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A Expansão da Assembleia de Deus em Imperatriz-MA: História e Constituição

Identitária

Bertone de Oliveira Sousa – Mestrando UFG

Resumo: Este texto disserta sobre o processo de crescimento da Assembleia de Deus na


cidade de Imperatriz, no sudoeste do Estado do Maranhão. Busca-se investigar sua
interação com um intenso processo migratório e de urbanização vivenciado pela cidade,
que, a partir da década de 1950, se tornou um pólo estratégico de desenvolvimento
econômico. É nesse contexto que a Assembleia de Deus se estabelece na cidade e efetiva
um amplo projeto de evangelização, que, em algumas décadas, a torna a maior igreja
protestante da região, em número de fiéis. Situando-se no marco teórico dos estudos
culturais, procura-se analisar os aspectos históricos desse movimento e o tipo de identidade
que engendrou em Imperatriz.

Palavras-chave: Identidade, Assembleia de Deus, Imperatriz, Modernização.

Introdução

O presente texto aborda o processo de crescimento da Assembleia de Deus (AD) na


cidade de Imperatriz, localizada no sudoeste do Estado do Maranhão. As peculiaridades do
desenvolvimento histórico da cidade e o caráter proselitista dessa instituição religiosa
propiciaram sua expansão, não apenas em Imperatriz, mas em todo sudoeste maranhense,
cuja maior parte dos municípios foram paulatinamente desmembrados do território
imperatrizense.
O presente trabalho situa-se no marco teórico dos estudos culturais, sem,
evidentemente, abrir mão da interdisciplinaridade, entendida como imprescindível à análise
de um objeto plural como o pentecostalismo. Busca-se compreender esse processo a partir
das estratégias de expansão assembleiana, bem como no bojo da modernização latino-
americana, na qual Imperatriz se inseriu como local de amplo fluxo migratório e
modernização excludente. As contradições de sua acelerada urbanização conduziram, como
no conjunto da América Latina, a uma espécie de irrupção do sagrado, com forte ênfase no
aspecto emocional da vivência religiosa, cuja identidade é marcada pela negação de alguns
aspectos dessa modernização, tais como o secularismo e seu impacto no cotidiano da vida
urbana.

1. Origem da Assembleia de Deus

A IEADI (Igreja Evangélica Assembleia de Deus de Imperatriz) está ligada a um


órgão nacional, a CGADB (Convenção Geral das Assembleias de Deus do Brasil) 1. Em seu
site oficial, a instituição se define como “uma igreja evangélica pentecostal que prima pela

1
A CGADB foi fundada em 1930 e registrada em 1946. Entre os líderes religiosos que participaram desse
processo estavam Samuel Nystron e Paulo Leivas Macalão.
2

ortodoxia doutrinária.” 2 O site destaca ainda a crença no “batismo com o Espírito Santo” e
na “segunda vinda de Cristo” como dogmas essenciais de seu credo.
De acordo com Corten (1996, p. 44 e seq.), o Batismo no Espírito Santo é uma
experiência religiosa marcada por forte intensidade de um sentimento místico, advindo da
crença de o fiel estar em contato com Deus. Sua principal manifestação é o “falar em
línguas”, estado de transe em que os fiéis crêem-se tomados (possuídos) pelo Espírito
Santo, emitindo espontaneamente longas seqüências de sons, cujos sentidos se dão apenas
na esfera do campo místico. Não é necessária preparação prévia, pode ocorrer no ato da
conversão ou muito tempo depois dela.
Historicamente, o movimento pentecostal remonta ao ano de 1906 nos Estados
Unidos e uma das suas características é a crença de seus fiéis de estarem voltando às
“origens” do que havia sido a igreja primitiva. Pentecostes, dogma que norteia este
movimento, significa “cinquenta”, em alusão ao relato bíblico3 de que, no quinquagésimo
dia após a ressurreição de Jesus, o Espírito Santo teria se manifestado aos apóstolos
reunidos no cenáculo, por meio de línguas de fogo, ocasião em que teriam entrado em
estado de transe, falando diversas línguas. Este relato, retomado por facções protestantes no
século XX, constitui-se no cerne doutrinário do movimento aqui estudado.
Nos Estados Unidos, o movimento pentecostal esteve inicialmente relacionado a
questões raciais. Um de seus personagens centrais é William Joseph Seymour (1870-1922),
que, por ser negro, foi expulso da igreja de Charles Fox Parham, simpatizante da Ku Klux
Klan e que ensinava sobre a experiência religiosa do batismo no Espírito Santo. Em 1906,
Seymour passou a realizar cultos em um armazém na Rua Azuza Street, Los Angeles, que
depois recebeu o nome de Church of God in Christ (Igreja de Deus em Cristo), com a
participação majoritária de negros e mulheres.
Freston (in ANTONIAZZI et al, 1994, p. 75) enfatiza que inicialmente o movimento
se caracterizou pela crença no retorno iminente de Cristo, valorizando mais a divulgação de
ideais salvacionistas do que a construção de igrejas. Posteriormente, a glossolalia ganhou
destaque em sua incipiente teologia e seu caráter proselitista logo se tornou notável, devido
à rápida expansão do movimento. Missionários norte-americanos e imigrantes radicados
nos Estados Unidos foram enviados ao exterior em campanhas de evangelização.
Daquele país vieram os dois missionários suecos que fundaram a AD no Brasil:
Daniel Berg e Gunnar Vingren. Chegaram ao Brasil em 19 de novembro de 1910. Seu
sustento no país foi garantido por doações que vinham do exterior, pela venda de Bíblias e
pelo trabalho de fundição que Berg exercia. Inicialmente, frequentavam a igreja Batista, de
onde foram expulsos porque tentaram incluir o “pentecostes” na liturgia. Juntamente com
mais dezesseis pessoas fundaram outra igreja com o nome de “Missão de Fé Apostólica”,
que era como se chamava uma das primeiras igrejas pentecostais nos Estados Unidos. A
igreja fundada por eles em Belém recebeu o estatuto de pessoa jurídica em 11 de janeiro de
1918, quando foi registrada oficialmente como Assembleia de Deus. (VINGREN, 1982, p.
97) No entanto, sua fundação no Brasil data de 1911, quando o grupo se separa da igreja
Batista.4

2
Disponível em: http://igrejaassembleiadedeus.org/principal.htm . Acesso em 12/11/2008
3
Descrito em Atos dos Apóstolos capítulo 2.
4
A Congregação Cristã no Brasil foi a primeira de linha pentecostal a ser fundada aqui, em 1910.
3

No Maranhão, a AD foi fundada na década de 1920, mas só conheceu crescimento


significativo entre as décadas de 1940 e 1970, mesmo período em que chegou a Imperatriz,
em 1952, quando dá início a seu projeto de difusão pela cidade e regiões vizinhas. No início
da década de 1960 já era considerada a maior igreja protestante da América Latina, com
quase um milhão de adeptos e uma taxa de crescimento de 15% ao ano. (FRESTON, in
ANTONIAZZI et al, 1994, p. 71). Freston (idem, p.71) ressalta ainda que seu crescimento
nas primeiras décadas deveu-se ao fato de ter marcado forte presença em regiões de amplo
fluxo migratório, como é o caso de Imperatriz.

2. A inserção da Assembleia de Deus em Imperatriz

Imperatriz se localiza no sudoeste maranhense entre a Mata dos Cocais e a Pré-


Amazônia. Não passou pelo mesmo processo de colonização da capital, tendo sido
colonizada tardiamente. Sua fundação data de 1852, quando chegou uma missão religiosa
comandada por Frei Manoel Procópio, nomeando-a como “Povoação de Santa Tereza”.
Sendo o catolicismo majoritário até os dias atuais, só recentemente têm ocorrido alterações
nesse campo, com o crescimento de religiões pentecostais, desdobramento das mudanças
ocorridas a partir da década de 1950.
Quatro anos depois de ser fundada, a povoação foi transformada em vila e elevada à
condição de cidade em 1924. Até o início do século XX, possuía apenas uma rua, próxima
ao Rio Tocantins, às margens do qual fora inicialmente povoada, com algumas dezenas de
casas e, posteriormente, a igreja matriz, Santa Tereza d’Ávila. A pecuária e a agricultura
eram praticamente as únicas atividades de seus habitantes. Foi a partir da década de 1950
que se intensificou seu crescimento urbano, demográfico e econômico, com a construção de
estradas que a ligaram a outras cidades do Maranhão e do Nordeste.
Esse processo tirou-a do isolamento geográfico, incrementando o fluxo migratório e a
ocupação das terras devolutas, influindo também sobre o desenvolvimento do comércio e
dos transportes, resultando em rápido crescimento urbano, demográfico e econômico. A
partir de então, os migrantes que chegavam ocupavam terras, formavam vilarejos e
cultivavam principalmente o arroz. Para contornar as irregularidades no traçado urbano
resultante do rápido crescimento populacional entre as décadas de 1950 e 1970, foi
aprovada a criação de novos municípios, a partir do desmembramento do território original
de Imperatriz. Em pouco mais de seis décadas, a cidade perdeu 91,6% de seu território
original.
Em muitos casos, o processo de ocupação das terras devolutas não ocorreu de forma
pacífica. As décadas de 1960 e 1970 foram marcadas por intensos conflitos entre posseiros
e grileiros, trabalhadores rurais e proprietários de terras na região tocantina e Araguaia,
destacando-se a pistolagem, prática de assassinatos cometidos por capangas (pistoleiros) a
mando de proprietários de terras e/ou autoridades locais. Como consequência, muitos
camponeses se estabeleceram nas periferias da cidade.
José de Souza Martins (1997) destaca a fronteira como um lugar de conflito e
enfrentamento do outro, do encontro da alteridade e que diz respeito à constituição mesma
do humano, não se restringindo apenas a uma questão geográfica, mas também
civilizatória, ideológica, étnica; nesse cenário, cabe entender os (des)encontros dos
diferentes, bem como os confrontos que subjazem a esse processo. Na América Latina,
4

ainda vive-se, segundo o autor, o tempo da fronteira, da expansão populacional sobre terras
ainda não ocupadas e ela é marcada precipuamente por uma situação de conflito social.
O autor destaca que a fronteira é o lugar também de elaboração de “Esperança” (com
“E” maiúsculo), “atravessada pelo milenarismo da espera no advento do tempo novo, um
tempo de redenção, justiça, alegria e fartura. O tempo dos justos.” (p. 11) Martins assinala o
caráter religioso, amiúde milenarista, das populações camponesas que migram para
melhorar de vida, amalgamando elementos da frente de expansão com uma visão mística de
mundo. Estas, ao fixarem-se em uma região, podem tornar-se receptivas às religiões
também milenaristas, como, por exemplo, o pentecostalismo da Assembleia de Deus; essa
perspectiva perpassa a própria trajetória junto às comunidades camponesas que se
estabeleceram no sudoeste maranhense, mediante o trabalho de divulgação de seus ideais e
fundação de igrejas.
A construção da rodovia Belém-Brasília, no início dos anos 1960, impulsionou o
crescimento de Imperatriz, fazendo com que, num período de vinte anos, a população
aumentasse em cerca de 450%, quando se tornou a segunda maior cidade do Estado. Essa
obra foi acompanhada da realização de um projeto de construção, na cidade de Estreito, de
uma ponte sobre o rio Tocantins, ligando os Estados do Maranhão e Goiás. A obra foi
inaugurada por Juscelino Kubitschek, quatro dias após a conclusão da rodovia, em 29 de
janeiro de 1961. A rodovia também impeliu a expansão da igreja, que se estabeleceu em
aldeias, cidades e vilarejos vizinhos. Sebastião Alves (2002, p. 57-58) aponta esse
acontecimento como fator catalisador da ampliação da quantidade de templos e fiéis:

Com a chegada da rodovia Belém-Brasília (BR-010) em 1960, ocorreu o surgimento de


vários lugarejos, especialmente às suas margens. O primeiro povoado a ser alcançado
[pela igreja] foi Açailândia, que era apenas um acampamento dos trabalhadores que a
construíram. Nesse avanço [...], a igreja alcançou outros povoados, como Perdidos,
Cajuapara, Itinga, Água Azul, Concrem e Ligação, Sentido Norte. Estes três últimos
pertencem ao Estado do Pará [...]. Na direção sul, sentido Brasília [...] chegou-se até o
povoado Lajeado. [...] Com a abertura da rodovia que liga Açailândia à cidade de Santa
Inês (BR-222), abriu-se novas frentes de trabalho que iam surgindo ao longo de suas
margens.

A ampliação da área urbana de Imperatriz, a partir da década de 1970, incentivou


vários setores da economia, como a construção civil, fábricas de cerâmica, indústria
madeireira, comércio varejista e atacadista e de prestação de serviços. Enquanto a abertura
de estradas continuava, como a transamazônica e a BR-222, a grande quantidade de terras
devolutas foi o fator que mais atraiu os migrantes. Em conjunto, foram esses
acontecimentos que a destacaram de todos os outros municípios e a colocaram em situação
política, social e econômica favorável em nível local e regional.
Nesse período, além de trabalhadores braçais de outras localidades do Maranhão,
migravam para a região também pessoas vindas do Piauí, Ceará, Pernambuco e Goiás. Na
década de 1970, Imperatriz crescia 10,5% ao ano, apresentando o segundo maior índice de
crescimento do país no período (FRANKLIN, 2008, p. 143). Contudo, o agravamento
desses problemas não prejudicou o desenvolvimento urbano. Agora com o status de
segunda maior cidade do Estado, a urbanização, as migrações e o fluxo comercial se
5

tornaram realidades duradouras em seu cotidiano. Segundo Coutinho (1994, p. 228),


Imperatriz possuía um dos maiores fluxos migratórios do Brasil, “atingindo o percentual de
10%”.
A década de 1980 ficou marcada pela intensificação de tensões sociais na cidade: via-
se ampliar os desajustes e a violência que se refletiam no cotidiano da sociedade e se
tornavam mais visíveis à medida que os meios de comunicação ganhavam espaço:
assassinatos, confrontos de gangues, assaltos, aumento dos casos de suicídios, depredação
de estabelecimentos comerciais, assaltos à mão armada, estupros, roubos, espancamentos,
homicídios e acidentes de trânsito cada vez mais freqüentes.
Nesse cenário, a pistolagem tornou-se prática comum e generalizada. A esse respeito,
Livaldo Fregona (1998, p. 54), cita um anônimo que relata: “Nesse tempo, os pistoleiros
eram os homens mais respeitados na cidade. A polícia jamais ‘bulia’ com eles. Aliás, era
tida como guarda-costas dos pistoleiros.” Esse fenômeno também perpassava a zona rural,
assim como as lutas pela terra. Tentativas de intervenção nesses conflitos por parte de
setores ligados à Igreja Católica, em prol de uma política agrária mais justa, resultaram no
assassinato de clérigos ligados à questão, dentre os quais o mais conhecido foi padre
Josimo Tavares, morto em 10 de maio de 1986.
O fechamento do garimpo de Serra Pelada,5 no Pará, também repercutiu em
Imperatriz, de onde provinham muitos garimpeiros. À iminência de fechamento, a
exasperação tomava conta dos que lutavam contra essa possibilidade; por isso havia motins,
conflitos armados, tiroteios, invasões em delegacias e sindicatos, até que a decisão oficial
de manter o garimpo aberto fosse tomada. Entretanto, a escassez de ouro tornou inelutável
seu fechamento definitivo, no início da década de 1990, tornando mais freqüentes, após
esse episódio, roubos de carro, gado, homicídios e suicídios em Imperatriz.
Esses fatores, somados à corrupção generalizada no governo municipal, levou muitas
famílias a emigrarem de Imperatriz em direção a outros Estados. O censo da década de
1990 registra uma diminuição considerável da população imperatrizense pela primeira vez
desde os anos 40. Não afetou o comércio, nem a dinâmica da expansão urbana sobre o
campo, mas mostra a interferência de patologias de ordem político-social na demografia.
Lima (2008, p. 88) conclui que o crescimento econômico, demográfico e urbano de
Imperatriz, nessas décadas, está relacionado não apenas à posição geográfica privilegiada,
ou como simples resultado da construção de estradas federais, mas também a uma
estratégia política que objetivava mobilizar força-de-trabalho através do desenvolvimento
do capitalismo na região.
O alvo não era, primordialmente, o crescimento da cidade, mas a implantação de um
modelo econômico que ampliasse o fluxo de capital na parte oriental da Amazônia.
Imperatriz, nesse caso, seria o principal pólo regional, para onde afluiriam grandes levas de
trabalhadores rurais, ampliando os núcleos de concentração humana (mão-de-obra) na zona
urbana; entretanto, as políticas de ocupação da região, por não terem sido acompanhadas

5
Localizado no município de Curionópolis, no Sul do Estado do Pará. Antes era uma povoação da cidade
vizinha de Marabá, mas foi elevado à condição de município em 1988. O garimpo situa-se a
aproximadamente 330 Km de Imperatriz. Apesar da distância, impactou fortemente a dinâmica sócio-
econômica imperatrizense em toda a década de 1980.
6

pela melhoria da infra-estrutura, ampliaram os níveis de depauperamento, haja vista a


explosão demográfica da cidade em poucas décadas.
Esse processo estaria, portanto, relacionado a projetos estatais de criação de pontos
econômicos estratégicos ao longo da rodovia Belém-Brasília. Lima contesta o crescimento
urbano e econômico de Imperatriz como um dado natural, uma “vocação” de sua posição
geográfica e de uma economia ciclotímica, cuja linearidade trouxe progresso e
desenvolvimento regional, conforme enfatizado por alguns autores da própria cidade
(BARROS, 1996; COUTINHO, 1994), embora tenha trazido de forma deficiente. A intensa
migração do campo para a cidade após a abertura do garimpo de Serra Pelada teria
transferido amplos contingentes de mão-de-obra ao setor terciário da economia, o que de
fato influenciou Imperatriz a tornar-se um pólo econômico regional.
O mal-estar social causado pelos problemas supracitados é característico da
urbanização acelerada de sociedades periféricas, ao que se soma a incerteza e a crescente
insegurança diante da criminalidade, contra a qual não se vê controle; e quando na cidade
dos homens predomina a ausência de direitos sociais assegurados para todos, a busca pelo
reino de Deus (de justiça, igualdade, paz e fraternidade) se torna um elemento de forte
coesão identitária em alguns grupos. Torna-se fundamental ressaltar como o crescimento
demográfico refletiu no campo religioso, mudando sua fisionomia.
Pelo censo do IBGE, em 1940, Imperatriz possuía 9.331 habitantes. Os católicos
somavam 98,6 % do total, não havendo registros de protestantes declarados. Em 1950, a
população havia saltado para 14.064; 96,9% eram católicos e 1,3% eram protestantes.
Levando em conta que a AD chegou à cidade em 1952, não havia assembleianos
declarados.
O censo de 1960 apresenta 39.169 habitantes, dos quais 95,03% eram católicos e
4,3%, protestantes. Embora os cristãos não protestantes continuem na casa dos noventa por
cento, é possível inferir que sua redução é conseqüência direta do avanço ainda incipiente
do pentecostalismo. A década de 1970 foi o período em que Imperatriz mais cresceu
demograficamente, saltando de 80.827 habitantes para 220.095 em 1980, segundo o IBGE,
quase triplicando nesse período.
O censo de 1980 traz uma novidade em relação aos anteriores: a classificação do
protestantismo em “tradicional” e “pentecostal”. Por “tradicional” entende-se as igrejas
oriundas do movimento da Reforma, as protestantes históricas, como batistas (em
Imperatriz desde 1959), presbiterianos (desde 1960) e luteranos (desde 1974). A
denominação “Pentecostais” se originou do revival religioso nos Estados Unidos, no início
do século XX, que se diferencia dos tradicionais pela crença nos dons do Espírito e na
atualidade do Batismo com o Espírito Santo.
Em Imperatriz, o número de pentecostais era mais que o dobro de protestantes
históricos (tradicionais): os primeiros somavam 6,0% da população para 2,7% de
tradicionais. Os católicos eram 89,2%. Ainda assim, somados, os protestantes não
chegavam a 10% do total, alcançando essa cifra apenas na década seguinte.
O censo referente a 1990 mostra que os pentecostais (mantendo uma tendência da
década anterior) se distanciavam como segundo maior segmento religioso, chegando a
23.517 , numa população de 276.502 habitantes (8,5%). Os católicos eram 84,0%. Os
protestantes tradicionais, 2,8%, mantendo, proporcionalmente, praticamente o mesmo
7

percentual da década anterior. Os efeitos da urbanização também se evidenciam em


números. A população urbana era de 75,9% para 24,0% que viviam na zona rural.
Numa cidade como Imperatriz, onde o fluxo migratório é constante, a pluralidade
religiosa tende a ser mais expressiva. Em 1980, sua população era composta por 11% de
maranhenses, 22% de pessoas de outros Estados do Nordeste e 67% de pessoas de outras
regiões do país. (FREGONA, 1998, p. 97). A cidade se constituiu essencialmente como
fronteira, formando uma população heterogênea, cujo modo de viver e de pensar
influenciou na (re)constituição de sua identidade cultural.
Por outro lado, nesse contexto, a expansão demográfica e a ascensão dos meios de
comunicação influíram na pluralização de estilos de vida, o que propicia uma melhor
compreensão sobre a transformação cultural imperatrizense. Nesse sentido, os Estudos
Culturais fornecem um importante repertório teórico-metodológico, pois o sentido
antropológico de cultura, como modo de vida, se tornou comum no pós-guerra. Uma de
suas marcas principais está na ascensão dos meios de comunicação de massa e seu uso na
difusão de valores e símbolos culturais, num entrecruzamento de poderio econômico e
expansão cultural. O impacto das comunicações, da democracia e da indústria gerou, nas
palavras de Raymond Williams, uma “revolução cultural” (WILLIAMS, apud CEVASCO,
2003, p. 12).
Desse modo, é relevante a importância do televangelismo norte-americano na difusão
de religiões pentecostais, sobretudo a partir da década de 1980, tornando o Brasil um dos
países que mais foram influenciados por esse tipo de evangelização e, embora a AD tenha
demorado a adotá-la, terminou aderindo a ela.
A expansão da Assembleia de Deus também é resultado das migrações; esta cresceu
junto com a cidade e avançou em território católico, gestando uma identidade religiosa
pentecostal de forte caráter proselitista; essa característica, mais recentemente, tem sido
expressa por meio dos meios de comunicação, principal via usada pelo protestantismo
pentecostal em todo o país para promover sua “guerra santa” contra o catolicismo e outras
religiões, arrebanhando o maior número de conversos possível.
De acordo com Pierucci e Prandi (1996), é necessário compreender a religião como
mudança, ruptura e inovação, a fim de perceber o papel que esta exerce em um determinado
contexto social. No caso de pentecostalismo brasileiro, tal mudança aponta para a
redefinição de valores, adesão mais devotada a deus ou redescoberta de valores religiosos
em nova roupagem. Para os autores, as religiões se constroem a partir de empréstimos que
freqüentemente fazem umas das outras, além de, evidentemente, substituírem suas práticas
e simbologias e redefinirem sentidos.
Reportando-se a Procópio Camargo, Pierucci afirma que concepções religiosas como
o pentecostalismo crescem em momentos de modernização excludente, “promissora, mas
frustrante.” (p. 16). Nesse sentido, a religião supre uma lacuna deixada pelo mundo
profano, gerando a experiência da conversão, que não se limita apenas a uma atitude
religiosa, mas nasce de algo que lhe é exterior, ou seja, de um sentimento de dissociação
com o mundo profano.
Pierucci enfatiza que a religião não se traduz apenas em crença, mas em elementos
culturais multifacetados e criativos; manipulando símbolos também diversos, esta interage
com outros campos sociais pela redefinição que efetua de valores e identidades, que, no
caso da religiosidade pentecostal, valoriza a interioridade do próprio converso. Nesse caso,
8

este é colocado numa comunidade (congregação) de crentes onde, através do


compartilhamento de sentimentos comuns, passa a se sentir seguro das contingências do
que é externo ao grupo.
Desse modo, muitos grupos de pentecostais são formados por contingentes da
população deixados à margem pelos projetos de modernização e por sua religião de origem,
um catolicismo dessacralizado. Por isso, buscam distintas relações com o sagrado, refazem
seu deus e estabelecem novas comunidades religiosas nas quais essa relação com o sagrado
possa ser mais intensamente vivida. “Para essa enorme parcela da população (...) a religião
é de novo identidade, grupo, comunidade, amparo, auxílio, jeito de viver e lei (...). A cidade
profana e agnóstica é de novo tomada pelas criaturas de Deus, e do Diabo.” (PIERUCCI, In
PIERUCCI; PRANDI, 1996, p. 24-25)
Em relação à instituição aqui analisada, a IEADI, o indivíduo não encontra a plena
liberdade no ato de adesão (conversão) ao grupo pentecostal: encontra um conjunto de
princípios morais rígidos, que visam integrá-lo à doutrina, em detrimento de seus desejos e
necessidades subjetivas; o pregador tenta solapar estes últimos, demonizando-os,
freqüentemente lançando mão de ameaças de vergonhosa exposição pública daquele que
não agir de acordo com a doutrina. O fechamento identitário se consolida, ao deixar de
incentivar a agregação a outras comunidades fora do grupo de culto. O pentecostal vê a si
mesmo como portador da doutrina da salvação e seus maiores esforços são voltados para a
pregação, a conversão, o ato de “ganhar almas”.
Por isso, segundo Corten (1996, p. 212-213), o pentecostalismo traz a ambivalência
do igualitarismo e do autoritarismo. É igualitário porque produz um “efeito de devoção”
que une a comunidade religiosa e recusa entrincheirar-se como categoria exclusiva de uma
elite instruída. Por outro lado, “o despotismo dos costumes e intolerância conotam
autoritarismo”. Esse despotismo no que diz respeito à imposição de padrões estéticos e
regulação do comportamento do fiel é marcadamente mais visível no pentecostalismo de
primeira onda6, como é o caso da AD, e particularmente da IEADI.
Em 2000, Imperatriz contava com 230.451 habitantes, com 94,8% vivendo na zona
urbana. Quando foi fundada em 1952, a Assembléia de Deus possuía 16 membros. Em
1954 foi construído o primeiro templo na cidade. No ano seguinte, já havia 202 fiéis. No
período de 1952 a 2002, foram abertas 44 congregações. Nos dez anos seguintes, de 1992 a
2002, mais 48, obtendo crescimento em número de igrejas afiliadas de cerca de 110% em
dez anos. (ALVES, 2002, p. 59) Em meio século, cresceu cerca de 205.000% em número
de membros. (SANCHES, 2002, p. 43). O censo do IBGE de 2000 traz o número de
pessoas por cada denominação protestante. Segundo o censo, a Assembléia de Deus
contava 29.978 membros, o que equivalia a 13% da população da cidade. Embora não
ameaçasse a hegemonia católica, cujos fiéis contavam 70.3%, a AD possuía maior número
de fiéis do que todas as outras igrejas evangélicas somadas, que eram 19.836 (8.6% da

6
Segundo Freston (In ANTONIAZZI et al., 1994, pp. 70-71), o pentecostalismo brasileiro pode ser dividido
em três ondas de implantação: a primeira na década de 1910, com a chegada da Congregação Cristã no Brasil
(1910) e da Assembleia de Deus (1911); a segunda, nas décadas de 1950 e 1960, com o surgimento da Igreja
do Evangelho Quadrangular (1951), Igreja Brasil Para Cristo (1955) e Igreja Pentecostal Deus é Amor (1961);
a terceira onda ocorre nas décadas de 1970 e 1980, com o surgimento das chamadas igrejas neopentecostais:
Igreja Universal do Reino de Deus (1977) e Igreja Internacional da Graça de Deus (1980) e Igreja Apostólica
Renascer em Cristo (1986).
9

população). Nenhuma outra denominação, sozinha, contava com mais de dez mil
membros7. Em 2002, de acordo com a Enciclopédia de Imperatriz, a IEADI possuía cerca
de 35.000 fiéis (SANCHES, 2002, p. 43).
Na década de 1990 foi implantado um amplo projeto de evangelização de metas
ambiciosas, visando, sobretudo, ampliar substancialmente o número de pentecostais
assembleianos. O projeto denomina-se “década da colheita” e tem mobilizado todos os
departamentos e igrejas-satélite a fim de atingir seus objetivos. Este projeto foi lançado pela
CGADB, um plano de proselitismo religioso que mobilizou todas as convenções do país, o
que levou a instituição a afirmar, orgulhosamente que “O censo do IBGE de 2000 mostrou,
em comparação com último censo de 1991, o quando a AD cresceu nos últimos dez anos do
século 208”. Para alcançar os objetivos, é estabelecido um conjunto de metas que cada
departamento deve alcançar anualmente, atividades que deve realizar, assim como
quantidade de pessoas que deve converter.
No campo protestante, o pentecostalismo é a vertente que mais tende à fragmentação,
pela facilidade de fundar igrejas e pelo próprio caráter proselitista de seus seguidores. A
rápida expansão destas também facilita esse processo. Apesar disso, possui algumas
características comuns: crença no Espírito Santo como entidade presente nos cultos, na
glossolalia, prática de batizar apenas adultos, a conversão como rito de passagem para que
o não protestante seja aceito na comunidade, teologia milenarista, ascetismo puritano,
marcado por uma rígida moralidade em oposição aos valores da cultura profana, crença de
que as doenças são flagelos do mal, crença em Satanás e na prática do exorcismo. Seu
crescimento tem sido, em parte, facilitado pelo uso dos meios de comunicação.

3. Aspectos identitários do pentecostalismo assembleiano

Como muitas outras cidades brasileiras, Imperatriz nasce e se desenvolve sob a égide
religiosa. Como ressaltado, a partir da década de 1970 a alteração do espaço urbano, com
sua expansão, confere às relações sociais um caráter dessacralizado. O fluxo migratório, o
desenvolvimento de instituições sociais laicas e o incremento do comércio alteraram o
cotidiano e a percepção de mundo, matizando as crenças religiosas. A AD se insere nesse
contexto, conduzindo uma propaganda religiosa conversionista, formando uma identidade
pentecostal.
Não se trata aqui de uma identidade social dada, étnica ou familiar, mas adquirida por
meio de uma opção salvacionista. O estudo das identidades ganhou espaço no campo das
ciências sociais como resultado das mudanças históricas operadas nas últimas décadas. Tal
estudo tornou-se referencial de compreensão e explicação dessas transformações, marcadas
por complexa heterogeneidade social e culturas híbridas. Percebe-se uma fragmentação das
coesões sociais, outrora escamoteadas sob unidades territoriais, políticas e sócio-culturais.
7
O censo caracteriza como “Evangélicas de Missão” um grupo composto por Igreja Presbiteriana, Luterana,
Batista, Adventista do Sétimo Dia e outras, que juntas, somavam 11.592 fiéis (5.0% da população). Destas, a
maior era a Igreja Batista (tanto as de confissão tradicional como pentecostal), com 7.014 membros. O grupo
de pessoas que se declararam sem religião ficou em 15.169 (6.5%) (IBGE, censo 2000).
8
Disponível em http://cgadb.org.br/home/index.php?option=com_content&task=view&id=13&Itemid=27
Acesso em 28/03/2009
10

Esse processo é composto de constantes empréstimos, feitos pelos intercâmbios entre os


grupos. Do ponto de vista da historiografia, estudos que enfocam o desempenho e as ações
subjetivas dos atores sociais, como é o caso de adesões religiosas, têm auxiliado na
compreensão de fragmentos da realidade sócio-cultural pouco explorada até a década de
1970.
Nesse contexto, podemos inserir o pentecostalismo como uma das trocas culturais que
mais têm penetrado na sociedade brasileira. Embora tenha sido trazido dos Estados Unidos,
ele não é apenas uma cópia do modelo norte-americano, mas foi moldado de acordo com as
características dos grupos, que no Brasil, o vem aceitando. É dessa forma que essa
religiosidade torna-se novamente identidade.
Por isso, ao converter-se à Assembleia de Deus, o indivíduo está aderindo de forma
“vigorosa e militante a uma ordem de valores” (VELHO, 1994, p. 98); é uma escolha feita
em contexto marcado pela “coexistência, mais ou menos tensa, entre diferentes
configurações de valores (...) na sociedade moderna” (idem). A dessacralização do espaço
rural, incorporado ao urbano, e do catolicismo como religião hegemônica, engendra a
necessidade de emoção na comunidade de culto (CORTEN, 1996).
Ao converter-se, o indivíduo passa por um processo de interiorização de conceitos e
valores religiosos conhecidos como “discipulado”. Segue-se o batismo nas águas, um rito
de passagem que representa a transição de uma vida marcada pelo “pecado” para outra
caracterizada pela “santidade”, rito que simboliza o renascimento. Por isso, a identidade é
aqui entendida como um discurso que legitima a noção de pertencimento e produz um
corpo de valores e práticas internas ao grupo.
Hall (2007, p. 109) avalia as mudanças que produzem as relações identitárias como
resultado do processo de fragmentação do sujeito pós-moderno, composto de várias
identidades, amiúde contraditórias. Como consequência do colapso de referenciais
“objetivos” de cultura, que no passado norteava a vivência dos grupos, esse sujeito torna-se,
assim, problemático, instável, provisório. Isso torna a identidade uma “celebração móvel”
não é dada, não é atávica, mas construída e reconstruída historicamente. É móvel, pois não
é estável, é transformada de acordo com as vicissitudes da história.

É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do discurso que
nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais
específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e
iniciativas específicas. Além disso, elas emergem no interior do jogo de modalidades
específicas de poder e são, assim, mais o produto da marcação da diferença e da
exclusão do que o signo de uma unidade idêntica [...], isto é, [...] uma mesmidade que
tudo inclui, uma identidade sem costuras, inteiriça, sem diferenciação interna.

Hall enfatiza que, longe de serem discursos neutros, as identidades estão em constante
competição; por isso, atuam num “jogo de modalidades específicas de poder”, pois estão
inseridas em contextos específicos de contradição e conflito. Assim, há a necessidade de
estarem constantemente reelaborando suas estratégias de competição, o que ocorre tanto no
âmbito do discurso como das práticas que adotam.
No caso do avanço da Assembleia de Deus, é importante compreender tal fenômeno
no contexto da modernização latino-americana, que ocorreu em sentido diferente ao vivido
11

na Europa. Nas cidades e metrópoles brasileiras, por exemplo, os efeitos da modernização


se fizeram sentir de forma diferenciada, em que convivem quadros históricos em diferentes
temporalidades (heterogeneidade multitemporal), e cuja história, incluindo o campo
religioso, é marcada pela hibridação. Para Canclini (2006), a hibridação consiste em
relações de interação entre processos socioculturais, dos quais resultam novas práticas e
estruturas. Essa dinamização das constituições identitárias permite-nos afirmar que elas não
podem ser estanques, fixas, imóveis. Por isso, o encontro, o confronto e o diálogo são
elementos constituintes de sua formação.
No caso de Imperatriz, o rápido crescimento da cidade conduziu à pluralidade
religiosa e a novas formas de vivenciar a religião. O pentecostalismo assembleiano, por ser
um fenômeno essencialmente urbano, integrou-se nesse processo, oferecendo uma
alternativa cultural religiosa à desorientação provocada pela alteração do modo de vida
tradicional das comunidades que habitavam a região tocantina. Este incluía reconfiguração
do espaço geográfico, dissolução de antigos laços de convivência, surgimento de novos
conflitos e alteração dos modos de sobrevivência através da modernização econômica, da
qual amplos contingentes da população ficaram excluídos.
A reconstituição identitária resultante da adesão à nova fé está relacionada à oferta de
bens simbólicos e de salvação oferecidas pela instituição. A identidade pentecostal não é
homogênea, mas mescla-se com elementos culturais da sociedade onde atua. É assim, por
exemplo, que Freston (In Antoniazzi et al, 1994, p. 67 e seq.) mostra que a AD herdou
muito da estrutura de poder oligárquico das sociedades do Norte e Nordeste do início do
século XX, o que foi relevante na formação e consolidação de sua estrutura interna de
poder, centralizada e de traços marcadamente coronelistas.
Este é um exemplo da interação de processos socioculturais de que fala Canclini no
comentário acima. Por outro lado, o pentecostalismo assembleiano utiliza instrumentos da
modernidade (a imprensa9, os meios de comunicação de massa) para combater concepções
e valores da modernidade (o relativismo, o ateísmo, o evolucionismo, etc.), num exemplo
de confronto e diálogo com a cultura secular. É uma identidade que objetiva oferecer aos
indivíduos a segurança de estar na posse da salvação, de fazer parte de uma comunidade de
fiéis que caminha em direção à vida eterna.
Um importante elemento nesse tipo de religiosidade é a conversão. A conversão é
tanto o ato de adesão à nova fé, como também uma guinada de reordenação da
personalidade. Nesse momento simbólico de “encontro pessoal com Deus”, o indivíduo
encontra o suporte motivacional de reestruturação do “eu” que não alcançou fora do âmbito
religioso. Essa reconstituição identitária é possível porque, na pregação religiosa, a
conversão tem a força de negar e abolir o passado, por meio do gesto do arrependimento e
da internalização do conceito de redenção. E tudo ocorre dentro de uma esfera discursiva. O
poder de convencimento do pregador pauta-se, sobretudo, na sua capacidade de apelo ao
emocional. O proselitismo é a razão maior de ser da pregação; o discurso é então
9
Em abril de 2001, a IEADI também comprou uma rádio, a Cidade Esperança, que alcança os Estados do
Maranhão, Tocantins e Pará, podendo ter um público ouvinte de até 60.000 pessoas por dia. (ALVES, 2002,
p. 156) Um ano depois, montou sua própria emissora de televisão, a TV Cidade Esperança, canal 14, com o
apoio do então senador e ex-governador do Estado, Edson Lobão. A TV, além de transmitir programas locais,
retransmite programações da Rede Boas Novas, também da Assembléia de Deus, em Manaus-AM
(IEADAM).
12

canalizado no sentido de induzir o indivíduo a acreditar-se como pecador carente da


misericórdia do Deus, sem a qual ele não poderá superar os entraves para seu êxito
existencial. A comunidade religiosa passa então a ser o lugar principal de sua convivência
social e o meio pelo qual ele irá internalizar os dogmas da nova fé; ele então “renuncia à
sua autonomia para fundir-se no grupo” (CORTEN, 1996, p. 172).
Converter-se é, acima de tudo, mudar de religião. Por isso, um protestante que muda
de denominação não precisa converter-se novamente, pois, mesmo se sair de uma igreja
protestante tradicional para uma pentecostal, são instituições que possuem virtualmente os
mesmos referenciais simbólicos de sentido à vida; no caso do catolicismo é diferente,
embora catolicismo e protestantismo pertençam à mesma origem – o Cristianismo – o
segundo está em lado oposto ao primeiro na pregação religiosa. Ou seja, adotam discursos
diferentes, em alguns temas até antagônicos, em relação ao comportamento cristão. Por
isso, o indivíduo que deixa o catolicismo para uma igreja protestante não pode filiar-se a
esta sem que adote uma mudança de visão de mundo e de comportamento considerados
aceitáveis pelo novo grupo. Mudança radical de negação do passado e aceitação do novo
credo simbolizada pelo gesto de “aceitar a Jesus”. Esse “novo nascimento” passa então a
ser a adesão à nova vida comunitária, o atendimento a um chamado, ou seja, uma
interpelação “na qual se reconhece e então se converte” (PIERUCCI, 2006, p. 122).
Segundo Pierucci (2006, p. 115), a conversão confere ao indivíduo um novo status no
interior do campo religioso: ao sair de uma religião de origem para uma religião de escolha,
ocorre uma mobilidade de uma condição adscrita para uma condição adquirida. Desse
modo, uma das características do pentecostalismo é levar as pessoas a romperem com seu
passado religioso. Por ser uma religião de salvação individual, ela se reproduz, segundo o
autor (p. 122), pela “via extrativa: extrai sistematicamente os membros das outras
coletividades”. Ou seja, promove um desmembramento de coletividades antes constituídas,
um rompimento de relações sociais que o indivíduo herdou para agrupá-las em uma nova
comunidade cujos laços que as ligam são exclusivamente religiosos.
Nesse contexto, a inserção da AD em Imperatriz levou milhares de pessoas a
reordenarem sua conduta a partir de um discurso proselitista e fundamentalista10, tendência,
afirmada como pós-moderna, de responder a uma crise na modernidade, de um projeto da
modernidade. O pentecostalismo representa uma alternativa cultural a esse contexto, uma
alternativa à “experiência angustiante da dúvida radical11”. Se, por um lado, a chamada
“pós-modernidade” não é um rompimento total com a modernidade, por outro, sabe-se que
o atual contexto é marcado pela crise da autoridade da ciência, do otimismo com relação ao
progresso e das narrativas globalizantes (metarrativas). Em suma, “a pós-modernidade
configura-se como uma reação cultural, representa uma ampla perda de confiança no

10
O fundamentalismo é uma postura religiosa que surgiu na segunda metade do século XIX nos Estados
Unidos, como reação à teologia liberal, ao darwinismo e às religiões comparadas. Em contraposição a esses
princípios afirma a literalidade da Bíblia, sua infalibilidade e inerrância, o nascimento virginal de Jesus
Cristo, sua ressurreição e a autenticidade de todos os milagres que teria realizado, descritos nos Evangelhos.
(AZEVEDO, 1999, p. 205). O fundamentalismo é uma invenção da modernidade e está relacionado aos
embates teológicos gestados na era moderna. A Assembleia de Deus absorveu, em sua totalidade, os
princípios dessa doutrina.
11
CHEVITARESE, L. As “Razões” da Pós-Modernidade. Análogos. Anais da I SAF-PUC-RJ. Disponível
em: <http://www.saude.inf.br/filosofia/posmodernidade.pdf >. Acesso em 13/05/2009.
13

potencial universal do projeto iluminista12”. Nesse contexto, o próprio exercício da


liberdade, em muitos países marcada por ampla permissividade, torna-se, segundo
Chevitarese, culturalmente assustadora para muitas pessoas, cuja capacidade de decidir
torna-se confusa diante da possibilidade virtual de “poder tudo”, tão angustiante quanto
“não poder nada”.
E o fundamentalismo é uma resposta a isso; mostra-se como uma alternativa à
insegurança e à própria reflexividade. No caso da sociedade brasileira, a expansão desse
modelo de religiosidade, aqui caracterizando a Assembleia de Deus, não representa um
retorno ao sagrado, mas uma nova forma de vivenciá-lo a partir do que Corten (2006)
chamou de “insurreição emocional dos pobres”, uma opção a um processo de modernização
excludente, mediante a invenção de novos laços de solidariedade e comunidade.
Foi analisado como a fronteira se caracteriza como lugar de conflito e, no caso de
Imperatriz, não se trata apenas de uma fronteira geográfica, mas também cultural. Esta se
caracteriza por ser o lugar “onde algo começa a se fazer presente” (BHABHA, 1998, p. 24),
o lugar do hibridismo, do encontro de identidades. Na fronteira cultural há a circulação e
coexistência de vários estilos de vida, conduzindo os grupos a matizarem suas formas de
lidar com as ambigüidades advindas dessa heterogeneidade, criando estratégias de
resistência e competição entre si.
O conceito de fronteira cultural de Bhabha é aqui adotado para enfatizar Imperatriz
como lugar do encontro de modos de vida e percepção de mundo diferente, de grupos
procedentes de todas as regiões do Brasil, que influíram na formação de uma cultura
híbrida, embora excludente e conflituosa. Os aspectos da modernização que de forma
claudicante chegaram à cidade de Imperatriz como consequência das migrações alteraram
as configurações sócio-culturais no campo e na cidade, conduzindo a uma relação tensa
entre os grupos. Por isso, no caso do presente artigo, trata-se de investigar como, nesse
contexto de transformações, a IEADI demarcou fronteiras e elaborou discursos que
ganharam a adesão de dezenas de milhares de pessoas, elementos importantes para
compreensão tanto do êxito de seu crescimento na cidade, como na América Latina como
um todo.
Castells (2000) diferencia três tipos de identidade: a legitimadora (relacionada às
instituições dominantes), a de resistência (vivenciada por grupos vitimados pela
discriminação social) e as de projeto (na qual os grupos redefinem sua posição social a
partir de materiais culturais de que dispõem). Podemos, portanto, situar a Assembléia e o
pentecostalismo por ela professado como identidade de projeto, embora, como veremos,
também apresente elementos de uma identidade legitimadora.
Segundo Gilberto Velho (1994), o projeto enquanto elemento de constituição
identitária é um instrumento de negociação da realidade com a alteridade, uma vez que não
pode prescindir de sua existência, pois é condicionado por ela. Paralelamente, a identidade
também possui caráter relacional, ou seja, se define por algo que lhe é exterior, diferente e
que por isso lhe fornece as condições para sua existência (WOODWARD, in SILVA, 2000,
p. 09). Por isso estão sempre em processo interativo, mesmo quando negam a alteridade.
Há negação porque o pentecostalismo assembleiano é uma forma de identidade que
busca unificar o sujeito, transmitindo-lhe, para isso, um habitus, isto é, um “sistema de

12
Idem.
14

estruturas interiorizadas”, que não devem ser entendidas como produto de obediência aos
dogmas, mas como mecanismo de regulação do comportamento individual e coletivo dos
fiéis, sua “matriz de percepção do mundo”, via das quais suas práticas são estruturadas e
suas experiências são vividas no interior da comunidade de culto (MICELI, in
BOURDIEU, 2007).
Trata-se, aqui, não de um habitus interiorizado pela educação familiar (no caso dos
que não nasceram como assembleianos), mas reformulado e atualizado pela trajetória social
dos indivíduos, nesse caso, pela experiência da conversão e constante (re)aprendizado do
dogma. Para Bourdieu (2007, p. 57), as instituições religiosas

Podem lançar mão do capital religioso na concorrência pelo monopólio da gestão dos
bens de salvação e do exercício legítimo do poder religioso enquanto poder de
modificar em bases duradouras as representações e as práticas dos leigos, inculcando-
lhes um habitus religioso, princípio gerador de todos os pensamentos, percepções e
ações, segundo as normas de uma representação religiosa do mundo natural e
sobrenatural, ou seja, objetivamente ajustados aos princípios de uma visão política do
mundo social. [grifos do autor]

Por isso, é importante demarcar território, adquirir meios de comunicação, adotar


estratégias rápidas e eficazes de divulgação, apelar ao emocional, zelar por uma conduta
social diferenciada de outras religiões e, no caso da IEADI, usar roupas conforme as
determinações e padrões estéticos apontados pela liderança. Como sistemas simbólicos de
bens religiosos, para essas agências, é imprescindível a ascensão no interior da “estrutura
das relações de força simbólica” (idem, p. 43), pois poderá assim colocar-se como fé
verdadeira e as demais como heresias.
Construir templos é uma das formas de demarcar território. A IEADI possui o
segundo maior templo dessa denominação na América Latina13. Sua construção foi iniciada
em 1986 e concluída treze anos depois. O terreno, comprado pelo valor de Cr$
417.000.000,00 , pago à vista; foi possível graças às doações feitas pelos membros que
haviam sido conclamados para isso, segundo Alves (2002, p. 228):

Proclamou-se a todo o povo de Deus que se preparasse com ofertas ou donativos em


amor, rumo a um grande empreendimento de construção [...], fato que constituiria logo
no início o maior desafio já enfrentado pela AD em Imperatriz. [No Natal de 1985]
estavam depositados não apenas o valor do terreno, mas o suficiente para adquirir
também muitas sacas de cimento. Vale ressaltar que entre as ofertas e doações estavam
incluídos instrumentos musicais, anéis de formatura, bicicletas e outros objetos de
valor.

Além das doações, após a oração de lançamento da pedra fundamental feita pelo
pastor, os fiéis realizaram ainda mutirões com mais de 300 pessoas para limpar o terreno.
Também foram organizados para ajudar na construção do Templo aos sábados e domingos,
o que teve duração de aproximadamente cinco anos. Os que foram contratados para
trabalhar regularmente somavam cerca de 60, entre pedreiros, ajudantes e carpinteiros

13
O primeiro encontra-se em Cuiabá-MT.
15

(ALVES, 2002, p. 229). A obra, que “consumiu cerca de 13 mil sacas de cimento e
aproximadamente 200 toneladas de ferro, abrangendo uma construção de 4.620 Km2 de
uma área total de 6.000 Km2” (p. 230), com capacidade para aglomeração para mais de
12.000 pessoas assentadas, foi concluída em dezembro de 1999.
A construção de uma obra de tais proporções, a ênfase na capacidade de mobilização
dos membros, no sentido de mantê-los dispostos e entusiasmados, é não apenas um fator de
crescimento vegetativo, mas, também, de poder, sobretudo simbólico. Para Bourdieu
(2000), o poder simbólico engendra um modo homogêneo de entender o tempo, de modo a
possibilitar a concordância entre o grupo e se fundamenta na cumplicidade dos que a ele
estão sujeitos e dos que o exercem.
Segundo Bourdieu, esse poder se constitui por seu efeito de mobilização e se exerce
no interior do campo onde a crença é produzida e reproduzida, no qual as relações de força
são escamoteadas pelas relações de sentido, pela capacidade de “fazer ver e fazer crer”,
direcionando, dessa forma, a ação e a visão da coletividade sobre o mundo. Por isso, há
uma luta simbólica entre os grupos para imporem (validarem) uma definição do mundo
social conforme seus interesses.
Nesse sentido, os sistemas simbólicos se diferenciam pela forma em que são
produzidos e apropriados pelo grupo e refletem a estrutura organizacional de uma
sociedade; eles legitimam uma forma de dominação e se reproduzem de forma
irreconhecível; por isso, se trata de um poder subordinado, ou seja, existe porque há outras
formas de poder que o legitimam e o tornam irreconhecível. O poder simbólico se constitui
em poder de construção da realidade, gerando um sentido para o mundo e, por extensão, o
mundo social.
O campo de poder pentecostal atua no sentido de mobilizar os indivíduos à luta pelo
monopólio do poder, nesse caso, religioso, à disputa pela autoridade em sujeitar e
disciplinar os “pecadores”, oferecendo-lhes a salvação e levando-os a aceitarem e seguirem
um corpo de doutrinas (dogmas), a partir dos quais sua vida será (re)direcionada. É um
campo que busca atrair a “clientela” das religiões concorrentes e demarcar um território de
atuação e manifestação próprio.
Nesse caso, número (quantidade de féis) se revela como poder de capacidade
agregadora, templos demarcam território de influência e unidade (como, por exemplo,
mutirões de limpeza, doações vultosas, dedicação em atividades promovidas pela igreja)
delimitam transubstanciação de relações de força em poder simbólico, legitimando a
autoridade exercida pelo discurso dos pregadores. A crença na legitimidade das palavras é o
alicerce sobre o qual se apóia o poder simbólico. Por isso também engendra uma identidade
em torno da qual gravitam as relações de força no interior da instituição e por meio da qual
os membros norteiam sua prática social.
Antoniazzi (et. al., 1996, p. 18) chega mesmo a qualificar o pentecostalismo como
agressivo, dadas as suas formas de propagação e de lidar com outros credos, adjetivo
assumido pela própria igreja: “A evangelização agressiva, ao estilo apostólico, é necessária.
Esse princípio foi praticado, na íntegra pelos pioneiros14”.
Segundo Weber (1974, p. 176), as religiões de salvação, que se caracterizam pelas
promessas de libertação do sofrimento aos seus fiéis por meio da inculcação de hábitos que

14
Disponível em http://igrejaassembleiadedeus.org/futuro_da_ad.htm Acesso em 18/11/2008
16

garantam a salvação, vivem em estado constante de tensão com o mundo. Seu caráter
soteriológico e congregacional, possibilitou a formação de uma elite sacerdotal que, no caso
de instituições cristãs como a AD, reivindicam para si a autoridade de pastorear o rebanho
de Deus e zelar por seu comportamento e espiritualidade.
Certamente alguns aspectos da modernidade se apresentam como grandes problemas
aos pentecostais, tais como: ecumenismo, divórcio, homossexualismo e casamento gay,
aborto, eutanásia, secularismo, humanismo, ateísmo, feminismo, contestação do modelo
patriarcal de organização familiar, etc. Todos eles são fortemente combatidos pela retórica
assembleiana. Fora da comunidade de culto, o mundo pertence ao demônio.15 Por isso é
necessário, na pregação pentecostal, atuar nele em santificação e testemunho, a fim de
torná-lo evangélico. Disseminar a pregação também é uma forma de apressar o retorno de
Cristo. Ao ver-se como portadora da mensagem da salvação, sem a qual o restante
encontra-se perdido, a Assembléia de Deus nega a alteridade, a pluralidade e a diferença.
Nesse sentido se evidencia pelo fechamento identitário, isto é, pela resistência em dialogar
com outras religiosidades, embora reconheça que não deve olvidar completamente de
outras igrejas protestantes.
A rejeição ao diálogo inter-religioso se materializa pela própria rejeição à
modernidade e como reação à hibridação, à heterogeneidade, à desterritorialização dos
costumes e à diluição dos laços de lealdades nacionais; por isso há reativação, no interior
do grupo, de laços comunitários e de pertencimento. Por isso, também, pode-se falar em
identidade: há um discurso, um modo de viver, uma visão de mundo, que, mesmo não
sendo evidentemente homogênea, busca dar unidade a esse grupo e norteia o cotidiano de
dezenas de milhares de fiéis.
Mariano (2005, p. 116) enfatiza que essa atitude dos pentecostais de estar na posse
exclusiva da salvação consiste em uma forma de afirmar-se e defender sua identidade
religiosa. Tais atitudes os impedem de relativizar sua visão religiosa, uma vez que o caráter
absoluto da doutrina foi o que os levou a reordenarem sua personalidade e recompor sua
integridade psíquica, ao mesmo tempo que lhes deixaram alheios às formulações teológicas
que os conduziu até ali. Por isso, para eles, “a relativização de sua fé representaria o perigo
de retorno à dolorosa experiência pré-conversão, quando os referenciais de sentido, as
regras e normas de conduta encontravam-se subjetivamente em frangalhos”. Por isso,
também a negação da alteridade é uma forma de desqualificá-los como possuidores dos
bens de salvação. Para tanto, retiram-lhes a legitimidade bíblica, o que, nessa visão

15
O mesmo princípio não se aplica às igrejas neopentecostais, que se diferenciam das pentecostais por
afirmarem o mundo e possuírem um código moral de ajustamento aos padrões sociais seculares. Também se
caracterizam pela exacerbação do maniqueísmo, manifestado na sua guerra santa contra o Diabo, o que
justifica sua atitude belicosa para com as religiões afro-brasileiras, também pela ênfase maior dada à teologia
da prosperidade, movimento surgido nos Estados Unidos com o nome de prosperity gospel ou the health-and-
wealth gospel . As mais conhecidas nacionalmente são Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), Igreja
Internacional da Graça de Deus e Igreja Renascer em Cristo. Mais recentemente, tem se destacado o
crescimento vertiginoso da Igreja Mundial do Poder de Deus, fundada por um bispo dissidente da IURD. As
duas primeiras foram as principais responsáveis pela popularização da Teologia da Prosperidade entre as
classes baixa e média (FRESTON, 1994, p. 146). Elas romperam, portanto, com a rigidez legalista do
pentecostalismo clássico e introduziram elementos de afirmação e positivação do mundo, enfatizando menos
o ideal de salvação no além. Em Imperatriz, muitas denominações protestantes adotam a teologia da
prosperidade e romperam com o ascetismo legalista da Assembléia de Deus.
17

religiosa, representa uma espécie de excomunhão da alteridade no compartilhamento da


simbologia salvacionaista.
Esse fenômeno também está relacionado ao ethos religioso vivenciado ainda por
algumas convenções da AD, como é o caso da IEADI. Nela, a conduta não se limita apenas
ao espaço sagrado do templo, mas também aos espaços da vida social, sendo caracterizada
pelo rigorismo legalista, elemento ainda visto pela instituição como indicador do verdadeiro
crente, sinal inequívoco de exteriorização de santidade, por ela entendidos pelos termos
“usos e costumes”.
Os “usos e costumes” são um conjunto de restrições impostas aos fiéis no tocante ao
uso do vestuário, de produtos de beleza, bijuterias, corte de cabelo e tabus comportamentais
adotados pelo grupo religioso. Vários ministérios da AD romperam com os padrões
estabelecidos pela CGADB (como Madureira, Betesta, entre outros). Na IEADI, há certa
pressão interna no sentido de reivindicação de maior liberalização dos costumes, o que
naturalmente tende a crescer à medida que aumenta o nível educacional de seus membros,
sobretudo jovens; o não atendimento dessas reivindicações por parte da liderança da
instituição tem causado a saída de muitos jovens para outras denominações.
Os usos e costumes transcritos a seguir não são seguidos em sua totalidade até mesmo
por convenções ligadas à CGADB em grandes centros urbanos, onde a dinâmica das
mudanças sócio culturais, aliada a uma economia industrial, afetou também os modos de
vestir-se e comportar-se entre os pentecostais; nessas grandes cidades, estes já não são mais
conhecidos pelo estereótipo de gente recatada, que nega os prazeres do mundo, haja vista as
grandes alterações imprimidas em seu meio pelas denominações neopentecostais,
mundanizando suas condutas e incentivando-os a enriquecerem, deixando de lado o ideal
de salvação no além, a fim de vivenciarem um pedacinho do céu na terra. No entanto, a
liderança da igreja em Imperatriz ainda resiste e a instituição ainda segue à risca a maior
parte dessas determinações. Antes de cada item, leia-se o termo “é proibido”:

1. Ter os homens cabelos compridos (1 Co 11.14), bem como fazer cortes


extravagantes;
2. As mulheres usarem roupas que são peculiares aos homens e vestimentas indecentes
e indecorosas, ou sem modéstias (1 Tm 2.9,10);
3. Uso exagerado de pintura e maquiagem – unhas, tatuagens e cabelos – (Lv. 19.28; 2
Rs 9.30);
4. Uso de cabelos curtos em detrimento da recomendação bíblica (1 Co 11.6,15);
5. Mal uso dos meios de comunicação: televisão, internet, rádio, telefone (1 Co 6.12; Fp
4.8);
6. Uso de bebidas alcoólicas e embriagantes (PV 20.1; 26.31; 1 Co 6.10; Ef 5.15)16.

Essas determinações foram ratificadas na Convenção Geral de 1999, porque já


haviam sido criadas na Convenção de 1975. É importante entender esses costumes na sua
dupla origem. Na tentativa de alcançar a santidade pela rejeição aos padrões da sociedade
secular, negando a promiscuidade, a exposição do corpo seminu e a sensualidade, e também
pelos padrões de comportamento da sociedade nórdica européia, de onde vieram os
fundadores da AD e onde, além da santidade, possivelmente o clima frio tenha influenciado
16
Disponível em http://igrejaassembleiadedeus.org/nossos_costumes.htm Acesso em 18/11/2008
18

no uso de roupas que cobriam todo o corpo, costume que também passou a ser adotado no
Brasil. No que diz respeito ao não uso de jóias por parte das mulheres, Almeida (2007, p.
70) enfatiza que este aspecto está relacionado à iniciativa do Estado sueco de melhorar sua
capacidade bélica no conflito contra a França no século XIX, e que por isso “confiscou todo
o ouro, prata e jóias em geral que seus cidadãos possuíam para a compra de armas, sendo
que, essa proibição se prolongou por um período de aproximadamente cem anos. Desta
maneira a aparência das mulheres brasileiras deveria ser semelhante a das mulheres
suecas”.
O padrão estético de seus usos e costumes é simultaneamente rígido e simbólico: se as
mulheres não usam minissaia ou calça comprida, os homens usam preferencialmente roupa
social, camisa de manga comprida e gravata, em todas as faixas etárias, o que, segundo
Camargo (apud MARIANO, 2005, p. 195-196) traz a ambivalência da rejeição ao mundo e
de sua afirmação, na medida em que a imposição legalista de um modelo de vestuário
renega a pluralidade de estilos da sociedade e simboliza “aspirações de ascensão social”,
uma vez que o padrão aceitável de vestuário masculino na IEADI

nada mais é que o uniforme de graduados funcionários de escritório, executivos,


empresários e políticos, todos eles agentes bem-sucedidos das sociedades capitalistas.
[...] Tal comportamento distintivo, além de simbolizar desejo de ascensão social, visa a
construir uma imagem de dignidade e respeitabilidade, algo de difícil acesso aos
estratos mais pobres.

Por isso, o bancário, o executivo e o empreendedor, símbolos humanos de


prosperidade, são louvados no discurso assembleiano. Todavia, a dissensão no tocante ao
legalismo tem levado muitos fiéis a deixarem a instituição para filiarem-se a igrejas mais
liberais, o que tem levado alguns setores a pensar, embora de forma hesitante, uma maior
flexibilização dos usos e costumes. Entretanto, isso parece não preocupar, pelo menos por
enquanto, a liderança nacional da instituição. Em um trecho do estatuto, os autores
enfatizam que não precisam imitar outras igrejas porque a AD surgiu antes delas. O orgulho
de ser uma das primeiras pentecostais reforça seu caráter e o tom de superioridade por
possuir maior número de membros. Considerando os próprios usos e costumes como marca
indelével de santidade e da verdadeira doutrina, a igreja prefere manter o perfil conservador
em matéria de estética e opta por não aliar-se a nenhuma outra denominação protestante.
Essa atitude visa conservar sua identidade como igreja pentecostal clássica, cujos critérios
de pertencimento se definem pela ortodoxia, negação da diferença e oposição a tudo o que é
entendido por mundanismo e secularismo.

Não é necessário copiar. Nós somos pentecostais clássicos. Isso significa que somos
modelo para os outros. São eles, portanto, que devem aprender com as Assembléias de
Deus e não nós com eles, em matéria de doutrina pentecostal. É muita falta de bom
senso e de respeito para com nossa denominação copiar de grupos neopentecostais, que
sequer sabemos quem são, nem de onde vêm e nem para onde vão. Com a avalanche de
igrejas neopentecostais, liturgias e crenças para todos os gostos têm levado alguns de
nossos líderes a se fascinarem por esses movimentos, imitando e copiando seu sistema
litúrgico. Ora, quem pertence à nossa igreja não está enganado, são crentes que sabem o
que querem, que conhecem nossa doutrina, tradição, usos e costumes e com a nossa
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forma de adoração. (...) As tentativas de mudança são sempre um fiasco, porque quem
não gosta da nossa maneira de cultuar a Deus, já foi embora para outras denominações.
Por que imitar e copiar outros movimentos? (...) Quem procura imitar esses
movimentos não se identifica com a nossa denominação e nem com a deles. Imitação é
sempre imitação. Não conquista os pecadores para Cristo, pois não tem público alvo
definido. Não conquista outro público porque essas pessoas já conhecem a Assembléia
de Deus. Por mais que se queira provar que são outros costumes, que as coisas
mudaram, não persuade as pessoas, porque as marcas das Assembléia de Deus são
muito fortes. (CPAD, 2004, p. 583-584)

O texto acima rechaça o crescimento das igrejas neopentecostais, nega a sua


legitimidade como igrejas cristãs, retirando-lhes a capacidade de “salvar os pecadores” e
afirma a superioridade da tradição assembleiana sobre as igrejas que surgiram depois.
Nesse sentido, outorga para si mesma o monopólio dos bens de salvação, mantidos sob a
égide da tradição, entendida como bom senso dos que não se deixaram enganar.
O controle rigoroso do corpo é uma atitude que perpassa toda a trajetória do
Cristianismo, diferenciando-se segundo a época e a instituição. Por isso, no protestantismo
pentecostal de primeira onda, a condenação aos pecados da carne é feita de forma mais
impetuosa. O carnaval, por exemplo, é visto como uma das expressões máximas de sua
manifestação. Nesse período, diferentemente das igrejas protestantes históricas, que fazem
retiros espirituais, os pentecostais permanecem na cidade, evangelizando mesmo na própria
festa carnavalesca, corpo a corpo, distribuindo folhetos e fazendo convites.
Reportando-se às comemorações do jubileu de ouro em 2002, Raul Cavalcante
Batista, pastor presidente da IEADI afirmou: “outro fator de nossa história é o profundo
zelo pelos bons costumes, que nos foram passados pelos nossos pioneiros. Temos
procurado preservar isto (...)” (ALVES, 2002, p. 216-217). Certamente, a tradição herdada
do meio hostil em que a AD foi fundada, a pobreza e preocupação quase exclusiva de seus
fundadores com o proselitismo religioso, ainda marcam o ethos assembleiano, sobretudo na
região tocantina. Esse histórico, dificulta sua adequação a padrões modernos de condução
da vida social e à abertura de um diálogo mais franco e amistoso com outras religiosidades,
inclusive no campo protestante.

Considerações Finais

Procurou-se mostrar como Imperatriz se insere no cenário nacional marcado pelo


avanço de religiões pentecostais. Nela, a Assembleia de Deus logo no início assumiu a
liderança da evangelização da cidade e das comunidades, vilarejos e povoados ao redor.
Seu avanço coincidiu com o crescimento da própria cidade, a partir da construção das
estradas federais e do aumento das migrações, quando então dedicou-se a um intenso
trabalho de conversão dessas populações que, no decorrer de mais de meio século aqui
analisado, fez com que se tornasse a maior igreja protestante na região, quando já o era na
América Latina.
Ao adequar seu discurso às necessidades das comunidades por ela alcançadas, as
levou a redefinirem suas identidades, a partir de um referencial religioso puritano, criando
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novos sentidos e referências de vida, e, assim, uma identidade cultural. A tradição e o


trabalho proselitista foram as principais razões que a levaram a crescer substancialmente,
engendrando uma dominação simbólica e um modo de viver peculiar ao grupo.
Nesse sentido, os aspectos da urbanização e da modernização imperatrizense, no
contexto latino-americano, abriram espaço à propagação de movimentos religiosos que
enfatizam o emocional e o êxtase coletivo, criando laços de solidariedade e convivência
baseados na reestruturação identitária e na negação do contingente e da alteridade, como o
pentecostalismo assembleiano.
Procurou-se mostrar como os “usos e costumes” representam uma permanência do
tradicional, uma negação da modernidade, ao mesmo tempo uma busca da santidade.
Também constituem uma forma de manter a coesão identitária num mundo marcado pela
heterogeneidade, hibridação e pluralidade.
Os agentes históricos estão constantemente (re)construindo seus referenciais de
mundo, e cabe verificar como, no decorrer do processo em que estão inseridos, isso vai se
solidificando e como as identidades norteiam a vida dos indivíduos num determinado
tempo e lugar.
Por isso, no caso do pentecostalismo, fenômeno de ampla visibilidade social, cabe
analisar suas práticas e formas de manifestação, no sentido de fazer uma interpretação
histórica desse processo. Com esse objetivo é que este estudo enfocou a singularidade da
Assembléia de Deus em Imperatriz, no sudoeste maranhense e sua interligação com a
dinâmica histórica que traduz as mudanças que ocorreram no interior dessa sociedade.

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