Convivência Social Frankl
Convivência Social Frankl
Convivência Social Frankl
DA CONVIVÊNCIA SOCIAL:
UM DIÁLOGO COM O PENSAMENTO
DE VIKTOR FRANKL*
Thiago Avellar Aquino**
Resumo: a busca por uma sociedade fraterna fundamentada no amor e na abertura para
o próximo é o tema da encíclica do Papa Francisco, Fratelli Tutti. Assim, apon-
ta para uma cultura do encontro, para alcançar a paz mundial. Da mesma ma-
neira, encontramos o pensador vienense Viktor Frankl, que foi um sobrevivente
dos campos de concentração durante a II Guerra Mundial, e propôs uma visão
de unidade da humanidade, respeitando a diversidade cultural. Seguindo os
passos desses dois pensadores, o presente ensaio articulou as ideias de Frankl
e Papa Francisco com o intuito de promover um diálogo profícuo, a fim de
encontrar pontos convergentes para a convivência social do mundo atual. Em
conclusão, verificou-se uma complementaridade e harmonia de ideias e ações
que promovem uma fraternidade universal.
O
objetivo do presente artigo foi realizar uma análise da encíclica do Papa Francis-
co acerca da fraternidade e amizade social à luz do pensamento de Viktor Frankl.
Para tanto, utilizou-se a Logoterapia e Análise Existencial como marco teórico
–––––––––––––––––
* Recebido em: 29.06.2021. Aprovado em: 28.10.2021.
** Doutor e Mestre em Psicologia (UFPB). Professor do departamento de Ciências das Reli-
giões e da Pós-Graduação em Ciências das Religiões (UFPB). Coordenador do Laboratório
de Pesquisa em Logoterapia e Análise Existencial (LAPLE, CNPq). E-mail: logosvitae@
hotmail.com
Ainda nessa direção, rogou por uma unidade da humanidade para o mundo pós-pande-
mia: “no fim, oxalá, já não existam ‘os outros’, mas apenas um nós” (FRAN-
CISCO, 2020, p. 21). Considerando as solicitações de uma nova sociedade
pautada em uma cultura de paz e em um mundo mais humano e inclusivo,
torna-se necessário fazer algumas pontuações acerca de uma unidade huma-
na, apesar das diversidades culturais que possam conduzir a uma convivência
social salvífica. Por meio da nuvem de palavras (Figura 1) extraída a partir do
texto da Encíclica papal, constata-se que a palavra mais frequente é “pessoa”,
que se repete 153 vezes, seguida por humano (142 vezes) e dever (114 vezes).
LOGOTERAPIA E RELIGIÃO
Ninguém pode dizer que a sua língua seja superior às outras; em cada língua o
ser humano pode chegar à verdade – à mesma verdade uma, e em cada língua
ele pode errar e até mentir. Assim, também por meio de qualquer religião ele
pode encontrar Deus, o Deus uno (FRANKL, 1992, p. 63).
Em sua própria vivência, Frankl teve uma postura de abertura para o diálogo inter-reli-
gioso. Embora fosse judeu, Viktor Frankl participou de uma audiência com o
Papa Paulo VI, juntamente com a sua esposa Eleonore Katarine, que era católi-
ca. Sobre esse encontro, relata em seu livro de memórias: “o papa reconheceu
a importância da Logoterapia não só para a Igreja católica, mas para toda a
humanidade” (FRANKL, 2010, p. 149), no final do encontro, segundo relatou,
o Papa teria dito a Frankl: “por favor, reze por mim”. Tendo em conta esse
espírito de fraternidade, o próximo tópico aborda a perspectiva da unidade da
humanidade, posto que foi uma preocupação de ambas as personalidades.
UNIDADE DA HUMANIDADE
Em seu clássico livro Em busca de sentido, já vislumbrava que, para uma convivência
no pós-guerra, seria necessária uma mudança de postura em relação à convi-
vência social. Por esse motivo, compreendia que aquele que foi injustiçado
não teria o direito de imprimir injustiça (FRANKL, 2008), alertando, dessa
forma, que a vingança não seria uma escolha adequada para a construção de
um mundo mais belo.
Para o referido autor, o ser humano é um ser ontologicamente aberto para o mundo, ou
seja, aberto para a comunidade humana, isto é, o ser humano é um ser auto-
transcendente. Conforme define:
Tal definição se aproxima da visão acerca da “gratuidade” descrita pela encíclica Fra-
telli Tutti como: a capacidade de fazer alguma coisa simplesmente porque são
boas em si mesmas, sem preocupação com ganhos ou recompensas pessoais”
(FRANCISCO, 2020, p. 70), o que demonstra uma postura de abertura para
todos. Ademais, o pensador vienense compreende uma relação dialética entre
indivíduo e comunidade. Por conseguinte, “[...] apenas a comunidade garante
o sentido de individualidade dos indivíduos, mas também que apenas a indi-
vidualidade consciente garante aos indivíduos um sentido de comunidade1”
(FRANKL, 2018, p. 183).
Para o autor em baila, o ser humano seria imperfeito e, por esse motivo, complementar-
se-ia na comunidade humana – portanto, tornar-se-ia um ente irrepetível e
insubstituível. Como um ser referido à comunidade, assemelha-se a um mosaico,
que é constituído por pequenas pedras singulares e imperfeitas, dessa forma, o
sentido de cada fragmento se realiza em sua totalidade (FRANKL, 1989a). De
forma similar, intuiu Francisco (2020, p. 90): “Cada um é plenamente pessoa
quando pertence a um povo e, vice-versa, não há um verdadeiro povo sem
referência ao rosto da pessoa”.
A despeito disso, a encíclica de Francisco exorta uma cultura do encontro, e, assim
como Frankl se utiliza do mosaico como uma metáfora da comunidade, o tex-
to Fratelli Tutti apresenta como símbolo o poliedro: “[...] tem muitas faces,
[...] Deus nos criou por uma razão – para perseguir ativamente uma vida virtuo-
sa e aperfeiçoar esse mundo imperfeito. Para esta finalidade, a responsabilidade
é uma necessidade humana básica, assim como o alimento e o oxigênio; não
podemos preencher ou justificar nossa existência sem ela.
Este senso de responsabilidade foi mais aguçado depois de dois eventos da História: os
campos de extermínio de Auschwitz e a bomba atômica de Hiroshima. O autor
em foco fez um alerta para o futuro da humanidade ao considerar o que o ser
humano seria capaz e o que de fato está em jogo. Portanto, apela para a res-
ponsabilidade comum ao alertar que “[...] o mundo está numa situação ruim.
Porém, tudo vai piorar ainda mais se cada um de nós não fizer o melhor que
puder” (FRANKL, 2008, p. 175).
Igualmente, a encíclica também relembra a Shoah como a manifestação da extrema
maldade humana, quando se opaca a dignidade inviolável do ser humano, as-
sim como foi nos casos das bombas atômicas lançadas em Hiroshima e Na-
gasaki, bem como no comércio escravagista e nos demais massacres étnicos
ocorridos na História.
Nessa direção, não apenas caberia, no aqui e agora da História, fazer o melhor nas
relações interpessoais e internacionais, como também promover atenuações
nas tensões inter-religiosas. Sobre este último aspecto, adverte o autor que a
“rigidez” dogmática do ser humano religioso poderia conduzir ao fanatismo, o
que os impediria de estender as mãos aos seus irmãos. Já a “firmeza” na fé es-
taria em consonância com a atitude de tolerância e tornaria as mãos livres para
acolher o seu próximo (FRANKL, 1978, p. 280). Segundo Francisco (2020), o
fanatismo se prolifera nos dias atuais também por pessoas religiosas, inclusive
os cristãos, promovendo lógicas rígidas e fragmentações sociais, expresso por
agressões verbais que objetivam destruir os outros. Assim, ele alerta que “é
verdade que as diferenças geram conflitos, mas a uniformidade gera asfixia e
neutraliza-nos culturalmente” (p. 95).
Ademais, o fanático, segundo Frankl (1990), não admite a diversidade de pensamentos,
portanto descarta o que lhe parece diferente. Para desenvolver uma postura de
De forma similar, Frankl (1990) considera que amar significa tanto dizer tu a alguém quan-
to dizer sim a uma pessoa, dessa forma, reconhece tanto a sua unicidade quanto
o seu valor. Ademais, o amor é uma das características do fenômeno humano
denominado de autotranscendência, aquela característica humana de abertura
para o mundo/comunidade, para uma causa e/ou para outras pessoas distintas
de si mesmo (FRANKL, 1989a).
Portanto, constata-se que a encíclica prescreve diálogos plurais pautados em uma con-
cepção da fraternidade universal, conforme o ideal do monantropismo de Vi-
ktor Frankl. Tendo em vista as considerações acima explanadas, considera-se
plausível apontar as proposições comuns dos dois pensadores para o caminho
da convivência social.
A carta de Francisco sobre a fraternidade e amizade social, escrita para o mundo, pau-
ta-se em uma pedagogia do encontro e do diálogo, e apela à paz, à justiça e à
fraternidade entre cristãos e não cristãos, entre religiosos e não religiosos; de-
nuncia os comportamentos de exclusão e indiferença com os que mais sofrem,
e critica as posturas da cultura do descarte e do fundamentalismo religioso, já
que o fanatismo leva à destruição dos outros, do diferente, o que denominou de
“agressividade despudorada”. Assim, alerta que “a verdade é que a violência
não encontra fundamento algum nas convicções religiosas fundamentais, mas
nas suas distorções” (FRANCISCO, 2020, p. 139). Por exemplo, no contexto
brasileiro ainda se encontram atos agressivos contra as religiões de matrizes
africanas e indígenas, estimuladas por preconceitos e estereótipos por parte
daqueles que aderiram a uma mentalidade fundamentalista. Ora, se as religi-
ões apregoam o amor universal e a regra de ouro, com que direito as pessoas
teriam em destruir templos e demonizar os ritos afro-indígenas?
Ademais, em lugar da vingança e violência, a encíclica aponta a uma postura de re-
conciliação e perdão, para romper os círculos viciosos, posto que a violência
apenas reforça a violência, assim como o ódio reforça o ódio. Nesses termos,
compreende que “[...] a vingança nunca sacia verdadeiramente a insatisfação
das vítimas” (FRANCISCO, 2020, p. 123).
Ademais, Francisco, além de denunciar, anunciou também a esperança a partir dos
modelos positivos de humanidade, conforme segue:
Nessa esteira, Frankl (1989b) propõe, para alcançar o perdão reconciliador, a separa-
ção entre o sujeito e o objeto de ódio como um caminho da reconciliação e do
perdão. Assim, pode-se amar a pessoa e odiar o objeto que ela internalizou.
Segundo o mesmo autor, é possível amar (a pessoa) e odiar (o objeto) ao mes-
mo tempo. Na perspectiva do texto Fratelli Tutti, observa-se uma ideia similar:
Somos chamados a amar a todos, sem exceção, mas amar um opressor não
significa consentir que continue a oprimir, nem o levar a pensar que é aceitável
o que faz. Pelo contrário, amá-lo corretamente é procurar, de várias maneiras,
que deixe de oprimir, tirar-lhe o poder que não sabe usar e que o desfigura como
ser humano (FRANCISCO, 2020, p. 118).
De tal modo, Frankl se posicionou contra a culpa coletiva no pós-guerra, pois com-
preendia que se poderia encontrar pessoas decentes e indecentes em qualquer
grupo. O autor ainda cita o seguinte relato referente a essa época:
O presente ensaio analisou a encíclica Fratelli Tutti do Papa Francisco, à luz do pensa-
mento de Viktor Frankl. Constatou-se uma complementaridade entre os dois
pensadores, embora a encíclica não aponte, em seu bojo, a logoterapia do
psiquiatra e filósofo vienense. Ambos se preocupam com a unidade da huma-
nidade, bem como a sua sobrevivência e convivência fraterna. Alertam para
os perigos da guerra e sugerem o perdão e a reconciliação como um caminho
legítimo para a construção da paz.
Compreendeu-se, por meio desse manuscrito, que a ideia de monantropismo, o ideal
de uma humanidade única, deveria ser almejada tanto no âmago das religiões
e do homem religioso quanto no coração das pessoas não religiosos, na busca
da utopia de um mundo mais humano, que respeite as diferenças individuais
e as diversidades culturais. Afinal, o ser humano se complementa na medida
em que convive fraternalmente na sua comunidade. De forma geral, pode-se
concluir que a relação dialógica fraterna seria a chave da compreensão para a
consciência de uma unidade fraterna que almeje o bem comum.
Nota
1 Solamente la comunidad garantiza el sentido de la individualidad de los individuos, pero tam-
bién que solo la individualidad consciente garantiza a los individuos el sentido de comunidad.
REFERÊNCIAS
AQUINO, Thiago A. Avellar; CRUZ, Josilene Silva; GOMES, Elisudo Salvino. Monantropis-
mo e movimento para a paz no pensamento de Viktor Frankl. Interações, Belo Horizonte,
v. 16, n.16, p. 297-314, 2019. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/interaco-
es/article/view/18226/16351. Acesso em: 02 julh. 2021, 08:50h.
FRANCISCO, Papa. Fratelli Tutti: Carta Encíclica sobre a fraternidade e a amizade social.
São Paulo: Loyola, 2020.
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existencial. Tradução: Alípio Maia de Castro. São Paulo: Quadrantes, 1989a.
FRANKL, Viktor. Um sentido para a vida: psicoterapia e humanismo. Tradução: Victor Hugo
Silveira Lapenta. Aparecida: Editora Santuário, 1989b.
FRANKL, Viktor Emil. Psicoterapia para todos: Uma psicoterapia coletiva para contrapor-se
à neurose coletiva. Tradução: Antônio Estêvão Allgayer. Petrópolis: Vozes, 1990.
FRANKL, Viktor Emil. A psicoterapia na prática. Tradução: Cláudia M. Caon. Campinas, SP:
Papirus, 1991.
FRANKL, Viktor Emil. A presença ignorada de Deus. Tradução: Walter O. Schlupp, Helga H.
Reinhold. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 1992.
FRANKL, Viktor Emil. Em busca de sentido: Um psicólogo no campo de concentração. Tradu-
ção: Walter O. Schlupp, Carlos C. Aveline. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 2008.
FRANKL, Viktor Emil. O que não está escrito em meus livros: memórias. Tradução: Cláudio
Abeling. São Paulo: É Realizações, 2010.
FRANKL, Viktor Emil. A vontade de sentido: fundamentos e aplicações da logoterapia. Tradu-
ção: Ivo Studart. São Paulo: Paulus, 2011.