(Maria Izabel Limongi) Hobbes
(Maria Izabel Limongi) Hobbes
(Maria Izabel Limongi) Hobbes
Sumário
Introdução
Vida e obras principais
Idéias principais
O estado de guerra e as paixões naturais dos homens
O contrato ou a instituição da política
As leis de natureza e a ciência moral
O direito e o poder
O Estado e o governo
Conclusão
Seleção de textos
Cronologia da vida e época
Notas e referências
Leituras recomendadas
Sobre a autora
Copyright
Coleção PASSO-A-PASSO
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Direção: Celso Castro
FILOSOFIA PASSO-A-PASSO
Direção: Denis L. Rosenfield
PSICANÁLISE PASSO-A-PASSO
Direção: Marco Antonio Coutinho Jorge
Hobbes
Sumário
Introdução
Vida e obras principais
Idéias principais
O estado de guerra e as paixões naturais dos homens
O contrato ou a instituição da política
As leis de natureza e a ciência moral
O direito e o poder
O Estado e o governo
Conclusão
Seleção de textos
Cronologia da vida e época
Notas e referências
Leituras recomendadas
Sobre a autora
Introdução
Thomas Hobbes é conhecido sobretudo por seu pensamento
político, mais precisamente como o pai do conceito moderno de
Estado. Pelo menos três idéias compõem este conceito tal como
apresentado por Hobbes, permanecendo até hoje indissociáveis
dele: a idéia de soberania, isto é, o Estado se constitui como um
poder soberano, um poder acima do qual não há nenhum outro e ao
qual todos os poderes (eclesiásticos, econômicos etc) se
subordinam; a idéia de que o Estado tem por fim regulamentar a
vida econômica, isto é, garantir a indústria, o comércio e todos os
ingredientes de uma vida materialmente satisfeita; e a idéia de que o
Estado é representativo, isto é, que seus atos representam a vontade
de seus cidadãos e se fazem em nome dela.
Da noção de soberania, Hobbes não é o inventor; ela já aparecia
na obra de Jean Bodin. Tampouco é o pai da idéia de que a política
existe fundamentalmente como meio de regulamentar os
intercâmbios sociais de modo a garantir a prosperidade econômica,
o que já está presente em Maquiavel. Em contrapartida, Hobbes é o
criador da idéia de representação política, e podemos acompanhar a
elaboração dessa noção ao longo da evolução de seu pensamento
político, de 1640 nos Elementos da lei a 1651 no Leviatã, quando
essa idéia fundamental do pensamento político moderno aparece
pela primeira vez em sua obra. Seja como for, quando se diz que
Hobbes é o pai do conceito de Estado moderno não se quer dizer
com isso que teria inventado todos os elementos que compõem tal
noção. A importância de Hobbes está sobretudo em ter reunido em
torno do conceito de Estado os traços que em sua época começavam
a apontar para uma nova concepção da política.
Hobbes é também bastante conhecido por sua visão negativa do
homem, estando sua imagem associada para nós à máxima homo
lupus hominis, o homem é o lobo do homem. É a partir dessa idéia
que geralmente compreendemos o núcleo de seu pensamento
político, que em sua versão banalizada poderíamos resumir da
seguinte forma: sendo os homens maus por natureza e naturalmente
inimigos uns dos outros, nenhuma associação ou aliança entre eles
seria possível, não fosse a intervenção de um poder absoluto,
coercitivo e punitivo que, vindo a conter o egoísmo inerente à
natureza humana, viabilizaria a paz entre os homens. Se a coerção
do Estado precisa ser permanente, se não é possível sonhar com o
fim do Estado, é porque, segundo Hobbes, a natureza humana seria
invariável; nenhum progresso moral, nenhum processo pedagógico
seriam capazes de superar o desregramento das paixões humanas, a
não ser a coerção e o medo da espada soberana.
Desde muito cedo, já na passagem do século XVII para o século
XVIII, o hobbesianismo foi associado ao pessimismo antropológico.
Daí que muitos daqueles que quiseram negar os princípios da
política hobbesiana entenderam ser necessário negar sua
antropologia. É o caso de Rousseau. Se for possível mostrar —
raciocina ele — que o homem não é o lobo do homem e pintar a
condição natural do homem em tons mais amenos, então cai por
terra a idéia de que a única maneira de viabilizar a paz é a
submissão de nossas vontades por meio da coerção à vontade
soberana do Estado.
Contemporaneamente, podemos ainda observar estratégias
semelhantes à de Rousseau sendo mobilizadas para relativizar os
princípios da política de Hobbes. Assim, C.B. Macpherson, lendo
Hobbes a partir de Marx, pensa ser possível reduzir a verdade do
hobbesianismo a um período historicamente datado, no qual, sendo
o capitalismo um sistema de produção apenas iniciado, com os
meios de produção ainda incapazes de assegurar uma vida
materialmente satisfatória ao conjunto da humanidade, os homens
se comportavam, e não podia ser de outro modo, tal como Hobbes os
descreveu, ou seja, de maneira a assegurar para si, em detrimento
dos outros, as condições de sua subsistência. Porém, uma vez
superado esse período, com o capitalismo ingressando num estágio
mais avançado e o sistema de produção sendo capaz de garantir a
subsistência de todos, a política de Hobbes deixaria, segundo
Macpherson, de ser necessária. O homem não tem mais por que ser
o lobo do homem, e o Estado não tem mais que se caracterizar como
uma instância de coerção. Assim, Hobbes estaria certo, segundo as
leituras de Rousseau e Macpherson, apenas enquanto tivermos
motivos antropológicos ou históricos para descrever o homem como
ele descreveu.
É por essas e outras interpretações consagradas da obra política
de Hobbes que estamos acostumados a pensá-lo sobretudo como um
“realista”. Hobbes ficou para nós como alguém que viu a natureza
humana tal como ela é, tendo justificado a partir de seu diagnóstico
negativo da natureza humana a necessidade de um poder coercitivo
capaz de forçar os homens à obediência das leis necessárias a uma
convivência pacífica. Nisso residiria também a modernidade da
política de Hobbes: a política tem um campo próprio, diferente da
moral; cabe a ela regular coercitivamente (ou seja, a partir de um
meio que não é ele mesmo de natureza moral) os conflitos dos
interesses particulares. Para isso existe o Estado e, na medida em
que pensarmos estes conflitos como mais ou menos superáveis, o
Estado e seu poder se fazem mais ou menos impositivos.
Essa versão da teoria política de Hobbes é tão divulgada que
estaríamos praticamente dispensados de apresentar o seu
pensamento se quiséssemos apenas reiterá-la. O que nos propomos
fazer, no entanto, é outra coisa. Trata-se de introduzir a filosofia de
Hobbes e, mais precisamente, nela situar a parte que, não sem razão,
o consagrou como um clássico: seu pensamento político. Trata-se
ainda de, no interior deste pensamento, compreender o argumento
pelo qual ele se tornou mais conhecido: a justificação da necessidade
do poder coercitivo do Estado. Mas gostaríamos de indicar que esse
argumento é muito mais sofisticado e interessante do que
costumamos supor a partir da imagem que a tradição nos deixou de
Hobbes.
Hobbes não julga que o poder do Estado é apenas uma forma de
coibir nossas paixões egoístas e nossa irremediável imoralidade. O
Estado não tem apenas esta função negativa. Ele é também a
condição sem a qual os homens não chegam a poder estabelecer
entre si relações racionais. Ora, para compreender esta última
afirmação, é preciso antes de mais nada compreender o que Hobbes
entende por razão — o que nos conduzirá a outros recintos da
filosofia hobbesiana que não estritamente os de seu pensamento
político. Assim, o que nos propomos mostrar é o modo como a
política hobbesiana se assenta sobre os princípios do racionalismo
hobbesiano, ou, em que medida o Estado, para Hobbes, é racional.
Para nos guiarmos nesse percurso, comecemos primeiramente por
traçar um quadro da vida, da obra e das principais idéias de Hobbes.
Vida e obras principais
Thomas Hobbes nasceu em 1588, em Westport, próximo a
Malmesbury, Inglaterra. Entre 1603 e 1608 estudou a física e a
lógica aristotélica em Magdalen Hall, Oxford. Em1608, torna-se tutor
de William II Cavendish (mais tarde o segundo conde de
Devonshire), com quem, em 1608, se inscreveu na Universidade de
Cambridge.
Por volta de 1620, trabalhou com Francis Bacon como secretário
e o auxiliou na tradução latina de seus Ensaios. Cavendish morreu
em 1628, ano em que Hobbes terminou sua tradução da Guerra do
Peloponeso, de Tucídides. Em seus versos autobiográficos, Hobbes
associa a importância do livro à demonstração das fraquezas da
democracia ateniense, subvertida pela ambição de políticos
demagogos.
Em 1628, como preceptor do filho de Sir Gervase Clifton, Hobbes
viaja para França e Suíça. Em seus versos autobiográficos, assim
como na biografia escrita por seu amigo Aubrey, consta que durante
esta viagem foi atraído pelo método demonstrativo de Euclides, o
que teria significado uma reviravolta em sua história intelectual.
Hobbes voltou a trabalhar para os condes de Devonshire, em
1631, como preceptor do filho de seu antigo aluno. Junto com ele,
para fins didáticos, traduziu para o latim a Retórica de Aristóteles,
livro que exerceu grande influência sobre ele na elaboração de sua
teoria das paixões. Entre 1634 e 1636 fez uma nova viagem ao
continente, durante a qual visitou Galileu.
Em 1640, Hobbes redigiu os Elementos da lei, primeira versão de
sua teoria política, em inglês, que circulou em manuscrito. Voltou a
Paris, refugiado de seu país na iminência de uma guerra civil, onde
iria permanecer 11 anos, entrando para o círculo de amigos de
Mersenne e Gassendi. Provavelmente também nesse ano completou
um tratado ótico, conhecido como a Ótica latina MS, no qual critica
diversos pontos da Dióptrica de Descartes. Ainda em 1640 escreveu,
a pedido de Mersenne, as Terceiras objeções às meditações
metafísicas, do mesmo Descartes.
Em 1642, ano em que se deflagrou a guerra civil inglesa, Hobbes
publica a primeira edição de Do cidadão, em latim, segunda versão
da teoria política pela qual se consagrou como pensador político.
Entre 1642 e 1643 redigiu a Crítica do De mundo de Thomas White,
onde discute questões relativas ao movimento e à matéria (obra que
permaneceu inédita até 1973). Em 1644, escreve um tratado ótico,
conhecido como o Tractatus opticus I. Em 1645 ou 46, compôs um
tratado ótico em inglês, conhecido como a Ótica inglesa, e tornou-se
tutor do jovem príncipe Charles, também refugiado na França, a
quem ensinava matemática.
1651 é o ano em que Hobbes publicou o Leviatã, livro que lhe
custou a perda do apoio dos realistas refugiados na França. Em
virtude disso, retornou no ano seguinte à Inglaterra, instalando-se
em Londres. Em 1654 é publicado, provavelmente à revelia de
Hobbes, o opúsculo Sobre a liberdade e a necessidade, escrito em
1646 por ocasião de uma discussão acerca do livre-arbítrio com
John Bramhall.
Em 1655, Hobbes publica o De corpore (Do corpo), a primeira
parte de seu sistema, compreendendo uma lógica e uma física, cujas
primeiras versões remontam aos anos de 1645-6. Uma tradução
inglesa da obra, revista por Hobbes, foi publicada no ano seguinte,
quando também se publicaram as Questões acerca da liberdade,
necessidade e contingência, contendo a polêmica entre Hobbes e
Bramhall. Hobbes iniciou por essa época uma polêmica com John
Wallis, em torno de questões matemáticas tais como a quadratura
do círculo, polêmica que acabou por lhe custar a exclusão da recém
fundada Royal Society.
Em 1658, Hobbes publica o De homine (Do homem), a segunda
parte de seu sistema, o qual, segundo ele, seria composto pelo De
corpore, o De homine e o De cive (Do cidadão). Em 1662, publica Mr.
Hobbes considerado em sua lealdade, religião, reputação e costumes,
trabalho autobiográfico em que se defende das acusações de
ateísmo que se faziam contra ele. Em 1664, redige o Diálogo entre
um filósofo e um estudioso da Common Law e, em 1666, o Behemoth,
uma história da guerra civil inglesa. Ambas as obras serão
publicadas apenas em 1680. Em 1666 publica uma versão latina do
Leviatã.
Dedicou-se nos últimos anos de vida às traduções da Ilíada
(1673) e da Odisséia (1676). Morreu em 1679, aos 91 anos de idade.
Idéias principais
Hobbes concebe, em acordo com o espírito do racionalismo do seu
tempo, a filosofia como um sistema em que, partindo-se de noções
fundamentais, se procede de maneira a derivar delas todas as
demais noções que deverão compor o edifício do conhecimento.
Para Hobbes, essas noções fundamentais são as noções de corpo e
de movimento. A partir delas, ele construiu uma física, da qual
derivou uma teoria da natureza humana (uma teoria da percepção,
uma teoria das paixões e dos costumes), que por sua vez lhe serviu
de base para sua teoria política. Daí o projeto hobbesiano de compor
a filosofia em três partes: o De corpore, o De homine e o De cive.
Devido às conturbações políticas por que passava a Inglaterra,
porém, Hobbes entendeu ser importante começar o seu sistema pelo
fim, escrevendo e publicando primeiramente o De cive.
A física de Hobbes — nisso também em sintonia com o seu
tempo, com a nova física de Galileu, Descartes e Gassendi — é uma
física mecanicista, ou seja, uma física que pretende explicar os
fenômenos naturais reduzindo-os a relações entre corpos em
movimento. Os corpos são a matéria sobre a qual o movimento
incide, e o movimento é a causa de tudo o que se passa nos corpos.
Assim, para explicar um evento como, por exemplo, a percepção, é
preciso mostrar de que maneira ela se produz como uma
determinação particular de um corpo — o corpo que percebe — a
partir dos movimentos dos outros corpos que incidem sobre ele e
que se apresentam como sua causa. Uma teoria da percepção e, mais
precisamente, uma ótica, ou seja, uma teoria da percepção visual, foi
o terreno no qual Hobbes elaborou os princípios de sua mecânica.
O que singulariza a mecânica hobbesiana é a radicalidade com
que Hobbes defendeu a idéia de que o movimento é a única causa de
tudo o que existe e que não há nada, a não ser o próprio movimento,
que possa explicar as determinações do movimento, responsáveis
por todas as mudanças ocorridas nos corpos. Daí as críticas de
Hobbes à Dióptrica de Descartes. Hobbes discorda, entre outras
coisas, da idéia cartesiana de que a direção de um movimento possa
se explicar a partir de coordenadas estritamente espaciais. Para ele,
a direção de um movimento, assim como todas as suas
determinações, se explica pelas determinações dos movimentos que
compõem o movimento que se quer explicar.
É esta idéia que Hobbes condensa na noção de conatus (esforço)
— uma noção fundamental de sua física, posteriormente
incorporada com alterações significativas, pelas filosofias de
Espinosa e Leibniz, que nesse e em outros pontos sofreram uma
importante influência de Hobbes. O conatus consiste, segundo
Hobbes, em ínfimos movimentos imperceptíveis das partes internas
de um corpo que explicam as determinações de todos os seus
movimentos perceptíveis. Assim, o apetite é para Hobbes um
conatus, ou seja, um movimento imperceptível de nosso corpo (cuja
causa é o movimento dos outros corpos sobre o nosso corpo) que
está na raiz de nossos movimentos perceptíveis, nossos movimentos
voluntários, tais como andar, falar etc. Se quisermos explicar as
determinações de um movimento, seja ele qual for, é para os
pequenos movimentos de que ele é composto que devemos atentar.
A razão é, para Hobbes — assim como para Descartes e os outros
racionalistas do século XVII, como Espinosa e Leibniz — uma ordem
demonstrativa. Duas idéias, no entanto, singularizam o racionalismo
hobbesiano. A idéia de que o princípio do conhecimento não é a
própria razão, mas a imaginação e, no limite, os sentidos; e a idéia de
que a razão é um artifício, ou seja, uma instituição humana,
refletindo, desse modo, não o ordenamento das coisas mesmas, mas
o ordenamento que os homens dão às coisas segundo suas
necessidades.
A idéia de Hobbes é que a razão se instituiu no momento em que
os homens inventaram a linguagem, impondo nomes aos conteúdos
de sua imaginação, para melhor lembrá-los. Antes da invenção dos
nomes, todo o conhecimento humano se reduzia ao que Hobbes
denomina a prudência ou o cálculo mental — um tipo de
conhecimento que os homens partilham com os animais e que se
reduz basicamente à expectativa de que um evento se produza a
partir da relação que ele mostrou ter na experiência passada com
outros eventos.
É por termos observado que da percepção de uma nuvem
carregada se segue normalmente a chuva que estamos preparados a
levar conosco um guarda-chuva, sempre que observamos nuvens
carregadas no céu antes de sair de casa. Mas esse conhecimento,
meramente empírico, não é, segundo Hobbes, um conhecimento
perfeito. Ele não é nem universal, nem necessário. Isto é: da
percepção de uma relação constante entre a nuvem carregada e a
chuva não podemos concluir que toda nuvem carregada engendre
necessariamente a chuva. Desconhecemos o princípio desse
engendramento e, por isso, permanece possível que um evento se
produza sem o outro. Tudo o que temos é a expectativa de uma
relação que a experiência mostrou ser constante, mas cuja razão
desconhecemos.
Oferecer a razão de um evento equivale para Hobbes, como de
um modo geral para os racionalistas do século XVII, a fornecer a sua
gênese — o que passamos a poder fazer no momento em que, tendo
sido instituída a linguagem, deixamos de calcular com imagens para
calcular com nomes, quando definimos um termo e retiramos dessa
definição as conseqüências que estão embutidas nela. Assim, se
definimos a nuvem como gotículas de água suspensas no ar,
podemos concluir que necessariamente um acúmulo dessas
gotículas além de um certo limite produzirá a chuva. Nossa
conclusão, nesse caso, independe do fato de termos observado uma
relação constante entre nuvens carregadas e chuva. Se aceitamos a
definição de nuvem, aceitamos ao mesmo tempo que ela engendra
ou é a razão, a causa, da chuva.
Esse exemplo não é de Hobbes, que, não por acaso, no que diz
respeito às operações da razão, prefere trabalhar com exemplos
retirados da matemática e da política. Estas seriam, para ele, as
ciências mais perfeitas justamente porque as definições de que
partem são uma instituição puramente humana. Quando definimos
um triângulo como uma figura de três lados e três ângulos não
estamos preocupados em saber se existem triângulos na natureza
tais como os definimos. O que nos importa é a perfeição da definição
e as conseqüências que podemos extrair necessariamente dela —
por exemplo, que a soma dos ângulos internos de um triângulo é
igual a dois ângulos retos. Da mesma forma, quando definimos a
justiça como o cumprimento de um contrato, tornamo-nos capazes
de calcular o que é justo ou injusto a partir dos contratos
voluntariamente empreendidos pelos homens e dos quais os
homens são a única causa. O cálculo, nesse caso, independe
totalmente do modo como os objetos se ordenam na nossa
imaginação, podendo ser feito na estrita pureza da razão, como um
cálculo de conseqüências de nomes. Adiante, iremos explorar o
alcance desta idéia na teoria política de Hobbes.
Quanto às principais idéias políticas de Hobbes, deixemos para
apresentá-las ao longo da exposição subseqüente, na qual iremos
percorrê-las a fim de mostrar em que medida o Estado e seu poder
se concebem como uma condição do estabelecimento de relações
racionais entre os homens.
O estado de guerra e as paixões naturais dos
homens
É bastante conhecida a idéia hobbesiana de que a condição natural
do homem é uma condição de guerra de todos contra todos. Mas de
onde Hobbes retira essa idéia? No que se baseia para fazer tal
afirmação?
O estado de guerra é, nos termos de Hobbes, uma inferência que
se pode fazer a partir das paixões humanas. Conhecemos as nossas
próprias paixões observando-nos a nós mesmos. No entanto, do
simples conhecimento de nossas paixões não podemos concluir que
as paixões dos outros homens sejam iguais às nossas. Para tanto,
seria preciso que pudéssemos conhecer os outros por dentro, tal
como conhecemos a nós mesmos. Como isso não é possível, tudo o
que podemos fazer é inferir, a partir do comportamento dos
homens, quais podem ser as motivações que os levam a agir como
agem e que possam explicar suas ações.
Mas isto só não basta. É preciso ainda comparar as ações dos
outros homens com as nossas e discernir as circunstâncias que, por
assim dizer, as enquadram e que, no limite, explicam por que os
homens agem como agem. Em outros termos: para conhecermos as
paixões humanas não cabe sondar os corações dos homens, suas
intenções íntimas e secretas, que não nos são dadas a conhecer, e
sim descobrir uma espécie de lógica do comportamento, o que faz
com que em certas circunstâncias nos comportemos de uma
determinada maneira. É preciso descobrir o que determina e explica
nosso modo de agir. E, para isso, não basta dizer que uma certa
paixão, como, por exemplo, o medo, está na raiz de uma ação, como a
fuga; é preciso ainda compreender por que sentimos medo,
observando em que circunstâncias o experimentamos. Aí, sim,
teremos inferido um comportamento a partir das paixões; teremos
compreendido a causa, a gênese ou a razão desse comportamento.
Portanto, para compreender o que são nossas paixões é preciso
conhecer as circunstâncias que as determinam. Fugimos quando
sentimos medo, e sentimos medo quando um objeto que
percebemos como temível causa em nós esta percepção e, junto com
ela, a paixão do medo. Do mesmo modo, agimos no sentido da
guerra quando alguma coisa determina em nós certas paixões que
estão no princípio de nosso comportamento belicoso. Para saber,
portanto, por que a condição natural da humanidade é uma condição
de guerra é preciso saber o que nos determina a experimentar
certas paixões que, por sua vez, conduzem à guerra.
A circunstância que explica nossas paixões e nosso
comportamento natural é, segundo Hobbes, a igualdade natural
entre os homens. Porque os homens são naturalmente iguais,
porque possuem as mesmas capacidades de corpo e de espírito, eles
têm a esperança de poder conseguir para si o mesmo que os outros.
Trata-se portanto de explicar uma paixão — a esperança — a partir
de uma circunstância — a igualdade. E dessa paixão segue-se um
determinado comportamento: sempre que os homens desejarem um
objeto que não possa ser desfrutado em conjunto, eles se tornarão
inimigos, disputando por tal objeto. Com isso, Hobbes não quer dizer
que os homens estejam sempre efetivamente em disputa. O que ele
quer dizer é que a inimizade e a disputa são comportamentos que se
pode razoavelmente esperar dos homens em certas circunstâncias,
ou seja, que este comportamento é justificável e que podemos
esperar que ele possa ocorrer numa situação de igualdade.
Dessa razoável disputa, segue-se ser também razoável
desconfiarmos dos outros homens. Isto é, a desconfiança é uma
paixão que se explica pela circunstância de uma possível disputa. E
da desconfiança, justifica-se o comportamento de nos anteciparmos
ao eventual ataque que possamos sofrer, garantindo-nos com todos
os meios disponíveis contra ele. Assim, nessas circunstâncias, é
razoável que nos antecipemos, procurando aumentar ao máximo
nosso poder de resistir a um ataque, cuja possibilidade não é
insensato supor.
Aqui, mais uma vez, vale lembrar: Hobbes não quer dizer com
isso que os homens ajam efetivamente assim (ainda que a
experiência não o desminta), mas que numa situação de igualdade é
razoável e justificável que os homens se comportem dessa maneira.
Entenda-se: sendo possível mostrar a gênese desse comportamento
e, nessa medida, oferecer sua razão, é razoável inferir que os
homens se comportem dessa maneira, em dadas circunstâncias. E
essa inferência justifica que nos comportemos de igual maneira a
fim de nos precavermos, o que, por sua vez, justifica o
comportamento dos outros no mesmo sentido e assim por diante: a
lógica da guerra está instaurada. E ela permanece uma possibilidade
sempre que pudermos, dadas certas circunstâncias, justificar o
comportamento que a alimenta.
Não que por natureza estejamos sempre em guerra. O que
Hobbes quis dizer é que nossa condição natural é tal — a condição
de igualdade de poder — que a guerra permanece o horizonte
sempre possível das relações entre os homens e, sendo possível, isto
basta para justificar o comportamento efetivo de nos anteciparmos
às suas conseqüências e nos comportarmos efetivamente de modo a
fomentar uma situação de disputa. Daí o cuidado de Hobbes em
precisar: “a natureza da guerra não consiste na luta atual, mas na
conhecida disposição para tanto, durante todo o tempo em que não
houver segurança do contrário”. Esta “conhecida disposição” não é
outra coisa senão a “inferência a partir das paixões” — ou seja, o fato
de podermos supor, numa situação de igualdade, que os homens se
comportem de maneira a procurar cada vez mais poder para si
próprios. Esta suposição equivale à guerra porque justifica que
ajamos, e nos dá o direito de agir, no sentido de torná-la real e
efetiva.
Mas a explicação hobbesiana da guerra não termina aí. Por
enquanto só mencionamos duas das três causas da guerra arroladas
por Hobbes: a competição e a desconfiança. Há ainda uma terceira,
talvez mais importante do que as primeiras — a glória, o fato de os
homens estarem em constante disputa pela honra e pela reputação.
O que é curioso nessa terceira causa da guerra é que, ao
contrário das duas primeiras, ela não se segue, pelo menos não
diretamente, da circunstância da igualdade, e Hobbes não indica, no
momento em que a estabelece como uma causa da guerra, nenhuma
circunstância que a explique, como se ela fosse um traço
injustificável da natureza humana, uma espécie de capricho sem
razão de ser. Isto, no entanto, não está em acordo com o modelo
hobbesiano de explicação da conduta: todo comportamento tem por
causa uma paixão e toda paixão se explica por uma circunstância
que a determina.
O tema da disputa pela honra e pela reputação é, porém,
recorrente na obra de Hobbes, e nela, de maneira dispersa, podemos
encontrar vários elementos que permitem explicar esse
comportamento. Disputar pela honra e pela reputação é uma forma
de tentar arrancar dos outros que eles reconheçam o nosso valor ou
o nosso poder. Este reconhecimento, por sua vez, é uma forma de
poder, pois na medida em que os homens nos reconhecem, na
medida em que somos reputados, temos poder de influência sobre
os outros homens, e, portanto, podemos contar com o uso de seus
poderes a nosso favor. Dispomos desse modo de maior poder social.
Assim, a disputa pela honra e pela reputação se explica no âmbito de
uma condição que já é de disputa, como uma forma de estender a
lógica da guerra para um nível superior, que não é mais o confronto
das forças brutas, mas agora o confronto do status social ou dos
signos sociais de poder.
A importância dessa terceira causa da guerra é que, por meio
dela, Hobbes está fazendo um diagnóstico do modo de sociabilidade
e das relações políticas de seu tempo, isto é, uma crítica da
sociedade cortesã, estruturada em torno dos valores da honra e da
reputação, os quais definem a hierarquia social desde o seu topo, o
príncipe ou o rei, que detém o valor máximo de nobreza e
supostamente de virtude, até as camadas mais baixas da população,
passando por todos os níveis intermediários de nobreza. O que
Hobbes quer indicar é que uma sociedade cuja ordem é montada em
torno dos valores da honra e da reputação é uma sociedade em
estado de guerra iminente, isto é, uma sociedade sem estabilidade
política.
Pois, o que é a honra senão a manifestação do valor que os
homens atribuem àqueles a quem reverenciam e a quem, por essa
via, conferem poder? Um homem honrado e reputado não tem
intrinsecamente maior valor e poder do que os outros, pois os
homens são naturalmente iguais e diferem apenas quanto ao seu
valor aparente, isto é, quanto ao valor que os outros lhes atribuem
segundo seus interesses e opiniões particulares. De maneira que o
valor e o poder social que um homem tem hoje pode deixar de ter
amanhã, quando a opinião a seu respeito tiver mudado, e, assim, as
relações de poder numa sociedade estruturada em torno da honra e
da reputação são relações instáveis, sujeitas à disputa permanente.
É preciso, portanto, encontrar um outro princípio estruturador da
sociabilidade, se quisermos escapar a essa situação de disputa, de
desconfiança e inimizade, cujo horizonte último, como quis mostrar
Hobbes, é a guerra e a dissolução completa do tecido social.
A guerra, assim, é inferida a partir das paixões. Mas não, como
por vezes se supõe, como uma conseqüência de um mal inscrito na
natureza humana, pois o comportamento que leva à guerra é
plenamente justificável e razoável, dadas as condições naturais da
existência humana, ou seja, dado o fato de que, sendo os homens
naturalmente iguais, nenhum poder, nenhuma instância de decisão
capaz de ordenar a vida política e social, pode se estabelecer
naturalmente de maneira a garantir uma sociabilidade estável.
Essa idéia é certamente inovadora; ela põe por terra os
princípios pelos quais se pensou a política até então. Pois, de um
lado, a partir do modelo oferecido pela Política de Aristóteles,
pensava-se que os homens eram por natureza animais políticos —
não porque tivessem sempre vivido uma vida política, mas por ser a
vida política o fim ao qual tende a natureza humana. A natureza
humana é política, porque se realiza nela e a ela tende naturalmente.
No entanto, essa idéia envolve uma outra que Hobbes pretendeu
contestar, a saber, que haja uma hierarquia natural entre os homens.
Pois, segundo Aristóteles, não são todos os homens que podem
participar da vida política, apenas aqueles que, estando livres dos
cuidados materiais da existência — na medida em que possuem no
âmbito doméstico subordinados que trabalhem por eles —, dispõem
de tempo, capacidade e virtude para tanto.
Além disso, se entre aqueles que estão por natureza destinados à
vida política pode haver consenso (o que se explica em grande parte
pelo fato de que seus conflitos econômicos se decidem no âmbito
doméstico, fora da arena política), é porque eles são capazes de
reconhecer os diferenciais de virtude que existem entre eles, neste
ou naquele domínio particular, de modo a poderem ser convencidos
por aqueles que, dentre eles, possuem maior valor. Ora, Hobbes quis
mostrar que esses diferenciais de valor não são naturais e que,
portanto, a questão de saber quem decide é uma questão
naturalmente sujeita à disputa. Daí a vida no interior de uma ordem
política não ser o destino natural do homem, mas algo que vai exigir
de nós um esforço no sentido da instituição de suas condições de
possibilidade, que não estão naturalmente dadas.
Por outro lado, se observarmos os princípios da política de
Maquiavel, já muito distantes dos de Aristóteles — uma vez que
colocam no centro da política as disputas de interesses de ordem
econômica —, veremos que, também para ele, a ordem política é, em
certo sentido, natural. Ela se estabelece no momento em que os
homens se organizam em torno de instituições republicanas que
definirão as regras dos modos de decisão e de regulação dos
conflitos, ou, então, no momento em que um homem, um príncipe,
conseguir angariar para si um poder suficiente para se impor aos
outros como instância de decisão e regulamentação. No primeiro
caso, os homens chegam naturalmente a um acordo. No segundo, à
falta do consenso, se submetem ao poder de fato de um homem.
Hobbes, porém, quis mostrar, com a sua teoria do estado de
guerra, que nem o consenso nem a submissão a um poder de fato,
embora possam se produzir, são suficientes para nos retirar de uma
situação de guerra iminente, conferindo estabilidade à ordem social.
O que, a seu modo, Maquiavel sabia muito bem, pois reconhecia que
as estruturas republicanas tendem a se corromper e que um
príncipe deve estar sempre atento aos ataques que pode sofrer por
parte dos outros poderes que se opõem ao seu. A contribuição de
Hobbes consistiu em acrescentar a esse diagnóstico acerca da
instabilidade das relações de poder a idéia de que a ordem política
precisa de um outro fundamento — nem a concordância
circunstancial dos interesses, que pode se romper de um momento
para outro, nem a constituição de um poder de fato que, do mesmo
modo pelo qual se impôs, pode ser deposto de um só golpe, mas um
contrato que dê estabilidade e realidade jurídica às instituições
políticas.
Esse contrato é produto de um ato voluntário. Em referência a
ele a política será pensada não mais como uma ordem natural, como
se pensou até então, mas como uma ordem voluntariamente
instituída pelos homens e cuja realidade é da ordem do jurídico.
O contrato ou a instituição da política
Do mesmo modo que é razoável supor, a partir de um cálculo acerca
das paixões humanas, que, na ausência de um poder comum a que
todos obedeçam, em condição de igualdade de poder, os homens
tenham motivos para disputar com os outros, desconfiar deles e
procurar obter maior poder pessoal, é também razoável supor que
os homens percebam as contradições dessa condição e dela queiram
sair. A situação de guerra é uma situação de miséria e incerteza. O
produto de nosso trabalho pode nos ser retirado a qualquer instante
por um poder maior que o nosso. Nossa vida está constantemente
ameaçada, pois nada nos garante, a não ser nosso próprio e ínfimo
poder, contra o poder dos outros, o qual não é insensato supor que
será usado contra nós. É portanto razoável que queiramos sair dessa
situação, garantindo as condições da paz.
Esse desejo de paz, que se supõe ser o desejo de todos os homens
que tenham refletido sobre as causas e os efeitos da guerra, está na
base de um suposto contrato ao qual Hobbes pretende fazer
remontar o fundamento jurídico do Estado, pensado ele mesmo
como um ente jurídico e, nesse sentido, não natural. Por meio desse
contrato, segundo o modelo de Hobbes, os homens se comprometem
reciprocamente a submeter suas vontades à vontade de um homem
ou assembléia de homens, que passa a ter poder para decidir acerca
de todos os assuntos concernentes à paz. Institui-se desse modo o
Estado.
Este contrato é, como dissemos, um contrato suposto. Ao dizer
que a origem das instituições políticas está num contrato, Hobbes
não pretende dizer que em um dado momento de sua história os
homens efetivamente o firmaram. O que ele quer dizer é que os
homens devem obedecer ao poder do Estado como se o tivessem
fundado a partir de um contrato, pois é isso que nos permite
compreender as razões, os limites e a forma da obediência civil; é
isso que nos permite compreender a obediência como um dever ou
uma obrigação. Ou seja: a hipótese da origem contratual do poder
político se impõe como uma forma de nos fazer ver que o Estado e
seu poder (pois o Estado é inseparável de seu poder, na medida em
que se institui como um poder maior que todo poder individual)
possuem uma realidade que é da ordem do jurídico. É uma
obrigação jurídica, contratual, que sustenta o poder do Estado e não
qualquer qualidade de fato desse poder, como sua força ou seu valor
intrínseco. E é na medida em que compreendemos a natureza dessa
obrigação que podemos conceber o tipo de estabilidade — uma
estabilidade jurídica — que esse poder possui.
Por ser juridicamente estável em sua soberania, por não estar
sujeito à oposição de nenhum outro poder (à exceção do poder de
outros Estados), o poder do Estado é o maior de todos os poderes
que os homens podem constituir para garantir as condições de sua
existência. Nesse sentido, tal poder é radicalmente diferente do
poder de uma multidão reunida. Uma multidão não está vinculada
por elos de obrigação, e da mesma maneira em que se forma, por
uma concordância circunstancial das vontades, pode se desfazer,
pelo dissenso sobre o modo de emprego de seu poder comum ou
pela força de uma outra multidão reunida. O poder do Estado, por
sua vez, não depende de uma concordância efetiva e circunstancial
das vontades. Ele se funda num contrato para o qual o que conta não
é o acordo efetivo, mas o fato de os homens terem expresso suas
vontades como concordantes no momento do contrato e se
encontrarem por meio disso obrigados a agir de acordo com o modo
como deram a significar suas vontades. O contrato é um ato de
linguagem — traço fundamental, ao qual voltaremos, sem cuja
referência não podemos compreender em que sentido um contrato
cria um vínculo de obrigação permanente.
Dissemos que a vontade que firma o contrato civil é uma vontade
suposta ou uma vontade que supostamente quer sair da condição de
guerra e instaurar as condições da paz. Pois Hobbes, nos parece,
nunca pretendeu dizer que alguma vez se produziu um acordo
efetivo ou real dos homens nesse sentido, mas que esta é uma
vontade que podemos supor ser a dos homens relativamente ao
contrato pelo qual eles supostamente teriam instituído o Estado.
Sendo o contrato um ato voluntário e sendo todo ato voluntário
um ato pelo qual se visa algum bem, na base de todo ato contratual é
preciso supor que o contratante vise e possa adquirir um bem, seja
ele qual for. É por isso que um contrato em que nos comprometemos
a matar a nós mesmos ou nos desfazer de todos os nossos bens é um
contrato nulo, pois não se pode supor que alguém queira a própria
morte ou abdicar de seus meios de vida, o que, em sentido algum,
pode ser entendido como um bem. Não que não se possa querer
efetivamente a própria morte ou destituir-se de todos os bens. Mas,
numa relação jurídica, numa relação contratual, não podemos supor
que esta seja a vontade de alguém — o que cria a situação, bastante
familiar aos juristas, de, por vezes, a vontade juridicamente suposta
não ser o exato equivalente da vontade efetiva.
É nesse sentido que dizemos que a vontade de sair da condição
de guerra e construir as condições da paz é uma vontade suposta.
Pois não é preciso crer que todos os homens tenham efetivamente
sua vontade determinada neste sentido, concordando de fato sobre
a necessidade da paz; basta compreender que é razoável supor que
esta seja a sua vontade para que se possa entender a razoabilidade,
e, com ela, a validade do contrato de instituição da soberania
política, a base do cálculo de nossos deveres e obrigações civis. Um
contrato não razoável é um contrato nulo, pois sua irrazoabilidade
consiste precisamente no fato de não se poder compreender que
tipo de bem se visa com ele, e, não trazendo um bem, não há o que
justifique que alguém o tenha feito. Que os contratantes tenham
motivos privados e ocultos para fazer certos contratos insanos,
pouco importa do ponto de vista jurídico. O que importa é que esses
motivos são publicamente concebidos como insanos, isto é, como
visando alguma coisa que está em desacordo com o que se pode
compreender ser a vontade dos homens em geral. O contrato é,
nesse sentido, juridicamente nulo.
Há, portanto, um ponto de vista jurídico que é aquele que
devemos adotar quando queremos pensar o Estado, ele mesmo um
ente jurídico, um sistema de obrigações e deveres pelos quais os
homens se vêem vinculados entre si. Toda obrigação é, segundo
Hobbes, o resultado da renúncia ou da transferência de um direito a
partir de um ato contratual. A fonte de toda obrigação é um
contrato, e, mais precisamente, o contrato de instituição do Estado.
Pois Hobbes entende que, antes desse contrato, antes que tenhamos
fundado juridicamente um poder soberano ao qual estejamos
vinculados por um dever de obediência, nenhum contrato é válido e,
por conseguinte, ninguém está obrigado a agir deste ou daquele
modo.
Há uma razão jurídica para isso. Numa situação em que é
razoável supor que aquele com quem contratamos não cumprirá sua
parte no contrato, como no caso de uma condição de guerra de todos
contra todos — na qual é razoável supor que os homens empreguem
todos os meios de que dispõem para aumentar seu poder pessoal, o
que inclui a quebra dos contratos —, ninguém teria motivos para
fazer um contrato. Não sendo razoável, um contrato é nulo. Como
dissemos, o contrato é um ato voluntário, e, por isso, sua validade
jurídica está na dependência de que se possa supor que os
contratantes adquiram algum bem através dele. Ora, o bem que se
visa no contrato é aquele que a outra parte contratante deverá nos
ceder em troca do bem que lhe concedemos. Sem garantia do
desfrute desse bem, não há nada que explique por que faríamos o
contrato. Daí que os contratos feitos nessa situação sejam nulos, não
obriguem a ninguém, do mesmo modo em que um contrato pelo
qual nos comprometemos a matar-nos a nós mesmos é um contrato
nulo.
Numa condição de guerra, de desconfiança mútua, não há
vínculos de obrigação possíveis. A guerra é o antijurídico, relações
de pura força e poder. Porém, uma vez instituído o poder do Estado
— cuja primeira e principal função é a de servir de fiador para os
contratos empreendidos, punindo todos aqueles que não cumprem
suas obrigações contratuais —, os contratos passam a ser válidos.
Não temos mais motivos para desconfiar que os outros não nos
concedam os bens que por meio deles são visados, e, portanto, a
vontade de criar vínculos de obrigação contratuais passa a poder ser
razoavelmente suposta na base dos contratos, conferindo-lhes
validade.
O poder punitivo do Estado se oferece, portanto, como a
condição material da validade formal dos contratos. Trata-se de uma
condição material porque o poder do Estado, embora constituído
juridicamente, não tem uma realidade apenas jurídica: ele é um
poder de fato, um poder que o Estado possui na medida em que lhe
concedemos, e só a ele, o direito de punir, assim como uma série de
outros direitos, como o de fazer leis, julgar as controvérsias etc.,
necessários à manutenção da paz. Ao acenar com a possibilidade de
punição daqueles que não cumprem seus contratos e desobedecem
as leis, o Estado determina materialmente, ou seja, de fato, a vontade
dos homens no sentido de cumprir suas obrigações.
Nem por isso, porém, é preciso supor que as pessoas obedeçam
às leis e cumpram seus contratos apenas porque de fato têm medo
de serem punidas. O medo da punição é condição material da
validade formal dos contratos, que obrigam em virtude de serem
formalmente válidos e não em virtude de termos medo das
conseqüências de seu rompimento.
No entanto, para que um contrato seja válido, requer-se que
possamos contar com o fato de que aquele com quem contratamos
tema ser punido pelo não cumprimento de sua parte contratual. Pois
esse medo é uma garantia para nós de que desfrutaremos do bem
visado, garantia da qual precisamos para que nossas vontades sejam
coerentemente expressas no contrato. Lembremos: só se pode
entender por ato voluntário aquele mediante o qual se adquire um
bem; e a possibilidade de aquisição de um bem é, por sua vez,
requerida para que os contratos, por serem atos voluntários,
tenham validade. Sendo válidos, os contratos obrigam em virtude
desta validade e não devido ao medo da punição. Não é, pois, apenas
porque tenho medo das conseqüências do rompimento de um
contrato que o cumpro, mas também porque, na medida em que sei
que o outro tem medo, posso fazer com ele contratos que sejam
juridicamente válidos e que imponham uma obrigação, a qual
reconheço.
Acerca disso, Hobbes nos diz que os homens justos são aqueles
que cumprem seus contratos em virtude da compreensão da
obrigação que ele acarreta e não em virtude do medo da punição.
Porém, mesmo o homem justo precisa da garantia material de que
os outros cumpram sua parte contratual. Esta garantia o poder
punitivo do Estado lhe fornece e sem ela não há contratos válidos,
nada que obrigue o homem justo a agir de acordo com sua
compreensão da justiça. A justiça não é outra coisa, segundo Hobbes,
senão o cumprimento dos pactos válidos. Onde não há contratos
válidos, não pode haver justiça, mas apenas um desejo de justiça.
Este desejo é o que singulariza o homem justo no estado de
natureza.
Para compreender a essência da obrigação, é preciso que se
compreenda, como já indicamos, o contrato como um ato de
linguagem. No ato contratual exprimimos nossa vontade como sendo
uma certa vontade, como estando determinada num certo sentido, e
é em virtude desse modo de exprimir a vontade que os contratos
obrigam. Hobbes compara a quebra de um contrato a uma
contradição lógica, ao que ele denomina absurdo. Com isso quer
dizer que, da mesma maneira que não podemos definir um triângulo
sem deixar de concluir em função dessa definição que seus ângulos
internos somam 180 graus, do ponto de vista da razão, não podemos
expressar nossa vontade como determinada a agir num
determinado sentido sem deixar de agir desse modo. Pois, nossas
palavras e ações significam nossa vontade e é preciso que esses
signos concordem entre si se não quisermos dar a significar uma
vontade incoerente. Isto seria o mesmo que definir um triângulo em
cada momento do nosso discurso de uma maneira diferente,
inviabilizando qualquer cálculo racional (pensado, como vimos,
como um cálculo de conseqüência de definições) acerca de suas
qualidades.
Qualquer um que tenha compreendido a natureza da razão
percebe que ela depende de um uso estável e coerente dos signos
lingüísticos ou de uma significação estável e coerente dos
pensamentos que queremos comunicar aos outros. Pois, sem isso, os
outros não podem compreender do que estamos falando, a que
estamos dando nomes, e não podem acompanhar nosso discurso,
sua cadeia de conseqüências, em que consiste a razão. Portanto, do
ponto de vista da razão, ninguém pode significar sua vontade ora
como sendo uma, ora como sendo outra, e é por isso, em virtude
dessa exigência racional, que devemos cumprir nossos contratos, se
exprimimos nossa vontade como sendo esta.
Isso não quer dizer, evidentemente, que não possamos de fato
quebrar nossos contratos, mas apenas que, agindo assim, agimos de
maneira irracional. E isto em dois sentidos. Em primeiro lugar,
porque damos a significar uma vontade incoerente, o que seria o
mesmo que, em matemática, definir uma figura e retirar dela
conseqüências incompatíveis com sua definição. Em segundo lugar,
porque deixamos de perceber que a razão é a ferramenta de
construção da paz, a qual é razoável supor que seja desejada por
todos, visto ser ela o único meio de desfrutar com tranqüilidade dos
bens que visam. Ou seja, desrespeitar os contratos empreendidos é
contrário à razão não apenas porque com isso incorremos numa
incoerência, mas também, e num sentido talvez mais importante,
porque com isso se declara aos outros que não se está disposto a
estabelecer com eles relações racionais, sem as quais não há paz
possível.
Quem desrespeita seus contratos age contrariamente ao seu
próprio bem, de maneira inconseqüente, não razoável. Pois,
desrespeitar contratos é o mesmo que declarar aos outros que
queremos nos comportar da maneira como bem entendermos,
conforme as circunstâncias determinam nossas paixões ora de uma
maneira, ora de outra. A razão, no entanto, exige de nós que
calculemos, não mais com os conteúdos de nossa imaginação (e as
paixões se determinam pela imaginação, pelo modo como os objetos
são percebidos e imaginados), mas com os nomes, a partir da
definição que damos aos conteúdos da imaginação. Assim, se num
contrato definimos nossa vontade de uma maneira, a razão calcula a
partir daí qual o comportamento que se espera de nós, o
comportamento justo. Ao descumprir nossos contratos, mostramos
aos outros que não assumimos as conseqüências do modo como
exprimimos nossa vontade e que agimos sempre em conformidade,
não com a razão e com o cálculo de conseqüências de definições,
mas com a imaginação e as paixões. Isso é o mesmo que dizer aos
outros que não queremos construir com eles uma relação de paz,
pois o que se pode esperar de nós a partir de um cálculo de nossas
paixões é, como sabemos, a guerra presente ou iminente.
A paz requer que se substitua o cálculo de conseqüências das
paixões pelo cálculo de conseqüências dos signos da vontade, ou
seja, que se deixe de agir em conformidade com o que as
circunstâncias fazem ser a nossa vontade, para agir em
conformidade com o modo como ela é expressa. Essa troca de
perspectivas é fundamental. Sem ela, permanecemos relativamente
aos outros homens em estado de guerra, o que não quer dizer outra
coisa senão que nos recusamos a estabelecer com eles relações
juridicamente controladas e que nossas relações são relações de
pura força e poder. Não havendo obrigação, num regime de
desconfiança mútua e generalizada no seio do qual nenhum pacto é
válido, cada um pode fazer o que bem entender, desde que tenha
poder para tanto: nisso consiste o estado de guerra, ao qual o
Estado, instituindo o campo das obrigações jurídicas, visa pôr fim.
As leis de natureza e a ciência moral
Antes mesmo, porém, que o Estado seja instituído e que, com ele,
nossas relações sociais possam se estabelecer no âmbito de um
campo jurídico, quando nossas relações se tecem ainda no plano da
estrita natureza, pode-se dizer que temos algumas obrigações, as
quais, por não se seguirem de um ato contratual e não serem
instituídas pela vontade dos homens, são ditas naturais. Trata-se da
obrigação diante das leis de natureza, entendidas por Hobbes como
certos preceitos da razão que apontam os meios mais convenientes
de assegurarmos as condições de uma vida satisfeita.
Nesse sentido, a razão (ou as leis de natureza descobertas por
ela) nos obriga, primeiramente, a procurar a paz. Este é o conteúdo
da primeira e fundamental lei de natureza, da qual se seguem todas
as outras. Se queremos a paz, queremos também os seus meios, que
consistem no estabelecimento dos contratos (segunda lei), no
cumprimento dos contratos válidos (terceira lei), na demonstração
de gratidão frente a quem nos concede um benefício (quarta lei), em
não exigirmos para nós mesmos mais do que concedemos aos
outros (quinta lei), em perdoar as ofensas sofridas (sexta lei) etc. As
leis de natureza nos obrigam a agir em conformidade com seus
preceitos, pois, sejam quais forem os bens que visamos, sejam quais
forem os ingredientes que para nós compõem uma vida satisfeita,
não podemos deixar de perceber que a paz e tudo aquilo que ela
requer se oferecem como uma condição indispensável da fruição
desses bens, sempre ameaçada numa condição de guerra. Assim,
antes mesmo que o Estado seja instituído, estamos obrigados a agir
no sentido de sua instituição, visto ser ele condição da paz e de uma
vida satisfeita.
No entanto, no quadro conceitual do hobbesianismo, não é fácil
entender em que sentido as leis de natureza obrigam. Hobbes define
a obrigação como o cancelamento de um direito, isto é, como o
cancelamento de nossa liberdade de escolher agir, segundo nossa
própria vontade e juízo, desta ou daquela maneira. De acordo com
tal definição, as leis de natureza obrigam porque determinam qual
deve ser nossa ação, cancelando nossa liberdade de agir em sentido
contrário. Porém, o que define uma obrigação não é apenas o fato de
ela impor uma ação como um dever, mas também o fato de, por
meio dessa imposição, ela cancelar nosso direito de agir conforme
ao que julgamos, em cada ocasião, o melhor. Hobbes não nos fornece
elementos para compreender como precisamente isso se dá em
relação às leis de natureza.
O problema não se coloca em relação à obrigação contratual:
uma vez estabelecido o compromisso de agir em conformidade com
o modo como significamos nossa vontade no ato contratual,
deixamos de poder agir tal como nossa vontade é efetivamente
determinada. É assim que podemos efetivamente nos arrepender de
ter feito um contrato e nos determinarmos a rompê-lo, sem que com
isso deixemos de estar obrigados a cumpri-lo. A obrigação cancela
nosso direito de agir conforme nossa vontade efetiva para nos
obrigar a agir em conformidade com o modo como damos a
significar nossa vontade aos outros.
Ora, aparentemente nada de semelhante ocorre com a obrigação
natural. Estamos obrigados a agir segundo os preceitos das leis
naturais na medida em que eles ditam o que é a nossa vontade, e
apenas enquanto percebermos que essa é a melhor maneira de agir.
Não parece haver portanto, relativamente às leis naturais, o
cancelamento do direito de agir conforme ao que julgamos melhor.
Daí, talvez, a razão de Hobbes dizer que as leis de natureza não
obrigam em sentido próprio.
Alguns pensadores posteriores a Hobbes, como Rousseau e Kant,
entenderam que o que Hobbes caracteriza como um modo
impróprio de obrigação é a forma própria da obrigação moral.
Rousseau e Kant compreendem que estamos moralmente obrigados
a agir de um determinado modo apenas na medida em que a regra
da ação é posta de maneira autônoma pela nossa própria vontade,
isto é, apenas na medida em que essa regra não nos é imposta de
fora, como uma coerção, mas livremente aceita por nós como uma
lei que damos a nós mesmos.
Hobbes, no entanto, compreende a obrigação de outro modo:
como um compromisso em relação ao outro. É por isso que, para ele,
uma obrigação propriamente dita é uma obrigação de agir conforme
ao que o outro espera de nós em virtude dos atos contratuais que
empreendemos. Poderíamos dizer, tomando como ponto de
referência os pensamentos de Rousseau e Kant, que para Hobbes
uma obrigação em sentido próprio é uma obrigação jurídica e não
moral. Com isso, no entanto, não devemos entender que para ele não
haja sentido moral algum para nossas ações, isto é, que, de um ponto
de vista estritamente moral, possamos agir de qualquer maneira;
apenas devemos entender que o sentido moral de nossas ações não
se deixa caracterizar para Hobbes, como para Rousseau e Kant, nos
termos de uma obrigação que impomos a nós mesmos. Como
entender, então, o conteúdo moral de nossas ações para o qual
aponta a doutrina hobbesiana das leis de natureza?
As leis de natureza não ditam, como podemos ser levados a
supor, o que é a nossa vontade ou a sua lei interna. Pois nossa
vontade é sempre particular, vontade deste ou daquele bem,
conforme as circunstâncias e nossa experiência particular nos levam
a atribuir valor às coisas. O que as leis de natureza prescrevem é o
modo como devemos nos comportar se quisermos significar aos
outros uma vontade de paz, posta como condição de satisfação de
nossa vontade, seja ela qual for. Quem quer a paz deve demonstrar
aos outros que quer estabelecer contratos, pois este é o modo de
instituir obrigações, sem as quais não há paz possível; deve
demonstrar que quer cumprir os contratos que estabelece, isto é,
que quer construir as condições de validade dos contratos e cumprir
seus contratos válidos, pois não cumprir os contratos válidos é dar
motivo aos outros para que não os estabeleçam; deve demonstrar
gratidão a quem lhe concede um benefício, pois quem assim concede
espera tal comportamento de seu agraciado, como condição da
dádiva; deve demonstrar complacência, capacidade para perdoar
etc., pois esses comportamentos são os comportamentos que
esperam de nós aqueles que se dispõem a estabelecer conosco uma
relação de paz.
Da mesma maneira que a guerra se alimenta da suposição de que
os homens têm motivos para competir, desconfiar, enganar, a paz se
alimenta da suposição de que aqueles com quem nos relacionamos a
desejam, pois só assim teremos motivos para agirmos nós mesmos
no sentido da paz e não da guerra. A paz exige reciprocidade. Daí a
necessidade de demonstrarmos aos outros que a queremos.
Estabeleceremos e cumpriremos contratos, seremos gratos,
complacentes etc. desde que os outros também o façam; do
contrário, todos esses comportamentos deixam de poder significar a
nossa vontade, na medida em que não nos trazem benefício algum,
oferecendo-nos, ao contrário, como presas aos interesses dos
outros.
É importante frisar que as leis de natureza não prescrevem
exatamente o dever de querer estabelecer contratos e cumpri-los,
ser grato etc., mas, mais propriamente, o dever de nos
comportarmos de maneira a dar a significar aos outros que a nossa
vontade é essa. Para que haja paz, não importa tanto que tenhamos
efetivamente uma vontade de paz e que queiramos tudo aquilo que
se oferece como seus meios indispensáveis. Mais importante do que
a qualidade de nossas motivações íntimas, é o modo como
permitimos aos outros calcular o que se passa em nosso interior.
Esta precisão é da maior importância por duas razões. Em
primeiro lugar, porque nos permite compreender em que sentido as
leis de natureza obrigam ao mesmo tempo em que não obrigam
propriamente.
O modelo de obrigação é, para Hobbes, como já dissemos, a
obrigação contratual. Num contrato, estamos obrigados a emitir aos
outros signos coerentes de nossa vontade e, por isso, estamos
obrigados a agir de acordo com a palavra dada, ainda que nossa
vontade venha a se alterar nesse meio tempo. O que importa à
obrigação contratual é a nossa vontade tal como significada por
nossas palavras e ações e não a nossa vontade propriamente dita,
que pode ser de fato muito mais flutuante do que a demonstramos
ser.
Do mesmo modo, estamos obrigados relativamente às leis de
natureza a nos comportarmos de maneira a significar aos outros
uma vontade de paz, uma vontade coerente e racional, ainda que, de
fato, nossas paixões talvez não se encaminhem todas nesse sentido.
Sinto ódio e quero me vingar de alguém. Hobbes não nos pede que
deixemos de experimentar esta paixão, e nem poderia, pois é
categórico ao afirmar que não somos livres para escolher nossas
paixões e nossa vontade. O que a doutrina hobbesiana das leis de
natureza nos demanda é uma outra coisa — simplesmente que, no
plano de nosso comportamento, não demonstremos ódio, pois sua
demonstração, mais do que a paixão mesma, é contrária à paz, na
medida em que dá motivos aos outros para não se aliarem a nós.
É, nesse sentido, muito próximo do sentido da obrigação
contratual que as leis de natureza obrigam: elas obrigam a nos
comportarmos de modo a significar uma vontade de paz e a
definirmos nosso comportamento a partir desse critério e não
daquele fornecido por nossas paixões atuais. E se, por outro lado,
elas não obrigam propriamente é porque, do mesmo modo em que a
obrigação contratual só se estabelece no momento em que tivermos
garantia de que os outros cumprirão seus deveres contratuais, o
comportamento prescrito pelas leis naturais só é obrigatório no
momento em que tivermos garantia de que os outros agirão do
mesmo modo — garantia esta da qual não dispomos em nossa
condição natural, que, pelo contrário, nos autoriza a supor que a
vontade dos homens é uma vontade de guerra e não de paz. Daí
Hobbes nos dizer que só no interior do Estado as leis de natureza
são obrigatórias, na forma de uma obrigação civil e não
simplesmente natural. Em nossa condição natural, as leis de
natureza obrigam apenas a nos esforçarmos para que se tornem
efetivas, ou seja, a nos comportarmos no sentido de mostrar aos
outros que queremos a paz, ainda que, na falta da garantia de que os
outros também a queiram, não estejamos obrigados a agir
invariavelmente de acordo com tal princípio. Apenas no interior do
Estado civil, sob a garantia da reciprocidade, estamos em condições
de observá-lo inteiramente, construindo um comportamento que
signifique perfeitamente uma vontade de paz.
Em segundo lugar, a importância de se compreender que as leis
de natureza obrigam a representar coerentemente a vontade mais
do que ter efetivamente uma vontade coerente está em que, a partir
disso, podemos compreender o que Hobbes entende por virtude e
em que medida seu pensamento moral prolonga uma longa tradição,
que remonta, pelo menos, a Aristóteles.
Para essa tradição, a virtude consiste sobretudo no modo como
nos apresentamos aos outros, ou, para usar uma expressão de
Bacon, na vestimenta (garment) da alma, que deve se compor de
maneira a encobrir a imperfeição natural de nossas paixões e
salientar suas qualidades. Trata-se efetivamente de nos mostrarmos
mais coerentes e harmônicos do que verdadeiramente somos em
nosso interior, mas não como uma forma de falsidade ou de engodo,
e sim como uma maneira de nos aperfeiçoarmos pela aparência,
fazendo da virtude uma boa apresentação de nós mesmos. Isto é o
que Cícero denominava o decorum, um comportamento que revela
de maneira apropriada uma boa disposição de caráter e o que, no
tempo de Hobbes, costumava-se chamar uma boa dissimulação. A
dissimulação é boa porque por meio dela construímos nossa
perfeição moral e porque é requerida por uma convivialidade
agradável.
Já não compreendemos mais a virtude dessa maneira. Para nós, a
virtude consiste sobretudo numa boa intenção, ou seja, não na
harmonia de nosso comportamento exterior mas na qualidade das
motivações íntimas que o inspiram. E é porque já estamos distantes
da concepção hobbesiana da virtude que se torna difícil para nós
pensar, como Hobbes pensou, uma relação indissociável entre a
política e a moral. Para Hobbes, o comportamento virtuoso só pode
se desenvolver plenamente no interior do Estado, na medida em
que, com o seu poder, ele oferece, por assim dizer, retaguarda à
virtude, conferindo a coerência que faltava em nossa condição
natural ao agir virtuoso. Para nós, política e moral aparecem quase
como incompatíveis, pois pensamos a política como um sistema de
pura coerção de nossas ações exteriores, que nada tem a ver com
nossas convicções íntimas e privadas, de cuja qualidade fazemos
depender nosso caráter moral e que, por serem íntimas, estão fora
do alcance da coerção do Estado.
O direito e o poder
Pode-se dizer que a diferença entre o estado de natureza e o Estado
civil está no tipo de relação que os homens estabelecem entre si em
cada uma dessas condições. Tal afirmação é polêmica, pois supõe
que Hobbes conceba nossa condição natural como uma condição em
que os homens se encontram em relação, sendo que a idéia
hobbesiana de uma guerra de todos contra todos é muitas vezes
interpretada como indicativa da impossibilidade de qualquer tipo de
vínculo entre os homens no estado de natureza. No entanto, Hobbes
não diz que em sua condição natural os homens não se encontram
em relações. Nem mesmo diz que nossa condição natural é uma
condição de guerra de todos contra todos, mas simplesmente que
este é o horizonte último de nossas relações naturais, ou seja, que
nossas relações naturais são de uma modalidade tal que tendem a se
dissolver numa guerra de todos contra todos ou na completa
desintegração da vida social. Cabe assim entender qual é essa
modalidade de relação e no que ela se distingue de nossas relações
civis.
Nossas relações naturais são, em última instância, relações de
puro poder. Em última instância, pois Hobbes admite a possibilidade
de que ainda em sua condição natural os homens estabeleçam
contratos entre si, cuja base de validade é a confiança mútua.
Todavia, sempre que por algum motivo essa confiança se quebrar —
e o fato de nossa condição natural ser uma condição de guerra
iminente mostra quão inúmeros são os motivos de desconfiança —,
a pequena ilha jurídica aberta pelos contratos de confiança mútua se
dissolve novamente no mar das relações de puro poder. Nessa
condição, no limite, cada um conta apenas com seu próprio poder e
com o modo como o compõe ou o opõe ao poder dos outros para
garantir as condições de sua existência.
No Estado civil, por sua vez, as relações entre os homens deixam
de se regular em virtude do poder de que cada um dispõe, deixam de
ser relações de puro poder, de confronto e composição de poderes,
para se tornarem, como viemos frisando, relações de direito e
obrigação, ou seja, relações jurídicas. Desse modo, os laços que
unem os homens no Estado civil são laços de uma natureza
absolutamente distinta dos laços que os unem (e também os
separam) em sua condição natural. Os laços de direito se
estabelecem num plano distinto dos laços de poder.
Essa distinção é bastante nítida na definição hobbesiana do
direito natural. Hobbes estabelece que, por natureza, temos o direito
ou a liberdade de escolher segundo o nosso próprio juízo a maneira
de empregar nosso poder a fim de garantir as condições de nossa
existência. Nisso consiste nosso direito natural. Ora, o que pode
restringir esse direito é tão-somente uma obrigação, isto é, o
compromisso de agir de uma determinada maneira, cancelando o
direito de agir segundo o próprio juízo — o que significa que jamais
um outro poder é capaz de restringir um direito. Um poder restringe
um outro poder, mas um poder maior do que o meu não cancela o
meu direito de usar o poder que me resta para agir da maneira como
eu achar melhor. É assim que, encontrando-me acorrentado,
disponho de pouquíssimo poder para agir, mas meu direito de
empregar o poder que tenho (ainda que mínimo) permanece
inalterado. Continuo tendo o direito de fazer o que estiver à minha
disposição para me livrar das correntes que me cerceiam. Por outro
lado, se eu estiver obrigado em virtude de um contrato a agir desta
ou daquela maneira, não disponho mais do direito de agir como eu
quiser, ainda que eu possa ter o poder de agir contrariamente a
minha obrigação. Ou seja, nas relações de puro poder, como são em
última instância nossas relações naturais, minha liberdade de ação
encontra impedimento apenas pela oposição de um outro poder; nas
relações de direito, minha liberdade encontra um obstáculo de outra
natureza — a obrigação, que, nos termos de Hobbes, é um vínculo de
palavras, não um vínculo físico.
Assim, é importante marcar a diferença entre a definição
hobbesiana do direito natural e aquela de Espinosa, pois ela é
representativa de duas concepções distintas acerca das relações
entre o direito e o poder. Espinosa define o direito natural como o
poder de que um homem dispõe para agir. O que significa que, para
ele, não há distinção entre direito e poder. Se alguém tem o poder de
fazer algo, então, por natureza, tem o direito de fazê-lo.
Essa equivalência não é estabelecida por Hobbes. De um lado, o
direito é mais extenso que o poder, visto que a um poder restrito
pode corresponder um direito irrestrito de empregá-lo da maneira
como se queira, desde que nenhuma obrigação o restrinja. Por outro
lado, de um outro ponto de vista, pode-se dizer que o direito é mais
restrito que o poder. Pois, posso ter o poder de fazer algo e, no
entanto, não ter o direito de fazê-lo, seja porque uma obrigação
anterior me proíbe, seja porque a ação em questão não é necessária
à própria conservação. Lembremos: o direito natural se define como
uma liberdade de se fazer o que se queira tendo em vista a própria
conservação. Não se tem, portanto, por natureza, o direito de se
empreender certas ações que não se justifiquem pela necessidade de
se autoconservar.
É apenas numa condição de guerra que o direito equivale ao
poder, pois nesta condição, no âmbito da qual se dispõe de poucos
recursos para assegurar a sobrevivência, tudo aquilo que se puder
fazer no sentido de assegurá-la passa a ser justificado do ponto de
vista do direito. Nessa condição, e só nela, o direito de se fazer o que
se considera necessário à sobrevivência se estende a todas as coisas.
Mas esta é uma condição a qual se quer evitar. Um poder restrito,
submetido a toda sorte de oposição por parte de outros poderes,
aliado a um direito irrestrito, incapaz de regulamentar o emprego
dos poderes, implica insegurança e temor. Para se escapar disso é
preciso investir na diferença entre direito e poder, restringindo os
direitos pelo pacto civil e aumentando o poder, na forma do poder
do Estado, de garantir as condições materiais da existência.
Para Espinosa, a identidade entre direito e poder permanece
inalterada no âmbito do Estado. Se o Estado cerceia meu direito de
agir é apenas na medida em que tem poder para cerceá-lo. Espinosa
concebe o poder do Estado como uma composição dos poderes dos
indivíduos unidos em função de um fim comum. Um Estado forte é,
assim, aquele em que os indivíduos estão fortemente vinculados em
virtude de sua vontade comum, de modo a se encontrarem dispostos
a empregar sua força conjunta contra todos aqueles que se
colocarem como obstáculo à consecução do fim público. Num Estado
forte, portanto, os indivíduos não têm poder de agir contra as
decisões comuns e, nessa medida, não têm direito de agir contra o
Estado. Mas no caso de um Estado fraco, que não consiga reunir os
indivíduos em torno de suas decisões, estes recobram o poder e,
com ele, o direito de se rebelar contra ele.
Hobbes, ao contrário, concebe o poder do Estado não como o
produto de uma convergência efetiva das vontades, mas como o
produto da expressão de uma vontade convergente num ato
contratual — o que faz toda a diferença em relação a Espinosa. Pois
isso permite a Hobbes pensar nosso dever de obediência ao Estado a
partir de um ponto de vista estritamente jurídico, como o dever de
cumprir um contrato válido em relação ao qual pouco importa se
temos ou não o poder de agir em conformidade ou contra ao que o
Estado nos ordena. Devemos obediência ao Estado em virtude de
uma obrigação contratual, e não simplesmente porque seu poder
anula nosso poder de resistência. O Estado civil — convém ainda
insistir — tem sua origem num contrato. Sua origem e natureza são
jurídicas e não físicas.
Todavia, apesar de Hobbes distinguir, ao contrário de Espinosa,
o plano das relações de poder e o plano das relações de obrigação e
direito, o fato é que ele faz depender as relações de direito de uma
relação de poder. Pois é apenas na medida em que o Estado tem
poder (entenda-se: poder de fato) para nos fazer cumprir nossos
contratos, inclusive aquele que o institui, que ele cria um campo
jurídico de obrigações e direitos, calculados a partir dos contratos,
tornados válidos em seu interior.
Esse apoio das relações jurídicas sobre uma relação de poder
motivou a acusação da parte de Rousseau de que Hobbes não teria
encontrado o verdadeiro fundamento da legitimidade do Estado.
Rousseau acusa Hobbes de fornecer ao Estado um falso direito de
governo, posto que este direito, no limite, está assentado sobre o seu
poder. Que direito é este, pergunta-se Rousseau, que deixa de existir
quando não se tem o poder de fazer cumpri-lo? Não seria isto o
indicador de que não se trata verdadeiramente de um direito, mas
de um simples poder de se fazer obedecer, que leva o nome, e
apenas o nome, de um direito?
A crítica de Rousseau não é contudo capaz de atingir a lógica do
contratualismo de Hobbes e a distinção entre o plano das relações
de poder e o plano das relações de direito que ele supõe. É bem
verdade que, sem um poder de fato, o Estado hobbesiano se torna
incapaz não apenas de governar, mas de existir enquanto uma
malha de relações jurídicas, pois esta depende da garantia do
cumprimento recíproco dos contratos, oferecida por ele. Mas não é
verdade que obedecemos ao Estado na exata medida em que ele tem
poder de nos fazer obedecer e pelo tempo que o tiver. Já insistimos
suficientemente neste ponto: não é o poder do Estado que funda a
obediência, mas, precisamente, o contrato tornado válido por seu
poder. De modo que as relações de direito não são relações de poder
disfarçadas, com aparência de direito, como alega Rousseau, mas
verdadeiramente, de acordo com a lógica do hobbesianismo,
relações de naturezas distintas.
O fato de que o direito dependa da existência de um poder capaz
de impor pela força a obediência não põe a perder a natureza
estritamente jurídica do Estado. Ele chama a atenção, contudo, para
um outro ponto: a soberania do Estado é uma realidade jurídica, um
ente de razão, produto de um contrato; porém, aquele que detém a
soberania dispõe de um poder de fato do qual faz uso para governar
os homens e determinar efetivamente suas vontades e
comportamentos; ora, o uso desse poder — eis a questão crucial
para a qual a crítica de Rousseau aponta —, na medida em que é um
poder físico, não deve poder ser controlado do ponto de vista do
direito, a fim de que possa ser legítimo e não um simples e puro
poder, um emprego bruto da força? Todo o problema consiste em
que, para Hobbes, de um ponto de vista estritamente jurídico, não há
qualquer restrição ao modo como o soberano emprega o seu poder.
Isto não faria dele um simples poder, à margem ou acima de
qualquer processo de legitimação? Vejamos.
O Estado e o governo
Uma novidade importante trazida por Hobbes no campo do
pensamento político é a diferença entre o conceito de Estado e o de
governo. Quando Maquiavel escreve ao príncipe a fim de orientá-lo
na arte de governar, sobre como proceder no sentido de assegurar o
seu domínio sobre os homens, ele pressupõe a identidade entre o
governo do príncipe — sua capacidade de se fazer obedecer — e o
seu stato — o seu domínio sobre os homens e sobre as coisas que
governa. É na medida em que governa bem que o príncipe assegura
seu stato ou domínio. Ou, em outros termos: o stato se funda sobre a
capacidade de governo do príncipe.
Para Hobbes, contudo, Estado e governo são coisas bastante
distintas. Tanto é assim que a discussão recorrente e central no seio
da tradição do pensamento político acerca da melhor forma de
governo — se a monarquia, a aristocracia ou a democracia, segundo
as distinções aristotélicas — torna-se secundária para Hobbes. O
Estado é o mesmo, independentemente das formas de governo. Ele
se define pela soberania de seu poder fundado num contrato e
legitimado juridicamente. O modo como esta soberania se exerce é
outra questão, uma questão que não diz mais respeito à forma
jurídica do Estado, pensada a partir do contrato que o institui, mas
ao exercício da soberania, pensada segundo as circunstâncias que
podem impedir ou contribuir para sua manutenção. Ou seja, uma
coisa é conceber a soberania do Estado segundo as qualidades
jurídicas que a definem; outra coisa é concebê-la segundo as
qualidades de seu exercício; uma coisa é o Estado, outra o governo.
As qualidades jurídicas da soberania, suas faculdades e direitos,
derivam imediatamente e a priori do contrato que a engendra. Esse
contrato é apresentado por Hobbes, no Leviatã, não como uma
simples promessa de obediência, como nas obras anteriores, Do
cidadão e Elementos da lei, mas como um contrato de autorização
por meio do qual os homens autorizam um homem ou assembléia de
homens (tanto faz, pois a forma de governo não está aqui em
questão) a representar com seus atos e palavras a pessoa de todos
eles. É sob a forma da representação que Hobbes pensa a partir do
Leviatã a obediência: se devo obediência ao Estado é porque, por
meio de um contrato, estabeleci que reconheceria todas as suas
ações como minhas. E se devo reconhecer todas as suas ações como
minhas é porque esta é a única forma de dotar o Estado de um poder
soberano, um poder que esteja acima de todas as controvérsias
acerca de seu emprego. Pois, onde há lugar para controvérsias, há
lugar para a oposição de poderes e, conseqüentemente, nenhum
poder será capaz de se colocar acima das disputas de poder,
servindo de fiador último e incontestável de nossas relações
jurídicas.
Do ponto de vista de sua forma jurídica, todo e qualquer ato da
soberania, sendo esta absoluta, se justifica em função de ter sido
previamente autorizado; mas do ponto de vista do exercício
daqueles direitos sem os quais a soberania não poderia se
estabelecer como absoluta (tais como o direito de ser juiz das
opiniões, de estabelecer as regras de propriedade, de decidir acerca
das controvérsias judiciais, de decidir sobre a guerra e a paz, de
recompensar e punir), coloca-se a questão de saber qual é a melhor
forma de empregá-los. Por exemplo, cabe ao soberano estabelecer
as regras da propriedade, o que ele está autorizado a fazer do modo
como quiser. Se o fizer de maneira iníqua, favorecendo
expressamente a alguns em detrimento dos outros, juridicamente
sua ação permanece incontestável. No entanto, é possível dizer que
ao agir dessa maneira o soberano exerce mal os seus direitos,
governa mal, dando margem à desobediência civil. Toda
desobediência é injusta, pois caracteriza a quebra do contrato de
instituição da soberania. Mas ela pode ser um fato, e, se o soberano a
incentivar, estará promovendo as sementes da dissolução material
do Estado.
Assim, é possível dizer que a questão do bom governo, embora
dissociada da questão da instituição do Estado, é uma questão
fundamental no hobbesianismo. Não é o bom governo que funda o
Estado em sua realidade jurídica. Mas do bom governo — que não é
outra coisa senão o governo em acordo com as leis de natureza, ali
onde elas indicam o caminho da paz em vista da qual a soberania foi
instituída — depende a conservação da realidade material de um
Estado particular. E se o Estado se constitui juridicamente como um
poder absoluto que pode se exercer de maneira incontestável, o fato
é que há, apesar disso, uma diferença entre o bom e o mau governo,
entre o bom e o mau emprego desse poder. O bom governo é aquele
que se exerce de modo a promover a obediência civil, de modo a
convencer os homens da importância e das vantagens de aderirem
ao plano jurídico das relações civis. O mau governo é aquele que
semeia a desobediência, propiciando que os homens empreguem
seus poderes individuais de fato, ainda que injustamente, contra o
Estado.
Assim, retomando o problema que levantamos acerca do
emprego legítimo que o Estado faz de seu poder, é preciso distinguir
dois níveis em que a questão da legitimidade se coloca. Do ponto de
vista da forma jurídica da soberania, todo e qualquer uso que ele
fizer de seu poder é legítimo, na medida em que foi previamente
autorizado e que, sem essa autorização incondicional, o Estado não
poderia se constituir como um poder soberano, postado acima das
controvérsias e da dinâmica de disputa de nossos poderes naturais,
cujo horizonte último é a guerra de todos contra todos. Mas do
ponto de vista do exercício da soberania em função da finalidade
para a qual foi instituída (a paz), isto é, do ponto de vista do
governo, são justificadas apenas aquelas ações que contribuem para
a paz e fomentam a obediência civil.
O governo, contudo, não é algo que possa sofrer uma limitação
jurídica. Como nos dirá Hobbes, o soberano não tem propriamente
obrigações — e por isso é absoluto — a não ser diante das leis de
natureza. O soberano só tem propriamente um compromisso de
ordem moral. Ele deve ser virtuoso, ou seja, significar
coerentemente com suas ações e palavras uma vontade de paz, a
qual representa. Hobbes entende, contudo, que o soberano estará
determinado a fazê-lo, visto ser isso o que sustenta sua soberania,
ainda que os homens possam discordar de seu governo, neste ou
naquele particular. O que, aliás, nunca deixarão de fazer, razão pela
qual — se quiserem escapar às controvérsias infindáveis, cuja
decisão, no limite, dependerá do uso da força — devem obediência
ao Estado.
Conclusão
O poder do Estado não é, como pudemos observar, uma simples
força coercitiva de nossas paixões desregradas. Ele é, sem dúvida,
um poder coercitivo, mas um poder fundado juridicamente e cujo
emprego tem por finalidade nos retirar do plano das relações de
puro poder e força, introduzindo-nos num campo de relações
jurídicas e racionais. Ele visa, sem dúvida, regrar nossas paixões,
mas não simplesmente de maneira a limitá-las e coibi-las pela força,
como se ao Estado não coubesse nenhuma função moral, como se a
coerção que ele exerce não tivesse nenhum finalidade moral a
cumprir.
O Estado transforma o homem em cidadão. Ele introduz
moralidade e racionalidade em nossas relações, impondo vínculos
de obrigação permanentes entre os homens e permitindo a eles que
não se comportem simplesmente como suas paixões atuais os
impelem a agir, mas que calculem suas condutas a partir do modo
como exprimem aos outros suas vontades e paixões. Este
comportamento calculável é um comportamento virtuoso e racional,
num duplo sentido. Ele é a melhor forma de garantir as condições de
existência dos indivíduos, os quais, desse modo, se vêem
interessados na fundação do sistema de relações jurídicas que
compõem o Estado. Mas é também o correspondente moral de todo
cálculo racional, que se estabelece ainda em outros planos: na lógica,
nas matemáticas, nas ciências naturais.
Em todos estes planos, a razão engaja os indivíduos num
compromisso recíproco com as condições de significação de seu
discurso, quando, na forma de uma linguagem bem construída, ela
nos retira do mundo privado de nossa imaginação e de nossas
motivações particulares para nos introduzir num mundo público e
comum, cuja pedra angular são as definições partilhadas e as
conseqüências que todos aqueles que partem das mesmas definições
podem deduzir em conjunto. A razão, ou a linguagem quando bem
empregada, cria entre nós um mundo estável e comum em todos os
níveis aos quais se aplica. E é exatamente isso o que ela faz ao se
apresentar como ferramenta da instituição e do governo do Estado.
Seleção de textos
Da filosofia
7. Podemos compreender perfeitamente qual seja a utilidade da
filosofia, especialmente da física e da geometria, se enumerarmos as
principais comodidades que a humanidade pôde conquistar e se
compararmos o modo de vida daqueles que as desfrutam e daqueles
que delas carecem. … A utilidade da filosofia moral e civil é melhor
apreciada, porém, não tanto pelas comodidades de que dispomos ao
conhecer tais ciências, mas pelas calamidades que nos ocorrem
quando as desconhecemos. Tais calamidades, que podem ser
evitadas pela indústria humana, provêm da guerra, mais
propriamente da guerra civil; dela procedem a morte violenta, a
solidão, a miséria. A causa da guerra não está, porém, em que os
homens a queiram, pois a vontade é sempre vontade de um bem ou
pelo menos do que parece um bem, mas em que os homens
desconhecem seus males. Pois quem não percebe que a pobreza e a
morte violenta são males? A causa da guerra civil reside, portanto,
no desconhecimento das causas da guerra e da paz, poucos sendo
aqueles que aprenderam os deveres que unem e mantêm os homens
em paz, isto é, que aprenderam as regras da vida civil. O
conhecimento destas regras consiste na filosofia moral. Mas por
qual razão os homens não as aprenderam senão porque não lhes
foram ensinadas a partir de um método claro e exato? Mas, quê? Os
antigos mestres da Grécia, Egito, Roma e outros puderam persuadir
a multidão inculta acerca de suas inúmeras opiniões sobre a
natureza de seus deuses, as quais eles próprios não sabiam se eram
verdadeiras, e que, de fato, eram manifestamente falsas e absurdas;
não poderiam ter persuadido a mesma multidão acerca de seus
deveres, se eles próprios os conhecessem? Ou os poucos escritos
existentes em geometria puderam abolir toda controvérsia acerca
dos assuntos de que tratam e os inúmeros e vastos volumes de ética
não o poderiam, se seus conteúdos fossem certos e bem
demonstrados? Qual a causa de que os primeiros escritos exponham
uma ciência, enquanto os segundos são por assim dizer apenas
verbo, senão que os primeiros foram escritos por quem sabia e os
segundos por quem ignorava a doutrina em que se exercia, a qual,
no entanto, procurava aparentar saber para ostentar eloqüência e
engenhosidade? Não nego que a leitura de alguns desses livros seja
extremamente prazerosa; eles são bastante eloqüentes, contêm
muitas sentenças elegantes e vigorosas, pouco vulgares, as quais, no
entanto, são pronunciadas de forma universal, embora não sejam
universalmente verdadeiras; daí que, alteradas as circunstâncias de
tempo, lugar e pessoa, não sirvam menos freqüentemente para
confirmar algum propósito vil do que para mostrar os preceitos dos
deveres civis. O que fundamentalmente falta a eles é uma regra certa
de nossas ações a partir da qual possamos saber se somos justos ou
injustos naquilo que fazemos. Pois é inútil ser convidado a fazer o
certo em todas as coisas antes que sejam estabelecidas uma regra e
uma medida do certo, o que ninguém estabeleceu até o momento.
Visto então que, da ignorância dos deveres, isto é, da filosofia moral,
seguem-se a guerra civil e as maiores calamidades, podemos atribuir
ao seu conhecimento o mérito das comodidades contrárias. Vimos
assim, para não dizer nada acerca de outras felicidades e prazeres
que se seguem da filosofia, qual é a sua utilidade. …
Do corpo, parte I, cap.1
Dos nomes
1. Sendo os pensamentos dos homens tão inconstantes e
evanescentes e sua lembrança de tal modo dependente do acaso que
nada pode ser considerado certo com base apenas na experiência.
Ninguém pode se lembrar das quantidades sem uma medida
presente e sensível, das cores sem um padrão presente e sensível,
nem dos números sem os nomes dos numerais dispostos em ordem
e aprendidos de cor. Assim, seja o que um homem tenha reunido em
sua mente através do raciocínio sem tais auxílios evadir-se-á e não
poderá ser lembrado sem que se recomece tudo novamente. Disso
se segue que para a aquisição da filosofia se fazem necessários
alguns monumentos sensíveis aos quais nossos pensamentos
passados possam ser reduzidos e pelos quais sua ordem possa ser
registrada. Tais monumentos eu os denomino marcas, a saber, coisas
sensíveis escolhidas ao nosso arbítrio, cuja percepção possa evocar
pensamentos similares àqueles em vista dos quais foram escolhidas.
2. Mas quem não vê que um homem, quão excelente seja seu
engenho, e ainda que empregue todo seu tempo, uma parte
raciocinando, outra parte inventando marcas em auxílio de sua
memória e aprimorando seu saber, não retirará disso grande
proveito, e os outros proveito algum? Pois, a menos que comunique
as marcas que inventou aos outros, sua ciência perecerá com ele.
Porém, se estes monumentos ou marcas forem comuns a muitos, de
modo que as invenções de um sejam transmitidas aos outros, a
ciência pode se desenvolver para o bem geral da humanidade. É
portanto necessário à aquisição da filosofia que existam certos
signos pelos quais o que foi pensado por um homem possa ser
revelado e demonstrado aos outros. Denominamos signos o
antecedente de um conseqüente e o conseqüente de um antecedente,
tão logo tenhamos observado que ordinariamente um precede ou
procede do outro de maneira similar. Por exemplo, um nuvem densa
é signo da chuva por vir, e a chuva signo da nuvem que a antecedeu,
pela simples razão de que raramente observamos uma nuvem densa
sem a chuva conseqüente e nunca vemos a chuva sem a nuvem
antecedente. Além disso, dentre os signos, alguns são naturais, dos
quais acabamos de dar um exemplo, outros são arbitrários,
escolhidos segundo a nossa vontade, como uma hera suspensa
significando que ali se vende vinho, uma pedra significando o limite
de um terreno ou as palavras conectadas de certo modo significando
os pensamentos e movimentos de nossa mente. A diferença,
portanto, entre a marca e o signo consiste em que a primeira é
instituída para nós, a segunda para os outros.
3. As palavras conectadas de modo a se tornarem signos de nossas
concepções são chamadas oração, e suas partes singulares nomes.
Como dissemos, tanto as marcas quanto os signos são necessários à
filosofia (as marcas para recordar, os signos para demonstrar nossos
pensamentos). Os nomes desempenham esses dois papéis, mas são
marcas antes de ser signos, pois ainda que um homem esteja sozinho
no mundo, eles servem à sua memória, mas não servem à
demonstração, a não ser que haja alguém a quem demonstrar. Além
disso, os nomes por si sós são marcas, pois sozinhos evocam
pensamentos, mas não são propriamente signos senão quando
dispostos numa oração como partes da mesma. Por exemplo, a
palavra latina homo (homem) excita na mente de quem a ouve a
idéia de um homem, todavia, não pode significar (a menos que se
acrescente é um animal ou algo equivalente) que alguma idéia está
presente na mente de quem a pronuncia, mas simplesmente que ele
quer dizer alguma coisa que pode começar pela palavra homo como
também pela palavra homogeneum (homogêneo). A natureza dos
nomes consiste em serem eles primeiramente marcas escolhidas em
proveito da memória, as quais ocorre servir para significar e
demonstrar aquelas coisas das quais nos lembramos. Assim, os
definimos do seguinte modo:
4. Um nome é uma palavra escolhida ao arbítrio dos homens como
marcas que podem fazer surgir na mente pensamentos similares aos
pensamentos passados e que, quando dispostas numa oração e
pronunciadas aos outros, podem ser signos dos pensamentos que os
precederam ou não na mente de quem os profere. …
5. Visto que os nomes, dispostos numa oração, tal como o definimos,
são signos de nossas concepções, é manifesto que não são signos das
coisas mesmas. Em que sentido se pode entender que o som da
palavra pedra é o signo de uma pedra senão que aquele que a ouve
compreende que quem a pronuncia pensa numa pedra? Assim,
aquelas disputas sobre se os nomes significam a matéria, a forma ou
um composto de ambas, e outras sutilezas dos metafísicos, são
desnecessárias, não sendo compreensíveis as palavras pelas quais se
disputam.
6. Nem é necessário que todo nome seja o nome de alguma coisa.
Pois, assim como as palavras homem, árvore, pedra são nomes das
coisas mesmas, também as imagens dos homens, árvores e pedras
que nos ocorrem nos sonhos têm os seus nomes, embora não sejam
coisas, mas ficções ou fantasmas das coisas. Dado que podemos
lembrá-las, é necessário que tenham nomes que as marquem e as
signifiquem tanto quanto as coisas mesmas. Também o nome futuro
é um nome, ainda que nenhum futuro tenha ainda sido e que não
saibamos se aquilo que chamamos futuro jamais será. No entanto,
como usamos ligar no pensamento o passado ao presente, com o
nome futuro significamos este elo. Além disso, aquilo que não é, não
foi, não será e jamais poderá ser, tem um nome, a saber, aquilo que
não é, não foi etc., ou, brevemente, o impossível. Por fim, a palavra
nada é um nome, embora não possa ser o nome de nenhuma coisa.
Pois, quando, por exemplo, subtraímos 2 e 3 de 5 e percebemos que
nada resta, caso queiramos nos recordar desta subtração, a oração
nada resta, e no interior dela o nome nada, não é inútil. Pela mesma
razão dizemos corretamente que menos que nada resta quando
subtraímos mais de menos, pois a mente representa deste modo
este resíduo para fins doutrinais e quando deseja, se necessário,
trazê-lo a memória. Mas visto que todo nome guarda uma relação
com aquilo de que é nome, e ainda que o nomeado não seja sempre
uma coisa existente na natureza, cabe, para fins doutrinais, dizer que
tudo o que é nomeado é uma coisa, como se não houvesse diferença
entre esta coisa existir verdadeiramente ou ser apenas
representada. …
Do corpo, parte I, cap.2
Da proposição
1. Da conexão e composição dos nomes originam-se diversas
espécies de oração, das quais algumas significam os desejos e afetos
dos homens, tais como as interrogações que significam o desejo de
saber, como Quem é um homem bom?, na qual um nome é afirmado e
o outro se deseja ou se espera saber daquele a quem interrogamos;
os pedidos, que significam o desejo de ter alguma coisa; as
promessas, ameaças, escolhas, ordens, lamentos, e outras expressões
de outros afetos. A oração pode também ser absurda e
insignificante, quando à série de nomes nenhuma série de conceitos
corresponde na mente. Isso ocorre freqüentemente com aqueles
que, nada compreendendo sobre algum assunto sutil, querem
aparentar que compreendem, proferindo palavras de modo
incoerente. De fato, a conexão de palavras incoerentes, embora não
atinja a finalidade da oração (que consiste na significação), é ainda
uma oração, empregada entre os escritores metafísicos não menos
freqüentemente que as orações significativas. Em filosofia, há
apenas uma espécie de oração, que alguns denominam em latim
dictum, outros enunciado e pronunciamento, mas que a maioria
denomina proposição, e que consiste na oração que afirma ou nega e
indica verdade ou falsidade.
2. Uma proposição é uma oração constando de dois nomes copulados,
significando que quem a profere concebe que o último nome é nome
da mesma coisa de que o primeiro é nome, ou (o que é o mesmo) que
o primeiro nome é compreendido pelo último. Por exemplo, a oração
o homem é um animal, na qual dois nomes são copulados pelo verbo
é, é uma proposição, pois quem a profere significa que supõe que o
último nome animal é nome da mesma coisa que o nome homem, ou
que o primeiro nome homem é compreendido pelo último nome
animal.
O primeiro nome é normalmente denominado sujeito, ou
antecedente, ou, em latim, contentum, e o segundo predicado, ou
conseqüente, ou, em latim, continens. O signo da conexão em muitas
nações ou é alguma palavra tal como a palavra é, na proposição o
homem é um animal, ou algum caso ou terminação da palavra, como
na proposição o homem anda (que equivale a o homem está
andando); a terminação pela qual se diz anda em preferência a
andando é signo de que se concebe os nomes como copulados ou
como nomes de uma mesma coisa. …
3. Assim, em toda proposição três coisas devem ser consideradas, a
saber, os dois nomes, o sujeito e o predicado, e a cópula. Os dois
nomes trazem à mente o pensamento de uma e a mesma coisa. A
cópula, no entanto, induz a pensar acerca da causa de estes nomes
serem impostos à mesma coisa, como, por exemplo, quando dizemos
o corpo é móbil, embora pensemos numa mesma coisa designada
pelos nomes, nossa mente não pára aí, perguntando-se ainda o que é
ser corpo ou ser móbil, isto é, no que consiste a diferença entre esta e
as outras coisas, tal que esta seja assim denominada e as outras não.
Assim, quem se pergunta o que é ser algo, como ser móbil, ser quente
etc., procura nas coisas a causa de seus nomes.
Disso nasce a distinção entre os nomes concretos e abstratos
(mencionada no capítulo precedente). Um nome concreto é o nome
de alguma coisa a qual supomos existir e que, em virtude disso, é
denominada em latim suppositum ou sujeito, em grego, upokemenon.
Por exemplo: corpo, móbil, movido, figurado, mensurável, quente, frio,
similar, igual, Cláudio, Fonseca, e similares. Um nome abstrato é
aquele que denota, na coisa que se supõe existir, a causa dos nomes
concretos, como ser corpo, ser móbil, ser movido, ser figurado, ter tal
medida, ser quente, ser frio, ser Cláudio ou Fonseca, e similares. Ou
nomes equivalentes a estes, mais usualmente chamados abstratos,
como corporeidade, mobilidade, movimento, quantidade, calor, frio,
similitude, igualdade, ou (como diz Cícero) “Claudidade”,
“Fonsequidade”. Do mesmo gênero são ainda os infinitivos, pois viver
e mover é o mesmo que vida e movimento ou ser vivo e ser movido. Os
nomes abstratos, contudo, denotam a causa dos nomes concretos e
não as coisas mesmas. Por exemplo, quando vemos algo ou
concebemos em nossa mente algo visível, esta coisa nos aparece ou
é concebida não em um ponto, mas como tendo partes distantes
uma das outras, isto é, como sendo extensa e preenchendo um
espaço; visto que quisemos chamar corpo à coisa assim concebida, a
causa deste nome é ser uma coisa extensa ou a extensão ou
corporeidade. Assim, quando algo é visto ora aqui ora ali, sendo
denominado movido ou transposto, a causa destes nomes é ser a
coisa movida, ou o movimento da mesma.
As causas desses nomes são as mesmas que as de nossas
concepções, a saber, algum poder, ação ou disposição da coisa
concebida, que alguns dizem ser os seus modos, mas que a maioria
denomina acidentes. Digo acidente não no sentido em que se opõe ao
acidente o necessário, mas no sentido daquilo que, não sendo as
coisas mesmas, nem partes das coisas, acompanha as coisas de tal
maneira que (exceto a extensão) pode perecer e ser destruído, não
podendo ser abstraído.
4. Entre os nomes concretos e abstratos há ainda esta diferença: os
primeiros, pelos quais a proposição é composta, lhes são anteriores,
os segundos posteriores (pois não podem existir onde não houver
proposição, de cuja cópula procedem). Ora, em todos os assuntos
que concernem à vida e em especial na filosofia, há um grande uso e
abuso dos nomes abstratos. O uso consiste em que sem eles não
podemos em geral raciocinar, isto é, computar as diversas
propriedades dos corpos, pois quando queremos multiplicar, dividir,
somar ou subtrair calor, luz, velocidade, se os duplicarmos ou
somarmos a partir dos nomes concretos, dizendo, por exemplo, o
quente é o dobro do quente, o luzente o dobro do luzente, ou o
movido o dobro do movido, não estaríamos dobrando as
propriedades, mas os corpos mesmos, que são quentes, luzentes e
movidos, o que não queremos. Mas o abuso consiste em que alguns
homens, percebendo que podem considerar, isto é, levar em conta,
como dissemos anteriormente, o aumento e a diminuição da
quantidade, do calor e outros acidentes, sem considerar o seu corpo
ou sujeito (o que se denomina abstrair ou fazer existir
separadamente deles), falam dos acidentes como se pudessem ser
separados de todo corpo. E disto procedem os grandes erros dos
metafísicos, os quais, porque podem considerar o pensamento sem
considerar o corpo, querem inferir não ser necessário haver um
corpo que pensa, e porque a quantidade pode ser considerada sem
que um corpo seja considerado, crêem haver quantidade sem corpo
e corpo sem quantidade, e que um corpo tem quantidade
precisamente devido à adição da quantidade a ele. Desta fonte
nascem aquelas palavras insignificantes, tais como substância
abstrata, essência separada e outras similares, e também aquela
confusão de palavras derivadas do verbo ser, como essência,
essencialidade, entidade e realidade, qüididade, que não podem ser
ouvidas entre as nações que não copulam seus nomes pelo verbo
ser, mas por verbos adjetivados como corre, lê etc. ou pela mera
colocação dos nomes uns após os outros; visto que estas nações
podem filosofar e calcular, a filosofia não tem necessidade das
palavras essência, entidade e outras barbaridades. …
7. Uma proposição verdadeira é aquela cujo predicado contém em si
o sujeito ou cujo predicado é o nome da mesma coisa de que o
sujeito é nome. Assim, a proposição o homem é um animal é
verdadeira porque tudo aquilo a que se denomina homem é
igualmente denominado animal; e a proposição alguns homens são
doentes é verdadeira porque doente é o nome de alguns homens. As
proposições não verdadeiras ou aquelas cujo predicado não contém
o sujeito são chamadas falsas, como o homem é uma rocha.
Ora, as palavras verdadeiro, verdade e proposição verdadeira se
equivalem. Pois a verdade consiste no que é dito, não nas coisas
sobre as quais se diz algo, e embora por vezes se oponha verdade ao
aparente ou fingido, ainda assim a verdade sempre se refere à
proposição. Se negamos que a imagem de um homem no espelho ou
que um espectro seja um verdadeiro homem é porque a proposição
um espectro é um homem não é verdadeira, não se podendo negar
que um espectro seja um verdadeiro espectro. Portanto, a verdade
não é uma disposição das coisas, mas da proposição. Quanto ao que
dizem os metafísicos, que um ente e um ente verdadeiro são o
mesmo, trata-se de algo trivial e elementar, pois quem não sabe que
homem, um homem e um homem verdadeiro têm o mesmo sentido?
8. Compreende-se que verdade e falsidade não têm lugar entre os
animais que não falam e não empregam orações. Pois, embora
alguns animais desprovidos de linguagem possam ser afetados pela
imagem de um homem no espelho como se fosse um homem mesmo
e por esta razão o temam ou o festejem em vão, nem por isso o
apreendem como verdadeiro ou falso, mas como similar, no que não
se enganam. Deste modo, assim como os homens devem o reto
raciocínio à boa compreensão das orações, seus erros se devem
igualmente à má compreensão das mesmas, e assim, cabe ao homem
tanto as honras da filosofia como a vergonha das opiniões absurdas.
Pois as orações (como se dizia outrora das leis de Sólon) têm em si
algo de similar às teias de aranha: elas retêm e enlaçam nas palavras
ditos engenhosos finos e altivos, rompendo-se, contudo, com os
muito robustos.
Disso pode-se ainda deduzir que as primeiras verdades tiveram
origem no arbítrio daqueles que primeiro impuseram nomes às
coisas ou aceitaram os nomes impostos pelos outros. Pois, é
verdade, por exemplo, que o homem é um animal porque agradou a
alguém impor ambos os nomes à mesma coisa.
Do corpo, parte I, cap.3.
Cronologia da vida e época
1603 Morre Elizabeth I, com o que se encerra na Inglaterra o reinado da dinastia Tudor. Jaime
1625 Na Inglaterra, morre Jaime I, sucedido no trono por seu filho Carlos I.
ISBN: 978-85-378-0369-1