FALCON, Francisco. Mercantilismo e Transição
FALCON, Francisco. Mercantilismo e Transição
FALCON, Francisco. Mercantilismo e Transição
Falcon, 1991
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sem autorizacao previa do editor.
ISBN: 85-17-02007-1
Primeira ediçao, 198l
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As estruturas econômicas
Para facilitar a nossa exposição vamos considerar, em
relação às estruturas econômicas, as relações existentes no
campo, na agricultura, e aquelas existentes na cidade, na
indústria. No campo encontramos três tipos principais: o
aforamento enfitêutico, a parceria e o arrendamento. Na
prática cada um desses tipos se decompõe em formas
variadas conforme o tempo e o lugar que se considere e,
além deles, existem também, em proporções muito diversas,
os pequenos proprietários propriamente ditos e os
camponeses sem terras, trabalhando como assalariados
permanentes ou eventuais. O aforamento corresponde, em
sua essência, à persistência de relações feudais reais (isto é,
sem a servidão pessoal entre os foreiros e os senhores
(nobres, eclesiásticos ou, até, em certos casos, burgueses) das
terras que cultivam; tais relações feudais podem apresentar-
se ou não sensivelmente abrandadas, mas nem por isso
deixam de existir. O arrendamento, ao contrário, identificase
ou aproxima-se bastante das relações contratuais capitalistas,
embora seja discutível afirmar-se que em si mesmo se trata
de uma forma capitalista. A parceria ocupa um lugar
intermediário entre os dois tipos anteriores, sendo talvez num
certo sentido uma forma tipicamente de transição. O
capitalismo propriamente dito tende a contrapor-se a todas
essas formas de produção camponesa e sua versão mais
conhecida é a dos cercamentos ou enclosures, levados a
efeito, principalmente na Inglaterra, por setores da
aristocracia ou por elementos burgueses com a finalide de
imprimir às relações no campo um caráter encialmente
capitalista, pressupondo a supressão forçada de todas as
formas de exploração pré-capilistas, com a consequente
expropriação e mesmo expulsão do antigo campesinato.
Na cidade, verificamos a existência de dois tipos
basicos: artesanato e manufatura. O artesanato corresponde à
persistência da produção em pequenas oficinas quase sempre
organizadas em corporações ou guildas, para efeito de defesa
de seus interesses e manutenção da própria estrutura interna,
hierarquizada. O artesão é aí dono não só dos meios de
produção, como do próprio processo de produção.
Já a manufatura se apresenta como um tipo de organização
qual no o produtor direto, ainda um artesão,
encontra-se subordinado a um empresário que Ihe fornece,
conforme o caso, a matéria-prima, certos instrumentos de
trabalho e se apropria da produção, pagando por tarefa ou,
mais tarde, pagando um salário. A manufatura pressupõe
uma divisão maior ou menor do trabalho e conduz, sobretudo
no século XVIII, a uma progressiva especialização de
funções, além de tender a organizar segundo seus próprios
critérios o processo produtivo como um todo. Apenas a título
de indicação muito genérica, é possível afirmar que o
artesanato é ainda feudal, enquanto que a manufatura seria
tipicamente de transição ou mesmo, como querem outros,
capitalista, pois iríamos longe se quiséssemos discutir aqui o
problema do caráter capitalista ou não das relações de
produção na manufatura.
As estruturas sociais
O tipo de sociedade que corresponde à época
mercantilista é conhecido, em geral, como Sociedade do
Antigo Regime e tem como característica principal o fato de
ser uma "sociedade de ordens", quase sempre identificada
com o conceito weberiano de sociedade estamental. Tanto a
denominação em si quanto a própria caracterização
envolvem problemas bastante complexos que, aqui, iremos
apenas indicar em termos muito gerais. A denominação de
"Antigo Regime", criação dos revolucionários franceses de
1789 para identificar e condenar todos os aspectos
econômicos, sociais e políticos existentes na sociedade
francesa até 1789, embora cómoda e largamente difundida,
trai sempre a sua origem gaulesa e não se aplica facilmente,
quer quanto aos limites cronológicos, quer, principalmente,
com relação à própria natureza da sociedade que pretende
identificar, às diversas formações sociais europeias. Há
mesmo casos em que ela não se aplica -- como para a
Inglaterra e as Províncias Unidas , ou só se aplica com
dúvidas e restrições. Bem mais grave, porém, é a natureza
mesma da sociedade que tal expressão pretende denotar --
a chamada sociedade de ordens. Com efeito, embora nem
todos se dêem conta do fato, a caracterização em termos de
sociedade de ordens ou estamental envolve, habitualmente,
uma negação formal a respeito da possibilidade teórica ou da
validade histórica de se analisar essa sociedade em termos de
classes sociais. Confundem-se então perspectivas teóricas
bem diversas cujo elemento comum é a referida negação. De
um lado, estão os historiadores que se baseiam numa certa
leitura de Marx e Engels, ou nos textos de Lukacs, e afirmam
o caráter estritamente capitalista e burguês da sociedade de
classes e da consciência de classe, daí inferindo a
impossibilidade de utilizar-se o conceito de "classe social"
em sociedades pré-capitalistas. De outro lado, colocar-se os
historiadores de formação empirista (positivista), que se
baseiam no critério da evidência, tanto aquela obtida através
do vocabulário e dos discursos da própria época --
onde a palavra "Classe"
e a expressão "classe social" simplesmente não aparecem ou,
então, existem, mas com significabos inteiramente diversos,
como aquele outro tipo de evidência obtido através do estudo
dos chamados "níveis de consciência" e das "mentalidades"
em geral, onde também seria de todo impossivel detectar
tomadas de consciência reveladoras de uma verdadeira
percepção daquilo que denominamos de classe social.
As estruturas políticas
As estruturas ideológicas
Neste nível devemos estabelecer uma primeira
distinção entre aqueles elementos mais gerais que constituem
o fundo comum às transformações então em curso, no
contexto das tomadas de consciência e das formas de
pensamento que estas últimas revelam, e certas questões
mais especificas, ligadas diretamente ao tema que ora nos
interessa o mercantilismo , as quais se resumem, em última
instancia, no lugar ocupado pelo poético e pelo econ ômico
nos variados discursos produzidos durante esta época.
Os elementos mais gerais que mencionamos, nos quais
não iremos nos deter aqui, podem ser sumariamente
indicados como: o surgimento e cristalização de uma certa
visão ou conceito de modernidade que terá, como um de seus
subprodutos, a chamada teoria do progresso; a seguir, aquilo
que G. Gusdorf denomina de "passagem da transcendência à
imanência", isto é, o abandono de concepções e
preocupações construídas em função de uma ordenação
sobrenatural ou extraterrena do mundo e do homem,
em favor de uma visão essencialmente calcada na natureza e
no homem em si mesmos; em terceiro lugar, o avanço da
secularização, quer dizer, o recuo das formas de pensamento
e das instituições eclesiásticas, a afirmação do Estado como
realidade própria, o desenvolvimento de teorias científicas e
filosóficas apoiadas no racionalismo e no humanismo,
renegando a plano secundário o primado da teologia; por
último, a afirmação, pouco a pouco, do individualismo
burguês. Assim, durante o processo de transição, o universo
ideológico medieval (ou católico-feudal) cede lugar ao
universo ideológico moderno (secular, imanentista,
racionalista, individualista) ou burguês.
As questões específicas a que nos referimos linhas
acima consistem na verdade no problema da autonomização
discursiva do político e do econômico. Para que se entenda
melhor a natureza desse problema, convém lembrarmos que
talvez possa parecer estranho a nós, em pleno século XX,
colocar o problema da própria possibilidade de existência de
épocas ou de sociedades nas quais não existam, a rigor,
condições que permitam pensar em si mesmos, como
realidades mais ou menos autônomas, aquilo que nos
habituamos a chamar de "político" e de "econômico". No
entanto, bem poucos se dão conta do quão recente é a
delimitação de tais campos definidos de saberes, de tal forma
estamos habituados a conviver com eles como se sempre
houvessem existido. E, todavia, datam do final do século
XVIII e começos do século XIX os processos intelectuais e
Maquiavel e a autonomização do político.
ideológicos que fizeram nascer os saberes particulares e as
competências específicas que estão na origem das ciências
humanas.
A especificidade do período de transição, em relação à
problemática que acabamos de esboçar, está exatamente na
existência de uma certa defasagem entre o processo de
autonomização do político e o processo idêntico relativo ao
económico. Mais ainda, o espaço que medeia essas duas
autonomizações é justamente aquele que chamamos de
"mercantilismo". A autonomização do político, isto é, a
possibilidade de pensar e produzir um discurso a respeito da
política como realidade imanente, possuidora de lógica
própria, desvinculada das preocupações teológicas e
filosóficas, morais e transcendentes, que até então haviam
marcado os tratados e utopias políticas, tem seu ponto de
partida na obra de Maquiavel, no início do século XVI. A
secularização do Estado, o abandono das especulações sobre
o tipo de Estado ideal em troca da análise daquilo que o
Estado é de fato, marcam a obra de Maquiavel e assinalam o
início de um verdadeiro discurso político. Toldada pelas
reações àquilo que parecia uma obra ímpia e amoral,
sobretudo durante as longas décadas de conflitos religiosos
provocados pelas Reformas, a análise política só iria retomar
seu vôo em pleno século XVII, com as obras de Hugo
Grotius e Thomas Hobbes, nas quais se afirma o caráter
convencional e histórico da sociedade (civil e política). Tanto
os seguidores da perspectiva mais racionalista de
Grotius, sobretudo os chamados "jusnaturalistas" alemães
dos séculos XVII/XVIII, quanto os continuadores da
perspectiva mais empirista de Hobbes, sobretudo Locke e
Hume, postulam a existência de um direito imanente ou
positivo com princípios naturais de justiça, universais e
eternos, onde se destacam os direitos inerentes à própria
natureza do homem. Embora com formulações distintas entre
si e em relação aos seus antecessores, Montesquieu,
Rousseau e os enciclopedistas consolidam essa visão de um
campo distinto, próprio ao político.
Já a questão do econômico aparece sob um foco
completamente distinto na época em exame. Observe-
se, logo de saída, que não se trata de afirmar aqui a
existência ou não do econômico como sinônimo de
economia, o que seria absurdo, nem tampouco de
supor que esse mesmo econômico fosse um ilustre
desconhecido para os homens dessa época, o que
também seria fantástico. O que não existia ainda era o
econômico como campo distinto ou mais ou menos
autônomo do pensamento. Existem idéias que podemos
chamar de econômicas, mas elas só artificialmente
podem ser isoladas das formações ideológicas e dos
seus respectivos discursos, onde sua existência mesma
está sempre associada a outras categorias e formas de
pensamento não econômicas. A economia é ainda a
administração doméstica, o controle dos negócios
privados. Aquilo que nós chamaríamos hoje de
economia aparece então sempre subordinado ao
Estado, sempre mais como política do que como
economia. Dai referir-se Montchrétien à Economia
Política. Por esse motivo, não encontraremos livros
ou tratados de economia, mas sim, quando muito, poderemos
pingar, aqui e ali, nas obras dos teólogos, filósofos, ministros
e comerciantes, certas ideias que para nós são idéias
econômicas. No contexto em que são produzidas, e que lhes
confere sentido, tais ideias podem, no máximo, caracterizar
um corpo de observações ou preceitos de política econômica,
mais nada.
São essas ideias econômicas do periodo de transição
que nós habitualmente denominamos de "idéias
mercantilistas". Não acreditamos que sua explicação possa
ser obtida através da simples afirmação de que elas
constituem a ideologia do "capitalismo comercial" (sic) ou da
burguesia em ascensão. Estamos convencidos de que a
simples atribuição de uma origem de classe a tais idéias não
resolve o problema que mais interessa aqui: o porquê de sua
estreita associação à dimensão política que se expressa
através do Estado absolutista, ou, em outras palavras, a sua
não autonomia enquanto expressão do econômico. A
resposta só será viável se tivermos bastante clareza a respeito
da dependência do econômico em relação ao político em
nivel ideológico, fato esse que se traduz, por exemplo, na
relação dialética entre poder e riqueza, tão difundida nessa
época, ambos podendo ser pensados, como meio ou como
fim, reciprocamente.
A autonomização do econômico subentende a
existência de uma fase durante a qual aquilo que
entendemos como ideias econômicas aparece ainda
intimamente associado a outros tipos de discursos,
principalmente políticos em função dos interesses
que emanam do Estado absolutista e teológicos
dada a sobrevivência ainda, pelo menos até o século
XVII, de muitas das idéias econômicas escolásticas.
O mercantilismo, enquanto discurso político-
econômico, traduz sobretudo a primeira daquelas
duas associações, mas absorve também algumas das
preocupações oriundas do discurso escolástico.
Talvez, devido a este último fato, apareça como algo
simplista a definição do mercantilismo como sendo a
"razão de Estado" aplicada à esfera das relações
econômicas. Embora o discurso mercantilista
avance, pouco a pouco, no sentido de formular uma
visão secular e racional dos fenômenos político-
econômicos, tentando articulá-los através de uma
visão pessimista em que se postula como necessária
a intervenção do Estado, ele se mostra incapaz de
superar, salvo em caráter excepcional, como foi o
caso de Emitiam Petty, as suas próprias limitações,
ou seja, em outras palavras, ele quase nunca
ultrapassa as condições concretas que tornam
possível a sua própria produção: o predomínio das
práticas mercantis e das formas de pensamento a
elas associadas, a hipertrofia, por conseguinte, da
circulação e o papel secundário e subordinado da
produção propriamente dita. Assim sendo, a
autonomização do econômico iria inscrever-se
historicamente na superacão, ou conclusão, do
processo de transição para o capitalismo, o que
significa dizer que, com o desenvolvimento das
formas capitalistas de produção e a aceleração da
acumulação primitiva, revelasse a insuficiência
ou inadequação das idéias e práticas mercantilistas e
se afirma a possibilidade de um outro discurso, onde o
econômico assume uma posição dominante e cuja primeira
formulação será o liberalismo econômico, ao tempo da
Revolução industrial, na segunda metade do século XVIII.
A evolução conjuntural
Os dados mais gerais dessa evolução são os que
remetem às grandes linhas dos movimentos de conjunto da
economia européia durante a época mercanlilista, marcando,
de certa maneira, o ritmo e mesmo certas tendências das
idéias e práticas mercantilistas. Um estudo mais minucioso
nos conduziria certamente à análise das conjunturas políticas,
sobretudo aquelas ligadas às relações internacionais e
portanto as guerras entre os Estados absolutistas, e, um
pouco além, consideraríamos também as chamadas
conjunturas mentais ou sucessivas visões do mundo que
expressam, no nível ideológico, as diversas etapas e formas
assumidas pelo conjunto das manifestações ideológicas mais
significativas desse período. Por ora, no entanto, apenas
indicaremos, em seus grandes traços, a evolução conjuntural
da economia.
Como primeira conjuntura, correspondendo,
mais ou menos, aos anos situados entre 1450 e 1600
ou 1620, em conexão com as grandes navegações e
descobrimentos marítimos e coloniais iniciados pelos
países ibéricos, temos como características principais: o
crescimento das atividades produtivas em geral, na Europa; o
grande afluxo de metais preciosos e os problemas monetários
ligados a tal aumento das quantidades de ouro e prata nos
países europeus; a elevação geral de preços e salários,
embora, neste particular, haja grandes diferenças quanto ao
ritmo e aos níveis dessa elevação através da Europa e,
principalmente, conforme o país, disparidades quando se
trata de avaliar a relação entre elevação dos preços e
elevação de salários reais ou mesmo nominais; a retomada do
aumento demográfico; as oscilações das taxas de juros; o
aparecimento ou difusão de novos instrumentos comerciais e
de novas formas de organização mercantil e industrial . Tu
do isso está no bojo das transformações que alguns gostam
de denominar de Revolução Comercial e que outros, mais
recentemente, preferem situar num contexto bem mais
amplo, como um verdadeiro sistema de acumulação mundial
ou, então, um sistema mundial moderno, analisando como
um todo integrado tanto as formas econômicas das diversas
regiões europeias, quanto os estabelecimentos coloniais
europeus no Novo Mundo, e ainda seus entrepostos africanos
e suas posições comerciais e militares no Sudeste da Asia e
no Extremo Oriente.
* * *
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E no entanto a teoria da balança comercial que
caracteriza realmente o pensamento mercantilista durante o
século XVII. Segundo a opinião de J. Schumpeter, em sua
História da Análise Econômica, essa teoria representou "um
avanço analítico considerável". Já, pelo menos, entrevista no
século anterior, essa teoria pode ser entendida como o
resultado da transposição, para a economia do Estado como
um todo, do mesmo esquema já aplicado, há muito tempo, à
empresa mercantil: o cálculo do "deve" e do "haver". Sob
esse angulo, a economia do país é imaginada como um
conjunto econômico homogéneo face às economias dos
demais países; assim sendo, dentro das fronteiras de um
mesmo pais todas as transações que ai se processam têm
sempre um saldo final igual a zero, posto que se compensam
mutuamente; somente o comércio externo foge a essa regra,
uma vez que poderá ser ativo (superavitário), passivo
(deficitário) ou neutro (equilibrado); logo, é através
desse comércio que a riqueza do país aumenta ou
diminui em termos reais. Persistindo, como vimos, a
convicção de que os metais preciosos são o próprio
signo da riqueza, sua entrada ou saída do país,
dependendo da balança comercial ser favorável ou
não, constituía, na prática, o indicador mais seguro
sobre o pricesso de enriquecimento ou empobrecimento
do país em geral. Muito embora fosse quase impossível,
naquela época, obter os dados quantitativos necessários ao
cálculo da balança comercial, além das próprias deficiências
que marcam as formulações iniciais dessa teoria, o fato é que
ela esteve sempre na ordem do dia e foi o marco de referência
para quase todas as práticas político-econômicas desse
periodo.
As primeiras idéias acerca da balança comercial podem
ser encontradas nos escritos de Thomas Mun, A. de
Montchrétien e Antonio Serra. Eis alguns exemplos:
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Em claro contraste com essa persistência do
mercantilismo, temos, ao iniciar-se a segunda metade do
século, a refutação da teoria-chave do pensamento
mercantilista: a da balança comercial. Richard Cantillon, em
seu Ensaio sobre a Natureza do Comércio em Geral,
publicado em 1755, demonstra a contradição entre a teoria
quantitativa da moeda e a teoria da balança comercial
favorável, o que o leva a antever, descrevendo mesmo de
maneira sumária, o " mecanismo automático", segundo J.
Schumpeter. Por sua vez, David Hume, em 1752, em seus
Ensaios Economicos, contrapõe ao quantitativismo metalista
a idéia do equilíbrio automático das trocas internacionais, aí
incluída a moeda. Os fisiocratas, na França, e Adam Smith,
na Inglaterra, estavam já à vista.
Principais temas
Até agora temos utilizado a expressão "idéias
mercantilistas" sem nos preocuparmos em saber se existe de
fato alguma coisa que assegure a tais idéias um mínimo de
unidade. Na verdade, é extremamente problemático afirmar a
existência dessa unidade de conteúdo ou de perspectivas a
propósito dos enunciados discursivos que nos habituamos a
chamar de idéias mercantilistas.
Talvez devamos admitir, como ponto de partida, o
caráter pensado das práticas mercantilistas, o qual estaria
presente nos inúmeros textos produzidos por homens de
negócios, administradores, políticos, filósofos, etc. Alguns
deves eram certamente simples panfletários, enquanto que
outros eram evidentemente interessados na defesa e
justificação de seus lucros pessoais, e, temos certeza, muitos
escreviam a fim de agradar aos poderosos e obter favores para
si e seus familiares. Mas, e daí? Deveremos reduzir a análise
das idéias que souberam expor e defender ao simples critério
das suas intenções reais ou apenas supostas? Como proceder
se, apesar de tudo, encontramos aqui e ali visões pertinentes e
extremamente corretas dos diversos fenômenos político-
econômicos? São idéias, sim, podendo constituir ou não uma
teoria, um sistema ou uma doutrina, no sentido que hoje
atribuímos a essas palavras.
B) A balança comercial
C) O industrialismo
D) O luxo
E) A agricultura
F) A população
G) O sistema colonial
O século XVII
Sem abandonar totalmente as práticas anteriores, em
alguns casos até reforçando-as, os Estados europeus
concentram suas políticas econ ômicas na aplicação do
princípio da balança comercial, buscando sempre o ideal do
saldo comercial positivo. O próprio favorecimento das
atividades mercantis supõe que é através do comércio que
se alcança uma balança favorável e com ela se aumenta a
riqueza do próprio país. Trata-se então de estimular as
exportações e limitar ou mesmo proibir determinadas
importações. Logicamente articuladas a tais práticas,
encontramos a chamada "política industrialista" e a
estruturação do sistema colonial. Com efeito, a limitação ou
proibição de importações visa principalmente às
mercadorias manufaturadas, pois o seu peso relativo na
balança é sempre muito alto. Assim sendo, a melhor solução
é incentivar a produção interna dos artigos mais consumidos
e que se originam de outros países. O sucesso de tal política
irá exigir todo um conjunto de medidas em nível
alfandegário elevan do a taxação que incide sobre certos
artigos estrangeiros, ampliando as listas de mercadorias cuja
importação é proibida) -- é o protecionismo
ao mesmo tempo, o Estado concede auxílios aos empresários
nacionais, através de empréstimos, privilégios de
exclusividade na produção deste ou daquele artigo, isenções
fiscais, fornecimento de mão-de-obra e de matérias-primas.
Nesta mesma linha de atuação, articulam-se aquelas
providências cujo objetivo é favorecer a entrada de matérias-
primas inexistentes ou escassas, a fim de suprir as
manufaturas, reduzindo ou eliminando os direitos de
importação que pagam nas alfandegas. Lembremos também
a própria atitude então dominante em relação à agricultura, o
abastecimento de cereais encarado como subsídio
indispensável à produção das manufaturas -- logo os preços
devem ser baixos para não desestimular os empresários.
O desenvolvimento de um sistema fechado de relações
entre cada metrópole e suas colonias, o sistema colônial, cujo
elemento-chave é o exclusivo, articula-se ao industrialismo
as colônias formam um mercado cativo, inerme, para as
manufaturas da metrópole e, em última instância, à política
da balança comercial favorável, a produção colonial
exportapa sempre através dos portos metropolitanos reforça o
lado positivo da balança, cabendo à mesma política do
exclusivo impedir por todos os meios que navios e produtos
de outros países cheguem diretamente aos portos coloniais.
Além do ganho mercantil e fiscal que é conseguido com o
comércio colonial, comerciantes e Estado têm no respectivo
sistema um fator insubstituível em termos de balança
comercial.
As práticas econômicas mercantilistas concretamente
adotadas neste século pelos países europeus, embora
partindo de princípios comuns, foram bastante variadas. Nos
países ibéricos, antes e após a Restauração da independência
portuguesa em 1640, ao mesmo tempo que se desenvolve o
sistema colonial, as metrópoles vêem-se a braços com uma
crise tríplice monetária, demográfica e da produção. Os
embaraços financeiros do Estado, a penúria do metal
precioso que leva às sucessivas desvalorizações da moeda, o
desequilíbrio demográfico, geral mas sobretudo regional, a
decadência da produção agrícola e manufatureira, tudo isso
compõe um quadro de crise ou de decadência. Somente nas
últimas décadas do século, com as iniciativas manufatureiras
de D. Luis de Meneses, Conde de Ericeira, em Portugal, e as
do Conde de Oropesa, na Espanha, iremos encontrar os
primeiros sinais de recuperação. Nos Estados italianos e
alemães, peões da política de grandeza e poder de seus
vizinhos mais poderosos, a situação não é muito diferente,
destacando-se apenas os ingentes esforços de reconstrução
levados a efeito pelos cameralistas germânicos. As
Províncias Unidas, por sua vez, no auge do seu poderio
econômico e financeiro, associam práticas mercantilistas
especialmente a criação de suas grandes companhias de
comércio -- e outras bem mais livres. A ênfase dada
ao comercio entre as varias regiões europeias, os
lucros das transações financeiras, a posição de
Amsterdam como metrópole financeira, a construção
e venda de navios, deixam em plano secundário a
produção manufatureira, permitindo evitar boa parte
das práticas protecionistas. Daí resulta uma contradição
aparente que tem levado muitos a se referir a uma espécie de
mercantilismo liberal (sic), sem se darem conta da
contradição em termos que essa expressão encerra. O que
nem sempre é ressaltado é o fato de que, nas Províncias
Unidas, o tipo de Estado é que é outro. E o Estado da própria
burguesia mercantil, o que torna mais ou menos sem sentido
pensar as suas práticas em função da idéia de maior ou
menor intervencionismo. Talvez por causa dessa
característica possamos pensar o caso das Províncias Unidas,
simultaneamente, como o exemplo máximo de mercan-
tilismo, ou, ao contrário, como a sua negação.
A França apresenta-se como o país típico do
mercantilismo em sua forma clássica. Suas lutas contra a
Espanha, contra a Holanda e, por último, contra a inglaterra,
traem facilmente as preocupações mercantis e coloniais da
monarquia francesa. Já na época de Richelieu encontra-se
uma política marítima e colonial bem definida, enquanto
prosseguem, internamente, os esforços de unificação
administrativa e fiscal. A questão da saída do metal precioso,
a necessidade de desenvolver a navegação, a criação de
companhias de comércio, já presentes sob Richelieu,
retomam impulso no reinado de Luís XIV, sob a orientação
de Colbert. Trabalho incessante, dinamismo, uma visão
muito clara das exigências da guerra econômica cujo âmago
é ainda o metal precioso, tudo isso completa-se em Colbert
com a adoção de uma política protecionista e manufatureira de
grande amplitude. Companhias de comércio e manufaturas
ocupam o centro de suas preocupações, ao lado da
construção naval e da legislação tarifária. Sua tonica é a
regulamentação minuciosa e o apoio financeiro e político
dado pelo Estado. Num certo sentido, com todos os seus
erros concertos, o colbertismo tornou-se o paradigma da
política mercantilista clássica.
A Inglaterra mercantilista do século XVII caracteriza-
se por duas fases bem distintas: até 1640, sob os Stuarts, o
intervencionismo é a regra, dando seqüência à política
elisabetana: privilégios, monopólios, protecionismo, tudo
enfim que possa evitar a evasão monetária, favorecer a
produção e desenvolver a navegação e o comércio. No
entanto, os excessos desse intervencionismo, associados às
manipulações de grupos detentores de conexões políticas
protetoras, exacerbou os protestos e levou a grandes
mudanças durante e após a Revolução Puritana. Com efeito,
os revolucionários deram início a uma nova fase: as
práticas intervencionistas mercantilistas foram abolidas
internamente, de roldão com a liquidação dos
remanescentes feudais, abrindo-se espaço à livre
iniciativa dos cidadãos em todos os setores: agricultura,
indústria, comércio. Externamente, porém, a tendência
foi oposta: reforço do protecionismo alfandegário, tanto
para as manufafuras quanto para a agricultura; reforço,
também, do sistema colonial; manutenção das companhias
de comércio, em especial a Companhia das Indias. Daí um
tipo ambíguo de mercantilismo, mais para uso
externo do que interno, aparentemente, cuja expressão mais
notável foram os chamados Atos de Navegação, embora, a
longo prazo, a luta pela conquista do comércio internacional
e a preocupação com as áreas coloniais, as inglesas e as de
seus rivais, tenham sido de fato os seus verdadeiros trunfos.
O Século XVIII
O principal fato relativo às práticas mercantilistas
durante o setecentos é a sua permanência, pela força da
inércia, ou aos interesses sócio-econômicos que lhes davam
condições de existência. As críticas cada vez mais
numerosas, no plano teórico, tiveram pouca repercussão a
nível dos políticos e administradores responsáveis pela
condução da política econômica. A França traduz
nitidamente esse lato, pois somente com Turgot, já na
segunda metade do século, foi possível tentar pôr em prática
alguns dos pontos de vista fisiocráticos. A Inglaterra, por sua
vez, manteve-se fiel ao dualismo que descrevemos no item
anterior: já liberal, em muitos aspectos, para efeito interno,
tremendamente mercantilista, ainda, em suas relações com o
exterior, como o demonstram seus atritos dia a dia maiores
com seus colonos da América, e o auge da Companhia das
Indias.
Ao mesmo tempo, como já mencionamos, as
práticas mercantilistas recebem novo alento nos
países situados na periferia europeia: na Rússia de Pedro
o Grande e de Catarina II; na Prússia de Frederico II; na
Suécia de Gustavo III; no Portugal de D. Jose I, com o
Marquês de Pombal; na Espanha de Carlos III; na Austria de
José II, além de inúmeros príncipes alemães e italianos. As
práticas propriamente ditas, no entanto, não apresentam
novidades: sua essência é dada pelo modelo colbertista,
adaptado às necessidades e às possibilidades reais de cada
Estado particular.
Lembremos, a título de conclusão, que essa
permanência do mercantilismo na França, em crescente
contradição com o desenvolvimento econômico do país e a
ascensão burguesa, representa um dos fatores pré-
revolucionários mais significativos. Sob outro prisma, aquela
recuperação do mercantilismo que atinge os confins da
Europa, enquanto peça importante do reformismo ilustrado,
que é a marca do Antigo Regime de um extremo a outro do
continente, não deixa de ter também influência no próprio
desenvolvimento ou não do capitalismo e da burguesia nas
diferentes sociedades em que ele se processa. As
possibilidades e os rumos da revolução burguesa já se acham
aí, em parte, inscritos.
CONCLUSÃO