H. W. Janson - A Arte Muçulmana

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Capítulo 1

A arte muçulmana

A incrível rapidez com que o Islã se expandiu através do Oriente Próximo e do norte
da África continua a ser um dos mais espantosos fenômenos da história do mundo. Em
duas gerações, a nova fé conquistou um território mais vasto e maior número de crentes
que o cristianismo em três séculos. Como foi possível a um grupo de tribos semicivilizadas
do deserto irromper da Península Arábica e impor o seu domínio político e religioso a popu-
lações bem superiores em número, riqueza e herança cultural? Que eles tiveram a vantagem
da surpresa, grande aptidão para a luta e uma fanática vontade de vencer, que tanto o poder
militar de Bizâncio como o da Pérsia estavam então em precárias condições, tudo isso foi
apontado. Essas circunstâncias favoráveis podem contribuir para explicar os êxitos iniciais
dos Árabes, mas não a natureza duradoura das suas conquistas. O que começara como uma
vitória da força logo se transformou num triunfo espiritual, quando o Islã ganhou a fideli-
dade de milhões de convertidos. Ao que parece, a nova religião, mais do que as anteriores
do Oriente helenizado, deve ter vindo ao encontro dos anseios de grandes multidões.
O Islã deve muitos dos seus elementos essenciais à tradição judaico-cristã. A palavra
Islã significa "submissão": os muçulmanos são os que se submetem à vontade de Alá,

MAR DE ARAL
342 História da arte A arte muçulmana 343

o Deus único todo-poderoso, como se revelou a Maomé e ficou consignado no Corão, bolos visíveis do seu poder, com a ambição de exceder todas as edificações pré-islâmicas
as escrituras sagradas do Islã, com freqüência inspiradas na Bíblia; os profetas do Velho em tamanho e esplendor. Esses primeiros monumentos da arquitetura muçulmana não se
Testamento e o próprio Jesus são tidos como precursores de Maomé. Os seus ensinamen- conservaram sob a forma original. O que conhecemos do seu traçado e decoração revela
tos incluem os conceitos do Juízo Final, do Céu e do Inferno, dos anjos e dos demônios. que eles foram criados por artífices do Egito, Síria, Pérsia e até Bizâncio, que continua-
Os mandamentos éticos do Islã também são fundamentalmente semelhantes aos do ram a praticar os estilos que tinham cultivado. Só no decurso do séc. VIII se definiu uma
judaísmo e cristianismo. Por outro lado, não há ritos que exijam um sacerdócio; cada tradição islâmica própria.
muçulmano tem igual acesso a Alá e as suas obrigações religiosas são simples: a oração
a certas horas do dia (a sós ou na mesquita), a esmola, o jejum e uma peregrinação a
Meca. Todos os verdadeiros crentes são como irmãos, membros de uma grande comunida- A ARTE MUÇULMANA DO ORIENTE
de. Chefe religioso e temporal enquanto viveu, Maomé legou uma crença que modelou
A Grande Mesquita de Damasco
um novo tipo de sociedade. A concentração da autoridade religiosa e política nas mãos
de um único chefe foi costume que perdurou: os califas, sucessores ou "representantes" Construída de 706 a 715, no recinto de um santuário romano, tinha as paredes cober-
do Profeta, basearam os seus direitos no parentesco com as famílias de Maomé ou dos tas de maravilhosos mosaicos de vidro, de origem bizantina. Nos fragmentos encontrados
seus primeiros fiéis. (fig. 334), apenas estão representadas paisagens e perspectivas arquiteturais, enquadradas
A característica ímpar do Islã – e o cerne da sua extraordinária atração – é a fusão de por orlas ricamente ornamentadas, sobre um fundo de ouro. Nada de semelhante aparece
elementos étnicos e universais. Como o cristianismo, foi aberto a todos os homens, na arte bizantina, mas o seu estilo reflete claramente um ilusionismo que já conhecemos
acentuando a fraternidade dos crentes perante Deus, sem distinção de raças ou de cultu- de Pompéia. Parece que as tradições antigas se mantiveram com mais vigor nas províncias
ras. Por outro lado, corno o judaísmo era também uma religião nacional firmemente cen- do Oriente Próximo bizantino que na Europa. O califa Al-Walid, que ergueu a mesquita,
trada na Arábia. Os guerreiros árabes que, conduzidos pelos primeiros califas, se lançaram deve ter acolhido bem estes motivos helenístico-romanos, tão diferentes do conteúdo sim-
à conquista da Terra para Alá não esperavam converter os infiéis ao Islã; o seu objetivo bólico e narrativo dos mosaicos cristãos. Segundo um autor árabe de época pouco poste-
era simplesmente o de governá-los e forçá-los à obediência a eles próprios, os servidores rior, aquela região tinha muitas igrejas ''encantadoramente belas e famosas pelo seu
do único e verdadeiro Deus. Todos os que desejassem participar nesta condição privilegia- esplendor'' e a Grande Mesquita de Damasco foi concebida para que os muçulmanos não
da, aderindo ao Islã, tinham que se tornar árabes por adoção: não só deviam aprender ficassem ofuscados por elas. ·
a língua arábica para lerem o Corão (se Alá escolhera esta linguagem, as suas palavras
não podiam ser traduzidas em línguas inferiores), mas também integrar-se no quadro so-
cial, jurídico e político da comunidade islâmica. Não se deixando absorver pelos povos
conquistados, assimilaram as suas culturas e adaptaram-nas às exigências do próprio credo.

ARQUITETURA

Na arte, herdaram o estilo paleocristão bizantino, com as suas reminiscências helenís-


ticas e romanas, e também as tradições artísticas da Pérsia. A contribuição da Arábia pré-
islâmica ficou limitada à sua bela escrita ornamental; povoada em grande parte por tribos
nômades, não tinha arquitetura monumental e as imagens esculpidas dos deuses locais
caíram sob a interdição de Maomé contra a ido1atria. A princípio, o Islã, como o cristia-
nismo primitivo, não fez nenhuma exigência às artes plásticas ou à arquitetura. Durante os
cinqüenta anos seguintes à morte do Profeta, o lugar para a oração tanto podia ser uma
Ígreja cristã confiscada como uma sala persa de colunas, ou até qualquer campo re-
tangular delimitado por uma cerca ou um fosso. O único elemento comum a todas a estas
mesquitas improvisadas era a marcação da qibla (a direção de Meca, para onde se voltam
os muçulmanos em oração): esse lado devia ser destacado por uma colunata ou simples-
mente encontrar-se oposto à entrada.
Mas no fim do século VII os soberanos islamitas, agora firmemente estabelecidos nas
terras conquistadas, começaram a erigir mesquitas e palácios em grande escala, como sím- 334. Mosaico de paisagem, 715 d. C. Grande Mesquita de Damasco
344 História da arte A arte muçulmana 345

335. Detalhe da fachada do Palácio 336. Mesquita de Mutawakkil (vista do norte), Sa-
de Mshatta (Jordânia), c. 743 d. C. marra, Iraque, 848-852 d. C.
Altura dos triângulos 24 cm. Mu-
seus do Estado, Berlim

O Palácio de Mshatta
A data do enorme Palácio de Mshatta, no deserto (hoje na Jordânia), tem sido muito
discutida e compreendemos facilmente por quê: o estilo da decoração da fachada (fig. 335)
inspira-se em diversas fontes pré-islâmicas. De acordo com os melhores testemunhos, o
palácio foi erigido por um dos sucessores de Al-Walid, provavelmente por volta de 743. A
decoração rendilhada e o caráter dos motivos vegetais recordam vivamente a ornamen-
337. Planta da Mesquita
tação arquitetural bizantina (fig. 315) e as variantes na execução indicam que ela se deve de Mutawakkil (segundo
a artífices recrutados em várias províncias das antigas regiões bizantinas do Oriente Próxi- Creswell)
mo. Há também uma notável influência persa, aparente nos leões alados e outros animais
míticos semelhantes aos dos tecidos e da ourivesaria sassânidas (fig. 115). Por outro lado, o
enquadramento geométrico de ziguezagues e rosetas, repetido uniformemente em toda a bém devem ter influído nas torres das igrejas medievais da Europa). A superfície da Gran-
largura da fachada, sugere um gosto pelos motivos simétricos abstratos característico da de Mesquita de Samarra ultrapassa os 38.000 metros quadrados; mais de metade desta
arte islâmica. área estava coberta por um telhado de madeira apoiado em 464 suportes (hoje desapareci-
dos, juntamente com os mosaicos que cobriam as paredes). O mais espetacular aspecto
A Grande Mesquista de Samarra deste conjunto é o minarete, ligado à mesquita por uma rampa. A sua concepção ousada
e invulgar, com uma escadaria em espiral até a plataforma do alto, recorda os zigurates
Um exemplo eloqüente dos empreendimentos arquitetônicos dos primeiros califas rea- da antiga Mesopotâmia, como a famosa Torre de Babel, nessa época ainda em bom esta- do
lizados numa escala imensa e com incrível rapidez é a Grande Mesquita de Samarra Gunto de conservação. Terá Al-Mutawakkil pretendido anunciar ao mundo que o reino dos califas
do Tigre, a noroeste de Bagdá), edificada sob Al-Mutawakkil (848-852). Apenas uma fo- era o herdeiro dos impérios do antigo Oriente Próximo?
tografia aérea (fig. 336) pode dar-nos uma idéia das vastas proporções desta mesquita,
a maior até hoje construída. Os elementos fundamentais da planta (fig. 337) são típicos A ARTE HISPANO-MOURISCA
das mesquitas deste período: um retângulo,- com o eixo principal orientado para Meca,
ao sul, encerra um pátio rodeado por naves ou galerias laterais que conduzem à parede A Mesquita de Córdova
da qibla, cujo centro está marcado por um pequeno nicho, o mihrab; do lado oposto vê-se Para se ter uma noção do efeito interior da Mesquita de Samarra, devemos nos voltar
o minarete, uma torre de onde os fiéis eram convocados à oração pelo grito do muezzin para a de Córdova, na Espanha, iniciada em 786. Apesar de consagrada ao culto católico
(esta edificação característica derivou das torres de igrejas paleocristãs da Síria, que tam- depois da reconquista da cidade em 1236, o edifício conserva o seu caráter muçulmano.
346 História da arte A arte muçulmana 347

A planta (fig. 338) foi inicialmente delineada como uma versão mais simples do tipo de
Samarra, mas com naves apenas do lado da qibla. Meio século depois, a mesquita seria
aumentada pelo alongamento dessas naves, novamente prolongadas entre 961 e 965; vinte
anos mais tarde, oito naves suplementares foram acrescentadas a leste, porque a margem
do rio impedia qualquer alargamento para o sul. Estes sucessivos acrescentamentos reve-
lam a natureza flexível das plantas das mesquitas primitivas, que permitiam quadruplicar
o tamanho do templo sem afastá-lo do plano inicial. Logo na entrada nos deparamos com
uma floresta de colunas aparentemente infindável, sem nada mais que a direção das naves
para nos guiar até à qibla.
O santuário era coberto por um telhado de madeira (agora substituído por abóbadas)
338. Planta da Mesquita de Córdova, mostrando assentando sobre arcadas duplas de um notável e pitoresco traçado (fig. 339). Os arcos
as sucessivas ampliações entre 786 e 987 d. C. (se- inferiores são em ferradura, uma forma que aparece em edifícios pré-islâmicos do Oriente
gundo Marçais) Próximo, mas que a arquitetura muçulmana tornou peculiarmente seus. Suas bases são
colunas curtas e finas, de uma espécie bem conhecida desde os tempos romanos e paleo-
cristãos. Essas colunas, porém, suportam igualmente impostas de pedra que servem de
apoio a um segundo grupo de arcos. Teria sido este dispositivo uma solução criada pela
necessidade, porque o arquiteto encarregado de construir a mesquita com urgência teve
que utilizar as colunas de um edifício anterior? Se foi assim, decerto tirou melhor proveito

340. Capela de Villaviciosa, Mesquita de


339. Interior do santuário (vista do lado oriental), Mesquita de Córdova Córdova, 961-965 d. C .
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do artifício, porque o efeito produzido é muito mais leve e etéreo que o de qualquer siste-
ma de suportes e arcos simples.
Uma elaboração anterior do mesmo princípio encontra-se na Capela de Villaviciosa
(fig. 340), uma câmara abobadada a Norte do mihrab, que data da campanha de constru-
ção de 961-965. Encontramos aqui arcos lobulados em três filas sobrepostas, entrecruza-
dos de modo a formar grilhagens ou bandeiras ornamentais complexas. A abóbada revela
ainda maior imaginação; oito arcos, ou nervuras, cruzam-se em várias direções criando
uma rede de alvéolos no espaço quadrado. É esclarecedora a comparação do efeito espa-
cial da mesquita de Córdova com o da arquitetura bizantina (v. fig. 316): nesta última,
o espaço é sempre tratado como volume, possui uma forma nitidamente definida, enquan-
to em Córdova os seus limites são deliberadamente indefinidos, de maneira que nos parece
algo de fluido, ilimitado e misterioso. Mesmo na Capela de Villaviciosa, as saliências e
as reentrâncias impedem-nos de ver as paredes ou abóbadas como superfícies contínuas;
como em uma gaiola rendilhada, o espaço fica escondido e contudo ligado ao que o envolve.
É um estilo tipicamente mourisco (hispânico e norte-africano) que chega ao máximo
requinte no palácio da Alhambra de Granada, a última praça forte dos muçulmanos na
Península durante a Baixa Idade Média. A parte mais rica, o Pátio dos Leões e os aposen-
tos ao redor, foi construída de 1354 a 1391 (fig. 341). As colunas tornaram-se esguias co-

342. Decoração de estuque. Sala das Duas


Irmãs, Alhambra de Granada

mo caules de flores; suportam arcos peraltados de configuração extravagantemente


complexa, talhados em paredes que parecem reduzidas a uma trama omamental seme-
lhante a teias de aranha.
Nas superfícies interiores (fig. 342) encontramos a mesma renda de arabescos decorati-
vos, realizada em estuque ou em azulejos delicadamente coloridos - uma variedade ilimi-
tada de motivos decorativos incluindo faixas com inscrições, mas disciplinados pela ordem
rítmica e pela simetria. O efeito é infinitamente mais rico que o da fachada de Mshatta,
mas retrospectivamente os dois monumentos, separados por seis séculos e toda a extensão
do Mediterrâneo, aparecem claramente ligados pela mesma concepção fundamental das
formas. A abóbada mourisca passou por um processo evolutivo análogo: as nervuras da
Capela de Villaviciosa desapareceram atrás dos "favos" formados por um sem-número
de alvéolos, emoldurados por arcos minúsculos, que pendem dos tetos como estalactites.
Não admira que a Mesquita de Alhambra surja à imaginação romântica do Ocidente co-
mo a representação visual de todas as maravilhas de As Mil e Uma Noites.

341. Pátio dos Leões, Alhambra de Gra-


nada, 1354-91
350 História da arte A arte muçulmana 351

343. Pátio (visto do lado da qibla), Madrasah 344. Mausoléu anexo à Madrasah do sul-
do sultão Hasan, Cairo, 1356-63 tão Hasan

A ARTE TURCO-MUÇULMANA
a encontrar. Representa uma atitude perante o espaço arquitetônico completamente opos-
A partir do século X, os turcos seldjúcidas avançaram gradualmente pelo Oriente Mé- ta à das mesquitas árabes de múltiplas naves.
dio, onde se converteram ao islamismo, dominaram a maior parte da Pérsia, da Mesopo- Contíguo à parede da qib/a da Madrasah do sultão Hasan ergue-se o Mausoléu deste,
tâmia, da Síria e da Terra Santa, e arremeteram contra o Império Bizantino na Ásia Menor. um grande edifício cúbico encimado por uma cúpula de ascendência bizantina (fig. 344).
Foram seguidos, no século XIII, pelos mongóis de Genghis Khan – em cujos exércitos Tais monumentos funerários eram desconhecidos na primeira época do Islã; foram adap-
figuravam os mamelucos (povo aparentado aos turcos) – e pelos turcos otomanos. Os tados do Ocidente no século IX e tornaram-se especialmente populares entre os sultões
últimos não só deram fim ao Império Bizantino, pela conquista de Constantinopla em 1453, mamelucos do Egito.
mas também ocuparam todo o Oriente Próximo e o Egito, vindo a ser a maior po- tência do
mundo maometano. A crescente preponderância do elemento turco na civiliza- ção O Taj Mahal, em Agra
muçulmana está patente na expansão para o Ocidente de um novo tipo de mesquita, a
O mais- famoso mausoléu da arquitetura islâmica é o Taj Mahal em Agra (fig. 345),
madrasah, criado na Pérsia sob a dominação seldjúcida, no século XI.
erguido três séculos mais tarde por um dos soberanos muçulmanos da Índia, Shah Jahan,
em memória de sua mulher. O monarca pertencia à dinastia mongol, que viera da Pérsia, de
A Madrasah do sultão Hasan, no Cairo
modo que a semelhança fundamental do Taj Mahal e do Mausoléu do sultão Hasan é
Um dos exemplares mais imponentes é a Madrasah do sultão Hasan, no Cairo, con- menos surpreendente do que parece à primeira vista. Ao mesmo tempo, urna tal compara-
temporânea da Alhambra de Granada, mas de espírito muito diferente; a sua principal ção realça as qualidades peculiares que fazem do Taj Mahal urna obra-prima da sua espé-
característica é um pátio quadrado (fig. 343), com uma fonte ao centro. A cada lado do cie. O aspecto maciço do mausoléu do Cairo, de cornija saliente e cúpula solidamente
pátio abre-se uma sala retangular abobadada; a que está do lado da qibla, maior que as implantada, deu lugar a uma elegância imponderável, próxima da leveza da Alhambra.
outras, serve de santuário. A escala monumental destes recintos parece refletir a arquitetu- As paredes de mármore branco, quebradas por fundas reentrâncias como nichos de som-
ra palaciana da Pérsia sassânida (fig. 113), enquanto a clareza geométrica de todo o traça- bra, lembram folhas de papel, quase translúcidas, e o edifício inteiro dá a impressão de
do, acentuada pelas severas superfícies murais, é urna contribuição turca que voltaremos mal tocar no solo, parecendo suspenso da cúpula, como de um gigantesco balão.
352 História da arte A arte muçulmana 353

mas dos minaretes dos cantos. A seqüência ascendente dessas cúpulas foi tratada com
maravilhosa lógica e geométrica precisão, de maneira que o exterior é muito mais harmo-
nioso que o da igreja bizantina. Assim, a primeira metade do século XVII, que viu erguer-
se tanto o Taj Mahal como a Mesquita de Ahmed I, assinala o derradeiro florescimento
arquitetônico islâmico.

347. Planta da Mesquita de Ahmed I


346. Mesquita de Ahmed I, Istambul, 1609-16 (segundo Unsal)

345. Taj Mahal, Agra, Índia, 1630-48

As mesquitas
Os turcos otomanos, logo que se estabeleceram na Ásia Menor, elaboraram um tercei-
ro tipo de mesquita, por um cruzamento da madrasah seldjúcida com a igreja bizantina de
cúpula. Entre os primeiros e mais extraordinários resultados deste processo conta-se a
cúpula de madeira da mesquita Ulu em Erzurum, que tem conseguido resistir aos fre-
qüentes abalos de terra da região. Os turcos já estavam portanto bem preparados para
apreciar a beleza de Hagia Sophia quando entraram em Constantinopla. A igreja de Justi-
niano causou-lhes tal impressão que encontraremos os seus ecos em numerosas mesquitas
construídas em Istambul e em outras partes, depois de 1453. Uma das mais impressionan-
tes, a do sultão Ahmed I, data de 1609 a 1616 (figs. 346-348). A sua planta modifica e
regulariza o traçado de Hagia Sophia, convertendo-o num quadrado, com a cúpula cen-
tral escorada por quatro meias-cúpulas, em vez de duas, e quatro cúpulas menores próxi- 348. Detalhe da Mesquita de Ahmed I
354 História da arte A arte muçulmana 355

REPRESENTAÇÃO FIGURATIVA apenas reforçou um gosto que lhe era natural. Quando as técnicas das artes dos nômades
– fabricação de tapetes, ourivesaria, trabalho de couro – se fundiram com o vasto reper-
Antes de tratarmos da pintura e da escultura muçulmanas, devemos compreender a tório de formas e materiais acumulado pelos artíficies do Egito, do Oriente Próximo e
atitude islâmica ante as representações figurativas. Foi muitas vezes semelhante à dos ico- do mundo greco-romano, as artes decorativas muçulmanas atingiram um grau de suntuo-
noclastas bizantinos, mas há diferenças significativas. Os iconoclastas mostraram-se con- sidade jamais igualado desde então. Os exemplos que mostramos não podem dar mais
trários às imagens sagradas mais que à representação propriamente dita. Maomé também que uma remotíssima idéia da sua infinita variedade.
condenou a idolatria; uma das suas primeiras ações depois do regresso triunfal a Meca É característico que uma boa parte dos mais belos espécimes se encontre em igrejas
em 630 foi apoderar-se da Kaaba, um antigo santuário árabe, para retirar quantos ídolos lá e palácios da Europa Ocidental; quer fossem obtidos por compra, por dádiva ou como
encontrou, ídolos que se crê terem sido estátuas. Estas, segundo o Corão; são vistas como despojos de saque pelos cruzados, foram apreciados através da Idade Média como mara-
inspiradas por Satanás, mas nada se diz das pinturas ou outros modos de representação. vilhas de artesanato imaginativo e muitas vezes imitados. Assim é o manto bordado da
A atitude do Profeta em relação à pintura foi ambígua. Segundo um antigo texto ára- coroação dos imperadores germânicos (fig. 349), feito por artífices muçulmanos de Paler-
be, em 630 ele teria mandado destruir as pinturas murais de ternas religiosos (provavel- mo para Rogério II da Sicília, em 1133-34, meio século depois de os normandos terem
mente bíblicos) da Kaaba, com exceção de urna só, da "Virgem com o Menino", que ele conquistado a cidade aos islamitas (que foram senhores dela durante 241 anos). O agrupa-
teria protegido com as próprias mãos. Este incidente e a falta de referência a esta questão mento simétrico de dois leões atacando camelos, de ambos os lados de uma simbólica
na teologia muçulmana primitiva leva a pensar que as imagens pintadas nunca foram um árvore da vida, é um motivo cuja ascendência remonta a milênios no Oriente Próximo
problema para Maomé e seus sucessores imediatos. Nenhuma tradição pictural existia en- antigo (fig. 107); aqui, inscritos em quartos de círculo e cobertos de variadas espécies de
tre os árabes e por isso a pintura religiosa muçulmana só podia inspirar-se em fontes es- ornamentos, os ferozes animais constituem um admirável motivo decorativo que os apro-
trangeiras e desenvolver-se com assentimento das autoridades que podiam fazer vista grossa xima do estranho quadrúpede de bronze executado cinqüenta anos depois numa parte muito
ou mostrar-se algo tolerantes para com as imagens sagradas de outras religiões. (Maomé diferente do mundo islâmico, o nordeste da Pérsia (fig. 350). Tem quase um metro de altu-
talvez salvasse a "Virgem com o Menino" para não ferir os sentimentos de antigos cris- ra e é uma das maiores esculturas de vulto redondo de toda a arte islâmica. Contudo,
tãos que se encontravam entre os seus discípulos.) não se pode chamar a estátua de um animal, pois lhe falta esse caráter. É um vaso, um
Todavia, esta iconoclastia passiva não impediu os árabes de aceitar a arte figurativa defumador perfurado, de configuração semelhante à de um quadrúpede, mas o aspecto
secular dos territórios conquistados. Rejeitaram todas as estátuas como abomináveis, mas representativo das formas parece secundário e fortuito. Não podemos dizer de que espécie
as paisagens helenísticas decoram mesquitas (fig. 334) e animais sassânidas aparecem dis- de animal se trata e, se apenas uma parte dele subsistisse, poderíamos ter muitas dúvidas
seminados na decoracão em relevo da fachada da Mshatta (fig. 335). E nas ruínas de ou- de que representasse qualquer coisa, tão abstrato e ornamental é o tratamento do corpo.
tro palácio, contemporâneo do anterior, apareceram fragmentos de afrescos com figuras
humanas. Só a partir de aproximadamente 800 encontramos censuras severas à figuração
em si, talvez por influência de judeus convertidos. Teme-se o perigo, já não de idolatria,
mas de presunção; ao representar seres vivos o artista usurpa um ato criador reservado
a Deus.

Os objetos decorados
Em princípio, todas as figuras humanas ou de animais foram proibidas. Na prática,
a interdição apenas foi rigorosa quanto às representações em tamanho natural, ou maior.
Parece que se desenvolveu a convicção, em. especial nas faustosas cortes dos califas e de
outros príncipes, de que as imagens de seres vivos escapavam à alçada da lei desde que
não projetassem sombras, fossem de pequenas dimensões ou reproduzidas em artefatos
de uso corrente - tapetes, louças, tecidos, etc. E assim o homem e os animais permanece-
ram na arte do Islã, reduzidos pouco a pouco a motivos ornamentais, sem mais importân-
cia que a decoração geométrica ou fitomórfica.
De resto, essa tendência era de tradição antiqüíssima entre os povos que forjaram a
civilização islâmica. Árabes, persas, turcos e mongóis, todos tinham em comum o amor
pelos objetos portáteis ricamente decorados, herança do seu passado de nômades. O Islã 349. Manto da coroação dos imperadores germânicos. 1133-34. Seda vermelha, bordada a ouro; larg. 3,40 m.
Kunsthistorisches Museum, Viena
356 História da arte· A arte muçulmana 357

351. Erasistratus e um Discípulo, ilu-


minura de uma tradução árabe do De
Materia Medica de Dioscórides, 1224.
Smithsonian lnstitution, Freer Gallery
of Art, Washington, D.C.

350. Queimador de incenso, de Khura-


san, Irã. 1181-82. Bronze, alt. 0,85 m.
The Metropolitan Museum of Art, No-
va Iorque (Rogers Fund, 1951)

Pintura
O destino da pintura islâmica, entre os séculos VIII e XIII continua quase inteiramen-
te desconhecido. Ficaram tão poucas obras dos cinco séculos que se seguiram aos mosai-
cos de Damasco, que acreditaríamos no completo desaparecimento da expressão pictural 352. Desenho a pena, a tinta verme-
sob o Islã se as fontes literárias não nos dessem a prova do contrário. Mesmo assim, pare- lha, de um manuscrito de Hariri. Me-
ce evidente que a tradição da pintura foi mantida graças a artistas de outras religiões. Mes- sopotâmico(?), 1323. Museu Britâni-
tres bizantinos estiveram a serviço de soberanos árabes e as comunidades cristãs do Oriente co, Londres
que sobreviveram no império maometano deviam incluir muitos pintores. Mas que espécie
de pintura poderiam desejar os muçulmanos? te com o texto. A fonte original deve ter sido uma miniatura antiga tardia, com figuras
É de supor que havia uma maior ou menor procura, exigida pela ilustração de textos em três dimensões, num fundo com perspectiva, mas é preciso um grande esforço de ima-
científicos. Os árabes tinham herdado esses manuscritos dos Bizantinos, no Oriente Pró- ginação para encontrar vestígios dessas características na versão presente, em que tudo
ximo e, como estavam vivamente interessados na ciência grega traduziam-nos para a sua perdeu o relevo ou ganhou caráter ornamental. As formas permanecem rigorosamente na
própria língua. Isso implicava também a reprodução das ilustrações, pois que formavam superfície da página, como o texto, e os traços à pena denotam uma firmeza rítmica ao
uma parte essencial do conteúdo, quer fossem diagramas abstratos ou imagens figurativas fim da caligrafia.
(como nos tratados de medicina, de zoologia ou de botânica). Estas obras situam-se entre Poderia pensar-se que ilustração de manuscritos abriu caminho na arte islâmica graças
os mais antigos manuscritos ilustrados islâmicos, embora nenhuma seja anterior a 1200. aos escribas que desenhavam por necessidade do ofício, porque entre os muçulmanos esta
A figura 351 é extraída de uma tradução árabe, assinada e datada de 1224, do livro De profissão era muito antiga e considerada; um calígrafo hábil podia executar ilustrações,
Materia Medica, de Dioscórides; aí se vê o médico grego Erasistratus reclinado num leito se o texto as exigisse, sem correr o risco de ser chamado de pintor (uma abominação aos
e conversando com um ajudante (ambos providos de uma auréola, como figuras venerá- olhos de Alá!). Assim ou de outro modo, o estilo caligráfico das representações à pena,
veis). Note-se que o escriba também executou a iluminura ou, melhor, copiou-a juntamen- com ou sem aplicação de cores, aparece cedo na literatura árabe profana, como no Maqa-
358 História da arte

mat de Hariri. Estes deliciosos contos, escritos por volta de 1100, foram provavelmente
ilustrados logo nos cem anos seguintes, pois se conhecem manuscritos ilustrados dessa
obra desde o século XIII. O desenho da figura 352, ele um exemplar com a data de 1323,
é um inequívoco descendente do estilo que encontramos na iluminura de Dioscórides, da-
tada de um século antes.

PÉRSIA

Os comerciantes árabes tinham estado em contato com o Extremo-Oriente mesmo


antes do advento do Islã, e algumas alusões incidentais a pintores chineses por autores
muçulmanos antigos indicam que esses contatos lhes tinham dado um certo conhecimento
da arte da China. Mas foi só depois da invasão mongol do século XIII que a influência
chinesa se tornou um fator importante na arte maometana. Sente-se mais fortemente nos
manuscritos ilustrados persas, realizados durante o domínio mongol, de 1300 em diante,
tais como a Paisagem de Verão da figura 353, estampa 35. Mais de três séculos antes,
durante a dinastia de Sung, os pintores chineses tinham criado uma arte paisagística de
grande profundidade atmosférica. As montanhas envolvidas em brumas e as torrentes cau-
dalosas traduziam uma visão poética da natureza selvagem. O pintor mongol deve ter co-
nhecido bem esta tradição, pois os elementos essenciais reaparecem na sua obra, enrique-
cidos por um novo sentido de cor que o levou a acentuar o vermelho e o amarelo das folhas
mortas no outono. Teriam paisagens deste gênero alcançado a Europa medieval? Não
sabemos, mas o fato de a pintura paisagística no Ocidente, que tinha estado adormecida
desde os fins da Antigüidade, ter começado a ressurgir justamente nesta época (figs. 496,
501) pode ser mais ao que uma coincidência.
Até que ponto essa influência enriqueceu e transformou a tradição da iluminura islâ-
mica vê-se bem na cena da Luta entre o Príncipe Humay e a Princesa Humayun (fig. 354):
não é um desenho colorido, mas uma ambiciosa composição pictural que enche toda a 354. JUNAYD. Luta entre o Prín-
página. A narrativa a ilustrar serviu meramente como um ponto de partida para o artista; cipe Humay e a Princesa Humayun,
de um manuscrito persa. 1396. Mu-
seu Britânico, Londres

muito do seu esforço foi dedicado ao cenário mais do que à própria ação. Deve ter sido
um grande admirador das paisagens chinesas, porque as rochas, árvores e flores, sombrea-
das com graça e delicadeza, refletem a sua origem extremo-oriental. Ao mesmo tempo,
o traçado possui uma qualidade decorativa que é caracteristicamente muçulmana; sob esse
aspecto, parece mais próximo dos motivos dos tapetes persas que da etérea amplidão da
pintura paisagística chinesa.
Outro resultado importante da influência do Extremo-Oriente foi, ao que parece, a
aparição de temas religiosos em miniaturas persas. Os soberanos mongóis, familiarizados
com a rica tradição da arte religiosa budista da Índia e da China, não partilhavam o hor-
ror dos seus predecessores à simples idéia de representar Maomé. Em todo o caso, apare-
cem cenas da vida do Profeta em manuscritos iluminados persas desde o século XIV. Como
353. Paisagem de Verão, do Álbum
do Conquistador (Sultão Maomé li).
nunca tinham sido representadas, os artistas encontraram nas artes cristã e budista as fon-
Mongol (v. est. 35), Museu do Palá- tes de inspiração. O resultado foi uma curiosa mistura de elementos, com freqüência mal
cio de Topkapu, Istambul assimilados.
A arte muçulmana 361
360 História da arte
e de cabeça humana, da Mesopotâmia antiga (fig. 101), e dos seus parentes próximos
Apenas em raras ocasiões a pintura religiosa muçulmana atingiu um nível que permitaa
as esfinges e centauros que tinham sobrevivido, apenas como motivos ornamentais no
comparação com a arte das religiões mais antigas. Uma dessas composições é a maravi-
grande cadinho da arte decorativa islâmica; Aí jaziam adormecidos, por assim dizer até
lhosa miniatura que mostra a Ascensão de Maomé (fig. 355, est. 36). No Corão, lemos
que alguns escritores os identificam ao buraq. Nesta iluminura, as asas ficaram reduzidas
que o Senhor "disse ao seu servidor que fizesse uma viagem de noite... até o remoto lugar
ao colar de penas em volta do pescoço do animal, para não prejudicar a reprodução da
de oração que rodeamos de bênçãos, a fim de que nos possamos manifestar a Ele..".
sela. Gabriel indica o caminho, através de um céu azul profundo, salpicado de estrelas
Vieram depois autores que acrescentaram minuciosos pormenores a este breve texto: a as-
debaixo, entre as nuvens, há um corpo celeste luminoso, provavelmente a lua. Os elemen-
censão dera-se em Jerusalém, e fora guia o anjo Gabriel; Maomé elevou-se através de sete
tos extremo-orientais manifestam-se claramente nesta visão poética. Encontramo-los nos
céus, onde encontrou os seus precursores, incluindo Adão, Abraão, Moisés e Jesus, antes
halos doµrados chamejantes, atrás de Gabriel e do Profeta, traço freqüente na arte budis-
de ser conduzido à presença de Alá. Toda a viagem foi concebida como análoga à de Elias, ta; na estilização ondulada e "intestinal" das nuvens, nas vestes e tipos fisionômicos dos
que subiu ao céu num carro de fogo. E ainda se dizia que Maomé cavalgara numa miracu- anjos. Todavia, a composição, no seu conjunto – o movimento agitado dos servidores
losa montaria branca chamada buraq, mais pequena que um macho e maior que um bur- angelicais convergindo de todos os lados para Maomé – lembra fortemente a arte cristã.
ro, e com o focinho semelhante a um rosto humano; alguns até lhe davam asas... A A iluminura representa deste modo um verdadeiro – e singularmente feliz – encontro
ascendência desta cavalgadura é fácil de encontrar; deriva dos monstros guardiães, alados do Oriente e do Ocidente. Apenas foi feita uma pequena concessão à iconoclastia islâmi-
ca: o rosto do profeta está em branco, manifestamente por se entender que seria uma here-
sia representá-lo.
Cenas como estas aparecem em obras históricas ou literárias mas nunca em manuscri-
tos do Corão. Nem mesmo os persas ousaram, segundo parece, ilustrar diretamente o Li-
vro Sagrado, ainda que – ou talvez por isso – cópias iluminadas da Bíblia não fossem de
todo desconhecidas no mundo islâmico. O Corão permaneceu um domínio reservado

356. Página caligráfica, do Álbum do


Conquistador (Sultão Maomé II).
355. Ascensão de Maomé, de um ma- 1rabalho turco (?), séc. XV. Museu do
nuscrito persa, 1539-1543. British Li- Palácio de Topkapi, Istambul
brary, Londres
362 História da arte

aos calígrafos, como fora desde o início do Islã. Nas suas mãos, os caracteres árabes
converteram-se num conjunto de formas assombrosamente flexíveis, capazes de uma infi-
nita variedade de combinações decorativas, tanto geométricas como curvilíneas. Os me-
lhores desses traçados são obras-primas de imaginação disciplinada que parecem anunciar, de
modo estranho, certa arte abstrata do nosso tempo. A página reproduzida na figura 356,
estampa 37, devida provavelmente a um calígrafo turco do século XV, representa apenas o
nome de Alá. É, na verdade, maravilhosa em complexidade, dentro de um severo jogo de
regras formais, possuindo juntamente as características de um labirinto, de um motivo de
tapete ou de algumas pinturas não-figurativas. E, mais que em qualquer outro objeto, nela
está resumida a essência da arte muçulmana.

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