Convivência Social Frankl

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FRATELLI TUTTI OU TRATADO

DA CONVIVÊNCIA SOCIAL:
UM DIÁLOGO COM O PENSAMENTO
DE VIKTOR FRANKL*
Thiago Avellar Aquino**

Resumo: a busca por uma sociedade fraterna fundamentada no amor e na abertura para
o próximo é o tema da encíclica do Papa Francisco, Fratelli Tutti. Assim, apon-
ta para uma cultura do encontro, para alcançar a paz mundial. Da mesma ma-
neira, encontramos o pensador vienense Viktor Frankl, que foi um sobrevivente
dos campos de concentração durante a II Guerra Mundial, e propôs uma visão
de unidade da humanidade, respeitando a diversidade cultural. Seguindo os
passos desses dois pensadores, o presente ensaio articulou as ideias de Frankl
e Papa Francisco com o intuito de promover um diálogo profícuo, a fim de
encontrar pontos convergentes para a convivência social do mundo atual. Em
conclusão, verificou-se uma complementaridade e harmonia de ideias e ações
que promovem uma fraternidade universal.

Palavras-chave: Cultura do encontro. Sentido da vida. Fraternidade universal.

Amar significa ver a outra pessoa assim


como Deus a pensou.
(Fiódor Dostoiévski)

O
objetivo do presente artigo foi realizar uma análise da encíclica do Papa Francis-
co acerca da fraternidade e amizade social à luz do pensamento de Viktor Frankl.
Para tanto, utilizou-se a Logoterapia e Análise Existencial como marco teórico
–––––––––––––––––
* Recebido em: 29.06.2021. Aprovado em: 28.10.2021.
** Doutor e Mestre em Psicologia (UFPB). Professor do departamento de Ciências das Reli-
giões e da Pós-Graduação em Ciências das Religiões (UFPB). Coordenador do Laboratório
de Pesquisa em Logoterapia e Análise Existencial (LAPLE, CNPq). E-mail: logosvitae@
hotmail.com

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para clarificar a estrutura textual da Encíclica Fratelli Tutti. De forma geral, a en-
cíclica em questão analisa a situação do mundo atual e propõe uma comunidade
mundial baseada no bem comum. Dessa forma, aponta novas alternativas para
uma cultura de paz e propõe diretrizes de ações. Em suas palavras, Francisco
(2002, p. 29) desejou “[...] dar voz a diversos caminhos de esperança”.
Com o intuito de apreender o sentido desse documento, a pergunta norteadora do artigo
foi: quais os pontos de convergência entre a Encíclica Fratelli Tutti e o pensa-
mento de Viktor Frankl? Considerou-se relevante a presente pesquisa, posto
que se trata de um documento norteador para as relações humanas, pautado na
fraternidade e amizade social entre culturas e nações; e, de forma específica,
com enfoque no migrante. Destarte, compreende-se que tal perspectiva trans-
cende o seu caráter eminentemente religioso, adentrando uma via humanística,
a qual constitui o seu ponto fulcral.
A Carta Encíclica em estudo foi inspirada em uma citação de São Francisco de Assis:
Fratelli Tutti, ou seja, todos irmãos, bem como motivada por figuras históri-
cas que trabalharam para a paz e a favor da promoção humana, como Martin
Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Gandhi e Charles de Foucauld. Dessa
forma, em última análise, o documento se constitui como uma pedra fun-
damental para a base da fraternidade humana e amizade social nos tempos
atuais. O ideal de uma fraternidade universal não é recente; diversos pensado-
res, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, defenderam uma postura que
considera a perspectiva do outro – acolher o contraditório – e apregoaram uma
unidade humana, conforme expressou Jaspers (2018, p. 10), “nós somos um
conjunto; precisamos sentir nossa causa comum quando dialogamos”.
No contexto pandêmico da Covid-19, constatou Francisco (2020, p. 21):

A tribulação, a incerteza, o medo e consciência dos limites, que a pandemia


despertou, fazem ressoar o apelo a repensar os nossos estilos de vida, as nossas
relações, a organização das nossas sociedades e, sobretudo, o sentido da nossa
existência.

Ainda nessa direção, rogou por uma unidade da humanidade para o mundo pós-pande-
mia: “no fim, oxalá, já não existam ‘os outros’, mas apenas um nós” (FRAN-
CISCO, 2020, p. 21). Considerando as solicitações de uma nova sociedade
pautada em uma cultura de paz e em um mundo mais humano e inclusivo,
torna-se necessário fazer algumas pontuações acerca de uma unidade huma-
na, apesar das diversidades culturais que possam conduzir a uma convivência
social salvífica. Por meio da nuvem de palavras (Figura 1) extraída a partir do
texto da Encíclica papal, constata-se que a palavra mais frequente é “pessoa”,
que se repete 153 vezes, seguida por humano (142 vezes) e dever (114 vezes).

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Figura 1: Nuvem de palavras da Encíclica Fratelli Tutti
Fonte: Figura gerada a partir do software gratuito Iramuteq: http://www.iramuteq.org

O traço humanístico que perpassa o texto se retrata na defesa da dignidade humana.
Conforme prescreve: “que todo ser humano possui uma dignidade inalienável
é uma verdade que corresponde à natureza humana, independentemente de
qualquer transformação cultural” (FRANCISCO, 2020, p. 105).
De forma similar, Viktor Emil Frankl foi um defensor da dignidade humana, compreendendo
o ser humano a partir do seu núcleo espiritual/existencial e sua busca de sentido na
vida. Em suas obras, embora tenha tratado do campo da psicoterapia, apresenta uma
preocupação com a dimensão social – como a cultura do vazio – e aponta proposi-
ções para uma cultura de paz, conforme sugerem Aquino, Cruz e Gomes (2019).
Assim, justifica-se plenamente a aproximação entre Francisco e Frankl. Porém, antes
de aprofundar-nos em suas convergências, torna-se necessário discorrer brevemente
acerca da relação entre a logoterapia e a religião, o que será abordado a seguir.

LOGOTERAPIA E RELIGIÃO

A logoterapia é um sistema de psicoterapia existencial baseada em sólidos fundamen-


tos antropológicos e contribui de forma significativa com a área da psicologia

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da religião. Conforme adverte Frankl (2015), a religião deve ser considerada
um objeto, não um posicionamento da logoterapia. Ademais, os objetivos da
psicoterapia e da religião são distintos: enquanto a primeira se ocupa da cura
da alma, a segunda se fixa na salvação da alma. Embora não se confundam, a
logoterapia se inclina para o homem religioso apenas na medida em que a pa-
lavra Logos quer significar tanto sentido quanto espírito. Entretanto, adverte:
“Por espírito entendemos a dimensão dos fenômenos especificamente huma-
nos, e, em contraposição ao reducionismo, a logoterapia se recusa a reduzi-los
a fenômenos sub-humanos ou a deduzi-los destes” (FRANKL, 2015, p. 87).
Dessa forma, por um lado a Logoterapia não reduz a vontade do sentido último da vida,
muito menos considera o fenômeno religioso como um subproduto ou epife-
nômeno; por outro, não força o ser humano a entrar pela porta da religião ou a
aderir a uma cosmovisão religiosa.
No entanto, indubitavelmente o sentido último da vida é uma preocupação humana.
Frankl (1992, p. 90) aventou que “[...] quanto mais amplo for o sentido, menos
compreensível ele se torna”. Nesse sentido, seria impossível captá-lo por meio
da razão, mas poderia ser intuído por via da fé. A religião, por sua vez, seria
análoga à diversidade idiomática – apesar da sua multiplicidade, possuem um
alfabeto em comum. Nesse caminho, trouxe que:

Ninguém pode dizer que a sua língua seja superior às outras; em cada língua o
ser humano pode chegar à verdade – à mesma verdade uma, e em cada língua
ele pode errar e até mentir. Assim, também por meio de qualquer religião ele
pode encontrar Deus, o Deus uno (FRANKL, 1992, p. 63).

Em sua própria vivência, Frankl teve uma postura de abertura para o diálogo inter-reli-
gioso. Embora fosse judeu, Viktor Frankl participou de uma audiência com o
Papa Paulo VI, juntamente com a sua esposa Eleonore Katarine, que era católi-
ca. Sobre esse encontro, relata em seu livro de memórias: “o papa reconheceu
a importância da Logoterapia não só para a Igreja católica, mas para toda a
humanidade” (FRANKL, 2010, p. 149), no final do encontro, segundo relatou,
o Papa teria dito a Frankl: “por favor, reze por mim”. Tendo em conta esse
espírito de fraternidade, o próximo tópico aborda a perspectiva da unidade da
humanidade, posto que foi uma preocupação de ambas as personalidades.

UNIDADE DA HUMANIDADE

Viktor Frankl foi um prisioneiro e sobrevivente dos campos de concentração durante


a Segunda Guerra Mundial. Em suas reflexões em um mundo permeado de
conflitos bélicos, chegou à conclusão de que:

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[...] o amor é, de certa forma, o bem último e supremo que pode ser alcança-
do pela existência humana. Compreendo agora o sentido das coisas últimas e
extremas que podem ser expressas em pensamento, poesia – e em fé humana: a
redenção pelo amor e no amor! (FRANKL, 2008, p. 55).

Em seu clássico livro Em busca de sentido, já vislumbrava que, para uma convivência
no pós-guerra, seria necessária uma mudança de postura em relação à convi-
vência social. Por esse motivo, compreendia que aquele que foi injustiçado
não teria o direito de imprimir injustiça (FRANKL, 2008), alertando, dessa
forma, que a vingança não seria uma escolha adequada para a construção de
um mundo mais belo.
Para o referido autor, o ser humano é um ser ontologicamente aberto para o mundo, ou
seja, aberto para a comunidade humana, isto é, o ser humano é um ser auto-
transcendente. Conforme define:

Autotranscendência assinala o fato antropológico fundamental de que a existên-


cia do homem sempre se refere a alguma coisa que não ela mesma – a algo ou
alguém, isto é, a um objetivo por ser alcançado ou uma existência de uma outra
pessoa que ele encontre (FRANKL, 1991, p. 18).

Tal definição se aproxima da visão acerca da “gratuidade” descrita pela encíclica Fra-
telli Tutti como: a capacidade de fazer alguma coisa simplesmente porque são
boas em si mesmas, sem preocupação com ganhos ou recompensas pessoais”
(FRANCISCO, 2020, p. 70), o que demonstra uma postura de abertura para
todos. Ademais, o pensador vienense compreende uma relação dialética entre
indivíduo e comunidade. Por conseguinte, “[...] apenas a comunidade garante
o sentido de individualidade dos indivíduos, mas também que apenas a indi-
vidualidade consciente garante aos indivíduos um sentido de comunidade1”
(FRANKL, 2018, p. 183).
Para o autor em baila, o ser humano seria imperfeito e, por esse motivo, complementar-
se-ia na comunidade humana – portanto, tornar-se-ia um ente irrepetível e
insubstituível. Como um ser referido à comunidade, assemelha-se a um mosaico,
que é constituído por pequenas pedras singulares e imperfeitas, dessa forma, o
sentido de cada fragmento se realiza em sua totalidade (FRANKL, 1989a). De
forma similar, intuiu Francisco (2020, p. 90): “Cada um é plenamente pessoa
quando pertence a um povo e, vice-versa, não há um verdadeiro povo sem
referência ao rosto da pessoa”.
A despeito disso, a encíclica de Francisco exorta uma cultura do encontro, e, assim
como Frankl se utiliza do mosaico como uma metáfora da comunidade, o tex-
to Fratelli Tutti apresenta como símbolo o poliedro: “[...] tem muitas faces,

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muitos lados, mas todos compõem uma unidade rica de matizes [...]” (FRAN-
CISCO, 2020, p. 106). Nesses termos, o sentido social da existência nem se
constitui no vácuo, nem apenas no indivíduo de forma isolada, mas o encontra
na relação do ser humano com o mundo, em sua morada comum.
Por esse motivo, Frankl (1989a) compreendeu o ser humano como um ente conscien-
te e responsável. Esse último aspecto deriva sobretudo da cultura judaica,
conforme se encontra no livro Rumo a uma vida significativa, de Schneerson
(2007, p. 192):

[...] Deus nos criou por uma razão – para perseguir ativamente uma vida virtuo-
sa e aperfeiçoar esse mundo imperfeito. Para esta finalidade, a responsabilidade
é uma necessidade humana básica, assim como o alimento e o oxigênio; não
podemos preencher ou justificar nossa existência sem ela.

Este senso de responsabilidade foi mais aguçado depois de dois eventos da História: os
campos de extermínio de Auschwitz e a bomba atômica de Hiroshima. O autor
em foco fez um alerta para o futuro da humanidade ao considerar o que o ser
humano seria capaz e o que de fato está em jogo. Portanto, apela para a res-
ponsabilidade comum ao alertar que “[...] o mundo está numa situação ruim.
Porém, tudo vai piorar ainda mais se cada um de nós não fizer o melhor que
puder” (FRANKL, 2008, p. 175).
Igualmente, a encíclica também relembra a Shoah como a manifestação da extrema
maldade humana, quando se opaca a dignidade inviolável do ser humano, as-
sim como foi nos casos das bombas atômicas lançadas em Hiroshima e Na-
gasaki, bem como no comércio escravagista e nos demais massacres étnicos
ocorridos na História.
Nessa direção, não apenas caberia, no aqui e agora da História, fazer o melhor nas
relações interpessoais e internacionais, como também promover atenuações
nas tensões inter-religiosas. Sobre este último aspecto, adverte o autor que a
“rigidez” dogmática do ser humano religioso poderia conduzir ao fanatismo, o
que os impediria de estender as mãos aos seus irmãos. Já a “firmeza” na fé es-
taria em consonância com a atitude de tolerância e tornaria as mãos livres para
acolher o seu próximo (FRANKL, 1978, p. 280). Segundo Francisco (2020), o
fanatismo se prolifera nos dias atuais também por pessoas religiosas, inclusive
os cristãos, promovendo lógicas rígidas e fragmentações sociais, expresso por
agressões verbais que objetivam destruir os outros. Assim, ele alerta que “é
verdade que as diferenças geram conflitos, mas a uniformidade gera asfixia e
neutraliza-nos culturalmente” (p. 95).
Ademais, o fanático, segundo Frankl (1990), não admite a diversidade de pensamentos,
portanto descarta o que lhe parece diferente. Para desenvolver uma postura de

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tolerância e humildade, o autor faz a seguinte proposição: “somente pode ha-
ver uma verdade; mas ninguém pode saber se é ele e não outro que a possui”
(FRANKL, 1992, p. 68). Da mesma maneira, por não saber com quem estaria
a “verdade”, nenhuma religião poderia se colocar em uma postura de supe-
rioridade em relação às demais. Se a fé, conforme compreende o autor, “[...]
é uma maneira de pensar à qual se acrescentou a existência de um pensador”
(FRANKL, 1992, p. 84), logo, o mais importante não seria o caminho, mas a
meta proposta pelo pensador (FRANKL, 1978).
Para chegar a uma proposta de uma cultura de paz pautada na tolerância, a encíclica
de Francisco propõe a via do diálogo social como uma condição necessária.
Conforme concebe: “O diálogo social inclui a capacidade de respeitar o ponto
de vista do outro, admitindo a possibilidade de que nele contenha convicções
ou intenções legítimas” (FRANCISCO, 2020, p. 101).
Para a constituição de uma cultura de paz, Frankl (1989a) propõe que a humanidade
descubra um sentido único. A mesma prescrição poderia ser equivalente para
a diversidade religiosa, posto que deveria olhar para a meta que possui em co-
mum, o que poderia se constituir em uma via para a consciência do sentido de
uma única humanidade. A essa proposição Frankl denominou de “monantro-
pismo”, ou seja, a crença em uma única humanidade respeitando a diversidade
cultural. Assim asseverou:

Há milhares de anos, a humanidade desenvolveu o monoteísmo. Hoje, um outro


passo se faz exigir. Eu o chamaria de “monantropismo”. Não à crença em um
Deus único, mas, mais do que isso, a consciência da unidade do gênero huma-
no; uma unidade sob cuja luz as diferentes cores de nossa pele desapareceriam
(FRANKL, 2011, p. 124).

Assim, pode-se deduzir a seguinte fórmula: Monantropismo + Sentido único = so-


brevivência da humanidade. Essa fórmula ajudaria a reconhecer que cada ser
humano é chamado para ser responsável pela consecução de uma humanidade
mais humana que valorize e respeite a diversidade e multiplicidade cultural
e religiosa em uma unidade fraterna. Ademais, a descoberta de uma unidade
na multiplicidade humana requer um outro passo, a descoberta de um sentido
único, como a construção de uma cultura de paz.
Nessa esteira, Francisco (2020) aventou que a via para uma fraternidade universal seria
aceitar a diversidade e superar o fanatismo por meio do amor, do diálogo e
da gratuidade. Em última análise, a Carta Encíclica Fratelli Tutti, preocupada
com a sobrevivência da espécie humana, indicou que a salvação da humanida-
de seria coletiva e não individual, e propôs uma fraternidade humana multico-
lorida e não uniforme e unidimensional. Assim expressou:

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O amor que se estende para além das fronteiras está na base daquilo que cha-
mamos “amizade social” em cada cidade ou em cada país. Se for genuína, essa
amizade social dentro de uma sociedade é condição para possibilitar uma ver-
dadeira abertura universal (FRANCISCO, 2020, p. 50).

De forma similar, Frankl (1990) considera que amar significa tanto dizer tu a alguém quan-
to dizer sim a uma pessoa, dessa forma, reconhece tanto a sua unicidade quanto
o seu valor. Ademais, o amor é uma das características do fenômeno humano
denominado de autotranscendência, aquela característica humana de abertura
para o mundo/comunidade, para uma causa e/ou para outras pessoas distintas
de si mesmo (FRANKL, 1989a).
Portanto, constata-se que a encíclica prescreve diálogos plurais pautados em uma con-
cepção da fraternidade universal, conforme o ideal do monantropismo de Vi-
ktor Frankl. Tendo em vista as considerações acima explanadas, considera-se
plausível apontar as proposições comuns dos dois pensadores para o caminho
da convivência social.

CONVIVÊNCIA SOCIAL: CAMINHOS E PROPOSIÇÕES

A carta de Francisco sobre a fraternidade e amizade social, escrita para o mundo, pau-
ta-se em uma pedagogia do encontro e do diálogo, e apela à paz, à justiça e à
fraternidade entre cristãos e não cristãos, entre religiosos e não religiosos; de-
nuncia os comportamentos de exclusão e indiferença com os que mais sofrem,
e critica as posturas da cultura do descarte e do fundamentalismo religioso, já
que o fanatismo leva à destruição dos outros, do diferente, o que denominou de
“agressividade despudorada”. Assim, alerta que “a verdade é que a violência
não encontra fundamento algum nas convicções religiosas fundamentais, mas
nas suas distorções” (FRANCISCO, 2020, p. 139). Por exemplo, no contexto
brasileiro ainda se encontram atos agressivos contra as religiões de matrizes
africanas e indígenas, estimuladas por preconceitos e estereótipos por parte
daqueles que aderiram a uma mentalidade fundamentalista. Ora, se as religi-
ões apregoam o amor universal e a regra de ouro, com que direito as pessoas
teriam em destruir templos e demonizar os ritos afro-indígenas?
Ademais, em lugar da vingança e violência, a encíclica aponta a uma postura de re-
conciliação e perdão, para romper os círculos viciosos, posto que a violência
apenas reforça a violência, assim como o ódio reforça o ódio. Nesses termos,
compreende que “[...] a vingança nunca sacia verdadeiramente a insatisfação
das vítimas” (FRANCISCO, 2020, p. 123).
Ademais, Francisco, além de denunciar, anunciou também a esperança a partir dos
modelos positivos de humanidade, conforme segue:

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[...] não me refiro só a memória dos horrores, mas também à recordação da-
queles que, em meio a um contexto envenenado e corrupto, foram capazes de
recuperar a dignidade e, com pequenos ou grandes gestos, optaram pela solida-
riedade, o perdão, a fraternidade (FRANCISCO, 2020, p. 123).

Nessa esteira, Frankl (1989b) propõe, para alcançar o perdão reconciliador, a separa-
ção entre o sujeito e o objeto de ódio como um caminho da reconciliação e do
perdão. Assim, pode-se amar a pessoa e odiar o objeto que ela internalizou.
Segundo o mesmo autor, é possível amar (a pessoa) e odiar (o objeto) ao mes-
mo tempo. Na perspectiva do texto Fratelli Tutti, observa-se uma ideia similar:

Somos chamados a amar a todos, sem exceção, mas amar um opressor não
significa consentir que continue a oprimir, nem o levar a pensar que é aceitável
o que faz. Pelo contrário, amá-lo corretamente é procurar, de várias maneiras,
que deixe de oprimir, tirar-lhe o poder que não sabe usar e que o desfigura como
ser humano (FRANCISCO, 2020, p. 118).

De tal modo, Frankl se posicionou contra a culpa coletiva no pós-guerra, pois com-
preendia que se poderia encontrar pessoas decentes e indecentes em qualquer
grupo. O autor ainda cita o seguinte relato referente a essa época:

Naquela época, eu escondi no meu apartamento um colega de profissão que ti-


nha algum destaque na juventude hitlerista, e que me disse estar sendo persegui-
do pela polícia para ser colocado diante de um júri popular – cujo veredicto era
somente liberdade ou pena de morte. Desse modo, mantive-o longe dos tribunais
(FRANKL, 2010, p. 122).

Medos e rancores podem conduzir ao desejo da vingança, nessa direção, Francisco


(2020) alerta que a pena de morte seria uma maneira de eliminar alguém da
comunidade e do convívio humano, o que reforçaria a “cultura do descarte”.
Dessa forma, o ser humano deveria ter o direito de expiar a sua própria culpa,
conforme pensa Frankl (1978), sem esquecer que é imperativo preservar a sua
dignidade e o considerar como um fim em si mesmo. A Fratelli Tutti se opõe
inequivocamente a pena capital ao defender a dignidade incondicional do ser
humano e advogar o direito de todos partilharem a casa comum, afinal a vin-
gança nunca será sinônimo de justiça e reparação.
Ademais, a proposição para uma cultura do encontro poderia ser manifesta também por
meio da compaixão e do olhar do próximo. No caso do homem religioso, ainda
estaria sob o olhar de Deus (FRANKL, 1992). Conforme Frankl relata em suas
experiências nos campos de trabalho forçado durante a Segunda Guerra:

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Lembro-me que, um dia, um capataz (não-prisioneiro) furtivamente me passou
um pedaço de pão. Eu sabia que ele só poderia tê-lo poupado de seu desjejum.
O que me abalou a ponto de derramar lágrimas não foi aquele pedaço de pão
em si, e sim o afeto humano que esse homem me ofereceu naquela ocasião, a pa-
lavra e o olhar humanos que acompanharam a oferta (FRANKL, 2008, p. 112).

Em outro momento, Frankl relata o olhar de um prisioneiro no barracão de enfermos,
quando ele tinha planos para fugir do campo e foi indagado se iria “cair fora”.
Conforme o seu relato, diz: “[...] não consigo mais afastar-me dele, do seu
olhar. Após a visitação, volto para ele. E mais uma vez se fixa em mim aquele
olhar sem esperança” (FRANKL, 2008, p. 79).
A encíclica enfatiza essa mesma postura de compaixão em relação ao migrante, res-
peitando a sua idiossincrasia cultural por meio dos verbos: “acolher, proteger,
promover e integrar”. Assim, o olhar do tu deve mobilizar posturas de empatia
e fraternidade que promovam uma autêntica compaixão e amizade social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente ensaio analisou a encíclica Fratelli Tutti do Papa Francisco, à luz do pensa-
mento de Viktor Frankl. Constatou-se uma complementaridade entre os dois
pensadores, embora a encíclica não aponte, em seu bojo, a logoterapia do
psiquiatra e filósofo vienense. Ambos se preocupam com a unidade da huma-
nidade, bem como a sua sobrevivência e convivência fraterna. Alertam para
os perigos da guerra e sugerem o perdão e a reconciliação como um caminho
legítimo para a construção da paz.
Compreendeu-se, por meio desse manuscrito, que a ideia de monantropismo, o ideal
de uma humanidade única, deveria ser almejada tanto no âmago das religiões
e do homem religioso quanto no coração das pessoas não religiosos, na busca
da utopia de um mundo mais humano, que respeite as diferenças individuais
e as diversidades culturais. Afinal, o ser humano se complementa na medida
em que convive fraternalmente na sua comunidade. De forma geral, pode-se
concluir que a relação dialógica fraterna seria a chave da compreensão para a
consciência de uma unidade fraterna que almeje o bem comum.

FRATELLI TUTTI OR SOCIAL RELATIONSHIP TREATY: A DIALOGUE WITH


VIKTOR FRANKL’S THOUGHTS 
  
Abstract: the search for a fraternal society based on love and openness to others is the
theme of Pope Francis’s encyclical, Fratelli Tutti. Thus, it points to the culture
of meeting to achieve world peace. Similarly, we find the Viennese thinker Vik-

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tor Frankl, who was a survivor of the concentration camps during World War
II, and proposed a vision of the unity of humanity, respecting cultural diver-
sity. Following in the thought of these two thinkers, this essay articulated the
ideas of Frankl and Pope Francis to promote a fruitful dialogue, in order to
find points of convergence for social coexistence in the current world. In con-
clusion, there was a complementarity and harmony of ideas and actions that
promote universal fraternity. 

Keywords: Culture of meeting. Meaning of life. Universal fraternity.

Nota
1 Solamente la comunidad garantiza el sentido de la individualidad de los individuos, pero tam-
bién que solo la individualidad consciente garantiza a los individuos el sentido de comunidad.

REFERÊNCIAS
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mo e movimento para a paz no pensamento de Viktor Frankl. Interações, Belo Horizonte,
v. 16, n.16, p. 297-314, 2019. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/interaco-
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SCHNEERSON, Menachem Mendel. Rumo a uma vida significativa: a sabedoria do Rebe Me-
nachem Mendel Schneerson. Tradução: Benjamin Albagli Neto. São Paulo: Maayanot, 2007.

675 , Goiânia, v. 19, n. 3, p. 664-675, 2021.

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