Freny Mistry e A Comparação Entre Nietzsche e o Budismo

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[ISSN 2317-0476] Diversidade Religiosa, João Pessoa, v. 6, n. 1, p. 87-102, 2016.

FRENY MISTRY E A COMPARAÇÃO ENTRE NIETZSCHE E O BUDISMO


FRENY MISTRY AND THE COMPARISON BETWEEN NIETZSCHE AND BUDDHISM

Derley Menezes Alves1

Resumo: O objetivo do presente texto é analisar de modo introdutório a comparação

feita por Freny Mistry entre o pensamento de Nietzsche e os ensinamentos budistas

conforme presentes na tradição theravada. Para isso apresentaremos a tese da autora

segundo a qual entre o budismo e a filosofia nietzschiana há mais semelhanças do que

poderíamos suspeitar inicialmente. Em seguida analisaremos como ela aplica tanto a

Nietzsche quanto ao budismo a classificação de sistemas que lidam com a superação

da metafísica, de modo que o budismo pode ser entendido menos como

supramundano e mais como um tipo de empirismo. Pretendemos, a partir de uma

análise de algumas passagens do cânone páli criticar o suposto caráter não-

supramundano do budismo característico do modo como a autora reconstrói os

argumentos desta tradição religiosa de modo que ela possa apresentar uma postura

não-metafísica similar àquela presente na filosofia de Nietzsche. Para empreender a

crítica desse modo de conceber, apresentaremos passagens do cânone páli que

sugerem uma leitura diversa daquela apresentada pela autora.

Palavras-chave: Nietzsche, budismo, metafísica, niilismo

Abstract: The aim of the present text is to analyze in an introductory way the

comparison made by Freny Mistry between the thought of Nietzsche and the Buddhist

teachings according to the Theravada tradition. For this we will present the author's

thesis that between Buddhism and Nietzschean philosophy there are more similarities

than we might initially suspect. Then we will examine how she applies both to

Artigo recebido em 13/10/2016. Aprovado em 16/11/2016.


1 Professor do Instituto Federal de Sergipe, aluno do doutorado em ciências das religiões pela UFPB.

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Nietzsche and to Buddhism the classification of systems that deal with the overcoming

of metaphysics, so that Buddhism can be understood less as supramundane and more

as a type of empiricism. We intend, from an analysis of some passages of the Canon

Palli to criticize the supposed non-supramundane character of Buddhism

characteristic of the way the author reconstructs the arguments of this religious

tradition so that it can present a non-metaphysical posture similar to that present in

philosophy By Nietzsche. To undertake the critique of this mode of conceiving, we will

present passages of the canon pali that suggest a reading different from that presented

by the author.

Key-words: Nietzsche, buddhism, metaphysics, nihilism.

Introdução

No que diz respeito ao estudo acerca das possíveis conexões entre Nietzsche e

o budismo, o livro de Freny Mistry – Nietzsche and buddhism: prolegomenon to a

comparative study – se destaca como a primeira obra a lidar com o tema de modo

substancial. Trata-se de uma obra que pretende comparar os dois termos presentes em

seu título e já deixa claro na introdução que há uma hipótese a orientar a execução do

trabalho, a saber, a ideia de que há mais semelhança do que diferença no que diz

respeito aos termos comparados. Nosso objetivo no presente artigo é analisar o projeto

da autora a partir dos conceitos de superação da metafísica e niilismo.

O primeiro passo da autora é circunscrever o que se quer dizer por budismo,

especialmente no contexto de uma comparação com o pensamento de um filósofo que

efetivamente teve contato direto com textos e estudos acerca desta tradição religiosa.

O caminho natural é, pois, partir da tradição conhecida por ele. No caso de Nietzsche,

estamos falando do budismo theravada. Importante ressaltar os termos nos quais esta

autora situa esta relação: a despeito das afirmações de Nietzsche em contrário, sua

investigação filosófica complementa aquela do budismo, notadamente em sua forma original

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(Hinayana, Theravada).2 Sabemos, então, que para esta autora se trata de fazer uma

comparação que irá exibir mais semelhanças que diferenças e que há algum tipo de

continuidade ou complementaridade entre as investigações de Nietzsche e aquelas do

budismo.

A despeito de haver consenso quanto à postura crítica de Nietzsche quanto ao

budismo e sua religião aparentada, a saber, o cristianismo; de modo que não

deveríamos esperar encontrar semelhança entre estes termos, a autora apresenta

pontos de contato em sua abordagem. Segundo ela, o budista concordaria com aquilo

que Zaratustra diz no discurso Das ilhas bem-aventuradas: Criação...é a grande redenção do

sofrimento e o tornar-se da vida em luz. Se considerarmos a perspectiva do Além-do-

Homem ao longo da obra de Nietzsche perceberemos nela uma ideia completamente

budista em sintonia com a passagem do Dhammapada: mesmo que alguém conquiste em

batalha mil vezes mil homens, o maior conquistador é aquele que conquista apenas um, a si

mesmo (Dh, VIII, 4 (103)). Mistry conclui, pois, que Nietzsche e Buda apresentam

caminhos complementares de auto-redenção.

Causa estranheza a ideia do budista praticante aceitar a criação como redenção

do sofrimento. Criação parece implicar imersão no Samsara, continuar apegado a ele

de uma forma criativa, e a comparação da superação de si como característica do Além-

do-Homem com a conquista de si mesmo do Dhammapada não nos parece uma boa

prova, posto que variações desta noção se encontram em praticamente todas as

tradições de sabedoria, não sendo tese exclusiva do budismo. Pode-se aproximar

Nietzsche de Platão pelo mesmo critério, considerando, por exemplo, a os tipos de

alma e a hierarquia entre os mesmos n’A república. Para que tal prova funcione é

preciso demonstrar que conquistar a si mesmo e superar a si mesmo descrevem a mesma

experiência.

2Mistry. Introdução, pag. 1. Destacamos aqui o uso do termo equivocado hinayana como sinônimo de
theravada. Quanto ao caráter equivocado do termo, recomendamos o artigo de Kåre A. Lie, o mito do
hinayana no link http://nalanda.org.br/incompreensoes/o-mito-do-hinayana.

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Uma vez que sua pesquisa pretende enfatizar as semelhanças e situar os

equívocos da leitura de Nietzsche no contexto do conhecimento disponível em sua

época, entendemos que a autora elabora uma construção enfatizando certos aspectos

tanto do budismo quanto de Nietzsche de modo a exibir a semelhança entre eles. Tais

ênfases são problemáticas em alguns aspectos, como pretendemos demonstrar no

presente texto.

As visões de mundo de Nietzsche e do Buda, diz-nos Mistry, enfatizam a

superioridade da ética em relação às especulações metafísicas. Ambos viam a si

mesmos como iconoclastas e inovadores. Nietzsche teria visto como possível uma

regeneração espiritual que representasse a superação do impacto daquilo que ele

chamava morte de Deus, portanto, partia de um contexto não metafísico e tinha como

desdobramentos a apreciação da vida como valor positivo e o Além-do-Homem. Buda

teria, por seu turno, superado a confusão filosófica de sua época, que oscilava entre

materialismo e idealismo, mediante a proposta de caminho do meio e a proposta de

uma ética prática para a superação do egoísmo cujo objetivo seria realizar a condição

de arahant, realizar o nirvana.

Ao considerar os objetivos de ambos os pensadores, a saber, eterno retorno e

nirvana, Mistry aponta um nexo entre as duas perspectivas, apesar das diferenças. Tal

nexo residiria na defesa presente em ambas as metas da persistência criativa e da

contínua autossuperação nesta realidade, ou seja, elas conduzem a este tipo de ação.

Ambas são fiéis à realidade empírica e à visão das coisas como realmente são. O que

muda não são as coisas, e sim nosso modo de ver as coisas, o que não é algo

sobrenatural.

Importante observar aqui diferenças entre nirvana e eterno retorno que tornam

as considerações acima problemáticas. O ponto chave é o caráter final de nirvana.

Nirvana não é uma realidade condicionada que supere a si mesma, como Mistry

parece sugerir. Nirvana é algo final, é a extinção do sofrimento e do ciclo de

nascimento e morte, neste sentido, alguém que realizou nirvana não tem mais

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superação a fazer, ele depôs o fardo, fez o que deveria ser feito, para ele não há mais vir-a-ser,

conforme fórmula famosa no cânone páli. Quanto ao caráter não sobrenatural de

nirvana, é uma leitura possível, embora entendamos que não seja fundamentada nos

textos. Como nirvana é o completamente outro em relação ao Samsara, e o Samsara é

aquilo que podemos chamar de mundano, temos que nirvana tem um caráter

supramundano, diverso da experiência natural da qual Samsara é o sinônimo.

No que diz respeito às fontes de Nietzsche, temos Schopenhauer como primeiro

nome da lista. Ao que tudo indica, este autor não era a única nem a principal fonte do

nosso filósofo. Isto fica evidente quando se considera como Nietzsche responde à

crítica budista da metafísica e sua percepção da incompatibilidade entre uma

metafísica absoluta da Vontade e a negação budista de um princípio universal que dê

unidade a totalidade do mundo.

De acordo com Mistry, os conhecimentos de Nietzsche acerca da Índia se

deveram mais a um grupo de amigos estudiosos, dos quais podemos destacar Paul

Deussen. São vários os livros constantes da biblioteca particular dele sobre o tema.

Destacamos os autores: Max Müller, Paul Deussen, Hermann Oldenberg, entre outros.

Temos também uma passagem de carta citada, na qual Nietzsche afirma ter pego

emprestado de um amigo uma tradução do Sutta Nipata, um dos volumes do cânone

pali. Mistry conclui sua introdução da seguinte forma:

Tendo em vista suas leituras sobre budismo, a possibilidade de


influência indiana, ou mais precisamente, budista em Nietzsche não
pode ser descartada. Estabelecer tal influência, entretanto, não é o
objetivo da comparação que segue. A proximidade das éticas e dialéticas
budista e nietzschiana, realçadas por uma marcada diferença de
palavreado e temperamento, é assegurada, independente do que
Nietzsche tenha dito ou lido sobre budismo. (Mistry, 1981, p.18)

1. Superação da Metafísica e Niilismo

Feitas estas considerações acerca do projeto de Mistry, vejamos como ela faz

esta comparação a partir das noções de superação da metafísica e niilismo.

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A ligação de Nietzsche com o budismo tem como elemento comum a crítica feita

pelo Buda das posturas metafísicas encontradas no vedanta. A tese de Mistry é de que

as críticas de Nietzsche a filósofos como Platão, Kant e Schopenhauer são

profundamente semelhantes aquilo que o Buda fez em sua trajetória de pregador. Para

provar isso ela enfatiza a oposição entre budismo e vedanta que tem como

consequência o caráter anti-metafísico do ensinamento do Buda.

Na obra O nascimento da tragédia, percebemos uma influência de Schopenhauer

que também se evidencia na apreciação de Nietzsche do pensamento indiano. O

budismo aparece nesta obra fortemente influenciado pela leitura schopenhaueriana

que muitas vezes o vê numa continuidade com a tradição dos Upanishades. No

parágrafo 7 da obra o budismo aparece como um perigo evitado pela arte, o coro da

tragédia salva o heleno de ansiar por uma negação budista do querer. Ele é salvo pela arte, e

através da arte salva-se nele – a vida. Já no parágrafo 18 temos a proposição de 3 modos

de configuração da cultura a partir do tipo de estimulante que ajuda a suportar a

gravidade da existência: ou uma cultura alexandrina, ou helênica, ou budista.

De acordo com Mistry, a primeira citação apresenta muito mais uma descrição

do pensamento de Schopenhauer do que do budismo e a segunda apresentaria uma

confusão entre budismo e vedanta. A tragédia como consciência unificadora tem mais

semelhança com a fusão entre atman e brahman do que com o nirvana. A dinâmica

entre Apolo e Dionísio reforça a simbiose metafísico-idealista que o budismo nega. Em

termos budistas Apolo não precisaria do consolo metafísico e seria capaz de por si

mesmo transformar o sofrimento em arte. Nietzsche, por seu turno aponta a

dependência dele em relação a Dionísio, de modo que a tese apresentada por Mistry é

de que sem a realidade metafísica a vontade humana perde poder. Neste sentido, a

conclusão da autora é de que o primeiro contato de Nietzsche com o budismo é

devedor da leitura problemática feita por Schopenhauer. A questão é que,

independentemente de ser um equívoco que reflete a influência de Schopenhauer

sobre Nietzsche, há aqui uma concepção de budismo que parece não ter sido

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completamente modificada ao longo da produção nietzschiana. O diagnóstico do

budismo no anticristo sugere que esta visão se mantém.

Para Schopenhauer vedanta e budismo são percussores de sua filosofia da

vontade, apesar das grandes diferenças entre tais formas de pensamento (identidade

com uma realidade cósmica por um lado e negação da existência por outro). A

soberania da vontade cósmica se afirma pela negação do querer viver, sua forma

fenomenal. Para o budismo, porém, o sofrimento não é o resultado da alienação do

indivíduo perante a vontade ao passo que para Schopenhauer ele é o resultado da

afirmação da existência fenomenal e sua superação se dará pela negação dessa

realidade aparente. Isto seria o nirvana na versão de Schopenhauer.

Nietzsche, por sua vez, entende que o vedanta é incompatível com o caráter

transitório da realidade. Depois de superar a influência de Schopenhauer ele vai

criticar o conflito entre concentração metafísica e desenvolvimento ético humano. A

ideia é que a concentração metafísica culmina na libertação como sono profundo,

conforme a terceira dissertação da Genealogia da moral. Mistry vai identificar uma

aproximação entre vedanta e epicurismo na obra de Nietzsche nesse contexto. A

sensação do nada, a paz do sono profundo, identificam-se com a ataraxia epicurista. A

união com Brahma funciona como um abandono das demandas que o uso

independente da razão exige.

Entendemos que na terceira dissertação da Genealogia a identificação não pode

ser restrita apenas ao vedanta, o budismo está incluído também nesta análise. O texto

começa definindo ideais ascéticos. Tais ideais são formas de negar ou diminuir a vida

ou a vontade em nome de uma recompensa de natureza supramundana, por exemplo,

o paraíso cristão. No primeiro parágrafo da terceira dissertação, Nietzsche aponta

vários tipos humanos e o que significaria para tais tipos o ideal ascético. Destacam-se

aqui duas figuras fundamentais: o sacerdote e o santo. Para o primeiro, os ideais

ascéticos são a legitimação do poder e instrumento de dominação; para os últimos uma

desculpa para hibernar, para repousar no nada ou em Deus.

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A referência ao nada deixa claro que o budismo também está compreendido no

pacote, de modo que a aproximação seria melhor compreendida incluindo não só o

vedanta, mas o pensamento oriental em geral, inclusive o budismo. Entendemos que

a autora estabelece esta distinção para que a comparação pretendida por ela cujo

resultado é demonstrar uma semelhança entre Nietzsche e o budismo ganhe força na

medida em que o isenta de parte importante da crítica presente na Genealogia quanto

aos ideais ascéticos.

Ao analisar a posição de Nietzsche quanto a anti-metafísica do budismo, Mistry

aponta o aspecto revolucionário do budismo para ele quanto a este ponto, bem como

a comparação feita pelo filósofo entre a Europa de seu tempo e a Índia do tempo do

Buda. Nietzsche via no pensamento do Buda a negação das noções tradicionais de

Deus, Ser e Imortalidade e comparava este cenário com a

[...] exaustão dos tempos modernos nos quais uma forma de niilismo
(ceticismo com relação à Realidade metafísica) é representado em
batalha contra uma outra forma (adesão superficial a moralidade), sem,
entretanto, produzir uma interpretação construtiva da existência
humana. (MISTRY, 1981, p.35)

Esta revolução do Buda culmina na proposta de uma religião da auto-redenção,

sem deuses ou deus e sem sacerdotes controladores. Mistry parece estabelecer aqui

uma conexão entre o individualismo de Nietzsche e o individualismo da vida religiosa

do budismo, especialmente em sua versão theravada. Entendemos tal auto-redenção

estritamente no sentido de que o caminho aberto pelo Buda é para ser trilhado por

cada um, sem a busca de mediações ou auxílios externos que exerçam papel similar ao

da graça na tradição cristã. É possível, entretanto, uma leitura de Nietzsche

comunitarista ao invés de estritamente individualista. Segundo esta leitura, o

individualismo tem sentido no contexto de aprimoramento da comunidade. 3 A

questão do individualismo ou comunitarismo no pensamento de Nietzsche é algo

3 Conferir a propósito dessa leitura o livro de Julian Young, Nietzsche’s philosophy of Religion.

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relevante cujo tratamento excede os objetivos do presente trabalho, portanto, não nos

alongaremos no tema.

No theravada não há deus no sentido de um deus criador e mantenedor do

universo, mas existe a crença em deuses ou devas, seres superiores aos humanos que

alcançam posição divina por seus méritos. Os devas ocupam posição variada no

cânone, são vários os tipos e hierarquias entre eles. Um ponto comum é que todos estão

sujeitos a morte e ao renascimento. É comum no cânone devas aparecerem pedindo

instruções ao Buda, prestando-lhe homenagens e se convertendo em seus seguidores

ou protetores do dhamma. Neste sentido, é preciso tomar cuidado com o ateísmo

budista para que não se atribua a ele notas excessivamente ocidentais a ponto de

perder de vista todo este aspecto supranatural do budismo.

Quanto ao sacerdócio, de fato, não há uma autoridade central ou uma linha de

sucessão além do Buda enquanto estava vivo. Diante da morte e da pergunta por um

sucessor o Buda deixou o ensinamento como sucessor (Dhamma). Mas, por força de

preservar o ensinamento, vários países acabaram desenvolvendo hierarquias, de

modo que encontramos hoje figuras centrais sendo o Dalai Lama um exemplo disso.

O cerne da comparação de Mistry neste capítulo é a questão da metafísica. Ela

não lida diretamente com o niilismo a não ser como resultado da negação das certezas

consoladoras da metafísica e, portanto, como algo a ser superado. Sua caracterização

do budismo como oposto e crítico da tradição dos Upanishades pretende extrair a

conclusão de uma abordagem mais pragmática daquela tradição em comparação com

esta. Ela precisa dessa relação de oposição para servir de espelho para a relação entre

Nietzsche e o cristianismo. Naturalmente, o cristianismo assume o papel da metafísica

dos Upanishades e do vedanta e a crítica de Nietzsche seria a versão século XIX

daquilo que o Buda fez.

O cristianismo em sua clivagem paulina torna-se o alvo principal das críticas

anti-metafísicas de Nietzsche, que vai lhe censurar a crença em orações, pecado, punição e

graça. O grande problema do cristianismo é a renúncia da independência humana e

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submissão voluntária do humano a vontade divina como caminho para reconciliar-se

com Deus. Cristo, por outro lado apresenta-se como homem da ética, acessível, diferente

do Deus inacessível paulino. Amiúde Nietzsche mostra desprezo pelo Cristo dos

sacerdotes e simpatia pelo Jesus homem anunciador de uma vida ética.

A avaliação positiva de Nietzsche em relação com o budismo tem como pano

de fundo sua oposição ao cristianismo, embora ele polemize com ambas as religiões.

No anticristo ele apresenta o budismo como religião científica, defensora do

conhecimento, não vê contradição entre Buda e Jesus e vê o budismo como resultado

de séculos de atividade filosófica. Para Mistry esta oposição entre budismo e

cristianismo é mais que mero recurso polemista, baseia-se em fatos. São vários os

termos dados como exemplos desta evidência factual da superioridade do budismo,

como por exemplo a ideia de que somente pelo esforço pessoal o homem pode realizar

nirvana, negação de um deus criador, lei moral como criada pela ação humana,

totalmente independente de um deus que a legitime. Enfim, o ponto central destacado

por Mistry é que o budismo põe o humano no centro, ao passo que no cristianismo o

homem deve sair do centro e submeter-se à vontade divina.

A morte de deus, diz-nos Mistry, resulta de sua própria criação pelo homem. O

homem mata deus para superar todo mal resultante do poder deste ser na vida

humana, esta morte tira o solo e o sentido do mundo e da vida, isto é o niilismo que

precisa ser superado. O caminho para desfazer o assassinato niilista de Deus seria superar a

necessidade Dele, o medo do homem e a perda do amor-de-si do homem, veneração, esperança e

vontade-de-poder. (GM, I, 12; cf. também VP, 137). Sem deus, o homem se vê livre de apoio

sobrenatural, aceita humildemente sua condição e abre diante de si o caminho da

criação de valores e da superação de si. Aqui entra o Além-do-Homem.

Mistry estabelece ligações entre o Além-do-Homem e o Arahant, embora aqui

tal termo não apareça. Este fenômeno é descrito por ela como puramente empírico,

portanto, em oposição com a divindade cristã e a noção de absoluto do vedanta. O

Além-do-Homem não recebe algo do além ou do acima, ele realiza o sentido da terra,

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representa uma sabedoria puramente humana, uma superação de si enquanto evento

humano sem nenhum tipo de ligação com o sobrenatural. A comparação da autora é

com o conceito budista de anatta, que enquanto experiência representa algo típico dos

arahants, aqueles discípulos do Buda que realizaram plenamente o nirvana. Segundo

ela aqui também temos uma experiência não-metafísica e seria comparável com a

morte de Deus enquanto crítica da estupidez e dogmatismo humanos.

Do modo como entendemos os termos da comparação, a estratégia da autora é

enfatizar a oposição entre budismo e vedanta como representativa de uma oposição

entre uma visão empírica (budismo) contra uma metafísica (vedanta). Entretanto, se

considerarmos o contexto do cânone páli, vemos que em várias passagens nirvana é

descrito como supramundano, outros níveis da experiência espiritual também são

classificados como supramundanos. Ao relatar sua experiência do nirvana, o próprio

Buda apresenta isto envolto em elementos de caráter supramundano ou espiritual.

Podemos citar como exemplo o olho divino, que permite ao Buda ver toda a roda da

vida, com os seres perambulando de vida em vida, renascendo conforme o karma

próprio de cada um, bem como a capacidade adquirida pelo Buda quando de sua

iluminação de lembrar de todas as suas existências anteriores, algo que a tradição

theravada atribui exclusivamente ao Buda. Os arahants lembram várias de suas vidas,

mas não todas. Gostaria ainda, de mencionar dois suttas que deixam claro que há no

budismo elementos supramundanos, o Majjhima Nikaya 12 e o Majjhima Nikaya 60.

O Majjhima Nikaya 12, O grande discurso do rugido do leão, apresenta o Buda

corrigindo uma interpretação acerca dele e de seu ensinamento apresentada por um

ex-monge, Sunakkhatta. Eis como este ex-monge interpreta o dhamma do Buda:

O contemplativo Gotama não possui nenhum estado supra-humano,


nenhuma distinção em conhecimento e visão dignos dos nobres. O
contemplativo Gotama ensina um Dhamma que é a mera discussão de
argumentos, seguindo a sua própria linha de investigação de acordo

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com aquilo que lhe ocorra e quando ele ensina o Dhamma para alguém,
este o conduz, se praticado, à completa destruição do sofrimento.4

Notemos que ele nega o aspecto sobrenatural do ensinamento, mas afirma a

eficácia deste ensinamento para o fim do sofrimento. Seria um ensinamento

meramente humano, resultante do raciocínio humano, sem nenhum elemento supra-

humano e que, mesmo assim, cumpre o que promete. Sunakkhatta apresenta uma

visão bastante similar ao modo como Mistry descreve o budismo.

Sariputta, ouvindo essa visão errônea, vai até o Buda e repete o que ouviu. O

Buda responde:

Sariputta, esse tolo Sunakkhatta está enraivecido e diz essas palavras


devido à raiva. Pensando em desacreditar o Tathagata, ele na verdade o
elogia; pois é um elogio para o Tathagata dizer que: 'Quando ele ensina
o Dhamma para alguém, este o conduz, se praticado, à completa
destruição do sofrimento.'

Há ambiguidade na visão de Sunakkhatta, posto que ele critica o Buda negando

ao seu ensinamento o elemento supra-humano ao mesmo tempo que afirma deste

ensinamento ser capaz de acabar com o sofrimento. A negação do caráter supra-

humano ou sobrenatural produz como consequências a incapacidade de reconhecer a

iluminação perfeita do Buda, que o Buda desfruta dos vários poderes supra-humanos,

que ele é dotado do ouvido divino, que lhe permite ouvir sons divinos e humanos e

por fim ele não infere a capacidade do Buda de abranger com sua mente as mentes dos

seres, sendo capaz de reconhecer estados mentais como cobiça, raiva, etc. Na sequência

há o enunciado dos dez poderes de um Tathagata, de mostram precisamente como

verdadeiras e reais as coisas supra-humanas negadas na interpretação de Sunakkhatta.

Para não reproduzir uma longa citação, destacamos duas faculdades, relevantes para

nossa crítica a caracterização de Mistry:

4Majjhima Nikaya 12, tradução de Michael Beisert a partir da tradução inglesa de Bhikkhu Bodhi. Link:
http://www.acessoaoinsight.net/sutta/MN12.php#R1. Todas as passagens que seguem são extraídas
deste site.

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17. (8) "Outra vez, o Tathagata se recorda das suas muitas vidas
passadas, um nascimento, dois nascimentos, três nascimentos, quatro,
cinco, dez, vinte, trinta, quarenta, cinquenta, cem, mil, cem mil, muitos
ciclos cósmicos de contração, muitos ciclos cósmicos de expansão,
muitos ciclos cósmicos de contração e expansão, ‘Lá eu tive tal nome,
pertencia a tal clã, tinha tal aparência. Assim era o meu alimento, assim
era a minha experiência de prazer e dor, assim foi o fim da minha vida.
Falecendo desse estado, eu renasci ali. Ali eu também tinha tal nome,
pertencia a tal clã, tinha tal aparência. Assim era o meu alimento, assim
era a minha experiência de prazer e dor, assim foi o fim da minha vida.
Falecendo daquele estado, eu renasci aqui. Assim ele se recorda das suas
muitas vidas passadas nos seus modos e detalhes. Esse também é um
dos poderes dos Tathagatas…
18. (9) "Outra vez, com o olho divino que é purificado e sobrepuja o
humano, o Tathagata vê seres falecendo e renascendo, inferiores e
superiores, bonitos e feios, afortunados e desafortunados. Eu
compreendi como os seres prosseguem de acordo com as suas ações
desta forma: ‘Esses seres – dotados de má conduta com o corpo,
linguagem e mente, que insultam os nobres, com o entendimento
incorreto e realizando ações sob a influência do entendimento incorreto
– com a dissolução do corpo, após a morte, renasceram num estado de
privação, num destino infeliz, nos reinos inferiores, até mesmo no
inferno. Porém estes seres - dotados de boa conduta com o corpo,
linguagem e mente, que não insultam os nobres, com o entendimento
correto e realizando ações sob a influência do entendimento correto –
com a dissolução do corpo, após a morte, renasceram num destino feliz,
no paraíso e ele compreende como os seres continuam de acordo com as
suas ações. Esse também é um dos poderes dos Tathagatas…

Estes dois poderes do Buda deixam claro que negar o aspecto sobrenatural de

seu ensinamento e de seus poderes é não entender completamente o ensinamento e o

próprio Buda. Neste sentido a postura anti-metafísica do Buda deve ser entendida com

cautela, ele se afasta do brahmanismo-vedanta, mas nem por isso propõe uma religião

sem sua dose de metafísica. Passemos agora ao majjhima nikaya 60, Apannaka sutta.

Este discurso apresenta uma detalhada versão do argumento da aposta de

Pascal. Trata-se de um discurso dirigido a chefes de família no qual o Buda apresenta

várias doutrinas de vários tipos de ascetas. O objetivo ao apresentar tais doutrinas é

entender quem, ouvindo tais ideias, faz a melhor aposta. Para nossos interesses

destacaremos apenas o primeiro conjunto de doutrinas. Tratam-se dos defensores do

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niilismo versus seus críticos. Niilismo, no cânone páli, equivale a negação de que há

algo depois da morte e a negação da lei do kamma. Aqueles que se opõem a tal visão

afirmam que há vida após a morte e, portanto, há ação e resultado da ação para além

de uma única vida. Neste contexto, temos as seguintes palavras atribuídas ao Buda:

8. (A.ii) “Como na verdade existe um outro mundo, aquele que entender


que ‘não existe outro mundo’ possui o entendimento incorreto. Como
na verdade existe um outro mundo, aquele que pensar que ‘não existe
outro mundo’ possui o pensamento incorreto. Como na verdade existe
um outro mundo, aquele que afirmar que ‘não existe outro mundo’
possui a linguagem incorreta. Como na verdade existe um outro mundo,
aquele que disser que ‘não existe outro mundo’ se opõe àqueles arahants
que conhecem o outro mundo. Como na verdade existe um outro
mundo, aquele que convencer alguém que ‘não existe outro mundo’ o
estará convencendo a aceitar o Dhamma que não é verdadeiro; e porque
ele convence alguém a aceitar um Dhamma que não é verdadeiro, ele
elogia a si mesmo e menospreza os outros. Dessa forma, qualquer
virtude pura que ele possuísse antes é abandonada e substituída pela
conduta corrompida. O entendimento incorreto, pensamento incorreto,
linguagem incorreta, a oposição aos nobres, o convencer alguém a
aceitar o Dhamma que não é verdadeiro, o elogiar a si mesmo e
menosprezar os outros – todos esses estados ruins e prejudiciais surgem,
portanto, tendo o entendimento incorreto como sua condição.

Notemos, portanto, que o Buda diz que a aposta boa é aquela que afirma a

continuidade de algo após a morte pois esta é a condição que leva alguém a praticar

uma vida moral. Não queremos entrar no mérito desta conclusão, apenas apontar que

há esta ideia no ensinamento do Buda e que isso não pode ser reduzido a um

empirismo completamente centrado no mundo presente, pelo menos não no sentido

ocidental de empirismo.

Conclusões

Neste sentido, embora haja de fato no budismo uma tendência anti-metafísica e

uma ênfase na empiria, o sentido disso precisa ser explicitado. Temos, por exemplo o

majjhima nikaya 63, no qual o Buda explica ao monge Malunkyaputta que questões de

ordem especulativa não conduzem ao fim do sofrimento e, portanto, não devemos

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perder tempo com elas. As questões metafísicas dizem respeito a especulações sobre

imortalidade da alma, eternidade ou não do mundo, se o Buda existe ou não após a

morte. Este é o contexto do ateísmo budista, do silêncio do Buda sobre questões

metafísicas. Em comparação com as especulações do brahmanismo, estamos diante de

uma postura completamente diversa. Mas, se considerarmos as categorias budistas,

estamos diante de algo que também pode ser classificado como metafísico, na medida

em que, apesar de nirvana poder ser realizado aqui e agora, trata-se de uma

experiência do supramundano.

O empirismo do budismo – se podemos usar o termo – é diferente do ocidental

nesse sentido. A tese fundamental do empirismo, segundo Hume é que as percepções

da mente se dividem em impressões e ideias, sendo que as impressões são mais vívidas

que as ideias e as ideias são derivadas das impressões sensíveis. As impressões

sensíveis não são vivências únicas e individuais, são comuns aos seres humanos. Já as

experiências no sentido do budismo são potenciais, alcançáveis mediante certas

práticas espirituais, não como o gosto da fruta que ainda não comi, pois isto eu resolvo

imediatamente comendo a fruta. Para provar as realidades sobrenaturais descritas

pelo Buda, é preciso antes de tudo, confiar no que ele diz e, a partir desta confiança,

iniciar o caminho de prática. E apesar de ser para o aqui e agora, pode ser que o

praticante só realize o fim do sofrimento depois de várias vidas de prática.

Entendemos, portanto, que Mistry elabora uma estratégia argumentativa que

enfatiza certos aspectos do budismo na medida em que há relação dele com o

brahmanismo, mas não analisa o que há de crença religiosa dentro do próprio

budismo. Investigando o ensinamento budista, percebemos que há nesta tradição

elementos que podem ser comparados à metafísica criticada por Nietzsche. Quanto ao

empirismo budista, acreditamos ter deixado claro que não se trata de empirismo no

mesmo sentido da tradição ocidental, trata-se de uma abordagem pragmática ou

empírica no contexto de uma prática espiritual.

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