(T02) Jean Duroselle - A Europa de 1815 Aos Nossos Dias

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Capítulo 1

A E u ro p a de 1815

Os homens que reconstruíram a Europa em 1814-1815 e os que


viviam sob sua autoridade, eram perseguidos pelas vivas recordações
da Revolução e do Império. Desde 1789, na França e 1792 na Eu­
ropa onde se desencadeava a guerra, toda ordem antiga havia sido
abalada até em seus fundamentos. Certamente Napoleão restabele­
cera a ordem. Mas seu sistema não era a ordem tradicional. Era natu­
ralmente considerado pela maioria como o continuador da Revolu­
ção.
-N$J>xápria França, onde ele esmagara ou convertera os jacobinos
e suprimira as liberdades, os que restavam das velhas equipes revolu­
cionárias tinham tendência a esquecer o tirano para evocar apenas sua
obra. Sua queda provocou uma aliança de fato — pressentida por
Carnot durante os Cem Dias — entre constitucionais, bonapartistas e
jacobinos. Aqueles que eram chamados independentes, dentro em
pouco liberais (a partir de 1819), se recrutavam principalmente entre
esses dois grupos. Contra a Restauração, esqueciam-se de que haviam
combatido entre si e que seus objetivos finais divergiam.
Talvez houvesse, entre os emigrados menos perspicazes, reuni­
dos em torno do Conde de Artois, um grupo que “nada aprendera e
nada esquecera”. Mas, no conjunto, ninguém esquecera nem podia
ter esquecido, e quase todo mundo — e no caso os governos — tinha
aprendido bastante.
E pois em relação aos vinte e cinco anos de conflitos e de guerras
que se opera a reconstrução da Europa e que se afirmam os princí­
pios internos dos Estados.
—3 —
1) A RECONSTRUÇÃO DA EUROPA

Nosso fim aqui não é resumir a obra do Congresso de Viena e os


tratados de 1814-1815, mas o de acentuar os novos traços da Europa,
a maneira como ela ressurge de tais acontecimentos.
Decerto que os grandes negociadores são todos adversários da
Revolução, até mesmo Talleyrand, do lado francês, que no entanto
cooperou com ela. Mas eles sabem que a nova Europa não pode mais
ser aquela de 1792. E preciso premuni-la contra a catástrofe mas,
também aproveitar as desordens para acrescer o poderio dos grandes
Estados. Gentz, Talleyrand souberam formular claramente essa dou­
trina. Primeiro, restabelecer a “legitimidade” — dos soberanos. Mas
“na ordem das combinações legítimas, ligar-se de preferência àquelas
que podem com maior eficácia concorrer para o estabelecimento e
conservação de um verdadeiro equilíbrio”. Serão então utilizados
com flexibilidade e em proveito dos grandes Estados os dois princí­
pios, um moral e jurídico, o da legitimidade, outro puramente prá­
tico, o do equilíbrio europeu.
As principais vítimas desse processo são os regimes nos quais a
legitimidade não era hereditária: principados eclesiásticos da Ale­
manha, repúblicas aristocráticas de Veneza e de Gênova na Itália, e,
bem entendido, a Polônia, que ninguém procura seriamente reconsti­
tuir como Estado independente.
E assim que, em lugar de um “Santo-Império Romano Germâ­
nico” de 350 Estados, cria-se uma “Confederação Germânica” de 39
Estados. No seio desta, o Império Austríaco e, sobretudo, o reino da
Prússia, aumentam sua influência e seus territórios.
A Prússia, principalmente, recebe uma parte do Saxe, sobretudo a
quase totalidade da Renânia, que lhe fornece, daí por diante, uma
fronteira comum com a França, e onde já se exploram, sem prever sua
importância futura, as jazidas de carvão do Ruhr e do Sarre.
Tendo aumentado muito pouco na Alemanha, renunciando à
sua antiga parte nos Países-Baixos demasiadamente distantes e inde­
fensáveis, a Austria penetra, em compensação, nos Bálcãs e na Itá­
lia. Com efeito, anexa as “províncias ilirianas” de Napoleão, habita­
das por italianos e iugoslavos, eslovenos e croatas, e o “reino
lombardo-veneziano” da Itália do Norte. Os pequenos ducados do
sul do Pó são seus vassalos — o de Parma inclusive é doado à impe­
ratriz Maria Luiza, princesa austríaca. O resto da Itália pouco se
modifica. A Itália continua a não existir em sentido político. Esse
nome, diz Metternich, é uma simples “expressão geográfica”. Ape­
nas o “reino da Sardenha” é reforçado pela anexação de Génova e a
recuperação da Savóia. E que faltam bons “Estados-tampões” ao
longo da fronteira francesa.
O reino dos Países-Baixos, que reúne as Províncias Unidas, os
antigos Países-Baixos austríacos e o bispado de Liège, isto é, a Ho­
landa em sentido lato e a Bélgica, sob a realeza da dinastia de
Orange, é outro desses Estados-tampões. Depois dos Cem Dias, o
segundo tratado de Paris lhe concedeu ao longo da fronteira fran­
cesa, uma série de fortalezas destinadas a tornar sua defesa mais
eficaz.
Desse modo, a França, reduzida a suas fronteiras de 1792 que,
excetuando-se a Savóia com suas fronteiras atuais, viu-se solida­
mente reduzida, à espera de que o regresso do usurpador ou dos
jacobinos pudesse lançá-la novamente na aventura da expansão
Luís XVIII e os homens da Restauração se declaram altamente sa­
tisfeitos. É na “esquerda” que se recrutam os adversários dos “ver­
gonhosos tratados de 181 5”, os partidários das “fronteiras naturais”.
Mas eles não têm nenhum poder e devem contentar-se em difamar
a “traição” dos Bourbons.
No resto do continente, só há duas modificações importantes.
Primeiro, a Rússia viu sua parte acrescida da Polônia. Daí em diante
possuirá Varsóvia, e seu território chegará, entre a Prússia oriental
e o Império da Áustria, até quase a Europa central. Foi preciso
ainda uma coalizão anglo-austro-francesa em janeiro de 1815 para
levá-la a reduzir suas pretensões. A outra mudança foi absurda: a
Noruega não estava mais ligada à Dinamarca, mas à Suécia. ^

Assim, o mapa da Europa está um tanto simplificado. Mas essa


simplificação de modo algum levou em conta um princípio novo que
os americanos do Norte e os revolucionários franceses haviam intro­
duzido nos acontecimentos: o princípio das nacionalidades. Todavia,
a ideologia nacional toma consistência e vigor novos. Em 1815,
acredita-se que tão-somente a França poderia eventualmente destruir
os tratados. Progressivamente, estes serão totalmente destruídos, mas
de uma maneira então insuspeitada, pela força das nacionalidades,
isto é, por essa “opinião pública” da qual Metternich pressente a exis­
tência e a vitalidade, mas que se julga capaz de derrubar.
Já que só a França parece ameaçar, é contra ela que se elabora um
sistema embrionário de organização européia. Esse sistema é conhe­
cido pelo nome de “Santa Aliança”, e é assim que, na época, o desig­
nava a linguagem popular.
Na realidade, os historiadores — e, entre os mais recentes,
Webster, Jacques-Henri Pirenne e Bourquin — mostraram que a
“Santa Aliança”, produto dos sonhos do czar, tinha pouca consistên­
cia, e que a verdadeira realidade era a “Quádrupla Aliança”, assinada
secretamente a 20 de novembro de 1815 entre a Rússia, a Inglaterra,
a Áustria e a Prússia, contra a França. A Inglaterra havia recusado sua
adesão à “Santa Aliança”, que achava demasiado confusa. Concluída
Fig. I — A Europa do Congresso de Viena 11813)
“em nome da santíssima e indivisível Trindade” por um czar orto­
doxo, um imperador católico e um rei luterano, foi em seguida fran­
queada à França e às potências menores. Na realidade, não fazia mais
que proclamar a solidariedade — inteiramente fictícia — entre os
reis. Singularmente mais eficaz era a “Quádrupla Aliança”. Esta era
uma aliança automática para o caso de Bonaparte voltar ao trono da
França, e uma promessa de consulta para o caso da revolução infla­
mar novamentc o pais. Seu artigo 6 institucionalizava o “acordo eu­
ropeu,” isto e, o acordo das grandes potências, prevendo conferên­
cias que seriam realizadas periodicamente para examinar as medidas
pertinentes para manter a paz e a fazer respeitar “os grandes interes­
ses comuns". Tal estrutura, na realidade pouco firme, tendo sido
aceita pelo ministro inglês Castlereagh, poderia ter-se transformado
em uma verdadeira organização internacional. Canning, sucessor de
Castlereagh, iria transformá-la em organização inoperante, receoso
de que ela viesse a facilitar a intervenção nos negócios interiores dos
pequenos Estados. Em todo caso, o primado das grandes potências —
os quatro aliados e mais tarde a França — é estrondosamente inaugu­
rado.
Nota-se que a Espanha'não foi admitida nesse acordo. Para ela —
e em breve, para Portugal — a ruína do velho Império colonial se
torna um sinal evidente de fraqueza. A Inglaterra, que aproveitou as
grandes guerras para conquistar aos Países-Baixos, o Ceilão, o Cabo e
também algumas Antilhas francesas, torna-se a única grande potência
colonial do mundo.
Vê-se assim esboçada uma das grandes rivalidades que irão do­
minar todo o século XIX — a da Rússia e a da Inglaterra.
Acreditou-se, freqüentemente, que tal rivalidade era a do “ele­
fante e a da baleia”, isto é, a-principal potência continental contra a
principal potência marítima. Eis aí um grave erro de interpretação.
Vitoriosa em Waterloo, a Inglaterra — cujo rei é soberano do Ha-
novre até 1837 — procura assegurar apoio no continente (Países-
Baixos, Espanha, Portugal, Reino de Nápoles). Quanto à Rússia, seu
desejo era ser uma potência marítima. Possui o Alasca na América, e,
na Califórnia, a base da Baía de Bodega. Mas tenciona penetrar na
América do Sul. O czar, que possui muitas irmãs, quer casá-las na
Espanha, na Holanda. E todos os olhares se voltam para os estreitos
turcos que os russos cobiçam, a tal ponto que o sultão viu, na Santa
Aliança, uma manobra sutil do czar, arvorando o estandarte da Cris­
tandade para abater p principal Império do Islamismo.
7
2) A ESTRUTURA INTERNA DOS ESTADOS
Segundo o caráter que assumiu nos diferentes países a expansão
revolucionária e imperial, pode-se dividir a Europa em muitas zonas:
As zonas “assimiladas”, anexadas ao território do grande Império,
ou estreitamente vassalas (reino da Itália): aí, os direitos feudais
foram suprimidos, a igualdade estabelecida perante a lei, o código
napoleônico adotado e a administração calcada sobre a da França.
As zonas de “influência”, onde a anexação foi indireta, mas onde
o Antigo Regime foi eliminado pelas autoridades francesas. É o caso
da maior parte da Alemanha entre o Reno e o Elba, do grão-ducado
de Varsóvia, do “reino de Ilíria” e do reino de Nápoles.
As zonas de “resistência positiva” — essencialmente a Prússia,
onde os dirigentes (Stein, Hardenberg) calcularam que o melhor
meio de reencetar a luta contra a França era pôr em prática extensas
reformas sociais (abolição da servidão, dos direitos feudais).
As zonas de “resistência passiva” — essencialmente a Áustria e a
Rússia — onde a luta contra a França não se fez acompanhar de ne­
nhuma reforma profunda: o sistema senhorial foi mantido na Áustria,
a servidão e o Tcbin (nobreza ligada à função pública) na Rússia.
—- Enfim, a Inglaterra — depois de 1800 chamada de “Reino Unido
da Grã-Bretanha e Irlanda” — por um lado jamais havia sido con­
quistada e por outro já possuía um regime suficientemente liberal
para que tivesse a tentação ardente de imitar a França.
Esse quadro esquemático revela sumariamente transformações
sociais internas ou uma relativa estagnação dos Estados. Mas em
1815, ele não corresponde absolutamente aos regimes políticos que
adotaram. E mister, para defini-los, procurar uma outra classificação.
O critério essencial parece ser a existência de assembléias dentre
as quais pelo menos uma é eleita. Esse sistema deriva ou de uma
tradição secular, como na Inglaterra, ou de uma constituição escrita.
Mas em 1815 as constituições escritas não emanam de assembléias
constituintes de parte alguma, malgrado os exemplos franceses de
1791, 1793, 1795 e o exemplo da constituição espanhola de 1812.
Trata-se de constituições “outorgadas” pelo soberano, como a “Carta
Constitucional” francesa de 4 de junho de 1814. Mesmo se na prática
a carta outorgada chegava mais ou menos aos mesmos resultados que
a constituição votada, no plano dos princípios a diferença é imensa.
O princípio de legitimidade e a prerrogativa reàl não sofrem com a
“outorga” de certas “liberdades”. Luís XVIlí não teria sem dúvida
podido retornar ao trono se não tivesse concedido uma Constituição.
Ele porém rejeitou cautelosamente a constituição elaborada pelo Se­
nado Imperial, e entendeu que o sistema constitucional ema-
nava apenas de sua generosidade. Poucos textos existem tao interes­
santes quanto o preâmbulo da carta.
“Consideramos que, embora na França toda a autoridade resida
na pessoa do rei, nossos predecessores não hesitaram em modificar
o seu exercício, acompanhando a diferença dos tempos . Assim, o
rei se coloca numa continuidade tradicional. Se concede uma carta,
isso se deve ao "progresso sempre crescente das luzes , do "voto de
nossos súditos", da “expec taiiva da Europa esc larecida , mas "nosso
primeiro dever para com os nossos povos era conservar, em seu
próprio interesse, os direitos e as prerrogativas de nossa Coroa.
Esperávamos que, instruídos pela experiência, eles se convences­
sem de que a autoridade suprema só pode dar as instituições que
ela estabelece, a força, a permanência e a majestade”. Acontece o
contrário quando “a violência arranca concessões a fraqueza do go­
verno”. Em suma, a legitimidade subsiste integralmente, visto que
conseguiu “reatar a cadeia dos tempos, que funestos afastamentos
haviam interrompido”.
Quais são em 1815 os Estados com Constituição? Eles se esten­
dem essencialmente ao nordeste da Europa. O reino dos Países-
Baixos tem sua “lei fundamental” redigida por uma comissão real. A
constituição sueca (a “forma de governo” de 1809) foi imposta ao rei
pela aristocracia. Foi mantida pelo general francês Bernadotte, que se
tornou príncipe real da Suécia. Quando a Noruega foi cedida à Sué­
cia, ela se revoltou e uma Dieta votou uma Constituição imitando a
Constituição francesa, em 1791- Bernadotte tentou substituí-la por
uma constituição outorgada, depois julgou mais prudente aceitá-la
para fazer cessar a guerra. De sua parte, a Dinamarca continuava uma
monarquia absoluta.
O caso da Alemanha é sensivelmente diferente. O “Ato de Con­
federação” de 10 de junho de 1815, que criou o Deutscher Bund, não
era em nada uma constituição, pois o seu órgão único, a Dieta Ger­
mânica (Bundesversammlung) não era eleito, mas composto de pleni­
potenciários. Mas o seu artigo 13 encorajara os príncipes a constituí­
rem Assembléias de Estado. Alguns príncipes da Alemanha do Norte
prosseguiram timidamente nesse caminho (Hanover, Mecklemburgo,
Saxe, depois Oldenburgo). O eleitor de Hesse-Cassel convocou uma
Assembléia porém dissolveu-a em 1816. As únicas e verdadeiras
constituições outorgadas foram as dos príncipes da Alemanha do Sul:
Baviera (1818), Bade (1818), Wurtemberg (1819), Hesse-Darmstadt
(1820), Nassau, Brunswick e, sobretudo, o grão-ducado de Saxe-
Weimar, o único verdadeiramente liberal dentre os Estados alemães.
Todos os demais príncipes alemães, e notadamente os dois gran­
des, imperador da Áustria e rei da Prússia, mantiveram a monarquia
absoluta. Esta constituiu também uma Itália, onde a ausência de cons­
tituições permitiu que o despotismo dos ttranetes locais se desenvol­
vesse sem peias. Somente o grão-duque da Toscana praticava em seus
Estados a tolerância dos “déspotas esclarecidos”. Mas nenhum texto
os obrigava a isso.
Do mesmo modo na Espanha, Fernando VII, desde a sua restau­
ração, apressou-se em rejeitar a Constituição de 1812, restabele­
cendo o regime absoluto. Por muitos anos após 1813, Portugal loi
governado por um “regente”, o general inglês Beresford, sem ne­
nhum controle constitucional.
O imenso Império russo era uma autocracia despótica e paterna­
lista, onde o czar governava por meio de ucasses*. Mas Alexandre
I, personagem místico e irresoluto, fez do “reino da Polônia” — a
parte da Polônia que anexara — um Estado teoricamente autônomo,
no qual usava o título de rei. Pela carta de dezem bro de
1815, ele outorgou uma verdadeira constituição com uma Dieta
composta de duas câmaras, o Senado nomeado e os “núncios” eleitos
pelos nobres e pelas cidades.
Assim, a Europa de 1815 se dividia em monarquias absolutas e
em monarquias constitucionais. Mas, na grande maioria delas, tendo
a carta sido-.outorgada, o princípio de legitimidade era mantido em
suas linhas essenciais, com apenas uma exceção: a pequena Confede­
ração suíça. Composta de 22 cantões, outorgou-se uma Constituição
a 9 de setembro de 1815. Era a Suíça a única república da Europa, se
excetuarmos quatro “cidades livres” na Alemanha e na Cracóvia.
Entretanto não se deve exagerar as diterenças existentes entre os
Estados constitucionais e os Estados absolutos. Para começar, em
toda parte a aristocracia dispunha, depois do rei, do poder essencial e
dos postos-chave da administração. A Europa de 1815 é governada
pelos grandes proprietários de terras. Constituiu uma exceção o fato
dé um não-nobre, Fouché, ter sido ministro num gabinete francês,
por alguns meses, em 1815. A maior parte dos ministros da Restau­
ração era constituída por nobres ou enobrecidos. O mesmo acontecia
na Inglaterra antes de Canning (1822). Os “tori.es” detentores do
poder eram grandes senhores ricos, proprietários cie castelos, extre­
mamente distantes do povo simples. Pode-se simplesmente dizer
que, na França e na Inglaterra, a nobreza tradicional se misturara
suficientemente com os burgueses enriquecidos (na França, mediante
compras de artigos nacionais, fornecimento de provisões aos exérci­
tos, e enormes gratificações concedidas por Napoleão — na Ingla­
terra pelo comércio e indústria nascente), para que ali se manifestas­
sem uma certa abertura de espírito e um certo liberalismo.
10
Por toda parte a nobreza que rodeava os soberanos mostrava-se
reacionária, de espírito limitado, oposta a qualquer reforma pro­
funda, e notoriamente antiliberal. Basta mencionar a camarilla (cama­
rilha), ou o círculo pessoal, do rei da Espanha, a “junta de regência”
de Portugal, o círculo do rei da Prússia, a Haus-Hof-Staakanzlein
austríaca. Enfim, na maior parte dos casos, o clero era a favor das
soluções absolutistas. Era o sistema da “união do trono com o altar”.
Tais regimes se apoiavam numa forte polícia que fiscalizava os
assuntos, lia as cartas, podia premier arbitrariamente, e manter inde­
finidamente os suspeitos na prisão. Stendhal, que conhecia admira­
velmente a sociedade italiana, descreveu tais práticas em A Cartuxa
de Parma. Mesmo nos Estados constitucionais, a liberdade não pas­
sava de um termo inútil para os humildes. As penalidades eram seve­
ras. Na Inglaterra ainda se enforcavam caçadores furtivos. Ainda se
recrutavam as tripulações para a marinha real pelo sistema da força.
Os indigentes podiam ser confinados em atrozes workhouses (casas de
correção). O direito de coalizão dos operários não existia em parte
alguma (suprimido na França em 1791, na Inglaterra em 1799).
Na França, onde os pobres eram tratados mais duramente que os
ricos — Paul-Louis Courier denunciou-o asperamente em seus pan­
fletos — a liberdade desaparece sob os atos de vingança. O “Terror
branco” que os realistas desencadeiam contra os culpados dos Cem
Dias, não se manifesta somente em assassínios e execuções após jul­
gamentos sumários e sem garantias das “cortes prebostais”. Chega a
dezenas de milhares de destituições. “A reação” — escreve Vaulabel-
le\ “percorreu todos os degraus da escola administrativa, desde os
mais altos até os mais ínfimos”.
Ávida por eliminar os traços da revolução e as conquistas do Im­
pério, a Europa de 1815 é uma Europa legitimista, clerical, reacioná­
ria. É uma Europa aristocrática e desigual. No entanto, estão vivos os
germes das idéias de 1789- Dos intelectuais aos proletários, dos libe­
rais aos democratas, dos burgueses esclarecidos aos operários desar­
raigados pela nascente Revolução Industrial, em quase todas as clas­
ses da sociedade em quase todos os países vigora o descontentamento.
Esse descontentamento espontâneo, essa revolta latente encontra a sua
justificação em diversos tipos de ideologias, moderadas ou violentas. A
Europa de 1815 estava madura para uma longa sucessão de revoluções.

NOTAS:
1 (X supra, n.“ 774, 778, 779.
* D ecretos específicos do governo im perial russo.
2 N .“ 2SI , t. 1, p. 485

11
Capítulo 2

R eações e R evoluções
(1815-1871)

Freqüentemente, ao compararmos o nosso século XX ensan­


güentado por duas guerras assustadoras com o período de 1815-
1871, temos tendência a admirar a boa sorte de nossos ancestrais.
Ora, nada mais ilusório. O século XIX foi uma das fases mais amar­
gas e cruéis da história européia. Perturbações, revoltas, revoluções
no plano interior, guerras, conflitos, intervenções no plano exterior,
marcaram toda a época que estudamos neste capítulo. É mister rever
nossas apreciações e compreender que a Europa, depois dos tratados
de 1815, viveu na agitação e no sofrimento.

1) FATORES DOS DISTÚRBIOS

As pinturas idílicas — e perfeitamente inexatas — da sociedade


européia após 1815 são responsáveis pela distorção histórica que
acabamos de assinalar. Com efeito, o romance, o teatro não descre­
veram senão as classes abastadas, que podiam usufruir as doçuras da
vida. A sociedade descrita por Balzac e Stendhal é a nobreza, a alta e,
as vezes, a pequena ou média burguesia. Em vão, procuraríamos em
nossa literatura, antes de Emile Zola, um pintor autêntico dos prole­
tários. ( )u então, é a classe “perigosa”, chamada por Marx de Lumpen-
/iro/tiunul, que atrai a atenção como uma espécie de monstruosidade
capaz de provocar nos leitores deliciosos frêmitos. Victor Hugo nos
dcs< rove fartamente condenados e bandidos. Eugène Sue faz o
13 —
mesmo em Mistérios de Paris. Também Balzac, em Vautrin, por
exemplo. Mas onde está o verdadeiro, o autêntico proletário? Às
vezes aparece, isoladamente, o “bom operário”, submisso, respeitoso,
vilmente adulador, admitindo como necessidade eterna a sua triste
condição, e, aliás, capaz de não comer nem beber, para deitar alguns
vinténs na Caixa Econômica, coisa que as almas caridosas o estimu­
lam vivamente a fazer.
Se o trabalhador possui um espírito mais forte e se bate por sua
vida e sua dignidade, é imediatamente equiparado ao criminoso de
direito comum. Os artigos 414, 415 e 416 do Código Penal francês
proíbem-lhe qualquer “coalizão”, portanto, qualquer esforço con­
junto para melhorar a sua sorte. É mister esperar 1864 para que a
coalizão e, em conseqüência, a greve se tornem legais. Na Inglaterra,
a coalizão, proibida em 1799, é de novo autorizada pelas leis de 1824
e 1825. Estas porém serão aplicadas com evidente parcialidade.
O proletário das cidades, o trabalhador pobre dos campos, esca­
pam da literatura, e por isso mesmo ignora-se, salvo em círculos res­
tritos, a sua espantosa miséria. Mas há muitos “romances sociais”.
George Eliott, na Inglaterra, descreveu em Silas Marner os efeitos da
concentração da indústria têxtil na vida de um pequeno artesão'rural.
Disraeii e outros autores cultivavam esse gênero literário. Mas além do
fato de serem esses livros razoavelmente tediosos, não penetram no
âmago do problema. Quanto a George Sand, seus romances sociais,
como o Meunier d’Angibault, pretendem mostrar que uma mulher
rica não se rebaixa socialmente por manter relações com um homem
pobre. Trata-se de uma justificação pessoal, mais que uma pintura
social.
Em sua totalidade, a literatura ignora o essencial, ou não o deixa
transparecer senão inconscientemente. O essencial é que a igualdade
de direitos, mesmo em um país onde ela é proclamada em princípio,
como na França, não existe em absoluto. Há dois pesos e duas medi­
das. Cfiarbitrário não existe para as classes ricas, mas pesa com toda a
sua força sobre a imensa e desconhecida massa dos pobres.
Ora, essa desigualdade de tratamento, que afinal existia em todos
os séculos precedentes, essa miséria que em primeiro lugar na Ingla­
terra, depois na França e na Bélgica, depois na Alemanha Oriental e
aó norte da Itália fomentara a “Revolução Industrial”, tornou-se no
século XIX um poderoso agente revolucionário. De maneira di­
ferente da dos séculos passados, as massas tomam consciência de sua
posição. A Revolução Francesa representou, nesse ponto, o papel
decisivo. Precisamente todos os países europeus que no século
XVIII ainda eram “subdesenvolvidos” (para empregar uma termino-
- 14 -
logia moderna), entram na era do desenvolvimento. Produz-se então,
um fenômeno notável. Não é a pobreza absoluta, sem esperança,
embrutecedora, que desencadeia as revoltas organizadas: é o começo
do progresso.
A partir de 1815, os mais conscientes dos descontentes se rea­
grupam em sociedades que o rigor policial obriga a manter secretas.
Trata-se de pequenos grupos incessantemente perseguidos, animados
por um ideal revolucionário. Os Carbonários italianos, a Carbonaria
francesa, as sociedades republicanas da Monarquia de Julho (“Socie­
dade das Famílias”, “Sociedade das Estações"), a “Liga dos Justos” na
Alemanha Oriental, a “Sociedade do Norte" e a “Sociedade do Sul”
na Rússia, outras ainda, pertencem a esse tipo. Seus membros são
oficiais, estudantes, artesãos, pequenos burgueses.

2 ) A URA DAS INSURREIÇÕES <1RI5- 1849)

É interessante seguir cronologicamente o processo da causa fun­


damental dasuinsurreições que reside na insatisfação das massas mise­
ráveis pois aí se revela um fenômeno europeu que, através das fron­
teiras, possui múltiplos laços.
Para simplificar — sem contudo deformar a realidade — pode­
mos dizer que, entre 1815 e 1849, a Europa conheceu três “ondas”
sucessivas de revoluções: em 1820, 1830 e 1848 aproximadamente.
A primeira, a de 1820, é precedida por uma forte agitação na
Alemanha, notadamente nos meios universitários. O objetivo é polí­
tico: a intenção era obrigar os diversos governos alemães a outorgar
constituições. Mas a represáão sabiamente dirigida por Metternich
abafa o movimento antes que ele tenha tomado uma forma revolu­
cionária. Não acontece o mesmo na Espanha. Aqui, tendo as tropas
se aquartelado em Cádis para combater os colonos da América que se
haviam revoltado, um oficial, o Tenente-coronel Riego subleva as
tropas em janeiro de 1820. As guarnições do Norte fazem triunfar
essa revolução cujo fim era político. O rei Fernando VII teve que
restabelecer a constituição de 1812, que havia abolido. O absolu­
tismo só será restaurado em 1823, após uma intervenção francesa.
Quase imediatamente, em julho de 1820, estoura uma revolta em
Nápoles, organizada pelos Carbonários e dirigida por um oficial,
Pepe. O fim é igualmente político. O rei Fernando I também foi
obrigado a estabelecer uma Constituição. Enquanto as tropas austría­
cas “restabelecem a ordem” em Nápoles, em março de 1821 irrompe
uma insurreição de Carbonários no Piemonte. Aí também é conce­
dida uma constituição. Também aí as tropas austríacas iriam intervir
para restabelecer o poder absoluto.
- 15
Da Itália, o movimento se propaga para a França. A 13 de feve­
reiro de 1820, o duque de Berry, sobrinho do rei, é assassinado. No
fim de 1821, a “Charbonnerie” — que imita a organização dos Car­
bonários italianos — tenta passar à insurreição. Em Saumur (de­
zembro, 1821), em Belfort (janeiro, 1822), em Thouars (fevereiro,
1822), em Colmar (julho, 1822), os oficiais sublevam ou tentam su­
blevar as guarnições. Mas em parte alguma esses complôs, deplora-
velmente organizados, conseguem vingar.
O último país atingido é a Rússia. Com a morte do czar Ale­
xandre I, oficiais pertencentes a sociedades secretas tentam fazer
subir ao trono, em lugar de seu irmão Nícolau, seu outro irmão,
Constantino. O verdadeiro fim é transformar o regime autocrático
em regime constitucional. E a insurreição “dezembrina” (dezembro,
1825). Mal idealizada, mal dirigida, seu desastre é total.
Como tais sublevações políticas se acompanham de revoltas na­
cionais , na Grécia e nas colônias espanholas da América, Metternich
e o czar acreditam ver aí o fruto de uma espécie de “conspiração
jacobina” cujo centro seria Paris. Com efeito, se houve revoltas em
todos os lugares é porque as causas foram gerais. Dificilmente os
povos suportam o -absolutismo e a-Opressão. A primeira onda de re­
voltas é um esforço desordenado e impotente para conquistar a li­
berdade.
A segunda onda se desencadeia na França em julho de 1830. Com
a pretensão de Carlos X de desfazer a Constituição, a população de
Paris, com a aprovação da burguesia liberal, e graças à ação das socie­
dades secretas republicanas, se insurge contra o regime da Restaura­
ção. Desta vez o sucesso é total. Carlos X é obrigado a abdicar e
exilar-se. Mas os vencedores estão mal organizados para tomar o po­
der. A grande burguesia, representada pelos deputados liberais e
jornalistas, como Thiers, manobra habilmente para limitar as conse­
qüências das “Três Gloriosas” e faz subir ao trono Luís Felipe,
Duque de Orleans. Como resultado, as sociedades republicanas,
ofendidas, retomam a luta. Os distúrbios continuam. Serão todos re­
primidos, pois, se em julho de 1830 a massa “prosseguiu”, o mesmo
não acontece com as revoltas de fevereiro de 1831, junho de 1832,
abril de 1834. Durante quatro anos Paris é o foco das intrigas repu­
blicanas, que bruscamente irrompe em revoluções sangrentas e de­
sesperadas. Depois, malgrado algumas revoltas subseqüentes, tudo se
acalma por algum tempo.
D e Paris, a revolução alcança Bruxelas (agosto, 1830), reves­
tindo-se ali de um caráter nacional. Os belgas desejam sacudir a
autoridade do rei dos Países-Baixos. Conseguem-no com a ajuda da
Europa. Apenas a Rússia de Nicolau I quis intervir. Mas, precisa-
— 16 —
mente em novembro de I 830, outra revolução, igualmente nacional,
se desencadeia na Polônia, imobilizando assim as forças do czar, que
levarão dez meses para esmagá-la.
O movimento prossegue na Itália central (fevereiro, 1831), nos
ducados tie Parma e tie Môdena, e na Romênia, que pertence ao
Papa. Aí, o objetivo e ao mesmo tempo político — estabelecer regi­
mes constitutionals em lugar tie déspotas no poder — e nacional: os
rebeldes constituem “províncias unidas italianas”, preâmbulo, a seus
olhos, tie uma unificação mais vasta. As tropas austríacas não tardam
a esmagar essa revolta.
A agitação alcança também a Alemanha, onde os liberais, reuni­
dos em Hambach em maio de 1832, preconizam os livres “Estados
Unidos tia Alemanha”, de forma republicana. Não toma porém a
forma de insurreições sangrentas e novamente a ordem é restabele­
cida.
Todavia, o ano de 1830 concedeu duas vitórias à insurreição: na
França e na Bélgica. Não é de espantar que tais importantes prece­
dentes tenham despertado a esperança dos democratas, dos naciona­
listas, e até daqueles cujo nome aparece nessa época — os socialistas.
Novamente surgem circunstâncias favoráveis e os revolucionários
tentarão desencadear novas provas de força.
É a crise econômica de 1846-1847 que fornece essa ocasião. Li­
gada às más colheitas (ela é, segundo Ernest Labrousse, a última crise
do ancien régime, no qual a economia é dominada pela agricultura),
faz aumentar terrivelmente os sofrimentos dos artesãos, dos operá­
rios, isto é, da parte menos privilegiada da burguesia, através de toda
a Europa. Será possível compreender o alcance desse fenômeno por
um exemplo: em Paris, a guarda nacional, composta de pequenos
burgueses e que fora o elemento motor na repressão dos motins,
muda de posição em fevereiro de 1848 e se une aos manifestantes
republicanos para derrubar Luís Felipe. Notemos igualmente que a
crise econômica termina no decorrer dó outono de 1847. E, pois, no
começo da recuperação econômica que se iniciam as revoluções.
Nunca, nem em 1820, nem em 1830, haviam tomado tal amplitude.

Há, porém, sinais precursores: na Sicília, em Milão desde ja­


neiro de 1848. Mas o processo se desenvolve como um rastilho de
pólvora, quando são atingidos dois centros vitais da Europa: Paris,
depois Viena.
Em Paris (22-24 de fevereiro 1848) é uma revolução democrá­
tica que derruba um regime já liberal para instalar a República com
o sufrágio universal. Nessa ocasião revelam-se também marcantes
tendências sociais. Mas os dias revolucionários de junho, atroz-
17 —
mente sangrentos, rematarão no fracasso total dos proletários revol­
tados com a miséria.
De Paris, a revolução se propaga em direção a Turim (5 de
março) e Roma (14 de março), onde se outorgam constituições,
bem como em Nápoles e Florença. Mas foi principalmente o su­
cesso da revolução parisiense que incitou os liberais de Viena a
desencadear, por sua vez, uma insurreição (13-15 de março) que
também termina, pela outorga de uma constituição. Um novo
motim em Viena em 15 de maio permitirá aos liberais obterem a
eleição de uma Assembléia Constituinte em substituição à Consti­
tuição Outorgada.
De Viena, a revolução se espalha. No Império austríaco, multi­
nacional, a queda de Metternich desencadeia as revoluções nacio­
nais “centrífugas”. Os alemães e os italianos disso se aproveitam
para procurar estabelecer sua unidade. Por toda parte, na Europa
central, os traços do feudalismo são abolidos, e assim a revolução
assume um caráter social.
Na Alemanha, onde já se preparava a eleição de uma Assem­
bléia Nacional, insurreições políticas — para a obtenção de uma
constituição — explodem em Saxe, Baviera, na Alemanha Oriental,
mas sobretudo em Berlim (18-19 de março), onde o rei aceita a
eleição de uma Constituinte.
No Império da Áustria irrompem movimentos naqonais: na
Boêmia (abril); na Croácia (abril); na Hungria (27 de março); e
mesmo entre os romenos da Transilvânia.
Na Itália, a notícia da insurreição de Viena suscita em Milão
(18-22 de março) e em Veneza (18-19 de março) a revolta contra a
soberania austríaca sobre o Lombardo-Veneziano. Igualmente, os
pequenos ducados vassalos, Parma e Módena, expulsam seus sobe­
ranos em 24 de março. Com excessiva audácia, o rei do Piemonte
põe-se à frente da luta contra os austríacos refugiados no “Quadrilá­
tero” — praças-fortes de alta Veneza. O papa e o rei de Nápoles
recusam-lhe ajuda. Logo que os austríacos se sentiram mais fortes
esmagaram os piemonteses em Custoza (julho). Mas o movimento
popular não termina aí, e, julgando as reformas insuficientes, os
patriotas estabeleceriam, no fim de 1848 e começo de 1849, a Re­
pública nos Estados pontifícios e na Toscana.
Somente a Rússia, a Espanha, Portugal e a Escandinávia esca­
pam desse abalo extraordinário. A Grã-Bretanha conhece em afctfil
uma vasta manifestação dos “cartistas” que queriam reformas de­
mocráticas; este fato, porém, não teve conseqüências.
Triunfante em abril e maio de 1848, a revolução conhecerá um
refluxo mais ou menos lento segundo os países. Os exércitos aus­
tríacos derrotam de novo os piemonteses em abril de 1849 e resta­
belecem o grão-ducado da Toscana. Na França, onde os extremistas
haviam sido esmagados nas batalhas de junho, a eleição para Presi­
dente tia República de Luís Napoleão Bonaparte a 10 de dezembro
— 18 —
de 1848 e de uma Assembléia legislativa de maioria monarquista
em maio de 1848, marcam o fim da Revolução, antes que Luís Na-
poleão instaure a sua ditadura mediante o golpe de Estado de 2 de
dezembro de I 85 I.
A reação, vitoriosa em toda a Erança e a Itália nos meados de
1849 (as tropas francesas restabelecem então o papa em seu trono),
desenvolve sc na Austria segundo um processo mais lento. Os tche-
cos são subjugados desde junho de 1848, os liberais austríacos
desde outubro; em compensação, é preciso esperar agosto de 1849
e a intervenção das tropas russas para que termine a guerra nacional
desencadeada pelos húngaros.
Quanto a Alemanha, quando os soberanos estabeleceram seu
poder nos Estados, o “Parlamento de Francfurt”, verdadeira assem­
bleia constituinte eleita pelo sufrágio universal, mas sem dispor de
tropas hem de recursos financeiros, é por sua vez liqüidado. Toda­
via, a Prússia procura realizar ali uma “União Restrita” entre os
soberanos. É preciso um ultimato austríaco para que em novembro
de 1850 a Prússia renuncie a seu projeto.

No fim de 1850, tudo se acaba. Por toda parte a revolução foi


sufocada. Por toda parte os “reacionários” estão no poder e o exer­
cem de modo enérgico, tais como Schwarzenberg na Áustria, Bran­
denburg na Prússia, o cardeal Antonelli em Roma. Todas as esperan­
ças das nacionalidades se frustram. O mapa da Europa continua o
mesmo.
A Alemanha regressa à “Confederação Germânica” de 1815,
muito aquém das suas aspirações à unidade. A Itália continua sendo
uma “expressão geográfica”. Tchecos, croatas e húngaros são subme­
tidos a uma implacável centralização.
Entretanto, desse grande movimento, alguma coisa essencial sub­
siste. Primeiro, a França conserva o sufrágio universal. Embora este
não consiga impedir o golpe de Estado e o restabelecimento do Im­
pério, constitui, a longo prazo, uma vitória estrondosa, para que a
democracia veja pela primeira vez no mundo uma grande potência
adotar um sistema eleitoral fundado sobre a vontade popular. Em
seguida, foram destruídos os últimos vestígios do regime senhorial
sem que houvesse possibilidade de serem novamente implantados
em todos os lugares onde ainda subsistiam, excetuando-se a Rússia,
onde a servidão Só será abolida em 1861. Enfim, a maior parte dos
Estados conserva suas constituições, outorgadas ou votadas. Dois de­
les, a Prússia, cuja irradiação moral e intelectual era intensa na época,
e o Piemonte, outrora campeão infeliz das liberdades italianas, vão
servir de pólos de atração para os movimentos nacionais. Não se tar­
daria muito em descobrir suas conseqüências.
— 19 -
3) A ERA DA GRANDE POLÍTICA ECONÔMICA

Uma das razões que explicam o fracasso das revoluções de 1848


é o medo do “perigo vermelho”. Se os meios avançados das cidades
eram favoráveis às revoluções, os camponeses, em sua unidade, eram
contrários à desordem. Os socialistas lhes eram apresentados como
“partilhadores”, isto é, os que repartiriam as propriedades. Desse
modo na França, após terem eleito os republicanos em 1848, elege­
ram os realistas em 1849. Nos plebiscitos do Segundo Império, res­
ponderam com um “sim” unânime. O caso do último deles é signifi­
cativo. Em 9 de maio de 1870, para a reforma do Império mas na
realidade para a sua manutenção — houve 7.358.000 “sim” contra
1.572.000 “não”. Mas em Paris o total foi inverso: 138.000 “sim” e
184.000 “não”. Lião, Marselha, Bordéus, Toulouse, Saint-Étienne
votaram “não”. Assim se esboçava com uma clareza crescente a
brecha entre uma França revolucionária e dinâmica, que olhava para
o futuro nas cidades, entre os operários, os artesãos, os pequenos
burgueses, e uma França conservadora e passiva com os camponeses
e a burguesia.
Em todos os países da Europa, com exceção da Inglaterra, a rea­
ção contra o “perigo vermelho” se fez sentir no decorrer da década
de 50. No Império da Áustria, o “sistema de Bach” (ministro do
Interior) se baseava na centralização e na opressão. Na Prússia, o rei
era dominado pela “camarilha”, pequeno grupo ultra-reacionário de
fidalgos provincianos, em conflito declarado com os burgueses da
Prússia renaria. Mas em parte alguma a ditadura era mais forte que na
França. Aqui, os republicanos foram deportados em massa após o
golpe de Estado de 2 de dezembro, o mesmo acontecendo em 1858
após o atentado perpetrado por Orsini, republicano romano, contra o
imperador. Quanto aos chefes republicanos, como Victor Hugo, vi­
viam no exílio, de onde lançavam seus raios impotentes contra “Na-
poleão, o Pequeno”.
Quando se faz uma análise do Segundo Império, fica-se impres­
sionado com a sua política exterior ativa, complicada e afinal funesta.
Recorda-se também a formação da unidade italiana e a formação da
unidade alemã. Ou então impressiona a pressão da década de 50 e o
lento progresso do liberalismo no transcurso da década de ó0. Não
se deve esquecer um outro aspecto deveras importante: a política
programada de expansão econômica.
Aí está sem dúvida a chave para a explicação de fenômenos es­
senciais. Simiand e Labrousse mostraram que o período 1817-1850
— das revoluções — é uma fase de baixa de preços, portanto de crise
econômica, multiplicando e gerando tensões. Em contrapartida, de
— 20 —
1850 a 1873, os preços sobem. A prosperidade, interrompida por
alguns recessos, rompe o ímpeto revolucionário. Este só voltará a
ressurgir na França em 1869, aproximadamente. Com um nível de
vida momentaneamente acrescido, as massas toleram mais facilmente
o jugo, se tiverem a impressão de que o poder favorece a expansão.
Este é o nosso caso. Napoleão III é indiretamente um discípulo
de Saint-Simon, que desejava o desenvolvimento da indústria, do
comércio e das vias de comunicação. Os anos 50 do século XIX são
tão brilhantes para a França como os anos 50 do século XX. É verda­
deiramente a era da revolução industrial, da construção das estradas
de ferro. São os franceses que, com Ferdinand de Lesseps, fazem
cavar o canal de Suez entre 1854 e 1869- Paris é transformado por
Haussmann — o que contribui para isolar os operários relegados no
leste, e, em breve, no “cinturão vermelho”.
Uma tal prosperidade, que se estende em escala européia, con­
tribui por algum tempo para transformar consideravelmente a estru­
tura da Europa. A Inglaterra, mais industrializada que os demais paí­
ses, tinha adotado o livre-câmbio entre 1846 e 1850, porque seus
preços industriais eram altamente competitivos e seus camponeses —
minoritários —• estavam aptos a se defender (não será a mesma coisa
depois de 1875, com a invasão do trigo americano). Foi preciso muita
audácia à França, à Prússia e à Itália para segui-la. A prosperidade
encorajou essa audácia. Pelo tratado Cobden-Chevalier de janeiro de
1860, a França não estabelecia o livre-câmbio, mas reduzia conside­
ravelmente seus direitos aduaneiros. Tratados análogos com a Bél­
gica, o Zollverein (união aduaneira prussiana), a Itália, etc., estende­
ram a toda Europa ocidental um sistema de fácil intercâmbio. Foi
possível, durante uma dezena de anos em que durou esse sistema,
pôr a circular livremente as mercadorias, os capitais — e, se neces­
sário, a mão-de-obra. Disso poderia ter resultado uma estreita fusão
das economias, se as divergências em política exterior e as guerras
não fizessem lograr tudo. É que o nacionalismo permanece mais forte
que o “são-simonismo” de Napoleão III, de seus conselheiros, de
seus banqueiros, Michel Chevalier e os irmãos Péreire. A Europa
deveria conhecer a cruel experiência de duas guerras mundiais antes
de ver desenvolver-se um movimento -— lento e difícil — a favor da
supranacionalidade e da integração. Os são-simonianos haviam che­
gado um século mais cedo.
Durante esse período, o Reino Unido oferece um contraste com
os países europeus continentais. Foi sem dúvida agitado por distúr­
bios: motins operários de “Peterloo” em 1819, motins e manifesta­
ções cartistas a favor de uma reforma democrática de 1838 a 1848,
grandes manifestações operárias organizadas por Robert Owen, gre-
— 21
ves, não raro sangrentas. Mas, ao contrário da Europa continental,
soube evitar as revoluções. Democratizou-se de modo progressivo.
De um sistema eleitoral tradicional, perfeitamente desigual, favore­
cendo os camponeses do Sul em detrimento dos do Norte, chegar-
se-ia em 1884 a um sufrágio quase universal, mas por uma série de
reformas empíricas, notadamente as de 1832 e de 1867. Acrescen­
tando aqui, cortando acolá, franqueando o escrutínio a categorias in­
cessantemente mais vastas de eleitores, a Inglaterra recusa a via ló­
gica e cartesiana, prosseguindo na sua prática realista e tradicional.
Ainda aí, o social é a infra-estrutura do político. Em nenhum país
do mundo foram os operários mais infelizes. Casebres, jornada de
quinze horas, trabalho de crianças de cinco anos, a Inglaterra conhe­
ceu tudo isto em grande escala. Mas, após as íeis de 1824-1825, as
trade-unions, isto é, os sindicatos, constituem-se e lutam para melho­
rar a condição operária.
O Cartismo tentou captar estas novas forças para as reformas po­
líticas. Após 1850, as trade-unions, ainda reservadas à elite dos ope­
rários qualificados, renunciam à ação política direta para se ocuparem
exclusivamente da reforma social. Quando, após 1867, numerosos
operários adquiriram o direito do voto, nem por isso constituíram
um partido trabalhista. Deixam aos dois grandes partidos, os whigs e
os tories, o cuidado de disputar esse novo eleitorado com propostas
de melhorias sociais. Assim, a Inglaterra vitoriana, em seu “esplên­
dido isolamento”, prossegue seu próprio caminho. Veremos que o
mesmo acontece em política externa.

NOTA:
1 Cf. II Parte, Cap. II.

— 22 —
Capítulo 3

N a c io n a lid a d e c o n tra
L eg itim id ad e

Se pusermos de lado sua extremidade oeste — França, Portugal e


Espanha — a Europa de 1815 era um desafio, a um só tempo ao
sentimento nacional que a difusão das idéias da Revolução e o ódio
contra o conquistador francês tinham feito nascer. O sentimento na­
cional quer que a comunidade dos homens à qual se pertence tenha
seu próprio governo. Mas as opiniões divergem quando se trata de
definir a comunidade nacional.
Uma primeira escola, principalmente alemã, considera a naciona­
lidade como um produto dos fenômenos inconscientes e involuntá­
rios: essencialmente a hngua. materna e as.tradições-populares.- A lín­
gua pátria é a única que se aprende “involuntariamente”. Se a nação
se define pela língua, todos os que falam francês devem pertencer à
França, os que falam alemão à Alemanha, quer queiram ou não. Essa
teoria foi fundada por Herder no século XVIII. Mas enquanto Her­
der pouco se preocupava com o Estado e falava em termos de nações
culturais, seus sucessores queriam o Estado-nação baseado na língua.
A segunda escola é principalmente francesa. Considera que a na­
cionalidade se funda sobre um fenômeno consciente e voluntário: o
desejo de pertencer a tal nação e não a outra, desejo expresso em
diversas formas: plebiscitos, eleições, votos dos representantes da
população. A festa da Federação, o 14 de Julho de 1780, estabeleceu
assim a nação francesa. Se seguirmos a teoria alemã ou romântica, a
Alsácia, de dialeto germânico, deve ser alemã; o país valão, a Suíça
romanche devem ser franceses.
— 23 —
Se seguirmos a teoria francesa ou clássica, a Alsácia é francesa
porque demonstrou sua vontade de pertencer à França; inversa­
mente, a Suíça romanche, recusando sua anexação à França conforme
manifestou em 1814, não é francesa mas suíça.
A Bélgica é um exemplo excelente. Quando se revoltou em 1830
contra o Reino dos Países-Baixos (que englobara artificiaimente os
neerlandeses e os belgas), alguns de seus habitantes teriam aceito a
anexação à França. A oposição dos britânicos, que não queriam ver
uma grande potência instalada na Antuérpia, tornou tal solução im­
possível, e Luís Felipe, rei dos franceses, preferiu aceitar esse ponto
de vista em vez de arriscar-se a uma guerra. Assim pois, o naciona­
lismo belga, que já existia, pôde viçar sem obstáculos e constituiu-se
em Estado independente. O interessante é que esse Estado se com­
punha de habitantes que falavam duas línguas, o francês para os va-
lões, o neerlandês para os flamengos. Ora, a revolta contra o domínio
holandês partiu tanto dos flamengos como dos valões, e ambos aco­
lheram com satisfação a independência. Ainda melhor, a sublevação
de 1830 foi preparada desde 1828 por uma “União” de católicos
(hostis aos protestantes neerlandeses) e liberais anticlericais (hostis
ao regime demasiadamente autoritário do rei dos Países-Baixos, Gui­
lherme I). A nação belga é, portanto, originária da vontade popular e
não da língua. A Bélgica e a Suíça são nações de muitas línguas. Mal­
grado as lutas lingüísticas do século XX na Bélgica — às quais a Suíça
parece ter escapado — trata-se de duas nações no pleno sentido do
termo.
Assim se compreende melhor o caráter antinacional da Europa de
1815, fundado, como vimos, no princípio da legitimidade e no equi­
líbrio europeu. Duas nações, a alemã e a italiana, se dividiram, uma
em 39 Estados, a segunda em 7 Estados. Vêm, em seguida, dois
grandes Estados históricos plurinacionais: o Império da Áustria e o
Império Otomano.
No primeiro, além de austríacos de língua alemã, se encontram
tchecos, eslovacos, poloneses, eslavos do Sul (eslovenos, croatas, sér-
vios), húngaros, romenos e italianos. No segundo, além dos turcos,
instalados em várias regiões dos Bálcãs, se encontram gregos, búlga­
ros, eslavos do Sul (sobretudo sérvios), albaneses e romenos. A dife­
rença entre ambos está no fato de o Estado otomano ser fraco —
desagrega-se na Europa de 1815 a 1913 — enquanto o Império Aus­
tríaco é forte. Resistirá aos abalos, concederá autonomia apenas aos
húngaros (mediante a Convenção de 1867), e é preciso a guerra de
1914-1918 e a derrota para que ele se parta numa dispersão de “Es­
tados sucessores”. Há por toda parte nacionalidades submissas. Ir­
landa ao Reino Unido, a Noruega à Suécia, os alemães do Schleswig
— 24 —
e do Holstein ao rei da Dinamarca, os finiandeses, os balcânicos e os
poloneses à Russia czarista. E ainda poloneses à Prússia.
Ora, o sentimento nacional tornou-se força política. Em todo
lugar os povos subjugados aspiram à independência: mesmo nos Bál­
cãs, onde o nível de vida é mais baixo e o analfabetismo mais espa­
lhado, descobre-se o orgulho de pertencer a um grande povo. Poetas
exaltam a nacionalidade, historiadores descobrem as glórias passadas,
filólogos purificam a língua e restauram sua nobreza. Ao movimento
intelectual se sobrepõem movimentos políticos reformistas ou revo­
lucionários. Dentro em breve uma potência nova jorra de toda parte,
e todos quantos olham em direção ao futuro consideram com simpa­
tia esse frêmito de liberdade e dignidade humana.
Assim, a Europa de 1815, construída contra a hegemonia fran­
cesa, vai achar-se em luta não com uma França cada vez mais resig­
nada e satisfeita, mas com forças novas que rejeitam com horror o
velho princípio de legitimidade,, que mantém uma situação julgada
intolerável.
Entre 1815 e 1871, podemos distinguir duas fases nessa luta
entre nacionalidade e legitimidade. De 1815 a 1851, com poucas ex­
ceções, a reação vence, e pode manter mais ou menos inalterado o
mapa da Europa. De 1851 a 1871, ao contrário, triunfa o princípio
das nacionalidades, ao menos nos pontos essenciais.

1) AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS DE 1815 A 1851

A França ocupada, mutilada, submetida a uma pesada indeniza­


ção, vigiada pela Quádrupla Aliança (com Wellington, que comanda
as tropas e a “Conferência dos Embaixadores”, que controla o go­
verno), atormentada pelos tumultos sangrentos do “Terror Branco”,
em breve deixa de ser o foco da inquietação geral. A partir de 1818,
no Congresso de Aix-la-Chapeile, o duque de Richelieu, amigo do
czar, obtém a evacuação e a admissão do país no “acordo europeu”.
0 poder de Luís XVIII parece reforçar-se. Todavia, impera a descon­
fiança, pois ainda existe a possibilidade de haver uma revolução. Já
não há inquietação. A bandeira branca é menos perigosa que a ban­
deira tricolor. E no seu longínquo exílio de Santa Helena, Napoleão
1 morre a 5 de maio de 1821. Seu filho é um pequeno duque aus­
tríaco que não oferece perigo. A República vive apenas na lembrança
de alguns velhos e no ardor de alguns jovens irresponsáveis. Enfim, a
política dos Congressos, prevista pela Quádrupla Aliança, parece efi­
caz. Em Troppau, Laybach, decide-se a intervenção austríaca contra
Nápoles, em Verona a intervenção francesa contra a Espanha.
— 25 —
O verdadeiro centro tie interesse se desloca. O movimento das
nacionalidades se desenvolve no Império Otomano. Mas este possui
os “Estreitos”, razão pela qual tudo quanto acontece se liga à “Ques­
tão do Oriente”. A questão é saber se os russos poderão ou não
controlar os Estreitos e assim ter acesso a um “mar quente”. A Ingla­
terra não o quer a preço nenhum, e, para ela, a integridade do Impé­
rio Otomano permanecerá por longo tempo ur-i princípio sagrado.
Mas esse princípio conhecerá exceções. A Sérvia já é autônoma, e, o
que é pior, a Grécia se revolta em 1821 contra os turcos.
Seria interessante analisar todos os fatores da revolta grega: a re­
sistência xenófoba dos “Klephtes”, semipatriotas, semibandidos das
montanhas da Moréia, o desenvolvimento de uma burguesia culta nas
ilhas, enriquecida pelo tráfico marítimo sob o Império e dona de uma
frota mais eficaz que a dos turcos, a criação na Grécia e no estran­
geiro de uma sociedade patriótica, a “Hetaíria”, o papel do patriarca
grego de Constantinopla. Cada vez mais os gregos sentem que for­
mam uma Nação. No estrangeiro, onde a elite se acha impregnada de
memórias da Antigüidade, a Grécia e simpática aos conservadores
porque, como cristã, luta contra os turcos muçulmanos, aos liberais
porque, como nação subjugada, combate por sua independência. Por
toda parte há “filelenos”. O czar apóia periodicamente os revoltosos
pois lhe apraz enfraquecer a Turquia.
Nos dois primeiros anos (1821-1822) vencem os gregos. Logo
porém se dividem, combatem entre si. O sultão apela para seu vas­
salo, o paxá do Egito, Mohammed Ali, para esmagá-los. A frota
grega poderia tê-lo impedido de desembarcar, mas os marinheiros,
mal pagos, recusaram-se a deixar os portos. Ibrahim, filho do paxá
do Egito, chega então à Moréia. Com os esforços combinados dos
egípcios e dos turcos, as resistências gregas tombam uma após outra
(1824-1827).
Mas a Europa intervém. Canning com reticências, o novo czar
Nicolau 1 com entusiasmo, a França de Carlos X por solidariedade
cristã e por simpatia — todos resolvem enviar esquadras a Navarin,
base da frota egípcia. Aí, a 20 de outubro de 1827, um incidente
desencadeia a batalha e a frota dos muçulmanos naufraga. Tropas
russas invadem os principados romenos. Uma expedição francesa
desembarca na Moréia. Para impedir o desastre — entendamos, a
tomada de Constantinopla pelo czar — os britânicos apressam a
paz. Cria-se então uma pequena Grécia da qual são excluídas algu­
mas ilhas e um vasto território continental — uma Grécia autô­
noma, completamente independente em 1830.

Com a autonomia da Sérvia, é esse o primeiro triunfo do movi­


mento das nacionalidades.
— 26 —
Já evocamos o segundo triunfo, a independência da Bélgica. Aí,
em vez da rivalidade anglo-russa, há uma rivalidade franco-inglesa.
Os britânicos — o liberal Palmerston chega ao Foreign Office em
novembro tie 1830 — teriam preferido a manutenção do reino dos
Países-Baixos. São porém realistas. O essencial é impedir que a
França ocupe a Antuérpia. Uma Conferência de Embaixadores
reúne-se em Londres onde a França se faz representar por Talley­
rand. Nem este nem o rei querem a guerra, e quando o presidente
do Conselho, Laffitte, se deixa levar por propósitos desconsiderada-
mente belicosos, Luís Felipe o substitui por um homem enérgico mas
moderado, Casimir Périer. Os belgas oferecem uma constituição e
um rei, que, de conformidade com as exigências inglesas, não é um
príncipe francês. Trata-se de Leopoldo I, da família Saxe-Cobourg.
Depois, penosamente, traçam-se as fronteiras que a Holanda só re­
conhecerá em 1839, e proclama-se a neutralidade do novo Estado.
Apesar da conquista da Argélia, que os ingleses não acolheram de
bom grado, acentua-se uma aproximação entre os dois países liberais
da Europa ocidental e foi possível falar de uma “primeira Entente
Cordiale”. Em todo caso, havia nascido a nova nação belga.
A “Entente Cordiale” não foi durável. Palmerston desconfia da
França. Luís Felipe, apesar de suas boas relações com a jovem rainha
Vitória que subira ao trono em 1837 e que se casara com um outro
Saxe-Cobburg, o príncipe Albert, desejava estabilizar seu regime.
Para o “rei das barricadas” isso significava uma aproximação das ve­
lhas monarquias absolutistas, Rússia, Prússia, Áustria.
Estas velhas monarquias fizeram-no sentir claramente que era um
usurpador, e ele não pôde casar seu filho mais velho com uma arqui-
duquesa. Nem Palmerston nem Luís Felipe tentam consolidar o
acordo. A Questão do Oriente acabaria por desagregá-lo.
Esta questão voltou à tona por causa de Mohammed Ali. O paxá
do Egito, que assentara seu poder depois de massacrar os mamelucos,
seus rivais, é um protegido da França, onde, por uma curiosa aberra­
ção, é considerado liberal. Quase independente, tendo constituído
um exército moderno, suas ambições não têm limites. Conquistou o
imenso Sudão até os Grandes Lagos, e as cidades santas da Arábia.
Como prêmio de sua intervenção na Grécia, reclama Creta junto ao
sultão. Com a recusa do sultão, ele invade a Síria, esmaga os turcos e
aí se instala (1833).
Então são os russos que salvam o Império Otomano. O tratado
de Unkiar-Skelessi estabelece um verdadeiro protetorado russo
sobre os turcos. Além do mais, os navios do czar têm livre acesso aos
Estreitos. A Inglaterra, que não quer ver um protegido francês
tornar-se sultão (mas que estava extremamente inquieta por causa do
tratado de Unkiar-Skelessi), manobra penosamente entre franceses e
russos. Quando o sultão, impelido pelos ingleses, ataca em 1839 seu
vassalo egípcio, é completamente esmagado. A frota otomana iria
render-se em Alexandria.
Palmerston convence as potências européias de que é preciso co­
locar a Turquia sob seu protetorado coletivo — o que põe fim ao
protetorado unilateral dos russos (julho de 1839). Já é um primeiro
sucesso britânico. O segundo ocorre em seguida a uma falta de habi
lidade de Thiers, que se tornou presidente do Conselho em março de
1840. Este organiza uma negociação secreta entre Mohammed Ah e
os turcos. Mas o segredo é descoberto. Ofendidos por ver a França
agir sozinha a despeito de acordos concluídos, as quatro outras po­
tências assinam em Londres, a 15 de julho de 1840, um tratado, exi­
gindo de Mohammed Ali a restituição de suas conquistas.
Este pediu o apoio da França. Thiers estava disposto a concedê-
lo, o que teria significado uma guerra geral. Preparou-se e deu início
à fortificação de Paris. Mas a sabedoria de Luís Felipe evitou a crise:
exonerou Thiers, substituiu-o por um Ministério Soult no qual Gui­
zot ficou com os Negócios Exteriores e a influência dominante. Mo­
hammed Ali teve que se consolar. Ficando apenas com o Egito, a
título hereditário. Em julho de 1841, a Convenção dos Estreitos sa­
tisfez os ingleses: o Bósforo e o Dardanelos se conservariam fecha­
dos, em tempo de guerra, às frotas de todas as potências. Assim,
pois, o protegido francês ficou diminuído e' a Rússia não teria acesso
aos mares quentes. Por algum tempo, a “Questão do Oriente” foi
regulada de acordo com as conveniências do Governo de Londres.
Enquanto os governos prosseguiam em suas polêmicas, os povos
preparavam confusamente o fracasso dos dados estabelecidos. Em
1848 se desencadeou o movimento revolucionário europeu. Já des­
crevemos os dados essenciais. Notemos aqui o que se reveste de
importância sob o ângulo da vida internacional.
Primeiro, o fracasso da tentativa de unificação da Itália foi muito
instrutivo. O Piemonte e os rebeldes do Lombardo-Vêneto tentaram
sozinhos expulsar os austríacos. Italia farà da se, dizia o rei Carlos
Alberto, o que demonstrou ser impossível. Os que vão governar o
Piemonte após 1850, e, notadamente Cavour, sabem que dali por
diante é necessária a aliança de uma grande potência. Toda a sua
política consistirá em achar essa aliança. A seguir, das três teoria;
existentes sobre a unidade da Itália, a confederação italiana presidida
pelo papa (“neogüelfismo” do padre Gioberti), a República ou ane­
xação de toda a Itália ao Piemonte (idéia de Cesare Balbo, Massimo
d’Azeglio, etc.), apenas a última subsiste. A recusa do Papa Pio IX,
que no entanto passava por liberal e patriota em combater a Áustria
— 28 —
católica, destruiu sua popularidade e as esperanças que fizera surgir.
Daí em diante, todos os patriotas se voltam para Turim. Enfim, as
tentativas republicanas em Veneza, Roma e Florença levantaram
contra elas a maior parte dos moderados. Pense Mazzini o que pensar
— Mazzini, o republicano romântico — a Itália tomará a forma mo­
nárquica. Manin, prestigioso republicano de Veneza que enfrentou
os austríacos por um ano, aderiu ao realismo dessa idéia simples.
O problema da unidade alemã também foi relegada a um segundo
plano. Os republicanos, que formavam apenas pequenos grupos no
Sul e na Renânia, desempenharam um papel insignificante. Mas
entreviram-se três soluções. A primeira era a de uma união pela von­
tade popular, independentemente dos soberanos. O “Parlamento de
Francfurt”, eleito pelo sufrágio universal, tentou lealmente essa solu­
ção. Seu fracasso se tornou patente quando Frederico Guilherme, rei
da Prússia, recusou a coroa imperial que lhe fora oferecida. Ele não
admitia que seu poder fosse de base popular. Restavam duas solu­
ções: a) Uma união em torno-da Áustria, reforçando a “Confederação
Germânica” de 1815. Isso fazia supor que à Prússia caberia apenas o
segundo lugar, embora brilhante. Havia igualmente a hipótese da in­
corporação de todo o Império austríaco, com suas populações alóge-
nas, à Alemanha. É a solução da “grande Alemanha” (ainda que cer­
tos partidários tivessem desejado a incorporação à Alemanha unifi­
cada da única parte germanófona do Império — o que teria deslo­
cado a velha monarquia dos Habsburgos); b) a outra solução, a da
“pequena Alemanha”, consistia em excluir da Alemanha unificada o
conjunto do Império austríaco, inclusive a Áustria germanófona. Essa
união se realizaria sob a Prússia. Um jovem reacionário prussiano,
membro de muitas assembléias eleitas entre 1848 e 1851, e violen-
tamente hostil à Alemanha liberal de Francfurt, Otto von Bismarck
Schoenhausen, compreendeu perfeitamente então o que implicava a
oposição entre a “grande” e a “pequena Alemanha”.
Ardente patriota prussiano e partidário do Estado histórico dos
Habsburgos, ele concluiu que só uma guerra entre a Prússia e a Áus­
tria permitiria mais tarde resolver o dilema. Era necessário ganhar
essa guerra e, em conseqüência, preparar longa e minuciosamente o
exército e procurar apoios diplomáticos. Veremos mais tarde as con­
seqüências dessa tomada de posição.
Finalmente, as revoluções de 1848 demonstraram que a velha
monarquia habsburguesa, em certo momento abalada até em suas ba­
ses, permanecia sólida. Certamente a guerra contra os húngaros fora
rude, e foi necessário o apoio russo para subjugá-los. Mas a expe­
riência provou que esse Estado sustentava-se de maneira absurda.
Por muito tempo as populações subjugadas limitaram suas ambições
- 29
à “federalização” do Império. A vitória da reaçao paralisou o espírito
de independência durante muitas gerações.

2) AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS DE 1851 A 1871:


NAPOLEÃO III — CAVOUR — BISMARCK

O fracasso das revoluções e a ajuda da prosperidade econômica


apaziguaram os movimentos populares por algum tempo. Os chefes
de Estado, gozando de maior liberdade de manobras, desempenha­
ram um papel mais pessoal, mais decisivo. Alguns deles foram perso­
nalidades excepcionais. Além de Palmerston, podemos citar, entre os
primeiros, Napoleão III e Cavour até 1861, Napoleão III e Bismarck
após 1862. Esses três nomes estão ligados à grande crise européia,
motivada pela formação da unidade italiana e a formação da unidade
alemã.
Personagem misterioso, pouco comunicativo, idealizador de lon­
gos planos, firme na concepção e lento na execução, Napoleão III foi
o primeiro chefe de Estado de uma grande potência que acreditou no
princípio das nacionalidades. Enquanto a opinião francesa permanece
indiferente a isso, para não dizer hostil (nos meios católicos que de­
sejam a permanência dos Estados pontifícios), ele fará o possível para
o bom êxito da unidade italiana, até mesmo da unidade alemã. Mas se
tal política é “gratuita”, isto é, independente das correntes profundas
que agitam o país, ainda mais gratuita é a parte tomada pela França na
guetra da Criméia, novo destaque da Questão do Oriente.
Sem perder de vista suas ambições nos Estreitos, o czar idealiza
um novo método de penetração: tramar o reconhecimento de um
“protetorado” sobre os cristãos ortodoxos do Império Otomano. As­
sim, encontraria mil pretextos para intervir nas Bálcãs. Proclama que
a Turquia é um “homem enfermo”, e que é preciso pensar em sua
herança. Depois, com o débil pretexto dos “lugares santos” da Pales­
tina onde se enfrentam violentamente católicos e ortodoxos, envia
em maio de 1853 seu ajudante-de-ordem, Mentchikoff, reclamar a
proteção russa para os ortodoxos. A Inglaterra tem um real interesse
no jogo. Não é de surpreender que ela incentive a Turquia a resistir
e que, tendo a guerra se desencadeado entre russos e turcos, acabe
por intervir. Em compensação, é difícil compreender por que Napo­
leão III lhe entrava os passos. Para a França, trata-se quase que uni­
camente de uma questão de prestígio.
Inicia-se então uma violenta guerra no ponto escolhido pelos in­
gleses, a única grande base naval russa do Mar Negro, Sebastopol, na
Criméia. Trincheiras cercam a cidade. O porto é bloqueado pelos
navios russos que conseguem penetrar. Os Aliados — franceses, in-
- 30 —
glescs e turcos, logo reunidos a um pequeno exército piemontês —
impedem que os exércitos de socorro do czar atinjam a cidade.
() mal e a crueldade dos combates causam grandes perdas. Em
Paris, onde se realiza uma Exposição Universal, começa a inquieta­
ção. A tomada de Sebastopol em setembro de 1855 vem, finalmente,
acalmar os espíritos. Morrendo o czar Nicolau 1, desgostoso por não
ter obtido o apoio austríaco, ele que havia ajudado os Habsburgos a
vencer os húngaros revoltados, seu filho Alexandre II aceita uma in­
tervenção austríaca, sustentada no último instante pela Prússia. O
Congresso da Paz se reúne em Paris em março-abril de 1856. Se o
que queria era prestígio, Napoleão III ganhou. Ele parecia ser o ár­
bitro da Europa. No plano das nacionalidades, também ganhou, pois
uma nova nação autônoma, praticamente independente, a Romênia,
nasce do Congresso de Paris —.novo desmembramento do Império
Otomano, no entanto vitorioso. Mas a grande vencedora é a Ingla­
terra: a Rússia foi por algum tempo excluída dos Bálcãs, e além da
garantia do bloqueio dos Estreitos à frota russa, trazido pela Conven­
ção de 1841, ela adquire uma magnífica garantia suplementar: a neu­
tralização do Mar Negro, em outras palavras, já não existia a frota
russa.
Outro grande vencedor é Cavour. Tendo ele, sob pretextos espe­
ciais, enviado um pequeno exército à Criméia, passou a ser chefe do
governo de um pequeno país, admitido no sacrossanto “Acordo Eu­
ropeu”. Deste fato inusitado ele se aproveita para revolver a “questão
italiana”, para grande descontentamento da Áustria.
Cavour amadurece seu plano, que consiste em obter o apoio do
exército de Napoleão III contra a Austria, para liberar o Norte da
Itália. Não sonhava unificar todo o país. Todavia, consegue fazê-lo.
Tem o povo a seu lado. Uma “Sociedade Nacional”, criada em 1857,
organiza em toda a Itália a decisiva campanha de opinião pública.
O mais estranho de tudo foi o processo desencadeado pelo conde
Felipe Orsini, republicano italiano, na tentativa de assassinato perpe­
trado contra Napoleão III, em quem ele vê o obstáculo à unificação
de sua pátria. De sua prisão, antes da execução, ele endereça ao im­
perador um apelo que é ouvido. Cavour manobra imediatamente. Em
Plombieres (julho de 1858), esboça com o imperador a aliança ofen­
siva e defensiva que permitirá às tropas franco-piemontesas liberar a
Itália ilos austríacos, mediante a anexação ao Piemonte da Lombárdia
e do Vêneto. Mas nada acontece como estava previsto.
Desencadeia-se a guerra. Mas após duas vitórias sangrentas.
Magenta e Solterino, Napoleão III assina bruscamente o armistício.
31 —
Fig. 2 — A Unidade Italiana
A Lombardia é conquistada, mas não o Vêneto. Cavour, ofendido,
pede demissão (julho de 1859).
Mas a compensação não tardaria a chegar. Os ducados do
Centro e da Romênia, revoitados contra seus soberanos, reclamam
a sua anexação ao Piemonte. Napoleão III acaba concluindo que
esta é aceitável, em troca da Sabóia e de Nice para a França. A troca
e vantajosa para Cavour, que reassume o poder, e o conduz a bom
fim, malgrado o furor de Garibaldi, herói nacional por excelência,
que é de Nice.
O furor de Garibaldi vai pôr um ponto final à obra de Cavour.
Com uma tropa de mil “camisas vermelhas”, desembarca na Sicília,
depois em Nápoles. Iria criar a república no sul da Itália? A idéia
consterna Napoleão III que era tudo menos revolucionário. Com
uma extraordinária habilidade, Cavour a aproveita. Com a condição
de agir depressa, o imperador aceita o envio de tropas piemontesas'
para o sul da Itália. De passagem elas ocupam a maior parte dos
estados pontificais, exceto Roma e o campo Romano.
O rei, que segue o exército, dirige-se para Garibaldi, abraça-o e
o convence: o centro e o sul da Itália são anexados ao Piemonte. O
reino da Itália é proclamado (23 de março de 1861). Cavour agiu
melhor do que pensou. Apenas o Vêneto e Roma não foram ane­
xados.

Exausto, Cavour, um dos grandes homens da história italiana,


morre a 6 e junho de 1861. O Vêneto seria assimilado em 1866 e
Roma em 1870. Havia nascido uma nova e grande potência. É esse
sem dúvida o mais importante acontecimento internacional após
1815.
Entretanto, outro fato, ainda mais importante, ia se passar: após
1862, um fato de natureza semelhante, a formação da unidade alemã
em torno da Prússia. Desta vez o parceiro do jogo não é mais Ca­
vour, porém Bismarck.
Bismarck se torna ministro-presidente da Prússia em setembro
ile 1862. Por sua merecida fama de homem enérgico, ele é julgado o
único capaz de resolver um grave conflito entre o governo e o Land-
/</g prussiano. O governo queria aumentar os créditos militares. A
Assembléia, composta em sua maioria por liberais, se recusava a isso.
Bismarck toma a resolução de dispensar os votos em nome da prer­
rogativa real. Como os liberais também fossem membros do Natio-
iitilrcrc/u. grande associação patriótica dos partidários da “pequena
Alemanha”, e como Bismarck também passasse por um prussiano
ferrenho, hostil à unificação, foi, por muito tempo, o homem mais
iletesiado do reino. Todas as classes esclarecidas o odiavam.
Ele tinha um plano. Queria excluir a ferro e fogo a Austria da
— 33 —
Fig. 3 — A Unidade Alemã (1862-1871)
Alemanha. Dois excelentes generais, von Roon no Ministério da
Guerra e von Moltke na chefia do Estado-Maior Geral, lhe prepara­
ram o melhor exército do mundo. Bismarck, por sua vez, procura­
va provocar a ocasião. Foram necessárias três guerras para consegui-
lo.
A primeira é complexa: a “guerra dos Ducados”, encabeçada
pela Prússia e a Áustria contra a Dinamarca, tinha como objetivo
aparente impedir o rei desse país de anexar os ducados do Slesvig,
do Holstein e do Lauenburgo que ele apenas possuía a título pes­
soal. O objetivo real de Bismarck era comprometer a Áustria e
criar uma causa de conflito. A Áustria anexou o Holstein e a Prús­
sia o Slesvig. Logo após, Bismarck propôs uma ampla reforma da
Confederação Germânica — para estupefação dos liberais — ba­
seada na eleição de um “Reichstag” de sufrágio universal. Como a
Áustria visse nisso, com justa razão, o prefácio da sua evicção, recu­
sou. Então Bismarck, deliberadamente, invadiu o Holstein, obri­
gando a Áustria, de maneira voluntária, como sempre proclamou, a
mover-lhe guerra.
A segunda guerra é a franco-prussiana de 1866. No plano di­
plomático, Bismarck manobrou admiravelmente para isolar a Áus­
tria. Aproveitou-se da revolta dos poloneses em 1863 para conquis­
tar o czar. Fechou a fronteira prussiana aos revoltosos, enquanto
Napoleão III, sempre fiel à política das nacionalidades, irritava o
autocrata, propondo um congresso europeu para resolver a sua
sorte. Bismarck em seguida convence Napoleão 1JI na entrevista de
Biarritz (1865), fazendo-lhe algumas promessas cuidadosamente
vagas de compensações, caso a Prússia se ampliasse. Aliou-se enfim
à Itália, que desejava conquistar o Vêneto. A Áustria só tem a seu
dado a maior parte dos pequenos Estados alemães: nova vitória
inesperada para Bismarck, que assim podia esmagá-los e anexar os
do Norte, o Hanovre em particular, que separava as duas partes da
Prússia. Depois, com tudo pronto, diplomacia e exército, trava-se a
guerra.
A vitória de Sadowa (3 de julho de 1866) se decide em favor da
Prússia. A Áustria é excluída da Alemanha, a velha Confederação
Germânica é dissolvida. A Prússia se engrandece. Em torno dela se
constitui a “Confederação da Alemanha do Norte” com o Reichstag
eleito pelo sufrágio universal e um “presidente”, o rei da Prússia.

Até aí Napoleão III estava satisfeito. Como pensasse não apenas


nas “fronteiras naturais” da França, mas, também nas nacionalidades,
e como já tivesse conseguido êxito no que dizia respeito à Savóia,
pediu as “compensações” que julgava devidas e que lhe foram pro­
metidas: parte da Renânia, Bélgica ou Luxemburgo. BLmarck, ha­
bilmente, fez tudo fracassar, falando com saro-jflio de “propinas”
mendigadas pela França. Abrindo os olhos, constatou o Imperador
— 35 —
que tinha ajudado a constituir em suas fronteiras uma Prússia pode­
rosa e fõrtemente armada, sem que nada lhe adviesse em troca. A
opiniào francesa, furiosa e inquieta, engajou-se na perigosa psicose
da “guerra inevitável”. Os franceses entãò pensaram descobrir que a
Prússia era sua inimiga hereditária.
Bismarck negou algumas vezes que a terceira guerra, a guerra de
1870-187 1, fosse desejada por ele. Os textos provam pelo menos
que ele a julgava inevitável para rematar a unidade alemã. A incom­
petência francesa, cuidadosamente cultivada por Bismarck, levaria a
ela. A França rejeitou a candidatura de um Hohenzoüern ao trono da
Espanha e q rei Guilherme I aceitou esse ponto de vista. Mas o
duque de Gramont, fogoso e inábil Ministro dos Negócios Estrangei­
ros, exigiu uma promessa escrita. A recusa do rei, que se tornou
habilmente insultuosa por Bismarck ao entregá-la à imprensa, conse­
guiu, como ele queria, o efeito de um pano vermelho no touro gau­
lês. Levada pela insensatez, a França declarou uma guerra na qual a
Imperatriz via a salvação da dinastia por meio da vitória e da glória.
Jyíal preparado, comandado por oficiais mais habituados aos gol­
pes de força na Argélia que com uma guerra bem planejada, o exér­
cito francês foi esmagado em Sedan. Em 4 de setembro, a notícia de
que o imperador fora vencido e feito prisioneiro provocou a queda
do regime. Tanto no cerco de Paris como nos exércitos apressada­
mente recrutados na província, o “governo da defesa nacional” ten­
tou inverter a situação. Em vão: a 28 de janeiro de 1871, foi preciso
assinar o armistício. Nesse ínterim, oJmpério alemão foi proclamado
na Galeria dos Espelhos de Versalhes a 18 de janeiro. A anexação da
Alsácia e de uma parte da Lorena devia cimentar a unidade alemã
assim conseguida.

36 —

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