Ana Claudia Zuanela

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO

PRÓ-REITORIA ACADÊMICA – PRAC


COORDENAÇÃO GERAL DE PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL E PSICANÁLISE

OS CAMINHOS DA PAIXÃO AMOROSA E ALGUNS DOS SEUS


DESTINOS PATOLÓGICOS

ANA CLÁUDIA ZUANELLA

RECIFE
2016
ANA CLÁUDIA ZUANELLA

OS CAMINHOS DA PAIXÃO AMOROSA E ALGUNS DOS SEUS


DESTINOS PATOLÓGICOS

Dissertação apresentada como requisito parcial


para obtenção do título de Mestre em
Psicologia Clínica, área de Pesquisa
Psicopatologia Fundamental e Psicanálise, da
Universidade Católica de Pernambuco.

ORIENTADORA: PROFa. DRa. EDILENE FREIRE DE QUEIROZ

RECIFE
2016
Para Silvio e Leonardo
meus dois amores
AGRADECIMENTOS

A Deus e ao Espírito Santo por me iluminarem e estarem sempre ao meu lado.

A meus pais que me permitiram estar aqui e conhecer o amor.

A meu filho Leonardo que faz tudo ser mais bonito, mais feliz, mais colorido e que me
faz entender o que é o amor personificado.

A Sílvio que acaba sempre me dando motivos para apostar no amor e para escolher
amá-lo a cada novo dia.

A meus amigos, especialmente aqueles, como Cintya, que cuidaram de forma especial
de mim nesse período de Mestrado.

A minhas colegas de turma que viraram grandes amigas e até afilhadas e que
compartilharam comigo um dos períodos, não só acadêmico, mas de vida, mais
intensos e felizes, tensamente felizes, que já tive.

A Zeferino Rocha que me apresentou a Psicanálise e acabou por inspirar e estimular a


pesquisa do tema da paixão.

A Edilene Queiroz que me aceitou com minha lacuna lacaniana e nunca exigiu de mim
mais do que eu poderia dar.

A Ana Lúcia Francisco pelo modelo de pessoa e professora que ela é e nos move a
ser.

A Unicap e seus funcionários por serem tão acolhedores e agradáveis.

A Psicanálise, na figura de Freud e daqueles que o apresentaram a mim, que me ajuda


a entender a vida, as pessoas e me instiga incansavelmente a estudar mais e mais, E,
além disso, ainda me fez descobrir a paixão.

À PAIXÃO que me move para vida, para os estudos, para o trabalho, para os amigos,
para os amores. Um agradecimento especial à paixão.
Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão de meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...


Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

Tudo no mundo é frágil, tudo passa...


Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, vivo de rastros:


"Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!...

(Fanatismo, Florbela Espanca, 1923)


Resumo

Esta pesquisa teórica surgiu do interesse em estudar a paixão, especialmente no seu


sentido pático. Partimos da sua etimologia originada do termo páthos da Grécia
Clássica que tem o sentido de passividade e sofrimento e é igualmente o radical de
patologia. Utilizamos a metapsicologia freudiana para estudar alguns dos destinos
marcados pelos aspectos patológicos da paixão, começando com a ideia de que no
apaixonamento o objeto é colocado no lugar do ego ideal do sujeito, lhe caracterizando
uma dinâmica psíquica particular. Concluímos que pode haver três tipos de paixão:
aquela que dá lugar ao amor (enamoramento), aquela que termina sem maiores danos,
por autocombustão (arrebatamento) e a paixão patológica, cujo destino é ficar
aprisionado à fixidez, ao excesso, ao sofrimento. Nos detivemos nesse terceiro tipo de
paixão, pesquisando alguns dos seus desdobramentos: o narcisismo patológico, a
melancolia, a negação da alteridade, a alienação e o fetichismo.

Palavras chaves: paixão, patologia, ego ideal, narcisismo, melancolia, alteridade,


fetichismo.

Abstract

This theoretical research came from the interest in studying love passion, mainly in its
páthic sense. Starting with its etymology from Classic Greek‘s word páthos which
means passivity and suffering and is also the root of pathology, we used Freudian
metapsychology to study some of love passion destinies related to its pathologycal
aspects, beginning with the idea that in it, the object in put on the subject´s ideal ego.
This gives passion a particular psychic dynamic. We concluded that may there be three
kind of love passion: one that gives place to love (endearment), one that finishes with
no great damages by self-combustion (catchment) and pathological passion, which
destiny is to be prisoner of fixation, excess, pain. We tarried on the third kind of love
passion, researching some of its consequences: pathological narcissism, melancholy,
lack of otherness, alienation, fetishism.

Keywords: love passion, pathology, ideal ego, narcissism, melancholy, otherness,


fetishism.
SUMÁRIO

Introdução 08

Capítulo 1. O páthos da paixão 16

1.1. A paixão e os gregos 16


1.2. Páthos e os tempos atuais 19
1.3. A paixão amorosa 24
1.4. A distinção entre paixão e amor 27
1.5. A paixão e a psicanálise 30
1.6. Patologia em psicanálise 36
1.7. O pathológico da paixão 42

Capíluto 2. Os ideais da paixão 47


2.1. Verliebtheit (paixão) 47
2.2. O ego ideal e o ideal do ego 53
2.3. O ego ideal na paixão 60
2.4. O amor que constitui o ego e o ódio que cria o objeto 62
2.5. Tipos de escolha de objeto 67
Capítulo 3. Aspectos patológicos da paixão 71
3.1. Narcisismo patológico 72
3.2. A melancolia 88
3.3. A negação da alteridade 93
3.4. A alienação 99
3.5. O fetichismo 102
Considerações finais 116
Referências 119
8

INTRODUÇÃO

O interesse por estudar o tema da paixão amorosa foi despertado por


duas constatações: uma de ordem clínica, outra de ordem teórica. Primeiro, a escuta
analítica permitiu notar a recorrência de assuntos ligados à paixão amorosa. A dor de
amor, ou de desamor, além de ser um frequente motivo de busca por ajuda
psicanalítica, quando não, surge como um tema importante ao longo do processo.
Portanto, estudar a paixão nos leva a aprofundar um assunto sempre atual e recorrente
nos consultórios. Além disso, compreender o que está implicado na forma como o
sujeito se relaciona afetivamente ajuda a entender certos aspectos de sua dinâmica
psíquica, colaborando com nossa escuta clínica.
A segunda constatação surgiu em decorrência de um convite em 2008 para
apresentar um trabalho sobre Formas patológicas de amar. À época foi difícil encontrar
publicações psicanalíticas a respeito, inclusive tal fato era mencionado por vários
autores (Green, 1988a; Paz, 2001; Person, 2007; Escribens, 2007; Kernberg, 1995).
Imaginou-se, então, que seria interessante agregar mais pesquisa teórica ao tema 1.
Nosso objeto de pesquisa é a paixão amorosa, recíproca ou não, e alguns de
seus aspectos patológicos localizados na esfera das neuroses e perversão, não nos
detendo nos seus desdobramentos psicóticos. Entendemos esses aspectos como
inerentes do desenrolar do apaixonamento, porém com a fixação nos mesmos, pode-se
pensar num destino marcado pela patologia.
A escolha dos aspectos acima citados se deveu ao fato dos quadros
majoritariamente psicóticos serem menos frequentes na clínica, além de que, nos

1
Ao serem pesquisadas duas bibliotecas eletrônicas, Scielo – Scientific Eletronic Library Online com periódicos
nacionais, e Lilacs – índice de Literatura Científica e Técnica da América Latina e Caribe, deparou-se com os
seguintes dados: sobre o tema da paixão com alguma relação com a psicanálise foram encontrados quatro artigos
nos últimos dez anos no Scielo; já no Lilacs, encontrou-se 22 artigos (inclusive os quatro do Scielo), no entanto,
esses 22 artigos foram escritos num período bem mais extenso, de 28 anos, e considerando-se toda América Latina
e o Caribe. Sobre o tema do amor, no Scielo havia três artigos na área psicanalítica que tratavam do assunto como
tema central nos últimos dez anos; no Lilacs chegou-se a 39 artigos num período de 33 anos. Encontramos apenas
um artigo que relacionasse a paixão às Instâncias Ideais, de Ana Lila Lejarraga, intitulado Freud e Winnicott: do
apaixonamento à capacidade de amar, publicado na revista Pulsional, ano XV, n. 164, dez./2002 - ano XVI, n. 165,
jan./2003
9

determos nos desdobramentos ligados à psicose abriria um espectro de estudo vasto


demais que não teríamos como dar conta nessa pesquisa.
Para estudá-la, problematizamos a paixão amorosa relacionando-a às instâncias
ideais, mais especificamente ao ego ideal para sustentar a ideia de que na paixão
amorosa há a projeção do ego ideal no objeto eleito.
Através da compreensão das consequências psíquicas de sua dinâmica, a
paixão foi estudada nos seus possíveis desdobramentos patológicos, como na
prevalência do narcisismo patológico, na melancolia, na negação da alteridade, na
alienação e no fetichismo. Essas possibilidades estão vinculadas ao papel do
narcisismo primário na constituição do ego ideal. Acredita-se que ele está também
relacionado à supervalorização inerente ao apaixonamento e à necessidade de fusão;
ao passo que o Ideal do Ego remete a relações mais maduras em que o outro é
reconhecido na sua diferença e suportado em suas falhas.
Freud construiu sua compreensão do psiquismo humano a partir do estudo das
neuroses. Acreditamos, como ele, que pesquisar o aspecto patológico de determinado
fenômeno nos permite entender sua dinâmica também nos estados ditos normais. A
patologia se apresenta, nesses casos, como uma lente de aumento, amplificando os
mecanismos igualmente envolvidos no funcionamento “normal” do sujeito.
Não se pretende afirmar que todos os destinos da paixão sejam marcadamente
patológicos, mas que através do estudo do seu aspecto patológico é possível entendê-
la em maior profundidade e amplitude.
Quando Freud (1914, p.101) afirma que “devemos começar a amar a fim de não
adoecermos, e estamos destinados a cair doentes se, em consequência de frustrações,
formos incapazes de amar”, e que amar é uma das formas, juntamente com o
trabalhar, de manter a saúde mental, nos perguntamos que lugar a paixão ocupa nesse
contexto.
Em Grande Sertão: Veredas (1993), Guimarães Rosa, na voz de Riobaldo,
declara: “Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de
ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso
na loucura.”
10

Ao que tudo indica a paixão, sob diversos aspectos, pode se afastar da saúde
advinda de amar. Como diz Rocha (2008, p. 101), os destinos da paixão “tanto podem
ser aquele de uma fase normal, embora ilusória, da experiência amorosa, quanto uma
experiência desestruturante da vida psíquica nos casos do apaixonamento patológico”.
Quando a paixão dá lugar ao amor, pode ser compreendida como uma fase do
processo amoroso; ou então, se termina sem maiores danos, também pode ser
entendida como uma “loucura passageira”. Porém, há casos em que há uma fixação no
objeto da paixão, onde entra em jogo o comprometimento da maleabilidade da pulsão e
fica mais evidente seu desdobramento pathológico. Para além do sentido de doença,
páthos também quer dizer sofrimento. Estes dois sentidos são privilegiados neste
trabalho.
“As paixões são experiências verdadeiramente páthicas, visto que são sofridas,
nas quais o sujeito se deixa levar por, se deixa con-vocar por.” (MARTINS, 2000, p.72).
Situação onde prevalece o sofrimento em detrimento do prazer. No nosso entender
essa dinâmica colabora grandemente para o destino patológico da paixão, esse
aprisionamento no sofrimento.
Ferreira Neto (2004) discorrendo sobre o terceiro livro da História da
Sexualidade de Foucault – O Uso dos Prazeres (1983) – lembra que os gregos
utilizavam o conceito de páthos aplicando tanto às paixões quanto à doença física.
Essa conexão também é observada por Fédida (1992 2, 2000), Ceccarelli (2005), Costa
Pereira (2004) e Berlinck (1998, 2002).
Ceccarelli (2005, p.471) refere que “Médico é aquele - diz Platão no Banquete –
que está sempre atento ao páthos, às paixões, pois as doenças apresentam-se como
um excesso de paixões”.
No entender de Costa Pereira (2004), a psicopatologia é uma disciplina que se
debruça sobre o sofrimento humano, enquanto que é intimamente vinculado às paixões
humanas. O autor cita Fedida (1992) quando aborda o pathei mathos, exposto por
Ésquilo, ao reportar-se à aprendizagem que pode advir do sofrimento, para, então
estabelecer o protótipo de uma tradição trágica na concepção do psicopatológico.

2
FEDIDA, P. Crise et contre-transfert, Paris: PUF, 1992.
11

Por sua vez, Berlinck (2002, p.10) escreve que Platão nos lembra que o médico
está sempre lidando com o amor, “porque as doenças físicas em sua evolução, se
apresentam como páthos, paixão amorosa”.
Berlinck (1998) observa que além de sofrimento, páthos também tem como
derivados as palavras paixão e passividade. A psicopatologia fundamental debruça-se
sobre o sujeito trágico que é constituído com o páthos, não sendo senhor de suas
ações. Quando páthos acontece, algo da ordem do excesso, da desmesura, da hybris
se põe em marcha sem que o sujeito possa se assenhorar desse acontecimento.
Quanto ao lado páthico da paixão, Roland Barthes traz uma pergunta muito
pertinente em seus Fragmentos de um discurso amoroso (1991): “Então Zoé pode ao
mesmo tempo “amar” e “estar apaixonada”? Esses dois projetos não são considerados
diferentes, um nobre e outro mórbido?” (p.119)
Em As paixões e suas vicissitudes, Green (1988a, p.220) afirma: “Loucura e
paixão, dois tributários do mesmo rio, cuja fonte é ´hubris´”. E acrescenta:

Então o que veio a ser a loucura? Antes de caracterizá-la como uma desordem
da razão, dever-se-ia, pelo contrário, enfatizar o elemento afetivo, apaixonado,
que modifica a relação do sujeito com a realidade, elegendo um objeto parcial ou
total, tornando-se ligado mais ou menos exclusivamente a ele, reorganizando
sua percepção do mundo em seu redor e lhe dando uma aura única ou
insubstituível pela qual o ego é cativado e alienado (GREEN, p.226).

Como frisamos anteriormente, não pretendemos dizer que toda paixão seja
patológica, ela é um estado transitório de loucura, é bem verdade, mas a saúde está
justamente no fato dela ser transitória. Entendemos a patologia no momento em que há
uma fixação no estado de apaixonamento e este não dá lugar para uma forma mais
branda que é o amor, nem tampouco se aceita o abandono pelo objeto. Há uma
estagnação nisso que deveria ser a transitoriedade, mantendo a negação dos limites
próprios de nós, seres castrados. É a fixação no retorno narcísico e na ilusão de que é
possível escamotear a castração.
12

Não podemos nos esquecer de que na medida em que na paixão amorosa há a


procura da revivescência da fase narcísica, enquanto tal, ela se torna tão impossível de
se sustentar quanto o foi sustentar o narcisismo infantil, significa:

uma exploração do possível a partir do impossível, um esforço de realizar o


estado paradisíaco na terra. Por essa razão (...) o homem tira a espada
flamejante do querubim e entra no jardim do Éden. Certamente não pode fazer
dele sua morada estável; o enamoramento não dura para sempre; o
extraordinário convive sempre com o comum e a ele regressa. Mas aquele é o
jardim do Éden. Todos o conhecemos, todos já estivemos nele, todos já o
perdemos, todos sabemos reconhecê-lo (ALBERONI, 1988, p.41).

A paixão está sempre fadada ao fim e a algum tipo de desilusão. Em alguns


casos a pessoa não consegue aceitar as limitações inerentes aos outros, inerente a si,
inerente a toda e qualquer relação e assim, elaborar sadiamente a desilusão.
Estabelecemos como nosso objetivo geral, estudar, dentro da perspectiva
freudiana, os mecanismos psíquicos próprios da dinâmica do apaixonar-se e alguns de
seus desdobramentos patológicos. Mais especificamente, almejamos:
• Distinguir o amor, a paixão e a paixão patológica.
• Conceituar o ego ideal e o ideal do ego, relacionando e ego ideal ao narcisismo e o
ideal do ego ao reconhecimento da alteridade.
• Compreender o papel do ego ideal e do narcisismo na paixão amorosa.
• Estabelecer uma correlação entre o narcisismo, melancolia, negação da alteridade,
alienação, fetichismo e a paixão patológica.
Para atingir nosso objetivo, realizamos uma pesquisa teórica de fundamentação
psicanalítica, utilizando-se a metapsicologia freudiana. Foram estudados os aspectos
topográficos, dinâmicos e econômicos dos fenômenos intrapsíquicos envolvidos.
Diz Green (1988b, p. 18) que a “metapsicologia só serve para pensar. E sempre
retroativamente, não na poltrona analítica, mas naquela na qual o analista senta frente
a uma folha branca que estimula ou inibe seu intelecto”. Espera-se que as observações
da prática analítica que despertaram o interesse por essa pesquisa possam ter sido
pensadas neste a posteriori quando a metapsicologia funcionou como instrumento para
13

lhes dar um sentido e permitir que folhas brancas agissem como “estímulo ao intelecto”
na busca de respostas.
Almeja-se que a metapsicologia seja a semente lançada num solo que se torne
fecundo, possibilitando a criatividade e a originalidade. Como escreveu Wittgenstein:
“Minha originalidade, caso seja esta a palavra certa, é, acredito, uma originalidade do
solo e não da semente. Pode ser que eu não tenha semente alguma que me seja
própria. Lance uma semente no meu solo e ela crescerá diferentemente do que sobre
qualquer outro solo.” (citado por CAON, 1994, pg.151). A metapsicologia foi dada, é a
semente de Freud, espera-se que o solo onde ela foi plantada a tenha feito germinar.
É importante relembrar que a Psicanálise designa tanto um tratamento, quanto
uma forma de pesquisa e um arcabouço conceitual. Neste trabalho, a psicanálise foi
utilizada enquanto arcabouço conceitual e fundamentação teórica, privilegiando sua
metapsicologia.
Houve a apropriação dos conceitos teóricos psicanalíticos para entender o
fenômeno do apaixonamento. Quanto ao caminho para nos apropriarmos do
conhecimento contido nos textos, foi realizada uma dupla leitura, tanto sistemática,
contextualizante quanto desconstrutiva que “explora as tensões, as trilhas perdidas, as
pequenas aberturas do texto que a leitura clássica tende a fechar” (CAPUTO, apud
Figueiredo, 1999, p.20).
A leitura desconstrutiva é transgressora em relação à proteção que a leitura
sistemática oferece, ela se move nas direções abertas, colocando em marcha um
mecanismo de produção de sentido que instabiliza e temporaliza o sentido dado e dá
mais vida ao texto em exame (FIGUEIREDO, 1999).
Abordamos o texto na busca de respostas a uma série de questões e um
questionamento a uma série de crenças, acreditando que devemos trazer o texto para
nosso campo e também deixar-nos tocar pelas questões que o texto nos traz e pelas
respostas que ele solicita 3.

3
Essas ideias são desenvolvidas por Gadamer (apud LAWN, 2007). Apesar de usarmos a metapsicologia freudiana,
a forma de leitura dos textos teve premissas semelhantes às desenvolvidas por Gadamer, esclarecendo que não
estamos associando essas interpretação: a hermenêutica gadameriana e a interpretação psicanalítica criada por
Freud. Uma se refere ao Inconsciente a outra ao texto escrito pelos autores pesquisados.
14

“Interpretar seria, em si mesmo, mais um lance desse incessante diálogo em


que perguntamos e respondemos a um determinado texto; nesta medida, deve-se
conceber a interpretação como interminável, dado que interminável é o diálogo”.
(FIGUEIREDO, 1999, pág.13)
O texto é atualizado através da sua compreensão, implicando a interpretação 4
como criação e coautoria. “Essa atividade de interpretação seria, necessariamente,
interminável, uma vez que a alteridade do texto e do intérprete não é passível de
equacionamento” (CAMPOS e COELHO JR., 2010, p.251).
É muito importante ter um terceiro para quem se dirige a escrita produzida pelas
leituras. Esse outro dará a dimensão de realidade ao diálogo e deduções feitas a partir
dos estudos. Esse terceiro é primordialmente a orientadora, a banca e os leitores, para
os quais de destina a escrita.
Na pesquisa em questão houve um plano de fundo, a paixão, sobre o qual se
tinha algum entendimento ou alguma conjectura, o mesmo se pode dizer sobre as
instâncias ideais. Caso não houvesse esse conhecimento prévio, não seria possível
tentar uma articulação entre ambos. A figura que emergiu deste fundo foi o objeto de
estudo propriamente dito, aquele problematizado para se prosseguir com a pesquisa,
qual seja, relacionar a paixão ao ego ideal para, através dessa perspectiva, entendê-la
nos seus aspectos patológicos.
Nessa pesquisa não houve o objetivo de criar uma forma conclusiva ou única de
explicar a paixão, mas sim abrir questões e caminhos que possibilitassem a
compreensão reflexiva de alguns componentes na singularidade do apaixonar-se.
Pretendeu-se se aproximar de possibilidades de arranjos intrapsíquicos e assim ter
mais meios de interpretar os sinais e o discurso analíticos
Seguindo a convicção que não há verdades ou respostas derradeiras
compactuamos com Iribarry (2003, p.132) na assertiva sobre a forma de escrita: “O
ensaio é como a vida: sempre inconclusivo para o seu autor, pois no dia de sua morte,
apenas os que ficarem poderão falar do que restou, enquanto o autor jamais poderá
extrair uma aprendizagem desta vivência radical e derradeira. Enquanto se vive, se

4
Gostaríamos de deixar claro que não estamos nos referindo à interpretação psicanalítica.
15

pode ensaiar". Enquanto vivemos, que possamos ensaiar. Assim realizamos nossa
pesquisa, um ensaio de paixão, de eros, de vida.
A pesquisa teórica foi empreendida em torno de três eixos investigativos os
quais geraram os três capítulos da mesma.
O primeiro capítulo traz o conceito de páthos do qual é oriunda a palavra paixão,
em dois momentos históricos: nos gregos clássicos e nos dias atuais. É, então,
apresentada a paixão no campo amoroso, delimitando-o como nosso objeto de
pesquisa, diferenciando-a do conceito de amor e circunscrevendo-a na esfera do
páthos, sofrimento e patologia. É apresentada a noção de patologia em psicanálise
com a finalidade de compreender a paixão no seu sentido páthico. Este capítulo tem a
intenção de contextualizar a paixão e associá-la tanto ao sentimento amoroso quanto
ao seu caráter patológico. Estabelecemos três possibilidades para o sentimento de
apaixonamento: ele dar lugar ao amor, ele terminar por autocombustão, ele se fixar
numa patologia.
No segundo capítulo a pesquisa avança para o contexto mais psicanalítico.
Partindo da afirmativa freudiana de que no amor (Verliebtheit), o objeto é colocado no
lugar do ideal do ego, pesquisamos o termo Verliebtheit e sua tradução ora como estar
amando, ora como apaixonamento, ora como auge do sentimento de amor, para
determinar a tradução que nos parece mais apropriada. Em seguida nos detemos na
distinção entre as instâncias ideais visando estabelecer em qual lugar ideal o objeto da
paixão é colocado. Assim começamos a entender a metapsicologia da paixão pelo viés
do ego ideal, o qual tem uma dinâmica particular e, a nosso ver, responde em grande
medida pelas peculiaridades do apaixonamento.
Essas peculiaridades são trabalhadas no terceiro capitulo, onde se veem o que
chamamos de “os destinos patológicos da paixão”, aqueles em que a particularidade da
paixão encontra seu desdobramento no adoecimento, marcado pelas características de
fixidez e sofrimento. Pesquisamos o narcisismo patológico, a melancolia, a negação da
alteridade, a alienação e o fetiche.
Agora, vejamos o que foi construído em torno do nosso tema.
16

1. O PÁTHOS DA PAIXÃO

A paixão inquieta desde sempre. Na Grécia Clássica os filósofos já se ocupavam


de entender esse sentimento paradoxal, que podia ser ora sofrido, ora prazeroso, mas
nunca deixava de ser enigmático.
Conceituar a paixão é um eterno aproximar-se sem se chegar a uma resposta
definitiva. Mesmo assim o tema não deixa de provocar estudos, discussões,
especulações e novas tentativas. Apesar de saber que não teremos definições
conclusivas, acreditamos que muitas questões não são postas para serem
simplesmente respondidas, mas, principalmente para servirem de estímulo e
companhia na constante busca do saber.
Os gregos clássicos se dedicaram à compreensão do páthos, palavra de onde
se deriva paixão, trazendo importantes contribuições. Se todo conhecimento se origina
da Grécia, teremos ali nosso ponto de partida. Nesse primeiro momento
apresentaremos a questão germinal da paixão, através do páthos, ainda no seu Lato
Sensu. Iremos direcionando nossa pesquisa para os dias atuais, com o intuito de
afunilar o conceito de paixão, não nos esquecendo de sua ligação com o páthos
originário. Para estudá-la mais profundamente, delimitaremos a paixão à esfera do
amor, nos detendo à visão psicanalítica da mesma, circunscrevendo, assim, nosso
campo de estudo 5.

1.1. A paixão e os Gregos


A palavra paixão tem sua raiz no latim passio, o qual, por sua vez deriva dos
temos gregos paskein e páthos (MARTINS, 1987). Passio (de passio – onis) vem do
particípio passado de pati – “sofrer”) (Treccani apud WIKIPEDIA, 2016). O termo grego
páthos é uma “palavra que vem do verbo páthein e significa ser afetado, padecer,
sofrer, suportar” (ROCHA, 2010, p.136).

5
O páthos pode ser abordado sob várias perspectivas: etimológica, histórica, filosófica, psicológica e até
astronômica, dentre tantas (Rocha, Z.,informação verbal – comentário feito na banca prévia realizada em Recife
em vinte e dois de fevereiro de dois mil e dezesseis) . Quanto ao nosso estudo, nos interessa estudá-lo ligado à
paixão, pelo viés psicanalítico.
17

Etimologicamente o páthos tem o sentido de ser afetado por algo da ordem do


excesso e da desmedida, da hybris. Em As paixões e suas vicissitudes, Green (1988a,

p.220) pontua: “Loucura e paixão, dois tributários do mesmo rio, cuja fonte é ‘hubris’”.

Páthos é também o radical de patologia.


Rocha (2010, p.136) declara “duas são as manifestações semânticas mais
importantes do páthos: o sofrimento e a paixão”.
Carvalho da Silva (2006) enfatiza que a cultura clássica atribuía grande
relevância à questão do páthos, uma vez que as paixões da alma estavam implicadas
no bem-estar pessoal e coletivo, nas escolhas do modo de vida e nas próprias
condições de busca da verdade. Páthos dizia respeito a uma forma de ser e se
posicionar. Lebrun (1987) afirma que os gregos clássicos viviam com as paixões e não
contra elas.
Bento (2006) observa que os gregos atribuíam à paixão uma passividade diante
da ação. O sofrer nesse contexto remeteria não à dor, mas ao fato de se sofrer
passivamente uma ação, no sentido de estar na voz passiva do verbo, como por
exemplo, “ele foi preso pela polícia estadual”, “a paciente foi diagnosticada por um
especialista”.
Esse autor traz ainda a definição de Páthos no dicionário clássico de língua
francesa do século XX, Le Petit Robert (1992) como um termo oriundo do grego antigo
que significa sofrimento, paixão. Diz o autor que em Aristóteles, “páthos é sinônimo de
paixão, ambos os termos significando um sofrimento passivo” (apud BENTO, 2006,
p.186).
Aristóteles na Retórica (1378, apud LEBRUN, 1987, p.18) assim define a paixão:
“tudo o que faz variar os juízos e de que se seguem sofrimento e prazer”. Apesar de
fazer variar os juízos, ele afirmava que o homem não poderia ser julgado como bom ou
mau por suas paixões. Uma vez que ele não as escolheu, não seria responsável por
elas, mas apenas pela maneira como agiria diante delas.
Conforme a ética aristotélica (CARVALHO DA SILVA, 2007, p. 539), na alma
humana há as paixões, as faculdades e os estados de caráter. As paixões são dadas
pela natureza e “em si mesmas não são nem virtude nem vícios”, as faculdades são
responsáveis por experimentar as paixões, e os estados de caráter permitem “se
18

posicionar bem ou mal em relação às paixões, sendo, portanto, dessa ordem, o que
determina a virtude” (op. cit., p.539).
Vemos em Aristóteles um pensamento que remete ao caráter passivo do
páthos, uma vez que ele considerava que o homem tinha responsabilidade por suas
ações, mas não por suas paixões.
Já Platão apresentava uma visão mais categórica acerca do páthos, a qual foi
retomada tanto pelos estoicos quanto por Kant (LEBRUN, 1987). “Para Platão, o
homem está preso à armadilha de suas paixões na Caverna das suas ilusões”
(MEYER, 1994, p.17). Ela não é refletida por aqueles que caem na sua armadilha, pois,
caso eles tomassem consciência da mesma, deixariam de ser suas vítimas. No
platonismo, paixão e razão não podem coexistir.
Ele tratava a paixão de forma rigorosa, para a qual não havia muita saída, já
que, no seu entender, ela era tanto um problema quanto o empecilho para a resolução
desse problema. Em virtude da cegueira que suscitava, a paixão impediria a percepção
de que houvesse qualquer problema a ser resolvido (MEYER, 1994, p. 31).
A solução apresentada pelos estoicos seria erradicar as paixões. Eles
discordavam de Aristóteles de que pudesse haver uma “educação” das mesmas. Estas
seriam, para eles, e também para Kant, um obstáculo a ser transposto, uma força que
deveria ser vencida, o sintoma de uma fraqueza da alma. Consequentemente o
apaixonado seria um desvairado que deu as costas à razão. Conforme nos recorda
Lebrun (1987), extirpar as paixões era o objetivo da profilaxia estoica.
Não se tratava mais de controlar as paixões, já que isso era impossível. Para os
estoicos paixão era sempre o resultado de uma doença e não uma reação inevitável a
uma emoção. Para eles: “toda paixão desde o seu despertar já infringe a lei que me
constitui como ser razoável, todas as paixões, na sua origem, já me conduzem ‘para
fora de mim mesmo’” (LEBRUN, 1987, p.25). Pensamos que esse “fora de mim
mesmo” é um retrato da hybris que os gregos associavam à paixão: aquilo que excede,
que está fora da medida, que nos extrapola 6.

6
A hybris está muito presente na paixão e teremos chance de ver um de seus desdobramentos na questão da
alteridade, quando o outro é aquele que nos excede, bem como no interessante debate de Laplanche no mesmo
tópico.
19

Nietzsche (apud LEBRUN, 1987) veio apontar uma contradição no discurso dos
estoicos. Para ele a preconização da apatia diante da paixão por intermédio de um
fortalecimento interno, nada mais era que um sinal de imensa fraqueza de vontade,
uma vontade incapaz de enfrentar as perturbações da alma. Eles partiam da ideia que
era impossível viver uma paixão sem ser totalmente dominado por ela. Não haveria
chance de vitória da vontade contra a paixão, a única saída seria eliminá-la para não
enfrentá-la.
Através do olhar dos estoicos podemos pensar no caráter de passividade do
páthos para os gregos. Os estoicos afirmavam que a passividade era em virtude da
desarmonia entre a alma e a razão, sendo esta última a instância que por natureza
deveria estar no domínio, mas fora alterada pela paixão. Era esse desvio em relação à
natureza racional do homem que explicaria o caráter excessivamente passivo do
páthos (LEBRUN, 1987).
Quanto á questão da passividade pensamos que podemos nos arvorar a fazer
um primeiro contato com a psicanálise, a qual terá sua relação com a paixão debatida
mais tarde. Pensamos que no apaixonamento o sujeito sofre passivamente uma ação,
porém a ênfase dessa passividade recai no fato dessa ação ser inconsciente, não se
sujeitando ao uso da razão, característica de um outro registro, o consciente. Por esse
motivo as paixões falam tanto do sujeito, elas são um reflexo de sua história pessoal,
mesmo que inconsciente e passiva diante da razão.

1.2. Páthos e os tempos atuais


Hegel 7 (apud LEBRUN, 1987), na Estética, se esforça por distinguir o que os
gregos entendiam por páthos e os modernos entendem por paixão. Sua opinião é de
que a palavra páthos seria de difícil tradução, tendo em vista que o uso do termo
paixão implica numa noção de algo de menor valor – como no sentido dado ao
dizermos que “um homem não deve sucumbir às paixões” – e esse não era o
significado para os gregos. Na Grécia antiga, páthos era visto num plano mais elevado,
sem qualquer nuance de censura ou egoísmo. Hegel usa como exemplos o amor
sagrado de Antígona por seu irmão e também o assassinato cometido por Orestes.

7
HEGEL. Aestheik, 12, S. 313-4, Glökner.
20

Orestes mata a mãe, não sob o império de uma dessas pulsões internas da
alma, a qual chamaríamos de paixão; o páthos que o conduz a esta ação é bem
pensado e refletido [...] Deve-se limitar o páthos às ações humanas e pensá-lo
como o conteúdo racional essencial presente no ‘eu’ humano, preenchendo e
penetrando a alma inteira” (Hegel 8 apud LEBRUN, 1987, p.23).

Hegel 9 enfatiza o elemento interno, pulsional, e irracional da paixão, no entanto,


dá ao páthos um conceito diferente desse, afastando os dois conceitos. Para ele o
páthos é “um conteúdo racional essencial presente no ‘eu’ humano”, tanto que ele
afirma: “Nada de grande se fez sem paixão” (apud LEBRUN, 1987, p.23). Na Grécia
Clássica essa racionalidade não estava presente na noção aristotélica e, menos ainda,
na definição de Platão.
Martins (2000) defende páthos como fazendo parte de uma disposição originária
do sujeito que está na base do que é próprio do humano. O autor pontua que existem
várias perspectivas contidas no conceito de páthos que trazem consigo possibilidades
e problemas mais amplos que o sentido de doença, à medida que remete a uma
dimensão essencial humana.
Páthos, segundo o autor, atravessa toda e qualquer dimensão humana,
permeando todo o universo do ser. Esse páthos que Martins descreve seria o substrato
de todas as ações e sentimentos, que desde os gregos clássicos é apresentado como
parte do humano, especialmente quando se toma o sentido de passividade, sofrimento
ou espanto.
Berlinck (2002, p.8) traz sua contribuição ao dizer que quando páthos acontece,
“algo da ordem do inusitado, do excesso, da desmesura se põe em marcha sem que o
sujeito possa se assenhorar desse acontecimento”. A paixão é algo que invade a
pessoa tomando-a de surpresa, sem deixar chance de uma apropriação do que
ocorreu. Ao não se integrar esse evento, ele excede o sujeito e o apassiva, não o deixa
mais senhor de si, mas um mero espectador sem vontade própria.

8
Op. cit.
9
Op. cit.
21

Queiroz (1999), reportando-se a Meyer (1990) 10, traz a definição de páthos


como afecção, que significa tanto a qualidade do ser humano de poder sofrer alteração,
quanto o deslocamento do homem do lugar de agente para o de sujeito. O páthos leva
a um assujeitamento do ser.
Todos sentirão paixão em algum momento, entretanto cada um se apaixona a
sua maneira, como posto por Meyer (1994, p.9), “a paixão é o que de mais individual
há no indivíduo; ela cristaliza os conflitos do homem consigo mesmo e, desse modo,
também com os outros”.
Segundo Lebrun (1987) há dois conceitos originalmente distintos para páthos, o
passional, que se relaciona com a forma de ser, de se posicionar moralmente no
mundo; e o patológico, que remete ao diagnóstico médico. Nesses termos, podemos
começar a nos questionar se a paixão é apenas passional, inerente à condição humana
ou se traz sempre algo de patológico, doentio consigo.
Minkowski (1999) aborda uma outra distinção entre o pático e o patológico. Ele
fala da construção de uma identidade enquanto intermediada pelo páthos. Diz que o
sofrimento é do domínio do páthos humano e nele o homem se reconhece enquanto
parte da humanidade. O autor acrescenta que a partir do sofrimento, abre-se para nós
o aspecto pático - e não patológico - da existência. Esse aspecto pático atravessa toda
nossa vida, imprimindo sua marca, ele a torna humana. Como bem salienta o autor,
“pode-se atravessar a vida sem jamais ter-se estado doente. Não se pode atravessá-la
sem sofrer” (MINKOWSKI, 1999, p.157).
Quanto à conexão entre páthos e sofrimento, Bento (2006) pontua que do
páthos-paixão genérico derivou o Páthos específico, sinônimo de doença, significando
um sofrimento particular. Nesse caso, paixão, em sentido amplo, como “fato de sofrer
passivamente uma ação” se transforma em “fato de sofrer passivamente uma ação
prejudicial, dolorosa” (BENTO, 2006, p.186, o itálico é nosso). O aspecto de simples
passividade embutido na palavra páthos passou a ter o significado de uma passividade
que causa dor; tornou-se o caso de ser vítima uma ação sofrida, dolorida.

10
Michel Meyer, “Introdução”. In: DESCARTES, R. Les passions de l’âme. Paris: Librairie Générale Française, 1990,
p.05-14.
22

Este autor defende a ideia de uma relação entre o tóxico, a adicção e a paixão.
Ele compara a paixão à toxicomania iniciando sua discussão com a explicação
etimológica da palavra tóxico, a qual vem de toxicum, veneno usado nas flechas dos
citas – um povo bárbaro – para paralisar o inimigo. Podemos traçar um paralelo com a
flecha usada no contexto do apaixonamento, lançada por cupido em corações incautos,
que passam a ser intoxicados pelos efeitos da paixão.
Mesmo que Bento (2006) não fale de cupido, ele faz referência a um tipo de
paixão-sofrimento mais contundente ainda ao sublinhar a passagem do sentido de
paixão da antiguidade grega para o período cristão, pontuando que do original dos
gregos para o latim ficará apenas o sentido de sofrimento prejudicial. Esse é o contexto
da palavra “Paixão” na expressão “Paixão de Cristo”.
Flecha envenenada dos Citas, flecha de cupido, sofrimento de Cristo, são todas
circunstâncias, reais ou fictícias, de um mal para o qual não se pode impedir o efeito,
está-se sujeito a ele. No entanto, isso não significa que paixão seja sempre maléfica.
“Razão sem paixão não é mais do que a ruína da alma”, diz Meyer (1994, p.10).
Páthos significa não só sofrimento, pontua Queiroz (1999, p.81), “mas também a
experiência que se adquire na dor e que se refere a essa condição fundamental do
homem como ser mortal”. A autora nos remete às tragédias encenadas na Grécia
Antiga onde:

tudo era montado para provocar no espectador a vivência do páthos como


experiência trágica fundamental e que, a partir dela, pudesse o homem adquirir
o conhecimento pelo sofrimento. (...) A tragédia colocava em destaque o
sentimento quando se é tocado por outrem, sentimento este inerente ao próprio
sentido da paixão – o de ser afetado – e que faz dela uma relação intersubjetiva
(QUEIROZ, 1999, p.83).

No entender de Berlinck (2002) também é possível tirar proveito de páthos à


medida que ele não é apenas considerado estado transitório, mas algo que alarga ou
enriquece o pensamento, sendo, então, transformado em experiência. Na tradição
grega da tragédia, páthos transforma-se em patologia, no sentido de haver um discurso
(logos) sobre o sofrimento, as paixões, a passividade.
23

Podemos pensar numa comparação entre a paixão e o sentido do Phármakon


platônico descrito por Derrida (1968/1997) em A farmácia de Platão, em que o segundo
é “simultaneamente, e paradoxalmente, veneno e remédio, droga maléfica e benéfica,
filtro de esquecimento e possibilidade de salvação pelo acesso ao lógos”. (apud
BENTO, 2006, p. 191). Dependendo de seu uso e de sua intensidade ela será cura ou
doença.
Berlinck (2002, p.10) dá uma ideia de como o páthos da paixão pode se
transformar num mal:

Páthos não pode ensinar nada, pelo contrário, conduz à morte se não for ouvido
por aquele que está de fora, por aquele que, na condição de espectador se
inclina sobre o paciente e escuta essa voz única se dispondo a ter, assim, junto
com o paciente, uma experiência pertencente aos dois.

A paixão, assim como o páthos, pode ser veículo de cura ou de vício.


Acreditamos que haver uma relação a Dois, com o registro da existência do outro é
essencial para um desdobramento benéfico do estado de paixão.
O páthos pressupõe a existência de um outro além de mim. No dizer de Berlinck
(2002, p.9), “um ser autárcico não teria páthos”. Somos sempre provocados pela
presença ou imagem de algo que nos leva a reagir, em geral de improviso. O páthos é
o sinal que se vive cotidianamente numa interrelação com o outro.
Pastore (2013) concorda com Berlinck quando refere que páthos é sinal de que
o outro nos impacta, e dele vivemos em constante dependência. O páthos humano
designa qualquer emoção da alma despertada pelo outro, isso faz da paixão uma
relação intersubjetiva, contrariamente ao estado de apatia.
No nosso entender nem sempre essa intersubjetividade é registrada.
Certamente o outro nos impacta e reagimos a esse desequilíbrio causado pela
percepção do outro do qual somos diferentes. Porém, esse impacto pode ter como
resultado a negação desse outro, fato que pode acontecer na paixão. Esse aspecto
será visto mais adiante para dar ênfase à ausência do reconhecimento da alteridade no
desdobramento patológico da paixão.
24

Nosso interesse no momento é apresentar visões de autores atuais que nos


permitam manter ou não a aproximação do páthos da paixão com a passividade, o
sofrimento, a patologia. Vimos que esses três elementos permanecem permeando o
páthos e também a paixão. No entanto, ainda não conseguimos derivar algo que seja
uniforme na paixão, que a caracterize.
Que somos levados por paixões, não se discute, bem como o fato delas serem
próprias aos seres humanos. Saber disso é fundamental para se compreender o
homem em sua tragicidade, porém, não diz muito sobre a paixão em si. Para entender
mais a seu respeito, precisamos saber o que é característico dela, o que lhe é
particular e sui generis e como ela funciona dentro de sua especificidade, não
perdendo de vista sua relação com o pathos. Visando nos aprofundar no assunto,
escolhemos um tipo especial de paixão 11: a paixão amorosa. Daqui para frente, ao
falarmos em paixão, estaremos nos restringindo a essa conotação que descreveremos
a seguir.

1.3. A paixão amorosa


Não há porque duvidar que o sentimento de amor e de paixão tenham sempre
existido, no entanto, uma referência escrita sobre o amor-paixão só apareceu no
Ocidente no século XII, com os poemas dos trovadores. Ele surgiu como uma das
repercussões do cristianismo e da doutrina cristã sobre o casamento, visando “educar”
as almas nas quais vivia ainda o paganismo. (ROUGEMONT, 1956).
Na Idade Média, a religião católica precisava controlar as demais crenças,
muitas delas envolvendo uma maneira liberal de vivenciar a sexualidade. Ao impor o
casamento e restringir o sexo a esse sacramento, a Igreja visou dominar o aspecto
pagão dos demais credos. Em oposição a esse controle, relata Rougemont (1956),
surgiu o amor cortês como uma forma disfarçada de vivenciar o adultério. Esse amor
“teve por função social ordenar e purificar as forças anárquicas da paixão”
(ROUGEMONT, 1956, p.216).

11
Existem vários tipos de paixão, a paixão pela bebida, a paixão pelo jogo, a paixão pelas drogas, mas nosso
objetivo nesse trabalho é a paixão amorosa.
25

Outra explicação para o surgimento do amor cortês permanece na esfera


religiosa. Diz respeito ao maniqueísmo, movimento instalado pelo profeta Manes, do
qual se originou uma das mais poderosas entre as primeiras religiões 12. Na Europa foi
chamado de catarismo, pois seus seguidores se autodenominavam cátaros,
significando “puros”. Por imposição da Igreja Católica, o catarismo foi impedido de ser
praticado e reapareceu sob a forma da poesia, rituais e cultos do amor cortês (LINS,
2007).
Uma poesia inteiramente nova, relata Lins (2007), nasceu no sul da França, a
pátria do catarismo, nessa poesia havia a celebração da Dama dos pensamentos, a
ideia platônica do princípio feminino, o culto do amor contra o casamento e a castidade.
Acredita-se que os primeiros cavaleiros e damas que vivenciaram o amor cortês eram
cátaros, dando prosseguimento às suas práticas religiosas sob o disfarce de um culto
leigo do amor.
Rougemont (1956) nos recorda que o século XII foi a época dos trovadores,
representantes por excelência do amor cortês. Eles eram poetas que cantavam versos
de amores inacessíveis e infelizes. O que caracterizava esses trovadores era um amor
impossível de um vassalo por uma dama comprometida, fadado a não concretização.
Era um amor restrito às cortes senhoriais - daí provavelmente seu nome - em oposição
ao amor praticado nas vilas.
Este amor dos tempos medievais, iniciado com a nobreza em Provença, foi a
primeira manifestação de amor como o conhecemos hoje, no formato de uma relação
pessoal. Até então o que havia era o desejo sexual e a busca de satisfação muito
diferente do apaixonar-se (LINS, 2007).
O amor cortês era um amor platônico, não tinha por fim o prazer carnal nem a
reprodução, mas o sentimento elevado exaltado em versos e prosa (Paz, 2001). Os
trovadores viviam e propagavam um amor que a Igreja católica via como heresia 13, já
que fora do casamento. Interessante notar que esse amor do início dos tempos não
deixa de trazer a marca de um primeiro amor impossível e interditado que faz parte do
início da história de cada um de nós.

12
Uma das teses do maniqueísmo era que o mundo se constituía de bem e mal absolutos, sendo o espírito bom,
mas o mundo físico mau. (LINS, 2007)
13
Os Heréticos foram uma seita grandemente perseguida pela igreja católica nesse mesmo período
26

O amor-paixão das cortes tinha impresso o caráter páthico, de sofrimento. Ao


que Rougemont (1956) acrescenta:

O amor feliz não tem história. Só existem romances de amor mortal, isto é, do
amor ameaçado e condenado pela própria vida. O que exalta o lirismo ocidental
não é o prazer dos sentidos nem a paz fecunda do casal. É menos o amor
realizado que a paixão de amor. E paixão significa sofrimento. Eis o facto
fundamental (ROUGEMONT, 1956, p.13).

Mesmo sendo sofrido, é um sentimento exaltado e admirado, o que lhe dá um


caráter paradoxal. Rougemont (1956) chama nossa atenção para o fato da paixão ser
vista como um ideal sonhado, como uma catástrofe que se deseja e não como uma
doença que se teme. A paixão seria, portanto, um sofrimento que se deseja. Há de se
pensar se não estaria aí um indício da patologia na paixão. Sabemos que nem todo
sofrimento implica em patologia, mas o desejo pelo sofrer, onde ele é um fim em si
mesmo, implica numa dinâmica pouco saudável.
É importante lembrar qual o papel que os próprios apaixonados dão ao seu
sofrimento. Algumas pessoas parecem reconhecer melhor sua paixão à medida que
mais esta lhes atormenta. Para elas a paixão é proporcional à dor. Esse aspecto é
muito bem destacado por Aulagnier (1985) ao afirmar que na paixão prevalece
rapidamente o sofrimento, seja pela rejeição do objeto, seja por um medo dessa
rejeição. Prevalece o páthos. “Não se trata mais de um ‘eu gozo, portanto eu amo’, mas
de um ‘eu sofro, portanto eu amo’. Através deste sofrimento o Eu se demonstra o
quanto é verdadeiro, indiscutível a necessidade deste prazer” (AULAGNIER, 1985,
p.155). Assim como no sentido originário debatido pelos gregos, o conceito de paixão
permanece atrelado ao de sofrer, padecer.
Uma compreensão ligeiramente além do seu sentido clássico foi feita por
Stendhal (1822). De acordo com Ribeiro (1987, p. 417) foi esse autor quem “consumou
a constituição da paixão como amor-paixão”, a partir deste, surgiu um outro sentido de
paixão: não tanto o que é afecção da alma, mas o que é genuíno, autêntico e
verdadeiro em nós; ou seja, ela não será mais o que vem de fora, mas o que de dentro
de nós se revela. Não há uma afecção da alma, mas uma afecção na alma. Não se
27

trata mais de algo externo que afeta o homem e o apassiva; a passividade até
permanece, porém vem de dentro. A determinação interna seria retomada pela
psicanálise um século mais tarde.
Stendhal (1822) tem uma interessante descrição do que se passaria no nascer
da paixão, fenômeno que ele denomina cristalização:

Observe-se o trabalho mental de um amoroso durante vinte e quatro horas, e eis


o resultado:
Nas minas de sal-gema de Salzbourg, atira-se, nas profundidades abandonadas,
um ramo de árvore desfolhado pelo inverno; dois ou três meses depois, retiram-
no coberto de cristais brilhantes. Os ramos menores, que não são mais grossos
que a perna de um melharuco, estão guarnecidos de uma infinidade de
diamantes, móveis e deslumbrantes; impossível reconhecer o ramo primitivo. O
que chamo cristalização, é a operação do espírito que, a cada circunstância,
descobre no objeto amado novas perfeições (STENDHAL, 1822, p.36).

Pode-se ver muito da idealização nesse processo, especialmente quando


pensamos no objeto como algo sem brilho próprio e sobre o qual se acrescenta um
atrativo especial que é nele depositado. Não era intenção de Stendhal discorrer sobre o
processo psíquico que levaria a esse fenômeno, até porque tal acesso ao inconsciente
ainda não existia. Stendhal, na verdade, não parecia ter intenção de qualquer tipo de
explicação, segundo seus críticos (Lousada, 1957) seu objetivo era bem mais catártico
do que propriamente científico.

1.4. A distinção entre paixão e amor


Como pudemos ver, o amor e a paixão caminham juntos, um especifica o
sentido do outro e muitas vezes se confundem. No entanto, não são idênticos.
Alberoni (1992, p.32) é um dos pensadores que nos chama a atenção para isso:
“É possível amar duas pessoas ao mesmo tempo? Sem dúvida. Amar uma e enamorar-
28

se 14 de outra? Sem dúvida. Estar enamorado de duas? Não.(...) Não é possível


enamorar-se de dois”.
Barthes (1991, p.119) também enfatiza essa diferença: “Então Zoé pode ao
mesmo tempo “amar” e “estar apaixonada”? Esses dois projetos não são considerados
diferentes, um nobre e outro mórbido?”
A paixão é arrebatadora, um raio, como dizem os franceses 15, fulminante na vida
de quem atinge. Talvez daí seu efeito mórbido. Ela é exigente no quesito exclusividade
e dedicação. Birman (1993) fala da ambiguidade entre a paixão e o amor,
considerando-os dois pólos excludentes na relação do sujeito com o outro.
Sendo egoísta, o apaixonar-se não permite investimentos outros que não o
objeto escolhido. Como diz Alberioni (1988), é tudo ou nada.

É como se conseguíssemos a cada dia tudo aquilo que na vida cotidiana é


impensável: um reino, o poder, a felicidade, a glória (...) A polaridade da vida
cotidiana está entre a tranquilidade e o desassossego; a do enamoramento,
entre o êxtase e o tormento. A vida cotidiana é um eterno purgatório. No
enamoramento só existe o paraíso ou o inferno – estamos salvos ou
condenados (ALBERONI, 1988, p.29).

Aulagnier (1985) postula que, ao passo que o amor permite diversificar e


preservar certo número de destinatários de suas demandas de prazer, embora não-
sexuais, a paixão transforma o objeto de prazer em objeto de necessidade, cuja
satisfação é vital, impedindo o sujeito de qualquer possibilidade de escolha. O amor
pressupõe que o outro seja um objeto privilegiando no registro da libido e do prazer,
prossegue a autora, e requer que esse amor não seja o destinatário exclusivo da
totalidade das demandas.
Estar com o objeto de paixão é o êxtase, estar sem ele é o insuportável. Para
um apaixonado há sempre a tensão da separação. “Na paixão nasce uma força terrível
que nos leva à fusão e nos torna insubstituíveis, únicos um para o outro. O ente amado

14
Alberoni utiliza o termo enamoramento, no entanto, apenas uma vez ele emprega a palavra paixão, no resto de
sua obra ele fala em enamoramento num sentido que nos parece o de paixão.
15
Coup de foudre
29

se converte naquele que não pode ser senão ele”. (ALBERONI, 1988, p.10) Eis o
exemplo do diálogo fictício de um apaixonado: “”Posso ir com você?” Minha pergunta é
uma prova. Se ela responder que não, quer dizer que me afasta para onde eu não
possa existir.” (op. cit., p.61).
A paixão é um estado intenso, porém transitório, até existem pessoas que vivem
apaixonadas, no entanto o que perdura é o sentimento, não os objetos, estes são
cambiáveis. O amor é mais estável, não há o fogo da paixão, talvez por isso não entre
em autocombustão. O amor está mais ligado à realidade, a paixão à fantasia.
Em Elogio ao amor, o filósofo francês Alain Bandiou (2013, p.27) frisa que o
amor trata de uma separação que pode ser percebida na simples diferença entre duas
pessoas, com suas subjetividades infinitas, “todo amor propõe uma nova experiência
de verdade sobre o que é ser dois, e não um”.
A aceitação da separação não existe na paixão, ela é da ordem do Um, é
necessário o apaixonado se sentir fusionado ao objeto para ter uma ilusória sensação
de completude. Na medida em que ele projeta seu ideal no outro, esse outro torna-se
essencial. Barthes (1991, p.35) nos ajuda a entender a questão nesse pequeno
fragmento do discurso de um apaixonado: “me projetei no outro com tal força que,
quando ele me falta, não posso me retornar, me recuperar: estou perdido para
sempre”.
A consideração das diferenças, o reconhecimento do outro, de um e outro, ao
invés de apenas um, diz respeito a uma relação que não a paixão. Fala do amor. O
amor é um sentimento mais maduro e ponderado; “nobre” como pontuou Barthes
(1991).
Lejarraga (1998) distingue duas teorizações na concepção freudiana do amor,
de acordo com dois momentos chaves no seu arcabouço conceitual: uma concepção
narcísica e outra sob o domínio de Eros. A primeira, concebida à época da primeira
tópica, diz respeito à escolha de um objeto amoroso único e insubstituível; já na
segunda tópica, sob a égide da Pulsão de Vida, Freud inclui tanto o amor entre pais e
filhos, como a amizade e laços afetivos em geral. O amor narcísico, com características
de exclusividade, seria o relativo à paixão, pontua a autora. O outro, relativo a Eros,
apresenta substituições e alteridade.
30

A autora prossegue deixando mais clara sua ideia sobre amor em termos da
metapsicologia. No amor, sob regime do ideal do eu, haveria um investimento
privilegiado no objeto amado, o que significa que o objeto ocupa um lugar especial
como fonte de prazer. Mas esse privilégio permite outros investimentos, não implicando
uma concentração desejante na figura do amado. O amor aponta para o conhecimento
do outro, percebendo sua existência como sujeito autônomo, enquanto que na paixão o
outro é só imagem especular. O amor atenua a aspiração narcísica, aceitando sua
impossibilidade radical e criando outras fontes de prazer (LEJARRAGA, 2003).
Lejarraga (2003) diferencia o amor da paixão sendo o primeiro longamente
construído. Inicia-se a desidealização do objeto amado porque esse objeto não é mais
promessa de uma felicidade plena. O fascínio perde intensidade porque o objeto
perdeu o brilho de representar o ideal sem falhas, mostrando seus limites como
garantia de plenitude. O amor é concebido, assim, como contrapartida do modelo do
apaixonamento, como uma forma abrandada de aspiração narcísica. O amor
pressupõe a mediação e o recalque, a atenuação de um prazer absoluto e mortífero.
Vejamos o que mais a psicanálise trouxe de novo à compreensão do
apaixonamento.

1.5. A paixão e a psicanálise


Verliebtheit é o termo em alemão que Freud usa para se referir à paixão
amorosa (ROCHA, 2008). Iremos nos deter na tradução desse termo de maneira mais
aprofundada no segundo capítulo, pois esta se faz necessária para o propósito de
nossa pesquisa.
Por enquanto, adiantaremos brevemente a explicação de Rocha (2008) de que
se trata de uma palavra composta pelo prefixo “ver”, pelo verbo “lieben” (amar) e pela
terminação “heit”. Rocha (2008) salienta que “ver”, enquanto prefixo, indica um desvio
ou uma perturbação. Assim, “Verliebtheit anuncia uma perturbação no modo de amar.
O apaixonado não ama do mesmo modo como normalmente os homens costumam
amar. A paixão amorosa é uma forma sui generis e toda especial de amor” (ROCHA,
2008, p.111).
31

Freud não chegou a estabelecer uma distinção explícita entre amor e paixão. Ele
falou algumas vezes sobre o amor, especialmente depois da introdução do conceito do
Narcisismo (1914) e em três artigos entre 1910 e 1917 com o subtítulo de
Contribuições à psicologia do amor, porém, nunca privilegiou o estudo desse
sentimento. Nas vezes que ele se referia ao amor era mais para enfatizar seu papel
numa determinada dinâmica do psiquismo - por exemplo: o complexo de Édipo, o
narcisismo, o processo identificatório, a idealização - do que para conceituá-lo.
Birman (1993) justifica que a paixão nunca se transformou em conceito básico
do saber psicanalítico porque ela é condição mesma de possibilidade da totalidade
desse discurso. Segundo o autor, é em torno do ser da paixão que a psicanálise se
estrutura como experiência e como saber.
O ponto de vista de Birman (1993) nos faz lembrar o conceito de desmedida e
passividade introduzido pelos gregos. A desmedida pulsional, a quota de afeto que
extrapola a capacidade psíquica de elaboração, acarreta no sofrimento do sujeito, que
levado pela angústia, busca a via da palavra no processo analítico como possibilidade
de descarga e ressignificação de seus investimentos. Lembramos mais uma vez que o
sujeito é também apassivado pelo inconsciente e pelas demandas pulsionais.
Voltando ao conceito de paixão, há um texto que podemos considerar
emblemático para a sua compreensão – o capítulo Estar amando e hipnose de
Psicologia de grupo e análise do ego (1921). Nele, Freud utiliza o termo amor 16, no
entanto o equipara à “fascinação” e “servidão”, o que nos faz pensar em algo mais
próximo à paixão amorosa do que ao amor propriamente dito. Neste trabalho, ele
explica que o objeto de amor é colocado no lugar do Ideal do Ego do sujeito. O ego
“empobreceu-se, entregou-se ao objeto, substituiu o seu constituinte mais importante
pelo objeto” (FREUD, 1921, p.144). Idealização, apagamento das diferenças, ausência
de separação, enfim, tentativa de retorno ao estado narcísico primário são os
elementos invocados por Freud quando fala da paixão.
A paixão é uma forma de amor que exige exclusividade, fusão e controle.

16
Rocha considera “paixão amorosa” a melhor tradução para o termo alemão empregado por Freud, Verliebtheit.
(informação provinda de email pessoal enviado em maio de dois mil e dezesseis).
32

Como substituto do Ego Ideal, o objeto da paixão amorosa é um objeto


sumamente idealizado. Em última análise. ele poderia ser identificado ao objeto
perdido da experiência de satisfação originária, que, ilusoriamente, era suposto
poder satisfazer o desejo, da mesma maneira como a necessidade biológica
pode e deve ser satisfeita para que a vida se torne possível. Diante da
idealização do objeto da paixão amorosa, o desejo transforma-se em verdadeira
necessidade (ROCHA, 2008, p.114).

Rocha (2008) explica que o apaixonado projeta sobre o objeto de sua paixão as
idealizações narcísicas de sua infância e tem a ilusão de que ele contém tudo o que lhe
falta, por isso pode preencher seu vazio, que é constituinte de nossa existência e
impossível de ser eliminado. A ilusão da completude narcísica alimenta a paixão.
Para Baranger (1994) o apaixonamento implica uma participação considerável
da libido narcisista que foi depositada no objeto como condição de sua gratificação,
para isso, o amor do objeto em relação ao sujeito se torna imprescindível para o
narcisismo deste.
Bauman (2004, p.33) escreve que “no brilho ofuscante da pessoa escolhida,
minha própria incandescência encontra seu reflexo resplandecente. Ele aumenta,
confirma e endossa a minha glória, levando consigo, aonde quer que vá, notícias e
provas dela”.
Podemos perceber o valor narcísico que é depositado na pessoa eleita. Porém,
por ser um atributo ligado ao narcisismo de quem se apaixona, é provável que a
pessoa investida pela paixão não seja vista como um ser com vida própria, ela é um
receptáculo de uma perfeição. Perfeição esta que só tem chances de se sustentar por
meio da ilusão e, também, por meio da “desumanização” do outro, da negação da sua
porção subjetiva, para assim, mais ainda, recusar a admitir-lhe a falta. Afinal, ser
faltoso é inerente ao humano.
A tentativa de fusão com o objeto demonstra o quão pouco ele é visto como
sujeito, mas meramente como um reservatório de ilusões infantis, uma coisa que ele
pode carregar para onde e quando for, como se refere Bauman (2004).
Na concepção de Haddad (2011) quando o amor bate à porta sem avisar e sua
presença se impõe prescindindo de definições prévias, está-se diante da paixão, que,
33

para ela, é o auge do sentimento de amor. A experiência da paixão é a de um amor


ideal: pomos o eleito no lugar do nosso próprio eu idealizado e não podemos mais
distingui-lo de nós mesmos, a fronteira entre um e outro ameaça desaparecer.
Os apaixonados, contra todas as evidências, sentem-se formando uma só
pessoa, apagam-se as diferenças e tem-se a sensação de nada faltar, numa captura
narcísica inconsciente. Não só temos a convicção de que o outro pode sanar a nossa
falta, como também a de que nós temos aquilo que lhe falta.
O mito do andrógino que Platão relata na voz de Aristófanes 17 ilustra bem o que
se passa no imaginário do apaixonado: a partir do momento que ele encontra “sua
outra metade” ele forma um todo indivisível com o objeto, tornando-se uma única
pessoa, onde as separações e diferenças são eliminadas. Evita-se o reconhecimento
do hiato entre eu e o outro que faz com que eu me lembre da minha incompletude e
reviva o caminho da frustração diante da insuficiência. A perda da ilusão narcísica pode
ser irreparável para egos fragilizados.
Quando Lacan escreve “amar é dar aquilo que não se tem” instaura o amor no
campo da falta (LACAN, 1960-61/1992). Castelo Branco (2014), referindo-se a esta
frase de Lacan acrescenta que o amor transforma aquele que ama em alguém que
direciona sua falta ao Outro, isto é, o amante projeta, sobre o outro (amado), sua falta.
Nota-se que o autor fala em projetar uma falta e não aquela perfeição ilusória invocada
pelo ego ideal na paixão.
Castelo Branco (2014, p.88) prossegue sobre a afirmativa lacaniana refletindo
que
a relação amorosa transmite uma incompletude que é colmatada pela promessa
de união que o próprio amor oferece. Amar é oferecer em exposição à falta que
o marca, é dar uma ausência que pede, ou melhor, demanda... demanda que é
sempre, por definição, demanda de amor.

É preciso o sujeito reconhecer-se como ser incompleto, castrado, para assim


buscar na outra pessoa um ser em si, não algo que funcione como artifício para
escamotear a castração, como um depositário de projeções ideais, um substituto do

17
Em O Banquete
34

narcisismo perdido da infância. O reconhecimento da castração exige maturidade


psíquica, pressupõe ter-se aberto mão de satisfações imediatas, em prol da realidade.
Bauman (2004, p.17) tem uma afirmação que soa mais como uma advertência
do que uma simples observação, ele diz que “chegado o momento, o amor e a morte
atacarão – mas não se tem a mínima ideia de quando isso acontecerá. Quando
acontecer, vai pegar você desprevenido”. Pensamos que ele está se referindo a duas
analogias possíveis entre amor e morte. Uma delas é a morte de Narciso, cujo amor é
tão autorreferente que o mata para o mundo de investimentos outros até levar à morte
completa; a outra vai na direção oposta, onde a morte em questão é a da esperança de
uma plenitude narcísica – porém, inatingível – e a aceitação da carência de um outro;
com a morte da ilusão, nasce a possibilidade de amor “real” e “realizável”.
O amor se relaciona ao objeto e a paixão ao ego, distingue Growald (1997),
mesmo que ambos inscrevam-se na esfera do prazer. A paixão seria um sentimento
quase que regido exclusivamente pelo princípio do prazer, numa manifestação
patológica de intolerância à realidade, ao passo que no amor, ao admitir o objeto, se
faria presente o princípio da realidade.
O amor é a vontade de cuidar e de preservar o objeto amado, “amar diz respeito
a auto sobrevivência através da alteridade” (BAUMAN, 2004, p.24). O amor requer
reconhecer a alteridade, reconhecer que existe outro, igualmente faltoso cujas
imperfeições sobreviverão às frustrações pertinentes à qualquer relação. “O objeto
nasce do ódio” revela Freud (1915), esse ódio remete ao reconhecimento do sujeito de
que ele não é autossuficiente e, portanto precisa de outros que satisfaçam suas
necessidades, e, mais ainda, realizem seus desejos. Amar é reconhecer a falta, a
paixão envolve negá-la.
É difícil manter a negação indefinidamente, também o é manter a paixão, “na
paixão amorosa, nunca se chega ao lugar sonhado e, quando se pensa que se chega,
a experiência termina.” (Rocha, 2008, p.114). Possivelmente por isso Rougemont
(1956, p.249) afirme que “a paixão e o casamento são, por essência, incompatíveis”.
Ao ser regrada, controlada, realizada 18, a paixão se perde e termina. Ela está mais
para “um eterno buscar” do que “um dia encontrar”.

18
Estamos aqui fazendo prevalecer a imposição da realidade, mais que da realização.
35

Encontro é de Dois, paixão é de Um. A paixão fala da infantilidade do ser. Não


podemos nos esquecer de que o primeiro objeto de amor-paixão 19 investido pela
criança é um objeto perdido, eternamente buscado e para sempre inalcançável. É o
amor cortês que todos trazemos em nós enquanto pequeninos trovadores.
Ao apresentarmos a visão de diversos autores, percebemos que eles não
deixam clara a distinção entre amor, paixão, e outras denominações afins. Aulagnier
(1985) utiliza o termo amor mesmo quando privilegia o sofrimento; Rougemont (1956)
fala em amor de paixão, o que deixa dúvida se ele está falando do amor ou da paixão;
Alberoni (1988) denomina enamoramento ao se referir ao “tudo ou nada”, que Rocha
(2008) também aborda, porém, discorrendo sobre a paixão amorosa; Haddad (2011)
diz que paixão é o amor que veio sem avisar, usando ambos como sinônimos; já Freud
(1921) usa a palavra amor 20, mas fala de fascinação e servidão, o que aponta na
direção da paixão.
No nosso entender, paixão não é o auge do amor, como pretende Haddad
(2011), a primeira não é o excesso do segundo, trata-se de dinâmicas particulares. Não
pensamos que ela seja necessariamente o primeiro passo para o amor, como diz
Alberoni (1988) ao se referir ao estado nascente. A paixão, acreditamos, tem um ciclo
único que traz intrínseco uma impossibilidade e um fim necessário.
Mesmo que o amor venha após um período de apaixonamento, não significa que
ele tenha vindo na progressão da paixão, como se fossem dois extremos de um
continuum. Amor não é consequência de paixão, ao menos, não no sentido de causa e
efeito.
Pode ocorrer da paixão dar lugar ao amor, mas não acreditamos que isso se dê
por uma mudança quantitativa, mas qualitativa, como salienta Aulagnier (1985). Ambos
têm características próprias e diferentes. Nesse ponto, concordamos parcialmente com
Alberoni (1988), mudando ligeiramente sua conclusão: quando tudo corre bem, da
paixão nasce o amor 21.
Compartilhamos da ideia de cristalização de Stendhal (1822), porém aplicável à
paixão, cuja distância do real é maior e o peso da idealização é decisivo. Por isso

19
Amor libidinal, além do amor ternura.
20
Ao menos na sua tradução para o português da Standard Edition
21
A frase original é: “Quando tudo corre bem, o enamorar-se termina no amor” (ALBERONI, 1988, p.37).
36

endossamos a posição de Bandiou (2013) que defende que o amor trata das
diferenças, é da ordem do Dois; como salientou Lacan (1960-61, 1992) é um dar o que
não se tem, é dar o reconhecimento da própria falta, é poder aceitar as diferenças, e
ser capaz de se relacionar de forma psiquicamente amadurecida.
A paixão fala do infantil, ela está atrelada à ilusão do narcisismo primário, como
bem explicam Freud (1914, 1921) e Rocha (2008). Por isso também concordamos com
Bauman (2004) ao ressaltar que no amor há a alteridade, na paixão essa é negada,
configurando uma característica peculiar a ela.
Não há como fugir do fim da paixão, inclusive, é preciso que ela chegue ao fim
para que a pessoa não fique refém de uma fantasia, é necessário o luto da ilusão
narcisicamente investida para no seu lugar poder ser colocado um verdadeiro e real
objeto, que em alguns casos, será nada menos que o antigo objeto sob um novo olhar.
Colocadas as posições de alguns autores, continua a pergunta: como entender
melhor a paixão? O que lhe é específico? O sofrimento? À medida que paixão deriva
do mesmo radical que patologia, podemos supor que sempre haja algo de doentio na
sua essência 22? Faz sentido se falar em paixão patológica ou é mera redundância? Em
havendo uma diferença, o que distinguiria a paixão patológica da paixão não
patológica? Mais ainda: o que é patológico e o que é normal?

1.6. Patologia em Psicanálise


A noção de normalidade é cada vez mais difícil de definir, afirma Lemaire (1986),
em grande parte por causa dos diferentes conceitos que orientam as investigações em
psicopatologia e que trazem constantemente formas inovadoras que favorecem a
descoberta de novas perturbações. Antigamente, reflete o psicanalista francês, a
psiquiatria tradicional lidava com quadros já definidos, pois se deparava com a
evolução terminal da doença mental ou com sua cronicidade. Não havia chance de
observar as etapas iniciais da patologia, menos ainda de modificá-las.
O autor destaca que o uso de mecanismos psíquicos arcaicos não responde
pela patologia do sujeito. O que ele destaca para caracterizar a patologia é a

22
Nesse caso estamos nos detendo especialmente no caráter de doença atribuído à palavra páthos.
37

impossibilidade da pessoa funcionar de outros modos que não apenas aquele mais
regredido.
No que diz respeito a esse tema, Bergeret (1988) define que o verdadeiro
“sadio” é um sujeito que tem tantos conflitos quanto qualquer outra pessoa, mas não
encontrou dificuldades internas ou externas superiores à sua capacidade de defesa ou
adaptação; um sujeito cujas pulsões têm flexibilidade, bem como seus processos
primários e secundários; que leve em consideração a realidade e possa ter um
comportamento aparentemente aberrante em circunstâncias excepcionalmente
“anormais”.
O autor tem parâmetros amplos, mas percebe-se a ideia de que o conflito é
inerente a todos, e que a maneira que se irá lidar com ele caracterizará uma atitude
mais saudável ou não. Também nos chama a atenção o caráter de flexibilidade
pulsional na sua definição, bem como, ou consequentemente, a permutação adequada
dos processos psíquicos primários e secundários e, finalmente, o papel da aceitação
da realidade.
No seu livro, Bergeret discorre sobre a patologia nas diversas estruturas
psíquicas. Entendemos que a paixão não tem uma estrutura psíquica própria, ela tem
formas de investimentos e defesas particulares nas quais entra em jogo a capacidade
de flexibilidade da pulsão e o intercâmbio de objetos.
Tal flexibilidade necessária para o equilíbrio na economia psíquica é o aspecto
preponderante no que caracteriza a descompensação para Bergeret (1988, nota de
rodapé, p.42): “A “descompensação” corresponde, para mim, à ruptura do equilíbrio
original que pôde se estabelecer em tal arranjo particular, no seio de uma estrutura
estável de base, entre investimentos narcísicos e objetais”.
De acordo com Aulagnier (1985), a neurose se separa da normalidade não em
função do potencial para o conflito, mas pela intensidade ou eventual cronicidade do
mesmo.
O equilíbrio como característica da normalidade já era destacado desde a
antiguidade, Canguilhem (2009/1966) pontua que na medicina hipocrática, era
justamente a perturbação do equilíbrio natural ao homem que caracterizaria a doença.
38

Comte (1828 23, apud CANGUILHEM, 2009/1966) compactuava com essa noção
de Hipócrates. O pai do positivismo transformou em axioma geral a concepção
nosológica de Broussais (1822-1823 24) a qual afirmava que todas as doenças
consistiam, basicamente, "no excesso ou falta de excitação dos diversos tecidos abaixo
ou acima do grau que constitui o estado normal" (Broussais, 1822-1823, apud
CANGUILHEM, 2009/1966, p.17). Para ele as doenças eram o efeito de mudanças de
intensidade na ação dos estimulantes indispensáveis à conservação da saúde.
Canguilhem (2009/1966, p.20) demonstra como as palavras empregadas por
Broussais e Comte evidenciam seu caráter qualitativo e normativo, tais como
deteriorar, alterar, etc. Segundo Canguilhem:

É em relação a uma medida considerada válida e desejável – e, portanto, em


relação a uma norma – que há excesso ou falta. Definir o anormal por meio do
que é de mais ou de menos é reconhecer o caráter normativo do estado dito
normal. Esse estado normal ou fisiológico deixa de ser apenas uma disposição
detectável e explicável como um fato, para ser a manifestação do apego a algum
valor.

O autor enfatiza o aspecto normativo para determinar o que seria patológico,


dando ao mesmo um estatuto valorativo, comparando o estado do paciente com o que
se esperava que fosse o normal.
Ele vai defender a tese de que a norma é, antes de tudo, uma norma individual;
e o normal, um julgamento de valor, não de realidade. “Em última análise, são os
doentes que geralmente julgam – de pontos de vista muito variados – se não são mais
normais ou se voltaram a sê-lo” (CANGUILHEM, 2009/1966 p.45).
Nota-se uma proximidade entre as posições de singularidade para Canguilhem e
Freud. Há também um ponto de conexão entre as visões de Comte e Broussais e
aquela adotada por Freud desde o início da Psicanálise referente à homeostase

23
COMTE, A. Examen du Traité de Broussais sur l'irritation, 1828, apêndice ao Système de
politique positive (cf. 28), t. IV, p. 216.
24
BROUSSAIS, F.-J.-V. Traité de physiologie appliquée à la pathologie, v.2, Paris: Mlle
Delaunay, 1822-1823.
39

psíquica. Sabemos o quanto eles seguiam princípios distintos e percorreram trajetórias


diversas, mas não podemos deixar de notar como a vontade de Freud em transformar
sua criação numa ciência da Natureza o fez ser influenciado por noções positivistas.
Entretanto, Freud foi se distanciando do positivismo que marcou seus primeiros
escritos, ao enfatizar a singularidade de cada um. Mesmo a ideia de homeostase
freudiana se refere a uma homeostase única para cada sujeito, sendo impossível
qualquer tentativa de padronizar uma mensuração, como proposto pelo saber
positivista.
Rodrigues Silva (2012) chama a atenção para esse aspecto particular do
conceito homeostático em Freud ao enfatizar que na teoria freudiana a homeostase se
refere a um equilíbrio único e peculiar a cada sujeito, sendo impossível qualquer
tentativa de padronizar uma mensuração, como propôs o saber positivista.
O equilíbrio do aparelho anímico sempre foi um conceito caro a Freud. Mesmo
que as forças envolvidas no conflito tenham mudado ao longo de sua teorização,
manteve-se a ideia de dualidade pulsional e a necessidade de haver uma homeostase
no aparelho psíquico, já que o aumento de tensão acarretaria o desprazer e,
posteriormente, de acordo com sua última tópica, a desfusão da pulsão de morte
poderia levar à morte psíquica e mesmo física.
Quanto à noção do que seria necessário para ser considerado psicopatológico,
Freud nunca dedicou nenhum artigo específico ao assunto, mas deu indícios do que
pensava em alguns trechos de sua obra.
No início, na Comunicação Preliminar (1893), ele define que a patologia se dá
quando há um desequilíbrio na economia psíquica, quando uma quota de excitação
não é adequadamente descarregada, gerando seu acúmulo. Daí surge o conceito de
ab-reação e seu efeito catártico. Atingir a homeostase era a tarefa do aparelho anímico
para não incorrer numa neurose. Não podemos deixar de pensar no sentido de
excesso e desmedida da hybris para os gregos, na desmedida que leva ao páthos.
Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905, p.156), ao falar das
perversões, ele esclarece que a condição geral para as variações do instinto sexual se
transformem numa “aberração patológica” é que a perversão tenha características de
40

exclusividade e fixação, e que tenha apenas um único objeto de investimento. Aqui já


vemos o acréscimo da fixidez e ausência de maleabilidade.
Em outro momento (Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, 1917, p.419),
ele destaca que os sintomas da doença psíquica são “atos, prejudiciais, ou, pelo menos
inúteis à vida da pessoa, que por vezes, deles se queixa como sendo indesejados ou
causadores de desprazer ou sofrimento”.
Podemos dizer que as características enfatizadas por Freud para enfocar a
patologia seria o desequilíbrio do aparelho psíquico, a rigidez, a fixação, o sofrimento.
Chiland (1990) inicia a abordagem ao tema da normalidade em psicanálise
ressaltando que todas as reflexões sobre o assunto têm um caráter de aporia, nos
mostrando com isso a dificuldade de solução para essa questão. Mesmo com toda
dificuldade, explica a autora, tal necessidade de definir a normalidade ou a patologia se
faz constantemente presente na prática clínica à medida que o analista precise decidir
se deve começar, não começar ou encerrar um tratamento.
Ela menciona a visão de normalidade para os psicanalistas americanos que a
atrelam a uma escala de valores que passam pelo conformismo social, situação a qual
ela chama de “pecado capital” para os analistas franceses. Se a análise adapta alguma
coisa, segundo a autora, “não seria nada além do que o sujeito a si próprio” 25
(CHILAND, 1990, p. 24), uma vez que ela se propõe a liberar as forças recalcadas do
sujeito e não encerrá-las numa camisa de força de normas sociais.
A normalidade, prossegue a autora, se apresenta num duplo sentido: como
constatação de características mais frequentemente encontradas e como proposição
de um ideal sempre perseguido, jamais atingido.
Chiland (1990) comenta sobre a proposição de Canguilhem ([1943], 2009),
dizendo que o psicanalista poderia dela se sentir eximido, uma vez que tal proposição
concerne à consciência e não ao inconsciente. Mesmo assim, ela não se exime. Ela diz
que o que Canguilhem ([1943], 2009) considera normatividade corresponde a algo que
está no cerne da psicanálise: o sujeito é um criador de normas. Ele é normal desde que
seja normativo, que possa instaurar novas normas de funcionamento para fazer frente
às mudanças internas e externas.

25
Tradução livre
41

“Ele está doente, patológico (ele sofre) quando ele é limitado a um só regime ou
registro de funcionamento, além daquele que o colocou em perigo, não dispondo de
outra coisa que não ‘uma reação catastrófica’” (CHILAND, 1990, p. 24). Para
Canguilhem ([1943], 2009), frisa a autora, a normatividade é uma sensação que
apenas o sujeito, e não o observador, pode ter. É o sujeito que se queixa de estar
doente ou de não estar normal. Ou seja, é uma questão primordialmente subjetiva.
Parece-nos que Chiland (1990) está se referindo aos neuróticos, uma vez que
os psicóticos ou mesmo perversos e psicopatas não têm essa visão deles próprios
como doentes, mesmo assim neles está presente uma patologia.
Chiland (1990), então, remete a questão da normalidade para o campo
psicanalítico: o que se pode considerar normal nesse contexto? Ela questiona como se
pode dizer que uma sexualidade é normal. Do ponto de vista de quem? A partir desse
prisma introduz a ideia de que o sujeito parece encarnar a normalidade dentro de um
movimento de idealização ou de identificação projetiva, onde somente as partes boas
do sujeito são projetadas.
Ao invés de se ater a critérios de normalidade, a pergunta que o analista deve se
fazer é se “com a técnica psicanalítica, ele pode ou não permitir ao paciente ser mais
satisfeito com ele mesmo, e de manter as relações mais satisfatórias, se livrando da
imposição de seus fantasmas, e do domínio imaginário ou real de outros” (CHILAND,
1990, p. 27).
A autora ressalta que Freud não quis opor o normal ao patológico, se recusando
a aceitar a existência de uma normalidade total. Para ele não havia diferença
qualitativa, mas quantitativa entre ambos.
Ferenczi (1910/1991) também pontuava que não existe uma diferença
fundamental entre a “normalidade” e a patologia para a doutrina psicanalítica, que as
neuroses não possuem um conteúdo psíquico característico, exclusivo e específico. O
autor defende que as doenças dos neuróticos são provocadas pelos mesmos
complexos com que todos nos defrontamos. O diferencial para a patologia situa-se no
plano quantitativo e prático, no quanto de energia se desperdiça na manutenção de
determinado sintoma.
42

Leriche (1936), mesmo sendo no campo da medicina, trouxe uma ideia que nos
parece sintetizar o que a psicanálise pensava como o patológico: a "doença é aquilo
que perturba os homens no exercício normal de sua vida e em suas ocupações e,
sobretudo, aquilo que os faz sofrer" (apud CANGUILHEM, 2009/1966, p.36).

1.7. O pathológico da paixão


Voltamos ao sofrimento da paixão. A paixão faz sofrer e é seu aspecto “sofrido”
o que mais a caracteriza até o presente momento. Mesmo na paixão correspondida há
o sofrimento, nos breves momentos que sejam, quando os apaixonados se separam.
Cada despedida é um tormento a ser adiado, ou, ao menos, driblado da melhor forma
possível. A iminência da separação é um temor que acompanha todo sentimento
passional.
Gori (2004) pontua que o apaixonado tenta sempre precaver-se de um
abandono, que já tendo ocorrido, inscreveu-se nele. Isso nos faz pensar que se todo
encontro com o objeto é na verdade um reencontro, então, todo sentimento pela perda
do objeto é, de fato um ressentimento. Sofre-se pela separação do objeto atual, mas,
mais ainda, pelo objeto do passado cujo reencontro é revivido a cada nova relação.
Sofre-se, portanto, pela dor original diante do abandono que nunca foi suficientemente
elaborado.
O sofrimento da paixão, escreve Gori (2006, p.126), reclama incessantemente a
realização de uma promessa, embora delirante, da “presença absoluta”. Para o autor, o
apaixonado se desdobra na busca do sentimento de continuidade com o ser amado. A
paixão é sofrimento pois coloca o ser numa procura de um impossível, aquele da
“presença absoluta”.
Conforme foi visto, o sofrimento, assim como o excesso, são indicativos de
patologia desde Hipócrates, passando por Comte e chegando a Freud. Ambos estão
presentes na paixão. Ela em si é desmedida, hybris. Um estado pathológico, se visto
desta perspectiva. No entanto, também pode ser entendida num outro contexto de
páthos, aquele que “traz consigo possibilidades e problemas mais amplos que o
sentido de doença” (MARTINS, 2000, p.66), o páthos passional.
43

Remetendo à distinção feita por Lebrun (1987) a paixão é sempre passional,


mas nem sempre patológica. Ela passa a ser patológica quando, além de comprometer
a plasticidade da pulsão e ser da ordem da desmesura, ela traz um sofrimento do qual
o sujeito não consegue se livrar, como pontuou Freud ao definir a patologia. Esse é o
caso quando a paixão deixa de trazer prazer para ser primordialmente fonte de
desprazer, ou impede outras formas de investimentos saudáveis, impossibilitando
novas ligações libidinais levando a um estado de morte psíquica
Prejuízo de maleabilidade pulsional, desmedida, quebra do equilíbrio psíquico,
prevalência de Tânatos sobre Eros, sofrimento maior que o prazer, fixação, quebra
significativa com a realidade são alguns critérios utilizados pela psicanálise para
designar a patologia, todos eles presentes na paixão.
Podemos imaginar a paixão como o “Phármakon” platônico, “uma “não-
substância farmacêutica” paradoxal, ao mesmo tempo veneno e remédio” (Derrida,
apud BENTO, 2006, p. 192). Pode-se usar a paixão para ampliar horizontes, para
entrar mais em contato consigo mesmo, ou então, pelo contrário, é possível que ela se
restrinja a sofrimento e dor sem uma saída criativa. Morte ou vida, veneno ou remédio.
Martins (2000, p.75) nos lembra que “tudo o que possa ser descrito como sendo
páthos pertence ao ser humano, sendo o adoecer uma das possibilidades de destino
possível desse mesmo Ser”. A patologia é um dos destinos da paixão.
Não é porque a paixão traga inerente a desmedida que ela não possa ter uma
normalidade. Ou melhor dizendo, a paixão é normalmente “anormal”, ela tem suas
normas, mesmo que o excesso seja o ponto de partida. Paixão nem sempre será uma
doença. Paixão não é o mesmo que paixão patológica, mesmo que ambas
compartilhem dinâmicas semelhantes. Há uma patologia quando ela vai cronicamente
para além do prazer e quando o sujeito não consegue dela se livrar apesar dos
prejuízos que lhe traz. Ele às vezes sequer acha necessário esse tipo de liberdade.
Algo parecido com o que Bento (2007) entende como

“paixão amorosa tóxica”, proposta enquanto tradução portuguesa da expressão


francesa: passion amoureuse, acrescida do adjetivo “tóxica”, e que remeterá à
dependência específica existente no investimento afetivo de uma pessoa
44

enamorada por outra, com obsessão, excesso e exclusividade (BENTO, 2007,


p.92, o itálico é nosso).

A priori podemos deduzir que quando ela é um estado transitório, uma loucura
passageira, como dizem os poetas, ela é natural, saudável, corriqueira, passional;
quando ela estanca, não deixa espaço para o luto da desilusão, vindo a se tornar uma
obsessão, há de se pensar numa patologia. Quando o descompasso entre investimento
narcísico e objetal, como escreveu de Bergeret, torna-se permanente, há grande indício
de uma relação patológica.
Rocha nos traz uma ideia inteiramente nova que nos faz questionar ainda mais a
paixão (informação verbal) 26. Ele relembra que Freud dizia haver algo de patológico no
Inconsciente, exemplificando com o caso do sonho, sendo este, uma psicose
passageira e a psicose um sonho que não se acaba. Rocha questiona se o mesmo não
se passa com a paixão, se assim como o sonho, que é um fenômeno da vida normal,
mas tem seu aspecto doentio, a paixão também não tenha algo em si que
“naturalmente” a torna fixa como patologia em nossa vida psíquica e cotidiana
(Informação verbal). 27
Pensamos que talvez possa ser seu aspecto mais regredido, tão primitivo que
tem menos chance de ser elaborado, e acaba por criar uma hipercatexia (desmedida)
difícil de ser descarregada, originando sempre um ponto de fixação. É possível que
esteja aí a “normal anormalidade” da paixão, tendo não só o excesso, a hybris, mas
também a fixação como seu ponto de partida. Nesse caso ela seria sempre uma
doença que se instala desde sua instauração e que alguns conseguem se “curar”
outros não.
Freud (1932, p. 98) pontifica que “o id significa as paixões indomadas”. Nessa
falta de domínio pode recair o patológico, naquilo que sempre virá como um excesso,
que nos tirará do nosso eixo, nos levando a funcionar de um modo mais primário,
alheio o máximo possível à realidade.

26
Comentário feito por Rocha, Z. na banca prévia realizada em Recife em vinte e dois de fevereiro de dois mil e
dezesseis.
27
Comentário feito por Rocha, Z. na banca prévia realizada em Recife em vinte e dois de fevereiro de dois mil e
dezesseis.
45

A paixão sempre parte de uma desmedida, uma fixação, uma certeza de


frustração, ela tem seu início no próprio páthos. Assim como falamos de amor
patológico, podemos falar de paixão patológica quando há um aprisionamento nesse
estado “naturalmente anormal” que lhe é peculiar. Amor patológico não é paixão,
ambos têm dinâmicas próprias e não se reduzem ao aspecto econômico do aparelho
psíquico. Mas ambos podem ter como fim o adoecimento.
Lemaire (1986) deixa claro que a cisão do objeto e sua idealização – tão
importantes no momento da instauração do laço amoroso – não são patológicas em si,
mas, ao contrário, se torna patológico quando há a impossibilidade de recorrer, mais
adiante a outros tipos de funcionamento. O que parece patológico para esse autor é a
incapacidade de se ter acesso a uma relação ambivalente. Ao outro é negada uma
parte desfavorável, para ficar apenas com a parte agradável do sujeito e assim garantir
apenas gratificação de sua parte.
Concordamos com Aulagnier (1985, p.154) ao afirmar que “a paixão não tem o
sentido de excesso de amor, posto que não se refere a uma diferença quantitativa, mas
sim qualitativa”. É uma relação diferente não apenas na ordem da economia psíquica,
mas na forma do investimento libidinal como um todo, inclusive em seu aspecto
topográfico e dinâmico.
Pelo que foi visto na literatura até aqui, começamos a pensar em três 28 tipos de
paixão levando em consideração o reconhecimento da alteridade, a maleabilidade
pulsional, a flexibilidade de investimento:
- paixão enamoramento – aquela que antecede o surgimento do amor
- paixão arrebatamento – aquela que entra em combustão e se consome,
terminando em separação.
- paixão patológica – aquela com características mais marcantemente
compulsivas e onde prevalece a fixidez e o sofrimento.

28
Andrade Lima Filho levanta a pertinente questão da paixão ser tão paradoxal que tenha algo de inapreensível e,
consequentemente, inominável (Informação verbal – comentário feito na banca prévia realizada em Recife em
vinte e dois de fevereiro de dois mil e dezesseis). Esse ponto de vista nos parece muito apropriado, mas não nos
debruçaremos sobre ele, uma vez que estamos buscando palavras e conceitos para nos aproximarmos da paixão. A
ideia dela como um paradoxo inapreensível não será descartada por parecer improvável, apenas nos desviaremos
dela para termos mais esperança para a caminhada.
46

Essas primeiras considerações serão objeto de estudo mais detalhado nos


próximos capítulos. O papel das instâncias ideais; os investimentos da pulsão: libidinais
e tanáticos, objetais e narcísicos; o reconhecimento da alteridade, a fixidez, dentre
outros conceitos serão aprofundados a seguir para nos ajudar a entender as
peculiaridades do apaixonamento.
47

2. OS IDEAIS DA PAIXÃO

Vimos no capítulo anterior o significado da palavra paixão a partir de sua


etimologia na Grécia Clássica e seu sentido nos dias atuais. Demarcamos nosso foco
de estudo na esfera da paixão amorosa, estabelecendo uma distinção entre paixão e
amor. Privilegiamos sua concepção para a psicanálise, que será a abordagem utilizada
para pesquisar a paixão amorosa.
Neste capítulo, iremos sublinhar o papel das instâncias ideais no
apaixonamento, fazendo uma diferenciação entre o Ego Ideal e o Ideal do Ego.
Iniciaremos com uma pesquisa da tradução da palavra alemã Verliebtheit (paixão), uma
vez que foi o termo utilizado por Freud ao tratar da função do ideal na paixão.

2.1. Verliebtheit (paixão)


Freud utiliza o termo alemão Verliebtheit para falar do estado amoroso. Na
edição das suas obras em português foi escolhida a palavra amor para traduzir o termo
original. Alguns autores como Birman (1993), Lejarraga (1998), Haddad (2011) e Rocha
(2008) usam a palavra paixão quando se referem à Verliebtheit.
Rocha (2008) explica porque prefere o termo “paixão amorosa”:

na língua germânica o prefixo ver indica um desvio, uma perturbação, lieben


significa amar e heit é um sufixo próprio dos substantivos femininos, assim esse
termo anuncia uma perturbação no modo de amar. O apaixonado não ama do
mesmo modo como normalmente os homens costumam amar (ROCHA, 2008,
pg.111).

Pesquisamos a tradução da palavra em textos chaves onde Freud tratou da


metapsicologia do estado amoroso para compreendermos melhor qual era a ideia por
trás do termo.
A versão pesquisada em português foi, essencialmente, a Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (ESB) da Imago, mas
recorremos a outra edição para o texto sobre o estar amando e sua relação com a
hipnose, tendo em vista haver discrepâncias maiores na tradução desse artigo.
48

A escolha da ESB se deveu ao fato desta ser a primeira edição feita no nosso
idioma e a única, até o presente momento, que traduziu todos os volumes da obra. Os
textos em alemão usados para comparação foram versões digitais da Gesammelte
Werke.
Como frisamos no capítulo anterior, Freud não se debruçou especificamente
sobre o estudo da paixão ou do amor. Há, porém, um capítulo de Psicologia de grupo e
análise do ego (1921), intitulado Estar amando e hipnose, que ele examina mais
profundamente a dinâmica envolvida no amor visando entender os fenômenos grupais.
Neste texto, ele infere que quando estamos amando, tratamos a pessoa escolhida da
mesma maneira como tratamos nosso próprio ego, ou seja, uma quantidade
considerável de libido narcísica transborda para o objeto.
Na versão brasileira, a passagem acima emprega estar amando para traduzir o
termo original Verliebtheit 29, porém, notamos que o equipara à fascinação e servidão,
algo que se mostra bem mais próximo à paixão que ao amor.
No decorrer do artigo a palavra alemã é sempre traduzida por estar amando; ao
passo que quando a palavra Liebe é usada, sua tradução se dá para amor. Em um
único momento, que fala do amor adolescente, é utilizado o termo paixão sentimental,
no entanto, no original não se encontra a palavra Verliebtheit, mas schwärmerischen
Liebe, que, segundo o dicionário Michaelis (2009) significa amor entusiasmado e de
acordo com o dicionário Langenscheidt (2015), amor entusiástico.
Interessante notar que quando encontramos a palavra paixão em nossa
tradução (no contexto de paixão adolescente), o próprio Freud escolhera outro
substantivo, o schwärmerischen Liebe que frisa o arroubo e entusiasmo do amor. Nas
demais passagens do artigo, onde havia Verliebtheit, os tradutores escolheram a
locução verbal estar amando e onde havia Liebe, deixaram a palavra amor. Não houve
um cuidado maior na tradução com a distinção dos termos relativos ao sentimento
amoroso: Liebe (amor) e Verliebtheit (paixão).
Estar amando e amor são similares no que tange o sentimento que pretendem
expressar, e o emprego de ambos indistintamente não deixa clara a diferença que

29
Na tradução do texto de 1921 realizada por Paulo César de Souza, editada pela Companhia das Letras, SP, 2011 o
termo para Verliebtheit é enamoramento.
49

Freud parecia querer dar ao usar dois termos diversos: Verliebtheit (paixão) e Liebe
(amor). No texto, a diferença está mais na classe gramatical e no tempo verbal - o
gerúndio “estar amando”, o infinitivo “amar” – do que nos vocábulos em si.
Pensamos que seria mais adequado o uso da palavra paixão no lugar de estar
amando, tendo em vista as explicações de Rocha (2008) sobre a etimologia da palavra
descrita no início desse capítulo e também ao contexto em que ela estava sendo
empregada no artigo.
Temos uma hipótese sobre o porquê da tradução para “estar amando” em
português. Como sabemos, a Edição Standard Brasileira foi feita a partir da tradução
das obras em inglês. No artigo em questão, Being in love and hypnosis (Estar amando
e hipnose), traduzido por James Strachey do alemão, o termo being in love é
empregando no lugar do substantivo Verliebtheit. Esse termo significa estar apaixonado
em inglês; in love tem um sentido diferente de love. Love quer dizer amor, porém, in
love, significa apaixonado. Em inglês foi mantida a palavra apaixonado, ao invés de
estar amando.
Onde há Verliebtheit no alemão, há in love em inglês e onde há Liebe em
alemão, está apenas love em inglês. Na língua inglesa está claro que há uma
diferença, mesmo que tal diferença se dê apenas pelo emprego da preposição in,
criando a expressão in love.
Na tradução feita por Strachey, Freud (1921) inicia o capítulo falando de love –
amor - e então menciona uma classe de casos em que being in love - estar apaixonado
- nada mais é do que a catexia objetal advinda das pulsões sexuais com o objetivo de
satisfação diretamente sexual, uma catexia que acaba quando sua meta foi atingida 30.
Mais adiante, no mesmo parágrafo, ele usa a palavra passionless, que foi
traduzida como desapaixonado, para explicar que o sujeito “ama” mesmo em intervalos
desapaixonados, pois reconhece que a libido voltará e o objeto será necessário
novamente 31. Ou seja, estar apaixonado seria uma das várias classes de casos dentro
do fenômeno do amor, uma classe onde a libido tem um objetivo claramente sexual.

30
Tradução livre
31
idem
50

Em outra parte do artigo, em que Freud (1921) menciona o amor apaixonado do


adolescente, o único momento em que se usa o termo “paixão” em português, na
versão em inglês é utilizada a palavra sentimental passion. Ao que parece, Freud
pensava, neste trecho, num tipo de sentimento explosivo, típico dos jovens, por isso
lançou mão de um terceiro termo que não Verliebtheit, nem apenas Liebe, mas
schwärmerischen Liebe.
Nesse respeito temos uma conjectura de porque Strachey usou sentimental
passion na sua tradução. Passion, no Oxford Advanced Dictionary (HORNBY, 1985,
2010) tem a conceituação de um entusiasmo ou sentimento forte, especialmente amor,
ódio ou raiva 32 33
. O termo não se refere apenas ao amor, mas também ao ódio e à
raiva. Isso nos leva a deduzir que Strachey adjetivou a paixão como sentimental – na
expressão sentimental passion - pois em inglês a palavra passion tem um sentido mais
abrangente do que aquele que nos acostumamos a utilizar no nosso idioma, ela tem
um sentido mais aproximando da conotação de passional, vulcânico.
Este pode ser um motivo pelo qual o tradutor inglês não empregou passion no
resto do texto, mas sim, in love, bem mais específico e condizente com o que Freud
quis dizer ao escolher Verliebtheit para se expressar, ou seja, uma paixão de amor, não
outra qualquer.
Destacamos que quando Rocha (2008) discorre sobre a conotação da palavra
alemã ele a traduz como paixão amorosa, deixando claro seu emprego para a
categoria na esfera do amor, não de raiva ou ódio (mesmo que estejam entremeados à
paixão) ou de qualquer outra espécie de paixão/adicção, como paixão pelo jogo, pelo
álcool, pelas drogas. Ele tem um cuidado de se manter fiel ao que o termo original 34
queria denotar.
Em outros textos foram encontradas referências ao amor apaixonado, como por
exemplo, em Sobre o narcisismo: uma introdução (1914) e Mal estar na civilização
(1930).

32
Tradução livre
33
No dicionário Michaelis (2009) há a tradução para 1. paixão, 2. entusiasmo, forte sentimento. 3. amor ardente;
como exemplo encontra-se a frase: She has a passion for music que teve a tradução de Ela tem paixão por música.
34
Verliebtheit
51

Em Sobre o narcisismo: uma introdução (1914), a palavra em questão 35 ganha a


tradução para “uma pessoa apaixonada” nos dois momentos que aparece. Primeiro, no
seguinte contexto: ”A libido objetal atinge sua fase mais elevada de desenvolvimento
no caso de uma pessoa apaixonada, quando o indivíduo parece desistir de sua própria
personalidade em favor de uma catexia objetal” (Freud, 1914, pg.92).
Depois surge uma vez mais e é novamente traduzida por “pessoa apaixonada”.
Eis a frase em questão: “Essa supervalorização sexual é a origem do estado peculiar
de uma pessoa apaixonada, um estado que sugere uma compulsão neurótica, cuja
origem pode, portanto, ser encontrada num empobrecimento do ego em relação à libido
em favor do objeto amoroso.” (Freud, 1914, pg. 105)
Nesse artigo, quando Freud (1914, p.94) fala das duas classes de instintos
“fome e amor”, o termo original é Liebe. Nas demais passagens isso se repete, onde há
Liebe, traduz-se como amor, inclusive na famosa afirmação de que “devemos começar
a amar a fim de não adoecermos e estamos destinados a cair doentes se em
consequência de frustração formos incapazes de amar.” (FREUD, 1914, pg. 101).
Notamos que nesse artigo sobre o narcisismo, a tradução para o português está
coerente com a diferença entre amor e paixão. O emprego da palavra paixão está
contextualizado pela fusão, compulsão neurótica e empobrecimento do ego, ao passo
que amor surge em cenários mais saudáveis, especialmente na conclusão que é
preciso começar a amar para não cairmos doentes.
Essa marcante diferença entre o aspecto mais saudável do amor e mais
patológico da paixão não foi mantido na tradução do capítulo Estar amando e hipnose
de Psicologia de grupo e análise do ego (1921). Nesse ponto a tradução do artigo
acerca do narcisismo é mais atenta e rigorosa. Enquanto que no texto de 1921, o
tradutor empregou genericamente estar amando e amor para os diferentes termos em
alemão Verliebtheit (paixão) e Liebe (amor), no trabalho de 1914 para introduzir o
narcisismo, fez-se uso de diferentes palavras, paixão e amor, para os distintos nomes
no original germânico.

35
Idem
52

Na conferência XXVI, A teoria da libido e o narcisismo 36 (1916-17, p.487), Freud


refere que “quando alguém está totalmente apaixonado, entretanto, o altruísmo se
superpõe à catexia libidinal”, em outras passagens ele se reporta ao apaixonamento
(p.490) e estar apaixonado (p.488). Seu correlato alemão é a palavra Verliebtheit, que
nesse caso não foi traduzida por “estar amando”, como ocorreu no texto sobre o estar
amando e a hipnose.
Há outro artigo sobre o Mal estar na civilização que Freud (1930, p.83) toca
brevemente no assunto do estado amoroso, ele escreve que:

no auge do sentimento de amor, a fronteira entre o ego e o objeto ameaça


desaparecer. Contra todas as provas de seus sentidos, um homem que se ache
enamorado declara que ‘eu’ e ‘tu’ são um só, e está preparado para se conduzir
como se isso constituísse um fato.

No texto em alemão, Freud usa Verliebtheit que foi traduzida como o auge do
sentimento de amor. Já para Verliebte, a escolha da palavra em português foi
enamorado. Verificamos que Verliebtheit é a palavra que Freud emprega, nesse texto,
quando se refere a um tipo de sentimento que envolve ausência de separação entre o
eu e o objeto, assim como a supervalorização do outro.
Nem sempre a tradução da ESB manteve-se fiel ao uso de diferentes termos
que caracterizavam a distinção entre os sentimentos de amor e de paixão, como fez o
próprio Freud. Ao serem encontrados alguns textos em português cuja tradução havia
respeitado essa distinção reforçamos nossa hipótese de que havia na mente de Freud
um contraste entre os dois sentimentos, onde tanto o amor quanto a paixão teriam
características particulares.
Acreditamos que a não uniformidade das traduções se deva à questão de ter
havido vários tradutores para a obra em nosso idioma. Apesar de Jayme Salomão ter
sido o coordenador geral das traduções, cada volume teve diversos colaboradores. Por
exemplo, em Narcisismo: uma introdução (1914) foram Themira de Oliveira Brito, Paulo
Henriques Britto e Christiano Monteiro Oiticica, com revisão técnica Darcy de

36
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (1916-17)
53

Mendonça Uchoa. As Conferências introdutórias foram traduzidas por José Luís


Meurer.
No caso de Psicologia de grupo e análise do ego (1921) foi Christiano Monteiro
Oiticica com revisão, além da direção geral, de Jayme Salomão. Em Mal estar na
civilização (1930) a tradução ficou a cargo de José Octávio de Aguiar Abreu com
revisão técnica de Walderedo Ismael de Oliveira.
Ao que tudo indica, não houve um consenso quanto aos termos e Verliebtheit foi
traduzido ora como apaixonamento (1914), ora como estar amando (1921) e ora como
auge do sentimento de amor (1930).
Pelo que foi possível deduzir dos dados encontrados, Freud fazia uma distinção
entre amor e paixão, mais do que a tradução da ESB deixou transparecer. Ele usava
Verliebtheit especificamente para se referir à paixão e Liebe para reportar-se ao amor.
Acreditamos que quando Freud teorizou sobre o estar amando em 1921 37, ele na
verdade estava descrevendo a paixão e não o amor. Frisar essa diferenciação é muito
importante para a corrente pesquisa.
Assim quando ele afirma que “o objeto foi colocado no lugar do ideal do ego”
(Freud, 1921, p.144), esse processo se dá no apaixonamento, diferentemente do que
sugere a tradução brasileira. Freud distinguia paixão de amor e atrelava o primeiro a
um estado mais patológico, neurótico, fusional e de esvaziamento do ego. Esse é o
viés que seguiremos no terceiro capítulo, quando serão vistos os aspectos patológicos
da paixão.
No entanto, ainda é preciso compreender a metapsicologia do apaixonar-se,
nesse sentido será importante entender melhor o papel das instâncias ideais nesse
processo, o que requer estabelecer uma diferenciação entre o ego ideal e o ideal do
ego.

2.2. O ego ideal e o ideal do ego


Foram estudados alguns textos onde Freud emprega o conceito de ego ideal ou
ideal do ego, buscando encontrar algo que permitisse distinguir um do outro, ou que

37
Psicologia de grupo e análise do ego
54

possibilitasse constatar que, efetivamente, Freud não se atentou de diferenciar ambas


as instâncias. Nesse caso se recorreria a autores que porventura o tivessem feito.
Segundo nota do editor inglês 38 das obras de Freud, o termo ego ideal surgiu em
1914 no trabalho para introduzir o conceito do narcisismo. Laplanche e Pontalis (1988,
p.190) chamam a atenção para o fato de Freud ter criado a noção de ego ideal, que se
encontra tanto em Para introdução do narcisismo (1914) quanto em O ego e o id
(1923), no entanto, “não se preocupou em fazer uma distinção entre o Ego Ideal e o
Ideal do Ego, utilizando-os muitas vezes como sinônimos”.
Em Sobre o narcisismo: uma introdução (1914, p.111), Freud emprega o termo
ego ideal no capítulo III para explicar que ele é alvo do amor de si mesmo desfrutado
na infância pelo ego real e que esse ego ideal é a nova forma de recuperar a perfeição
infantil; três linhas adiante ele distingue entre “essa formação de um ideal e a
sublimação”, explicando que a sublimação diz respeito às pulsões, ao passo que a
idealização fala do objeto. Freud deixa claro que está se referindo ao ego ideal.
Porém, no parágrafo seguinte, ao dar continuidade ao assunto escreve “a
formação de um ideal do ego é muitas vezes confundida com a sublimação do instinto”
(FREUD, 1914, p.112). O tema continua o mesmo, porém as nomenclaturas usadas
são diferentes, surge o termo ideal do ego onde antes estava ego ideal, como se se
tratassem do mesmo conceito. No restante do texto Freud utiliza o termo ideal do ego,
no entanto não modifica seu sentido de quando utilizou ego ideal.
Verificamos o original em alemão e nele também há dois termos distintos:
Idealich e Ichideals. A única discrepância é que em português, logo após ser
introduzido o ego ideal (FREUD, 1914, p.111), esse mesmo termo é repetido ao longo
do parágrafo; já, em alemão, a segunda vez que aparece o termo, ela se dá como ideal
do ego. O tradutor brasileiro optou por repetir o termo inicial apesar do original ter
trocado a palavra Idealich – ego ideal - para Ichideals – ideal do ego, ainda no mesmo
parágrafo e com o mesmo sentido um do outro.
Antes de irmos para o outro texto mencionado por Laplanche e Pontalis (1988),
verificamos a conferência XXVI das Conferências introdutórias sobre psicanálise (1916-

38
Nota do editor inglês ao artigo O ego e o id (1923)
55

17) que discorre também sobre o narcisismo 39. Nela Freud (1916-17, p. 500) emprega
o termo ego ideal no seguinte trecho:

Percebe uma instância que assume o domínio do seu ego e que mede seu ego
real e cada uma de suas atividades mediante um ego ideal que ele, paciente,
criou para si próprio no decorrer do seu desenvolvimento. Cremos também que
essa criação foi feita com a intenção de restabelecer a auto-satisfação que
estava vinculada ao narcisismo infantil primário, mas que desde então sofreu
assim tantas perturbações e mortificações. Conhecemos a instância auto
observadora como o censor do ego.

Nesta única passagem em que Freud se refere nominalmente às instâncias


ideais, ele utiliza a palavra ego ideal num contexto de censura, mesmo que atrelado ao
narcisismo infantil. Algo parecido com o que Rosenfeld (1962) e Hanly (1984)
posteriormente destacarão como o Ideal do Ego, o precursor das aspirações contidas
no Superego, mantendo relações estreitas com o narcisismo primário. Enfim, Freud
não aparentava se preocupar com tal distinção dos ideais quando escreveu seu texto.
No texto sobre O ego e o id, Freud (1923) não emprega a palavra ego ideal,
apenas ideal do ego, o mesmo se dando no artigo original alemão. O contexto em que
o termo aparece é ligado ao de superego. Na página 42, Freud fala de “uma gradação
no ego, uma diferenciação dentro dele, que pode ser chamada de ´ideal do ego´ ou
´superego´”; na página 45 está escrito “a origem do ideal do ego; por trás dele jaz
oculta a primeira e mais importante identificação com o pai em sua própria pré-história
pessoal”.
Na página quarenta e nove o termo é utilizado em três ocasiões: (a modificação
do ego) “se confronta com os outros conteúdos do ego como um ideal do ego ou
superego.” Mais à frente temos: “Esse aspecto duplo do ideal do ego deriva do fato de
que o ideal do ego tem a missão de reprimir o complexo de Édipo”.
Continuando o artigo, na página 51, ideal do ego é empregado como sinônimo
de superego, depois como “herdeiro do complexo de Édipo”; em seguida, Freud afirma
que “Erigindo esse ideal do ego, o ego dominou o complexo de Édipo e, ao mesmo
39
Conferência XXVI: A teoria da libido e o narcisismo
56

tempo, colocou-se em sujeição ao id”. Na página 52, Freud escreve: “À medida que
uma criança cresce, o papel do pai é exercido pelos professores e outras pessoas
colocadas em posição de autoridade; suas injunções e proibições permanecem
poderosas no ideal do ego” (...) Os sentimentos sociais repousam em identificações
com outras pessoas, na base de possuírem o mesmo ideal do ego”.
Verificamos que Freud usava mais o termo ideal do ego, equiparando-o ao
superego e ao usar pela primeira vez as instâncias ideais, usou ambos os termos não
distinguindo um do outro.
Além dos artigos mencionados por Laplanche e Pontalis (1988), procuramos os
conceitos de ego ideal e ideal do ego no capítulo Estar amando e hipnose, tendo em
vista este ser um artigo emblemático na descrição metapsicológica da paixão. No
decorrer do capítulo mencionado, bem como do artigo inteiro, aparece apenas o termo
ideal do ego. Freud (1921, p.144) diz que na paixão 40 “o objeto foi colocado no lugar do
ideal do ego”. Percebe-se, ao ler o contexto do parágrafo, que o ideal do ego tem aí a
conotação mais próxima da idealização narcísica e do id do que uma conotação
superegóica herdada do Complexo de Édipo.
No entanto, a noção de ideal do ego, na maior parte das vezes que Freud a
emprega, prevalece conceitualmente semelhante ao superego, muitas vezes é
apresentada como seu precursor. O termo ego ideal é pouco utilizado e fica mais
restrito aos textos por volta de 1914. Uma distinção entre ambos nunca foi teorizada
por Freud.
Rocha reconhece algumas distinções na obra de Freud. Ele cita o artigo Sobre o
narcisismo: uma introdução de 1914 como expondo uma distinção entre as instâncias,
onde o ego ideal seria mais primitivo. Depois no Ego e o id (1923) já não existe essa
distinção, pois introduz o superego no lugar do Ideal do Ego. Finalmente, na
Conferência 31 41 (1932) (informação verbal 42), Freud volta a falar de um ego ideal
primitivo e um ego ideal modelo, esse último, acreditamos, seria o Ideal do Ego.

40
Ver discussão acima sobre Verliebtheit.
41
A dissecação da personalidade psíquica
42
Comentário feito pro Rocha, Z. em banca prévia realizada em Recife em vinte e dois de fevereiro de dois mil e
dezesseis.
57

Mesmo que Freud não tenha deixado uma distinção clara e teorizada entre as
instâncias ideais, alguns autores, entretanto, se ocuparam desta tarefa. Nunberg
(1989/1932) aparenta ter sido o primeiro a publicar algo sobre o assunto. Num livro
prefaciado por Freud, ele distingue ego ideal e ideal o ego, definindo o primeiro como
“O ego ainda inorganizado, que se sente intimamente unido ao id, [ele] corresponde a
uma condição ideal e, por isso, é chamado ego ideal” (NUNBERG, 1989/1932, p.136, o
colchete é nosso).
Para a criança seu ego é ideal até que ela encontre a primeira oposição à
satisfação de seus desejos. Diante dessa frustração provocada pela percepção da
realidade, as pessoas abandonam este ideal narcísico. Um abandono, entretanto, que
será sempre acompanhado do esforço para se retornar ao que foi deixado para trás.
Do ponto de vista de Nunberg (1989/1932) quando esse ideal é novamente
alcançado em alguns estados de doença, o paciente, apesar de seu sofrimento e
sentimento de inferioridade, sente-se um tanto onipotente e dotado de poderes
mágicos. O ideal do ego, para o autor, é uma instância diferenciada do ego que
floresce através da captação egóica dos estímulos provenientes do mundo externo
graças aos órgãos sensoriais, se desenvolvendo como resultado da incorporação das
autoridades do início da infância. Ele dá origem ao superego.
Enquanto que no ego ideal, os impulsos do id são aceitos sem oposição e sua
satisfação é permitida, com o surgimento do ideal do ego, esse acordo harmonioso fica
perturbado, essa nova instância passa a se inserir entre o ego e o id, demandando
renúncias por parte do sujeito. Entendemos esse processo como marcante para a
passagem do princípio do prazer para o princípio de realidade, quando o sujeito
começa a se deparar com sua impotência, ou melhor, com sua “não onipotência”.
Rosenfeld em 1962 refere o ideal do ego como um precipitado do antigo ideal
dos pais, uma expressão de admiração que a criança sentiu pela perfeição que então
era atribuída a eles.
Uma distinção entre as duas instâncias é reforçada por Loewald (1962),
afirmando que o ego ideal representa um retorno à perfeição narcísica primária infantil
por meio de uma identificação primitiva com as figuras parentais onipotentes. Ele está
relacionado ao desejo alucinatório de completude. O ego ideal significa uma volta ao
58

estado primitivo de perfeição, porém um estado que não será almejado para o futuro,
mas que está sendo fantasiado no presente.
O autor define o ideal do ego como algo a ser alcançado, um momento seguinte
ao ego ideal; é um ideal para o ego, enxergado nas figuras parentais de uma forma
mais elaborada e diferenciada que a instância anterior.
Laplanche e Pontalis (1988, p.190) apresentam o ego ideal como uma “formação
intrapsíquica que certos autores, diferenciando-a do ideal do ego, definem como um
ideal narcísico de onipotência forjado a partir do modelo do narcisismo infantil”, uma
formação psíquica anterior ao ideal do ego e superego. Já o ideal do ego seria uma
instância resultante da convergência entre o narcisismo e as identificações com os pais
e seus substitutos, e também com os ideais coletivos. Ele constitui um modelo a que o
indivíduo procura conformar-se.
Charles Hanly (1984) pontua que a diferença fundamental entre ambos é que o
ego ideal conota uma forma de ser, uma identidade como já tendo sido conquistada,
enquanto o ideal do ego, uma forma a ser buscada, uma identidade a ser adquirida.
Segundo este teórico o ego ideal é um aspecto do ego que acredita que lhe foi
concedido o estado de perfeição, se refere a uma condição muito agradável, porém
ilusória. É uma autoimagem distorcida pela idealização, que, no entanto, pode ser
experimentada como mais real que o próprio ego, uma espécie de espelho idealizado
onde o ego real pode se contemplar relativamente livre da realidade.
Por outro lado, o ideal do ego se refere a um potencial ainda não atingido, é a
ideia de uma perfeição em direção a qual o ego precisa se esforçar para chegar, para
isso tem que se sujeitar ao teste de realidade requerido pelo ego. O ego ideal enquanto
um ideal já conquistado se opõe ao teste da realidade. O primeiro é ativo, o segundo,
passivo.
O ego ideal tem uma história, ou melhor, uma pré-história, observa Mezan
(1987, p.128), “ele é formado por resquícios dos momentos mais primitivos de nossa
vida, aqueles em que não tínhamos consciência da limitação, das imperfeições e da
finitude que nos caracterizam como seres humanos”.
59

Green (1988b) assemelha a situação do ego ideal à do prazer experimentado


sem obstáculos, no qual a realidade não se acha inserida. Nessa situação a unificação
se dá em detrimento do id e o ego procura no objeto sua projeção narcisista.
Rocha (1999 43, apud SILVA, 2002, p.43) salienta que: “Com o Ego Ideal
(Idealich), forjado segundo as ambições fálicas do narcisismo infantil, prevalece o
modelo de subjetividade fechada, na qual o ego se constitui como se fosse sua própria
origem e fundamento”. O autor reforça que com o ideal do ego temos um modelo
diferente tanto de subjetividade quanto de ideal. Tendo em vista que esta é uma
instância aberta para a alteridade, ela leva o ego a reconhecer suas deficiências e a
buscar fora de si um ideal, o qual funciona como modelo e não como exigência.
A visão de Birman (1997 44, apud SILVA, 2002) complementa essa linha de
pensamento quando diferencia duas modalidades de subjetividade: uma que se
acredita autocentrada calcada no ego ideal e outra que se apresenta descentrada
apoiada no ideal do ego, orientada para a alteridade.
O Ego Ideal deverá se transformar no Ideal do Ego, pontua Birman (1997, apud
SILVA, 2002). O primeiro, uma instância mais estreitamente ligada ao narcisismo
infantil, é anterior ao Ideal do Ego, o segundo é fruto de uma fase posterior do
desenvolvimento libidinal e egóico. O autor ressalta que será necessário um longo
processo histórico e psíquico para que se efetue esta transformação, “para que o eu
não se estabeleça como sendo sua própria origem, reconhecendo suas insuficiências e
finitude” (Birman, 1997, apud SILVA, 2002, p.44).
Num artigo sobre a paixão, Birman (1993) refere o ego ideal como experiência
fundadora do ego na qual o indivíduo adquire sua imagem originária de totalização,
realizada através do outro, que pelo olhar, o reconhece. Isso provoca uma alienação
referenciada no outro. O sujeito fica preso no olhar desejante do outro de maneira a se
estabelecer uma relação de indiscriminação entre ambos. O ego é seu próprio ideal,
não há um obstáculo capaz de romper o fascínio do ego por sua própria imagem.
Por outro lado, a instauração do Ideal do ego, segundo Birman (1993), introduz
uma dialetização entre o ego e seus ideais de maneira a surgir uma fenda na

43
ROCHA, Z. Trabalho apresentado no V Fórum Nacional de Psicanálise.
44
BIRMAN, J. Estilo e modernidade em psicanálise. São Paulo: Editora 34, 1997.
60

onipotência narcísica do sujeito. A posição narcísica é perdida, porém, sua busca é


interminável no intuito de restaurar a plenitude e encontrar um outro para quem ele seja
tudo e vice-versa. Essa é a demanda básica da paixão.

2.3. O ego ideal na paixão


Ao que tudo indica, tendo em vista as distinções acima expostas, acreditamos
que é no lugar do Ego Ideal, ao invés do Ideal do Ego, como está apresentado por
Freud (1921) no artigo Estar amando e hipnose 45, que é colocado o objeto da paixão.
Ele é posto num lugar anteriormente ocupado pelo narcisismo infantil.
Como vimos, Freud não deixou clara uma distinção conceitual entre as
instâncias ideais, portanto, ele ter usado o termo ideal do ego não exclui a possibilidade
dele estar-se referindo à instância mais primitiva, o ego ideal, ligado mais firmemente
ao narcisismo primário e excluindo a alteridade
A idealização cega, a ausência de crítica quanto ao objeto, a passividade, a
busca pela fusão levando a um estado de completude ilusória tão presentes na paixão,
são também traços característicos do Ego Ideal.
O objeto sexual é elevado ao nível do ideal, declara Lejarraga (2003) já que
possui o que falta ao ego para alcançar seu próprio ideal. O apaixonamento representa,
assim, uma via imediata de acesso ao ideal e à onipotência narcísica. O investimento
libidinal no objeto torna o sujeito apaixonado frágil e dependente do outro. O trabalho
de idealização outorga ao objeto virtudes e perfeições imaginárias, deixando “cego” o
eu apaixonado.
A autora prossegue definindo a paixão amorosa como um estado extraordinário
em que há um investimento exclusivo no objeto amado, o que significa uma
concentração de pensamentos e imagens no objeto, não sendo possível deixar de
pensar nele. Esse investimento exclusivo caracteriza um tipo de idealização maciça e
absoluta do objeto, correspondendo à projeção do ego ideal no objeto. Assim, na
paixão, o outro se torna pleno e completo, idealizando a possibilidade do objeto
proporcionar a completude. (LEJARRAGA, 2003)

45
Capitulo VII de Psicologia de grupo e análise do ego (1921)
61

Rocha (2008) apresenta a ideia de que o objeto da paixão amorosa ocupa o


lugar que antes pertenceu ao ego ideal, levando a pessoa apaixonada a procurar no
objeto um substituto para o narcisismo perdido na infância.
Há uma imensa frustração da criança ao deparar-se com sua insuficiência e a
consequente necessidade do objeto externo. É a angústia frente ao desamparo. Isso
gera um apelo para que se retorne a esse momento idílico de autossuficiência e
completude. Na paixão amorosa tenta-se chegar bem perto disso.
Não obstante, por mais encantador que seja o apaixonar-se, convém lembrar
que à medida que o objeto da paixão é posto no lugar de ego ideal há grande
probabilidade de se estabelecer uma relação tanto ilusória quanto fechada. O
apaixonado não enxerga outras possibilidades de investimento que não o objeto da
paixão e o vê como vital para si, como um pedaço de si mesmo e não tolera a ideia de
separar-se dele. A paixão, enfim, pode fixar o sujeito numa dinâmica alheia à realidade
e entrópica em termos de economia psíquica.
Parece termos chegado perto de uma configuração da paixão enquanto
patológica nos dois sentidos do termo (o de doença e o de arrebatamento), algo
semelhante àquilo que Nunberg (1989/1932) descreveu quando afirmou que em alguns
estados de doença, a pessoa alcança novamente seu ideal apesar do sofrimento e de
seu sentimento de inferioridade. Ela se sente novamente onipotente e dotada de
poderes mágicos. Sua doença lhe traz bem estar.
O exemplo de Nunberg (1989/1932) se dirigia aos estados psicóticos,
especialmente os paranoicos, porém, acreditamos que essa ideia pode ser estendida
para a paixão, destacando seu aspecto patológico, além do passional.
O outro autor que diferencia os ideais egóicos, Loewald (1962), quando faz a
descrição do ego ideal e aborda seu imediatismo e indiferenciação, destaca duas
características bem marcantes também na paixão. O sujeito apaixonado se fecha
quase completamente para novos investimentos a não ser o objeto escolhido, do qual é
esperado um preenchimento completo para o seu vazio existencial.
Essa posição faz lembrar a paixão tóxica apresentada por Bento (2007), descrita
no primeiro capítulo, onde há uma espécie de adicção ao objeto. A paixão tóxica traz
62

uma idealização e projeção desmedidas, cujo destino estará marcado primordialmente


pela frustração, pela não realização concreta daquilo que só existe no campo da ilusão.
Concordamos que na paixão há uma projeção maciça no outro, não obstante, é
um outro que não é visto como objeto separado, ele é parte do sujeito via ego ideal.
Isto leva a um tipo de investimento paradoxal: não há um investimento objetal
propriamente dito, uma vez que o objeto não é reconhecido como distinto; tampouco há
um investimento narcísico, posto que não é propriamente o ego do indivíduo que está
sendo libidinizado, há um esvaziamento egóico.
O sujeito não se beneficia nem de um investimento objetal, estabelecendo uma
relação com o outro, nem de um investimento egóico, fortalecendo seu narcisismo
primário. Muito pelo contrário, conforme descreve Freud (1921), o ego se empobrece
ao se entregar dessa maneira ao objeto, no momento em que ele substitui seu
constituinte mais importante pelo objeto, ele entrega seu amor próprio ao outro.
Birman (1993) apresenta a demanda básica da paixão como a busca de um
outro para quem o sujeito seja tudo e vice-versa, relacionando tal movimento à
tentativa de restaurar a plenitude experimentada pelo ego ideal. Ele explica a dinâmica
da paixão como uma maneira de colocar o outro no lugar de seu ego ideal esperando
ver nesse alguém o fascínio de sua própria imagem especular, a partir disso ocorrendo
um movimento de incorporação dessa imagem fascinante. Dessa forma, o outro não é
visto como tal, já que não há relação de alteridade, da mesma maneira que não existia
com o ego ideal.

2.4. O amor que constitui o ego e o ódio que cria o objeto


Acreditamos que a dificuldade do sujeito apaixonado perceber o outro tem suas
raízes numa época primitiva do desenvolvimento egóico quando da descoberta do
objeto. O reconhecimento do outro é uma experiência decisiva, porém momentosa para
o sujeito.
No início, o recém-nascido não se diferencia do objeto, uma vez que ainda não
tem a seu dispor o desenvolvimento das funções psíquicas que lhe permitam perceber-
se separado do mundo. Na verdade ele ainda sequer se vê como um todo, mas como
63

uma justaposição de partes que se gratificam independentemente em investimentos


parciais e de forma autoerótica.
Freud (1914) escreve que é preciso uma nova ação psíquica para a saída do
autoerotismo e o início do narcisismo, ou seja, o narcisismo não existe desde o
começo. Após a unificação do ego é que haverá o autoinvestimento enquanto um todo.
Esta é a fase do narcisismo primário, cuja satisfação continua a ser autoerótica.
É de suma importância o narcisismo primário para a existência do sujeito. Essa
quota de catexia dirigida ao próprio ego sedimentará o amor próprio e permitirá
suportar as frustrações posteriores. Um ego que tenha sido satisfatoriamente narcisado
aguentará as desilusões do mundo real sem perder a autoestima e a confiança. Este
amor inicial do sujeito dirigido ao ego responde pela base de sua constituição e pelo
alicerce das construções que se somarão ao longo de sua existência.
Esse é o amor que funda o ego, cria sua unidade e o mantém coeso apesar das
ocorrências externas e internas que possam advir. Esse amor autodirigido começa com
outro amor, o amor de um outro, em geral a mãe ou quem exerça sua função.
No primórdio da construção psíquica é fundamental o olhar materno para dar
andamento e sustentação ao processo de subjetivação, processo esse que
necessariamente passa pelo amor, narcísico e materno. Mesmo que o sujeito não
perceba inicialmente o objeto (a mãe, ou quem ocupe esse lugar), é a catexia amorosa
emprestada pelo outro que dará subsídios para o investimento do sujeito em si.
Lacan (1995, 1956-57) também destaca a importância materna nesse processo.
Ele diz que a criança não tem como distinguir se o tipo de satisfação inicial é da ordem
da alucinação ou do real. É preciso que a “mãe ensine, progressivamente, a criança a
submeter-se às frustrações e perceba, não sem uma certa tensão inaugural, a
diferença que existe entre a realidade e a ilusão” (LACAN, 1995, 1956-57, p. 34) 46.
Pare ele o amor materno também será decisivo para a passagem do narcisismo
primário para a relação com o objeto externo.
Ter as necessidades realizadas, os desejos satisfeitos, ter um olhar onde se
espelhar é o substrato para a decisiva sensação de onipotência primitiva do ser; uma

46
Lacan afirma (1995, 1956-57) que é impensável que a criança tenha noção de sua onipotência, o que conta são
as carências, as decepções, que afetam a onipotência materna. Essa discussão não será empreendida, já que foge
do tema e objetivo desse trabalho.
64

onipotência que ele não reconhece ser, na verdade, mantida por um terceiro. Eis a
ilusão narcísica: bastar-se a si mesmo, quando na realidade é o mundo externo através
do outro que sustenta essa crença.
Na verdade, é possível que o bebê não tenha sequer aparato anímico para
entender o que significa sentir-se onipotente, o fato é que ele ainda não experimentou,
nessa fase, uma forte sensação de falta e de mal estar decorrente da necessidade não
satisfeita. Ele se inicia no mundo sob o princípio do prazer, para gradativamente ir se
submetendo ao princípio da realidade.
Voltando à passagem do narcisismo para a relação objetal intermediada pela
função materna, Pellegrino (1987) traz uma referência que permite ver como a relação
inicial da criança com a mãe tem influência direta nas relações amorosas posteriores.
Ele observa que quanto pior for a relação entre ambas, quanto menos a criança se
sentir amada e protegida pela figura materna, mais ela se agarrará a ela e mais
devastadoras serão as paixões desencadeadas na vida adulta.
Um ego que não teve um bom investimento narcísico será um ego fragilizado e
se sentirá enormemente ameaçado e desamparado frente às desilusões da realidade.
As decepções fatalmente se farão presentes e a realidade inevitavelmente causará
uma dor que deixará uma ferida perene, a ferida narcísica, aquela diante da desilusão
quanto ao narcisismo imaginado.
A desilusão tem início à medida que a criança passa a experimentar o
desprazer diante de seus desejos não satisfeitos, então, começa a se deparar com sua
insuficiência e a perceber que o mundo não começa nem termina nela própria. O bebê
vai se dando conta que ele depende de algo que não pode controlar, portanto suas
necessidades correm risco constante de serem insatisfeitas.
É nesse contexto que se dá a descoberta do objeto. Conjuntamente com a sua
percepção vem a experiência de dependência de um terceiro. A existência do outro
chega com o impacto de fazer cair por terra a ilusão da autocompletude.
“O inimigo do narcisismo é a realidade do objeto e, inversamente o objeto da
realidade, ou seja, sua função na economia do Eu”, afirma Green (1976/1988b, p.49).
Green observa que o objeto é ao mesmo tempo interno e externo, sendo necessário à
65

fundação do indivíduo e à elaboração do narcisismo. É a perda do objeto que o revela


aos olhos do sujeito e acaba por desvendar a estrutura narcisista 47, conclui o autor.
Esse autor afirma que o narcisismo primário é “Desejo do Um, aspiração a uma
totalidade autossuficiente e imortal onde o auto engendramento é a condição, morte e
negação da morte ao mesmo tempo” (1967/1988b, p.142).
No narcisismo, o objeto entra em relação conflitiva com o eu, pontuam Faveret e
outros (2007) dado que o investimento das pulsões no ego tem como efeito transformar
o desejo pelo objeto em desejo pelo ego. Em outras palavras, o desejo muda de objeto,
pois é o ego que se torna seu próprio objeto de desejo. O desejo é o movimento pelo
qual o sujeito é descentrado, a busca do objeto de satisfação faz o sujeito viver a
experiência de que o seu centro não está mais nele mesmo, está fora de si num objeto
do qual está separado e ao qual tenta se reunir para reconstituir o bem-estar que se
seguiu à experiência de satisfação.
Vale salientar que esse momento, mesmo que desagradável, é essencial para o
ser humano. Caso não houvesse a percepção do objeto, o sujeito sucumbiria enredado
nas suas fantasias de autogratificação, tal qual Narciso, hipnotizado pelo fascínio de
sua perfeição. Nada seria necessário para o sujeito que, enquanto perfeito, se veria
como completo e autossuficiente, não precisando sair de seu mundo ilusório para o
mundo real. Não nos esquecendo que é a falta que faz o sujeito preencher seu lugar
com a fantasia, ou seja, o ódio também tem seu efeito criativo48.
Freud (1914) considerou o narcisismo primário um estágio original e normal no
desenvolvimento humano, uma etapa entre a fase do autoerotismo e o amor objetal,
persistindo até que o ego começasse a catexizar libidinalmente as representações
mentais de objeto.
A reação frente à falta não preenchida, ao desejo não saciado, à necessidade
não atendida é a de frustração conjuntamente com o ódio causado pelo mal estar
despertado e dirigido ao objeto que preconiza essa descoberta. Assim como o amor é
o constituinte do ego, via narcisismo primário, no caso do objeto, é o ódio que o
introduz. Daí a frase de Freud (1915) de que o objeto nasce do ódio.

47
Green acredita haver uma estrutura narcísica primária e prefere falar de estrutura no lugar de estado narcísico
primário.
48
O aspecto saudável da criatividade e do foi muito valorizado e destacado por Winnicott ao longo de sua obra.
66

O amor próprio permitirá contrabalançar o ódio dirigido ao outro e até mesmo,


dirigido a si, pois, a desilusão não deixa de ser consigo mesmo. O narcisismo primário
funciona como um contraponto ao ódio e ao medo do desamparo. A solidez interna faz
frente ao desequilíbrio causado pela báscula do objeto e pelo fato do sujeito não o
controlar.
Os sentimentos, tanto de frustração quanto de ódio, podem prevalecer ou terem
diferentes intensidades de acordo com a solidez narcísica do sujeito. O amor que
amalgamou o ego desempenhará um papel crucial de suporte enquanto sustentação
da auto estima diante da descoberta da imperfeição.
A prevalência da negação ou aceitação da falta, a dificuldade ou facilidade de
reconhecer a alteridade, são aspectos conflituosos que se repetem na paixão, cujo
interjogo terá um peso decisivo na instauração do apaixonamento bem como no seu
destino.
Mesmo que o fracasso seja o desfecho destinado à paixão, ele pode se dar de
diferentes maneiras, inclusive um fracasso aceito, cujo luto será bem elaborado. Logo
mais, será visto no capítulo a seguir, algumas possibilidades patológicas e
desdobramentos da paixão.
Lejarraga (2003, p.43) exprime seu ponto de vista sobre o tema:

Assim, a paixão amorosa, porque aspira a uma unidade impossível, está fadada
ao fracasso. O apaixonamento tem então um caráter ilusório em, ao menos, três
sentidos: primeiro, porque projeta no objeto os próprios ideais narcísicos
conferindo-lhe perfeições inexistentes; segundo, porque os objetos escolhidos
serão sempre meros substitutos dos objetos incestuosos primordiais; e, terceiro,
porque acena imaginariamente com uma completude irrealizável.

Sobre a instauração da paixão apresentaremos agora as ideias de Freud a


respeito de dois tipos de escolha do objeto, apontando algo da dinâmica subjacente ao
apaixonamento que indica um caminho acerca da sobredeterminação psíquica das
escolhas amorosas.
67

2.5. Tipos de escolha de objeto


A escolha objetal refere-se ao ato de eleger uma pessoa ou tipo de pessoa
como objeto de amor (LAPLANCHE E PONTALIS, 1988). Freud (1914) aponta dois
tipos de escolha de objeto amoroso: uma do tipo narcísico e outra do tipo de ligação ou
anaclítico.
O primeiro tipo, narcísico, se dá a partir do modelo da relação do indivíduo com
a sua própria pessoa. Conforme escreve Freud (1914, p.107), seguindo esse modelo, a
pessoa irá amar: “o que ela própria é (isto é, ela mesma), o que ela própria foi, o que
ela própria gostaria de ser, alguém que foi uma vez parte dela mesma”.
Falando em termos de ideais, esta nos parece ser uma escolha mais permeada
pelo ego ideal. É uma escolha fechada, onde o sujeito tem a si mesmo como modelo,
não havendo mediação da alteridade. O sujeito é sua própria referência, movido por
uma lógica especular.
Freud (1914) atribui esse tipo de escolha predominantemente às mulheres e a
opõe ao tipo anaclítico, que seria mais típica dos homens. Ele ressalva que essas
escolhas são puramente esquemáticas e suscetíveis de se alternarem ou de se
combinarem em cada caso individual.
O tipo anaclítico é descrito como uma escolha feita a partir do modelo das
figuras parentais, enquanto estas asseguram alimento, cuidados e proteção à criança.
Ele tem como base a função de apoio das pulsões sexuais nas de autoconservação.
Freud (1914, p.107) descreve que na escolha anaclítica, a pessoa irá buscar: “a
mulher que o alimenta, o homem que a protege, e a sucessão de substitutos que
tomam o seu lugar”. Neste caso podemos conjecturar que é a busca do ideal do ego
que majoritariamente direciona esta escolha, num percurso que aceita o outro, investe
em objetos do mundo externo, permeado pelo investimento libidinal nos pais, e a partir
de então, vai à procura de uma “sucessão de substitutos” que tomem seus lugares.
De acordo com Baranger (1994) quando os objetos das pulsões do ego tornam-
se objetos da libido, ou seja, as pulsões sexuais vêm a se juntar às pulsões do ego, fica
determinado o tipo de escolha objetal anaclítico ou de apoio. Em oposição a essa
modalidade de escolha, encontra-se a narcísica que é direcionada por uma escolha
semelhante ao que o sujeito é, foi ou gostaria de ser. Neste tipo de escolha o retorno
68

da libido ao ego – retorno narcísico – é mais patógeno, adverte Baranger (1994), que
acrescenta ser este o tipo envolvido no apaixonamento.
Os dois modos de amar se mantêm funcionais ao longo da vida não havendo
uma separação precisa e rígida entre um e outro, mas diferentes gradientes,
tendências e inclinações (Rios, 2008).
Laplanche e Pontalis (1988) questionam se é possível opor, mesmo que
esquematicamente, os dois tipos de escolha objetal e usam os exemplos dados por
Freud para demonstrar a dificuldade de separar os dois conceitos. No tipo anaclítico,
salientam os autores, Freud ressalta a supervalorização sexual atribuída ao objeto
escolhido. Essa supervalorização tem sua origem no narcisismo primário do sujeito que
é transposto para o outro. Portanto trata-se mais de uma escolha mobilizada pelo
narcisismo do que pelo modelo de ligação.
Por outro lado, prosseguem os autores, como exemplo de escolha narcísica,
Freud descreveu as mulheres que querem ser mais amadas do que amarem e lhes
agrada o homem que satisfaça essa condição. Nesse caso se estabelece uma relação
de cuidado do outro, portanto anaclítica, ao invés de uma relação especular e
narcísica, como Freud quis exemplificar.
Conjecturamos que, nesses exemplos, a lógica freudiana é conduzida pelo
ponto de vista da economia egóica do sujeito, mais focado no retorno libidinal para o
ego do que no investimento feito a partir dele. No tipo anaclítico, o sujeito empobrece
libidinalmente seu ego à medida que dirige quase toda sua catexia para o objeto,
acarretando numa supervalorização do outro. O ego fica, dessa forma, empobrecido.
Parece ser por esse motivo que Freud não considera esse tipo de escolha como
narcísica.
Já na escolha narcísica, de acordo com Freud (1914), a pessoa ama apenas a si
mesma, com intensidade comparável à do amor do outro por ela. “Sua necessidade
não se acha na direção de amar, mas de serem amadas” (FREUD, 1914, p.105).
Através desse amor do outro, essas pessoas terão o ego libidinizado, tal qual o foi
inicialmente pela mãe, portanto recai num modelo narcísico de investimento.
69

Essas contradições mostram o quanto é impossível separar, mesmo que seja


esquematicamente, as formas de investimento para se estabelecer padrões puros de
funcionamento psíquico.
Será então apropriado dizer que a forma dominante de amar das mulheres
segue o modelo narcísico e dos homens o modelo de ligação? Às mulheres cabe
predominantemente serem amadas e aos homens amar? Essa assertiva é perigosa
especialmente quando sobre o primeiro tipo de escolha recai um viés patologicista, ou,
no mínimo, menos amadurecido psiquicamente.
Baranger (1994) afirma que o amor provém do tipo de escolha anaclítica e não
da escolha narcisista. Esta segunda faz com que o retorno narcisista seja mais
patógeno, levando ao luto patológico (a melancolia), onde a mobilidade de retorno a
investimentos em objetos externos torna-se irreversível. Iremos nos deter nesse
aspecto no capítulo seguinte.
A constatação sobre a forma de amar das mulheres e a tendência a associar a
maneira narcísica a uma questão patológica é bastante questionável, em especial
quando pensamos na função materna. Se todas as mães amassem de forma narcísica,
haveria uma enormidade de casos de psicose e autismo, ao contrário do que a
realidade retrata. Portanto essa hipótese sobre as mulheres nos parece precipitada.
Quanto às formas de amar, em outro momento de sua obra, Freud abordou
algumas hipóteses sobre possíveis maneiras dos homens amarem. Ele escreveu três
artigos os quais denominou Contribuições à psicologia do amor. Nos dois primeiros
(1910, 1912) ele fala de um tipo especial de escolha de objeto e sobre uma tendência à
depreciação na esfera do amor, ambos os temas encontram-se interligados no
desenvolvimento psicossexual do sujeito.
A libido tem duas correntes que a compõem, uma afetiva, outra sensual, escreve
Freud (1912). A primeira é a mais antiga, formando-se na base dos interesses de
autoconservação, sendo dirigida àqueles que cuidam da criança, ela carrega também
interesses eróticos, que no período de latência ficam inibidos no seu objetivo. Essas
correntes se separam para preservar a criança no complexo edipiano.
Na puberdade as duas correntes, afetiva e sensual, se unem em torno do
mesmo objetivo, porém dirigidas a outro objeto que substitui os primários e com os
70

quais “se possa levar uma verdadeira vida sexual” (FREUD, 1912, p.165). Nessa época
se farão as primeiras escolhas amorosas da vida adulta do sujeito.
De acordo com Freud (1912) em alguns casos, o sujeito pode se fixar em
fantasias incestuosas, e ambas correntes, então, se dividirão novamente para poupar o
sujeito da angústia frente à castração, por causa da revivescência da situação edípica.
O resultado são pessoas que quando amam não desejam, e quando desejam, não
podem amar, tornam-se homens impotentes ou mulheres frígidas. Voltaremos a esse
ponto ao tratar do fetichismo logo mais.
Assim entramos na esfera das patologias. Por exemplo, a separação na vida
adulta das correntes libidinais, o papel do narcisismo na escolha do objeto, nos
rementem a uma maneira regredida de se relacionar com o outro. Além destas, há
outras chances de se cair num destino mais doentio de relação. Esse será nosso tema
do capítulo a seguir: os aspectos patológicos da paixão que podem levá-la a ser
marcada pelo adoecimento.
71

3. ASPECTOS PATOLÓGICOS DA PAIXÃO

Delimitamos nossa esfera de pesquisa à paixão amorosa, estudamos sua


conceitualização na Grécia Clássica e nossos dias, enfatizando seu aspecto páthico e
a distinguindo do sentimento de amor.
Em seguida nos detivemos em sua compreensão pelo ponto de vista da
psicanálise, estudando as instâncias ideais envolvidas no processo, a economia do
narcisismo e a dinâmica psíquica da escolha do objeto.
De acordo com nossa pesquisa pudemos distinguir três caminhos para a paixão:
ela dar lugar ao amor; ela se extinguir sem maiores danos, por autocombustão, ou ela
se fixar num quadro patológico.
Partiremos agora para os desdobramentos patológicos da paixão, não perdendo
de vista a noção discutida no primeiro capítulo sobre a patologia em psicanálise dentro
da perspectiva de desequilíbrio de investimentos, fixidez, ausência de maleabilidade e
excesso.
Observamos que a paixão, ao partir de hybris, da fusão ao objeto, pelo qual o
sujeito desenvolve uma fixação, ao implicar sempre numa dose de sofrimento, tem
características peculiares da patologia. Mesmo assim podemos falar da patologia da
paixão quando seus aspectos “normalmente patológicos” aprisionam o sujeito num
desdobramento marcadamente doentio, sem conseguir uma saída saudável para o
estado instalado.
Tendo como base os conceitos levantados no segundo capítulo – ego ideal,
narcisismo primário, escolha objetal narcísica - iremos usá-los para pesquisar possíveis
patologias do apaixonar-se, abordando a paixão pelo prisma do narcisismo, da
melancolia, da alteridade, da alienação e do fetichismo.
Iniciaremos pela pesquisa da economia narcísica no seu aspecto patológico, e
em seguida veremos as demais condições. No nosso entendimento os demais tópicos
pesquisados têm as dificuldades narcísicas como questão de base, mas escolhemos
elencar o narcisismo patológico como desdobramento independente para lhe dar o
devido destaque.
72

3.1. Narcisismo Patológico: o narcisismo que mata e fere


No capítulo anterior discutimos como o narcisismo primário é fundamental para o
ser humano, uma de suas principais funções é amalgamar e dar sustentação à
constituição do sujeito. Agora iremos tratar de um outro lado do narcisismo, aquele que
se encontra mais ligado à patologia.
Freud (1914) fez uma distinção entre um narcisismo primário e um secundário.
O primário seria um primeiro movimento pulsional, no qual as pulsões se organizam
num investimento unitário em torno do ego, o qual, fechado em si mesmo, não toma
conhecimento do mundo externo. Já o secundário seria construído sobre a base do
narcisismo primário, designando o estado que é instaurado quando a libido, investida
nos objetos, retorna em direção ao eu, com o consequente desinvestimento do mundo
externo e o fechamento em si mesmo.
O narcisismo secundário tem íntima relação com a patologia. Freud (1914) o
explica como uma retirada dos investimentos do mundo externo e dos objetos
concretos levando ao retorno da libido para ego, usando a retirada da libido na
esquizofrenia 49 para compreender o que se passa nesse segundo tempo do movimento
de refluxo da libido de volta ao ego.
Semi (2011) determina a passagem do narcisismo primário para o secundário
calcada no fracasso do primeiro.

O narcisismo secundário nasce das cinzas do primário e exprime uma tentativa


de reconstruir condições interiores, psíquicas, de prazer, de autoconservação,
de segurança, que aquele, ilusoriamente, garantia. A passagem, porém não é
pequena, e o fracasso não é indolor” (SEMI, 2011, p.85).

A saída do narcisismo primário é por si só ameaçadora. Rank (1924) 50 fala do


trauma do nascimento, quando o bebê é separado do corpo mãe por ocasião do parto.
Esse seria o protótipo da sensação de desamparo e da angústia de castração. A

49
Freud, por muito tempo, englobou a esquizofrenia na categoria de neurose narcísica, já intuindo, talvez, uma
parcela de narcisismo na mesma.
50
O artigo em que Rank trata desse assunto é citado por Freud em Inibição, Sintoma e Angústia de 1926
73

passagem do narcisismo primário para a relação de objeto traz inerente semelhante


angústia à medida que, nesse momento, o bebê irá se perceber verdadeiramente
vulnerável, tanto ou mais do que no momento do nascimento, pois, entenderá que
precisa do outro para sobreviver e este outro não é controlável por suas vontades. A
adaptação a essa nova realidade pode ser mais, ou menos, dolorosa, o que implica em
acionar defesas mais, ou menos, radicais e adequadas frente ao mal estar despertado
pela nova situação.
Conforme nos relembra Semi (2011), enquanto estado inatingível, o narcisismo
é sempre infeliz, posto que traz consigo uma exigência de completude que nunca
poderemos alcançar. “Se esta é a condição humana – a de ser incompleto -, em muitas
situações o narcisismo se torna particularmente infeliz, fazendo que o indivíduo se
lance em uma condição de sofrimento e de angústia” (SEMI, 2011, p.46).
Freud (1914, p.117) observa que o “desenvolvimento do ego consiste num
afastamento do narcisismo primário e dá margem a uma vigorosa tentativa de
recuperação desse estado”, explicando que esse afastamento é ocasionado pelo
deslocamento da libido em direção a um ideal do ego imposto de fora, sendo a
satisfação, então, provocada pela realização desse ideal.
Entendemos que essa saída através o ideal do ego envolve realizações que
remetem à idealização de si próprio parecida com aquela do estado infantil, porém
intermediadas pela realidade. Nisso incorre também o amor (diferentemente da
paixão), numa escolha de um ideal factível no que tange o objeto amoroso, com
idealizações, mas também com o reconhecimento das limitações do outro, sem almejar
a perfeição.
Nunca atingimos o sentimento de unidade e plenitude, observa Moguillansky
(2014), ainda que sempre o busquemos. “Do ponto de vista da psicanálise, diríamos
que todo sujeito, a despeito de si próprio é um sujeito dividido que não se resigna a sê-
lo” (MOGUILLANSKY, 2014, p.113). O autor indica o ego ideal como a continuidade e
persistência da sensação de completude e frisa que nesse desejado sentimento de
completude não há outros.
Como mostramos no capítulo anterior, na paixão busca-se a idealização igual
àquela do narcisismo primário, um momento que deveria ser superado no
74

desenvolvimento psíquico. A utilização do apaixonamento como forma de retorno


narcísico primitivo diz muito a respeito desse sentimento e daquele que o vivencia. Um
sentimento desde logo contraditório, à medida que, já que busca a completude
narcísica primitiva, não deixa espaço para o outro.
À medida que a paixão é intermediada pelo ego ideal, ela remete ao narcisismo
primário que deveria ter sido elaborado, dando lugar ao investimento objetal. Apesar da
paixão envolver um objeto, ele não é reconhecido, nos levando a pensar num
fechamento narcísico patológico, não estruturante, não deixando espaço para outros
investimentos saudáveis.
Não se deve esquecer que o investimento nos objetos é o caminho natural à
saída do narcisismo inicial e a volta da libido para o ego não necessariamente se
configura numa patologia. Freud ilustra a situação comparando o ego a uma ameba
que lança seus pseudópodos e o recolhe conforme a conveniência. Assim também faz
o ego ao direcionar os investimentos para o mundo externo e os retirar de volta ao ego.
Tal retirada pode ser temporária ou mais permanente. Da fixação da libido de
volta ao ego depende a patologia ou não. Essa dinâmica foi tão cara à Freud, que, dos
anos 1914 até 1920 o conflito psíquico foi colocado em termos de libido objetal versus
libido do ego, destacando a importância do direcionamento libidinal.
Em situações de frustração, de perda do objeto, quando há uma elaboração
saudável da mesma, ocorre a retirada estratégica da libido levando ao retorno ao ego
com posterior reinvestimento em novos objetos. Esse é o caso do luto 51.
No entanto, há pessoas que não conseguem fazer esse refluxo da libido ao ego
e depois dirigi-la de volta ao mundo externo, ficando impedidas de novos investimentos
objetais, incorrendo num narcisismo secundário patológico. Pensamos que na paixão
ocorra dinâmica semelhante, onde o objeto eleito é mero espelhamento do ego do
apaixonado, através da projeção de seu ego ideal, gerando mais um estado de fusão
do que de investimento saudável.
Os sujeitos com dificuldade de investimento genuíno no outro podem ser
entendidos como pessoas com dificuldades narcísicas, que, como pontua Hornstein
(2009), parecem encurraladas por uma autonomia que se transforma em solidão

51
A melancolia será vista no próximo tópico.
75

devastadora e uma reação negativa frente à aproximação do outro o qual isola com a
pulsão mortífera.

Quando se busca a fusão, é porque sozinho temem perder seu sentimento de si


ou seu sentimento de autoestima. Combatem a angústia de separação-intrusão
criando uma série contínua de relações de objeto narcísico. O intolerável é a
alteridade. Um excesso de presença é intrusão. Um excesso de ausência é
perda (HORNSTEIN, 2009, p. 51).

Esse é o tipo de situação que vemos quando a presença do outro é fonte de


angústia, uma vez que é vista como uma invasão, desmoronando o equilíbrio
precariamente sustentado pelo sujeito. Ao fusionar-se com o outro, lhe é negado o seu
reconhecimento.
Uma dificuldade a mais da relação passional, a depender da fenda egóica do
sujeito e da projeção do ego ideal no outro, é o ego estar tão esvaziado do seu
narcisismo que a libido encontre dificuldade para retornar de forma saudável. É como
se não houvesse praticamente solo fértil onde ela pudesse ser novamente plantada.
Assim há pouca chance de um reinvestimento construtivo em si para uma nova
recatexização no mundo externo. Com o afastamento do objeto, ele praticamente leva
o ego – ideal – do sujeito, que de tão empobrecido mal tem condições de se recuperar
libidinalmente.
Montero (2005, p.16) cita uma frase de Catão que diz que “a alma do amante
vive num corpo alheio”, nós o parafraseamos afirmando que “o ego do apaixonado vive
num corpo alheio”. Em casos mais patológicos o ego parece ter feito morada
permanente no outro e desaprendeu o caminho de volta.
A questão do narcisismo nos leva além. Se olhado sob novo prisma, nos levanta
a hipótese de que pessoas com personalidade marcadamente narcísica acabam por
exercer enorme fascínio sobre outros que terminam se apaixonando “loucamente”.
Pessoas com personalidade narcísica são aquelas que diante das dificuldades
frente ao abandono compulsório do narcisismo primário criam feridas incuráveis
decorrentes da desilusão consigo mesmo e com a realidade do objeto. Elas buscam
aparentar grande autoconfiança, mas possuem pouca solidez interna.
76

É o caso do falso self, termo cunhado por Winnicott (Zimerman, 2001) para falar
do fenômeno em que o verdadeiro self permanece escondido e cria uma imagem falsa
para ocultá-lo, desse modo a visão que o sujeito tem de si e a que as pessoas têm dele
é da casca espessa que ele criou.
Há ainda o self grandioso que se encaixa na descrição que queremos enfatizar.
Esse conceito é empregado por Kohut (1988 52, apud ZIMERMAN, 2001) para se referir
à imagem onipotente e perfeita que a criança tem de si mesma, e nos casos em que
ela persistir “o sujeito vai apresentar algum grau de transtorno narcisista de
personalidade” (ZIMERMAN, 2001, p.378).
No transtorno narcisista de personalidade, o sujeito se defende da baixa auto
estima, fingindo, muitas vezes até para si mesmo, uma grande segurança interna e um
ego muito bem investido libidinalmente, por si e pelos outros. Esse tipo de
personalidade pode ser chamado simplesmente de “narcísica” ou “narcisista”. As
pessoas narcísicas demonstram onipotência e prepotência para disfarçar um grande
vazio interno e medo do outro.
Numa alusão à dificuldade desses sujeitos, Green (1988b) explica: “os
narcisistas são pessoas feridas – de fato, carentes do ponto de vista do narcisismo”
(p.17). Tais pessoas fogem do encontro com a incompletude através da ilusão de não
precisarem de ninguém.
Nem todas as pessoas com marcantes dificuldades vividas no abandono do
narcisismo primário usam do mesmo tipo de defesa, criando um falso self. Muitas
externalizam sua fragilidade, tornando-se visivelmente inseguras e dependentes de
terceiros, sempre duvidando abertamente de suas capacidades e necessitando da
fusão com o outro.
Hornstein (2009) chama a atenção para dois movimentos narcísicos, o de se
afastar dos outros ou de se aferrar a eles. O narcisista se distancia quando sente que
algo ameaça seu frágil equilíbrio e aferra-se quando sua “sede de objeto apenas se
sacia em presença daquele a que cabe a função de refletir para o sujeito”
(HORNSTEIN, 2009, p.55).

52
KOHUT, H. A Psicologia do self e a cultura humana. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.
77

As pessoas narcisistas com mais propensão a “colarem” no outro, muito


fragilizadas egoicamente, precisam sempre de um espelho onde se mirar para se
acreditar. Elas não necessariamente desenvolveram personalidade narcísica com
sinais de prepotência. Nos indagamos se elas não acabam se atraindo por outras com
traços mais marcantemente narcísicos, por acreditarem na autossuficiência que o outro
quer aparentar. Dessa maneira encontram um ótimo espelho onde projetar suas auto
idealizações, tentando assim compensar sua dificuldade, imaginando que o outro pode
lhe prover o que lhes falta. Elas ficam fascinadas pela aparente autoconfiança do outro
e buscam, através da projeção e identificação, adquirir tal prazer narcísico para si, o de
bastarem a si próprias.
Aulagnier (1985) aponta uma questão semelhante ao descrever a função
alienante (vista a seguir), afirmando que para que o Eu possa projetar o poder
desmedido e alienante no outro será necessário que o outro se apresente como
autopossuidor de uma onipotência em que não precisa de nada, não tem nenhuma
necessidade do Eu investidor ou qualquer outro Eu.
Eiguer (2014) traz o conceito de perversão narcísica citando Racamier.
Acreditamos que os perversos narcísicos se aproximam muito do que estamos
descrevendo como as personalidades narcísicas nesse contexto e por isso nos
deteremos um pouco nesse tema, que segundo Eiguer se encontra ainda em evolução.
Ele considera que a perversão narcísica “leva o narcisismo autossuficiente aos
limites extremos de sua ação (...) com uma combinação do narcisismo com dois outros
elementos: a destrutividade e a tendência à extraterritorialidade – ou seja – o sujeito
tenta comprometer outra psique” (EIGUER, 2014, p.93).
Racamier (1993) 53, citado por Eiguer (2014, P.94) afirma: “o perverso narcisista
se faz valer a expensas de um outro”. Aqueles com perversão narcísica agem através
de manipulações psíquicas, por intimidação, produzindo perplexidade, paralisia,
desvalorização, invasão da mente por produção de culpa nas vítimas que acabam
aceitando todo tipo de compromisso em detrimento da autoestima, acarretando no
desmantelamento do próprio narcisismo.

53
Racamier, P.C. (1993). Le génie des origines. Paris: Payot.
78

A perversão narcísica refere-se a uma falha narcísica inicial, define Martins


(2009) a partir da qual o sujeito, ao invés de voltar-se para si, busca no poder exercido
sobre o outro, uma forma de sustentação e preenchimento de seu próprio narcisismo.
O indivíduo odeia o objeto primário por ele ter falhado, mas precisa do objeto, do outro,
justamente porque, devido a esta falha primária, sente que não sobrevive sem ele.
Este autor diferencia a perversão narcísica daquela sexual, segundo
denominação dele, enfatizando que na primeira o uso do outro como um objeto para si
se dá pelo poder e domínio sobre o outro, enquanto a perversão sexual – que, decerto,
está também ligada ao narcisismo – responde a uma denegação da diferença sexual. A
perversão narcísica necessita do outro para sua própria sustentação egóica.
Naves (1999) também faz uma articulação entre perversão e narcisismo que
aponta para esse norte que estamos seguindo. Ela questiona se existe um narcisismo
perverso naqueles que para se preservarem sentem que é necessário controlar o outro,
numa tentativa de destruir as diferenças, impedindo que os objetos se consolidem e
possuam desejos próprios. Essas pessoas desejam criar relações fusionais com o
outro para tomarem posse do objeto.
Essas descrições lembram bastante a da alienação abarcada por Aulagnier
(1985) e nos remete, em virtude do nosso tema, ao tipo de relação passional que pode
se criar no seu aspecto mais patológico. Mesmo Eiguer (2014), que não se refere à
paixão em seu texto, observa ser interessante interpretar a perversão narcísica num
vínculo onde um outro (aquele que se apaixona, nós deduzimos) vive as
consequências da inflação narcísica desejada pelo sujeito perverso.
Ainda citando Racamier (1993) 54 Eiguer (2014, p.95) esclarece que o objetivo
buscado na perversão narcísica é a utilização dos recursos do outro, o sujeito teria
necessidade das competências desse outro, gostaria de nutrir-se de sua vitalidade, de
seu entusiasmo, o outro seria um “utensílio a serviço das funções de que o perverso
narcísico teme carecer”.
Na paixão, uma das possibilidades é o sujeito ser atraído por um outro com
perversão narcísica, caindo na cilada de ter no outro aquilo que lhe falta, sem perceber
que é este outro, supostamente superpoderoso, que necessita dele. Vemos essa

54
Op. cit.
79

dinâmica em paixões que envolvem submissão extrema, onde a baixa auto estima e
masoquismo do apaixonado permitem sua inclusão nesse jogo de vampirização
narcísica.
Não podemos deixar de pensar que mesmo aquele que se apaixona tem a
imensa necessidade de fusionar-se ao objeto, podendo, ele também, o apaixonado,
estabelecer com o outro essa relação narcísica e perversa. Como nos lembra Andade
Lima Filho o apaixonado é também ele um sedutor, um sedutor “que se oferece como
objeto de gozo para o outro” 55 (Informação verbal) 56. Ele não seria apenas vítima de
relações vampirizantes, mas muitas vezes, seu mantenedor.
A questão concomitante às relações com pessoas com traços narcísicos,
perversos ou não, é que aqueles com essas características não sabem amar o outro.
Assim a busca por uma cura do narcisismo esfacelado acaba acarretando em mais
estilhaços ainda. Não apenas há uma desilusão de completude, como também a dor
diante da ausência de um investimento qualquer que seja por parte do outro.
Semi (2011, p.79) pontua o que pode acontecer em tais relações:

o narcisismo, por definição, é uma relação pessoal que elimina o outro,


caracterizada pelo investimento afetivo em si mesmo. Todavia isso não exclui
que os outros existam, e nem que se estabeleçam relações. Existem relações
com, ou entre, pessoas particularmente narcisistas, e essas relações sempre
possuem a característica de provocar um efeito de solidão.

Ainda na vertente do narcisismo, iremos agora mais além, o abordaremos pelo


prisma da pulsão de morte na busca de compreender outro processo que pode estar
subjacente à dificuldade do refluxo saudável da libido.
Há de se pensar que quando Freud introduziu o narcisismo na teoria
psicanalítica, em 1914, ele ainda não havia teorizado sobre a pulsão de morte. Ele

55
Este poderia ser outro destino patológico da paixão, visto pelo prisma do masoquismo, talvez como uma
aproximação ao narcisismo destrutivo de Rosenfeld (1988). No entanto não nos deteremos nesse aspecto para não
ampliarmos em demasia nosso campo e perdermos em profundidade os destinos patológicos escolhidos para a
pesquisa.
56
Comentário feito por Andrade Lima Filho, I. na banca prévia realizada em Recife em vinte e dois de fevereiro de
dois mil e dezesseis).
80

mudou, por exemplo, sua concepção econômica do masoquismo (1924) em virtude do


novo conceito. Outras noções também foram reformuladas a partir da perspectiva
surgida em 1920 57, tal como os polos do conflito. Porém, como destaca Green (1988b,
p.39), o “narcisismo, abandonado por Freud, por razões pretensamente teóricas, fica
suspenso depois de Além do principio do prazer”, comentando que, na sua última
síntese teórica, o Esboço de psicanálise (1937), ele pouco é mencionado.
Destacaremos as elaborações teóricas feitas por alguns psicanalistas a partir do
conceito de pulsão de morte as relacionando ao narcisismo com intenção de chegar à
patologia da paixão.
Green (1988b) chama a atenção para uma articulação necessária entre o
narcisismo e a pulsão de morte, pontuando que tal articulação mostra sua face na
melancolia, a qual se apresenta sob a jurisdição do narcisismo e é também descrita
como expressão da pulsão de morte. O autor propõe chamar de narcisismo negativo
(discutido logo a seguir) essa junção entre narcisismo e tânatos.
Prado (1988) pontua que apesar de Freud ter-se ocupado com profundidade e
brilhantismo das diferentes direções levadas pelo estudo do narcisismo, não
considerou as modificações que se impunham sobre esse conceito após o surgimento
teórico dos instintos de vida e de morte. “O que ele fez foi desenvolver separadamente
o conceito de masoquismo em contraposição ao de narcisismo, de forma que dificultou
a justaposição dos dois conceitos e as relações implícitas de um com outro”. (PRADO,
1988, p.16)
Roussillon (2015) reflete que sem destrutividade nada pode ser criado, para algo
novo surgir, é preciso destruir o estado anterior, o problema clínico da destrutividade
não é ela em si, mas as formas nas quais se exprime e se manifesta. Para ele, como
outros tantos teóricos citados a seguir, a destrutividade pura e absoluta não existe a
não ser como conceito.
O teórico pontua que violência e agressividade não devem ser entendidas como
formas diretas de uma pulsão destrutiva, há outros sinais que não são assim evidentes,
como ansiedade, sofrimento e desamparo. Roussillon (2015) compartilha a ideia
freudiana, bastante abordada por Green (1988c) de que o que se chama de pulsão de

57
Além do princípio do prazer
81

morte é uma indicação de que a ligação entre pulsão e objeto falhou, levando ao
desligamento.
A pulsão de morte é um conceito, dizem diversos autores, além de Roussillon
(2015), como Rosenfeld (1971), Green (1988b), Prado (1988), ela não é um dado
observável, tal qual a libido. Ela nunca se encontra no seu estado puro, mas sempre
fusionada a Eros, pulsão de vida. Há uma variação na prevalência de uma ou outra, no
entanto, tânatos nunca está só.
Laplanche (1988, p.17) explicita que morte, no termo pulsão de morte, não é a
morte do outro, mas, “em primeiro lugar, a morte do próprio indivíduo, e somente de
maneira secundária a morte infligida ao outro”. Ele afirma que Freud passou anos
recusando a “pulsão de agressão” que lhe era incessantemente sugerida por seus
discípulos. A agressividade já é resultado da fusão das pulsões de vida e de morte,
servindo como uma maneira de deslocar a pulsão de morte para o exterior, com o
intuito de proteger o sujeito de tânatos desfusionado.
O autor relembra que pulsão de morte está estreitamente ligada, em Freud, à
noção de princípio do zero ou de Nirvana e à compulsão à repetição. Em suma, o
indesejável, o demoníaco, o que não se pode ligar nem controlar, retornam com toda
força em Além do princípio do prazer, afirma Laplanche(1988).

As pulsões sexuais de vida funcionam segundo o princípio da energia ligada,


(princípio de constância); seu fim é a síntese, a manutenção ou a constituição de
unidades e de laços; são conformes ao eu; seu objeto-fonte é um objeto “total”,
regulador. As pulsões sexuais de morte funcionam segundo o princípio de
energia livre (princípio do zero); seu fim é a descarga pulsional total, ao preço do
aniquilamento do objeto; são hostis ao eu que tentam desestabilizar; seu objeto
fonte é um aspecto clivado, unilateral, um indício de objeto (LAPLANCHE, 1988,
p.27)

Hanna Segal (1988, p.41) defende que a libidinização está quase sempre
presente como parte da fusão das pulsões de vida e de morte. Num desenvolvimento
sadio, a fusão das pulsões se dá sob a égide da pulsão de vida, e a pulsão de morte
desviada – a agressividade – está a serviço da vida. Onde a pulsão de morte
82

predomina, a libido está a serviço desta. Isto é particularmente manifesto nas


perversões.
A autora inglesa indica um estreito vínculo entre a pulsão de morte e a inveja. A
pulsão de morte é uma reação à perturbação provocada pelas necessidades. O objeto
é percebido ao mesmo tempo como uma perturbação que cria a necessidade e como
único meio capaz de anular esta perturbação. Enquanto tal ele é odiado e invejado.
Se há uma pulsão sexual dirigida ao ego do sujeito, por que não haveria uma
pulsão de morte igualmente dirigida para o ego de sujeito? Freud não teve tempo ou
interesse de se ocupar dessa questão, mas outros autores, como os citados acima se
debruçaram no estudo sobre a interrelação entre narcisismo e tânatos. Dentre esses,
nos deteremos em especial Rosenfeld e Green, os quais mais se destacaram nesse
estudo.
Rosenfeld (1971) relembra que Freud (1920) enfatizou que a pulsão de morte
tende a levar, silenciosamente, o indivíduo em direção à morte e somente através da
atividade da pulsão de vida, tânatos é projetado e surge como impulso destrutivo contra
objetos no mundo externo. Ambas as pulsões se encontram fusionadas, não sendo
possível observar a pulsão de morte na sua forma original, já que ela se manifesta
sempre como processo destrutivo contra os objetos ou o self. Tais processos parecem
operar em sua forma mais virulenta em patologias narcísicas.
Fazendo referência à afirmação freudiana de que, à época do narcisismo
primário, quando o objeto faz sua aparição (quando a criança reconhece a existência
do objeto), o ódio atinge seu ápice, Rosenfeld (1971, p.169) conclui: “o ódio, enquanto
relação com o objeto, é mais antigo que o amor. Ele deriva do repúdio primordial do
narcisismo egóico em relação ao mundo externo com seu excesso de estímulos” 58.
Ele introduz o conceito de fusão patológica para aqueles processos onde, na
mistura de impulsos libidinais e destrutivos, a força dos impulsos destrutivos fica mais
forte, enquanto que na fusão normal a energia destrutiva fica mitigada e neutralizada.
Rosenfeld (1971) destaca que a fusão do self com o objeto funciona como
defesa contra o reconhecimento da separação entre ambos. A percepção da separação

58
Tradução livre
83

leva imediatamente a sentimentos de dependência do objeto e, consequentemente, à


frustração.
O autor diferencia aspectos libidinais e destrutivos do narcisismo. Ao considerar
o narcisismo pelo seu aspecto libidinal, observa-se que a supervalorização do self
desempenha um papel central, baseado principalmente na idealização. A idealização
do self é mantida por identificações projetivas e introjetivas onipotentes com objetos
bons e suas qualidades. Dessa maneira a pessoa narcisista acha que tudo que é
valioso relacionado aos objetos externos e o mundo exterior é parte dela ou é
onipotentemente controlado por ela.
Paralelamente, segundo o autor, quando se considera o narcisismo pelo seu
aspecto destrutivo, encontra-se outra vez a idealização do self desempenhando um
papel central, porém agora a idealização diz respeito a partes onipotentes destrutivas
do self. Ela é dirigida contra qualquer relação de objeto positiva e também qualquer
parte do self que sinta necessidade por um objeto e deseje depender dele.
As partes destrutivas do self geralmente se mantêm disfarçadas ou silenciadas e
cindidas, o que encobre sua existência e dá a impressão de que elas não têm relação
com o mundo externo. Na realidade, explica Rosenfeld (1971), elas têm um efeito muito
poderoso em atrapalhar relações objetais que envolvam alguma dependência e a
manter o objeto em permanente desvalorização, o que leva à aparente indiferença do
narcisista no que tange o objeto e o mundo externo.
No narcisismo da maior parte das pessoas, os aspectos libidinais e destrutivos
coexistem, mas a violência do impulso destrutivo varia. Nos estados narcísicos onde o
aspecto libidinal predomina, a destrutividade se torna aparente assim que a idealização
do self é ameaçada pelo contato com o objeto o qual é percebido como separado. O
sujeito se sente humilhado e desafiado pela revelação de que é o objeto externo que,
na realidade, contém as qualidades valiosas que ele tinha atribuído a si próprio. Nisso
surge um impulso de destruição do objeto e de si mesmo.
Esses conhecimentos podem nos ajudar a pensar a paixão na sua característica
mais destrutiva, que a torna patológica, inclusive aquele que tenta evitar a percepção
do objeto, e age como se o mesmo fosse um prolongamento do ego do sujeito.
84

Como observou Rosenfeld (1971) ao se referir ao narcisismo libidinal, o sujeito


narcisista acha que tudo que é valioso nos objetos externos e o mundo exterior é parte
dele. A fusão com o objeto serve justamente para não desfazer esse pressuposto de
onipotência do sujeito.
A percepção da separação leva a uma sensação de perda. A partir daí pode-se
estabelecer um processo de luto ou de melancolia. Tendo em vista o tipo de escolha de
objeto – a narcísica – por trás da paixão, elevam-se as chances de se estabelecer a
melancolia, como veremos a seguir.
Há ainda um componente agressivo, ou melhor, auto agressivo, que poderá
levar a uma situação narcísica destrutiva. O objeto, quando reconhecido duplamente:
na sua existência e também enquanto portador das boas qualidades que o sujeito
atribuía a si passa a ser atacado pelo impulso agressivo. E, como afirma Rosenfeld
(1971), o sujeito também ataca a si próprio. Entendemos que o autor está-se referindo
a um processo semelhante àquele exposto por Freud (1917) ao abordar a melancolia.
É provável que Rosenfeld, especialmente por ser um teórico das relações objetais 59,
reforce o narcisismo destrutivo como um ataque a uma parte de si identificada com o
objeto perdido.
Rosenfeld (1988) fala de um ataque ao ego por causa da frustração com o
mesmo ao descobrir que ele não é aquele ideal imaginado, este ideal cabe ao objeto.
Assim, o ego é auto atacado por ser ele o causador da frustração devido a sua
insuficiência. Na verdade é um ataque de todas as formas, dirigido ao ego em si pela
decepção que ele causou e um ataque ao objeto introjetado pela decepção da qual ele
foi o precursor, o qual agora se fundiu ao ego.
Na paixão, quando o sujeito não consegue superar a perda do outro, mesmo
que seja a perda da ilusão sustentada pelo outro, imaginamos que ocorra uma
dinâmica dessa natureza. O sofrimento se perpetua em virtude dos ataques
autodirigidos. O sujeito perdeu uma parte significativa de si, a parte que ele entendia
como sendo totalmente “boa”, lhe resta agora as partes más do objeto e de si próprio.

59
O texto do Luto e Melancolia (1917) é tido como emblemático para a teorização kleiniana
85

Enquanto um funcionamento mais primitivo, o objeto e o ego estão cindidos,


numa base de “somente bom” ou “somente mau”. O sujeito entende que tudo que era
bom foi-lhe retirado e ele ficou apenas com o que é ruim.
Há ainda um dificultador a mais, caso o sujeito aceite a dependência do objeto,
“as partes onipotentes e destrutivas do self que são idealizadas se dirigem contra a
relação objetal libidinal e positiva e contra qualquer parte libidinal do self que sinta a
necessidade de um objeto” (ROSENFELD, 1988, P.140). Depender do objeto é
imperdoável e passível de punição. Na paixão, onde há grande dependência fusional
do outro, o ego do sujeito apaixonado deverá “pagar” por isso, levando a um espiral de
punição, dor e sofrimento.
Tais conjecturas nos ajudam a pensar no papel do narcisismo destrutivo na
dinâmica patológica da paixão. Ainda quanto à destrutividade embutida no narcisismo,
há o ponto de vista de outro importante autor que se dedicou ao assunto: Green.
André Green (1976/1988c) defende a ideia de que não se pode aceitar a
segunda tópica sem levar em conta a última teoria das pulsões. Ele considera
importante adequar o postulado da pulsão de morte às noções até então estabelecidas.
Dessa forma, introduz o conceito de narcisismo negativo, “duplo sombrio do
Eros unitário do narcisismo positivo” (GREEN, 1976/1988c, p.41). Para Green todo
investimento objetal, assim como egóico, implica na sua contrapartida, um movimento
invertido, um retorno regressivo ao ponto zero. Esse retorno ao ponto zero caracteriza
o narcisismo negativo.
O narcisismo negativo envolve a preponderância da satisfação narcisista sobre a
satisfação objetal, nesses casos, a primeira é julgada mais desejável do que a
segunda, já que esta última implica numa satisfação submetida à dependência, ao
objeto e às variações aleatórias do mesmo. Além disso, há as respostas sempre
incompletas que o objeto proporciona, muito aquém do que se imaginava que ele iria
realizar.
O autor afirma que certos temas da metapsicologia freudiana mostram o
trabalho da pulsão de morte em alguns aspectos da vida psíquica e cita dentre elas a
função do Ideal. Ele não explica porque o considera como exemplo do trabalho de
tânatos, mas dá uma pista numa mesa redonda com Hanna Segal, Widlöcher,
86

Laplanche e Rechardt (1984/1988c) onde reafirma que o narcisismo primário tem


relações com a pulsão de morte. Green (1984/1988c) diz que Freud falou de um
narcisismo primário absoluto, que seria, para o autor francês, a própria imagem do
desinvestimento, vinculando-o à pulsão de morte. Podemos pensar que Green liga o
ideal a tânatos porque ele envolve um refluxo das pulsões sexuais do objeto em
direção ao ego, num processo de desobjetalização, atividade nodal da pulsão de morte
para ele.
Aqui se faz importante entender melhor o conceito de função desobjetalizante
trazido por Green (1967/1988b, 1976/1988b, 2010). O autor sugere a hipótese de que o
objetivo primordial das pulsões de vida é assegurar a função objetalizante, qual seja,
criar uma relação com o objeto interno e externo, bem como promover à condição de
objeto o que não possui nenhuma das qualidades, propriedades e atributos de objeto.
Ele chama a essa artifício de objetalizar o investimento.
Inversamente, a meta da pulsão de morte é realizar uma função desobjetalizante
pelo desligamento. Não é somente o objeto que é atacado, mas todos os substitutos
deste, inclusive o ego. Green (2010, p.100) afirma: “a manifestação própria à
destrutividade da pulsão de morte é o desinvestimento”.
O autor reflete que a função desobjetalizante é bem diferente do luto e se
constitui num procedimento mais radical que se opõe ao trabalho deste, uma vez que
este último tem como núcleo o retorno à função objetalizante.
A ação da pulsão de destruição ou de morte, diz Falcão (2014) se manifestam
sob o efeito de uma função desobjetalizante pelo desligamento. A pulsão de morte está
em ação cada vez que os objetos se encontram desqualificados e deixam de ser
valorizados.
Ocorre um engodo em pensar que há um investimento no objeto, há um
investimento numa ilusão de objeto que subtrai os investimentos outros em objetos
substitutos; daí sim, caracterizando explicitamente o ataque a qualquer tipo de
investimento, a uma desobjetalização do vínculo.
Aulagnier (1985), sem fazer menção a Green ou aos termos cunhados por ele,
fala, de certa forma, numa vontade “desobjetalizante” do ego, à medida que reafirma
87

que na paixão, o outro se torna uma necessidade e não uma escolha. A partir dessa
constatação, ela declara que o objeto da paixão é:

este objeto híbrido capaz de satisfazer ao mesmo tempo Eros e Tanatos, a


supremacia do sofrimento como o desejo de não mais sofrer e não mais desejar
que daí resultam mostram que a escolha de objeto é mais obra de Tanatos que
de Eros (AULAGNIER, 1985, p.157).

Destacamos que ela enfatiza o desejo de não mais desejar, qual seja, uma
expectativa de desobjetalização.
Ainda a respeito de tânatos, Segal (1984/1988, p.95) também advoga que “o
narcisismo primário é todo expressão da pulsão de morte”, essencialmente na medida
em que é desobjetalizante, deduzindo que só há narcisismo libidinal no narcisismo
secundário.
É bastante interessante olharmos o ego ideal pelo prisma da pulsão de morte
para entender a paixão patológica sob a perspectiva do narcisismo negativo. Pelo que
vimos até agora, o ego ideal é a instância diretamente envolvida no apaixonamento,
sendo projetado praticamente por completo no outro para o qual os investimentos são
totalmente dirigidos. Há uma descarga libidinal total no objeto externo, havendo uma
estreita conexão com o narcisismo negativo de Green (1967/1988b, 1976/1988c, 2010),
onde há uma descarga total, chegando ao nível zero. Há também, de certa forma, uma
situação de desobjetalização, ou narcisismo de morte, já que não há objetos outros
para os quais o sujeito queira dirigir seus investimentos além do objeto da paixão.
Acreditamos que com o ego deslocado para o outro, ficando empobrecido, fica
mais difícil a elaboração do luto. O aprisionamento ao objeto, antes externo, agora
internalizando pela via identificatória, gera um processo de melancolia. Na melancolia,
oposta ao luto, há uma repetição mortífera no mesmo, que não gera novos
investimentos.
Como mencionamos no segundo capítulo, nem o objeto externo é investido, nem
tampouco o ego. O objeto externo não é reconhecido em sua alteridade. A economia
da paixão tende seriamente a empobrecer o ego, como frisou Freud (1921) há quase
cem anos, um empobrecimento que pode levar à morte psíquica.
88

Vemos como o refluxo egóico saudável da libido e seu novo direcionamento aos
objetos é importante para a saúde psíquica do sujeito, isso se faz presente no trabalho
do luto. Na melancolia é a patologia diante da perda que predomina. Estudaremos um
pouco desse processo para entender a paixão patológica.

3.2. Melancolia
Freud (1917) distingue os dois movimentos do luto e da melancolia frente à
perda do objeto, considerando o primeiro saudável e o segundo patológico.
Entendemos a melancolia como um dos desdobramento patológicos da paixão.
No luto o mundo que se torna pobre e vazio, já na melancolia, é o próprio ego
que se empobrece, sentencia Freud (1917).
Na situação de melancolia verifica-se que o tipo de escolha objetal era o
narcísico, de modo que “a catexia objetal ao se defrontar com obstáculos, pode
retroceder para o narcisismo” (FREUD, 1917, p.282). Esse tipo de escolha, que Freud
percebe ser subjacente aos casos de melancolia, também está eminentemente
presente nos casos de paixão. Daí podermos deduzir que a paixão e a melancolia
trazem uma dinâmica semelhante e o que se aplica à melancolia pode ser usado para
compreender a paixão.
Aqui é importante relembrar a descrição freudiana (1921) da economia psíquica
no apaixonamento, dizendo que o ego se empobreceu transbordando sua libido para o
objeto. Pensamos que a economia semelhante na paixão e na melancolia, permite
deduzir que paixão tem grandes chances de um desenrolar patológico marcado no
instante mesmo de sua instalação. Isso não significando que toda ela tenha
necessariamente o mesmo destino.
Na configuração da melancolia, a pulsão sexual fica presa na sua volta ao ego,
mais especificamente ao objeto perdido, que agora, por via identificatória, se agregou
ao ego do sujeito, no que Freud (1917, p.181) constata que “a sombra do objeto caiu
sobre o ego”. O investimento que deveria estar direcionado ao mundo externo agora é
todo voltado ao mundo interno, porém de maneira soturna e melancólica, identificado
que está com o objeto abandonado.
89

A retração narcísica é corolária do desinvestimento objetal, afirma Green


(1988b, p.164), “o sequestro objetal é o desafio de um combate implacável onde o Eu,
pensando em machucar o objeto, só consegue machucar a si mesmo”. Green
(1984/1988b) correlaciona o luto, como mecanismo estruturante, à pulsão de vida,
sendo indispensável para a superação de fixações, e necessário para as mudanças
evolutivas. Em contrapartida, a melancolia, que se encontra em oposição ao luto, é
permeada pelas pulsões de morte, originando situações que se caracterizam por lutos
impossíveis.
Vale ressaltar que a catexia que retorna ao ego refere-se também a
investimentos agressivos que seriam destinados ao objeto perdido, e, nesse caso,
voltam-se contra o próprio sujeito, uma vez que este se identificou com o objeto. Há de
se destacar que nestas relações há um forte componente de ambiguidade e por
ocasião da frustração, prevalece a raiva do objeto.
Klein (1952a) teoriza sobre os sentimentos ambíguos acerca do outro,
inicialmente abordando a cisão do objeto (a qual leva também à cisão do ego do
sujeito) em bons e maus. Ela explica que na fase inicial do desenvolvimento do ego,
que ela denomina esquizoparanóide, os objetos são divididos em bons e maus, assim
facilitando a relação do bebê com os mesmos. Os objetos bons são idealizados e
servem para proteger o bebê dos objetos maus e temidos que o perseguem. Em
termos gerais, a criança introjeta as partes boas e projeta as más 60 dos objetos e do
ego, incapaz ainda de lidar emocionalmente com objetos totais.
Fagundes (1993) relembra que uma característica típica das relações objetais
esquizóides é a sua natureza narcísica, a qual deriva dos processos introjetivos e
projetivos infantis. Ela mostra que os mecanismos básicos presentes no narcisismo
são: negação, cisão, identificação projetiva, onipotência e idealização, mecanismos
também característicos da posição esquizoparanóide.
Por sua vez, Prado (1988) acrescenta que nesta posição o ego ideal é projetado
em outra pessoa, tornando-a predominantemente amada e admirada porque contém as

60
O termo esquizoparanóide vem de esquizo – cisão dos objetos em bons e maus e paranóide – perseguição pelos
objetos maus.
90

partes boas (impulsos libidinosos narcísicos) do ego. Nesse período mais primitivo é o
ego ideal que intermedia as relações objetais.
Mezan (1987) observa que a idealização é um mecanismo de defesa contra as
pulsões destrutivas, uma vez que o objeto ideal, totalmente bom irá defender a criança
do objeto mau, persecutório. Ele, entretanto, levanta outra questão: diante do objeto
idealizado, sentimo-nos dispensáveis e inferiores, sem nada a acrescentar que o objeto
já não possua. Isso desperta uma grande inveja e frustração com o mesmo. A
frustração se dá à medida que esse objeto tão poderoso não é capaz de aniquilar com
todas as angústias da criança. Nós sabemos que isso é impossível, mas ela ainda não;
com isso culpa o bom objeto por não lhe restituir o estado de bem aventurança. A
inveja e a frustração respondem também pela ambiguidade em relação ao objeto
idealizado.
Com o desenvolvimento das funções egóicas o bebê passa a perceber o objeto
como um todo e a fazer reparação pelo dano causado imaginariamente aos maus
objetos, que ele via apenas como maus, mas agora os percebe como outra faceta dos
bons objetos. A criança descobre que, portanto, também atacava objetos tão preciosos
e bons. Essa é a posição depressiva, nome dado em virtude da angústia prevalecente
dessa época pelo mal causado imaginariamente aos objetos amados.
Na ambiguidade presente na melancolia, responsável pelo ataque do sujeito ao
próprio ego, que agora se identificou ao objeto perdido, percebemos um funcionamento
semelhante à posição primitiva do bebê descrita por Klein (1952b). O objeto amado e
idealizado também é invejado e frustrante. Além disso, há maior dificuldade de
integração do amor e ódio relativos ao objeto.
Essa porção do ódio desintegrado em relação ao outro retorna para o sujeito,
favorecendo a instauração da melancolia, numa dinâmica psíquica em que uma parte
diferenciada do ego, o superego, ataca o sujeito com o ódio outrora destinado ao objeto
externo. Santos e Sartori (2007, p.17) resumem: “A melancolia, podemos defini-la
assim, é o avesso da paixão narcísica. É o ódio puro que viceja no lamaçal, pantanoso
e fétido, da decepção consigo mesmo e com seu ideal”.
O quadro que os autores se referem diz respeito a uma fase do desenvolvimento
ainda incipiente do ego, que, portanto, lança mão de defesas menos elaboradas e que
91

tem estreita ligação com o processo patológico da melancolia. Tal ligação entre a
posição esquizoparanóide e a melancolia se verifica não só no tipo de escolha
narcísica, mas também na ambivalência que acompanha a relação com o objeto.
Nessa fase do desenvolvimento, para o objeto ser idealizado da maneira como é, ele é
cindido e o sujeito tenta se relacionar apenas com as partes amadas, as quais são
enormemente idealizadas.
Ao que nos parece, a paixão tem características mais evidentes da posição
esquizoparanóide, especialmente no seu aspecto narcísico, conforme salientou
Fagundes (1993), citada alguns parágrafos acima.
Prado (1988) também corrobora nossa hipótese ao destacar que na posição
esquizoparanóide é o ego ideal que se projeta no outro. Ego ideal e narcisismo primário
estão fortemente entrelaçados no apaixonar-se como temos visto ao longo dessa
pesquisa.
Podemos agora pensar na relação estreita entre paixão e melancolia também
pelo prisma da teoria kleiniana à medida que a melancolia é associada à posição mais
primitiva do desenvolvimento do ego, fase balizada por uma dinâmica semelhante à da
paixão.
Diríamos que a melancolia é o outro lado da moeda da paixão, cujo valor de face
é o narcisismo. Ambas, paixão e melancolia (sofrimento) estão entremeadas, uma
levando a outra consigo, marcadas pela decepção.
Seria, portanto, pertinente conjecturar que onde houver a melancolia, havia uma
pessoa apaixonada que adoeceu? Uma pessoa que escolheu seu amado pelo viés
narcísico e, sem perceber, elegeu uma forma páthica de amar?
Por investir os objetos de maneira narcísica, para o melancólico é difícil
desinvesti-los, reafirma Hornstein (2009). Uma escolha objetal dessa natureza, e a
ambivalência que se escondia sob o investimento narcísico-idealizado do objeto,
dificultam o luto. A melancolia ilustra como o ego é alimentado pelo objeto. “Produz-se
uma regressão de escolha de objeto narcísico para o narcisismo. (...) A escolha
narcísica se torna identificação narcísica” (HORNSTEIN, 2009, p.104).
O investimento narcísico num objeto, prossegue o autor, equivale a investir em
si mesmo através do objeto, portanto o melancólico sente a perda do objeto como uma
92

perda de si. “O trabalho do luto (...) é bem sucedido quando consegue ligar a pulsão de
morte com Eros” (op. cit. p.104).
Castelo Branco (2014) nos recorda que o termo ‘melancolia’ representa, desde
Freud, um quadro de perda. No entanto, a perda melancólica é, em sua aparência, uma
perda incomum. O melancólico é alguém que permanece ligado a um objeto de amor
de maneira patológica, mesmo após a morte ou perda definitiva desse objeto. Esse
laço que não cede e que permanece ligado ao lugar vazio deixado pelo objeto de amor
indica-nos, de antemão, que não se trata, na melancolia, de uma escolha de objeto
comum.
No tipo de escolha com base narcísica, ao perder-se o objeto, perde-se também
uma parte essencial do sujeito. Na medida em que se busca no outro o espelho para
projeção de uma idealização primitiva, fazendo dele uma miragem onde possa admirar
sua perfeição, ao se quebrar tal espelho, o sujeito se vê diante do “azar” de sua
castração. Infelizmente, ao contrário da crendice popular, não serão sete anos de azar,
mas uma “maldição” que se carregará por toda vida.
Ao invés de um refluxo da libido para o ego, para em seguida ser redirecionada
a novos objetos possíveis, como seria a saída saudável na situação de luto, a catexia
outrora destinada ao objeto fica presa à imagem dele que a partir de então paira sobre
o ego do sujeito, sombreando novas chances de investimento.
O sujeito não se desliga do objeto narcísico e advém uma fixação e perda da
maleabilidade de investimentos que caracterizam a patologia. Espera-se maleabilidade
da pulsão, cujo objetivo é a descarga levando o aparelho anímico a encontrar objetos
que sejam adequados para tanto. O aparelho psíquico é posto em movimento em
virtude da pulsão, motivado que está para seu alívio de tensão. No caso da perda do
objeto da paixão, o objeto deixou de ser adequado, mas o ego não consegue encontrar
substitutos, tão preso e fixado que se encontra ao objeto perdido.
Assim como na melancolia, na paixão também há um objeto perdido, nela a
perda se dará sem necessariamente haver um afastamento do objeto. Dela pode advir
o luto ou a melancolia. Lembremos que a paixão está fadada ao fim, posto que é
impossível sustentá-la devido às bases ilusórias na qual tenta se equilibrar. Mesmo que
no lugar nasça o amor, algo fatalmente será perdido. O apaixonamento sempre
93

envolverá um abandono que diz respeito à perda do reencontro da situação inicial


narcísica.
Montero (2005, p.20) adverte que:

Os casais que passam à história como símbolos da paixão perfeita muitas vezes
se desfazem na patologia ou na mesquinhez quando olhados de perto. É que
todos somos tentados a acreditar que o próximo é capaz de viver a plenitude
que sempre se esquiva de nós mesmos: o amor absoluto, a felicidade completa.

Estabelecer um investimento verdadeiro e amadurecido, onde o outro é


reconhecido como separado é essencial para um destino saudável da relação. Vemos
como o papel do reconhecimento do outro é essencial para entender os mecanismos
do apaixonamento e de seu possível adoecer. Estudaremos, então, o conceito de
alteridade e depois de alienação para verificar sua conexão com mais um aspecto
patológico da paixão.

3.3. A negação da alteridade


Na teoria freudiana fica evidente o trabalho demandado ao sujeito para sair do
narcisismo primário ao se deparar com a existência do objeto através de suas
necessidades não realizadas. Para Freud o encontro com a alteridade é sempre
traumático e descentra o sujeito. A busca pelo objeto que satisfaça a pulsão inaugura e
mantém o trabalho psíquico, bem como a subjetividade.
O reconhecimento do outro pode seguir diferentes caminhos, dos mais
constitutivos aos mais desestabilizadores. Um deles, que interessa a pesquisa sobre a
paixão, é a tentativa de negação da alteridade, com a manutenção de uma fusão
ilusória.
Negar a alteridade serve para não se deixar alterar. O outro pode ser visto como
um invasor que desestabiliza o sujeito, ele pode negar-se a reconhecê-lo para aliviar
seu medo diante de tal estrangeiridade. O reconhecimento da alteridade foge à
adequação e ao perfeito encaixe entre o Eu e o Outro, e traz em si uma experiência
94

traumática que passa pela percepção de que o outro sempre excede o sujeito.
(COELHO JR e FIGUEIREDO, 2004)
Quanto à fusão com o outro, é provável que, pela ótica do sujeito, ele mal
reconheça esse movimento em relação ao objeto, uma vez que ele pouco percebe o
outro. Como não se trata de uma negação psicótica, o apaixonado sabe que o outro
está ali, no entanto ele usa de subterfúgios para driblar a percepção do outro enquanto
sujeito em si, separado e autônomo.
É comum vermos o apaixonado ter a certeza de saber o que é melhor para o
amado, ou vê-lo completar aquilo que o outro quer dizer, deduzir o que o outro está
pensando ou precisando. Esses são exemplos corriqueiros e superficiais de negação
de vida própria do outro. Há outros mais complexos e nocivos como vimos na
perversão narcísica e outros que podem se evidenciar no momento em que o objeto
não corresponde ao investimento do apaixonado. O sujeito não dá a opção do outro
não o desejar, ele sequer entende ou permite que o objeto tenha vontade e vida
próprias. Muitos crimes passionais ocorrem imbricados nessa lógica de que o outro não
tem o direito de viver uma existência à parte ou ter desejo diferente do apaixonado.
Uma maneira bem específica de negação da alteridade encontra-se no
desmentido 61, onde uma percepção é escamoteada, sendo vista, mas desprezada,
permitindo duas realidades contrárias conviverem lado a lado. No nosso caso, o
apaixonado vê o outro, sabe que ele é separado de si, no entanto, não dá a ele o
atributo de ser desejante. Não é à toa que consideramos um dos aspectos patológicos
da paixão o excesso do uso do mecanismo da recusa, fazendo do outro um objeto
fetiche. A esse tema nos dedicaremos logo mais.
Ainda em relação à alteridade na teoria psicanalítica há a posição de Laplanche
(1967/1992), oferecendo um interessante ponto de vista acerca do outro.
Laplanche (1967/1992) se utiliza do terceiro golpe narcísico infligido por Freud à
humanidade 62 para falar da revolução que o pai da psicanálise trouxe ao mundo
quando nos apresentou esse “outro” que nos habita, o Inconsciente. Ele traça um
61
Estamos nos referindo ao mecanismo da Verleugnung, que diferentes autores traduzem de diferentes maneiras,
citamos apenas alguns exemplos: Rejeição em Freud (1927,1938); Renegação para Bleichmar (1985 Introdução ao
estudo das perversões); Recusa segundo Aulagnier (2003 A perversão como estrutura), Desmentido para Serge
André (1995 A impostura perversa) e Queiroz (2004 A clínica da perversão).
62
Ao desapropriar o homem de sua própria casa, ou seja, de sua consciência,
95

paralelo entre a revolução feita por Copérnico ao deslocar a Terra do centro do


Universo 63 e a empreendida por Freud. Daí o interessante nome do seu livro A
revolução coperniciana inacabada (1992). Ele afirma que Freud provoca um
descentramento radical que tem dois desdobramentos, um clássico, a descoberta do
Inconsciente, segundo Laplanche, um “centro que ‘excentra’” (1967/1992, p.XIII); e
outro que é a teoria da sedução, aspecto escondido, porém indispensável ao primeiro,
posto que é ele que mantém o Inconsciente no seu papel de estrangeiro. O domínio do
Inconsciente é inseparável do seu início, reflete o autor, o qual cria desde então um
hiato com todas as concepções do assim referido “inconsciente pré-freudiano”
(LAPLANCHE, 1972/1992, p.XIII).
É bem sabido da importância da carta de Freud a Fliess (1986) de 21 de
setembro de 1897 em que ele revela ter que abandonar sua “neurótica”. Ele havia
descoberto que sua teoria da sedução infantil era majoritariamente fruto da fantasia dos
pacientes e não havia tantos casos de sedução real quanto os relatados pelos
neuróticos, bem como não havia tantos adultos perversos em Viena quanto dava a
entender tais relatos.
Dessa maneira concluiu que a sedução infantil se dava em fantasia, e mais
ainda, que esta tinha o mesmo estatuto que a realidade material para o Inconsciente.
Freud não abandonou o peso da sedução real, nem as neuroses atuais delas advindas,
porém pouco voltou a esse ponto ao longo de sua obra, muito menos sustentou sua
teoria baseado nessa hipótese.
Laplanche (1987) não descartou a primeira hipótese freudiana, mas fez uma
leitura bastante diferente a respeito da sedução, generalizando-a, sem perversificá-la,
podemos dizer. A sedução é natural e não intencional por parte do adulto que cuida da
criança, exercendo a maternagem.
Com os cuidados necessários ao infante, na amamentação, no banho, no ninar,
o corpo da criança passa a ser erotizado, recebendo uma carga de estímulos que
excede sua capacidade de elaboração psíquica.
O Inconsciente é composto de cenas evocadas por lembranças e fantasias,
declara Laplanche (1967/1992), e, sobretudo, tais cenas são de ordem sexual. Ele

63
Marcando o primeiro golpe narcísico da humanidade, destronando o sistema criado por Ptolomeu.
96

explica que o primado do sexual se abre diretamente para a questão do outro, e, em


relação à criança, se abre para a questão do adulto em sua posição de estrangeiro.
“Corpo estrangeiro interno”, “reminiscência” é o Inconsciente enquanto estrangeiro no
sujeito, que por sua vez é colocado no homem pelo estrangeiro, pelo outro, escreve
Laplanche (1967/1992) no mesmo artigo.
Num texto posterior, de 1990, compilado na obra acima citada, A revolução
coperniciana inacabada, Laplanche (1990/1992, p. 380), diz que a “alteridade do outro
é a sua reação a seu Inconsciente, quer dizer, sua alteridade a si próprio 64”. O
Inconsciente, longe de ser o núcleo da pessoa, é o outro implantado no sujeito. Já o
outro, no sentido de outra pessoa, é relacionado à construção da subjetividade
humana. Sem o outro, o sujeito não se constitui, o que faria da alteridade algo benéfico,
porém, o autor chama a atenção que em Melanie Klein, e antes mesmo, em Freud, o
objeto (o outro) é mau, primordialmente por causa das projeções nele efetuadas.
Percebemos o quanto esse outro é visto como ameaçador e o sujeito não se dá
conta que precisa dele para se constituir e se manter. O outro é o estranho, o
forasteiro, o estrangeiro, alguns chegam a desenvolver uma xenofobia diante desse
algo que escapa dos domínios deles mesmos.
Apesar da paixão trazer o outro para junto de si, ela ao mesmo tempo, ou por
isso mesmo, anula o outro enquanto sujeito desejante. O ser apaixonado, repetimos,
não enxerga o outro como um terceiro, ele o vê como um espelho onde se mirar e se
fascina consigo mesmo refletido na perfeição projetada. No entanto, o apaixonado não
se dá conta disso, pois, além do outro sujeito que ele não reconhece, há um outro
ainda mais poderoso que o cega, é o estrangeiro dentro de si, o inconsciente. Esses
processos se dão nessa dimensão estranha que trazemos conosco e, por isso, o duplo
desconhecimento: do terceiro e da dinâmica inconsciente que pode nos levar a esse
mecanismo.
Lembremo-nos, como dissemos no primeiro capítulo, que paixão vem do termo
pathos, assim como o vem a palavra passividade. Somos passivos diante das forças
inconscientes, agimos, sem saber que estamos, na verdade, reagindo a algo que nos
afeta sem o sabermos. Somos alterados por essa alteridade que habita em nós.

64
Tradução livre.
97

Somos também apassivados pelo outro, ele desperta em nós defesas e


impulsos 65 que não sabemos explicar por completo através do uso da razão. Segundo
Laplanche (1987), esse outro nos apassiva desde o primeiro instante. Ele traz o
erotismo para o campo psíquico.
Laplanche (1987) considera a sedução como o fato gerador mais importante em
psicanálise. Refere-se à primeira teoria de Freud acerca do assunto (antes de 1897)
como a teoria da sedução restrita caracterizada pela imposição sexual de um adulto a
uma criança, originando cenas que eram recordadas e reconstruídas durante a
análise 66, numa época em que Freud também se valia de informações colhidas junto à
família do paciente, naquilo que Laplanche (1987, p.113) denomina com bastante
propriedade de “um verdadeiro inquérito objetivo”. Quando o sujeito elabora a
sexualidade, posteriormente, ele consegue dar um significado traumático ao
acontecimento que ele viveu de forma passiva.
Num outro momento teórico, após 1897, a passividade da criança assume certa
atividade, relata Laplanche (1987), tendo em vista que por trás da sedução passiva há
uma atividade de provocação da criança, nem que seja em fantasia, forjada pelo
pequeno ser para mascarar seus desejos edipianos. O autor relata como para o próprio
Freud, na sequência de 1897, a teoria da sedução experimenta um verdadeiro
cataclismo, “cataclismo que começa por despedaçar, deslocar, alterar antes de, a
seguir, recalcar e depois elaborar de maneira secundária os restantes elementos”
(LAPLANCHE, 1987, p.123).
Vemos nessa virada teórica do abandono da “neurótica” freudiana, o grande
momento para a psicanálise, uma vez que ela traz para o centro da teoria,
verdadeiramente, a sexualidade infantil, um dos pilares fundantes dos conceitos
freudianos. Antes havia a sexualidade na infância, traumática, já que imposta. A partir
dessa virada, a sexualidade passa a ser da infância e não na infância, ela pertence a
todas as crianças; é constitutiva, inerente ao humano. Isto não significa que ela não

65
Usamos aqui impulso no sentido de movimento, já que não somos da teoria que é o objeto que desperta a
pulsão, mas esta que parte em busca de um objeto.
66
Não concordamos que antes de 1897 se possa falar em processo psicanalítico, uma vez que ainda não havia o
primado do estatuto da fantasia como realidade no Inconsciente.
98

seja despertada pelo outro, estrangeiro, o adulto, mas ela não é imposta, ela é
desvelada.
Nesse ponto, voltamos à Laplanche (1987, p.126) e a “teoria da sedução
generalizada”. Ela tem relação com a “sedução precoce” introduzida por Freud (1933 67)
onde o pai perverso dá lugar à mãe na relação pré-edipiana. A sedução é veiculada
pelos cuidados corporais dispensados ao bebê quando a mãe desperta pela primeira
vez sensações de prazer no órgão genital.
A diferença ressaltada e introduzida por Laplanche (1987) alarga a dimensão da
sedução, observando que o despertar não se dá apenas a nível genital, mas
igualmente ao conjunto de erogeneidade do corpo. A mãe traz a erogeneidade da
criança à tona.
O outro, o estrangeiro, inaugura no bebê sensações que lhe pertencem, se
apoiando em funções orgânicas para se expressarem. O que era autoconservação
assume uma função sexual. Apoiado no instinto de sobrevivência, de alimentação e
cuidados básicos, o ego descobre outro tipo de satisfação, da ordem do prazer,
emergido da libido colada à satisfação orgânica. Entramos na terra estrangeira do
erótico, da interdição, do recalque, enfim, do Inconsciente. O encontro com o objeto
rememora esse primeiro encontro com o estrangeiro, todo encontro com o objeto, é na
verdade, um reencontro com o mesmo, diz Freud em 1905.
Nesse sentido, a paixão é a grande marca do outro, aquele que determina
nossas respostas, sentimentos, defesas. Paixões são inexplicáveis, ao menos pela
razão. Sua compreensão está na esfera do estranho em nós.
À medida que é o outro real – a mãe, na teria laplancheana - que nos desvela o
erotismo, criando a força do desejo pulsional, podemos também entender o medo que
a alteridade traz para o sujeito. Ela inaugura um campo sem respostas ou objetos
definidos, nos levando a uma vida de buscas nunca plenamente realizadas. O
verdadeiro objeto (qual seja) da satisfação estará para sempre perdido. A pulsão não
tem objeto definido.
As paixões são tentativas destinadas ao fracasso de reencontrar esse objeto,
apossar-se dele e nunca mais experimentar a frustração. Conforme se dê a

67
Novas Conferências Introdutórias, conferência 33: A feminilidade.
99

persistência nessas tentativas, o aferramento do sujeito ao objeto supostamente


perfeito, o destino será marcado eminentemente pela dor, sofrimento e patologia.
O objetivo da paixão é impossível e seu destino incontornável: a decepção. É
preciso (re)elaborar essa falta para dar um destino sadio ao apaixonar-se.
A negação da alteridade expressa o ápice do narcisismo, o outro é tão
ameaçador ao relembrar sua importância devido à insuficiência do sujeito que ele tenta
se convencer que esse outro não existe. Tarefa que não é fácil, já que o ser humano se
constitui a partir do modelo alheio.
Na paixão há a necessidade de fusão extrema, com isso pode-se tentar eliminar
fantasiosamente esse outro, na busca de recuperar um tempo em que ele não tinha
relevância por não ser notado. Nisso está presente a negação da alteridade. Há outra
maneira de fusionar-se com o objeto que também leva a uma forma de adoecimento no
apaixonamento, a alienação, onde não é o outro que é apagado, mas sim o próprio
sujeito. Vejamos essa condição alienante.

3.4. Alienação
Na fusão da paixão pode haver, em maior ou menor grau, o não reconhecimento
da alteridade, conforme expusemos até aqui. Há também, outra possibilidade que
envolve faceta semelhante no que tange a relação com o outro.
Estamos nos referindo à alienação. Condição particularmente descrita por
Aulagnier (1985), a qual desenvolveremos nesse tópico. Na paixão, tanto a alienação,
quanto a negação da alteridade, podem ser entendidas como duas faces da mesma
moeda, qual seja, o impacto do outro na vida psíquica do sujeito e as tentativas para
lidar com esse abalo. Podemos pensar na negação da alteridade e na alienação como
formas de funcionamento ativo e passivo da pulsão.
O abandono parece ser o grande medo do apaixonado, já disse Aulagnier
(1985). Pensamos que há o abandono pelo outro e também o abandono no outro, onde
a pessoa se perde enquanto sujeito, assujeitada que está no outro: eis o cerne do
fenômeno da alienação.
100

Diante da intolerância ao conflito, o qual evidencia a existência de “dois” ao


invés de “um”, se compromete a atividade do pensar gerando a alienação, explica
Aulagnier (1985, p.34), que a considera uma patologia da idealização e assim a define:

um destino do Eu e da atividade de pensar que visa a um estado a-conflitual,


através da abolição de todas as causas de conflito entre o identificante e o
identificado e, também entre o Eu e seus ideais, o que implica visar à abolição
de qualquer conflito entre o Eu, seus desejos e os desejos do Eu dos outros por
ele investidos. (...) O estado de alienação do Eu se apóia em dois suportes
essenciais: uma idealização maciça daquele que exerce para ele a função de
força alienante e que é portanto, o suporte de um desejo de alienar, e a
retomada pelo sujeito alienado deste mesmo desejo e desta mesma função em
relação aos outros, mas agora enquanto adepto, combatente, ‘acólito’ de uma
causa.

A alienação visa a redução do conflito e do sofrimento psíquico ao mínimo. Nela


está implicada a negação da diferença entre os sujeitos, fazendo com que o desejo de
um seja igual ao do outro; assim a distância eu/outro se extingue na fantasia. Anula-se
conflitos, sofrimentos, diferenças, e, por fim, incompletudes.
Aulagnier (1985) equipara a relação passional à relação de alienação, que, no
seu entender, se não são idênticas, ao menos, compartilham a mesma economia
psíquica, fazendo do objeto de prazer uma necessidade, enxergando-o como vital,
deixando o sujeito sem possibilidade de escolha.
Para não se instalar uma condição de patologia, é necessário que o ego tenha
podido conservar a capacidade de deslocamento e mobilidade dos investimentos,
escreve a autora, possibilitando ao sujeito privilegiar tal ou qual ordem de
pensamentos, finalidade e fonte de prazer.
Gori (2006) se refere à dor da paixão de uma forma que nos permite associar à
conceituação dada por Aulagnier. Ele escreve que o apaixonado suplica por abolir tudo
que possa o separar da fusão do amado.
101

O outro se tornou o próprio lugar do meu ser, ele me falta, vem corporificar
minha falta a ser, e, desesperadamente tento reunir-me a ele. Entretanto, para
isso é preciso destruir tudo que dele me distingue” (GORI, 2006, p.126).

O autor reflete que esse desejo de transparência do outro e para o outro revela a
própria miséria do ser.
Outro autor que também aborda a alienação é Hornstein (2009), ele faz
referência a Aulagnier, mas desenvolve suas próprias conclusões. Ele pontua que “a
dúvida é a castração no registro do pensamento” (HORNSTEIN, 2009, p.158) e na
alienação o sujeito remente a totalidade dos pensamentos ao juízo exclusivo do outro,
assim anulado a própria dúvida. Levando adiante o que disse o autor, podemos deduzir
que essa é uma maneira de também anular a castração e sentir a completude primitiva,
tal qual se tenta fazer através do apaixonamento.
O autor associa a alienação à paixão, afirmando que o apaixonado foge do
conflito, iludindo-se ao pensar que o objeto alienante ou o objeto da paixão o excluirá
da possibilidade de sofrimento psíquico. Em seguida mostra como esse expediente não
funciona, argumentando que quando a capacidade de pensar é parasitada, doada ao
outro pela idealização, o que acontece é apenas uma regressão, uma vez que o sujeito
não chegou a aceitar que não há saber absoluto.
De forma categórica ele resume:

A idealização amputa, amedronta, deprime, despoja, intimida, cerceia, inibe,


submete, paralisa. Em suma aliena. O desejo de não ter de pensar é a vitória da
pulsão de morte que converte o pensamento em uma atividade ecolálica,
estereotipada, mimetizada com o idealizado (HORNSTEIN, 2009, p.159).

Apesar de Eros ter toda relação óbvia com a paixão, no seu aspeto desejante,
na supervalorização sexual, na libido narcísica (do ego ideal) projetada maciçamente
no outro, há também o outro aspecto da libido que está sempre fusionado à pulsão de
vida, esse aspecto é a pulsão de morte.
Negar o outro não deixa de ser também uma expressão da pulsão de morte,
coisificando, desobjetalizando a pulsão, nos dizeres de Green (1988b), sequestrando
102

dos objetos seus investimentos. O outro não é um objeto a ser investido, o verdadeiro
objeto é o ego ideal do sujeito que está projetado no outro. A paixão se dá a expensas
do ego do sujeito, ela alimenta o do outro, quase matando de inanição o narcisismo do
ser apaixonado, como Racamier (1993) e Eiguer (2014) demonstraram.
Aulagnier (1985) traz suas preciosas colaborações ao apresentar o conceito de
alienação a qual anula o sujeito, não o outro, ela é a pulsão de morte autodirigida à
medida que desfaz as ligações pensantes do sujeito. Ele não tem ideias próprias, ele
tem simulacros de ideias copiadas do ser apaixonado com o qual não quer entrar em
conflito com a finalidade de anular a separação, as diferenças, anulando os conflitos
manifestos pelas ideias. Outra vez uma anulação, porém nessa dinâmica, anulando a si
mesmo. Mais mortífero ainda.
Não só a pulsão de morte se faz presente nas patologias da paixão, há ainda
outra perspectiva que gostaríamos de pesquisar, a da paixão enquanto fetiche,
enquanto engodo para tamponar a castração. De certa forma voltamos ao narcisismo
primário, no entanto, nunca havíamos pretendido nos distanciar dele, uma vez que
determinamos o ego ideal enquanto o norte da paixão.

3.5. Fetichismo
Procuraremos estabelecer alguns pontos em comum entre a paixão e a
perversão, em especial o fetichismo. Para isso apresentaremos nossa pesquisa acerca
do mecanismo característicos do fetiche com o objetivo de verificar semelhanças com o
apaixonar-se.
Freud tratou do fetiche desde Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade
(1905) até o fim de seus escritos. Além de outros pontos de sua obra, ele escreveu um
artigo emblemático sobre o tema, Fetichismo (1927) e deixou um outro inacabado
chamado A divisão do ego nos processos de defesa (1938) em que discorria sobre o
mecanismo primordial do fetichismo.
No início da teorização psicanalítica, o fetiche é uma das perversões citadas no
primeiro de seus três ensaios enquanto tipo de sexualidade perversa em que há a
supervalorização de uma parte do corpo de outra pessoa ou de um objeto que se torna
essencial para o ato sexual. Ele refere-se a uma pulsão parcial que é satisfeita por
103

causa da fixação do sujeito à sexualidade infantil a qual ainda não amadureceu a ponto
de ter atingido a genitalização.
Vale ressaltar que desde essa época, a psicanálise já considerava como
patologia algo que fixasse a libido, portanto as perversões teriam que ter o caráter de
modalidade de satisfação exclusiva para serem consideradas patológicas.
Num outro momento, a partir de 1927, há acréscimos à teoria da perversão,
particularmente, ou por causa de sua percepção acerca do fetiche. Freud considera
então que um mecanismo específico é utilizado no fetiche, a Verleugnung (rejeição), no
qual uma percepção é rejeitada à consciência, apesar do sujeito ainda manter essa
crença conscientemente. São duas informações contraditórias que coexistem com
certa pacificidade, sem que o sujeito psicotize.
Freud (1927) diferencia a rejeição do recalque (Verdrängnung) explicando que
esse segundo se refere à vicissitude do afeto; já para a vicissitude da ideia a palavra
correta seria rejeição (Verleugnung). Numa nota de rodapé ele acrescenta que o
recalque aplica-se à defesa contra exigências pulsionais internas, advindas do id, ao
passo que rejeição se dá como defesa contra as reinvindicações da realidade externa,
trazidas via superego. 68
Em 1927 Freud considera o fetiche um substituto do pênis da mulher (a
mãe) em cuja existência o menino outrora acreditou e não deseja abandonar tal crença
em virtude do medo da ameaça de castração se concretizar. Se a mulher foi castrada,
ele também poderá ser. Ele cria um estratagema, o objeto fetiche, para continuar
acreditando na existência do pênis nas mulheres e estar mais a salvo da castração 69. O
fetiche representa o falo feminino.

68
Abriremos aqui um pequeno adendo quanto à questão da terminologia Verleugnung em português. Estamos
utilizando, nesse momento, rejeição por ser a palavra empregada na tradução da ESB, no entanto existem outras
traduções para Verleugnung, que foram empregadas nos tópicos anteriores, dependendo do autor que a está
usando, tais como renegação, recusa, desmentido, como citado na nota de rodapé da página 82. Consideramos
esses termos igualmente pertinentes e haverá necessidade de recorrer a eles conforme o autor que estivermos
citando. Preferimos não manter uma uniformidade da palavra referente ao mecanismo da Verleugnung em prol de
sermos fidedignos com o que determinado autor considerou mais apropriado como tradução. Caso se refira a
outro mecanismo que não a Verleugnung, deixaremos isso claro.
69
Nesse caso verificamos o trabalho do recalque como defesa quanto ao desejo incestuoso, do id; e da rejeição
enquanto defesa da castração cuja ameaça é uma das funções paternas, superegóicas.
104

“O fetiche significa, portanto, o triunfo sobre a ameaça de castração”, resume


Ferraz (2000, p.33), e permanece na vida sexual do fetichista, cumprindo seu papel de
proteção contra ela.
Em 1938, Freud deixa claro, apesar de não ter podido concluir seu pensamento
nesse texto, o que já começara a dizer em 1927, que o mecanismo de rejeição não é
restrito ao fetichismo, mas é utilizado por todos os seres humanos, sendo bastante útil
para a sobrevivência psíquica frente ao medo da castração que os toma de assalto
diante da descoberta das distinções anatômicas entre os sexos.
Pereda (1996) traz uma visão semelhante, abordando a recusa num sentido
além do patológico, ela o aborda também num sentido estrutural. Esse sentido permite
compreender o seu efeito simbólico na organização subjetiva, enquanto sustentáculo
da ilusão e crenças infantis. A autora argumenta que a ilusão é expressão do desejo
inconsciente e serve para apoiar a função de idealização, própria do processo
identificatório.

Recusa-se a ausência do objeto desde a primeira alucinação, que daí por diante
dará conta do fantasma. Desde a primeira inscrição, a recusa começa sua tarefa
sobre a dialética presença-ausência (PEREDA, 1996, p.541).

Entendemos que sem a ilusão, o desejo não se mantém, não há ideais aos
quais se identificar, implicando num prejuízo não só da função de simbolização, (se não
há desejo, não há falta), mas também da própria construção da identidade como um
todo.
“É necessário recusar a morte e a castração no contexto indefensável”, afirma
Pereda (1996, p.541), para mais adiante acrescentar: “insistimos na ação estruturante
da recusa que dá conta do imaginário narcisista, onipotente, infantil, sempre ameaçado
pela castração” (op. cit., p.541).
Com isso, acreditamos que ela sintetiza o porquê da recusa ser estruturante:
com o aparelho anímico ainda em início de organização, seria impossível lidar com
angústias tão aniquilantes que colocassem em jogo a própria continuidade do ser. O
105

psiquismo seria esfacelado antes de ter a chance de criar defesas contra medos tão
poderosos.
Podemos pensar na função da recusa enquanto mecanismo necessário para
manter o narcisismo primário, estruturante. Ele é importante no início, mas precisa ser
posto de lado ao longo do desenvolvimento do ego. Mesmo que constitutivo, já
sabemos da importância de sair da perspectiva autocentrada, posta inicialmente, para
dar continuidade à subjetivação. Quanto à recusa, é preciso abandonar esse
mecanismo por outros mais elaborados.
Para sair da recusa, diz Pereda (1996), é preciso ter acesso à descrença, que
implica a aceitação da diferença. Sua persistência dificulta todo trabalho de separação,
da elaboração do luto, da dependência narcísica, “tudo o que tem sua origem em
modalidades de relacionamentos que supõem um ficar “dependurado” no outro”
(PEREDA, 1996, p.542).
Naves (1999) faz uma aproximação entre a perversão e o narcisismo,
intermediados pelo papel da recusa. Ela se indaga se a perversão não seria uma
defesa estruturada contra uma angústia narcísica, onde o sujeito se vale do mecanismo
chave da perversão – a recusa – para aplacar seus temores narcísicos.
Ela relembra Freud (1927) ao referir-se à recusa como forma encontrada pela
criança para negar os reais perigos da ameaça de castração. A autora chama a
atenção para o fato desse mecanismo não encontrar uma resolução definitiva para o
sujeito, uma vez que:

o que foi negado continua presente e exige uma constante renovação. Ele se
recusa a perceber a experiência que prova que as mulheres não possuem pênis,
no entanto, não conserva a crença que elas tenham um. No lugar dessa crença,
mantém o fetiche que se materializa em um objeto (NAVES, 1999, p.112).

Não deixa de ser um processo paradoxal de negação, e ao mesmo tempo de


reconhecimento. Um processo que cobra um preço elevado pela estratégia criada, que
decorre na clivagem do ego, mantendo uma linha muito tênue de separação entre a
perversão e a psicose.
106

No quesito da paixão, vemos essa linha se partir na erotomania, também


conhecida como Síndrome de Clérambault, na qual a pessoa acredita ser
completamente correspondida pelo objeto da paixão, em geral um objeto inacessível,
com o qual não existe nenhuma relação. Não nos estenderemos nessa síndrome,
apesar da sua riqueza, pois não nos focaremos nos quadros psicóticos do apaixonar-
se. Esse quadro psicótico não diz respeito a uma relação dual, que é o tipo de relação
tratada nesse trabalho. Na psicose há uma colagem do sujeito no objeto, uma fusão
vivida como real no delírio ou alucinação. Nossa pesquisa se restringe a relações
intermediadas pela fantasia e pela ilusão.
Naves (1999) observa que a representação do falo materno tem importância
crucial para o desenvolvimento psíquico do indivíduo, uma vez que a presença deste
representa a certeza da presença de si. Com isso ela conclui que a presença da
perversão está a serviço da manutenção de um estado narcísico.
“A angústia mobilizada pela castração constitui uma ameaça para a integridade
do Eu e, nesse sentido, a negação se torna um eixo em torno do qual, provavelmente,
essa autonomia e integridade poderiam ficar asseguradas”. (NAVES, 1999, P.114).
No que se refere ao reconhecimento do outro, Naves (1999) explica que a
percepção da alteridade pode vir a significar um esvaziamento de investimentos do Eu,
pois onde houver risco de depender do desejo alheio, haverá um obstáculo à satisfação
do próprio desejo. Para manter-se narcisicamente investido, é preciso ter a posse do
outro sem entraves e sem adiamento, o que leva à necessidade de desconsiderar a
realidade do objeto. Essa descrição nos aproxima muito do que temos visto até agora
sobre o apaixonamento, especialmente no que tange a dificuldades frente às ameaças
à economia narcísica.
Encontramos uma estreita aproximação entre a recusa e fetichismo expostos por
Naves (1999) e seu papel no apaixonar-se quando ela afirma que diante da
persistência da recusa da ausência, todo trabalho de separação estará dificultado,
levando ao prejuízo da simbolização, que acarretará no predomínio do ato sobre o
pensamento. Para o apaixonado, além de ser preciso estar fisicamente ao lado do
objeto para não incorrer em sofrimento, ele não aceita que são dois, ao invés de um. O
outro em sua alteridade é renegado (Verleugnung) em alguns casos.
107

Relembramos Aulagnier (1985) quanto a relacionar a paixão à necessidade,


eliminando a possibilidade de escolha. Na recusa, a presença desse outro também
passa pela urgência da necessidade, ainda mais porque o sujeito ainda não tem a
capacidade de simbolização desenvolvida. É fundamental ver e estar com o outro
concretamente, fusionalmente, o sujeito não aprendeu a imaginar a satisfação, ele
conhece atos e não pensamentos.
Além disso, tal qual vemos na paixão, o outro é um mero ser coisificado, não se
reconhece a alteridade, ele serve enquanto objeto de descarga. Paradoxalmente, não é
facilmente cambiável, pois assumindo lugar de objeto fetiche, como é o caso, já está
implícito um comprometimento da maleabilidade pulsional, portanto tem que ser ele o
representante do falo materno e do reasseguramento na integridade narcísica do
sujeito. O objeto fetiche da paixão tem a função de manter coeso o narcisismo do
sujeito apaixonado.
Queiroz (1999) e Safatle (2010) apresentam ideias que nos fazem pensar em
outra perspectiva quanto a esse aspecto. Queiroz (1999, p.84) observa que há uma
diferença sutil entre a perversão e a paixão, ela repousa no fato de:

nas paixões o ser tomado de paixão torna-se objeto e paciente dela e se entrega
ao outro ser, que o afeta, sem que necessariamente haja o apagamento do
sujeito, enquanto nas perversões, a relação de alteridade fica comprometida.

Safatle (2010, p.84) refere a intercambialidade do fetiche, onde o fetichista


conhece bem “o caráter substituível dos objetos de seu desejo, pois sua fixação não é
ao objeto, mas ao traço atributivo que ele porta e a respeito do qual ele sabe muito bem
não ser um atributo do objeto”.
De acordo com esses pontos de vista, que fazem todo sentido, não poderíamos
pensar numa conexão entre paixão e fetichismo. Assumimos que na paixão há de ser
aquele objeto e só ele, os outros se apagam. Essa premissa vai de encontro com a
opinião dos autores acima citados.
No entanto, pensamos que ao falarmos de paixão, na sua vertente mais
patológica enquanto parecida com o mecanismo do fetiche, ainda podemos manter
108

alguns pontos de contato. Apesar de haver diferença para com o fetichismo, há outras
semelhanças relevantes.
Na paixão patológica há maior impacto da dificuldade diante da alteridade, isso
torna o objeto escolhido mais coisificado. Nela, há também uma prevalência da pulsão
de morte, o que compele ainda mais a uma desobjetalização do vínculo. Esses
aspectos nos permitem aproximarmo-nos um pouco mais do fetichismo, lembrando que
estamos falando de modo de funcionamento psíquico e não de estrutura enquanto tal,
na qual estariam em jogo maior cristalização dos mecanismos e da economia psíquica.
Tratar da paixão pelo seu viés fetichista não significa dizer que os apaixonados
tenham uma estrutura perversa. Queiroz (2004), por exemplo, deixa bem clara essa
distinção ao se reportar ao discurso perverso na clínica. Ela marca uma diferença entre
o discurso perverso e o discurso do perverso. O primeiro é um discurso marcado pelo
desmentido (Verleugnung), sem necessariamente ser um discurso exclusivo de
pessoas perversas.
A autora frisa que a tendência atual “parece apontar para uma fenomenologia da
perversão, nem sempre relacionada ao desvio sexual ou à estrutura clínica”
(QUEIROZ, 2004, p.17) e acrescenta que o fato da sociedade estar se constituindo
numa montagem perversa não significa necessariamente que os sujeitos tenham
estrutura perversa.
Assim também se posiciona Lebrun (2008, p.251), ele observa que “não é
porque sujeitos participam de uma economia perversa, que, por isso, eles mesmos são
perversos, no sentido em que teriam a ver com a estrutura perversa”, explicando que
uma economia perversa é aquela em que funciona “a renegação da falta” (LEBRUN,
2008, p.272) sem necessariamente fazer daqueles que a compartilhem, sujeitos
perversos.
Não pretendemos afirmar que as pessoas com estrutura perversa não
compartilhem de uma forma de apaixonar-se patológica, o perverso apresenta, sim,
uma forma doentia de apaixonar-se. Tanto os perversos como os psicóticos podem
apresentar uma patologia no apaixonamento. O que estamos destacando é que falar
de uma característica perversa do apaixonamento é uma situação circunstancial a
109

determinadas paixões, que não a configura necessariamente num quadro de perversão


ou de psicose.
Reforçamos que ao traçarmos um paralelo entre o estado do apaixonamento e o
fato dele compartilhar características e defesas perversas não significa que a paixão
seja perversão no seu sentido nosográfico. Procuramos pontos de contato com a forma
de funcionamento fetichista para olhar a paixão patológica por esse viés.
Prosseguindo nessa linha encontramos em Green (1988c) conexões entre a
pulsão de morte e a perversão. Para ele, a perversão evidencia a presença de
aspectos destrutivos consideráveis; seu caráter despersonalizado, a petrificação do
objeto da perversão dá margem a pensar num processo de desobjetalização, esse
processo evidencia a carência narcísica que há nessas pessoas.
Lebrun (2008, p.256) citando Hiltenbrand (1998 70) no Dictionnaire de la
psychanalyse traz a seguinte definição de perversão: ”a experiência de uma paixão
humana em que o desejo é suportado pelo ideal de um objeto inanimado”. Esta é uma
definição bastante próxima do que temos averiguado na nossa pesquisa. Sempre
haverá um ideal envolvido na dinâmica da paixão, pelos nossos dados, veiculado pelo
ego ideal.
O ego ideal sustenta o interesse do apaixonado pelo objeto, que acaba por ser
visto como inanimado, uma vez que ele pouco é reconhecido como sujeito, não
havendo espaço para a alteridade, espaço este que diminui mais e mais à medida que
a paixão se torna mais patológica. A recusa (Verleugnung) em ver o outro como sujeito
leva o aparelho psíquico a trabalhar com mecanismos perversos, fazendo do outro um
mero fetiche. Queremos deixar claro que essa é uma das hipóteses, dentre outras, que
estudamos ao longo de nossa pesquisa.
Agregando mais dados a essa linha teórica, Ferraz (2014) baseado no trabalho
de Stoller (1975/2014) tem outras considerações interessantes para nosso estudo.
Quanto à alteridade, ele afirma que no trabalho de fantasia encenada pelo perverso há
o corolário da desumanização do objeto, o qual não é, nem pode ser reconhecido na
sua alteridade, sob pena de colocar em risco a montagem perversa.

70
HILTENBRAND, J.-P. Perversion. In: CHEMAMA, R. ; VANDERMERSCH, B. Dictionnaire de Psychanalyse. Paris:
Larousse, 1998.
110

Pensamos que essas derivações da perversão trazidas por Green (1988b,


1988c) e Ferraz (2014) se aplicam ao apaixonamento. O outro é desumanizado até
mesmo para não que não lhe sejam atribuídas falhas e ele continue refletindo o ideal
projetado. Se o outro tiver vida e vontade próprias, ficará evidente a diferenciação entre
sujeito-objeto, algo intolerável para o apaixonado que busca reviver a situação
narcísica de completude. Na verdade não há um processo de investimento no outro
enquanto ser em si, algo parecido com a desobjetalização conceituada por Green
(1988b). Não há investimento na função objetalizante.
“Os indivíduos nos quais a ansiedade de castração foi provocada de forma
abrupta e intensa são candidatos potenciais à perversão”, pontua Ferraz (2014, p.158).
Sabendo que ele está-se baseando no trabalho de Stoller, podemos entender a
“provocação abrupta e intensa” a que ele se refere como sendo um fato real e concreto
que se sucedeu, uma vez que Stoller (1975/2014) defendia a existência de um trauma
real infligido à criança para poder convertê-la num perverso.
Mesmo não concordando que tenha havido obrigatoriamente um fato real,
podemos tomar a afirmativa de Ferraz (2014) para entender que a paixão se conecta à
perversão no sentido de evitar o máximo possível a verdade da castração. O sujeito
tem a necessidade de se aferrar ao momento idílico do narcisismo primário, sem
castração, sem faltas, sem esperas, sem frustração.
Stoller (1975/2014, p.52) apresenta uma visão psicanalítica peculiar à
compreensão da perversão, para ele, ela é “a forma erótica do ódio” (p.52). Um ódio
despertado no momento em que um adulto abusa sexualmente de uma criança. Ela
buscará por vingança na vida adulta, criando montagens perversas onde repetirá a
cena da qual foi vítima, dessa vez no papel de algoz e assim obterá seu triunfo. Para o
autor, sempre haverá vontade de causar dano ao objeto, sempre estará presente a
hostilidade, que é exatamente esse desejo de danificar o outro.
Lembramos que ao falarmos do narcisismo destrutivo para Rosenfeld (1971,
p.169) nesse capítulo, citamos uma afirmação sua de que “o ódio, enquanto relação
com o objeto, é mais antigo que o amor”. Freud (1915), bem antes, já havia
sentenciado que o objeto nasce do ódio. Então, podemos pensar que, em certos
indivíduos, mesmo que não tenham passado pela experiência real do trauma da
111

sedução, esse ódio inerente às relações se faz mais presente e, pode ser dirigido
contra o outro com toda hostilidade, calcado na economia perversa. A paixão que é o
próprio excesso e desmesura, pode ser inclusive, excesso de ódio disfarçado.
Hanna Segall (1988) fez uma articulação entre a perversão e o ódio, como
apontamos anteriormente, ao falarmos do narcisismo patológico. Ela refere que nas
perversões, a libido se apresenta de forma mais contundente a favor da pulsão de
morte. O objeto enquanto causa e solução para o desequilíbrio pulsional, recebe uma
grande carga de ódio e inveja, podendo se tornar, portanto, um objeto de perversão, ao
ser eleito objeto da paixão.
O outro pode provocar raiva e vontade de vingança; para Stoller (1975/2014),
isso se dá por motivos concretos: um ato de sedução de um adulto para com uma
criança. No entanto, com Laplanche (1987,1992) nós vimos o quanto os cuidados
maternos já são em si uma sedução generalizada, colocando todos os sujeitos na
situação de passíveis seres desse trauma que é trazido pelo outro.
Ou seja, essa sedução “imaginariamente concreta”, pode estar fantasiosamente
registrada no psiquismo de todos nós. Laplanche (1992) nos remete a outra alteridade
que é o Inconsciente, esse outro, estranho em nós, que transforma a realidade
fantasiada em realidade material. Não é preciso haver um evento no mundo externo
para provocar angústia e disparar defesas, elas se dão deflagradas pelas fantasias
mesmas.
França (2014) apresenta um interessante ponto de convergência entre a
perversão e a posição esquizoparanóide kleiniana. Ela afirma que se pode dizer que o
perverso é aquele que funciona apenas na posição esquizoparanóide, ou seja, ele é
dominado pelos processos da clivagem do ego, pela ansiedade persecutória e pela
possibilidade exclusiva de que se estabeleçam relações de objeto parciais, dificultando,
dentre outros, a elaboração do processo de luto.
Vimos nesse capítulo, acerca da melancolia, como esta tem conexão com a
posição esquizoparanóide ao passo que o luto está associado à posição depressiva.
Percebemos ao longo do trabalho que a paixão traz uma escolha de objeto semelhante
àquela que subjaz os casos de melancolia e que também tem estreita semelhança com
mecanismos da posição esquizoparanóide tais com idealização extrema e cisão do
112

objeto, levando a relações marcadas pela ambivalência, a qual se encontra em larga


medida nos processos melancólicos. Essas linhas de convergência nos permitem situar
a paixão correlata também à perversão.
Hay-Flaud (1994) traz o fetiche a partir da idealização, observando que a
idealização foi o primeiro conceito pelo qual Freud começou seus esforços para
compreender a natureza do fetiche. O sujeito toma a parte pelo todo e elege um
elemento investindo-o como ideal, no lugar da pessoa total.

A idealização é uma operação que seleciona um “traço” atributivo do objeto e


eleva esse “traço”, significante em sua origem, à função de representar todos os
significantes do objeto e, para além, de todos os seus significantes, o ponto
inexpugnável ao significante, que constitui a intimidade inefável do objeto, aquilo
que a linguagem comum chama de ‘o encanto’” 71 (HAY-FLAUD, 1994, p.48).

Freud reconheceu o fetiche como um objeto possuidor da propriedade de


disparar sozinho a força do desejo amoroso, declara Hay-Flaud (1994) e explica que
Freud observou que nos homens normais o gatilho da paixão também se dava em
condições análogas, onde o despertar do desejo estava submetido a certas qualidades
particulares do objeto. Nós amamos uma pessoa, em virtude de semelhanças com
outras pessoas que igualmente foram amadas. Acreditamos que aí se encontra o
“traço” que se repete, parecido com o fetiche. Ele afirma que a paixão se produz assim
que o sujeito encontra uma mulher que apresente o “traço” do seu primeiro objeto.
Apesar de algumas semelhanças, o autor mesmo se incumbe de diferenciar
ambos: fetiche e paixão. Para Hay-Flaud (1994) no fetiche o ponto de interesse se
refere um defeito do objeto, ele se apresenta como um antimodelo, um anti ideal.
Nesse sentido, o “traço” perverso não se situa numa cadeia de similitudes, ao contrário,
ele funda uma nova cadeia de representantes. Imaginamos que esse é a estratégia
fetichista para afastar ainda mais o objeto sexual do objeto incestuoso, romper o
máximo possível a associação consciente entre estes.

71
Tradução livre.
113

Em Sobre o narcisismo: uma introdução, Freud (1914, p.118, o itálico é nosso)


declara: “o estar apaixonado consiste num fluir da libido do ego em direção ao objeto.
Tem o poder de remover as repressões e de reinstalar as perversões.” A paixão
reinstala perversões, reabre as portas para elas. Acreditamos que isso se dá devido a
uma espécie de retorno à sexualidade infantil, veiculada pela supervalorização sexual
do outro, a dificuldade de aceitar qualquer interdição, a volta da sensação de ser
onipotente, e, conforme temos visto, à prevalência de uma relação parcial com o
objeto, com a parte de si próprio projetada nele, qual seja, o ego ideal. Verificamos que
Freud, de alguma forma, via uma relação entre a paixão e a perversão.
Romano (1994) relembra que nos Três ensaios, Freud (1905) relaciona o
fetichismo com a valorização sexual excessiva presente no apaixonamento. A autora
traz outra conexão apresentada no artigo metapsicológico sobre Repressão (1915) em
que Freud afirma que se encontra na origem do fetiche a dinâmica na qual o
representante pulsional original é dividido em duas partes: uma é recalcada, a outra,
idealizada. Sabemos o quanto de idealização há na paixão e não podemos nos abster
de pensar nessa outra maneira possível de entender a paixão através do fetichismo,
conforme já encontramos em Hay-Flaud (1994).
Aqui se torna propício retomar outra questão que envolve cisão, desta vez, uma
divisão dos investimentos objetais numa corrente afetiva e outra sensual, abordado no
capítulo anterior. Romano (1994) pontua que na infância, a corrente terna é idealizada
e a sensual, degradada, em virtude da situação edipiana. É esperado que a junção de
ambas se dê na vida adulta, direcionando-as a um único e novo objeto.
A autora pondera que quando não ocorre a síntese das correntes, o objeto
fetiche se apresenta como solução de um impasse: ao investir no fetiche, a pessoa
amada fica protegida da degradação pois é separada do objeto fetiche, para o qual é
destinada a corrente sensual.
Citando Smirnoff (1970 72, apud Romano, 1994) ela conclui que o fetiche é
garantia de um prazer incestuoso, permitindo a realização de uma relação sexual
normal em aparência, uma vez que o afeto terno encontra-se na pessoa amada e o
afeto sensual é deslocado sobre um objeto que representa um aspecto degradado e

72
SMIRNOFF, V. La transaction fétichique. In: Nouvelle Revue de Psychoanalysis, v.2, 1970.
114

desconhecido do objeto de amor incestuoso. Assim o objeto fetiche asseguraria uma


solução “paralela” para o complexo de Édipo e um evitamento da angústia de
castração.
Eiguer (2014), referindo-se à perversão narcísica 73, diz que nela há uma relação
de objeto extremamente desumanizada, em que ele fica reduzido a um equivalente de
fetiche. Tendo a visão de si mesmos como “desérticos”, esses sujeitos conservam a
lembrança de exultante sensualidade que viram na mãe. Sobre esse vazio, que o autor
diferencia de uma falta, desenvolve-se a clivagem, a denegação, a necessidade de
impostura.
Essas pessoas, segundo o autor, apresentam um apagamento do limite
identitário, sendo incapazes de captar o menor sinal de desejo no outro, incapazes de
perceber suas diferenças. Ele reflete que são sujeitos que tiveram uma relação
materna em que a mãe o investia como ego ideal narcísico, construindo um contato
especular onde se refletiam as perfeições comuns de ambos. “Nem um nem outro se
vê diante de uma pessoa, mas de uma parte de si, aquela que alimenta o orgulho
deles” (EIGUER, 2014, p.100). Essa descrição se aproxima bastante da descrição da
projeção do apaixonado sobre o objeto eleito, o qual funciona como um espelho para o
sujeito se vangloriar de sua perfeição.
Pretendemos com a apresentação das ideias de diversos autores, levantar a
questão da paixão enquanto forma de fetiche, onde ambos compartilham economia
psíquica próximas, usando de mecanismos de defesa semelhantes. Na paixão o objeto
fetiche é o próprio outro coisificado e percebido apenas parcialmente, na parte de
perfeição que emana via projeção; esse objeto funciona enquanto fetiche que
escamoteia a castração do sujeito, pois simboliza o falo materno, desmentindo a
incompletude subjetiva.
Sabíamos que não seria possível esgotar ambos os assuntos infindáveis em sua
complexidade, a paixão e o fetiche, mas nosso objetivo era apontar um caminho outro
para entender a paixão e suas nuances via essa perversão.
Perversão, melancolia, posição esquizoparanóide, todas compartilham economia
semelhante e uma fase mais regredida do desenvolvimento psíquico, com mecanismos

73
Vista no tópico 3.1 deste capítulo.
115

pouco elaborados e economia incipiente. Esses fatores nos permitem entender o


apaixonamento nas suas características patogênicas e sofridas, posto que as defesas
anímicas mobilizadas em tal circunstância são as mais frágeis e primitivas do sujeito.
Não estamos sugerindo que só existam essas formas de entender a paixão no
seu caráter patológico, essas são algumas que consideramos mais pertinentes à
correlação que estabelecemos como ponto de partida, aquele referente ao ego ideal.
Percebemos um intenso entrelaçamento do ego ideal com patologias como o
narcisismo destrutivo, no qual há grande participação da pulsão de morte, com a
negação da alteridade, a alienação e a perversão.
Cada traço aqui discutido, marcado por uma certa patologia, pode se combinar
com os demais dando características particulares a diferentes destinos do
apaixonamento. A questão narcísica está na base das patologias, uma vez que o ego
ideal está no cerne do apaixonar-se e este traz estreita conexão com o narcisismo
primário. Ao associar-se com a pulsão de morte, por exemplo, pode gerar um ciclo que
se apresenta de forma viciosa, enredando o sujeito em suas teias eternamente
repetidas, mortalmente não criativas.
O desenrolar da paixão pode ser mais, ou menos, frustrante, a depender do
caminho que ela possa seguir, pode encontrar na patologia seu destino e terminar
aprisionando e matando de sede de amor o ego do apaixonado que começou sua
jornada em busca de alimento erótico para a alma.
116

Considerações finais

Paixão e patologia dividem o mesmo radical, páthos. O páthos da paixão nos


levou a pensar nos aspectos de sofrimento e passividade envolvidos na mesma, nos
levantando a questão se toda ela seria patológica. Percebemos que não havia muito
escrito sobre o assunto na literatura psicanalítica e que pesquisá-lo seria de muita
relevância para nosso trabalho clínico, à medida que nos forneceria subsídios para
entendermos mais a dinâmica psíquica envolvida nesse sentimento tão marcadamente
humano e que surge com frequência nos nossos consultórios.
Para estudá-la pelo viés da metapsicologia freudiana, delimitamos nosso campo
de pesquisa à paixão amorosa, diferenciando-a do amor e buscando algo que a
caracterizasse, lhe fosse específica e respondesse pelo seu quadro sui generis.
Nosso primeiro e principal norte foi associar a paixão ao ego ideal,
diferentemente do amor, onde se faria mais presente o ideal do ego. Diferenciando as
instâncias ideais e aprofundando o estudo do ego ideal, pudemos compreender melhor
o que era específico da paixão. O ego ideal é projetado no objeto da paixão. Este,
enquanto instância mais regredida, está intimamente conectado ao narcisismo primário,
estágio muito inicial do desenvolvimento anímico, o que responderia ao porquê da
paixão ser tão demandante, tão regredida, imediatista e fusional.
Especulamos que há três tipos de paixão: o enamoramento, o qual daria espaço
para o amor; a autocombustão, aquela que terminaria naturalmente e sem maiores
danos, consumida no seu próprio fogo, sem o oxigênio de outros investimentos; e
finalmente a paixão patológica, essa sim, marcadamente sofrida, aprisionada na
fixidez, repetição, excesso que caracterizam a patologia em psicanálise.
Dentre os tantos destinos que a paixão pode enveredar pelo caminho da
patologia, nos ativemos ao narcisismo patológico; à melancolia; à negação da
alteridade; à alienação do sujeito; ao fetichismo. Optamos em não entrar na seara das
psicoses em detrimento de podermos nos aprofundar mais nos aspectos abordados.
Em todos eles havia o papel fundamental do ego ideal, e por continuidade, do
narcisismo primário.
117

Percebemos uma grande interconexão entre os aspectos patológicos da paixão,


que em muito responde pelo desdobramento doentio da mesma, e nos foi difícil separá-
los em dinâmicas distintas. Especialmente as patologias narcísicas e a melancolia.
Acreditamos que não haja uma única maneira da paixão se tornar patológica, e sim,
que todas têm grandes chances de se fazerem presentes em mais de um quadro do
adoecimento.
Por exemplo, o narcisismo destrutivo leva o ego a auto atacar-se, o negativo
pretende matar de inanição o ego, investindo na função desobjetalizante. Por sua vez,
na negação da alteridade, o sujeito faz do outro um mero refletor de sua perfeição, que
acaba também, por ser muito próximo da coisificação do fetiche, fazendo do objeto, um
talismã, ou poção de feitiço, palavra de onde veio o termo fetiche. Na alienação o sinal
encontra-se trocado, o sujeito se subtrai da relação, apagando-se para iludir-se que
não há conflito, não há dúvida, não há castração. Assim o ciclo vai se auto alimentando
e ao mesmo tempo, se fechando, matando de asfixia a alma74 do sujeito.
Toda paixão seria patológica? Essa questão jamais nos deixou em paz. Ao que
tudo indica, deveríamos responder que não, uma vez que determinamos três
possibilidades para a mesma, sendo a patologia apenas uma dentre elas. Porém, após
tudo que lemos acerca do páthos, não podemos negar que a paixão é páthica, além de
passional. Ela traz sempre sofrimento e passividade.
Toda ela traz a desilusão consigo, é impossível se apaixonar sem sofrer a
decepção de não ter atingido o objetivo primeiro: o retorno narcísico primário. Todo
apaixonado terá uma perda, dela pode-se elaborar o luto ou entrar na melancolia,
entretanto, a perda será uma marca incontornável.
Em toda paixão há a passividade, talvez mais do que em qualquer outro
sentimento, nela está presente aquilo que nos toma de assalto e nos espanta. E não
falamos somente da paixão à primeira vista, falamos da passividade em relação a uma
história primeira que se repete sem termos consciência: a época da bem-aventurança
na fusão perfeita com o objeto primário. Somos passivos diante dessa demanda
inconsciente.

74
Usamos a palavra “alma” com a conotação de anímico, forma como Freud também se referia a aparelho
psíquico.
118

E finalmente, não recuaremos diante da ideia de que, de certa forma, toda


paixão é também patológica 75. Patológica no sentido da psicopatologia da vida
cotidiana, no sentido de inerente ao patológico que há em todos nós. A paixão seria
como o sonho, que tem como ponto de partida um funcionamento psicótico; ela tem
como ponto de partida a hybris, aquilo que nos excede e que nunca daremos conta. Ela
é patológica por natureza. Porém, como no sonho, devemos acordar para não
entrarmos num estado psicótico permanente. Aí está a saída para a patologia da
paixão, dar outro destino que não aquele para o qual ela parece fadada.
Assim como o amor da mãe permite ao bebê perceber gradativamente e o
menos doloridamente possível que ele não é onipotente, espera-se que o mesmo se dê
com a paixão, o amor possa fazer os laços verdadeiros com o outro, num movimento
criativo, verdadeiramente erótico.
O amor por si mesmo também é uma possível saída saudável do
apaixonamento, ou seja, a desilusão frente à nova tentativa de completude narcísica
pode ser mitigada por um narcisismo primário bem elaborado, o qual alimenta de
reservas de amor próprio o ego do sujeito, para assim ele poder elaborar a frustração
do narcisismo primário não atingido, num processo de luto e não de melancolia.
A dinâmica envolvida na paixão tem muito de patológica, de páthos,
passividade e sofrimento, no entanto seu destino não precisa necessariamente ser o
aprisionamento na patologia. Assim como acordamos dos sonhos a cada amanhecer,
podemos acordar do estado de fascinação auto engendrada na paixão e despertar para
novas e criativas dinâmicas de relacionamento.

75
Aqui queremos nos remeter à hipótese levantada por Rocha (2016) abordada no final do capítulo 1: O páhtos da
paixão.
119

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