4360-Texto Do Artigo-14204-1-10-20210125

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DISCURSO POLÍTICO E METÁFORA: Resumo: Este artigo se propõe a analisar três

pronunciamentos do deputado Jair Bolsonaro na


EFEITOS DE SENTIDO SOBRE Câmara dos Deputados (2004, 2005 e 2006) de forma
a identificar efeitos de sentido sobre a ditadura militar
A DITADURA MILITAR EM (1964-1985). Amparada nas elaborações de Michel
Pêcheux em Análise Automática do Discurso e de
PRONUNCIAMENTOS DE JAIR Ernesto Laclau em A razão populista, a análise indicou
que os pronunciamentos de Bolsonaro significam a
BOLSONARO NA CÂMARA DOS ditadura militar em relação a uma dicotomização
DEPUTADOS do espaço social, a partir da qual se configuram dois
polos em relação de oposição. A análise possibilitou
vislumbrar o jogo metafórico constitutivo dos efeitos
de sentido sobre a ditadura militar, na medida em que
POLITICAL DISCOURSE AND os elementos que se agrupam em torno de cada um
dos polos estabelecem entre si relações de analogia.
METAPHOR: MEANING EFFECTS A análise aponta para a existência de uma forma do
UPON BRAZILIAN MILITARY discurso político que se estrutura a partir de efeitos
metafóricos em torno de uma dicotomização do
DICTATORSHIP IN JAIR BOLSONARO’S espaço social.
Palavras-chave: Análise do Discurso. Efeito Metafórico.
PRONOUNCEMENTS IN THE HOUSE OF Regime Militar. 
REPRESENTATIVES Abstract: This paper aimed at analyzing three
pronouncements made by Jair Bolsonaro in the House
of Representatives (2004, 2005 and 2006) in order
to identify meaning effects upon Brazilian military
dictatorship (1964-1985). Based on Michel Pêcheux’s
Bianca Resende Carvalho 1
Automatic Discourse Analysis and Ernesto Laclau’s
Edmundo Narracci Gasparini 2 On populist reason, the analysis indicated that the
pronouncements signify the military dictatorship in
relation to a dichotomization of the social field by
means of which two opposite poles are constituted.
The analysis disclosed the metaphorical constitution
of the meaning effects upon the military dictatorship
once the elements regrouped around the poles of
the dichotomy maintain a relation of analogy among
themselves. The analysis also points to the existence
of a form of political discourse whose structure
is constituted by metaphorical effects around a
dichotomization of the social field.
Keywords: Discourse Analysis. Metaphorical Effect.
Military Regime.

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da 1


Universidade Federal de São João Del-Rei. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/0628045559152503. E-mail: [email protected]

Doutor em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas. 2


Professor do Departamento de Letras, Artes e Cultura e do Programa de
Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de São João Del-Rei.
Lattes:  http://lattes.cnpq.br/9681610935185356. E-mail: [email protected]
49 Revista Humanidades e Inovação v.7, n.24

Introdução
São conhecidos os posicionamentos de Jair Messias Bolsonaro, presidente do Brasil elei-
to em 2018, em defesa da censura, da tortura e da ditadura militar no Brasil (1964-1985).
Ao longo de sua carreira política como deputado federal (1991-2018), Bolsonaro acumulou
numerosas manifestações de apoio à ditadura militar. Com base nas transcrições dos pronun-
ciamentos que Bolsonaro fez na Câmara dos Deputados, um levantamento (MENEGAT, 2019)
apontou que o então deputado mencionou o regime militar em um a cada quatro pronuncia-
mentos no plenário. Das 901 falas catalogadas, 252 (28%) mencionam o período em que os
militares estiveram no poder.
No trabalho, aqui, apresentado, amparamo-nos nas elaborações de Michel Pêcheux
(em Análise Automática do Discurso) e de Ernesto Laclau (em Sobre a razão populista) para
investigar três pronunciamentos de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados. Interessou-nos
abordar os efeitos de sentido sobre a ditadura militar nos pronunciamentos do então deputa-
do. É a partir da retomada do texto de Pêcheux, no qual o discurso político comparece como
“representante exemplar de diversos tipos de processos discursivos” (PÊCHEUX, 1997, p. 77)
e do texto de Laclau, no qual a lógica populista é abordada como “via régia para compreender
algo sobre a constituição ontológica do político como tal” (LACLAU, 2005, p. 67, tradução nos-
sa1), que estabeleceremos os fundamentos teórico-metodológicos que possibilitarão analisar
os pronunciamentos do então deputado federal e, também, contribuir para a compreensão do
discurso político.
O trabalho, aqui, apresentado tem como objetivo geral, portanto, investigar como três
pronunciamentos do então deputado federal Jair Bolsonaro significam a ditadura militar. Nos-
sos objetivos específicos são 1) identificar efeitos de sentido sobre a ditadura militar nos pro-
nunciamentos de Bolsonaro e 2) contribuir para a compreensão do discurso político.
Passemos aos elementos teóricos que fundamentaram o trabalho.

Fundamentação teórica
Em seu estudo sobre o discurso político da extrema-direita brasileira, Morais (2019)
analisa o voto do deputado federal Jair Bolsonaro (PSL) na Câmara dos Deputados na sessão
de julgamento do impeachment de Dilma Rousseff (abril de 2016), assim como três enunciados
postados em seu perfil no Facebook. Sobre uma das postagens no Facebook (18 de julho de
2015), Morais faz uma afirmação digna de nota:

No enunciado, há a construção de dois grupos antagônicos: de


um lado, a população de bem, do outro, a esquerda brasileira e o
Partido dos Trabalhadores (PT). Em oposição lógica às pessoas/
cidadãos de bem, haveria os não-cidadãos de bem; infere-se,
então, que o cidadão de bem não só não é esquerdista/petista,
como também possui por princípio sua negação política,
de modo que ambos os grupos estão dispostos de maneira
mutuamente excludentes. O posicionamento conflituoso
entre tais grupos decorreria do fato de a esquerda brasileira
ser anti-nacional, anti-democrática, ideologicamente radical,
grevista, desordeira, corrupta e comunista. Logo, a favor do
desarmamento da população de bem, da luta de classes e do
desgaste dos valores da família. Em decorrência disso, citando
o editorial do antigo proprietário do jornal O Globo, Roberto
Marinho, o então parlamentar propõe uma ressignificação
da ditadura militar brasileira (1964-1985) como Revolução,
visto que, como reação à suposta ameaça dos “terroristas
de esquerda”, a subida dos militares ao poder teria sido uma
medida necessária à garantia da ordem, das instituições

1 Em inglês: “the royal road to understanding something about the ontological constitution of the political as
such”.
50 Revista Humanidades e Inovação v.7, n.24

democráticas e dos anseios nacionais (MORAIS, 2019, p. 162-


163).

De acordo com a análise de Morais, o enunciado analisado constrói dois grupos antagô-
nicos: de um lado, a população de bem e, de outro, a esquerda brasileira/o PT. Trata-se, confor-
me indica o autor, de uma relação de oposição lógica entre os dois grupos. Destaca-se também
da análise de Morais a menção a uma ressignificação da ditadura militar como Revolução,
como reação a uma suposta ameaça dos “terroristas de esquerda”. A nos guiarmos por Morais,
portanto, a ditadura militar é significada na referência à construção de dois grupos antagônicos
em relação de oposição lógica. Retomaremos tais considerações adiante.
Em Análise Automática do Discurso – considerado por diferentes autores como o mo-
mento inaugural da teoria que constitui o discurso como objeto (LEITE, 1994) –, o discurso
político é considerado por Pêcheux como um “representante exemplar de diversos tipos de
processos discursivos” (PÊCHEUX, 1997, p. 77). É a partir do exemplo do “discurso de um depu-
tado na Câmara” (PÊCHEUX, 1997, p. 76) que Pêcheux forja dois conceitos fundamentais para
o campo dos estudos discursivos, quais sejam, condições de produção e processo discursivo.
Em sua condição de representante exemplar, o discurso político tem, em Análise Automática
do Discurso, uma potência que permite a Pêcheux discutir elementos fundamentais para o
estabelecimento do objeto discurso no final dos anos 60. Para nós, não deixa de ser oportuno
que o exemplo utilizado por Pêcheux se relacione ao tema do trabalho, aqui, apresentado.
De início, Pêcheux afirma que o discurso do deputado na Câmara não manifesta uma
liberdade do locutor 2. Antes, faz parte de um mecanismo em funcionamento, isto é, pertence
a “um sistema de normas nem puramente individuais nem globalmente universais, mas que
derivam de uma ideologia política, correspondendo, pois, a um certo lugar no interior de uma
formação social dada” (PÊCHEUX, 1997, 76-77, destaque do autor). Portanto, o discurso do
deputado não corresponde à manifestação de uma liberdade do locutor, uma vez que é deter-
minado por um conjunto de normas que se situam no nível intermediário entre o individual e o
universal 3. Dois pontos nos parecem importantes na afirmação de Pêcheux. Em primeiro lugar,
o fato de que tais normas derivam de uma ideologia política. Mas também o fato de que estas
normas correspondem a um certo lugar em uma formação social. Sobre este ponto, Pêcheux
afirma:

Em outras palavras, um discurso é sempre pronunciado


a partir de condições de produção dadas: por exemplo, o
deputado pertence a um partido político que participa do
governo ou a um partido de oposição; é porta-voz de tal ou
tal grupo que representa tal ou tal interesse, ou então está
“isolado” etc. Ele está, pois, bem ou mal, situado no interior de

2 Pêcheux afirma que do ponto de vista saussuriano o discurso do deputado seria da ordem da fala, isto é, manifestaria
a liberdade do locutor. O que está em jogo aqui é a crítica feita por Pêcheux em Análise Automática do Discurso
ao conceito de fala no Curso de Linguística Geral, conceito que, segundo Pêcheux, aparece como um “caminho da
liberdade humana” (PÊCHEUX, 1997, p. 71, destaque do autor). Marcamos aqui nosso distanciamento em relação
à crítica feita por Pêcheux ao conceito saussuriano de fala. Conforme indica Gasparini (2016), embora o conceito
de fala de fato apareça, em algumas passagens do Curso, associado a uma “liberdade individual”, tal conceito não
se encontra completamente subsumido à perspectiva de uma liberdade do falante. Conforme o próprio Pêcheux
ressalva na passagem sobre a qual estamos nos debruçando: “Do estrito ponto de vista saussuriano, o discurso [do
deputado na Câmara] é, enquanto tal, da ordem da fala, na qual se manifesta a “liberdade do locutor”, ainda que,
bem entendido, seja proveniente da língua enquanto sequência sintaticamente correta” (PÊCHEUX, 1997, p. 76,
destaques do autor). Este é exatamente o ponto: no Curso, para além da configuração da fala como “ato individual
de vontade e inteligência” (SAUSSURE, 1974 p. 22), do qual “o indivíduo é sempre senhor” (SAUSSURE, 1974, p.
21), há algo mais fundamental, e que o próprio Pêcheux menciona em sua ressalva: não há fala sem língua, só é
possível falar de acordo com as possibilidades fornecidas pela língua. Nesse sentido, a indicação feita por Pêcheux
de que a fala saussuriana corresponde a um caminho da liberdade humana fica confrontada com um impasse.
3 Vale destacar o estabelecimento do discurso, em Análise Automática do Discurso, como instância intermediária
entre a universalidade (da língua) e a singularidade individual (da fala), remetendo, portanto, ao registro da
particularidade, registro que se articula ao jogo de lugares no interior de uma formação social.
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relações de forças existentes entre os elementos antagonistas


de um campo político dado” (PÊCHEUX, 1997, p. 77, destaque
do autor)

A argumentação de Pêcheux aponta para a forma como é trabalhado, no texto de 1969,


o conceito de condições de produção. Na teoria linguística essa perspectiva estava representa-
da, segundo Pêcheux, pelo papel dado ao “contexto” ou à “situação”. Vê-se, pois, o estatuto do
conceito de condições de produção no texto de 1969: mais do que o “contexto” ou a “situação”
como pano de fundo dos discursos, elas remetem ao lugar no jogo de relações sociais. No que
se refere ao exemplo do deputado na Câmara, Pêcheux especifica, conforme vimos acima: o
deputado é de um partido que participa do governo, ou de um partido de oposição; é ligado a
um grupo que representa um interesse ou está isolado. O deputado está, como diz Pêcheux,
situado num jogo de forças entre elementos antagonistas em um campo político.
No texto de 1969, Pêcheux formula a hipótese de que “a um estado dado das condições
de produção corresponde uma estrutura definida dos processos de produção do discurso a
partir da língua” (PÊCHEUX, 1997, p. 79, destaque nosso). Há, portanto, uma correspondência
entre as condições de produção e os processos discursivos. Sobre estes últimos, Pêcheux indica
que eles resultam da composição das condições de produção com um sistema linguístico. As
condições de produção funcionam, segundo Pêcheux, como um princípio de seleção e combi-
nação sobre os elementos da língua, constituindo a partir deles “o sistema de ligações semân-
ticas que representa a matriz do discurso” (PÊCHEUX, 1997, p. 88). Essa matriz é, portanto,
considerada por Pêcheux como uma estrutura que corresponde a determinadas condições de
produção.
Considerar o processo discursivo como uma estrutura aponta para a relevância que pos-
sui, em Análise Automática do Discurso, o efeito metafórico: “Chamaremos efeito metafórico o
fenômeno semântico produzido por uma substituição contextual para lembrar que esse ‘desl-
izamento de sentido’ entre x e y é constitutivo do ‘sentido’ designado por x e y” (PÊCHEUX,
1997, p. 96, destaque do autor). A estrutura de um processo discursivo, assim, define-se como
“um tecido de elementos solidários, instalando-se e assegurando-se a si mesma através de
efeitos metafóricos [...]” (PÊCHEUX, 1997, p. 97). Nessa perspectiva, é através de um olhar às
relações de substituição entre significantes que é possível abordar o processo discursivo como
estrutura. É nessa perspectiva que podemos compreender o processo discursivo como “matriz
do discurso”: os efeitos de sentido constituídos em nível dos processos discursivos são engen-
drados a partir de relações de substituição entre significantes, relações que correspondem a
um determinado estado das condições de produção do discurso.
Conforme vimos, o discurso político assume em Análise Automática do Discurso a fun-
ção de um “representante exemplar de diversos tipos de processos discursivos” (PÊCHEUX,
1997, p. 77), possibilitando que Pêcheux elabore conceitos importantes para a Análise do Dis-
curso. Contudo o que poderia especificar o discurso político, diferenciando-o de outros pro-
cessos discursivos? Se a estrutura de qualquer processo discursivo se instaura e se assegura
através de efeitos metafóricos, conforme indica Pêcheux (1997), o que seria específico ao jogo
metafórico em torno do qual se instaura e se assegura o discurso político? O caminho que tri-
lharemos para abordar essa questão, de forma a delinear a estrutura específica de uma forma
do discurso político, passa por uma discussão sobre as elaborações de Ernesto Laclau acerca
da lógica populista.
Em Sobre a razão populista, Laclau (2005) centra sua discussão na formação de identi-
dades coletivas e aborda o populismo não como um “excesso perigoso” mas, antes, em termos
de uma lógica que se inscreve no funcionamento de qualquer espaço comunitário. Conforme
o autor afirma,

Minha tentativa não foi a de encontrar o verdadeiro


referente do populismo, mas fazer o contrário: demonstrar
que o populismo não possui unidade referencial porque
ele é atribuído não a um fenômeno delimitável mas a uma
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lógica social cujos efeitos atravessam muitos fenômenos. O


populismo é, muito simplesmente, uma forma de construção
do político (LACLAU, 2005, p. xi, destaque do autor, tradução
nossa4).

Como forma de construção do político, o populismo é, na perspectiva delineada por


Laclau, “uma dimensão constante da ação política que necessariamente advém (em graus dife-
rentes) em todos os discursos políticos” (LACLAU, 2005, p. 18, tradução nossa5). Ora, se o popu-
lismo é uma forma de construção do político, uma dimensão que advém – em graus diferentes
– em todos os discursos políticos, acreditamos que a abordagem feita por Laclau (2005) sobre a
lógica populista possa contribuir para o delineamento de uma das formas do discurso político.
Importa, contudo, destacar que o conceito de discurso com o qual trabalha Laclau não
corresponde inteiramente à forma como Pêcheux concebe o discurso. De acordo com Laclau,
o discurso se refere a “qualquer complexo de elementos no qual as relações assumem o pa-
pel constitutivo” (LACLAU, 2005, p. 68, destaque do autor, tradução nossa6). O autor retoma
a indicação de Saussure de acordo com a qual a língua não possui termos positivos, apenas
diferenças, e afirma que
o que é verdade no que se refere à língua concebida em
sentido estrito é também verdade no que concerne a qualquer
elemento significativo (isto é, objetivo): uma ação é o que é
apenas através de sua diferença em relação a outras ações
possíveis e em relação a outros elementos significativos –
palavras ou ações – que podem ser sucessivos ou simultâneos.
Apenas dois tipos de relações podem possivelmente
existir entre esses elementos significativos: combinação e
substituição (LACLAU, 2005, p. 68, tradução nossa7).

O conceito de discurso com o qual trabalha Laclau se sustenta na própria forma como a
língua é compreendida no âmbito do Curso de Linguística Geral: como um tecido de elementos
solidários que assumem valor a partir de suas relações com outros elementos. Eis o que está
em jogo na noção da língua como sistema, como estrutura 8 que se sustenta em relações de
valor que se desdobram em nível dos eixos sintagmático (em que está em jogo a combinação
de elementos) e associativo (no qual advêm possibilidades de substituição entre elementos).
Para Pêcheux (1997), por contraste, o discurso se refere a efeitos de sentido entre locu-
tores, efeitos que se produzem na materialidade da língua, à qual Pêcheux se refere fazendo
uso da expressão “’fundo invariante’ da língua” (PÊCHEUX, 1997, p. 75). Na perspectiva deline-
ada por Pêcheux, portanto, não há discurso sem língua, uma vez que a materialidade linguís-
tica é o lugar no qual se desdobram efeitos de sentido produzidos no âmbito dos processos
discursivos. A despeito da especificidade com a qual Pêcheux e Laclau concebem o discurso,
há nas elaborações de ambos os autores uma relação inegável entre discurso e língua: no caso
de Pêcheux, a língua é um fundo invariante no qual o sentido advém como efeito de processos

4 Em inglês: “My attempt has not been to find the true referent of populism, but to do the opposite: to show
that populism has no referential unity because it is ascribed not to a delimitable phenomenon but to a social logic
whose effects cut across many phenomena. Populism is, quite simply, a way of constructing the political”.
5 Em inglês: “a constant dimension of political action which necessarily arises (in different degrees) in all political
discourses”.
6 Em inglês: “any complex of elements in which relations play the constitutive role”.
7 Em inglês: “what is true of language conceived in its strict sense is also true of any signifying (i.e. objective)
element: an action is what it is only through its differences from other possible actions and from other signifying
elements — words or actions — which can be successive or simultaneous. Only two types of relation can possibly
exist between these signifying elements: combination and substitution”.
8 Conforme indica Benveniste, “Saussure jamais empregou, em qualquer sentido, a palavra estrutura” (BENVENISTE,
2005, p. 98, destaque do autor). Contudo, “Chamou-se a Saussure, com razão, o precursor do estruturalismo
moderno” (BENVENISTE, 2005, p. 98). É na perspectiva da língua como sistema assim como formulada no Curso de
Linguística Geral que se sustenta a noção de estrutura, de acordo com a qual um elemento não possui existência
fora da relação estabelecida com outros elementos.
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discursivos; em Laclau (2005), o discurso pressupõe o funcionamento da língua nos eixos da


combinação (sintagmático) e da substituição (associativo).
Voltemos às considerações de Laclau (2005) sobre a lógica populista. O autor indica que
tal lógica engendra uma dicotomização do espaço social, isto é, o estabelecimento de uma
fronteira interna dividindo o campo social em dois polos. Tal dicotomização implica no agru-
pamento de um conjunto de demandas insatisfeitas diferenciadas em torno de uma demanda
particular, que passa a representar um dos polos da dicotomia – o povo – como uma universa-
lidade. Conforme explica Laclau,

Temos, aqui, então a formação de uma fronteira interna,


uma dicotomização do espectro político local através da
emergência de uma cadeia equivalencial de demandas
insatisfeitas. [...] Uma pluralidade de demandas que, através
de sua articulação equivalencial, constitui uma subjetividade
social mais ampla que chamaremos de demandas populares
– elas começam, em um nível bastante incipiente, a constituir
o “povo” como um ator histórico em potencial. Temos, aqui,
de forma embrionária, uma configuração populista (LACLAU,
2005, p. 74, destaque do autor, tradução nossa9).

O povo representado como uma universalidade corresponde, contudo, a uma totalidade


impossível, uma vez que uma demanda particular não poderia, jamais, fixar o povo como uma
unidade. Embora se trate de uma totalidade impossível, há sempre um empuxo em direção a
ela. É nessa perspectiva que Laclau compreende hegemonia: uma relação hegemônica se esta-
belece, justamente, quando “uma certa particularidade [...] assume o papel de uma totalidade
impossível” (LACLAU, 2005, p. 115, tradução nossa10). Nesse sentido, não há universalidade
que não seja hegemônica. Laclau acrescenta que não há nada na materialidade da demanda
particular que a predestine a representar esta totalidade impossível. Contudo, uma vez que tal
demanda se torna hegemônica, ela permanece como tal por todo um período histórico.
A configuração de uma universalidade demanda a exclusão de um elemento em torno
do qual se constitui esta universalidade. O “povo” se constitui, portanto, em sua oposição a
um polo oposto. Como afirma o autor, “é através da demonização de um setor da população
que uma sociedade atinge um senso de sua própria coesão” (LACLAU, 2005, p. 70, tradução
nossa11). Em relação ao elemento excluído, as demandas diferenciadas agrupadas em torno
de uma demanda particular tornam-se equivalentes em sua rejeição ao elemento que foi ex-
cluído. Nessa perspectiva, pode-se abordar o populismo como “uma forma de constituição da
própria unidade do grupo” (LACLAU, 2005, p. 73, tradução nossa12).
Importa retomar, aqui, as considerações de Laclau sobre a metáfora. Conforme o autor
afirma,

[...] a metáfora estabelece uma relação de substituição entre


termos com base no princípio da analogia. Como acabei de
dizer, em qualquer estrutura dicotômica um conjunto de
identidades ou interesses particulares tende a se reagrupar
como diferenças equivalentes em torno de um dos polos da
dicotomia. Por exemplo, as injustiças experimentadas por
vários setores do “povo” serão vistas como equivalentes entre
9 Em inglês: “So we have here the formation of an internal frontier, a dichotomization of the local political
spectrum through the emergence of an equivalential chain of unsatisfied demands. [...] A plurality of demands
which, through their equivalential articulation, constitute a broader social subjectivity we will call popular demands
— they start, at a very incipient level, to constitute the ‘people’ as a potential historical actor. Here we have, in
embryo, a populist configuration”.
10 Em inglês: “a certain particularity [...] assumes the role of an impossible universality”.
11 Em inglês: “it is through the demonization of a section of the population that a society reaches a sense of its
own cohesion”.
12 Em inglês: “one way of constituting the very unity of the group”.
54 Revista Humanidades e Inovação v.7, n.24

si face à “oligarquia”. Mas trata-se simplesmente de dizer que


elas são análogas entre si em sua confrontação com o poder
oligárquico. E o que é isso senão uma reagregação metafórica?
Desnecessário dizer que a quebra destas equivalências na
construção de um discurso mais institucional procederia
através de dispositivos diferentes, porém igualmente retóricos.
Portanto, tais dispositivos, longe de serem mera retórica, são
inerentes à lógica que preside a constituição e dissolução de
qualquer espaço político (LACLAU, 2005, p. 19, destaques do
autor, tradução nossa13).

Segundo Laclau, portanto, na divisão dicotômica do espaço social um conjunto de iden-


tidades ou interesses particulares se agrupa em um dos polos da dicotomia, o que o autor con-
sidera um agrupamento metafórico. Nessa perspectiva, a metáfora não se configura como um
mero dispositivo retórico, mas como elemento que estrutura a dicotomização do espaço social
inerente à lógica populista, lógica que preside a constituição e dissolução de qualquer espaço
político. A metáfora assume, nessa perspectiva, uma dimensão constitutiva do espaço político.
Conforme vimos em nossa discussão sobre as elaborações de Pêcheux em Análise Au-
tomática do Discurso, a estrutura de todo processo discursivo se instaura e se assegura através
de efeitos metafóricos. Perguntamos então: o que seria específico ao jogo metafórico em torno
do qual se instaura e se assegura o discurso político? Nossa retomada das elaborações de
Laclau em A razão populista permitem dizer que o jogo metafórico constitutivo de uma das
formas do discurso político se faz em relação à dicotomização do espaço social de que nos
fala Laclau: um conjunto de elementos se reagrupa em torno de um dos polos da dicotomia
(configurando um povo), estabelecendo entre si uma relação de analogia em função de sua
oposição face ao polo oposto. Configura-se, assim, o povo (como totalidade impossível) em sua
oposição a um elemento excluído.
A este respeito, vale retomar o exemplo do discurso de um deputado na Câmara
(PÊCHEUX, 1997). Conforme vimos, Pêcheux indica que o deputado está “situado no interior
de relações de forças existentes entre os elementos antagonistas de um campo político dado”
(PÊCHEUX, 1997, p. 77, destaque do autor). Reveste-se de importância para este trabalho a
indicação de que um campo político coloca em cena elementos antagonistas em relação. A
dicotomização do espaço social engendrada pela lógica populista (LACLAU, 2005) atesta, justa-
mente, a existência de elementos antagonistas em relação num campo político dado.
Nossa leitura de Pêcheux com Laclau não deixa de ter relação com a análise feita por
Morais (2019), retomada acima, de acordo com a qual uma postagem feita por Bolsonaro em
seu perfil no Facebook constrói dois grupos antagônicos – a população de bem, por um lado, e
a esquerda brasileira / o PT, por outro – em relação de oposição lógica. A análise feita por Mo-
rais (2019) mostra-se, em nossa leitura, em consonância com a perspectiva que tentamos con-
struir, aqui, segundo a qual o jogo metafórico que constitui uma forma do discurso político se
faz em relação a uma dicotomização do espaço social. Dicotomização na qual um conjunto de
elementos se reagrupa metaforicamente em torno de um dos polos da dicotomia em oposição
a um polo oposto.
Vale lembrar que, de acordo com a análise feita por Morais (2019), na construção dos
dois grupos antagônicos a ditadura militar advém como Revolução, como reação a uma supos-
ta ameaça dos terroristas de esquerda. Ponto que se reveste de importância para o trabalho

13 Em inglês: “[...] metaphor establishes a relation of substitution between terms on the basis of the principle
of analogy. Now, as I have just said, in any dichotomic structure, a set of particular identities or interests tend to
regroup themselves as equivalential differences around one of the poles of the dichotomy. For instance, the wrongs
experienced by various sections of ‘the people’ will be seen as equivalent to each other vis-a-vis the ‘oligarchy’.
But this is simply to say that they are all analogous with each other in their confrontation with oligarchic power.
And what is this but a metaphorical reaggregation? Needless to say, the breaking of those equivalences in the
construction of a more institutionalist discourse would proceed through different but equally rhetorical devices.
So far from these devices being mere rhetoric, they are inherent in the logics presiding over the constitution and
dissolution of any political space”.
55 Revista Humanidades e Inovação v.7, n.24

desenvolvido, aqui, que tem por objetivo investigar efeitos de sentido sobre a ditadura militar
em três pronunciamentos do deputado Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados. Nestes pro-
nunciamentos, como a ditadura militar é significada?
Na próxima seção, apresentaremos os procedimentos metodológicos que fundamenta-
ram a análise, aqui, apresentada.

Metodologia
Para que seja possível cumprir os objetivos aqui propostos, selecionamos, dos 901 pro-
nunciamentos feitos entre 2001 e 2018 (catalogados nas Notas Taquigráficas da Câmara dos
Deputados), os três primeiros pronunciamentos em que Jair Bolsonaro reverencia a ditadura
militar em data próxima a 31 de março. Tais pronunciamentos foram feitos nos anos de 2004,
2005 e 2006. Nosso corpus é constituído por sequências discursivas extraídas destes pronun-
ciamentos.
Nossa análise fundamentou-se na indicação de Pêcheux (1997) de que um processo
discursivo é constituído por efeitos metafóricos, isto é, se sustenta em relações de substituição
entre significantes. As sequências discursivas extraídas dos três pronunciamentos foram ana-
lisadas, assim, através de um olhar a relações de substituição entre significantes a partir das
quais efeitos de sentidos sobre a ditadura militar são produzidos. Importantes para a análise
são as elaborações de Laclau (2005) sobre a lógica populista – que engendra uma forma de
construção do político –, lógica que coloca em cena um reagrupamento metafórico em torno
de polos de uma dicotomia que divide o campo social em lados opostos, constituindo um povo
como totalidade (impossível) em oposição ao outro polo. Em consonância com tais elabora-
ções, os efeitos de sentido sobre a ditadura militar serão abordados tendo como referência a
forma X CONTRA Y, forma que é constitutiva dos pronunciamentos do deputado Jair Bolsonaro,
como teremos a oportunidade de demonstrar. A forma X CONTRA Y guiou-nos também na
composição do corpus, uma vez que as sequências discursivas foram recortadas tendo como
base tal forma. A análise será realizada através da identificação dos elementos que assumem
os lugares de X e de Y na estrutura X CONTRA Y, o que permitirá abordar os efeitos de sentido
acerca da ditadura militar nos pronunciamentos analisados.
Passemos agora à análise do corpus.

Análise

31 de março de 2004
Do pronunciamento feito em 31 de março de 2004, extraímos a seguinte sequência
discursiva:

SD1
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, 31 de março de 1964 é uma data reverenciada
pelos brasileiros de bem, pelos democratas.
Sr. Presidente, peço a V.Exa. autorização para reverenciar a memória dos militares que,
em 1964, evitaram fosse instalada no País ditadura totalitária de esquerda. Vou me ajoelhar,
por alguns segundos, se V.Exa. permite (Ajoelha-se o orador.)
Os brasileiros devem homenagear os militares que, nesta data que deve ser comemo-
rada, evitaram - repito - fosse instalada em nosso País ditadura totalitária de esquerda, cujo
resultado seria a implantação de regime semelhante ao de Cuba e, para todos nós, o paredão
ou a plantação de cana.
Quero reverenciar a memória dos heróis que morreram em prol da revolução, dos 16
militares que morreram na Guerrilha do Araguaia. Caso não tivessem aniquilado o movimento,
hoje teríamos no coração do País grupos semelhantes às FARC que dominam a Colômbia.
É a homenagem que faço em memória dos meus companheiros militares que falecerem
em 1964 e também por ocasião da Guerrilha do Araguaia (Levanta-se o orador).
56 Revista Humanidades e Inovação v.7, n.24

De início, destaca-se que a ditadura militar comparece, no pronunciamento de Bolsona-


ro, como uma revolução. Revolução que, de acordo com o pronunciamento, evitou que fosse
instalada no país uma ditadura totalitária de esquerda, cujo resultado seria a implantação de
regime semelhante ao de Cuba e, para todos nós, o paredão ou a plantação de cana. Vislum-
bramos aqui um elemento fundamental nos pronunciamentos de Bolsonaro, qual seja, uma
dicotomização do espaço social de acordo com a qual se constituem polos opostos, em relação
aos quais a ditadura militar é significada. Em termos da forma que nomeamos X CONTRA Y –
forma que é estruturante dos pronunciamentos de Bolsonaro –, temos então

X=revolução
Y=ditadura totalitária de esquerda

A ditadura militar é, portanto, significada como revolução em sua oposição a uma su-
posta ditadura totalitária de esquerda. Esta dicotomia pode também ser vislumbrada se aten-
tarmos para outros elementos que, em SD1, assumem os lugares de X e Y:

X= brasileiros de bem
democratas
militares
16 militares que morreram na Guerrilha do Araguaia
meus companheiros militares que falecerem em 1964 e também por ocasião da Guerrilha
do Araguaia
heróis que morreram em prol da revolução
Y= grupos semelhantes às FARC que dominam a Colômbia.

A ditadura militar é significada não apenas em relação aos elementos contra os quais
ela se opõe, mas também na referência a elementos que se encontram no polo X. Ela é, por-
tanto, significada em sua associação com os brasileiros de bem, com os democratas e com
heróis que morreram em prol da revolução. Resta apontar para um elemento que, paradoxal-
mente, assume nesse pronunciamento o lugar de X: todos nós. A suposta ditadura totalitária
de esquerda resultaria, para todos nós, em morte (paredão) ou em trabalho forçado (cana de
açúcar). A que este todos nós se refere? Àqueles que ouvem o pronunciamento de Bolsonaro?
A todos os brasileiros? Seu estatuto é incerto. Contudo, se os brasileiros de bem remetem a
uma parte, na medida em que esta expressão opera uma partição entre os brasileiros de bem
e aqueles que não o são, o todos nós aponta, em contradição, para uma totalização. Longe de
ser acidental, tal contradição assume um papel importante na análise aqui apresentada. Reto-
maremos tal questão adiante.
Do pronunciamento de 2004, extraímos também a seguinte sequência discursiva:

SD2
Sr. Presidente, passo agora a citar trechos de editorial escrito pelo jornalista Roberto
Marinho e publicado no jornal O Globo, no dia 7 de outubro de 1984:
“Participamos da Revolução de 1964 identificados com os anseios nacionais de preser-
vação das instituições democráticas, ameaçadas pela radicalização ideológica, greves, desor-
dem social e corrupção generalizada”.

Em SD2, a ditadura militar desponta como revolução de 1964 e encontra-se associada


aos anseios nacionais de preservação das instituições democráticas. Estas últimas encontra-
vam-se supostamente ameaçadas pela radicalização ideológica, greves, desordem social e cor-
rupção generalizada. Nessa perspectiva, a revolução de 1964 teria sido uma reação inevitável
contra elementos configurados como ameaças. Em termos da forma X CONTRA Y, temos

X= revolução de 1964
anseios nacionais de preservação das instituições democráticas
57 Revista Humanidades e Inovação v.7, n.24

Y= radicalização ideológica
greves
desordem social
corrupção generalizada

Assim, a ditadura militar se configura por sua oposição a uma ameaça e a um suposto
estado de caos social (greves, desordem, corrupção), mas também por sua associação com
anseios nacionais de preservação das instituições democráticas. Curiosamente, a ditadura é,
na sequência em questão, significada como uma revolução democrática, em consonância com
anseios nacionais. Configura-se aqui, ao mesmo tempo, algo que seria da ordem do nacional,
remetendo a toda nação, a uma totalidade, portanto. Permanece, portanto, a contradição en-
tre todo (os anseios nacionais) e parte (brasileiros de bem, em SD1). Tal jogo contraditório
entre todo e parte, em nossa leitura, revela a operação de acordo com a qual a parte é tomada
como todo, elemento essencial na lógica populista da qual nos fala Laclau (2005), e que aponta
para o estabelecimento de uma hegemonia: “uma certa particularidade [...] assume o papel de
uma totalidade impossível” (LACLAU, 2005, p. 115, tradução nossa14).

31 de março de 2005

Do pronunciamento feito em 31 de março de 2005, extraímos a seguinte sequência


discursiva:

SD3
Antes de 31 de março de 1964, o Brasil vivia um clima de corrupção, de greve gene-
ralizada, de insubordinação nas Forças Armadas, de caos absoluto. A paralisação de serviços
públicos essenciais e outros acontecimentos indicavam a perspectiva de iminente guerra civil.
Naquela época, existia a Guerra Fria, quando o comunismo tentava ampliar seus tentá-
culos e o fazia de forma violenta. O Brasil era um alvo dos mais interessantes.
O caos estava implantado. Praticamente havia uma revolução comunista no Brasil. Por
isso, não tenho dúvida de que o heroico [sic] movimento militar de 31 de março de 1964, equi-
vocadamente chamado de revolução. Na verdade, foi uma contrarevolução [sic], pois surgiu
para se contrapor a uma revolução comunista em pleno andamento.
Com forte apoio popular, com o beneplácito da Igreja, com apoio das mulheres e princi-
palmente da imprensa, que estampava editoriais pedindo “um basta” ao desgoverno de João
Goulart e ao caos reinante, os militares acabaram por assumir o timão deste País, no dia 31 de
março de 1964.

A ditadura militar é significada, nesta sequência, como uma contrarrevolução que se


contrapôs a uma suposta revolução comunista. Temos, portanto,
X= contrarrevolução
Y= revolução comunista

Assim como em SD1 e SD2, a ditadura é configurada em SD3 como uma reação contra
uma revolução comunista em pleno andamento. Nesta sequência, a forma X CONTRA Y confi-
gura-se em torno de uma espécie de partição temporal: Y, englobando elementos aos quais se
opõe a contrarrevolução, remete a um tempo anterior a 1964:

X=contrarrevolução
heroico movimento militar de 31 de março de 1964
Y= revolução comunista
corrupção
greve generalizada
insubordinação nas Forças Armadas
14 Em inglês: “a certain particularity [...] assumes the role of an impossible universality”.
58 Revista Humanidades e Inovação v.7, n.24

caos absoluto
paralisação de serviços públicos essenciais
iminente guerra civil
comunismo violento

Em SD3, os militares encontram-se associados a um forte apoio popular, à igreja, às


mulheres e à imprensa, em oposição ao desgoverno de João Goulart e ao caos reinante. Em
termos da forma X CONTRA Y, temos

X= povo
igreja
mulheres
imprensa
Y= desgoverno de João Goulart
caos reinante

Resta, por fim, apontar para a configuração do Brasil como um time de futebol – o timão
deste País, que os militares assumiram. Em nossa leitura, tomar o Brasil como um time de fu-
tebol revela uma lógica esportiva em operação, e engendra o apagamento da diversidade e da
pluralidade de classes em conflito em prol da ideia de um time nacional, isto é, que englobaria
toda a nação. Em nossa leitura, é novamente a relação entre parte e todo que está em cena
aqui: a parte (os militares) se assume como todo (o timão do país), se inscrevendo no âmbito
de uma totalidade impossível, o que aponta, mais uma vez, para o estabelecimento de uma
hegemonia, desta vez sob os efeitos de uma lógica esportiva.

29 de março de 2006

Do pronunciamento de 29 de março de 2006, extraímos a seguinte sequência discursiva:

SD4
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, no dia 31 de março de 1964 teve início a Revolu-
ção. Aproveito a oportunidade para saudar os militares e os homens de bem que participaram
daquele movimento.
Vou ler alguns trechos de editorial assinado por Roberto Marinho e publicado em 7 de
outubro de 1984, na capa do jornal O Globo:
“Participamos da Revolução de 1964, identificados com os anseios nacionais, de preser-
vação das instituições democráticas, ameaçados pela radicalização ideológica, greves, desor-
dem social e corrupção generalizada.
[...] os acontecimentos que se iniciaram, como reconheceu o Marechal Costa e Silva,
‘Por exigência inelutável do povo brasileiro’. Sem povo, não haveria revolução, mas apenas um
‘pronunciamento’ ou ‘golpe’ com o qual não estaríamos solidários”.

De início, vale apontar para a configuração da ditadura militar como a revolução. Des-
taque para a utilização do artigo a, o que, em nossa leitura, engendra um efeito de evidência
do tipo “sabemos do que estou falando: a gloriosa revolução que derrotou os comunistas”. A
revolução encontra-se, em SD4, associada aos militares e aos homens de bem. Assim como em
SD2, retoma-se o editorial de Roberto Marinho escrito em 1984, no qual podemos vislumbrar
elementos que, conforme indicamos acima, ocupam os lugares de X e Y na forma X CONTRA Y:
de um lado, a revolução de 1964 e os anseios nacionais de preservação das instituições demo-
cráticas; de outro, radicalização ideológica, greves, desordem social, corrupção generalizada,
configurados como ameaças. A ditadura militar é, mais uma vez, significada por sua oposição
a estas ameaças, mas também por sua associação aos homens de bem e aos anseios nacionais
de preservação das instituições democráticas.
59 Revista Humanidades e Inovação v.7, n.24

O editorial de Roberto Marinho inclui também outro elemento que assume o lugar de
X: o povo brasileiro. Em nossa leitura, a menção ao povo brasileiro é reveladora do jogo entre
parte e todo mencionado anteriormente, de acordo com o qual uma parte se coloca no lugar
do todo, de uma totalidade impossível: os homens de bem são representados como povo bra-
sileiro. Mais uma vez, roçamos aqui em um elemento que constitui, segundo Laclau, a lógica
populista: uma parte é colocada no lugar de uma totalidade impossível, revelando uma opera-
ção hegemônica.
Passemos, agora, às considerações finais do trabalho.

Considerações Finais
Conforme nossa análise indicou, os três pronunciamentos de Jair Bolsonaro na Câ-
mara dos Deputados significam a ditadura militar em relação a uma dicotomização do espaço
social que expressamos através da forma X CONTRA Y. A ditadura militar é configurada como
revolução / contrarrevolução em sua oposição a uma suposta revolução comunista / ditadura
totalitária de esquerda. Nesta dicotomia, a ditadura é configurada não apenas por sua opo-
sição a Y (revolução comunista / ditadura totalitária de esquerda / radicalização ideológica /
greves / desordem social / corrupção / insubordinação nas Forças Armadas / caos / paralisação
de serviços / guerra civil iminente / desgoverno de João Goulart ), mas também por sua relação
com outros elementos que ocupam o lugar de X (brasileiros de bem / democratas / compa-
nheiros militares que falecerem em 1964 e na Guerrilha do Araguaia / heróis que morreram em
prol da revolução / povo / igreja / mulheres / imprensa).
Em nossa leitura, a ditadura configurada como revolução contra uma suposta ameaça
comunista é o ponto que permite que os elementos agrupados em cada um dos polos da
dicotomia estabeleçam entre si relações de analogia, o que aponta para o funcionamento da
metáfora. Nos pronunciamentos de Bolsonaro, os efeitos de sentido sobre a ditadura militar se
produzem na relação com a dicotomização do espaço social de que fala Laclau (2005).
Os resultados a que chegamos estão em consonância com a análise realizada por Morais
(2019), de acordo com a qual há, em uma postagem feita por Bolsonaro no Facebook, a cons-
trução de dois grupos antagônicos em relação de oposição lógica: de um lado a população de
bem, de outro a esquerda brasileira / o PT. Os resultados a que chegamos indicam também,
em consonância com Morais (2019), que a ditadura militar, como revolução / contrarrevolução,
configurou-se como uma reação inevitável a uma suposta ameaça comunista.
Contudo, a análise aqui apresentada acrescenta um elemento importante, qual seja, o
jogo discursivo entre parte e todo. Nossa análise revela que a ditadura é significada tanto em
relação aos brasileiros de bem (parte) quanto na referência a todos nós, à nação, ao povo bra-
sileiro e ao timão do País (todo). Neste jogo contraditório entre todo e parte, a parte é tomada
como todo, assumindo o lugar de uma totalidade impossível. O que aponta para o estabeleci-
mento de uma hegemonia: “uma certa particularidade [...] assume o papel de uma totalidade
impossível” (LACLAU, 2005, p. 115, tradução nossa15).
Através da leitura de Pêcheux (1997) com Laclau (2005), objetivamos não apenas ela-
borar os fundamentos teórico-metodológicos da análise aqui apresentada, mas também con-
tribuir para a compreensão do discurso político. Para Pêcheux (1997), a estrutura de todo pro-
cesso discursivo se instaura e se assegura em efeitos metafóricos. Perguntamos então: o que
seria específico ao jogo metafórico em torno do qual se sustenta o discurso político? Funda-
mentados nas elaborações de Laclau sobre a lógica populista, propusemos, então, que em uma
forma do discurso político os efeitos metafóricos (PÊCHEUX, 1997) se fazem em relação a uma
dicotomização do espaço social, na qual um número de elementos se agrupa metaforicamente
em torno de um dos polos da dicotomia, constituindo assim um povo. Estes elementos estabe-
lecem entre si uma relação de analogia face ao polo oposto. Tal forma do discurso político, em
nossa leitura, atualiza a indicação de Pêcheux (1997) de acordo com a qual um campo político
coloca em cena elementos antagonistas em relação.

15 Em inglês: “a certain particularity [...] assumes the role of an impossible universality”.


60 Revista Humanidades e Inovação v.7, n.24

Referências
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LEITE, N. Psicanálise e Análise do Discurso – o acontecimento na estrutura. Rio de Janeiro:


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MORAIS, A.R.A. O discurso político da extrema-direita na atualidade. Cadernos de Linguagem


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TextoHTML.asp?etapa=5&nuSessao=039.2.52.O&nuQuarto=23&nuOrador=1&nuInsercao=0
&dtHorarioQuarto=14:44&sgFaseSessao=PE&Data=31/03/2004&txApelido=JAIR%20BOLSON-
ARO,%20PTB-RJ&txFaseSessao=Pequeno%20Expediente&txTipoSessao=Ordin%C3%A1ria%20-
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&dtHorarioQuarto=17:18&sgFaseSessao=GE&Data=31/03/2005&txApelido=JAIR%20BOLSO-
NARO,%20PFL-RJ&txFaseSessao=Grande%20Expediente&txTipoSessao=Ordin%C3%A1ria%20
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dtHorarioQuarto=14:46&sgFaseSessao=PE&Data=29/03/2006&txApelido=JAIR%20BOLSON-
ARO,%20PP-RJ&txFaseSessao=Pequeno%20Expediente&txTipoSessao=Ordin%C3%A1ria%20-
-%20CD&dtHoraQuarto=14:46&txEtapa=. Acesso em: 30 set. 2020.

Recebido em 01 de outubro de 2020.


Aceito em 20 de outubro de 2020.

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