4360-Texto Do Artigo-14204-1-10-20210125
4360-Texto Do Artigo-14204-1-10-20210125
4360-Texto Do Artigo-14204-1-10-20210125
Introdução
São conhecidos os posicionamentos de Jair Messias Bolsonaro, presidente do Brasil elei-
to em 2018, em defesa da censura, da tortura e da ditadura militar no Brasil (1964-1985).
Ao longo de sua carreira política como deputado federal (1991-2018), Bolsonaro acumulou
numerosas manifestações de apoio à ditadura militar. Com base nas transcrições dos pronun-
ciamentos que Bolsonaro fez na Câmara dos Deputados, um levantamento (MENEGAT, 2019)
apontou que o então deputado mencionou o regime militar em um a cada quatro pronuncia-
mentos no plenário. Das 901 falas catalogadas, 252 (28%) mencionam o período em que os
militares estiveram no poder.
No trabalho, aqui, apresentado, amparamo-nos nas elaborações de Michel Pêcheux
(em Análise Automática do Discurso) e de Ernesto Laclau (em Sobre a razão populista) para
investigar três pronunciamentos de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados. Interessou-nos
abordar os efeitos de sentido sobre a ditadura militar nos pronunciamentos do então deputa-
do. É a partir da retomada do texto de Pêcheux, no qual o discurso político comparece como
“representante exemplar de diversos tipos de processos discursivos” (PÊCHEUX, 1997, p. 77)
e do texto de Laclau, no qual a lógica populista é abordada como “via régia para compreender
algo sobre a constituição ontológica do político como tal” (LACLAU, 2005, p. 67, tradução nos-
sa1), que estabeleceremos os fundamentos teórico-metodológicos que possibilitarão analisar
os pronunciamentos do então deputado federal e, também, contribuir para a compreensão do
discurso político.
O trabalho, aqui, apresentado tem como objetivo geral, portanto, investigar como três
pronunciamentos do então deputado federal Jair Bolsonaro significam a ditadura militar. Nos-
sos objetivos específicos são 1) identificar efeitos de sentido sobre a ditadura militar nos pro-
nunciamentos de Bolsonaro e 2) contribuir para a compreensão do discurso político.
Passemos aos elementos teóricos que fundamentaram o trabalho.
Fundamentação teórica
Em seu estudo sobre o discurso político da extrema-direita brasileira, Morais (2019)
analisa o voto do deputado federal Jair Bolsonaro (PSL) na Câmara dos Deputados na sessão
de julgamento do impeachment de Dilma Rousseff (abril de 2016), assim como três enunciados
postados em seu perfil no Facebook. Sobre uma das postagens no Facebook (18 de julho de
2015), Morais faz uma afirmação digna de nota:
1 Em inglês: “the royal road to understanding something about the ontological constitution of the political as
such”.
50 Revista Humanidades e Inovação v.7, n.24
De acordo com a análise de Morais, o enunciado analisado constrói dois grupos antagô-
nicos: de um lado, a população de bem e, de outro, a esquerda brasileira/o PT. Trata-se, confor-
me indica o autor, de uma relação de oposição lógica entre os dois grupos. Destaca-se também
da análise de Morais a menção a uma ressignificação da ditadura militar como Revolução,
como reação a uma suposta ameaça dos “terroristas de esquerda”. A nos guiarmos por Morais,
portanto, a ditadura militar é significada na referência à construção de dois grupos antagônicos
em relação de oposição lógica. Retomaremos tais considerações adiante.
Em Análise Automática do Discurso – considerado por diferentes autores como o mo-
mento inaugural da teoria que constitui o discurso como objeto (LEITE, 1994) –, o discurso
político é considerado por Pêcheux como um “representante exemplar de diversos tipos de
processos discursivos” (PÊCHEUX, 1997, p. 77). É a partir do exemplo do “discurso de um depu-
tado na Câmara” (PÊCHEUX, 1997, p. 76) que Pêcheux forja dois conceitos fundamentais para
o campo dos estudos discursivos, quais sejam, condições de produção e processo discursivo.
Em sua condição de representante exemplar, o discurso político tem, em Análise Automática
do Discurso, uma potência que permite a Pêcheux discutir elementos fundamentais para o
estabelecimento do objeto discurso no final dos anos 60. Para nós, não deixa de ser oportuno
que o exemplo utilizado por Pêcheux se relacione ao tema do trabalho, aqui, apresentado.
De início, Pêcheux afirma que o discurso do deputado na Câmara não manifesta uma
liberdade do locutor 2. Antes, faz parte de um mecanismo em funcionamento, isto é, pertence
a “um sistema de normas nem puramente individuais nem globalmente universais, mas que
derivam de uma ideologia política, correspondendo, pois, a um certo lugar no interior de uma
formação social dada” (PÊCHEUX, 1997, 76-77, destaque do autor). Portanto, o discurso do
deputado não corresponde à manifestação de uma liberdade do locutor, uma vez que é deter-
minado por um conjunto de normas que se situam no nível intermediário entre o individual e o
universal 3. Dois pontos nos parecem importantes na afirmação de Pêcheux. Em primeiro lugar,
o fato de que tais normas derivam de uma ideologia política. Mas também o fato de que estas
normas correspondem a um certo lugar em uma formação social. Sobre este ponto, Pêcheux
afirma:
2 Pêcheux afirma que do ponto de vista saussuriano o discurso do deputado seria da ordem da fala, isto é, manifestaria
a liberdade do locutor. O que está em jogo aqui é a crítica feita por Pêcheux em Análise Automática do Discurso
ao conceito de fala no Curso de Linguística Geral, conceito que, segundo Pêcheux, aparece como um “caminho da
liberdade humana” (PÊCHEUX, 1997, p. 71, destaque do autor). Marcamos aqui nosso distanciamento em relação
à crítica feita por Pêcheux ao conceito saussuriano de fala. Conforme indica Gasparini (2016), embora o conceito
de fala de fato apareça, em algumas passagens do Curso, associado a uma “liberdade individual”, tal conceito não
se encontra completamente subsumido à perspectiva de uma liberdade do falante. Conforme o próprio Pêcheux
ressalva na passagem sobre a qual estamos nos debruçando: “Do estrito ponto de vista saussuriano, o discurso [do
deputado na Câmara] é, enquanto tal, da ordem da fala, na qual se manifesta a “liberdade do locutor”, ainda que,
bem entendido, seja proveniente da língua enquanto sequência sintaticamente correta” (PÊCHEUX, 1997, p. 76,
destaques do autor). Este é exatamente o ponto: no Curso, para além da configuração da fala como “ato individual
de vontade e inteligência” (SAUSSURE, 1974 p. 22), do qual “o indivíduo é sempre senhor” (SAUSSURE, 1974, p.
21), há algo mais fundamental, e que o próprio Pêcheux menciona em sua ressalva: não há fala sem língua, só é
possível falar de acordo com as possibilidades fornecidas pela língua. Nesse sentido, a indicação feita por Pêcheux
de que a fala saussuriana corresponde a um caminho da liberdade humana fica confrontada com um impasse.
3 Vale destacar o estabelecimento do discurso, em Análise Automática do Discurso, como instância intermediária
entre a universalidade (da língua) e a singularidade individual (da fala), remetendo, portanto, ao registro da
particularidade, registro que se articula ao jogo de lugares no interior de uma formação social.
51 Revista Humanidades e Inovação v.7, n.24
O conceito de discurso com o qual trabalha Laclau se sustenta na própria forma como a
língua é compreendida no âmbito do Curso de Linguística Geral: como um tecido de elementos
solidários que assumem valor a partir de suas relações com outros elementos. Eis o que está
em jogo na noção da língua como sistema, como estrutura 8 que se sustenta em relações de
valor que se desdobram em nível dos eixos sintagmático (em que está em jogo a combinação
de elementos) e associativo (no qual advêm possibilidades de substituição entre elementos).
Para Pêcheux (1997), por contraste, o discurso se refere a efeitos de sentido entre locu-
tores, efeitos que se produzem na materialidade da língua, à qual Pêcheux se refere fazendo
uso da expressão “’fundo invariante’ da língua” (PÊCHEUX, 1997, p. 75). Na perspectiva deline-
ada por Pêcheux, portanto, não há discurso sem língua, uma vez que a materialidade linguís-
tica é o lugar no qual se desdobram efeitos de sentido produzidos no âmbito dos processos
discursivos. A despeito da especificidade com a qual Pêcheux e Laclau concebem o discurso,
há nas elaborações de ambos os autores uma relação inegável entre discurso e língua: no caso
de Pêcheux, a língua é um fundo invariante no qual o sentido advém como efeito de processos
4 Em inglês: “My attempt has not been to find the true referent of populism, but to do the opposite: to show
that populism has no referential unity because it is ascribed not to a delimitable phenomenon but to a social logic
whose effects cut across many phenomena. Populism is, quite simply, a way of constructing the political”.
5 Em inglês: “a constant dimension of political action which necessarily arises (in different degrees) in all political
discourses”.
6 Em inglês: “any complex of elements in which relations play the constitutive role”.
7 Em inglês: “what is true of language conceived in its strict sense is also true of any signifying (i.e. objective)
element: an action is what it is only through its differences from other possible actions and from other signifying
elements — words or actions — which can be successive or simultaneous. Only two types of relation can possibly
exist between these signifying elements: combination and substitution”.
8 Conforme indica Benveniste, “Saussure jamais empregou, em qualquer sentido, a palavra estrutura” (BENVENISTE,
2005, p. 98, destaque do autor). Contudo, “Chamou-se a Saussure, com razão, o precursor do estruturalismo
moderno” (BENVENISTE, 2005, p. 98). É na perspectiva da língua como sistema assim como formulada no Curso de
Linguística Geral que se sustenta a noção de estrutura, de acordo com a qual um elemento não possui existência
fora da relação estabelecida com outros elementos.
53 Revista Humanidades e Inovação v.7, n.24
13 Em inglês: “[...] metaphor establishes a relation of substitution between terms on the basis of the principle
of analogy. Now, as I have just said, in any dichotomic structure, a set of particular identities or interests tend to
regroup themselves as equivalential differences around one of the poles of the dichotomy. For instance, the wrongs
experienced by various sections of ‘the people’ will be seen as equivalent to each other vis-a-vis the ‘oligarchy’.
But this is simply to say that they are all analogous with each other in their confrontation with oligarchic power.
And what is this but a metaphorical reaggregation? Needless to say, the breaking of those equivalences in the
construction of a more institutionalist discourse would proceed through different but equally rhetorical devices.
So far from these devices being mere rhetoric, they are inherent in the logics presiding over the constitution and
dissolution of any political space”.
55 Revista Humanidades e Inovação v.7, n.24
desenvolvido, aqui, que tem por objetivo investigar efeitos de sentido sobre a ditadura militar
em três pronunciamentos do deputado Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados. Nestes pro-
nunciamentos, como a ditadura militar é significada?
Na próxima seção, apresentaremos os procedimentos metodológicos que fundamenta-
ram a análise, aqui, apresentada.
Metodologia
Para que seja possível cumprir os objetivos aqui propostos, selecionamos, dos 901 pro-
nunciamentos feitos entre 2001 e 2018 (catalogados nas Notas Taquigráficas da Câmara dos
Deputados), os três primeiros pronunciamentos em que Jair Bolsonaro reverencia a ditadura
militar em data próxima a 31 de março. Tais pronunciamentos foram feitos nos anos de 2004,
2005 e 2006. Nosso corpus é constituído por sequências discursivas extraídas destes pronun-
ciamentos.
Nossa análise fundamentou-se na indicação de Pêcheux (1997) de que um processo
discursivo é constituído por efeitos metafóricos, isto é, se sustenta em relações de substituição
entre significantes. As sequências discursivas extraídas dos três pronunciamentos foram ana-
lisadas, assim, através de um olhar a relações de substituição entre significantes a partir das
quais efeitos de sentidos sobre a ditadura militar são produzidos. Importantes para a análise
são as elaborações de Laclau (2005) sobre a lógica populista – que engendra uma forma de
construção do político –, lógica que coloca em cena um reagrupamento metafórico em torno
de polos de uma dicotomia que divide o campo social em lados opostos, constituindo um povo
como totalidade (impossível) em oposição ao outro polo. Em consonância com tais elabora-
ções, os efeitos de sentido sobre a ditadura militar serão abordados tendo como referência a
forma X CONTRA Y, forma que é constitutiva dos pronunciamentos do deputado Jair Bolsonaro,
como teremos a oportunidade de demonstrar. A forma X CONTRA Y guiou-nos também na
composição do corpus, uma vez que as sequências discursivas foram recortadas tendo como
base tal forma. A análise será realizada através da identificação dos elementos que assumem
os lugares de X e de Y na estrutura X CONTRA Y, o que permitirá abordar os efeitos de sentido
acerca da ditadura militar nos pronunciamentos analisados.
Passemos agora à análise do corpus.
Análise
31 de março de 2004
Do pronunciamento feito em 31 de março de 2004, extraímos a seguinte sequência
discursiva:
SD1
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, 31 de março de 1964 é uma data reverenciada
pelos brasileiros de bem, pelos democratas.
Sr. Presidente, peço a V.Exa. autorização para reverenciar a memória dos militares que,
em 1964, evitaram fosse instalada no País ditadura totalitária de esquerda. Vou me ajoelhar,
por alguns segundos, se V.Exa. permite (Ajoelha-se o orador.)
Os brasileiros devem homenagear os militares que, nesta data que deve ser comemo-
rada, evitaram - repito - fosse instalada em nosso País ditadura totalitária de esquerda, cujo
resultado seria a implantação de regime semelhante ao de Cuba e, para todos nós, o paredão
ou a plantação de cana.
Quero reverenciar a memória dos heróis que morreram em prol da revolução, dos 16
militares que morreram na Guerrilha do Araguaia. Caso não tivessem aniquilado o movimento,
hoje teríamos no coração do País grupos semelhantes às FARC que dominam a Colômbia.
É a homenagem que faço em memória dos meus companheiros militares que falecerem
em 1964 e também por ocasião da Guerrilha do Araguaia (Levanta-se o orador).
56 Revista Humanidades e Inovação v.7, n.24
X=revolução
Y=ditadura totalitária de esquerda
A ditadura militar é, portanto, significada como revolução em sua oposição a uma su-
posta ditadura totalitária de esquerda. Esta dicotomia pode também ser vislumbrada se aten-
tarmos para outros elementos que, em SD1, assumem os lugares de X e Y:
X= brasileiros de bem
democratas
militares
16 militares que morreram na Guerrilha do Araguaia
meus companheiros militares que falecerem em 1964 e também por ocasião da Guerrilha
do Araguaia
heróis que morreram em prol da revolução
Y= grupos semelhantes às FARC que dominam a Colômbia.
A ditadura militar é significada não apenas em relação aos elementos contra os quais
ela se opõe, mas também na referência a elementos que se encontram no polo X. Ela é, por-
tanto, significada em sua associação com os brasileiros de bem, com os democratas e com
heróis que morreram em prol da revolução. Resta apontar para um elemento que, paradoxal-
mente, assume nesse pronunciamento o lugar de X: todos nós. A suposta ditadura totalitária
de esquerda resultaria, para todos nós, em morte (paredão) ou em trabalho forçado (cana de
açúcar). A que este todos nós se refere? Àqueles que ouvem o pronunciamento de Bolsonaro?
A todos os brasileiros? Seu estatuto é incerto. Contudo, se os brasileiros de bem remetem a
uma parte, na medida em que esta expressão opera uma partição entre os brasileiros de bem
e aqueles que não o são, o todos nós aponta, em contradição, para uma totalização. Longe de
ser acidental, tal contradição assume um papel importante na análise aqui apresentada. Reto-
maremos tal questão adiante.
Do pronunciamento de 2004, extraímos também a seguinte sequência discursiva:
SD2
Sr. Presidente, passo agora a citar trechos de editorial escrito pelo jornalista Roberto
Marinho e publicado no jornal O Globo, no dia 7 de outubro de 1984:
“Participamos da Revolução de 1964 identificados com os anseios nacionais de preser-
vação das instituições democráticas, ameaçadas pela radicalização ideológica, greves, desor-
dem social e corrupção generalizada”.
X= revolução de 1964
anseios nacionais de preservação das instituições democráticas
57 Revista Humanidades e Inovação v.7, n.24
Y= radicalização ideológica
greves
desordem social
corrupção generalizada
Assim, a ditadura militar se configura por sua oposição a uma ameaça e a um suposto
estado de caos social (greves, desordem, corrupção), mas também por sua associação com
anseios nacionais de preservação das instituições democráticas. Curiosamente, a ditadura é,
na sequência em questão, significada como uma revolução democrática, em consonância com
anseios nacionais. Configura-se aqui, ao mesmo tempo, algo que seria da ordem do nacional,
remetendo a toda nação, a uma totalidade, portanto. Permanece, portanto, a contradição en-
tre todo (os anseios nacionais) e parte (brasileiros de bem, em SD1). Tal jogo contraditório
entre todo e parte, em nossa leitura, revela a operação de acordo com a qual a parte é tomada
como todo, elemento essencial na lógica populista da qual nos fala Laclau (2005), e que aponta
para o estabelecimento de uma hegemonia: “uma certa particularidade [...] assume o papel de
uma totalidade impossível” (LACLAU, 2005, p. 115, tradução nossa14).
31 de março de 2005
SD3
Antes de 31 de março de 1964, o Brasil vivia um clima de corrupção, de greve gene-
ralizada, de insubordinação nas Forças Armadas, de caos absoluto. A paralisação de serviços
públicos essenciais e outros acontecimentos indicavam a perspectiva de iminente guerra civil.
Naquela época, existia a Guerra Fria, quando o comunismo tentava ampliar seus tentá-
culos e o fazia de forma violenta. O Brasil era um alvo dos mais interessantes.
O caos estava implantado. Praticamente havia uma revolução comunista no Brasil. Por
isso, não tenho dúvida de que o heroico [sic] movimento militar de 31 de março de 1964, equi-
vocadamente chamado de revolução. Na verdade, foi uma contrarevolução [sic], pois surgiu
para se contrapor a uma revolução comunista em pleno andamento.
Com forte apoio popular, com o beneplácito da Igreja, com apoio das mulheres e princi-
palmente da imprensa, que estampava editoriais pedindo “um basta” ao desgoverno de João
Goulart e ao caos reinante, os militares acabaram por assumir o timão deste País, no dia 31 de
março de 1964.
Assim como em SD1 e SD2, a ditadura é configurada em SD3 como uma reação contra
uma revolução comunista em pleno andamento. Nesta sequência, a forma X CONTRA Y confi-
gura-se em torno de uma espécie de partição temporal: Y, englobando elementos aos quais se
opõe a contrarrevolução, remete a um tempo anterior a 1964:
X=contrarrevolução
heroico movimento militar de 31 de março de 1964
Y= revolução comunista
corrupção
greve generalizada
insubordinação nas Forças Armadas
14 Em inglês: “a certain particularity [...] assumes the role of an impossible universality”.
58 Revista Humanidades e Inovação v.7, n.24
caos absoluto
paralisação de serviços públicos essenciais
iminente guerra civil
comunismo violento
X= povo
igreja
mulheres
imprensa
Y= desgoverno de João Goulart
caos reinante
Resta, por fim, apontar para a configuração do Brasil como um time de futebol – o timão
deste País, que os militares assumiram. Em nossa leitura, tomar o Brasil como um time de fu-
tebol revela uma lógica esportiva em operação, e engendra o apagamento da diversidade e da
pluralidade de classes em conflito em prol da ideia de um time nacional, isto é, que englobaria
toda a nação. Em nossa leitura, é novamente a relação entre parte e todo que está em cena
aqui: a parte (os militares) se assume como todo (o timão do país), se inscrevendo no âmbito
de uma totalidade impossível, o que aponta, mais uma vez, para o estabelecimento de uma
hegemonia, desta vez sob os efeitos de uma lógica esportiva.
29 de março de 2006
SD4
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, no dia 31 de março de 1964 teve início a Revolu-
ção. Aproveito a oportunidade para saudar os militares e os homens de bem que participaram
daquele movimento.
Vou ler alguns trechos de editorial assinado por Roberto Marinho e publicado em 7 de
outubro de 1984, na capa do jornal O Globo:
“Participamos da Revolução de 1964, identificados com os anseios nacionais, de preser-
vação das instituições democráticas, ameaçados pela radicalização ideológica, greves, desor-
dem social e corrupção generalizada.
[...] os acontecimentos que se iniciaram, como reconheceu o Marechal Costa e Silva,
‘Por exigência inelutável do povo brasileiro’. Sem povo, não haveria revolução, mas apenas um
‘pronunciamento’ ou ‘golpe’ com o qual não estaríamos solidários”.
De início, vale apontar para a configuração da ditadura militar como a revolução. Des-
taque para a utilização do artigo a, o que, em nossa leitura, engendra um efeito de evidência
do tipo “sabemos do que estou falando: a gloriosa revolução que derrotou os comunistas”. A
revolução encontra-se, em SD4, associada aos militares e aos homens de bem. Assim como em
SD2, retoma-se o editorial de Roberto Marinho escrito em 1984, no qual podemos vislumbrar
elementos que, conforme indicamos acima, ocupam os lugares de X e Y na forma X CONTRA Y:
de um lado, a revolução de 1964 e os anseios nacionais de preservação das instituições demo-
cráticas; de outro, radicalização ideológica, greves, desordem social, corrupção generalizada,
configurados como ameaças. A ditadura militar é, mais uma vez, significada por sua oposição
a estas ameaças, mas também por sua associação aos homens de bem e aos anseios nacionais
de preservação das instituições democráticas.
59 Revista Humanidades e Inovação v.7, n.24
O editorial de Roberto Marinho inclui também outro elemento que assume o lugar de
X: o povo brasileiro. Em nossa leitura, a menção ao povo brasileiro é reveladora do jogo entre
parte e todo mencionado anteriormente, de acordo com o qual uma parte se coloca no lugar
do todo, de uma totalidade impossível: os homens de bem são representados como povo bra-
sileiro. Mais uma vez, roçamos aqui em um elemento que constitui, segundo Laclau, a lógica
populista: uma parte é colocada no lugar de uma totalidade impossível, revelando uma opera-
ção hegemônica.
Passemos, agora, às considerações finais do trabalho.
Considerações Finais
Conforme nossa análise indicou, os três pronunciamentos de Jair Bolsonaro na Câ-
mara dos Deputados significam a ditadura militar em relação a uma dicotomização do espaço
social que expressamos através da forma X CONTRA Y. A ditadura militar é configurada como
revolução / contrarrevolução em sua oposição a uma suposta revolução comunista / ditadura
totalitária de esquerda. Nesta dicotomia, a ditadura é configurada não apenas por sua opo-
sição a Y (revolução comunista / ditadura totalitária de esquerda / radicalização ideológica /
greves / desordem social / corrupção / insubordinação nas Forças Armadas / caos / paralisação
de serviços / guerra civil iminente / desgoverno de João Goulart ), mas também por sua relação
com outros elementos que ocupam o lugar de X (brasileiros de bem / democratas / compa-
nheiros militares que falecerem em 1964 e na Guerrilha do Araguaia / heróis que morreram em
prol da revolução / povo / igreja / mulheres / imprensa).
Em nossa leitura, a ditadura configurada como revolução contra uma suposta ameaça
comunista é o ponto que permite que os elementos agrupados em cada um dos polos da
dicotomia estabeleçam entre si relações de analogia, o que aponta para o funcionamento da
metáfora. Nos pronunciamentos de Bolsonaro, os efeitos de sentido sobre a ditadura militar se
produzem na relação com a dicotomização do espaço social de que fala Laclau (2005).
Os resultados a que chegamos estão em consonância com a análise realizada por Morais
(2019), de acordo com a qual há, em uma postagem feita por Bolsonaro no Facebook, a cons-
trução de dois grupos antagônicos em relação de oposição lógica: de um lado a população de
bem, de outro a esquerda brasileira / o PT. Os resultados a que chegamos indicam também,
em consonância com Morais (2019), que a ditadura militar, como revolução / contrarrevolução,
configurou-se como uma reação inevitável a uma suposta ameaça comunista.
Contudo, a análise aqui apresentada acrescenta um elemento importante, qual seja, o
jogo discursivo entre parte e todo. Nossa análise revela que a ditadura é significada tanto em
relação aos brasileiros de bem (parte) quanto na referência a todos nós, à nação, ao povo bra-
sileiro e ao timão do País (todo). Neste jogo contraditório entre todo e parte, a parte é tomada
como todo, assumindo o lugar de uma totalidade impossível. O que aponta para o estabeleci-
mento de uma hegemonia: “uma certa particularidade [...] assume o papel de uma totalidade
impossível” (LACLAU, 2005, p. 115, tradução nossa15).
Através da leitura de Pêcheux (1997) com Laclau (2005), objetivamos não apenas ela-
borar os fundamentos teórico-metodológicos da análise aqui apresentada, mas também con-
tribuir para a compreensão do discurso político. Para Pêcheux (1997), a estrutura de todo pro-
cesso discursivo se instaura e se assegura em efeitos metafóricos. Perguntamos então: o que
seria específico ao jogo metafórico em torno do qual se sustenta o discurso político? Funda-
mentados nas elaborações de Laclau sobre a lógica populista, propusemos, então, que em uma
forma do discurso político os efeitos metafóricos (PÊCHEUX, 1997) se fazem em relação a uma
dicotomização do espaço social, na qual um número de elementos se agrupa metaforicamente
em torno de um dos polos da dicotomia, constituindo assim um povo. Estes elementos estabe-
lecem entre si uma relação de analogia face ao polo oposto. Tal forma do discurso político, em
nossa leitura, atualiza a indicação de Pêcheux (1997) de acordo com a qual um campo político
coloca em cena elementos antagonistas em relação.
Referências
BENVENISTE, E. Problemas de Linguística Geral I. 5 ed. Campinas: Pontes, 2005.
GASPARINI, E.N. Sobre a fala no Curso de Linguística Geral: um caminho da liberdade humana?
Prolíngua, v. 11, n. 2, p. 61-71, 2016.
MENEGAT, R. Bolsonaro mencionou a ditadura em 1/4 dos seus discursos como deputado.
Estadão, 30 de mar. de 2019. Disponível em: https://www.estadao.com.br/infograficos/
politica,bolsonaro-mencionou-a-ditadura-em-14-de-seus-discursos-como-deputado,982285.
Acesso em: 16 mar. 2020.
PÊCHEUX, M. Análise Automática do Discurso. In: GADET, Françoise; HAK, Tony (orgs.). Por uma
Análise Automática do Discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3 ed. Campinas:
UNICAMP, 1997.
Discursos analisados