Ascensão e Colapso Da Razão Instrumental Neoliberal

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ASCENSÃO E COLAPSO DA RAZÃO INSTRUMENTAL NEOLIBERAL

RISE AND COLLAPSE OF INSTRUMENTAL NEOLIBERAL REASON

Leomir Cardoso Hilário1

RESUMO
O ponto de partida desse ensaio é o de que a noção de razão instrumental – elaborada por Adorno e
Horkheimer nos anos 40 do século XX – ainda nos permite compreender a sociedade capitalista
contemporânea. No entanto, para que essa noção produza efeitos de análise acerca da atualidade, é
preciso compreender as modificações históricas que atravessam a segunda metade do século XX e o
início do século XXI. Proponho, então, a noção de “razão instrumental neoliberal”, demarcando as
metamorfoses da racionalidade instrumental a partir da crise capitalista dos anos 1970, periodizando
dois momentos: o de sua ascensão e o de seu colapso. Após apresentar a noção a partir de Adorno e
Horkheimer e depois atualizá-la por meio de Brenner, Lasch e Sennett, problematizo o que significa,
em termos sociais e psíquicos, viver em tempos de declínio da racionalidade instrumental, ou, em
outras palavras, numa quadra histórica na qual o horizonte da sociedade capitalista deixou de ser o da
produção de subjetividade para ser a destruição do psiquismo.
Palavras-chaves: Teoria Crítica. Razão Instrumental. Necropolítica. Neoliberalismo. Subjetividade. 174

ABSTRACT
This essay argues that the notion of instrumental reason – elaborated by Adorno and Horkheimer in
the 1940s – still allows us to understand contemporary capitalist society. However, in order for this
notion to produce analytical effects on the present, it is necessary to understand the historical changes
that go through the second half of the twentieth century and the beginning of the twenty-first century. I
propose, then, the notion of “instrumental neoliberal reason”, demarcating the metamorphoses of
instrumental rationality from the capitalist crisis of the 1970s, periodizing two moments: its rise and
its collapse. After presenting the notion from Adorno and Horkheimer and then updating it through
Brenner, Lasch and Sennett, I question what it means, in social and psychic terms, to live in times of
declining instrumental neoliberal reason, or in other words, in a historical block in which the horizon
of capitalist society shifted from the production of subjectivity to the destruction of the psyche.
Keywords: Critical theory. Instrumental reason. Necropolitics. Neoliberalism. Subjectivity.

1
Atualmente é Professor Efetivo do Departamento de Psicologia – UFPI. Doutor em Psicologia Social – UERJ.
e – mail: [email protected]

REVISTA DEBATES INSUBMISSOS, Caruaru, PE. Brasil, Ano 3, v.3, nº 11, set./dez. 2020. ISSN: 2595-2803
Endereço: https://periodicos.ufpe.br/revistas/debatesinsubmissos/
INTRODUÇÃO

A definição do tempo histórico atual como “grande regressão”, tal como fez
GEISELBERGER (2019), não pode ser encarada como pessimista. A sensação de viver num
mundo que, por pior que seja, parece ainda melhor do que aquilo que virá é compartilhada por
todos, principalmente pelas gerações mais novas. Produzir uma reflexão radical em tempos de
regressão social é a tarefa mais fundamental da chamada teoria crítica da sociedade ou Escola
de Frankfurt, como é mais conhecida. O contexto mundial atual se assemelha àquele
analisado por intelectuais como Max Horkheimer, Theodor Adorno e Herbert Marcuse, dentre
outros, razão pela qual devemos voltar a essa tradição para que possamos compreender o que
está se passando, recuperando o nexo entre economia, sociedade e subjetividade.

Para tanto, estruturei essa escrita em três momentos: no primeiro, intitulado “As pistas
do conceito: a racionalidade instrumental em Adorno e Horkheimer”, estabeleço uma leitura
da noção de racionalidade instrumental a partir dos intelectuais ligados à chamada “Escola de
Frankfurt”, em específico Adorno e Horkheimer, historicizando essa noção no contexto do 175
capitalismo que vigorou a pleno vapor durante uma parte do século XX. No segundo
momento, chamado “A ascensão da razão instrumental neoliberal: da desregulação econômica
à desregulação psíquica”, aponto para a necessidade de repensar a noção de racionalidade
instrumental devido às transformações do capitalismo, me apoiando nas leituras de Robert
Brenner, que demonstram a implicação do Estado de Bem-Estar Social com o neoliberalismo
e abrem caminho para pensar a desregulação econômica junto com a desregulação psíquica.
Nesse quadrante histórico, de 1975 até pelo menos 1990, a razão instrumental neoliberal em
expansão e consolidação conseguia minimamente produzir seus efeitos desejados em
concomitância com a permanência da barbárie. Também buscarei pensar os impactos
psíquicos dessa modalidade de racionalidade instrumental, a partir de Christopher Lasch e
Richard Sennett.

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Já no terceiro momento, por fim, chamado “O mal-estar do pós-neoliberalismo2”,
reflito acerca de como o capitalismo vem abandonando paulatinamente a tarefa de produção
de subjetividade para, em seu lugar, pôr a destruição do psiquismo em primeiro plano. Aqui, a
barbárie passa a ser a forma estruturante da razão instrumental neoliberal. Nesse sentido,
como pensar um tempo histórico que prescinde da produção de subjetividade como elemento
fundamental da reprodução da sociedade capitalista e que, por conta disso, se desfaz
paulatinamente daquilo que a sustenta, a saber, os sujeitos? Esse momento consiste no
colapso3 da racionalidade instrumental neoliberal, cujos efeitos de barbárie se disseminam
sem nenhum tipo de controle.

Ainda à guisa de introdução, a leitura da teoria crítica que desenvolvo aqui é marcada
por aquilo que Freyenhagen (2018) chamou de “teoria crítica ortodoxa”, cuja ênfase está nos
insights dos pioneiros da Escola de Frankfurt, recusando a obrigatoriedade do giro linguístico
e a necessidade de um programa de justificação, movimentos caros aos herdeiros de
Frankfurt, em especial Habermas. Também me apoio em Stefan Gandler (2007), para quem é 176
necessária uma atualização e radicalização por meio de uma teoria crítica periférica,
apontando um horizonte de análise para além dos registros das gerações e da centralidade da
experiência europeia.

2
Até onde sei, essa expressão foi primeiramente utilizada por Jamie Peck, Nik Theodore e Neil Brenner (2012).
Sobre esse exercício de diagnosticar o presente como “pós-neoliberalismo”, conferir também a obra de Gérard
Duménil e Dominique Lévy (2014).
3
O termo “colapso” possui uma longa tradição no interior do pensamento crítico e radical de esquerda,
atravessando nomes como Rosa Luxemburgo, Henryk Grossmann e Paul Mattick. Utilizo aqui o conceito na
perspectiva mais recente de Robert Kurz, onde “colapso” significa uma época histórica marcada pela tendência
de declínio do capitalismo enquanto modo de produção de mercadorias e, consequentemente, também pela
barbarização de toda a sociedade: “O colapso da relação de valor não começa apenas quando o último
trabalhador for eliminado da produção imediata. Ele começa antes: precisamente no ponto histórico onde a
relação geral entre a eliminação e a reabsorção do trabalho produtivo vivo imediato começa a se alterar, ou seja,
já no momento (cada vez mais) onde (e como) é eliminado mais trabalho produtivo imediato do que é
reabsorvido” (KURZ, 2018a, p. 64). Ou seja, o colapso não significa acordar de repente sem o capitalismo, mas
sim a entrada num processo histórico socialmente turbulento e sem retorno possível (KURZ, 2018b). No
contexto desse ensaio, falar em “colapso da racionalidade instrumental” é apontar para o esgotamento dos
mecanismos que sustentavam a racionalidade instrumental em tempos neoliberais.

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2. NAS TRILHAS DO CONCEITO: A RACIONALIDADE INSTRUMENTAL EM
ADORNO E HORKHEIMER

Há, pelo menos, quatro pistas da noção de racionalidade instrumental na Dialética do


Esclarecimento. Em nenhuma delas aparece literalmente a expressão “racionalidade
instrumental”, no entanto, ela está sempre pressuposta. Vejamos a primeira pista:

O pensar reifica-se num processo automático e autônomo, emulando a máquina que


ele próprio produz para que ela possa finalmente substituí-lo. O esclarecimento pôs
de lado a exigência clássica de pensar o pensamento — a filosofia de Fichte é o seu
desdobramento radical — porque ela desviaria do imperativo de comandar a práxis,
que o próprio Fichte no entanto queria obedecer. O procedimento matemático
tornou-se, por assim dizer, o ritual do pensamento. Apesar da autolimitação
axiomática, ele se instaura como necessário e objetivo: ele transforma o
pensamento em coisa, em instrumento, como ele próprio o denomina
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 33, grifo nosso).
A razão instrumental aparece como resultado inesperado, porém lógico-histórico, da
vontade esclarecida de se ver livre do mito, do obscurantismo e das trevas. Esse ato de
libertação do mito se dá pela identificação com o pensamento calculador, o qual, por sua vez,
177
constitui-se como fundamento da sociedade baseada na troca e na exploração. O pensamento
identifica-se com o existente e, assim, abre mão da possibilidade de servir à humanidade e
passa a servir à forma social fetichista do capitalismo. Vamos à segunda pista:

O positivismo – que afinal não recuou nem mesmo diante do pensamento, essa
quimera tecida pelo cérebro no sentido mais liberal do termo – eliminou a última
instância intermediária entre a ação individual e a norma social. O processo técnico,
no qual o sujeito se coisificou após sua eliminação da consciência, está livre da
plurivocidade do pensamento mítico bem como de toda significação em geral,
porque a própria razão se tornou um mero adminículo da aparelhagem econômica
que a tudo engloba. Ela é usada como um instrumento universal servindo para a
fabricação de todos os demais instrumentos. Rigidamente funcionalizada, ela é
tão fatal quanto a manipulação calculada com exatidão na produção material e cujos
resultados para os homens escapam a todo cálculo. Cumpriu-se afinal sua velha
ambição de ser um órgão puro dos fins (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 37,
grifo nosso).
Em termos de crítica da ideologia, há uma passagem da conversão das discursividades
amplas para a dominação concreta dos indivíduos, por um lado temos aquela dinâmica na
qual a razão se instrumentaliza, onde “a própria razão se tornou um mero adminículo da
aparelhagem econômica”, “um órgão puro dos fins”, por outro lado, “a expulsão do
pensamento da lógica ratifica na sala de aula a coisificação do homem na fábrica e no

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escritório” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 37). Quando este processo ocorre, significa
que “o corpo já há muito foi ajustado pelo sistema” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.
41). Há esse paralelismo entre o mecanismo mais abstrato do fetichismo da mercadoria e a
concretude do cotidiano dos indivíduos, além de como essas duas dimensões são essenciais
para o modo de dominação social do capitalismo.

Em outro momento, já mais no final do livro, eles afirmam que “o poder recorria às
relações de poder dominantes [...] ao mesmo tempo, a sociedade burguesa também
desenvolveu, em seu processo, o indivíduo” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 138). Ou
seja, além do tema do entrelaçamento entre racionalidade e realidade social, esse tema das
relações entre a sociedade e os indivíduos é central na Dialética do Esclarecimento. Ambos
os temas se complementam: o modo pelo qual a sociedade moderna capitalista se constrói
através da racionalidade instrumental cujo modelo é a forma-valor e a especificidade da
inscrição social num quadro como este.

A quarta, e última, pista é a seguinte: 178

Semelhante à coisa, à ferramenta material – que pegamos e conservamos em


diferentes situações como a mesma, destacando assim o mundo como o caótico,
multifário, disparatado do conhecido, uno, idêntico – o conceito é a ferramenta
ideal que se encaixa nas coisas pelo lado por onde se pode pegá-las (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 43, grifo nosso).
A racionalidade instrumental transforma o pensamento numa espécie de ferramenta
capaz de manipular o mundo objetivo e subjetivo no sentido da exploração e do controle. Não
foi somente na Dialética do Esclarecimento que se tematizou a racionalidade instrumental.
Em um ensaio de 1951, Horkheimer (2002) destaca dois conceitos de razão antagônicos: um
próprio dos grandes sistemas filosóficos desde Platão, que supõe a filosofia como imagem da
essência racional do mundo, e uma razão subjetiva, formal, instrumental, que tem a ver com a
relação entre fins e meios, com a adequação dos modos de comportamento aos fins, os quais,
como tais, são aceitos sem que se os submeta a uma reflexão racional. A teoria crítica gira em
do “problema da conexão entre a existência particular e a razão universal, entre a realidade e a
ideia, entre a vida e o espírito; só que este velho tema aparece agora colocado numa nova
constelação de problemas” (HORKHEIMER, 1999, p. 130).

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Em sua Crítica da Razão Instrumental, cujo título brasileiro é Eclipse da Razão4, a
questão era a do “processo de subjetivação” (HORKHEIMER, 2002, p. 97) da razão objetiva,
isto é, quando a Razão (Vernunft) se instrumentaliza, perde sua autonomia e abandona seu
projeto de construção de um mundo racional. O positivismo é a forma-teórica adequada a este
processo. Em resumo: “[...] se a própria razão é instrumentalizada, tudo isso conduz a uma
espécie de materialidade e cegueira, torna-se um fetiche, uma entidade mágica que é aceita ao
invés de ser intelectualmente aprendida” (HORKHEIMER, 2002, p. 28). A razão instrumental
é a racionalidade sujeitada à irracionalidade do capital, ela denota o processo no qual a razão
“se tornou algo inteiramente aproveitado no processo social” (HORKHEIMER, 2002, p. 26).
Dessa forma, segundo suas próprias palavras, tenho cedido em sua autonomia, a razão tornou-
se um instrumento:

Os conceitos foram aerodinamizados, racionalizados, tonaram-se instrumentos de


economia de mão-de-obra. É como se o próprio pensamento tivesse se reduzido ao
nível do processo industrial, submetido a um programa estrito, em suma, tivesse se
tornado uma parte e uma parcela da produção (HORKHEIMER, 2002, p. 26).
179
Em termos históricos, essa conexão entre o modo de produção de mercadorias e a
racionalidade instrumental passou por fases de expansão e consolidação, ou seja, ainda que
produzissem controle e barbárie, eram capazes de estabelecer, para regiões específicas da
sociedade mundial, momentos de crescimento econômico e ganhos de bem-estar. Ainda que à
serviço do capitalismo, a razão instrumental produzia civilização, alternada com instantes de
barbárie, os quais poderiam ser lidos, ainda que erroneamente, como tropeços ou acidentes de
percurso. Para compreender isso, devemos refletir acerca dos vínculos do processo de
instrumentalização da razão com a realidade após a Segunda Guerra Mundial, o que se pode
chamar de “núcleo temporal da racionalidade instrumental”.

4
Segundo Martin Jay (2008, p. 320), Eclipse da Razão, publicado pela primeira vez em inglês, em 1947 foi
traduzido para o alemão como parte da Crítica da Razão Instrumental (Zur kritik der instrumentellen Vernunft),
por Alfred Schmidt. A tradução espanhola conserva o mesmo título: Crítica de la razón instrumental, publicada
pela Editorial Sur, em 1973.

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A legitimidade de se pensar a racionalidade instrumental para além do início do século
XX está dada por Adorno e Horkheimer num dos prefácios à Dialética do Esclarecimento,
datado de 1969:

O livro foi dirigido num momento em que já se podia enxergar o fim do terror
nacional-socialista. Mas não são poucas as passagens em que a formulação não é
mais adequada à realidade atual. E, no entanto, não se pode dizer que, mesmo
naquela época, tenhamos avaliado de maneira excessivamente inócua o processo de
transição para o mundo administrado. (ADORNO; HORKHIEMER, 1985, p. 9).
Parece claro que a noção de racionalidade instrumental é vista pelos autores como
capaz de dar conta também da realidade pós-guerra, que Adorno denominou de “mundo
administrado”. A crítica da razão instrumental é parte do diagnóstico da modernidade
embasado numa teoria crítica da autodestruição da razão por meio da instrumentalização da
racionalidade moderna. Essa modalidade de razão serve aos fins de autoconservação da
sociedade capitalista, a saber, o incremento do valor por meio do desenvolvimento das forças
produtivas (técnica), da manipulação da natureza objetiva e do controle das formas subjetivas
(do sofrimento e do mal-estar, p. ex.). A razão instrumental é, então, um conjunto de práticas 180
de organização social e de estruturação subjetiva condicionadas aos imperativos de
valorização do valor capitalista. Deste modo, a crítica da razão instrumental participa da
dominação própria do arranjo histórico denominado “Capitalismo de Estado”, conceito de
autoria de Friedrich Pollock (1990), a quem inclusive A Dialética do Esclarecimento é
dedicada.

O conceito de capitalismo de Estado diz respeito à preponderância do elemento


político na gestão da sociedade capitalista, isto é, a ocorrência do “primado da política” sobre
a economia. O mercado perde seu controle para coordenar a distribuição e produção, de tal
modo que as leis econômicas desaparecem5. A tendência do sistema capitalista era, então,
quaisquer que fossem seus avatares, o crescimento do controle estatal sobre a sociedade e o
mercado. Pollock, com sua teoria da crise, fornecia um diagnóstico de época preciso que ia

5
No original: “The market is deposed from its controlling function to coordinate production and distribution.
This function has been taken over by a system of direct controls. Freedom of trade, enterprise and labor are
subject to governmental interference of such a degree that they are practically abolished. With the autonomous
market the so-called economic laws disappear” (POLLOCK, 1990, p. 72).

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mais além das formas fenomênicas da política e enfatizava o contexto histórico mais amplo
no interior do qual as diversas formas de gestão do capitalismo se inscreviam: desde a União
Soviética até o capitalismo norte-americano, passando pelo Estado de Bem-estar Europeu.
Imune às crises, o capitalismo revigorava sua força sobre a sociedade por meio do controle
político cujo objetivo era produzir uma espécie de congelamento do movimento histórico:

O controle governamental da produção e da distribuição proporciona os meios para a


eliminação das causas econômicas das depressões, dos processos globalmente
destrutivos, do desemprego e da falta de investimento. Poderíamos chegar ao ponto
de dizer que sob o capitalismo de Estado a economia perdeu, como ciência social,
seu objeto6 (POLLOCK, 1990, p. 87, trad. minha).
É importante lembrar de que na nota sobre a nova edição alemã da Dialética do
Esclarecimento, escrita em 1969, Adorno e Horkheimer defendem a existência do núcleo
temporal da teoria. Adorno expôs algo este respeito também em Ensaio como Forma, ao
dizer: “Se a verdade tem, de fato, um núcleo temporal, então o conteúdo histórico torna-se,
em sua plenitude, um momento integral dessa verdade; o a posteriori torna-se concretamente
um a priori” (ADORNO, 2003 p. 26). Bem como em seus Três estudos sobre Hegel, ele 181
defendeu que a verdade hegeliana não está nem no tempo, como o era a verdade nominalista,
nem acima do tempo, segundo a forma ontológica: o tempo seria, em sua leitura de Hegel,
“um momento da própria verdade”. Portanto, “a verdade (...) possui um núcleo temporal”
(ADORNO, 2013 p. 118). Em outro momento, em sua Introdução à dialética: “A exigência
decisiva da dialética é que não se trata de buscar a verdade no tempo ou em oposição ao
tempo, mas sim que a verdade mesma tem um núcleo temporal, isto é, o tempo está na
verdade” (ADORNO, 2008, p, 53). O núcleo temporal da verdade é a capacidade do
pensamento de produzir diagnósticos certeiros numa dada temporalidade histórica, de modo
que se pode cambiar o termo verdade por teoria ou crítica. O núcleo temporal da teoria da
crise da primeira geração frankfurtiana pode ser situado entre 1945-1975. Como mostrou
Wolfgang Streeck (2013, p. 13):

6
No original: “Government control of production and distribution furnishes the means for eliminating the
economic causes of depressions, cumulative destructive processes and unemployment of capital and labor. We
may even say that under state capitalism economics as a social science has lost its object” (POLLOCK, 1990, p.
87).

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O que era característico da teoria da crise da “Escola de Frankfurt” era o pressuposto
heurístico da existência, por um lado, da relação de tensão fundamental entre vida
social e, por outro, uma economia dominada pelos imperativos de valorização e
multiplicação do capital – uma relação tensa que, de forma multifacetada e em
contínua evolução histórica, foi transmitida na estruturação do capitalismo
democrático pós-guerra.
Contudo, depois do breve período de estabilidade política e crescimento econômico, as
crises voltaram com toda a força, abalando toda a paisagem do mundo elaborada na primeira
metade do século XX. Esse núcleo temporal sai de cena e leva consigo boa parte das reflexões
críticas produzidas mais ou menos até a primeira metade do século XX e impõe levar a sério a
assertiva de Adorno (2009, p. 302): “o pensamento também precisa, para ser verdadeiro, hoje
em todo caso, pensar contra si mesmo”.

3. A ASCENSÃO DA RAZÃO INSTRUMENTAL NEOLIBERAL: DA


DESREGULAÇÃO ECONÔMICA À DESREGULAÇÃO PSÍQUICA

Pretendo analisar a razão instrumental a partir da crítica da economia política, 182


vinculando-a com a crise do capitalismo dos anos 1970 e a entendendo como expressão da
dinâmica interna autocontraditória do capital, trazendo o problema do neoliberalismo para o
campo da crítica do capitalismo e da crítica da razão instrumental. Em uma palavra:
compreender o neoliberalismo como mais um giro no parafuso da razão instrumental na
direção da barbárie. Num artigo sobre as tendências regressivas nas sociedades atuais, Oliver
Natchwey também propõe essa aproximação entre neoliberalismo e razão instrumental:

O neoliberalismo, a crença quase religiosa no mercado, é uma encarnação da “razão


instrumental”. No âmbito do poder da razão instrumental, segundo Horkheimer,
tudo é submetido a uma racionalidade de meios e fins, à lógica do domínio da
natureza e da individualidade. (...) Sob a égide da razão instrumental total,
entretanto, o controle do indivíduo sobre o mundo torna-se o controle total do
mundo sobre o indivíduo. A individualidade conforme o mercado torna-se um
imperativo social (NATCHWEY, 2019, p. 223).
Para realizar esse gesto vinculatório entre crise do capitalismo e racionalidade
instrumental, pensada em seu avatar contemporâneo neoliberal, opto por analisar a ascensão
do neoliberalismo a partir do historiador americano Robert Brenner. Ele participa daquilo que
Jonathan Martineau (2013) chamou de “marxismo anglo-saxão”, isto é, uma tradição

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intelectual marxista que se consolida após os anos 1960, cujas figuras marcantes são Perry
Anderson, Edward P. Thompson, David Harvey, Moishe Postone, Derek Sayer, Simon
Clarcke, Ellen M. Wood e David McNally. O caminho percorrido por esses intelectuais faz
parte de uma renovação das teorias inspiradas em Marx no campo das ciências sociais de
língua inglesa. Há três tendências nesse marxismo anglo-saxão: a crítica do reducionismo
econômico e do determinismo; o retorno à história e a retomada da crítica da economia
política de Marx. Todas elas seriam marcadas por um anti-dogmatismo e uma vontade de
atualização da teoria crítica inspirada em Marx. Para Francis-Fortier e Louis-Philippe Lavallé
(2013), três grandes problemáticas estão presentes na obra de Brenner: a que se refere à
transição para o capitalismo, a questão concernente às especificidades da Revolução Inglesa e
o problema do longo declínio (long downturn) da economia mundial após a década de 1970.
Eu vou me concentrar apenas nesse último ponto, dado o foco desse ensaio.

A tese de Robert Brenner é relativamente simples, embora singular: para ele, não é
estranho, mas sim lógico, que as economias capitalistas tenham entrado num estágio de 183
declínio logo após os Trinta Anos Gloriosos (1945-1975). Mais do que isso, também é parte
de uma lógica histórica que o período posterior tenha sido caracterizado pelo desmanche das
supostas conquistas da Era de Ouro. Ou seja, a transição aparentemente abrupta da longa
expansão (1945-1973) para um estágio de longo declínio é parte de um mesmo processo de
concorrência internacional característico do sistema capitalista. Em outras palavras, a
derrocada do Estado de Bem-Estar Social ocorreu pelas mesmas dinâmicas econômicas que o
sustentaram durante quase três décadas. O longo declínio foi fruto de uma crise de
superprodução no setor manufatureiro que se deu devido à concorrência entre as grandes
economias capitalistas no contexto internacional, de tal modo que aquilo que garantiu o longo
crescimento foi a condição de possibilidade para o longo declínio. Nas palavras de Brenner
(2006, p. 37): “Foi essa combinação e interação entre os blocos de desenvolvimento mais

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novos e mais tardios o que determinou em grande medida o caráter da longa expansão e a
natureza do longo declínio que veio depois”7.

É comum se falar em fordismo e pós-fordismo, porém, o que levou a passagem de um


para o outro? Por que os acontecimentos não nos levaram a outros caminhos? O mesmo vale
para a ascensão do neoliberalismo, em reação ao que ele se impôs, a quais problemas ele veio
dar conta? Na ausência de uma explicação da passagem de uma conjuntura histórica à outra, a
afirmação brenneriana de um fundamento comum ao longo boom e ao longo declínio mostra
sua singularidade e pertinência.

O núcleo da análise brenneriana do período pós-guerra, portanto, é o modo como um


elemento constitutivo do capitalismo, a concorrência, mina seus objetivos de expansão e
crescimento econômicos. A nível internacional, ela se traduz num processo desigual pelo qual
as nações retardatárias conseguem alcançar os líderes, empatando o capital fixo e adentrando
mercados com mercadorias de baixo preço. Enquanto essa dinâmica funcionou bem, as
principais economias capitalistas vivenciaram um crescimento sem precedentes: “O meu 184
argumento é o de que as raízes da estagnação de longa duração e da crise atual estão na
compressão dos lucros do setor manufatureiro que se originou no excesso de capacidade e de
produção fabril, que era em si a expressão da acirrada competição internacional” (BRENNER,
1999, p. 13).

Brenner divide quatro períodos em sua análise: a longa expansão (1945-1965), a queda
da rentabilidade e o iniciar da crise (1965-1973), o longo declínio (1973-1990) e o que se
pode chamar de turbulência global (1990 até hoje). Durante o primeiro período, nações
periféricas, como Alemanha e Japão, atingiram índices sem precedentes de acumulação de
capital, devido ao atraso socioeconômico, puderam tirar vantagem das enormes reservas de
desempregados e obter um crescimento salarial relativamente baixo em comparação ao

7
No original: “It was the combination of and interaction between the older and later developing blocs that
largely determined both the character of the long boom and the nature of the long downturn to which it gave
rise” (BRENNER, 2006, p. 37).

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crescimento da produtividade. Uma espécie de vantagem do atraso. Tudo parecia funcionar
muito bem:

O desenvolvimento econômico internacional pós-guerra dentro do mundo capitalista


avançado pôde, por um breve período, manifestar um grau relativamente alto de
cooperação internacional, ainda que sob dominação do Estado americano e
predominantemente modelada pelos interesses americanos (BRENNER, 2003, p.
54).
Esta concorrência levou os países atrasados a empatarem o capital fixo com o
americano, aumentarem significativamente sua produtividade e abarcarem partes cada vez
maiores dos mercados internacionais, inundando-os com mercadorias de preço baixo. A nível
geral, no entanto, enquanto as economias de desenvolvimento tardio conseguiam manter suas
taxas de lucro dados os custos e preços mais baixos, os Estados Unidos foram incapazes de
evitar sua queda de rentabilidade.

Assim, Brenner argumenta que o longo declínio foi fruto de uma intensificação da
concorrência que deu lugar a um excesso de produção e uma longa queda da rentabilidade,
principalmente na indústria8. Outras medidas foram tomadas. Uma delas é o que Brenner 185

chama de “ofensiva patronal” (Employer’s Offensive) cujo objetivo era recuperar as taxas de
lucro dos Trinta Anos Gloriosos. O neoliberalismo aparece como tentativa de responder ao
baixo crescimento dos últimos anos da Era de Ouro do capitalismo. A pressão exercida sobre
os trabalhadores no sentido da retirada de direitos e diminuição salarial tinha foi busca de
superação das baixas taxas de lucro, cada vez mais decrescentes. É importante notar que,
embora levada cabo por governos como os de Reagan e Thatcher, sua raiz reside numa crise
de valorização mais profunda, não sendo redutível à dimensão política. O fundamento
histórico do longo declínio é a incapacidade de contornar o excesso de produção na indústria,
o que poderíamos chamar de crise de superprodução:

8
No original: “I attempt to demonstrate that the way in which this pattern of uneven development worked itself
out supports my more general interpretation of the long downturn in terms of intensified competition leading to
over-capacity and over-production and a secular fall in profitability, especially in manufacturing” (BRENNER,
2006, p. 9).

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(...) a ascensão do capital financeiro e do neoliberalismo deve ser vista muito mais
como consequência do que como causa da crise internacional – mesmo que eles a
tenham exacerbado significativamente. A crise, por sua vez, tem suas raízes
profundas numa crise secular da lucratividade que resultou do excesso constante de
capacidade e de produção no setor manufatureiro internacional. (BRENNER, 1999,
p. 12)
Robert Brenner rompe com a leitura politicista segundo a qual o neoliberalismo é uma
estratégia de uma classe globalmente organizada orientada para a destruição dos ganhos
democráticos que teriam feito frente à irracionalidade do capitalismo. Em seu lugar, entende o
neoliberalismo como sintoma de uma crise sistêmica mais profunda, sendo não o contrário do
Estado de Bem-Estar Social mas o seu herdeiro legítimo, na medida em que se propõe a
continuar a tarefa que aquele já não mais conseguia realizar, a saber, a de manter taxas altas
de crescimento econômico. O Estado de Bem-Estar Social ruiu a partir de dentro, devido à
dinâmica da concorrência global, de tal forma que aquele suposto crescimento expansivo e
estável era, em verdade, a preparação do caminho para as crises cada vez mais constantes. A
“Era de Ouro” do capitalismo não foi o modelo de funcionamento desejável do capitalismo ou
o ideal do passado que deveríamos lutar para voltar, mas a exceção momentânea e sem 186

retorno de uma dinâmica capitalista cujo ponto de chegada é a crise em que estamos. As teses
de Brenner permitem sustentar que as dinâmicas do capitalismo do Welfare State são as
subjacentes ao capitalismo neoliberal.

É importante sublinhar que, apesar da boa análise de Brenner, é sintomático como ele
não se debruça devidamente acerca de como o Estado de Bem-Estar Social se tornou possível
e obteve estabilidade a partir da dominação dos países centrais em relação à periferia do
capitalismo, entendendo por periferia aqui países mais além de Alemanha e Japão. Por
exemplo, a manutenção da colonização da África era o outro lado da moeda necessário ao
desenvolvimento desigual e combinado da chamada Era de Ouro do capitalismo. Intelectuais
como Franz Fanon (2005) e Achille Mbembe (2014) são bastantes precisos nesse ponto de
compreender o capitalismo como um sistema mundial numa chave de desenvolvimento
desigual e combinado mais ampla.

Quais os efeitos psíquicos dessa passagem histórica do Estado de Bem-Estar Social ao


neoliberalismo dinamizada pela crise do capitalismo? Essa questão mobiliza as obras O

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mínimo eu: estratégias de sobrevivência psíquica em tempos de crise, de Christopher Lasch
(1986), e A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo, de
Richard Sennett (2014)9. Ambos estão preocupados com a maneira pela qual os indivíduos
suportam tais mudanças que lhes aparecem como objetivas, externas e das quais eles não
possuem controle algum e nada podem fazer, exceto grandes esforços psíquicos de adaptação.
O pressuposto básico é o de que o mercado se transforma numa norma de vida interior que
deve regular a conduta e o pensamento dos indivíduos, para além de uma dinâmica objetiva
de troca de mercadorias.

O que significa sobreviver psiquicamente num contexto destrutivo marcado pelo longo
declínio? De que modo o psiquismo mantém sua estabilidade num quadro como esse? Como
sobrevivemos num mundo em que o futuro já não é mais o lugar das realizações das
promessas do presente, mas sim a vinda de desastres que todos nós aguardamos? Segundo
Lasch (1986, p. 9), o equilíbrio emocional nesses tempos de crise neoliberal é um “eu
mínimo, não o eu soberano do passado”. 187
Em sua obra mais conhecida, é comum prestar mais atenção no título A Cultura do
Narcisismo (LASCH, 1983), do que no subtítulo Vida americana numa Era de Esperanças
em Declínio. No entanto, talvez seja a perda do horizonte positivo do futuro que constitua o
ponto mais importante de seu argumento, na medida em que o narcisismo não aparece como o
engrandecimento do indivíduo particular, mas sim, ao contrário, como uma preocupação com
a sobrevivência psíquica na manutenção de um eu cada vez mais diminuto:

A expectativa de que a ação política pudesse humanizar gradualmente a sociedade


industrial deu lugar a uma determinação de sobreviver em meio ao naufrágio geral,
ou, mais modestamente, de manter intacta a própria vida, face às crescentes
pressões. O risco de desintegração individual estimula um sentido de
individualidade que não é “soberano” ou “narcisista”, mas simplesmente sitiado
(LASCH, 1986, p. 10).

9
A edição francesa (da editora Flammarion) do livro de C. Lasch torna ainda mais explícita essa possibilidade de
diálogo, porque põe “Le moi assiégé: essai sur l'érosion de la personnalité”, algo como “O eu sitiado: ensaio
sobre a erosão da personalidade”. A erosão designa o processo que desde fora danifica ou desgasta algo. Ela se
aproxima bastante do processo de corrosão que será tomado por Sennett, porque ambos os processos se referem
à deterioração de um material por ação externa constante.

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É, desse modo, um “eu mínimo” que deve restar nos processos de socialização numa
sociedade em declínio e em crise. Na erosão da esfera pública que garantia estabilidade, resta
ao indivíduo voltar-se a si mesmo. Em uma das frentes, voltar-se a si mesmo como
empreendedor de si mesmo, como aquele que, isolado e jogado num mundo hostil, sem
nenhuma garantia do êxito de suas ações, tem que ganhar a vida por si mesmo. Portanto,
quando não se pode mudar o mundo, o que resta é reinventar a si mesmo. A “cultura do
narcisismo”, ao contrário do que parece, é um tipo de cultura de sobrevivencialismo em
tempos de crise, um programa de “mentalidade sitiada”. Não é uma cultura em que há muito
eu, mas, pelo contrário, uma cultura na qual o eu é constantemente reduzido a funções sociais
de maneira precária:

O narcisismo significa uma perda da individualidade e não a auto-afirmação; refere-


se a um eu ameaçado com a desintegração e por um sentido de vazio interior. Para
evitar confusão, o que eu denominei a cultura do narcisismo seria melhor
caracterizado, ao menos para o momento, como a cultura do sobrevivencialismo. A
vida cotidiana passou a pautar-se pelas estratégias de sobrevivência impostas aos
188
que estão expostos à extrema adversidade (LASCH, 1986, p. 47).
A afirmação existencial da individualidade atomizada passa a ser a única resposta
adequada às situações extremas provocadas pela crise estrutural do capitalismo. A lição de
Lasch é a de que a crise não denota somente um funcionamento social amplo específico do
modo de produção de mercadorias, nem somente um colapso das instituições sociais, mas
principalmente um conjunto de transformações psíquicas nos indivíduos que acompanha a
crise estrutural.

Em Richard Sennett, em paralelo ao desfazimento do Estado de Bem-Estar Social se


dá a corrosão do caráter, ou seja, a destruição lenta das formas de subjetividades produzidas
naquele arranjo social. O título do primeiro capítulo de seu livro é cristalino: como o novo
capitalismo ataca o caráter pessoal. Sennett (2014, p. 10) argumenta que o novo capitalismo
flexível modifica substancialmente o caráter, o qual ele define como “traços pessoais a que
damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem”.

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A geração que veio após a Segunda Guerra Mundial tinha o mundo sob controle por
conta das garantias do Estado e das empresas que produziam relativa estabilidade econômica
e também a sustentação firme dos direitos individuais, sociais e políticos. No entanto, como
Sennett (2014, p. 23) sublinha, esse período dos Trinta Anos Gloriosos é contestado pelo
trabalho temporário, flexível. Ainda que não fosse o melhor dos cenários, “o tempo rotinizado
se tornara uma arena onde os trabalhadores podiam afirmar suas próprias exigências, uma
arena que dava poder”, diz Sennett (2014, p. 48), sobre o solo das lutas sociais e de formação
de caráter da era de ouro do capitalismo. Porque “se por um lado é uma prisão, a jaula de ferro
também pode, assim, tornar-se um lar psicológico” (SENNETT, 2019, p. 14).

A flexibilidade se opõe à rotina. O trabalhador flexível é aquele que pode ser adaptado
a circunstâncias variáveis, mas não quebrado por elas. Essa resiliência, para usar um vocábulo
da ordem do dia, é a matéria-prima dessa subjetividade necessária ao capitalismo neoliberal.
O trabalhador da era de ouro tinha seus valores sólidos, nos quais ele ancorava seu caráter. Já
o trabalhador flexível precisa constantemente ceder em seus pontos de vista, caso contrário 189
será enviado para o exército industrial de reserva como mais um desempregado. A
flexibilidade não é somente um dado do trabalho como prática produtiva, mas também como
esfera de produção de subjetividade. Ela sinaliza a corrosão do caráter, a destruição lenta dos
valores morais que regiam o mundo do trabalho na perspectiva da classe operária.

Tais mudanças não libertaram as pessoas, como prometido. A ideia de “deriva” é


usada por Sennett para descrever a sensação subjetiva de experimentar tais mudanças
psíquicas relacionadas ao mundo do trabalho em tempos neoliberais. Ele analisa o fosso que
separa as gerações de Enrico e Rico – pai e filho cujas vidas expressam a diferença entre
gerações no “novo capitalismo” – como dois modos de vida distintos: uma que se tece no
tempo linear e previsível, por um lado, e uma submetida ao imperativo “não há longo prazo”,
por outro. A respeito de Rico, diz Sennett (2014, p. 19): “Ele temia que que as medidas que
precisava tomar e a maneira como tinha de viver para sobreviver na economia moderna
houvessem posto sua vida emocional, interior, à deriva”. A convergência da analogia da

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marítima (naufrágio e deriva) usada por Lasch e Sennett expressam bem os modos de
subjetivação em tempos de razão instrumental neoliberal.

Para ambos, o processo de desregulamentação da economia trouxe consigo a


desregulamentação do psiquismo, isto é, as bases sólidas e duradouras que regiam o
psiquismo passam a ser flexibilizadas e desmontadas. De maneira análoga às análises de
Brenner, o eu mínimo decorre lógica e historicamente do eu soberano, na medida em que se
perderam as condições objetivas de um e somente resta a possibilidade do outro. Ou seja,
ambos permitem problematizar a transformação da ordem subjetiva que se dá num quadro
social regressivo marcado pelas turbulências da crise.

4. O MAL-ESTAR DO PÓS-NEOLIBERALISMO

As dinâmicas sociais e psíquicas talvez tenham ido mais além do que tematizaram
Robert Brenner, Christopher Lasch e Richard Sennett. A derrocada do Estado de Bem-Estar
190
Social pelo neoliberalismo como estratégia de contenção da crise do ponto de vista da
objetividade histórica e a mudança da norma subjetiva da estabilidade para a flexibilidade do
ponto de vista subjetivo compuseram a vitalidade da razão instrumental neoliberal a partir da
década de 1970. Esses três intelectuais, cada um em seu nível de análise, pressupõem certa
estabilidade no declínio, como se a conjuntura histórico-política e subjetiva conseguisse se
arranjar de maneira frágil, porém duradoura.

Modificando seu dinamismo burocrático e estático, a razão instrumental assumiu o


avatar neoliberal pelos mecanismos de desregulação tanto econômica quanto psíquica como
uma nova forma histórica de sujeição. O horizonte da razão instrumental neoliberal ainda era
produtivo, pois se tratava de adequar o psiquismo dos sujeitos à esfera econômica em
mutação, o que significou, como analisado por Sennett e Lasch, a corrosão do caráter e o
mínimo eu como estratégias de sobrevivência.

O arranjo neoliberal, marcado pela informalidade e flexibilidade, teve como função


histórico-objetiva retardar e conter os efeitos da crise do capital deflagrada na década de 1970,

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como Brenner demonstrou. Embora tenha obtido relativo êxito do ponto de vista das
exigências de valorização do capital, ao menos no centro pois na periferia (como na África e
na América Latina) a barbárie continuou sendo a tônica 10, hoje se encontra em processo de
esgotamento. Estamos no fim do neoliberalismo e isso não é exatamente um dado positivo ou
promissor, como se aquilo que se avizinhasse fosse melhor do que o estado atual de coisas.

A dinâmica de um eu “ameaçado com a desintegração e por um sentido de vazio


interior” que pode encontrar saída numa cultura do sobrevivencialismo se radicalizou. Pois a
própria manutenção de uma esfera como o eu, entendida como instância envolvida no embate
entre pulsões agressivas e normas sociais, parece abrir espaço a outros modos de subjetivação.
Ocorre hoje uma adesão quase total do eu aos mecanismos do mercado. Aquele diagnóstico
de Adorno e Horkheimer nos anos 1940 permanece atual, ou seja, há uma tendência à
integração total no interior do mundo administrado no qual o indivíduo habita.

Marildo Menegat (2012) utiliza a imagem da ruína para descrever o presente histórico.
A ruína, para ele, denota um mundo que desmorona mas se mantém ao mesmo tempo. Essa 191
imagem demarca também a dissolução passiva do capitalismo, ou seja, na ausência do sujeito
coletivo capaz de negar a sociedade existente, essa própria sociedade procura se manter
brutalmente apesar do colapso de sua forma estruturante básica, a mercadoria. Nesse quadro,
a decomposição se impõe sobre as formas de sociabilidade (expressa na militarização das
favelas e no crescimento do sistema punitivo, p. ex.) bem como sobre as formas de
subjetividade, como comprovam a assunção, por parte dos sujeitos, de formas regressivas de
contenção da crise estrutural ou mesmo o funcionamento da ideologia que passou a ser o de
digerir a crise por meio da personificação dos efeitos de barbárie que ela gera, como se, para
dar um exemplo, a crise fosse resultado da ação de grupos como a população LGBTQI+,
negros, mulheres, índios, dentre outros, e não o resultado lógico do atual estágio do
capitalismo. Em termos da razão instrumental neoliberal, “estamos, ao que tudo indica,

10
Talvez Herbert Marcuse (2015) tenha sido, dentre os frankfurtianos, o que mais percebeu essa dinâmica mais
global do capitalismo ao propor que se deve entender o Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) como sendo
complementado pelo Estado de Guerra (Warfare State).

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cavalgando mais um círculo ampliado da dialética do Iluminismo” (MENEGAT, 2006, p. 88).
O neoliberalismo foi a tentativa de gerir a barbárie, ou seja, de conter a crise do capitalismo
por meio da regressão social (pauperização, desemprego estrutural, retirada de direitos etc.).
Essa “gestão da barbárie” funcionou a nível mundial, bem como a nível nacional, sobretudo
entre 2008-2013. Estamos, agora, no “fim da gestão da barbárie”, no interior da qual se trata
de “livrar-se fisicamente dos perdedores da competição global” (MENEGAT, 2019a, p. 99).

Esse momento histórico de colapso da racionalidade instrumental neoliberal é marcado


pela “dessocialização catastrófica” (KURZ, 2014), ou seja, um deslocamento do processo
outrora intencionalmente orgânico das formações sociais modernas, que produziam sua
unidade em torno da dinâmica imanente da identidade das “máscaras de caráter” constitutivas
dessa forma social: “como essa unidade foi implodida pela crise, seu lugar vai sendo ocupado
por relações sociais sustentadas no uso direto da violência, que procura manter conectado o
que ainda funciona da reprodução social da velha ordem agônica” (MENEGAT, 2019a, p.
128). Essa relação entre colapso da racionalidade instrumental neoliberal e dessocialização 192
catastrófica pode ser lida na chave de que uma das características do capitalismo é “reduzir
em grande medida a forma da existência dos indivíduos às necessidades da economia”
(MENEGAT, 2019a, p. 120). Com a agudização da crise estrutural do capitalismo, essa
redução ao econômico da existência gira em falso, pois não se consegue mais promover
integração social, tornando supérfluas grandes massas humanas, desnecessárias ao modo de
produção capitalista.

Mas, o que ocorre com os sujeitos numa quadra histórica em que o sucesso não está
mais no campo de possibilidades de ser? Qual o impacto do colapso da razão instrumental
neoliberal no campo do psiquismo? O que ocorre depois de o mercado se tornar a norma da
vida psíquica? Em outras palavras, quando o mercado se encontra também em processo de
crise e regressão, quais são os efeitos psíquicos que isso gera? A crise da razão instrumental
neoliberal intensifica os processos de regressão não apenas, por exemplo, no campo dos
direitos adquiridos, produzindo desemprego estrutural e miséria disseminada, mas também no
campo do psiquismo, radicalizando aqueles efeitos analisados por Lasch e Sennett.

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A partir deles é possível tematizar como as mudanças neoliberais também fizeram com
que se alterassem os modos de sofrimento psíquico. Porque, como diz Jorge Coelho Soares
(2000, p. 221), “formas específicas de sofrimento psíquico podem ser derivadas e diretamente
associadas à dinâmica de um dado projeto econômico-político”, a tarefa atual da crítica é
pensar quais modos de sofrimento se apresentam nesse contexto de ruína. De um lado estão a
mercadoria e o capital como bases da sociabilidade capitalista ancorada no trabalho. Contudo,
em tempos de desemprego estrutural, esse dinamismo gira em falso. Num nível mais
fenomênico, ocorre a gestão das populações supérfluas, por meio da marcha fúnebre da
necropolítica que atua na realização do apartheid e da matança de corpos periféricos das
grandes metrópoles (MBEMBE, 2003). Essas populações geridas necropoliticamente já estão
fora do circuito do sucesso neoliberal (que significa ter dinheiro suficiente disponível), são
corpos entendidos como aquém do empreendedorismo de si mesmo. Corpos sem valor.
Sujeitos monetários sem dinheiro. Vivemos tempos nos quais “a humanidade não cabe mais
nos cálculos da economia” (MENEGAT, 2019a, p. 196). O problema da atualidade é o da
193
falência dessas estratégias psíquicas de adesão ao mundo do trabalho. Nesse sentido:

Já não há trabalhadores propriamente ditos. Já só existem nômadas do trabalho. Se,


ontem, o drama do sujeito era ser explorado pelo capital, hoje a tragédia da multidão
é não poder já ser explorada de todo, é ser objeto de humilhação numa humanidade
supérflua, entregue ao abandono, que já nem é útil ao funcionamento do capital
(MBEMBE, 2014, p. 14).
Mbembe chama esse caráter descartável e solúvel generalizado ao mundo inteiro como
“devir-negro do mundo” (MBEMBE, 2014, p. 18). No que interessa aqui, tornar-se supérfluo
ao mundo do trabalho inserido numa sociedade que impõe a sujeição ao trabalho como
momento necessário de socialização é a condição inédita da atualidade.

Tomo como exemplo o campo da educação para analisar o estado atual de coisas: a
educação anterior visava substituir o princípio de prazer pelo princípio de realidade, sem
aniquilá-lo totalmente, gerando sujeitos neuróticos como horizonte viável para o
estabelecimento de laços sociais e funcionamento social. Na era de ouro do capitalismo, a
escola foi uma instituição que participava do projeto da modernidade no sentido de produzir
uma padronização de corpos dóceis politicamente e úteis produtivamente na direção de uma

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“subjetivação capitalista”, isto é, realizar a inserção de cada um dos indivíduos no universo da
produção de mercadorias por meio do emprego (FOUCAULT, 1987). Portanto, a escola era
portadora da promessa integradora da educação (GENTILI, 2012).

A educação do neoliberalismo modificou essa conjuntura através da adoção do modelo


do sujeito empresarial como matriz de produção de subjetividade. No contexto inicial da
razão instrumental neoliberal, ainda não estavam claros os impactos do desemprego estrutural
sobre a educação. Por conta do desemprego estrutural e crônico, a educação não é mais capaz
de garantir, para um conjunto amplo de pessoas, o trabalho como emprego fixo, isso significa
uma aniquilação da educação um nome da empregabilidade. Ou seja, a escola já não tem mais
como objetivo a formação de um contingente de trabalhadores técnicos e capazes de produção
de riqueza, mas sim de contribuir para o fortalecimento da “empregabilidade individual”.

A possibilidade de um horizonte coletivo seguro se quebrou – a garantia de um


emprego depois da formação escolar – e, em seu lugar, foi colocada uma saída
hiperindividualista. A educação passou a ser um bem econômico pertencente aos indivíduos. 194
Ela possibilita aos alunos (encarados como empreendedores de si) capitalizarem seus recursos
privados na direção de rendimentos futuros. A educação é, então, vista como um investimento
individual e não mais como parte integrante do projeto democrático. Nesse contexto, a
educação enquanto projeto de formação de indivíduos adotou sem restrições o modelo da
empresa como norma de produção de subjetividade.

O grande problema dessa saída hiperindividualista é que a educação acaba colocando


no colo do indivíduo-aluno a resolução de um problema objetivo, histórico e amplo. O
emprego nunca foi um problema individual, mas sempre um problema de planejamento
econômico ampliado. No entanto, hoje o emprego é posto como questão de empregabilidade
e, assim, de esforço individual. No segundo tempo da razão instrumental neoliberal, ocorre a
desintegração da promessa integradora da educação (GENTILI, 2012). A resolução do
emprego em termos individuais de empregabilidade, no primeiro tempo da razão instrumental
neoliberal, apresentava o lado positivo do empreendedorismo, isto é, da criatividade,
inventividade, autonomia etc.

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No entanto, essa psicologização do sucesso e da conquista do emprego desde o início
se apresentou também de maneira negativa por meio de novas psicopatologias como a
síndrome de Burnout (HAN, 2015) e a depressão (EHRENBERG, 1998). No segundo tempo
da razão instrumental neoliberal, o do seu colapso, a face bárbara dessa saída
hiperindividualista se torna a tendência da relação do sujeito com a sociedade capitalista.
Zygmunt Bauman é preciso em sua “análise de disjuntura”11:

Os jovens da geração que agora está entrando ou se preparando para entrar no


chamado “mercado de trabalho” foram preparados e adestrados para acreditar que
sua tarefa na vida é ultrapassar e deixar para trás as histórias de sucesso de seus pais;
e que essa está totalmente dentro de suas possibilidades. Não importa aonde os pais
conseguiram chegar, eles chegarão mais longe. Pelo menos é assim que foram
ensinados e doutrinados. Nada os preparou para a chegada do novo mundo
inflexível, inóspito e pouco atraente, o mundo da degradação dos valores, da
desvalorização dos méritos obtidos, das portas fechadas, da volatilidade dos
empregos e da obstinação do desemprego; da transitoriedade das expectativas e da
durabilidade das derrotas; um novo mundo de projetos natimortos e esperanças
frustradas, e de oportunidades mais notáveis por sua ausência. (BAUMAN, 2013, p.
45).
Se a sobrevivência psíquica já era frágil nos tempos em que a razão instrumental 195
neoliberal funcionava a plenos pulmões, agora que ela dá sinais de esgotamento, torna-se
ainda mais difícil para os sujeitos se estabilizarem psiquicamente. Os próprios sujeitos
introjetam essa destrutividade oriunda do desfazimento da razão instrumental neoliberal. A
concorrência é assimilada no espaço educacional como uma guerra perpétua na qual cada um,
para sobreviver, deve se isolar com fria indiferença e também tratar com agressividade
selvagem tudo o que for obstáculo – inclusive dentro de si mesmo – ao êxito no mercado:

Esta educação prepara simplesmente as crianças para viverem no “novo espírito” do


capitalismo, cujos valores proclamados, como dissemos, se opõem amiúde aos
antigos sem que por isso os indivíduos sejam mais livres ou se sintam mais
realizados. Nas duas formas de educação, as pessoas conservam, muitas vezes

11
Uso aqui livremente essa expressão que é de autoria de Frédéric Vandenberghe. Ele a utilizou na ementa de
uma disciplina que ele ministrou no segundo semestre de 2019 no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ) chamada “Ontologia do presente: neoliberalismo,
antropoceno, populismo” e me parece sinalizar uma análise de um momento histórico que se apresenta na forma
da decomposição. Conjuntura alude à combinação de acontecimentos num dado momento, enquanto disjuntura
passa a ideia de que esse momento é aquele no qual os elementos não se combinam mas sim se desagregam.
Nesse caso específico, ocorre a desagregação da educação, do mercado e da democracia.

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durante toda a vida, uma recordação submersa dos traumas infantis, que podem
reactivar-se e desembocar num acto violento ou suicida e, nos casos mais extremos,
numa matança de massas. (JAPPE, 2019, p. 279).
O sujeito que está no horizonte da norma neoliberal adotada pela sociedade atual, e
consequentemente também pela escola, é o “flexível”, o qual, do ponto de vista do psiquismo,
é também aquele que se desfaz de todas as inibições sociais para se tornar capaz de tudo. Isso
levou intelectuais como DOUGLAS KELLNER (2008), ROBERT KURZ (2002) e ANSELM
JAPPE (2019) a analisar a ligação entre o amoque12 e o capitalismo. O colapso da
racionalidade instrumental neoliberal se dá pela penetração da abstração real da mercadoria
nas mais profundas dimensões psíquicas, transformando cada sujeito numa paisagem gelada
de sentimentos e processos psíquicos congelados, frios.

A democracia da economia de mercado chora lágrimas de crocodilo pelas suas


crianças perdidas em massacres. Crianças as quais ela submete constantemente por meio de
uma educação cujo horizonte é se tornar um exímio concorrente egocêntrico, disciplinado e
adoecido. Na derrota dessa travessia ao sucesso, o ódio emerge como certeza do sujeito em 196
relação à sua nulidade e superfluidade. O colapso da racionalidade instrumental neoliberal
produz assassinos amoque e suicidas como sujeitos da crise (KURZ, 2002). Trata-se da
junção paradoxal da produção destrutiva de subjetividade capitalista com o desfazimento da
substância do capital.

A necropolítica se impõe e se torna a tendência em crescimento desse mundo em


colapso. Ela pode ser definida como a “destruição material dos corpos e populações humanos
julgados como descartáveis e supérfluos” (MBEMBE, 2012, p. 135). Portanto, a necropolítica
é a gestão dos sobrantes, dessas massas que são o produto das práticas neoliberais, o exército
permanente de reserva do desemprego estrutural. Ela também pode ser definida como modo
12
Amok/amoque, termo oriundo do português “amouco” em voga no século XVI, que significa “cheio de fúria,
tomado de furor homicida, votado à morte, desesperadamente obcecado, desvairado”. É um fenômeno específico
dos povos da Malásia, Laos, Filipinas, Porto Rico, dentre outros, e se refere, em sua origem, aos guerreiros cuja
luta não conhecia precaução nem cautela e muitas vezes se assemelhava a suicídios coletivos, podendo ser lido
também como uma “possessão homicida” (SOFSKY, 2004), tendo assim origem no termo malaio meng-âmok,
que significa “atacar e matar com ira cega”. Chegou a ser considerado no DSM-IV no item Fuga Dissociativa,
300.13. No DSM-V, essa leitura parece ter sido retirada. Essa síndrome foi descrita psicopatologicamente pela
primeira vez em 1972 pelo psiquiatra estadunidense Joseph Westermeyer (1985).

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de regulação psíquica em tempos de declínio, fazendo emergir e se ampliar a figura do sujeito
supérfluo, l’homme jetable (OGILVIE, 2012), cuja existência objetiva está fora do circuito
social e a regulação psíquica está abalada, pois na medida em que o sujeito se vê devorado
pelo receio de que seu psiquismo se dissolva inteiramente, resta apenas a agressão (seja
dirigida para si mesmo por meio da depressão, p. ex., ou para os outros por meio da
aniquilação) como maneira desesperada de conservar a integridade de seu eu nulo.

Jappe (2018, p. 283) compreende que a eliminação do trabalho liberta também


energias destrutivas, as quais anteriormente estavam ligadas ao trabalho e passam agora a
vaguear livremente no espaço social, de maneira muito diferente, por exemplo, daquela
analisada por Norbert Elias (1993, p. 201) na passagem do controle social ao autocontrole,
baseado num superego que controla, transforma ou suprime as emoções em conformidade
com a estrutura social: “A agência controladora que se forma como parte da estrutura da
personalidade do indivíduo corresponde à agência controladora que se forma na sociedade em
geral”. O controle da violência do cotidiano aparece em Elias como evidência histórica da 197
tendência do processo civilizador, no entanto, os processos de descivilização ou as pressões
descivilizadoras caminham como sua sombra, de modo que a questão é saber “quais são as
forças que levam a melhor, a curto e a longo prazo: as centrífugas ou as centrípetas”
(MENNELL, 2001, p. 163). A tendência da atualidade parece agir no sentido da dissolução,
como se o presente fosse marcado por um “corte qualitativo deste exercício cotidiano das
pressões descivilizadoras” (MENEGAT, 2019b, p. 8).

Isso pode ser denominado – com inspiração livre na noção de “identificação com o
existente” (ADORNO, 1995, p. 43) – como adesão psíquica à barbárie, isto é, quando os
próprios indivíduos subjetivam/corporificam esse modo de ser em colapso, assumem para
suas próprias existências as normas sociais em frangalhos do capitalismo. Subjetivam tanto no
sentido de se sujeitarem à razão econômica em ruínas como única forma de existir nesse
mundo, quanto no sentido de internalizarem os mecanismos da concorrência, tornando-a forte
do ponto de vista da norma que regula o psiquismo, no momento em que mais ela se
enfraquece como horizonte de possibilidades para grandes massas humanas, pois já não

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promove nenhum tipo de inserção social. Os atos de destrutividade são a realização do
“homem flexível” exigido pela economia, essa figura subjetiva que deve se desfazer de todas
as inibições para se tornar capaz de qualquer tarefa que o mundo lhe exigir de maneira direta e
sem qualquer justificação discursiva que oriente suas práticas.

Como bem analisou Adorno (2020) em 1967, as ideologias e os modos de inscrição


individual na sociedade capitalista assumem uma forma demoníaca, verdadeiramente
destrutiva, quando os sujeitos se veem submetidos a contextos objetivos em relação aos quais
são impotentes. Na conjuntura atual, sujeitos se sentem, além de impotentes, também
supérfluos. A consequência disso é a emergência do amoque depois do empreendedor de si
mesmo do primeiro tempo da razão instrumental neoliberal, como novo sujeito da política,
um necroativista que não almeja nada mais que não seja a destruição de tudo e de todos, a
exemplo das carreatas da morte e nos atos no Brasil em tempos de pandemia. Ele já não é
mais exatamente o explorado, que força o explorador a reconhecê-lo, porque dele também
depende e que possui um projeto civilizatório menos destrutivo. A crise das formas de 198
socialização do capitalismo produz um número cada vez maior de seres humanos não
rentáveis e supérfluos, o que produz raiva e ódio nesses “detritos humanos” (JAPPE, 2019, p.
292), gerando ações de barbárie e de aniquilamento, muito distante do horizonte perdido da
luta de classes, cujo horizonte era a solidarização dos laços sociais.

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Submetido em: 25/09/2019


Aprovado em: 19/05/2020

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