2011 Antonio Marcal Bonorino Figueiredo 2

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 73

73

Notas – Las horas señaladas son de Córdova. Cualquiera de los trenes da


suficiente tiempo em Caseros para almozar comodamente. Por mas detalles
ver los orarios en las Estaciones.

Monte Caseros, 1º de Noviembro de 1895.

LA ADMINISTRACIÓN 113

Na obra Câmara de Vereadores de Itaqui, os seus autores aprofundaram a análise


da rede fluvial e ferroviária nesta região da bacia do rio da Prata, que canalizava Montevidéu
e Buenos Aires e a qual facilitou a circulação das pessoas, especialmente dos imigrantes
objeto deste estudo. 114

Os ítalo-descendentes A. C. Flain Petrine, G. Alfano, P. Schenini, E. Mondadori e


R. Alves Filho, M. L. Cadermartori Aramburu e M. C. Cademartori de Moura mencionam a
estrada de ferro em ambas as margens do rio Uruguai. E. Mondandori, 94 anos, com lucidez
extraordinária, e seu filho R. Alves Filho, descendentes do italiano João Mondadori [com
filhos vinculados à família Degrazia], recordam mais extensamente os serviços prestados
pelo trem no lado argentino para a economia do município de Itaqui. Recordaram, com
riqueza de detalhes, do empreendimento de produção e exportação de laranjas que Atilio
Mondadori, pai da depoente, possuiu em Itaqui na década de 1930/1940.

Outros descendentes como A. C. Flain Petrine, A. Silveira Floriano [descendente


do italiano Pedro Ruffoni] e P. Schenini, lembraram-se também da empresa que foi
conhecida por Packing House, que utilizava a ferrovia argentina para exportar laranjas
produzidas em Itaqui. O produto seguia para Buenos Aires e para o mercado importador
europeu pelo porto de Rotterdam, Holanda, segundo informou R. Alves Filho, bisneto do
italiano João Mondadori e neto de Atilio Mondadori:

113
Jornal Commércio, Uruguaiana, edição de 22/03/1896.
114
COLVERO e SOARES, [Orgs.] et al, 2010, op. cit., p. 96 e 112.
74

O vovô começou nos idos de vinte e dois, com o plantio. A princípio eram
trinta e cinco mil mudas, plantas em plena produção. Construiu o Packing
House, [...] eram lavadas, elaboradas, preparadas [...] cruzavam em barco,
nas chatas antigas [...] Passavam o porto e do lado argentino [....] tinha um
terminal ferroviário, [...] entravam em “containeers” que eram alimentados a
gás, pra fazer a climatização da laranja, [...].

R. Alves Filho e sua mãe E. Mondadori relembraram do ascendente italiano João


Mondadori que, na função de engenheiro, trabalhou na construção dos ramais ferroviários em
ambas as margens do rio Uruguai, na altura da fronteira sudoeste onde ora focalizamos a
atenção.115 Alves Filho também lembrou da antiga Casa Degrazia, um grande empório
empresarial importador e exportador, e dos mais antigos, nas últimas duas décadas dos anos
oitocentos em Itaqui. Esta, depois da fase dos transportes pelo rio Uruguai, valeu-se da
ferrovia para seus negócios relativos ao comércio exterior, chegando a ser agente importador
de móveis para loja de expressão na capital do Estado, chamada de Lojas Bromberg. Vide
Apêndice A – Degrazia, Mondadori.

P. Schenini, 84 anos, neto do italiano João Schenini, igualmente mantém vivas


muitas recordações dos seus tempos de menino em Itaqui: “[...] quase todas as tardes eu ia no
Alvear buscar correspondência, que vinha de Buenos Aires pra firma do meu pai. Meu pai era
comerciante forte ali.” 116 A correspondência vinha de trem da capital argentina. E o professor
depoente, ex-superintendente do ensino agrícola do Rio Grande do Sul, lembra que os
brasileiros desta margem do rio Uruguai usavam o trem argentino:

Iam no Alvear pegar o trem que vinha de Asunción. Passava no Alvear, se


ia pra Libres e pra Buenos Aires. Se via aquele trem, era barulheeento. A
gente ouvia o barulho quando ele passava [...] passava numa ponte grande
[...]. Tempo do trem argentino, pra levá mercadorias, laranja, levá coisas que
eram produzidas ali.

115
Idem entrevista de E. Mondadori e R. Alves Filho.
116
Idem entrevista de P. Schenini.
75

Mapas ferroviários mostram que realmente o traçado dessa ferrovia liga Buenos
Aires e Assunção. Margeia o território brasileiro, da Barra do Quaraí até São Borja – Figura
nº 14 e Figura nº 15. Daí segue para Possadas-Encarnação, com travessia sobre o rio Paraná.
Esse trem continua trilhando, arrastando-se, diariamente na mesma ferrovia, produzindo o
mesmo barulho que soa na brasileira Itaqui ao atravessar a várzea do rio Aguapey, afluente no
rio Uruguai com desembocadura entre Alvear e a jesuítica La Cruz [12 km de Itaqui, via
fluvial].

No flanco brasileiro continua viva a linha férrea e a ligação do traçado estratégico


na borda da mesopotâmia argentina [províncias de Entre Rios, Corrientes e Missiones].
Enquanto isso, na margem oriental, de São Borja à barra do Quaraí, a ferrovia desapareceu.
Foi desativada há mais de duas décadas. Em muitos locais nem a marca do local do seu
traçado existe, revolvido pelos arados das lavouras de arroz. Apenas a antiga e extensa ponte
sobre o rio Ibicuí, entre Uruguaiana e Itaqui, persiste ativa com sua funcionalidade adaptada
aos pneumáticos. É gargalo, de mão única, na BR 472, chamada a rodovia do Mercosul, local
por onde transita a maior parte das exportações brasileiras para os vizinhos do além rio
Uruguai.
76

Fonte: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1922.


Figura n° 14.
77

Fonte: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1922.


Figura nº 15.
78

2 A PRESENÇA ITALIANA, ANTERIOR A 1875, EM SÃO BORJA, ITAQUI E


URUGUAIANA

A presença de estrangeiros em São Borja, Itaqui e Uruguaiana, no atual Rio


Grande do Sul, é antiga. Diversos fatos demonstram que antes de 1875 aí já se encontravam,
espontaneamente, diversos imigrantes italianos, participando do esforço de povoamento e
desenvolvimento locais. Inicialmente tecemos um breve escorço de cunho histórico-militar
sobre a posição da Cruz brasileira – próxima a sua frente e margem oposta do rio Uruguai
encontra-se La Cruz, RA.

2.1 Na fundação da Cruz, em 1821

A Cruz era ponto de passagem no rio Uruguai ao tempo do domínio espanhol,


conhecido por Guardia de La Cruz. Camargo, ao narrar incidente militar com uma patrulha
espanhola, demonstra que a presença militar portuguesa no passo da Cruz já em 1804, com
área de vigilância e guarda na divisa sul da fronteira oeste tida como “[...] Fronteira do Jarao
117
[...]” – fronteira do Jarau, hoje localizada nos municípios de Uruguaiana e Quaraí. Em
1818, André Artigas e seus seguidores massacraram a pequena guarnição local postada na
Cruz e daí atacaram São Borja. 118 Em 1821 houve reforço militar no local face ao perigo das
tentativas de retomada das Missões por caudilhos orientais, o que se confirmou em 1828 com
a invasão de Fructoso Rivera.

117
CAMARGO, Fernando. O Malón de 1801: a guerra das laranjas e suas implicações na América Meridional.
Porto Alegre: PUC, 2000, p. 239, 397-400.
118
CESAR, 2002, op. cit., p. 216.
79

Rivera reconquistou considerável parte das Missões depois de invadir o território


brasileiro por Santana Velha, 30 quilometros abaixo da atual Uruguaiana. Na perseguição ao
comandante das Missões – comando situado em São Borja – chegou até Cruz Alta e depois
dirigiu-se para o Passo da Cruz, o que demonstra que o local tinha enorme interesse
estratégico.119 Em 1821, nesse ponto de fronteira sensível aí surgiu o povoado da Cruz,
atualmente Itaqui.120 Segundo José Hemetério Velloso da Silveira, já quando do surgimento
do mesmo a presença italiana se sobressaia entre os estrangeiros:

Demarcados e divididos os terrenos, começaram as edificações de casas,


quase todas de pedras e cobertas de palha. Entre os extrangeiros [sic], que a
compuseram o vizindário sobressaiam italianos e franceses, na maior parte
marinheiros de pequenas embarcações procedentes do Rio da Prata. Esses,
dedicando-se ao comércio, favorecidos por um irreprimível contrabando,
depressa enriqueceram.121

Em função do seu desenvolvimento, em 1834 a povoação na Cruz foi elevada à


categoria de distrito de São Borja, ano em que foi instalado o primeiro município
122
missioneiro. Por isso esse ano é tomado por marca temporal inicial do período abrangido
por esta dissertação. Na folha seguinte, Figura nº 16.

119
FLORES, 1996, op. cit., p. 190.
120
FORTES e WAGNER, 1963, op. cit., p. 267.
121
SILVEIRA, 1979, op. cit, p. 383.
122
FORTES e WAGNER, 1963, op. cit., p. 267.
80

Fonte: FLORES, Moacyr. República Rio-Grandense: realidade e utopia. Porto Alegre: EdPUCRS, 2002, p.
44.

Figura nº 16.
81

Já nos seus primeiros anos, o distrito da Cruz ou povo da Cruz tinha comércio
florescente em função da presença de peninsulares e da proximidade com as duas principais
capitais platinas, Montevidéu e Buenos Aires. “Em 1853, Itaqui tornara-se uma pequena, mas
ativa praça comercial, tirando de São Borja o empório do comércio da erva-mate
123
missioneira”. Pelo trecho transcrito, observamos a denominação Itaqui para o referido
distrito. Administrativamente o mesmo esteve ligado à São Borja até 1858, quando se
emancipou e alcançou a categoria de vila, passando a chamar-se vila de Itaqui.124

2.2 Na visita de representante da Sardenha à colônia de Itaqui, em 1856

A presença e o progresso de italianos no distrito da Cruz despertou a atenção na


capital do Império, tendo o autor da obra As Missões Orientais e seus Antigos Domínios
registrado que:

Em 1856, o cavalheiro Marcello Cerruti, encarregado de negócios da


Sardenha, no Rio de Janeiro, foi, por ordem do seu governo, visitar a colônia
de Itaqui, da qual precisava informações. Com efeito encontrou o Sr. Cerruti:
Lombardo, Gregório Erisch, Luis Deluchi [milionário], Manoel di Amico,
Luiz Lergio, Remondini, João Banchelli, os irmãos Canepa e outros, uns
ricos, outros abastados. 125

José Hemetério Velloso da Silveira concluiu assim:

Pensamos mais tarde, que a visita desse diplomata teria antes por fim obter
de seus patrícios donativos para a campanha empreendida por Vitor
Emanuel, Cavour e Garibaldi da unificação da Itália, do que informar-se do

123
SILVEIRA, 1979, op. cit., p. 383.
124
FLORES, João Rodolpho Amaral. A Vila de São Borja (1834-1887) numa conjuntura de transição: história
sócio-econômica e geopolítica. São Leopoldo: Unisinos, 1996, p. 94. Dissertação de mestrado em História.
125
SILVEIRA, 1979, op. cit., p. 384.
82

estado próspero dos imigrantes aí estabelecidos sem proteção de ninguém e


que adquiriram, pelo comércio, importância pessoal e fortuna. 126

O autor da notícia menciona o nome de alguns dos súditos italianos então


encontrados por Marcello Cerruti. Eram comerciantes realizados economicamente. No
arquivo público do Estado do Rio Grande do Sul encontra-se o inventário de dois dos
noticiados por Silveira, Lombardo e de Manoel Di Amico, abaixo sintetizados. Também o
noticiado Luis Deluchi comparece em um desses inventários. Dessa forma, embora
desnecessário, prova evidente da história narrada pelo juiz, depois advogado e historiador
José Hemetério Velloso da Silveira.127 E no arquivo histórico do Estado [Praça da Alfândega,
em Porto Alegre], nomes contidos em diversos pedidos de indenização de súditos italianos
prejudicados com a invasão paraguaia em 1865 comprovam esses fatos.128

Os crescentes interesses de Gênova no Rio da Prata, em especial em Buenos Aires


depois da queda de Rosas e a figura de Cavour plenamente em ascenção na política
piemontesa, trouxeram o referido Marcelo Cerruti à capital portenha em 1852. Cerruti,
diplomata genovês que não pertencia aos extratos da nobreza, dotado de boas qualidades de
observador e de profissionalismo, foi enviado extraordinário, com instruções do seu governo
para firmar um tratado de comércio e navegação, criar um hospital italiano, preservar a
nacionalidade dos filhos dos imigrantes e criar uma rede consular na região. 129

Segundo Fernando Devoto, em Buenos Aires havia imigrantes de todas as regiões


da Península Itálica, sendo que os sardos ou genoveses eram a maioria, caracterizados pelo
perfil de urbanos e fluviais. Havia uma distinção entre genoveses e os demais italianos. No
censo dos súditos sardos ocorrido em 1855, Cerutti, no posto de encarregado de negócios da
Sardenha, decidiu que fossem incluídos todos os que poderiam ser considerados italianos,
pertencessem ou não ao reino sardo. Esse diplomata tinha preocupações unitárias que
ultrapassavam a sua representação da Sardenha e do Piemonte.
126
SILVEIRA, 1979, op. cit., p. 394.
127
Ib., p. 114 e 384.
128
AHRGS – Maços da Legação Italiana no Rio Grande do Sul.
129
DEVOTO, 2006, op. cit., p. 65-66, 83-84.
83

Devoto demonstra que Marcello Cerutti, ainda em 1860 encontrava-se em Buenos


Aires, pugnando pelo ideário político através da associação italiana de mútuo socorro mais
antiga em Buenos Aires, a União e Benevolência, a qual diferia das demais face o cultivo de
caráter nacional que atribuía aos peninsulares. Naquele ano Cerutti se incorporou, como
sócio, à referida mutual, em meio à euforia da expedição exitosa de Garibaldi ao conquistar o
reino das Duas Sicilias com a sua entrada em Nápoles.

2.3 Italianos e descendentes: notícias em inventário no arquivo público

Alexandre Lombardo – Encontra-se no arquivo público do Estado do Rio


Grande do Sul o inventário de Alexandre Lombardo, um dos italianos visitados em 1856 pelo
130
representante do governo da Sardenha. Seu inventário foi elaborado em 1873. Deixou
testamento. Declara-se natural da Itália, sem herdeiros e que se ocupava com o comércio de
erva-mate.

O inventariante chamava-se Anibal Carini e o juiz, Emigio Bonorino, tudo como


consta na fl. 2. O inventariado Alexandre Lombardo designou para seu testamenteiro, em
primeiro lugar, sua comadre italiana Angélica Risso de Botaro, viúva de Thomaz Botaro e que
residiu no Salto, ROU.

Alexandre testou deixar seus bens à Angélica, dentre os quais existiam quatro
casas em pagamento por serviços prestados. Para o segundo testamenteiro, designou o
inventariante Anibal Carini, residente em Itaqui, constando que era seu amigo e compadre.
Deduz-se que Anibal Carini, pelo nome, também fosse italiano.

130
APERGS – 1873. Inventário nº 3, Maço 1, Estante 115.
84

Nesses mesmos autos existem recibos de importâncias, passados por outros


italianos e mesmo por descendente de peninsular. As fls. 17 e 18 contêm recibos passados
por Domenico Dellamora e Carlo Dellamora, de nacionalidade italiana, “[...] por quinze dias
de assistência al infermo Alejandro Lombardo”. A fl. 19 corresponde a um recibo passado por
Santiago Archetti, manuscrito e firmado pelo mesmo, num misto de língua espanhola e
italiana, denominada cocoliche. O recibo na fl. 20 foi passado pelo mencionado Emigdio,
boticário, onde consta: “[...] provenientes dos medicamentos supridos ao fallecido [sic]
Alexandre Lombardo”.

Bisneto entrevistado do italiano Carlo Dellamora informou que este aportou na


América do Sul por Buenos Aires. Depois se radicou em Itaqui. Também informou que era
originário do norte italiano, de Cavaglio Spoccia, localizada junto ao lago Maggiore.131

A vista dos documentos mencionados, comprova-se que os italianos Carlo


Dellamora e Domenico Dellamora, encontravam-se em Itaqui, em 1873. Ficará demonstrado
[inventário de Regina Zanoni Arcetti] que o referido Santiago Archetti já se encontrava em
Itaqui em 1871. Carlo Dellamora mais tarde casou-se com Adelaide, filha de Santiago
Archetti, como consta no quadro-síntese do Apêndice do Anexo 1.

Dominga e Adolpho Bonorino – O inventário de mãe e sobrinho-genro foram


feitos juntos em Itaqui. Inventariante: Adélia Bonorino, filha de Dominga e viúva de
Adolpho.132 Ano de abertura do inventário: 1898. Dominga Bonorino, cujo nome completo
133
era Juana Dominga Bonorino Pérez, nasceu em Montevidéu em 27/02/1811. Era filha do
italiano Giorgio Antonio Moreno Bonorino, que se radicou em Montevidéu em 1772 e irmã
134
de Antonio Bonorino. Casou-se em Buenos Aires com o italiano Pablo Cachaniga,
Caxaniga ou Caccianiga.135 O inventariado Adolpho era filho do referido Antonio. Exercia a

131
Entrevista de I. Dellamora Filho. Itaqui, em 14/11/2009.
132
APERGS – 1898. Inventário nr 47, Maço 17, Estante 114.
133
Arcebispado de Montevidéu. Livro de Batismos nº 12/Catedral, folha 112-verso.
134
APOLANT, Juan Alejandro. Familia uruguaya, génesis da. Montevideo: Vinaak, 1975, p. 1090-1091.
135
VEGAS, Diego Jorge Herrera. Famílias argentinas. Buenos Aires: Ediciones Callao, 2006, p. 530.
85

função de tradutor como se constata nos inventários de João del Giorgio e Manoel Di Amico,
adiante.

Francisco Bergallo – Francisco lavrou testamento em 02/11/1873, onde diz-se


natural de Gênova, Itália. Era casado com Venância Gallarça Bergallo, que é a inventariante.
136
Inventário foi aberto em 1878. Ao falecer, deixou sete filhos. Era comerciante, em São
Borja. No testamento, recomenda funeral sem pompa alguma. Nas folhas finais, há carta
proveniente de Salto, ROU, em espanhol, datada de 31/03/1879, cobrando dívida do espólio
por compra de mercadorias da firma P. Quiroga y C. Há termo de juntada aos autos e termo
de tradução dessa correspondência.

O cônego João Pedro Gay noticia a presença deste genovês em São Borja.137
Quando os paraguaios invadiram a vila de São Borja em junho de 1865 e praticaram saques e
depredações, dentre os estrangeiros incomodados encontrava-se Francisco Bergallo. João
Pedro Gay relata que várias vezes os intrusos avançaram na casa da residência do genovês
referido, atacando por três pontos ao mesmo tempo: pelas portas da loja de negócios, pelo
corredor da residência da família e pelo portão do pátio. Relatou Gay que o comerciante
Bergallo foi muito insultado e quase foi degolado no dia 22 de junho de 1865, para que os
saqueadores conseguissem do mesmo o que desejavam.

Na obra Italianos no Brasil, Antonio Mottin noticia que o nome de Francisco


Bergallo encontra-se, dentre outros aventureiros e desbravadores, em documentos que falam
de italianos procedentes de Montevidéu e que se estabeleceram nas cidades da fronteira sul-
138
rio-grandense. E acrescenta: “A Fronteira e a Campanha povoaram-se com italianos
geralmente vindos do Prata”.

136
APERGS – 1878. Inventário nº 1281, Maço 29, Estante 94.
137
GAY, 1980, op. cit., p. 87.
138
MOTTIN, Antonio; e CASOLINO, Enzo. Italianos no Brasil – contribuições na literatura e nas ciências,
séculos XIX e XX. Porto Alegre: EdPUC, 1999, p. 17.
86

João Fava – Natural da Itália, fls. 2 e 3, sem filhos, deixou a esposa Joaquina de
Mello Fava, que é a inventariante. Faleceu em 10/12/1877, em São Borja. Dentre seus bens,
consta:

Duas partes de campo havidas por herança nos inventários dos finados pais
da inventariante, em uma chácara sita além do banhado denominado Pasa-
boi, primeiro districto desta Villa, calculada em meia légua de extensão de
campo, [...]. 139

João Del Giorgio – O inventário do italiano João del Giorgio foi aberto em 1886,
140
em Itaqui. Foi inventariante Emilia Girodetti. No seu termo de declarações, Emilia
declarou que o inventariado residia há muitos anos na casa dela declarante e que faleceu em
1º/01/1886, em Alvear, República Argentina, onde foi procurar recurso médico ou, como
consta em seu inventário, de “[...] curioso [...]”, em virtude de moléstia grave que o colocou
de cama por mais de um ano, “[...] sempre em uso de remédio, [...]”. Declarou, também, que
“[...] consta que o finado tem pai vivo no reino da Itália, Lombardia, Província Disondrio,
Povo Chiavenna”. Leia-se província de Sondrio. Observa-se o nome de dois italianos credores
do inventariado: Paulo Ruffoni, negociante e Bernardo Piffero. Este realizou despesas para o
preparo do funeral.

Na fl. 6 dos autos, a inventariante pede ao juiz para que seja juntado ao
inventário:

“[...] uma carta do pai do inventariado, pela qual se pode ver que deixou
pais e irmãos vivos, e o lugar em que se acham”. Foi realizada uma
promessa escrita de pagamento de dívida do inventariado à inventariante
Emilia Girodetti, que se assina Del Giorgio Giovanni, prevenindo que como
estava doente e partia em busca de tratamento, caso morresse seus bens
respondessem pela obrigação. A Câmara Municipal de Itaqui, em 27 de
outubro de 1875 concedeu licença para que “[...] João del Jorge, pedreiro
[...]”, edificasse em terreno que indica a localização, lindeiro “[...] com
terrenos concedidos a Antonio Roncoli em 14 de janeiro de 1871,[...]”.

139
APERGS – 1878. Inventário nº 398, Maço 13, Estante 94.
140
APERGS – 1886. Inventário nº 383, Maço 14, Estante 114.
87

Encontram-se nos autos do inventário: uma carta manuscrita em letra boa e


legível, em italiano, enviada de Chiovenna, de 04/09/1885, e firmada pelo pai do
inventariado, que assina-se “Del Giorgio Gioseppe”; pedido do italiano Lourenço
Dellapedrine, que diz-se residente em Itaqui, dirigido ao juiz do inventário para que fosse
autorizado a ele, procurador dos pais do falecido, levantar do cofre a arrecadação
correspondente aos bens inventariados; nomeação de Adolfo Cachaniga Bonorino para servir
de tradutor de procuração em italiano, enviada da Itália pelos pais do falecido João Del
Giorgio; texto em italiano e traduzido da referida procuração.

Manoel Di Amico – O óbito de Manoel Di Amico, assim grafado no


inventário, ocorreu em Itaqui. A abertura do inventário ocorreu na “[...] Villa de São Borja
141
[...]” em 20/06/1856, na residência do juiz de Órphãos e Ausentes. Naquela ocasião, São
Borja era cabeça de comarca, assim chamada a sede do juízo no Termo de São Borja.

Di Amico é um dos italianos que Silveira mencionou contatados pelo


representante da Sardenha.142 No seu inventário comparece como testemunha de um dado ato
processual outro dos italianos visitados pelo citado representante sardo. Trata-se de Luiz De
Luchi, que Silveira observou ser milionário. Desempenhou a função de inventariante outro
italiano, João Baptista Canepa, o qual foi designado depositário dos bens de Manoel Di
Amico. O irmãos Canepa, assim referenciou Silveira, também foram contatados pelo dito
representante da Sardenha, Marcello Cerutti.

O juiz da abertura deste inventário, que no futuro veio a ser o autor de Missões
Orientais e seus antigos domínios, é José Hemetério Velloso da Silveira. Quando da visita de
Cerutti, judicava em Itaqui e vê-se que narra os fatos com segurança e conhecimento de causa.

141
APERGS – 1856. Inventário nº 65, Maço 3, Estante 114.
142
SILVEIRA, 1979, op. cit., p. 384.
88

Sua presença nessa cidade dava-se desde o ano de 1855, em virtude da sua função de juiz
com sede em São Borja, como ele mesmo narra em sua obra escrita posteriormente.143

Dentre os bens depositados com o inventariante João Baptista Canepa, nomeado


depositário, cita-se alguns que chamam mais a atenção conforme consta nas fls. 3-verso e 4.
Encontram-se registradas 187 barricas de farinha de trigo; 3 pipas de aguardente; 7 pipas de
vinho; 20 barricões de cervejas; 2 caixões de camisas feitas; duas letras de crédito passadas
por Marcellino Domingos Lacroix, uma no valor de cinco mil patacões de prata e a outra no
valor de oito mil patacões de prata, vencíveis no prazo de seis meses; um bote no rio Uruguai
em Uruguaiana. Descreve-se o preço de avaliação da mercadoria a seguir para referencial de
valor da moeda da época na grafia do texto no inventário: “[...] cento e cincoenta sacos com
farinha de trigo avaliado cada hu [sic] em sete mil reis, todos pela quantia de hu [sic] conto e
cincoenta mil reis que faz 1:050$000”.

Herdeiros de Manoel Di Amico: a viúva Caetana Di Amico. E um casal de


filhos: Gomicinda, 13 e Nicolao, 12. Na fl. 7-verso, José Joaquim de Oliveira Gomide assina
pela viúva, “[...] por não saber escrever [...]”. A mesma declarou ao inventariante, que o seu
finado esposo devia a Andres Folle e Companhia, em Montevidéu, o valor de “[...] dous
contos duzentos setenta eseis [sic] mil sete centos noventa reis, 2:276$790].
”. Também declarou ao inventariante que existia na “[...] Povoação do Salto Oriental [...]”
uma morada pertencente ao monte mor e outra em Constituição, departamento do Salto
Oriental. Declarou, ainda, que existia “[...] em poder de Fernando morador no Salto [...] nove
carretas, e 82 bois mansos”.

Em 02/07/1856, João Baptista Canepa foi nomeado tutor dos filhos órfãos de
Manoel Di Amico. Em 29/07/1859, o juiz, ao julgar prestação de contas, determinou que
fosse apresentado recibo da quantia entregue pelo tutor ao “[...] marido da orphão
Gomecinda, [...]”. Em 18/06/1861, o tutor pede prazo para apresentar documentos de

143
SILVEIRA, 1979, op. cit., p. 102 e 384.
89

prestação de contas com a educação do tutorado Nicolao Di Amico em colégio em


Montevidéu.

Em 16/08/1861, o marido de Gomecinda, Vicente Lopez, vem a juízo dizer que


faleceu Caetana Di Amico, sua sogra e que o tutor João Baptista Canepa, “[...] negociante
desta praça [...]” foi à falência e pede seja designado novo tutor ao cunhado Nicolao Di
Amico, menor. Há um boletim do “Colejio Montevideano – Calle del Rincon número 116”
referente a Nicolao, passado em 1º/11/1858. Literalmente, consta a “Conta corrente do Fallido
[sic] João Baptista Canepa, representado pelo Curador Fiscal da massa fallida, com o orphão
Nicolao Diamico”. Há uma conta corrente emitida pelo Colégio Montevideano em nome
Juan Bautista Canepa por tutoria de “[...] D. Nicolas Diamico”.

Constata-se a existência de três cartas enviadas de Montevidéu por Vicente


Lopez a João Batista Canepa em Itaqui, que é padrinho do remetente, datadas de 12/10/1859,
30/07/1860 e 19/09/1860. Foram escritas em espanhol e traduzidas por Adolpho C. Bonorino.
Nessas cartas, o remetente comenta a situação econômica crítica do padrinho, estimulando-o
a superar as dificuldades financeiras que estava passando familiar do falido em Montevidéu,
e informa sobre o preço da erva-mate que diz em suba, na carta de 30/07/1860. Em carta
posterior, de 19/09/1860, pede que João B. Canepa lhe antecipe por correio a quantia de erva
que remeterá a Montevidéu.

Em autos em anexo ao do inventário, com data de 28/06/1856 há um expediente


de justificativa feito por João Baptista Canepa ao juiz José Hemetério Velloso da Silveira,
que o recebeu e despachou. Versava sobre erva-mate e obrigação de depositário, cujo
preâmbulo é:

Diz João Baptista Canepa que quer justificar perante V. Sa. com assistência
da viúva e filhos do finado Diamico, com as testemunhas abaixo o seguinte:
lº - Que tendo vindo a esta Freguesia do Itaqui, o finado Diamico fez uma
compra de ervas, e para pagamento dellas foi preciso sacar duas cartas de
90

ordens da quantia aprimeira de vinte e cinco onças de ouro, e a segunda de


oitocentos patacões contra Santiago Galdupe; [...]

Paulo Difendente Minoggio – Consta no seu inventário que era natural do “[...]
Reino da Itália [...]” e que faleceu em 05/08/1922, em Itaqui, com 69 anos. Deixou três
filhos: Ambrosina, Paschoal e Arthur.144 De entrevista com a viúva de Francisco de Assis
Noronha Minoggio, filho de Arthur e sobrinho de Paschoal, tem-se: “[...] o meu marido falava
que eles chegaram por Buenos Aires. O [...] Arthur já nasceu aqui”. Acrescentou que desde o
tempo de estudante de engenharia em Buenos Aires, Paschoal gostava muito de doces: “Aqui
mesmo, em Itaqui, [...] já estava velho, eu fazia doce e o meu marido levava pra ele”.145

Paulo Corrêa dos Santos, historiador municipal e autor de obra alusiva ao


cinquentenário do município de Itaqui, sob o patrocínio da municipalidade local, por
pesquisa sua e de João Sampaio da Silva, informa que Paschoal nasceu em Itaqui, em 1874 e
diplomou-se em arquitetura pela Escola de Belas Artes de Buenos Aires.146

O mencionado Paschoal deixou a marca de seus traços arquitetônicos no prédio do


Mercado Público em Itaqui, inaugurado em 1909. Antigas construções do centro de Itaqui,
principalmente as que possuem altos-relevos e ornamentos, também saíram da sua prancheta.
O mesmo ocorreu em relação aos túmulos de algumas famílias, que no contorno se destacam
com a linha do neoclássio. Participou do projeto para construção do clube do Comércio de
Uruguaiana.147 Faleceu em 1952, em Porto Alegre, quando se submetia a tratamento de
saúde.148

144
APERGS – 1911. Inventário nº 155, Maço 4, Estante 115.
145
Idem entrevista de R. Sastre Minoggio.
146
SANTOS, Paulo Corrêa dos. Agenda 150. Itaqui: Novigraf, 2008, p. 64.
147
Ib., p. 64.
148
J. Rossi Nery, Jornal A Verdade”, Itaqui, edição de 30/03/1996.
91

Regina Zanoni Arcetti – Encontra-se no arquivo público do Estado o inventário


da esposa de Santiago Archetti, aberto em 1903, em Itaqui. 149 O sobrenome do seu esposo
Santiago, encontra-se grafado “[...] Arcetti”. Santiago Arcetti é o inventariante de Regina. O
casal teve oito filhos: João, 1867; Maria, 1871; Adelaide [casada com Carlo Dellamora];
Severina, 1875; Anna, 1878; Alexandre, 1881; Luiz, 1884; e André, 1892.

Consta que João Arcetti, o filho primogênito de Santiago e de Regina Zanoni


Arcetti, nasceu na Itália em 13/09/1867 e que como os demais, residia em Itaqui. Observa-se
que o nascimento da filha Maria já ocorreu em Itaqui, em 24/12/1871, “[...] nascida nesta
cidade [...]. Evidente que Santiago Arcetti e sua esposa Regina Zanoni e o filho João eram
italianos e chegaram em Itaqui no período 1867/1871.

Silvério Piagetti – O seu inventário foi aberto em 1887, em Itaqui. Desempenhou


a função de inventariante a sua esposa, Luiza Canepa Piagetti.150 Filhos do casal: João
Aurélio, 1870; Hermelinda, 1873; José, 1875; Lionarda, 1876; Melchiades, 1877; Severo,
1879; e Elvira, 1875. A viúva e os demais herdeiros foram representados no pelo advogado
José Evaristo Teixeira. Silvério Piagetti foi um dos súditos italianos residentes em Itaqui que
1867 pediram ao governo brasileiro indenização por danos causados pela invasão paraguaia
no sul do país, conforme texto a seguir, onde seu nome aparece grafado “[...] Sevério Piagetti
[...]” – descrição no subtítulo “[...] pedidos de indenização por súditos italianos”.

Conforme seu inventário, Silvério possuía um cortume em Itaqui e dentre a


relações dos bens inventariados, constam couros de animais em depósito e “[...] uma parte de
campo na Sesmaria Rocha [...]”. A inventariante Luiza Canepa Piagetti declarou: “[...] que o
inventariante possue no Reino da Itália, perto da cidade de Spoccia, uns terrenos e parte de
casa que lhe couberam em legítima.” No termo de partilha dos bens, consta: “E por esta
forma houverão elle juiz e partidores esta partilha por bem feita, deixando de partilharem os

149
APERGS – 1902. Inventário nº 513, Maço 19, Estante 114.
150
APERGS – 1887. Inventário nº 402, Maço 15, Estante 114.
92

bens ditos no Reino da Itália, descriptos afolhas oito verço, por ser desconhecido o valor dos
mesmos; do que fiz este termo que todos assignarão”.

No inventário constam nomes de outros italianos ou ítalo-descendentes, dos quais


o inventariado Silvério Piagetti era credor por relações de comércio, como Israel Christino
Fioravante e Victoriana Regio Veppo. Em autos em apenso ou anexo, chamados “autos de
tutela provisória”, a inventariante Luiza Canepa Piagetti assumiu a tutela dos filhos menores e
o ítalo-descendente Emigidio Bonorino desempenhou a função de segunda testemunha da sua
condição de viúva.

Presença de outros italianos e ítalo-descendentes

Antonio Bonorino – Antes de 1875 encontravam-se na área dos três municípios


referidos descendentes italianos da primeira geração, já nascidos no continente sul-
151
americano. É o caso de Antonio Bonorino, nascido em Montevidéu, em 1807. Deixou
152
Montevideo em 1829. No período 1830-1833 chegou em São Borja, acompanhado pela
irmã Dominga e a sobrinha Teresa, esta filha de Esteban Bonorino, irmão primogênito de
ambos. Teve onze filhos, todos brasileiros: Emygdio, 1834; Affonso, 1836; Adélia; Ósman,
1839; Palmira; Fernando, 1842; João, 1844; Eulina, 1846; Marciano, 1848; Felinto Antonio,
1851; e Antonio José, 1852. Faleceu em 1875, em Cruz Alta, onde correu seu inventário.153
Registro em diário de viagem do naturalista Aimé Bompland comprova que em 1850
encontrava-se em Itaqui. 154 Vide Apêndice A.

151
Arcebispado de Montevideo, Livro de Batismos nº 10/Catedral, folha 403-verso.
152
GONZÁLEZ, Jorge F. Lima Bonorino. Bonorino y González Bonorino. Buenos Aires: Editorial Armerías,
2008, p. 26.
153
APERGS – 1875. Idem Inventário nº 185.
154
BONPLAND, Aimé. Diário Viagem de São Borja à Serra e a Porto Alegre. Transcrição do manuscrito
original, notas e revisão pela Dra. Alicia Lourteig. Porto Alegre: Instituto de Biociências-UFRGS, 1978, p.
131.
93

Augusto César Cademartori – Natural de Rapallo, na Ligúria. Nasceu em


20/11/1819 e foi batizado na Parocchia San Gervasio e Protásio. Seu nome de batismo era
Agostino Cademartori. No Brasil, passou a usar o nome de Augusto Cesar. Casou em
Uruguaiana com Maria Luiza Pereira, com quem teve os filhos: Tito, Augusto, Dante,
Francisco, Geminiana, Antonio e Luiza. Informação familiar diz que lutou na Guerra dos
Farrapos. Teria chegado na América do Sul pelo porto de Montevidéu. Deixou descendentes
em Uruguaiana e Itaqui. 155

Presenças no cruzamento de informações bibliográficas

Pela obra de José Hemetério Velloso da Silveira e do cônego João Pedro Gay,
sabe-se que os súditos italianos mencionados por “ [...] irmãos Canepa [...]”, encontrados em
Itaqui por Marcelo Cerruti, representante do governo da Sardenha, chamavam-se Luiz Canepa
e Francisco Canepa. 156

Em outra obra sua, História da República Jesuítica, o cônego João Pedro Gay
elaborou um mapa dos barcos que, em 1863, navegavam no rio Uruguai, no trecho chamado
Alto Uruguai e que correspondia às povoações de São Borja e Itaqui. No mapa referido
constata-se que os referidos irmãos Canepa, ou Luiz Canepa e Francisco Canepa, eram
proprietários dos barcos Catharina e São Felippe.157 No APERGS encontram-se os autos do
inventário de Manoel Di Amico, mencionado por Silveira. O inventariante chamava-se João
Batista Canepa, como visto. 158

Nesse mapa de barcos do cônego Gay, constata-se a presença de capitães de barco


com nomes de origem italiana: Magnani, Canepa, Veppo, Salvati, Sabatino, Corso, Laroboca,

155
Idem entrevista de M.L. Cademartori Aramburu e M.C. Cademartori de Moura.
156
GAY, 1863, op. cit., p. 481-seg.
157
Ib., p. 481-seg.
158
APERGS – 1856. Idem Inventário nº 65.
94

Bianchi, Marcenaro. E o nome de alguns desses barcos lembram o mundo italiano, além dos
dois citados: o Ligúria, o S. Gio Batto, o Pensamento Italiano, o Diamela, o S. Filippe.

Uruguaiana, desde cedo, também contou com forte presença italiana, face sua
maior aproximação geográfica com Montevidéu e Buenos Aires. Carlos Fonttes e Daniel
Fanti, pesquisando e escrevendo sobre fatos da história uruguaianense, em 2008 lançaram a
obra Uruguaiana – na linguagem plástica e histórica. Fanti exerceu a função de secretário da
Sociedade Italiana União e Beneficência de Uruguaiana na administração de Salvador Faraco,
resgatando o acervo histórico da entidade. Provavelmente com base em anotamentos do
historiador Raul Pont no Centro Cultural Dr. Pedro Mariani em Uruguaiana, escreveram, sem
indicação da fonte: “Sabe-se que antes de 1877, aqui se encontravam-se os Mascia, os Scola,
Vetoriani, Ferrari, Felliciati, Fittipaldi, Motta, Cernicochiaro, Passarelo, Filatondi [...].” 159

2.4 Guerra do Paraguai, o comércio de fronteira e italianos

O quadro histórico-temporal prévio à invasão do território brasileiro em 1865


pelas tropas paraguaias demonstra que, em 1849, Carlos Antonio Lopes, presidente guarani,
decidiu que era chegado o momento de ocupar o território das Missões disputado com a
Argentina. E assim o fez. Mandou o seu filho Francisco Solano invadir a província de
Corrientes, até o rio Aguapey – Figura nº 17 e Figura n° 18. Compreendendo que a aventura
era perigosa, recuou, iniciando abertura de negociações com Buenos Aires. Mas a diplomacia
do Império se movimentou habilmente e, em 25/12/1850, o Brasil e o Paraguai firmaram
tratado de aliança diante de eventual ataque pela Confederação Argentina ou pelo Estado
160
Oriental a qualquer dos signatários. Assim, assegurada essa aliança, iniciada a ajuda ao

159
FONTTES, Carlos; e FANTI, Daniel. Uruguaiana: na linguagem plástica e histórica. Santa Maria: Gráfica
Pallofi, 2008, p. 75.
160
POMER, Leon. Os conflitos da bacia do Prata. São Paulo: Editora Brasiliense S.A., 1979, p. 42 e 124.
95

governo de Montevidéu e em conversações com Urquiza, governador da província de Entre


Rios, o Império do Brasil havia montado uma investida contra Rosas. 161

161
BEVERINA, Juan. La Guerra del Paraguay, (1865 – 1870). Buenos Aires: Tallares G. Buschi, 1943, p. 19.
96

Figura nº 17.
97

Figura nº 18.
98

O ataque paraguaio ocorreu após uma intervenção armada do Brasil no Uruguai


em 1863, que pôs fim à guerra civil uruguaia ao depor o presidente Atanásio Aguirre, do
Partido Blanco e emposssar o seu rival colorado Venâncio Flores. Solano López temia que o
Império Brasileiro e a Argentina viessem a desmantelar os países menores do Cone Sul. Para
confrontar essa suposta ameaça, Solano López esperava contar com o apoio dos blancos, no
Uruguai, e dos caudilhos do norte da Argentina. Em novembro de 1864 apreendeu vapor
brasileiro que transportava o presidente da província do Mato Grosso. Foi uma declaração de
162
guerra. Logo depois invadiu aquela província. E, pelo Sul, atravessou a pretendida
província argentina de Missiones e chegou na costa brasileira em São Borja, invadindo-a. 163

A respeito do comércio de fronteira, fazemos alusão ao estudo de Norma Oviedo,


que tem por objeto o estudo das redes e relações comerciais. Na época da Guerra do Paraguai,
Buenos Aires, Montevidéu e Rio de Janeiro eram as novas metrópoles da periferia do
capitalismo inglês. O Rio Grande do Sul e as Missões, zonas fronteiriças, eram áreas
periféricas de produção e circulação de bens econômicos e pontos estratégicos na
reorganização da circularização dessas metrópoles. O comércio era forma importante de
incorporação da população e incentivava a atividade extrativa ervateira e a pecuária.

Emergem, então, as cidade-gêmeas fronteiriças e complementares do sistema


econômico e social, exemplificando, Itapuã-Rinconada de San José, São Borja-Santo Tomé,
Itaqui-Alvear, Passo de Libres-Uruguaiana, Salto-Concórdia. Durante a primeira metade do
século 19 se constata a conformação desses circuitos paralelos e inter-relacionados e, logo
depois, nas primeiras décadas do século 20 essas rotas plenamente configuradas faziam parte
do hinterland econômico e comercial platino. 164 Observa-se que São Borja dista não mais do
que 200 km das gêmeas Itapuã-Rinconada de San Juan [Possadas, RA e Encarnação,
Paraguai]. O caso da apreensão de embarcação e mercadorias do italiano Luis Risso em 1859,

162
FRAGOSO, AugustoTasso. História da Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai. Rio de Janeiro:
Imprensa do Estado-Maior do Exército, 1934, p. 215- 247 – vol. I.
163
POMER, 1979, op. cit., p. 136.
164
OVIEDO, Norma. Relaciones comerciales y conflitos fronterizos siglo XIX: Missiones en la red platina.
Porto Alegre: PUC, 1997, p. 28, 45, 168, 207. Dissertação em história.
99

em São Borja, que narramos a seguir – item 4.1 Conflito de súdito italiano e agente consular
com o governo brasileiro, é uma prova do quanto ora constatamos.

Montevidéu, ponto chave no centro do Prata, administrava o comércio de trânsito


e converteu seu porto em polo importador-exportador do Rio Grande e do litoral argentino.
Isso possibilitou com a prática do contrabando e o desenvolvimento do setor comercial, a
acumulação de capital dos comerciantes intermediários. Exemplificando, a partir de meados
dos anos oitocentos, Itaqui tornou-se uma florescente praça comercial e para isso contou com
a presença do elemento de origem italiana, que era dado à atividade comercial e à navegação.

A falta de diálogo político Buenos Aires-Assunção impediu o uso da via fluvial,


privilegiando a via terrestre por Itapuã-Rinconada, leia-se Encarnação e Possadas, como
corredor geográfico-comercial e ponto estratégico reordenador do espaço econômico que
conectava com São Borja. Isto deu-se a partir de 1834, com a instalação de acampamento na
165
localidade onde atualmente Possadas, capital de Missiones, província argentina. Por
coincidência, no ano em que São Borja obteve sua autonomia de Rio Pardo. Posteriormente,
nesse sentido de rede, Itaqui e Uruguaiana muito valeram-se da rota fluvial e da estrada de
ferro. As casas comerciais de porte nessas localidades, proporcionando comércio ativo e
franco progresso, atestam o vigor da rede platina referida.

2.4.1 O roubo e a barbárie

Em 10 de junho de 1865, os paraguaios invadiram a vila de São Borja e deram


166
início a saques e depredações. Depois de não encontrarem mais objetos de interesse nas
casas dos ausentes, lançaram suas vistas sobre a casa dos moradores que permaneceram na
vila, quase todos estrangeiros. Nas casas de comércio cujos donos estavam presentes, os
invasores mandavam com se fossem donos. O próprio cônego Gay lamenta que saques

165
OVIEDO, 1997, op. cit., p. 144, 173, 207, 208.
166
SCHNEIDER, 2009, op. cit., p. 264-268.
100

tenham sido praticados antes mesmo dos invasores, por estrangeiros residentes e nacionais
brasileiros aproveitadores da situação, qualificando-os de os “[...] paraguaios daqui”. 167, 168

Dentre os estrangeiros incomodados encontrava-se o genovês Francisco Bergallo,


comerciante, já referenciado. João Pedro Gay relata que várias vezes os intrusos guaranis
avançaram a casa da residência do genovês referido, atacando por três pontos ao mesmo
tempo: pelas portas da loja de negócios, pelo corredor da residência da família e pelo portão
do pátio. Relatou Gay que o comerciante Bergallo foi muito insultado e quase foi degolado no
dia 22 de junho de 1865, para que os saqueadores conseguissem do mesmo o que desejavam.

Destruição documental em São Borja

O cônego Gay diz que dentro da vila e no Passo de São Borja foram saqueados
quinze estabelecimentos públicos como a Câmara Municipal, o Cartório, a Mesa de Rendas.
A respeito dos estragos nesta, veremos no trecho que trata de conflitos de súditos italianos
com o governo brasileiro em face à acusação da prática de contrabando, que a Fazenda
Nacional mencionou que documentos da Mesa de Rendas em São Borja perderam-se com a
invasão paraguaia. Gay assinala que saques também foram praticados por estrangeiros
residentes em São Borja. 169

Além de furtos e depredação de bens materiais da população, de casas


particulares, de casas de comércio e de bens públicos, limitemo-nos a tangenciar os danos
causados à igreja local, detentora de patrimônio coletivo quanto à memória condensada até
então, pertencente, inclusive, a italianos e descendentes na época residentes na vila de São
Borja e no território de sua jurisdição eclesiástica administrativa como a vila de Itaqui.
167
GAY, 1980 , op. cit., p. 87-seg.
168
GOLIN, Tau. Missioneirismo , Guaranização e Indianização. “In” COLVERO, Ronaldo B. e MAURER,
Rodrigo F. [Orgs.]. Missões em Mosaico: da interpretação à prática, um conjunto de experiências. Porto
Alegre: Editora Faith Ltda, 2011, p. 291-292.
169
AHRGS – Legação italiana Expediente intern da Inspetoria da Tesouraria de Fazenda da Província de São
Pedro do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre.
101

O próprio comandante da força invasora e o padre Duarte, chamado pelos seus de


“[...] señor vicário [...]”, tido por general-em-chefe, antes dos saques celebravam uma “[...]
cerimônia eclesiástica [...]” na porta do estabelecimento ou casa a ser saqueada, contra “[...]
los perros brasilieños [...]”. Não encontraram o padre da igreja de São Borja, que era o cônego
170
João Pedro Gay, para prendê-lo, liquidá-lo ou remetê-lo como troféu a Solano Lopez. Por
narrativa deste religioso, os paraguaios realizaram buscas no acervo documental na casa
paroquial e na igreja da vila, depois de convenientemente cercadas:

Em um momento, o escritório, as cômodas e os armários foram abertos a


golpes de machado, sem sequer repararem que as chaves se achavam em
todas as fechaduras. Em um instante todos os móveis da casa foram
revolvidos. Os livros e papéis foram espalhados sobre as mesas e no chão; os
paramentos da igreja, as roupas e os trastes dispersos em toda parte.

Em prosseguimento à narrativa dos estragos provocados pelo comando paraguaio


e seus homens, lê-se na referenciada obra do cônego Gay:

Seja que o Coronel Estigarríbia desanimasse no exame dos papéis e dos


livros do vigário de São Borja, de que continuavam a encontrar baús cheios,
seja que Sua Excelência entendesse pouco disso, ele deixou ´al Vicario´ e ao
secretário continuarem o exame, e foi sentar em cadeira de balanço à porta
da entrada da casa.

O desastrado comandante chamou mais uma vez o basco encarregado da casa


paroquial, submeteu-o a mais algumas perguntas iniquisitoriais sobre as alfaias, a prataria da
igreja e o destino do padre de São Borja, que era um francês estudioso e dedicado aos livros.
Nada obtendo, Estigarribia ordenou ao basco: “[...] resguardar do fogo a casa onde residia
com sua família, pegada à casa da residência do vigário, cuja casa ele trazia também ordem de
queimar depois de saqueada”. O apavorado basco respondeu ao comandante paraguaio:

170
GAY, 1980, op. cit., p. 87.
102

[...] que lhe era impossível preservar do fogo a casa de sua morada se
incendiasse a casa de residência do vigário, por estarem contíguas, além de
que, continuou o basco, tinha alugado todas essas casas em sociedade com
vários indivíduos, um arquiteto italiano, um francês marceneiro, todos
trabalhadores na igreja nova, [...]. 171

O cônego mencionado elaborou longa e minuciosa relação dos documentos, livros


e escritos destruídos ou desaparecidos da casa do pároco e da igreja de São Borja por força do
vandalismo do invasor. Dentre a descrição dos livros paroquiais desaparecidos,
expressamente consta “[...] livros do cartório eclesiástico [...]”, desaparecidos tal como
documentos na mesa de rendas local.

O prejuízo decorrente de tais atos e fatos repercute até os dias atuais. Registros de
batismo, casamento e óbito existentes no referido cartório eclesiástico de São Borja, foram
destruídos. Consequentemente, foram perdidos documentos que comprovam vínculos
familiares de pessoas registradas nesse cartório. No caso de italianos, hoje descendentes
ressentem-se da falta de certidões como a de batismo e casamento de ancestrais, necessárias
para formalização de processos visando o reconhecimento da dupla cidadania italiana por
herança derivada da origem peninsular.

A vila de Itaqui também sofreu a barbárie da coluna invasora, que se deslocou


pela margem do rio Uruguai para o Sul, a partir de São Borja – Figura nº 19. Em 07 de julho
de 1865, o exército paraguaio fez sua entrada na vila, abandonada com antecedência pela
maior parte das famílias, já que sabedoras que a vizinha São Borja foi invadida no dia 12 de
junho. Houve tempo para salvar parte dos seus bens.

O mesmo cônego em referência deixou registrado outros acontecimentos.


Escreveu que os negociantes em Itaqui conseguiram retirar uma parte de suas fazendas e

171
GAY, 1980, op. cit., p. 87-88.
103

artigos de negócio para lugar seguro antes da chegada dos paraguaios. Não tendo encontrado
tanto o que saquear como encontraram em São Borja, o invasor se vingou da penúria
deliberada nos estrangeiros e a “[...] maior parte perderam consideravelmente em seus
interesses”.

A narrativa do mencionado religioso prossegue. Os estrangeiros residentes em


Itaqui não fugiram à aproximação da força estrangeira, confiando estarem, como súditos, ao
abrigo da bandeira dos respectivos países de origem, hasteada na porta principal da casa de
residência ou casa de comércio. Em alguns dos locais onde hasteada, os soldados arriavam
“[...] a bandeira espanhola ou italiana, para poder saquear com franqueza e a seu gosto”.
Alegavam que não injuriavam nenhuma bandeira e que respeitavam-nas, “[...] mas que as
fazendas que tomavam não era a bandeira, nem tinham nada com ela”. Depois da rendição em
Uruguaiana, o imperador D. Pedro II visitou as vilas de Itaqui e São Borja. Itaqui ainda
estava quase deserta, “[...] achando-se nela um certo número de homens, a maior parte
estrangeiros, porém quase nenhuma família, porque não tinham ainda regressado da
emigração”. 172

Uruguaiana não teve melhor sorte em relação aos dois municípios vizinhos
também vitimizados, onde a permanência da coluna invasora foi mais longa. O autor do texto
abaixo transcrito, membro da comitiva imperial e genro de Dom Pedro II, foi testemunha
ocular dos fatos por ocasião da chamada rendição de Uruguaiana:

[...] depois que por lá passou a invasão paraguaia, é uma cidade cheia de
ruínas. Não há uma só casa que não tenha sido saqueada; todos os objetos
que podiam ser utilizados ou levados, o foram; e tudo o mais, destruído.
Vêm-se pelas ruas cadeiras e canapés partidos; as portas foram arrombadas,
os vidros todos partidos; devastaram por devastar.173

172
GAY, 1980, op. cit., p. 151.
173
D´EU, Conde. Viagem militar ao Rio Grande do Sul. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1933, p. 158.
104

Fonte: BEVERINA, Juan. La guerra del Paraguay (1865-1870). Buenos Aires: Tallares G. Buschi, 1943,
croquis 3.
Figura nº 19.
105

2.4.2 As reparações - indenizações

O vice-cônsul da “[...] Régia Delegação Consular da S.M. O Rei d´Itália em Porto


Alegre [...]”, em 22/09/1865, ainda no início daquele conflito, enviou expediente ao
presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul para informar que o súdito
italiano Thomáz Pittaluga, antigo comerciante de São Borja preveniu-lhe, por escrito, que
reclamaria reparações aos danos que sofreu. O súdito mencionado dizia:

[...] de só esperar o restabelecimento das autoridades brasileiras para


legalmente provar o grande prejuízo que sofreu com o terem os paraguaios
invadido aquela vila, a fim de poder formar a reclamação do seu grande
prejuízo para ser presente ao Governo de S. M. Imperador, [...]. 174

A autoridade consular referida enviou uma correspondência de retorno ao Vice-


Presidente da Província, informando que recebeu ofício daquela vice-presidência. Os súditos
nominados no documento residiam na vila de Itaqui. Nessa correspondência, o cônsul
transcreveu parte do conteúdo do ofício que recebeu:

[...] para que faça saber aos súditos italianos Vicente Gervázio, Santiago
Gabardi, José Piffero, Carlos Bonetti, Silvério Piaggetti e João Maria Bonetti
que o processo de reclamação pelos prejuízos que sofreram com a invasão
das forças do Paraguai nesta Província, tinham sido remetidos pelo
Ministério dos Negócios do Império ao de Estrangeiros, a fim de resolver a
respeito como entender, e que o Governo Imperial se não responsabilizava
pelas reclamações dos ditos italianos. 175

[Cópia desse ofício – Figura nº 20].

174
AHRGS – Legação Italiana. Ofício da “Régia Agência Consular de S. M. O Rei d´Itália em Porto Alegre” ao
Presidente da Província do Rio Grande de São Pedro, em 22/09/1865.
175
AHRGS – Legação Italiana, ofício expedido em 28/07/1866.
106

Fonte: AHRGS – Legação Italiana, ofício expedido em 28/07/1866.


Figura nº 20.
107

Carlos Bonetti, que consta dentre os nomes transcritos no aludido expediente


consular de 28/07/1866, também consta na página 10 dos autos do inventário do tenente-
coronel Domingos Corrêa referenciado em trecho do item 1.6 Comércio e transporte da erva-
mate, adiante. Carlos firmou o seu nome escrevendo Carlo Bonetti, em recibo passado em
espanhol, referente ao caixão para a “[...] catacumba [...]” de Domingos, falecido em 1869. 176

Passo seguinte, o vice-cônsul em referência enviou dois expedientes ao


Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, com a justificação de Vicente
Gervázio e Santiago Gabardi e seus sócios. Em ambos os expedientes ressaltou: “[...] pelos
prejuízos que sofreu dos paraguaios quando entraram e ficaram senhores da vila de Itaqui,
[...] no importe de [...].” Para o primeiro dos súditos nominados, o prejuízo importava em
“24:689$000 réis”. E, para Gabardi e sócios, em “64:758$000 réis”. 177

A mencionada representação consular encaminhou, ainda, ao Presidente da


Província a justificação dos prejuízos do súdito Luis Pittaluga, no importe de “30:732$500
réis”. Mencionou as justificações encaminhadas em 30/04/1866.

Como visto, o cônsul interveniente e os súditos foram informados que: “[...] o


Governo Imperial se não responsabilizava pelas reclamações dos ditos italianos [...]”.

2.5 Síntese: italianos e ítalo-descendentes presentes na área, antes de 1875

Em decorrência das presenças noticiadas, tem-se rol de nomes de italianos ou


descendentes anteriores a 1875 na área da pesquisa, na ordem alfabética do primeiro nome:
Adolpho Cachaniga Bonorino, Alexandre Lombardo, Antonio Bonorino e seus filhos,

176
Idem APERGS – 1869. Inventário nº 169.
177
AHRGS – Legação Italiana, dois ofícios expedidos em 30/04/1866.
108

Augusto César Cademartori, Carlo Dellamora, Carlos Bonetti, Domenico Dellamora,


Dominga Bonorino, Francisco Canepa, Gregório Erisch, Luis Canepa, Luis De Luchi,
Remondini, João Banchelli, João Arcetti, João Maria Bonetti, José Piffero, Luis Pittaluga,
Manoel Batista Canepa, Nicolao Di Amico, Pablo Caccianiga ou Cachaniga, Paschoal
Minoggio, Paulo Difendente Minoggio, Regina Zanoni Arcetti ou Archetti, Thomaz Pittaluga,
Vicente Gervázio, Santiago Archetti, Santiago Gabardi, Sevério ou Silvério Piagetti e os
filhos João Aurélio, Hermelinda e José.

Assim, a presença de italianos e descendentes em São Borja, Itaqui e Uruguaiana


precede a 1875 e ao longo deste trabalho dissertativo ver-se-á que vários dos citados, e outros,
deixaram marcas no panorama social onde viveram. Por outro lado, fica demonstrado o
equívoco de versões divulgadas com suposto timbre histórico local quanto ao povoamento do
espaço por ítalos, como a seguinte: “Os primeiros italianos vindos para Itaqui, via Argentina,
aqui chegaram por volta de 1875, durante o império de Dom Pedro II”.178 E isto que o autor
dessa notícia no jornal infra referenciado, jornalista João Rossi Nery, editor titular de coluna
denominada Nem todos sabem ..., era neto de italianos que chegaram em Itaqui por Buenos
Aires. 179

178
J. Rossi Nery, Jornal A Verdade, edição de 27/05/1995.
179
Entrevista de B. D. Rossi Nery. Itaqui, em 07/11/2011.
109

3 ITALIANOS E DESCENDENTES EM SÃO BORJA, ITAQUI E URUGUAIANA,


CHEGADOS VIA RIO DA PRATA

Neste capítulo, de maneira geral tem-se uma panorâmica da chegada de


imigrantes após 1875, através de informações em fontes primárias, principalmente pela
memória em depoimentos de descendentes, o que possibilitou a elaboração da nominata de
imigrantes constantes em quadro-síntese ao final do mesmo. Assim, vislumbra-se o porto do
desembarque – Montevidéu ou Buenos Aires, a profissão, local de origem na Itália, época
aproximada da chegada no Brasil e a respectiva área de atração, itinerários percorridos por
alguns até a instalação definitiva nas três referidas localidades brasileiras objeto desta
investigação. Também encontra-se resposta à perquirição sobre a existência de parentes no
Uruguai e na Argentina.

Observa-se que, face às diferenças culturais e ao choque inicial dessas diferenças,


a identidade étnica dos recém-chegados evidenciou-se ao menos em três momentos ou
circunstâncias bem definidos: a) já em 1859, com a visita do representante da Sardenha à
colônia em Itaqui; b) com o pedido de indenização por súditos italianos, prejudicados com a
invasão paraguaia em 1865, que ocorreu, no sul do País, exatamente nos três municípios
brasileiros referidos onde ocorreu a imigração italiana pelas águas do Prata; c) com a criação
das sociedades italianas de mútuo socorro em Uruguaiana e Itaqui. Nesta localidade houve,
em 1887, clamor de súdito italiano através da imprensa pela morte de um imigrante sem
parentes no Brasil e, assim, esse fato chegou ao conhecimento do sistema policial, do
judiciário e do consulado italiano em Porto Alegre.
110

Também observa-se que o trabalho foi a forma de inserção e integração dos


imigrantes na sociedade hospedeira e que muitos valeram-se dessas duas mutuais italianas
como instrumento de organização, representação, proteção e progresso pessoal e coletivo. Ao
final da presente dissertação condensamos, no Anexo 1, obras e ações noticiadas em trabalhos
escritos por terceiros.

3.1 Porto de desembarque dos imigrantes e profissão

O porto de desembarque no Prata, o local de origem na Península Itálica,


atividade ou profissão declarada na chegada ao Brasil para uma primeira visão, estão contidas
no referido quadro-síntese.

A atividade ocupacional era variada e encontra indicação no referido quadro-


síntese. Exerciam atividade ou profissão de alfaiate, agricultor, comerciante, construtor,
ferreiro, funileiro, hoteleiro, jornaleiro, marcineiro, marinheiro, músico, ourives, padeiro,
pedreiro, sapateiro, inclusive a atividade de empresário, pecuarista e motorista já na década
de 1930.

Há casos em que as fontes orais e documentais no País não foram suficientes para
aclarar a origem italiana e o porto de desembarque, tendo-se de buscar elementos probatórios
em Montevidéu e/ou Buenos Aires. Exemplificativamente, para Antonio Bonorino e Ângelo
Caetano Messa.
111

3.2 Local de origem na Península Itálica

Quanto aos locais de origem, com base na memória de descendentes e em


algumas fontes escritas referenciadas, a maioria procedia do norte da Península, inclusive do
Tirol. Observa-se a chegada dos imigrantes do centro e do sul da Península sobretudo depois
do início dos anos novecentos.

Constata-se a presença de imigrantes provenientes de quase todas as atuais


regiões italianas: Trentino-Alto Ádige ou Friuli-Alto Ádige, Friuli-Venezia Giulia, Vêneto,
Lombardia, Piemonte, Ligúria, Emilia Romanha, Marche, Toscana, Roma, Campânia,
Basilicata, Calábria e Sicília.

Citamos um caso ilustrativo. Manoelito de Ornellas em seu livro Terra Xucra


narra a presença de um professor tirolês que lhe ministrou aulas de matemática e alemão em
180
um ginásio instalado numa fazenda-fortaleza no município de Itaqui. Esse autor recorda
que ficou marcada na memória dos alunos desse ginásio o perfil e a atuação de Carlos Jerlan,
bacharelado pela Universidade Innsbruck – capital do Tirol.

A proveniência de Jerlan não se constituiu exceção em Itaqui. Evidencia a


presença de naturais do Tirol, território então totalmente austríaco. No quadro-síntese no
Capítulo 3, constam imigrantes originários da região do Tirol: Bonapace, Dondo,
Frensinghelli, Signoretti, Passamani. No passaporte de Paulo Bonapace encontra-se explícita
essa origem.

180
ORNELLAS , 1969, op. cit., p. 106.
112

Em outros locais do Rio Grande do Sul, a presença tirolesa também se fez notar,
inclusive com topônimos rememorando o território tirolês. A cidade de Taquara, RS, até certo
181
momento denominou-se Novo Tirol. A partir da Primeira Guerra, a parte meridional do
Tirol passou a constituir a região italiana do Trentino-Alto Adige.182

3.3 Época da chegada no Brasil

Todos os descendentes entrevistados demonstram certeza quanto ao porto de


chegada do seu ancestral na América do Sul. Mas a época exata tanto em Montevidéu e
Buenos Aires, quanto em São Borja, Itaqui e Uruguaiana, salvo algumas exceções, é um
questionamento sem resposta precisa – vide quadro-síntese no final deste capítulo. À questão
“Quando?”, poucos dispõem de exatidão em termos de dia, mês e ano. A maioria deduz
referenciais temporais, como “[...] logo após a guerra do Paraguai [...]”, “[...] no final do
século 19 [...]”, “[...] depois do início dos anos novecentos [...]” ou “[...] aproximadamente na
década tal [...]”.

Para alguns dos imigrantes nominados, o ano de chegada no Brasil corresponde a


1889, 1902, 1911, 1919, 1922 e 1935, conforme informações de descendentes e expostas no
quadro-síntese. A chegada que ocorreu em 1935, por ora se descobre a mais recente, em
Itaqui. Trata-se da imigração de Giovanna Vecchio, então com cinco anos, acompanhada do
pai e avô que re-imigravam da Itália para o Brasil através do porto de Buenos Aires. Trata-se
também da única pessoa que nasceu na Itália, encontrada e contatada na área da pesquisa.183 E
outra constatação, o ítalo-descendente Antonio Bonorino que consta no quadro-síntese e no
Apêndice A, deixou rastros documentais vigorosos da ascendência e insere-se na imigração
italiana precoce ocorrida em Montevidéu, bem como na ocorrida na área territorial brasileira
desta pesquisa. 184

181
CENNI, Franco. Italianos no Brasil – andiamo in ´Merica´. São Paulo: EdUSP, 2003, p. 151-152.
182
Disponível: http//pt.wikipedia.org/wiki/Tirol – Acesso em 07/07/2011.
183
Entrevista de G. Vecchio. Itaqui, em 09/11/2009.
184
APOLANT, 1975, op. cit., p. 1090.
113

Alguns imigrantes se anteciparam à vinda da família, a qual permaneceu em


território italiano como a de Bernardo Bonetti.185 Observou-se, também, que alguns vieram
com apoio de parentes ou amigos que já se encontravam em Buenos Aires, Montevidéu, em
Itaqui ou Uruguaiana. Por exemplo, Domingos Fossari.186 João Petrine.187 Ou João Schenini,
todos estes com apoio ou recepção de familiares em Buenos Aires.188 Ou Matteo Chiarelli,
com apoio da mãe na Itália e os irmãos em Montevidéu.189 Ou o pai da italiana Carmem
Gotuzzo que encontrava-se com a família no Salto, ROU, e foi levado pelo irmão Gaetano
Gotuzzo para Pelotas, onde este encontrava-se estabelecido com hotelaria e era o pai do pintor
Leopoldo Gotuzzo.190

O apoio dos amigos e vizinhos também foi decisivo. É o caso de Pedro Ruffoni,
com o auxílio de membros da família Mondadori.191 Ou André Rossi, apoiado por João
Schenini que o precedeu na chegada, também em Itaqui.192 Em Uruguaiana, também tem-se
notícia de outros exemplos: “[...] começou um, depois veio outro. Veio Belline, [...]. O
Belline trouxe o Chiarelli. O Chiarelli trouxe o Mandarino. E todos começam a vir por
Montevidéu, todos vinham de Montevidéu”.193

Para auxiliar na sustentação da família que permaneceu na Península, alguns


imigrantes empenharam-se em enviar recursos monetários aos seus. Veja-se as narrativas a
respeito deste tema pelos imigrantes portadores do sobrenome Schenini e Alfano – Apêndice
A. Nesse sentido, destaca-se aqui ato de homenagem realizado pelos descendentes de
imigrantes procedentes de San Benedetto Ullano – 20 km da cidade de Cosenza, na Calábria –

185
Idem entrevista de M.L. Cademartori Aramburu e M.C. Cademartori de Moura.
186
Entrevista de J. César Fossari. Itaqui, em 09/11/2009.
187
Idem entrevista de A.C. Flain Petrini.
188
Idem entrevista de P. Schenini.
189
Entrevista de C. Chiarelli Mascia. Uruguaiana, em 29/04/2010.
190
Entrevista de M. C. Moreira Kaspel. Uruguaiana, em 30/04/2010.
191
Entrevista de A. Silveira Floriano. Itaqui, em 05/11/2009.
192
Entrevista de M. Neves e Carolina Rossi. Itaqui, em 05/11/2009.
193
Entrevista de G. Alfano. Uruguaiana, em 24/02/2010.
114

residentes em Buenos Aires, ao brasileiro Gennaro Alfano e a sua mãe pelo trabalho
desempenhado pela mesma a essa comunidade antes de emigrar.

Os pais do uruguaianense G. Alfano eram naturais de São Benedito, na Itália. Em


1933 sua mãe, Luiza Maria Carmela Bonelli, imigrou para Uruguaiana ao casar-se com
Vicente Alfano. Este, depois de ter vivido cinco anos em Buenos Aires, em 1919 radicou-se
na referida cidade fronteiriça.194 Com a presença do ítalo-brasileiro Gennaro na capital
portenha foi coletivamente lembrado pelos descendentes “[...] beneditessi [...]” o trabalho
relevante que a conterrânea sua mãe realizou em prol daquela comunidade em ambos os
continentes. Maria Luiza exerceu a função de gerência do banco postal com abrangência em
cidades no sul da Itália, zelando para que as remessas de dinheiro dos imigrantes em Buenos
Aires chegassem aos seus parentes em San Benedetto Ullano, e em todas as partes:

[...] eu tive uma surpresa maraaavillhosa quando eu fui a primeira vez em


Buenos Aires. Os “sanbenedittesi”, como se diz aos sãobeneditanos
moradores em Buenos Aires, me fizeram um jantar em homenagem porque
eu era filho da minha mãe! Porque eles mandavam dinheiro pra minha mãe e
ela entregava para os pais, os parentes lá em San Benedetto. 195

3.3.1 Área de atração

Quanto ao local de estabelecimento ou instalação dos recém-chegados, observa-


se que há uma correlação com o surgimento e crescimento dos dois núcleos habitacionais
mais recentes em relação à São Borja, seja, Itaqui e Uruguaiana. Observa-se que os imigrantes
instalados em Itaqui procediam em sua grande maioria, nos anos oitocentos, do norte italiano.
Uruguaiana, chamada a princesa do rio Uruguai, despontou na geografia política local a partir

194
ALFANO, 2006, op. cit., p. 40-41.
195
Idem entrevista de G. Alfano.
115

da Revolução Farroupilha.196 Nesta cidade, nos anos novecentos, a predominância foi de


originários do sul da Península.

A maioria dos nomes elencados no quadro-síntese deslocou-se diretamente de


Montevidéu ou Buenos Aires para a área geográfica em foco. Dos peninsulares ou
descendentes constantes no quadro-síntese no final deste capítulo, alguns permaneceram por
algum tempo em uma ou outra destas duas capitais, como narrado no Apêndice A. Outros
permaneceram temporariamente em locais do território uruguaio ou argentino, como
Paisandu, Salto, Concórdia e Curuzú-Cuatiá. E há casos de imigrantes com passagem pelo
Paraguai. Paschoal Vomero encontrava-se estabelecido em Buenos Aires. Em decorrência de
movimento armado na capital argentina, deslocou-se para o Paraguai, onde casou-se com
descendente de espanhóis.197 E Luiz Cocolichio quando veio da Itália, depois de aportar em
Buenos Aires também esteve de passagem no Paraguai, onde estabeleceu vínculo familiar
pelo casamento com natural guarani.198 Posteriormente, Vomero e Cocolichio instalaram-se
definitivamente em Itaqui, onde nasceram todos os seus filhos.

Também observa-se casos de imigrantes estabelecidos no interior do Uruguai ou


da Argentina que depois foram atraídos para a área desta pesquisa: Alberto Lamarca
[Paisandu, ROU], Alexandre Cacciatore [Curuzu-Cuatiá, província argentina de Entre Rios],
Celestino Flain [Salto, ROU], Felippe Mandarino [Salto, ROU], Humberto Braccini [Salto,
ROU], João Lunardini [São Pedro, província de Buenos Aires, RA], João Petrine [Trenque
Lauken, província de Buenos Aires, RA], Paschoal Lamarca [Paisandu, ROU].

Há casos de imigrantes que entraram no Brasil por outros pontos da fronteira sul
ou estabeleceram-se em outros pontos do território nacional e por si ou descendentes
acabaram na focada área de atração. Tal se verificou com Antonio Contursi [Porto Alegre],
Magdalena Dondo [Livramento e Alto Uruguai], Carmem Gotuzzo [Pelotas], Gullermo
196
VILLELA, Urbano Lago. Uruguaiana, atalaia da Pátria: o homem, o meio e a história. Canoas: Editora La
Salle, 1971 – p. 301.
197
Entrevista de L. I. Escobar Vomero e M. Escobar Vomero. Itaqui, em 05/11/2009.
198
Entrevista de E. Palma Cocolichio. Porto Alegre, em 18/06/2010.
116

Mautone [Bagé e Pelotas]. Também há casos de imigrantes estabelecidos nas imediações da


linha de fronteira Brasil-Uruguai ou Brasil-Argentina e depois se estabeleceram na vizinha e
apontada área brasileira. Cita-se o caso de Antonio Deferrari [Artigas, ROU], de Francisco
Malfussi [Yapeju e Alvear, RA], de Domingos Passamani [Bela União, ROU].

Observa-se, ainda, a ocorrência de mobilidade cruzada de imigrantes peninsulares,


de um local para outro no interior da área. De São Borja para Itaqui, de Itaqui para
Uruguaiana e desta para São Borja, casos como de Antonio Bonorino, de José Beltran, de
João Lunardini.

Consta na citada obra Câmara de Vereadores de Itaqui, elaborada por um grupo


de pesquisadores, que os municípios de São Borja, Itaqui e Uruguaiana, situados na fronteira
argentina e uruguaia, além das correntes imigratórias do centro do país também recebiam
estrangeiros devido, “[...] entre outras causas, a atração pela facilidade do comércio com os
Países da Bacia do Prata, [...]”. E também consta que, desde o início esses municípios, em
função dos respectivos portos, se configuraram estratégicos sob o ponto de vista econômico,
por onde “[...] passavam a maior parte da mercadoria que entrava na província e no Brasil via
Rio Uruguai.”199 Em Negócios na madrugada, Colvero apresenta uma esclarecedora projeção
da irradiação dos portos de Itaqui, Uruguaiana e São Borja dentro da província do Rio
Grande do Sul – Figura nº 21. 200

199
COLVERO e SOARES, [Orgs.], et al, 2010, op. cit., p. 24 e 64.
200
COLVERO, 2003, op. cit., p. 96.
117

Fonte: COLVERO, Ronaldo B. Negócios na madrugada: formação e expansão do comércio ilícito em


Uruguaiana. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 96.
Figura nº 21.
118

Constatamos através de entrevistas com ítalo-descendentes, que esses portos


também serviram de porta de entrada para imigrantes italianos que seguiram para outros
destinos no território brasileiro. A esse respeito, B. D. Rossi Nery, neta do casal italiano João
Baptista Rossi e Isolina Biasca Rossi chegados pelo porto de Buenos Aires e depois
estabelecidos em Itaqui, disse: “E veio, não é? Veio italiano pra cá pro Itaqui. Ahhh! E foi
assim, quando chegavam se dividiam: uns foram pra São Borja, outros aqui pra
Uruguaiana”.201 G. N. Portella Trindade, neto do italiano Juvenal De Portella, referindo-se à
chegada do seu avô por Buenos Aires: “Inclusive veio ele, mais [...] dois irmãos, [...]”. E
informou que ancoraram e desembarcaram entre Itaqui e São Borja, no Cambaí. 202

O chamado rio Cambaí é um pequeno afluente do rio Uruguai, que desemboca a


montante e quase junto da cidade de Itaqui. No Cambaí a antiga Flotilha do Alto Uruguai,
organização da Marinha de Guerra sediada nessa cidade e que foi desativada em 1906,
mantinha o ancoradouro dos seus navios. José Hemetério Velloso da Silveira refere-se ao
203
mesmo. Portella Trindade acrescentou em seu depoimento: “E os outros dois irmãos, [...]
segundo notícia [...] um ficou naquela região [...] perto da grande Porto Alegre, por ali, Porto
Alegre. E o outro subiu [...] pro lado de São Paulo. Isso nos idos ali pela década 92, 1892”.
Um outro exemplo de passagem por Itaqui: bem antes dos anos novecentos, o italiano José
Beltran aportou em Montevidéu e estabeleceu-se nesta cidade com comércio e hotelaria.
Depois se mudou para Uruguaiana, onde sua esposa tinha uma pensão, na qual se hospedavam
conterrâneos da península itálica e aí realizavam bailes. Ao lado da mesma havia um terreno
que foi adquirido por um grupo de italianos e ali construíram, em 1879, a sede da Sociedade
Italiana de Mútuo Socorro União e Beneficência, – vide Apêndice A, Beltran. De
descendente do italiano José Beltran tem-se mais:

[...] pelo que eles contavam, [...] era mais fácil eles emigrarem [...] pelo
Uruguai, pela Argentina que desembarcá direto no porto brasileiro [...] pelo
que eles falavam era mais fiscalizado que na Argentina e no Uruguai. Então,
eles vinham via fronteira, que a passagem do Uruguai, principalmente do
201
Idem entrevista de B. D. Rossi Nery.
202
Entrevista de G. N. Portella Trindade. Itaqui, em 15/06/2010.
203
SILVEIRA, 1979, op. cit., p. 386.
119

Uruguai para o Brasil, era mais fácil. Até mais fácil que na Argentina. Pelo
menos é o que eles falavam na época. 204

Além do atrativo do franco desenvolvimento e como ponto estratégico em todos


os sentidos, em relação à entrada de imigrantes através desses três municípios caberiam as
considerações a seguir. Muitos italianos preferiram desviar-se para a Argentina, não pelo
fato de as condições climáticas serem assemelhadas às da Europa, mas também por que
aquele país vizinho possuía condições legais mais eficientes que as nossas. Contra a
deficiente estrutura das leis brasileiras relativas à imigração, Taunay – Alfredo d´Escragnolle
Taunay trabalhou e muito se debateu. 205

Comparando-se o Brasil e a Argentina, no país vizinho desde 1º de outubro de


1869 a naturalização era concedida após o preenchimento de alguns requisitos simples e daí o
citado Taunay, grande batalhador pela imigração em nosso País, atribuir à Igreja a maioria
das dificuldades – casamento civil, registro civil, secularização dos cemitérios – à aprovação
de leis pertinentes ao tema, fazendo que a emigração espontânea preferisse os Estados Unidos
ou à Argentina.206

Ante tal cenário, a própria imprensa, através do Jornal do Comércio em 1879,


levantou-se a favor da imigração, alertando: “Cuidado! A imigração escasseia de modo
sensível, corre para o Rio da Prata, procura outros países da América, abandona o Brasil”. 207
Registro contido nos anais em referência diz que o imigrante que chegasse aqui e dando-se
conta da verdadeira situação, seguiria para a Argentina e até para os Estados Unidos. 208

204
Entrevista de P. C. Rodrigues Beltran. Uruguaiana, em 30/04/2010.
205
ROCHE, Jean. A Colonização Alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1969, p. 97.
206
Anais da Câmara dos Deputados, Ano 1875, p. 71 – Tomo VI.
207
Anais da Câmara dos Deputados, Ano 1884, p. 33 – Tomo II .
208
Idem Anais, p. 36 – Tomo II.
120

3.3.2 Parentes no Uruguai e na Argentina

Observa-se a ocorrência de diversas situações: parentes que vieram anteriormente


para o Uruguai ou para a Argentina, parentes que chegaram juntos e permaneceram nesses
dois países, parentes que nasceram no Brasil e para lá se deslocaram ou lá nasceram.

Na relação dos imigrantes constantes no quadro-síntese e na leitura no Apêndice


A, observa-se que mais de 40 % dos mesmos têm parentes no Uruguai e ou na Argentina. Pelo
sobrenome: Bonorino, Braccini, Cacciatore, Caffarate, Chiarelli, Cocolichio, Contursi,
Drago, Flain, Fossari, Fresinghelli, Lamarca, Landarini, Lunardini, Malfussi, Mautone,
Morreti, Rastelli, Rossi, Ruffoni, Schenini, Veppo, Vomero.

Face o exercício de atividade em contato com o público, alguns desses parentes de


fronteiriços ítalo-brasileiros são conhecidos pelos seus co-nacionais na Argentina ou no
Uruguai. Cita-se Esteban Bonorino, irmão de Antonio Bonorino e Dominga Bonorino em São
Borja e Itaqui, lutou em Buenos Aires contra a expulsão dos ingleses em 1806 e 1807.209
Participou ativamente do movimento de 25 de mayo de 1810 e dos movimentos de
consolidação do estado-nacional argentino.210 Em sua memória, há na capital portenha a Calle
Coronel Esteban Bonorino. Seus filhos Martiniano e José Maria Bonorino, nacionais
argentinos, lutaram na guerra da Cisplatina contra o Brasil como corços. 211, 212

Osvaldo Cacciatore, membro da família de Alexandre Cacciatore em Itaqui, foi


prefeito [intendente] de Buenos Aires.213 Pertenceu à Força Aérea Argentina, alcançando o

209
GONZÁLEZ, 2008, op. cit., p. 39-40.
210
BALESTRA, Efraín Nuñez. Buenos Aires 1810: ¿revolución o golpe de estado? Montevideo: Orbe Libros,
2010, p. 115.
211
AGN, Bs As – Sala X, 14-5-1, 29/5/1827.
212
AGN, Bs As – Sala III, 60-3-11, Fecha 3/10/1882.
213
Entrevista de J. O. Ramos Sayago. Porto Alegre, em 1º/07/2010.
121

posto de brigadeiro. No início da sua carreira militar, participou de movimentos políticos e foi
obrigado a exilar-se em Montevidéu.214

Pascual Contursi e José Maria Contursi, respectivamente pai e filho, celebrados


letristas de tango em Buenos Aires, foram lembrados pelo entrevistado A. Contursi como
membros da sua família, a qual tem origem em Nocera Inferiore, província de Salerno, na
Campânia. Informou A. Contursi, que com José Maria, houve afinidade e relacionamento
familiar. 215 Pascual nasceu em 1888 e foi autor de algumas das mais belas letras de tango. O
seu filho José Maria nasceu em 1911 e foi dos mais brilhantes letristas do tango argentino. 216
Dentre as composições musicais das quais é autor, como letrista, destaca-se Gricel.217

Victória Schenini, neta-sobrinha de João Schenini em Itaqui, foi pianista de


218
renome e pedagoga no Uruguai. Pertenceu a uma geração de notáveis instrumentistas.
Entre outras atividades, desenvolveu intensa atividade como concertista e administradora de
espetáculos teatrais, mostrando abertura e equilíbrio para oportunizar temporadas de concertos
singulares. Talentosa e dona de ampla cultura, nada do mundo artístico lhe foi estranho.219

3.4 Evidências da identidade étnica dos recém-chegados

No período narrado no capítulo inicial, os imigrantes eram súditos italianos,


genericamente identificados como sardos, genoveses, calabreses, sicilianos. Exemplo típico
é o ocorrido em 1859 – visita do representante do governo da Sardenha aos seus em Itaqui,
que Silveira diz “[...] colônia italiana em Itaqui [...]”, grupo caracterizado pelo poder
econômico, “[...] uns ricos outros abastados.” 220

214
Disponível: http//es.wikipedia.org/wiki/Osvaldo Cacciatore – Acesso em 20/07/2011.
215
Idem entrevista de A. Contursi e B. Contursi.
216
ROMAY, Hector. El tango y sus protagonistas. Buenos Aires: Bureau Editor S.A., 2004, p. 96.
217
Disponível: http://es.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Mar%C3%ADa_Contursi – Acesso em 08/07/2011.
218
Idem entrevista de M. L. Cademartori Aramburu e M. C. Cademartori de Moura.
219
Jornal El País, Montevidéu, edição de 13/02/2007 – “Despedida a la pianista Victoria Schenini”.
220
SILVEIRA, 1979, op. cit., p. 384.
122

Outra evidência, em meados da década seguinte ocorreu à interveniência do


cônsul italiano destacado na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul quando súditos
italianos estabelecidos em São Borja e Itaqui pediram indenizações ao governo brasileiro por
danos sofridos com a invasão paraguaia no Sul. Naquela mesma época o representante
consular foi insistente na defesa de um súdito acusado de contrabando nas águas do rio
Uruguai, em São Borja. Diversos expedientes foram trocados entre o consulado e órgãos do
governo brasileiro para que o valor do barco e das mercadorias apreendidas fosse devolvido
ao suposto contrabandista, que se retirou para o Uruguai, deixando também como seu
procurador o cônsul italiano no Salto, ROU.

Houve outra situação que igualmente evidenciou a identidade de imigrantes


italianos: quando da manifestação de autoridades brasileiras locais e do consulado italiano na
então Província. Em 1887, o súdito italiano Santiago Ângelo, carpinteiro, trabalhava no
interior do município de Itaqui. Sentiu-se adoentado e dirigiu-se para a sede do município,
tendo encontrado acolhida e abrigo, por solidariedade, em casa particular, onde faleceu.
Deixou notícias registradas porque outro súdito italiano, Pascual Lorenço, comerciante, com
36 anos, mandou publicar a notícia da morte aludida no periódico O Uruguay, jornal que
circulava em Itaqui. 221

Em consequência, em 29/3/1887 a autoridade policial mandou investigar as


circunstâncias da morte de Santiago Ângelo. E o Juízo em Itaqui mandou abrir processo de
inventário dos poucos bens deixados pelo imigrante italiano. Em depoimento à autoridade
policial, Pascual informou que o seu co-nacional “[...] morreu a alguns meses passados [...]”
e informou que não tinha parentes “[...] neste Império e sim em Corrientes ou no Estado
Oriental”.

221
APERGS – 1887. Inventário nº 401, Maço 14, Estante 114.
123

Pascual disse à autoridade policial que a publicação da notícia que mandou fazer
teve por fim “[...] dar conhecimento à Colônia Italiana da morte desse compatriota, afim de
que se tomassem as medidas que o caso exigia em relação aos bens que deixou o finado”. Em
1885 Santiago Ângelo, também chamado Santiago de Ângelo, constou como credor no
inventário do italiano Severino Bacchini, do qual Santiago era credor, “[...] deixa de
apresentar a conta por achar-se este ausente, na campanha”.222

Nas peças processuais alusivas à morte de Santiago houve determinação judicial


para que na forma do “[...] Decreto nº 6582, de 30 de maio de 1877, artigo 17 [...]” o
Presidente da Província fosse comunicado da ocorrência desse fato e igualmente fosse dado
conhecimento ao “[...] Agente Consular [...]” sobre a existência de bens do referido súdito
italiano, falecido sem herdeiros. O “[...] Consolato di S. M. Il Re d´Italia [...]” manifestou-se
apenas para comunicar que havia recebido a comunicação judicial, conforme expediente desse
consulado no processo de inventário. Em 05/02/1890 observa-se despacho do então juiz
Emigdio Bonorino, que registrou serem passados dois anos e que o consulado italiano em
Porto Alegre não havia “[...] dado providências ao pequeno espólio [...]”. E de imediato
nomeou Alexandre Cacciatore, também natural da Itália – vide Apêndice A, para depositário
dos bens de Santiago Ângelo. A partir daí esse inventário prosseguiu até realização de praça
pública e venda dos bens do falecido para pagamento de credores, que apareceram depois e
se habilitaram nos autos.

Na ocasião da morte do súdito referido, ainda não estava formalmente constituída


a sociedade de mútuo socorro em Itaqui, tanto assim que o italiano denunciante, Pascual
Lorenço, disse à polícia que a sua ação e intenção foi para levar o fato ao conhecimento da
“[...] Colônia Italiana [...]”.223 A Sociedade Italiana de Mútuo Socorro Itaquiense surgiu
posteriormente, nesse mesmo ano, em 05/06/1887, como consta no seu estatuto a ser
tangenciado e, sem dúvida, para defesa de interesses étnicos, dos italianos e descendentes.
Manoelito de Ornellas, neto do italiano Antonio Guglielmi, refere que esta sociedade muito

222
APERGS – 1885. Inventário nº 1976, Maço 44, Estante 115.
223
APERGS – 1887. Idem Inventário nº 401.
124

mais socorreu brasileiros do que propriamente pessoas naturais da Itália: “[...] foi muito mais
socorro de brasileiros pobres do que de italianos necessitados.” 224

Vimos que o vocábulo colônia, ou colônia italiana, foi empregado por alguns dos
atores das narrativas anteriores. Rememorando, José Hemetério Velloso da Silveira referiu-se
à “[...] colônia de Itaqui [...], que em 1856 foi visitada pelo encarregado dos negócios da
Sardenha; em 1887, súdito italiano divulgou no Jornal O Uruguay, em Itaqui, a morte do
italiano Pascual Lorenço, talvez por julgá-la cercada de alguma ocorrência estranha, e disse
na repartição policial que assim procedeu para que o fato chegasse ao conhecimento da “[...]
Colônia Italiana [...]” local; Gennaro Alfano, em sua entrevista – vide Apêndice A – refere-se
à colônia italiana em Uruguaiana, e a outras.

As autoras da obra Colônia: um conceito controverso lembra que Caio Prado


Júnior e Carlos Guilherme Motta fornecem explicações teóricas que levam ao conceito de
225
colônia e discorrem a respeito. Nesta dissertação abstivemo-nos em afirmar, dentro do
rigorismo conceitual, na existência de colônia italiana em Itaqui e ou em Uruguaiana, optando
registrar presença, núcleo ou comunidade de imigrantes desta nacionalidade.

3.5 Formas de organização e as sociedades de mútuo socorro

Após a guerra do Paraguai constata-se que prosseguiu a chegada espontânea de


imigrantes via Rio da Prata – quadro-síntese, em regra de forma pulverizada.

Em consequência, surgiram duas sociedades italianas de mútuo socorro. Em 1879


foi fundada a Sociedade Italiana de Mútuo Socorro União e Beneficência em Uruguaiana e,

224
ORNELLAS, 1969, op. cit., p. 39.
225
GIRON, Loraine Slomp; e BERGAMASCHI, Helois Eberle. Colônia: um conceito controverso. Caxias do
Sul: EdUCS, 1996, p. 7, 57-67.
125

em 1887, a Sociedade Italiana Itaquiense de Mútuo Socorro em Itaqui. Nos primeiros tempos
essas entidades acolheram e apoiaram muitos dos recém-chegados, até arranjarem trabalho,
mantendo-os em torno dos objetivos sociais estatutários e cultivando o espírito patriótico
nacional italiano.

As associações de mútuos socorros, ou mutuais, cresceram muito desde meados


do século 19, principalmente nas últimas décadas daquele século, em decorrência das levas de
imigrantes que chegavam na Argentina. A primeira associação mutual, ou de mútuo socorro
em Buenos Aires chamava-se União e Benevolência. Foi criada em 1858, sob o contexto da
ideologia mazziniana. Essa iniciativa antecipava a que os republicanos decididamente
impuseram sobre a Itália. Não é surpresa que os promotores da iniciativa associativista eram
os exilados políticos e as pessoas próximas aos mesmos. Dentre os promotores havia não
226
poucos membros da loja maçônica peninsular União Italiana.

No decorrer da década de 1870, as grandes associações em diversos países


também fundaram hospitais comunitários como o Espanhol, o Francês e o Hospital Italiano
em Buenos Aires. Novamente no projeto de construção do Hospital Italiano se congregavam
dois temas que estão presentes da fundação das mutuais: assistencialismo e política. 227 Neste
hospital, inclusive, foi tratado o italiano João Petrine durante seis meses, quando já se
encontrava trabalhando no Brasil, depois de ter vivido por cinco anos na Argentina. 228

Em Uruguaiana e Itaqui, também foram fundadas duas dessas associações. Chama


a atenção que o estatuto-regulamento da mutual em Itaqui foi impresso em Buenos Aires. E o
estatuto de ambas foi impresso no idioma italiano. Tinham finalidades assemelhadas:
ocupar-se da saúde dos seus associados, ajuda para obtenção de emprego e, eventualmente,
pagamento de seguro-desemprego ou mesmo da repatriação de compatriotas que a desventura
jogasse na indigência.

226
DEVOTO, 2006, op. cit, p. 82.
227
Ib., p. 81.
228
Idem entrevista de A.C. Flain Petrine.
126

É possível estabelecer alguns paralelos quanto à iniciativa associativista,


correlacionada com as mutuais em Buenos Aires e aqui. A começar, tudo indica, com a
influência ou inspiração de membros da maçonaria na fundação e ou mantença das sociedades
de mútuo socorro com pauta na solidariedade humana. Conforme síntese no Apêndice A,
observa-se que o imigrante italiano Alexandre Cacciatore residiu e casou-se na Argentina,
tendo residido em Curuzú-Cuatiá, província de Entre Rios, próxima de Uruguaiana; que em
1884 era maçom em Itaqui e depois foi presidente da Loja Maçônica Progresso Itaquiense;
que foi um dos fundadores da Sociedade de Mútuo Socorro Itaquiense em 1887; foi o
presidente esta sociedade em 1920 quando, como visto, foi impresso o estatuto da referida, na
capital argentina. No trecho sincretismo religioso, observa-se, ainda a título de
exemplificação, o nome de alguns imigrantes italianos também presentes nas hostes
maçônicas.

Mais que a política e a vida da instituição de mútuo socorro, os associados


buscavam cobertura de saúde, auxílios em tempos de problemas e informações sobre
trabalho. Tanto na Argentina como em Uruguaiana e Itaqui, percebe-se que os líderes das
mutuais tinham o encargo de preservar, no interior das mesmas, a origem étnica dos
imigrantes com o cultivo de alguns símbolos e da própria língua. Ademais, tinham a função
de intermediários de uma vigorosa malha de relações entre as estruturas da sociedade
receptora, detentora das oportunidades econômicas e, em especial, as de trabalho.

3.5.1 A Sociedade Italiana de Mútuo Socorro em Uruguaiana

Em 1879, foi fundada a “Società Italiana di Mutuo Soccorso Unione e


229
Beneficenza”. Na Rua Domingos de Almeida, ao lado de uma pensão havia um terreno
onde muitos italianos se encontravam e realizavam bailes. Nesse local, foi construído o prédio
230
sede da Sociedade Italiana. Conforme Fonttes e Fanti, essa pensão pertencia à esposa do

229
Statuto e Regolamento della Società Italiana di Mutuo Soccorso Unione e Benificenza. Uruguayana: Liv. e
Bazar Comercial, 1905.
230
FONTTES e FANTI, 2008, op. cit., p. 75.
127

italiano José Beltran. Este desembarcou em Montevidéu e estabeleceu-se em Itaqui. Depois se


mudou para Uruguaiana. 231

A Sociedade União e Beneficência dispunha de um estatuto e regulamento,


escritos em italiano. O estatuto continha 25 artigos e o regulamento 130. No último artigo do
regulamento estava registrado que os dois textos mandamentais foram aprovados pela
assembléia geral ocorrida em 28 de outubro de 1905, data a partir da qual passaram a vigorar.
Na ocasião contava com 113 sócios, segundo a lista na parte final do seu regulamento. Quanto
às dimensões comparativas da sociedade italiana em Uruguaiana, tem-se a seguinte
observação: “Na época era uma grande colônia, tanto que fizeram a Associação. Era a
terceira colônia. A primeira de Uruguaiana era a francesa, era a maior, [...]. Depois a
espanhola e a terceira foi a italiana.” 232

Registre-se, mesmo após o desmembramento de Uruguaiana do novel município


denominado Barra do Quaraí, o muncípio-mãe de Uruguaiana continua a fazer fronteira com
a Argentina e com o Uruguai. A cidade de Uruguaiana tem extraordinária importância geo-
estratégica internacional. Nela localiza-se o maior porto seco da América Latina e está situada
em ponto equidistante de Porto Alegre, Montevidéu, Buenos Aires e Asssunção. Uruguaiana,
na época, mantinha contatos mais intensos e frequentes com Buenos Aires e Montevidéu, do
233
que com a capital da Província de São Pedro do Sul. Ademais, na outra margem do rio
Uruguai e bem a sua frente, despontava Restauración, a atual Paso de Los Libres, onde
fervilhavam perseguidos políticos também de várias nacionalidades, afugentados do centro do
Prata principalmente no tempo da ditadura de Rosas, João Maonel Rosas, cujo governo caiu
na batalha de Monte Caseros, nas imediações de Buenos Aires, no dia 03/0/1852, também
234
com o apoio de forças do Império do Brasil. A histórica Yapeju, alguns quilômetros rio
acima na margem argentina, foi local de concentração de imigrantes franceses. 235

231
Idem entrevista de P. C. Rodrigues Beltran.
232
Idem entrevista de G. Alfano.
233
Disponível: http://pt.wikipedia.org/wiki/Uruguaiana – Acesso em 17/04/2011.
234
FERRREIRA, Gabriela Nunes. O Rio da Prata e a consolodição do Estado Imperial. São Paulo: Editora
Hucitec, 2006, p. 199 – Tese de doutoramento.
235
PONT, Raul – Acervo. Centro Histórico Dr Pedro Mariani em Uruguaiana.
128

Uruguaiana emancipou-se em 1846 do município de Alegrete, ao qual pertencia e


na observação de alguns viajantes da época como Lallemant, em 1858, muito mais se parecia
com uma cidade hispana-francesa do que brasileira nas suas relações de vida e de comércio:

Quando em e 1842, as perseguições políticas nos outrora estados espanhóis


do Prata se desenvolveram de modo terrível e Rosas com sobre-humana
violência tudo esmagava, fugiram daquelas regiões, através das fronteiras
com o Brasil, muitos espanhóis e pessoas de todas as nacionalidades para
aguardarem que mudassem as tristes condições dos Estados do Prata. Vivia
aquela gente em tendas e barracas de todos os tipos até que do caos surgiu
um lugarejo. Depois da queda de Rosas, regressaram muitos deles; mas
ficaram muitas forças ativas, a que se reuniram novos elementos, de modo
que Uruguaiana é uma vila de pelo menos 2.000 habitantes, onde se
manifesta, em todos os recantos, a mais viva atividade comercial.

Só franceses existem mais de cem no lugar, entre eles gente de muito boa
educação e de irrepreensível conduta. 236

Na alínea “a” do artigo 2º do Estatuto da Sociedade Italiana de Uruguaiana União


e Beneficência, lê-se que o fim da mesma era aproximar e unir todos os italianos residentes
em Uruguaiana, mantendo vivo o espírito patriótico italiano. No artigo 3º constava que o
símbolo da sociedade era a bandeira italiana contendo escrito o nome Società Italiana di
Mutuo Soccorso Unione e Benificenza Uruguayana. E no artigo 4º estava preceituado que a
língua oficial da sociedade seria a italiana, não excluindo qualquer outra desde que
solicitado o seu emprego.

O pesquisador Daniel Fanti, historiador municipal em Uruguaiana, ao registrar


relatos de Wilma Benites Lopes, neta do italiano Primo Depedrini, o qual aportou a América
do Sul por Montevidéu, assinalou: “[...] que o principal ponto de encontro da “[...] italianada
[...]” de Uruguaiana era na Società Italiana de Mútuo Soccorso Unione e Beneficenza, onde
Primo Depedrini era assíduo frequentador. Todas as tardes, após a sesta pegava sua bengala e
devagar subia a Domingos de Almeida, indo encontrar seus amigos compatriotas, retornando
à tardinha.” 237

236
AVÉ-LALLEMANT, 1953, op. cit., p. 279.
237
FONTTES e FANTI, 2008, op. cit., p. 29.
129

G. Alfano, ex-presidente da sociedade italiana em Uruguaiana e que também foi


entrevistado, escreveu que a comunidade italiana no tempo em que seu pai Vicente Alfano
foi sócio da União e Beneficência, era numerosa e centrada nessa sociedade. Acrescentou:
238
“As reuniões da Sociedade Italiana eram memoráveis. Grandes comilanças.” N. Eduarda
Rastellí lembrou que seu avô Roberto Gandolfo Rastelli era frequentador assíduo daquele
local. 239 Inclusive, nesse mesmo lugar – a sede da antiga sociedade italiana hoje sociedade
ítalo-brasileira, também foram entrevistadas as descendentes dos italianos Roberto Rastelli,
Carmem Gotuzzo e de João Lunardini na pessoa da neta T.

3.5.2 A Sociedade Italiana de Mútuo Socorro em Itaqui

Em 1887 ocorreu a fundação da Sociedade Italiana de Mútuo Socorro Itaquiense.


No seu estatuto estão relacionados os nomes dos sócios que capitanearam a fundação da
entidade, e expressamente está registrado “[...] entre outros [...]” e, logo a seguir, estão
relacionados em texto descritivo introdutório os nomes de “[...] Alessandro Cacciatore,
Savério Piagetti, Luigi Piffero, Bernardo Bonetti e Salvatore Degrazia]”.

O estatuto-regulamento da entidade foi impresso em 1920, em Buenos Aires e,


como já informamos, em idioma italiano. 240 O seu artigo 3º evidência seu caráter étnico ao
preceituar que uma das condições para ser sócio, o candidato deveria ter a nacionalidade
italiana ou ser descendente de italiano.

O imigrante Domingos Moretti Filho, nascido em Montevidéu, quando já


241
estabelecido em Itaqui com comércio muito apoiou os que chegavam. Era filho do italiano

238
ALFANO, 2006, op. cit., p. 23.
239
Entrevista de N. Eduarda Rastellí. Uruguaiana, em 29/04/2010.
240
Statuto e Regolamento della Società Italiana di Mutuo Soccorso Itaquiense. Buenos Aires: Est.Tipo-
Litográfico J.Carbone y Cia, 1920.
241
Entrevista de J. Piffero Signoretti. Itaqui, em 07/11/2010.
130

Domenico Moretti, radicado em Montevidéu.242 Tal como Moretti e em solidariedade,


Alexandre Cacciatore e outros procederam da mesma forma com imigrantes então recém-
chegados. 243

J. Piffero Signoretti alinhou duas preocupações imediatas dos imigrantes em


Itaqui: a) arranjar um lugar para permanecerem até obtenção de emprego; b) arranjar um
túmulo para enterrar seus mortos, já que a morte era frequente, principalmente de crianças.
Constituída a sociedade italiana, seus membros “Começaram a trabalhar pela cidadania".244
E passaram a ocupar-se no comércio, na atividade agrícola, em serviços de jornadas – os
jornaleiros ou biscateiros. Paralelamente começaram a dominar a língua portuguesa. Mais
tarde adquiriram, por compra, o local onde permaneciam após a chegada, o qual era um
galpão-alojamento estabelecido na Rua 15 de Novembro, onde foi instalada a sede definitiva
da Sociedade Italiana em Itaqui.

Essa aquisição ocorreu em 1897, tendo por confrontantes os terrenos de Ignácia


Athayd Escobar, Anna Rodrigues Lima Merlo e os herdeiros Chiarini. O vendedor-
transmitente foi o ítalo-descendente Emigdio Bonorino, brasileiro e já neto de peninsular. Seu
pai, Antonio Bonorino, foi membro do grupo da imigração anterior a 1875 em Itaqui como
consta no capítulo precedente. 245

O ítalo-descendente Manoelito de Ornellas conheceu a sede da Sociedade Italiana


Itaquiense, levado pelas mãos do seu avô materno, que nasceu na Itália e com seu pai João
Maria Guglielmi se radicaram em Itaqui – aprofundamento destas informações no Apêndice
A, verbete Guglielmi. Depoimento:

242
Entrevista de O. Cabral Moretti. Itaqui, em 09/06/2010.
243
Idem entrevista de J. O. Ramos Sayago.
244
Idem entrevista de J. Piffero Signoretti.
245
Cartório de Imóveis de Itaqui, Registro nº 501 Livro 3-A, folha 38, em 05/02/1897.
131

Meu avô Antonio Guglielmi, levou-me algumas vezes à sede da “Societá


Italiana”. E meus olhos guardaram a efígie de uma Rainha, que se chamava
Mafalda e tinha a fronte e o colo cobertos de pérolas e de um Rei de grandes
bigodes que devia ser Humberto I ou Victor Emanuele, pouco importa.246

Vê-se que estas duas sociedades italianas, em Uruguaiana e Itaqui, eram entidades
ativas e que contavam com a presença de seus associados. O pertencimento de imigrantes às
mesmas foi lembrado por outros descendentes de italianos que aportaram na América do Sul
pelo Prata e arrolados neste trabalho, sobretudo no Apêndice A: Cacciatore, Caffarate,
Chiarelli, Degrazia, Fossari, Guglielmi, Moretti, Passarello, Piffero, Rastelli, Rossi, Schenini,
Signoretti, Vecchio. Tais sociedades amparavam seus afiliados nos momentos mais aflitivos,
inclusive as duas dispunham de túmulos chamados mausoléus, até hoje existentes em Itaqui e
Uruguaiana.

3.6 Inserção, inovações e implicações sociais

A inserção dos chegados à sociedade local se deu pelo trabalho e pelo cotidiano
nos espaços que começaram a ocupar, superadas as dificuldades iniciais com o apoio das
citadas sociedades de socorro mútuo. No seio da população local eram tidos por italianos,
facilmente identificados pelo sobrenome, seus traços físicos e as dificuldades no uso do
idioma português. Alguns se ocuparam no comércio como comerciantes ou comerciários,
verdureros ou tomateros, como tachados os que se dedicaram ao cultivo de hortas e
plantações no entorno urbano logo ao chegarem. Observa-se igualmente a presença de
biscateiros ou jornaleiros, autônomos nas mais diversas atividades. Outros eram construtores,
artesões, carpinteiros, marceneiros pedreiros, que trouxeram novo visual na arquitetura a
essas povoações de origem luso-espanhola.

O próprio teatro Prezewodoski em Itaqui foi construído pelas mãos de muitos


imigrantes italianos, como atestam entrevistas de A. Brod Cacciatore, J. L. Brod Cacciatore,

246
ORNELLAS, 1969, op. cit., p. 39.
132

M. L. Cademartori Aramburu, L. C. Cademartori de Moura, T. Frensinghell. Foi casa de


cultura e diversão de várias gerações. E continua sendo depois de restaurado. O seu nome é
uma homenagem que, involuntariamente, dois italianos, tidos por malfeitores em Alvear,
RA, atribuíram ao comandante da força fluvial onde servia o médico da Flotilha da Armada
Brasileira – Flotilha do Alto Uruguai, sediada e ancorada no Porto de Itaqui. O capitão-
médico da Força foi àquela cidade argentina prestar assistência a um enfermo e fisicamente
foi agredido pelos italianos Guido Benatti e Vicente Logato, charlatões de curas. Em relação a
esse fato, as autoridades argentinas de Alvear, que além de prenderem e manterem
incomunicável o oficial brasileiro, fardado, não responderam o pedido de explicações da
autoridade militar da área e mantiveram-se omissas.

Tal incidente de fronteira provocou ato de desagravo da dignidade nacional pelo


comandante da força brasileira, capitão-de-mar e guerra Estanislau Prezewodoski, brasileiro
natural de Salvador, BA, de origem polonesa e herói de batalhas navais na Guerra do
Paraguai. Manoelito de Ornellas narra em sua obra Terra Xucra, que Prezewodoski não
vacilou, mandando levantar ferros da nave capitania e ancorou toda a flotilha brasileira além
do limite das nossas águas no rio Uruguai. Exigiu a devolução do capitão Pamphylo Manoel
Freire de Carvalho e deu inicio a um calculado bombardeio sobre a praça central de Alvear.
Sem demora, uma comitiva de autoridades de alla – da outra margem do rio – em uma
247, 248,
apressada lancha sob bandeira branca efetuou a entrega do oficial brasileiro. Também
escreveu Ornellas que o desassombrado comandante, para concluir o memorável feito, “[...]
mandou que a Banda Naval, no tombadilho, executasse o Hino Brasileiro e, isso, dentro das
águas argentinas.” Por esse ato, Estanislao perdeu o comando, foi levado a conselho de guerra
no Rio de Janeiro, absolvido. Seu nome ficou para sempre na memória da população local e
na cultura material, insculpido no alto do frontispício de um belo teatro, construído pelo
esforços e mãos de muitos imigrantes italianos.

A presença de Beneti e Lobato em Alvear, causadores desse incidente


internacional, demonstra que na época era fato comum a presença de imigrantes italianos em

247
ORNELLAS, 1968, op. cit., p. 28-31.
248
João Rossi Nery, Jornal A Verdade, edição de 19/11/1994.
133

ambas as margens do rio Uruguai, no Brasil, na Argentina e no Uruguai. Lembramos outra


narrativa nesta dissertação, nessa mesma linha: o italiano João Del Giorgio, residente em
Itaqui, encontrando-se muito doente resolveu procurar recurso de médico ou de ”[...] de
curioso [...]” em Alvear, assim consta no seu inventário, e lá faleceu.

Outros imigrantes italianos alcançaram a condição, ou status, de estancieiros ou


fazendeiros, como se constata adiante – no subtítulo “Conflitos políticos, desapropriação de
terra e ocupação de espaços”. Dedicaram-se à criação de animais em propriedade rural de
pequena extensão em meio de grandes fazendas de gado. Cita-se o caso do italiano Victor
Messina no município de Itaqui. 249 Ou de Primo Depedrine em Uruguaiana – vide Apêndice
A. Outros se dedicaram à agricultura, em área de pecuária como toda a fronteira sul-brasileira,
cita-se o caso do imigrante Benjamin Passamani, que também chegou pelo porto de Buenos
Aires, adentrou no Brasil por São Borja e estabeleceu-se no mesmo município de Itaqui,
próximo à divisa com o de São Francisco de Assis:

[...] o vovô plantava trigo, fazia vinho [...] o vinho da granja Itú era dele [...]
vendia vinho para a Presidência da República [...] naquele tempo no Rio de
Janeiro. O vovô trouxe os costumes de [...] agricultor [...] ele era agricultor:
plantava triiigo, milho, [...] arroz [...] em pequenas áreas [...] E tinha um
engenho lá, tocado à água, onde ele descascava arroooz, fazia farinha de
milho, farinha e trigo. E ali que ele vivia, [...] 250

O enraizamento se solidificou e consolidou com os filhos dos imigrantes no


contexto em construção. A nominata no quadro-síntese foi extraída do Apêndice A. Este foi
elaborado a partir de aspectos das narrativas dos entrevistados e por outras fontes de
informação, referenciadas nesse apêndice. É uma tarefa não concluída quanto à totalidade dos
imigrantes e a extensão das experiências e realizações individuais, com repercussão social.
Muitos dos imigrantes relacionados e seus filhos passaram a ocupar posições inclusive de
liderança em associações civis, no comércio, nas atividades de profissionais liberais, no
magistério e também nas atividades agropastoris.

249
Entrevista de Ê. Rodrigues Messina e F. Messina Escobar. Itaqui, em 26/11/2010.
250
Entrevista de C. B. Passamani dos Santos e Cláudia Passamani. Itaqui, em 19/03/2010.
134

O quotidiano dos imigrantes em São Borja, Itaqui e Uruguaiana refletiu em


mudanças de mentalidade, mudanças sociais e materiais, em renovação de lideranças e na
criação de entidades representativas. Tal se pode constatar em registros contidos em narrativas
de descendentes entrevistados, em notícias de órgãos da imprensa e também nos escritos
realizados por terceiros – vide Anexo 1. A obra Uruguaiana – atalaia da Pátria contém uma
relação de nomes de cidadãos que residiram em Itaqui e em Uruguaiana nas últimas três
décadas dos anos oitocentos. 251 Dentre os nominados estão alguns italianos ou descendentes
no quadro-síntese do capítulo 3 e no Apêndice A desta dissertação: Alexandre Cacciatore,
Bernardo Píffero, Domingos Moretti, Emydio Bonorino, João Schenini, Salvador Degrazia e
Tito Cademartori, Vicente Cremontte.

Dentre muitos dos anônimos e em representação aos mesmos, citam-se: Rodolfo


Rastelli na construção da fachada de prédios; Matteo Chiarelli e Carlos de Assis Aymone,
ourives; Antonio Guglielmi, artesão em madeira; João Baptista Rossi, na construção de
túmulos; Domingos Montti e André Martinelli, na construção de açudes de pedra em pleno
pampa; Gualtiero Frensinghelli, na construção dos primeiros banheiros para gado bovino e
ovino e também na construção do Teatro Prezewodowski, em Itaqui; Ítalo Drago e Faustino
Lora, trabalhos de ferreiro e em artesania de ferro; Carlos Drago, na fabricação de tijolos
especiais; Vicente Alfano, na confecção de ternos.

Além do surgimento da mentalidade despertada pela atuação e presença dos


imigrantes e descendentes que chegaram por Montevidéu ou Buenos Aires, percebe-se que a
cultura material em São Borja, em Itaqui e em Uruguaiana, recebeu contribuições marcantes:
novas linhas arquitetônicas ficaram assentadas nas obras do arquiteto Paschoal Minoggio,
que também foi pioneiro no emprego de diversas inovações tecnológicas da época. Houve a
colaboração de especialistas em fachadas de prédios, construtores ou pedreiros, artífices e
artesões em ferro, em ourivessaria, em madeira, em pedra, na confecção de roupas, que
contribuíram para as mudanças socioeconômicas ocorridas na sub-região.

251
VILLELA, 1971, op. cit., p. 279, 286 e 287.
135

3.7 QUADRO SÍNTESE – Extraído do Apêndice A.

ITALIANOS E DESCENDENTES VIA RIO DA PRATA: São Borja,


Itaqui e Uruguaiana, RS [1834-1968]

N O M E O R I G E M PROFISSÃO NO BRASIL

Via Montevidéu:
Beltran, José ? Hoteleiro Déc. 1870
Bonapace, Paulo Tione,Trentino-Alto Ádige Comerciante 1889
Bonorino, Antonio * Mallare, Ligúria Comerciante 1830/1833
Braccini, Humberto * ? Pecuariarista Déc.1890
Cademartori, A. César Rapallo, Ligúria Marinheiro ?
Chiarelli, Matteu Lauria, Basilicata Ourives 1911
Deferrari, Antonio ? Agricultor Déc. 1900
Depedrine, Primo Lombardia Comerciante Déc. 1890
Dondo, Magdalena Vicenza, Vêneto Do lar Déc. 1880
Flain, Ângela B. Norte da Itália Hotelaria ?
Gotuzzo, Carmem Portofino, Ligúria Do lar Déc. 1890
Landarini, Fidêncio * Veneza, Vêneto Jornaleiro Déc. 1890
Lamarca, Alberto Acqua Fredda, Basilicata Funileiro 1922
Mandarino, Fellipe Lauria, Basilicata Sapateiro ?
Mautone, Guillermo Pisciotta, Campânia Comerciante Déc. 1890
Moretti, Domingos * ? Comerciante ?
Rastelli, Roberto Parma, Emilia Romanha Construtor 1922
Rossi, André Vicenza, Vêneto Comerciante ?
Ruffoni, Pedro Norte Itália (ilha marítima) Comerciante 1902
136

N O M E O R I G E M PROFISSÃO NO BRASIL

Via Buenos Aires:


Alfano, Vicente S. Benedetto, Calábria Alfaiate 1919
Bonetti, Bernardo Piemonte Construtor Déc. 1880
Cacciatore, Alexandre Viguzzolo, Piemonte Comerciante Déc. 1880
Caffarate, Ângelo Gênova Jornaleiro Déc. 1880
Cocolichio, Luiz Melfi, Basilicata Sapateiro ?
Contursi, Antonio Nocera Inferiore, Campânia Empresário Déc. 1920
Cremonti, Vicente Sicilia Comerciante ?
Degrazia, Antonio Colvello, Basilicata Agricultor Déc. 1880
Dellamora, Carlo Cavaglio Spoccia, Lombardia Construtor Déc. 1870
Drago, Ítalo Friuli-Venezia Giulia Ferreiro Déc. 1880
Fossari, Domingo Polistena, Calábria Construtor Déc. 1890
Frensinghelli, Gualtiero Trento,Trentino-Alto Ádige Construtor Déc. 1900
Guglielmi, Antonio Crana, Piemonte Marcineiro Déc. 1880
Lunardini, João Montefeltro, Marche Comerciante Déc. 1910
Malfussi, Fernando * Roma Mecânico ?
Messa, Ângelo Caetano ? Comerciante Déc. 1890
Mondadori, João Mantova, Lombardia Engenheiro Déc. 1880
Montti, Domingos Milão, Lombardia Construtor Déc. 1890
Minoggio, Paulo D. ? ? Déc.1870
Passamani, Benjamin Trento,Trentino-Alto Ádige Agricultor Déc. 1890
Passarello, Ângelo Campânia Artesão Déc. 1880
Petrine, João Lamari, Toscana Motorista Déc. 1930
Pianta, Benito ? Carpinteiro Déc. 1880
Piffero, Primo Trieste, Friuli-V.Giulia ? Déc. 1880
Portella, Juvenal De ? Pecuarista Déc. 1890
Rossi, João Baptista Biasca, Lombardia Construtor ?
Schenini, João Grondola, Lombardia Jornaleiro Déc. 1870
Signoretti, Jacob Trento,Trentino-Alto Ádige ? ?
137

N O M E O R I G E M NO BRASIL PROFISSÃO
Vecchio, Paulo Oviglio, Piemonte Pecuarista ?
Veppo, João Maria ? Comerciante ?
Vitali, Antonio ? Jornaleiro ?
Vomero, Paschoal Nápoles Músico ?

* Descendente, primeira geração.


138

Fonte: Jornal de Itaqui, edição de 22/05/1929.

Figura nº 22.
139

Fonte: Gentileza do arquivo de sucessores de Marciano Messa Figueiredo.

Figura nº 23.
140

Fonte: Gentileza do arquivo de sucessores de Marciano Messa Figueiredo.

Figura nº 24.
141

4 CONFLITOS E INTEGRAÇÃO

A experiência individual de cada imigrante foi uma realização única de um


252
fenômeno geral. A presença local de imigrantes é reflexo do fenômeno social das
migrações, no qual os imigrantes são os atores. Ao longo da caminhada em busca de
estabilização existencial e integração em novo país, entre as divergências e convergências
com as quais os imigrantes foram se deparando, configurou-se e reconfigurou-se identidades e
representações simultaneamente em nível de histórias de vida e da existência da própria
sociedade. Entre as divergências, vejamos algumas tidas por conflitos.

4.1 Conflito de súdito italiano e agente consular com o governo brasileiro

Em 1859, a aduana brasileira apreendeu barco e mercadorias do súdito italiano


Luis Risso em São Borja, sob a suspeita da prática de contrabando. Durante quase uma década
a representação consular italiana na então Província de São Pedro intercedeu na defesa do seu
nacional usando de vários expedientes escritos. Mais tarde esse súdito, já em território
uruguaio, delegou poderes para que a delegação consular no Salto também o representasse
perante as instâncias do governo brasileiro.

O vice cônsul da Itália na capital reclamou ao presidente da Província contra essa


apreensão. Alegou que não deveriam tais objetos serem considerados contrabando, “[...] por
terem sido competentemente despachados na Alfândega de Entre Rios no Passo da
Restauração com destino a S. Thomé e que se a mesma chalana aportou a margem do rio
252
GEERTZ, Clifford. The Social History of Indonesian Town. Cambridge: MIT Press, 1961, p. 153-154.
142

pertencente ao Império, fora por ter sido forçada pelo vento, porém sem intenção de
253
desembarcar os referidos objetos”. Tais fatos foram levados ao conhecimento da Legação
Italiana na Corte – Rio de Janeiro. Na documentação em arquivo, existe referência que diz
que a Mesa de Rendas de São Borja comunicou à Alfândega, que já havia transferido sua sede
para Uruguaiana, que “[...] os livros de termos de arrematação perderam-se com a invasão
paraguaia e que passava a dirigir-se ao Tesouro para que houvesse de resolver sobre a
questão.”

Na capital da Província, a autoridade administrativa hábil emitiu o seguinte


comunicado: “[...] de conformidade com a resolução tomada na sessão da Junta de 26 do
corrente comunica ao Sr. Inspetor da Âlfandega de Uruguaiana que foi julgado nula a decisão
dada pelo Administrador da Mesa de Rendas de São Borja em 9 de setembro de 1859, em
processo de apreensão de uma chalana e mais objetos pertencentes ao súdito italiano Luis
Risso [...]. 254 E em 05/01/1866, o presidente do Tribunal do Tesouro Nacional no Ministério
dos Negócios da Fazenda no Rio de Janeiro, concluiu e ordenou que sendo impossível a
organização de novo processo e estando o referido Luis Risso, além disso, absolvido por
sentença do Juizo criminal do crime de contrabando, “[...] ordeno ao Sr. Inspetor que pondo
termo a semelhante processo, mande restituir ao dono da chalana, ou a seu legítimo
procurador o produto da arrematação da mesma e das mercadorias apreendidas”.

Finalmente, em 07/11/1866 o agente consular da Itália em Porto Alegre


encaminhou expediente ao Vice-Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul
no qual diz que recebeu ofício do “[...] Régio Agente Consular de SM O Rei d´Itália [...]” na
cidade do Salto, no Uruguai e procuração especial do súdito Luis Risso, que o constituiu
procurador para que recebesse da Tesouraria da Fazenda da Província o quanto o representado
tivesse o direito de receber em restituição ao barco e mercadorias apreendidas. 255

253
Idem AHRGS – Legação italiana Expediente interno da Inspetoria da Tesouraria de Fazenda da Província de
São Pedro do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre.
254
AHRGS – Legação italiana. Thesouraria de Fazenda da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul em
Porto Alegre. Comunicação nº 24, em 9/02/1864.
255
AHRGS – Legação italiana. Ofício da “Regia Agencia Consular de S. M. O Rei d´Italia em Porto Alegre” ao
Vice-Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, em 07/11/1866.
143

Uruguaiana, cidade de fronteira e produto da inspiração farroupilha, foi criada em


256
1846. O pesquisador uruguaianense E. Rodrigues Still escreveu que dois anos após a
instalação da Câmara de Vereadores, ou seja, em 1849, aí foi sediada a alfândega, que
passou a subordinar as chamadas mesas de rendas de São Borja e Itaqui. Acrescenta que a
direção da referida repartição fiscal antes se localizava em São Borja e que onde instalada a
nova vila, além de razões militares, “[...] era o ponto preferido para o contrabando [...].257

Salvo equívoco, o referido súdito Luis Risso, ou Luis Risso Burone, residia em
Montevidéu e seu nome constaria na obra abaixo referenciada.258 Transcreve-se alguns dados
registrados na mesma, que apontam tal possibilidade. Seu nascimento ocorreu em Gênova,
em 16/10/1820, onde batizado com o nome de Giuseppe Luigi. Dedicou-se ao comércio e,
em Montevidéu, foi sócio da empresa Navia y Risso. O sócio Carlos Navia foi diretor do
Banco Comercial desde sua fundação em 1857 até 1865. Risso foi membro da comissão
diretiva da Sociedad del Club Extranjero.

O falecimento de Luis Risso Burone deu-se na capital uruguaia em 1888, solteiro


e sem filhos. Ao falecer era co-proprietário, com um sobrinho, da Goleta Risso e de outros
259
bens móveis e imóveis que representavam uma apreciável fortuna para a época. Se este
personagem é o mesmo súdito que em 1859 teve barco de sua propriedade e mercadorias
apreendidas em São Borja, na época teria 39 anos e como tantos outros súditos italianos,
aventurava-se nas águas e margens do rio Uruguai. Ao litigar longamente com a alfândega
brasileira através do consulado em Porto Alegre e ao passar procuração para o cônsul italiano
no Salto, ROU, para também representá-lo, Luis Risso demonstrou que era detentor de
poderio e influência sócio-econômica.

256
FORTES e WAGNER, 1963, op. cit., p. 450.
257
TILL, E. Rodrigues. Uruguaiana: cidade-civismo. Porto Alegre: Evangraf, 2003, p. 22 e 24.
258
RISSO, 2001, op. cit. p., 165.
259
AGN Montevidéu – 1920. Inventário n° 912, Juzgado Civil 3°.
144

4.2 Conflito dissimulado com os grandes proprietários de terras

Antonio Degrazia e muitos outros italianos chegados em Itaqui próximo à virada


do século 19 não quiseram trabalhar como escravos dos grandes proprietários rurais. Aqueles
que não foram comerciar ou fazer biscates, passaram a plantar tomate, alface, cenoura,
trabalhar de sapateiro, funileiro, ferreiro, barqueiro. Aglutinaram-se em torno da Sociedade
Italiana de Mútuo Socorro para se protegerem até se integrarem melhor no mundo novo
aonde chegaram. Em terra estranha: “Então essas coisas todas contribuíram pra manter essa
italiaaanada, como a gente era chamado aqui no Itaqui, unidos.”, recordou M. A. Degrazia
Barbosa, bisneto de Antonio Degrazia. 260

Constituíram famílias, inicialmente entre os próprios imigrantes, e tiveram muitos


filhos, como se constata no Apêndice A. Difícil é não se encontrar um ou dois descendentes
por família que não tenham concluído curso superior. Férrea era a determinação de muitos
pais italianos para que seus filhos adquirissem formação universitária e seguissem uma
carreira profissional de nível superior, porta para a ascensão social. O perfil de profissão de
nível superior da maioria dos descendentes entrevistados nesta pesquisa reflete tal realidade.
O entrevistado em referência destacou:

Eram os conhecidos por ´tomateros´ ou ‘plantadores de tomate´ , que


quando chegaram aqui, esse tipo de agricultura era [...] não existia, era
incipiente. E eles receberam até uma certa repuulsa dos donnnos da
cidaaade, dos donnnos da área da fronteira oeste, que eram os fazendeiros,
chamados fazendeiros [...] de qualquer maneira eles foram classificados com
´geeente da horta´ e eram aapelidados de ´tomateros´, vendedores de tomate.

Os imigrantes italianos que foram trabalhar a terra na horta por conta própria em
Itaqui, Uruguaiana ou São Borja, receberam certa repulsa, sobretudo do poderio da economia
pastoril. Não só por questão cultural, o povo da pecuária não gostava de agricultura. Foram

260
Entrevista de M. A. Degrazia Barbosa. Itaqui, em 09/03/2010.
145

apelidados de verdureros ou tomateros, coisa bem ao feitio da verve de origem lusitana em


tudo apelidar com seus chistes.

Por estarem todos os campos povoados por criadores de gado e pela má qualidade
da terra para a agricultura, a administração do Rio Grande do Sul foi informada que não havia
terras próprias para colônias em Uruguaiana e, por extensão, em Itaqui e São Borja,
municípios na mesma sub-região e com a mesma história desde os tempos jesuíticos,
conforme texto de documento transcrito no Capítulo 4.261

Aí está à tradução da mentalidade dominante da estância e que jaz subjacente às


narrativas da história da imigração local. Prossegue o depoimento de M. A. Degrazia
Barbosa: “Eles não foram ser escravos do dono da terra. Eles foram trabalhá pra eles. E onde
é que eles foram trabalhar? Na horta, que naquele tempo não tinha, ainda, lavoura. Na horta!
Plantá tomate, alface, cenoura”.

4.3 Conflitos políticos, desapropriação de terra e ocupação de espaços

O italiano Paulo Vecchio contrapôs-se aos Vargas em São Borja. Acaso ou não,
sua terra foi desapropriada nas imediações da cidade, conforme entrevista-depoimento de
neta.262

O Jornal Missioneiro editado em São Borja, órgão do Partido Republicano,


publicou manifesto político intitulado “Compromisso”, de um grupo de 370 pessoas contra
a “[...] família Vargas”. Dentre as mesmas encontra-se Paulo Vecchio e outros italianos, onde
se lê: “Proposta final, ficou assente que os signatários desta assumem o compromisso de
contrariar qualquer candidatura que parta da família Vargas no próximo pleito intendencial”.

261
Ofício da Câmara Municipal de Uruguaiana, em Sessão de 28/04/1848, ao Presidente da Província. Centro
Cultural Dr. Pedro Mariani, em Uruguaiana, RS.
262
Idem entrevista de G. Vecchio.

Você também pode gostar