Ana Claudia Zuanela
Ana Claudia Zuanela
Ana Claudia Zuanela
RECIFE
2016
ANA CLÁUDIA ZUANELLA
RECIFE
2016
Para Silvio e Leonardo
meus dois amores
AGRADECIMENTOS
A meu filho Leonardo que faz tudo ser mais bonito, mais feliz, mais colorido e que me
faz entender o que é o amor personificado.
A Sílvio que acaba sempre me dando motivos para apostar no amor e para escolher
amá-lo a cada novo dia.
A meus amigos, especialmente aqueles, como Cintya, que cuidaram de forma especial
de mim nesse período de Mestrado.
A minhas colegas de turma que viraram grandes amigas e até afilhadas e que
compartilharam comigo um dos períodos, não só acadêmico, mas de vida, mais
intensos e felizes, tensamente felizes, que já tive.
A Edilene Queiroz que me aceitou com minha lacuna lacaniana e nunca exigiu de mim
mais do que eu poderia dar.
A Ana Lúcia Francisco pelo modelo de pessoa e professora que ela é e nos move a
ser.
À PAIXÃO que me move para vida, para os estudos, para o trabalho, para os amigos,
para os amores. Um agradecimento especial à paixão.
Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão de meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!
Abstract
This theoretical research came from the interest in studying love passion, mainly in its
páthic sense. Starting with its etymology from Classic Greek‘s word páthos which
means passivity and suffering and is also the root of pathology, we used Freudian
metapsychology to study some of love passion destinies related to its pathologycal
aspects, beginning with the idea that in it, the object in put on the subject´s ideal ego.
This gives passion a particular psychic dynamic. We concluded that may there be three
kind of love passion: one that gives place to love (endearment), one that finishes with
no great damages by self-combustion (catchment) and pathological passion, which
destiny is to be prisoner of fixation, excess, pain. We tarried on the third kind of love
passion, researching some of its consequences: pathological narcissism, melancholy,
lack of otherness, alienation, fetishism.
Introdução 08
INTRODUÇÃO
1
Ao serem pesquisadas duas bibliotecas eletrônicas, Scielo – Scientific Eletronic Library Online com periódicos
nacionais, e Lilacs – índice de Literatura Científica e Técnica da América Latina e Caribe, deparou-se com os
seguintes dados: sobre o tema da paixão com alguma relação com a psicanálise foram encontrados quatro artigos
nos últimos dez anos no Scielo; já no Lilacs, encontrou-se 22 artigos (inclusive os quatro do Scielo), no entanto,
esses 22 artigos foram escritos num período bem mais extenso, de 28 anos, e considerando-se toda América Latina
e o Caribe. Sobre o tema do amor, no Scielo havia três artigos na área psicanalítica que tratavam do assunto como
tema central nos últimos dez anos; no Lilacs chegou-se a 39 artigos num período de 33 anos. Encontramos apenas
um artigo que relacionasse a paixão às Instâncias Ideais, de Ana Lila Lejarraga, intitulado Freud e Winnicott: do
apaixonamento à capacidade de amar, publicado na revista Pulsional, ano XV, n. 164, dez./2002 - ano XVI, n. 165,
jan./2003
9
Ao que tudo indica a paixão, sob diversos aspectos, pode se afastar da saúde
advinda de amar. Como diz Rocha (2008, p. 101), os destinos da paixão “tanto podem
ser aquele de uma fase normal, embora ilusória, da experiência amorosa, quanto uma
experiência desestruturante da vida psíquica nos casos do apaixonamento patológico”.
Quando a paixão dá lugar ao amor, pode ser compreendida como uma fase do
processo amoroso; ou então, se termina sem maiores danos, também pode ser
entendida como uma “loucura passageira”. Porém, há casos em que há uma fixação no
objeto da paixão, onde entra em jogo o comprometimento da maleabilidade da pulsão e
fica mais evidente seu desdobramento pathológico. Para além do sentido de doença,
páthos também quer dizer sofrimento. Estes dois sentidos são privilegiados neste
trabalho.
“As paixões são experiências verdadeiramente páthicas, visto que são sofridas,
nas quais o sujeito se deixa levar por, se deixa con-vocar por.” (MARTINS, 2000, p.72).
Situação onde prevalece o sofrimento em detrimento do prazer. No nosso entender
essa dinâmica colabora grandemente para o destino patológico da paixão, esse
aprisionamento no sofrimento.
Ferreira Neto (2004) discorrendo sobre o terceiro livro da História da
Sexualidade de Foucault – O Uso dos Prazeres (1983) – lembra que os gregos
utilizavam o conceito de páthos aplicando tanto às paixões quanto à doença física.
Essa conexão também é observada por Fédida (1992 2, 2000), Ceccarelli (2005), Costa
Pereira (2004) e Berlinck (1998, 2002).
Ceccarelli (2005, p.471) refere que “Médico é aquele - diz Platão no Banquete –
que está sempre atento ao páthos, às paixões, pois as doenças apresentam-se como
um excesso de paixões”.
No entender de Costa Pereira (2004), a psicopatologia é uma disciplina que se
debruça sobre o sofrimento humano, enquanto que é intimamente vinculado às paixões
humanas. O autor cita Fedida (1992) quando aborda o pathei mathos, exposto por
Ésquilo, ao reportar-se à aprendizagem que pode advir do sofrimento, para, então
estabelecer o protótipo de uma tradição trágica na concepção do psicopatológico.
2
FEDIDA, P. Crise et contre-transfert, Paris: PUF, 1992.
11
Por sua vez, Berlinck (2002, p.10) escreve que Platão nos lembra que o médico
está sempre lidando com o amor, “porque as doenças físicas em sua evolução, se
apresentam como páthos, paixão amorosa”.
Berlinck (1998) observa que além de sofrimento, páthos também tem como
derivados as palavras paixão e passividade. A psicopatologia fundamental debruça-se
sobre o sujeito trágico que é constituído com o páthos, não sendo senhor de suas
ações. Quando páthos acontece, algo da ordem do excesso, da desmesura, da hybris
se põe em marcha sem que o sujeito possa se assenhorar desse acontecimento.
Quanto ao lado páthico da paixão, Roland Barthes traz uma pergunta muito
pertinente em seus Fragmentos de um discurso amoroso (1991): “Então Zoé pode ao
mesmo tempo “amar” e “estar apaixonada”? Esses dois projetos não são considerados
diferentes, um nobre e outro mórbido?” (p.119)
Em As paixões e suas vicissitudes, Green (1988a, p.220) afirma: “Loucura e
paixão, dois tributários do mesmo rio, cuja fonte é ´hubris´”. E acrescenta:
Então o que veio a ser a loucura? Antes de caracterizá-la como uma desordem
da razão, dever-se-ia, pelo contrário, enfatizar o elemento afetivo, apaixonado,
que modifica a relação do sujeito com a realidade, elegendo um objeto parcial ou
total, tornando-se ligado mais ou menos exclusivamente a ele, reorganizando
sua percepção do mundo em seu redor e lhe dando uma aura única ou
insubstituível pela qual o ego é cativado e alienado (GREEN, p.226).
Como frisamos anteriormente, não pretendemos dizer que toda paixão seja
patológica, ela é um estado transitório de loucura, é bem verdade, mas a saúde está
justamente no fato dela ser transitória. Entendemos a patologia no momento em que há
uma fixação no estado de apaixonamento e este não dá lugar para uma forma mais
branda que é o amor, nem tampouco se aceita o abandono pelo objeto. Há uma
estagnação nisso que deveria ser a transitoriedade, mantendo a negação dos limites
próprios de nós, seres castrados. É a fixação no retorno narcísico e na ilusão de que é
possível escamotear a castração.
12
lhes dar um sentido e permitir que folhas brancas agissem como “estímulo ao intelecto”
na busca de respostas.
Almeja-se que a metapsicologia seja a semente lançada num solo que se torne
fecundo, possibilitando a criatividade e a originalidade. Como escreveu Wittgenstein:
“Minha originalidade, caso seja esta a palavra certa, é, acredito, uma originalidade do
solo e não da semente. Pode ser que eu não tenha semente alguma que me seja
própria. Lance uma semente no meu solo e ela crescerá diferentemente do que sobre
qualquer outro solo.” (citado por CAON, 1994, pg.151). A metapsicologia foi dada, é a
semente de Freud, espera-se que o solo onde ela foi plantada a tenha feito germinar.
É importante relembrar que a Psicanálise designa tanto um tratamento, quanto
uma forma de pesquisa e um arcabouço conceitual. Neste trabalho, a psicanálise foi
utilizada enquanto arcabouço conceitual e fundamentação teórica, privilegiando sua
metapsicologia.
Houve a apropriação dos conceitos teóricos psicanalíticos para entender o
fenômeno do apaixonamento. Quanto ao caminho para nos apropriarmos do
conhecimento contido nos textos, foi realizada uma dupla leitura, tanto sistemática,
contextualizante quanto desconstrutiva que “explora as tensões, as trilhas perdidas, as
pequenas aberturas do texto que a leitura clássica tende a fechar” (CAPUTO, apud
Figueiredo, 1999, p.20).
A leitura desconstrutiva é transgressora em relação à proteção que a leitura
sistemática oferece, ela se move nas direções abertas, colocando em marcha um
mecanismo de produção de sentido que instabiliza e temporaliza o sentido dado e dá
mais vida ao texto em exame (FIGUEIREDO, 1999).
Abordamos o texto na busca de respostas a uma série de questões e um
questionamento a uma série de crenças, acreditando que devemos trazer o texto para
nosso campo e também deixar-nos tocar pelas questões que o texto nos traz e pelas
respostas que ele solicita 3.
3
Essas ideias são desenvolvidas por Gadamer (apud LAWN, 2007). Apesar de usarmos a metapsicologia freudiana,
a forma de leitura dos textos teve premissas semelhantes às desenvolvidas por Gadamer, esclarecendo que não
estamos associando essas interpretação: a hermenêutica gadameriana e a interpretação psicanalítica criada por
Freud. Uma se refere ao Inconsciente a outra ao texto escrito pelos autores pesquisados.
14
4
Gostaríamos de deixar claro que não estamos nos referindo à interpretação psicanalítica.
15
pode ensaiar". Enquanto vivemos, que possamos ensaiar. Assim realizamos nossa
pesquisa, um ensaio de paixão, de eros, de vida.
A pesquisa teórica foi empreendida em torno de três eixos investigativos os
quais geraram os três capítulos da mesma.
O primeiro capítulo traz o conceito de páthos do qual é oriunda a palavra paixão,
em dois momentos históricos: nos gregos clássicos e nos dias atuais. É, então,
apresentada a paixão no campo amoroso, delimitando-o como nosso objeto de
pesquisa, diferenciando-a do conceito de amor e circunscrevendo-a na esfera do
páthos, sofrimento e patologia. É apresentada a noção de patologia em psicanálise
com a finalidade de compreender a paixão no seu sentido páthico. Este capítulo tem a
intenção de contextualizar a paixão e associá-la tanto ao sentimento amoroso quanto
ao seu caráter patológico. Estabelecemos três possibilidades para o sentimento de
apaixonamento: ele dar lugar ao amor, ele terminar por autocombustão, ele se fixar
numa patologia.
No segundo capítulo a pesquisa avança para o contexto mais psicanalítico.
Partindo da afirmativa freudiana de que no amor (Verliebtheit), o objeto é colocado no
lugar do ideal do ego, pesquisamos o termo Verliebtheit e sua tradução ora como estar
amando, ora como apaixonamento, ora como auge do sentimento de amor, para
determinar a tradução que nos parece mais apropriada. Em seguida nos detemos na
distinção entre as instâncias ideais visando estabelecer em qual lugar ideal o objeto da
paixão é colocado. Assim começamos a entender a metapsicologia da paixão pelo viés
do ego ideal, o qual tem uma dinâmica particular e, a nosso ver, responde em grande
medida pelas peculiaridades do apaixonamento.
Essas peculiaridades são trabalhadas no terceiro capitulo, onde se veem o que
chamamos de “os destinos patológicos da paixão”, aqueles em que a particularidade da
paixão encontra seu desdobramento no adoecimento, marcado pelas características de
fixidez e sofrimento. Pesquisamos o narcisismo patológico, a melancolia, a negação da
alteridade, a alienação e o fetiche.
Agora, vejamos o que foi construído em torno do nosso tema.
16
1. O PÁTHOS DA PAIXÃO
5
O páthos pode ser abordado sob várias perspectivas: etimológica, histórica, filosófica, psicológica e até
astronômica, dentre tantas (Rocha, Z.,informação verbal – comentário feito na banca prévia realizada em Recife
em vinte e dois de fevereiro de dois mil e dezesseis) . Quanto ao nosso estudo, nos interessa estudá-lo ligado à
paixão, pelo viés psicanalítico.
17
p.220) pontua: “Loucura e paixão, dois tributários do mesmo rio, cuja fonte é ‘hubris’”.
posicionar bem ou mal em relação às paixões, sendo, portanto, dessa ordem, o que
determina a virtude” (op. cit., p.539).
Vemos em Aristóteles um pensamento que remete ao caráter passivo do
páthos, uma vez que ele considerava que o homem tinha responsabilidade por suas
ações, mas não por suas paixões.
Já Platão apresentava uma visão mais categórica acerca do páthos, a qual foi
retomada tanto pelos estoicos quanto por Kant (LEBRUN, 1987). “Para Platão, o
homem está preso à armadilha de suas paixões na Caverna das suas ilusões”
(MEYER, 1994, p.17). Ela não é refletida por aqueles que caem na sua armadilha, pois,
caso eles tomassem consciência da mesma, deixariam de ser suas vítimas. No
platonismo, paixão e razão não podem coexistir.
Ele tratava a paixão de forma rigorosa, para a qual não havia muita saída, já
que, no seu entender, ela era tanto um problema quanto o empecilho para a resolução
desse problema. Em virtude da cegueira que suscitava, a paixão impediria a percepção
de que houvesse qualquer problema a ser resolvido (MEYER, 1994, p. 31).
A solução apresentada pelos estoicos seria erradicar as paixões. Eles
discordavam de Aristóteles de que pudesse haver uma “educação” das mesmas. Estas
seriam, para eles, e também para Kant, um obstáculo a ser transposto, uma força que
deveria ser vencida, o sintoma de uma fraqueza da alma. Consequentemente o
apaixonado seria um desvairado que deu as costas à razão. Conforme nos recorda
Lebrun (1987), extirpar as paixões era o objetivo da profilaxia estoica.
Não se tratava mais de controlar as paixões, já que isso era impossível. Para os
estoicos paixão era sempre o resultado de uma doença e não uma reação inevitável a
uma emoção. Para eles: “toda paixão desde o seu despertar já infringe a lei que me
constitui como ser razoável, todas as paixões, na sua origem, já me conduzem ‘para
fora de mim mesmo’” (LEBRUN, 1987, p.25). Pensamos que esse “fora de mim
mesmo” é um retrato da hybris que os gregos associavam à paixão: aquilo que excede,
que está fora da medida, que nos extrapola 6.
6
A hybris está muito presente na paixão e teremos chance de ver um de seus desdobramentos na questão da
alteridade, quando o outro é aquele que nos excede, bem como no interessante debate de Laplanche no mesmo
tópico.
19
Nietzsche (apud LEBRUN, 1987) veio apontar uma contradição no discurso dos
estoicos. Para ele a preconização da apatia diante da paixão por intermédio de um
fortalecimento interno, nada mais era que um sinal de imensa fraqueza de vontade,
uma vontade incapaz de enfrentar as perturbações da alma. Eles partiam da ideia que
era impossível viver uma paixão sem ser totalmente dominado por ela. Não haveria
chance de vitória da vontade contra a paixão, a única saída seria eliminá-la para não
enfrentá-la.
Através do olhar dos estoicos podemos pensar no caráter de passividade do
páthos para os gregos. Os estoicos afirmavam que a passividade era em virtude da
desarmonia entre a alma e a razão, sendo esta última a instância que por natureza
deveria estar no domínio, mas fora alterada pela paixão. Era esse desvio em relação à
natureza racional do homem que explicaria o caráter excessivamente passivo do
páthos (LEBRUN, 1987).
Quanto á questão da passividade pensamos que podemos nos arvorar a fazer
um primeiro contato com a psicanálise, a qual terá sua relação com a paixão debatida
mais tarde. Pensamos que no apaixonamento o sujeito sofre passivamente uma ação,
porém a ênfase dessa passividade recai no fato dessa ação ser inconsciente, não se
sujeitando ao uso da razão, característica de um outro registro, o consciente. Por esse
motivo as paixões falam tanto do sujeito, elas são um reflexo de sua história pessoal,
mesmo que inconsciente e passiva diante da razão.
7
HEGEL. Aestheik, 12, S. 313-4, Glökner.
20
Orestes mata a mãe, não sob o império de uma dessas pulsões internas da
alma, a qual chamaríamos de paixão; o páthos que o conduz a esta ação é bem
pensado e refletido [...] Deve-se limitar o páthos às ações humanas e pensá-lo
como o conteúdo racional essencial presente no ‘eu’ humano, preenchendo e
penetrando a alma inteira” (Hegel 8 apud LEBRUN, 1987, p.23).
8
Op. cit.
9
Op. cit.
21
10
Michel Meyer, “Introdução”. In: DESCARTES, R. Les passions de l’âme. Paris: Librairie Générale Française, 1990,
p.05-14.
22
Este autor defende a ideia de uma relação entre o tóxico, a adicção e a paixão.
Ele compara a paixão à toxicomania iniciando sua discussão com a explicação
etimológica da palavra tóxico, a qual vem de toxicum, veneno usado nas flechas dos
citas – um povo bárbaro – para paralisar o inimigo. Podemos traçar um paralelo com a
flecha usada no contexto do apaixonamento, lançada por cupido em corações incautos,
que passam a ser intoxicados pelos efeitos da paixão.
Mesmo que Bento (2006) não fale de cupido, ele faz referência a um tipo de
paixão-sofrimento mais contundente ainda ao sublinhar a passagem do sentido de
paixão da antiguidade grega para o período cristão, pontuando que do original dos
gregos para o latim ficará apenas o sentido de sofrimento prejudicial. Esse é o contexto
da palavra “Paixão” na expressão “Paixão de Cristo”.
Flecha envenenada dos Citas, flecha de cupido, sofrimento de Cristo, são todas
circunstâncias, reais ou fictícias, de um mal para o qual não se pode impedir o efeito,
está-se sujeito a ele. No entanto, isso não significa que paixão seja sempre maléfica.
“Razão sem paixão não é mais do que a ruína da alma”, diz Meyer (1994, p.10).
Páthos significa não só sofrimento, pontua Queiroz (1999, p.81), “mas também a
experiência que se adquire na dor e que se refere a essa condição fundamental do
homem como ser mortal”. A autora nos remete às tragédias encenadas na Grécia
Antiga onde:
Páthos não pode ensinar nada, pelo contrário, conduz à morte se não for ouvido
por aquele que está de fora, por aquele que, na condição de espectador se
inclina sobre o paciente e escuta essa voz única se dispondo a ter, assim, junto
com o paciente, uma experiência pertencente aos dois.
11
Existem vários tipos de paixão, a paixão pela bebida, a paixão pelo jogo, a paixão pelas drogas, mas nosso
objetivo nesse trabalho é a paixão amorosa.
25
12
Uma das teses do maniqueísmo era que o mundo se constituía de bem e mal absolutos, sendo o espírito bom,
mas o mundo físico mau. (LINS, 2007)
13
Os Heréticos foram uma seita grandemente perseguida pela igreja católica nesse mesmo período
26
O amor feliz não tem história. Só existem romances de amor mortal, isto é, do
amor ameaçado e condenado pela própria vida. O que exalta o lirismo ocidental
não é o prazer dos sentidos nem a paz fecunda do casal. É menos o amor
realizado que a paixão de amor. E paixão significa sofrimento. Eis o facto
fundamental (ROUGEMONT, 1956, p.13).
trata mais de algo externo que afeta o homem e o apassiva; a passividade até
permanece, porém vem de dentro. A determinação interna seria retomada pela
psicanálise um século mais tarde.
Stendhal (1822) tem uma interessante descrição do que se passaria no nascer
da paixão, fenômeno que ele denomina cristalização:
14
Alberoni utiliza o termo enamoramento, no entanto, apenas uma vez ele emprega a palavra paixão, no resto de
sua obra ele fala em enamoramento num sentido que nos parece o de paixão.
15
Coup de foudre
29
se converte naquele que não pode ser senão ele”. (ALBERONI, 1988, p.10) Eis o
exemplo do diálogo fictício de um apaixonado: “”Posso ir com você?” Minha pergunta é
uma prova. Se ela responder que não, quer dizer que me afasta para onde eu não
possa existir.” (op. cit., p.61).
A paixão é um estado intenso, porém transitório, até existem pessoas que vivem
apaixonadas, no entanto o que perdura é o sentimento, não os objetos, estes são
cambiáveis. O amor é mais estável, não há o fogo da paixão, talvez por isso não entre
em autocombustão. O amor está mais ligado à realidade, a paixão à fantasia.
Em Elogio ao amor, o filósofo francês Alain Bandiou (2013, p.27) frisa que o
amor trata de uma separação que pode ser percebida na simples diferença entre duas
pessoas, com suas subjetividades infinitas, “todo amor propõe uma nova experiência
de verdade sobre o que é ser dois, e não um”.
A aceitação da separação não existe na paixão, ela é da ordem do Um, é
necessário o apaixonado se sentir fusionado ao objeto para ter uma ilusória sensação
de completude. Na medida em que ele projeta seu ideal no outro, esse outro torna-se
essencial. Barthes (1991, p.35) nos ajuda a entender a questão nesse pequeno
fragmento do discurso de um apaixonado: “me projetei no outro com tal força que,
quando ele me falta, não posso me retornar, me recuperar: estou perdido para
sempre”.
A consideração das diferenças, o reconhecimento do outro, de um e outro, ao
invés de apenas um, diz respeito a uma relação que não a paixão. Fala do amor. O
amor é um sentimento mais maduro e ponderado; “nobre” como pontuou Barthes
(1991).
Lejarraga (1998) distingue duas teorizações na concepção freudiana do amor,
de acordo com dois momentos chaves no seu arcabouço conceitual: uma concepção
narcísica e outra sob o domínio de Eros. A primeira, concebida à época da primeira
tópica, diz respeito à escolha de um objeto amoroso único e insubstituível; já na
segunda tópica, sob a égide da Pulsão de Vida, Freud inclui tanto o amor entre pais e
filhos, como a amizade e laços afetivos em geral. O amor narcísico, com características
de exclusividade, seria o relativo à paixão, pontua a autora. O outro, relativo a Eros,
apresenta substituições e alteridade.
30
A autora prossegue deixando mais clara sua ideia sobre amor em termos da
metapsicologia. No amor, sob regime do ideal do eu, haveria um investimento
privilegiado no objeto amado, o que significa que o objeto ocupa um lugar especial
como fonte de prazer. Mas esse privilégio permite outros investimentos, não implicando
uma concentração desejante na figura do amado. O amor aponta para o conhecimento
do outro, percebendo sua existência como sujeito autônomo, enquanto que na paixão o
outro é só imagem especular. O amor atenua a aspiração narcísica, aceitando sua
impossibilidade radical e criando outras fontes de prazer (LEJARRAGA, 2003).
Lejarraga (2003) diferencia o amor da paixão sendo o primeiro longamente
construído. Inicia-se a desidealização do objeto amado porque esse objeto não é mais
promessa de uma felicidade plena. O fascínio perde intensidade porque o objeto
perdeu o brilho de representar o ideal sem falhas, mostrando seus limites como
garantia de plenitude. O amor é concebido, assim, como contrapartida do modelo do
apaixonamento, como uma forma abrandada de aspiração narcísica. O amor
pressupõe a mediação e o recalque, a atenuação de um prazer absoluto e mortífero.
Vejamos o que mais a psicanálise trouxe de novo à compreensão do
apaixonamento.
Freud não chegou a estabelecer uma distinção explícita entre amor e paixão. Ele
falou algumas vezes sobre o amor, especialmente depois da introdução do conceito do
Narcisismo (1914) e em três artigos entre 1910 e 1917 com o subtítulo de
Contribuições à psicologia do amor, porém, nunca privilegiou o estudo desse
sentimento. Nas vezes que ele se referia ao amor era mais para enfatizar seu papel
numa determinada dinâmica do psiquismo - por exemplo: o complexo de Édipo, o
narcisismo, o processo identificatório, a idealização - do que para conceituá-lo.
Birman (1993) justifica que a paixão nunca se transformou em conceito básico
do saber psicanalítico porque ela é condição mesma de possibilidade da totalidade
desse discurso. Segundo o autor, é em torno do ser da paixão que a psicanálise se
estrutura como experiência e como saber.
O ponto de vista de Birman (1993) nos faz lembrar o conceito de desmedida e
passividade introduzido pelos gregos. A desmedida pulsional, a quota de afeto que
extrapola a capacidade psíquica de elaboração, acarreta no sofrimento do sujeito, que
levado pela angústia, busca a via da palavra no processo analítico como possibilidade
de descarga e ressignificação de seus investimentos. Lembramos mais uma vez que o
sujeito é também apassivado pelo inconsciente e pelas demandas pulsionais.
Voltando ao conceito de paixão, há um texto que podemos considerar
emblemático para a sua compreensão – o capítulo Estar amando e hipnose de
Psicologia de grupo e análise do ego (1921). Nele, Freud utiliza o termo amor 16, no
entanto o equipara à “fascinação” e “servidão”, o que nos faz pensar em algo mais
próximo à paixão amorosa do que ao amor propriamente dito. Neste trabalho, ele
explica que o objeto de amor é colocado no lugar do Ideal do Ego do sujeito. O ego
“empobreceu-se, entregou-se ao objeto, substituiu o seu constituinte mais importante
pelo objeto” (FREUD, 1921, p.144). Idealização, apagamento das diferenças, ausência
de separação, enfim, tentativa de retorno ao estado narcísico primário são os
elementos invocados por Freud quando fala da paixão.
A paixão é uma forma de amor que exige exclusividade, fusão e controle.
16
Rocha considera “paixão amorosa” a melhor tradução para o termo alemão empregado por Freud, Verliebtheit.
(informação provinda de email pessoal enviado em maio de dois mil e dezesseis).
32
Rocha (2008) explica que o apaixonado projeta sobre o objeto de sua paixão as
idealizações narcísicas de sua infância e tem a ilusão de que ele contém tudo o que lhe
falta, por isso pode preencher seu vazio, que é constituinte de nossa existência e
impossível de ser eliminado. A ilusão da completude narcísica alimenta a paixão.
Para Baranger (1994) o apaixonamento implica uma participação considerável
da libido narcisista que foi depositada no objeto como condição de sua gratificação,
para isso, o amor do objeto em relação ao sujeito se torna imprescindível para o
narcisismo deste.
Bauman (2004, p.33) escreve que “no brilho ofuscante da pessoa escolhida,
minha própria incandescência encontra seu reflexo resplandecente. Ele aumenta,
confirma e endossa a minha glória, levando consigo, aonde quer que vá, notícias e
provas dela”.
Podemos perceber o valor narcísico que é depositado na pessoa eleita. Porém,
por ser um atributo ligado ao narcisismo de quem se apaixona, é provável que a
pessoa investida pela paixão não seja vista como um ser com vida própria, ela é um
receptáculo de uma perfeição. Perfeição esta que só tem chances de se sustentar por
meio da ilusão e, também, por meio da “desumanização” do outro, da negação da sua
porção subjetiva, para assim, mais ainda, recusar a admitir-lhe a falta. Afinal, ser
faltoso é inerente ao humano.
A tentativa de fusão com o objeto demonstra o quão pouco ele é visto como
sujeito, mas meramente como um reservatório de ilusões infantis, uma coisa que ele
pode carregar para onde e quando for, como se refere Bauman (2004).
Na concepção de Haddad (2011) quando o amor bate à porta sem avisar e sua
presença se impõe prescindindo de definições prévias, está-se diante da paixão, que,
33
17
Em O Banquete
34
18
Estamos aqui fazendo prevalecer a imposição da realidade, mais que da realização.
35
19
Amor libidinal, além do amor ternura.
20
Ao menos na sua tradução para o português da Standard Edition
21
A frase original é: “Quando tudo corre bem, o enamorar-se termina no amor” (ALBERONI, 1988, p.37).
36
endossamos a posição de Bandiou (2013) que defende que o amor trata das
diferenças, é da ordem do Dois; como salientou Lacan (1960-61, 1992) é um dar o que
não se tem, é dar o reconhecimento da própria falta, é poder aceitar as diferenças, e
ser capaz de se relacionar de forma psiquicamente amadurecida.
A paixão fala do infantil, ela está atrelada à ilusão do narcisismo primário, como
bem explicam Freud (1914, 1921) e Rocha (2008). Por isso também concordamos com
Bauman (2004) ao ressaltar que no amor há a alteridade, na paixão essa é negada,
configurando uma característica peculiar a ela.
Não há como fugir do fim da paixão, inclusive, é preciso que ela chegue ao fim
para que a pessoa não fique refém de uma fantasia, é necessário o luto da ilusão
narcisicamente investida para no seu lugar poder ser colocado um verdadeiro e real
objeto, que em alguns casos, será nada menos que o antigo objeto sob um novo olhar.
Colocadas as posições de alguns autores, continua a pergunta: como entender
melhor a paixão? O que lhe é específico? O sofrimento? À medida que paixão deriva
do mesmo radical que patologia, podemos supor que sempre haja algo de doentio na
sua essência 22? Faz sentido se falar em paixão patológica ou é mera redundância? Em
havendo uma diferença, o que distinguiria a paixão patológica da paixão não
patológica? Mais ainda: o que é patológico e o que é normal?
22
Nesse caso estamos nos detendo especialmente no caráter de doença atribuído à palavra páthos.
37
impossibilidade da pessoa funcionar de outros modos que não apenas aquele mais
regredido.
No que diz respeito a esse tema, Bergeret (1988) define que o verdadeiro
“sadio” é um sujeito que tem tantos conflitos quanto qualquer outra pessoa, mas não
encontrou dificuldades internas ou externas superiores à sua capacidade de defesa ou
adaptação; um sujeito cujas pulsões têm flexibilidade, bem como seus processos
primários e secundários; que leve em consideração a realidade e possa ter um
comportamento aparentemente aberrante em circunstâncias excepcionalmente
“anormais”.
O autor tem parâmetros amplos, mas percebe-se a ideia de que o conflito é
inerente a todos, e que a maneira que se irá lidar com ele caracterizará uma atitude
mais saudável ou não. Também nos chama a atenção o caráter de flexibilidade
pulsional na sua definição, bem como, ou consequentemente, a permutação adequada
dos processos psíquicos primários e secundários e, finalmente, o papel da aceitação
da realidade.
No seu livro, Bergeret discorre sobre a patologia nas diversas estruturas
psíquicas. Entendemos que a paixão não tem uma estrutura psíquica própria, ela tem
formas de investimentos e defesas particulares nas quais entra em jogo a capacidade
de flexibilidade da pulsão e o intercâmbio de objetos.
Tal flexibilidade necessária para o equilíbrio na economia psíquica é o aspecto
preponderante no que caracteriza a descompensação para Bergeret (1988, nota de
rodapé, p.42): “A “descompensação” corresponde, para mim, à ruptura do equilíbrio
original que pôde se estabelecer em tal arranjo particular, no seio de uma estrutura
estável de base, entre investimentos narcísicos e objetais”.
De acordo com Aulagnier (1985), a neurose se separa da normalidade não em
função do potencial para o conflito, mas pela intensidade ou eventual cronicidade do
mesmo.
O equilíbrio como característica da normalidade já era destacado desde a
antiguidade, Canguilhem (2009/1966) pontua que na medicina hipocrática, era
justamente a perturbação do equilíbrio natural ao homem que caracterizaria a doença.
38
Comte (1828 23, apud CANGUILHEM, 2009/1966) compactuava com essa noção
de Hipócrates. O pai do positivismo transformou em axioma geral a concepção
nosológica de Broussais (1822-1823 24) a qual afirmava que todas as doenças
consistiam, basicamente, "no excesso ou falta de excitação dos diversos tecidos abaixo
ou acima do grau que constitui o estado normal" (Broussais, 1822-1823, apud
CANGUILHEM, 2009/1966, p.17). Para ele as doenças eram o efeito de mudanças de
intensidade na ação dos estimulantes indispensáveis à conservação da saúde.
Canguilhem (2009/1966, p.20) demonstra como as palavras empregadas por
Broussais e Comte evidenciam seu caráter qualitativo e normativo, tais como
deteriorar, alterar, etc. Segundo Canguilhem:
23
COMTE, A. Examen du Traité de Broussais sur l'irritation, 1828, apêndice ao Système de
politique positive (cf. 28), t. IV, p. 216.
24
BROUSSAIS, F.-J.-V. Traité de physiologie appliquée à la pathologie, v.2, Paris: Mlle
Delaunay, 1822-1823.
39
25
Tradução livre
41
“Ele está doente, patológico (ele sofre) quando ele é limitado a um só regime ou
registro de funcionamento, além daquele que o colocou em perigo, não dispondo de
outra coisa que não ‘uma reação catastrófica’” (CHILAND, 1990, p. 24). Para
Canguilhem ([1943], 2009), frisa a autora, a normatividade é uma sensação que
apenas o sujeito, e não o observador, pode ter. É o sujeito que se queixa de estar
doente ou de não estar normal. Ou seja, é uma questão primordialmente subjetiva.
Parece-nos que Chiland (1990) está se referindo aos neuróticos, uma vez que
os psicóticos ou mesmo perversos e psicopatas não têm essa visão deles próprios
como doentes, mesmo assim neles está presente uma patologia.
Chiland (1990), então, remete a questão da normalidade para o campo
psicanalítico: o que se pode considerar normal nesse contexto? Ela questiona como se
pode dizer que uma sexualidade é normal. Do ponto de vista de quem? A partir desse
prisma introduz a ideia de que o sujeito parece encarnar a normalidade dentro de um
movimento de idealização ou de identificação projetiva, onde somente as partes boas
do sujeito são projetadas.
Ao invés de se ater a critérios de normalidade, a pergunta que o analista deve se
fazer é se “com a técnica psicanalítica, ele pode ou não permitir ao paciente ser mais
satisfeito com ele mesmo, e de manter as relações mais satisfatórias, se livrando da
imposição de seus fantasmas, e do domínio imaginário ou real de outros” (CHILAND,
1990, p. 27).
A autora ressalta que Freud não quis opor o normal ao patológico, se recusando
a aceitar a existência de uma normalidade total. Para ele não havia diferença
qualitativa, mas quantitativa entre ambos.
Ferenczi (1910/1991) também pontuava que não existe uma diferença
fundamental entre a “normalidade” e a patologia para a doutrina psicanalítica, que as
neuroses não possuem um conteúdo psíquico característico, exclusivo e específico. O
autor defende que as doenças dos neuróticos são provocadas pelos mesmos
complexos com que todos nos defrontamos. O diferencial para a patologia situa-se no
plano quantitativo e prático, no quanto de energia se desperdiça na manutenção de
determinado sintoma.
42
Leriche (1936), mesmo sendo no campo da medicina, trouxe uma ideia que nos
parece sintetizar o que a psicanálise pensava como o patológico: a "doença é aquilo
que perturba os homens no exercício normal de sua vida e em suas ocupações e,
sobretudo, aquilo que os faz sofrer" (apud CANGUILHEM, 2009/1966, p.36).
A priori podemos deduzir que quando ela é um estado transitório, uma loucura
passageira, como dizem os poetas, ela é natural, saudável, corriqueira, passional;
quando ela estanca, não deixa espaço para o luto da desilusão, vindo a se tornar uma
obsessão, há de se pensar numa patologia. Quando o descompasso entre investimento
narcísico e objetal, como escreveu de Bergeret, torna-se permanente, há grande indício
de uma relação patológica.
Rocha nos traz uma ideia inteiramente nova que nos faz questionar ainda mais a
paixão (informação verbal) 26. Ele relembra que Freud dizia haver algo de patológico no
Inconsciente, exemplificando com o caso do sonho, sendo este, uma psicose
passageira e a psicose um sonho que não se acaba. Rocha questiona se o mesmo não
se passa com a paixão, se assim como o sonho, que é um fenômeno da vida normal,
mas tem seu aspecto doentio, a paixão também não tenha algo em si que
“naturalmente” a torna fixa como patologia em nossa vida psíquica e cotidiana
(Informação verbal). 27
Pensamos que talvez possa ser seu aspecto mais regredido, tão primitivo que
tem menos chance de ser elaborado, e acaba por criar uma hipercatexia (desmedida)
difícil de ser descarregada, originando sempre um ponto de fixação. É possível que
esteja aí a “normal anormalidade” da paixão, tendo não só o excesso, a hybris, mas
também a fixação como seu ponto de partida. Nesse caso ela seria sempre uma
doença que se instala desde sua instauração e que alguns conseguem se “curar”
outros não.
Freud (1932, p. 98) pontifica que “o id significa as paixões indomadas”. Nessa
falta de domínio pode recair o patológico, naquilo que sempre virá como um excesso,
que nos tirará do nosso eixo, nos levando a funcionar de um modo mais primário,
alheio o máximo possível à realidade.
26
Comentário feito por Rocha, Z. na banca prévia realizada em Recife em vinte e dois de fevereiro de dois mil e
dezesseis.
27
Comentário feito por Rocha, Z. na banca prévia realizada em Recife em vinte e dois de fevereiro de dois mil e
dezesseis.
45
28
Andrade Lima Filho levanta a pertinente questão da paixão ser tão paradoxal que tenha algo de inapreensível e,
consequentemente, inominável (Informação verbal – comentário feito na banca prévia realizada em Recife em
vinte e dois de fevereiro de dois mil e dezesseis). Esse ponto de vista nos parece muito apropriado, mas não nos
debruçaremos sobre ele, uma vez que estamos buscando palavras e conceitos para nos aproximarmos da paixão. A
ideia dela como um paradoxo inapreensível não será descartada por parecer improvável, apenas nos desviaremos
dela para termos mais esperança para a caminhada.
46
2. OS IDEAIS DA PAIXÃO
A escolha da ESB se deveu ao fato desta ser a primeira edição feita no nosso
idioma e a única, até o presente momento, que traduziu todos os volumes da obra. Os
textos em alemão usados para comparação foram versões digitais da Gesammelte
Werke.
Como frisamos no capítulo anterior, Freud não se debruçou especificamente
sobre o estudo da paixão ou do amor. Há, porém, um capítulo de Psicologia de grupo e
análise do ego (1921), intitulado Estar amando e hipnose, que ele examina mais
profundamente a dinâmica envolvida no amor visando entender os fenômenos grupais.
Neste texto, ele infere que quando estamos amando, tratamos a pessoa escolhida da
mesma maneira como tratamos nosso próprio ego, ou seja, uma quantidade
considerável de libido narcísica transborda para o objeto.
Na versão brasileira, a passagem acima emprega estar amando para traduzir o
termo original Verliebtheit 29, porém, notamos que o equipara à fascinação e servidão,
algo que se mostra bem mais próximo à paixão que ao amor.
No decorrer do artigo a palavra alemã é sempre traduzida por estar amando; ao
passo que quando a palavra Liebe é usada, sua tradução se dá para amor. Em um
único momento, que fala do amor adolescente, é utilizado o termo paixão sentimental,
no entanto, no original não se encontra a palavra Verliebtheit, mas schwärmerischen
Liebe, que, segundo o dicionário Michaelis (2009) significa amor entusiasmado e de
acordo com o dicionário Langenscheidt (2015), amor entusiástico.
Interessante notar que quando encontramos a palavra paixão em nossa
tradução (no contexto de paixão adolescente), o próprio Freud escolhera outro
substantivo, o schwärmerischen Liebe que frisa o arroubo e entusiasmo do amor. Nas
demais passagens do artigo, onde havia Verliebtheit, os tradutores escolheram a
locução verbal estar amando e onde havia Liebe, deixaram a palavra amor. Não houve
um cuidado maior na tradução com a distinção dos termos relativos ao sentimento
amoroso: Liebe (amor) e Verliebtheit (paixão).
Estar amando e amor são similares no que tange o sentimento que pretendem
expressar, e o emprego de ambos indistintamente não deixa clara a diferença que
29
Na tradução do texto de 1921 realizada por Paulo César de Souza, editada pela Companhia das Letras, SP, 2011 o
termo para Verliebtheit é enamoramento.
49
Freud parecia querer dar ao usar dois termos diversos: Verliebtheit (paixão) e Liebe
(amor). No texto, a diferença está mais na classe gramatical e no tempo verbal - o
gerúndio “estar amando”, o infinitivo “amar” – do que nos vocábulos em si.
Pensamos que seria mais adequado o uso da palavra paixão no lugar de estar
amando, tendo em vista as explicações de Rocha (2008) sobre a etimologia da palavra
descrita no início desse capítulo e também ao contexto em que ela estava sendo
empregada no artigo.
Temos uma hipótese sobre o porquê da tradução para “estar amando” em
português. Como sabemos, a Edição Standard Brasileira foi feita a partir da tradução
das obras em inglês. No artigo em questão, Being in love and hypnosis (Estar amando
e hipnose), traduzido por James Strachey do alemão, o termo being in love é
empregando no lugar do substantivo Verliebtheit. Esse termo significa estar apaixonado
em inglês; in love tem um sentido diferente de love. Love quer dizer amor, porém, in
love, significa apaixonado. Em inglês foi mantida a palavra apaixonado, ao invés de
estar amando.
Onde há Verliebtheit no alemão, há in love em inglês e onde há Liebe em
alemão, está apenas love em inglês. Na língua inglesa está claro que há uma
diferença, mesmo que tal diferença se dê apenas pelo emprego da preposição in,
criando a expressão in love.
Na tradução feita por Strachey, Freud (1921) inicia o capítulo falando de love –
amor - e então menciona uma classe de casos em que being in love - estar apaixonado
- nada mais é do que a catexia objetal advinda das pulsões sexuais com o objetivo de
satisfação diretamente sexual, uma catexia que acaba quando sua meta foi atingida 30.
Mais adiante, no mesmo parágrafo, ele usa a palavra passionless, que foi
traduzida como desapaixonado, para explicar que o sujeito “ama” mesmo em intervalos
desapaixonados, pois reconhece que a libido voltará e o objeto será necessário
novamente 31. Ou seja, estar apaixonado seria uma das várias classes de casos dentro
do fenômeno do amor, uma classe onde a libido tem um objetivo claramente sexual.
30
Tradução livre
31
idem
50
32
Tradução livre
33
No dicionário Michaelis (2009) há a tradução para 1. paixão, 2. entusiasmo, forte sentimento. 3. amor ardente;
como exemplo encontra-se a frase: She has a passion for music que teve a tradução de Ela tem paixão por música.
34
Verliebtheit
51
35
Idem
52
No texto em alemão, Freud usa Verliebtheit que foi traduzida como o auge do
sentimento de amor. Já para Verliebte, a escolha da palavra em português foi
enamorado. Verificamos que Verliebtheit é a palavra que Freud emprega, nesse texto,
quando se refere a um tipo de sentimento que envolve ausência de separação entre o
eu e o objeto, assim como a supervalorização do outro.
Nem sempre a tradução da ESB manteve-se fiel ao uso de diferentes termos
que caracterizavam a distinção entre os sentimentos de amor e de paixão, como fez o
próprio Freud. Ao serem encontrados alguns textos em português cuja tradução havia
respeitado essa distinção reforçamos nossa hipótese de que havia na mente de Freud
um contraste entre os dois sentimentos, onde tanto o amor quanto a paixão teriam
características particulares.
Acreditamos que a não uniformidade das traduções se deva à questão de ter
havido vários tradutores para a obra em nosso idioma. Apesar de Jayme Salomão ter
sido o coordenador geral das traduções, cada volume teve diversos colaboradores. Por
exemplo, em Narcisismo: uma introdução (1914) foram Themira de Oliveira Brito, Paulo
Henriques Britto e Christiano Monteiro Oiticica, com revisão técnica Darcy de
36
Conferências Introdutórias sobre psicanálise (1916-17)
53
37
Psicologia de grupo e análise do ego
54
38
Nota do editor inglês ao artigo O ego e o id (1923)
55
17) que discorre também sobre o narcisismo 39. Nela Freud (1916-17, p. 500) emprega
o termo ego ideal no seguinte trecho:
Percebe uma instância que assume o domínio do seu ego e que mede seu ego
real e cada uma de suas atividades mediante um ego ideal que ele, paciente,
criou para si próprio no decorrer do seu desenvolvimento. Cremos também que
essa criação foi feita com a intenção de restabelecer a auto-satisfação que
estava vinculada ao narcisismo infantil primário, mas que desde então sofreu
assim tantas perturbações e mortificações. Conhecemos a instância auto
observadora como o censor do ego.
tempo, colocou-se em sujeição ao id”. Na página 52, Freud escreve: “À medida que
uma criança cresce, o papel do pai é exercido pelos professores e outras pessoas
colocadas em posição de autoridade; suas injunções e proibições permanecem
poderosas no ideal do ego” (...) Os sentimentos sociais repousam em identificações
com outras pessoas, na base de possuírem o mesmo ideal do ego”.
Verificamos que Freud usava mais o termo ideal do ego, equiparando-o ao
superego e ao usar pela primeira vez as instâncias ideais, usou ambos os termos não
distinguindo um do outro.
Além dos artigos mencionados por Laplanche e Pontalis (1988), procuramos os
conceitos de ego ideal e ideal do ego no capítulo Estar amando e hipnose, tendo em
vista este ser um artigo emblemático na descrição metapsicológica da paixão. No
decorrer do capítulo mencionado, bem como do artigo inteiro, aparece apenas o termo
ideal do ego. Freud (1921, p.144) diz que na paixão 40 “o objeto foi colocado no lugar do
ideal do ego”. Percebe-se, ao ler o contexto do parágrafo, que o ideal do ego tem aí a
conotação mais próxima da idealização narcísica e do id do que uma conotação
superegóica herdada do Complexo de Édipo.
No entanto, a noção de ideal do ego, na maior parte das vezes que Freud a
emprega, prevalece conceitualmente semelhante ao superego, muitas vezes é
apresentada como seu precursor. O termo ego ideal é pouco utilizado e fica mais
restrito aos textos por volta de 1914. Uma distinção entre ambos nunca foi teorizada
por Freud.
Rocha reconhece algumas distinções na obra de Freud. Ele cita o artigo Sobre o
narcisismo: uma introdução de 1914 como expondo uma distinção entre as instâncias,
onde o ego ideal seria mais primitivo. Depois no Ego e o id (1923) já não existe essa
distinção, pois introduz o superego no lugar do Ideal do Ego. Finalmente, na
Conferência 31 41 (1932) (informação verbal 42), Freud volta a falar de um ego ideal
primitivo e um ego ideal modelo, esse último, acreditamos, seria o Ideal do Ego.
40
Ver discussão acima sobre Verliebtheit.
41
A dissecação da personalidade psíquica
42
Comentário feito pro Rocha, Z. em banca prévia realizada em Recife em vinte e dois de fevereiro de dois mil e
dezesseis.
57
Mesmo que Freud não tenha deixado uma distinção clara e teorizada entre as
instâncias ideais, alguns autores, entretanto, se ocuparam desta tarefa. Nunberg
(1989/1932) aparenta ter sido o primeiro a publicar algo sobre o assunto. Num livro
prefaciado por Freud, ele distingue ego ideal e ideal o ego, definindo o primeiro como
“O ego ainda inorganizado, que se sente intimamente unido ao id, [ele] corresponde a
uma condição ideal e, por isso, é chamado ego ideal” (NUNBERG, 1989/1932, p.136, o
colchete é nosso).
Para a criança seu ego é ideal até que ela encontre a primeira oposição à
satisfação de seus desejos. Diante dessa frustração provocada pela percepção da
realidade, as pessoas abandonam este ideal narcísico. Um abandono, entretanto, que
será sempre acompanhado do esforço para se retornar ao que foi deixado para trás.
Do ponto de vista de Nunberg (1989/1932) quando esse ideal é novamente
alcançado em alguns estados de doença, o paciente, apesar de seu sofrimento e
sentimento de inferioridade, sente-se um tanto onipotente e dotado de poderes
mágicos. O ideal do ego, para o autor, é uma instância diferenciada do ego que
floresce através da captação egóica dos estímulos provenientes do mundo externo
graças aos órgãos sensoriais, se desenvolvendo como resultado da incorporação das
autoridades do início da infância. Ele dá origem ao superego.
Enquanto que no ego ideal, os impulsos do id são aceitos sem oposição e sua
satisfação é permitida, com o surgimento do ideal do ego, esse acordo harmonioso fica
perturbado, essa nova instância passa a se inserir entre o ego e o id, demandando
renúncias por parte do sujeito. Entendemos esse processo como marcante para a
passagem do princípio do prazer para o princípio de realidade, quando o sujeito
começa a se deparar com sua impotência, ou melhor, com sua “não onipotência”.
Rosenfeld em 1962 refere o ideal do ego como um precipitado do antigo ideal
dos pais, uma expressão de admiração que a criança sentiu pela perfeição que então
era atribuída a eles.
Uma distinção entre as duas instâncias é reforçada por Loewald (1962),
afirmando que o ego ideal representa um retorno à perfeição narcísica primária infantil
por meio de uma identificação primitiva com as figuras parentais onipotentes. Ele está
relacionado ao desejo alucinatório de completude. O ego ideal significa uma volta ao
58
estado primitivo de perfeição, porém um estado que não será almejado para o futuro,
mas que está sendo fantasiado no presente.
O autor define o ideal do ego como algo a ser alcançado, um momento seguinte
ao ego ideal; é um ideal para o ego, enxergado nas figuras parentais de uma forma
mais elaborada e diferenciada que a instância anterior.
Laplanche e Pontalis (1988, p.190) apresentam o ego ideal como uma “formação
intrapsíquica que certos autores, diferenciando-a do ideal do ego, definem como um
ideal narcísico de onipotência forjado a partir do modelo do narcisismo infantil”, uma
formação psíquica anterior ao ideal do ego e superego. Já o ideal do ego seria uma
instância resultante da convergência entre o narcisismo e as identificações com os pais
e seus substitutos, e também com os ideais coletivos. Ele constitui um modelo a que o
indivíduo procura conformar-se.
Charles Hanly (1984) pontua que a diferença fundamental entre ambos é que o
ego ideal conota uma forma de ser, uma identidade como já tendo sido conquistada,
enquanto o ideal do ego, uma forma a ser buscada, uma identidade a ser adquirida.
Segundo este teórico o ego ideal é um aspecto do ego que acredita que lhe foi
concedido o estado de perfeição, se refere a uma condição muito agradável, porém
ilusória. É uma autoimagem distorcida pela idealização, que, no entanto, pode ser
experimentada como mais real que o próprio ego, uma espécie de espelho idealizado
onde o ego real pode se contemplar relativamente livre da realidade.
Por outro lado, o ideal do ego se refere a um potencial ainda não atingido, é a
ideia de uma perfeição em direção a qual o ego precisa se esforçar para chegar, para
isso tem que se sujeitar ao teste de realidade requerido pelo ego. O ego ideal enquanto
um ideal já conquistado se opõe ao teste da realidade. O primeiro é ativo, o segundo,
passivo.
O ego ideal tem uma história, ou melhor, uma pré-história, observa Mezan
(1987, p.128), “ele é formado por resquícios dos momentos mais primitivos de nossa
vida, aqueles em que não tínhamos consciência da limitação, das imperfeições e da
finitude que nos caracterizam como seres humanos”.
59
43
ROCHA, Z. Trabalho apresentado no V Fórum Nacional de Psicanálise.
44
BIRMAN, J. Estilo e modernidade em psicanálise. São Paulo: Editora 34, 1997.
60
45
Capitulo VII de Psicologia de grupo e análise do ego (1921)
61
46
Lacan afirma (1995, 1956-57) que é impensável que a criança tenha noção de sua onipotência, o que conta são
as carências, as decepções, que afetam a onipotência materna. Essa discussão não será empreendida, já que foge
do tema e objetivo desse trabalho.
64
onipotência que ele não reconhece ser, na verdade, mantida por um terceiro. Eis a
ilusão narcísica: bastar-se a si mesmo, quando na realidade é o mundo externo através
do outro que sustenta essa crença.
Na verdade, é possível que o bebê não tenha sequer aparato anímico para
entender o que significa sentir-se onipotente, o fato é que ele ainda não experimentou,
nessa fase, uma forte sensação de falta e de mal estar decorrente da necessidade não
satisfeita. Ele se inicia no mundo sob o princípio do prazer, para gradativamente ir se
submetendo ao princípio da realidade.
Voltando à passagem do narcisismo para a relação objetal intermediada pela
função materna, Pellegrino (1987) traz uma referência que permite ver como a relação
inicial da criança com a mãe tem influência direta nas relações amorosas posteriores.
Ele observa que quanto pior for a relação entre ambas, quanto menos a criança se
sentir amada e protegida pela figura materna, mais ela se agarrará a ela e mais
devastadoras serão as paixões desencadeadas na vida adulta.
Um ego que não teve um bom investimento narcísico será um ego fragilizado e
se sentirá enormemente ameaçado e desamparado frente às desilusões da realidade.
As decepções fatalmente se farão presentes e a realidade inevitavelmente causará
uma dor que deixará uma ferida perene, a ferida narcísica, aquela diante da desilusão
quanto ao narcisismo imaginado.
A desilusão tem início à medida que a criança passa a experimentar o
desprazer diante de seus desejos não satisfeitos, então, começa a se deparar com sua
insuficiência e a perceber que o mundo não começa nem termina nela própria. O bebê
vai se dando conta que ele depende de algo que não pode controlar, portanto suas
necessidades correm risco constante de serem insatisfeitas.
É nesse contexto que se dá a descoberta do objeto. Conjuntamente com a sua
percepção vem a experiência de dependência de um terceiro. A existência do outro
chega com o impacto de fazer cair por terra a ilusão da autocompletude.
“O inimigo do narcisismo é a realidade do objeto e, inversamente o objeto da
realidade, ou seja, sua função na economia do Eu”, afirma Green (1976/1988b, p.49).
Green observa que o objeto é ao mesmo tempo interno e externo, sendo necessário à
65
47
Green acredita haver uma estrutura narcísica primária e prefere falar de estrutura no lugar de estado narcísico
primário.
48
O aspecto saudável da criatividade e do foi muito valorizado e destacado por Winnicott ao longo de sua obra.
66
Assim, a paixão amorosa, porque aspira a uma unidade impossível, está fadada
ao fracasso. O apaixonamento tem então um caráter ilusório em, ao menos, três
sentidos: primeiro, porque projeta no objeto os próprios ideais narcísicos
conferindo-lhe perfeições inexistentes; segundo, porque os objetos escolhidos
serão sempre meros substitutos dos objetos incestuosos primordiais; e, terceiro,
porque acena imaginariamente com uma completude irrealizável.
da libido ao ego – retorno narcísico – é mais patógeno, adverte Baranger (1994), que
acrescenta ser este o tipo envolvido no apaixonamento.
Os dois modos de amar se mantêm funcionais ao longo da vida não havendo
uma separação precisa e rígida entre um e outro, mas diferentes gradientes,
tendências e inclinações (Rios, 2008).
Laplanche e Pontalis (1988) questionam se é possível opor, mesmo que
esquematicamente, os dois tipos de escolha objetal e usam os exemplos dados por
Freud para demonstrar a dificuldade de separar os dois conceitos. No tipo anaclítico,
salientam os autores, Freud ressalta a supervalorização sexual atribuída ao objeto
escolhido. Essa supervalorização tem sua origem no narcisismo primário do sujeito que
é transposto para o outro. Portanto trata-se mais de uma escolha mobilizada pelo
narcisismo do que pelo modelo de ligação.
Por outro lado, prosseguem os autores, como exemplo de escolha narcísica,
Freud descreveu as mulheres que querem ser mais amadas do que amarem e lhes
agrada o homem que satisfaça essa condição. Nesse caso se estabelece uma relação
de cuidado do outro, portanto anaclítica, ao invés de uma relação especular e
narcísica, como Freud quis exemplificar.
Conjecturamos que, nesses exemplos, a lógica freudiana é conduzida pelo
ponto de vista da economia egóica do sujeito, mais focado no retorno libidinal para o
ego do que no investimento feito a partir dele. No tipo anaclítico, o sujeito empobrece
libidinalmente seu ego à medida que dirige quase toda sua catexia para o objeto,
acarretando numa supervalorização do outro. O ego fica, dessa forma, empobrecido.
Parece ser por esse motivo que Freud não considera esse tipo de escolha como
narcísica.
Já na escolha narcísica, de acordo com Freud (1914), a pessoa ama apenas a si
mesma, com intensidade comparável à do amor do outro por ela. “Sua necessidade
não se acha na direção de amar, mas de serem amadas” (FREUD, 1914, p.105).
Através desse amor do outro, essas pessoas terão o ego libidinizado, tal qual o foi
inicialmente pela mãe, portanto recai num modelo narcísico de investimento.
69
quais “se possa levar uma verdadeira vida sexual” (FREUD, 1912, p.165). Nessa época
se farão as primeiras escolhas amorosas da vida adulta do sujeito.
De acordo com Freud (1912) em alguns casos, o sujeito pode se fixar em
fantasias incestuosas, e ambas correntes, então, se dividirão novamente para poupar o
sujeito da angústia frente à castração, por causa da revivescência da situação edípica.
O resultado são pessoas que quando amam não desejam, e quando desejam, não
podem amar, tornam-se homens impotentes ou mulheres frígidas. Voltaremos a esse
ponto ao tratar do fetichismo logo mais.
Assim entramos na esfera das patologias. Por exemplo, a separação na vida
adulta das correntes libidinais, o papel do narcisismo na escolha do objeto, nos
rementem a uma maneira regredida de se relacionar com o outro. Além destas, há
outras chances de se cair num destino mais doentio de relação. Esse será nosso tema
do capítulo a seguir: os aspectos patológicos da paixão que podem levá-la a ser
marcada pelo adoecimento.
71
49
Freud, por muito tempo, englobou a esquizofrenia na categoria de neurose narcísica, já intuindo, talvez, uma
parcela de narcisismo na mesma.
50
O artigo em que Rank trata desse assunto é citado por Freud em Inibição, Sintoma e Angústia de 1926
73
51
A melancolia será vista no próximo tópico.
75
devastadora e uma reação negativa frente à aproximação do outro o qual isola com a
pulsão mortífera.
É o caso do falso self, termo cunhado por Winnicott (Zimerman, 2001) para falar
do fenômeno em que o verdadeiro self permanece escondido e cria uma imagem falsa
para ocultá-lo, desse modo a visão que o sujeito tem de si e a que as pessoas têm dele
é da casca espessa que ele criou.
Há ainda o self grandioso que se encaixa na descrição que queremos enfatizar.
Esse conceito é empregado por Kohut (1988 52, apud ZIMERMAN, 2001) para se referir
à imagem onipotente e perfeita que a criança tem de si mesma, e nos casos em que
ela persistir “o sujeito vai apresentar algum grau de transtorno narcisista de
personalidade” (ZIMERMAN, 2001, p.378).
No transtorno narcisista de personalidade, o sujeito se defende da baixa auto
estima, fingindo, muitas vezes até para si mesmo, uma grande segurança interna e um
ego muito bem investido libidinalmente, por si e pelos outros. Esse tipo de
personalidade pode ser chamado simplesmente de “narcísica” ou “narcisista”. As
pessoas narcísicas demonstram onipotência e prepotência para disfarçar um grande
vazio interno e medo do outro.
Numa alusão à dificuldade desses sujeitos, Green (1988b) explica: “os
narcisistas são pessoas feridas – de fato, carentes do ponto de vista do narcisismo”
(p.17). Tais pessoas fogem do encontro com a incompletude através da ilusão de não
precisarem de ninguém.
Nem todas as pessoas com marcantes dificuldades vividas no abandono do
narcisismo primário usam do mesmo tipo de defesa, criando um falso self. Muitas
externalizam sua fragilidade, tornando-se visivelmente inseguras e dependentes de
terceiros, sempre duvidando abertamente de suas capacidades e necessitando da
fusão com o outro.
Hornstein (2009) chama a atenção para dois movimentos narcísicos, o de se
afastar dos outros ou de se aferrar a eles. O narcisista se distancia quando sente que
algo ameaça seu frágil equilíbrio e aferra-se quando sua “sede de objeto apenas se
sacia em presença daquele a que cabe a função de refletir para o sujeito”
(HORNSTEIN, 2009, p.55).
52
KOHUT, H. A Psicologia do self e a cultura humana. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.
77
53
Racamier, P.C. (1993). Le génie des origines. Paris: Payot.
78
54
Op. cit.
79
dinâmica em paixões que envolvem submissão extrema, onde a baixa auto estima e
masoquismo do apaixonado permitem sua inclusão nesse jogo de vampirização
narcísica.
Não podemos deixar de pensar que mesmo aquele que se apaixona tem a
imensa necessidade de fusionar-se ao objeto, podendo, ele também, o apaixonado,
estabelecer com o outro essa relação narcísica e perversa. Como nos lembra Andade
Lima Filho o apaixonado é também ele um sedutor, um sedutor “que se oferece como
objeto de gozo para o outro” 55 (Informação verbal) 56. Ele não seria apenas vítima de
relações vampirizantes, mas muitas vezes, seu mantenedor.
A questão concomitante às relações com pessoas com traços narcísicos,
perversos ou não, é que aqueles com essas características não sabem amar o outro.
Assim a busca por uma cura do narcisismo esfacelado acaba acarretando em mais
estilhaços ainda. Não apenas há uma desilusão de completude, como também a dor
diante da ausência de um investimento qualquer que seja por parte do outro.
Semi (2011, p.79) pontua o que pode acontecer em tais relações:
55
Este poderia ser outro destino patológico da paixão, visto pelo prisma do masoquismo, talvez como uma
aproximação ao narcisismo destrutivo de Rosenfeld (1988). No entanto não nos deteremos nesse aspecto para não
ampliarmos em demasia nosso campo e perdermos em profundidade os destinos patológicos escolhidos para a
pesquisa.
56
Comentário feito por Andrade Lima Filho, I. na banca prévia realizada em Recife em vinte e dois de fevereiro de
dois mil e dezesseis).
80
57
Além do princípio do prazer
81
morte é uma indicação de que a ligação entre pulsão e objeto falhou, levando ao
desligamento.
A pulsão de morte é um conceito, dizem diversos autores, além de Roussillon
(2015), como Rosenfeld (1971), Green (1988b), Prado (1988), ela não é um dado
observável, tal qual a libido. Ela nunca se encontra no seu estado puro, mas sempre
fusionada a Eros, pulsão de vida. Há uma variação na prevalência de uma ou outra, no
entanto, tânatos nunca está só.
Laplanche (1988, p.17) explicita que morte, no termo pulsão de morte, não é a
morte do outro, mas, “em primeiro lugar, a morte do próprio indivíduo, e somente de
maneira secundária a morte infligida ao outro”. Ele afirma que Freud passou anos
recusando a “pulsão de agressão” que lhe era incessantemente sugerida por seus
discípulos. A agressividade já é resultado da fusão das pulsões de vida e de morte,
servindo como uma maneira de deslocar a pulsão de morte para o exterior, com o
intuito de proteger o sujeito de tânatos desfusionado.
O autor relembra que pulsão de morte está estreitamente ligada, em Freud, à
noção de princípio do zero ou de Nirvana e à compulsão à repetição. Em suma, o
indesejável, o demoníaco, o que não se pode ligar nem controlar, retornam com toda
força em Além do princípio do prazer, afirma Laplanche(1988).
Hanna Segal (1988, p.41) defende que a libidinização está quase sempre
presente como parte da fusão das pulsões de vida e de morte. Num desenvolvimento
sadio, a fusão das pulsões se dá sob a égide da pulsão de vida, e a pulsão de morte
desviada – a agressividade – está a serviço da vida. Onde a pulsão de morte
82
58
Tradução livre
83
59
O texto do Luto e Melancolia (1917) é tido como emblemático para a teorização kleiniana
85
que na paixão, o outro se torna uma necessidade e não uma escolha. A partir dessa
constatação, ela declara que o objeto da paixão é:
Destacamos que ela enfatiza o desejo de não mais desejar, qual seja, uma
expectativa de desobjetalização.
Ainda a respeito de tânatos, Segal (1984/1988, p.95) também advoga que “o
narcisismo primário é todo expressão da pulsão de morte”, essencialmente na medida
em que é desobjetalizante, deduzindo que só há narcisismo libidinal no narcisismo
secundário.
É bastante interessante olharmos o ego ideal pelo prisma da pulsão de morte
para entender a paixão patológica sob a perspectiva do narcisismo negativo. Pelo que
vimos até agora, o ego ideal é a instância diretamente envolvida no apaixonamento,
sendo projetado praticamente por completo no outro para o qual os investimentos são
totalmente dirigidos. Há uma descarga libidinal total no objeto externo, havendo uma
estreita conexão com o narcisismo negativo de Green (1967/1988b, 1976/1988c, 2010),
onde há uma descarga total, chegando ao nível zero. Há também, de certa forma, uma
situação de desobjetalização, ou narcisismo de morte, já que não há objetos outros
para os quais o sujeito queira dirigir seus investimentos além do objeto da paixão.
Acreditamos que com o ego deslocado para o outro, ficando empobrecido, fica
mais difícil a elaboração do luto. O aprisionamento ao objeto, antes externo, agora
internalizando pela via identificatória, gera um processo de melancolia. Na melancolia,
oposta ao luto, há uma repetição mortífera no mesmo, que não gera novos
investimentos.
Como mencionamos no segundo capítulo, nem o objeto externo é investido, nem
tampouco o ego. O objeto externo não é reconhecido em sua alteridade. A economia
da paixão tende seriamente a empobrecer o ego, como frisou Freud (1921) há quase
cem anos, um empobrecimento que pode levar à morte psíquica.
88
Vemos como o refluxo egóico saudável da libido e seu novo direcionamento aos
objetos é importante para a saúde psíquica do sujeito, isso se faz presente no trabalho
do luto. Na melancolia é a patologia diante da perda que predomina. Estudaremos um
pouco desse processo para entender a paixão patológica.
3.2. Melancolia
Freud (1917) distingue os dois movimentos do luto e da melancolia frente à
perda do objeto, considerando o primeiro saudável e o segundo patológico.
Entendemos a melancolia como um dos desdobramento patológicos da paixão.
No luto o mundo que se torna pobre e vazio, já na melancolia, é o próprio ego
que se empobrece, sentencia Freud (1917).
Na situação de melancolia verifica-se que o tipo de escolha objetal era o
narcísico, de modo que “a catexia objetal ao se defrontar com obstáculos, pode
retroceder para o narcisismo” (FREUD, 1917, p.282). Esse tipo de escolha, que Freud
percebe ser subjacente aos casos de melancolia, também está eminentemente
presente nos casos de paixão. Daí podermos deduzir que a paixão e a melancolia
trazem uma dinâmica semelhante e o que se aplica à melancolia pode ser usado para
compreender a paixão.
Aqui é importante relembrar a descrição freudiana (1921) da economia psíquica
no apaixonamento, dizendo que o ego se empobreceu transbordando sua libido para o
objeto. Pensamos que a economia semelhante na paixão e na melancolia, permite
deduzir que paixão tem grandes chances de um desenrolar patológico marcado no
instante mesmo de sua instalação. Isso não significando que toda ela tenha
necessariamente o mesmo destino.
Na configuração da melancolia, a pulsão sexual fica presa na sua volta ao ego,
mais especificamente ao objeto perdido, que agora, por via identificatória, se agregou
ao ego do sujeito, no que Freud (1917, p.181) constata que “a sombra do objeto caiu
sobre o ego”. O investimento que deveria estar direcionado ao mundo externo agora é
todo voltado ao mundo interno, porém de maneira soturna e melancólica, identificado
que está com o objeto abandonado.
89
60
O termo esquizoparanóide vem de esquizo – cisão dos objetos em bons e maus e paranóide – perseguição pelos
objetos maus.
90
partes boas (impulsos libidinosos narcísicos) do ego. Nesse período mais primitivo é o
ego ideal que intermedia as relações objetais.
Mezan (1987) observa que a idealização é um mecanismo de defesa contra as
pulsões destrutivas, uma vez que o objeto ideal, totalmente bom irá defender a criança
do objeto mau, persecutório. Ele, entretanto, levanta outra questão: diante do objeto
idealizado, sentimo-nos dispensáveis e inferiores, sem nada a acrescentar que o objeto
já não possua. Isso desperta uma grande inveja e frustração com o mesmo. A
frustração se dá à medida que esse objeto tão poderoso não é capaz de aniquilar com
todas as angústias da criança. Nós sabemos que isso é impossível, mas ela ainda não;
com isso culpa o bom objeto por não lhe restituir o estado de bem aventurança. A
inveja e a frustração respondem também pela ambiguidade em relação ao objeto
idealizado.
Com o desenvolvimento das funções egóicas o bebê passa a perceber o objeto
como um todo e a fazer reparação pelo dano causado imaginariamente aos maus
objetos, que ele via apenas como maus, mas agora os percebe como outra faceta dos
bons objetos. A criança descobre que, portanto, também atacava objetos tão preciosos
e bons. Essa é a posição depressiva, nome dado em virtude da angústia prevalecente
dessa época pelo mal causado imaginariamente aos objetos amados.
Na ambiguidade presente na melancolia, responsável pelo ataque do sujeito ao
próprio ego, que agora se identificou ao objeto perdido, percebemos um funcionamento
semelhante à posição primitiva do bebê descrita por Klein (1952b). O objeto amado e
idealizado também é invejado e frustrante. Além disso, há maior dificuldade de
integração do amor e ódio relativos ao objeto.
Essa porção do ódio desintegrado em relação ao outro retorna para o sujeito,
favorecendo a instauração da melancolia, numa dinâmica psíquica em que uma parte
diferenciada do ego, o superego, ataca o sujeito com o ódio outrora destinado ao objeto
externo. Santos e Sartori (2007, p.17) resumem: “A melancolia, podemos defini-la
assim, é o avesso da paixão narcísica. É o ódio puro que viceja no lamaçal, pantanoso
e fétido, da decepção consigo mesmo e com seu ideal”.
O quadro que os autores se referem diz respeito a uma fase do desenvolvimento
ainda incipiente do ego, que, portanto, lança mão de defesas menos elaboradas e que
91
tem estreita ligação com o processo patológico da melancolia. Tal ligação entre a
posição esquizoparanóide e a melancolia se verifica não só no tipo de escolha
narcísica, mas também na ambivalência que acompanha a relação com o objeto.
Nessa fase do desenvolvimento, para o objeto ser idealizado da maneira como é, ele é
cindido e o sujeito tenta se relacionar apenas com as partes amadas, as quais são
enormemente idealizadas.
Ao que nos parece, a paixão tem características mais evidentes da posição
esquizoparanóide, especialmente no seu aspecto narcísico, conforme salientou
Fagundes (1993), citada alguns parágrafos acima.
Prado (1988) também corrobora nossa hipótese ao destacar que na posição
esquizoparanóide é o ego ideal que se projeta no outro. Ego ideal e narcisismo primário
estão fortemente entrelaçados no apaixonar-se como temos visto ao longo dessa
pesquisa.
Podemos agora pensar na relação estreita entre paixão e melancolia também
pelo prisma da teoria kleiniana à medida que a melancolia é associada à posição mais
primitiva do desenvolvimento do ego, fase balizada por uma dinâmica semelhante à da
paixão.
Diríamos que a melancolia é o outro lado da moeda da paixão, cujo valor de face
é o narcisismo. Ambas, paixão e melancolia (sofrimento) estão entremeadas, uma
levando a outra consigo, marcadas pela decepção.
Seria, portanto, pertinente conjecturar que onde houver a melancolia, havia uma
pessoa apaixonada que adoeceu? Uma pessoa que escolheu seu amado pelo viés
narcísico e, sem perceber, elegeu uma forma páthica de amar?
Por investir os objetos de maneira narcísica, para o melancólico é difícil
desinvesti-los, reafirma Hornstein (2009). Uma escolha objetal dessa natureza, e a
ambivalência que se escondia sob o investimento narcísico-idealizado do objeto,
dificultam o luto. A melancolia ilustra como o ego é alimentado pelo objeto. “Produz-se
uma regressão de escolha de objeto narcísico para o narcisismo. (...) A escolha
narcísica se torna identificação narcísica” (HORNSTEIN, 2009, p.104).
O investimento narcísico num objeto, prossegue o autor, equivale a investir em
si mesmo através do objeto, portanto o melancólico sente a perda do objeto como uma
92
perda de si. “O trabalho do luto (...) é bem sucedido quando consegue ligar a pulsão de
morte com Eros” (op. cit. p.104).
Castelo Branco (2014) nos recorda que o termo ‘melancolia’ representa, desde
Freud, um quadro de perda. No entanto, a perda melancólica é, em sua aparência, uma
perda incomum. O melancólico é alguém que permanece ligado a um objeto de amor
de maneira patológica, mesmo após a morte ou perda definitiva desse objeto. Esse
laço que não cede e que permanece ligado ao lugar vazio deixado pelo objeto de amor
indica-nos, de antemão, que não se trata, na melancolia, de uma escolha de objeto
comum.
No tipo de escolha com base narcísica, ao perder-se o objeto, perde-se também
uma parte essencial do sujeito. Na medida em que se busca no outro o espelho para
projeção de uma idealização primitiva, fazendo dele uma miragem onde possa admirar
sua perfeição, ao se quebrar tal espelho, o sujeito se vê diante do “azar” de sua
castração. Infelizmente, ao contrário da crendice popular, não serão sete anos de azar,
mas uma “maldição” que se carregará por toda vida.
Ao invés de um refluxo da libido para o ego, para em seguida ser redirecionada
a novos objetos possíveis, como seria a saída saudável na situação de luto, a catexia
outrora destinada ao objeto fica presa à imagem dele que a partir de então paira sobre
o ego do sujeito, sombreando novas chances de investimento.
O sujeito não se desliga do objeto narcísico e advém uma fixação e perda da
maleabilidade de investimentos que caracterizam a patologia. Espera-se maleabilidade
da pulsão, cujo objetivo é a descarga levando o aparelho anímico a encontrar objetos
que sejam adequados para tanto. O aparelho psíquico é posto em movimento em
virtude da pulsão, motivado que está para seu alívio de tensão. No caso da perda do
objeto da paixão, o objeto deixou de ser adequado, mas o ego não consegue encontrar
substitutos, tão preso e fixado que se encontra ao objeto perdido.
Assim como na melancolia, na paixão também há um objeto perdido, nela a
perda se dará sem necessariamente haver um afastamento do objeto. Dela pode advir
o luto ou a melancolia. Lembremos que a paixão está fadada ao fim, posto que é
impossível sustentá-la devido às bases ilusórias na qual tenta se equilibrar. Mesmo que
no lugar nasça o amor, algo fatalmente será perdido. O apaixonamento sempre
93
Os casais que passam à história como símbolos da paixão perfeita muitas vezes
se desfazem na patologia ou na mesquinhez quando olhados de perto. É que
todos somos tentados a acreditar que o próximo é capaz de viver a plenitude
que sempre se esquiva de nós mesmos: o amor absoluto, a felicidade completa.
traumática que passa pela percepção de que o outro sempre excede o sujeito.
(COELHO JR e FIGUEIREDO, 2004)
Quanto à fusão com o outro, é provável que, pela ótica do sujeito, ele mal
reconheça esse movimento em relação ao objeto, uma vez que ele pouco percebe o
outro. Como não se trata de uma negação psicótica, o apaixonado sabe que o outro
está ali, no entanto ele usa de subterfúgios para driblar a percepção do outro enquanto
sujeito em si, separado e autônomo.
É comum vermos o apaixonado ter a certeza de saber o que é melhor para o
amado, ou vê-lo completar aquilo que o outro quer dizer, deduzir o que o outro está
pensando ou precisando. Esses são exemplos corriqueiros e superficiais de negação
de vida própria do outro. Há outros mais complexos e nocivos como vimos na
perversão narcísica e outros que podem se evidenciar no momento em que o objeto
não corresponde ao investimento do apaixonado. O sujeito não dá a opção do outro
não o desejar, ele sequer entende ou permite que o objeto tenha vontade e vida
próprias. Muitos crimes passionais ocorrem imbricados nessa lógica de que o outro não
tem o direito de viver uma existência à parte ou ter desejo diferente do apaixonado.
Uma maneira bem específica de negação da alteridade encontra-se no
desmentido 61, onde uma percepção é escamoteada, sendo vista, mas desprezada,
permitindo duas realidades contrárias conviverem lado a lado. No nosso caso, o
apaixonado vê o outro, sabe que ele é separado de si, no entanto, não dá a ele o
atributo de ser desejante. Não é à toa que consideramos um dos aspectos patológicos
da paixão o excesso do uso do mecanismo da recusa, fazendo do outro um objeto
fetiche. A esse tema nos dedicaremos logo mais.
Ainda em relação à alteridade na teoria psicanalítica há a posição de Laplanche
(1967/1992), oferecendo um interessante ponto de vista acerca do outro.
Laplanche (1967/1992) se utiliza do terceiro golpe narcísico infligido por Freud à
humanidade 62 para falar da revolução que o pai da psicanálise trouxe ao mundo
quando nos apresentou esse “outro” que nos habita, o Inconsciente. Ele traça um
61
Estamos nos referindo ao mecanismo da Verleugnung, que diferentes autores traduzem de diferentes maneiras,
citamos apenas alguns exemplos: Rejeição em Freud (1927,1938); Renegação para Bleichmar (1985 Introdução ao
estudo das perversões); Recusa segundo Aulagnier (2003 A perversão como estrutura), Desmentido para Serge
André (1995 A impostura perversa) e Queiroz (2004 A clínica da perversão).
62
Ao desapropriar o homem de sua própria casa, ou seja, de sua consciência,
95
63
Marcando o primeiro golpe narcísico da humanidade, destronando o sistema criado por Ptolomeu.
96
64
Tradução livre.
97
65
Usamos aqui impulso no sentido de movimento, já que não somos da teoria que é o objeto que desperta a
pulsão, mas esta que parte em busca de um objeto.
66
Não concordamos que antes de 1897 se possa falar em processo psicanalítico, uma vez que ainda não havia o
primado do estatuto da fantasia como realidade no Inconsciente.
98
seja despertada pelo outro, estrangeiro, o adulto, mas ela não é imposta, ela é
desvelada.
Nesse ponto, voltamos à Laplanche (1987, p.126) e a “teoria da sedução
generalizada”. Ela tem relação com a “sedução precoce” introduzida por Freud (1933 67)
onde o pai perverso dá lugar à mãe na relação pré-edipiana. A sedução é veiculada
pelos cuidados corporais dispensados ao bebê quando a mãe desperta pela primeira
vez sensações de prazer no órgão genital.
A diferença ressaltada e introduzida por Laplanche (1987) alarga a dimensão da
sedução, observando que o despertar não se dá apenas a nível genital, mas
igualmente ao conjunto de erogeneidade do corpo. A mãe traz a erogeneidade da
criança à tona.
O outro, o estrangeiro, inaugura no bebê sensações que lhe pertencem, se
apoiando em funções orgânicas para se expressarem. O que era autoconservação
assume uma função sexual. Apoiado no instinto de sobrevivência, de alimentação e
cuidados básicos, o ego descobre outro tipo de satisfação, da ordem do prazer,
emergido da libido colada à satisfação orgânica. Entramos na terra estrangeira do
erótico, da interdição, do recalque, enfim, do Inconsciente. O encontro com o objeto
rememora esse primeiro encontro com o estrangeiro, todo encontro com o objeto, é na
verdade, um reencontro com o mesmo, diz Freud em 1905.
Nesse sentido, a paixão é a grande marca do outro, aquele que determina
nossas respostas, sentimentos, defesas. Paixões são inexplicáveis, ao menos pela
razão. Sua compreensão está na esfera do estranho em nós.
À medida que é o outro real – a mãe, na teria laplancheana - que nos desvela o
erotismo, criando a força do desejo pulsional, podemos também entender o medo que
a alteridade traz para o sujeito. Ela inaugura um campo sem respostas ou objetos
definidos, nos levando a uma vida de buscas nunca plenamente realizadas. O
verdadeiro objeto (qual seja) da satisfação estará para sempre perdido. A pulsão não
tem objeto definido.
As paixões são tentativas destinadas ao fracasso de reencontrar esse objeto,
apossar-se dele e nunca mais experimentar a frustração. Conforme se dê a
67
Novas Conferências Introdutórias, conferência 33: A feminilidade.
99
3.4. Alienação
Na fusão da paixão pode haver, em maior ou menor grau, o não reconhecimento
da alteridade, conforme expusemos até aqui. Há também, outra possibilidade que
envolve faceta semelhante no que tange a relação com o outro.
Estamos nos referindo à alienação. Condição particularmente descrita por
Aulagnier (1985), a qual desenvolveremos nesse tópico. Na paixão, tanto a alienação,
quanto a negação da alteridade, podem ser entendidas como duas faces da mesma
moeda, qual seja, o impacto do outro na vida psíquica do sujeito e as tentativas para
lidar com esse abalo. Podemos pensar na negação da alteridade e na alienação como
formas de funcionamento ativo e passivo da pulsão.
O abandono parece ser o grande medo do apaixonado, já disse Aulagnier
(1985). Pensamos que há o abandono pelo outro e também o abandono no outro, onde
a pessoa se perde enquanto sujeito, assujeitada que está no outro: eis o cerne do
fenômeno da alienação.
100
O outro se tornou o próprio lugar do meu ser, ele me falta, vem corporificar
minha falta a ser, e, desesperadamente tento reunir-me a ele. Entretanto, para
isso é preciso destruir tudo que dele me distingue” (GORI, 2006, p.126).
O autor reflete que esse desejo de transparência do outro e para o outro revela a
própria miséria do ser.
Outro autor que também aborda a alienação é Hornstein (2009), ele faz
referência a Aulagnier, mas desenvolve suas próprias conclusões. Ele pontua que “a
dúvida é a castração no registro do pensamento” (HORNSTEIN, 2009, p.158) e na
alienação o sujeito remente a totalidade dos pensamentos ao juízo exclusivo do outro,
assim anulado a própria dúvida. Levando adiante o que disse o autor, podemos deduzir
que essa é uma maneira de também anular a castração e sentir a completude primitiva,
tal qual se tenta fazer através do apaixonamento.
O autor associa a alienação à paixão, afirmando que o apaixonado foge do
conflito, iludindo-se ao pensar que o objeto alienante ou o objeto da paixão o excluirá
da possibilidade de sofrimento psíquico. Em seguida mostra como esse expediente não
funciona, argumentando que quando a capacidade de pensar é parasitada, doada ao
outro pela idealização, o que acontece é apenas uma regressão, uma vez que o sujeito
não chegou a aceitar que não há saber absoluto.
De forma categórica ele resume:
Apesar de Eros ter toda relação óbvia com a paixão, no seu aspeto desejante,
na supervalorização sexual, na libido narcísica (do ego ideal) projetada maciçamente
no outro, há também o outro aspecto da libido que está sempre fusionado à pulsão de
vida, esse aspecto é a pulsão de morte.
Negar o outro não deixa de ser também uma expressão da pulsão de morte,
coisificando, desobjetalizando a pulsão, nos dizeres de Green (1988b), sequestrando
102
dos objetos seus investimentos. O outro não é um objeto a ser investido, o verdadeiro
objeto é o ego ideal do sujeito que está projetado no outro. A paixão se dá a expensas
do ego do sujeito, ela alimenta o do outro, quase matando de inanição o narcisismo do
ser apaixonado, como Racamier (1993) e Eiguer (2014) demonstraram.
Aulagnier (1985) traz suas preciosas colaborações ao apresentar o conceito de
alienação a qual anula o sujeito, não o outro, ela é a pulsão de morte autodirigida à
medida que desfaz as ligações pensantes do sujeito. Ele não tem ideias próprias, ele
tem simulacros de ideias copiadas do ser apaixonado com o qual não quer entrar em
conflito com a finalidade de anular a separação, as diferenças, anulando os conflitos
manifestos pelas ideias. Outra vez uma anulação, porém nessa dinâmica, anulando a si
mesmo. Mais mortífero ainda.
Não só a pulsão de morte se faz presente nas patologias da paixão, há ainda
outra perspectiva que gostaríamos de pesquisar, a da paixão enquanto fetiche,
enquanto engodo para tamponar a castração. De certa forma voltamos ao narcisismo
primário, no entanto, nunca havíamos pretendido nos distanciar dele, uma vez que
determinamos o ego ideal enquanto o norte da paixão.
3.5. Fetichismo
Procuraremos estabelecer alguns pontos em comum entre a paixão e a
perversão, em especial o fetichismo. Para isso apresentaremos nossa pesquisa acerca
do mecanismo característicos do fetiche com o objetivo de verificar semelhanças com o
apaixonar-se.
Freud tratou do fetiche desde Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade
(1905) até o fim de seus escritos. Além de outros pontos de sua obra, ele escreveu um
artigo emblemático sobre o tema, Fetichismo (1927) e deixou um outro inacabado
chamado A divisão do ego nos processos de defesa (1938) em que discorria sobre o
mecanismo primordial do fetichismo.
No início da teorização psicanalítica, o fetiche é uma das perversões citadas no
primeiro de seus três ensaios enquanto tipo de sexualidade perversa em que há a
supervalorização de uma parte do corpo de outra pessoa ou de um objeto que se torna
essencial para o ato sexual. Ele refere-se a uma pulsão parcial que é satisfeita por
103
causa da fixação do sujeito à sexualidade infantil a qual ainda não amadureceu a ponto
de ter atingido a genitalização.
Vale ressaltar que desde essa época, a psicanálise já considerava como
patologia algo que fixasse a libido, portanto as perversões teriam que ter o caráter de
modalidade de satisfação exclusiva para serem consideradas patológicas.
Num outro momento, a partir de 1927, há acréscimos à teoria da perversão,
particularmente, ou por causa de sua percepção acerca do fetiche. Freud considera
então que um mecanismo específico é utilizado no fetiche, a Verleugnung (rejeição), no
qual uma percepção é rejeitada à consciência, apesar do sujeito ainda manter essa
crença conscientemente. São duas informações contraditórias que coexistem com
certa pacificidade, sem que o sujeito psicotize.
Freud (1927) diferencia a rejeição do recalque (Verdrängnung) explicando que
esse segundo se refere à vicissitude do afeto; já para a vicissitude da ideia a palavra
correta seria rejeição (Verleugnung). Numa nota de rodapé ele acrescenta que o
recalque aplica-se à defesa contra exigências pulsionais internas, advindas do id, ao
passo que rejeição se dá como defesa contra as reinvindicações da realidade externa,
trazidas via superego. 68
Em 1927 Freud considera o fetiche um substituto do pênis da mulher (a
mãe) em cuja existência o menino outrora acreditou e não deseja abandonar tal crença
em virtude do medo da ameaça de castração se concretizar. Se a mulher foi castrada,
ele também poderá ser. Ele cria um estratagema, o objeto fetiche, para continuar
acreditando na existência do pênis nas mulheres e estar mais a salvo da castração 69. O
fetiche representa o falo feminino.
68
Abriremos aqui um pequeno adendo quanto à questão da terminologia Verleugnung em português. Estamos
utilizando, nesse momento, rejeição por ser a palavra empregada na tradução da ESB, no entanto existem outras
traduções para Verleugnung, que foram empregadas nos tópicos anteriores, dependendo do autor que a está
usando, tais como renegação, recusa, desmentido, como citado na nota de rodapé da página 82. Consideramos
esses termos igualmente pertinentes e haverá necessidade de recorrer a eles conforme o autor que estivermos
citando. Preferimos não manter uma uniformidade da palavra referente ao mecanismo da Verleugnung em prol de
sermos fidedignos com o que determinado autor considerou mais apropriado como tradução. Caso se refira a
outro mecanismo que não a Verleugnung, deixaremos isso claro.
69
Nesse caso verificamos o trabalho do recalque como defesa quanto ao desejo incestuoso, do id; e da rejeição
enquanto defesa da castração cuja ameaça é uma das funções paternas, superegóicas.
104
Recusa-se a ausência do objeto desde a primeira alucinação, que daí por diante
dará conta do fantasma. Desde a primeira inscrição, a recusa começa sua tarefa
sobre a dialética presença-ausência (PEREDA, 1996, p.541).
Entendemos que sem a ilusão, o desejo não se mantém, não há ideais aos
quais se identificar, implicando num prejuízo não só da função de simbolização, (se não
há desejo, não há falta), mas também da própria construção da identidade como um
todo.
“É necessário recusar a morte e a castração no contexto indefensável”, afirma
Pereda (1996, p.541), para mais adiante acrescentar: “insistimos na ação estruturante
da recusa que dá conta do imaginário narcisista, onipotente, infantil, sempre ameaçado
pela castração” (op. cit., p.541).
Com isso, acreditamos que ela sintetiza o porquê da recusa ser estruturante:
com o aparelho anímico ainda em início de organização, seria impossível lidar com
angústias tão aniquilantes que colocassem em jogo a própria continuidade do ser. O
105
psiquismo seria esfacelado antes de ter a chance de criar defesas contra medos tão
poderosos.
Podemos pensar na função da recusa enquanto mecanismo necessário para
manter o narcisismo primário, estruturante. Ele é importante no início, mas precisa ser
posto de lado ao longo do desenvolvimento do ego. Mesmo que constitutivo, já
sabemos da importância de sair da perspectiva autocentrada, posta inicialmente, para
dar continuidade à subjetivação. Quanto à recusa, é preciso abandonar esse
mecanismo por outros mais elaborados.
Para sair da recusa, diz Pereda (1996), é preciso ter acesso à descrença, que
implica a aceitação da diferença. Sua persistência dificulta todo trabalho de separação,
da elaboração do luto, da dependência narcísica, “tudo o que tem sua origem em
modalidades de relacionamentos que supõem um ficar “dependurado” no outro”
(PEREDA, 1996, p.542).
Naves (1999) faz uma aproximação entre a perversão e o narcisismo,
intermediados pelo papel da recusa. Ela se indaga se a perversão não seria uma
defesa estruturada contra uma angústia narcísica, onde o sujeito se vale do mecanismo
chave da perversão – a recusa – para aplacar seus temores narcísicos.
Ela relembra Freud (1927) ao referir-se à recusa como forma encontrada pela
criança para negar os reais perigos da ameaça de castração. A autora chama a
atenção para o fato desse mecanismo não encontrar uma resolução definitiva para o
sujeito, uma vez que:
o que foi negado continua presente e exige uma constante renovação. Ele se
recusa a perceber a experiência que prova que as mulheres não possuem pênis,
no entanto, não conserva a crença que elas tenham um. No lugar dessa crença,
mantém o fetiche que se materializa em um objeto (NAVES, 1999, p.112).
nas paixões o ser tomado de paixão torna-se objeto e paciente dela e se entrega
ao outro ser, que o afeta, sem que necessariamente haja o apagamento do
sujeito, enquanto nas perversões, a relação de alteridade fica comprometida.
alguns pontos de contato. Apesar de haver diferença para com o fetichismo, há outras
semelhanças relevantes.
Na paixão patológica há maior impacto da dificuldade diante da alteridade, isso
torna o objeto escolhido mais coisificado. Nela, há também uma prevalência da pulsão
de morte, o que compele ainda mais a uma desobjetalização do vínculo. Esses
aspectos nos permitem aproximarmo-nos um pouco mais do fetichismo, lembrando que
estamos falando de modo de funcionamento psíquico e não de estrutura enquanto tal,
na qual estariam em jogo maior cristalização dos mecanismos e da economia psíquica.
Tratar da paixão pelo seu viés fetichista não significa dizer que os apaixonados
tenham uma estrutura perversa. Queiroz (2004), por exemplo, deixa bem clara essa
distinção ao se reportar ao discurso perverso na clínica. Ela marca uma diferença entre
o discurso perverso e o discurso do perverso. O primeiro é um discurso marcado pelo
desmentido (Verleugnung), sem necessariamente ser um discurso exclusivo de
pessoas perversas.
A autora frisa que a tendência atual “parece apontar para uma fenomenologia da
perversão, nem sempre relacionada ao desvio sexual ou à estrutura clínica”
(QUEIROZ, 2004, p.17) e acrescenta que o fato da sociedade estar se constituindo
numa montagem perversa não significa necessariamente que os sujeitos tenham
estrutura perversa.
Assim também se posiciona Lebrun (2008, p.251), ele observa que “não é
porque sujeitos participam de uma economia perversa, que, por isso, eles mesmos são
perversos, no sentido em que teriam a ver com a estrutura perversa”, explicando que
uma economia perversa é aquela em que funciona “a renegação da falta” (LEBRUN,
2008, p.272) sem necessariamente fazer daqueles que a compartilhem, sujeitos
perversos.
Não pretendemos afirmar que as pessoas com estrutura perversa não
compartilhem de uma forma de apaixonar-se patológica, o perverso apresenta, sim,
uma forma doentia de apaixonar-se. Tanto os perversos como os psicóticos podem
apresentar uma patologia no apaixonamento. O que estamos destacando é que falar
de uma característica perversa do apaixonamento é uma situação circunstancial a
109
70
HILTENBRAND, J.-P. Perversion. In: CHEMAMA, R. ; VANDERMERSCH, B. Dictionnaire de Psychanalyse. Paris:
Larousse, 1998.
110
sedução, esse ódio inerente às relações se faz mais presente e, pode ser dirigido
contra o outro com toda hostilidade, calcado na economia perversa. A paixão que é o
próprio excesso e desmesura, pode ser inclusive, excesso de ódio disfarçado.
Hanna Segall (1988) fez uma articulação entre a perversão e o ódio, como
apontamos anteriormente, ao falarmos do narcisismo patológico. Ela refere que nas
perversões, a libido se apresenta de forma mais contundente a favor da pulsão de
morte. O objeto enquanto causa e solução para o desequilíbrio pulsional, recebe uma
grande carga de ódio e inveja, podendo se tornar, portanto, um objeto de perversão, ao
ser eleito objeto da paixão.
O outro pode provocar raiva e vontade de vingança; para Stoller (1975/2014),
isso se dá por motivos concretos: um ato de sedução de um adulto para com uma
criança. No entanto, com Laplanche (1987,1992) nós vimos o quanto os cuidados
maternos já são em si uma sedução generalizada, colocando todos os sujeitos na
situação de passíveis seres desse trauma que é trazido pelo outro.
Ou seja, essa sedução “imaginariamente concreta”, pode estar fantasiosamente
registrada no psiquismo de todos nós. Laplanche (1992) nos remete a outra alteridade
que é o Inconsciente, esse outro, estranho em nós, que transforma a realidade
fantasiada em realidade material. Não é preciso haver um evento no mundo externo
para provocar angústia e disparar defesas, elas se dão deflagradas pelas fantasias
mesmas.
França (2014) apresenta um interessante ponto de convergência entre a
perversão e a posição esquizoparanóide kleiniana. Ela afirma que se pode dizer que o
perverso é aquele que funciona apenas na posição esquizoparanóide, ou seja, ele é
dominado pelos processos da clivagem do ego, pela ansiedade persecutória e pela
possibilidade exclusiva de que se estabeleçam relações de objeto parciais, dificultando,
dentre outros, a elaboração do processo de luto.
Vimos nesse capítulo, acerca da melancolia, como esta tem conexão com a
posição esquizoparanóide ao passo que o luto está associado à posição depressiva.
Percebemos ao longo do trabalho que a paixão traz uma escolha de objeto semelhante
àquela que subjaz os casos de melancolia e que também tem estreita semelhança com
mecanismos da posição esquizoparanóide tais com idealização extrema e cisão do
112
71
Tradução livre.
113
72
SMIRNOFF, V. La transaction fétichique. In: Nouvelle Revue de Psychoanalysis, v.2, 1970.
114
73
Vista no tópico 3.1 deste capítulo.
115
Considerações finais
74
Usamos a palavra “alma” com a conotação de anímico, forma como Freud também se referia a aparelho
psíquico.
118
75
Aqui queremos nos remeter à hipótese levantada por Rocha (2016) abordada no final do capítulo 1: O páhtos da
paixão.
119
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