E Book SOGI 21102021
E Book SOGI 21102021
E Book SOGI 21102021
IPAS - www.ipas.org
SEXUALITY
POLICY
WATCH
Apresentação 4
Antecedentes 6
É com muito prazer, mas também com sentido de urgência, que as organizações que
elaboraram esse relatório oferecem à audiência brasileira sua versão em português. O
que motivou sua preparação, na versão original, em inglês, foi o apelo feito por Victor
Madrigal, o Especialista Independente da Organização das Nações Unidas (ONU) para
Orientação Sexual, Identidade de Gênero e Direitos Humanos, para que organizações da
sociedade civil aportassem sua contribuição para a elaboração de um informe temático
sobre “Gênero”. O objetivo desse esforço realizado por esse mandato foi identificar e
analisar ataques à teoria e perspectiva de gênero e oferecer respostas a essas ofensivas
a partir da lei internacional de direitos humanos. O informe foi dividido em duas partes.
A primeira, nomeada O Direito a Inclusão (The Law of Inclusion) foi apresentada pelo
Especialista Independente na 47a Sessão do Conselho de Direitos Humanos, em junho
de 2021. A segunda cujo título é As Práticas de Exclusão (Practices of Exclusion) foi
publicada no final de setembro de 2021 antes de ser apresentada na Assembleia Geral.1
Na segunda parte do informe, o Brasil é mencionado diretamente em dois momentos,
numa referência a ataques a gênero no parágrafo 26 em que é feita a seguinte
elaboração:
É também importante observar que, por ser um relatório elaborado para o público
externo, a análise de contexto que se faz na introdução é, sem dúvida, um panorama
tipo voo de pássaro que não detalha ou aprofunda fatos e processos do contexto
nacional sobre os quais a informação disponível no país é muito mais extensa. Contudo,
as notas de rodapé oferecem um conjunto significativo de matérias de imprensa e
outras análises que permitem, de algum modo, superar esse déficit.
É nossa expectativa que as informações aqui oferecidas possam ser utilizadas e também
ampliadas em esforços futuros que sejam feitos para informar os sistemas internacional
e regional sobre os enormes retrocessos em curso no contexto nacional em relação a
gênero, sexualidade e direitos humanos.
Boa leitura!
1 Ver Parker, R, Guimarães, K, Mota, M., Quemmel, R., e Terto, V. (1995). Prevenção da AIDS e Mobilização da Comunidade Gay no
Brasil. Desenvolvimento, 2, 49-53.
Nos anos 2000, essa vasta gama de reivindicações não só ganhou maior consistência
política e normativa como apontou resultados mais robustos em termos de reformas
legais e das políticas públicas. São exemplos a inovadora Lei Maria da Penha, aprovada
em 2006, para prevenir e punir a violência de gênero7 e um conjunto amplo de medidas
legislativas, em especial nos níveis estaduais e municipais, proibindo a discriminação de
pessoas LGBT+. A partir de 2003, foi criada a Secretaria Nacional de Política da Mulher e
uma área de política nacional para os direitos LGBT+ na Secretaria Nacional de Direitos
Humanos, atualmente chamada de Diretoria LGBT e anteriormente Coordenadoria LGBT.
Entre 2004 e 2012, foram realizadas uma série de conferências nacionais sobre mulheres
e a população LGBT+ com financiamento público, das quais resultou um repertório de
demandas por políticas públicas em gênero e sexualidade, algumas das quais foram,
6 Ver de la Dehesa, R. (2010). Incursiones Queer em la Esfera Pública em México e y em Brasil: Movimientos de Derechos Sexuales
em democracias Emergentes. Acessível em https://sxpolitics.org/es/incursiones-queer-en-la-esfera-publica-movimientos-por-los-
derechos-sexuales-en-mexico-y-brasil-2/3044
Os 1990 e 2000 foram, portanto, um período virtuoso no que diz respeito a ganhos
legais e de política pública nos campos da igualdade de gênero, dos direitos das
mulheres e LGBT+ no Brasil. Contudo, essa trajetória não esteve isenta de obstáculos e
adversidades. Como em muitos outros países, os ganhos da transição para democracia
foram afetados negativamente pelos efeitos deletérios da penetração da racionalidade
neoliberal na economia, mas, também, na política, no tecido social e nas subjetividades.
E, além do que possam ter sido os impactos da neoliberalização da política estatal e
8 A Conferência sobre Política LGBT+ de 2008 alcançou uma visibilidade internacional substancial porque contou com a presença
do Presidente Luis Ignácio Lula da Silva e de vários membros do gabinete e esta presença deu uma legitimidade totalmente nova a
esta agenda política.
9 Ver Ryan Thoreson e Laura Saldivia (2018) “Legal Developments in the Domain of Sexual Rights” em Sonia Corrêa e Richard Park-
er (ed) SexPolitics: Tendências e Tensões no século 21 . Páginas 37-68. Acessível em https://sxpolitics.org/trendsandtensions/uploads/
volume1-2018-21092018.pdf
No início de 2011, o Supremo Tribunal Federal emitiu uma decisão positiva sobre uniões
civis entre pessoas do mesmo sexo, superando o impasse instalado no Congresso
desde meados dos anos de 1990 e levando, dois anos mais tarde, ao reconhecimento
do casamento igualitário por medida outorgada pelo Conselho Nacional de Justiça.
Na sequência, quase imediata, um conjunto de vídeos educativos produzidos pelo
Ministério da Educação, para promover o respeito ao gênero e à diversidade sexual no
sistema público de educação foi criticado pela bancada religiosa neoconservadora do
Congresso Nacional. Sob pressão, Rousseff, recém-eleita, suspendeu a distribuição do
material, chamado “Kit Gay”, por seus oponentes.11 Dois anos mais tarde, este assalto
ganharia novos e mais acentuados contornos acionando o dispositivo acusatório
“ideologia de gênero” .
10 Ver Sonia Corrêa (2010) Abortion and Human Rights in Brazil – Part II (2010) acessível em https://sxpolitics.org/abortion-and-
human-rights-in-brazil-part-2/5184; Sergio Adorno ( 2010 ) História e Desventura: O Terceiro Programa Nacional de Direitos
Humanos, acessível em https://doi.org/10.1590/S0101-33002010000100001
11 Ao informar o público sobre a decisão, Rousseff declarou que seu governo não “imporia” orientação sexual a alunos de escolas
públicas.
12 Elimar Damasceno era deputado do Partido da Reedificação da Ordem Política Nacional PRONA, fez o seguinte discurso: A
palavra “gênero” sempre foi usada para designar sexo. Assim, falamos em “gênero masculino” e “gênero feminino” [...] Agora, a
expressão “gênero” adquiriu outro significado, dentro de uma “ideologia de gênero”. Gênero seria o papel desempenhado por um
dos sexos, não importando se nasceu homem ou mulher. Segundo essa teoria, não se nasce homem nem mulher, mas o papel a
desempenhar na sociedade é que vai determinar o sexo: o “gênero” é que vai determinar esse papel [...] Vejam, Srs. Deputados, que
se trata de mais um eufemismo para encobrir os desvios da conduta sexual. Então, quando se fala de “ideologias de gênero”, de
“não-discriminação de gênero” etc., queremos nos referir a condutas sexuais.
13 Ver a Corrêa, S. (2018) A Política do Gênero: um comentário genealógico. Cadernos Pagu
14 Ver Junqueira, R (2018) “A invenção da ‘ideologia de gênero’: a emergência de um cenário político-discursivo e a elaboração de
uma retórica reacionária antigênero”. Revista de Psicologia Política. vol.18 no.43.
15 O IPCO é uma nova instituição criada no final dos anos 90, quando a Tradição, Família e Propriedade (TFP), organização e rede
ultracatólica estabelecida formalmente em 1960 (mas cujas inspirações ideológicas podem ser rastreadas até os anos 30) foi fratura-
da após a morte de seu fundador Plínio Corrêa de Oliveira. Quando criada, a TFP foi um ator importante na dinâmica que levou ao
golpe militar de 1964. Embora originalmente brasileira, conforme analisado por Neil Datta, ramificou-se transnacionalmente através
das Américas, mas também na Europa. Ver https://hrcak.srce.hr/220289
16 Mais informações sobre Dale O’Leary, seu livro e a relevância da América Latina na descrição se as ofertas podem ser encontra-
das em Sonia Corrêa (2018). A “política do gênero”: um comentário genealógico. Cadernos Pagu (53), n.p. https://doi.org/10.1590/18
094449201800530001
17 Ver Carla Castro Gomes (2020) Propagação dos termos “ideologia de gênero’ e “aborto” nas mídias religiosas digitais brasilieras.
Acessível em https://sxpolitics.org/ptbr/wp-content/uploads/sites/2/2020/02/Ebook-Propagac%CC%A7a%CC%83o-20200203.pdf
19 Ver https://doi.org/10.14295/de.v8i2.12282
20 Este episódio ilustra como a produção intelectual e acadêmica sobre gênero é também um alvo principal dessas mobilizações.
21 Corrêa, S. e Kalil, I. (2020) no estudo sobre políticas antigênero no Brasil, publicado em espanhol, analisam em detalhe essa
trajetória de erupção, maturação e propagação da ideologia antigênero no Brasil. Um resumo do estudo em português disponível na
coletânea Políticas Antigênero na América Latina: Estudos de Caso Condensados.
22 Esses dois últimos traços parecem ser singulares da ofensiva antigênero no Brasil. E, a presença de militares nessas formações
sócio- políticas e especialmente relevante no contexto do panorama oferecido por esse relatório em razão de seu impacto sobre o
campo educacional que será tratado a seguir.
Esse deslocamento drástico tornou o Brasil um dos poucos países do mundo onde
a ideologia antigênero está decididamente enraizada no aparelho estatal. Os casos
exemplares são a Hungria e a Polônia, com as quais o atual governo brasileiro tem
sólidas parcerias em várias iniciativas intergovernamentais: a Declaração do (chamado)
“Consenso de Genebra sobre Promoção da Saúde da Mulher e Fortalecimento da
Família”; a participação de atores estatais brasileiros23 em seminários voltados para o
debate de “políticas familiares” e o enfrentamento à “ideologia de gênero”24 e a aliança
internacional estabelecida pela administração de Donald Trump para impulsionar a
Liberdade Religiosa25. A atual Secretária Nacional da Família, Angela Gandra, que é
uma das autoridades de segundo nível do Ministério da Mulher, da Família e Direitos
Humanos (MMFDH), tem participado ativamente de debates, com membros dos
governos polonês e húngaro, promovidas pela plataforma Political Network for Values
(PNV), pela Ordo Iuris que é o braço polonês da Tradição Família e Propriedade (TFP)
(hoje extinta no Brasil mas cuja visão é continuada pelo IPCO), inclusive será docente na
universidade recém criada por essa entidade, o Collegium Intermarium26.
Cabe sublinhar ainda que, assim como acontece em outros países latino-americanos,
as políticas antigênero no Brasil foram sobrepostas à infraestrutura mais antiga de
23 Ver https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/04/21/governo-bolsonaro-afirma-que-ampliara-agenda-
ultraconservadora-pelo-mundo.htm
24 Ver www.politicalnetworkforvalues.org
25 Ver a Declaração de Consenso de Genebra. Para a Aliança sobre a Liberdade Religiosa Internacional, ver https://www.forbes.
com/sites/ewelinaochab/2020/02/06/us-launches-the-first-ever-international-religious-freedom-alliance/?sh=7d95a06640e6
27 Veja O caso da Menina do Espírito Santo: Este é um ponto de viragem na longa jornada pelo direito ao aborto no Brasil?
28 Veja: “ideologia de gênero” em movimento (Patternote e Kuhar, 2018), Habemus Género ! (ed. Sara Bracke e David Patternote,
2017),
29 Para uma cartografia preliminar dessas conexões transnacionais ver Mirta Moragas (2020) Políticas Antigénero en América Lati-
na: O Caso de la OEA
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
Entre estes dois pontos no tempo, Jair Bolsonaro proferiu incontáveis atos de fala
antigênero, principalmente através de suas redes sociais, mas também em atos,
discursos oficiais e comentários feitos a imprensa. Não raro, suas declarações são
replicadas por ministras e ministros, outros membros da administração federal e
suas bases políticas como ampla repercussão digital. Entre muitos outros episódios a
registrar, vale lembrar o escândalo midiático que o presidente produziu em fevereiro de
2019 a partir de uma cena carnavalesca marginal. Na mesa época, numa, cercado por
dois ministros militares, rasgou um manual do Ministério da Saúde sobre prevenção
de ISTs, declarando que o fazia para proteger os valores familiares. Alguns meses mais
tarde, solicitou ao Ministro da Educação que elaborasse uma disposição legal para
erradicar a “ideologia do gênero” nas salas de aula, visando, supostamente, proteger
as crianças - como se, como será visto mais adiante, já não existissem centenas de
Esses atos de fala, embora grotescamente agressivos e discriminatórios, não tem sido
contestados judicialmente, possivelmente porque, em casos similares, o Judiciário
reconheceu o direito de liberdade de expressão a outras autoridades estatais que
empregam discursos e acusações similares relacionados a pontos de vista sobre gênero,
sexualidade e direito ao aborto30. Ou seja, desde 2019, essas diatribes e ofensas tem
sido “normalizadas” no debate político nacional. Mesmo quando esses atos de fala e
performances presidenciais não possam ser descritos como política pública não são
irrelevantes ou inócuos. Esses discursos e posições quando proferidos pela autoridade
máxima do Estado alimentam e mobilizam afetos e sentimentos antigênero e também
de aversão a premissas de direitos humanos antidiscriminação e têm efeitos deletérios
na sociedade e nas esferas institucionais, em particular nos espaços educacionais, pois
autorizam xingamentos e agressões atos discriminatórios, e legitimam medidas de
políticas e propostas legislativas de arbítrio e oposição a gênero mesmo quando elas
possam ser, eventualmente, anticonstitucionais. Esses atos e a semântica que arrastam
também podem, potencialmente, estar insuflando os níveis crescentes de violência
baseada no gênero contra as mulheres, mulheres trans e travestis, mesmo quando esta
correlação não possa ser facilmente demonstrada, em particular em razão dos efeitos
concomitantes da COVID-19 no que diz respeito a incidência da violência nos espaços
privados31.
30 A esse respeito, um episódio relevante a ser mencionado ocorreu em 2019, quando a Ministra Damares Alves usou suas redes
sociais para acusar a socióloga feminista Jacqueline Pitanguy de ser uma “assassina de bebês”. A demanda judicial requerendo que
as postagens fossem apagadas das plataformas digitais foi negado pelo TJ do Rio de Janeiro, pois os juízes interpelados consider-
aram que a Ministra estava apenas exercendo seu direito à liberdade de expressão.
31 Muitas fontes, contudo, tem registrado crescimento da violência relacionada ao gênero desde 2018.
32 Ver: https://oglobo.globo.com/sociedade/menino-veste-azul-menina-veste-rosa-diz-damares-alves-em-video-23343024
33 A Secretária Nacional da Família é Angela Gandra, filha de um reconhecido jurista conservador, Ives Gandra Martins. Tanto o
pai quanto a filha tem conexões orgânicas com instituições católicas ultraconservadoras como Opus Dei, bem como com outras
plataformas neoconservadoras americanas e europeias.
35 Ver: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-50800983
36 Essa afirmação foi feita em várias oportunidades, mais especialmente na live do dia 01/05/2021 em que a ministra conversou
com a deputada Bia Kicis sobre as diretrizes políticas do Ministério. Ver aqui: https://www.youtube.com/watch?v=qouJ-2javsY
A centralidade da “família”.
38 Ver: http://www.generonumero.media/extincao-do-conselho-de-combate-discriminacao-lgbt-e-o-novo-capitulo-do-desmon-
te-de-politicas-do-governo-destinados-comunidade/
39 Veja https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2021/marco/ministra-damares-da-posse-a-integrantes-de-conselho-
nacional-de-combate-a-discriminacao
40 Ver: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-48479429
41 Ver: https://epoca.globo.com/guilherme-amado/damares-recebe-movimento-de-ex-gays-no-ministerio-promete-acolhimen-
to-23874107. Figuras-chave do campo de terapia de conversão brasileiro participaram deste encontro, como Miriam Froes, uma
pastora evangélica que frequentemente reivindica a liberdade de expressão para falar da homossexualidade como um pecado, bem
como Rozângela Justino, uma das autoras do processo judicial contrário à resolução 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia, que
proíbe as terapias de “conversão sexual”
42 A alocação de recursos para as políticas que centralizam a noção de “família fortes” tem sido oriunda de emendas parlamen-
tares (R$ 4 milhões) , recursos do próprio MMFDH bem como de outros órgãos do executivo. Portanto, não é nítido o montante
utilizado inclusive porque há repasses para outras instituições que executam estas políticas em formas de convênios e pactos feder-
ativos.
43 Ver: https://www.cartacapital.com.br/politica/para-atrair-religiosos-governo-cria-cadastro-para-liberar-verba-a-entidades/
44 Ver: https://www.gov.br/capes/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/bolsas/programas-estrategicos/formacao-de-
recursos-humanos-em-areas-estrategicas/familia-e-politicas-publicas-no-brasil
Deve-se notar também que o edital não apresenta uma definição mais precisa, seja
ela demográfica, sociológica ou antropológica do conceito de família, nem tampouco
oferece parâmetros para o reconhecimento da diversidade das estruturas familiares
no Brasil. Essa imprecisão é muito problemática pois tal como examinado, num
documento sobre proteção de direitos humanos e famílias, apresentado por um grupo
de associações acadêmicas e ONGs brasileiras ao Conselho de Direitos Humanos da
ONU em 2015, as famílias brasileiras são muito heterogêneas como ilustrado pela alta
porcentagem de famílias chefiadas por mulheres (43% ou 28 milhões de famílias).45 Isso
sugere que essa nova linha de financiamento de pesquisa, de fato, seja um investimento
estatal voltado para a promoção de um modelo de família que não reconhece ou
minimiza a diversidade. A mesma avaliação crítica foi feita pelas notas públicas da
Rede Fluminense de Núcleos de Pesquisa de Gênero, Sexualidade e Feminismos nas
Ciências Sociais e da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia
(ANPEPP)46, as quais apontam para ausência de referência, no edital, a problemas
cruciais como: desigualdades entre famílias e no interior das unidades familiares e,
sobretudo, violência intrafamiliar cuja compreensão e prevenção não pode prescindir
da perspectiva de gênero. Segundo a nota da Rede Fluminense:
45 Veja: https://sxpolitics.org/wp-content/uploads/2016/03/Protection_of_the_family_OCHR.pdf
46 Ver: Nota da Rede Fluminense de Núcleos de Pesquisa de Gênero, Sexualidade e Feminismos nas Ciências Sociais https://www.
gov.br/capes/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/bolsas/programas-estrategicos/formacao-de-recursos-humanos-em-
areas-estrategicas/familia-e-politicas-publicas-no-brasil e nota da Associação Nacional de Pesquisa e Pós Graduaçao em Psicologia
em https://www.anpepp.org.br/download/download?ID_DOWNLOAD=345
Outra nova diretriz de política desenvolvida pelo MMFDH tem o gênero, ou nos termos
do Ministério a “ideologia de gênero” como seu foco prioritário. Como parte de seu
programa de formação de agentes de promoção dos direitos humanos, o Ministério
tem patrocinado treinamentos virtuais. Através do Fórum Nacional sobre Violência
Institucional contra Crianças e Adolescentes que é coordenado pela Secretaria Nacional
dos Direitos da Criança e do Adolescente. No treinamento, em formato de palestras e
debates, oferecido pela primeira vez em abril de 2021, o tema central foi a “ideologia
de gênero” e seus efeitos negativos sobre a educação e a saúde. Essa sessão foi a
primeira de uma série de cursos online planejada para acontecer até 2022, para treinar
agentes públicos e da sociedade civil, mas também para debater e compartilhar os
marcos jurídico-institucionais do MMFDH: programas de enfrentamento à “violência
de gênero”, ações na esfera da educação e da saúde e na política de recepção de
denúncias de violações de direitos humanos.
O marco norteador desse primeiro treinamento, que ofereceu quatro horas de aula/
dia em dois dias de encontro foi a “Proteção da Criança”, definida por todos/as
palestrantes como uma necessidade urgente pois, segundo eles, a infância e juventude
são estágios prematuros e especiais do desenvolvimento humano que requerem
proteção especial contra muitas ameaças, inclusive as agressões “contra a natureza”
ou essência do ser humano e das instituições que decorre da “ideologia de gênero”.
Na opinião da maioria dos especialistas que participaram do curso a “ideologia de
gênero” deve ser caracterizada como “violência institucional” porque é “perpetrada por
funcionários do Estado”, sejam professoras/es ou profissionais de saúde, entre outros.
Uma parcela importante das pessoas que participaram como palestrantes são políticos
e profissionais que têm vínculos da ofensiva antigênero no Brasil.
Durante o curso, o secretário responsável pela Infância e Adolescência do Ministério
propôs que uma lei aprovada em 2017 para garantir a proteção e integridade de
crianças e adolescentes submetidos a procedimentos judiciais ou policiais deveria ser
47 Lei 13.431/17, Lei da Escuta Protegida (Lei 13.431/17). Para ler um comentário sobre esta legislação, veja https://liberta.org.br/o-
que-diz-a-lei-da-escuta-protegida/
48 Ver https://www.gov.br/mdh/pt-br/ondh/centrais-de-conteudo/manuais/manual_taxonomia_a5.pdf/view
49 Vale ressaltar também que as queixas referentes ao aborto, incluindo o acesso a serviços de aborto legal, são agora classificadas
como “interrupção da gravidez que implica na destruição da vida intra-uterina”.
Para além do que significam essas exclusões e novas definições que alteram o
vocabulário do Estado para nomear e responder aos direitos humanos, essas alterações
prejudicam, ou mesmo impossibilitam, a comparabilidade dos dados coletados pelas
linhas diretas antes e depois de 2020. Impactam, sobremaneira, os municípios que
são os territórios onde as ações de prevenção e enfrentamento a estas violações são
organizadas. A alteração da classificação das violações de Direitos Humanos produzida
pelo MMFDH tem efeitos nos níveis locais em termos de entraves potenciais para
planejamento, articulação e implementação de ações de enfrentamento às mais diversas
formas de violência e de violações de direitos humanos. Entre os efeitos imediatos
nos territórios locais, estão a descontinuidade ou reelaboração de ações formativas
das redes locais, especialmente no que se refere a compreensão das tipificações e
categorizações de violências e violações de Direitos Humanos e também uma possível
interrupção do diagnóstico e planejamento de ações, uma vez que a medida altera a
organização de dados que compõe a série histórica de analise.
50 Ver https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47206924
51 https://www.gov.br/mdh/pt-br/ondh/paineldedadosdaondh/ONDH-2020SM02
Três meses depois, na 41ª sessão do HRC (junho-julho), o Brasil, como membro
histórico do Grupo de Trabalho sobre Orientação Sexual e Identidade de Gênero, que
existe desde 2011, apoiou a continuidade do mandato do Especialista Independente
em Orientação Sexual e Identidade de Gênero e Direitos Humanos. No entanto, ao final
das negociações, assim como já havia acontecido na CSW, a embaixadora brasileira
tomou a palavra para explicitar que o Brasil se reservaria seu direito de interpretar o
termo “gênero”, consagrado na resolução, como sinônimo de “sexo biológico”. No
decorrer da mesma sessão, o Brasil levantou outras 14 declarações interpretativas
sobre a linguagem de gênero utilizada em outras resoluções adotadas.54 Delegações
brasileiras levantariam as mesmas reservas e interpretações de gênero para significar
sexo biológico em outras negociações intergovernamentais, tais como a IX Reunião
do Mecanismo Internacional de Assistência Humanitária (junho de 2019), a Assembleia
52 Esta posição é inconsistente com a Constituição Federal de 1988 que não inclui o direito à vida desde a concepção, mesmo
quando esta premissa havia sido proposta nos estágios iniciais da reforma constitucional.
53 Ver Webcast da ONU da sessão em que esta declaração foi feita.
54 Ver Brasil veta gênero em resoluções e cria mal estar, publicado pela UOL
Um aspecto não menos importante desta trajetória é que entre 2019 e o começo de
2021 o governo Bolsonaro se manteve alinhado a política externa da administração
de Donald Trump em relação a essas questões. A ilustração mais significativa é,
possivelmente, o chamado Consenso de Genebra que condena o direito ao aborto
e clama pela defesa da família que foi assinado apenas por trinta e dois países nos
últimos meses do governo Trump, cuja promoção global é hoje liderada pelo governo
brasileiro58.
56 Ver artigo de Jamil Chad Novo Dicionário do Itamaraty publicado pela UOL e o boletim periódico do SPW sobre política sexual
(maio - agosto de 2019). https://sxpolitics.org/ptbr/a-politica-sexual-em-abril-de-2019/9266
58 Ver o artigo A pátria é pária e antifeminista de Sonia Corrêa e Gustavo Huppes
59 Ver https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/10/22/brasil-eua-e-ditaduras-se-aliam-jamais-havera-direito-ao-
aborto.htm?cmpid=copiaecola
60 Ver https://elpais.com/internacional/2021-07-18/el-metodo-bolsonaro-un-asalto-a-la-democracia-a-camara-lenta.html
Muitas dessas disposições legais, como, por exemplo, todas as que foram apresentadas
no Congresso Nacional, desde 2015, ainda não foram aprovadas. Muitas outras já foram
aprovadas, mas ainda não foram implementadas. Entretanto, essas ofensivas legais
64 A lista completa desses projetos de lei pode ser acessada no site do Movimento de Professores contra o Escola sem Partido. Em
https://profscontraoesp.org/vigiando-os-projetos-de-lei/
Muito antes das erupções antigênero nas eleições de 2018, organizações da sociedade
civil e pesquisadoras/es vêm acompanhando e lutando contra os ataques antigênero na
educação. Tais esforços têm gradualmente se unido em uma coalizão plural composta
por sindicatos e federações de professores, ONGs envolvidas na promoção do direito à
educação, OSC feministas, LGBT+ e do movimento negro, plataformas e organizações
de direitos humanos, além de setores religiosos progressistas.65 Esta coalizão tem
sustentado uma série de litígios estratégicos em relação a esse retrocessos legais no
Supremo Tribunal Federal, a qual constitui o melhor exemplo de resposta politicas,
institucionalmente fundamentadas, frente ao avanço da política antigênero no Brasil.
65 Coordenada pela Ação Educativa, a Coalizão é composta por: Artigo 19, Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas
(ABRAFH), Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), Associação Mães
pela Diversidade, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), Associação Nacional de Política e
Administração de Educação, Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED), Cidadania, Estudo,
Pesquisa, Informação e Ação (CEPIA), Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), Associação Nacional de Travestis e Transexuais
(ANTRA), Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos LGBTI (ANAJUDH), Campanha Nacional pelo Direito à Educação,
Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA Ceará), Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES),
Cidade Escola Aprendiz, Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM Brasil), Centro
Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (CEPIA), Conectas Direitos Humanos,
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Confederação Nacional dos Trabalhadores dos Estabelecimentos
em Educação (CONTEE), Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, Frente Nacional Escola Sem Mordaça, Geledés - Instituto da Mulher
Negra, Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS), Instituto Alana, Instituto Brasileiro de Direito da Família
(IBDFAM), Movimento Educação Democrática, Open Society Justice Initiative, Plataforma de Direitos Humanos - Dhesca Brasil,
Projeto Liberdade, Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde (RENAFRO), Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições
do Ensino Superior (ANDES-SN), THEMIS - Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, União Nacional dos Conselhos Municipais de
Educação (UNCME), Associação TAMO JUNTAS - Assessoria Jurídica Gratuita para Mulheres Vítimas de Violência.
Embora derrotadas, as forças antigênero assim como o movimento Escola sem Partido
não se renderam. Continuam a promover campanhas contra programas de gênero e
o professorado nele engajado e continuam a seguir disposições legais que infringem
as definições constitucionais sobre liberdade de consciência e marcos pedagógicos
(art. 206, item III). Além disso, as decisões do STF que deveriam funcionar como
barreira de contenção aos movimentos antigênero, de fato, não os tem impedido de
continuar apresentando e aprovando projetos de lei com esse mesmo conteúdo. Isto
aconteceu, por exemplo, na cidade de Belo Horizonte, em agosto de 2020, quando
um PL apresentado em 2017 e que havia sido objeto de grande controvérsia, foi
preliminarmente aprovado.67 Essas forças também têm atacado diretamente o STF.
Em novembro de 2020, a Corte examinaria as últimas cinco ações que haviam sido
apresentadas para contestar as leis antigênero. Entretanto, o exame foi adiado pelo
Presidente do STF, entre outras razões porque o Tribunal foi alvo de um feroz ataque
digital.
67 Ver: https://www.cmbh.mg.gov.br/comunica%C3%A7%C3%A3o/not%C3%ADcias/2020/08/escola-sem-partido-avan%C3%A7a-
em-2%C2%BA-turno-30-emendas-foram-apresentadas-ao
69 Ver: https://www.camara.leg.br/noticias/699563-projeto-criminaliza-promocao-de-ideologia-de-genero-nas-escolas/
70 A disposição foi motivada pelo assassinato representativo de um menino por sua mãe e sua parceira lésbica que teria tentado
mutilar sexualmente a criança. Este crime proporcionou às vozes anti-gênero uma oportunidade de associar “ideologia de gênero”,
dano e assassinato, mesmo quando vozes de ativistas e especialistas apontavam para o fato de que a crueldade implícita nos casos
deveria ser generalizada.
Uma nova ramificação das cruzadas contra o gênero, no Brasil e no mundo, que
também se vincula ao campo educacional, mas não se restringe a ele, é o repúdio
a chamada linguagem neutra (também conhecida como linguagem não-binária ou
neolinguagem). Esse termo se refere a propostas de intervenção linguística que
71 Ver: https://sxpolitics.org/ptbr/manifesto-critica-edital-de-convocac%cc%a7a%cc%83o-do-programa-nacional-do-livro-didati-
co/11832
Além de críticas que vinham sendo veiculadas na imprensa e nas redes sociais há algum
tempo, desde 2020, assiste-se à proliferação de projetos de lei cujo objetivo é proibir
o uso de linguagem neutra nas escolas e outros serviços públicos. Esse movimento
teve início em novembro de 2020 no Rio de Janeiro quando o Liceu Franco-Brasileiro,
uma escola particular, divulgou uma nota informando aos pais que passaria a utilizar
o termo “alunes” com o objetivo de reconhecer as diversas identidades de gênero do
corpo discente. Logo em seguida, os deputados estaduais Marcio Gualberto e Anderson
Moraes do PSL (Partido Social Liberal) apresentaram o Projeto de Lei 3.325 que
“estabelece medidas protetivas ao direito dos estudantes do estado do Rio de Janeiro
ao aprendizado da língua portuguesa de acordo com as normas e orientações legais de
ensino”.
72 Esta lista inclui: PL 5198/20 e PL 5248/2020 , de autoria dos deputados federais Junio Amaral e Guilherme Derrite, respectiva-
mente, que visam proibir o uso de linguagem neutra em instituições educacionais reiterando a rígida divisão binária entre masculino
e feminino. A isto se soma o PL 4893/20, que, como apresentado acima, procura criminalizar a “ideologia de gênero” nas escolas
brasileiras.
73 Registra-se que na mesma semana do veto, o governador Eduardo Leite declarou publicamente ser gay, o que atraiu apoio
público de várias frentes políticas e partidárias e manifestações de ódio de grupos ultraconservadores.
Diante dos impasses, parlamentares vinculados ao governo de Jair Bolsonaro que são
membros da na Comissão de Constituição e Justiça, priorizaram a aprovação do PL
3.262/2019, que descriminaliza a não matricula de crianças na rede escolar - que é um
óbice legal para implementação da educação domiciliar - e para isso o desapensaram
do o PL 3.179/2012 relatado por Canziani.74 Presidida pela hiper conservadora deputada
Bia Kicis, a Comissão aprovou em 10 de junho o PL 3.262/2019, que segue no segundo
semestre de 2021 para votação em plenário. O deputado federal Bohn Gass (PT/RS)
entrou com um requerimento solicitando que o PL 3.262/2019 tramite também nas
comissões de Educação e de Seguridade Social e Família antes de ir a plenário. Em sua
justificativa, ele afirma que o projeto extrapola alterações no Código Penal e interfere
também na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e no Estatuto da
Criança e Adolescente (ECA). As organizações e redes da sociedade civil se preparam
para incidir nas próximas etapas da tramitação.
74 O artigo 246 da Código Penal pune genitoras/es que deixam de proporcionar a suas filhas/filhos instrução primária, ou seja,
quando não matriculam crianças na idade escolar em estabelecimentos de ensino da rede pública ou da rede particular. Essa in-
fração penal é nomeada abandono intelectual.
75 Ver estudo A militarização das escolas públicas: uma análise a partir da área de educação no Brasil https://seer.ufrgs.br/rbpae/
article/view/96283
76 Segundo levantamento realizado pela Secretaria Geral de Controle Externo do Tribunal de Contas da União, em julho de 2020,
o número total de militares ativos e na reserva que ocupavam cargos civis no governo federal era de 6.157. o que representava um
crescimento de 108,22% em relação a 2016.
78 As diretrizes gerais dessa nova política estão delineadas no Manual das Escolas Civico Militares. Ver https://educacao.sorocaba.
sp.gov.br/wp-content/uploads/2021/05/respostapedidoecimfinal.pdf
Em um país que enfrenta a política econômica mais austera do mundo – que vem
destruindo políticas sociais e ambientais e sucateando a capacidade do Estado de
proteger a população dos efeitos da pandemia, ao mesmo tempo, que drena recursos
públicos para a elite financeira – a ED e as ECMs também reativam ou reiteram lógicas
hierárquicas de contenção de conflitos, de transmissão de conhecimentos, assimetrias
de gênero, divisão sexual do trabalho, controle disciplinar dos corpos e da sexualidade.
Esta seção analisa especifcamente ondas mais recentes de repúdio e agressão contra a
diversidade de gênero impulsionadas por atores da sociedade, mas também instâncias
legislativas subnacionais, mas que ainda não podem ser descritas como políticas
estatais bem estabelecidas (embora estejam em consonância com as dinâmicas em
curso no Executivo e Legislativo Federal).
Seus principais alvos são os três protocolos institucionais brasileiros que regulam
os direitos das pessoas trans em relação ao Sistema de Saúde: a segunda versão da
portaria sobre o Processo Transexualizador81; o parecer técnico do Conselho Federal
de Medicina que regulamenta o tratamento hormonal para crianças e adolescentes
diagnosticados com Transtorno de Identidade de Gênero82; e a resolução 1/2018 do
Conselho Federal de Psicologia, que impede o uso de terapias de conversão para a
transexualidade e promove o enfrentamento da transfobia.83 Esse movimento que se
opõe aos direitos trans na infância também tem persuadido legisladoras/es estaduais
e federais a elaborarem projetos de lei que visam proibir tanto o reconhecimento da
diversidade de gênero entre crianças como, sobretudo, a oferta de terapias hormonais e
bloqueadores da puberdade a pessoas menores de 18 anos.
Importante salientar também que através das Escolas dos Ministérios Públicos temos
visto igualmente ações formativas advindas das ofensivas antigênero no âmbito do
Ministério Público, tanto nos níveis estaduais como federal. Por exemplo, a Escola
Superior do Ministério Público da União (ESMPU) tem oferecido palestras e cursos com
conteúdo abertamente antigênero, com ênfase na crítica aod direitos de identidade de
gênero na infância e adolescência que conta, inclusive, vozes representativas de grupos
de mulheres antigênero e avessas aos direitos das pessoas trans.”,
81 Veja: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html
82 É importante observar que o protocolo, ao mesmo tempo em que garante o acesso a intervenções biomédicas, ainda se baseia
em premissas biomédicas problemáticas. Para informações adicionais, ver Schwend (2020).
83 Ver: https://site.cfp.org.br/tag/resolucao-01-2018/#:~:text=Com%20a%20Resolu%C3%A7%C3%A3o%2001%2F2018,forma%20
de%20preconceito%20ou%20discrimina%C3%A7%C3%A3o
Esse ativismo legislativo que se opõe ao direito identidade de gênero já está afetando
negativamente os serviços de saúde para pessoas transgêneras, em aqueles voltados
para crianças e adolescentes, o que compromete seu direito à saúde, conforme
consagrado na Constituição Federal. Além das restrições financeiras que tem restringido
o acesso a processos de transexualização no Sistema Único de Saúde, esses serviços
e os profissionais que neles trabalham tem sido objeto de assédio constante por
parte das organizações da sociedade civil acima mencionadas, grupos religiosos e,
eventualmente, figuras políticas locais alinhadas com o campo conservador.85
84 Esta disposição legal foi mobilizada pela Campanha das Mulheres pelos Direitos da Mulher com Base no Sexo (Grupo Corpo
Certo).
86 No estado de Minas Gerais está tramitando o PL 2649/21 que proíbe a publicidade da diversidade sexual e de gênero. Ver
https://www.almg.gov.br/atividade_parlamentar/tramitacao_projetos/interna.html?a=2021&n=2649&t=PL
O mundo do esporte é outro terreno crítico em que os ataques aos direitos trans
se intensificaram de maneira flagrante desde 2019. Por exemplo, são cada vez mais
intensas as polêmicas em torno a participação de atletas transgêneros nos torneios
das ligas nacionais de vôlei. Um caso emblemático é o de Tiffany, jogadora de vôlei
que mobilizou uma intensa atividade legislativa tanto em São Paulo quanto na Câmara
Federal e mobilizou discussões em comitês oficiais de regulamentação esportiva.87
A tese de que mulheres trans atletas têm vantagens ao competir - ao considerar as
medidas hormonais e a estrutura corporal - está sendo ampla e sistematicamente
utilizada por grupos políticos conservadores, bem como por membros das associações
esportivas para dificultar decisões anteriores de comitês de ética que estabeleceram
políticas mais inclusivas nas competições esportivas a nível nacional.
87 Ver: https://sxpolitics.org/ptbr/a-inclusao-de-pessoas-trans-e-o-caso-tiffany/8004
88 Ver https://savewomenssports.com/iocpetition#d7ac729d-99a1-444f-8f33-238c03a5f59a
90 Ver https://www.uol.com.br/esporte/colunas/olhar-olimpico/2020/06/19/deputada-diz-que-deu-entrada-em-pl-contra-atletas-
trans-com-numero-falso.htm
Essa regulamentação, contudo, não tem sido implementada na prática. Para superar
esse hiato, a Associação Nacional de Bissexuais, Lésbicas, Gays e Transexuais apresentou,
em 2018, ao STF uma ação que questiona a inconstitucionalidade das regras prisionais
em relação às mulheres trans e travestis. Em setembro de 2020, o STF proferiu uma
primeira decisão liminar determinando que as mulheres trans têm o direito de decidir se
querem ser encarceradas nos pavilhões feminino ou masculino. Caso optem por estar nos
pavilhões masculinos, devem ter proteção especial contra potencial violência.
92 Ver: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/ong-pelos-direitos-das-mulheres-vai-a-pgr-contra-homens-
biologicos-em-presidios-femininos/
93 Para mais informações sobre a posição conservadora do Estado de Minas Gerais ver Parecer Técnico 01/2021 do Núcleo de
Direitos Humanos e Cidadania LGBT+ da UFMG. Acessível em http://www.fafich.ufmg.br/nuh/2021/08/16/veja-o-parecer-sobre-
nota-tecnica-no-2sejuspdepen2020-que-versa-sobre-custodia-de-pessoas-lgbt-no-sistema-prisional/
Além dos efeitos deletérios das políticas desenhadas e implementadas pelo MFMDH e o
MRE, acima descritas, e das ferozes batalhas em curso em torno ao gênero na educação
e aos direitos das pessoas trans é preciso também considerar o efeito potencial
da ideologia e políticas antigênero hoje instaladas no Brasil no que diz respeito ao
aumento dos níveis de violência baseada no gênero, orientação sexual e identidade de
gênero.
Os dados disponíveis informam, por exemplo, que, entre 2018 e 2019, o número total
de homicídios diminuiu no Brasil, mas o número de feminicídios aumentou em 7,3%.
Embora os dados nacionais ainda não estejam disponíveis para 2020, há fortes sinais de
que tanto a violência letal contra as mulheres quanto o número de estupros cresceram
ao longo do ano sob os impactos da das regras de confinamento estabelecidas como
prevenção da COVID 19.
95 Um exemplo é o estudo realizado pelo NUH, centro de pesquisa em sexualidade da Universidade de Minas Gerais (UFMG)
que examinou a base de dados policiais e judiciários sobre os homicídios de pessoas trans, identificando as advertências de
investigações, mas também a crueldade flagrante de um número substantivo desses assassinatos. Acessível aqui: https://
www.fafich.ufmg.br/nuh/2020/01/09/divulgado-o-relatorio-dos-registros-de-homicidio-envolvendo-lgbts-em-minas-gerais-
entre-2016-2018/
Gama, Maria Clara Brito da (2019). Cura Gay? Debates parlamentares sobre a (des)
patologização da homossexualidade. Sexualidad, Salud y Sociedad, 31, pp. 4-27 https://
doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2019.31.02.a
Oliveira Júnior, Isaías & Maio, Eliane. (2017). “Não vai ser permitido a nenhum
órgão do governo fazer propaganda de opções sexuais”: O discurso inaugural no
“desagendamento” do Kit Gay do MEC. E-Curriculum, 15(1), p. 125 - 152. http://dx.doi.
org/10.23925/1809-3876.2017v15i1p125-152
Prado, Marco Aurélio & Corrêa, Sônia. (2018). Retratos transnacionais e nacionais das
cruzadas antigênero. Revista Psicologia Política. 18(43), 444-448.
Suess Schwend, Amet (2020). Cuidados com a saúde trans do ponto de vista da
despatologização e dos direitos humanos. Saúde Pública Rev 41 (3). https://doi.
org/10.1186/s40985-020-0118-y