O Triunfo Do Avesso

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De Rio-Grandense a Gaúcho:

o triunfo do avesso
A nova historiografia sul-rio-grandense está comprometida com o
rigor analítico, amparado em um elaborado arcabouço conceitual,
no levantamento diligente das fontes e no exame acurado dos
documentos. Em suma, uma relação séria e responsável com
questões de nossa história cultural já tantas vezes colocadas, mas
em muitas simplificadas grosseiramente.

A profissionalização dos estudos históricos universitários no Rio


Grande do Sul, a partir do final dos anos 1970, não se deu sem a
desejada ruptura com a erudição diletante tradicional. Ao negar os
pressupostos teóricos e métodos de pesquisa de seus antecessores,
comprometidos com a exaltação do objeto “região”, ou melhor, com
sua elaboração cívica e ufanista, historiadores e críticos literários,
principalmente, dotaram os estudos sobre a “ideologia do
gauchismo” de uma tônica denunciatória: o gaúcho de lenço atado
ao pescoço, botas e bombachas, anacronismo social revivido
arbitrariamente nos palcos dos Centros de Tradições Gaúchas, fora
uma falácia elaborada no entresséculo XIX-XX para legitimar a
hegemonia das elites rurais decadentes.

As ligações entre a política e a produção cultural locais não podem


ser negligenciadas, mas o foco estreito do exame e o viés de
acusação acabaram por criar um lugar comum muito difícil de
transpor. Nesse ínterim, uma série de disputas intelectuais, projetos
de memória conflitantes, usos e funções diversas do gaúcho mítico,
se perderam.

Foi necessária cerca de uma década para que surgissem


interpretações mais atentas.

O texto de Gomes deve ser compreendido dentro desse esforço


recente de leitura cuidadosa do gauchismo, em suas diversas
variantes e modalidades discursivas, que construíram a ideia de um
Rio Grande gaúcho por excelência. A crítica histórica,
evidentemente, tem potencial libertador, à medida que
desnaturaliza o objeto e questiona a fatalidade da geografia
simbólica com a qual somos interpelados desde que nascemos. No
entanto, o grande compromisso da autora é com o rigor analítico,
amparado em um elaborado arcabouço conceitual, no
levantamento diligente das fontes e no exame acurado dos
documentos. Em suma, uma relação séria e responsável com

1
questões de nossa história cultural já tantas vezes colocadas, mas
em muitas simplificadas grosseiramente.

Publicado em 2009, o livro De Rio-Grandense a Gaúcho: o triunfo do


avesso, de Carla Renata Antunes de Souza Gomes, nos conduz, com
maestria, pela história da construção simbólica do habitante “típico”
do estado, através da ressemantização (e confluência) de seus dois
principais adjetivos gentílicos, operada pela literatura local. Seu
texto é exemplar das novas tendências de abordagem analítica da
identidade regional.

Gomes investiga as transformações sócio-históricas que elevaram


um termo pejorativo, sinônimo de bandoleiro, “vagamundo”, pária
social – até meados do século XIX, em toda a extensão das planícies
platinas – à categoria de gentílico no Rio Grande do Sul: a
assimilação do cavaleiro errante como força de produção nas
fazendas de criação. De bandido, homem errante do campo à sua
domesticação transformando-se em peão submetido ao patrão, o
gaúcho foi um personagem em disputa que foi se transformando no
tempo.

Mas a confusão entre gaúcho e peão, por si só, não explica o


processo que levaria o termo a designar todo o habitante do estado.
Gomes persegue fio diverso dessa história, como indicado pelo
próprio Meyer: o plano das transformações semânticas e suas
funções sociais: o “triunfo do avesso” foi um longo processo de
investimento intelectual para a construção do modelo de
identidade coletiva hoje dominante no discurso oficial e no
imaginário regional.

Gomes mostra que o regionalismo literário exercido pelos


intelectuais do país era a possibilidade encontrada de acessar as
diversas realidades que compunham a nova unidade política,
dotandolhes de caráter nacional. O século XIX é o século da
invenção dos “nacionalismos” e das “nações”, assim como do
“povo”.

Amparada pelo debate contemporâneo, a autora analisa as


primeiras obras que se debruçaram sobre a região, os romances A
Divina Pastora (1847) e O Corsário (1851), publicados no Rio de
Janeiro pelo rio-grandense José Antonio do Vale Caldre e Fião.
Gomes acompanha nessas narrativas a emergência de termos como
“vaqueano”1, “guasca”, “monarca” e “gaúcho”, todos designativos
do campesino local, destrincha seus sentidos e aponta para a
preferência do autor pelo terceiro, em detrimento do último:
enquanto a imagem do monarca aparece na poesia popular da
época, remetendo a um tempo sem rei, em que a fidalguia se

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constitui no domínio e defesa da terra, pesa sobre o gaúcho o
estigma da barbárie e a proximidade com o elemento platino,
inimigo de guerra. Ele é, então, representado como antípoda social
do rio-grandense. Os personagens de destaque, como o Bento
Gonçalves figurado, revestem-se de valores próximos da civilização
luso-brasileira do centro, mas com as características culturais
peculiares da periferia política, já que a intenção do escritor “era
apresentar aos outros brasileiros um estilo de vida diferente, que
existia fora do Rio de Janeiro, não obstante, também tão educado,
quanto urbano e que, acrescido das vivências rurais, seria
representado pelo monarca das coxilhas”.

Gomes observa a percepção e representação dos habitantes do


estado nos relatos de dois viajantes alemães: Descrição da Província
do Rio Grande do Sul no Brasil Meridional (1854), do militar Joseph
Hörmeyer, e Viagem pela província do Rio Grande do Sul (1859), do
médico radicado no país Robert Avé-Lallemant. Cotejados com
narrativas de viajantes precedentes, os textos nos revelam códigos
culturais locais, como o apreço ao cavalo, o desprezo pela égua –
que a autora explica como prática disseminada na região,
compartilhada tanto por portugueses quanto por espanhóis –, a
hospitalidade sem medir a quem, e, no caso específico do campeiro
rio-grandense, o luxo dos arreiros e armas de prata, além de
práticas sociais como as corridas de carreira, o abatimento quase
irracional do gado para o churrasco, e o hábito do chimarrão. Como
salientado por Gomes, o viajante recorta com seu olhar parte da
realidade e, assim, a “transforma em paisagem”, “objeto a ser
descrito, desenhado, explicado e conhecido” (p. 117). Os relatos
dão-nos a ver, ainda, um sistema de classificação que aproxima, mas
também estabelece distinções entre rio-grandenses e platinos, bem
como com demais brasileiros, além de diferenças entre o citadino e
o campeiro. Este, aliás, se torna, em poucas vezes, gaúcho. Mas se
todo gaúcho é campeiro, o contrário não é verdadeiro (a primeira
narrativa, inclusive, faz sequer uma referência àquele vocábulo).
Fica claro, portanto, que não é nada comum, no período, associar
rio-grandenses a gaúchos.

A então Província do Rio Grande de São Pedro, marcada pelas


guerras de fronteira e o episódio farroupilha (1835-1845), se
deparava em seus primeiros exercícios de memória com um conflito
simbólico que marcaria a identidade gaúcha por todo o século XX: o
desejo de autonomia política e militar frente à necessidade de se
integrar à nação brasileira. É justamente o histórico de insubmissão,
segundo Gomes, e a reorganização militar da sociedade para a
Guerra do Paraguai (1864-1870), que inviabilizaria o empenho em
promover “um discurso político de inserção na vida nacional através

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da história” (p.185). Se o intento não se materializa em uma
produção historiográfica consistente, a ideia acaba por ecoar na
literatura de ficção. Caso da peça de teatro do cearense Augusto
César de Lacerda, O monarca das coxilhas, publicada no Recife, em
1867. A passagem do dramaturgo pela província levara-lhe à fixação
da figura do monarca, recorrente no cancioneiro popular, para
designar os homens rudes do campo. Gomes sinaliza, através da
interpretação do texto, para sua utilização na cultura local como
distintivo social, classificação exclusiva dos riograndenses do
período, cunhada possivelmente para se opor ao termo gaúcho,
vinculado aos blancos uruguaios, caudilhos do norte daquele país,
inimigos de guerra e concorrentes na produção pecuária dos
estancieiros locais.

Na sequência, a autora apresenta uma análise de fôlego do clássico


O gaúcho, de José de Alencar, publicado em 1870, mostrando que o
livro instaura uma nova “tradição”, informada pelo imaginário do
centro sobre a província, em que o termo tão polêmico na região
passa a designar não somente o campeiro, mas todo o sul-rio-
grandense. O contato indireto, mediado principalmente por fontes
platinas, com a realidade que pretendia narrar fizera com que
Alencar apagasse todas suas distinções sociais internas, quer dizer,
“a multiplicidade de existências presentes na sociedade rio-
grandense” (p. 266), além da histórica oposição do brasileiro sulino
com os vizinhos hispânicos, lançando mão de um estereótipo, como
sabemos, de longuíssima vida.

Por fim, Gomes aborda a produção de Apolinário Porto Alegre,


Bernardo Taveira Júnior e Oliveira Belo, entre outros, no capítulo
intitulado A última guerra entre a Província e a Corte é pelo poder
de nomear, para mostrar como os escritores rio-grandenses despem
o campeiro agauchado do estigma de bárbaro, ainda presente na
narrativa de Alencar, além das incômodas aproximações com o
Prata. As temáticas da guerra e da vingança, por exemplo, são
alçadas à condição de trunfos diacríticos do brasileiro do sul: a
violência é positivada em valores como bravura e coragem e a
rebeldia é celebrada como determinação republicana frente à
tirania do Império. A narrativa de Porto Alegre inicia, então, a
sedimentação da imagem do “campeiro-guerreiro-riograndense”
que será explorada pela literatura regionalista e cultivada pela
memória histórica local. Surgia com isso uma nova palavra,
“gaudério”, para abrigar as suspeitas que pesavam sobre o gaúcho
agora nobilitado.

Portanto o “gaúcho” foi forjado não somente em lutas de fronteira


física, mas em batalhas discursivas. É na disputa pelo poder de

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nomear que nossos intelectuais aderem ao mito literário
alencariano; mas não o fazem sem dotá-lo de contornos favoráveis à
política e às letras locais, capazes de expandi-lo discursivamente, a
ponto de romper os limites da ficção e construir uma sociedade
simbólica e perenemente gaúcha:

Tratar o principal símbolo identitário da cultura regional


como fruto de um processo de construção cultural visa
ressaltar a ideia de transformação na visão de mundo que se
operou numa sociedade que tem, ao longo do tempo,
pretendido reafirmar como permanentes os seus valores
tradicionais. Cabe à reescrita contínua da história evidenciar
este movimento no interior do tecido social trazendo à tona
informações esquecidas no fundo das arcas da memória
[grifos da autora] (p. 323).

Adaptado da resenha de Jocelito Zalla sobre a tese de


doutorado GOMES, Carla Renata Antunes de Souza. De
Rio-Grandense a Gaúcho: o triunfo do avesso – um
processo de representação regional na literatura do
século XIX (1847-1877). Porto Alegre: Editoras Associadas,
2009. 352 p.

A formação do sul-rio-grandense
A identidade gaúcha como se apresenta no presente, como algo de
aparência estável e organizada, pode obscurecer sua origem e
processo, pode inclusive negá-los. Parece importante, portanto,
apresentar a gênese da categoria social do gaúcho e sua significação
em seu contexto histórico.

A identidade compõe a realidade social como uma espécie de


tradução do real no campo das ideias e assim também incide sobre
as práticas e altera a realidade. A identidade depende tanto das
condições concretas quanto de seu próprio sistema de
representação, que enquanto tal representação não necessita
obrigatoriamente correspondência com o real.

No século XVIII a América foi espaço de disputas territoriais entre


Portugal, Espanha e a Inglaterra industrializada no plano
internacional ao mesmo tempo em que se formavam elites locais.
Este período precede o processo de independência que se deu na
primeira metade do século XIX.

Os espanhóis estabelecem-se na região criando as reduções


jesuíticas e depois introduzindo a criação de gado. As missões
produziram força de trabalho indígena disponível para a criação de

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gado que foi posteriormente introduzido. A partir de então a
exploração da atividade pelos espanhóis, portugueses e indígenas
provocou alterações sociais e culturais, principalmente entre os
últimos.

O gado solto nos campos se tornou fonte de sobrevivência


para desertores dos exércitos portugueses e espanhóis, fugitivos da
justiça, negros – que resistiam a escravidão – e indígenas. A síntese
deste processo é a nova categoria social chamada gaúcho ou
gaudério.

Essa categoria nova, o gaúcho, neste primeiro momento,


estava associada aos grupos em condições sociais marginalizadas, ao
mesmo tempo significou uma síntese do processo de colonização.
Estes grupos subordinados e ao mesmo tempo resistentes à
estrutura social estabelecida, formavam o polo negativo frente aos
grupos dominantes, exatamente o inverso da figura do gaúcho que
se estabelece no movimento tradicionalista. O gaúcho surge ainda
no momento colonial, portanto, antes da existência do Rio Grande
do Sul.

No final do século XVIII, a produção de couro foi o que


motivou Portugal a construir fortes em Rio Grande (1737), logo
depois da Espanha fundar Montevidéu (1727). Com as sesmarias e a
formação das estâncias, o gaúcho é incorporado à estrutura
produtiva (gado) e deixa de ser nômade.

O descontentamento da elite local (com sua condição


política) que incluía filhos de espanhóis nascidos na América, os
“criollos”, o descontentamento social dos gaúchos, índios, mestiços
(com cercamento dos campos) e a influência do iluminismo
produziu-se a deterioração da imagem espanhola e a simpatia
crescente pela Inglaterra da Revolução Industrial. Estava sendo
gestado o processo de independência das colônias.

As elites locais e as camadas subalternas encontram no


iluminismo uma fonte de justificação de suas demandas políticas e
também produzia uma alteração positiva na influência da Inglaterra
sobre as colônias o que favorecia a perspectiva de independência
destas últimas.

Após sua expulsão de Portugal e Espanha, os jesuítas se


transformaram em adversários da coroa espanhola e proclamando
eles também a soberania popular ante o despotismo.

Além de uma elite intelectual formada na Europa e nas


universidades regionais, não excluía a existência paralela de uma
elite local detentora de um poder econômico e que não
necessariamente possuía formação universitária.

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Formava-se um conjunto de forças de oposição à colonização,
pela independência das colônias. Tais forças, além de interesses
comuns que conflitavam com as coroas, necessitavam unificar a
pauta.

A bandeira do Estado unitário e o federalismo estavam


presentes em todos os discursos, mesmo que com significados
diferentes. Centralizado ou descentralizado, a maioria dos Estados
surgidos na América se consolidaram como Estado unitário.

Portugal, em 1816, estabelece uma força militar de seis mil


homens na fronteira do Rio Grande do Sul com objetivo de conter
Artigas e acaba por ocupar Montevidéu. Em 1822, com a
independência do Brasil, foi criada a Província Cisplatina.

Com as primeiras repúblicas independentes, o jogo de forças


em disputa fica ainda mais complexo. O espaço se transformou em
campo de disputa entre as potencias decadentes (Portugal e
Espanha), as potência em ascensão (França e Inglaterra) e entre as
nações emergentes (Argentina, Brasil e Uruguai). Tais disputas são
necessárias para se estudar a história do Sul do Brasil.

A Inglaterra estava interessada no fortalecimento dos novos


Estados, pois sua consolidação colocava os ingleses no posto de
senhores do comércio mundial. Por tal motivo, o império inglês
apoiou a independência da Cisplatina, a República do Uruguai. A
perda do território ocasionou problemas comerciais e espaciais para
os estancieiros riograndenses.

Com a invasão das Missões Orientais em 1828, por Lavelleja,


o governo brasileiro acaba por renunciar à Província Cisplatina.

A Constituição Imperial (do Brasil) centralizadora de 1824, o


Ato Adicional de 1834 e a perda da Cisplatina somadas a conjuntura
econômica também desfavorável aos interesses da elite da
campanha riograndense são as motivações centrais da Revolução
Farroupilha. A bandeira do federalismo unificou tais interesses com
outros grupos, que por seus vínculos e crenças políticas aderiram à
causa.

Em comum com os processos nacionais vizinhos de


emancipação não apenas o federalismo, mas também o fato da
liderança do processo pertencer a um grupo de pecuaristas, que
assume a direção dos novos Estado Nacionais sob a forma
republicana.

É neste contexto que se desenvolve o gaúcho riograndense.


Como exposto anteriormente, o gaúcho na sua origem é anterior ao
Brasil e por consequência ao Rio Grande do Sul. O gaúcho do sul do
Brasil é resultado de um processo que tem na origem os grupos

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diversos que resistiam à estrutura social existente no século XVIII, na
região platina.

Todavia, como veremos, o gaúcho do século XVIII e XIX está


muito distante do gaúcho estabelecido pelo gauchismo e divulgado
pelo Departamento de Tradições Gaúchas (DTG) a partir da década
de 1950.

Representação e ideologia
A ideologia faz parte da realidade, com a diferença de
refletir e retratar um realidade exterior. A ideologia tem significado
e está ligada a algo exterior, ou seja, é um signo. Sem signo não há
ideologia. Toda imagem simbólica ocasionada por um objeto físico é
um produto ideológico, pois vai além da simples existência para
refletir e representar uma outra realidade, segundo Bakhtin (1981).

Sendo assim, os processos de representação estão


indissoluvelmente ligados às relações sócias, que por sua vez são
históricas. A análise das representações individuais e coletivas só
pode ser entendida em seu contexto histórico e a partir do qual
podem fornecer pistas sobre sua dinâmica.

Segundo Pesavento (1993), a identidade do Rio Grande do


Sul é praticamente consensual no Estado. A construção deste
imaginário social é um processo historicamente constituído, ou seja,
uma elaboração social de um conjunto de representações coletivas
que dão sentido e significado às práticas sociais. Tal identidade é
parte da realidade social. Temos no Rio Grande do Sul uma
realidade na qual a construção da identidade é um processo
consolidado.

A identidade é parte da realidade social, é uma espécie de


tradução do real, mas também incide sobre as práticas e altera a
realidade. Assim, o imaginário social depende tanto das condições
concretas quanto de seu próprio sistema de representação. Porém,
tal representação não necessita obrigatoriamente correspondência
com o real, podendo chegar ao extremo de uma representação
contrária ao real. A representação pertence ao campo simbólico,
que não se limita ao racional e objetivo.

A construção imaginária da sociedade comporta intenções,


manipulações e artifícios, esse viés ideológico também é
determinante na transfiguração do real e revela os interesses sociais
envolvidos.

Prats (1998) pontua também que esta invenção social, é mais


precisamente uma invenção política (seja do estado ou dos diversos
grupos na sociedade), ou seja, está em recorrente disputa. Por outro
lado, é uma construção social a partir da legitimação assimilação
destes discursos mais ou menos transformados.

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A invenção da realidade não se restringe a elementos criados
ou alterados, implica composições em que os elementos podem ter
sido extraídos inalterados da realidade, mas cuja recombinação
contextual permite a criação de uma outra realidade, com outro
sentido. Descontextualização, recontextualização e composição de
elementos são mais frequentes na invenção, na medida que são
ratificadas pela veracidade dos elementos, facilitando assim o
processo de legitimação.

Uma invenção adquire autoridade quando se legitima


socialmente. A construção social é ao mesmo tempo produzida por
um discurso inventado e se refere sobre tudo a processos pessoais e
conscientes de manipulação.

A disputa do campo simbólico está sujeita aos interesses dos


grupos sociais envolvidos em disputas e portanto passível de
manipulações, entretanto, tais construções não possuem absoluta
autonomia, pois dependem de condições reais para sua aceitação,
precisam considerar as condições reais de forma mais abrangente e
não exclusivamente os interesses unilaterais dos grupos.

Adaptado de http://www.gestaouniversitaria.com.br/artigos/o-
surgimento-da-identidade-gaucha-no-contexto-do-platino-e-
disputa-cultural

O gauchismo
Situando a origem do culto às tradições gaúchas, Oliven (1991, p.
40) destaca o ano de 1868, quando “... um grupo de intelectuais e
escritores fundou em Porto Alegre o Partenon Literário, sociedade
de letrados e escritores que, através da exaltação da temática
regional, tentou juntar os modelos culturais vigentes na Europa e a
visão positivista da oligarquia rio-grandense”, bem como a data de
1898, quando é fundado o Grêmio Gaúcho de Porto Alegre, primeira
agremiação tradicionalista.

Quando tem início esse culto às tradições gaúchas,


perpassado sempre, mesmo que a partir de perspectivas diversas,
por dois aspectos comuns, a “presença do campo” e a “figura do
gaúcho”, já “... não existia mais a figura marginal desse gaúcho
do passado, gradativamente transformado em peão de
estância”, relacionando seu desaparecimento às modificações
econômicas experimentadas pelo Rio Grande por volta de 1870
e que atingiram a região da Campanha, modernizando e
simplificando sua pecuária e expulsando dos campos grande
número de posseiros e agregados (Oliven, 1991, p. 40). Ao analisar
o Tradicionalismo Gaúcho, Oliven (1984, p. 57) aponta como
datas-chave 1948, quando foi criado por um grupo de estudantes
secundaristas de Porto Alegre, vindos em sua quase totalidade

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do interior do Estado, mais especificamente da zona da
Campanha, o primeiro (depois das entidades pioneiras) Centro
de Tradições Gaúchas (o 35 CTG), e 1954, ano em que os
vários centros de tradições que se proliferaram a partir de 1948 se
reúnem pela primeira vez num congresso, realizado em Santa
Maria, para discutir o que passaria a ser a tese-matriz do
Movimento Tradicionalista Gaúcho.

O MTG foi criado em Porto Alegre, quando o Rio Grande


do Sul “... já apresentava um considerável nível de
industrialização e urbanização e num período em que vinha
ocorrendo há algum tempo uma progressiva mecanização das
fazendas, que, ao exigir um número cada vez menor de peões,
ocasiona o êxodo rural, despovoando a campanha e criando
setores marginalizados nas cidades”.

Os fundadores do Movimento eram, em sua maioria,


estudantes descendentes de pequenos proprietários rurais da
região onde predominava o latifúndio ou de estancieiros em
processo de declínio social. Assim, “embora cultuassem valores
ligados ao latifúndio, não pertenciam à oligarquia rural”. Eram
jovens do interior em quem a cidade despertava “... a vontade de
buscar no campo e no passado um refúgio seguro e claro” (Oliven,
1991, p. 43).

“Os jovens - todos homens - passaram a se reunir nas


tardes de sábado num galpão improvisado, na casa do pai de um
deles. Tomavam mate e imitavam os hábitos do interior, entre eles o
da charla que os peões costumam manter nos galpões das
estâncias.” “Queriam... recriar o que imaginavam ser os costumes
do campo e o ambiente das estâncias” (Oliven, 1991, p. 43-44).
Lembrando a associação entre passado e presente como uma
constante em projetos modernizadores ligados à criação de
estados nacionais, na Europa e nas Américas, Oliven (1991, p. 41-
42) destaca como característica do processo de constituição do
gauchismo “essa dialética entre velho e novo, passado e
presente, tradição e modernidade...”

Love (1975, p. 4) chama atenção para “... o fato de


que o debate a respeito do caráter gaúcho tem focalizado
exclusivamente uma das subculturas do Rio Grande,12 o
complexo pastoril, um modo de vida ao qual somente uma minoria
de rio-grandenses...” estaria ligada.

Conta-se que a introdução das bombachas no Rio Grande do


Sul teria ocorrido durante a Guerra do Paraguai, quando a
Inglaterra, que fornecia essas calças largas, apropriadas aos

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desertos, aos exércitos em combate pelas possessões inglesas na
Turquia, viu-se com um grande excedente de peças produzidas,
necessitando criar novo mercado para absorvê-las.

Dessa forma, até o final do século XIX, dificilmente alguém


vestiria bombachas ou se autodenominaria de gaúcho.

A parafernália tradicionalista celebrada pelo gauchismo é


bastante moderna e foi sistematizada a partir da década de 1950 a
partir de diversos estudos e recriações de Paixão Cortes e Barbosa
Lessa. Esses dois expoentes do movimento tradicionalista gaúcho
tiveram bastante trabalho para recriar o que acreditavam ser o mais
próximo do gaúcho originário.

Adaptado de
http://biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libros/brasil/cpda/estu
dos/um/menash1.htm

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