un claro valor simbólico.
El reconocimiento del paisaje reconociendo su trayectoria artística y cien-
tífica y valorando su gran prestigio cultural, reside en incorporarlo a las
prácticas de la protección del patrimonio cultural y la ordenación territo-
rial como concepto de amplio sentido que permite valorar la coherencia
existente entre los elementos naturales del territorio y el artificio humano
sobrepuesto en él, esto es el equilibrio de los objetos arquitectónico con el
medio en donde se insertan.
El Convenio de Florencia crea un nuevo marco intelectual compartido para
un concepto que ha sido durante mucho tiempo una “noción resbaladiza”,
el difícil consenso alcanzado con dicho acuerdo internacional puede servir
para afrontar la protección patrimonial y la “gobernanza territorial”.
Gobernanza territorial y protección patrimonial que siguen empeñadas
cada vez con menos argumentos en no contemplar el equilibrio que pro-
porciona el “paisaje” a la hora de intervenir en los contenedores arquitectó-
nicos o espacios emblemáticos de nuestras ciudades históricas, y que tienen
como consecuencia inmediata la desconexión de la población con el argu-
mento sostenible de la historia.
La elección de la situación y el emplazamiento en las ciudades que hoy
son Patrimonio Mundial se hacían desde un minucioso conocimiento del
territorio.
Existen sin embargo numerosos ejemplos de fracasos o abandonos de lu-
gares explicados por causas diversas, pero la continuidad de innumerables
asentamientos antiguos muestra con gran frecuencia la sabiduría y el acier-
to tomados en las diferentes opciones. En el caso de los asentamientos a
los que se le atribuyeron funciones estratégicas (de dominio, defensivas) o
simbólicas (santuarios, templos, necrópolis), la localización es escogida no
sólo por sus ventajas posicionales generales y productivas, sino también por
razones de prestigio.
Tener en cuenta el contexto territorial y paisajístico de los lugares y plazas
claves en una ciudad histórica, nos ayuda a mantener ese alto valor signi-
ficativo que la población viene atribuyéndole de generación en generación,

LA PERCEPCIÓN VISUAL DE LA CIUDAD HISTÓRICA Y SU RELACIÓN CON EL PAISAJE 29


siendo la autentica sostenibilidad de esos espacios sus relaciones de intervi-
sibilidad; es decir, con las capacidades que se adquieren tanto al poder ver
y observar el espacio próximo (cuenca visual) desde el sitio elegido (visión
desde dentro a fuera), como de ser visto (visión desde afuera). Figura 3.

Figura 3. Nuevo edificio de Juzgados en La Plaza del Adelantado


(San Cristóbal de La Laguna). Fotografia de Miguel Angel F.Matrán

El emplazamiento determina en multitud de ocasiones la forma del asen-


tamiento en sus dimensiones básicas (extensión, forma, altura, volume-
tría) y establece pautas significativas para las alineaciones de edificios sig-
nificativos, calles, plazas etc. Así nos lo confirman los estudiosos sobre la
morfología urbana.
En el ámbito de la intervención patrimonial siguen siendo portada de los
periódicos las continuas intervenciones que provocan una “contaminación
visual” de nuestros bienes culturales. La alteración del acceso visual a un
determinado recurso paisajístico, bien natural como urbano sigue provo-
cando controversias entre la población y dudas en los legisladores.
Entre otras últimamente nos hemos encontrado en algunas de nuestras
ciudades o lugares declarados Patrimonio Mundial perturbaciones o

30 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


alteraciones de continuidades visuales que han causado debates mas o me-
nos importantes, pero que confirman la idea de que en la medida de los
posible se deben eliminar las interrupciones de “continuidad visual” en los
elementos tanto físicos como espaciales de los lugares que tienen un alto
valor significativo para la población, ya que ello favorece el que la población
se siga reconociendo en ellos, lo que acarrea un mayor conocimiento y por
lo tanto una mayor sensibilidad a la protección.
Todo esto nos confirma en la idea de que en las ciudades históricas funda-
mentalmente la delimitación y articulación del ámbito paisajístico deben
contemplarse a través de un Plan Especial.
En el caso de Andalucía la Ley de Patrimonio Histórico establece que “el
entorno de los bienes inscritos como de interés cultural estará formado por
aquellos inmuebles y espacios cuya alteración pudiera afectar a los valores
propios del bien de que se trate, a su contemplación, apreciación o estudio,
pudiendo estar constituido tanto por los inmuebles colindantes inmediatos
como por los no colindantes o alejados”.
La referencia a la “contemplación, apreciación o estudio” nos remite al
universo de los recursos paisajísticos. Parece claro que la delimitación del
entorno de cualquier bien de interés cultural constituye una potente her-
ramienta para la preservación de los recursos paisajísticos propios de los
bienes de interés cultural.
La elección de “destinos” en las ciudades Patrimonio Mundial también
tiene coincidencia con la teoría “Smart” (las smartcities) que preconiza
el desplegar infraestructuras en su mayoría invisibles que permitan pres-
tar nuevos servicios para mejorar la calidad de vida de los habitantes. Por
ejemplo, en la isla del Hierro tras las erupciones volcánicas submarinas y
como alternativa para recuperar el turismo se impulsa la creación del pri-
mer “Geoparque de Canarias”. Volvemos a la alternativa del paisaje como
equilibrio con recorridos geolocalizados que ofrecen a un público europeo
en crecimiento debido a la realidad demográfica la alternativa sostenible
del “equilibrio con el entorno”.
Conseguir este equilibrio debe basarse en la participación de los agentes
sociales que han tenido que ver en la historia reciente como en el momen-
to actual. Los participantes deben ser actores y entidades presentes, inde-
pendientemente de su peso y función- en el conjunto de la estructura so-
cial, económica y política de nuestras ciudades-, incluyendo no sólo a los
protagonistas de los discursos dominantes, sino también de aquellos otros

LA PERCEPCIÓN VISUAL DE LA CIUDAD HISTÓRICA Y SU RELACIÓN CON EL PAISAJE 31


que plantean cuestiones alternativas, ya sean contrarias o diferentes, a las
posiciones mayoritarias desterrando esa situación triste en la que se acaba
imponiendo el “estas conmigo o contra mi”.

2 EL PAPEL DE LA REPRESENTACIÓN VISUAL EN LA


FORMACIÓN DE LA IMAGEN DE LA CIUDAD

En el valor significativo del objeto arquitectónico, es de máxima importan-


cia la representación visual que adquiere la imagen de la ciudad. La imagen
es una abstracción que puede ser visual, mental o lingüística. La imagen
visual se define como una figura, representación, semejanza o apariencia
del objeto que representa y retrata, mientras que la imagen mental es una
construcción del objeto percibida por los sentidos, donde se reconocen sen-
saciones, sentimientos y representaciones visuales.
Aunque no hace mucho tiempo se aseguraba que la superficialidad y la
volatilidad de la imagen visual no podían competir con el texto o imagen
mental en seriedad, profundidad y capacidad de interpretación. Esto hace
a Gautier escribir: “Me quede durante mas de una hora en contemplación,
intentado saciar mis ojos y grabar en el fondo de mi memoria la silueta de
esta admirable perspectiva”. Lo decía contemplando la ciudad de Toledo.
De igual forma que Gautier José Antonio Labordeta en su visita realizada a
La Laguna con objeto de ser investido Miembro de Honor del CICOP dijo:
“La Laguna es una de las ciudades mas bellas de las que he conocido en
todo el mundo”.
Esto nos obliga a cuidar con mucho esmero la representación visual de la
imagen de nuestra ciudad.
“La importancia progresiva que la imagen visual ha adquirido en nuestras
ciudades históricas amenaza incluso al sagrado reino de las palabras, al
sustituirse el recurso de la evocación, que se sirve de la palabra, por el de la
representación que lo hace de la imagen”.
Aun así, debido al turismo, nuestras ciudades históricas tienden a la esce-
nografía y a los valores inventados que buscan la rentabilidad a consta de
la autenticidad.
En cualquier ciudad es posible un despliegue de expectativas que no pare-
cen tan valiosas como son porque ya estamos acostumbrados a ellas

32 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


Y si no vean el ejemplo en Canarias de San Sebastián de la Gomera, el
5/3/2011 el diario el País incluía en sus páginas en un alarde de represen-
tación visual la imagen mental sobre San Sebastián de La Gomera con el
siguiente titular: “Un puerto antiestres”
Pescado fresco, sosiego y mucha historia en un rincón apartado del turismo
de masas y del urbanismo descontrolado. San Sebastián de La Gomera, el
refugio apacible de Colón…
La conservación es, entre otras cosas, una actitud que se ha ido inhibiendo
en las últimas décadas a medida que la acción de las instituciones se incre-
mentaba. Cada intervención directa sufragada con dinero público, a tra-
vés de los múltiples mecanismos de la Administración, llega al patrimonio
en la mayoría de los casos desprovista de análisis, método y explicación, y
solamente asociada a la cantidad invertida mas o menos justificada (casi
siempre con carácter de urgencia).

3 EL AGOTAMIENTO DE LA ACCIÓN INSTITUCIONAL

Los recursos de la sociedad, a través de sus impuestos o mediante otras


vías, distan mucho de estar correctamente canalizados y capitalizados. La
preferencia, cada vez más extendida en toda la Comunidad, por las restau-
raciones cuya inversión se mide por centenares de millones, es una ten-
dencia inversamente proporcional al deterioro del enorme patrimonio no
atendido que sigue esperando una respuesta mientras aumentan sus pro-
blemas de alteración.
Por otro lado, esta misma tendencia no tiene futuro a medio plazo, puesto
que los recursos necesarios para intervenir a la manera tradicional - esto es,
mediante restauraciones- sobre un elegido y selecto grupo de bienes, supe-
ran las dotaciones presupuestarias que, razonablemente, se manejan en el
cada uno de los municipios. (se dan casos de presupuestos desorbitados para
la restauración de una cúpula y no tener presupuesto para la restauración
del reloj que alberga la misma).
La acción tradicional de la Administración, con arreglo a la vigente Ley de
Contratos de las Administraciones Públicas -y a la anterior- sigue explotan-
do un modelo ya agotado y que no se ajusta al enfoque necesario para un
proyecto de intervención.

LA PERCEPCIÓN VISUAL DE LA CIUDAD HISTÓRICA Y SU RELACIÓN CON EL PAISAJE 33


3.1 La desvinculación de los agentes sociales con
respecto a su patrimonio.

La sociedad está cada vez más alejada de su patrimonio en un sentido real.


La herencia histórica es, para la gente, motivo de un orgullo que se limita al
enunciado de una sede de tópicos, pero que no supera este umbral.

3.2 El progresivo desconocimiento del patrimonio.

El ciudadano conceptúa el casco antiguo o las ruinas de una iglesia como


algo valioso, pero cuyo mantenimiento se pone continuamente en duda, o
es imposible de abarcar por la situación económica actual. Posiblemente la
verdadera explicación de esta actitud está, por un lado, en la acción de la
Administración, y de otro, en el desconocimiento de los mecanismos que
habría que poner en práctica para que ese patrimonio no se pierda.
Esa acción de la Administración, a la que hemos aludido, no sólo es aisla-
da, sino que se impone como la única posible. En los últimos años se está
desarrollando una línea de actuación que intenta convenir con todo tipo de
titulares la inversión pública para el patrimonio, recabando una colabora-
ción económica que antes no existía.
La defensa del patrimonio monumental, hecha por las instituciones se en-
cuentra con un obstáculo clave, y es la creencia de un sector de la pobla-
ción que justifica la “eutanasia” de parte del patrimonio, admitiendo una
realidad supuestamente irremediable como es el- que la Administración
es incapaz de contener ese pretendido plazo de caducidad que parece que
acecha a nuestro patrimonio y que actúa por su cuenta.

4 CONSIDERACIONES FINALES

Los pueblos han de aspirar a transmitir su patrimonio cultural con toda la


riqueza de su autenticidad y con toda la carga de su valor significativo
La idea del paisaje y su relación con los objetos arquitectónicos ha estado ron-
dando en los propósitos de las autoridades competentes que no han acabado

34 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


de decantarse todavía por el equilibrio entre los objetos y el medio donde
estos se insertan, lo que ha provocado continuamente opiniones encontradas
sobre la pérdida del valor significativo de lugares con alto valor patrimonial
por ignorar el “paisaje”, por ignorar la relación del paisaje con los objetos y
sobre todo por ignorar lo mas importante que es el reconocimiento de los
individuos a su patrimonio cultural a través de esta relación medio y objetos.
El Convenio de Florencia o Convenio Europeo del Paisaje vincula la idea
de paisaje “a todo el territorio” abarcando áreas naturales, rurales y urba-
nas”, comprendidas las “zonas terrestres, marítima y las aguas interiores”,
al tiempo que señala que deben considerarse paisajes tanto los lugares ex-
cepcionales como los comunes y cotidianos e, incluso los degradados.

5 BIBLIOGRAFIA

CABALLERO SÁNCHEZ, Juan VicenteI…(et al.). El Paisaje en el conjunto arqueológico Dól-


menes de Antequera. Junta de Andalucía. Consejería de Cultura. Instituto Andaluz de Pa-
trimonio Histórico. (2011)

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nia, Cadiz.Avance. PH Cuadernos 16. Junta de Andalucía. Instituto Andaluz de Patrimonio
Histórico. Consejería de Cultura. (2004)

ICOMOS-IFLA (International Council on Monuments and Sites – International Federation


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INSTITUTO ANDALUZ DE PATRIMONIO HISTÓRICO.PH Cuadernos. Espacio público,


ciudad y conjuntos históricos. Junta de Andalucía. Consejería de Cultura. (2008).

INSTITUTO ANDALUZ DE PATRIMONIO HISTÓRICO.PH Cuadernos. Paisajes y pa-


trimonio cultural en Andalucía. Tiempo, usos e imágenes. Volumen I. Junta de Andalucía.
Instituto Andaluz de Patrimonio Histórico. Consejería de Cultura. (2010)

JORNADAS SOBRE REHABILITACIÓN URBANÍSTICA. El casco viejo motor de futuro de


Bermeo. Beruala, Bermeoko Udala (2001).

EY PÉREZ, Julia. La intervención de Burle Marx en el paseo de Copacabana: un patrimonio


contemporáneo. Instituto Andaluz de Patrimonio Histórico. Consejería de Cultura. (2011)

TROITIÑO VINUESA, Miguel Ángel. Ciudades Patrimonio de la Humanidad: Patrimonio,


Turismo y Recuperación urbana. Universidad Internacional de Andalucía. Junta de Andalu-
cía. Consejería de Cultura (2008)

LA PERCEPCIÓN VISUAL DE LA CIUDAD HISTÓRICA Y SU RELACIÓN CON EL PAISAJE 35


LA REHABILITACIÓN DEL
PATRIMONIO ARQUITECTÓNICO
Y EDIFICADO COMO
PROCESO DIALÓGICO

Josep Muntañola Thornberg


Magda Saura Carulla

RESUMEN: Este escrito pretende sintetizar unos años de investigación sobre


el tema de las relaciones entre edificios ya edificados, de mayor o menor va-
lor cultural, y los nuevos proyectos arquitectónicos o urbanísticos. Es pues un
tema que intenta analizar la articulación entre proyecto e historia.
Lo hace desde una perspectiva dialógica, debido al enorme impulso que
este paradigma de las ciencias sociales ha conseguido tener en los últimos
años1, gracias a la difusión de las obras del intelectual ruso Mijaíl BajtÍn.
El texto empieza por describir brevemente el estado de la cuestión, desde la
conocida polémica entre Ruskin y Viollet-le-duc2, hasta llegar, en un segun-
do capítulo, a las definiciones de un paradigma dialógico en arquitectura y
urbanismo. Por último, unos ejemplos breves intentan ilustrar un paradigma
dialógico abierto al futuro.
Palabras-clave: Arquitectura dialógica. Patrimonio arquitectónico.
Rehabilitación.

1 Ver por ejemplo: Camic, C., & Joas, H. (2004). The Dialogical Turn. New York: Rowman-Lit-
tlefield; y también:Camic, C., & Joas, H. (2012). Dialogicality in Focus: Challenges to Theory,
Method and Application. New York: Nova Science Publishers.
2 Muntañola, J., & Saura, M. (2013). Archeological reconstruction and architecture today: the
confrontation. In M. C. Belarte, C. Masriera, R. Paardekooper, & J. Santacana (Eds.), Arque-
omediterrània 13. Interpretation spaces for archeological heritage: discussions about in situ re-
construction (pp. 25-29).

LA REHABILITACIÓN DEL PATRIMONIO ARQUITECTÓNICO Y EDIFICADO COMO PROCESO DIALÓGICO 37


1 EL ESTADO DE LA CUESTIÓN

Podría suponerse que las posiciones un tanto confusas de Ruskin a de Viol-


let-le Duc, anteriores a la revolución artística del siglo XX, que analizan
tantas y tantas publicaciones3, estarían hoy ya totalmente superadas gracias
al desarrollo espectacular de las ciencias sociales y de las teorías del arte,
pero no ha sido así, como se confirma al leer las críticas contemporáneas de
arquitectura y los escritos de muchos arquitectos actuales.
Dos gigantescos escollos teóricos lo han impedido. Uno, la insistencia y to-
zudez en definir el arte abstracto como algo que significa por no represen-
tar nada, en contra del simbolismo figurativo tradicional que significaba
por representar una copia de la realidad precedente4.
No tengo espacio aquí para una discusión amplia de este fenomenal error
teórico, basta con seguir el ingente trabajo de Paul Ricoeur5 para entender
que esta posición ha impedido la comprensión del arte moderno y ha elo-
giado obras muy mediocres por su valor de no ser figurativas, sin mayor
explicación.
Un segundo escollo muy relacionado con el primero es la afirmación de
que el arte y sus obras están al margen de cualquier consideración ético-po-
lítica, ya que significan por ellas mismas, independientemente de su con-
texto histórico-geográfico en el caso de la arquitectura, llegando a afirmar
algunos premios nobel de literatura, que los autores de obras de excelencia
literaria no eran en absoluto responsables del impacto en los lectores de sus
obras, porque cualquier relación entre estética y política era errónea6.
Como consecuencia de estos errores descomunales, y de otros que les si-
guen, como el de identificar conocimiento con comunicación sin más, las
teorías y las practicas de la rehabilitación se han visto gravemente afecta-
das. Seguimos, de este modo, con la repetición de que un edifico que se

3 Ver por ejemplo: Bagnato, V. P. (2013). Nuovi interventi sul patrimonio archeologico: Uncontri-
buto alla definizione di un’etica del paesaggio. / Nuevas intervenciones en el patrimonio arque-
ológico: Una contribución a la definición de una ética del paisaje. Tesis Doctoral, Universitat
Politècnica de Catalunya, Departament de Projectes Arquitectònics. Director Profesora Magda
Saura Carulla.
4 Mumford, L. (1936, March). The Course of Abstraction. The New Yorker. Reproducido en es-
pañol en op.cit, nota 2.
5 Ricoeur, P. (1985). Temps et récit. Paris: Seuil.
6 Muntañola, J. (2007). Las formas del tiempo: Arquitectura, Educación y Sociedad (Vol. 1). Bada-
joz: Abecedario.

38 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


relaciona con otros solamente lo puede hacer gracias a copias o metáforas,
lo cual le condena a no ser moderno, por lo que lo mejor es no relacionar en
absoluto los edificios o, lo que se considera todavía mejor, tirar los antiguos
para poder poner otros más modernos que no copien la antigüedad, y así
justificar las mayores barbaridades urbanísticas. En el otro extremo, se jus-
tifica convertir las ciudades arqueológicas en parques temáticos, con ven-
dedoras de queso de Roma o Grecia, luchas y peleas entre gladiadores, etc.
Una muestra de esta confusión es la publicación del Departamento de
Proyectos de la Escuela de Arquitectura de Madrid, en la que al lado de va-
liosas propuestas hay artículos en los que se intenta demostrar, por ejemplo,
que edificios de Neutra, en las espectaculares colinas en Los Angeles, no
son interesantes por su aprovechamiento de vistas, climas, naturaleza, etc.,
sino por su forma en sí misma, lo cual los haría merecedores de protección
incluso si estuvieran en otros lugares. Si Neutra se levantara de su tumba.7
Vamos pues a intentar deshacer el entuerto con ayuda del paradigma
dialógico.

2 EL PARADIGMA DIALÓGICO

La fuerza del paradigma dialógico se puede desprender de la conjunción


en el año 1973 de una serie de textos de gran importancia para la teoría de
arquitectura, aunque no exista una clara consciencia de ello, ni dentro ni
fuera de la arquitectura (Ver diagrama I). El centro de esta conjunción está
perfectamente resumido en el texto que escribe Bajtín en aquellas fechas
sobre lo que él llama el “cronotopo creativo”, denominación que él mismo
anuncia dentro de otro contexto muchos años antes, cuando escribió su
libro sobre la novela educativa en Goethe. Pero, en este texto más tardío,
escrito poco antes de su muerte en el año 1975, su concepto de cronotopo,
en el cruce entre ciencias sociales, la epistemología del conocimiento y las
teorías sobre el objeto artístico y cultural, como formando parte de una

7 Muntañola, J. (2011). El Diálogo entre Proyecto y Lugar, un reto para la Arquitectura del s. XXI.
Cuadernos de Proyectos Arquitectónicos, 2, 33-38.

LA REHABILITACIÓN DEL PATRIMONIO ARQUITECTÓNICO Y EDIFICADO COMO PROCESO DIALÓGICO 39


filosofía de la naturaleza, amplía considerablemente el ámbito filosófico
del término8.
Es importante mantener la relación entre su primera definición del crono-
topo creativo, dentro de la “visión histórica” de Goethe (ver diagrama II),
su segunda definición en el año 1973, y, por último, una atenta lectura de
la conferencia dada en Barcelona el año 2013 por Michael Holquist sobre
las posibilidades de comparar edificios y lenguajes desde una perspectiva
dialógica (ver diagrama III)9.
Para simplificar, vamos a intentar resumir lo que aporta este concepto clave
de “cronotopo creativo”, cuando se considera que un proyecto o un diseño
es, fundamentalmente, un “cronotopo creativo”, correlacionando las tres
referencias hasta aquí reseñadas, o sea los tres diagramas I, II Y III.
1) En primer lugar, el concepto de cronotopo intenta relacionar el compor-
tamiento de unos sujetos en interacción, con el escenario espaciotemporal
que les sirve de trasfondo, o de representación del medio en el cual se mue-
ven. Analiza, pues, una estructura narrativa a partir de la cual se revela la
estructura entre los personajes y las determinaciones espaciotemporales en
la que estos personajes viven. Así se pueden distinguir narrativas épicas, de
las novelas, la lírica de la tragedia, la prosa de la poesía, todo ello en la lite-
ratura y, además, se puede describir la evolución histórica de esta narrativa
a través de las transformaciones del cronotopo.
2) En el caso de la arquitectura considerada como objeto a la vez estético,
científico y ético-político, nada hace suponer que el concepto de cronoto-
po no sea aquí adecuado. Todo lo contrario, Bajtín mismo nos da algunas
indicaciones acerca de las relaciones entre arquitectura y naturaleza, entre
los héroes en arquitectura a ser implícitos, o posibles, y no estéticamente
definidos como en literatura bajo personalidades ficticias pero que forman
parte de la estructura literaria. Así mismo, se aplica aquí el régimen general
de que en arquitectura el cronotopo define primero la relación del objeto,
edificio o ciudad, con el mundo propio de la arquitectura o del urbanismo,
y después se extiende a la historia y la vida de toda la humanidad. En rela-
ción al diagrama III, Holquist define la imposibilidad de relacionar arqui-
tectura y lenguaje, para después afirmar que la razón de esta imposibilidad
es la visión monológica y formalista del lenguaje la que lo impide, ya que, si

8 Bakhtin, M. (1990). Art and Answerability: Early Philosophical Essays. University of Texas Press.
9 Bakhtin, M. (1986). Speech Genres and Other Late Essays. University of Texas Press.

40 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


se entiende el lenguaje como proceso dialógico, si que puede relacionarse el
concepto de cronotopo con el proyecto de un edificio.
3) Como la arquitectura es un arte muy especial, pues vivimos dentro de
él, esto exige invertir los términos de lo real y lo virtual, entre los cuales el
cronotopo se construye y se usa o se lee. Una pintura tiene, como dice Ba-
jtín, un mundo propio de representación que vemos en relación al mundo
que vivimos fuera de ella. El cronotopo nos describe como se relacionan
culturalmente los dos mundos. En arquitectura vivimos el edificio, que es
real y esta usado en un momento preciso y en un lugar preciso en relación
a otros edificios contemporáneos, lo usamos y leemos en relación a toda
la experiencia previa y soñada y virtual futura, etc. con lo que el cronoto-
po funciona igualmente, aunque invertido con respecto a la materia física
del objeto en este caso que no es un libro. Esto es lo que quiere reflejar el
diagrama IV en el que las artes están clasificadas a partir de la naturaleza
cronotópica del objeto artístico y de sus cualidades físicas y sociales, reales
o virtuales. En un libro no se vive, pero se lee a partir de lo que se vive re-
almente, en un edificio se vive y se usa en relación a toda la vida pasada y
futura virtualizada. Es lo que Ricoeur quiere explicitar cuando dice que la
arquitectura hace con el espacio lo que un libro hace con el tiempo. No es
algo fácil de entender, pero tiene un profundo sentido.
A partir de aquí el paradigma dialógico puede, con ayuda de la visión
histórica de Goethe del diagrama I, establecer unas primeras pautas para
interpretar correctamente las relaciones entre edificios viejos y nuevos,
distintos, etc. estableciendo redes cronotópicas, y dando al proyecto una
denominación general de cronotopo creativo, es decir, de cronotopo diná-
mico, vital, innovador.
Esto es lo que intenta hacer el capítulo tres de este texto con la ayuda de
ejemplos de arquitectura dialógicamente analizados muy brevemente. Con
más detalle, algunas tesis ya han investigado estos extremos desde diferen-
tes perspectivas. Pero antes veamos cómo se transforman las teorías y las
practicas de la rehabilitación gracias al paradigma dialógico.
A) Las relaciones entre edificios, o entre el proyecto nuevo y el edificio exis-
tente, o entre el nuevo edificio y el urbanismo patrimonial existente, ya
nuca mas están sometidas al dilema entre copiar o ignorar, repetir o des-
truir, entre el sí y el no hay un amplio espectro de interpretaciones entre la
indiferencia y la identidad absoluta, que pueden ser mucho mejores que la
copia o la ignorancia. Para ello, sí que hay que superar la definición de la

LA REHABILITACIÓN DEL PATRIMONIO ARQUITECTÓNICO Y EDIFICADO COMO PROCESO DIALÓGICO 41


figura y del símbolo como copia para sustituirlo por la definición mucho
más verdadera de interpretación. Por ello Lewis Mumford llega a decir que
el arte abstracto esta mucho más cerca de la realidad que representa que el
arte figurativo, o Aristóteles indica que el artista pone la realidad ante los
ojos como en acto. Los dos dicen lo mismo.
B) Las relaciones se transforman en más conceptuales sin perder su poten-
cia metafórica o de trasposición de significados entre lo viejo y lo nuevo,
o entre un edificio y su nuevo proyecto. La clave de este nuevo diálogo, ya
implícito en Aristóteles y en Mumford, está magníficamente resumido en
el diagrama I, en donde BajtÍn interpreta a Goethe. En especial, en la re-
lación de necesidad entre lo antiguo y lo nuevo, o entre un edificio y otro.
Pero una necesidad que no se basa en la copia sino en la interpretación, y
por ello pone como ejemplo, igual que BajtÍn un caso sacado del mundo de
la geología, al decir que una piedra de una montaña nos explica su historia,
y así una ciudad nos remite a su historia a través de las formas presentes
claves de lo que ya pasó y de lo que podrá pasar.
C) Cambiamos pues a una visión fenomenológica siguiendo a Husserl, Ri-
coeur y Gadamer, que ciertamente obliga a una interpretación no trivial
del dialogo, sino a una lectura y a un uso que comprende las dos partes de
un conjunto porque es capaz de ver los dos extremos y de apreciar la nueva
tensión que se crea, que yo he definido como la modernidad especifica, que
solamente un lugar preciso es capaz de crear, y no otro lugar cualquiera. El
ejemplo ideal sigue siendo también el trabajo de Ricoeur sobre la metáfora
definida como aquello que es capaz de comunicar las relaciones entre el ser
y el no ser, y a través de la cual se crea e innova constantemente el lenguaje,
o sea, la metáfora como un ejemplo de cronotopo creativo.
D) Podría acusarse a este paradigma de abrir la caja de pandora y de per-
mitir malas metáforas, malas interpretaciones históricas, etc. Pero es que
es imposible abrir nuevas ideas sin aumentar el riesgo de equivocarse. El
paradigma dialógico no se puede usar con menos cultura y menos exigen-
cia que la postura moderna de copiar o tirar. Al contrario, exige mucha más
disciplina, pero no para inventar desde el vacio, sino para inventar desde la
distancia correcta, la interpretación correcta, el diálogo correcto entre los
nuevos y los viejos usuarios, etc.
E) Para no caer en la trivialidad el diálogo dialógico exige reconocer los
edificios antiguos como edificios habitados, y las nuevas propuestas como
también propuestas con usuarios potenciales. Finalmente, la relación entre

42 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


ambos edificios, la suma del nuevo proyecto en el viejo edificio existente,
debe sentirse y conocerse como un dialogo, incluyendo el posible conflic-
to, que hay que resolver como cualquier dialogo, intercambiando lugares y
no imponiendo un usuario totalmente contra el otro. Por lo tanto, la forma
construida nueva y existente, y el uso nuevo y existente, deben coexistir al
final a partir de un cruce, necesariamente poético, de las cuatro necesida-
des. Esto es lo que Gadamer define como fundir horizontes, no confundir
sino fundir, y que recoge Ricoeur en su definición de distancia óptima,
crítica, la que da más significado al uso de la forma construida final.
F) El concepto de memoria es el que al final sintetiza toda la fuerza del
cronotopo, siempre que sea una memoria viva, no de copia. Esto es lo que
define el diagrama V, que aquí no puedo describir con tranquilidad, y que
está explicado en uno de mis libros (6). Una representación de la memoria,
como la de una red socio-física, dinámica y abierta es muy adecuada, con
distintos grados de afectividad. No fue casual que, en 1963, Lewis Mumford
me recomendara efusivamente los libros de fundador de la sociometría, el
psicólogo Moreno10.
Aquí se supone que el arquitecto puede compaginar lo local y lo global, lo
individual y lo colectivo, lo técnico con lo natural. Es evidente que nunca se
conseguirá todo, ni de forma completa, pero basta una dirección adecuada
que defienda más la civilización que la barbarie, y que indique una direcci-
ón correcta, aceptando siempre la autocrítica11.

10 En 1953, Lewis Mumford al saber mi propuesta de investigación me dirigió inmediatamente a


Moreno, ya de muy avanzada edad y su trabajo pionero en las redes sociales y la sociometría,
hoy en pleno auge. Una vez más, con ello Mumford demostró su enorme intuición y conoci-
miento del tema. Hoy Moreno está reconocido, con Kurt Lewin, como los padres de las teorías
de las redes sociales y los campos psicosociales del conocimiento.
11 Estoy traduciendo el libro póstumo de Pierre Kaufmann, sobre arquitectura, barbarie y civi-
lización: Kaufmann, P. (1995). Qu’est-ce Qu’un civilisé? Cahors, France: Atelier Alpha.

LA REHABILITACIÓN DEL PATRIMONIO ARQUITECTÓNICO Y EDIFICADO COMO PROCESO DIALÓGICO 43


DIAGRAMAS

Diagrama I. La fuerza del paradigma dialógico.


Fuente: Muntañola, J. (2012). Segunda Meditación Topogenética: La Ar-
quitectura de la Lógica Proyectual - Second Topogenetic Meditation: The
Architecture of the Projective Logic. Revista M, Revista de la División de
Ingenierías y Arquitectura, 9 (1), 40-51 (p. 44).

44 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


Diagrama II. “Visión Histórica” de Goethe, por Batín (el autor).

A) Tenemos una relación ESENCIAL y VIVA con las trazas del pasado, en el
presente (no como trazas inanimadas, sino como trazas ANIMADAS).
B) Existe una CONEXIÓN NECESARIA entre el pasado y el presente para
comprender el LUGAR que ocupa el pasado en el tiempo histórico presen-
te. Todo tiene un lugar estable y necesario en el tiempo.
C) El pasado en sí mismo debe ser CREATIVO (Ricoeur), debe AFECTAR el
presente. Este efecto creativo del pasado determina el presente y produce,
en conjunto con el presente, una cierta predeterminación del futuro.
D) La visión histórica se apoya en una profunda y esforzada percepción de la
localidad (LUGAR). La fuerza creativa del pasado tiene que hacerse evi-
dente bajo las condiciones de un lugar concreto, transformando un trozo
espacial de tierra en un lugar de vida histórica y social, en un rincón del
mundo histórico.

Diagrama III. Objeciones y Soluciones de las Relaciones entre


Arquitectura y Lenguaje (el autor).

Objeciones por un uso monológi- Soluciones con un uso dialógico


co del lenguaje del Lenguaje

El objeto arquitectónico es físico y Dialógicamente cualquier soporte


material material es vivo si tiene significado

La arquitectura es algo estático en Hay una dimensión metalingüística


relación al lenguaje de los objetos desde el presente

En arquitectura el autor está muy Cualquier texto dialógico tiene


alejado de los usuarios y lectores muchos autores, usuario y lectores

La estética no puede ser compati- Dialógicamente la estética dialoga


ble con el uso real con todo el espacio-tiempo

LA REHABILITACIÓN DEL PATRIMONIO ARQUITECTÓNICO Y EDIFICADO COMO PROCESO DIALÓGICO 45


Diagrama IV. Clasificación cronotópica de las artes.
Fuente: Muntañola, J. (2013). La investigación proyectual a examen: un gran
desafío a la arquitectura del siglo XXI. Caracas: Facultad de Arquitectura y
Urbanismo Universidad Central de Venezuela. (p. 38)

46 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


Diagrama V. Memoria, Utopía y Dialogía.
Fuente: Muntañola, J. (2007). Las formas del tiempo: Arquitectura, Educa-
ción y Sociedad (Vol. 1). Badajoz: Abecedario. (p. 15)

LA REHABILITACIÓN DEL PATRIMONIO ARQUITECTÓNICO Y EDIFICADO COMO PROCESO DIALÓGICO 47


REPENSAR UNA MIRADA
INTEGRADORA PARA
NUESTRO PATRIMÔNIO DE
AMÉRICA LATINA

Ramón Gutiérrez

1 REFLEXIONES DE MEDIO SIGLO

Voy a plantear para nuestro tiempo y nuestro espacio una reflexión sobre
la necesidad de una nueva mirada sobre los temas de patrimonio genera-
da a partir de la propia experiencia latinoamericana. A esta altura de la
trayectoria de medio siglo creemos que ella puede percibirse como distinta
de una experiencia euro-céntrica que ha dominado desde 1972, cuando se
ha creado la Convención Mundial del Patrimonio. A partir de ella se ha
construido un enfoque inicial donde se ha valorado el patrimonio tangible
en relación al patrimonio natural lo que parece un punto acertado que nos
hubiera posibilitado articular patrimonio edilicio con su entorno. Esto se
fue desarrollando paulatinamente en el cambio de escala que fue del mo-
numento al conjunto y sucesivamente a los poblados y centros históricos.
Es decir, fuimos construyendo una teoría positiva, aunque limitada por su
reducción original a lo material y lo ambiental.
Fue así que hubo que esperar casi treinta años para que se reconociera el pa-
trimonio intangible, en el año 2003 y, a pesar de ello, sus propuestas se las
vislumbrara como un campo autónomo, digno de ser valorado y entendido
en sí mismo. Por fin recién en el año 2005 una mayoría de países, no todos,
han avalado el carácter patrimonial de la diversidad cultural.
Uno de los temas que quisiera plantear es la necesidad de que empecemos
a revisar si necesitamos tres Convenciones diferentes si vamos a hablar
de Patrimonio, porque muchas de las obras de arquitectura, que nosotros
consideramos hoy patrimonio, no lo son por sus valores arquitectónicos,

REPENSAR UNA MIRADA INTEGRADORA PARA NUESTRO PATRIMÔNIO DE AMÉRICA LATINA 49


sino por aquellos valores de carácter intangible que están asociados a las
mismas, ya sean hechos históricos o culturales. También a la inversa buena
parte del patrimonio intangible se consolida en hechos materiales que los
consolidan y explicitan. La diversidad cultural se manifiesta, por otra par-
te, en propuestas de bienes culturales tangibles y no tangibles. El marco de
actuación que hemos venido aplicando se ha nutrido de estas definiciones
nominalistas que han generado sus propios instrumentos de actuación que
hoy la propia UNESCO ha ido cambiando. Itinerarios, Paisajes culturales,
Paisajes histórico urbanos y otras propuestas reflejan la necesidad de una
revisión conceptual permanente y por ende generar nuevas herramientas
para estos nuevos desafíos.
Esto requiere que nos replanteemos, mirando este último medio siglo, si
aquello que en la posguerra europea significó la valoración de la recupera-
ción de su patrimonio destruido y obliterado puede ser hoy la línea doctri-
naria para analizar el patrimonio mundial. Necesitamos verificar con cla-
ridad no solo la secuencia de las “Cartas” y “Declaraciones” sino también
las premisas lo que hemos aplicado como criterios patrimoniales. Analizar
si ellas han devenido en criterios rígidos, estáticos y fijos, o si hemos ido
cambiando flexiblemente esos criterios en el tiempo. Estudiar si en esas
flexibilidades no han operado prejuicios etnocéntricos de patrimonios de
“primera” y de “segunda clase”. Contemplar si los valores universales se
han juzgado de manera similar o si la intangibilidad y la autenticidad res-
ponden a los patrones culturales universales, que son tan diferentes, o los
hemos refrendado en un espejo selectivo de alguna cultura hegemónica en
el ejercicio de un poder derivado de la génesis de la Convención o la rutina
de las metodologías instaladas.
Podemos pues también reflexionar que, si efectivamente hemos ido cam-
biando en algo los criterios, podría ser conveniente y preciso cambiarlos
hoy para analizar adecuadamente nuestro patrimonio, el patrimonio la-
tinoamericano, en un contexto global donde, sin dudas, tenemos nuestras
propias características. Hoy se les reconoce a las culturas orientales, por
ejemplo, que las ideas de “autenticidad” que nosotros, en la visión occiden-
tal, tenemos respecto a nuestro patrimonio son diferentes que las que ellos
tienen, como surgió de la reunión realizada en Nara. Aquellas culturas, por
ejemplo, se permiten eliminar un edificio histórico de madera que encuen-
tran obsoleto y volver a reconstruirlo de la misma forma, sin perder para
ellos el sentido patrimonial. Es decir que se asume que es el mismo patri-
monio, con la independencia de que no sea exactamente la obra original.

50 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


Sin embargo, a nuestra realidad latinoamericana se la mide de otra for-
ma. Hay quienes, quieren poner en tela de juicio la calidad patrimonial
de la ciudad de Quito cuando se ha comenzado a tratar la posibilidad de
reconstruir la torre de una iglesia que ha caído en un terremoto. No fal-
tan inclusive, en la propia disciplina y nacionalidad, quienes amenazan a
la ciudad de Quito de tramitar ante la UNESCO para quitarle la categoría
de patrimonio mundial. Se argumenta en este caso que se estaría haciendo
lo que llaman “una falsificación histórica”. Es interesante recordar que no
se tiene en cuenta que el Campanile de Venecia se reconstruyó absoluta-
mente entero a comienzos del siglo XX y, sin embargo, se declaró a Venecia
Patrimonio de la Humanidad con el mismísimo Campanile reconstruido.
Ni que decir de ciudades casi totalmente reconstruidas en la posguerra,
como Dresden en Alemania, que fueron también nominadas Patrimonio
de la Humanidad, sin que a nadie se le ocurriera mencionar como “falsos
históricos” tales actuaciones.
Parecería pues que hay dos varas para medir los criterios patrimoniales
donde se tolera las supuestas “disgresiones” europeas y se amenaza castigar
cualquier propuesta similar latinoamericana. Es pues hora de no aceptar
más una tutela cultural de conveniencia y por ende empezar a pensar cuál
es el instrumental con el cual vamos a medir nuestro patrimonio. Ello im-
plicará formular criterios y herramientas que respondan a nuestro modo
de valorarlo, aceptando la pluralidad de ideas y también la especificidad de
cada caso.
Para ello es preciso hacer una tarea de limpieza de algunos personajes que
se han enquistado en las instituciones internacionales asumiendo nuestra
representación y, siendo totalmente ajenos a la defensa de nuestras condi-
ciones patrimoniales, han sido funcionales a los manejos hegemónicos y
arbitrarios de ciertos sectores del ICOMOS Internacional. Son, como dijo
algún prócer nuestro, los que “tienen fría el alma para las cosas de la patria”
o que se ocupan más de promociones personales que de defensa de nuestros
patrimonios culturales.
Es posible que muchos piensen que soy un poco heterodoxo en lo que hoy
estoy reflexionando y puede parecer que no soy suficientemente funda-
mentalista en temas de patrimonio. Ello es cierto, soy fundamentalista en
la defensa del patrimonio, pero no en las concepciones y criterios que, a tra-
vés del tiempo que, como hemos podido constatar, se han tenido del mis-
mo. Seguimos pensando que los criterios universales tienen que ser capaces

REPENSAR UNA MIRADA INTEGRADORA PARA NUESTRO PATRIMÔNIO DE AMÉRICA LATINA 51


de abarcar y comprender a las manifestaciones culturales nacionales, regio-
nales y locales. Si así no lo hicieran, no serían universales.

2 EVOLUCIÓN DE LOS CRITERIOS PATRIMONIALES

Todo ello, sin dudas, es complejo y nos ha llevado a las sucesivas aproxi-
maciones a nuestras definiciones patrimoniales. Así, en el siglo XX, em-
pezamos hablando de un patrimonio material que se calificaba por lo “an-
tiguo”. Muchas de las legislaciones europeas y americanas identificaban
como requisito para ser patrimonio cuando se tenía más de 100 años. Hasta
la misma constitución de la República Española de 1931, que se suponía
progresista, determinaba esa edad para el patrimonio. Esto dejó durante
décadas fuera del patrimonio a todos los edificios del siglo XIX y del siglo
XX, por ejemplo.
A mediados del XX comenzaron los cambios y se logró replantear la cosa
y modificar estas formas de ver tan atadas al calendario. Por supuesto no
todos los edificios que tenían más de 100 años eran patrimonio, pero sí lo
eran muchos que tenían más de 100 años, aunque les faltaba el otro requisi-
to: “la monumentalidad”. Así fueron demolidas arquitecturas vernáculas,
tipologías de viviendas y conjuntos que no respondían a los patrones de la
“Arquitectura”, así con mayúsculas. En esto los arquitectos modernos, los
mismos que hoy reclaman se valore lo patrimonial de sus obras, fueron
responsables en primera línea. Tan obcecados en sus premisas modelísticas
que en el Cusco después del terremoto de 1950, demolieron absurdamente
conjuntos valiosos para ampliar una calle con criterios urbanísticos que
nacían de las concepciones vanguardistas apuntando a reconstruir la ciu-
dad con edificios alzados sobre pilotis corbusieranos…
Nosotros somos responsables de no valorar nuestro patrimonio cultural
de una arquitectura popular, que como tal, es intemporal, y que poseemos
como fruto de procesos de integración cultural significativos. En esta cir-
cunstancia convergen tipologías expresivas de los sistemas constructivos
de las comunidades originarias, procesos de transculturación adaptados
a circunstancias locales, la generación de nuevas propuestas sobre nuevos
programas y las experiencias acumuladas en la utilización de tecnologías y
respuestas que se sedimentan a través de los siglos.

52 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


Hacia mediados del siglo XX una vez que superamos la etapa de la valora-
ción del patrimonio en virtud de su antigüedad de años, emprendimos una
lectura realizada con exclusividad enfocada a lo estrictamente “Histórico”.
El “patrimonio histórico” nos testimoniaba en una lectura de una historia
oficial, de próceres, de héroes, de batallas, en fin, de una historia militar
fundamentalmente. Sobre este sesgo construimos una idea del patrimonio
que estaba vinculada a estos hechos aun en su debilidad documental pues
primaba la atención apologética.
Por ejemplo, la posta de Yatasto en la Argentina es un lugar que fue declara-
do patrimonio histórico monumental. En ello no primó el hecho de tratarse
supuestamente de que fuera la única posta de correos que quedaba en todo
el país, sino simplemente porque allí, se suponía, se habían encontrado dos
próceres de la independencia, San Martin y Belgrano, cosa que hoy sabemos,
a través de la documentación, que no había sucedido allí. En definitiva, una
decisión que responde a una historia manipulada y una obra que tampoco
tiene el carácter de “Monumento”. Hoy, sin embargo, debemos agradecer que
estos errores nos hayan permitido rescatar una obra de arquitectura rural del
siglo XVIII que de otra manera se hubiese sin duda perdido.
En toda América se han salvado casas valiosas y otras no tanto, porque
alguien señaló que allí había estado, pasado o dormido, algún prócer de la
independencia. Algunas casas al aliento del énfasis patrimonial inclusive
crecieron, como la de Bolívar, que parece siempre resultaba pequeña para
la dimensión heroica del prócer por lo cual se agregaban otras construc-
ciones vecinas. También mereció reconocimiento especial San Martín que,
fallecido en Francia, generó una réplica similar de su casa de Boulogne Sur
Mer en Buenos Aires.
Es obvio que existe un patrimonio histórico que nos permite ponderar los
hechos sucedidos sobre un patrimonio material que es así cualificado. Ello
es un valor agregado a un patrimonio arquitectónico en algunos casos y
en otros cuando estamos ante una arquitectura más modesta ello es, sin
dudas, decisivo. El patrimonio histórico está vinculado obviamente a los
hechos allí sucedidos, pero también a la arquitectura, ya sea por la fun-
ción que tenía el edificio, por ejemplo, los Cabildos donde se proclama la
independencia, o por los valores artísticos que testimonian una etapa de la
cultura de las comunidades.
Luego, en los años 60 empezamos a hablar no solamente de Patrimonio
Histórico sino más directamente de “Patrimonio Cultural”. Superábamos

REPENSAR UNA MIRADA INTEGRADORA PARA NUESTRO PATRIMÔNIO DE AMÉRICA LATINA 53


la idea de los antiguos Monumentos históricos, empezamos a entender y
aceptar el patrimonio que nos habían dejado los pueblos originarios, los
que había traído la inmigración e inclusive la diversidad cultural. Con esta
noción del patrimonio hubo un verdadero principio democratizador en lo
social, una ampliación en lo geográfico territorial y un ensamble con todos
los momentos de nuestras historias.
Fueron estos los tiempos en que empezamos a hablar del patrimonio indus-
trial, del patrimonio social, de aquellas manifestaciones que no expresaban,
quizás, a los sectores más altos de la sociedad, sino que expresaban, justa-
mente, aquellos sectores que posibilitaban que ellos fueran los sectores más
altos. Y apareció entonces un enorme patrimonio que iba desde los molinos
rurales, hasta los ferrocarriles, las fábricas, todo lo que hacía a una historia
y a una cultura en una dimensión abarcante. Es decir, se abría un campo de
acción enorme para el patrimonio.
En los 60, aquellas viejas ideas de los 100 años y aquella inmediata idea del
patrimonio Histórico, comenzaban a tener las raíces de otra historia, de
una historia cultural, de una historia social. Sorprendentemente repara-
mos en valorar las tipologías de la vivienda en sus diversas manifestacio-
nes, desde la casa de patio, la vivienda colectiva, los conventillos, las casas
de vecindad. ¿Cuántas de nuestras ciudades han perdido la posibilidad de
entender como era los modos de vida de nuestras comunidades a través del
tiempo por haber borrado los testimonios de sus formas de residencia que
expresa su manera de vivir?

3 EL CAMBIO DE ESCALA PATRIMONIAL

La dimensión cultural nos posibilitó también salir de la idea del Monumen-


to aislado para trabajar sobre el conjunto, el poblado o el centro históri-
co. Nos ayudó a entender el valor del entorno y la necesidad de mirar una
arquitectura contextual capaz de realzar espacios en la dimensión urbana.
Así entendimos que las antiguas operaciones de definir áreas históricas
como envolventes de los monumentos (caso original en san Juan de Puerto
Rico en 1957) no contemplaba una realidad urbana sino un ejercicio de
geometría sobre la articulación de piezas arquitectónicas patrimoniales que
había sobrevivido.

54 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


Pero también comprendimos que la sumatoria de elementos no es lo mismo
que una integración de ellos por lo que las propuestas de rupturas urbanas
en función de altas rentabilidades y de vanaglorias arquitectónicas eran
enemigos declarados de los bienes patrimoniales y de las calidades de vida
urbanas. Las primeras experiencias a Antigua Guatemala y la ya mencio-
nada de San Juan, nos mostraron la ineficacia de recuperaciones que no
atendieran a los usos residenciales permanentes o a privilegiar respuestas
en atención al turismo antes que a los habitantes.
También se empezó a analizar las formas de protección de poblados que
habían mantenido, muchas veces por un proceso de decadencia económica,
condiciones de homogeneidad en su paisaje urbano, aunque con retención
de sus antiguos pobladores lo que facilitaba la participación de los habi-
tantes en el mantenimiento de los conjuntos. En la UNESCO el tema ha
llevado políticas erráticas que han significado la aplicación en la práctica de
la misma mirada reduccionista de considerar a uno de estos poblados como
de característica “monumental”. Por ejemplo, las declaratorias sucesivas de
Ouro Preto, Mariana y Diamantina, a las que seguirán seguramente Tira-
dentes y otros núcleos, no nos garantiza lo que es más importante que es
la valoración patrimonial del territorio minero, la lógica de sus formas de
articulación, sus raíces geográficas, productivas y sociales que no se explica
por la simple sumatoria de poblados. La idea de los itinerarios y sobre todo
la del “patrimonio territorial” integrando lo cultural, lo natural, lo inma-
terial y la diversidad cultural como maneras de entender la continuidad de
este patrimonio hasta nuestros días.
En la escala de los Centros Históricos aparecieron nuevas ideas más ambi-
ciosas. Hacia los setenta se plantea empezar a recuperar el patrimonio de
las ciudades tomando fragmentos de ellas, por ejemplo, en el Pelourinho
de Salvador de Bahía, donde lo que se buscó en aquella primera fase justa-
mente potenciar las posibilidades que tenía la recuperación de la vivienda
popular, vivienda tugurizada, pero que sin embargo tenía posibilidades de
uso con una rehabilitación que no fuera una estrategia de “restauración
monumental”. Se apuntaba así a mejorar las condiciones del equipamiento,
las estructuras, los elementos fundamentales que impidieran la obsolescen-
cia del antiguo tejido urbano y rescatar los usos residenciales de las áreas
centrales.
En esta época, en muchos lugares de América, quisimos trasladar la ex-
periencia interesante de Bologna en Italia, donde se había hecho, con un

REPENSAR UNA MIRADA INTEGRADORA PARA NUESTRO PATRIMÔNIO DE AMÉRICA LATINA 55


municipio fuerte y con recursos económicos, el traslado de los habitantes
de una manzana a otra manzana adquirida por el municipio, donde se res-
tauraba la manzana anterior, se recuperaba los habitantes para ella, y se
volvía a hacer una semejante actuación para ir mejorando el área patrimo-
nial. Nosotros no pudimos hacer nada de esto, aunque pensábamos que era
posible en alguna ciudad americana, pero nuestras finanzas locales eran
débiles, las voluntades políticas eran erráticas, y las discontinuidades de
gestión impedían concretar este proyecto más que parcialmente.
En nuestros intentos trabajábamos con una población de escasos medios
económicos y amplias necesidades. La recuperación apuntaba no solamen-
te a resolver la demanda de vivienda sino también, fundamentalmente, a
recuperar a los habitantes, a quienes se les formó en algunos casos en ofi-
cios artesanales atendiendo a la posibilidad de darles trabajo en las obras
de sus propias casas.
La carencia de recursos municipales, la inexistencia de una provisión de
tierra urbana para atender la demanda, las urgencias de los requerimientos
de vivienda nos llevó a la conclusión de que para resolver el problema no
bastaba la débil voluntad política ni la organización y disponibilidad de
los interesados. Fue así que comprendimos que en América los recursos
provenientes de los sectores culturales de la administración pública nunca
alcanzarían para atender las demandas patrimoniales en esta escala. Ello
nos llevó a potenciar operaciones tendientes a articular las rehabilitaciones
patrimoniales dando respuestas a los requerimientos sociales prioritarias y
que nuestras políticas de acción en los centros históricos atendieran estas
premisas a partir del concepto de “Patrimonio Social”.
La recuperación de áreas urbanas de antiguo origen fabril, industrial,
portuaria o ferroviario han sido en muchos casos espacios adecuados. El
ejemplo de la rehabilitación de la Cervecera de Montevideo desocupada
como arquitectura industrial posibilitó su recuperación para vivienda. Y
aquí entramos en un tema clave de los centros históricos, no podemos, en
América Latina, recuperar nuestros centros históricos si no es a través del
uso residencial, porque hay una razón esencial, que es la relación entre el
centro histórico y el patrimonio.
Aquí hay que repensar una concepción central: el patrimonio lo definen
los habitantes, si no hay habitantes que estén referenciados a ese patrimo-
nio, el patrimonio resulta que no es patrimonio. Nos preguntamos ¿Para
quién es patrimonio? Si yo pienso en ciudades que han sido vaciadas de

56 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


sus primitivos habitantes, que hoy pueden estar declaradas inclusive, patri-
monio de la humanidad, pero sus habitantes ya no están allí, me pregunto,
¿construimos patrimonio para los turistas, o valoramos el patrimonio para
los habitantes? La recuperación de ese patrimonio de sus habitantes, impli-
ca la recuperación de la ciudad.
Cuando cambiamos esas relaciones empezamos entonces a hablar del
“Patrimonio Construido”, que expresa todo aquello que hemos hereda-
do, que han hecho nuestros antepasados, que ya ha costado un dinero a
la sociedad y que aun tiene posibilidades de vida útil. Pensamos que no
tiene por qué demolerse aquello que tiene alternativas de ser aprovechado
porque no está obsoleto y que sus nuevos usos pueden tener ese impacto
positivo a escala urbana. Pues así hemos cambiado de las lecturas de un
Patrimonio de lo “antiguo”, a lo “histórico”, a lo “cultural”, a lo “social”
y a lo “construido” y todo esto en medio siglo, como para que aceptemos
el relativismo y no tomemos posturas fundamentalistas ni pensemos en
criterios absolutos.
En Argentina, por ejemplo, en los últimos años se han recuperado para
Universidades antiguas fábricas o edificios ferroviarios no utilizados.
Esto implica no solamente dar alojamiento a un nuevo uso caracterizado,
sino que significa la transformación del barrio con la presencia de la gente
joven, alojamientos para los estudiantes, y el surgimiento de un comer-
cio minorista que es capaz de dar respuesta a estas nuevas necesidades.
En definitiva, es, también, una operación de renovación y recuperación
urbana.
Pero no siempre las políticas urbanas ayudan al patrimonio. En el antiguo
Puerto Madero de Buenos Aires, lo que en principio pensábamos que íba-
mos a lograr era la recuperación de un área de la ciudad que nos permitía
acceder de nuevo al río. Pensábamos en una costanera como la de Monte-
video, un sitio de paseo urbano y espacios adecuados para recreación. Pero
no fue así, rápidamente las 120 hectáreas que quedaron, que eran terreno
público, han sido privatizadas para construir hoy, una especie de Country
urbano, un lugar residencial bastante cerrado y privilegiado dentro de la
ciudad, cuyos altos costos muestran casi la mitad de sus departamentos
vacíos, fruto de una especulación inmobiliaria que no marginó el posible
lavado de dinero.

REPENSAR UNA MIRADA INTEGRADORA PARA NUESTRO PATRIMÔNIO DE AMÉRICA LATINA 57


4 DEL MONUMENTO AL CONJUNTO

Otra de las ideas fijas que tuvimos a mediados del siglo XX era la idea re-
ductiva del patrimonio vinculada al “Monumento” concebido como obra
singular. Por supuesto existe el Monumento, que marca una referencia y un
hito cultural importante, pero esa idea era también insuficiente y requería
trabajar el patrimonio de una manera distinta. Hay monumentos que están
aislados, y que pueden ser individualizados como tal, entre ellos la famosa
fortaleza Citadelle que los esclavos negros de Haití, el primer país que se in-
dependizó en América, construyeron en 1804 en un inaccesible paraje, sin
embargo, su relación con la topografía y el entorno es un elemento decisivo
en sus condiciones de diseño. El monumento nunca está totalmente aislado
de su circunstancia. En este caso el medio natural define su emplazamien-
to, por su funcionalidad las características de su accesibilidad, es decir el
cuidado del contexto nos dice que tenemos desde el inicio que hablar del
monumento y su circunstancia.
Así, del monumento aislado pasamos a valorar el “Conjunto” y a atender no
solo la arquitectura del elemento singular, el monumento, sino la arquitec-
tura de acompañamiento del mismo. Aquella que hacia posible muchas ve-
ces que el monumento tuviese el carácter de tal, que lo jerarquizaba con sus
valores, que lo acompañaba y que le daba entidad. El monumento adquiría
relevancia mirándolo desde la perspectiva del conjunto y no solamente des-
de la perspectiva de las expresiones intrínsecas de la obra.
En otros casos el Conjunto valía y se expresaba por si mismo. Cada inte-
grante podía ser un monumento, pero un monumento que aisladamente
también podía desaparecer ya que el patrimonio radicaba en el conjunto.
Podemos ejemplificarlo con el barrio de viviendas populares “Los Perales”
de Buenos Aires, construido en 1947–1949. Su vigencia marca una nueva
dimensión patrimonial vinculada a la presencia de lo social en los valores
culturales y de sus aportes urbanos. La destrucción de uno de estos bloques
altera los valores de condiciones del diseño así integrado.

58 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


5 POBLADOS Y CENTROS HISTÓRICOS, NUEVAS
MIRADAS PARA LA CIUDAD

Desde el conjunto pasamos al “Poblado histórico” y la escala nos vuelve


a cambiar enormemente a un conjunto de conjuntos articulados por los
espacios públicos. Si tomamos un ejemplo como el de Mompox (Colombia)
que es patrimonio de la humanidad, vemos que nos está hablando de un
diálogo entre patrimonio tangible y patrimonio natural transformado cul-
turalmente. El poblado nos muestra aquello que se ha preservado a través
del tiempo, porque sus modos de vida han permitido preservarlo.
Muchas veces a nosotros, los arquitectos, nos ha fallado la capacidad de en-
tender lo que significaba el valor de los conjuntos, entender la importancia
que tenía esa relación en un poblado histórico. En el caso de Trinidad en
la región del Beni (Bolivia), tenemos una ciudad que se construyó sobre las
bases de las galerías exteriores que permitían la calle cubierta en lugar de
mucho sol y lluvias torrenciales. La galería continua daba así una respuesta
ambiental, pero también una respuesta tecnológica porque protegía los pa-
ramentos de los muros cuando ellos eran de adobe y mediante el gran alero
arrojaba el agua afuera. Pero la galería era también y principalmente un es-
pacio social, donde era posible un lugar de encuentro a la puerta de la casa.
La galería era un bien privado cedido al uso público, era la integración de
cada vivienda en el paisaje homogéneo del poblado. Cuando el arquitecto
no entendió eso y optó por singularizarse, el arquitecto introdujo la ruptu-
ra de la escala, de la galería, del paisaje y de los modos de vida atentando en
la pérdida patrimonial.
En nuestros cambios de escala del poblado histórico pasamos al “Centro
Histórico”, y seguimos ensanchando el campo. Aquí comienza la primera
instancia de un conflicto ideológico que significa pensar en el patrimonio
desde el punto de vista material aislándolo de lo que significa el patrimonio
inmaterial que se relaciona a los modos de vida o de la diversidad cultural,
porque el centro histórico es parte de una ciudad. Una ciudad que cambia
pues la ciudad tiene que cambiar para adaptarse permanentemente a nue-
vas realidades, porque, en definitiva, no nos olvidemos de algo muy impor-
tante, el patrimonio es un medio, no es un fin.
El patrimonio es un medio para mejorar la calidad de vida, y si nosotros no
somos capaces de mejorar la calidad de vida, si el patrimonio no nos sirve
para el desarrollo ni nos sirve para dar respuestas a lo que necesitamos,

REPENSAR UNA MIRADA INTEGRADORA PARA NUESTRO PATRIMÔNIO DE AMÉRICA LATINA 59


¿cuál es la función del patrimonio? Por eso necesitamos de un patrimonio
que sea operativo, y aceptar que, si la ciudad cambia, nuestro problema no
es evitar que la ciudad cambie, nuestro problema es hacer que cambie como
corresponde para mejorar la calidad de vida. Este es el desafío que tenemos,
el desafío contextual, el desafío de mirar la ciudad no meramente como los
elementos físicos, sino mirar la ciudad como un ente que tiene una vida
propia, donde sus barrios juegan un papel particular.
Nos pasó en el Cusco en los años 70, donde los técnicos no tuvieron cla-
ridad para ver que la defensa del centro histórico del Cusco radicaba en
colocar fuera de la ciudad a la hotelería: Para cubrir esa demanda estaban
todas las haciendas expropiadas que estaban vacías ya que las cooperativas
a quienes la reforma agraria les había entregado esos bienes no ocupaban
más que un limitado número de ellas. Esto hubiera permitido el aprove-
chamiento de unos enormes espacios ubicados muy cerca del Cusco y que
hubiera impedido, por un lado, el vaciamiento de las casas del área central
con la erradicación de población del centro hacia la periferia y la creación
de “pueblos jóvenes” o asentamientos precarios, como de hecho se dio.
Adecuadas políticas urbanas hubieran salvado mucho más del Cusco que la
mera lectura de los monumentos particulares, de cada uno de ellos singu-
larmente o inclusive hasta su limitada valoración como conjunto. El colap-
so del centro histórico por las dificultades de accesibilidad, la lamentable
vocación de las autoridades para intervenir en los espacios públicos con
esculturas, fuentes y otros elementos de muy baja calidad y sobre todo la
erradicación de los habitantes del centro de la ciudad está marcando el pre-
dominio del turismo por encima de la calidad urbana que el Cusco ofrecía
antaño.
¿Cómo vemos la ciudad?, ¿podemos concebir la ciudad patrimonialmente
como un hecho homogéneo? Esto quizás puede encontrarse en poblacio-
nes pequeñas, inclusive en muchas ciudades europeas grandes que están
perdiendo población habitualmente. Pero nosotros, en Latinoamérica, te-
nemos realidades que nos golpean duramente. La ciudad latinoamericana,
fruto de un proceso de “modernización” impulsado por arquitectos y es-
peculadores inmobiliarios de la década del 50 y del 60, ha sufrido rupturas
categóricas en sus centros históricos.
Estas rupturas pueden ser físicas, con destrucción de obras de valor pa-
trimonial o con grandes edificios que destrozan las escalas de los barrios.
Obras que nos muestran justamente la inexistencia de toda concepción, no

60 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


solo ambiental, sino contextual, donde todas las ventajas económicas son
para el que las hace, y todas las pérdidas son para la ciudad y sus habitantes.
Nuestra acción urbana es también incoherente. Por ejemplo, en Argentina
tenemos una ciudad, Mar del Plata, un balneario que tiene miles de unida-
des de habitación deshabitadas durante nueve meses al año, ya que se utili-
zan solamente en el verano. Su reposición edilicia fue vertiginosa y, al igual
que San Pablo, puede hablarse de tres ciudades superpuestas en un siglo.
La ciudad como patrimonio nos presenta los problemas de la permanencia
o del cambio. A veces la arquitectura sirve en sí misma para crear el esce-
nario donde se desarrolla la vida, pero lo importante es la vida misma. Si
cambia el escenario y la vida se hace más gratificante el patrimonio esencial
permanece, pero si destruyo el escenario o lo reemplazo por uno más pobre
y descalificado, la calidad de esa vida mengua o se pierde. Es que a veces
el patrimonio no es tanto aquello que nosotros, como arquitectos, estamos
acostumbrados a ver, sino aquello que constituye los elementos de lazo, de
referencia, de afectos, de posibilidades de aceptación y de reconocimiento
por parte de la comunidad. Yo creo que allí esta una de las claves esenciales
para empezar a mirar de nuevo y distinto estas formas de expresión del
patrimonio urbano.
Es frecuente cuando los arquitectos actuamos sobre espacios públicos veri-
ficar nuestra incapacidad por tratarlos con el cuidado que implica muchas
veces el pasar desapercibidos. Nuestras sobreactuaciones, la colocación
de elementos innecesarios que nos indican la necesidad de dejar nuestra
huella a cualquier costo, señala esa incapacidad de respeto por las activi-
dades sociales y culturales de la comunidad. Así arruinamos también es-
pacios, espacios que se nos han vaciado porque no hemos encontrado la
manera de enriquecerlos, porque no hemos pensado la manera de formar
en ellos actividades que generen lo que es esencial en el espacio público, la
presencia, la comunicación, la actividad social.

6 EN DEFENSA DE LA BUENA ARQUITECTURA

En el rescate patrimonial la arquitectura es para nosotros una lección fun-


damental, es un documento que nos habla no solamente de lo que nosotros
estamos viendo, sino de lo que ha sucedido con ella a través del tiempo. Un

REPENSAR UNA MIRADA INTEGRADORA PARA NUESTRO PATRIMÔNIO DE AMÉRICA LATINA 61


documento histórico firmado por cualquier prócer que elijamos, es sus-
ceptible de múltiples interpretaciones, pero siempre dirá objetivamente y
congelado en el tiempo aquello que está escrito. En cambio, la arquitectura
nos puede decir cómo fue pensada, como fue transformada a través del
tiempo, los nuevos usos, los nuevos valores simbólicos, las nuevas formas
que tiene. La arquitectura, por lo tanto, es portadora de una identidad que
nos está explicando documentalmente elementos propios de la cultura y de
la relación social en el tiempo.
Nuestra mirada sobre el pasado, el presente y el futuro se puede encarnar en
la arquitectura si le adicionamos la variable del tiempo histórico. Mirando
desde el presente obras de arquitectura patrimoniales ellas eran el futuro de
nuestra pasado y las que expresen hoy nuestros testimonios generacionales
serán el pasado de nuestro futuro. Por ello es tan necesario que aceptemos
nuestra participación contemporánea en la creación del patrimonio y de la
intervención para perfeccionar el mismo. El patrimonio, expresión de la
identidad se construye permanentemente.
En la región andina tienen la vitalidad creativa de quienes asumen que las
obras de lo que nosotros llamamos pasado es siempre un presente. Sus templos
fueron hechos por ellos mismos, aunque hayan sido construidos hace 300 años
y aunque no hayan tenido una participación directa en el origen, porque la
noción del “ellos” es la de la comunidad histórica que los une con un profundo
sentido de pertenencia. Ellos se sienten protagonistas de haber acompañado
por varios siglos a su patrimonio y cuidan de su mantenimiento.
Muchas veces uno encuentra esa relación de pertenencia con su iglesia o
con aquellos elementos de valor simbólico y cultural que les son esenciales,
y justamente cuando nosotros, los técnicos, apadrinados por algún orga-
nismo público o privado llegamos a un pueblo y decimos: no toquen nada
que esto es “Patrimonio de la humanidad”, y luego pasamos varios años
sin aparecer por aquel lugar, lo único que estamos haciendo es garantizar
el certificado de defunción de ese patrimonio. El patrimonio cuidado por
su gente es lo que asegura su mantenimiento como verdadero patrimonio.
Deberíamos empezar a diferenciar de una vez por todas, lo que es un “bien
cultural” de lo que es un “patrimonio”. Un bien cultural será patrimonio
cuando exista una apropiación de la comunidad que le da el carácter de
patrimonio. Y este tema es absolutamente esencial para privilegiar las her-
ramientas en la defensa del patrimonio. Esta lectura tenderá a cambiar mu-
chas políticas de acción de los cuadros técnicos del patrimonio.

62 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


En ciertas regiones como las del área guaranítica del Paraguay, litoral ar-
gentino y el oriente boliviano hay paisajes culturales urbanos estructura-
dos por las casas de galería frontal, tema al cual hicimos referencia ante-
riormente. Así fue la construcción de unas ciudades en el siglo XVIII y
XIX, manteniendo aquellos elementos fundamentales para atender a las
necesidades ambientales. El siglo XX planteó la competencia entre las vi-
viendas con propietarios que querían diferenciarse del resto quitando las
galerías y construyendo fachadas. Al derribar la galería destruye la calle a
cubierto, desprotege al peatón de la lluvia y el sol y, además, cambia la altu-
ra de las ventanas y de las puertas como si sus moradores hubieran crecido
hasta más de dos metros de altura. Pasamos de aquella ciudad comunitaria,
de aquella ciudad que se integraba en la relación social del encuentro en la
galería, a la ciudad del prestigio, a quien tiene la casa mejor, a quien mani-
fiesta su calidad diferenciadora de alguna manera.
Estas formas de ostentación que allí van surgiendo las padecemos hoy en la
arquitectura contemporánea. Es lo que estamos haciendo cuando contrata-
mos a cualquiera de las grandes estrellas o “los lápices de oro” de cualquier
país para colocar una supuesta obra magnífica en nuestras ciudades. Tene-
mos ejemplos de esta tiliguería absurda de la “marca” de la ciudad corpori-
zada en la obra singularísima. El derroche de recursos de esta “arquitectura
milagrosa” capaz presuntamente de cambiar el destino de la ciudad ha sido
mostrada en la reciente crisis. En este selecto lote de figuras de estrellas
fugitivas del firmamento arquitectónico mundial no faltará también algún
centenario arquitecto latinoamericano que es capaz de construir con los
mismos formalismos sin contenido algunas de esas obras en los países del
primer mundo.
Pero la ciudad es otra cosa, la ciudad requiere el respeto, en definitiva, por
los procesos de sustitución y crecimiento. Del centro histórico y su paisaje
urbano debemos ampliar la base a una lectura de patrimonios territoriales.

7 REVISAR CONCEPTOS Y VALORAR


PATRIMONIALMENTE EL TERRITORIO

Y la propia UNESCO cambia, pues ya en el siglo XXI empezamos a ha-


blar de los “Itinerarios culturales”. Recuerdo que la declaratoria de San

REPENSAR UNA MIRADA INTEGRADORA PARA NUESTRO PATRIMÔNIO DE AMÉRICA LATINA 63


Francisco de Lima como patrimonio de la humanidad, precedió a la pos-
terior declaración del centro histórico de Lima que obviamente incluiría al
convento que ya había sido declarado antes. La declaratoria por agregación
como he dicho antes no conforma el carácter de la ciudad que está mucho
más allá de la sumatoria de monumentos aislados.
Lo propio nos sucede cuando no valoramos el territorio en su conjunto y
nos reducimos a los pequeños poblados. Los Itinerarios pueden ser una
buena herramienta y los Paisajes Culturales también, en la medida que sean
capaces de superar el criterio restrictivo que los ha delimitado para un me-
dio exclusivamente rural dejando de lado a las ciudades. Aquí tenemos para
nosotros una grave omisión patrimonial, ya que en América no valoramos
el territorio pues no tenemos una visión clara del valor patrimonial del ter-
ritorio. Por suerte ahora se está trabajando en el MERCOSUR Cultural so-
bre como vincular los pueblos y los establecimientos rurales de las misiones
jesuíticas de la región en Argentina, Brasil, Paraguay y en Uruguay con esta
nueva modalidad del Itinerario cultural. Estas lecturas patrimoniales más
amplias nos permiten entender también la cultura de las regiones. Si yo veo
una iglesia de Chiquitos puedo entender todo un sistema de colocación de
los templos desde su emplazamiento, de su construcción, y de utilización
inclusive hasta de un sistema de mensuras que no era el sistema métrico
decimal, ellos hablaban, cuando construían, por “lances”, y el lance era la
unidad definida por la dimensión de la pieza de madera que les permitía
una determinada luz entre columna y columna. Así, en las iglesias o las ca-
sas se agregaban o se quitaban lances de acuerdo a las circunstancias. Una
arquitectura de Modulación que podemos ver la escala de profundidades
que nos permite llegar lecturas patrimoniales desde el territorio.
Aparece en los últimos años un nuevo concepto, el de “Paisaje Cultural”,
cuyo contenido es visto desde el ICOMOS de una manera que considera-
mos reductiva que lo limita a las transformaciones culturales en un medio
natural. Para nosotros este concepto engloba elementos mucho más fuertes
que marcan una articulación entre la arquitectura o el patrimonio tangible,
material, con el patrimonio natural y con el inmaterial expresado en los
modos de vida de las comunidades.
Hasta el momento esta categoría se utiliza fundamentalmente para lugares
que tienen una valoración de tipo rural, o que tienen presencia de carác-
ter simbólico, montes sagrados, sitios que tienen entonces una articulación
cultural con esos medios. Este es el caso de la quebrada de Humahuaca en

64 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


el norte argentino, donde no cabe duda, en el pueblo de Purmamarca, de
que hay una íntima relación de miles de años de historia con su medio y que
forma, además, también, un itinerario junto con el paisaje cultural.
Cuando nosotros empezamos a hablar de paisaje cultural en América,
planteamos que la ciudad es el paisaje cultural más importante que ha
generado el hombre en los últimos mil años de su historia ya que en reali-
dad es el paisaje que integra lo cultural, lo natural y al mismo tiempo los
elementos de lo intangible y de la diversidad cultural. Con esta perspec-
tiva hicimos nuestra lectura patrimonial de Buenos Aires, como lo han
realizado los colegas brasileños para Río de Janeiro obteniendo su nomi-
nación de Patrimonio de la Humanidad como “Paisaje Cultural”. En esta
declaratoria la ciudad aparece disminuida en sus valores al mínimo para
compatibilizarla con las medidas restrictivas de la conceptualización tra-
dicional. No interesa, es el primer paso para reconocer una nueva mirada
sobre el patrimonio.
Hemos encontrado una resistencia obstinada desde ciertos sectores euro-
céntricos para reconocer esta manera de entender los valores patrimonia-
les de la ciudad americana. Aparece en reiteradas oportunidades un cierto
temor a qué vamos a hacer con la ciudad patrimonial. No se acepta con
facilidad una realidad propia, de ciudades dinámicas donde lo fundamen-
tal es el cambio, lo fundamental es identificar la diversidad cultural, lo fun-
damental es mejorar la calidad de vida, y concebir que el patrimonio es
una herramienta para ello. La ciudad no es un museo estático como sucede
con centros históricos como Cáceres en España que han sido declarados
patrimonio de la humanidad. Tampoco es Patrimonio una ciudad que va
expulsando a sus pobladores, aquellos que le daban, justamente, el carácter
patrimonial y la identidad al lugar.
Para evitar aceptar esta ampliación del concepto de “Paisaje Cultural” se ha
ido perfilando la nueva propuesta llamada “Paisaje histórico urbano” que
ya tiene reconocimiento en los foros técnicos. Nosotros creemos que de-
ben revisarse muchos casos pues en estos cuarenta años de la declaratoria
de Patrimonio Cultural y Natural (1972), se han cambiado muchos crite-
rios de valoración, se han verificado serios fracasos, se han transformado
herramientas en función de ellos y resulta anacrónico no hacer un justo
balance y proceder a cambiar aquello que está obsoleto o equivocado. Po-
demos elegir: ciudades museo, homogéneas y congeladas, o ciudades vivas,
heterogéneas y cambiantes.

REPENSAR UNA MIRADA INTEGRADORA PARA NUESTRO PATRIMÔNIO DE AMÉRICA LATINA 65


El caso de Cartagena en Colombia muestra muchas de las características
y errores que les mencionaba, acotadas a una realidad determinada que
generó una transformación de la ciudad donde se expulsó a los pobladores
del centro histórico. Esta fue una decisión política clara y manifiesta, don-
de las autoridades entendieron sustancial la renovación de los pobladores
del área. En el año 1986, se debía hacer una valoración de Cartagena para
definir el Plan de Manejo de la reciente declaración de Patrimonio de la
Humanidad. En la reunión con las autoridades se explicitó cómo el objetivo
fundamental era que todos los ricos de Colombia fueran a vivir a Carta-
gena o tuvieran una casa en Cartagena. Cabe señalar que entonces buena
parte de los ricos de Colombia eran los esmeralderos y los narcotraficantes.
Y, si bien esta reflexión los desconcertó un poco, no amainó la obsesión que
tenían de que había que vender la ciudad para el turismo y para estos ricos.
Lo que se hizo fue, evidentemente, este proyecto.
Años después los cartageneros se lamentaban de que ya no había cartage-
neros en el centro histórico de Cartagena, que se habían mudado a otros
lados, que las playas ya estaban saturadas y deterioradas y se tenían que
ir a la isla del Rosario, a varias horas en buque, para encontrar un lugar. Y
así fue, muchas de las casas se transformaron en pequeños departamentos,
muchos patios se transformaron en piletas de natación y muchos lugares
cambiaron cuando antiguos conventos patrimoniales fueron convertidos
en hoteles y a la expulsión de la población de menores recursos de los bar-
rios de Getsemaní o San Diego, le siguió la de los edificios escolares del
llamado “corralito de piedra”. Finalmente, la racionalidad volvió, la Co-
operación española ayudó mucho con una política de intervención en el
espacio público, de eliminar el auto, generar zonas peatonales, zonas de
encuentro, la recolocación en el centro histórico de edificios escolares y de
pequeñas universidades, es decir, se ha creado, de alguna manera, una es-
trategia de recuperación vital de un centro histórico que antes era utilizado
fundamentalmente los fines de semana.
Aprendiendo de nuestros errores, ha sido claro que no hay posibilidad de
recuperación de los centros históricos si no atendemos prioritariamente al
uso residencial. Esto implica, como históricamente ha sido, la aceptación
de la compatibilidad del “monumento” con la arquitectura popular que
conforma la arquitectura de acompañamiento. Si no hay usos residencia-
les, el centro histórico se terciariza en función de sus atractivos turísti-
cos, pero pierde los rasgos identitarios de su vida comunitaria, es decir

66 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


resigna su carácter patrimonial y queda sujeto a los vaivenes de los intere-
ses turísticos.
Tenemos la experiencia de la vertiginosa caída del turismo en Cusco cuan-
do la epidemia de cólera o en conflictos de violencia que llevaron a la quie-
bra de los operadores turísticos y depresiones económicas en la ciudad, hoy
revertidas por nuevas oleadas turísticas. La vida de una ciudad y su patri-
monio deben siempre estar en manos de sus habitantes, el turismo será un
valor agregado a la vida de los centros históricos, no el eje de su existencia.
En nuestra América el patrimonio intangible está vivo permanentemen-
te. Nuestros países siguen expresando unas culturas barrocas, donde los
valores simbólicos están presentes en casi todos los actos de nuestra vida.
Aún en lugares tan apartados como el desierto chileno, los peregrinos pue-
den recorrer, en devoción a la Virgen de la Tirana, kilómetros a pie para
transformar un pequeño pueblo en un sitio que albergue temporariamente
a miles de personas. Se trata de una arquitectura efímera, una ciudad de
carpas, que en su precariedad tiene la vitalidad de ese reconocimiento hacia
aquello en que se cree profundamente con valores que son esenciales para
la comunidad. Entonces, ¿cómo nosotros no vamos a tener en cuenta estos
valores cuando empecemos a tomar con seriedad los hechos que necesita-
mos para recuperar la identidad y la conciencia patrimonial?
Cuando hablamos de recuperar la historia deberíamos superar las antiguas
iconografías y los simbolismos agregándoles una noción de patrimonio his-
tórico que sume los aportes de lo cultural, lo social y también lo construido.
Esto implica reconocer las diversidades culturales que tenemos dentro de
nuestras realidades que son diversas en distintas partes de América. Pero
debemos aprender a valorar esa antigua diversidad cultural, que es creativa
y capaz de integrar culturas. Un ejemplo notable es el de la “Virgen del
Socavón” en Potosí (Bolivia), que incorpora en un cuadro al manto de la
Virgen el cerro de Potosí (foto) con la gente subiendo. Es decir, que expresa
simbólicamente aquellos elementos de su cultura que son capaces de ser
integrados. Lo que muchas veces hablamos de nuestras formas de relación
social, están también marcadas por esto.
Otra realidad americana múltiple y riquísima es la de la articulación del
patrimonio con el paisaje. A diferencia de los poblados españoles, el paisaje
se mete dentro de los poblados y forma parte de los mismos. Nuestros pue-
blos no tienen solución de continuidad con su entorno y el árbol se mete
dentro de ellos. Ya desde tiempos prehispánicos la construcción cultural

REPENSAR UNA MIRADA INTEGRADORA PARA NUESTRO PATRIMÔNIO DE AMÉRICA LATINA 67


del paisaje adquiere también sentidos simbólicos. Evidentemente la piedra
de Saywite, una maqueta incaica cósmica tiene un mensaje propio, pero ese
manifiesto hay que verlo en el contexto de una plataforma construida sobre
la naturaleza como una suerte de Temenos griego, un solado religioso que
marca una modificación del paisaje para incluir ese elemento simbólico
dentro del mismo.
Otro aspecto a revisar es la articulación de lo tangible y lo intangible con la
historia. ¿Cómo articulamos el patrimonio con el valor social y cultural? Lo
podemos hacer si estamos atentos a las necesidades de nuestra vida contem-
poránea y además partimos del aprovechamiento del patrimonio construido.
Este es un gran camino para cualificar la vida urbana y a la vez mantener
vigentes edificios patrimoniales y la vida en los centros históricos.
Muchas obras de arquitectos han mostrado que es posible introducir una
arquitectura contemporánea, respetando, integrando y mejorando aquello
que existe. Atentos a las urgencias de nuestras necesidades vitales también es
patrimonio nuestras respuestas creativas a partir de nuestras posibilidades.
Los valores de uso que todavía tienen muchos antiguos edificios industria-
les, portuarios y ferroviarios, nos permitirán atender las demandas de com-
plejos equipamientos que requiere hoy la vida de nuestras ciudades. Una
nueva arquitectura atenderá, sin dudas, la jerarquización de áreas otrora
excluidas asegurando el disfrute de la ciudad.
En esta nueva apuesta de la ciudad con Paisaje Cultural, los sitios guarda-
rán la memoria y esos bienes culturales ahora transformados serán una
nueva dimensión del patrimonio. Obviamente, como decíamos antes, lo se-
rán cuando esos bienes culturales son utilizados permanentemente por esa
población que es la que le asigna el valor de patrimonio. Esa población es
la que disfruta sus fiestas y regocijos, que cotidianamente disfruta aquellos
modos de vida que la caracterizan. Es ella la que da identidad y consolida
la idea que un patrimonio es un elemento fundamental en la sociedad, esa
población es la que le está dando en definitiva el carácter patrimonial. Esa
población que paulatinamente se organiza y mantiene sus sitios, se exalta
y los defiende, que se reúne en asambleas urbanas o rurales y que en la
región andina hasta Chiloé está activando su secular trabajo en “Minga”
en esa tarea comunitaria que ancestralmente le ha permitido construir su
patrimonio y mantenerlo con vida.
Esos valores del patrimonio tangible e intangible son los que se viven en
la fiesta, esa fiesta de nuestra persistencia barroca que constituye uno de

68 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


los elementos fundamentales de la cultura americana. Las imágenes de la
secular fiesta se siguen reiterando en nuestros días con nuevos escenarios
y argumentos que convocan a la participación masiva de las comunidades,
los gremios, los barrios y las cofradías.
No debemos olvidar nunca que el patrimonio es un medio y no un fin en
sí mismo. Medio para lograr una mejor calidad de vida con referencias a la
historia, la cultura y al desarrollo de la vida material misma.
Por ello es preciso actualizar la visión del patrimonio, integrándola para
hablar de un único patrimonio que exprese lo cultural, lo natural, lo in-
material y la diversidad cultural. Ello nos permitirá colocar los verdaderos
valores de la vida en un orden de prioridades que no sacrifique elementos
esenciales en aras de intereses subalternos. Esta nueva mirada exigirá los
cambios que den respuesta a nuestras carencias, pero también exigirá su
compatibilización y respeto con aquellos valores que ya existen.
Aprendamos en los aciertos y errores que hemos cometido en estos cuaren-
ta años y generemos las nuevas herramientas que nos permitan integrar las
miradas patrimoniales en todas las escalas incluyendo también el territo-
rio. Es nuestro desafío latinoamericano para el siglo XXI.

REPENSAR UNA MIRADA INTEGRADORA PARA NUESTRO PATRIMÔNIO DE AMÉRICA LATINA 69


URBICIDIO O LA
PRODUCCIÓN DEL OLVIDO

Fernando Carrión Mena1

1 INTRODUCCIÓN

Nunca como ahora había estado tan presente el tema del patrimonio en la
agenda de los medios de comunicación, en el espacio de los especialistas y
en el escenario de la ciudadanía patrimonial. Sin duda que esta visibilidad
y posicionamiento no es casual: ¡nunca se había destruido tanto patrimonio
como ahora!
El proceso de destrucción selectivo y masivo del patrimonio se ha desar-
rollado sin el impedimento de los sujetos patrimoniales institucionales -na-
cionales e internacionales- encargados de velar por su salvaguarda, tanto
que estos no han reaccionado frente, por ejemplo, al derrocamiento de la
Biblioteca de Alejandría, al bombardeo de Bagdad, a la invasión turística en
Venecia, a la construcción de las grandes torres habitacionales en Santiago
Centro o al vaciamiento de la sociedad en el Centro Histórico de Quito2. Es
más, en muchos casos, sus propias acciones han sido las que han deteriora-
do el acervo acumulado.
Esta debilidad institucional pone en cuestión su condición estructural y
también los paradigmas tradicionales con los que han abordado la temáti-
ca3. En otras palabras la destrucción patrimonial, la debilidad institucional
y la obsolescencia conceptual -en el marco de la globalización- configuran

1 Académico de FLACSO-Ecuador; Presidente de la Organización Latinoamericana y de El


Caribe de Centros Históricos (OLACCHI).
2 En 1990 la población del Centro Histórico fue 81.384 habitantes, 20 años después se redujo a
40.913 (Del Pino, 2013).
3 Los paradigmas hegemónicos han sido funcionales a estos procesos. por ejemplo, gracias a las
políticas de turismo, de gentrificación y de conservación, entre otras.

URBICIDIO O LA PRODUCCIÓN DEL OLVIDO 71


una coyuntura patrimonial signada por la producción de olvido, que bien
podría caracterizarse como una crisis global del patrimonio; muy similar a
la que se produjo luego de la Segunda Guerra Mundial4, con la diferencia
de que ella estuvo localizada en Europa y la actual se despliega de manera
generalizada en el territorio y de forma ubicua5; lo cual es posible porque se
ha producido la globalización del patrimonio, gracias a la revolución cien-
tífico-tecnológica en el campo de las comunicaciones, a las declaratorias de
patrimonio de la humanidad6, al peso de la cooperación internacional y al
turismo homogeneizador que rompe fronteras.
Es que ahora el patrimonio se revela como una construcción social y, por
lo tanto, como un fenómeno histórico que muta constantemente; por eso
existen coyunturas particulares de transformación de sus modos de (re)
producción. En los orígenes de las coyunturas siempre han estado presentes
las crisis, recurrentes y cíclicas, que se han convertido en par de aguas, que
dividen e integran períodos distintos.
La crisis, como señalan los orientales, es una oportunidad y en el ámbito
patrimonial no es la excepción, en tanto se convierte en un punto de parti-
da de una nueva realidad. En la actualidad nace del crecimiento de la queja
social por mejores condiciones de vida, de la reivindicación ciudadana que
presiona una defensa del patrimonio y, sobre todo, del aparecimiento de
ciertos atisbos de proyectos colectivos alternativos. En esa perspectiva y
en esta coyuntura se vive la confrontación de dos modelos de gestión que
buscan la salida a la crisis: el uno bajo la égida del mercado (acumulación)
y el otro desde el peso de lo público (democratización); pero no es solo en el
ejercicio de gobierno, sino también en la concepción del patrimonio, lo cual
le pone al concepto, por primera vez, en una doble condición creativa: su-
perar el fetichismo patrimonial y aceptar la condición polisémica que tiene.

4 Situación muy parecida se vivió con la Segunda Guerra Mundial en Europa, que dio lugar
justamente a un impulso muy fuerte de las tesis de la restauración y reconstrucción
monumental.
5 Tres grandes coyunturas patrimoniales han vivido la humanidad: la primera, con la primera
modernidad; la segunda, con la guerra mundial y ahora, con la globalización.
6 Al momento son 187 ciudades consideradas patrimonio de la humanidad por la UNESCO, las
que deciden conformar la Organización de Ciudades Patrimonio de la Humanidad (QCPM),
para intercambiar experiencias, difundir conocimientos, generar asistencia técnica, entre otras
(ovpm.org/main.asp). Además, se debe señalar que en el año 2013 estaban catalogados 981
sitios: 759 culturales, 193 naturales y 29 mixtos, en 160 países del mundo.

72 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


Con este trabajo se quiere aportar al conocimiento de esta coyuntura pa-
trimonial mediante un giro metodológico: a la visión monopólica del pa-
trimonio como bien depositario de la memoria (monumento7), se busca
oponer el sentido de la producción del olvido; de tal manera de reconstruir
el equilibrio en la ecuación patrimonial entre: la acumulación del pasado
(acervo) y la destrucción del presente (despilfarro), pero desde sus proce-
sos sociales constitutivos.
Si tradicionalmente se han resaltado los atributos del bien patrimonial
-vinculados generalmente a lo monumental- hoy lo que está en discusión
son las relaciones sociales que explican la pérdida del acervo continua-
mente acumulado a lo largo de la historia8 En otras palabras, concebir al
patrimonio menos a partir de los atributos y más desde relaciones sociales
que lo constituyen. Pero también se trata de llamar la atención desde el án-
gulo inverso a la cantidad de memoria acumulada; esto es, desde las lógi-
cas y formas de producción del olvido, de tal manera de entender los pro-
cesos de generación patrimonial por sus orígenes (económicos, culturales,
políticos), y menos a partir del objeto de la destrucción (monumento); de
tal manera que sea posible construir nuevas formas de producir susten-
tabilidad en la acumulación histórica del patrimonio (valor de historia).
Este giro metodológico permitirá curar con el ejemplo, pero al revés: mirar
desde lo que se pierde, a través de un balance entre lo que se recupera y se
destruye, en aras de supuestos “valores superiores” provenientes de la po-
lítica, de la guerra o de la economía, que terminan por subsumir a las pro-
pias instituciones destinadas a mitigar el olvido. El concepto urbicidio es
central en la comprensión de este proceso, porque ayuda a entender lo que
se pierde y, a partir de ello, lo que se debe mantener y también construir.

7 Por monumento se entiende según el DRAE: “Obra pública y patente, como una estatua,
una inscripción o un sepulcro, puesta en memoria de una acción heroica u otra cosa singular.
Construcción que posee valor artístico, arqueológico, histórico, etc.” (resaltado nuestro).
8 Acervo: conjunto de bienes morales o culturales acumulados por tradición o coherencia.

URBICIDIO O LA PRODUCCIÓN DEL OLVIDO 73


2 LO PATRIMONIA: POLISEMIA Y FETICHISMO

Según el diccionario de la Academia de la Lengua, la palabra patrimonio


viene del latín y se compone, por un lado, de patri que significa padre, y
por otro, onium que quiere decir recibido; es decir: es recibido por línea
paterna. De allí que sea una definición altamente dinámica que entraña un
proceso histórico que tiene actores explícitos: los que reciben (es recibido
por) y el que transmite (por línea paterna); es decir, actores que interactúan
a la manera de sujetos patrimoniales en relación a la disputa de la heredad
(Carrión, 2010).
Esta noción de patrimonio no define bienes o cosas (cosifica)­sean materiales,
inmateriales o espirituales- sino una relación que delimita un ámbito parti-
cular del conflicto social: el legado o la herencia, y lo hace según la correlación
de fuerzas de los sujetos patrimoniales en un momento y lugar particulares;
que es, finalmente, la que define la condición de poder de cada uno de ellos,
porque sin apropiación -como base del poder- no hay patrimonio.
Es en el contexto de los mecanismos de transmisión del patrimonio -pro-
pios del procesamiento del conflicto- que se logra la sustentabilidad histó-
rica del proceso, situación muy similar a lo que ocurre al interior del núcleo
familiar entre el padre y sus hijos. O sea que el patrimonio genera un poder
que nace de la propiedad y del peso que los sujetos patrimoniales tienen en
su interacción: alguien debe apropiarse para que exista el patrimonio y, sin
duda, la propiedad es una relación social históricamente constituida.
De esta manera, lo patrimonial es el resultado del proceso histórico de acu-
mulación continua de tiempo y, a su vez, es un mecanismo productor de
historia; todo ello gracias a la transformación constante de la masa patri-
monial (acervo) mediante la transmisión del patrimonio entre los sujetos,
bajo una doble situación: democratización del patrimonio (propiedad y
poder) e incremento del valor de historia (añade tiempo al pasado); que en
nada tienen que ver con las políticas de conservación. Esta historicidad de
la relación social - que define la heredad productiva - niega el fetichismo
patrimonial, así como las prácticas de contención de la historia en su único
momento: el origen.
En última instancia el patrimonio entraña, por un lado, una propiedad que
le otorga al sujeto patrimonial un poder. Y, por otro, una transferencia o
heredad que -por más familiar y privada que sea- debe ser ventilada por
el sector público, en tanto son las cortes de justicia (marco institucional

74 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


público) y la normativa del código civil (pacto social) los que determinan
el protocolo que debe seguirse. Lo patrimonial en el ámbito de la sociedad
no es muy distinto: el conflicto debe ser procesado con normas jurídicas,
instituciones y, también, con políticas públicas porque, caso contrario, será
el mercado que lo haga desde su propia lógica; mucho más si -como ahora
ocurre- existen procesos de desregulación que tienen como fundamento
atraer capitales (condiciones generales) que transforma el patrimonio en
capital físico.
El patrimonio solo puede ser concebido históricamente porque existe una
lógica de poder sustentada en las relaciones de los sujetos patrimoniales que
lo (re)producen, transfieren y consumen. Si esto es así, se pueden encontrar
tres grandes coyunturas patrimoniales a lo largo de la historia: la primera,
vinculada a la modernidad, cuando el Estado se apropia del patrimonio
(patrimonio institucional), para concebirlo como un “aparato ideológico”
que construye y legitima la historia oficial, gracias al disfrute que genera su
espectacularización y la masificación de su consumo contemplativo9, veni-
do de la hiper urbanización de la población.
En este momento -caracterizado como coyuntura patrimonial- se produ-
ce el hecho fundacional del nacimiento del patrimonio histórico -porque
el patrimonio no ha existido siempre- a partir de dos vías constitutivas:
primero, de los monumentos construidos con una función social relevante,
como puede ser la misa (valor de uso), pero que requieren su perdurabili-
dad en el tiempo, como testimonio de una época, sea por la importancia
de la función que desempeñaba o por la riqueza de su producción material.
En este caso lo que se tiene es el incremento a su cualidad funcional (valor
de uso) la necesidad del sentido de memoria (valor de historia). Y segundo,
por la necesidad que existe por hacer público un hecho histórico del ayer10,
a través de la construcción explícita de un nuevo bien patrimonial (monu-
mento) que desde el principio nace con valor de historia, como si fuera su
valor de uso. En este momento se diferencia patrimonio como valor de uso,
del patrimonio histórico como valor de historia.

9 Posteriormente adquirirá un peso singular el valor de cambio, justamente cuando el modelo


capitalista se consolida y cuando el turismo y el sector inmobiliario le dan una nueva
connotación al patrimonio: capital físico que puede generar altas utilidades a quien lo posea o
explote económicamente.
10 Tanto el uno como el otro producen “historias oficiales”.

URBICIDIO O LA PRODUCCIÓN DEL OLVIDO 75


La siguiente coyuntura está relacionada con el periodo de ambas guerras
mundiales, cuando se producen destrucciones significativas del patrimonio
histórico europeo, localizado en las ciudades más emblemáticas. A partir
de este momento Europa se convierte en el espacio principal de irradiación
del pensamiento -sobre todo- de las políticas del patrimonio que se univer-
salizaron acríticamente11. Para formalizar estas propuestas se utilizaran las
denominadas Cartas -que adoptaran el nombre de la ciudad donde se las
redacta12- y las Convenciones, las dos bajo el principio de la conservación
monumental en sus distintos grados, que fueron incapaces de comprender
la riqueza de los fenómenos particulares y, mucho menos, de detener los
procesos destructivos.
La condición histórica del patrimonio supera aquel paradigma13 dominan-
te de lo patrimonial sustentado en la devoción por ciertos bienes -como ob-
jetos esenciales, sean tangibles o intangibles, materiales o inmateriales- que
devino en el fetichismo patrimonial14; en tanto deja por fuera las relaciones
sociales que las (re)producen o las esconden tras los atributos del bien. Esta
visión histórica15 se concreta en la producción social del patrimonio, ocurri-
da en momentos, en lugares y en sociedades particulares.
Los centros históricos, por ejemplo, fueron concebidos como un bien físi-
co que tenía ciertos atributos (conjunto monumental) y no relaciones. Por
eso cuando a los centros históricos se los analiza históricamente, como
producción social, la cualidad central -que es una definición relativa- se
hace líquida; y la condición histórica se reduce a encontrar el momento

11 La Segunda Guerra Mundial destruyó de un día para otro el patrimonio de las ciudades,
mientras en América Latina la erosión vino de las condiciones socioeconómicas y de las
características de la urbanización.
12 La Carta de Atenas (1931) fue redactada solo por especialistas europeos, en la de Venecia (1964)
participaron tres “tres extraños” provenientes de Perú, México y Túnez y luego en 1972 se
realizó la primera Convención sobre la protección del patrimonio mundial, cultural y natural
con la participación de cerca de 80 países del mundo.
13 Según Tomas Kuhn, “el paradigma hace referencia al conjunto de prácticas que definen una
disciplina científica durante un período específico.
14 En mucho se acerca a la propuesta de Marx (2000) respecto del sentido y contenido del
“fetichismo de la mercancía”.
15 Aquí se inscribe esa definición del patrimonio monumental colonial como determinación
de existencia de un centro fundacional de valor en América Latina que, incluso, termina
por definirlo como un centro homogéneo y colonial (casco colonial, estilo colonial) que se
proyecta. Lo colonial no fue homogéneo, sino de la imposición de la cultura y la economía de los
conquistadores a los conquistados. Si bien fue una fase histórica que no se puede olvidar, ello no
puede conducir a sublimar.

76 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


de su génesis para aplicar las políticas de conservación. De esta manera se
lo vacía de historia y se llena de fetichismo, por eso, la conservación pro-
duce la negación de la condición histórica del centro histórico; tanto que
al poner en valor el bien patrimonial, por ejemplo, producido durante la
conquista española, realza la dominación colonial a través de los atributos
que se le asignan al monumento -o al conjunto monumental- y congela la
historia en el momento de su origen, lo cual niega el proceso continuo de
acumulación del tiempo en el pasado que permite múltiples y simultáneas
lecturas provenientes de tiempos distintos bajo la forma de un palimpsesto
(valor de historia).
De esta manera la condición histórica se licúa cuando lo monumental se
convierte en el elemento determinador de la existencia del patrimonio y no
al revés: lo patrimonial es una herencia o transmisión creativa que produce
un incremento del valor de historia del bien. Por eso no aceptan que, por
ejemplo, la demarcación de un centro histórico nazca de la política urbana
y de la correlación de fuerzas de los sujetos patrimoniales y sí creen que la
delimitación viene de un demiurgo creador que cae del cielo, encarnado
por una deidad o por un técnico.
Como reacción a este fetichismo patrimonial han aparecido dos visiones.
La una, entendida como capital físico que debe reproducirse y acumular-
se, de tal manera de obtener ganancias económicas significativas (valor de
cambio); en esa perspectiva el turismo es gravitante, aunque también lo son
los sectores comercial e inmobiliario (Rojas, 2004). Y la otra, que empieza
a dar sus primeros pasos desde el concepto de patrimonio como capital
social, en tanto permitiría fortalecer las instituciones y mejorar la cohesión
social (Putnam).
El patrimonio histórico es además, en la actualidad, una definición poli-
sémica16 porque tiene múltiples y plurales formas de concebirlo, tanto que
rompe con definición hegemónica inscrita en la lógica del pensamiento
único, que no acepta disidencias. A continuación, podemos ver varias en-
tradas que nos muestran esta realidad:
• El itinerario histórico -propio del transcurrir de los tiempos que da lu-
gar a una secuencia que, según Choay (2007), transita de la connotación
familiar (patrimonio familiar), a la economía (patrimonio económico),

16 Como también lo son los conceptos de democracia, desarrollo y descentralización, entre otros.

URBICIDIO O LA PRODUCCIÓN DEL OLVIDO 77


al campo jurídico17 y luego sigue por al ámbito político (patrimonialis-
mo18), todas ellas con un peso singular del sentido propiedad. Patrimo-
nio es, entonces, lo que se posee bajo diferentes formas que el derecho
termina por formalizar.
• La fragmentación en tipos patrimoniales se expresa bajo tres situa-
ciones: la primera vinculada a su carácter dicotómico, material o in-
material, así como tangible o intangible; la segunda relacionada con
el ámbito sectorial del patrimonio: industrial, cultural, militar, arqui-
tectónico, musical; y la tercera referida a lo que Bourdieu (1999) de-
nominó el “efecto lugar”, que plantea un universo patrimonial según
el espacio donde se encuentre. Como históricamente el concepto nace
en Europa -en la modernidad- es este el punto de partida desde donde
se irradia al mundo; cosa que ahora no es posible por la emergencia de
nuevas realidades a nivel planetario19; este es el típico caso del sentido
de la glocalización -definida por Robertson (1992)- del patrimonio, que
lo pluraliza. La riqueza del universo patrimonial radica en su acumu-
lación (noción de antigüedad) y en su diversidad.
• Las posiciones teórico-metodológicas definen las características del ob-
jeto de pensamiento: la visión tradicional pone énfasis en el denomina-
do bien patrimonial, sea material o inmaterial, que es probablemente la
más extendida. Esta visión está en franco cuestionamiento a partir de
tres posiciones que se empiezan a trabajar: la una, que surge de la defi-
nición del capital físico que debe reproducirse con altas tasas de ganan-
cia (ROJAS, 2004) y la otra desde lo que significa el capital social que
fortalece las instituciones y la cohesión social. Adicionalmente se en-
cuentra la que se concibe como un escenario de conflicto entre sujetos
patrimoniales alrededor de la transmisión sustentable de la herencia.

17 Este reconocimiento de lo jurídico tiene dos implicaciones muy importantes: primero, se ubica
en el campo del derecho y, segundo, lo convierte en un proceso público que está normado -a
través de un pacto social: esto es una ley-, que son formas de procesar el conflicto venido de la
heredad.
18 Se refiere a los sujetos patrimoniales (patriarcales) que consideran como propios los bienes
públicos; es decir, se apropian lo público.
19 “Mi labor en el continente americano durante más de veinte años, en contraste con el trabajo
en mi país y resto de Europa, me ha hecho observar que para resolver el problema de la
conservación del patrimonio cultural americano es necesario un planteamiento diferente al
europeo, en muchos aspectos. (...) Aunque la filosofía de los criterios restauradores tenga una
unidad original en todo el mundo, no se pueden olvidar las características diferenciales entre
el patrimonio cultural europeo y el americano” (Gonzá­lez de Valcárcel, 1997).

78 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


Así como lo polisémico es un avance, también es la superación del fetichis-
mo patrimonial, uno y otro inscritos bajo una condición histórica. Pero
también es el hecho de que el proceso de urbanización de la sociedad ha
determinado que la ciudad sea el espacio con más alta densidad de patri-
monio, tanto que todo lo que contiene una urbe es patrimonial, porque la
totalidad de la ciudad y sus partes, tienen un valor de uso. Sin embargo,
solo algunas partes adquieren la condición de patrimonio histórico, gracias
a la acumulación continua del valor de historia. Por eso el urbicidio puede
actuar sobre el patrimonio, el patrimonio histórico o sobre los dos; depen-
diendo las estrategias diseñadas.

3 URBICIDIO: PRODUCCIÓN SOCIAL DE OLVIDO

El concepto urbicidio nace en la década de los años sesenta de la mano de Mi-


chael Moorcock en el ámbito de la literatura (1963). Deberán pasar unos años
más para que se lo empiece a utilizar en el campo de los estudios de la ciudad,
a través de dos entradas metodológicas distintas: la primera, relacionada con
los efectos devastadores que producen las guerras en las ciudades y la segun-
da, vinculada explícitamente a los impactos que genera la refuncionalización
de las ciudades, sobre todo en aquellos lugares donde habitan los sectores
populares, como ocurrió en Nueva York (Bronx) o en Chicago. Después de
estos dos intentos -el uno en que la ciudad actúa como escenario y el otro
como parte constitutiva de la ciudad- el concepto prácticamente desapareció
por la supuesta falta de comprensión de la realidad urbana.
Sin embargo, esta noción debe trabajarse porque tiene una riqueza muy
grande para explicar algunos de los fenómenos propios del urbanismo ne-
oliberal que viven las ciudades de América Latina, y mucho más si se lo
vincula al concepto de patrimonio, que en este contexto histórico se trans-
forma en capital físico. De allí que alrededor de la relación entre urbicidio y
patrimonio sea factible encontrar la riqueza de su formulación.
El urbicidio es un neologismo que encarna una palabra compuesta por:
urbs que es sinónimo de ciudad y cidio de muerte: esto es, la muerte de la
ciudad20. Pero, así como el homicidio expresa el fallecimiento de una per-

20 Término que viene del latín: urbs, ciudad; caedere, cortar o asesinar y occido, masacre.

URBICIDIO O LA PRODUCCIÓN DEL OLVIDO 79


sona, el femicidio de una mujer por razones de género o el suicidio de un
ser humano de forma auto infligida, el urbicidio no es la muerte de todas
las urbes, ni tampoco el fin de la ciudad como realidad compleja; sino, más
bien, del asesinato de una ciudad en particular o de ciertos componentes
esenciales de ella, por procesos claramente definidos.
Se puede afirmar que se trata de un concepto en construcción que tiene
que ver con el asesinato litúrgico de las urbes, producido por agresiones y
acciones con premeditación, orden y forma explícita. Es decir, se trata del
asesinato o de la violencia en contra de la ciudad por razones urbanas. En
principio son acciones militares, económicas, culturales o políticas que: i)
acaban con la identidad, los símbolos y la memoria colectiva de la sociedad
local concentrada en las ciudades; así como cambian el sentido de la ciuda-
danía por el de cliente o de consumidor (civitas); ii) privatizan, concentran
o subordinan las políticas y las instituciones públicas a los intereses del
mercado o del poder central, perdiendo las posibilidades del autogobierno
y de la representación (polis); y iii) arrasan con los sistemas de los lugares
significativos de la vida en común, como son las plazas, los monumentos,
las infraestructuras (puentes, carreteras) y las bibliotecas (urbs).
Para ilustrar esta afirmación y, a manera de ejemplo, se pueden señalar los
siguientes casos emblemáticos de producción social del urbicidio:
1) Probablemente lo más evidente tenga que ver con las guerras y las luchas
fratricidas desarrolladas a lo largo del mundo y desde tiempos inmemora-
bles, aunque hoy con el añadido de que su escenario principal, por la urba-
nización planetaria, son las ciudades. Sin retrotraerse mucho en el tiempo
están los siguientes casos de este tipo de devastación de ciudades:
• La emblemática ciudad de Guernica -destruida en 1937- es importante
porque fue un ensayo de los bombardeos masivos que vendrían des-
pués en la Segunda Guerra Mundial. Pero adicionalmente porque se
trató de una incursión aérea devastadora, ejecutada por fuerzas italia-
nas y alemanas en el marco de la Guerra Civil Española. Los puntos
estratégicos que debían ser aniquilados eran: el puente, la estación de
ferrocarril y la carretera del este de la ciudad, supuestamente para con-
tener a las fuerzas vascas. Sin embargo, el objetivo real fue el de la des-
trucción de la ciudad de Guernica, por su condición de capital cultural
e histórica del País Vasco y por ser un santuario de afirmación de su
libertad y de su democracia; contrarios al poder monárquico, centra-
lizado y fascista encarnado por Franco. Allí la explicación de más del

80 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


7% de la población muerta, del 74% de los edificios destruidos y de la
reducción de la moral de los vascos.
• Entre los impactos que se produjeron durante la Segunda Guerra Mun-
dial, entre muchas ciudades que pueden mencionarse, están Varsovia,
Berlín, Tokio y, sobre todo, Hiroshima y Nagasaki. Las primeras ciuda-
des citadas sufrieron hechos de violencia militar en tanto escenario de
la guerra o como ciudades de la guerra a las que había que destrozarlas;
mientras las dos últimas fueron arrasadas como parte de una ofensiva
que buscaba mostrar la supremacía de un país sobre el resto del mundo,
justo cuando la guerra llegaba a su fin.
• A partir de la década de los años noventa del siglo pasado se desarrollan
nuevas guerras en dos escenarios: la de los Balcanes, que como señala
el ex alcalde de Belgrado, Bogdan Bogdanovic, explícitamente fueron
anti urbanas, destinadas a socavar los valores culturales concentrados
en las ciudades. Allí están las urbes de Sarajevo, Belgrado, Móstar, Gro-
zni. Pero también están las ciudades que fueron el epicentro de la esci-
sión de la Unión Soviética y de la conformación de la Federación Rusa,
en las que sobre salen las naciones de Chechenia y Georgia, entre otras.
• Luego vinieron las guerras “preventivas” impulsadas por George Bush,
Presidente de los EEUU o las “guerras necesarias” generadas por el
Premio Nobel de la Paz, Barack Obama, que utilizaron el pretexto del
aleve ataque de los Talibanes -el 11 de septiembre de 2002- a los Estados
Unidos en los lugares con la mayor carga simbólica de ese país: las Tor-
res Gemelas de Nueva York como expresión del poderío económico,
el Pentágono en Washington lugar del Departamento de Defensa y la
Casa Blanca, que no llegó a concretarse, como expresión del poder po-
lítico de los EE.UU. La reacción inmediata fue la invasión a Irak y a Af-
ganistán, donde las ciudades emblemáticas de Bagdad, capital de Irak,
como Kabul, capital de Afganistán, entre otras, sufrieron la destrucci-
ón del patrimonio por medio de sanciones, saqueos y ataques militares.
• No se puede dejar de mencionar las conflagraciones acontecidas en la
zona árabe; allí los casos más significativos son los de Libia (Trípoli,
Bengasi) y Siria (Damasco, Alepo), además de los países inscritos en la
llamada primavera árabe como: Túnez, con la capital que lleva el mis-
mo nombre, y Egipto con El Cairo y Alejandría.
• Se deben resaltar los conflictos que tienen larga duración, como son
los los casos: árabe-israelí, en que Jerusalem, Haifa, Gaza y tantas más

URBICIDIO O LA PRODUCCIÓN DEL OLVIDO 81


sufren los efectos culturales de la guerra permanente. Tampoco se debe
dejar pasar por alto el conflicto interno colombiano, al que se han su-
mado los ingredientes provenientes de las economías ilegales (drogas,
armas, precursores químicos, tratas) para destruir ciudades de manera
terrorista. Y mucho menos olvidar los efectos de la guerra civil libane-
sa, de los ataques israelíes y de la confrontación interna entre cristianos
y musulmanes que dejaron en soletas al patrimonio milenario de la
ciudad Beirut y a sus habitantes.
• En general estos casos presentan el enfoque militar de estrategias y tác-
ticas para someter a las ciudades adversarias -física y moralmente- me-
diante: el asesinato de personas (selectivo, masivo), el aislamiento (aero-
puertos, puentes), la restricción de los servicios (energía eléctrica, agua
potable), el bloqueo del abastecimiento (comida, repuestos) y, además, la
acción exclusivamente simbólica sobre los monumentos, los lugares de
encuentro, las iglesias, las mezquitas y las bibliotecas, todos ellos signos
urbanos de la vida en común.

2) Un segundo elemento productor de urbicidio -que no se puede dejar de


mencionar- es la violencia urbana, sobre todo porque en estos últimos 20
años, al menos en América Latina, ha existido un aumento considerable de
los homicidios en las ciudades21. Si antiguamente se creía que la ciudad era
una causa de la violencia - por la vía de la etiología - hoy se puede afirmar
que muchos más impactos negativos producen la violencia en la ciudad,
tanto es así que la violencia objetiva (los hechos producidos) y la violencia
subjetiva (el temor) se han convertido en principios urbanísticos que tien-
den a negar la ciudad bajo la modalidad del urbicidio.
• La violencia urbana se despliega en el tiempo bajo una ló­gica temporal
claramente marcada: el calendario cultural hace que cada semana sea
diferente, los fines de semana sean distintos a los días laborales; las
horas de la noche difieran a las del día. Claramente hay una cronología
delictiva que le afecta a la dinámica urbana y a la ciudad en sí misma,
tanto que en términos generales se observa una reducción significativa
del uso de la ciudad: ya no existe una ciudad de 365 días, de 54 semanas
o de 24 horas.

21 Si se mide por la tasa de homicidios se tiene que en 1980 era de 12 por cien mil habitantes, cosa
que para 2006 subió a 25, 3 (Klisberg, 2008).

82 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


• La violencia en la ciudad tiende a desarrollarse en el espacio, pero bajo
una lógica urbana explícita que afirma la existencia de una geografía de-
lictiva que -poco a poco- se toma la ciudad, sea con la percepción de in-
seguridad o con los diversos hechos delictivos. La percepción de insegu-
ridad es difusa y ubicua, aunque afín a los estigmas territoriales; mientras
la realidad de los hechos delictivos se origina en la fragmentación urbana
existente: se roban bancos donde hay bancos, la criminalidad del centro
es distinta a la de la periferia, la violencia en el espacio público difiere de
la del espacio privado.
• Adicionalmente la violencia en las ciudades, como parte de la interacci-
ón social, produce efectos devastadores en la convivencia social y en la
vida cotidiana, tanto que se reducen las condiciones de solidaridad y se
amplían las múltiples modalidades de justicia por la propia mano, que
van desde adquirir armas, aprender defensa personal, linchar personas y
convertirse cliente de la boyante industria de la seguridad privada. Pero
también, porque todo desconocido se convierte en un potencial agresor
y porque el espacio público es considerado un espacio fuera de control
(CARRIÓN, 2010).
• Sin duda que la violencia urbana reduce sus bases esenciales: el tiempo,
el espacio y la ciudadanía y también, por la falta de respuesta positiva,
las instituciones y las políticas se desacreditan. Esto es, el urbicidio tie-
ne en la violencia una fuente de existencia importante, porque -simul-
táneamente- construye el olvido y destruye la memoria.

3) Uno de los impactos más significativos proviene de la economía y el em-


plazamiento de la lógica de la ciudad neoliberal.
La modificación y el desplazamiento de las condiciones generales y estruc-
turales de la acumulación producen, por ejemplo, la crisis irreversible de la
ciudad de Detroit”. El cambio global del modelo de producción de una ciu-
dad inicialmente nacida y desarrollada alrededor de la industria automotriz
- cuando este poderoso sector de la economía se amparaba en una forma
de producción concentrada en un espacio específico - cae en una profunda
depresión debido a la descomposición y a relocalización del conjunto de los
procesos de producción a nivel planetario, con lo cual la urbe queda por fuera
de los nuevos circuitos económicos, tal como se describe en la Figura 1.
Por otro lado, y desde una perspectiva economía urbana, también se
producen procesos de urbicidio, gracias a los siguientes elementos: i. Al

URBICIDIO O LA PRODUCCIÓN DEL OLVIDO 83


crecimiento del peso que tiene el capital de promoción inmobiliario dentro
de la economía urbana; ii. A la presencia de los grandes proyectos urbanos
(GPU) venidos de la crisis de la planificación urbana y de la demanda del
sector inmobiliario; y iii. A la transformación de la ciudad segregada por la
ciudad fragmentada - propia de la “ciudad insular” (Duhau) -, que genera
una constelación de espacios discontinuos constituidos con “lugares de ex-
cepción” o “zonas francas” donde el urbanismo de productos - que respon-
de a los negocios privados - se instala para colonizar el espacio y expulsar a
la población de bajos ingresos bajo la lógica de la gentrificación.

Figura 1. Estructura productiva de General Motors


Fuente: Celata F. (2007)

Estos lugares de excepción se nutren del urbanismo a la carta, que genera


una normativa pública afín a las reivindicaciones del sector inmobiliario
que se formalizan en los eufemismos de los planes parciales, de las fórmulas
de desregulación del mercado del suelo e inmobiliario o de los incentivos
tributarios. Finalmente se expresan en cambios de los usos del suelo, en la
modificación de las densidades, de las alturas de las edificaciones, así como
en la exención impositiva y la generación de créditos subsidiados, forman-
do un verdadero enclave que rompe con la lógica del espacio público, de la
prestación homogénea de los servicios y de la expulsión de la población de

84 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


bajos ingresos; fortaleciendo la segregación urbana, erosionando el capital
social y debilitando el gobierno de la ciudad.
No se puede desconocer la lógica de la innovación que reina mundialmente
y que proviene de la revolución científico-tecnológica en el campo de las
comunicaciones. Es, obviamente, contraria a la conservación y a la memo-
ria, porque a la par viene con la tesis de que el éxito depende de la velocidad
del cambio; por eso todo termina por volverse obsoleto en plazos muy cor-
tos y hace que lo viejo ceda a lo nuevo.
Finalmente, un elemento que debe ser considerado como urbicidio tiene
que ver con el cambio climático y las secuelas urbanas que está producien-
do. La vulnerabilidad del planeta ha crecido y lo ha hecho de manera de-
sigual en términos sociales y territoriales. Los casos de los terremotos y
tsunamis en Chile y Haití; de los ciclones en Centro América y Filipinas;
las inundaciones en China y Nueva Orleans y las sequías en Australia están
produciendo efectos devastadores en las ciudades y en las poblaciones que
las habitan.
En definitiva, el urbicidio hace referencia, por un lado, a las prácticas desti-
nadas a la producción del olvido; cuestión que en la actualidad se enmarca
en el llamado choque de civilizaciones. Se trata de procesos y no de hechos
puntuales, que se inscriben en contextos muchos más amplios. Se busca
destruir la memoria histórica de la ciudadanía que opera como mecanismo
de cohesión social y de identidad colectiva (civitas) para someter a esos
pueblos a las lógicas de sociedades supuestamente más desarrolladas.
Pero también, por otro lado, el urbicidio vinculado principalmente a la
economía urbana conduce a la erosión de la institucionalidad y del auto-
gobierno (polis) mediante las privatizaciones o la corrupción, así como el
deterioro de la base material de una ciudad (urbs), en aras de un supuesto
desarrollo urbano inscrito en la lógica de la ciudad neoliberal

4 CONCLUSIONES

No se trata de presentar conclusiones en este trabajo, porque es un tema


abierto y en proceso de construcción. Sin embargo, si se debe señalar que
el patrimonio como el urbicidio son construcciones sociales y por lo tan-
to históricas. Esta primera constatación conduce a la afirmación de que el

URBICIDIO O LA PRODUCCIÓN DEL OLVIDO 85


patrimonio se revela en esta coyuntura como una definición polisémica y
como un concepto que supera al fetichismo patrimonial, que lo caracterizó
desde su inicio y que lo condujo al vaciamiento de la sociedad.
La lógica del monumento sin historia o del patrimonio sin sociedad es una
realidad que no puede seguir siendo aceptada y que debe ser superada. No
es posible que a la memoria – que es un espacio de confrontación – la va-
ciemos de historia (¿el fin de la historia que algunos pregonaban?) cuando
lo que hay que hacer es todo lo contrario: sumarle todos los tiempos, in-
cluso el sentido de futuro a la manera de un objeto del deseo y distribuirla
equilibradamente en la sociedad. Para ello es imprescindible construir un
proyecto colectivo del patrimonio, con los sujetos patrimoniales más sig-
nificativos y desarrollar visiones integrales y multidisciplinares, que vayan
más allá de los cónclaves y de las tecnocracias tradicionales
La ciudad es el lugar que mayor cantidad de población concentra en el
mundo, es el espacio con la más alta densidad de patrimonio del planeta y
también es el territorio donde se expresa su mayor diversidad medida por el
valor de uso (patrimonio), valor de historia (patrimonio histórico) y valor
de cambio (patrimonio económico); por eso la producción social del urbi-
cidio conduce a la pérdida de la memoria y a la producción de olvido del
conjunto de la humanidad. Además, como el patrimonio es la esencia de la
cohesión social y de las identidades múltiples que adornan a la ciudadanía
universal, no podemos seguir siendo indolentes ante estos delitos atroces
de lesa humanidad que están ocurriendo alrededor del mundo.
El patrimonio es un asunto de ciudad de notable importancia y las cen-
tralidades urbanas (que todas son históricas) es el espacio de la urbe con
mayor carga de patrimonio histórico; motivo por el cual es imprescindible
desarrollar políticas urbanas. Pero como el urbicidio se nos presenta desde
varias matrices (guerra, economía), es ineludible construir ciudades para la
paz, economías urbanas sólidas y bien distribuidas, políticas culturales que
respeten la diversidad, políticas que incorporen la tecnología de punta y po-
líticas ambientales que contengan el cambio climático global, entre otras.
El urbicidio aparece para dar cuenta de la necesidad de reivindicar el dere-
cho a la ciudad y de producir un urbanismo ciudadano, porque la democra-
tización del patrimonio es una forma de democratizar la ciudad. Más aún
si se tiene en cuenta que se está produciendo urbanización sin ciudad, que
hay procesos urbanos que niegan la ciudad y que el espacio público termina
siendo guarida antes que interacción.

86 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


Por eso no se puede dejar de plantear la disyuntiva respecto del patrimonio:
¿es de la humanidad o del mercado? Y tampoco dejar de afirmar que el
antídoto al urbicidio es el derecho a la ciudad, porque la ciudad y sus partes
son patrimoniales.

5 BIBLIOGRAFIA

Bourdieu, Pierre (1999): La miseria del Mundo. Ed. Akal, Madrid

Carrión, Fernando (2010): El laberinto de las centralidades históricas en América Latina,


Ed. Ministerio de Cultura, Quito.

Choay, Francoise (2007): Alegoría del Patrimonio, Ed. Gustavo Gili, Barcelona.

Del Pino, Inés (2013): “Impactos del turismo en sectores patrimoniales”, ponencia presenta-
da en: La intervención urbana en centros tradicionales con enfoque social, Bogotá.

Klisberg, Bernardo (2008): “¿Cómo enfrentar la seguridad ciudadana en América Latina?,


en: Revista Nueva Sociedad No 215, Ed. Fundación Ebert, Buenos Aires.

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Tomas Kuhn (1971), La estructura de las revoluciones científicas, Ed. Fonde Cultura
Económica, México.

Rojas, Eduardo (2004): Volver al Centro: la recuperación de las áreas centrales. Ed. Bid,
Washington.

URBICIDIO O LA PRODUCCIÓN DEL OLVIDO 87


QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS
DE RESTAURO: A VIABILIDADE
DA RESTAURAÇÃO

Beatriz Mugayar Kühl

RESUMO: Este texto tem por intuito pontuar alguns temas relevantes para a
restauração hoje, por meio da análise da bibliografia e de casos de interven-
ção, enfatizando três aspectos: mostrar certas tentativas de desqualificação
do campo do restauro no Brasil, explorando algumas das causas desse fenô-
meno; caracterizar o restauro como campo disciplinar, com intuito de reafir-
mar a sua pertinência e que existem diversas possibilidades de abordagem;
por fim, o objetivo é mostrar que restaurações bem-feitas e bem fundamen-
tadas nos referenciais teórico-metodológicos do campo são viáveis do ponto
de vista econômico e técnico.
Palavras-chave: Restauração. Preservação. Teoria da restauração. Projeto
arquitetônico.

ABSTRACT: This text discusses some relevant issues related to the field of
preservation today, analyzing the bibliography and some interventions. The
aim is to emphasize three aspects: to show that there are attempts to dis-
qualify the field of restoration in Brazil, exploiting some of the causes for this
phenomenon; to characterize restoration as a disciplinary field, with the in-
tent to reaffirm its significance and its several possible approaches; lastly, the
purpose is to show that good restorations, based on theoretical and method-
ological references of the field, are viable, both economically and technically.
Keywords: Restoration. Preservation. Restoration theory. Architectural
Project.

1 INTRODUÇÃO

Este texto tem por intuito, sem a pretensão de esgotar o assunto, pontu-
ar alguns temas relevantes para debater a restauração nos dias de hoje,
enfatizando três aspectos que correspondem à estrutura da discussão. O

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURO: A VIABILIDADE DA RESTAURAÇÃO 89


primeiro deles, a restauração sob fogo cruzado, procura mostrar alguns
dos processos de desqualificação do campo do restauro, que vem sendo,
no Brasil, cada vez menos levado em conta na forma com que lidamos com
os nossos bens culturais, explorando algumas das causas desse fenômeno;
pretende-se enfatizar que seus referenciais, ao contrário, deveriam ser a
base de reflexão. O segundo diz respeito à caracterização do restauro como
campo disciplinar, com o objetivo de reafirmar a sua pertinência e as diver-
sas possibilidades de abordagem que existem dentro do próprio campo. O
restauro tem instrumentos teórico-metodológicos e técnico-operacionais
que dão conta de uma série de questões envolvidas na intervenção em bens
de interesse cultural. Além do mais, no caso do restauro arquitetônico, é
evidenciada a articulação do campo disciplinar com o projeto arquitetôni-
co. E, por fim, é explorada a viabilidade da restauração, de modo a contra-
dizer a ideia cada vez mais aventada da suposta (ou atribuída) inviabilidade
da restauração e mostrar que uma restauração fundamentada é viável do
ponto de vista econômico e técnico.
Antes de passar à discussão, cabe um esclarecimento sobre o sentido que está
sendo dado à palavra restauro neste texto, algo necessário devido a linhas
diversas de pensamento e a formas distintas como as palavras são usadas nos
diversos ambientes culturais. A palavra preservação, no Brasil, assim como
na França, possui um sentido lato e abarca grande variedade de ações, como
inventários, registros, leis de tombamento, educação patrimonial e inter-
venções nos bens para que sejam transmitidos ao futuro da melhor maneira
possível. As intervenções em si assumem denominações variadas, podendo,
como explicitado na Carta de Veneza, adotada pelo Icomos (International
Council on Monuments and Sites – Conselho Internacional de Monumentos
e Sítios), órgão consultor da Unesco (United Nations Educational, Scientific
and Cultural Organization – Organização das Nações Unidas para a Educa-
ção Ciência e Cultura), ser caracterizadas como manutenção, conservação e
restauro, com graus crescentes de ingerência sobre o bem. Ou, por exemplo,
serem sintetizadas na palavra restauro, sentido adotado neste texto1.

1 Essa é a proposta de Cesare Brandi, por exemplo. Existem outras linhas, com raízes no pensa-
mento de John Ruskin e Alois Riegl, que caracterizam conservação e restauro como ações de
natureza diversa. Neste texto, será discutida a necessidade de utilizar preceitos teóricos para
guiar atuações práticas, qualquer que seja a definição dos termos adotada. É bom lembrar que,
em Portugal, a palavra conservação é usada também com um sentido abrangente, semelhante
ao uso da palavra preservação no Brasil. Para a transformação do pensamento sobre interven-

90 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


A restauração, como campo disciplinar, forja seus instrumentos teóricos
e técnico-operacionais ao longo de muitos séculos, num contínuo inter-
câmbio entre teoria e prática. Os preceitos teóricos que deveriam guiar as
ações práticas, como construídos no campo, derivam dos motivos que nos
levam a preservar. Algo que hoje fazemos por diversas razões, ampliando,
por exemplo, a abordagem do século XIX, muito centrada nas obras de
excepcional valor artístico e importância histórica. Temos, em especial, as
razões de cunho cultural, entendidas num sentido muito alargado, con-
templando aspectos formais, documentais, simbólicos e memoriais. Outra
das motivações é de viés científico, pelo fato de os bens culturais serem
portadores de conhecimento em vários campos do saber. E, ainda, as ra-
zões éticas (GERMANN, 2009; KÜHL, 2011), intimamente relacionadas às
anteriores, por não termos o direito de apagar aleatoriamente os traços de
gerações passadas e privar o presente e as gerações futuras da possibilidade
de conhecimento de que esses bens são portadores e de seu papel simbólico
e de suporte da memória coletiva.
A preservação, hoje, é voltada aos mais variados tipos de bem, não mais se
centrando em obras excepcionais; estende-se, também, como colocado no
artigo 1o da Carta de Veneza (1964) “às obras modestas, que tenham adqui-
rido, com o tempo, uma significação cultural”. Tendo consciência daquilo
que motiva a preservação, as ações de restauro têm por intuito: transmitir
os bens culturais da melhor maneira possível para o futuro, considerando
a sociedade de maneira ampla (e não apenas setores restritos) e o tempo na
longa duração, respeitando seus aspectos materiais, documentais e formais
e as marcas da passagem do tempo. Esse processo é necessariamente mul-
tidisciplinar, e isso não pode permanecer letra morta nas ações de restauro;
deve ser uma premissa de trabalho e base para elaboração do projeto. Neste
texto, portanto, a palavra restauro é associada a formas de atuar nos bens
culturais, fundamentadas nos princípios teórico-metodológicos do campo,
levando em conta aquilo que motiva a preservação.

ções em bens culturais e para circunstanciar de maneira mais adequada o debate atual, ver:
CARBONARA, 1997; CHOAY, 2001; JOKILEHTO, 1999; SCARROCCHIA, 1995.

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURO: A VIABILIDADE DA RESTAURAÇÃO 91


2 A RESTAURAÇÃO SOB FOGO CRUZADO:
AS TENTATIVAS DE DESQUALIFICAR O CAMPO

A restauração, nos dias de hoje, vem sofrendo ataques de várias ordens, pro-
venientes das mais diversas motivações. Serão apresentadas, a seguir, algu-
mas delas.
Uma das formas de desqualificação não é um ataque direto e, talvez, nem
mesmo deliberado, mas provém do desconhecimento da existência do cam-
po disciplinar. Existe um grande número de profissionais, de várias áreas,
que atuam em bens culturais e nem sabem da existência de um campo disci-
plinar que se ocupa deles, que tem referenciais teórico-metodológicos e téc-
nico-operacionais que devem ser interpretados para a situação atual e para
o caso específico. Ao desconhecer, ou desconsiderar, a existência do campo,
muitas ações resultam em problemas sérios de falta de respeito pelos aspectos
materiais, documentais, de conformação, memoriais e simbólicos dos bens a
serem preservados.
Outro foco de problemas é gerado pela falta de clareza em relação aos con-
ceitos e instrumentos envolvidos no campo. Uma primeira grande dificulda-
de é relacionada ao fato de o conceito de restauração, no campo disciplinar
do restauro, ter assumido conotação muito diversa da acepção comum da
palavra restauro, que é associada à volta a um estado original. No campo
disciplinar, porém, por um longo e complexo processo através do tempo, o
conceito se distancia dessa acepção comum e reconhece o respeito pelas vá-
rias fases de uma mesma obra, as marcas da passagem do tempo e a licitude
de manifestações contemporâneas, desde que isso seja feito com respeito pela
estruturação da obra, ou do conjunto de obras, ao longo do tempo. O restau-
ro consolida-se como ato conceitual que depois se torna operacional; ou seja,
não é mera operação técnica e, no caso do restauro arquitetônico, exige proje-
to que prefigure e controle a ação (CARBONARA, 1992). Há plena consciên-
cia de que não é possível congelar a obra num estado qualquer, e, desse modo,
o projeto é o modo de endereçar as transformações que sempre ocorrerão.
Além desse problema de base, existem confusões de várias ordens no que
respeita aos instrumentos teóricos. Apenas a título de exemplo, tomemos as
cartas patrimoniais. É comum, na produção científica brasileira, colocar no
mesmo plano várias cartas, sem a devida abordagem crítica, passando alea-
toriamente de partes de um documento para trechos de outro, como se elas
fossem um coletivo plural coerente. São tratadas como convergentes coisas

92 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


tão distintas quanto a Carta de Quito, de 1967, a Carta e a Declaração de
Amsterdã, de 1975, feitas respectivamente pela Organização dos Estados
Americanos e pelo Conselho da Europa, com finalidades diferentes e em
épocas diversas. A confusão é estendida até mesmo para documentos de uma
mesma instituição, como o Icomos, criado em 1965, que adota a Carta de Ve-
neza, de 1964, como seu documento de base. A visão de restauro na Carta de
Veneza é a explicitada acima, de apreço pelas diversas fases da obra, com res-
peito por sua materialidade e conformação como transformadas ao longo do
tempo. São misturadas a Carta de Veneza e a “Carta” de Nara (que não é Car-
ta, mas Documento) sobre a Autenticidade, de 1994. Uma carta internacional
tem caráter indicativo e/ou prescritivo, jamais normativo, pois os princípios
ali presentes devem ser interpretados para a realidade cultural e legislativa
dos diversos países (algo que nunca fizemos no Brasil), que podem acatá-los
e integrá-los em maior ou menor medida, segundo as próprias tradições. To-
mar as colocações ali presentes como algo impositivo é um grande equívoco.
E, ademais, contém princípios e indicações, de enunciado sucinto, que devem
ser interpretados para os casos específicos e constituir a base deontológica de
atuação; ou seja, não é um receituário a ser aplicado de modo direto na práti-
ca. Suas propostas são de difícil interpretação se não forem entendidas em re-
lação ao contexto de discussões que está na sua origem. Uma declaração, por
sua vez, tem por intuito apresentar o estado da arte de uma dada discussão
e oferecer subsídios ao debate, mas não tem o caráter indicativo e prescritivo
de uma Carta. Outra confusão comum é associar indistintamente a Carta de
Veneza com a Carta de Burra, do Icomos-Austrália, documento de grande
interesse e que deve ser devidamente examinado. Mas essa última Carta não
é referendada pela Assembleia-Geral do Icomos, ou seja, não é validada para
todos os países-membros, pois tem em sua base um conflito com a definição
de restauro da Carta de Veneza. Na Carta de Burra, a restauração significa
restabelecer uma obra “em um estado anterior conhecido, removendo acrés-
cimos ou reunindo componentes existentes, sem introdução de novos ma-
teriais” (ICOMOS-Austrália, 1999). Essa visão, que permanece no mundo
anglófono, é diversa da noção de restauro construída no campo disciplinar e
adotada pelo Icomos, órgão assessor e consultor da Unesco, inclusive para o
Patrimônio Mundial, cuja convenção é assinada pelo Brasil2.

2 Para uma abordagem do papel das cartas patrimoniais e análise da Carta de Veneza, ver:
KÜHL, 2010. Para mais informações sobre a carta, ver ainda: PANE, 2010.

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURO: A VIABILIDADE DA RESTAURAÇÃO 93


Claro está que todos esses documentos são de enorme interesse, mas estão
longe de constituir um conjunto coerente, existindo, entre eles, diversas
contradições – justamente por serem elaborados em períodos distintos, por
organismos e grupos diferentes, com diversas finalidades, tendo, portanto,
intenções e repercussão bastante variadas – a serem devidamente pesadas e
evidenciadas a partir de uma rigorosa análise.
Não se deve, como ocorre com frequência, retirar uma frase de uma carta
(sem remeter ao artigo em sua inteireza, nem à carta como um todo) e
associá-la a outros trechos de outras cartas para constituir, em processo de
frouxidão teórico-metodológica, uma pseudo-justificativa, feita de retalhos
teóricos, que tem por intuito validar uma postura pessoal. Essa atitude não
tem relação com uma análise rigorosa dos documentos, pois recorre a eles
para conferir autoridade a uma opinião pessoal, que não se sustenta à luz
de uma crítica epistemológica. A análise das cartas, assim como de outros
documentos que tratam da temática, deve ser feita de maneira orgânica e
fundamentada em métodos de interpretação filiados à gnosiologia e her-
menêutica, que possibilitam compreender uma formulação de modo mais
profundo. Esse tipo de aproximação deve ser feito em relação a todos os
textos para elaborar uma interpretação pertinente, não redutiva e nem par-
cial, que leva a enganos.
Não se trata, como pode parecer a alguns, de obediência cega a referencias
exógenos e sem relação com a cultura brasileira da atualidade; trata-se de
aproveitar um arcabouço teórico construído ao longo de séculos – e não
simplesmente negá-lo ou deformá-lo segundo os próprios interesses – para
refletir, a partir de instrumentos consistentes que existem e que podem ser
úteis se reinterpretados de modo fundamentado para a realidade brasileira,
assim como ocorre em vários outros campos do conhecimento em geral, e
da arquitetura em particular. Convém lembrar que o fato de muitas refe-
rências virem da Europa não significa que sejam desprovidas de relações
com a realidade brasileira, por existirem raízes culturais comuns, por se
utilizar a memória – do ponto de vista psicossocial, apesar das muitas es-
pecificidades dos vários ambientes culturais – de maneira semelhante, pois
estamos filiados a uma noção linear do tempo, de raízes judaico-cristãs3.

3 A linearidade do tempo deve ser entendida como contraposição à visão de circularidade; ou


seja, uma noção associada à ideia de que o tempo não volta atrás, e não como percepção “acha-
tada”, de mera sucessão cronológica, contestada pela historiografia. Sobre o tema e para biblio-
grafia complementar, ver: LE GOFF, 2003.

94 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


Outro fator que coloca a restauração sob fogo-cruzado são as divergências
internas ao campo; é necessário explicitar que existem e sempre existiram
diversas formas de pensar o restauro, algo corrente, legítimo e necessário em
qualquer campo disciplinar. As atuais vertentes ligadas à restauração4 são
resultado de desdobramentos plurisseculares no campo. Um problema que
pode ser detectado no Brasil, porém, é que estamos caindo num reducionis-
mo indesejável em relação aos referenciais teóricos, como é possível perceber
pelos problemas de interpretação apontados acima, que se estendem desde
a visão sobre questões mais simples até a outras mais complexas. Em vez de
reconhecer que as diferentes posturas no campo disciplinar (as formulações
que de fato pertencem ao campo) têm suas especificidades, têm divergências,
mas também podem ter bases comuns, temos assistido a tentativas de des-
qualificar determinados instrumentos teóricos, por vezes de maneira jocosa
e sem fundamentação. Em vez de unir esforços, num campo já tão combali-
do, para debater os instrumentos teóricos do restauro de modo fundamen-
tado para a realidade hoje no Brasil, algo que nunca fizemos de modo siste-
mático – sem a pretensão de buscar um caminho unívoco, reconhecendo as
diferenças e pluralidades, mas também evidenciando as bases comuns –, está
ocorrendo uma guerra intestina que parte, às vezes, para a desqualificação
do interlocutor e não para explicitar o próprio ponto de vista. Algo que, reto-
mando o vocabulário belicoso adotado neste item, equivale a um tiro no pé.
Por fim, um último aspecto a ser enfatizado é que, pelo fato de a preser-
vação fundamentada impor certos limites às intervenções nos bens cultu-
rais – limites derivados das razões por que preservamos que resultaram em
propostas teóricas e experimentações práticas, ao longo de muitos séculos –,
o restauro é considerado instrumento insuficiente e inadequado para que o
bem possa ser inserido na realidade socioeconômica e cultural contemporâ-
nea. Esse preconceito vem de vários setores (políticos, mercado imobiliário
etc.). Especificamente no que respeita aos arquitetos, muitos acham que o
projeto de intervenção deva ter total liberdade para se manifestar, de maneira
completamente autônoma em relação ao contexto existente: não apenas sem
respeito pelos aspectos materiais, de conformação e histórico-documentais
do edifício ou área, mas também, muitas vezes, sem considerar o contexto
cultural, social, os anseios da comunidade (e até mesmo os do comitente), as

4 Ver, por exemplo, no que respeita ao caso italiano, a construção historiográfica feita por: CAR-
BONARA, 1997, p. 393-439. Ver ainda MIARELLI MARIANI, 2000. Para mais referências
bibliográficas, ver KÜHL, 2009.

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURO: A VIABILIDADE DA RESTAURAÇÃO 95


formas de uso, de apreensão e de sociabilidade. Não fazem o paralelo com o
projeto do novo, em que também existem fatores que condicionam o parti-
do de projeto (as dimensões do terreno, o programa, o orçamento, a legisla-
ção etc.), mas não anulam o ato criativo; pelo contrário, as limitações devem
ser encaradas como impulso para renovadas soluções. Do mesmo modo, o
restauro tem também condicionantes, que derivam das razões por que pre-
servamos, que devem ser explorados de modo inteligente e propositivo para
atingir uma renovada configuração da obra, que contemple questões econô-
micas e de uso, mas que não as tomem como fatores únicos e determinantes
de modo isolado.
Encarar a preservação fundamentada como algo que apenas limita a ação,
impede o uso de recursos criativos e inviabiliza a adaptação da obra para as
reais necessidades contemporâneas é visão redutora e equivocada do proble-
ma, que mostra desconhecimento (ou uma deliberada desqualificação) do
que é a restauração como entendida no campo disciplinar. Muitos buscam
contornar o problema com uma série de “novos” termos, que têm aparecido
com frequência, mas que não sobrevivem à luz de uma acurada crítica episte-
mológica, como, por exemplo, “requalificação”, “recuperação”, “reciclagem”,
e outras “regurgitações lexicais”, como qualificadas por Gaetano Miarelli
Mariani (2003).

3 A RESTAURAÇÃO: CAMPO DISCIPLINAR E


PROJETO ARQUITETÔNICO

É necessário reiterar a necessidade de utilizar os preceitos teórico-metodoló-


gicos relacionados com a preservação, consolidados ao longo de vários séculos
de experiências e reflexões, para fazer com que o projeto de intervenção se tor-
ne verdadeiro ato de cultura (BONELLI, 1959), que se afasta de interesses ime-
diatistas e contempla a comunidade de forma mais abrangente, considerando
o tempo na longa duração. Os aspectos teórico-metodológicos e técnico-ope-
racionais da restauração são fruto de lenta maturação – com suas origens mais
próximas no século XV5, passando por renovado amadurecimento a partir de

5 A questão, na verdade, é relatada desde a Antiguidade, mas assume maior consistência a partir
do século XV. Para exemplos anteriores, além da bibliografia citada na nota 1, ver, por exemplo:
PERGOLI CAMPANELLI, 2014.

96 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


meados do século XVIII –, sendo resultado de numerosas experiências práti-
cas, elaborações de preceitos teóricos, de inventários e de leis, que acabaram
por consolidar o restauro como campo disciplinar autônomo, mas jamais iso-
lado, pois necessita da articulação de vários campos do saber (KÜHL, 2009).
Françoise Choay (2011) mostra que o processo de preservação supõe o uso de
dois instrumentos específicos: uma construção normativa, dando ao projeto
seu estatuto institucional; e uma disciplina, solidária e tributária dos saberes
históricos na hora da atuação prática, a restauração, que constrói seus ins-
trumentos ao longo do século XIX e adquire seu estatuto epistemológico no
início do século XX, com Alois Riegl.
O ato de intervir em bens culturais de modo fundamentado – o restauro
– tem metodologia, princípios teóricos e procedimentos técnico-operacio-
nais que lhe são próprios e resultam da reflexão sobre os motivos pelos
quais preservamos e de experimentações plurisseculares, essenciais para
circunscrever os próprios objetivos da ação, repercutindo na escolha dos
meios técnico-operacionais, para que a ação não se torne arbitrária, mesmo
devendo ser problematizada. Na prática, as soluções variam por causa das
diversas correntes de pensamento e porque os meios empregados na fase
operacional são diferentes: cada obra, ou conjunto de obras, tem sua pró-
pria configuração, materialidade e peculiar transcurso ao longo do tempo.
E, ademais, no restauro, um mesmo problema pode ter distintas soluções;
no caso do restauro arquitetônico, tantas quantas forem os arquitetos que
se debruçarem sobre o problema. Mas o que importa é que essas soluções
sejam atinentes ao campo, mesmo tendo sempre pertinência relativa, pois
não existe uma única solução aceita de modo universal e atemporal, mas
várias possíveis soluções de pertinência relativa.
A restauração é conjugada no plural: os caminhos para atingir os objetivos
da preservação não são unívocos, verificando-se variadas tendências. Mas
essa diversidade de soluções possíveis não implica que qualquer ação feita
num bem cultural seja preservação de fato: a verdadeira preservação deve
ser justificável do ponto de vista das razões de preservar. Existe um campo
de pertinência delimitado pelos aspectos teóricos e metodológicos relacio-
nados à restauração entendido como ato ético-cultural, pois mesmo na di-
versidade das correntes atuais, existem princípios e critérios comuns (não
regras fixas) que conformam o campo de ação, ajudando a circunscrever
aquilo que realmente é pertinente ao campo e separando do que exorbita
completamente de seus temas, métodos e objetivos.

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURO: A VIABILIDADE DA RESTAURAÇÃO 97


É importante notar, ainda, que os meios técnico-operacionais são essen-
ciais e devem ser arduamente debatidos e pesquisados, mas não podem ser
entendidos como desvinculados das discussões mencionadas acima, pois
um dos riscos que hoje corremos é o de excessiva especialização, de frag-
mentação do conhecimento, que leve a uma fé cega no tecnicismo.
Preservar deve ser, sempre, um processo multidisciplinar, tanto na fase de
identificação do que é um bem cultural – que venha por via erudita (histó-
ria da arquitetura, social, da técnica, da engenharia, econômica, antropo-
logia, sociologia etc.) ou através da apreensão de anseios das comunidades
– quanto naquilo que deve ser mantido num bem, mesmo que a parte ope-
racional seja executada por uma só pessoa. O restauro é necessariamen-
te ato ancorado nos vários campos disciplinares, no pensamento crítico
e científico do momento em que é feito. A vinculação às humanidades é
essencial para quem atua na preservação, pois possibilita superar atitudes
ditadas por predileções individuais, que qualquer ser pensante possui, e
por uma maior ou menor apreciação de um grupo social, num presente
histórico, em relação às manifestações culturais de outros períodos, e que
se aja de acordo com sólida deontologia profissional.
O fato de os critérios para intervir e para identificar os bens culturais va-
riarem com o tempo – o próprio inventário é fruto do momento em que é
elaborado – não é escusa para um dado presente histórico deixar de agir de
maneira consciente. A variação de critérios mostra, justamente, a necessi-
dade de atuar de modo fundamentado nos instrumentos cognitivos que o
próprio presente possui, procedendo com o rigor metodológico próprio às
humanidades. No entanto, muito daquilo que se faz em bens culturais não
leva em consideração os objetivos do campo e, na prática, acaba-se por des-
respeitar aquilo que se diz querer preservar. As tendências atuais que pos-
suem de fato caráter cultural e procuram seguir os objetivos da preservação
são alicerçadas em pelo menos dois séculos de reflexões sistemáticas sobre
o tema, confrontadas com experiências práticas, num contínuo processo de
retroalimentação.
Como exemplo de intervenções fundamentadas de restauro atualmente,
é possível seguir os resultados do Prêmio Domus de Restauro (criado em
2010)6, cuja ênfase é a relação propositiva entre restauro e projeto respeito-

6 As informações sobre o prêmio e sobre os projetos premiados nas várias edições estão no sítio
do Prêmio: http://www.premiorestauro.it/.

98 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


so, que dialoga com o existente. A arquitetura é uma linguagem, e os proje-
tos devem saber “ler” o espaço estratificado, utilizando-o como dado, e de-
senvolver linguagem inovadora para responder aos problemas colocados,
sem recair na imitação, nem na competição. Os projetos premiados com
medalha de ouro, de prata ou menção honrosa mostram diversas possibi-
lidades de resposta aos complexos problemas colocados para o restauro na
atualidade, tanto para obras modestas quanto para as grandiosas, para bens
isolados ou para complexos que se estendem na escala urbana. É ainda de
enorme interesse acompanhar os êxitos dos Editais do Programa de Ação
Cultural (Proac) da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo7, que
oferece financiamento para projetos de restauração para imóveis tombados
pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico
e Turístico (Condephaat). Os projetos são escolhidos por concurso, ou seja,
pela análise comparativa de várias respostas para o mesmo problema, ele-
gendo a mais pertinente, com resultados de grande interesse.
Nas intervenções em edifícios (ou áreas) de interesse cultural, estudos mul-
tidisciplinares são uma premissa, condição necessária para uma atuação
respeitosa, mas não suficiente de modo isolado. É necessário também de-
senvolver um bom projeto arquitetônico, a partir de pormenorizada leitura
da estrutura formal da obra, como transformada pelo tempo, e da paisa-
gem em que está inserida. É preciso ouvir e enxergar “o outro”, para que
o projeto se relacione com o existente de modo pertinente e prospectivo,
articulando-se com a preexistência, sem negá-la, obliterá-la ou imitá-la, a
fim de propor uma renovada e respeitosa sintaxe.

4 A VIABILIDADE DA RESTAURAÇÃO VERSUS SUA


SUPOSTA INVIABILIDADE

Apesar de existirem variados exemplos de intervenções pertinentes ao


campo do restauro que dão conta de uma série de questões, articulando
teoria e prática, é recorrente uma atuação respeitosa ser taxada de inviá-
vel, tanto do ponto de vista econômico, quanto do ponto de vista técnico.
Uma grande polêmica, iniciada em 2010, diz respeito a um dos armazéns

7 Os dados podem ser obtidos no portal da secretaria: http://www.cultura.sp.gov.br/.

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURO: A VIABILIDADE DA RESTAURAÇÃO 99


do complexo ferroviário no porto de Santos. Aconteceu num momento em
que, por causa de transformações do sistema de ferrovias – privatizações
de concessão de vias, extinção de companhias –, havia interesse dos órgãos
de preservação (federal e estadual) pelas ferrovias como sistema, não mais
voltando seus interesses apenas para o edifício de passageiros. O armazém
pertencia à mais antiga ferrovia do Estado de São Paulo, a São Paulo Rai-
lway (SPR), cuja linha foi inaugurada em 1867 para ligar o porto de Santos
à zona produtora de café em Jundiaí, passando pela cidade de São Paulo. Os
armazéns em Santos eram cruciais no sistema de exportação-importação
no Estado de São Paulo, tendo, por isso, sido ampliados no final do século
XIX. Por eles passaram uma quantidade enorme de mercadorias, em es-
pecial o café, mas também os demais produtos destinados à exportação e,
ainda, tudo aquilo que era importado, inclusive o maquinário fornecido às
indústrias. São, portanto, importantíssimos na configuração do comple-
xo ferroviário, com papel de relevo nas atividades agroexportadoras e no
processo de industrialização do Estado e, apesar de alguns problemas de
manutenção, estavam relativamente íntegros até 2010.
A preservação do conjunto foi aprovada pelo Condephaat em 2010, mas, em
seguida, surgiram conflitos, pois um dos armazéns estava em área adqui-
rida pela Petrobrás, que ali construiria seu novo complexo administrativo.
O projeto arquitetônico de Ruy Rezende, atualmente em execução, previa
a demolição parcial de um dos armazéns e manteve a decisão, apesar do
tombamento, para a construção de três altas torres administrativas, alheias
à escala da área portuária8. Esse conflito, em vez de gerar debate mais in-
formado com acordo que poderia oferecer à Petrobrás outras áreas para
construir na mesma zona da cidade, ou levar à revisão do projeto, aprovei-
tando o armazém para parte das atividades administrativas, resultou, na
reunião do Condephaat de 11 de abril de 2011, na revisão do tombamento e
na demolição parcial do edifício. A percepção da arquitetura do armazém,
limitada à sua terça-parte, foi mutilada, pois suas proporções foram radi-
calmente alteradas: passaram de 1:4 – ou seja, um retângulo alongado, com
dimensões que permitiam, também do ponto de vista espacial, perceber
a importância das atividades de exportação-importação no Estado – para
1:1,5, um remanescente apequenado e tendendo ao quadrado. A construção
das torres administrativas interfere, ademais, na configuração do comple-

8 Para análise do problema, ver SOUKEF JR., 2013. Ver também os dados que constam do pro-
cesso 62696/2010 no Condephaat.

100 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


xo ferroviário-portuário, inserindo elementos alheios à sua escala, e tam-
bém na percepção do conjunto franciscano, vizinho da estação, com ori-
gens no século XVII. Segundo informações recentes, as obras da Petrobrás
estariam afetando as estruturas da igreja e um cemitério do século XVIII
(RATTON, 2013).
Os fatores que pesaram na decisão têm poucas relações com a preservação
entendida como ato motivado por razões ético-culturais; uma solução al-
ternativa, que preservasse o complexo e garantisse as legítimas necessida-
des da Petrobrás poderia ter sido encontrada. Os argumentos contrários à
construção das torres, porém, foram vistos como passadistas, fetichistas,
irreais e contrários ao progresso9. Um fato irônico, que mostra ainda mais
a incoerência da ação, foi a construção de um novo galpão, no mesmo
complexo ferroviário, perto do armazém amputado, para abrigar o museu
do Bonde.
Em vários exemplos recentes, é possível notar o quanto ainda é difícil com-
preender e respeitar os bens culturais: em sua composição, materialidade e
transcurso ao longo do tempo; como fazendo parte de um sistema e perten-
centes à realidade espacial estratificada ao longo do tempo. Esses elementos
deveriam ser considerados como dados de projeto.
A dificuldade em pensar projetualmente a preservação de um bem cul-
tural deriva de várias causas, entre elas, dois fatores associados: uma for-
mação deficiente de nossos arquitetos, pois muitos atravessam seus anos
na faculdade sem fazer exercícios de projeto alicerçados na preservação,
em áreas ou edifícios de interesse cultural; e preguiça de pensar, pois uma
abordagem que respeita a obra em suas várias estratificações, que respeita
sua conformação e materialidade, que leva em conta, portanto, fatores mais
complexos, exige mais empenho e um raciocínio projetual mais refinado10,
muito diverso da mentalidade tábula rasa que ainda impera em nosso meio.

9 É necessário lembrar um caso de grande relevo para o Condephaat, que conseguiu evitar a
demolição do colégio Caetano de Campos em São Paulo (tombado em 1975), durante a Cons-
trução do Metrô. O argumento para a destruição era a impossibilidade de alterar o traçado do
ponto de vista técnico e dos custos. E, no entanto, diante da mobilização de diversos setores
contrários à demolição daquele marco paulistano, outra solução foi conseguida e o colégio
persiste no local.
10 Georg Mörsch (1995), ao analisar o fachadismo – ato de desventrar e desossar um edifício
histórico –, lembra que um interesse escrupuloso e específico pelo projeto de intervenção em si
e o respeito por todas as partes características dos bens vai contra a tendência a esquematizar,
a estandardizar e, sobretudo, opõe-se à preguiça mental.

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURO: A VIABILIDADE DA RESTAURAÇÃO 101


Ponto nodal é também associado à viabilidade, custos e lucros, pois muitos
imputam a uma intervenção criteriosa custos maiores e afirmam que os
limites impostos na transformação do bem por uma “verdadeira” preser-
vação tornariam inviável o reaproveitamento das obras (do ponto de vista
econômico e de utilização).
Tomando como exemplo as transformações que estão ocorrendo no bairro
da Mooca – bairro do mais alto relevo na história de São Paulo –, verifica-se
que numerosos complexos industriais têm sido postos abaixo para a cons-
trução de condomínios residenciais11. Em geral, vastas áreas são muradas,
perdendo completamente sua relação com a rua. Muitos dos complexos
destruídos tinham suas testadas no alinhamento da rua, com portas e jane-
las voltadas para a via pública, resultando em permeabilidade tanto visual,
quanto de pessoas (o entrar e sair do espaço de trabalho ao longo do dia).
Os atuais condomínios procuram se isolar o máximo possível da vida ur-
bana da região: são protegidos por altos muros, favorecem a entrada e saída
de automóveis e são espaços ensimesmados. Resulta disso uma via pública
que se assemelha a um “descampado”, com pouco controle e interação so-
cial. Ademais, a ocupação é feita prevalentemente com torres de numerosos
pavimentos, autônomas entre si, sem relação com a paisagem do bairro. O
mercado homologa um só tipo de ocupação, a partir da tábula rasa, e uma
forma de morar (apartamentos em edifícios altos), resultando no achata-
mento e empobrecimento da paisagem urbana e das variadas formas pos-
síveis de habitar. Há uma perda enorme de diversidade – arquitetônica e
social – no bairro quando as casas, os pequenos comércios, os armazéns,
as indústrias (de variados portes), que foram construídos paulatinamente,
vão, a olhos vistos, sendo derrubados para uma reocupação que segue uma
única tipologia. Isso resulta na alteração radical de uma paisagem de gran-
de interesse cultural, estratificada ao longo de mais de um século e que está
empobrecendo rapidamente.
No entanto, soluções alternativas são possíveis. Num estudo para o comple-
xo da antiga Companhia Antártica, no mesmo bairro da Mooca, o escritó-
rio Oksman Arquitetos Associados (2014) fez um acurado estudo do con-
junto, com análise arquitetônica e da cronologia construtiva do complexo.
A partir das análises, foi elaborada proposta em que parte significativa do
conjunto é conservada (dos 67 mil m2 de área construída, são preservados

11 Para as questões de restauro na escala urbana e para considerações sobre a preservação da


paisagem industrial em São Paulo, ver: RUFINONI, 2013.

102 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


52 mil m2), propondo usos diversificados: habitação (826 unidades, das
quais 266 em prédios existentes e as demais em novos prédios que respei-
tam a escala do conjunto); hotel; escritórios (236 unidades); estacionamento
(1115 vagas); centro de convenções etc. Os edifícios do complexo são respei-
tados, com algumas demolições pontuais de construções recentes, acres-
centados por razões práticas e sem o devido cuidado com o complexo; a
escala é mantida; o coeficiente de aproveitamento obtido é elevado (3,10). A
inciativa, que teria tudo para dar certo (além do mais por não implicar em
demolições extensas e, portanto, em elevados custos tanto da demolição em
si quanto da remoção de entulho), que respeita o conjunto consolidado e
faz com que arquitetura contemporânea se manifeste de forma respeitosa e
complementar, provavelmente não será levada adiante em benefício de uma
proposta que demole mais e ocupa a área com torres.
Max Dvorak (2008, p. 84), já em 1916, afirmava: “Vale lembrar ainda que,
muitas vezes, a ‘modernização e embelezamento’ da cidade são apenas um
pretexto, uma vez que a verdadeira motivação se encontra nos ganhos obti-
dos pelos especuladores imobiliários, em prejuízo da comunidade”. Infeliz-
mente, até hoje não foram feitos exames comparativos detalhados de custos
no Brasil, mas, tomando por base estudos realizados no exterior, uma res-
tauração criteriosa não é necessariamente mais custosa do que uma inter-
venção mais invasiva12. Restauros bem feitos podem custar menos do que
“renovações” radicais e não inviabilizam o reaproveitamento da obra para
funções contemporâneas, tanto no que respeita a questões práticas, quanto
econômicas; pelo contrário. Ocorre que numa intervenção fundamentada,
por ser fruto de processo multidisciplinar, que resulta em projeto e memorial
pormenorizados – e isso não implica processo mais demorado, significa fase
de estudos e de projeto mais ampla e obra mais curta, invertendo o que acon-
tece atualmente, que são projetos resultantes de estudos insuficientes e obras
que atrasam pois ocorrem muitos fatos não previstos –, os custos são mais

12 Exemplo é descrito por Simona Salvo (2006): a restauração das fachadas do arranha-céu da
Pirelli, em Milão, projeto de Gio Ponti (construído entre 1956 e 1960). Estudos conscienciosos
levaram a projeto fundamentado e obra bem-sucedida em prazos reduzidos (estudos: julho-
-dezembro de 2002; projeto executivo: março de 2003; obras concluídas em abril de 2004). O
custo foi cerca de 20% menor do que o orçamento para a substituição da fachada contínua,
apresentado por equipe de especialistas que considerara as fachadas originais irrecuperáveis
do ponto de vista técnico e que, mesmo se o fossem, não teriam um desempenho de isolamento
térmico e acústico adequado. As fachadas restauradas têm um desempenho técnico igual ou
superior ao das melhores fachadas contemporâneas.

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURO: A VIABILIDADE DA RESTAURAÇÃO 103


controláveis e implicam menos aditamentos orçamentários resultantes de
aspectos não controlados anteriormente. A margem de lucro provavelmente
será menor, mas, ainda assim, a operação será lucrativa e viável.
É essencial, portanto, não confundir viabilidade com lucro máximo, nem
uma legítima necessidade de rentabilidade com ganância desenfreada.
Nesse rol de problemas, volta ao discurso a suposta inaplicabilidade de
princípios teóricos. Os arquitetos, como profissional envolvido no campo
e que têm atribuição de projetar intervenções em obras arquitetônicas de
interesse para a preservação, devem pensar o porquê de sistematicamente,
no que diz respeito à preservação, agir de maneira unicamente empírica e
desvinculada da base teórico-metodológica do restauro, quando em outros
campos de atuação isso não ocorre. É impensável, em avaliações pós-ocu-
pação ou no planejamento participativo situacional, por exemplo, fazer
análises ou propostas que não tomem por base os instrumentos teórico-
-metodológicos desenvolvidos para tal (e ninguém é acusado de se base-
ar em referenciais exógenos e desvinculados da realidade brasileira nesses
campos). Mas no que respeita ao restauro, é necessário meditar sobre as
razões de sistematicamente atuarmos sem critérios e, assim, transformar-
mos o “cada caso é um caso” da preservação – pelo fato de cada obra ter
conformação, materialidade e transcurso ao longo do tempo peculiar – em
“cada um faz o que quer” e, principalmente a quem isso interessa. A inter-
venção, ao contrário, deve partir de via deduzida dos princípios teóricos
e metodológicos do restauro (e não de uma via induzida unicamente, de
modo empírico, a partir do objeto) e depois se voltar para as especificidades
de cada obra.
Ao decretar uma ação como inviável, por vezes, apenas se escamoteia o que
motiva a afirmação, que é a ganância. Dados da Transparency Internatio-
nal, ONG que trata da corrupção no mundo, citados por Joseph Rykwert
(apud LA CECLA, 2008), mostram que 78% do dinheiro de corrupção do
mundo passa pela construção civil. É essencial que os arquitetos sejam
conscientes dessas questões pois, por vezes, o discurso da “liberdade de
criação”, da inaplicabilidade dos princípios teóricos associados à preserva-
ção, da inviabilidade econômica de uma intervenção fundamentada, está,
na verdade, a serviço do capital meramente especulativo, do lucro a qual-
quer custo, da corrupção, em detrimento de aspectos socioculturais que
deveriam prevalecer, que é o interesse da sociedade de forma mais abran-
gente e levando em conta o tempo na longa duração.

104 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma, é sempre prudente desconfiar quando uma ação respeitosa é


tida, a priori, como inviável. É necessário, porém, fazer com que os crité-
rios de preservação se tornem operacionais para as atuais circunstâncias
no Brasil, realizando, de modo gradativo, experimentações conscienciosas,
num contínuo confrontar entre teoria e prática, para chegar a princípios
amadurecidos, capazes de enfrentar os problemas em sua complexidade na
nossa situação atual. Por isso, há insistência na necessidade de voltar a en-
tender o processo que levou ao atual entendimento da preservação de bens
culturais, que se afastou das razões unicamente pragmáticas para assumir
conotação ético-cultural, e analisar os motivos que levaram o restauro a
um distanciamento do empirismo para se integrar à reflexão crítica e às
ciências. O intuito é que os bens sejam respeitados em seus aspectos docu-
mentais, de configuração, de materialidade e de seu transcurso ao longo do
tempo, para que continuem a ser documentos fidedignos e, assim, possam
transmitir o conhecimento de modo não formado, e sirvam como efetivos
elementos de rememoração e suportes da memória coletiva.

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QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURO: A VIABILIDADE DA RESTAURAÇÃO 107


QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS
DE RESTAURO: UNA RIFLESSIONE
DALL’ITALIA

Andrea Pane
Università degli Studi di Napoli Federico II

ABSTRACT: Lo scritto presenta una bilancio degli attuali orientamenti del


restauro con particolare riferimento Italia, anche alla luce dei più recenti even-
ti su scala globale, tra cui la crisi economica iniziata nel 2008. Nel convinci-
mento della necessità di non affievolire la tensione ideale dei dibattiti teorici
sviluppatisi negli ultimi decenni, vengono esposti i tre orientamenti principali
del restauro, nella loro genesi storica e negli sviluppi più recenti, ovvero il
“restauro critico-conservativo”, la “pura conservazione” e la “manutenzione-
-ripristino”. Attraverso numerosi esempi, viene evidenziata la progressiva
convergenza su alcuni principi comuni, evidente soprattutto a partire dagli
anni 2000 pur nelle differenze che segnano ancora i diversi approcci cultu-
rali. A fronte di questa ricchezza di dibattiti e realizzazioni, vengono infine
evidenziati i rischi di atteggiamenti ambigui espressi in anni più recenti senza
alcun valido sostegno teorico, che inducono a riportare il restauro nel campo
di un relativismo fuorviante e pericoloso per la sopravvivenza di un patri-
monio, come quello culturale e in particolare architettonico, per definizione
irriproducibile.
Parole-chiave: Restauro critico. Pura conservazione. Manutenzione.
Ripristino.

1 INTRODUZIONE: IL PATRIMONIO ALL’EPOCA


DELLA “SOCIETÀ LIQUIDA”

Se ci interroghiamo sulle condizioni presenti del patrimonio culturale


in Europa e in Italia e, di conseguenza, sulle principali questioni criti-
che che attengono il restauro, ci rendiamo presto conto che non è agevole

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURO: UNA RIFLESSIONE DALL’ITALIA 109


fornire un sia pur sintetico quadro del panorama attuale. Né, tantomeno,
tale quadro potrà restituire una situazione omogenea tra i differenti paesi
dell’Unione Europea, segnati da specifiche identità culturali e da signifi-
cative differenze nelle politiche di tutela e valorizzazione del patrimonio.
Anche focalizzando il solo contesto italiano, ci si accorgerà che il dibattito
sui beni culturali e sul restauro appare ancora oggi variegato e complesso,
ancorché sia possibile evidenziare degli orientamenti prevalenti, ben dis-
tinguibili tra loro e, al contempo, accomunati da numerosi principi gene-
rali condivisi. Poste dunque queste inevitabili premesse, e consapevoli che
ogni estrapolazione di temi dominanti o schematizzazione di orientamen-
ti teorici rischia fatalmente di apparire riduttiva, ci occuperemo in parti-
colare dell’Italia, senza trascurare una più generale prospettiva europea.
A fronte di una domanda crescente di cultura da parte della popolazio-
ne dell’intera Europa, si assiste oggi ad una progressiva trasformazione
della società in senso “liquido”, per citare Zygmunt Bauman, cui consegue
anche un diverso approccio al patrimonio culturale, fondato sul consu-
mo piuttosto che sulla sedimentazione (BAUMAN 2000; VARAGNOLI
2010). A ciò si aggiunge una progressiva virtualizzazione delle esperien-
ze, che relega in secondo piano le questioni “reali” e “fisiche” del patri-
monio rispetto alla preponderanza di media che allontanano o rendono
addirittura inutile l’esperienza diretta, in conseguenza di quel fenomeno
che Françoise Choay ha efficacemente definito come “rivoluzione elettro-
-telematica” (CHOAY 1992:180-199; CHOAY 2011:88-93). Si tratta di un
fenomeno complesso, iniziato già da tempo con un processo di progressiva
“spettacolarizzazione” del patrimonio, condizionato dalla logica effime-
ra dell’“evento”, le cui radici vanno ricondotte – secondo alcuni studiosi
– alla fine degli anni Settanta (ROUILLARD 2013). Il risultato finale di
tale processo rivela oggi, com’è stato recentemente osservato, “forse un
rapporto più superficiale e meno autentico con il patrimonio del passato,
malgrado l’idolatria di cui è oggetto” (VARAGNOLI 2014:22).
In questo contesto d’incertezza e confusione, il continente europeo ha
risentito, a partire dal 2008, della crisi economica mondiale in maniera
molto più netta che altre aree del mondo. Ciò ha comportato conseguenze
rilevanti anche nel campo del patrimonio culturale e della conservazio-
ne, soprattutto nei paesi europei più segnati dalla congiuntura economica,
tra i quali l’Italia. Qui la situazione è apparsa subito ancora più grave: a
fronte di una spesa nel campo della cultura già molto modesta rispetto a
quella di altri paesi (basti il confronto con la Francia) la crisi economica

110 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


ha drasticamente ridotto le risorse già scarse. Risultato: il bilancio del Mi-
nistero per i Beni e le Attività Culturali è diminuito del -32,7% dal 2001
al 2011 (TOSCO 2014:132). Il nuovo Governo Renzi, in carica dal febbraio
2014, pur collocando formalmente la cultura tra le sue priorità, sta ulte-
riormente tagliando la spesa pubblica destinata al patrimonio culturale e,
soprattutto, sta improvvidamente modificando la struttura del Ministero
con una riforma, per molti versi inutile, sullo sfondo di un depotenzia-
mento delle capacità di tutela e controllo degli organi periferici del Mi-
nistero, a favore di un centralismo delle decisioni che rimette al Gover-
no gran parte del potere prima delegato all’amministrazione dello Stato
(MONTANARI 2015).
Ne consegue una condizione davvero critica per il patrimonio cultura-
le diffuso, elemento caratteristico del territorio italiano (SETTIS 2002),
segnato non soltanto da grandi musei e monumenti, ma da una presenza
capillare di beni culturali in tutta la penisola. Così, se si escludono i cosid-
detti “grandi attrattori”, come Pompei o il Colosseo, gran parte del patri-
monio non riceve risorse sufficienti per essere salvaguardato e conservato.
Basti citare, in proposito, il caso della città dell’Aquila, danneggiata dal
terremoto dell’aprile 2009, il cui esteso centro storico appare ancora oggi
abbandonato, silenzioso e deserto, con i principali edifici storici circon-
dati da immense strutture provvisionali. Qui, infatti, una politica miope
ha preferito investire fiumi di denaro nella realizzazione di new towns in-
vece che occuparsi del restauro degli edifici esistenti danneggiati. Il risul-
tato, oltre all’abbandono del patrimonio del centro storico, è stato anche
lo sradicamento della popolazione dal suo ambiente, luogo di relazioni e
sedimentazioni storico-antropologiche irriproducibili nella precarietà dei
nuovi alloggi (FRISCH 2009; ERBANI 2010).
Ci si potrebbe dunque chiedere perché parlare di questioni contempora-
nee di restauro in un contesto così complesso e problematico come quello
appena accennato. La risposta può trovarsi proprio nella necessità di ria-
ffermare, a fronte di tali incertezze, quei principi e quelle acquisizioni che
la cultura scientifica ha prodotto nel campo del patrimonio e della con-
servazione nel corso degli ultimi decenni, che rischiano, oggi, di essere
sopraffatti da riduzionismi e semplificazioni prodotte dai tempi confusi
che attraversiamo.

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURO: UNA RIFLESSIONE DALL’ITALIA 111


2 GLI ORIENTAMENTI ATTUALI DEL RESTAURO IN
EUROPA E IN ITALIA

Le radici del nostro discorso possono essere collocate al 1964, anno di ap-
provazione della celebre Carta di Venezia, di cui proprio quest’anno ricorre
il cinquantenario (DI BIASE 2014; PANE 2014). E’ fondamentale inoltre
richiamare – insieme con la Carta di Venezia – la pubblicazione del testo
di Cesare Brandi Teoria del restauro, apparso nel 1963 come compendio
e sintesi delle lezioni da lui stesso svolte per circa vent’anni in qualità di
direttore dell’Istituto Centrale del Restauro, da lui stesso fondato nel 1941
(BRANDI 1963).
Dando per scontati i contenuti tanto della Carta di Venezia quanto del vo-
lume di Brandi, possiamo iniziare la nostra riflessione a partire dalla di-
versa ricezione che tali testi hanno conosciuto nell’ambito delle scuole di
restauro italiane.
Proprio a partire dagli anni Sessanta, infatti, hanno iniziato a definirsi in
Italia, in maniera molto più netta di quanto accaduto in precedenza, diverse
scuole di pensiero in materia di restauro, che hanno proposto orientamenti
teorici e operativi diversi. Tali scuole hanno avuto un confronto molto ser-
rato durante alcuni decenni, così come è accaduto, in parallelo, nel campo
della progettazione architettonica. Come per le teorie sull’architettura con-
temporanea, anche nell’ambito del restauro si è dunque prodotta una dia-
lettica tra orientamenti opposti, spesso sostenuta da fondamenti ideologici,
che oggi appaiono, nel bene e nel male, in parte dimenticati. L’Italia, in par-
ticolare, paese tradizionalmente incline all’elaborazione teorica in materia
di architettura più di altre nazioni europee, ha visto un dibattito intenso e
serrato anche per la notevole presenza di patrimonio, costruito nell’arco di
molti secoli sul suo territorio, benché la ricchezza del paese in termini di
beni culturali sia più qualitativa che quantitativa (SETTIS 2010).
Questo confronto è stato particolarmente intenso negli anni 1970-2000, e ha
dato luogo – molto schematicamente – a tre orientamenti, benché tali posizio-
ni appaiano oggi un po’ più sfumate di quando furono formulate (VARAG-
NOLI 2010). L’attenuarsi dei conflitti tra i diversi orientamenti disciplinari
può collocarsi all’inizio degli anni 2000, in coincidenza con l’esplicita inten-
zione – manifestata dal Ministero per i Beni Culturali e le Attività Culturali
– di inserire una definizione condivisa del termine “restauro” all’interno del
nuovo strumento legislativo allora in gestazione (art. 29 del Codice dei Beni

112 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


Culturali e del Paesaggio, D.Lgs. 42/2004). In tale testo legislativo, tuttora vi-
gente in Italia, il restauro è definito come “l’intervento diretto sul bene attra-
verso un complesso di operazioni finalizzate al mantenimento dell’integrità
materiale ed al recupero del bene medesimo, alla protezione e alla trasmissio-
ne dei suoi valori culturali”. Ciò ha dato luogo ad un avvicinamento di alcune
posizioni – si pensi soprattutto a quelle, di cui diremo tra poco, del “restauro
critico-conservativo” e della “pura conservazione” – mantenendo invece più
distanti le tendenze della cosiddetta “manutenzione-ripristino”. Uno spaccato
chiaro di tutto questo è facilmente riscontrabile nell’agile volume curato da
Paolo Torsello dall’eloquente titolo Che cos’è il restauro?, pubblicato circa die-
ci anni fa, che raccoglie proprio le definizioni proposte dai maggiori studiosi
del restauro italiani in occasione della redazione del già citato Codice dei Beni
Culturali e del Paesaggio (TORSELLO, 2005). Gli autori delle citate defini-
zioni sono eminenti docenti di Restauro delle principali università italiane,
quasi tutti protagonisti di quel serrato dibattito, prima richiamato, che si era
sviluppato nei decenni precedenti. Personaggi che in passato avevano innes-
cato polemiche anche molto accese gli uni contro gli altri e che oggi – pur
avendo cessato per limiti di età l’insegnamento attivo nell’Università – svol-
gono ancora intensa attività intellettuale e operativa nel campo del restauro,
salvo qualcuno, purtroppo, recentemente scomparso, come Paolo Marconi
nel 2013. Proprio a partire dalle riflessioni proposte da alcuni di tali autori,
delineeremo i tre orientamenti disciplinari prima accennati, tentando di ag-
giornarli anche agli esiti più recenti.
Tuttavia, prima di addentrarci in tali schematizzazioni, è opportuno sotto-
lineare che, a fronte dei diversi orientamenti, si sono affermati e consolida-
ti, sempre di più, alcuni principi condivisi, che hanno finito per qualificare,
pur nelle differenze più o meno sottili, il restauro italiano. Si tratta dei prin-
cipi di minimo intervento, distinguibilità, compatibilità, reversibilità, rispet-
to dell’autenticità, così come attentamente formulati da uno dei più insigni
studiosi del restauro in Italia, Giovanni Carbonara, esponente della corren-
te intermedia del restauro critico-conservativo (CARBONARA, 2000). De-
finiamo tale corrente intermedia perché tale posizione – nella quale anche
la scuola napoletana si riconosce in buona parte – è stata certamente meno
veemente rispetto a quelle espresse sia dalla cosiddetta “pura conservazio-
ne” di scuola milanese che dalla “manutenzione-ripristino” facente capo
all’Università degli Studi di Roma Tre, che hanno raggiunto, in alcuni mo-
menti del dibattito, una forte contrapposizione reciproca.

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURO: UNA RIFLESSIONE DALL’ITALIA 113


2.1 Il restauro critico-conservativo

La posizione di Carbonara, ovvero del restauro critico-conservativo – te-


orizzato da Roberto Pane fin dal 1944, sviluppato con radici ed esiti di-
versi da studiosi come Renato Bonelli, Cesare Brandi e più tardi ancora
Paul Philippot – si propone esplicitamente come un equilibrio dialettico
tra questi due estremi. Lo stesso Carbonara, a partire da questa posizio-
ne intermedia e nell’intento di trarre un bilancio degli orientamenti del
restauro negli anni Novanta, ha scritto alcuni importanti saggi sul tema,
individuando anche i cinque principi condivisi poco prima citati (CAR-
BONARA 1990; CARBONARA 2000). Innestandosi sul lungo filone del
restauro critico inaugurato nell’immediato dopoguerra – le cui radici
affondano negli anni appena precedenti (si pensi alle riflessioni di Argan
di fine anni Trenta) – l’orientamento proposto da Carbonara ha assunto,
progressivamente, maglie più strette, al punto che lo stesso autore ha pro-
posto di aggiungere l’aggettivo “conservativo”, sottolineando un maggiore
rispetto dell’autenticità rispetto al restauro critico tout court. Scrive infatti
Carbonara che “s’intende per restauro qualsiasi intervento volto a conser-
vare e a trasmettere al futuro, facilitandone la lettura e senza cancellarne
le tracce del passaggio nel tempo, le opere di interesse storico, artistico e
ambientale; esso si fonda sul rispetto della sostanza antica e delle docu-
mentazioni autentiche costituite da tali opere, proponendosi inoltre, come
atto d’interpretazione critica non verbale ma espressa nel concreto operare.
Più precisamente, come ipotesi critica e proposizione sempre modificabi-
le, senza che per essa si alteri irreversibilmente l’originale” (TORSELLO,
2005:25).
Questo concetto dell’interpretazione critica “non verbale” si richiama es-
pressamente alle teorie di Paul Philippot, suggerendo un parallelo con la
critica letteraria (PHILIPPOT, 1959). In tal senso il restauro si propone
come critica “in atto”. Pertanto, nel celebre caso dell’integrazione al cavallo
della statua romana di Domiziano-Nerva al museo archeologico di Baia
(Napoli), realizzato da Paolo Martellotti nel 1987 e citato come esempio sig-
nificativo proprio da Carbonara, l’avere realizzato la parte mancante della
scultura – il cavallo, appunto – in legno si propone in maniera del tutto
analoga all’interpolazione di un brano frammentario di un testo antico.
Tale intervento è compiuto al fine di ricondurre il fruitore all’integrità ori-
ginaria, ovvero a quella “unità potenziale dell’opera d’arte”, per dirla con
Brandi, o meglio alla “reintegrazione dell’immagine”, per usare la celebre

114 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


espressione di Carbonara, ricorrendo a tecniche anche contemporanee
purché reversibili.
“Ipotesi critica e proposizione sempre modificabile, senza che per essa si
alteri irreversibilmente l’originale”, recita infatti la definizione. Il restauro,
secondo tale teoria, si propone dunque come un’ipotesi critica sempre pas-
sibile di mutamento, pertanto l’intervento dovrebbe tendere alla reversibi-
lità o, per usare un termine più attuale, almeno alla parziale “rilavorabilità”.
Questo approccio aderisce, in parte, anche alla cosiddetta “pura conserva-
zione”, quando sancisce il rispetto rigoroso di tutto l’originale a noi perve-
nuto, ma non accetta l’idea di un nuovo autonomo rispetto all’antico, pre-
ferendo invece un’interpolazione mirata alla reintegrazione dell’immagine
frammentaria. Sul fronte opposto, il restauro critico-conservativo rifiuta
anche la posizione del ripristino, che – per quanto improbabile nei con-
fronti dell’esempio citato della statua di Domiziano-Nerva, ovvero di un
frammento archeologico sul quale i concetti di “falso” e “autentico” sono
acclarati e condivisi da oltre due secoli – avrebbe potuto condurre ad una
integrazione del cavallo utilizzando una tecnica o un materiale più vicino
all’originale, al fine di ridurre al minimo il distacco tra antico e nuovo.
Esempi architettonici dell’orientamento critico-conservativo sono la ora-
mai storica sistemazione della Villa del Casale a Piazza Armerina, dove
Franco Minissi realizzò, a partire dal 1955, una copertura sui ruderi ar-
cheologici con strutture di metallo e plexiglass che doveva avere due scopi:
proteggere i mosaici della villa, ma anche ricostituire l’immagine, ovve-
ro l’unità potenziale degli ambienti della villa stessa. Una copertura che,
purtroppo, in anni recenti è stata improvvidamente rimossa per problemi
microclimatici senza studiarne un possibile correttivo, conducendo ad una
soluzione molto più invasiva del progetto di Minissi (DEZZI BARDESCHI
2004 e 2010; TOMASELLI 2010). Analogamente, la sala ottagona delle ter-
me di Diocleziano a Roma (oggi Museo Nazionale Romano), realizzata da
Giovanni Bulian, interpreta lo spazio romano con una cupola a filo di ferro
che, allo stesso tempo, cita la precedente funzione di planetario, consente il
passaggio di alcuni impianti e, soprattutto, definisce lo spazio contempo-
raneo per l’esposizione delle sculture (VARAGNOLI 2002; BULIAN 2011).
Ancor più esplicito, per esemplificare l’orientamento che stiamo delinean-
do, è il recente intervento di Pier Luigi Cervellati all’Oratorio di San Filip-
po Neri a Bologna (2000), dove la volta di copertura, parzialmente crollata
a causa dei danni bellici della seconda guerra mondiale, viene ricostruita,

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURO: UNA RIFLESSIONE DALL’ITALIA 115


dopo decenni di abbandono, con una struttura in legno lamellare che ri-
parte dalle generatrici delle volta stessa per riprodurre la spazialità della
chiesa, ma senza generare un falso, come invece accaduto nel caso della
ricostruzione à l’identique della cupola della cattedrale di Noto, in Sicilia.
L’intervento di Cervellati non è dunque né un falso come a Noto, né un
nuovo che contrasta con l’antico, ma, al contrario, si propone come una
integrazione contemporanea che interpreta lo spazio antico e cerca di ris-
tabilirne l’organicità e l’unità potenziale a partire dalla lacuna: sembra, in
sostanza, un’intelligente interpretazione del “rigatino” brandiano applicato
all’architettura (CERVELLATI 2000; VARAGNOLI 2002).
Anche il Castello di Rivoli a Torino, restaurato da Andrea Bruno, può es-
sere in parte assimilabile al restauro critico, benché questo sia un caso un
po’ particolare, trattandosi di una fabbrica molto stratificata. Al momento
dell’inizio dei lavori, infatti, il complesso – dopo decenni di usi impropri
(tra cui quello di caserma) e abbandono – si presenta segnato da un cantiere
di Filippo Juvarra di inizio Settecento mai completato, a sua volta imposta-
to sulle strutture più antiche, e da una preesistenza seicentesca, la cosiddet-
ta “Manica Lunga”, risparmiata alla demolizione intrapresa nel Settecento
ma non portata avanti proprio per la definitiva interruzione del cantiere di
Juvarra nel 1734. Qui Bruno, nell’arco di un lungo cantiere – avviato con
piccoli interventi nel 1967 e poi proseguito con due lotti compresi tra il 1979
e il 1984 (corpo juvarriano) e il 1996 e il 2001 (Manica Lunga) – ha perse-
guito l’obiettivo di lasciare leggibile la suggestione e l’immagine del cantie-
re interrotto, rimuovendo soltanto alcune aggiunte successive di scarso va-
lore. Abbracciando tanto il rispetto di tutte le fasi storiche della complessa
fabbrica (o meglio, secondo le sue stesse parole, di tutte le sue diverse auten-
ticità) che l’approccio reintegrativo del restauro critico, egli propone da un
lato la rigorosa conservazione del corpo juvarriano interrotto, con l’atrio
avviato solo per metà e rimasto scoperto, e dall’altro il suggerimento delle
intenzioni progettuali incompiute attraverso un semplice disegno della pa-
vimentazione che riporta le posizioni delle membrature mancanti. Ancora
nel corpo juvarriano, oltre a sostituire il tetto fortemente ammalorato – ma
al contempo conservare persino una porzione di copertura ricostruita in
cemento armato dai militari nel 1943 dopo i danni bellici, testimonianza
anche di questa dolorosa fase della fabbrica – Bruno interviene con un nuo-
vo corpo scala e ascensore. Anche questa scelta è frutto di una valutazione
critica, che coinvolge tanto la necessità di un efficace collegamento vertica-
le per la futura destinazione museale del complesso, quanto la presenza di

116 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


un vano solo parzialmente occupato da una scala provvisionale realizzata
da Carlo Randoni alla fine del Settecento, quando ancora si sperava di po-
ter riprendere il grandioso progetto di Juvarra. Bruno sceglie dunque di
rimuovere questa scala provvisionale, scoprendo intanto le relative tracce
del disegno delle rampe sulle pareti del grande vano, che lascia ben visibili.
In questo modo è possibile inserire un nuovo corpo scala in accaio proget-
tato con forme contemporanee, autonomo staticamente dal vano perché
sospeso dall’alto e in gran parte reversibile. Tutto il procedimento, dunque,
segue i principi del restauro critico-conservativo, salvaguardo il più pos-
sibile l’autenticità fisica e sacrificando solo una testimonianza ritenuta di
minor valore (la scala di Randoni) a vantaggio della rifunzionalizzazione
dell’intero complesso (BRUNO 1984; CERRI 2008).
Analogamente, nel restauro della “Manica Lunga”, compiuto tra il 1996 e
il 2001, Bruno lascia a vista, come una sorta di spaccato costruttivo, la se-
zione dell’edificio di cui era stata iniziata la demolizione nel Settecento.
Dovendo infine rifare la copertura, che aveva subito anche danni bellici,
ripropone una struttura a centine in acciaio che rispetta la volumetria ori-
ginaria, ricorrendo alla tecnologia moderna (l’acciaio), ma subordinando-
la ad una colta interpretazione dei valori spaziali dell’ambiente (BRUNO
1996; CERRI 2008).

2.2 La pura conservazione

All’orientamento appena citato del restauro critico-conservativo si affian-


ca, differenziandosi per alcuni importanti aspetti, quello della cosiddetta
“pura conservazione”, portato avanti dalla scuola milanese. Si tratta di una
posizione che ha avuto un merito fondamentale, in particolare nel momen-
to storico nel quale è nata, all’inizio degli anni ‘70, ovvero reagire alla lunga
durata dei restauri di emergenza post-bellici. Com’è noto già la Carta di
Venezia del 1964 intendeva porre un freno a tutto questo, con un’opinione
condivisa da molti esperti, tuttavia, nella pratica, gli anni ‘60 erano seg-
nati ancora da restauri abbastanza pesanti, basti pensare, per esempio, al
“massacro di Santa Maria di Collemaggio” a L’Aquila, riportata dal soprin-
tendente Mario Moretti a un’arbitraria configurazione romanica demolen-
do le aggiunte barocche o ai famosi interventi del Soprintendente Franco
Schettini in Puglia, consistenti anche qui in “de-barocchizzazioni” di gran

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURO: UNA RIFLESSIONE DALL’ITALIA 117


parte delle chiese romaniche della regione, effettuate da quest’ultimo fino
alla metà degli anni Sessanta. Tali interventi avevano ricevuto le aspre criti-
che di Pane, Brandi e Zevi, che in più occasioni avevano condannato questa
sistematica distruzione del barocco in Puglia, compiuta a vantaggio di una
“romanicizzazione” che cancellava tutto ciò che era avvenuto dopo per un
malinteso pregiudizio storiografico dal quale discendeva un arbitrario cri-
terio selettivo.
E’ in questo contesto che nasce la reazione della “pura conservazione”, por-
tata avanti da un fronte che appariva più aggiornato, culturalmente parlan-
do, nei confusi anni 1960-70. Essa viene infatti proposta innanzitutto dagli
storici dell’arte, ma non quelli di scuola brandiana, è necessario precisarlo,
bensì un gruppo legato alla rivista “Paragone”, che pubblica un celebre nu-
mero nel 1971 nel quale è contenuta una esplicita denuncia nei confronti di
alcuni restauri compiuti secondo modalità superate (GREGORI 1971). A
partire da questo momento, quindi, inizia una riflessione che da un lato va
a recuperare l’eredità del pensiero britannico ottocentesco, come quello di
Ruskin e Morris, da una parte si innesta su aspetti più avanzati della storio-
grafia e in particolare sul contributo fondamentale della cosiddetta Scuola
delle Annales di origine francese. Com’è ben noto quest’ultima è costituita
da storici che hanno posto in evidenza la necessità di guardare innanzitut-
to il tema della longue durée degli avvenimenti, ma soprattutto la microsto-
ria, ovvero non solo i grandi eventi e i grandi personaggi, ma una storia mi-
nore, più vera ed autentica: si tratta delle celebri tesi di storici del calibro di
Marc Bloch e Lucien Fèbvre (MENNA 2001). Da qui inizia a diffondersi in
Italia l concetto di “cultura materiale”, intesa come attenzione al dato fisico,
in parte figlia del materialismo storico di origine marxista, che si traduce,
quindi, in un’attenzione verso tutte le discipline che possono portare un
contributo alla storia. Lo stesso Marc Bloch, del resto, nel suo celebre libro
Apologia della storia o Mestiere di storico (1949), aveva chiarito che la storia
si avvale di ogni genere di “prova”, che lo storico è come “l’orco della fiaba,
si mette in moto ogni volta che sente odore di esseri umani”. In quest’ottica
il discorso sulla conservazione diventa quindi molto più complesso.
In quest’ultima posizione ha creduto e crede ancora fermamente Marco
Dezzi Bardeschi, docente al Politecnico di Milano fin dal 1976, fondatore e
direttore della rivista ANANKE (il cui primo numero esce nel 1993), colui
che tra i docenti di restauro in Italia ha più insistito sull’attenzione alla
cultura materiale, cui consegue la conservazione delle testimonianze an-
che più minute che la storia porta con sé. Sul piano operativo del restauro

118 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


architettonico, questo approccio si traduce in un evidente scarto, ad esem-
pio, nel campo della conservazione delle superfici, che evolve da un atte-
ggiamento abbastanza indifferente, invalso fino alla metà degli anni ‘70,
verso un approccio rigoroso e a tratti integralista nel quale si persegue, al-
meno intenzionalmente la conservazione di tutto quel che ci è pervenuto,
persino i graffiti più o meno vandalici, in quanto segni della storia aventi
pari dignità di essere trasmessi al futuro. Dezzi Bardeschi, che ha sviluppa-
to a lungo questa riflessione, definisce dunque il restauro come “ogni inter-
vento che si proponga l’obiettivo della permanenza nel tempo, per quanto
relativa, della consistenza fisica del Bene materiale ricevuto in eredità dalla
storia, del quale si possa garantire la conservazione di ogni sua dotazione
e componente in un uso attivo (meglio quest’ultimo se ancora originario o
almeno comunque d’alta compatibilità e minimo consumo), da perseguire
attraverso opportuni e calcolati nuovi apporti di progetto (funzionali, im-
piantistico-tecnologici, di arredo), in vista della sua integrale trasmissione
in efficienza al futuro” (TORSELLO 2005:38).
Fondamentali, in questa posizione teorica, sono gli apporti di progetto, in
una parola il “nuovo” che si aggiunge all’antico. Il celebre caso del Palazzo
della Ragione di Milano costituisce l’intervento in cui maggiormente Dezzi
Bardeschi esplicita questa sua posizione conservativa, perché fin dai primi
anni ‘70, quando si manifestò l’intenzione di restaurare l’edificio demo-
lendo il sopralzo settecentesco, l’architetto convinse le autorità di Milano
a rispettare integralmente la fabbrica, salvando anche il sopralzo – da tutti
considerato “brutto” e di scarso o nullo valore storico-artistico – protet-
to da Dezzi Bardeschi in quanto testimonianza che, per quanto minore,
era legittimo conservare. Nel corso del cantiere, avviato a partire dal 1978,
l’autore ha esteso ulteriormente questo approccio, giungendo fino al tema
delle superfici architettoniche, dove, in modo assolutamente pionieristico,
si è sperimentato un approccio rigorosamente conservativo, che ha con-
dotto alla scelta di non re-intonacare il sopralzo, ma semplicemente conso-
lidare gli intonaci preesistenti, cercando di rispettare il più possibile tutti
quegli aspetti di cui già aveva parlato Ruskin: ovvero la “gloria” del tempo,
la “sublimità parassitaria” che si deposita sull’opera d’arte e l’autenticità
della superficie consumata dal tempo. Ciò ha comportato un intervento
abbastanza complesso sul piano tecnico, certamente più difficile di una
sostituzione radicale degli intonaci che, una volta concluso, ha consegnato
alla cittadinanza un’immagine imprevista, che quasi induceva a ritenere
l’intervento di restauro non ancora compiuto. Un intervento, in definitiva,

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURO: UNA RIFLESSIONE DALL’ITALIA 119


che ha perseguito la tutela del “valore storico” teorizzato da Riegl nel 1903,
inteso come rispetto massimo della testimonianza storica così come ci è
pervenuta, giungendo forse quasi al “valore dell’antico”, per citare ancora
Riegl, nel trasmetterci ancora quel senso di decadimento che sembra stia
per verificarsi e che in realtà non avviene.
Se questa è dunque la dottrina della “pura conservazione” in rapporto alle
testimonianze fisiche pervenuteci dal passato, resta da chiarire la più com-
plessa questione dei nuovi “apporti di progetto”. Qui si apre il tema del nuovo
accanto all’antico, un nuovo che a questo punto è legittimo realizzare con
la libertà espressiva e creativa del nostro tempo, senza alcuna forma di so-
ggezione nei confronti dell’antico. Ciò naturalmente rappresenta il punto
più delicato dell’orientamento “puro-conservativo”, perché il risultato finale
dell’intervento al Palazzo della Ragione ha portato, in anni più recenti, alla
realizzazione di una scala di sicurezza antincendio necessaria per la desti-
nazione a museo dell’edificio. Questa scala - dopo vari studi che sono stati
effettuati e che prevedevano anche l’ipotesi che fosse collocata all’interno
- è stata progressivamente definita da Dezzi Bardeschi come una soluzione
che tendeva sempre più a rarefarsi e distaccarsi rispetto all’involucro antico,
per diventare sostanzialmente un elemento autoportante, che si regge su un
pennone in acciaio con dei tiranti, alludendo così alle “macchine” del can-
tiere medievale. La scala realizzata risulta dunque semplicemente collegata
all’edificio in un solo punto, che non ha alcuna interazione statica con esso,
costituendo un’aggiunta teoricamente reversibile. Nella soluzione definitiva,
quindi, la scala si presenta come oggetto totalmente autonomo e in esplicito
contrasto di linguaggio con la fabbrica antica.
Ciò ha dato luogo a dibattiti accesi: se guardiamo questo oggetto e pensia-
mo alla scuola di Paolo Marconi non vi è dubbio che stiamo parlando degli
estremi più assoluti, perché per molte persone questa scala rappresenta un
oltraggio al monumento, ovvero un’aggiunta che va ad alterare i rapporti
spaziali di questo manufatto architettonico con la città. Resta quindi aperta
la problematica del nuovo accanto all’antico, che, quando viene svincolato
da ogni forma di relazione con la preesistenza, genera questioni di non sem-
plice soluzione, giungendo fino a forme di conflitto abbastanza esplicite.
Un’anticipazione di questo affiancamento della conservazione a rudere al
nuovo si può individuare nel caso della cosiddetta “Chiesa della Rimem-
branza” (Kaiser Wilhelm Gedächtniskirche) a Berlino, per la quale si scel-
se, alla fine degli anni Cinquanta, di conservarla allo stato di rovina come

120 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


memoriale degli orrori della guerra. Della chiesa in effetti rimaneva molto
poco per suggerire una ricostruzione e questa, collocata nell’area occiden-
tale di Berlino, si presentava come un edificio che mostrava delle ferite pro-
fondissime della guerra. Quando si discusse sul da farsi prevalse l’idea di
lasciare ai posteri un monito per quello che la guerra aveva rappresentato,
piegando l’istanza psicologica non al ristabilimento della memoria perduta
ma, al contrario, alla definizione di un simbolo che potesse scongiurare
quelle stesse follie nelle generazioni successive. Il risultato è interessante
per quel che riguarda la conservazione: si scelse di lasciare la copertura
frammentata e le superfici brunite a causa all’incendio. Tuttavia, per poter
contare comunque su uno spazio per le funzioni religiose del quartiere, si
decise di realizzare una nuova chiesa, costituita da un’aula a pianta poligo-
nale e un campanile, entrambi realizzati da Egon Eiermann tra il 1957 e il
1961 in forme moderne. Tali aggiunte erano all’epoca caratterizzate da una
loro dignità architettonica che tuttavia appare oggi abbastanza discutibile:
non possiamo, infatti, non rilevare un carattere un po’ datato di questa
architettura a distanza di cinquanta anni. Tuttavia, al di là dell’esito forma-
le, questa scelta ha comunque inaugurato una felice stagione di confronto
antico-nuovo, dove il nuovo parla il linguaggio del proprio tempo senza
forme di soggezione rispetto all’antico.
Per concludere l’illustrazione di questo specifico aspetto, è opportu-
no guardare a quanto si produce nell’ambito del rapporto antico-nuovo
in altri paesi europei, dove il sostegno teorico nel campo del restauro e
le istanze di conservazione sono decisamente più attenuate. Un caso ab-
bastanza interessante è quello dell’Orfeó Català a Barcellona, realizzato da
Óscar Tusquets, che, in due fasi successive, ha progettato l’ampliamento
di un’originaria architettura modernista di fine Ottocento di Lluís Domè-
nech i Montaner, la cui sala è stata dichiarata patrimonio dell’Umanità
dall’UNESCO nel 1997. Anche questo è un intervento che si esprime con
linguaggio contemporaneo, compiuto in due momenti: un primo concluso
nel 1991 ed un altro costruito più recentemente per ampliare il complesso.
Anche qui si pone un problema di rapporti spaziali, che è stato in parte
rispettato nelle volumetrie, mentre nel linguaggio c’è una libertà notevo-
le che tuttavia non contrasta in modo violento con l’antico. Molto meno
convincenti, invece, sono alcuni interventi recenti dello studio Herzog &
de Meuron, come il Caixa Forum a Madrid (2008) o il Museo della Cul-
tura di Basilea (2010). In entrambi i casi la preesistenza è manipolata in
modo assolutamente arbitrario dai progettisti, “tagliando” delle sue parti e

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURO: UNA RIFLESSIONE DALL’ITALIA 121


aggiungendo nuove forme senza alcun rispetto per la storia della fabbrica.
Nel caso di Basilea, in particolare, viene “mozzato” l’ultimo piano del vec-
chio edificio per realizzare un “cappello” costituito una “pelle” metallica,
che può risultare anche interessante come oggetto architettonico in sé, ma
che non ha alcuna relazione con l’edificio preesistente e lo snatura comple-
tamente, facendo prevalere nettamente il nuovo rispetto all’antico, ridotto
a semplice pretesto.

2.3 La manutenzione-ripristino

Giungiamo infine alla scuola della cosiddetta Manutenzione-Ripristino,


rappresentata emblematicamente dall’Università di Roma Tre e in partico-
lare dal pensiero e dall’opera di Paolo Marconi (1933-2013). Qui partiamo
da un punto di vista completamente diverso, molto rispettabile e convin-
cente per molti aspetti, in cui si sostiene, innanzitutto – in modo non dis-
simile dagli altri orientamenti – che l’architettura è costituita da oggetti
unici e non replicabili, esposti all’uso e al degrado, che tenderanno a con-
sumarsi fatalmente nel lontano futuro. Pertanto, secondo i teorici di questo
orientamento, l’architettura antica si caratterizza per un continuo processo
di manutenzione, di accomodamento e cura costante che gli edifici hanno
sempre ricevuto nei secoli passati. E’ grazie a questa cura che tali edifici
sono arrivati a noi; se non ci fossero state queste provvidenze avremmo
perso gran parte dell’architettura del passato.
Una delle conseguenze fondamentali di questo approccio, sostenuto da
Marconi – principale teorico di questo orientamento, scomparso purtroppo
recentemente, che ha costituito senz’altro una delle menti più fervide della
cultura italiana del restauro, pur nelle posizioni estreme che ha espresso –
consiste nell’interpretazione delle superfici architettoniche come “superfici
di sacrificio”. Poiché infatti per definizione l’intonaco serve a proteggere le
strutture murarie, esso è quindi fatalmente destinato ad essere continua-
mente rinnovato, come si faceva in passato senza alcun pregiudizio. Pertan-
to, secondo Marconi, le superfici architettoniche non potrebbero mai avere
una “fissità” nel tempo, che non è propria di questo elemento di confine,
ovvero strato appunto di “sacrificio” rispetto all’ambiente esterno e come
tale da rinnovare periodicamente. La definizione di superficie di sacrificio
è abbastanza problematica ed è stata quindi sempre accolta da polemiche

122 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


nel campo del restauro, perché proviene da un ambito molto diverso, ovve-
ro quello della fisica tecnica, ed ha alcune affinità con l’ingegneria aere-
ospaziale, e in particolare della scienza che si occupa dei rivestimenti pro-
tettivi dei velivoli che devono entrare in contatto con l’atmosfera terrestre
dopo essere stati in orbita: superficie, appunto, che si consuma necessaria-
mente con le altissime temperature innescate dall’attrito tra i velivoli stessi
e l’atmosfera (MARCONI 1986).
E’ chiaro, quindi, che quest’approccio, tradotto in architettura, ha susci-
tato molte obiezioni da parte di chi ritiene inaccettabile l’applicazione di
un concetto simile agli intonaci antichi. Per Marconi, invece, l’intonaco è
destinato inevitabilmente al sacrificio: e in effetti noi non abbiamo quasi
più intonaci romani, se non perché sono stati sepolti a Pompei o in altri
casi di strutture archeologiche sotterranee. Come tali, dunque, gli into-
naci sono superfici da rinnovare con una manutenzione periodica; per
questo, appunto, questo orientamento è stato definito da Carbonara come
“manutenzione-ripristino”, perché innanzitutto professa la necessità della
manutenzione continua per evitare il dramma del ripristino, ma ritiene
che non abbia senso in architettura – a differenza delle opere d’arte mobi-
li, dove vengono in larga massima condivisi i principi brandiani – parlare
di questa iper-conservazione delle superfici perché semplicemente non è
possibile: l’architettura è - in questo senso – ontologicamente diversa dalle
altre opere d’arte.
In senso più generale, Marconi scrive: “Restaurare vuol dire operare su
un’architettura o un contesto urbano al fine di conservarli a lungo, quan-
do fossero degni di essere apprezzati e goduti dai nostri discendenti.
L’operatore deve far sì che l’oggetto del suo operare sia tramandato nel-
le migliori condizioni, anche ai fini della trasmissione dei significati che
l’oggetto possiede” (MARCONI 2007). In definitiva il compito del restau-
ratore, secondo Marconi, è assicurare la vita dell’edificio il più a lungo pos-
sibile, quasi ad ogni costo. In ciò la sua posizione è radicalmente diversa da
quella di Dezzi Bardeschi: l’obiettivo non è l’autenticità materiale. Per Mar-
coni, dunque, non ha senso soffermarsi sul destino di un piccolo pezzettino
di materia, perché l’architettura implica aspetti simbolici, spaziali, di con-
tenuto e non può essere ridotta al problema del granello di calce. Egli ha
ragione quando sottolinea che un’attenzione esclusivamente chimico-fisica
alle superfici architettoniche risulta eccessiva rispetto a ciò di cui la realtà
dell’architettura è fatta, ovvero un’arte del costruire che non è mai stata
scienza fino al punto al quale oggi possiamo spingere il nostro sguardo,

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURO: UNA RIFLESSIONE DALL’ITALIA 123


grazie ad analisi di tipo microscopico e conoscenze fisico-chimiche che
erano impossibili in passato. In tal senso non avrebbe nemmeno senso
applicare certi tipi di procedimenti ultra-scientifici, quando l’architettura
può essere riparata con le sue stesse tecniche tradizionali, purché il restau-
ratore le conosca davvero. Di conseguenza Marconi, come sempre provoca-
toriamente, si chiede se possa essere legittimo porre mano a un testo antico
senza conoscerne la lingua. Se ciò è inammissibile, allora perché accettare
che chi restaura i monumenti deve conoscere il cemento armato, ma non ha
idea di come si mettesse in opera un intonaco antico?
Questo della conoscenza del cantiere tradizionale è certamente uno dei
punti più forti della scuola di Roma Tre, che è riuscita ad abbattere un muro
di ignoranza nei confronti delle tecniche antiche. Su questo punto, senza
dubbio, le sue osservazioni sono ancora oggi di grande attualità. Scrive in-
fatti Marconi: “Ciò affinché l’architettura tradizionale sia conosciuta come
si dovrebbero conoscere le lingue scritte e parlate pre-moderne (il greco
o il latino, le lingue o dialetti medioevali ecc.), nel caso in cui dovessimo
interpolare con la massima appropriatezza brani poetici o letterari even-
tualmente caduti dai testi scritti in quelle lingue. A questo punto è ancora
più evidente il motivo che spinge molti di noi ad esaltare la conservazione
piuttosto che il restauro: non vogliamo studiarne l’anatomia, la fisiologia,
la chirurgia, né fare l’anamnesi dei testi storici al fine di restaurarli, ma
preferiamo imbalsamarli” (MARCONI 2007). Quindi, prosegue Marconi,
il rischio dell’approccio iper-conservativo e non cognitivo dell’architettura
antica è che l’operatore, non conoscendo l’architettura antica, finisca per
imbalsamarla così come è arrivata a noi senza realmente comprenderla. In
definitiva le due posizioni della “pura conservazione” e della “manutenzio-
ne-ripristino” appaiono davvero come due estremi sempre in conflitto: è
difficile poter dire che uno sia totalmente nel giusto e l’altro totalmente in
errore, e viceversa. Entrambi pongono delle istanze reali e molto complesse
da sciogliere.
Il lavoro migliore che Marconi ha portato avanti con la sua scuola negli
anni 1980-90 è costituito dai cosiddetti Manuali del recupero, dedicati a
molte città italiane, tra cui spiccano Roma e Palermo, ma anche centri ur-
bani minori. Si tratta di studi volti ad illustrare come erano realizzate le
architetture antiche, con l’obiettivo esplicito di riproporle nel cantiere di
restauro. Naturalmente questo intento conoscitivo è pienamente condivi-
sibile, anche da parte della cosiddette “scuola milanese”, ma è la finalità
che appare totalmente diversa: per la “pura conservazione” la conoscenza

124 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


delle tecniche tradizionali non autorizza a rifare un arco mutilo falsifican-
dolo con le tecniche tradizionali; al contrario, per la scuola di Marconi,
la conoscenza comporta che, una volta appreso il linguaggio, è possibile
esprimersi ricostruendo le parti mancanti con le tecniche tradizionali. Ne
consegue che nella scuola di Marconi sono messe al bando le tecniche mo-
derne: è molto meglio, e più corretto da tutti i punti di vista, riparare una
volta conoscendo com’è realmente fatta che ricorrendo ad ausili strutturali
che sul lungo periodo si rivelano incompatibili sul piano meccanico, fisi-
co, chimico. Su questo punto Marconi insiste chiarendo che l’inserzione
dell’elemento moderno in una compagine antica sarebbe come se un tes-
to antico latino lacunoso fosse interpolato in esperanto. Gli architetti di
oggi sono tutti esperantisti, proprio perché in realtà non sono nemmeno
convinti del loro linguaggio; pertanto noi rischiamo di inserire l’esperanto
nella filologia dei testi classici, cosa che non possiamo certo consentire.
All’obiezione dei conservazionisti che la filologia dei testi scritti non può
essere comparata a quelli architettonici, Marconi oppone: “Chi credesse,
o facesse credere, che l’architettura possa annullare l’entropia ricorrendo
a qualche elisir chimico, inganna sé stesso e soprattutto gli altri per i po-
chi anni in cui gli elisir avranno effetto, e resta il dubbio se tale fede sia
davvero ingenua, o non sia suggerita dalla riconoscenza delle ditte pro-
duttrici ed appaltatrici […]”. E’ inutile illudersi, insomma, l’architettura già
frutto di secolari trasformazioni, va ciclicamente manutenuta: “Non si può
dunque conservare l’architettura se non ricorrendo al restauro, così come
dicono d’altronde i vocabolari di tutte le lingue; a questo punto, il ripristi-
no di quanto progressivamente si degrada, interpolando brani di linguaggio
compatibili linguisticamente e materialmente col significato del contesto, è
un fatto di mera civiltà, mentre è un fatto d’inciviltà sostenere il contrario”
(MARCONI 2007).
Uno degli interventi più emblematici per esprimere in concreto l’approccio
di Marconi è certamente la ricostruzione della cupola della cattedrale di
Noto in Sicilia, crollata nel 1996 e ricostruita à l’identique (da un team di
progettisti guidato da S. Tringali e R. De Benedectis, cui Marconi ha fatto
da consulente) con tecniche tradizionali nel 2007, giungendo addirittura a
ripristinare gli affreschi dei quattro pennacchi. Meno estremo e più condi-
visibile è invece il restauro della Basilica palladiana di Vicenza (2003-2012)
dove il team guidato da Marconi ha scelto di demolire la copertura in cal-
cestruzzo armato ricostruita nel dopoguerra (1953-55) dopo la totale dis-
truzione di quella originale in legno dovuta a un bombardamento alleato

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURO: UNA RIFLESSIONE DALL’ITALIA 125


del marzo 1945. Constatate la avanzate condizioni di degrado del calcestru-
zzo (realizzato con pochi ferri e con inerti di fiume a granulometria grossa)
e giudicata tale testimonianza sacrificabile, i progettisti hanno, attraverso
un complesso cantiere, demolito la copertura novecentesca e l’hanno sos-
tituita con una struttura in legno lamellare, più elastica e compatibile con
le murature, ripristinando infine il rivestimento a finto legno realizzato
nel dopoguerra che era stato preventivamente smontato (MARCONI 2012).
L’intervento mostra da un lato la decisa condanna, da parte di Marconi, di
tutte le strutture realizzate con tecniche “moderne”, ancorché storicizzate
(benché questa fosse nello specifico certamente in condizioni molto preca-
rie), e dall’altro la volontà di conservare una testimonianza novecentesca
– il rivestimento in legno – per quanto il suo scopo originario fosse quello
di dissimulare la struttura in calcestruzzo.

4 CONCLUSIONI

In conclusione, il panorama attuale, benché più attenuato – come si diceva in


premessa – rispetto alle posizioni appena illustrate, risente ancora di queste
impostazioni metodologiche generali. Nel corso dell’ultimo decennio, tutta-
via, si sono prodotte maggiori “contaminazioni” tra i tre orientamenti prima
citati, come testimoniano persino alcune opere recenti dei relativi Maestri. Si
può citare, in proposito – iniziando dalla “pura conservazione” – l’intervento
di restauro del Tempio-Duomo di Pozzuoli, presso Napoli, diretto da Mar-
co Dezzi Bardeschi (2004-2014). Qui, infatti, pur rispettando rigorosamente
tutte le fasi storiche della fabbrica – tanto che il motto del progetto, vincitore
di un concorso pubblico, era proprio “elogio del palinsesto” – Dezzi Bardes-
chi ha perseguito esplicite finalità di reintegrazione dell’immagine, ripro-
ponendo, ad esempio, il colonnato perduto attraverso serigrafie su vetro, o
trattando le lacune del paramento antico della cella del tempio con semplici
stilature sul nuovo intonaco. Proseguendo su questa strada, in tempi ancora
più recenti, Dezzi Bardeschi ha proposto una parziale ricostruzione del cam-
panile della chiesa di San Bernardino a L’Aquila, che si pone né più e né meno
come un’interpretazione critica della cella campanaria mancante, ricostruita
in acciaio per linee di inviluppo e forme semplificate.
Analogamente, sul fronte della “manutenzione-ripristino”, si possono cita-
re alcuni progetti di Marconi che da un lato accolgono parzialmente le tesi

126 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


della parziale reversibilità, proprie del restauro critico-conservativo (vedi
la progettata ricostruzione, in legno lamellare, del Palatium del castello fri-
dericiano di Lucera in Puglia), dall’altro si aprono in parte al linguaggio
contemporaneo, come nelle scale di sicurezza del teatro Carignano di Tori-
no (2005-2006), realizzate in acciaio e rivestite in esterno con motivi che si
ispirano al vicino palazzo Carignano (MARCONI 2012).
Tali esempi mostrano come l’intenso dibattito degli ultimi decenni e la
conseguente circolazione delle idee abbiano prodotto, almeno in Italia,
proficui scambi e contaminazioni che – pur nelle differenze concettuali
– sembrano far intravedere uno sviluppo ulteriore delle teorie del restauro
verso un approccio meno manicheo di alcuni anni fa. Non si tratta an-
cora di una nuova “dottrina”, in grado di superare le precedenti – come
profetizzava Bonelli di fronte alla contrapposizione tra restauro critico e
pura-conservazione (BONELLI 1986) – ma certamente di un’evoluzione in
senso più conservativo nei confronti della materia antica da parte di tutti
gli approcci, insieme con un progressivo affermarsi del criterio della distin-
guibilità anche tra i fautori dell’orientamento meno incline a riconoscerne
validità, ovvero quello della “manutenzione-ripristino”. E’ probabile che gli
autori delle rispettive opere appena illustrate non sarebbero concordi con
questa posizione, ritenendola forse troppo semplificatoria, ma siamo con-
vinti – insieme con altri più autorevoli colleghi (VARAGNOLI 2014) – che
proprio i loro recenti interventi confermano questa tesi.
A questo panorama di eccellenze va tuttavia affiancato un giudizio meno
lusinghiero sulla prassi corrente del restauro, che non sempre raggiunge
gli elevati livelli degli esempi appena citati. Per ogni Tempio-Duomo di
Pozzuoli o, per riferirci all’Europa, per ogni Neues Museum di Berlino vi
sono, purtroppo, numerosi interventi molto meno condivisibili che palesa-
no grandi ambiguità concettuali, con posizioni che, a seconda dei momenti
e dei contesti, possono variare e intrecciarsi in teorie meticce e spesso det-
tate da semplici ragioni di convenienza. Ciò è dovuto anche alla sempre più
consistente irruzione di architetti “compositivi” nel settore del patrimonio,
ovvero progettisti del nuovo, che tendono ad affermare la loro superiorità
compositiva rispetto alla variegata compagine dei restauratori. Contrari ad
ogni speculazione teorica, questi ultimi accentuano quel carattere ecletti-
co e ambiguo che sembra caratterizzare alcune realizzazione più recenti.
Così qualcuno è arrivato persino a chiedersi se sia ancora opportuno par-
lare di restauro, mettendo in discussione la stessa esistenza “di un ambito
disciplinare, e di una corrispondente pratica professionale, che separano

QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURO: UNA RIFLESSIONE DALL’ITALIA 127


artificialmente il progetto di restauro di un edificio dal progetto di un edi-
ficio” (CONFORTI 2015).
Si tratta di una posizione dirompente e pericolosa, che dietro un’apparente
buona fede nasconde interessi professionali che rischiano di far arretrare
di molti decenni, se non di secoli, il dibattito disciplinare. Ma è forse pro-
prio questo lo spirito dei tempi che vive l’Europa in questi giorni difficili:
inquietudine, desiderio inespresso di cambiamento, retorica passatista o,
all’opposto, nichilismo avanguardista, tutti temi diversi ma confusamente
mischiati insieme. Sullo sfondo si staglia una disaffezione verso i grandi
temi della cultura, verso cioè quello che dovrebbe essere il fine ultimo della
tutela e della conservazione del patrimonio: l’elevazione spirituale e mo-
rale dell’uomo su un cammino di libertà e di indipendenza da ogni forma
di potere, compreso quello onnipresente del mercato. Ci auguriamo che la
tensione ideale che ha animato negli ultimi decenni questi dibattiti non si
affievolisca ed, anzi, continui ad alimentare curiosità e interesse verso una
delle più alte attività del genere umano: quella della riflessione sul nostro
passato, inteso non come nostalgico rifugio, ma come luce viva, necessaria
a illuminare il nostro presente e il nostro futuro.

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130 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


CONSERVANDO PAISAGEM
CULTURAL COMO PATRIMÔNIO
ARQUITETÔNICO E JARDIM

Ana Rita Sá Carneiro

RESUMO: Pensar a paisagem deve ser o princípio básico dos projetos pai-
sagísticos. Isso se evidencia nos depoimentos do artista Roberto Burle Marx
sobre os projetos iniciados na década de 1930 no Recife, tratando da arte,
ecologia e história do jardim. Apesar da expressividade de sua obra no Brasil
e no exterior, esse conhecimento paisagístico foi pouco assimilado nas esco-
las de arquitetura visando à instrução do olhar e ao pensamento paisagístico.
Notam-se avanços nos aspectos teóricos e técnicos em restauração de jar-
dins históricos e na inclusão da paisagem cultural carioca como patrimônio
da humanidade, mas o desafio está na conservação. Na verdade, o jardim
histórico como um tipo de paisagem cultural é mais assimilado e está mais
próximo da tradição brasileira, porém ainda não foi incorporado como meio
de compreensão da paisagem. O objetivo deste artigo é aproximar a teoria
da paisagem presente no debate internacional à concepção do projeto pai-
sagístico e de sua conservação como patrimônio arquitetônico, incluindo o
jardim.
Palavras-chave: Paisagem. Jardim. Conservação. Patrimônio.

ABSTRACT: To think the landscape needs to be the basic principle to land-


scape designs. This is evident in Burle Marx’s work when he arrived at Recife
in the thirties dealing with an artistic, ecological and historical garden design.
Although his significant Brazilian gardens as a work of arthis landscape design
principles werefew discussed in the architecture courses to build landscape
education. It is noted some technical progress in historical garden restoration
and Rio de Janeiro’s cultural landscape to be considered as world cultural
heritage. But, the challenge is the conservation practice. Indeed, historical
garden as a kind of cultural landscape is part of Brazilian tradition, but it is
not yet understood as a way to perceive landscape. The aim of this paper is
to approach landscape theory of the international debate to the landscape
garden design and its conservation as architectural heritage.
Keywords: Landscape. Garden. Conservation. Heritage.

CONSERVANDO PAISAGEM CULTURAL COMO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E JARDIM 131


1 INTRODUÇÃO

No mês de maio de 2013, a Conferência Landscape and Imagination, re-


alizada em Paris e coordenada pela UNISCAPE, que acolhe uma rede de
universidades voltadas para a Convenção Europeia da Paisagem, reuniu
profissionais de mais de 30 países. O objetivo da Conferência priorizou a
formação dos futuros profissionais como o meio mais concreto de instruir
e educar o olhar paisagístico para desenvolver a consciência paisagística
neste mundo de mudanças. Entre os convidados da sessão de abertura,
estava o geógrafo Augustin Berque, um dos mentores do novo aporte de
filosofia da paisagem, que localiza o cerne do debate na noção de paisagem.
O conteúdo elegeu seis subtemas para o debate: epistemologia, história,
arte, processo, ciência e governança. No subtema “epistemologia”, as ques-
tões colocadas partiram de conceitos de paisagem de várias procedências,
incluindo o adotado pela Convenção Europeia da Paisagem. O subtema
“arte” discutiu o potencial papel da representação de paisagem – pintura
como obra de arte – para o ensino. Os “processos” se voltaram para as ex-
periências de ensino com a inclusão da interpretação de paisagem. Uma
das conclusões identificou que a consciência do valor social da paisagem
é crucial para um adequado direcionamento de intervenções que almeje
a proteção da paisagem, o que é um grande desafio para a educação do
profissional/projetista e do usuário. Esses subtemas procuravam atrelar te-
oria e prática valorizando a história e a arte, assim como a investigação e
a técnica, portanto, em campos disciplinares que elenca no meio ambiente
a arte e a filosofia. E a paisagem é tratada como uma intermediação com
a sociedade em mudança. A pergunta geral lançada aos participantes foi:
de que maneira a educação pode ser direcionada para responder com pro-
priedade às digressões na paisagem provenientes das mudanças no planeta?
Pelo exposto, constata-se a necessidade universal de educar o olhar paisa-
gístico como parte da formação profissional na academia, em instituições
de planejamento e gestão do patrimônio com a finalidade de despertar o
pensamento paisagístico, ou seja, um compromisso com a paisagem. Esse
seria o caminho preparatório para a tomada de consciência da paisagem
no sentido de alimentar a conservação. Na visão de Santos (2012, p. 301),
“pensar a paisagem significa estar consciente da multiplicidade do olhar,
da complexidade dos sistemas naturais que a definem, mas, sobretudo, ac-
tualmente, da evolução das sociedades e do mundo”. Nessa perspectiva,

132 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


para educar o olhar é preciso exercitar a percepção que implica em ler e
interpretar a paisagem e definir os passos dessa leitura.
Ao lado do material da Conferência, nossas reflexões foram estimuladas
pelo conteúdo de quatro livros produzidos pelo projeto denominado “Fi-
losofia e Arquitectura da Paisagem”, coordenado pela pesquisadora do
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Profa. Adriana Serrão, em
parceria com o Centro de Estudos de Arquitectura Paisagista “Prof. Cal-
deira Cabral” e desenvolvido entre 2008 e 2013. Esses livros acolhem textos
dos seguintes autores que constam neste artigo: Georg Simmel, Augustin
Berque, Alain Roger, Sebastião Santos e Arnold Berleant. Por outro lado, a
abordagem técnica apoiou-se nas convenções e cartas patrimoniais inter-
nacionais e nacionais.

2 UM POUCO DA TEORIA DA PAISAGEM

A paisagem como categoria de pensamento foi exposta inicialmente pelo


filósofo Georg Simmelem em seu ensaio Filosofia da Paisagem, de 1913,
como uma derivação da natureza (SERRÃO, 2011, p. 16). Para ele, a com-
preensão de paisagem acontece quando, ao observar a natureza – entendida
como “a infinita conexão das coisas, a ininterrupta procriação e aniquila-
ção de formas, a unidade fluente do acontecer que se expressa na conti-
nuidade da existência temporal e espacial” –, realiza-se uma delimitação
momentânea ou duradoura como “unidade-auto-suficiente”, mas que é ao
mesmo tempo intuição e também sentimento, pois nasce do espírito (SIM-
MEL, 2011, p. 42). A unidade individualizada “paisagem” sucede a partir de
um movimento de “seleção e recomposição”, deslocamento e acolhimento
que pode ser interpretado como um ato criativo. Essa condição de deli-
mitar a natureza é semelhante ao ato artístico do exercício da pintura a
um enquadramento cujo conteúdo é uma decodificação do meio ambiente
natural, diz ele, denominando de “unidade visível da paisagem” (SIMMEL,
2011, p. 42). Porém, ressalta a contradição gerada diante da consideração de
seccioná-la, pois a natureza é uma unidade indivisível. No pensamento de
Simmel, a impressão de paisagem compreende uma unidade peculiar, mas
que tem caráter universal, pois não se limita ao que se apresenta; a imagem
ou composição é moldada pela imaginação, pelo olhar de cada um.

CONSERVANDO PAISAGEM CULTURAL COMO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E JARDIM 133


Na interpretação de Serrão (2012, p. 318), referindo-se a Simmel:

Foi primeiramente necessário que a percepção se acomodas-


se ao isolamento dos particulares e ao respectivo tratamento
de cada um de per si, para que depois os voltasse a ligar em
unidades coerentes que transcendem a sua simples soma. Na
percepção de cada paisagem ocorre uma visão unitária e ho-
mogênea, que em vez de uma colagem das partes produz es-
pontaneamente uma autêntica reunificação que insufla vida e
imprime consonância ao que fora previamente retalhado.

Pelo que foi dito, admite-se que essa unidade paisagística seja originada da
percepção individual ou de algum outro limitante em relação ao que se tem
em foco como uma resposta do olhar e do sentir que alimenta o pensamen-
to paisagístico. Além disso, por seu caráter de categoria de pensamento, a
paisagem é muitas vezes atribuída a algo descolado do ser humano. En-
quanto que para os orientais a paisagem é intrínseca à sua condição de ser,
por uma relação mais espiritual e ecológica com a natureza, com a terra e
o cultivo, para os ocidentais a origem da paisagem está na pintura de pai-
sagem, fora do ser, como objeto visual. Na visão de Berleant (2012, p. 349):

...cada paisagem é um artefacto humano. Seja ela enquadra-


da por uma câmara, cultivada como uma quinta, conservada
como uma reserva natural, ou preservada, como se diz, em es-
tado selvagem, cada paisagem é identificada e escolhida pelos
humanos e incorpora-se e mostra os efeitos da ação humana.

Outra maneira bem didática é refletir sobre os critérios que Augustin Ber-
que criou, empiricamente, para considerar uma civilização paisagística.
Segundo ele, esses critérios específicos seguem citados:

Por ordem crescente de discriminação, para que uma socieda-


de humana considere paisagem deve atender a sete critérios:
1. literatura oral ou escrita louvando a beleza do ambiente; 2.
toponímia indicando a beleza de certos lugares; 3. jardins de
recreio; 4. arquitectura disposta para gozar duma bela vista;
5.pinturas que representem o aspecto sensível do ambiente; 6.
uma ou mais palavras para dizer “paisagem”; 7. uma reflexão
explícita sobre o tema paisagem (BERQUE, 2012, p. 96).

134 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


Esses critérios servem, assim, para avaliar até que ponto ocorre o pensa-
mento paisagístico de cada indivíduo e da sociedade onde ele se insere.
Inclusive porque algumas sociedades atendem a alguns, mas não a todos
os critérios, o que varia o nível de aproximação à noção de paisagem ou
de pensar a paisagem. Tais critérios revelam também tipos de representa-
ção de paisagem através da palavra, da imagem e da matéria viva que é o
jardim, o que Alain Roger denomina de “artialização”, isto é, a transfor-
mação da simples “terra” em paisagem, seja in situ em forma de jardim ou
landart, seja in visu, em forma de pintura, fotografia ou poesia (ROGER,
2011).
A partir do pensamento dos teóricos referenciados, fica claro que o ponto
de partida é a relação do homem com a natureza na qual se inserem a maté-
ria viva vegetal, animal e mineral e as ações humanas. As representações de
paisagem formuladas por Berque e por Roger conduzem a uma reflexão so-
bre a análise e a avaliação que se faz necessária de nossa realidade brasilei-
ra, que ainda não tem incorporada a paisagem na legislação urbana como
uma responsabilidade técnica. Esse fato implica na questão do projeto de
paisagem que exige uma educação com base teórica e prática. E é notório
que o debate internacional abrange a gestão e a conservação, mas também a
concepção do projeto de paisagem, referindo-se à intervenção direcionada
à arquitetura da paisagem.

3 PAISAGEM E PATRIMÔNIO

Berque afirma que a paisagem nem sempre existiu, pois muitos seres hu-
manos não consideram seu ambiente como paisagem. É preciso o olhar e
o pensamento paisagístico. Na medida em que prevalece um pensamen-
to paisagístico, quando a paisagem está representada em diversos tipos de
ações humanas, ela constitui um patrimônio da sociedade. Nos estudos de
Berque, o sentido de paisagem nasceu na China no século IV, pois foi ex-
pressa pela primeira vez no termo shanshui, que significa “os montes e as
águas”. Esse termo foi utilizado por poetas que expressaram a atitude dos
mandarins de se retirarem para suas terras para contemplarem a natureza
com um olhar de letrados e não de camponeses diante de fatos políticos
que geraram mudanças no regime interno das dinastias (BERQUE, 2012).

CONSERVANDO PAISAGEM CULTURAL COMO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E JARDIM 135


Sob outra ótica mais voltada para o sentimento artístico, na época do Re-
nascimento – século XVII – se desenvolveu, na Europa, a expressão da
paisagem na pintura, quando se aprimoraram as técnicas de representa-
ção com a descoberta da perspectiva, que proporcionou planos de visão do
conjunto das coisas, e o entendimento de paisagem passou a ser a paisagem
“pintada”, segundo Cauquelin, ou seja, algo que está “a nossa frente” (CAU-
QUELIN, 2007).
No Brasil, o artista holandês Frans Post, integrante da comitiva de Maurí-
cio de Nassau, elaborou a primeira pintura de paisagem como documento
no século XVII, no Recife, a qual forneceu, por longo tempo, um teste-
munho da flora e da fauna brasileiras. Com o olhar holandês, Frans Post
pinta a paisagem pernambucana que nasce com traços europeus de técnica
estrangeira, sugerindo tons escurecidos, folhagens delicadas e céu embran-
quecido. Entre essas expressões pictóricas de Post está o Jardim de Fribur-
go, com o palácio também chamado de Parque de Friburgo em planta baixa
e em fachada. Segundo Silva (2011), Post inventa a paisagem brasileira qua-
se ao mesmo tempo em que os europeus inventam a pintura de paisagem e
a palavra paisagem, entendida como unidade de ocupação humana.
Os jardins botânicos foram as primeiras expressões de jardins de recreio
criados por ordem régia de 1798 com fins econômicos, científicos e utilitá-
rios, e alguns deles estão protegidos como patrimônio cultural pelo Insti-
tuto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Em paralelo,
foram construídos os passeios públicos como espaços de convívio social.
Está destacado no decreto de criação deste órgão, Lei n. 25 de 1937, que será
prevista a proteção e a conservação das paisagens juntamente com os mo-
numentos e sítios de feições notáveis que sejam dotados pela natureza ou
pela intervenção humana. Apesar da histórica iniciativa, a noção brasileira
de paisagem esteve sempre direcionada às grandes áreas com predominân-
cia de recursos naturais, tais como parques nacionais e reservas ecológicas,
classificadas como patrimônio natural.
Na década de 1930, a vinda do artista Roberto Burle Marx para recuperar e
criar jardins no Recife, recomendado pelo arquiteto Lúcio Costa, sedimen-
ta um novo pensamento paisagístico. O jardim moderno por ele idealizado
nasce como “obra de arte” e “natureza organizada”, no qual a planta é o
elemento inspirador como está registrado na carta dos jardins históricos
ou Carta de Florença, elaborada em 1981. São jardins temáticos com fun-
damento científico – histórico, artístico, ecológico e botânico –, instruindo

136 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


sobre as macropaisagens brasileiras que o paisagista investiga por meio de
expedições científicas pelo interior do país ao lado de botânicos, firmando-
-se como pesquisador da flora brasileira, informando as suas descobertas
e pintando paisagens. Nesse momento, o seu olhar integra o jardim e a
paisagem num pensamento único. A experiência paisagística que ele inicia
se estende posteriormente por várias cidades brasileiras e outros países, in-
clusive divulgando a flora brasileira, e o jardim moderno passa a ser uma
referência brasileira concreta e cultural. E apesar de sua luta para preservar
as paisagens dos ecossistemas brasileiros e de seu pioneirismo na utilização
paisagística nativa como arte, não teve o devido reconhecimento das insti-
tuições de proteção ao patrimônio e da academia (Figura 1).

Figura 1. Depoimento e desenhos de Burle Marx “Jardins e Parques do


Recife”. Fonte: Diário da Tarde, Recife, 14/03/1935

No mesmo sentido do empenho do paisagista Burle Marx, na escala in-


ternacional, a Recomendação relativa à salvaguarda da beleza e do caráter
das paisagens e sítios, de 1972, é elaborada pela UNESCO, destacando que

CONSERVANDO PAISAGEM CULTURAL COMO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E JARDIM 137


a beleza e o caráter das paisagens de interesse cultural e estético devem ser
preservados. Mas só em 1992 o Guia Operacional da Convenção do Patri-
mônio Mundial instituiu a “paisagem cultural como categoria de patrimô-
nio da humanidade”, em que exalta algumas paisagens de valor excepcio-
nal universal pela essência nos aspectos naturais e culturais, e que devem
estar classificadas em três tipos: paisagem intencionalmente concebida e
criada pelo homem, como os jardins; paisagem que evoluiu organicamente,
seja paisagem relíquia ou fóssil e paisagem contínua – que mantém ao lon-
go do tempo um papel social –; e paisagem associativa, relacionando tradi-
ção religiosa, artística ou cultural e elemento natural (RIBEIRO, 2007). O
jardim, portanto, constitui um tipo de paisagem cultural, aquela concebida
e criada pelo homem.
Três anos depois, a Recomendação n. R (95) 9 sobre a conservação integrada
das áreas de paisagens culturais como integrantes das políticas paisagísticas,
elaborada pelo Conselho da Europa e o Comitê de Ministros em setembro
de 1995, estimula a formulação de políticas de proteção, acrescentando ao
conteúdo o valor imaterial a partir da percepção do indivíduo e da comu-
nidade, a relação com o meio ambiente e as práticas, crenças e tradições
(CURY, 2000). Quanto à conservação, introduz-se a estratégia da unidade
de paisagem como um meio de realização de estudo detalhado dos atribu-
tos naturais e culturais, incluindo a história. Ressalta-se que a estratégia
da unidade de paisagem traz uma nova compreensão do bem patrimonial,
abarcando a condição da percepção, mais precisamente das visuais paisa-
gísticas, para proporcionar certa transição da área de preservação rigorosa
para a de preservação ambiental. Acredita-se que o instrumento de unidade
de paisagem tenha subsidiado a definição das zonas que constituíram Rio
de Janeiro – Paisagens cariocas entre a montanha e o mar como patrimônio
da humanidade instituída em 2012, incorporando quatro setores: 1) Setores
Floresta da Tijuca, Pretos Forros e Covanca do Parque Nacional da Tijuca;
2) Setor Pedra Bonita e Pedra da Gávea do Parque Nacional da Tijuca; 3)
Setor Serra da Carioca do Parque Nacional da Tijuca e Jardim Botânico do
Rio de Janeiro; e 4) Entrada da Baía de Guanabara e suas bordas d´água
desenhadas: Passeio Público, Parque do Flamengo, Fortes Históricos de
Niterói e Rio, Pão de Açúcar e Praia de Copacabana (IPHAN, 2012). Con-
correu com grande magnitude para essa escolha a arquitetura paisagística
de Roberto Burle Marx.
Uma vez criado, o instrumento de paisagem cultural está direcionado para
aquelas paisagens de valor excepcional universal. Outra visão de paisagem

138 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


protegida é concebida pela Convenção Europeia da Paisagem, que, no ano
2000, aprova princípios mais abrangentes que incluem não só as paisagens
notáveis, mas também as ordinárias da vida cotidiana e as degradadas (RI-
BEIRO, 2007). A Convenção trata de definições e de medidas gerais e espe-
cíficas relativas às políticas de paisagem e, entre as específicas, está a sen-
sibilização da sociedade civil, das organizações privadas e das autoridades
públicas para o valor da paisagem e a formação de especialistas nos domí-
nios do conhecimento e da intervenção na paisagem (CONVENÇÃO EU-
ROPEIA DA PAISAGEM, 2005). Também em 2004, publica o texto We are
the landscape, que transmite uma forma acessível de se entender a paisagem
a partir do cotidiano, do dia a dia, retirando exemplos para uma assimilação
de que paisagem é o que sentimos diante do mundo e que temos necessidade
da paisagem como um alimento para o espírito. Com esse documento, foi
possível se perceber que a UNISCAPE, rede de universidades, tem um ob-
jetivo e vem desenvolvendo ao longo dos anos. Esse documento tem caráter
didático e linguagem acessível com exemplos claros que incentiva o leitor a
viver as experiências sugeridas e constatar o que foi lido.
No mesmo propósito, o jardim, por sua linguagem direta comunicada pela
planta (vegetação), pode ser um meio de instruir o olhar e o pensamento
paisagístico. Os estudos para a restauração de alguns jardins de Burle Marx
da década de 1930 são iniciados no ano 2003 no Recife, tendo como funda-
mento a Carta de Florença ou dos Jardins Históricos, elaborada na cidade
de Florença em 1981, assim como os depoimentos consistentes do paisa-
gista nos jornais locais. Foram contempladas três praças: a Praça Euclides
da Cunha, que foi inspirada na paisagem do sertão nordestino, composta
de plantas do ecossistema da caatinga, a Praça Faria Neves e a Praça do
Derby, ambas caracterizadas pelo emprego da vegetação regional. A Praça
Euclides da Cunha foi restaurada em 2004, a Praça Faria Neves, em 2006, e
a Praça do Derby, em 2008.
Na perspectiva de perseguir a complexidade do tema, o I Colóquio Inter-
nacional de História da Arte – Paisagem e Arte: a invenção da natureza, a
evolução do olhar13 –, realizado em São Paulo no ano de 1997, introduz a vi-

13 O I Colóquio Internacional de História da Arte, denominado “Paisagem e Arte: a invenção


da natureza, a evolução do olhar” e coordenado pela Profa. Heliana Angotti (publicado em
2000), traz Augustin Berque e Alain Roger como palestrantes e o 3º Seminário de Paisagem
Sul-americana, coordenado pelos professores Carlos Terra e Rubens Andrade, amplia o debate
da paisagem na interlocução com a arte, a história, a sociologia e a biologia.

CONSERVANDO PAISAGEM CULTURAL COMO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E JARDIM 139


são multidisciplinar do objeto paisagem sob a forma de imagem – pintura,
literatura, fotografia – e de jardim. A partir de 2005, o IPHAN apresenta
produção significativa voltada para o jardim e a paisagem com o Manual de
Intervenção em Jardins Históricos do arquiteto Carlos Fernando de Moura
Delphim (2005) e o estudo do geógrafo Rafael Winter Ribeiro, Paisagem
Cultural e Patrimônio (2007).
Aprofundando a discussão e atrelando a categoria de patrimônio, acontece,
nesse mesmo ano, o III Seminário de Paisagismo Sul-americano de Paisa-
gens Culturais, realizado no Rio de Janeiro. E, em 2010, uma iniciativa da
Universidade Federal de Minas Gerais alimenta o debate nacional e inter-
nacional com o Colóquio Ibero americano Paisagem cultural, Patrimônio
e Projeto, que vem ocorrendo bianualmente. Por outro lado, a Associação
Brasileira de Arquitetos Paisagistas (ABAP) se empenhou em elaborar a
Carta Brasileira da Paisagem de 2010, contando com o apoio da represen-
tação sul-americana da Federação Internacional de Arquitetos Paisagistas
– IFLA. A Carta almeja a proteção, a conservação e a gestão da paisagem
brasileira, concebendo 12 princípios que contemplam o reconhecimento
dos ecossistemas, o direito à paisagem, a relação sustentável da população
com a paisagem, a chancela da paisagem cultural brasileira, a proteção dos
jardins históricos, entre outros, mas a abordagem é ampla e não desce nas
especificidades.

4 JARDIM E PATRIMÔNIO

Nossas primeiras expressões de jardim têm caráter privado e começam no


século XVII, no período de colonização holandesa, com o jardim implan-
tado pelo Conde João Maurício de Nassau denominado o Parque de Fri-
burgo, que continha alamedas de coqueiros, pomares, recinto de animais
etc., localizado na Ilha de Antonio Vaz, antiga denominação dos bairros de
Santo Antonio e São José (MESQUITA, 1998). Outra referência, segundo
Gilberto Freyre e Saint-Hilaire, citados por Aragão (2008) é o jardim da
casa grande de engenho com hortas e pomares, além de palmeiras e plantas
exóticas aclimatadas.
No final do século XVIII, são criados os jardins botânicos, com a finalida-
de de fornecer conhecimento sobre as possibilidades econômicas da flora

140 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


local ainda com funções científicas bem específicas. Por essa época, come-
çam a surgir os jardins públicos segundo o modelo europeu. Somente na
década de 1930, com o jardim moderno criado pelo artista Roberto Burle
Marx, é cristalizado o jardim “brasileiro” de plantas nativas. Esse jardim
passa a ter fundamento científico, pois está associado à pesquisa botânica,
a princípios de composição artística, à compreensão das macropaisagens e
à necessidade de alimentar o espírito, ou seja, como patrimônio material
e imaterial. Preocupado com a conservação, Burle Marx elabora desenhos
detalhados mostrando a vegetação utilizada e a instalação hidráulica do
jardim para instruir o jardineiro, que é ressaltado como um profissional
de relevância.
Assim, o jardim se apresenta com função educativa de informar sobre a
diversidade da flora brasileira e é pensado como um jardim conceitual,
uma unidade paisagística, plástica e arquitetônica. Burle Marx vincula a
necessidade estética da paisagem para a vida humana “sem o que a própria
civilização perderia sua razão ética” (TABACOW, 2004, p. 24).
Os princípios do jardim concebido por Burle Marx têm grande aproxima-
ção com o conteúdo da Carta de Florença, que afirma: “um jardim de in-
teresse histórico é aquele que apresenta aspectos da história da arte das
paisagens e dos jardins de um determinado local ou cidade com ênfase nas
espécies vegetais e que podem ser exemplos do trabalho de um paisagis-
ta em particular que valorize um estilo de projetar” (CURY, 2000). Nessa
Carta, a vegetação é considerada o principal elemento da composição do
jardim histórico, que o caracteriza como monumento vivo. O jardim histó-
rico detém um conjunto de atributos que lhe concede um caráter peculiar,
relacionando tempo, memória e saber, e que definirá os valores do jardim.
É, portanto, uma categoria de paisagem cultural classificada pela UNES-
CO, referindo-se às paisagens projetadas e criadas intencionalmente pelo
homem, que são jardins e parques construídos por razões estéticas.
A conservação de um jardim como um bem cultural pressupõe um estudo
da história através de documentos e iconografias para investigar as razões
pelas quais foi concebido, assim como os fundamentos formais e funcio-
nais de sua construção e de suas transformações. Sendo assim, devem ser
levados em conta os contextos: territorial, natural e antrópico, indicando
as relações existentes de caráter ecológico entre os componentes arquite-
tônicos e os componentes naturais. Portanto, exige disposições teórico-
-metodológicas de intervenção que começam com a ação de inventariar.

CONSERVANDO PAISAGEM CULTURAL COMO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E JARDIM 141


Um inventário é um instrumento pedagógico de investigação sobre a “ar-
queologia” dos jardins do ponto de vista de suas características históricas,
artísticas e ecológicas. Arqueologia entendida como investigação profunda
das diversas camadas de formação que compõe o jardim.
Tais considerações se adequam de forma íntegra ao conjunto dos seis jar-
dins criados pelo paisagista Roberto Burle Marx em Recife entre 1935 e
1958, que estão em processo de tombamento pelo IPHAN. Para eles, foi
solicitado o tombamento no ano de 2008 como conjunto histórico e paisa-
gístico. A experiência de restauração de alguns desses jardins desencadeou
a elaboração de um inventário para os seis jardins em uma primeira eta-
pa (2006-2009), seguindo-se, uma segunda etapa com mais nove jardins
(2009-2013), e o início do inventário dos jardins privados (Figuras 2 e 3).

Figuras 2. Praça de Casa Forte, 2015.


Fonte: Acervo Laboratório da Paisagem, UFPE.

142 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


Figura 3. Praça Euclides da Cunha, 2013.
Fonte: Acervo Laboratório da Paisagem, UFPE.

O inventário dos jardins históricos de Burle Marx foi elaborado pelo Labo-
ratório da Paisagem da Universidade Federal de Pernambuco, atendendo às
exigências da Carta de Florença, e foi encaminhado ao IPHAN para apoiar
o processo de tombamento. Com o inventário, foi possível se perceber a
complexidade de um monumento vivo pela análise botânica, que revela as
associações das espécies vegetais levando em conta a história da vegetação,
o clima, o tempo de floração e a interação da fauna, e a especificidade de
cada um em particular, assim como a visão de conjunto.
Por sua vez, a Carta dos Jardins Históricos Brasileiros de 2011, produzida
no I Encontro Nacional de Gestores de Jardins Históricos organizado pelo
IPHAN, Fundação Museu Mariano Procópio e Fundação Casa de Rui Bar-
bosa, em Juiz de Fora no ano de 2010, salienta também a compreensão do
jardim como sistema e “unidade básica” que reúne componentes e articula-
ções a partir de um pensamento. Mostra os fatores de degradação e destaca,
nas recomendações, a necessidade de capacitação de mão de obra em todos

CONSERVANDO PAISAGEM CULTURAL COMO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E JARDIM 143


os níveis, necessidade de uma sementeira com as plantas do inventário, a
visibilidade do conjunto, educação patrimonial e reconhecimento da im-
portância e singularidade do oficio do jardineiro para garantir a manuten-
ção da vegetação e perpetuação do verde histórico.
Para a proteção desse jardim, faz-se necessário delimitar o polígono de pre-
servação rigorosa e o de proteção ambiental, que leva em conta várias limi-
tações estabelecidas pela legislação urbana, inclusive gabarito de edifícios
cuja altura pode vir a prejudicar o crescimento da vegetação. O polígono de
preservação rigorosa compreende o jardim propriamente dito, e o polígono
de proteção ambiental, a unidade paisagística – jardim e entorno imediato
–, então definida pelo IPHAN, Prefeitura do Recife e Universidade Federal
de Pernambuco a partir de restrições em termos de ocupação urbana. Para
Caldeira Cabral, o criador da arquitetura paisagística em Portugal, a uni-
dade é um princípio de composição da paisagem como arte na intenção de
integração com a paisagem circundante (CABRAL, 2003).
A restauração dos quatro jardins públicos de Burle Marx resultou de um
trabalho conjunto entre a Prefeitura do Recife e o Laboratório da Paisa-
gem da Universidade Federal de Pernambuco. Por conta desse processo
de tombamento, a Prefeitura do Recife incluiu recentemente no Sistema
Municipal de Unidades Protegidas a categoria jardim histórico. Com isso,
serão enquadrados nesse Sistema os jardins que deverão ter proteção como
monumento, o que implica em área de entorno garantida com gabarito que
não interfira na contemplação. Admite-se que a prática da conservação dos
jardins tem servido de instrumento para a educação do olhar e construção
do pensamento paisagístico.

5 CONCLUSÃO

A paisagem visível de um jardim após a restauração agrega valores, irra-


diando uma natureza ordenada, como dizia Burle Marx. Por isso, em um
conjunto representativo como o do Recife, pode se desdobrar repercussões
positivas e qualitativas. O novo currículo do curso de Arquitetura e Ur-
banismo da Universidade Federal de Pernambuco, implantado em 2010,
foi uma delas. O ensino de paisagismo, que se resumia a dois semestres,
hoje faz parte da estrutura pedagógica em oito dos dez semestres, exigindo

144 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


novas conexões no processo de concepção com ênfase nas relações com
a paisagem urbana. Presume-se que a experiência de jardins restaurados
influenciou os educadores responsáveis pela reforma pedagógica que, se-
gundo Roger, consiste na paisagem in situ. A experiência de restauração
dos jardins de Burle Marx no Recife recupera um pensamento paisagístico
que é refletido em um novo momento e estimula o olhar dos técnicos e da
população. Ou seja, o jardim pode ser considerado um meio de assimilar
e entender paisagem, o que significa um caminho para instruir o olhar e
sedimentar o pensamento paisagístico.
Os aspectos abordados neste artigo se voltam para a relação paisagem e
jardim como um pressuposto na busca dos fundamentos da educação do
olhar. Isso reforça as considerações de Berque com relação ao jardim de
recreio como representação de paisagem e da Convenção do Patrimônio
da UNESCO, incluindo o jardim como paisagem intencionalmente criada
pelo homem.

AGRADECIMENTOS

À equipe do Laboratório da Paisagem da UFPE, em especial, à Profa. Lúcia


Veras, ao biólogo Joelmir Marques da Silva, às estudantes de arquitetura
Carla Ferraz e Marília Lucena, e também ao CNPq.

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CONSERVANDO PAISAGEM CULTURAL COMO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E JARDIM 145


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146 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


DESCONSTRUINDO
POLARIDADES: HISTÓRIA DA
CONSTRUÇÃO E TÉCNICAS
PARA A CONSERVAÇÃO DO
PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO

João Mascarenhas Mateus

RESUMO: O texto pretende, numa primeira parte, desconstruir alguns dis-


cursos dualistas no âmbito das técnicas e das tecnologias, que constituem
por vezes um obstáculo à atividade da Conservação Arquitetônica. Numa
segunda parte, são apresentados aspectos da aplicação da História da
Construção em cada uma das fases de um processo de conservação e restau-
ro e na identificação do valor tecnológico de edifícios históricos em alvenaria.
Palavras-chave: História da Construção. Conservação. Valor
Tecnológico. Alvenarias.

ABSTRACT: The text starts by discussing the deconstruction of some


dualisms in the field of techniques and technology that are frequently
antagonistic towards the Architectural Conservation practice. The
text follows by presenting some applications of Construction History
in each phase of an architectural conservation process and the iden-
tification of the historical-technological value of historical masonry
buildings.
Keywords: Construction History. Preservation. Technological Value.
Masonry.

DESCONSTRUINDO POLARIDADES: HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO E


TÉCNICAS PARA A CONSERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO 147
1 CONSERVAÇÃO E DICOTOMIAS

A conservação histórico-crítica ou o restauro crítico-conservativo é uma


metodologia que tenho procurado praticar em coerência com o aprendido
com o Prof. Giovanni Carbonara (n. 1942) na Universidade La Sapienza
de Roma, Itália, depois da formação inicial com o Prof. Raymond Lemaire
(1921-1997) na Katholieke Universiteit Leuven, Bélgica. Trata-se, antes de
tudo, de uma atividade multidisciplinar baseada na permeabilidade e no
atravessamento de vários limites epistemológicos, destinada à preservação
material e simbólica da integridade de artefatos imóveis que constituem
“recipientes de capital cultural” de grande valor para uma dada comuni-
dade ou para toda a humanidade e da sua transmissão às gerações futuras.
Erradamente, essa metodologia é por vezes associada de forma antagônica
como impeditiva da criatividade arquitetônica ou carregada de intenções
retrógradas destinadas à “mumificação” do patrimônio construído. Esses
posicionamentos nos extremos de visões dualistas redutoras revelam o des-
conhecimento da riqueza de debates e avanços ocorridos nas últimas déca-
das destinados à consolidação da Conservação como disciplina autônoma.
Um campo de conhecimento ainda pouco ensinado nas universidades e
academias de muitos países, não só europeus, como de outros continentes.
Quem conheça bem a metodologia e a prática da Conservação sabe que nos
processos de conservação é possível, em determinados casos, a edificação
nova, a demolição parcial e a utilização de linguagens, materiais e técnicas
contemporâneos, sempre e quando necessárias a legibilidade, a reversibi-
lidade, a pouca intrusividade e a conservação do material histórico na sua
máxima integridade. Por outro lado, a exigência de adaptação do méto-
do às culturas, aos processos históricos, à materialidade e imaterialidade
das regiões e das comunidades responsáveis pela produção, manutenção
e apropriação dos objetos arquitetônicos permite refutar também a ideia
equivocada de que as teorias da conservação foram produzidas pela cultura
ocidental e só são aplicáveis ao patrimônio produzido no seu contexto.
O esclarecimento do posicionamento da Conservação Arquitetônica passa,
pois, pela desconstrução de determinadas polaridades ou dicotomias que
se foram criando com o tempo, infelizmente também no seio do mundo
da investigação das ciências sociais, das artes e das tecnologias. O caso da
utilização das técnicas na conservação do patrimônio arquitetônico cons-
titui um aspecto em que essa desconstrução se apresenta evidente, em

148 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


particular, na identificação do valor técnico de um edifício histórico e da
sua relação com outros valores patrimoniais.

2 EPISTÉME E TÉCHNE

Para iniciar um discurso sobre o papel das técnicas e das tecnologias na


conservação arquitetônica, convém recordar a evolução de alguns concei-
tos primordiais sobre cultura material.
A concepção aristotélica do conhecimento previa, entre outros tipos, duas
qualidades de sabedoria: a epistéme e a téchne (ARISTÓTELES, 2004). A
primeira era associada ao conhecimento teórico (o quê?), a segunda ao mé-
todo racional de produção de um objeto (como?). Métis seria, segundo a
visão filosófica clássica grega, a inteligência prática que não separa con-
cepção da execução, epistéme da téchne, a teoria da prática, o inteligível do
sensível. No que se refere à construção de artefatos arquitetônicos, a mé-
tis constituiria, pois, o conhecimento da interdependência entre os vários
atores de um processo de fabricação, das ferramentas, dos materiais e das
artes (SCHWINT, 2002). Esses conceitos se transformaram com o tempo.
Epistéme passou de ser considerado um conjunto de verdades e práticas
que resultam numa determinada visão do mundo segundo o paradigma
científico de Thomas Kunn (1922-1996) para ser considerado como um in-
consciente epistemológico de um dado momento histórico, em que podem
coexistir várias visões do mundo e suas práticas, segundo Michel Foucault
(1926-1984).
Apesar dessa transformação e da abertura filosófica em relação a esses
conceitos antigos, tem-se, hoje em dia, ainda a visão da construção arqui-
tetônica dividida entre os princípios e regras e os processos de execução
propriamente ditos.
Hoje, a divisão do trabalho, a estratificação e compartimentação de com-
petências comum nas sociedades globalizadas fomentam também visões
fragmentadas entre cada um dos atores de um processo construtivo. Uma
visão separada entre tecnologia e técnicas, entre saber teórico e prático,
que torna difícil a leitura completa dos elementos de uma cadeia de produ-
ção de um bem arquitetônico. Esquece-se, assim, que os antigos edifícios
e o patrimônio histórico-arquitetônico resultam e são testemunho de uma

DESCONSTRUINDO POLARIDADES: HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO E


TÉCNICAS PARA A CONSERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO 149
métis, de um conhecimento baseado na criação de estratagemas que fun-
cionam no presente e no futuro, com base na adaptação de experiências
passadas. O valor tecnológico dos edifícios históricos reside exatamente no
capital cultural da métis empregada na sua construção.

3 O OBJETO TÉCNICO

Desde Platão – que defendeu a ideia de que o Homem se contentava em


copiar uma ideia eterna de um dado artefato, por exemplo, a forma de uma
casa – muitos foram os debates sobre a essência de um objeto técnico. Para
Descartes, a técnica serviria sobretudo para colocar a natureza ao serviço
de necessidades humanas determinadas. Essa visão de libertação do ho-
mem em relação à materialidade foi associada mais tarde ao conceito de
alienação na tradição de Hegel (1770-1831) e depois de Marx (1818-1883).
Segundo essas correntes filosóficas, as técnicas tradicionais eram respon-
sáveis pela existência de relações sociais que não seriam mais do que sim-
ples relações de produção. Pelo contrário e com base numa crença cega
no progresso, as novas técnicas resultantes da inovação poderiam ajudar o
Homem a suplantar as limitações das necessidades materiais e da raridade
de recursos. A estruturação progressista do ensino e das cadeias produtivas
relegou, assim, para segundo plano, o interesse da sociedade em relação aos
objetos técnicos quotidianos e instrumentais de períodos históricos prece-
dentes. Com essa atitude, os objetos e as técnicas tradicionais de constru-
ção foram perdendo valor e aperfeiçoamento.
No entanto, vozes lúcidas, como as de Henri Bergson (1859-1941), alertaram
para os riscos redutores dessas visões dualistas do progresso. Para Bergson, a
inovação técnica não se reduz apenas à aplicação do saber científico, apesar
desse saber ter acelerado a inovação a partir de instrumentos já existentes
(2009). Para Paul Valéry (1871-1945), o objeto técnico seria o fruto da repeti-
ção de um número não mensurável de vezes de uma prática até que um dia
se chega a uma solução ideal, mais econômica e mais segura, numa determi-
nada cultura e momento histórico. A partir desse momento, são produzidas
milhões de réplicas dessa solução otimizada (VALERY, 1970).
Mais difícil é, porém, antecipar o efeito de uma nova técnica na socieda-
de, na organização e nos valores de uma determinada comunidade, como

150 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


bem revelou Hannah Arendt (1906-1975), Hans Jonas (1903-1993) e outros.
Uma posição que vai ao encontro de Heidegger (1889-1976) e da ideia de
que a essência da técnica não tem nada de tecnológico.
A verdade é que um novo objeto técnico tem tendência a confundir-se com
a cultura que o concebeu. Veja-se, por exemplo, a facilidade com que se
passa a denominar um determinado objeto técnico, tomando o seu nome
de outras atividades humanas já consolidadas e conhecidas por uma deter-
minada comunidade (MASCARENHAS-MATEUS, 2013).
Uma nova técnica implica não só novos procedimentos tecnológicos, como
também novos procedimentos sociais. Assim foi, por exemplo, com a má-
quina a vapor, o capitalismo e a divisão do trabalho. E assim foi, no âmbito
do presente texto, o efeito da invenção e produção industrial do cimento
Portland, do aço normalizado ou do concreto armado.
Essa constatação nos leva ao problema da mudança de paradigma da Cons-
trução, ocorrido entre a segunda metade do século XIX e a primeira meta-
de do século XX, com novos materiais, técnicas e tecnologias. Uma trans-
formação resultante de combinações de inovações técnicas e alterações de
métis construtivas sucessivas que implicou na criação de novas dicotomias
ou polaridades: construção tradicional versus construção moderna, arte de
edificar versus ciência das construções, culturas construtivas da cal versus
culturas construtivas do cimento e do aço, conservação versus renovação.
Entender a gênese e as consequências dessa mudança de paradigma per-
mite justificar de forma clara o posicionamento das técnicas tradicionais
em relação às técnicas contemporâneas num processo de conservação e
restauro.

4 CULTURAS CONSTRUTIVAS E HISTÓRIA DA


CONSTRUÇÃO

Para a desconstrução dessas novas dicotomias criadas pelo advento do aço


e do concreto armado associadas a crenças de progresso hoje ultrapassadas,
torna-se oportuno, neste ponto, introduzir o conceito de História da Cons-
trução e de cultura construtiva.
A História da Construção é uma disciplina de afirmação recente no âm-
bito acadêmico de expressão lusófona, cujo objetivo é o estudo de como se

DESCONSTRUINDO POLARIDADES: HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO E


TÉCNICAS PARA A CONSERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO 151
construiu num dado lugar e tempo. Para o seu estudo, é particularmente
relevante o conceito de building culture, proposto por Jane Morley: “build-
ing culture denotes the individuals, groups, organisations, and industries
whose work, practices, and products relate to the construction of the man-
made environment” (MORLEY, 1987, p. 19). Um conceito cuja definição
foi aperfeiçoada por Howard Davis: “The culture of building is the coor-
dinated system of knowledge, rules, procedures, and habits that surrounds
the building process in a given place and time” (DAVIS, 2006, p. 5).
Compreender como se construiu implica, pois, estudar a evolução do co-
nhecimento das técnicas da construção (desenho, projeto, cálculo, execu-
ção, manutenção), as transformações das exigências programáticas (ha-
bitações, templos, fortificações, fábricas, pontes, infraestruturas, obras
públicas...), a história da ciência dos materiais, o desenvolvimento da ma-
quinaria e utensílios para a sua extração, processamento e assemblagem,
a história do ensino da construção (formação de artífices, escolas de ar-
quitetos, engenheiros, artes industriais), os processos de organização do
trabalho, das profissões, de gestão pública e privada de obras, a história
econômica e social relacionada com a atividade da Construção.
A atividade de investigação histórica é, antes de mais nada, uma busca me-
tódica da sequência de episódios e experiências de uma comunidade ao
longo do tempo e que nos pode ajudar a avaliar a evolução do capital de cul-
tura dessa comunidade. Esse tipo de análise permite colmatar lacunas do
conhecimento das sociedades contemporâneas e estabelecer pontes entre o
que essa comunidade foi e aquilo que é hoje. Nesse sentido, compreender
as alterações do modo de construir juntamente com a história do que se
construiu ou com a história das profissões relacionadas com a atividade
construtiva é resolver parte de um puzzle histórico complexo. Encontrar as
suas soluções é explicar a transformação histórica da paisagem natural, a
organização (ou desorganização) do território ou ainda a formação e o de-
saparecimento de muitos ofícios e profissões. Essa análise pode, e deve, ser
efetuada multidisciplinarmente, tratando as técnicas utilizadas, as formas
de processamento dos materiais, os métodos do risco e do cálculo e a orga-
nização da força de mão de obra capaz de realizar programas construtivos
de complexidade muito variada. Desde a modesta casa rural ao grande pa-
lácio, do mosteiro ao castelo, da ponte e aqueduto à grande unidade fabril.
Para estudar cada um dos objetos de estudo enunciados, são de varia-
da natureza as fontes de estudo que podem fornecer informação válida:

152 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


documentos de arquivo relativos a obras, fornecimento de materiais, pro-
jetos, cálculos ou contratos de execução; literatura técnica – tratados, ma-
nuais de técnicas, de cálculo, de máquinas; ou determinados relatos orais,
iconografia, tradições e ainda os próprios edifícios ou construções, sejam
eles eruditos, vernáculos, civis, militares ou religiosos (MASCARENHAS-
-MATEUS, 2011).

5 PATRIMÔNIOS DA CAL, DE FERRO E DE


CONCRETO

Durante milênios, construiu-se com terra, com alvenarias, com madeira e


com uma multiplicidade de sistemas mistos melhorados por hibridismos
sucessivos próprios das transformações históricas e culturais de cada co-
munidade. As alvenarias feitas de blocos rígidos e de argamassas à base da
cal constituíram a base de numerosos sistemas construtivos baseados em
blocos de terra seca ou adobe, de terra cozida ou cerâmicos ou de blocos
de pedra talhada, parcialmente talhada ou irregular. Com essas grandes
classes de sistemas construtivos tradicionais foram realizadas as primeiras
aglomerações urbanas autóctones e mais tarde as construções de influência
colonial. Todas essas construções implicavam culturas próprias de extra-
ção, processamento e execução. Integravam conhecimento técnico popular
e erudito, que foi otimizado com os novos métodos permitidos pela revo-
lução industrial.
Esse patrimônio de cal foi perdendo com o tempo sustentabilidade, porque
não tanto os materiais, mas as pessoas que se encarregavam da sua manu-
tenção, conhecedoras das técnicas construtivas tradicionais, foram desapa-
recendo com as ofertas de melhor remuneração nas novas indústrias. Até à
época em que a nova cultura do concreto armado e do aço monopolizou a
atividade da construção, a manutenção da maioria desses testemunhos de
tradições construtivas seculares era garantida por um espectro importante
de profissões que faziam parte integrante do tecido social, organizados, no
caso português, segundo as hierarquias de mestres e oficiais, aprendizes e
moços e coordenados pelos vedores e condutores das obras, por empreitei-
ros e fabricadores. A título ilustrativo, é possível enunciar aqui alguns des-
ses ofícios, misteres, artes fabris ou mecânicas capazes de nos transportar

DESCONSTRUINDO POLARIDADES: HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO E


TÉCNICAS PARA A CONSERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO 153
a práticas já há muito desaparecidas e realizadas hoje por uma minoria
especializada: riscadores, traçadores, maquetistas, modeladores, alinha-
dores, delineadores, medidores, orçadores, canteiros, desbastadores, pon-
teadores, aparelhadores, escultores, cinzeladores, moldadores, alimpado-
res, alisadores, brunidores, polidores, cabouqueiros, carpinteiros de casas
(por distinção dos carpinteiros de naus), serradores, valadores, tijoleiros,
alvaneis, pedreiros, pedreiros-de-mão-cheia, trolhas, adobeiros, taipeiros,
cucharros, telheiros, ladrilheiros, ladrilhadores, lageadores, chumbeiros,
engessadores, formadores, estucadores, guarnecedores, relevadores, orna-
dores, azulejadores, vidreiros, marceneiros, marcheteiros, branqueadores,
pinceleiros, pintores, moedores, temperadores, douradores entalhadores,
sambladores, chumbeiros, serralheiros e ferreiros (ASSIS RODRIGUES,
1875).
Uma lista à qual se deve juntar a força de trabalho indiferenciada de bra-
ceiros, obreiros, carreteiros, mancebos, jornaleiros e trolhas. Dessas pro-
fissões, algumas sobreviveram à primeira fase da industrialização, outras
desapareceram e novas foram criadas, caso dos eletricistas, canalizadores,
mecânicos, maquinistas, soldadores. Face a esse mundo em parte desapare-
cido, e situando-nos nas atividades da construção dos nossos dias, é possí-
vel perguntar o que tem a ver, por exemplo, um estucador ou um guarnece-
dor de tetos de masseira de outrora com um operador de hoje ocupado em
instalar forros falsos de cartão-gesso.
Pelo que se acaba de descrever, é fácil compreender o interesse da História
da Construção em estudar melhor a história da organização do trabalho
no nível das confrarias, dos hospitais e das irmandades de ofícios, assim
como das condições sociais do grande número de profissões associadas aos
vários âmbitos construtivos. Um estudo que vai de par com o da evolução
do conhecimento técnico dos engenheiros e arquitetos, com os conteúdos
do ensino da Arquitetura e da Engenharia, mas também com a análise do
impacto social da criação dos primeiros corpos militares, academias, esco-
las militares, institutos politécnicos e universidades.
Temas como a arte do traço, o desenho, as formas de cálculo das abóbadas,
a hidráulica monástica, relações entre pensamento e projeto, similitudes e
diferenças entre a arte de construir naval e a arte de construir arquitetôni-
ca, ordenanças e posturas construtivas municipais, construções associadas à
extração mineira são outras tantas vertentes que podem ser reunidas na His-
tória da Construção. Relativamente a períodos mais recentes e relacionados,

154 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


sobretudo, com o período industrial, refira-se à pertinência do estudo da
evolução do cálculo e do projeto de edifícios e pontes, estruturas ligeiras,
brevês e patentes, materiais e estruturas pré-fabricadas, normalização, tecno-
logias ambientais (luminotecnia, acústica, térmica).
Passados quase duzentos anos desde a descoberta da produção industrial
do cimento Portland, novos patrimônios construídos foram criados com o
concreto e com o aço. Apesar da sua “juventude”, se comparada com as cul-
turas tradicionais da cal, da terra e da madeira, a nova cultura do concreto
e do aço também já teve tempo de se tornar “tradicional” e de ter dado ori-
gem a numerosos objetos e sítios arquitetônicos que hoje são reconhecidos
como herança cultural material de comunidades, povos e nações.
Por todas as razões apontadas, e porque as culturas construtivas contem-
porâneas descendem das antigas culturas tradicionais, para intervir hoje
no patrimônio é fundamental conhecer ambas as culturas, a sua gênese e
as suas transformações.

6 TÉCNICAS TRADICIONAIS E CONTEMPORÂNEAS:


O CASO DAS ALVENARIAS HISTÓRICAS

Como corolário do que foi dito anteriormente e como caso aplicativo, ve-
jamos então o caso dos antigos edifícios de alvenarias e como os antigos
princípios, regras e procedimentos executivos da sua construção podem ser
usados nas três fases principais do processo de conservação (MASCARE-
NHAS-MATEUS, 2001, p. 281-313):

a. a recolha de informação e a compreensão do edifício


histórico;
b. a decisão, as justificativas e elaboração do projeto;
c. a execução propriamente dita das intervenções sempre
que estas se revelem imprescindíveis.

Se analisadas em cada uma dessas fases, as exigências construtivas tra-


dicionais apresentam-se tão necessárias como as exigências construtivas
contemporâneas.

DESCONSTRUINDO POLARIDADES: HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO E


TÉCNICAS PARA A CONSERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO 155
No que se refere especificamente à fase de estudo e compreensão dos edifí-
cios nos seus aspectos histórico-tecnológicos, é fundamental identificar as
exigências construtivas a que um edifício antigo era suposto obedecer, das
intenções do seu construtor e daquilo que realmente foi executado. Na fase de
recolha de informação, todos os dados relativos à cultura construtiva em que
o edifício se situa podem ser utilizados sobretudo num processo comparati-
vo. Esse método comparativo consiste essencialmente em pôr em confronto:
• as regras que possivelmente eram conhecidas dos projetistas e constru-
tores do edifício original e das suas transformações;
• os elementos do projeto e da execução que eventualmente tenham sido
descobertos em arquivo;
• com o levantamento do edifício realmente realizado nos seus detalhes
de concepção geométrica e de dimensionamento, nos materiais e mé-
todos de execução e nos seus elementos protetivos.

Para esse processo cognitivo, é fundamental o uso da linguagem própria e


específica da construção das alvenarias constituída não só por elementos
gerais, como também locais, característicos do estilo, da época e da região
em que o edifício se situa. Comparativamente, será assim possível:
• avaliar o valor tecnológico do edifício, ou seja, a complexidade, a ori-
ginalidade ou a raridade das soluções estruturais, dos materiais e das
técnicas executadas na sua construção;
• avaliar a autenticidade dos diversos elementos construtivos;
• diferenciar e distinguir as diversas fases de construção;
• justificar, no todo ou em parte, a causa e origem de uma determinada
degradação baseada num deficiente dimensionamento dos seus ele-
mentos resistentes, numa escolha e utilização de materiais não apro-
priados às condições ambientais ou ao uso do edifício, numa execução
pouco cuidada ou ainda num detalhe deficiente de proteção do edifício.

Esse processo constitui uma forma de aproximação às preocupações e obje-


tivos originais do projetista e dos executantes. Compreender a gênese de um
edifício significa elaborar hipóteses suficientemente fundamentadas sobre:
• os objetivos e as exigências originais a que o edifício procurava
responder;

156 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


• os limites reais que um edifício apresenta: estéticos, geométricos, fun-
cionais, de resistência mecânica e de durabilidade.
As hipóteses obtidas usando a análise comparativa referida são úteis se fo-
rem confrontadas com as hipóteses permitidas pelos outros tipos de aná-
lise, entre as quais, a análise histórico-crítica dos diversos valores de que o
edifício é testemunho, as análises mecânicas, químicas e físicas, realizadas
in situ e em laboratório. O confronto de todos esses tipos de informação
permite justificar as decisões relacionadas com a necessidade de se intervir
ou com a necessidade de não se intervir. No caso de se decidir uma inter-
venção conservativa, esses elementos servem para basear o tipo de inter-
venção, o método e as técnicas a utilizar.
Na fase de decisão sobre se intervir, como, onde e com que objetivos, a
metodologia apresentada é também indispensável no adaptar, equilibrar e
relativizar os limites de aplicação das exigências construtivas modernas a
edifícios antigos. Compreender as preocupações dos antigos construtores
é compreender em parte aquilo que se quer e o que se deverá conservar.
As regras dos antigos construtores preocupavam-se não só em construir
bem, como em assegurar a proteção devida daquilo que tinham construí-
do, prevendo ações de manutenção periódica. Compreender os princípios
e as técnicas relativos a essa manutenção é compreender a forma como os
edifícios antigos foram preparados para serem conservados.
Uma vez alertados para a manutenção ordinária tradicional, os responsá-
veis pela preservação podem constituir-se agentes de uma filosofia corre-
ta de atuação baseada em ações de conservação preventiva, progressiva e
integrada.
O saber técnico tradicional permite, acima de tudo, justificar ações loca-
lizadas de conservação por oposição a ações de grande conservação gene-
ralizada exigidas depois de um abandono ou de uma má manutenção do
edifício, ou seja depois de uma não observância das regras de bem cons-
truir. Depois do estudo realizado, confirma-se a ideia de que a maioria dos
edifícios, mesmo aqueles que se encontram sob tutela dos Institutos do Pa-
trimônio, está de certa forma deixada ao abandono. Abandonados porque
não são sujeitos periodicamente a obras de simples manutenção dos seus
revestimentos e dos seus detalhes de proteção. São deixados ao seu destino
até que as degradações sejam vistas por um público não especializado, im-
plicando então, e frequentemente, intervenções que resultam na perda ou
na substituição de grande quantidade de material histórico.

DESCONSTRUINDO POLARIDADES: HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO E


TÉCNICAS PARA A CONSERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO 157
A manutenção periódica de um edifício em alvenaria constituía um pro-
cesso tradicionalmente realizado que, hoje, pode e deve constituir o ins-
trumento principal das ações de conservação preventiva de que tanto se
tem falado em relação a objetos móveis, mas pouco em relação aos objetos
imóveis.
A essas ações periódicas, deve ser associado o conceito da intervenção pro-
gressiva, realizada de forma gradual e faseada, destinada a avaliar a eficácia
de uma primeira intervenção e a necessidade de intervenções futuras mais
intrusivas. Para essas ações, não basta o conhecimento das técnicas tradi-
cionais: é fundamental o projeto e o uso de técnicas contemporâneas de
observação e monitorização do comportamento mecânico, físico ou quí-
mico das alvenarias.
Por outro lado, o conhecimento dos ciclos de degradação dos diversos ma-
teriais constituintes de um edifício permite ponderar e prever convenien-
temente as diversas ações destinadas a integrar a conservação dos diversos
materiais.
A consideração das técnicas tradicionais na fase de avaliação e decisão po-
derá, se associadas a esses diversos conceitos, basear e justificar a mínima
intrusividade das intervenções, ou mesmo a sua não necessidade, contri-
buindo para a preservação de parte considerável de materiais históricos.
Por outro lado, e para além do tipo de contributos destas técnicas para pro-
cessos conservativos e de restauro, conclui-se, ainda, que o conhecimento
das técnicas tradicionais deve ser devidamente dosado. O seu uso não deve
servir para a sua “exaltação” ou para entrar em “competição” com as técni-
cas modernas, nem para ações de intervenção de “correção” dos edifícios
“à maneira da regra de arte”.
Pelo fato de um edifício resultar da aplicação de um sistema coerente de
materiais e técnicas, utilizando em parte uma linguagem geral e em parte
uma linguagem específica, constitui por si só um documento único de um
determinado “saber construir”, sendo fundamental para a sua preservação
o “reconhecimento”, a “redescoberta” e a “revalorização” das regras e das
diretivas usadas na sua construção.
O “valor tecnológico” não é o único valor de que o edifício é testemunho,
mas, sim, um de entre tantos outros valores a ter em conta. As regras e as
técnicas tradicionais devem simplesmente constituir um domínio do conhe-
cimento a considerar conjuntamente com as regras e as técnicas contemporâ-
neas e os outros instrumentos da atividade histórico-crítica da conservação.

158 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


O critério de coerência construtiva pode induzir facilmente à filosofia de
restauro como correção e não é eticamente possível corrigir a complexida-
de histórica e a complexidade tecnológica dos antigos edifícios que a pre-
sente obra serviu para identificar. As técnicas tradicionais devem, antes de
mais nada, servir para garantir a estabilidade e a durabilidade, sem alterar
quaisquer equilíbrios químicos e mecânicos.
Na fase de intervenção, seja ela de simples manutenção periódica ou de
reforço e consolidação, o conhecimento das técnicas tradicionais permite
atuar de forma muito mais consciente e conhecedora em zonas localizadas
ou em todo o edifício, de forma isolada ou em associação com técnicas
modernas. Os casos práticos de possível aplicação dessas técnicas são inú-
meros, e a diversidade de situações possíveis é também vasta. Cada edifício
é um caso, e não existe uma resposta única na comparação de técnicas an-
tigas e modernas.
É, no entanto, possível estabelecer algumas conclusões sobre a necessi-
dade de relativizar e integrar o conhecimento tradicional no tratamento
contemporâneo dos materiais básicos das alvenarias. Saber manipulá-los
e aplicá-los de forma tradicional significa saber produzir, receber, adaptar
e aplicar, em edifícios antigos, os materiais de concepção contemporânea
mais ou menos artesanal.
Considerando que a produção e a aplicação da maioria dos materiais tradi-
cionais foram, em grande parte, mecanizadas e industrializadas, é impor-
tante incentivar a criação ou a preservação das produções artesanais desti-
nadas especificamente à atividade da conservação, distintas das produções
industriais destinadas a construções novas.
No caso, por exemplo, da produção de blocos de pedra, e apesar de grande
parte da sua extração e talhe poder ser feita de forma mecânica, só o co-
nhecimento das exigências tradicionais relacionadas com a estereotomia e
com os antigos instrumentos de acabamento poderão fazer com que blocos
talhados nos nossos dias possam vir a fazer parte de uma alvenaria antiga,
de forma coerente e compatível.
Para os tijolos, a conclusão é de natureza idêntica, sendo, nesse caso, fun-
damental conhecer as diferenças entre as limitações dos processos tradi-
cionais e os erros em que é possível incorrer atualmente por um excesso de
industrialização.
Finalmente, no caso das cais, é possível constatar como, com a produção
industrial, progrediu em termos de normalização dos processos produtivos

DESCONSTRUINDO POLARIDADES: HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO E


TÉCNICAS PARA A CONSERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO 159
e dos níveis de qualidade. Por outro lado, constata-se como foram perdidas
diversas práticas tradicionais, como a extinção das cais em estaleiro ou a
utilização das cais em pasta. Conhecendo estas diferenças entre práticas
tradicionais e produções industriais contemporâneas, é possível aproximar
as cais modernas às cais destinadas a serem aplicadas em antigas alvena-
rias. Essa aproximação deve ser feita tendo essencialmente em considera-
ção os tempos de aplicação diversos dos necessários para materiais novos, o
que implica ajustamentos dos cronogramas e das tarefas dos trabalhos que
incluam o uso de materiais tradicionais. Num sentido mais generalizado,
é possível propor o estudo analítico e laboratorial das técnicas tradicionais
de construção, de modo a aprofundar a avaliação dos seus desempenhos e
prosseguir no caminho da sua otimização.

7 ALGUMAS CONCLUSÕES

A identificação do valor tecnológico de um edifício histórico passa, antes de


tudo, por avaliar a cultura construtiva com que ele foi realizado. Para esse
exercício indispensável aos processos de preservação e restauro, é fundamen-
tal conhecer as culturas construtivas do passado e, com elas, os métodos, os
materiais, as técnicas e a organização do trabalho usados em determinados
períodos históricos e em localizações geográficas específicas. O valor tecno-
lógico não é, assim, apenas um valor ligado à materialidade da obra, mas
também ao seu simbolismo e ao conhecimento usado na sua execução.
As técnicas das culturas baseadas na cal como ligante, na terra ou na ma-
deira – denominadas hoje genericamente de culturas tradicionais – impli-
cam a reciclagem de materiais e a utilização de recursos locais com uma
pegada ecológica baixa, garantindo com frequência maior sustentabilidade
ambiental, se comparadas com as técnicas construtivas contemporâneas.
A formação do arquiteto-conservador deve, pois, ser especialmente conhe-
cedora não só das técnicas mais recentes de construção e restauro, mas
também das culturas construtivas do passado, das suas techné e das suas
métis. Essa formação se traduzirá numa abordagem livre de dualismos
redutores entre polaridades, como técnica-tecnologia, renovação-conser-
vação, criatividade-imitação, tão comuns nos discursos detratores da me-
todologia conservativa. Esse posicionamento deve, no entanto, ser sempre

160 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


consciente da essência do objeto técnico e das suas dificuldades de leitura
e interpretação.
Em ações de preservação e restauro, não existem técnicas “boas” ou “más”.
O conjunto de técnicas à disposição de quem intervém no patrimônio deve
ser o mais amplo possível e incluir técnicas tradicionais e contemporâneas
necessárias e indispensáveis para a preservação da integralidade da matéria
histórica e dos valores que os edifícios e sítios históricos testemunham.
Para se conseguir identificar e justificar a escolha da melhor técnica e da
sua forma aplicativa, é importante colocarmo-nos na posição do “antigo
construtor” do objeto arquitetônico, entender a sua formação, as limitações
de recursos necessários à edificação, a forma de extração e processamento
dos materiais, as técnicas usadas, as fases construtivas, as preocupações
com a sua imagem final e os dispositivos de proteção e manutenção dei-
xados in situ para assegurar a sua durabilidade. Aliar, pois, a história da
construção à metodologia da conservação surge como uma necessidade
metodológica incontornável.
Transmitir os valores materiais e imateriais de um monumento às próxi-
mas gerações implica, entre muitas outras tarefas, identificar e preservar
o conhecimento técnico e tecnológico que ele representa, atravessando, se
necessário, as fronteiras epistemológicas de disciplinas instituídas para co-
locar, de forma precisa e justificada, a combinação de técnicas e materiais
ao serviço da preservação máxima e otimizada da sua integridade material
e simbólica.

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162 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E URBANO


Sobre o livro
Formato 15,5 x 23 cm
Tipologia Minion Pro (texto)
Avenir LT Std (títulos)
Projeto Gráfico Canal 6 Editora
www.canal6.com.br
Capa e Diagramação Erika Woelke

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