FALCON, Francisco. Mercantilismo e Transição

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Falcon, 1991
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sem autorizacao previa do editor.

ISBN: 85-17-02007-1
Primeira ediçao, 198l

15ª ediçao 1994


1ª reimpressao, 1996

Reuisao: Jose E. Andrade


Caricatura: Emilio Damiani
Capa: 123 (antigo 27) Artista Graficos

EDITORA BRASILIENS^E S.A. R. ~


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01042-908².Sao Poulo²SP
Fone - 017) 3584-7344²Fax 3358-7954
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INDICE
Introdução ...........................................................................7
A época mercantilista.........................................................18
As idéias mercantilistas (evolução e temas centrais).........48
As práticas mercantilistas ................................................ 82
Conclusão ..........................................................................94
Indicações para leitura................................................... 100
INTRODUÇÃO
Tentar apresentar em poucas páginas um tema como este,
buscando, ao mesmo tempo, dar uma idéia precisa acerca do objeto a
que se refere e indicar os principais problemas que ele envolve,
constitui certamente um grande risco para o autor e para seus leitores.
Corremos o risco de deixar escapar, por excesso de sintese, este ou
aquele aspecto ou questão, ou, entao, de privilegiar, indevidamente,
quem sabe, uma determinada característica, talvez ate interessante em
si mesma, porém de importancia menor para o não especialista.
Conscientes de tais perigos tentamos, o tempo todo, alcançar o
equilibrio entre aqueles extremos, cabendo ao juizo dos leitores dizer
se fomos felizes ou não em nosso intento.

***

Talvez a primeira observação válida a respeito


Do mercantilismo seja a de que, a rigor, ele nunca existiu,
tratando-se bem mais de um mito, como afirma Pierre
Deyon, cuja criação e historicamente posterior ao objeto cuja
existência tenta delimitar.
Foram seus adversários, os fisiocratas do século
XVII e os economistas da escola clássica, dos séculos XVII
/XIX, que de certa forma o construíram, denominando-o, a
época, de "sistema mercantil" ou "do comercio". Foram
ainda seus admiradores os membros da chamada "escola
histórica alemã", já no final do século XIX, que E deram o
nome que se fixou: Mercantilismus.

Vivemos hoje, mais do que nunca, mergulhados


num mundo de "ismos", tanto políticos quanto econômicos, a
tal ponto que eles se tornaram elementos necessários a nossa
própria maneira de pensar e sentir a realidade que nos cerca
E com eles que classificamos, rotulamos e, acima de tudo,
aceitamos ou criticamos a realidade contemporânea. O
mercantilismo e, num certo sentido, um desses ismos e seu
aparecimento se deu precisamente no final do século
passado, quando tiveram origem também diversos outros.
Para nos, portanto, e muito difícil imaginar um mundo ou
uma época em que as formas de pensamento podiam
prescindir de tais substantivos, dai porque e mais fácil pensar
o mercantilismo como sinônimo de um corpo doutrinário
coerente, dotado de um mínimo de abstração teórica. Ora, e
esta é nossa observação inicial, nem a palavra
"mercantilismo" e contemporânea do objeto que pretende
indicar, nem tampouco tal objeto apresentou jamais as
características de coerência interna que nos habituamos a
imaginar como inerentes a um conceito desse gênero.

Em segundo lugar, cabe aqui uma advertência contra


um outro tipo de anacronismo, muito difundido por sinal
hoje em dia. e que consiste em denominar de mercantilistas a
quaisquer idéias ou praticas econômicas que possuam como
característica básica a intervenção do Estado na economia.
Em tais casos, ou se apela para a idéia de ressurgimento ou
para a de persistência, mas o argumento e sempre o das
identidades maiores ou menores, no nível das aparências,
entre situações atuais e aquelas que caracterizam o
mercantilismo propriamente dito, o que deixa entrever a
crença num certo tipo de continuidade do processo histórico
que produziria sempre fenômenos semelhantes em todos os
tempos e lugares. Fixemos então este ponto: o mercantilismo,
não a palavra ou o sistema, mas aquilo que ele de fato
significa, foi o produto das condições especificas de um
determinado período histórico do Ocidente, caracterizado
pela transição do feudalismo ao capitalismo.

Em terceiro lugar, devemos estar conscientes de que


não existe um verdadeiro consenso acerca do que devamos
entender por mercantilismo. Conforme o texto, a mesma
palavra poderá significar:

a) baseando-se na famosa afirmação de Marx


²"Se bem que os primeiros esboços da produção capitalista
tenham aparecido precocemente em algumas cidades do
Mediterrâneo, a era propriamente capitalista não data senão
do século XVI" ² e sem
procurar entendê-la, há muitos que imediatamente
identificam esse capitalismo Freqüentemente denominado de
capitalismo comercial com o próprio mercantilismo, isto é,
um capitalismo prédominantemente mercantil.
Mercantilismo e capitalismo comercial designam então uma
primeira época da história do capitalismo cuja característica é
o papel-motor desempenhado pelo comércio, e pelas
atividades a ele ligadas, em relação ao conjunto das
atividades econômicas, precedendo e preparando o advento
do capitalismo industrial;

b) segundo outros, o mercantilismo é a forma


econômica ou o sistema que caracteriza a chamada economia
nacional, aí definida como a organização econômica inerente
ao espaço geopolítica correspondente aos Estados nacionais
modernos. Tratar-se-ia, então, de uma etapa da evolução
econômica marcada pela superação da chamada economia
urbana da Idade Média européia. Nessa acepção apenas os
aspectos formais da organização econômica, bem como suas
implicações políticas, são considerados;

c) mais interessante talvez é a tendência a atribuir ao


mercantilismo o caráter de um verdadeiro sistema
econômico, ou mesmo de um modo de produção, situado
entre o feudalismo e o capitalismo. Dizemos que é
interessante porque aí convergem pontos de vista oriundos de
posições teóricas mutuamente excludentes: idealistas e
materialistas. Estes últimos vêem no mercantilismo algo que
se aproxima muito de um modo de produção ou, pelo menos,
uma estrutura econômica específica, cuja tônica é a atividade
comercial com caráter dominante, e cuja premissa
histórica é o seu papel-chave no processo da chamada
acumulação primitiva do capital. Dessa forma, não sendo
ainda capitalista, o mercantilismo seria o sistema criador das
condições objetivas para o surgimento do capitalismo.
Quanto ao outro grupo, que chamamos de idealistas, sua
tendência é identificar no mercantilismo a presença de um
espírito ou "ser" mercantil que se expressaria através da
busca do lucro através das operações comerciais, dos
empréstimos a juros, do controle sobre as oficinas artesanais
e manufaturas, da exploração colonial, levando tudo isso à
acumulação do capital comercial. O mercantilismo
constituiria uma primeira manifestação do espírito
capitalista, mola mestra da criação e desenvolvimento da
sociedade moderna.

Cada uma das perspectivas acima esboçadas, talvez até


caricaturadas, corresponde a uma vasta produção
bibliográfica e inclui diversas nuanças que seria ocioso
esmiuçar e discutir aqui. Do nosso próprio ponto de vista
acreditamos que o mercantilismo deve ser entendido como o
conjunto de idéias e práticas econômicas que caracterizam a
história econômica européia e, principalmente, a política
econômica dos Estados modernos europeus durante o
periodo situado entre os séculos XV/XVI e XVIII. Nesse
sentido, entendemos que a definição de Mauricio Dobb - "o
mercantilismo foi essencialmente a política econômica de
uma era de acumulação primitiva" é, ainda, bastante
esclarecedora, se entendermos essa acumulação
primitiva como a acumulação
prévia de Adam Smith, ou seja, um período anterior à
existência da produção capitalista propriamente dita
enquanto forma ou modo de produção dominante, como diria
Marx, durante o qual diversas formas de acumulação de
capital, não capitalistas por definição, tiveram lugar.

Prosseguindo, se atentarmos para a expressão "política


econômica", poderemos recuperar a afirmação de Eli
Heckscher de que "o Estado foi o sujeito e o objeto da
política mercantilista", isto é, o mercantilismo foi,
principalmente, a política econômica dos Estados modernos
europeus, absolutistas, embora tenhamos dúvidas quanto à
afirmação do mesmo autor de que o mercantilismo foi um
"sistema uniforme e coerente".

* * *

A história do conceito ou da idéia ao qual nos remete a


palavra "mercantilismo" pode ajudar-nos a compreender um
pouco melhor o nosso objeto. E importante, por exemplo,
não esquecer que as ideias e práticas econômicas que a
palavra mercantilismo sintetiza foram, a princípio, indicadas
através das expressões "sistema mercantil" ou sistema do
comércio, acompanhadas de uma conotação francamente
negativa, nas obras dos fisiocratas franceses do século XVIII,
pois indicavam coisas absurdas e contrárias às leis naturais
da economia, especialmente o intervencionismo estatal.
Adam Smith, ao escrever, em 1776, sobre a Riqueza das
Nações, emprestou às
Adam Smith: critico feroz do intervencionismo estatal.
idéias e práticas do "sistema do comércio" o caráter de
sistema acabado e coerente, embora totalmente errado quanto
aos princípios em que se baseava e aos objetivos que visava.
De fato, afirma Smith, identificando erroneamente riqueza e
metais preciosos, refletindo ao mesmo tempo as
maquinações de empresários gananciosos que, para obterem
maiores lucros, teriam convencido os próprios monarcas, o
sistema do comércio teria dado origem a dois conjuntos de
práticas econômicas perniciosas: as medidas destinadas a
controlar e restringir as importações e as medidas cujo fim
era estimular as exportações ao máximo. Só assim seria
possível conseguir o objetivo maior de todo Estado: uma
balança comercial favorável. Ainda segundo Adam Smith,
estaria aqui, no conceito erróneo de balança comercial, a
justificativa para todas as formas de intervenção do Estado
na economia, falseando por completo o livre jogo dos fatores
e, por conseguinte, as próprias leis econômicas.

A construção a posteriori do sistema e sua condenação


irrevogáveis passaram assim a quase todos os autores que, na
primeira metade do século XIX, se preocuparam com os
problemas econômicos. As idéias e práticas associadas ao
sistema mercantil tornaram-se sinônimas de estatismo,
monopolismo, privilégios abusivos, maquinações diabólicas,
etc. Condenadas em nome da razão, seus adeptos e
praticantes foram alvo de críticas científicas e repúdio moral.

No entanto, na Alemanha, principalmente, mas tambem


também em outros países que, menos desenvolvidos,
possuíam condições sócio-econômicas bem diversas
daquelas da Grã-Bretanha e da França, surgiram
manifestações reticentes em relação ao liberalismo
econômico e ao seu corolário -- o livre-cambismo. Na
Alemanha, nos escritos de Fichte e sobretudo nos de F. List,
privilegia-se a economia nacional e, em consequência,
avalia-se o protecionismo econômico sob uma luz mais
favorável. Algumas décadas mais tarde, ainda na Alemanha,
vários integrantes da chamada "escola histórica", com
Schmoller em primeiro lugar, analisam o mercantilismo
como tendo sido uma política econômica racional
perfeitamente ajustada às necessidades de construção e
fortalecimento dos Estados modernos, promovendo a
unificação interna e assegurando o seu poder no confronto
internacional.

O aparecimento da palavra "mercantilismo" e a


valorização positiva das ideias e práticas que ela significava
teve opositores e defensores, citando-se, entre estes, na
Inglaterra, Cunningham e Ashley. No início do século atual,
W. Sombart e Max Weber, cada um a seu modo,
acrescentaram novos argumentos a essa revisão histórica.
Sombart ressaltou o papel das práticas mercantilistas no
processo de formação da burguesia e do capitalismo
moderno, enquanto que Weber, embora indiretamente, deu
também sua contribuição, ao pôr em relevo os aspectos
racionais ligados ao Estado moderno e ao surgimento do
capitalismo.

No início da década de 1930, com a publicação


da grande obra de Eli Heckscher sobre o mercantilismo, foi
possível tentar ver nele um verdadeiro sistema de política
econômica no qual os meios econômicos conduzem aos fins
de natureza política. Os meios seriam, nesse caso, a política
protecionista e a política monetária, enquanto que os fins
seriam a política de unificação e a política de poder. Tudo
isso estaria norteado por um quinto elemento que seria uma
certa visão da sociedade típica do mercantilismo. Elogiado
por uns, criticado por outros, o trabalho de Heckscher,
historicamente incompleto, pessimista quanto ao próprio
objeto, levando mesmo alguns a verem no mercantilismo um
sistema imaginário ou uma "noção inútil e perigosa",
segundo P. Deyon, ainda assim constitui um marco
historiográfico.

Durante a Grande Depressão dos anos 30, quando o


intervencionismo, o protecionismo, a autarquia, estavam na
ordem do dia, tornou-se mais fácil compreender a lógica
interna de um sistema como o mercantilista, tido como
irracional pelos liberais, e isso se traduziu num ensaio que J.
M. Keynes dedicou ao mercantilismo, reconhecendo-lhe
cientificidade, se analisado em função das condições
existentes na época em que ele existiu. Tal atitude de análise
objetiva foi desenvolvida por J. Schumpeter em sua História
da Análise Econômica, tentando detectar os elementos,
embora poucos, de verdadeira teoria existentes na enorme
massa produzida pelos autores mercantilistas.
Os trabalhos mais recentes sobre o mercantilismo
vieram pôr em destaque a riqueza, diversidade e as
peculiaridades dos textos mercantilistas, estabelecendo
nuanças, estudando aspectos específicos, permitindo um
conhecimento bem melhor das relações entre as ideias e
práticas mercantilistas e as condições históricas quê as
condicionaram. São assim os livros e artigos de Viner,
Coleman, Charles Wilson, Lipson, Kellenbenz, Behrens, etc.

Concluímos assim que, hoje, longe de ser apenas uma


palavra, o mercantilismo tampouco se confunde com um
sistema ou doutrina ou algo parecido, identificando, sim,
aquelas ideias e práticas econômicas que, durante três
séculos, estiveram sempre ligadas ao processo de transição
do feudalismo ao capitalismo, e, mais particularmente, aos
problemas dos Estados modernos, absolutistas, e à expansão
comercial e colonial europeia iniciada com grandes
navegações e descobrimentos dos séculos XV/XVI. Indo um
pouco mais longe, podemos ver no mercantilismo o conceito
que tenta dar conta da profunda conexão, da quase
impossível dissociação, entre o político e o econômico, a
qual constitui uma das principais características da época
situada entre o final da Idade Média e o início da Revolução
industrial.
A EPOCA MERCANTILISTA

O estudo do mercantilismo só adquire seu sentido


verdadeiro quando o situamos no interior do contexto
histórico que o tornou possível: o período de transição do
feudalismo ao capitalismo, também chamado de "época
mercantilista". Duas razões, pelo menos, apontam nessa
direção: a distinção entre o mercantilismo e a época
mercantilista e o fato de que o elemento definidor por
excelência dessa época, embora às vezes esquecido, é o
processo de transição.
Muito embora constitua um problema-chave para a
compreensão de toda a época mercantilista, a transição do
feudalismo ao capitalismo é a grande ausente de boa parte da
historiografia desse período. Argumentam alguns que a
própria idéia de transição é algo sem sentido pois, afirmam, a
História é uma "eterna transição" e sendo assim não haveria
como distinguir uma "transição na transição". Para outros,
pelo contrário, a idéia de transição parece incompatível com
um período tão longo, abrangendo vários séculos, pois, ao
que tudo indica, deve existir uma duração cronológica
máxima para que se possa aplicar o conceito de transição.
Seja como for, o resultado é o mesmo: conserva-se ainda a
expressão oriunda do século XVII ² Idade Moderna , ou
tenta-se inovar utilizando uma outra expressão Revolução
Comercial.
Do ponto de vista que assumimos, a passagem das
sociedades ou formações sociais medievais, estruturadas em
função das relações feudais então dominantes, para as
formações sociais burguesas contemporaneas, cujas
estruturas estão baseadas no caráter culminante das relações
capitalistas, constitui a caracteristica essencial do período
situado entre os séculos XV/XVI e XVIII/XIX, ou seja, a
época mercantilista. Quando se trata de definir com maior
exatidão o verdadeiro caráter dessa época, surgem de
imediato pontos de vista contraditórios que podemos
esquematizar da seguinte maneira:
1) um primeiro ponto de vista atém-se à suposta ruptura
que marcaria o inicio dos tempos modernos, ignorando que a
própria idéia de modernidade é algo longamente construído
ao longo do próprio período que mencionamos. No entanto,
se retomarmos o velho livro de Henri Hauser, A
Modernidade do Século XVI , ali já encontraremos aquela
idéia de uma triplice ruptura: economica ² produzida pela
expansão marítima, comercial e colonial e todos os seus
efeitos sobre a economia européia (preços, moeda,
exploração do ultramar, etc. ); política ² causada pelo
surgimento dos Estados modernos centralizados, dando
nova dimensão às guerras e à diplomacia e às relações entre
política e economia; espiritual ou ideológica
consubstanciada no duplo movimento - que conhecemos
através de denominações já cristalizadas Humanismo e
Renascimento, Reforma e Contra-Reforma);

2) um ponto de vista oposto, entretanto, põe em


primeiro plano as continuidades sem dúvida ainda bastante
reais, a começar pela permanência das relações feudais, tanto
no plano econômico quanto no político e social, além da
própria mentalidade dominante, resultando disso tudo a
afirmação de que se trata realmente da fase final do
feudalismo, pois, embora em crise, é o feudalismo que ainda
se mostra dominante, pelo menos até o século XVII, na
Inglaterra, e, até 1789, na França;

3) se a presença de todo um passado feudal parece


conferir a esta época uma espécie de continuidade em relação
aos séculos anteriores, cumpre, segundo um terceiro enfoque,
pôr em relevo aquilo que é novo e que prepara, antecipa ou já
se identifica com tudo aquilo que virá: as relações
capitalistas. Sendo assim, esta é uma época pré-capitalista
por excelência, pois é no seu seio que se formam ou
germinam os elementos que irão constituir mais tarde o
sistema capitalista.

Das três posições acima indicadas, parece óbvio que a


primeira é insustentável, uma vez que exagera bastante as
rupturas, reais ou apenas supostas, e ignora as continuidades
bastante reais.
Quanto à segunda, cujos argumentos são em parte
válidos, talvez o seu maior obstáculo seja o de não dar a
devida importância às mudanças estruturais que então
ocorrem, tornando difícil perceber quais as diferenças de fato
existentes entre as formações sociais desse periodo e as
formações sociais medievais. A terceira, finalmente, embora
indique corretamente a presença de elementos irredutíveis a
uma caracterização feudal, envereda facilmente pelos
caminhos da teoIogia, tal a evidência do destino manifesto
que parece fluir de sua certeza sobre o futuro capitalista, o
que conduz a explicar uma época não por aquilo que ela é,
mas em função daquilo que virá depois dela.
Nossa proposta sobre o caráter da época mercantilista é
uma tentativa de englobar e superar as três perspectivas
acima. Trata-se de reconhecer, por um lado, a existência,
ainda, de relações feudais e, por outro, afirmar também a
existência, já, de relações de tipo capitalista. Um feudalismo
em crise, em processo de desagregação continuada; um
capitalismo incipiente, todo um processo de acumulação
primitiva, ou, segundo E. Balibar, um capitalismo ainda
formal e não propriamente real. Até aqui, porém. o que
estamos postulando é uma espécie de dualismo estrutural
baseado na coexistência e na interdependência de relações
feudais e relações capitalistas. Ora, nosso ponto de vista é
exatamente o da superação desse dualismo: o periodo de
transição não é redutível nem a feudalismo, nem a
capitalismo, nem tampouco à justaposição de ambos; trata-se
de uma época com especificidade própria, resultante do fato
de que em suas formações sociais concretas existem
estruturas econômico-sociais, políticas e ideológicas que nem
são mais feudais, nem podem ser já chamadas exatamente de
capitalistas ² são de transição.

* * *

As estruturas típicas do período de transição devem ser


aqui caracterizadas, de maneira bastante sumida por sinal,
em quatro grupos: econômicas, sociais, políticas e
ideológicas. Vejamos, em primeiro lugar, as econômicas.

As estruturas econômicas
Para facilitar a nossa exposição vamos considerar, em
relação às estruturas econômicas, as relações existentes no
campo, na agricultura, e aquelas existentes na cidade, na
indústria. No campo encontramos três tipos principais: o
aforamento enfitêutico, a parceria e o arrendamento. Na
prática cada um desses tipos se decompõe em formas
variadas conforme o tempo e o lugar que se considere e,
além deles, existem também, em proporções muito diversas,
os pequenos proprietários propriamente ditos e os
camponeses sem terras, trabalhando como assalariados
permanentes ou eventuais. O aforamento corresponde, em
sua essência, à persistência de relações feudais reais (isto é,
sem a servidão pessoal entre os foreiros e os senhores
(nobres, eclesiásticos ou, até, em certos casos, burgueses) das
terras que cultivam; tais relações feudais podem apresentar-
se ou não sensivelmente abrandadas, mas nem por isso
deixam de existir. O arrendamento, ao contrário, identificase
ou aproxima-se bastante das relações contratuais capitalistas,
embora seja discutível afirmar-se que em si mesmo se trata
de uma forma capitalista. A parceria ocupa um lugar
intermediário entre os dois tipos anteriores, sendo talvez num
certo sentido uma forma tipicamente de transição. O
capitalismo propriamente dito tende a contrapor-se a todas
essas formas de produção camponesa e sua versão mais
conhecida é a dos cercamentos ou enclosures, levados a
efeito, principalmente na Inglaterra, por setores da
aristocracia ou por elementos burgueses com a finalide de
imprimir às relações no campo um caráter encialmente
capitalista, pressupondo a supressão forçada de todas as
formas de exploração pré-capilistas, com a consequente
expropriação e mesmo expulsão do antigo campesinato.
Na cidade, verificamos a existência de dois tipos
basicos: artesanato e manufatura. O artesanato corresponde à
persistência da produção em pequenas oficinas quase sempre
organizadas em corporações ou guildas, para efeito de defesa
de seus interesses e manutenção da própria estrutura interna,
hierarquizada. O artesão é aí dono não só dos meios de
produção, como do próprio processo de produção.
Já a manufatura se apresenta como um tipo de organização
qual no o produtor direto, ainda um artesão,
encontra-se subordinado a um empresário que Ihe fornece,
conforme o caso, a matéria-prima, certos instrumentos de
trabalho e se apropria da produção, pagando por tarefa ou,
mais tarde, pagando um salário. A manufatura pressupõe
uma divisão maior ou menor do trabalho e conduz, sobretudo
no século XVIII, a uma progressiva especialização de
funções, além de tender a organizar segundo seus próprios
critérios o processo produtivo como um todo. Apenas a título
de indicação muito genérica, é possível afirmar que o
artesanato é ainda feudal, enquanto que a manufatura seria
tipicamente de transição ou mesmo, como querem outros,
capitalista, pois iríamos longe se quiséssemos discutir aqui o
problema do caráter capitalista ou não das relações de
produção na manufatura.

As estruturas sociais
O tipo de sociedade que corresponde à época
mercantilista é conhecido, em geral, como Sociedade do
Antigo Regime e tem como característica principal o fato de
ser uma "sociedade de ordens", quase sempre identificada
com o conceito weberiano de sociedade estamental. Tanto a
denominação em si quanto a própria caracterização
envolvem problemas bastante complexos que, aqui, iremos
apenas indicar em termos muito gerais. A denominação de
"Antigo Regime", criação dos revolucionários franceses de
1789 para identificar e condenar todos os aspectos
econômicos, sociais e políticos existentes na sociedade
francesa até 1789, embora cómoda e largamente difundida,
trai sempre a sua origem gaulesa e não se aplica facilmente,
quer quanto aos limites cronológicos, quer, principalmente,
com relação à própria natureza da sociedade que pretende
identificar, às diversas formações sociais europeias. Há
mesmo casos em que ela não se aplica -- como para a
Inglaterra e as Províncias Unidas , ou só se aplica com
dúvidas e restrições. Bem mais grave, porém, é a natureza
mesma da sociedade que tal expressão pretende denotar --
a chamada sociedade de ordens. Com efeito, embora nem
todos se dêem conta do fato, a caracterização em termos de
sociedade de ordens ou estamental envolve, habitualmente,
uma negação formal a respeito da possibilidade teórica ou da
validade histórica de se analisar essa sociedade em termos de
classes sociais. Confundem-se então perspectivas teóricas
bem diversas cujo elemento comum é a referida negação. De
um lado, estão os historiadores que se baseiam numa certa
leitura de Marx e Engels, ou nos textos de Lukacs, e afirmam
o caráter estritamente capitalista e burguês da sociedade de
classes e da consciência de classe, daí inferindo a
impossibilidade de utilizar-se o conceito de "classe social"
em sociedades pré-capitalistas. De outro lado, colocar-se os
historiadores de formação empirista (positivista), que se
baseiam no critério da evidência, tanto aquela obtida através
do vocabulário e dos discursos da própria época --
onde a palavra "Classe"
e a expressão "classe social" simplesmente não aparecem ou,
então, existem, mas com significabos inteiramente diversos,
como aquele outro tipo de evidência obtido através do estudo
dos chamados "níveis de consciência" e das "mentalidades"
em geral, onde também seria de todo impossivel detectar
tomadas de consciência reveladoras de uma verdadeira
percepção daquilo que denominamos de classe social.

Do nosso ponto de vista, todavia, acreditamos que é


preciso distinguir, ao lidarmos com a Sociedade do Antigo
Regime, como aliás com sociedades pre-capitalistas de um
modo geral, dois níveis de análise: num primeiro nível,
trabalhando com aqueles textos que revelam a propria
maneira daquela sociedade autodefinir-se, não resta a menor
dúvida de que se trata de uma sociedade de ordens ou "de
estados", pois é assim que ela se vê, através da ideologia
dominante, essencialmente voltada para a defesa, justificação
e conservação dos interesses e privilégios de toda sorte que
desfrutam os setores econômica e politicamente dominantes.
No entanto, num segundo nível, utilizando como categorias
analíticas os conceitos do materialismo histórico, a partir da
própria estrutura sócio-econômica, privilegiando portanto as
relações de produção, verificamos que as classes existem e,
mais ainda, existem também as lutas de classes. Apenas, por
força das inúmeras mediações políticas, jurídicas e
ideológicas, fato aliás inerente a esse tipo de estrutura social,
tais classes não são transparentes e a sua consciência não poderá
ser buscada nos mesmos termos em que isso se dá nas
sociedades capitalistas.
Na realidade, a chamada sociedade de ordens tenta
escamotear através de diversas práticas polticojurídicas e
ideológicas aquilo que é o caráter essencial mesmo de tais
sociedades: a existência de uma classe de proprietárias de
terras, ou senhores de terras, que se autodefinem como
ordens (nobreza e clero), e uma classe de camponeses,
ocupantes dessas terras, produtores, diferenciados entre si
através de um sem-número de critérios ou costumes, mas
tendo em comum o fato de que, salvo uma parcela mínima,
todos eles apenas possuem as terras, mas não são
efetivamente donos delas. Simultaneamente, devemos
mencionar a existência de um número crescente de
camponeses sem terras, espécie de proletariado rural, bem
como o aumento de propriedades rurais em mãos de
indivíduos de origem burguesa, sobretudo comerciantes. O
fato central, porém, é a oposição entre senhores e
camponeses.
Outro aspecto a ser levado em conta é a
existência de uma burguesia mercantil, muito variável
em número e poder econômico, de uma formação
social a outra, e, em alguns casos, a presença de uma
burguesia industrial incipiente, estando cada uma
dessas burguesias dividida em segmentos ou setores
por vezes bastante diferenciados. Tal burguesia
(mercantil ou industrial) tende, no período em estudo,
a opor-se ao predomínio dos interesses e à
manutenção dos privilégios da aristocracia (nobreza e
clero). Tal oposição, no entanto, é extremamente
variada, pois não envolve necessariamente a negação da
própria sociedade aristocrática, podendo significar, apenas e
com frequência, a luta pela possibilidade e pelo direito de
enobrecer-se também, ou a luta pela obtenção de privilégios
que representem vantagens econômicas, políticas ou de
simples status social. Finalmente, tampouco pode ser
caracterizada em bases simplistas a relaçao dessa burguesia
com o campesinato, como sendo a de uma aliança antifeudal,
bastando lembrar, nesse sentido, que o desenvolvimento de
relações capitalistas no campo tende a opor, cada vez mais,
os interesses camponeses aos da burguesia.

As estruturas políticas

A estrutura de classes da sociedade do Antigo


Regime e os conflitos entre essas classes assumem
contornos mais nítidos quando analisamos suas formas
políticas mais ou menos institucionalizadas, cuja
expressão máxima é o Estado Absolutista. Esse é de
fato o lugar por excelência dos confrontos entre as
classes e frações de classes nas diversas sociedades da
época mercantilista. Seria inútil, além de err ôneo,
tentar definir esse tipo de Estado a partir de
caracterizações mais ou menos unilaterais como
"feudal", "capitalista" ou "neutro". A rigor, ele não é
exatamente nenhuma dessas coisas. Trata-se do tipo de
Estado que caracteriza a transição, impossível de ser
reduzido a mero epifenômeno da estrutura econômica, ou
seja, do modo de produção dominante. Cremos que a
discussão deve ser encaminhada de outra maneira, menos
simplista.
O Estado absolutista é, antes de mais nada, um, Estado
Moderno, ou seja, um tipo de Estado que é resultante de
vários séculos de formações e de lutas, no final da idade
Média, levadas a cabo contra os universalismos
representados pelo Papado e pelo Império e também contra
as tendências localistas dos senhorios feudais e das comunas
urbanas. Afirmando-se como Estado territorial, governado
por um príncipe, através de uma complexa política de
concentração do poder e centralização administrativa, o
Estado moderno define-se rapidamente como Estado
monárquico absolutista, isto é, pelo fato de que todo o poder
está nas mãos de um rei ou príncipe que é, de fato e de
direito, o seu soberano. Simultaneamente, esse Estado
pressupõe a existência de um aparelho burocrático e militar
que não só execute as determinações do soberano, mas dê na
realidade uma forma visível e concreta à própria idéia de
poder que o monarca personifica. O Estado é o Rei, porém
este é na verdade o conjunto de instâncias e agentes
burocráticos que são os seus oficiais.

O problema principal, mais uma vez, é tentar


definir qual a exata natureza social e política desse
Estado monárquico absolutista. Costumam alguns
estudiosos do assunto atribuir a esse Estado um
caráter eminentemente burguês, alegando que teria
sido graças ao auxílio da burguesia que os príncipes
puderam levar de vencida a oposição dos senhores feudais;
ou, então, lembrando que era comum a presença de
indivíduos de origem burguesa em cargos e funções das mais
importantes na cúpula do Estado absolutista, gozando da
plena confiança dos respectivos monarcas. No primeiro caso,
porém, esquecemse de que o processo de formação de tais
Estados não foi algo tão simples assim que se possa
equacionar em termos de uma aliança entre uma classe e um
individuo, bastando ter em mente que, em geral, os príncipes
contaram com o apoio de outros segmentos sociais e que a
própria aristocracia (clero e nobreza) em geral apoiou a
centralização, justamente porque esta lhes era vantajosa,
cabendo a setores minoritários, nao raro pouco expressivos, a
oposição decidida à política centralizadora (e, neste caso,
também houve oposição de setores da própria burguesia
urbana). Quanto ao segundo argumento, parece-nos que peca
pelo exagero: não basta pinçar aqui e ali exemplos de
ministros influentes de origem burguesa; é bom lembrar,
primeiro, que, em se tratando de número, os altos cargos
sempre foram preenchidos quase totalmente por membros do
clero e da nobreza e, segundo, que o critério da origem
burguesa de um ministro ou conselheiro não define a sua
posição de classe, sendo mais do que sabido que quase todos
tenderam a enobrecer-se e confundir-se, eles ou seus
descendentes, com a aristocracia dominante.
Frustrado o argumento das origens sociais (sic)
do Estado absolutista, ou da origem social de suas
elites dirigentes, tenta-se, por vezes, afirmar a tese da
natureza neutra desse mesmo Estado, que seria o resultado
de um equilíbrio de classes, natural ou provocado pelo
próprio príncipe, a fim de que esse mesmo príncipe pudesse
ter as mãos livres para governar de maneira absoluta. Tal
concepção, completada em alguns casos pela idéia de que
caberia à burocracia desse tipo de Estado uma quase total
autonomia em relação às diversas classes, embora pareça
correta, em sua logicidade aparente, peca, à luz dos próprios
fatos conhecidos, por dois erros: dissocia o príncipe de sua
própria classe e o transforma, e ao poder que encarna, numa
espécie de bonapartismo a-histórico; alem disso, omite o fato
de que, apesar de tudo, a aristocracia é ainda a classe
dominante, económica, política e ideologicamente. Cria-se,
dessa maneira, uma inquietante confusão entre o que seja
classe dominante e o bloco no poder, este sim, dadas as
características da própria época de transição, sujeito a
composições e remanejamentos que ora ampliam, ora
restringem ou mesmo elirninam a presença de representantes,
ou a expressão dos interesses, de outras frações ou
segmentos sociais, o que não se confunde, salvo conjunturas
muito específicas, com aquele caráter de estrita neutralidade
genericamente atribuído ao Estado absolutista.
Em sendo ele o Estado de um período de
transição bastante específica, é natural que a prática
do Estado monárquico absolutista se apresente com
nuanças bastante variadas, complexas e até mesmo
contraditórias. Tal fato tem dado margem a muitas
confusões e simplificações, pois, dependendo dos aspectos
que o historiador privilegie, ele tanto pode ser
definido, funcionamento, como feudal ou como capitalista.
Na verdade ele é ambas as coisas e, ao mesmo tempo, é algo
mais do que essas duas coisas. Do ponto de vista dos
segmentos aristocráticos, o Estado absolutista representou
basicamente um tríplice papel: em primeiro lugar ele foi um
mecanismo ágil e eficiente de defesa e manutenção do
sistema de apropriação do excedente ou da renda feudal pela
aristocracia fundiária, numa época, a de transição, onde o
problema crescia era a tendência ao declínio de tais
rendimentos; nesse sentido ele pode ser visto como a peca
fundamental da chamada reação feudal; em segundo lugar,
esse tipo de Estado assegura à aristocracia a manutenção de
sua hegemonia, em seu sentido mais amplo; por último,
consequência dos dois aspectos anteriores, o Estado
absolutista, ao possibilitar a organização e contínuo
crescimento de uma verdadeira máquina burocrática, oferece
à aristocracia a possibilidade de novas e sempre mais
atraentes formas de obtenção de rendimentos extras
vinculados ao exercício de funções de proa, algumas
meramente honoríficas, bem como a obtenção de toda sorte
de benefícios financeiros que a generosidade do príncipe
distribui entre os membros da sua nobreza. Dessa forma,
estabelece-se uma relação dialética entre a eficácia do
domínio absoluto sobre pessoas e coisas e o incremento dos
recursos econômicos e financeiros manipulados ou absorvidos
pelo Estado absolutista, em nome, é claro, das funções e
interesses de caráter cometido que ele pretende exercer
e representar. Sua resultante é a constituição de uma espécie
de renda feudal indireta, ou seja, uma verdadeira massa de
recursos financeiros à disposição do tesouro real, proveniente
da tributação obtida às custas das atividades produtivas e
mercantis não beneficiadas pelas imunidades e outros
privilégios fiscais; Desse modo, uma boa parte do fruto do
trabalho do campesinato e da burguesia é transferido, por
intermédio do Estado absolutista, para os setores parasitários
da sociedade -- grupos feudais tradicionais e nova
aristocracia, de caráter burocrático -- , contrabalançando,
assim, em maior ou menor escala, a tendência declinante da
renda feudal propriamente dita. Visto sob este angulo, o de
transferidor de renda, o Estado absolutista reveste um caráter
inegavelmente feudal.
Convém notar, porém, que existem outros aspectos
inerentes ao Estado absolutista que complicam um pouco a
visão acima exposta. Um primeiro aspecto é a dinâmica
própria que possui o Estado absolutista, isto é, ao mesmo
tempo que se ampliam as suas funções, crescem também as
necessidades financeiras cuja satisfação tende a exigir uma
eficácia sempre maior no âmbito de suas práticas econômicas
e políticas -- uma racionalidade crescente, como diz Max
Weber. Disso depende não apenas sua estabilidade, mas sua
própria possibilidade de existência. Não é difícil
compreender, então, por que desde seus primórdios
o Estado absolutista foi forçado a estabelecer
ligações cada vez mais estreitas com os diversos
setores da burguesia nascente. Isso pode ser visto através
de três situações principais: a primeira corresponde às
relações financeiras entre o rei e seus comerciantes e
banqueiros, traduzidas em empréstimos, contratos fiscais
(arrecadação de impostos), transações cambiais, etc.; a
segunda identifica-se com as práticas econômicas e fiscais
mais adequadas, tanto aos objetivos de lucro da burguesia
mercantil e manufatureira, quanto ao aumento da
arrecadação de impostos e taxas pelo Estado; é aí, aliás, que
se situa o próprio mercantilismo, como veremos adiante; e,
por último, o próprio Estado absolutista tende a utilizar os
conhecimentos e a competência de elementos burgueses
naqueles setores do seu aparelho burocrático em que isso é
fundamental e para os quais a aristocracia se revela
despreparada ou desinteressada; como compensação, abrem-
se à burguesia os caminhos da ascensão social e do prestígio
político, sobretudo a possibilidade de enobrecimento efetivo.
Constata-se então que está na própria lógica de tal sistema o
apoio do Estado absolutista às atividades produtivas e
comerciais das camadas burguesas: não é, portanto, por
simples acaso que se identificam na ideologia mercantilista a
riqueza do Estado e a riqueza de seus habitantes. Como é
óbvio, a existência de riqueza é condição prévia para sua
transferência; os meios e modos de promover o
enriquecimento, identificando-se o pais e o Estado, vêm a
ser, para o Estado absolutista, ao mesmo tempo um meio e um
fim. Seria então, nesse caso, o Estado absolutista um Estado
capitalista?
Para respondermos a essa última pergunta precisamos
, agora, tentar compreender o mesmo quadro a partir da
ótica própria à burguesia. Parece um fato indiscutível o
apoio da burguesia à política dos príncipes, tanto durante os
séculos finais da Idade Média, quando se constituíam os
Estados modernos, quanto mais tarde, já em plena vigência dos
Estados monárquicos absolutistas. De uma maneira geral, é
verdade, a burguesia, particularmente a burguesia mercantil,
encontrou na aliança com os príncipes um instrumento capaz
de favorecer seus próprios interesses econômicos e políticos:
internamente, a criação de um espaço econômico mais amplo,
menos sujeito aos caprichos dos senhores feudais e das
comunidades urbanas, aliada a obtenção de certos privilégios e
garantias, não só ampliava as próprias atividades mercantis,
como ainda podia servir para evitar que um número excessivo
de competidores pusesse em risco a margem de lucro,
limitando assim, sempre que possível, a determinados grupos
ou setores, os negócios e empreendimentos mais importantes
e lucrativos. Externamente, o apoio do Estado tende a
impedir a concorrência "desleal" de comerciantes e
mercadorias estrangeiras, ao mesmo tempo que possibilita a
conquista e exploração, em caráter exclusivo, dos mercados
externos, destacando-se aí as colônias ultramarinas. Do
ponto de vista específico da burguesia industrial nascente,
outras vantagens podiam ser obtidas dessa aliança com o
Estado absolutista: podendo ditar e modificar as regras que
presidem às atividades econômicas, o príncipe é capaz
de favorecer os interesses da burguesia não apenas
com auxílios financeiros e direitos de monopólio
concedidos como privilégios, mas principalmente
assegurando-lhe mão-de-obra abundante, barata, e
estritamente submetida à vontade dos empresários, ao seu
livre arbítrio, em nome dos interesses do Estado.
Mas, afinal, esse Estado é feudal ou é capitalista? Na
verdade, diríamos que ele é as duas coisas e por isso
mesmo não é exatamente nem uma nem outra. Trata-se de
uma relação essencialmente contraditória: o apoio ao
capital comercial e, pelo menos de início, ao capital
industrial não se opõe, necessariamente, à defesa e
manutenção dos interesses senhoriais ou feudais da
aristocracia dominante. Para poder compensar o declínio da
renda feudal, o Estado absolutista necessita cada vez mais
aumentar seus próprios rendimentos (arrecadação) e isso só
se torna possível protegendo e estimulando ao máximo as
atividades produtivas e comerciais em geral. O Estado
absolutista tende a expressar a busca de um equilíbrio
precário, a longo prazo impossível, entre classes e frações
de classe cujos interesses são em parte complementares e
em parte antagônicos. Enquanto a fração mercantil da
burguesia associa-se ao Estado absolutista e transita
livremente em seu aparelho burocrático, a burguesia
industrial (ou manufatureira), ainda que buscando ou
aceitando, de início, a proteção do príncipe (como se deu
na inglaterra Tudor), tende, a médio ou longo prazo, a se
opor a essa mesma política econômica do Estado
absolutista, isto é, ao mercantilismo. A partir daí, isto é, do
nascimento do liberalismo, irão definir-se as condições
que possibilitarão a revolução burguesa, antifeudal,
antiabsolutista, seus vários caminhos, passando ou não
pelo reformismo ilustrado dos chamados "déspotas
esclarecidos" do século XVIII.

As estruturas ideológicas
Neste nível devemos estabelecer uma primeira
distinção entre aqueles elementos mais gerais que constituem
o fundo comum às transformações então em curso, no
contexto das tomadas de consciência e das formas de
pensamento que estas últimas revelam, e certas questões
mais especificas, ligadas diretamente ao tema que ora nos
interessa o mercantilismo , as quais se resumem, em última
instancia, no lugar ocupado pelo poético e pelo econ ômico
nos variados discursos produzidos durante esta época.
Os elementos mais gerais que mencionamos, nos quais
não iremos nos deter aqui, podem ser sumariamente
indicados como: o surgimento e cristalização de uma certa
visão ou conceito de modernidade que terá, como um de seus
subprodutos, a chamada teoria do progresso; a seguir, aquilo
que G. Gusdorf denomina de "passagem da transcendência à
imanência", isto é, o abandono de concepções e
preocupações construídas em função de uma ordenação
sobrenatural ou extraterrena do mundo e do homem,
em favor de uma visão essencialmente calcada na natureza e
no homem em si mesmos; em terceiro lugar, o avanço da
secularização, quer dizer, o recuo das formas de pensamento
e das instituições eclesiásticas, a afirmação do Estado como
realidade própria, o desenvolvimento de teorias científicas e
filosóficas apoiadas no racionalismo e no humanismo,
renegando a plano secundário o primado da teologia; por
último, a afirmação, pouco a pouco, do individualismo
burguês. Assim, durante o processo de transição, o universo
ideológico medieval (ou católico-feudal) cede lugar ao
universo ideológico moderno (secular, imanentista,
racionalista, individualista) ou burguês.
As questões específicas a que nos referimos linhas
acima consistem na verdade no problema da autonomização
discursiva do político e do econômico. Para que se entenda
melhor a natureza desse problema, convém lembrarmos que
talvez possa parecer estranho a nós, em pleno século XX,
colocar o problema da própria possibilidade de existência de
épocas ou de sociedades nas quais não existam, a rigor,
condições que permitam pensar em si mesmos, como
realidades mais ou menos autônomas, aquilo que nos
habituamos a chamar de "político" e de "econômico". No
entanto, bem poucos se dão conta do quão recente é a
delimitação de tais campos definidos de saberes, de tal forma
estamos habituados a conviver com eles como se sempre
houvessem existido. E, todavia, datam do final do século
XVIII e começos do século XIX os processos intelectuais e
Maquiavel e a autonomização do político.
ideológicos que fizeram nascer os saberes particulares e as
competências específicas que estão na origem das ciências
humanas.
A especificidade do período de transição, em relação à
problemática que acabamos de esboçar, está exatamente na
existência de uma certa defasagem entre o processo de
autonomização do político e o processo idêntico relativo ao
económico. Mais ainda, o espaço que medeia essas duas
autonomizações é justamente aquele que chamamos de
"mercantilismo". A autonomização do político, isto é, a
possibilidade de pensar e produzir um discurso a respeito da
política como realidade imanente, possuidora de lógica
própria, desvinculada das preocupações teológicas e
filosóficas, morais e transcendentes, que até então haviam
marcado os tratados e utopias políticas, tem seu ponto de
partida na obra de Maquiavel, no início do século XVI. A
secularização do Estado, o abandono das especulações sobre
o tipo de Estado ideal em troca da análise daquilo que o
Estado é de fato, marcam a obra de Maquiavel e assinalam o
início de um verdadeiro discurso político. Toldada pelas
reações àquilo que parecia uma obra ímpia e amoral,
sobretudo durante as longas décadas de conflitos religiosos
provocados pelas Reformas, a análise política só iria retomar
seu vôo em pleno século XVII, com as obras de Hugo
Grotius e Thomas Hobbes, nas quais se afirma o caráter
convencional e histórico da sociedade (civil e política). Tanto
os seguidores da perspectiva mais racionalista de
Grotius, sobretudo os chamados "jusnaturalistas" alemães
dos séculos XVII/XVIII, quanto os continuadores da
perspectiva mais empirista de Hobbes, sobretudo Locke e
Hume, postulam a existência de um direito imanente ou
positivo com princípios naturais de justiça, universais e
eternos, onde se destacam os direitos inerentes à própria
natureza do homem. Embora com formulações distintas entre
si e em relação aos seus antecessores, Montesquieu,
Rousseau e os enciclopedistas consolidam essa visão de um
campo distinto, próprio ao político.
Já a questão do econômico aparece sob um foco
completamente distinto na época em exame. Observe-
se, logo de saída, que não se trata de afirmar aqui a
existência ou não do econômico como sinônimo de
economia, o que seria absurdo, nem tampouco de
supor que esse mesmo econômico fosse um ilustre
desconhecido para os homens dessa época, o que
também seria fantástico. O que não existia ainda era o
econômico como campo distinto ou mais ou menos
autônomo do pensamento. Existem idéias que podemos
chamar de econômicas, mas elas só artificialmente
podem ser isoladas das formações ideológicas e dos
seus respectivos discursos, onde sua existência mesma
está sempre associada a outras categorias e formas de
pensamento não econômicas. A economia é ainda a
administração doméstica, o controle dos negócios
privados. Aquilo que nós chamaríamos hoje de
economia aparece então sempre subordinado ao
Estado, sempre mais como política do que como
economia. Dai referir-se Montchrétien à Economia
Política. Por esse motivo, não encontraremos livros
ou tratados de economia, mas sim, quando muito, poderemos
pingar, aqui e ali, nas obras dos teólogos, filósofos, ministros
e comerciantes, certas ideias que para nós são idéias
econômicas. No contexto em que são produzidas, e que lhes
confere sentido, tais ideias podem, no máximo, caracterizar
um corpo de observações ou preceitos de política econômica,
mais nada.
São essas ideias econômicas do periodo de transição
que nós habitualmente denominamos de "idéias
mercantilistas". Não acreditamos que sua explicação possa
ser obtida através da simples afirmação de que elas
constituem a ideologia do "capitalismo comercial" (sic) ou da
burguesia em ascensão. Estamos convencidos de que a
simples atribuição de uma origem de classe a tais idéias não
resolve o problema que mais interessa aqui: o porquê de sua
estreita associação à dimensão política que se expressa
através do Estado absolutista, ou, em outras palavras, a sua
não autonomia enquanto expressão do econômico. A
resposta só será viável se tivermos bastante clareza a respeito
da dependência do econômico em relação ao político em
nivel ideológico, fato esse que se traduz, por exemplo, na
relação dialética entre poder e riqueza, tão difundida nessa
época, ambos podendo ser pensados, como meio ou como
fim, reciprocamente.
A autonomização do econômico subentende a
existência de uma fase durante a qual aquilo que
entendemos como ideias econômicas aparece ainda
intimamente associado a outros tipos de discursos,
principalmente políticos em função dos interesses
que emanam do Estado absolutista e teológicos
dada a sobrevivência ainda, pelo menos até o século
XVII, de muitas das idéias econômicas escolásticas.
O mercantilismo, enquanto discurso político-
econômico, traduz sobretudo a primeira daquelas
duas associações, mas absorve também algumas das
preocupações oriundas do discurso escolástico.
Talvez, devido a este último fato, apareça como algo
simplista a definição do mercantilismo como sendo a
"razão de Estado" aplicada à esfera das relações
econômicas. Embora o discurso mercantilista
avance, pouco a pouco, no sentido de formular uma
visão secular e racional dos fenômenos político-
econômicos, tentando articulá-los através de uma
visão pessimista em que se postula como necessária
a intervenção do Estado, ele se mostra incapaz de
superar, salvo em caráter excepcional, como foi o
caso de Emitiam Petty, as suas próprias limitações,
ou seja, em outras palavras, ele quase nunca
ultrapassa as condições concretas que tornam
possível a sua própria produção: o predomínio das
práticas mercantis e das formas de pensamento a
elas associadas, a hipertrofia, por conseguinte, da
circulação e o papel secundário e subordinado da
produção propriamente dita. Assim sendo, a
autonomização do econômico iria inscrever-se
historicamente na superacão, ou conclusão, do
processo de transição para o capitalismo, o que
significa dizer que, com o desenvolvimento das
formas capitalistas de produção e a aceleração da
acumulação primitiva, revelasse a insuficiência
ou inadequação das idéias e práticas mercantilistas e
se afirma a possibilidade de um outro discurso, onde o
econômico assume uma posição dominante e cuja primeira
formulação será o liberalismo econômico, ao tempo da
Revolução industrial, na segunda metade do século XVIII.

A evolução conjuntural
Os dados mais gerais dessa evolução são os que
remetem às grandes linhas dos movimentos de conjunto da
economia européia durante a época mercanlilista, marcando,
de certa maneira, o ritmo e mesmo certas tendências das
idéias e práticas mercantilistas. Um estudo mais minucioso
nos conduziria certamente à análise das conjunturas políticas,
sobretudo aquelas ligadas às relações internacionais e
portanto as guerras entre os Estados absolutistas, e, um
pouco além, consideraríamos também as chamadas
conjunturas mentais ou sucessivas visões do mundo que
expressam, no nível ideológico, as diversas etapas e formas
assumidas pelo conjunto das manifestações ideológicas mais
significativas desse período. Por ora, no entanto, apenas
indicaremos, em seus grandes traços, a evolução conjuntural
da economia.
Como primeira conjuntura, correspondendo,
mais ou menos, aos anos situados entre 1450 e 1600
ou 1620, em conexão com as grandes navegações e
descobrimentos marítimos e coloniais iniciados pelos
países ibéricos, temos como características principais: o
crescimento das atividades produtivas em geral, na Europa; o
grande afluxo de metais preciosos e os problemas monetários
ligados a tal aumento das quantidades de ouro e prata nos
países europeus; a elevação geral de preços e salários,
embora, neste particular, haja grandes diferenças quanto ao
ritmo e aos níveis dessa elevação através da Europa e,
principalmente, conforme o país, disparidades quando se
trata de avaliar a relação entre elevação dos preços e
elevação de salários reais ou mesmo nominais; a retomada do
aumento demográfico; as oscilações das taxas de juros; o
aparecimento ou difusão de novos instrumentos comerciais e
de novas formas de organização mercantil e industrial . Tu
do isso está no bojo das transformações que alguns gostam
de denominar de Revolução Comercial e que outros, mais
recentemente, preferem situar num contexto bem mais
amplo, como um verdadeiro sistema de acumulação mundial
ou, então, um sistema mundial moderno, analisando como
um todo integrado tanto as formas econômicas das diversas
regiões europeias, quanto os estabelecimentos coloniais
europeus no Novo Mundo, e ainda seus entrepostos africanos
e suas posições comerciais e militares no Sudeste da Asia e
no Extremo Oriente.

* * *

A segunda conjuntura é aquela demarcada pelos


anos que vão de 1600 ou 1620 até 1700 ou um pouco
mais, ou seja, o século XVII e a crise que geralmente lhe está
associada, muito embora, hoje em dia, se constitua um
problema à parte a exata definição do caráter e da
abrangência econômica e geográfico dessa famosa crise. O
certo é que na Europa certas características são mais ou
menos comuns: diminui ou mesmo estaciona o ritmo das
atividades econômicas Produtivas e mercantis; reduz-se
drasticamente o afluxo de metais preciosos, fazendo
escassear o ouro e a prata e criando dificuldades monetárias
inversas àquelas típicas do século XVI; muitos países sofrem
sensível redução da sua capacidade de importar, pois vêem
cair bastante as suas exportações; ocorre também uma queda
bastante sensível do crescimento demográfico, associada,
segundo alguns historiadores, à intensificação das crises de
subsistência, à fome e à guerra tornadas epidêmicas, tal como
as epidemias propriamente ditas. A incidência de tais
fenômenos revela-se bastante desigual de um país a
outro, ou no interior de um mesmo país. Afinal, este
é o século da grande prosperidade das Provincias
Unidas e, em menor escala, da inglaterra e da Suécia,
e será também, mais adiante, o século de Colbert. As
grandes oscilações conjunturais não impedem uma
atividade mercantil em expansão, sobretudo na
esfera marítima e colonial, onde se destacam as
companhias de comércio. Houve, isto sim, uma
intensificação da concorrência, agravada por
disparidades de preços, salários, acesso a matérias-
primas e transportes, etc. A partir daí, certos Estados
ou regiões foram capazes, mais do que outros, de
obter maiores lucros e superar seus competidores,
provocando, em consequência, o declínio de determinadas
áreas e o ascenso de outras ao primeiro plano da produção e
do comércio. Entre as que declinaram estão sem dúvida as
regiões ibéricas e as do Centro-norte da Itália.
Por último, estendendo-se de 1700 ou 1720 ate 1810 ou
1815, temos a conjuntura do século XVIII, a qual, vista como
um todo, assinala uma reversão quase geral das tendências
típicas da crise do século anterior. Assiste-se a um rápido
aumento da produção agricola e manufatureira, multiplica-se
o comércio interno e externo, retoma-se, em parte pelo
menos, o afluxo de metais preciosos rumo à Europa,
tendendo então os preços a se elevarem, tal como os salários,
embora não necessariamente na mesma proporção que
aqueles. Há também uma retomada, se é que se pode chamá-
la assim, da expansão demográfica, sobretudo a partir de
1740, de um extremo a outro da Europa, aumentando
também consideravelmente o volume do movimento
migratório: das áreas rurais para as urbanas, sobretudo na
Europa Ocidental, e das regiões européias para as colônias
americanas. A grande novidade é a afirmação do caráter
capitalista nas transformações que então têm lugar, com a
Inglaterra ocupando ai o primeiro posto, enquanto se agrava,
sobretudo nas regiões ocidentais do continente europeu, a
crise das estruturas senhoriais ou feudais, possibilitando
tentativas reformistas, adaptações, que revelam a
ascensão de uma nova sociedade, capitalista e burguesa.
AS IDÉIAS MERCANTILISTAS
(EVOLUÇÃO E TEMAS CENTRAIS)
Perspectiva histórica
As origens das primeiras formulações
propriamente mercantilistas estão associadas a duas
ordens de fatores: a chamada herança medieval e o
conjunto de transformações que caracterizam, nos
séculos XV/XVI, o início dos tempos modernos. Neste
seu primeiro momento a ideologia mercantilista denota
claramente a coexistência de dois tipos de discurso, os
quais, para simplificar, chamaremos de "medieval" e
de " moderno ", respectivamente. Somente aos poucos
essa espécie de dualismo foi superada, cedendo lugar
ao discurso mercantilista clássico, o do século XVII.
No século XVI, todavia, a maior parte dos textos
mercantilistas revela ainda aquela coexistência que
se expressa sob a forma de um diálogo, em geral
inconsciente, entre as formas de pensamento medievais,
escolásticas, e as propriamente modernas, mais em
consonância com a nova realidade resultante do impacto das
grandes navegações e descobrimentos e da afirmação dos
Estados modernos.
O chamado " fundo medieval" é constituído por
todo o conjunto de idéias e práticas econômicas,
típicas das comunas medievais, que caracterizam a
economia urbana. Regulamentando as atividades
mercantis e artesanais, em seus múltiplos aspectos, as
autoridades municipais desenvolveram uma série de
práticas intervencionistas retomadas, ainda no século
XV, por alguns monarcas que logo trataram de ap1ica-
las no âmbito político-econômico mais vasto de seus
Estados. Temos aí, por exemplo, a preocupação em
assegurar o mercado e zelar pela qualidade dos
produtos e pelos preços compensadores, a fim de
proteger os ofícios urbanos, transferida ao conjunto da
produção artesanal de um país. Veja-se, ainda, a
política que era adotada em relação aos produtores
rurais e que visava assegurar aos habitantes da cidade
um abastecimento de alimentos que fosse ao mesmo
tempo abundante e barato, traduzindo-se, na
realidade, pela fixação de preços máximos para os
produtos agrícolas (enquanto os artigos da indústria
artesanal eram protegidos por preços mínimos). Esse
verdadeiro colonialismo urbano é retomado pelos
Estados monárquicos e transposto para um espaço
geográfico muito mais amplo, dando origem ao
colonialismo mercantilista. Na inglaterra, os
exemplos dessas práticas intervencionistas remontam
ao século XIII, voltadas principalmente para a
exportação das lãs e para a produção de panos de lã nas ilhas
britânicas, porém é no século XVI, com a dinastia Tudor, que
elas se generalizam e são sistematizadas. Na França, no
século XV, principalmente sob Luís XI, há exemplos
bastante parecidos, além de uma preocupação acentuada com
o problema da evasão de metais preciosos. No entanto, não
se trata, ainda, de mercantilismo, pois as preocupações
fiscais são ainda dominantes.
Ao nível do discurso, esses antecedentes medievais
estão marcados pelas concepções escolásticas, sempre mais
ou menos reticentes a respeito de atividades dominadas pela
busca do lucro. Não é por acaso que os textos escolásticos
põem em relevo a idéia do justo preço e condenam a usura já
que o "dinheiro não pode produzir dinheiro". A ênfase que
dão a uma economia de subsistência onde se produza apenas
o necessário e não o supérfluo, onde os diferentes bens
atendam às necessidades humanas, mas não sejam meios de
exploração e de especulação, coloca o "vil metal" em posição
secundária e condena aqueles que tentam acumulá-lo e assim
o valorizam acima de qualquer outra coisa. Explica-se assim
talves por que, a princípio, o valor é referido ao custo da
produção, ao trabalho empregado nas diversas atividades. A
mudança de perspectiva a esse respeito, observável já no final
da idade Média nos escritos de Buridan e Oresmius, quando
se privilegia cada vez mais a utilidade dos bens, traduz
certamente uma atitude mental em estreita relação com as
transformações econômicas e sociais então em curso.
Importa ressaltar o caráter essencialmente ético,
finalista, da visão escolástica a respeito dos fenômenos
econômicos. Exaltando sempre o justo, o honesto, o certo, o
bom, e colocando sempre na base de tudo o princípio do
Bem Comum, era difícil para essa forma de pensamento não
condenar, ou somente aceitar com muitas restrições e
cautelas, a busca do lucro que movia os empresários, a
acumulação da riqueza material, a ostentação e o luxo,
principalmente quando os meios utilizados envolviam a
especulação, inclusive sobre gêneros de primeira
necessidade, a cobrança de juros real ou aparentemente
abusivos; etc.
Movendo-se, a partir do final da idade Média, em meio
a uma realidade cujas rápidas mudanças se contrapunham,
pelo menos na prática, a muitos de seus princípios básicos,
os autores escolásticos viram-se obrigados a realizar todo um
esforço de reflexão sobre essa nova realidade. Através de
sucessivas racionalizações e distincões minuciosas e
complexas, lograram tornar aceitáveis, ou até mesmo justas,
algumas das práticas mercantis mais difundidas, redefinindo,
por exemplo, a fim de circunscrevê-lo, o conceito de usura.
Nessa etapa é que foram produzidas as análises escolásticas
mais interessantes e já bastante próximas ou até mesmo
identificadas com o pensamento mercantilista propriamente
dito, como foi ressaltado por J. Schumpeter.
A base moderna das idéias mercantilistas consiste na
atuação de dois novos fatores: os Estados modernos
nacionais, ou seja, as monarquias absolutas, e os efeitos de
toda ordem provocados pelas grandes navegações e
descobrimentos sobre a vida das sociedades européias. O
primeiro fator produz a recuperação das práticas
intervencionistas mais típicas das comunas medievais, agora,
porém, à luz das exigências dos novos Estados, elaborando-
se a partir daí um tipo de discurso que tem como principal
característica sobrepor os critérios políticos, a razão de
Estado, às atividades produtivas e mercantis, misturando-se,
na prática, as preocupações imediatistas, fiscalistas, aquelas
de cunho mais amplo e duradouro, mercantilistas. O bem
comum dos súditos identifica-se com o interesse do príncipe.
A cobrança de impostos, a fixação de direitos sobre
a circulação interna de mercadorias e sobre sua
entrada e saída nas fronteiras do país, o controle da
moeda e dos pesos e medidas, tudo enfim é fonte de
renda para o tesouro do monarca, mas pode servir
também à implementação de uma política econômica
autêntica temos aí, então, o mercantilismo. A
diferença está no fato de que, para o fiscalismo, os
tributos representam um fim em si mesmos atendem
às premências da burocracia dos novos Estados e aos
gastos sempre crescentes com a diplomacia, a
guerra, as conquistas. Já para o mercantilismo os
tributos podem ser os mesmos, ou mais numerosos,
porém nesse caso eles constituem apenas os meios
para alcançar objetivos bem diversos, a médio ou longo
prazo sobretudo. Já o segundo fator, cuja referência
central é o afluxo vertiginoso dos metais preciosos obtidos
pelos portugueses na Africa e, muito mais ainda, o "tesouro
americano" que os castelhanos obtêm através do saque e da
exploração das minas, oferece as questões básicas para a
elaboração do discurso metalista ou bulionista que
analisaremos a seguir.

A ) As ideias mercantilistas nos séculos XV/XVI

Tomando por base aqueles dois fundos acima


mencionados o medieval e o moderno a formulação de um
pensamento mercantilista, ao longo do século XVI, está
relacionada sobretudo ao impacto provocado pelo tesouro
americano: o afluxo crescente de ouro e prata provenientes
da América, com todas suas sequelas já apontadas por nós
(alta dos preços, dos salários, etc.). E fácil entender assim
por que foi o problema monetário aquele que mais
impressionou os contemporâneos, traduzindo-se as
tentativas de analisá-lo numa teoria monetarista que viria a
ser a primeira perspectiva mercantilista: a chamada "teoria
quantitativa da moeda". Em sua formulação mais simples
essa teoria pode ser exposta da seguinte maneira: a
contínua elevação dos preços seria provocada pelo aumento
muito rápido das quantidades de ouro e prata em circulação
(devido ao afluxo dos metais preciosos vindos da América),
alterando a relação entre a quantidade de bens
existentes e a quantidade de moeda disponível para ser
trocada por eles. Em outras palavras, uma verdadeira
inflação monetária desvalorizava a moeda e encarecia as
mercadorias, forçando os preços para cima. Sabe-se, hoje,
que a formulação dessa teoria ocorreu quase ao mesmo
tempo na Espanha e na França, a partir de perspectivas
diferentes, mas chegando a conclusões equivalentes. Na
Espanha coube a pensadores escolásticos, os "primitivos
espanhóis do pensamento econômico" da chamada "escola de
Salamanca", tendo à frente Martin de Azpilcueta, o "doutor
Navarro", e Frei Tomás de Mercado, apresentar, já em 1557,
uma primeira explicação quantitativa. Na França, coube a um
jurista, Jean Bodin, em 1568, em sua conhecida "Resposta
aos paradoxos do Sr. de Malestroit", oferecer também uma
argumentação quantitativista para explicar o porquê da alta
dos preços. Para ambos, os preços sobem e vão continuar a
subir ainda porque o afluxo do metal precioso alterou
substancialmente a relação que até então existira entre a
oferta de mercadorias e a quantidade disponível dessa
mercadoria especial que é a moeda de ouro ou de prata.
E bem verdade que nem todos os textos mercantilistas
do século XVI aceitam a teoria quantitativa na moeda como
fator válido ou determinante. Aqui e ali, na Inglaterra através
de um discurso de autor desconhecido, na França, na
Espanha, há indicações de que o problema das relações
comerciais entre os países, a natureza e o custo das
respectivas produções, deveriam ser encarados como o fator
mais importante, porém são apenas sinais precursores
daquilo que viria a ser, no século XVII, a teoria da
balança comercial.
Não há a menor dúvida quanto ao fato de que a ênfase
dada pelos mercantilistas do século XVI à visão monetarista
dos fenômenos econômicos produziu enormes confusões, na
própria época e, mais ainda talvez, nos séculos seguintes, até
os dias atuais. Vejamos por exemplo as afirmações que se
seguem:

"Todas as mercadorias encarecem pela muita


necessidade que há, e pouca quantidade delas; e o
dinheiro enquanto é coisa vendável, trocável ou
comutável por outro contrato, é mercadoria, pelo dito
acima, logo também ele se encarece pela muita
necessidade e pouca quantidade dele..." (Martin de
Azpilcueta)

"Em primeiro lugar a abundância de ouro e prata, que é


a riqueza de um país, deveria desculpar em parte a
carestia, porque, se houvesse escassez deles, como em
tempos passados, é muito certo que todas as coisas se
estimariam e comprariam tanto menos quanto o ouro e
a prata fossem mais valiosos." (Jean Bodin)

Pode-se perceber que, alem de afirmarem que a


moeda é uma mercadoria, os autores mercantilistas
identificam no metal precioso ao mesmo tempo um
meio de se obter a riqueza e um signo dessa mesma
riqueza. Raríssimos casos podem ser mencionados de
identificação pura e simples entre moeda e riqueza.
Seu metalismo, portanto, não pode ser descrito como
sendo uma espécie de criso-hedonismo, quer dizer, uma
confusão insensata entre metais preciosos acumulados e
riqueza propriamente dita. Acontece, porém, que tal foi a
importância atribuída, na prática, à aquisição de metais
preciosos, ao controle de sua entrada e saída, ou mesmo à
proibição desta ultima, que a imagem ainda hoje difundida
acerca do pensamento mercantilista é exatamente essa visão
simplista de adoradores ou fanáticos das moedas de ouro e
prata, espécie de Tio Patinhas do século XVI.

B)As idéias mercantilistas no século XVII

O primeiro fato a assinalar é a persistência das


concepções metalistas, vindo a seguir o desenvolvimento dos
trabalhos sobre as finanças públicas e a administração dos
Estados absolutistas, aparecendo, finalmente, o elemento
mais importante, que foi o desenvolvimento da chamada
"teoria da balança comercial".

As idéias metalistas aparecem nos mesmos autores que


têm na teoria da balança comercial a sua contribuição
principal. Vejamos, a título de exempio:

Antonio Serra "Não é meu propósito discutir aqui quão


importante é, tanto para os povos como para os príncipes,
que abundem num reino o ouro e a prata..."

A. de Montchrétien ²"O ouro e a prata


suprem as necessidades de todos os homens."
preciso notar, no entanto, que esse metalismo
está sempre associado a várias outras concepções
comercialismo, industrialismo, populacionismo, etc.), de
modo que o verdadeiro sentido de afirmações desse tipo é
muito mais o de chamar a atenção dos leitores para o papel
de indicador ou signo da verdadeira riqueza desempenhado
pela abundancia de metais preciosos.
As idéias sobre a administração dos Estados modernos,
sobretudo suas finanças, dentro da antiga tradição do
chamado "principe-administrador", encontram-se, ainda na
segunda metade do século XVI, em J. Bodin e em Giovani
Bótero. No século XVII essa mesma linha de reflexão
produziu verdadeiros sistemas, podendo-se citar, entre os
principais: Barhélemy de Laffemas, Antoine de
Montchrétien, Vauban, na França; na Espanha, os arbitristas,
a começar por Luiz Ortiz, ainda em 1557, prosseguindo com
González de Cellorigo, em 1600, Sancho de Mancada, Pedro
de Valencia, Bartolomé de Albornoz, Juán de Castro, no
século XVII; em Portugal, Duarte Gomes Solis, Luis Mendes
de Vasconcelos, Severim de Faria, e, principalmente, Duarte
Ribeiro de Macedo e o Padre Antoanio Vieira. Nos
principados italianos e alemães também foi intensa a
preocupação com tais questões, destacando-se nos primeiros
Antonio Serra e, nos segundos, os chamados cameralistas, a
serviço dos inúmeros príncipes dos numerosos Estados que
constituíam a Alemanha de então.

***
E no entanto a teoria da balança comercial que
caracteriza realmente o pensamento mercantilista durante o
século XVII. Segundo a opinião de J. Schumpeter, em sua
História da Análise Econômica, essa teoria representou "um
avanço analítico considerável". Já, pelo menos, entrevista no
século anterior, essa teoria pode ser entendida como o
resultado da transposição, para a economia do Estado como
um todo, do mesmo esquema já aplicado, há muito tempo, à
empresa mercantil: o cálculo do "deve" e do "haver". Sob
esse angulo, a economia do país é imaginada como um
conjunto econômico homogéneo face às economias dos
demais países; assim sendo, dentro das fronteiras de um
mesmo pais todas as transações que ai se processam têm
sempre um saldo final igual a zero, posto que se compensam
mutuamente; somente o comércio externo foge a essa regra,
uma vez que poderá ser ativo (superavitário), passivo
(deficitário) ou neutro (equilibrado); logo, é através
desse comércio que a riqueza do país aumenta ou
diminui em termos reais. Persistindo, como vimos, a
convicção de que os metais preciosos são o próprio
signo da riqueza, sua entrada ou saída do país,
dependendo da balança comercial ser favorável ou
não, constituía, na prática, o indicador mais seguro
sobre o pricesso de enriquecimento ou empobrecimento
do país em geral. Muito embora fosse quase impossível,
naquela época, obter os dados quantitativos necessários ao
cálculo da balança comercial, além das próprias deficiências
que marcam as formulações iniciais dessa teoria, o fato é que
ela esteve sempre na ordem do dia e foi o marco de referência
para quase todas as práticas político-econômicas desse
periodo.
As primeiras idéias acerca da balança comercial podem
ser encontradas nos escritos de Thomas Mun, A. de
Montchrétien e Antonio Serra. Eis alguns exemplos:

"Os meios ordinários, portanto, para aumentar nossa


riqueza e tesouro são pelo comércio exterior, para o que
devemos obedecer sempre esta regra: vender mais
anualmente aos estrangeiros em valor do que
consumimos deles." (Tomas Mun, no livro England's
Treasure by Foreign Trade , escrito em 1630 e
publicado em 1664) "As nossas perdas são equivalentes
aos lucros realizados pelo estrangeiro... Um país não
ganha sem que outro perca." (Antoine de Montchrétien,
no Traité del 'Economia Politique, em 1615)
"Não necessita demonstrar-se que aonde há
grande comércio tem que haver necessariamente muito
dinheiro, já que o comércio não pode fazer-se sem ele,
e este é o seu objeto." António Serra, no seu Breve
tratado sobre as causas que portem fazer que abundem
o ouro e a prata nos reinos onde nao há minas , em
1613)
A primeira vista essas ideias parecem confirmar.
O lugar comum, ainda hoje amplamente difundido, de
que a única coisa realmente importante era a
entrada ou a saída do metal precioso, sendo a balança
comercial apenas o espelho desse movimento. Uma leitura
mais atenta, porém, das obras dos autores acima citados (aos
quais se deve acrescentar muitos outros: Colbert, Vauban,
Boisguilbert, na França; Josiam Child, Charles Davenant,
Dudley North, na inglaterra; além daqueles que na
Alemanha, Suécia, Italia, península ibérica se debruçaram
sobre os mesmos assuntos), logo revelará o simplismo
daquela interpretação metalista. Percebe-se, por exemplo,
que o verdadeiro não-dito da teoria da balança comercial não
só está sempre presente como tenderá a assumir um papel
decisivo: é a chamada questão dos "termos de intercâmbio",
cuja formulação mais conhecida então prendia-se à polémica
sobre a validade ou não de se exportar o ouro e a prata.
Desde a década de 1620, Thomas Mun, em sua discussão
com Malynes, origem de seu famoso Discurso sobre o
Comércio da Inglaterra com as Indias Orientais (1621),
desenvolvia o argumento favorável à saída dos metais
preciosos, desde que ela assegurasse, a seguir, uma
reexportarão de mercadorias cujo valor total representasse
muito mais do que o ouro ou a prata exportados. No
desenvolvimento dessa argumentação, o próprio Mun,
seguido por Child, Davenant e pelo próprio Colbert, iriam
pôr em relevo a importância do "comprar barato e vender
caro". Simultaneamente, eles aperfeiçoariam a teoria da
balança comercial, ao fazer entrar em seus cálculos o
custo dos transportes, os seguros, as tarifas aduaneiras e,
indo mais além, os chamados "invisíveis":
portações ou exportações não registradas, somas em dinheiro
gastas no exterior, ganhos dos estrangeiros no próprio pais
ou dos súditos do próprio país quando no exterior, etc. Em
síntese, da balança comercial chegava-se pouco a pouco ao
balanço de pagamentos.
Os discursos mercantilistas, durante a segunda metade
do século XVII e início do século XVIII, diversificam-se
segundo predominam cada vez mais as opiniões e os debates
a respeito de questões específicas: o chamado "pacto
colonial"; os prós e os contras das políticas de preços altos ou
baixos em confronto com a abundância ou escassez de
mercadorias; o controle ou a liberação da taxa de juros; o
problema da oferta de mão-de-obra e o seu controle em
conexão com as análises sobre a população em geral, etc. A
balança comercial não esgota a problemática mercantilista,
mesmo porque, em intima relação com as idéias a seu
respeito, encontraremos os discursos relativos ao
protecionismo e ao desenvolvimento manufatureiro, aos
quais voltaremos mais adiante.
O século XVII, em conclusão, não foi apenas o século
da balança comercial, mas também aquele em que essa teoria
articulou-se a outras não menos importantes, envolvendo as
práticas mercantis e as iniciativas voltadas para as
manufaturas e mesmo para a agricultura.

C) As idéias mercantilistas durante o século XVIII.

O pensamento mercantilista do setecentos movimento


segundo direções e tendências variadas, não raro
contraditórias entre si, as quais podemos tentar resumir
considerando três grandes vetores:

1) as formas clássicas, em geral associadas ao


colbertismo, mantêm-se até além de meados do século,
notando-se apenas que declina a ênfase metalista, reduzindo-
se a importância atribuida ao metal precioso, colocando-se
em destaque o comércio e a produção para a riqueza do
Estado, deixando revelar, ainda, uma espécie de ranço
autarquista, como é o caso de Verón de Forbonnais;

2) na Franca, ganha impulso a crítica de setores


mercantis às práticas intervencionistas do colbertismo, os
exageros protecionistas e seus efeitos nocivos, tomando-se
como referência os exemplos das práticas contrárias a elas,
adotadas por ingleses e holandeses. Os malefícios políticos e
morais da xenofobia mercantilista são denunciados por
Fenelon e Vauban, enquanto Pierre de la Pesant de
Boisguilbert, em seu Détail de la France ( 1695), expõe a
crise agricola e a miséria camponesa, atribuindo ao
subconsumo gerado pelo colbertismo o empobrecimento
geral; daí, em sua Dissertação sobre a Natureza das
Riquezas, colocar em primeiro lugar a circulação dos
produtos e dos lucros, chegando mesmo a formular "um
primeiro modelo económico global e um primeiro esquema
do circuito monetário". Estamos, nesse caso, muito próximos
da concepção do "mecanismo automático", das leis
naturais, distantes portanto do mercantilismo e já
beirando a fisiocracia e o próprio Adam Smith;
3) na inglaterra, cujas condições poéticas e econômicas
eram bem diferentes do resto da Europa, vemos Child, North
e Davenant desenvolverem, em substituição à visão clássica
da balança comercial bilateral, o conceito da balança
triangular e mesmo multilateral. Dessa forma, o que interessa
não é a balança do comércio da Inglaterra com este ou aquele
pais em particular, mas o conjunto de suas trocas comerciais
com todos os países e regiões com os quais ela mantém
relações mercantis. Naqueles autores, a visão belicosa do
comércio internacional tende a ser substituida por visões
mais abrangentes e equilibradas, enfatizando os ganhos
recíprocos, a identidade de interesses, a divisão do trabalho,
as possibilidades de uma expansão ilimitada do comércio
mundial. Mas é o problema da liberdade econômica,
contraposto ao intervencionismo, que mais e mais se impõe.
William Petty, o criador da Aritimética Política, J. Locke,
Dudley North, Charles Davenant, todos eles, embora com
nuanças, põem em dúvida a eficácia do intervencionismo
econômico e, mais ainda, insistem cada vez mais na
existência de agentes ou fatores naturais como os únicos
realmente eficazes.

"O negócio é por sua natureza uma questão de


liberdade, pois só assim ele encontra seus próprios
caminhos e dirige melhor seus empreendimentos,
de maneira que todas as leis que tentam limitá-
lo, regulamentá-lo ou orientá-lo podem ser úteis
para certos interesses particulares, mas
muito raramente são vantajosas para o público."
(Charles Davenant)

A margem dos três vetores acima descritos, vamos


encontrar nas "Europas periféricas", isto é, na península
ibérica, na Itália, na Alemanha e na Rússia, no momento
mesmo em que o mercantilismo é submetido a críticas cada
vez mais agudas, uma recuperação das idéias e das práticas
do mercantilismo clássico através da política economica do
"governo ilustrado" dos chamados "déspotas esclarecidos".
Gerónimo de Uztariz, na Espanha, com sua Theorica, y
Prática de Comercio, y de Marina ( 1757), D. Luis da
Cunha, em Portugal, F. Galiani, A. Genovese, J. B. Ortes, na
Itália, são alguns dos autores mais expressivos desse outro
mercantilismo, desfasado, da segunda metade do século
XVIII.

***
Em claro contraste com essa persistência do
mercantilismo, temos, ao iniciar-se a segunda metade do
século, a refutação da teoria-chave do pensamento
mercantilista: a da balança comercial. Richard Cantillon, em
seu Ensaio sobre a Natureza do Comércio em Geral,
publicado em 1755, demonstra a contradição entre a teoria
quantitativa da moeda e a teoria da balança comercial
favorável, o que o leva a antever, descrevendo mesmo de
maneira sumária, o " mecanismo automático", segundo J.
Schumpeter. Por sua vez, David Hume, em 1752, em seus
Ensaios Economicos, contrapõe ao quantitativismo metalista
a idéia do equilíbrio automático das trocas internacionais, aí
incluída a moeda. Os fisiocratas, na França, e Adam Smith,
na Inglaterra, estavam já à vista.

Principais temas
Até agora temos utilizado a expressão "idéias
mercantilistas" sem nos preocuparmos em saber se existe de
fato alguma coisa que assegure a tais idéias um mínimo de
unidade. Na verdade, é extremamente problemático afirmar a
existência dessa unidade de conteúdo ou de perspectivas a
propósito dos enunciados discursivos que nos habituamos a
chamar de idéias mercantilistas.
Talvez devamos admitir, como ponto de partida, o
caráter pensado das práticas mercantilistas, o qual estaria
presente nos inúmeros textos produzidos por homens de
negócios, administradores, políticos, filósofos, etc. Alguns
deves eram certamente simples panfletários, enquanto que
outros eram evidentemente interessados na defesa e
justificação de seus lucros pessoais, e, temos certeza, muitos
escreviam a fim de agradar aos poderosos e obter favores para
si e seus familiares. Mas, e daí? Deveremos reduzir a análise
das idéias que souberam expor e defender ao simples critério
das suas intenções reais ou apenas supostas? Como proceder
se, apesar de tudo, encontramos aqui e ali visões pertinentes e
extremamente corretas dos diversos fenômenos político-
econômicos? São idéias, sim, podendo constituir ou não uma
teoria, um sistema ou uma doutrina, no sentido que hoje
atribuímos a essas palavras.

Nesse caso, como ficam as idéias mercantilistas?


Comecemos respondendo que tais idéias não
constituem um sistema nem tampouco uma doutrina. Em
termos de sistema, falta-lhes rigor analitico, coerência ou
consistência internas; quanto à doutrina, carecem de uma
armadura racional e logicamente demonstrável composta de
leis e princípios interdependentes e dedutíveis a partir de
seus elementos mais gerais. Sob esse angulo não há dúvida
de que as idéias mercantilistas estão destituídas daquela
cientificidade que somente a ciência econômica clássica seria
capaz de produzir. isso, para nós, como foi visto, não é
nenhuma novidade, em se tratando de idéias que se
produzem justamente num periodo em que não há, ainda,
uma ideologia econômica autônoma.
Quais são, nesse caso, as principais características das
idéias mercantilistas?
Uma primeira característica é que elas não se articulam
a partir de um princípio explicativo universal; os discursos
que veiculam essas idéias são muito diversificados, tanto nos
objetos que abordam quanto nos fatores determinantes de sua
própria enunciação.
Em segundo lugar, é evidente que Ihes falta a visão da
totalidade dos fenômenos que analisam; limitam-se a setores
particulares da realidade, a fatias do bolo, mas não vêem o
bolo propriamente dito.
Segundo J. Schumpeter essas idéias são assistemáticas
e muito pobres em visões analíticas, quer dizer,
científicas; mas nem por isso são necessariamente erradas ou
absurdas.
Seus componentes, medievais e modernos, como já
indicamos, articulam-se de maneira aparentemente
desordenada no universo mental da época, com aspectos
contraditórios, de acordo com uma lógica própria, bem
diferente da nossa.
Elas formam, talvez, um certo discurso, fragmentado,
por vezes desconexo, sobre fenômenos que são, ou parecem
ser, simultaneamente politicos e econômicos, tentando aqui e
ali circunscrever ou atingir um econômico que parece teimar
ainda em ocultar- se .
Enfim, tais idéias traduzem, à sua maneira, a
importância cada vez maior dos princípios e cálculos
racionais no trato dos problemas político-econômicos,
transitando, a todo momento, do verdadeiro microcosmo
burguês que é a empresa (mercantil ou manufactureira) ao
macrocosmo que é o Estado, a empresa do príncipe.
Conjugam se assim as perspectivas que se ligam à ascensão
burguesa, notadamente sua fração mercantil, e aquelas que
repetem a posição-chave do Estado absolutista, transferidor
de renda e empresário, naquilo que se poderia ver como a
última metamorfose da sua tradição patrimonialista.
Não percamos de vista, afinal, que estamos
tratando de uma época que ainda ignora a crença na
existência de um universo econômico regido por leis
próprias, eternas e imutáveis, capazes de regularem
automaticamente a produção e a circulação. Na ausência
dessa crença, seu lugar é ocupado pelo Estado absolutista
entidade superior, com racionalidade própria, responsável
pela regulamentação, vigilância e controle de um universo
pré-econômico cujas diretrizes são o metalismo, o
protecionismo, o colonialismo, o monopolismo, etc.
Tais eram as idéia mercantilistas vistas em conjunto.
Tentemos, agora, caracteriza-las de acordo com os principais
tópicos nelas abordados.

A ) Valor, preço, moeda

As idéias mercantilistas a respeito do problema do


valor identificam-se, a princípio, com as concepções
escolásticas, oscilando entre a ênfase atribuída ao custo de
produção e a importância dada por outros à abundância ou
escassez de oferta. A partir do final do século XVII, contudo,
especialmente nos trabalhos de William Petty, houve uma
certa tendência no sentido de atribuir ao trabalho utilizado na
produção o principal papel na determinação do valor,
fazendo antever, num certo sentido, a teoria do valor-trabalho
dos economistas clássicos. Simultaneamente, sobretudo na
Itália, desenvolveu-se uma corrente oposta, nas obras de
Davanzati e mais ainda de Galiani, já no século XVIII. Esta
corrente, trabalhando sobretudo com o chamado "paradoxo do
valor", inclinou-se para a sua explicação a partir da
ótica do consumidor, pondo em relevo, como seus fatores
determinantes, a utilidade e a raridade de uma determinada
mercadoria.
Não produzindo efetivamente uma teoria de formação
dos preços, os mercantilistas ativeram-se às tentativas
destinadas a explicar as suas oscilações. Nesse terreno
mantiveram-se a maior parte do tempo fiéis à teoria
quantitativa da moeda, aperfeiçoada, no inicio do século
XVIII, pela introdução do conceito de velocidade de
circulação da moeda, nas obras de William Petty, John Locke
e sobretudo R. Cantillon. Tal conceito, por sua vez, foi
desenvolvido por Law e pelo mesmo Cantillon em seus
textos acerca do crédito e da chamada "moeda fiduciária",
isto é, a moeda-papel, separando o caráter de mercadoria,
presente na moeda metálica, do seu caráter de padrão e signo
de valor.
As análises e discussões sobre a moeda, sua natureza,
importância, papel real ou fictício, estão presentes em quase
todos os textos mercantilistas. Segundo Schumpeter é
possível reunir todo esse material utilizando como critério as
disputas entre os chamados metalistas e antimetalistas:
tratava-se, o tempo todo, de saber se a moeda é, também, ou
é, acima de tudo, uma mercadoria, ou se devia ser vista
apenas como um signo de riqueza, ou mesmo um mero
padrão de valor. Para os metalistas a moeda é uma
mercadoria, sendo fundamental a relação nela
existente entre o seu valor de troca e o valor efetivo
da quantidade de metal precioso nela existente.
Assim, adulterar a moeda, diminuindo-lhe o valor intrínseco
(em metais correspondia a diminuir também, na prática, o
seu valor de troca e provocar com isso uma elevação geral
dos preços de todas as mercadorias a serem trocadas por essa
moeda. J. Chio, W. Petty, J. Locke, D. Hume, R. Cantillon,
todos eles, embora com diferenças entre si, podem ser vistos
como metalistas, tal como, no século XVIII, os italianos
Montanari, Galiani e Carli. A tendência oposta, antimetalista,
já aparece, no século XVII, nos escritos de Boisguilbert,
porém seu desenvolvimento teórico mais amplo foi feito pelo
italiano G. Ortes, pelos ingleses Barbon e Steuart e pelos
franceses Néon e Dutot. Segundo eles, prevalecendo na
moeda o seu valor nominal a sua maior ou menor
credibilidade e aceitação , não haveria nenhuma necessidade
ou relação unívoca entre o seu valor de troca e o valor do
material de que fosse constituída, metal ou papel, pouco
importa, pois o que vale é o fato de ser ou não aceita pelo
valor que ostenta. A chamada "experiência de Law", na
França, entre 1715 e 1720, esteve alicerçada nesses
pressupostos.

B) A balança comercial

Idéia das mais caras ao pensamento mercantilista, a


balança comercial implica, como vimos, uma identificação
entre a economia de um país como um todo e a economia de
uma empresa mercantil. O importante é que o país venda mais
ao exterior do que compre, pois haverá aí um saldo favorável
que se traduzirá no ingresso de riqueza expressa em entrada
de moeda metálica. Do contrário, será o empobrecimento, a
"sangria", como diziam os mercantilistas portugueses.
Subjacentes a esta teoria estavam duas idéias também muito
difundidas na época: a de que o volume total do comércio
possível entre os diversos Estados era uma quantidade finita,
inelástica, diríamos nós hoje, e que, por conseguinte, um país
só poderia aumentar a sua participação nesse todo às custas
da diminuição das partes até então em poder dos demais
países; e, em segundo lugar, admitisse que as mercadorias de
alto valor unitário e, portanto, de preços altos, eram mais
lucrativas do que aquelas que tinham pouco valor (e preços
baixos), mais valendo assim incentivar o comércio de artigos
de luxo do que aqueles de consumo mais generalizado. A
principal consequência do primeiro dos pressupostos acima
foi a de transformar o comércio internacional numa
verdadeira guerra permanente, na qual eram lícitas todas as
manobras para aleijar os competidores, o que, não raro,
conduziu à guerra propriamente dita. E preciso não perder de
vista o fato de que durante a época mercantilista a guerra dos
comerciantes e a guerra dos generais e almirantes são duas
constantes, ora correndo paralelas, ora tendendo a articular-
se num único conflito. Já o segundo pressuposto que
assinalamos produziu aquilo que se costuma chamar de
"horror às mercadorias", típico, embora não de forma
absoluta, do pensamento mercantilista e que revela o medo
sempre presente de que um excesso de mercadorias faça
cair o seu preço ou, ainda mais grave, torne impossível a
sua colocação num mercado que se imagina sempre como
limitado e imprevisível.

C) O industrialismo

Aparecendo sempre associado à teoria da balanca


comercial, o chamado industrialismo mercantilista deve ser
visto como um elemento dos mais típicos no interior dessa
ideologia. Note-se que não se trata aqui de " indústria " no
sentido moderno, mas apenas naquela acepção genérica que
identifica como tal toda e qualquer produção resultante da
utilização da habilidade manual na confecção de artigos
necessários à vida humana, inclusive aqueles que são
catalogados como artigos de luxo. Na realidade, resultam do
trabalho artesanal típico ou, especialmente nos séculos XVII
e XVIII, desse mesmo trabalho já agora organizado nas
chamadas manufaturas que, à época, tanto podiam localizar-
se no perímetro urbano como em meio a áreas rurais,
assumindo, por outro lado, a forma de organizações
concentradas num mesmo local, com grandes construções, ou
então dispersas num âmbito geográfico por vezes muito
amplo, articulando quase sempre trabalho doméstico e
oficinas maiores, já pressupondo uma divisão do trabalho e
fases distintas.
A mola mestra do industrialismo é a idéia de
que os produtos manufaturados, por exigirem maior
arte, são os mais valorizados e por isso capazes de
proporcionar maior margem de lucro aos seus empresários
e comerciantes. Sempre que comparado ao trabalho
agrícola, esse tipo de atividade é exaltado pelo fato de
oferecer oportunidade de trabalho honesto a um número bem
maior de individuos do que a agricultura é capaz de fazer. Os
pensadores mercantilistas, sobretudo no século XVIII,
começam a se dar conta, embora de forma confusa, do
dilema que se coloca diante da visão tradicional, colbertista,
de que o importante é produzir artigos de qualidade
esmeralda e alto valor unitário como única forma de
conquistar compradores no exterior e assegurar o próprio
mercado interno. Alguns deles vislumbram mesmo nessa
política a principal limitação ao aumento da produção, pois
afasta os possíveis consumidores de renda mais baixa. Situa-
se nesse ponto a discussão entre os partidários de salários
altos e os que defendem a manutenção dos salários em níveis
os mais baixos possíveis, aliás a maioria. Na prática, tais
divergências expressaram-se em tendências opostas, como se
pode depreender da simples comparação entre a França e a
Inglaterra a partir do final do século XVII.
O elemento que de fato articula industrialismo e
balança comercial é o conjunto de medidas que formam a
política protecionista. E o que vemos em Colbert:

"Todo o comércio consiste em diminuir os


direitos de entrada das mercadorias que servem as
manufaturas interiores, onerar os direitos das que
entram manufaturadas, aliviar os direitos
das mercadorias manufaturadas dentro do Reino."

Ou seja, é preciso facilitar a entrada das matérias-


primas necessárias à alivias produtiva das manufaturas
existentes no país, ou, se for o caso, dificultar ou impedir a
sua exportação, caso essa saída vá provocar elevação dos
preços internos ou, pior ainda, falta para o consumo interno
das manufaturas. E necessário também elevar os direitos
cobrados sobre as manufaturas importadas, a fim de atingir
dois objetivos: reduzir-lhes o consumo e permitir a venda dos
artigos similares produzidos no próprio país; acrescente-se
que em certos casos, como se viu em Portugal e na Espanha,
mesmo sem haver sucedâneos nacionais os apertos da
balança comercial podiam levar à proibição pura e simples
de entrada ou a proibições e limitações quanto ao uso de
certos artigos eram as chamadas leis pragmáticas.
Finalmente, colocava-se como desejável o estímulo à
exportação das manufaturas do próprio país, quer pela
redução ou supressão de direitos de exportação, quer, em
alguns casos, pela concessão de verdadeiras bonificações aos
exportadores a fim de incentivá-los.
E o que afirma também Thomas Mun:

"Também é necessário não onerar os artigos


nacionais com impostos aduaneiros muito altos a
fim de que, encarecendo-os para o consumo
estrangeiro, não acabemos por embaraçar a sua
venda. Devem especialmente favorecer- se os ar-
tigos estrangeiros que se trazem para ser novamente
transportados... Porem o consumo destes artigos
estrangeiros no Domínio pode gravar-se mais,
resultando proveitoso para o país e para a balança de
comércio..."

D) O luxo

Poucos temas terão sido mais discutidos pelos


mercantilistas do que este; no entanto, poucos também terão
levado a opiniões tão antagônicas e oscilantes. Talvez uma
das razões dessa constatação esteja no fato de que esse tema,
tal como o da taxa de juros, trazia sempre, dita ou não dita,
uma conotação ética. Sempre foi muito difícil discuti-lo
apenas em função de considerações político-econômicas,
pois, permeando-as, emergirem, cedo ou tarde, os
argumentos ou condenações morais, reveladores de um
pensamento escolástico que ainda sobrevive. Apenas de uma
forma bastante esquemática, podemos afirmar que a visão
mercantilista tende a aceitar o luxo quando se trata de
justificar a produção de artigos desse tipo para fins de
exportação. Dai se dizer que o mercantilista é a favor
do luxo, mas na casa dos outros. Dentro de cada país,
o luxo tem sempre seus defensores e seus inimigos,
pois, enquanto estes apontam os malefícios que ele
traz a degeneração dos costumes, a quebra das
hierarquias, os vícios , aqueles exaltam o fato de que
é a produção do luxo que assegura emprego e sustento
a milhares de pessoas que, de outro modo, ficariam
ociosas e famintas. Mandeville, com sua Fábula das
Abelhas, ilustra bem esta última linha de argumentação,
tentando na realidade mostrar o caráter contraditório do bem
e do mal quando aplicados à análise de um problema como o
do luxo.

E) A agricultura

Verdadeira prima pobre do pensamento mercantilista, a


agricultura apenas incidentalmente chegou a merecer
avaliações ou análises mais profundas. Num certo sentido ela
é a grande ausente. As idéias mercantilistas distinguem, na
realidade, duas agriculturas: a dos gêneros de subsistência e a
comercial. A primeira é necessária, pois é quem garante a
subsistência dos povos e a ordem das repúblicas. A segunda
é desejável, pois assegura matérias-primas para os insumos
das manufaturas existentes no próprio país, ou se transforma
em valiosas mercadorias de exportação. A consequência é
que se deve estimular ao máximo o segundo tipo, dando-lhe
auxílios e garantias de preço e de mercado, enquanto que a
primeira deve constituir preocupação constante dos
governos, a fim de que não falte o pão aos habitantes do país.
Embora o ideal fosse a auto-suficiência em grãos, a fim de
que sua importação não pesasse negativamente sobre a
balança comercial, as considerações políticas admitiam
facilmente a importação de cereais para debelar fomes ou
enfrentar a ganância de especuladores em anos de colheitas
más. Nesse ponto, afinal, nos defrontamos com a perspectiva
mais profunda do pensamento mercantilista a respeito da
agricultura: trata-se, afinal, de uma atividade que depende
mais de fatores imprevisíveis, fora do controle do homem,
isto é, submetidos à mãe-natureza; assim sendo, é inútil
tentar intervir nesse processo, já que os resultados são muito
parcos. Na agricultura o homem é quase um mero
espectador, sua alivias é passiva, ao contrário da indústria,
onde tudo depende do homem, do seu trabalho, de sua
iniciativa. Tal passividade frente aos azares da natureza mal
consegue esconder o sentimento de menor estima que se tem
pelos produtos agrícolas (São mais baratos, valem menos)
quando comparados aos manufaturados. Além do mais,
embora os argumentos possam variar, persiste a velha
política anonária -- mais importante que o interesse dos
agricultores (seus lucros) é a questão do abastecimento
regular das cidades, de preferência mantendo-se os preços
dos grãos, legumes e frutas em níveis muito baixos, às custas
dos produtores, o que favorecia também os empresários
donos de manufaturas, pois assim podiam ter seus gastos
com a mão-de-obra bastante diminuídos.

F) A população

Os textos mercantilistas revelam uma atitude


populacionista nítida: uma populacão numerosa e
uma verdadeira riqueza para a república. Aos poucos,
introduzem-se certas nuanças: além do número de
habitantes como um todo, o importante é ter a maior
parte deles empregada nas atividades manufatureiras,
pois assim a riqueza produzida é bem maior. Procura-se
demonstrar que, para o trabalhador, a indústria é superior à
agricultura, em termos de rendimentos, como o é para o
próprio país. E, mais ainda, somente uma intensa atividade
manufatureira pode dar ocupação a uma população
numerosa, evitando o desemprego. Nesse ponto, ao focalizar
a questão da quantidade maior ou menor de homens
desempregados, os mercantilistas fazem questão de distinguir
entre aqueles que não trabalham porque não têm onde, e
aqueles que são desempregados por sua exclusiva culpa, aliás
a maioria. Para estes são válidos os meios coercitivos que o
Estado e os empresários devem utilizar para forçá-los a uma
atividade digna, honrosa e produtiva Por detrás desse
discurso, sente-se claramente toda uma orientação voltada
para a compulsão ao trabalho, cuja contrapartida é, como
ficou exposto linhas acima, o nível bastante baixo dos
salários. Na mentalidade da época misturam-se por isso
mesmo as preocupações assistenciais para com os
necessitados e a condenação à vagabundagem e à ociosidade,
e isso de uma forma tal que, frequentemente, o auxílio tem
como contrapartida o trabalho obrigatório, ao mesmo tempo
que a recusa a trabalhar oferece a justificativa para a
repressão mais violenta e desumana

G) O sistema colonial

A conquista e exploração de colonias é um ponto


essencial das idéias mercantilistas. A expressão clássica
desse fato em nivel ideológico é a teoria do pacto colonial,
onde se trai a falsa suposição de que haveria de fato um
pacto ou acordo tácito entre metrópoles e colonias. Na
realidade, porém, a colonia existe em função e para a
metrópole, estando suas relações definidas através do
chamado "exclusivo colonial". A produção das colônias só é
válida na medida em que possibilite lucros elevados aos
comerciantes metropolitanos, detentores do monopólio sobre
o comércio de importação e de exportação das colônias. A
atividade econômica das colônias deve ser complementar e
jamais concorrente em relação à das respectivas metrópoles.
Afinal, as colônias têm um papel único a desempenhar, no
sentido de garantir às suas metrópoles os meios de obterem
uma balança comercial favorável nas trocas com outros
países. Na prática, as colônias constituem uma espécie de
território privilegiado, reservado, já que o exclusivo assegura
ao comércio metropolitano a prática mercantil mais cara à
ética mercantilista: comprar pelo preço mais barato possível
e vender pelo preço mais elevado que se pudesse conseguir.
Compreende-se, dessa forma, que sempre tenha sido
um ponto de honra proibir o aparecimento de atividades
manufatureiras nas colônias, pois não só fariam concorrência
aos produtos vindos da metrópole, como desviariam recursos
materiais e humanos daquelas atividades mais lucrativas do
ponto de vista metropolitano. O próprio afluxo de imigrantes
ou colonos para as colônias foi durante muito tempo
limitado ou mesmo proibido, a fim de evitar o
despovoamento da metrópole, entendido tal despovoamento
como perda de homens e acima de tudo de forças produtivas.
Somente no século XVIII esse modo de encarar o problema
foi um pouco modificado, conforme, em alguns discursos
mercantilistas, chegou-se a admitir que a transferência para
as suas col ônias de homens em excesso na metrópole,
vagabundos e desocupados portanto, poderia ser positiva, já
que eles se transformariam em novos consumidores para as
manufaturas metropolitanas e aumentariam a riqueza da
colônia, identificada aí com a riqueza da própria metrópole.
AS PRATICAS MERCANTILISTAS

Trata-se aqui de oferecer um quadro histórico-


descritivo da evolução e características mais importantes das
principais práticas mercantilistas, criticando, ao mesmo
tempo, a abordagem tradicional que se faz desse problema
através dos chamados "tipos nacionais".

As práticas, consideradas em si mesmas, remetem-nos,


na realidade, a vários daqueles tópicos que foram analisados
ao tratarmos das idéias, pois, a rigor, nada mais são do que a
sua expressão objetiva. Nossa preocupação será explicitá-las
um pouco melhor, justamente enquanto práticas, tentando, ao
mesmo tempo, situá-las ao longo do processo histórico, em
suas sucessivas etapas.
Os séculos XV e XVI
As práticas mercantilistas assumiram então duas formas
principais: o monopoLismo de exportação e o monetarismo
ou bulionismo. A primeira correspondeu ao transplante, para
o âmbito do Estado absolutista, de muitas das práticas
político-econômicas comuns às cidades medievais
caracterizadas, em conjunto, pelas preocupações
monopolistas e protecionistas cuja expressão mais típica é o
emporio medieval. Concretamente, essa política aparece sob
a forma de controle pelo Estado de todo o fluxo do comércio
exterior, fiscalizando-o, regulamentando-o, limitando-o. Não
raro, como foi o caso ibérico, sobretudo o espanhol, tende-se
a estabelecer um porto único para o comércio ultramarino, ou
pelo menos limita-se a alguns portos o privilégio do
comércio exterior. A Inglaterra, no seu comércio com a
Flandres, a Liga Hanseática, no comércio com a Polônia e a
Moscóvia, oferecem outros tantos exemplos. Tal prática
atendia aos interesses fiscalistas do Estado, mas correspondia
também, ao menos nessa época, às perspectivas dos grandes
comerciantes, que assim podiam defender os seus lucros de
monopólio e organizar melhor os transportes e a segurança
de seus carregamentos.
Já a segunda das formas acima indicadas está
diretamente ligada às conseqüências imediatas da
descoberta do Novo Mundo: o afluxo dos metais
preciosos e o início da explorado col ônial. Uma
primeira reação foi a de adaptar os mecanismos do
monopolismo de exportação à nova realidade que era o
tráfico com o ultramar, como fez Castela no caso de Sevilha.
Rapidamente, porém, a questão da evasão do metal precioso,
ou o afã de atraí-lo para dentro das próprias fronteiras, levou
os diversos países a adotarem medidas tendentes a
regulamentar e fiscalizar mais rigidamente o comércio
externo, tendo em vista a sua importância para a situação
monetária de cada país e, segundo a perspectiva de muitos,
para a sua própria riqueza. Duas situações aparecem então
com nitidez: a dos Estados que podiam obter ouro e prata
diretamente, extraindo-o das minas ou trocando-o, por quase
nada, no ultramar, e a dos Estados que, não podendo fazer
nada disso, só podiam tentar capturar o metal precioso
através do comércio e da pirataria. A primeira situação
caracteriza, no século XVI, os países ibéricos, enquanto que
a segunda descreve a posição da Inglaterra, França, Países
Baixos, Estados alemães, repúblicas e principados italianos,
etc.
E curioso observar que, apesar de ser aceita por todos
a máxima que afirmava ser preciso que o ouro e a prata
não saíssem da república, cuja contrapartida era
logicamente a de privilegiar tudo aquilo que atraísse o ouro
e a prata para dentro da república, a tradição apegou-se
apenas ao primeiro aspecto, tipicamente ibérico, porque
eram estes que podiam conseguir os metais preciosos no
ultramar, os castelhanos mais do que quaisquer outros. Daí
as afirmações ainda hoje comuns acerca do chamado
bulionismo ibérico, como se os demais Estados também
não o fossem, à sua maneira, ou ainda como se identificação
apressada entre metais preciosos e riqueza tivesse sido um
pecado específico de espanhóis e portugueses. A rigor, o
chamado metalismo, se é que de fato existiu em termos tão
simplistas, o que duvidamos, é uma característica comum às
práticas mercantilistas desse século e está intimamente
associado a toda uma ideologia que transcende as fronteiras
dos Estados. Estes, por outro lado, na medida em que os
problemas monetários e financeiros os afligem, tendem a
reforçar as práticas centradas no objetivo de reter e (ou) atrair
para seus tesouros o metal precioso em circulação.
Basta um exame das práticas político-econômicas
adotadas durante o século XVI pelas principais monarquias
europeias para verificar os seus traços comuns. A rigor, todas
elas preocupam-se com a questão das medidas de controle e
proibição quanto à saída dos metais preciosos, e é em
conexão com essa questão que se definem também as
medidas de incentivo e protecão às atividades produtivas que
possam evitar ou diminuir as importações de mercadorias
estrangeiras. Na França, várias declarações regias, entre 1506
e 1574, reafirmam a proibição quanto à saída da moeda; o
mesmo ocorre na Inglaterra, sob Henrique VIII e
principalmente sob Elisabete I; idem quanto à Espanha, na
época de Carlos I (Carlos V) e mais ainda na de Felipe II. A
contrapartida, ou antídoto, o desenvolvimento da produção
do próprio país, foi o alvo de diversas iniciativas de
Francisco I, Henrique II e Henrique III, na França,
culminando no enorme esforço de reconstrução que
caracteriza o reinado de Henrique IV, graças à atividade de
seus ministros -- o Duque de Sully e Barthélemy de
Laffemas. Subvenções e protecionismo, concessão de
privilégios, verdadeiros monopólios de produção, elevação
das tarifas aduaneiras, eis os principais instrumentos dessa
política, cuja expressão mais sistemática vamos encontrar na
Inglaterra, sob Elisabete I. O caso espanhol apresenta alguns
traços específicos, pois, além da abundância do metal
precioso, o problema ali se situa em termos de concorrência
entre uma produção artesanal importante, de tecidos de lã,
linho e seda, além de artigos de metal, e as mercadorias
importadas a preços mais baratos. O estudo de dose barras
sobre esse problema demonstra o impasse político-
econômico: diante dos protestos gerais causados pela rápida
elevação dos preços dos artigos nacionais, os governos de
Carlos I e Felipe II adotaram medidas aparentemente lógicas:
limitaram ou proibiram as exportações de tais artigos e
recusaram tomar providências contra as importações
concorrentes. Afinal, segundo se afirmava, a carestia era
provocada pelas manobras altistas resultantes da ganância
dos produtores e das especulações dos comerciantes.
Ignorando a influência inflacionária do ouro e da prata,
especialmente sua pressão cada vez maior sobre os custos da
produção em geral, atendo-se, portanto, apenas aos seus
efeitos mais aparentes -- a carestia --, a política do Estado,
como expressão que era do domínio exercido pela
aristocracia fundiária, mostrou-se incapaz de impedir
tanto a "saca do metal" quanto a decadencia
manufatureira, produzindo em última análise o fenômeno
que P. Vilar chamou de "meteoro burguês".

O século XVII
Sem abandonar totalmente as práticas anteriores, em
alguns casos até reforçando-as, os Estados europeus
concentram suas políticas econ ômicas na aplicação do
princípio da balança comercial, buscando sempre o ideal do
saldo comercial positivo. O próprio favorecimento das
atividades mercantis supõe que é através do comércio que
se alcança uma balança favorável e com ela se aumenta a
riqueza do próprio país. Trata-se então de estimular as
exportações e limitar ou mesmo proibir determinadas
importações. Logicamente articuladas a tais práticas,
encontramos a chamada "política industrialista" e a
estruturação do sistema colonial. Com efeito, a limitação ou
proibição de importações visa principalmente às
mercadorias manufaturadas, pois o seu peso relativo na
balança é sempre muito alto. Assim sendo, a melhor solução
é incentivar a produção interna dos artigos mais consumidos
e que se originam de outros países. O sucesso de tal política
irá exigir todo um conjunto de medidas em nível
alfandegário elevan do a taxação que incide sobre certos
artigos estrangeiros, ampliando as listas de mercadorias cuja
importação é proibida) -- é o protecionismo
ao mesmo tempo, o Estado concede auxílios aos empresários
nacionais, através de empréstimos, privilégios de
exclusividade na produção deste ou daquele artigo, isenções
fiscais, fornecimento de mão-de-obra e de matérias-primas.
Nesta mesma linha de atuação, articulam-se aquelas
providências cujo objetivo é favorecer a entrada de matérias-
primas inexistentes ou escassas, a fim de suprir as
manufaturas, reduzindo ou eliminando os direitos de
importação que pagam nas alfandegas. Lembremos também
a própria atitude então dominante em relação à agricultura, o
abastecimento de cereais encarado como subsídio
indispensável à produção das manufaturas -- logo os preços
devem ser baixos para não desestimular os empresários.
O desenvolvimento de um sistema fechado de relações
entre cada metrópole e suas colonias, o sistema colônial, cujo
elemento-chave é o exclusivo, articula-se ao industrialismo
as colônias formam um mercado cativo, inerme, para as
manufaturas da metrópole e, em última instância, à política
da balança comercial favorável, a produção colonial
exportapa sempre através dos portos metropolitanos reforça o
lado positivo da balança, cabendo à mesma política do
exclusivo impedir por todos os meios que navios e produtos
de outros países cheguem diretamente aos portos coloniais.
Além do ganho mercantil e fiscal que é conseguido com o
comércio colonial, comerciantes e Estado têm no respectivo
sistema um fator insubstituível em termos de balança
comercial.
As práticas econômicas mercantilistas concretamente
adotadas neste século pelos países europeus, embora
partindo de princípios comuns, foram bastante variadas. Nos
países ibéricos, antes e após a Restauração da independência
portuguesa em 1640, ao mesmo tempo que se desenvolve o
sistema colonial, as metrópoles vêem-se a braços com uma
crise tríplice monetária, demográfica e da produção. Os
embaraços financeiros do Estado, a penúria do metal
precioso que leva às sucessivas desvalorizações da moeda, o
desequilíbrio demográfico, geral mas sobretudo regional, a
decadência da produção agrícola e manufatureira, tudo isso
compõe um quadro de crise ou de decadência. Somente nas
últimas décadas do século, com as iniciativas manufatureiras
de D. Luis de Meneses, Conde de Ericeira, em Portugal, e as
do Conde de Oropesa, na Espanha, iremos encontrar os
primeiros sinais de recuperação. Nos Estados italianos e
alemães, peões da política de grandeza e poder de seus
vizinhos mais poderosos, a situação não é muito diferente,
destacando-se apenas os ingentes esforços de reconstrução
levados a efeito pelos cameralistas germânicos. As
Províncias Unidas, por sua vez, no auge do seu poderio
econômico e financeiro, associam práticas mercantilistas
especialmente a criação de suas grandes companhias de
comércio -- e outras bem mais livres. A ênfase dada
ao comercio entre as varias regiões europeias, os
lucros das transações financeiras, a posição de
Amsterdam como metrópole financeira, a construção
e venda de navios, deixam em plano secundário a
produção manufatureira, permitindo evitar boa parte
das práticas protecionistas. Daí resulta uma contradição
aparente que tem levado muitos a se referir a uma espécie de
mercantilismo liberal (sic), sem se darem conta da
contradição em termos que essa expressão encerra. O que
nem sempre é ressaltado é o fato de que, nas Províncias
Unidas, o tipo de Estado é que é outro. E o Estado da própria
burguesia mercantil, o que torna mais ou menos sem sentido
pensar as suas práticas em função da idéia de maior ou
menor intervencionismo. Talvez por causa dessa
característica possamos pensar o caso das Províncias Unidas,
simultaneamente, como o exemplo máximo de mercan-
tilismo, ou, ao contrário, como a sua negação.
A França apresenta-se como o país típico do
mercantilismo em sua forma clássica. Suas lutas contra a
Espanha, contra a Holanda e, por último, contra a inglaterra,
traem facilmente as preocupações mercantis e coloniais da
monarquia francesa. Já na época de Richelieu encontra-se
uma política marítima e colonial bem definida, enquanto
prosseguem, internamente, os esforços de unificação
administrativa e fiscal. A questão da saída do metal precioso,
a necessidade de desenvolver a navegação, a criação de
companhias de comércio, já presentes sob Richelieu,
retomam impulso no reinado de Luís XIV, sob a orientação
de Colbert. Trabalho incessante, dinamismo, uma visão
muito clara das exigências da guerra econômica cujo âmago
é ainda o metal precioso, tudo isso completa-se em Colbert
com a adoção de uma política protecionista e manufatureira de
grande amplitude. Companhias de comércio e manufaturas
ocupam o centro de suas preocupações, ao lado da
construção naval e da legislação tarifária. Sua tonica é a
regulamentação minuciosa e o apoio financeiro e político
dado pelo Estado. Num certo sentido, com todos os seus
erros concertos, o colbertismo tornou-se o paradigma da
política mercantilista clássica.
A Inglaterra mercantilista do século XVII caracteriza-
se por duas fases bem distintas: até 1640, sob os Stuarts, o
intervencionismo é a regra, dando seqüência à política
elisabetana: privilégios, monopólios, protecionismo, tudo
enfim que possa evitar a evasão monetária, favorecer a
produção e desenvolver a navegação e o comércio. No
entanto, os excessos desse intervencionismo, associados às
manipulações de grupos detentores de conexões políticas
protetoras, exacerbou os protestos e levou a grandes
mudanças durante e após a Revolução Puritana. Com efeito,
os revolucionários deram início a uma nova fase: as
práticas intervencionistas mercantilistas foram abolidas
internamente, de roldão com a liquidação dos
remanescentes feudais, abrindo-se espaço à livre
iniciativa dos cidadãos em todos os setores: agricultura,
indústria, comércio. Externamente, porém, a tendência
foi oposta: reforço do protecionismo alfandegário, tanto
para as manufafuras quanto para a agricultura; reforço,
também, do sistema colonial; manutenção das companhias
de comércio, em especial a Companhia das Indias. Daí um
tipo ambíguo de mercantilismo, mais para uso
externo do que interno, aparentemente, cuja expressão mais
notável foram os chamados Atos de Navegação, embora, a
longo prazo, a luta pela conquista do comércio internacional
e a preocupação com as áreas coloniais, as inglesas e as de
seus rivais, tenham sido de fato os seus verdadeiros trunfos.

O Século XVIII
O principal fato relativo às práticas mercantilistas
durante o setecentos é a sua permanência, pela força da
inércia, ou aos interesses sócio-econômicos que lhes davam
condições de existência. As críticas cada vez mais
numerosas, no plano teórico, tiveram pouca repercussão a
nível dos políticos e administradores responsáveis pela
condução da política econômica. A França traduz
nitidamente esse lato, pois somente com Turgot, já na
segunda metade do século, foi possível tentar pôr em prática
alguns dos pontos de vista fisiocráticos. A Inglaterra, por sua
vez, manteve-se fiel ao dualismo que descrevemos no item
anterior: já liberal, em muitos aspectos, para efeito interno,
tremendamente mercantilista, ainda, em suas relações com o
exterior, como o demonstram seus atritos dia a dia maiores
com seus colonos da América, e o auge da Companhia das
Indias.
Ao mesmo tempo, como já mencionamos, as
práticas mercantilistas recebem novo alento nos
países situados na periferia europeia: na Rússia de Pedro
o Grande e de Catarina II; na Prússia de Frederico II; na
Suécia de Gustavo III; no Portugal de D. Jose I, com o
Marquês de Pombal; na Espanha de Carlos III; na Austria de
José II, além de inúmeros príncipes alemães e italianos. As
práticas propriamente ditas, no entanto, não apresentam
novidades: sua essência é dada pelo modelo colbertista,
adaptado às necessidades e às possibilidades reais de cada
Estado particular.
Lembremos, a título de conclusão, que essa
permanência do mercantilismo na França, em crescente
contradição com o desenvolvimento econômico do país e a
ascensão burguesa, representa um dos fatores pré-
revolucionários mais significativos. Sob outro prisma, aquela
recuperação do mercantilismo que atinge os confins da
Europa, enquanto peça importante do reformismo ilustrado,
que é a marca do Antigo Regime de um extremo a outro do
continente, não deixa de ter também influência no próprio
desenvolvimento ou não do capitalismo e da burguesia nas
diferentes sociedades em que ele se processa. As
possibilidades e os rumos da revolução burguesa já se acham
aí, em parte, inscritos.
CONCLUSÃO

Através da exposição que fizemos, acreditamos que


tenha sido possível apreender as características e os
problemas principais do nosso objetivo: o mercantilismo
(Idéias e práticas político-econômicas) em sua articulação
com o processo de transição feudal-capitalista. Este último,
embora apenas esboçado, deve ter permitido situar melhor,
historicamente, a problemática do mercantilismo
propriamente dito. Gostaríamos que tivesse ficado
suficientemente claro também que as idéias e as práticas
mercantilistas, articulando, tanto ao nível do discurso quanto
ao nível da política econômica, as perspectivas e os
interesses que remetem ora ao universo mercantil dominado
pelo capital comercial, ora ao universo do Estado moderno
absolutista, com sua estrutura e funcões bastante peculiares,
permitem estabelecer algumas conclusões mais ou menos
gerais que tentaremos agora resumir.
Em primeiro lugar, parece lícito afirmar que os dois
pontos cruciais do mercantilismo, na teoria e na prática,
foram a sua teoria monetária e a sua teoria da balança
comercial, pois os demais itens do seu ideário têm aqueles
dois como pressupostos. Partindo de uma posição de
complementaridade e interdependência, aquelas teorias
tenderam a se desenvolver seguindo seus próprios caminhos,
numa tensão dialética crescente que veio, afinal, a colocá-las
em posições antagonicas, que levaram à negação e à
superacão de ambas, já na segunda metade do século XVIII.
Em segundo lugar, não há muitas dúvidas sobre o papel
subordinado que o mercantilismo destina à produção em
geral, pois, a rigor, não se acha ligado a nenhum modo de
produção em particular. Naqueles casos em que as atividades
produtivas aparecem diretamente organizadas e dirigidas por
empresários mercantilistas, e isto se dá principalmente nos
empreendimentos manufatureiros, é possível até formular um
esquema:

1 - A produção de mercadorias, sua oferta, baseia-se


em três tipos de cálculos: os custos da produção; a natureza
do mercado; a margem de lucro pretendida.
O problema dos custos repousa sobre três coordenadas
básicas:

1) a lentidão do avanço tecnológico, da qual resulta ser


muito arriscado contar com ele como fator de redução do
custo da produção;
2) a mudança também muito lenta, dadas as
dificuldades existentes, na organização dos processos de
produção; logo, a divisão e especialização do trabalho só em
pequena escala podem contribuir para reduzir os custos;
3) a remuneração da mão-de-obra é o elemento central,
pois, ao lado dos gastos com a aquisição das matérias-
primas, constitui a principal despesa dos empresários; como
consequência, o principio básico é manter sempre em seu
nivel mais baixo essa remuneração (salários ou não); entram
então ai em linha de conta as flutuações demográficas, os
deslocamentos populacionais (inter-regionais ou
internacionais), a existência ou não de um vasto contingente
de desempregados ou subempregados; sobre essa oferta de
mão- de- obra aplicam- se, sempre que necessário, os meios
coercitivos de compulsão ao trabalho que o Estado
absolutista faculta, através da legislação e da fiscalização
burocrática e policial de seus "oficiais".
O problema da NATUREZA DO MERCADO, os
cálculos sobre o seu caráter limitado e inelástico e,
principalmente, a concorrência e o movimento dos preços. A
limitação do mercado tende a privilegiar a qualidade sobre a
quantidade, o vender poucos artigos a preços altos em lugar
de muitos artigos a preços baixos; mas tende também a tolher
quaisquer veleidades de aumento excessivo da produção,
pois faz sempre pairar o fantasma da acumulação de estoques
invendáveis. A concorrência, na qual está afastada a
possibilidade de reduzir os custos além de um certo
limite, funciona levando em consideração os cálculos
sobre transportes ( fretes e seguros ), distância
, barreiras fiscais e alfandegárias, e, acima de tudo, a
existência ou não de privilégios monopolistas que
assegurem, a priori , um mercado cativo. Os preços,
consequentemente, sempre que possível, são os mais altos
possíveis, pois, na prática, salvo as flutuações conjunturais,
ligadas às questões monetárias ou às características
estruturais das economias pré-industriais, não há uma
concorrência suficientemente poderosa para forçá-los para
baixo.
2 - O consumo de mercadorias, sua demanda, assenta-
se em realidades que tendem também a limitá-la ou, pelo
menos, só permitir um crescimento muito lento:

1) baixo poder aquisitivo da maioria da população,


quase toda abastecendo-se, nas áreas rurais (que são as
numericamente predominantes), ou em mercados
estritamente locais, ou mesmo através da auto-subsistência;
enquanto isso, aqueles que produzem, trabalhando nas
manufaturas, ganham tão pouco que seu papel como
consumidores do que produzem não entra em linha de conta,
sendo contraditório pensar em ampliar os seus rendimentos;
2) o verdadeiro mercado consumidor, portanto, está
limitado pela própria estrutura social: o nível de consumo das
classes mais ricas é mais ou menos estável por longos
periodos; pode-se, quando muito, substituir um produto por
outro, mais sofisticado, mais caro, de acordo com a moda; é
para esse espaço que se orienta a produção dos artigos de
luxo;
3) a busca de novos mercados equivale sempre à
conquista de posições fora do próprio país, ou, inversamente
à expulsão dos competidores estrangeiros das posi-
ções que por ventura ocupem dentro do país; e sempre de
uma guerra de posições que se trata. A diplomacia, os
tratados comerciais, a guerra de tarifas, as operações
militares propriamente ditas assumem ai uma importância
decisiva. Um caso particular dessa guerra é dado pela
descoberta, conquista e exploração de novos mercados: as
áreas coloniais.
Finalmente, em terceiro lugar, para retomarmos o fio de
nossa exposição, é importante não perdermos de vista as
relações entre as políticas mercantilistas e as variações
conjunturais mais amplas: as fases de inflação e expansão e
as de deflação e contracão econômica.
A fase de inflação (alta dos preços) e expansão geral
das atividades econômicas tende a exacerbar as práticas
metalistas ou bulionistas, como foi visto para o século XVI,
às quais se subordinam as iniciatívas industrialistas e o
proprio fiscalismo. A fase de deflação ou depressão
(tendência à baixa dos preços), envolvendo dificuldades
monetárias e queda dos lucros, traz consigo a redução da
capacidade de importar e coloca a balança comercial na
ordem do dia. Nasce dai toda uma preocupação renovada e
sistemática com o fomento às manufaturas nacionais,
visando implementar uma política de substituição de
importações, paralelamente ao redespertar das políticas
coloniais. O arsenal mercantilista fornece então as
companhias privilegiadas, as manufaturas reais, as leis
regulamentadoras da produção e da mao-de-obra, as
bonificações, os remanejamentos das tarifas aduaneiras
as leis protecionistas, etc. É o que foi visto quando
tratamos do século XVII.

Assim foi o mercantilismo.


INDICAÇÕES PARA LEITURA
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Sobre o autor

Francisco José Calazans Falcon e professor livre-


docente de História Moderna e professor titular de Historia
Moderna e Contemporanea da Universidade Federal
Fluminense. É também professor associado da PUC-RJ Co-
autor de A formação do Mundo Conternporaneo, escreveu a
tese Politica Economica e Monarquia llustrada:a epoca
pombalina ( 1750-1777).

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