Hannah Arendt e o Totalitarismo
Hannah Arendt e o Totalitarismo
Hannah Arendt e o Totalitarismo
O CONCEITO E OS MORTOS
RESUMO
O objetivo deste artigo é estudar o conceito de totalitarismo elaborado por Arendt, definindo
a especificidade tanto política quanto histórica do conceito na perspectiva da autora. Trata-se,
na obra de Arendt, de um conceito construído a partir de uma ideologia conservadora adotada
pela autora, que vê, nas massas, um agente político disperso e nocivo. A análise arendtiana
transforma a figura de Eichmann em símbolo do totalitarismo e do mal: um mal terrível
por suas consequências e terrível pela banalidade com que é exercido.
I
Tomarei como ponto de partida uma questão de fundamental importância:
o que, na perspectiva arendtiana, torna específico o totalitarismo? Basicamente,
sua idéia de domínio, definido pela autora como “a dominação permanente de
todos os indivíduos em toda e qualquer esfera da vida” (Arendt, 1989, p. 375).
Com isto, “a diferença fundamental entre as ditaduras modernas e as tiranias do
passado está no uso do terror não como meio de extermínio e amedrontamento
dos oponentes, mas como instrumento corriqueiro para governar as massas
* Professor do Centro Universitário de Sete Lagoas (Unifemm). Doutor em História pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: [email protected].
Politeia: Hist. e Soc. Vitória da Conquista v. 7 n. 1 p. 243-260 2007
Não havia tradição filosófica dentro da qual esse mal absoluto pudesse ser
compreendido. Só com uma análise dos “elementos” que se cristalizavam
no totalitarismo – superpopulação, expansão e superfluidade econômica, e
desenraizamento social e deterioração da vida política – esse mal absoluto
podia ser iluminado (Young-Bruhel, 1997, p. 197).
nossa história e fazendo cair por terra os mais sólidos e fundamentais valores
políticos e éticos”. O totalitarismo, então, é pensado em termos de um sistema
político cuja originalidade requer explicações igualmente originais. Ele rompeu
a continuidade do tempo histórico, e o conceito de totalitarismo como ruptura
é expressamente afirmado por Arendt (1972, p. 54):
como nacionalidades. Segundo Heuer (2005, p. 47), esta foi, para Arendt, a
fatalidade política européia. E a análise arendtiana tem início, como acentuam
Heller e Fehér (1998, p. 133), com uma espécie de inversão: “a história do
totalitarismo começa com a história do pária, e portanto com a exceção, com
o politicamente anômalo, que é então usado para explicar o resto da sociedade,
em vez de ao contrário”.
O processo de atomização social que marcou o século XX é visto por
Arendt como o fator básico para o surgimento e consolidação do totalitarismo,
ao gerar as multidões desorientadas e compostas por indivíduos isolados e
desmoralizados que seriam a base do sistema, fornecendo seus adeptos, seus
soldados e seus carrascos. Os movimentos totalitários caracterizam-se assim,
segundo Arendt (1989, p. 373), pela atomização e isolamento social de seus
membros e pela exigência de lealdade absoluta deles requerida: “essa exigência
é feita pelos líderes dos movimentos totalitários mesmo antes de tomarem o
poder e decorre da alegação, já contida em sua ideologia, de que a organização
abrangerá, no devido tempo, toda a raça humana”. Na perspectiva arendtiana,
por fim, o totalitarismo busca, como ressalta Melo (2003, p. 13), reverter as
consequências da própria modernidade que o gerou: “a destruição da esfera
pública força o homem solitário de massa a ir em busca de um universo
de garantias, de certezas; onde a existência de um sistema consistente e
absolutamente coerente não permita a presença do acaso”.
De onde deriva tal isolamento? Segundo Wagner (2002, p. 152), tal
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II
O totalitarismo opõe-se à política. Na análise que Lefort faz do
pensamento arendtiano, a conclusão, aparentemente, é outra. Para ele, “o
totalitarismo é, ao que parece, um regime no qual tudo se apresenta como
político: o jurídico, o econômico, o científico, o pedagógico”. Mas ele próprio
destaca: “se não existe fronteira entre a política e a não-política, a própria
política desaparece, pois a política sempre implicou uma relação definida entre
os homens, relação esta regida pela exigência de responder a questões que põem
em jogo a sorte comum” (Lefort, 1991, p. 67).
Para melhor compreendermos o totalitarismo na perspectiva de Arendt,
podemos contrastá-lo com o que seria politicamente o seu oposto, ou seja, o
governo constitucional tal como por ela definido: “o que hoje entendemos por
governo constitucional, não importa se de natureza monárquica ou republicana,
é, em essência, um governo controlado pelos governados, restringido em suas
competências de poder e em sua aplicação de força” (Arendt, 1999b, p. 75).
Temos, assim, uma definição na qual a autora expressa seu ideal político, que não
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deve, porém, ser pensado em termos de governo do povo, o que fica claro quando
tomamos a dicotomia por ela estabelecida: “se a tirania pode ser definida como
a tentativa sempre frustrada de substituir o poder pela violência, a oclocracia (o
governo da multidão), seu exato posto, pode ser definida como a tentativa, muito
mais promissora, de substituir o poder pela força” (Arendt, 1981, p. 215).
E como seria um mundo totalitário, ou seja, um mundo no qual as
relações de poder se limitariam à dualidade entre dominantes e dominados?
Eis o monstro. Seu encontro com ele, seu encontro com o nazismo,
transformou Arendt, como salienta Canovan (1994, p. 163), em uma republicana
radical; alguém que via nas instituições republicanas e no espírito de cidadania
as mais fortes defesas possíveis contra o totalitarismo. E Young-Bruhel (1997,
p. 235) acentua: “as ideologias totalitárias devoravam tanto o passado como
o futuro, transformavam o passado em mitos da natureza ou da história e
apagavam a imprevisibilidade do futuro com imagens milenares relativas a
esses mitos”. Por isso, a incerteza quanto ao futuro é, para Arendt, a melhor
arma contra o totalitarismo; contra o planejamento que visa sufocar qualquer
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iniciativa, qualquer ação que busque iniciar um novo tempo, qualquer ação livre.
Na incerteza do futuro reside, ao mesmo tempo, a promessa e a ameaça.
A figura do líder está no centro do regime totalitário: “o caráter
totalitário do princípio de liderança advém unicamente da posição em que o
movimento totalitário, graças à sua peculiar organização, coloca o líder, ou seja,
da importância fundamental do líder para o movimento” (Arendt, 1989, p.
414). Por outro lado, a descrição arendtiana da figura do líder totalitário o exclui,
por exemplo, da galeria dos líderes carismáticos weberianos: “deve a liderança
mais à sua extrema capacidade de manobrar as lutas intestinas do partido
pelo poder do que a qualidades demagógicas ou burocrático-organizacionais”
(Arendt, 1989, p. 423). Mas cabe ao líder a tarefa de suprema importância de
definir quem é o inimigo a ser liquidado. Assim, na síntese que Duarte faz da
análise arendtiana do totalitarismo, cabe a ele decidir quem deve ser incluído
E tal processo seguiu, ainda, o que Arendt chama de regra básica, qual
seja, “o sentimento antijudaico adquire relevância política somente quando pode
ser combinado com uma questão política importante, ou quando os interesses
grupais dos judeus entram em conflito aberto com os de uma classe dirigente
ou aspirante ao poder” (Arendt, 1989, p. 49).
O anti-semitismo representa para Arendt, segundo Lafer (1979, p.
49), uma ruptura histórica derivada do papel desempenhado pelos judeus no
processo europeu de modernização. E, por fim, ao refletir sobre sua própria
análise do antisemitismo, Arendt (1987, p. 25) faz questão de esclarecer:
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“quando emprego a palavra judeu, não pretendo sugerir nenhum tipo especial
de ser humano, como se o destino judaico fosse representativo ou exemplar
para o destino da humanidade”.
III
A mentira é, para Arendt, pedra fundamental do totalitarismo, não
importando seu caráter absurdo. Pelo contrário, como a autora acentua: “o que
distingue os líderes e ditadores totalitários é a obstinada e simplória determinação
com que, entre as ideologias existentes, escolhem os elementos que mais se
prestam como fundamentos para a criação de um mundo inteiramente fictício”
(Arendt, 1989, p. 411). Os líderes totalitários mentem como quaisquer outros
líderes políticos, mas as mentiras por eles proferidas possuem outra dimensão
e geram outras consequências. Segundo Arendt (1972, p. 312), “a diferença
IV
A análise de Arendt sobre o totalitarismo é uma análise sobre algo que
não deveria, não poderia ter acontecido. É uma reflexão sobre uma catástrofe
que, uma vez ocorrida, tornou-se irremediável. Paira sobre o conceito, a sombra
e o peso de milhões de mortos que ele abarca, e o pensamento arendtiano é
marcado por tal peso. E quando Arendt assinala a especificidade do totalitarismo,
ela assinala, ao mesmo tempo, a originalidade e o vazio assustador encarnados
pela figura de Eichmann. Ele é o mal absoluto que não se reconhece como tal,
o mal que tem como objetivo apenas o extermínio de inocentes.
ABSTRACT
The objective of the article is in such a way to study the concept of totalitarianism elaborated
for Arendt, defining the specificity how much historical politics of the concept from the
perspective of the author. It is still treated, in the workmanship of Arendt, of a concept
Politeia: Hist. e Soc., Vitória da Conquista, v. 7, n. 1, p. 243-260, 2007.
constructed from an ideology conservative adopted for the author, whom it sees, in the masses,
an agent dispersed and harmful politician. The arendtian analysis transforms the figure of
Eichmann, in turn, in symbol of the totalitarianism and the evil in it corporificated it; badly
terrible one for its consequences and terrible for the triviality with that it is exerted.
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