Apostila de Atropologia

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APOSTILA DE ANTROPOLOGIA CULTURAL 2012

INTRODUÇÃO
Fundamentos das Ciências Sociais e Humanas.
1.1- A Antropologia entre as Ciências Sociais e as Ciências Humanas.

As ciências sociais são o conjunto de disciplinas que estudam o Homem através das
suas relações com a sociedade e a cultura.

As questões relativas ao Homem em sociedade começaram a merecer a atenção dos


estudiosos e a revestir um carácter científico a partir do século XIII. Datam dessa época
as primeiras pesquisas sobre a acção do Homem no seio da sociedade, bem como sobre
as suas relações com os seus semelhantes.

É contudo na aurora do século XIX que aparece a maior parte das disciplinas do
domínio das ciências sociais, como é o caso da Antropologia, da Sociologia e da
Ciência política.

Estas disciplinas foram marcadamente influenciadas pelas teorias sobre a sociedade de


filósofos como Augusto Comte (1798-1857), Karl Marx (1818-1883) e Herbert Spencer
(1820-1903).

No século XX, as ciências sociais conheceram um amplo desenvolvimento, deixando de


se circunscrever apenas a trabalhos de grande envergadura científica, para se
democratizarem e descerem às instituições de ensino, passando a ser objecto de
investigação dos estudantes.

O leque de disciplinas pertencentes às ciências sociais também se alargou, passando a


incorporar, para além das supracitadas, as Ciências da Comunicação, a Etnologia, a
Demografia, a História, a Filosofia e até as Ciências jurídicas.

Hoje, a acelerada evolução tecnológica veio a dar um incremento ao avanço das ciências
sociais, surgindo daí verdadeiras teorias científicas sobre o comportamento do Homem
enquanto actor social.

E as ciências humanas, o que são?


Ora, não existe uma definição única, universalmente reconhecida, das ciências humanas.
Digamos que se distinguem das ciências naturais pelo facto de estudarem os seres
humanos1.

As ciências humanas, à semelhança das ciências sociais, estudam os seres humanos sob
o ângulo da sua vida em sociedade. Exemplo de ciências humanas: a Ciência política, a
Sociologia, a Antropologia, as Ciências religiosas, etc. Nesse contexto, as ciências
políticas estudam as normas de organização política da sociedade, as relações de poder,
as relações sociais de produção que incidem nas decisões políticas, os sindicatos, os
grupos de pressão, os partidos políticos, etc. a Sociologia estudaria as relações
interpessoais, os padrões de comportamento colectivo, as formas de organização social,

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A biologia e a medicina também estudam os seres humanos, mas diferem das ciências humanas na
medida em que fazem uma abordagem na perspectiva da natureza do Homem.

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os papeis sociais, o funcionamento das instituições sociais, etc. as Ciências religiosas
são a aplicação do saber proveniente das várias ciências humanas e em particular da
Antropologia e da Sociologia, ao campo específico do social e do humano: a religião. A
religião é um fenómeno muito importante na vida individual e colectiva do Homem e da
sua cultura. Hoje em dia, as ciências religiosas multiplicam os seus objectos de
pesquisa, versando sobre questões como os mitos em sociedades modernas, a origem e
evolução das seitas religiosas, o papel dos totens e dos tabus na coesão das confissões
religiosas, a reprodução da vida e da morte, o papel das religiões face aos poderes
políticos, etc. a Antropologia interessar-se-ia nas culturas de comunidades primitivas,
buscando compreender a sua evolução ao longo do tempo e a sua relação com outras
culturas. Convém referir que a Antropologia é designada por vários nomes, a saber
Etnologia (na França), Antropologia social (na Grã-bretanha) e Antropologia cultural
(na América do Norte).

Outras ciências humanas são: a Pedagogia, a História, a Psicologia, a Linguística, a


Psicanálise, a Economia política, a etnografia, etc.

Em conclusão, não há diferenças temáticas nem metodológicas entre as Ciências sociais


e as Ciências humanas, porém, há sim uma diferença terminológica já que nos países de
tradição anglo-saxónica é mais recorrente a terminologia ciências sociais do que a
terminologia ciências humanas que tende a ser mais comum nos demais países.

Bibliografia
MAIA, Rui Leandro: dicionário de Sociologia, Porto editora, 2002.
Brochura: Ciências humanas e sociedade, pgs. 51-80

Trabalho independente
1-Debata no seu grupo sobre o objecto da de estudo da Sociologia, da Antropologia e da
Ciência política.
2-Fundamente o seguinte argumento “…entre as Ciências sociais e humanas não há
fronteiras bem demarcadas”

1.2- A constituição e o desenvolvimento das Ciências Sociais.

Não se pode negar que duas preocupações se fazem constantemente presentes no


espírito humano: dominar a natureza e explicá-la. A primeira é responsável pelo
processo de civilização e pelo aparecimento da sociedade, enquanto a segunda,
simultânea e relacionada à primeira, tem determinado a produção de conhecimentos
sobre a natureza e a sociedade, tais como o mito, a religião, a filosofia e a Ciência.

O objectivo deste capítulo é analisar o processo histórico do aparecimento das Ciências


Sociais, isto é, mostrar o momento em que os fenómenos sociais começaram a ser
objecto do conhecimento científico e estudar os factos históricos que propiciaram o
surgimento e a formação destas ciências.

A preocupação em conhecer e explicar os fenómenos sociais sempre se fez presente na


história da humanidade. Mas a tentativa de se dar uma explicação científica ao
comportamento social e às condições sociais de existência dos seres humanos é um
produto recente do pensamento. Foi somente na Idade Moderna, com a emergência da
sociedade capitalista, que alguns pensadores se esforçaram em aplicar o método

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científico ao conhecimento dos fenómenos que acontecem na vida social, tendo em vista
as crises e desordens sociais provocadas pelas transformações que ocorreram na
sociedade.

A filosofia social

A preocupação dos pensadores em relação aos fenómenos sociais, no período anterior à


formação da sociedade industrial, era mais filosófica do que científica. Embora sua
atenção fosse despertada pelas causas económicas e políticas que abalavam
continuamente as estruturas sociais do seu tempo, em lugar de tomarem uma atitude
objectiva diante dos problemas que se lhes apresentavam, levados por razão de ordem
prática, preocupavam-se mais em descobrir os remédios que trouxessem uma solução
para as crises sociais. Os estudos a respeito da vida social tinham sempre por objectivo
propor formas ideais de organização da sociedade, mais do que compreender-lhe a
organização real. Assumiam, portanto, um ponto de vista normativo ou doutrinário, no
sentido de buscarem estabelecer normas ou regras para a vida social e finalista ou
teleológico, no sentido de proporem como finalidade da vida social a realização desta
organização social.

As filosofias greco-romanas e medievais que foram pioneiras neste tipo de estudos


também deram relevo especial à reflexão sistemática sobre a natureza humana e a
organização das sociedades, contrastando particularmente com a explicação científica. É
que elas tinham, com efeito, por objecto, não explicar as sociedades tais e quais elas
foram, mas indagar o que as sociedades devem ser, como elas devem organizar-se para
serem tão perfeitas quanto possível.

Na Antiguidade, por exemplo, esses estudos eram fragmentários. Limitavam-se a


reflexões dispersas a respeito de algumas questões sociais, nunca reunidos, entretanto,
num sistema coerente. Embora Platão (428-348 a.C.) com A República e As Leis e
Aristóteles (384-322 a.C.) com A Política, tivessem tomado a sociedade em sua
integridade, organizada em Cidade-Estado (polis), o factor político sob o domínio de
um interesse puramente ético tinha prioridade sobre o factor social.

Isto significava que os pensadores antigos, não tomando a própria sociedade como um
objecto específico de conhecimento, apreenderam, como objecto essencial de estudo,
uma parte da vida social, como a política ou a moral, mas numa perspectiva normativa e
finalista.

O longo período da Idade Média foi pouco propício ao progresso científico e,


consequentemente, ao estudo científico dos factos sociais. Os pensadores do medievo
prendiam-se a discussões metafísicas que conduziam à justificação da fé cristã. Tudo
girava em torno dos interesses da Igreja que monopolizava todo o pensamento da época.
A preocupação com julgamentos de valor apriorístico; o apelo constante à autoridade e
ao dogmatismo religioso impediam o desenvolvimento da investigação científica. A
sociedade não era pensada no seu todo e, se havia certa preocupação com os problemas
sociais, os estudos eram também fragmentários e costumavam cair no âmbito da
filosofia ético-religiosa. Podemos dizer que a filosofia, durante todo o período
medieval, permaneceu derivada de uma fonte revelada como preparação da salvação da

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alma. Voltavam-se os teólogos à construção de um ideal "a priori", embora utópico, da
vida social, porque eles não concebiam senão uma sociedade fundada sobre os
princípios religiosos, uma imagem terrestre da cidade de Deus. É o que caracterizava,
por exemplo, a obra fundamental de Santo Agostinho (354-430), A Cidade de Deus, e a
elaboração da filosofia cristã, a chamada filosofia escolástica, que alcançou o mais alto
nível em São Tomás de Aquino (1227-1274), com A Suma Teológica.

Da filosofia social às ciências sociais

Já no final da Idade Média eclodiu um movimento de reacção à escolástica. Foram os


prenúncios da libertação do pensamento ao dogmatismo religioso que se efectivou
finalmente no período agitado do Renascimento, quando se abriram novas perspectivas
ao saber humano.

A influência teológica que não permitia ver as coisas senão à luz dominante da
salvação eterna, deu lugar a uma perspectiva muito mais independente que favorecia a
livre discussão de questões do ponto de vista racional. Foi sendo elaborado um novo
tipo de conhecimento, caracterizado por uma objectividade e realismo que marcaram a
separação nítida entre o pensamento do passado e o novo estágio que se iniciava na
explicação dos fenómenos da natureza e, consequentemente, dos problemas sociais e
humanos. Foi o estágio do conhecimento baseado na experimentação iniciado timida-
mente por Galileu Galilei (1564-1642) e que fará depois, o século XX, "o século de
ouro da ciência".

Com relação à interpretação ou explicação dos fenómenos da natureza, a ciência


substitui inteiramente a filosofia, pois torna-se sinónimo de "ciências naturais". Estas
desprendem-se do tronco comum que era a filosofia, conseguindo delimitar seu campo
de estudo com objectos específicos: a Física, a Química, a Biologia e outros.

As mesmas condições que propiciaram a especificação das "ciências naturais"


favoreceram as chamadas "Ciências Sociais": A mesma paixão pela realidade e o
mesmo espírito de investigação que deram largas em descobertas no mundo da
natureza, voltaram-se finalmente para o mundo da natureza humana e para as relações
sociais, numa tentativa de compreender estas de igual. E, de maneira idêntica, o mesmo
método que provara tão bem no estudo do universo físico fora transportado para o
novo campo de estudo que fica desde então impregnado do espírito científico.

Por outro lado, é necessário procurar os factores específicos da formação das Ciências
Sociais. Eles se encontram nas condições materiais e intelectuais do desenvolvimento
do mundo moderno. As Ciências Sociais não são somente produto da reflexão de alguns
pensadores, mas o resultado de certas circunstâncias históricas e de algumas
necessidades materiais e sociais.

Portanto, três factores de convergências parecem responsáveis pela lenta mas


progressiva substituição da concepção normativa e especulativa por uma representação
positiva de vida social: a) factores de natureza sociocultural; b) factores de natureza
intelectual e c) factores decorrentes da própria dinâmica do chamado "sistema de
ciências".

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a) Factores socioculturais

Várias mudanças ocorridas na vida política e económica da Europa, tais como a


ascensão da burguesia, a formação do Estado Nacional, a descoberta do Novo Mundo, a
Revolução Comercial, a Reforma Protestante, contribuíram para modificar a
mentalidade do Homem hodierno. O século XVIII, principalmente, assistiu a factos
fundamentais que definiram o desaparecimento da sociedade feudal e a consolidação da
sociedade capitalista. Um destes factos foi, sem dúvida, a Revolução Industrial. Iniciada
na Inglaterra, nos meados do próprio século, provocou transformações profundas na
sociedade europeia, tornando problemática aquela sociedade. Trouxe mudanças de
ordem tecnológica, pelo emprego intensivo de um novo modo de produção com o uso
da máquina, causando enormes taxas de desemprego; de ordem económica, pela
concentração de capitais, constituição de grandes empresas, provocando a acumulação
de riquezas por um lado, e agravando as desigualdades sociais, por outro; e de ordem
social, pela intensificação do êxodo rural e consequente processo de urbanização,
desintegração de instituições e costumes, introdução de novas formas de organização
social, e, sobretudo, a emergência e a formação de um proletariado de massas com sua
específica consciência de classe.

Antes, as formas estabelecidas da vida social se revestiam de carácter sagrado: era como
se o próprio Deus tivesse estabelecido as normas que deveriam reger as acções
humanas, o que tornava essas normas, de certo modo, intocáveis. No mundo moderno,
uma exigência geral de eficiência, no sentido de encontrar solução para as crises e
problemas provocados pelos novos acontecimentos, fez com que muitas formas de
organização social, até então sacralizadas, passassem a ser vistas como produto
histórico e sujeitas a transformações. Desse modo, a validade das normas e das formas
de organização social estabelecidas deixa de ser vista como algo de absoluto e
indiscutível. Tal atitude profana, isto é, alheia às coisas sagradas, favoreceu a difusão de
um espírito crítico e de objectividade diante dos fenómenos sociais.

b) Factores de natureza intelectual

Simultaneamente às mudanças ocorridas na vida económica e social, modificações


surgiram nas formas de pensamento, nos modos de conhecer a natureza e a sociedade. A
contribuição de alguns pensadores, a partir do século XVI, foi fundamental para a
formação das Ciências Sociais. Já no final da Idade Média houve um florescimento de
utopias, descrições pormenorizadas e sociedades ideais: Thomas More (1478-1535),
com A Utopia, Jean Bodin (1530-1596), com A República, Francis Bacon (1561-1626),
com Nova Atlântida e Campanella (1568-1634), com A Cidade do Sol, apresentaram os
seus projectos de uma nova sociedade.

O emprego sistemático da razão, como consequência de sua autonomia diante da fé


religiosa, possibilitou a formulação de uma nova atitude intelectual, o racionalismo, não
só em relação aos fenómenos da natureza, mas também em relação aos humanos e
sociais.

Algumas contribuições foram básicas. Maquiavel (1469-1527), com O Príncipe e


Hobbes (1588-1679), com O Leviatãn, consideravam ser a vida da sociedade baseada no
uso da força. Maquiavel, ao separar a ética da política, favoreceu a constituição de uma
ciência política.

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O já citado Francis Bacon apresentava um novo método de conhecimento, baseado na


experimentação, que tomava o lugar do conhecimento teológico. Descartes (1596-
1650), em Discurso do Método, introduzia a dúvida metódica no conhecimento,
favorecendo uma nova forma de conhecimento baseada na razão.

De um modo especial, a Filosofia da História foi um factor decisivo na formação das


Ciências Sociais. Foram os filósofos da história que tiveram a responsabilidade por uma
nova concepção de sociedade como algo mais do que uma sociedade política ou o
Estado, possibilitando a distinção entre Estado e sociedade Civil. A ideia geral do
progresso que ajudaram a formular, influiu profundamente na concepção que o homem
tem da história e da sociedade. Vico (1668-1774), em Os Princípios de uma Ciência
Nova, afirmava que é o homem que produz a história e que a sociedade poderia ser
compreendida porque constitui obra dos próprios indivíduos. Adam Ferguson
(1723-1816), em Ensaio Histórico sobre a Sociedade Civil, discutiu a natureza da
sociedade e suas instituições.

Este interesse pela História e pelo desenvolvimento foi despertado pela rapidez e
profundidade das transformações sociais e económicas e também pelo contraste das
culturas que as viagens dos descobrimentos revelaram. A acumulação de informações
sobre os costumes e instituições "exóticas" dos povos não-europeus trouxe ao de cima
uma extraordinária variedade das formas de organização social.

Mas sobretudo na França, nos séculos XVII e XVIII, a contribuição da filosofia foi
prodigiosa. Diante da situação social do país, resultado das contradições das classes
sociais, os filósofos franceses pretendiam não apenas transformar as formas de
pensamento mas a própria sociedade. Afirmavam que, à luz da razão
(Iluminismo/Ilustração), era possível modificar a estrutura da velha sociedade feudal.
Condorcet (1742-1794) queria aplicar os métodos matemáticos no estudo dos
fenómenos sociais. Charles Louis Montesquieu (1689-1755), em O Espírito das Leis,
propunha pela primeira vez a ideia da separação dos poderes do Estado em poderes
executivo, legislativo e judicial. Segundo o autor, esta separação teria por escopo
estabelecer garantias institucionais da liberdade impedindo que algum dos titulares
destes poderes pudesse acumular poderes, chegando por isso a agir arbitrária e
despoticamente contra a liberdade dos cidadãos. Rousseau, (1712-1778), em suas
teorias de O Contrato Social, teve uma influência decisiva na formação da democracia
burguesa e, consequentemente, na mudança das instituições sociais.

A Revolução Francesa (1789) trouxe o poder político à burguesia, destruiu os


fundamentos da sociedade feudal e promoveu profundas inovações na vida social. Mas,
junto com a Revolução Industrial, trouxe crises e desordens na organização da
sociedade, o que levou alguns pensadores a centrar suas reflexões sobre as suas conse-
quências.

Surge então o Positivismo. Preocupados em encontrar "remédios" para as crises sociais


do momento, os positivistas queriam explicar os problemas sociais que ocorriam e
chegaram à conclusão de que tantos os fenómenos sociais, como os físicos, estavam
sujeitos a leis da natureza. Saint-Simon (1760-1825) preconizava a transferência de todo
o poder da sociedade para as mãos dos cientistas e industriais, com o objectivo de
restaurar a ordem social. Mas é com seu discípulo Augusto Comte (1798-1857) que as

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Ciências Sociais, de um modo específico a Sociologia, começaram a se delinear como
ciências autónomas. Principal representante do positivismo francês, Comte não só deu o
nome à nova ciência, que antes denominara Física Social, mas empreendeu a primeira
tentativa sistemática da caracterização de seu objecto, métodos e problemas
fundamentais, bem como a primeira tentativa de determinar a sua posição no conjunto
das ciências.

A ideia central do Positivismo é muito simples: nas Ciências Sociais, como nas ciências
da natureza, é necessário afastar os preconceitos e as pressuposições, separar os
julgamentos de facto e os julgamentos de valor. A finalidade era, alcançar nas Ciências
Sociais, a mesma neutralidade, imparcialidade e objectividade, que se atinge na Física,
na Química e na Biologia. Daí se evidenciaria uma questão simples mas dilemática a
respeito dessa concepção: se as leis sociais são leis naturais, ou devem ser sujeitas
àquelas, como seria possível transformar a sociedade?

c) O sistema de ciências

A terceira série de factores, também decisiva para a formação das Ciências Sociais, está
na própria dinâmica do "sistema de ciências". A evolução das ciências está directamente
ligada à necessidade de controlar a natureza e compreendê-la. Já dissemos que as crises
provocadas pelos acontecimentos sociais do século XVIII provocaram uma convicção
de que os métodos das ciências humanas e sociais deviam e podiam ser estendidos à luz
das leis da natureza, e que os fenómenos sociais podiam ser classificados e mensurados.
No mundo hodierno, as chamadas ciências da natureza se tornaram o sistema dominante
de concepção científica do mundo e, aos poucos, os fenómenos sociais também caíram
sob o seu domínio. É evidente que não se pode dizer que essa dinâmica seja a causa do
surgimento das Ciências Sociais, porque, na verdade, as leis da natureza não passaram a
ser aplicadas à realidade social simplesmente porque eram aplicadas com sucesso no
conhecimento das ciências da natureza. Mas, sem dúvida, principalmente a partir do
século XVIII, a necessidade de se desenvolver técnicas racionais para controlar os
conflitos criados pelas crises da época, acabaria levando à formação das Ciências
Sociais.

As Ciências Sociais

Ao analisarmos a formação das Ciências Sociais, verificamos que, no início, elas foram
absorvidas pela Sociologia que era uma Ciência enciclopédica, evolucionista e positiva.
Enciclopédica porque se ocupava da totalidade da vida social do Homem e da totalidade
da histórica. Evolucionista porque sob a influência da Filosofia da História, reforçada
pela teoria biológica da evolução, concebia a sociedade como um organismo e tentava
formular leis gerais de evolução social. Positiva porque era concebida como uma
ciência de carácter idêntico aos das ciências naturais. Hoje em dia, a Sociologia
tornou-se a ciência da nova sociedade industrial, porquanto adquiriu não só um carácter
científico, mas sobretudo ideológico, pois ideias conservadoras e radicais entraram no
seu desenvolvimento, dando origem a teorias conflituais e provocando controvérsias
que continuam até hoje.

Actualmente, Sociologia, Antropologia, Economia e Política são ciências com objectos


de estudo específicos e que se relacionam mutuamente, pois os fenómenos sociais são
extremamente complexos. Mas a definição do objecto de cada ciência social decorre

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também da resposta que se dê à questão sobre o que torna possível a organização social
das relações entre os homens.

Os acontecimentos do século XX, tais como o crescimento do capitalismo, mono-


polizando produtos e mercados, a eclosão das guerras mundiais, a organização do
proletariado, as revoluções socialistas, o desenvolvimento dos meios de comunicação,
da informática, ao mesmo tempo que se tornam objecto de análise das Ciências Sociais,
trazem questionamentos básicos sobre a sua própria existência. Muitas vezes as
Ciências Sociais têm sido usadas para produzir conhecimentos de interesse das classes
dominantes, tornando-se instrumentos de controlo, o que acarreta a burocratização e a
domesticação de suas pesquisas. Outras vezes, mantêm uma postura crítica diante da
ideologia dominante, trazendo como consequência perseguições e incompreensões. A
verdade é que não existe ciência definitiva, pois o conhecimento renova-se
continuamente. Mas, seja enfatizando os factores de estabilidade e manutenção da
organização social, seja concebendo a sociedade como uma realidade de conflitos e
contradições, seja valorizando mais os seus aspectos teóricos, seja dando primazia às
pesquisas empíricas, as Ciências Sociais têm, ao longo do processo histórico,
encontrado o seu lugar no quadro das ciências em geral.

Trabalho independente
1-As Ciências Sociais têm uma perspectiva própria de análise. Elas estudam o Homem
através das suas relações com a sociedade e a cultura.
a)Descreva os factores que permitiram a passagem da filosofia social às ciências sociais.
b) Porquê se pode considerar o século XX como «O século de Ouro para as ciências»?
Justifique a sua resposta.
2-Augusto Comte que outrora designara a Sociologia como Física social, empreendeu
esforços de sistematização, definição de métodos, objecto de estudo e posição da
Sociologia no conjunto das ciências.
a)Porquê é que para Comte Sociologia é uma ciência positiva? Fundamente a resposta.
b)Si para Comte as leis sociais devem ser sujeitas às leis naturais, como poderia ser
possível a transformação da sociedade?
3-Consulte os seguintes conceitos: Iluminismo, Ilustração, burguesia e proletariado.

1.3- A interdisciplinaridade, pluralidade e/ou diversidade das Ciências Sociais.

Para melhor compreendermos a estreita relação existente entre as inúmeras ciências que
se ocupam do domínio do social, observemos alguns casos em que as várias ciências
sociais se mostram interdependentes na explicação do social.

Texo-1

O sociólogo não pode ignorar o carácter social dos fenómenos demográficos.

As relações sociais não são factos isolados da taxa de natalidade, de mortalidade e/ou
do envelhecimento da população. Elas não têm significado em si mesmas, pois que
adquirem relevância quando coordenadas no quadro institucional ou comunal em que
se produzem.

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Os dados biológicos que parecem escapar do poder de controlo humano estão,
deveras, sob sua dependência. Há circunstancias sociais que podem modificar a
proporção entre os sexos na participação da vida pública e/ou privada de um povo,
pais ou região: basta olhar para as fábricas na Inglaterra, na Alemanha, etc., que
durante a Segunda Guerra Mundial viram-se na contingência de contratar mais força
de trabalho feminina do que masculina. Também, em Moçambique a emigração
masculina à África do Sul tem tendido a tal evidência.
(…) A vida e a morte ou a natalidade e a mortalidade não se comportam de igual modo
em todas as latitudes e épocas. O casamento, por exemplo, não obedece apenas ao
processo de maturação sexual, mas também, aos imperativos sociais, económicos e
culturais, pois certas normas culturais elevam ou baixam a idade de frequência dos
casamentos (…)
Para além de serem fenómenos biológicos, a vida e a morte resultam de hábitos sociais
latentes nas circunstâncias exteriores ligadas ao tipo de cultura.
Assim, a mortalidade, a migração, a taxa de fecundidade ou o envelhecimento da
população, etc., são fenómenos demográficos determinados com impacto sociológico
determinante nos processos de socialização, nos conflitos e nos demais factores das
dinâmicas sociais.
Os fenómenos demográficos acham-se, antes de tudo, sob a dependência dos processos
sociais, por exemplo, o número de filhos que um casal deseja ter é resultante da sua
decisão individual, mas, ao mesmo tempo, é uma decisão influenciada pelas normas,
valores e ideais comuns aos membros da sociedade à que o casal pertence.

Adaptado: Alain Girald, A demografia.

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Texto-2
A Psicologia e a Sociologia. Disciplinas antagónicas ou interdependentes no estudo do
social?

A sociedade e o indivíduo não são entes claramente distintos. Cada um comporta o


outro. O indivíduo não existe independentemente da sociedade, mas esta última resulta
da soma de agregados individuais.
As abordagens distintas entre psicólogos e sociólogos têm amiúde levado a
interpretações distorcidas do comportamento humano. O psicólogo, na sua “obsessão”
pelo indivíduo, tem perdido de vista a influência das relações e normas sociais que se
imprimem sobre o indivíduo. O sociólogo, por seu turno, insistindo no efeito coercivo
da cultura, dos valores e das normas sociais sobre o indivíduo, tem “esquecido” que
este indivíduo é um ser autónomo.
Portanto, nenhuma dessas perspectivas possibilita uma abordagem adequada e
completa do comportamento humano. O sociólogo explica, por exemplo, a ocorrência
do índice da violência doméstica num grupo social determinado, enquanto o psicólogo
tenta levar a peito como o fenómeno da violência doméstica se manifesta numa pessoa
singular.
No entanto, este problema exige o emprego de diferentes categorias e teorias; pois, não
é possível diagnosticar alguma forma de comportamento culturalmente padronizada ou
a organização de papéis sociais tomando como premissas as características de um
indivíduo singular. Tampouco é possível explicar a natureza do comportamento
individual exclusivamente como o resultado de padrões culturais da sociedade.

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A complexa realidade exige interdependência das perspectivas psicológicas e
sociológicas. A existência de uma disciplina intitulada psicologia social responde à
necessidade de explicação interdisciplinar, plena e sistemática dos problemas do
domínio social.
Tanto a Psicologia como a Sociologia dependem uma da outra e devem, com
frequência, utilizar conceitos e teorias desenvolvidas pela outra.
Adaptado, Ely Chinoy, A perspectiva sociológica.
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Depois de uma leitura meticulosa dos textos (1 e2) devemos ser capazes de constatar a
interdependência entre as várias ciências sociais, para uma melhor compreensão dos
problemas sociais.
No texto-1 é referida a interdependência e interdisciplinaridade entre a Demografia e a
Sociologia. Com efeito, por detrás de uma taxa de mortalidade estão latentes
condicionantes sociais como religião, sexualidade e outros modelos sociais vigentes.
No texto-2 evidencia-se a relação imprescindível entre a abordagem psicológica e a
sociológica para uma compreensão abrangente do comportamento humano.

O que é a interdisciplinaridade?

A complexidade do social exige, no seu estudo, o recurso à acção conjunta entre as


várias ciências sociais. A riqueza e a densidade das relações interpessoais é de tamanha
complexidade que temos necessariamente que recorrer à interdisciplinaridade das
ciências, sob pena de corremos o risco de obter informações desligadas da realidade
social, caso insistamos em abordar as questões numa óptica científica.

Portanto, por interdisciplinaridade, entende-se a atitude metodológica que tem em vista


a integração dos contributos das várias disciplinas no sentido de encontrar uma
explicação mais profunda e exaustiva da realidade social que hoje se pretende mais
complexa.

A maior parte dos pensadores do século XIX – excepto Augusto Comte e Karl Marx –
defendia a ideia da investigação por cada disciplina de um campo determinado da
realidade. Em conformidade com isso, a Economia só estudaria os fenómenos
económicos; a História, só os factos históricos; etc.

Em honra à verdade, a realidade social estudada pelas várias disciplinas é só o


comportamento humano e os diferentes fenómenos sociais: religião, política, arte,
costumes, etc., não podem estar desligados totalmente um dos outros.

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Meio familiar
Meio escolar Meio
geográfico

Meio Comportamento
profissional humano Meio político

Meio religioso Meio recreativo


Outros.

Portanto, constatámos que os fenómenos da realidade social podem moldar o


comportamento humano tendo implicações à vários níveis, designadamente
histórico, jurídico, institucional, etc., e podendo ser objecto de estudo de todas as
ciências sociais numa perspectiva integrada.

Por exemplo: o fenómeno social da imigração ilegal.


- Sobre ele, a Economia nos diria os factores económicos que o estimulam no país de
chegada como acesso ao emprego pelo imigrante, possibilidade de envio de mesadas ao
país de origem, etc.
- A Ciência política ajudar-nos-ia a compreender o papel do Estado na sua relação
com os imigrantes, as condições sociopolíticas que o favorecem, acção da sociedade
civil na luta contra a imigração ilegal, o grau de liberdades concedidas aos imigrantes,
etc.
- O Direito poderia esclarecer, por exemplo, sobre o estatuto do imigrante enfatizando
nas leis existentes sobre a protecção da integridade física dos imigrantes ou contra a
imigração ilegal.
- A História ser-nos-ia útil na explicação da origem do fenómeno social da imigração,
esclarecendo a sua evolução ao longo do tempo.
- A Antropologia permitiria conhecer os costumes, as tradições e as culturas dos
imigrantes. Estes conhecimentos poderiam auxiliar no relacionamento entre as
populações locais e os imigrantes evitando conflitos de valores e podendo integrar as
práticas culturais dos imigrastes na vida da comunidade, ou podendo rejeitá-las, etc.

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Como vemos no exemplo acima, a realidade sócio-cultural pode ser objecto de todas as
ciências sociais. Na verdade, a realidade sócio-cultural é só uma e única. Contudo, ela
admite diferentes perspectivas de investigação consoante as motivações do investigador.

Trabalho independente

1- A emigração moçambicana para a África do Sul tem acelerado a feminização da


população e o despovoamento rural. Na década 1980-1990 devido a razoes de guerra
civil, calamidades naturais, desemprego, etc., o flagelo atingiu cifras sem precedentes
históricos. No entanto, o estudo deste flagelo remete-nos ao recurso à pluralidade das
ciências.
a) Faça uma composição elucidando as ciências sociais que recorreria para estudar o
flagelo em alusão.
b) Debata no seu grupo sobre a pertinência da interdisciplinaridade das Ciências Sociais
na solução dos problemas que podem afligir o seu bairro,
2- Sistematize os seguintes conceitos: interdisciplinaridade, feminização,
comportamento humano.

1.4- A ruptura com o senso comum: objectividade nas ciências sociais.

Ao longo dos séculos vários pensadores se debruçaram sobre inúmeros problemas que
apoquentam a humanidade, as causas do suicídio, sobre o problema das dinâmicas
culturais, sobre os conflitos sociais, etc.

No entanto, ao abordarem sobre estas temáticas os pensadores limitaram-se a formular


apreciações de carácter ético-valorativo ou ideológico.
Com efeito, há duas vertentes do pensamento perante uma realidade social.
v Reflexão baseada nos princípios normativos.
v Recurso às etapas do processo de indagação científica.

No primeiro caso, o pensador cria doutrinas ou ideologias que tendem a ter o seu
fundamento no senso comum, e no segundo, temos a ciência. Em tal caso, a ciência
distingue-se do senso comum pois que, a primeira estuda a realidade de forma objectiva,
procurando conhecer ou estabelecer leis e relações entre os factos. Enquanto que o
senso comum faz pronunciamentos de juízos de valor mais ou menos preconceituosos e
estereotipados em relação aos factos.

O estudo de determinados grupos raciais diferentes ou de escasso relacionamento tem


levado à formulação de estereótipos e preconceitos. Nesse contexto, a objectividade
ajudaria na busca de explicações de um fenómeno no próprio fenómeno evitando
interpretações distorcidas decorrentes de motivações levianas de carácter individual
e/ou colectivo. Doravante, a objectividade será o princípio fundamental para superar
este problema que decorre de noções do senso comum. Exemplo de algumas noções do
senso comum:

1) Nas famílias pobres ocorrem com mais frequência actos de violência doméstica
dos que nas famílias ricas.
2) As mulheres permanecem com maridos violentos porque gostam de levar
bofetada.

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APOSTILA DE ANTROPOLOGIA CULTURAL 2012
3) Os negros são excepcionalmente talentosos na música e no desporto, mas
intelectualmente inferiores aos brancos.
4) As mulheres têm menos capacidade intelectual que os homens.

Adoptar o
Criar relativismo cultural
metodologias
de observação Rejeitar
estereótipos e
preconceitos

Observar o OBJECTIVIDADE
concreto Evitar noções
do senso
comum

Rejeitar Ser anti-fanático


ideologias e
juízos de valor
Ser anti-
dogmático

As atitudes supracitadas são erróneas e decorrem de ideologias, estereótipos2 e


preconceitos. O combate contra tais atitudes sugere o distanciamento do observador em
relação à realidade observada; o isolamento da realidade observada da influência de
outras realidades semelhantes, mas não essenciais e que ocultem a essência daquela,
para observá-la de forma pura, bem como o afastamento das noções do senso comum e
de interpretações subjectivas da realidade.

Bibliografia
TOMÁS, Adelino Esteves. Ensaio experimental de Sociologia, pgs. 19-20

Trabalho independente.

2
Representação mais ou menos preconceituosa e desligada da realidade objectiva que leva a que se
interpretem factos de forma errada.

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APOSTILA DE ANTROPOLOGIA CULTURAL 2012

1- Sobre a realidade sócio-cultural é possível assumir-se uma atitude


científica e/ou do senso comum. Indique o tipo de atitude subjacente às
seguintes afirmações:
a) A morte é uma maldição divina.
b) A morte está relacionada com os ciclos biológicos do Homem.
c) A proliferação das drogas deve-se a razões de índole económica, social e
política.
d) A droga é censurável.
e) O lucro é um roubo.
f) O lucro resulta da actividade económica capitalista.
2- Disserte as seguintes asserções:
a) Nenhuma ciência pode afirmar-se como tal, enquanto estiver coroada de
fundamentos estereotípicos e do senso comum.
b) As ciências são neutras, os cientistas não o são.
3- Com base nos dicionários de Sociologia e/ou de Filosofia consolide os
seguintes conceitos: estereótipo, objectividade, senso comum, ideologia,
relativismo cultural.

1.5-A Antropologia cultural no domínio das Ciências Sociais.

O Homem sempre se questionou sobre si mesmo. Desde as primeiras sociedades


humanas existiram homens que observaram e se indagaram sobre si e os seus
semelhantes. A reflexão sobre a origem, o presente e o destino humano e do seu grupo
social, assim como a elaboração de um saber a esse propósito são tanto antigos como o
próprio Homem e deram-se em todos os continentes. Todavia, a ideia de conceber uma
ciência sobre o Homem, isto é, a Antropologia, é bastante recente.

Foi impulsionado pela expansão europeia (século XV) que se começam as primeiras
tentativas de instituir um saber mais ou menos coerente sobre o que hoje se designa
Antropologia. No século XVIII, com o progresso social resultante da Revolução
Industrial intensificam-se expedições marítimas pelo mundo e descobrem-se povos
exóticos que suscitaram a necessidade de estudos científicos, sendo que o objecto de
estudo da nascente ciência (a Antropologia) seriam as sociedades «primitivas», ou seja,
sociedades com uma civilização alheia à europeia e à norte-americana.

Com o crescente relacionamento entre povos e culturas (século XX), a Antropologia


percebe que o objecto que tinha seleccionado estava a desaparecer; vendo-se
confrontada com uma crise de identidade, pois o Homem selvagem de hábitos
primitivos deixou de ser o único objecto de interesse da Antropologia, já que
teoricamente as pesquisas da Antropologia não mais estariam ligadas aos espaços
geográficos, culturais ou históricos restritos, mas aos enfoques que consistiriam no
estudo do Homem em todas as sociedades, sob todas as latitudes, em todos os seus
estágios de desenvolvimento socioculturais, ou seja, só se considera Antropologia
propriamente dita, a uma abordagem abrangente e global que tenha em consideração as
múltiplas dimensões do ser humano em sociedade.

No entanto, vejamos algumas perspectivas a que certos autores nos remetem a respeito
do objecto de estudo da Antropologia: Evans-Prichard (Antropologia social, p.14)

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APOSTILA DE ANTROPOLOGIA CULTURAL 2012
considera que o objecto da Antropologia é o estudo das culturas das sociedades
humanas e das suas instituições enquanto parte dos sistemas sociais; Francisco Lerma
Martinez considera que a Antropologia cultural tem um objecto material (o Homem) e
um objecto formal (o conjunto de comportamentos que dizem respeito a esse Homem
como um todo); e Titiev, em (Introdução à Antropologia cultura, p5) refere que o
objecto da antropologia é o agregado de pessoas que geralmente ocupa uma única
região e partilha uma maneira de viver comum.

A multiplicidade de análises está relacionada com a complexidade das próprias Ciências


Sociais e em particular, da Antropologia de definir com precisão o seu objecto tal como
já o fizeram as Ciências Naturais (Física, Biologia, Astronomia Química, etc.)

Importa referir que a própria Antropologia em vários contextos e países é designada por
diferentes nomes, por exemplo, na França é conhecida como Enologia, na Inglaterra é
denominada Antropologia social, enquanto na América do Norte ela é identificada como
Antropologia cultura.

Conceitos-chave

Etnografia: ciência que estuda comportamentos de homens, designadamente a origem


das religiões, dos costumes, dos hábitos, das línguas dos povos, etc., faz o estudo
pormenorizado das civilizações dos diversos povos ou etnias. É a teoria geral das
culturas e procura descrever detalhadamente todos os aspectos da cultura material e
imaterial dos povos.

Etnologia: estuda os povos e as suas raças, no tocante aos seus caracteres psíquicos,
físicos e culturais, às suas diferenças e afinidades, às suas origens e relações de
parentesco. Também estuda e classifica etnias em função das suas características raciais
e culturais, procurando explicar a distribuição e as particularidades do parentesco ao
longo do tempo. No entanto, hoje em dias, tanto a Etnografia como a Etnologia são
disciplinas afins e os especialistas usam um ou outro conceito para designar o mesmo
objecto.

Antropologia: é uma palavra de origem grega anthropos = Homem / logos = ciência


ou tratado de ou sobre (…); tratado sobre o Homem, suas actividades e
comportamentos. A Antropologia leva em conta todos os aspectos da existência
humana, passadas, presentes, combinando esses aspectos numa abordagem integrada.
Assim, podemos considerar a Antropologia como uma disciplina, por um lado
especializada, na medida em que trata apenas de assuntos relacionados com o Homem
enquanto ser portador de experiências culturais, e, por outro lado, generalizada,
porquanto considera uma variedade de aspectos da realidade humana que envolve temas
relativos aos diversos campos científicos como a Biologia, a Sociologia, a Psicologia a
História e outros campos do saber humano.

Cultura: conjunto complexo que compreende os conhecimentos, as crenças, os valores,


a arte o direito, os costumes, a moral e todos os aspectos e hábitos do Homem. ( Edward
Tylor)

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APOSTILA DE ANTROPOLOGIA CULTURAL 2012
1.6- Princípios dos métodos antropológicos.

O principal método da Antropologia é a observação participante. Mas o que é a


observação? Em que se distingue este método dos outros métodos?

Ora bem, a observação é o método mais afim ao senso comum pois dela podemos obter
experiências tecnicamente vulgares e espontâneas do quotidiano. No entanto, a
observação científica é qualitativamente diferente da do senso comum, pois ela
caracteriza-se por seguir procedimentos mais u menos rigorosos.

A observação científica é consciente, metódica, crítica, sistemática, objectiva e


orientada à um fim determinado.
A observação foi historicamente o primeiro método científico e a sua pertinência
repousa em que permite obter informações sobre o alvo da investigação de forma
directa e imediata, impulsiona questões que podem ter interesse científico e provoca o
levantamento de problemas e das respectivas hipóteses.

No entanto, há uma espécie de observação que se designa observação participante, por


meio da qual o observador participa nas tarefas e haveres dos grupos cujo
comportamento pretende observar. Como já aduzimos, a observação participante é o
mais importante método da Antropologia, sendo que aos antropólogos e etnólogos para
realizarem as suas pesquisas, amiúde, mudam-se para as comunidades-alvo. As
vantagens disso consistem nas potencialidades de aprofundar as características
observadas. Entretanto, este método exige:

à Uma boa capacidade de estabelecer relações interpessoais por parte do


observador.
à A posse de um mínimo de conhecimentos da linguística da comunidade-alvo.
à A capacidade de manter em todo o momento o papel de investigador (pois que a
medida em que o investigador se integra na comunidade-alvo, pode esquecer-se
do papel de investigador e dos seus objectivos).

Martinez (1999:30-31) fala-nos de quatro princípios que regem os métodos


antropológicos, designadamente:

a) O princípio holístico: (do grego Holismo = global, total, abrangente,


completo); por meio deste princípio, a Antropologia examina qualquer
temática na perspectiva da globalidade humana, olhando para a
humanidade como um todo. Nesse sentido, a Antropologia é a ciência
coordenadora do ser humano, já que contrariamente às outras ciências
que estudam o Homem numa perspectiva particular, esta disciplina
procura compreender a complexidade do Homem estudando-o como um
todo, isto é, cada uma das características do Homem, os elementos
comuns e diferentes entre os seres humanos, os seres humanos de todos
os tempos e lugares, sua religiosidade, seus aspectos físicos, sua história,
sua cultura, etc., integrando as diversas visões científicas do que o ser
humano significa.
b) O princípio histórico: visto que as culturas não são estáticas, elas têm
um carácter mutável, daí a pertinência de estudar as culturas e a história

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APOSTILA DE ANTROPOLOGIA CULTURAL 2012
dos povos para permitir ao máximo a colecta de informações sobre os
contactos entre povos compreendendo melhor a sua evolução ao longo
do tempo. Este princípio ajuda no conhecimento dos processos e
instituições das civilizações do passado, buscando explicar as origens da
vida e dos comportamentos actuais.
c) O princípio comparativo: não se pode compreender bem um fenómeno
ou facto senão por comparação com outros fenómenos ou factos. Os
sistemas culturais são tão variados que exigem para a sua compreensão
uma análise comparativa que forneça elementos precisos para o estudo
da sua variação no tempo e no espaço. Há autores que consideram que
este é o único método verdadeiramente antropológico, pois, apenas por
comparações é possível apurar e esclarecer conceitos fundamentais de
uma cultura. A comparação permite estudar diferenças e semelhanças
entre povos portadores de diferentes culturas.
d) O princípio da interdisciplinaridade: o método antropológico é
interdisciplinar na medida em que se serve das técnicas de pesquisa
fornecidas por outras disciplinas (Veja a pag. 10).

1.7- A história do pensamento antropológico.

O Homem jamais deixou de indagar sobre si próprio. Em todas as sociedades existiram


homens que observavam outros homens. A reflexão do Homem e sua sociedade, a
elaboração de um saber são, por conseguinte, tão antigos como a própria humanidade, e
se deram em Africa, na Ásia, na América, na Europa e na Oceânia. Porém, o projecto de
fundar uma ciência sobre o Homem, isto é, a Antropologia, é muito recente.

Assim, só nos primórdios do século XIX começa-se a esboçar um saber científico que
torna um Homem um objecto do conhecimento; ou seja, o espírito humano aplica pela
primeira vez ao próprio Homem os métodos até então só utilizados na área da Física, da
Astronomia ou da Biologia.

No entanto, estimulada pelas informações fornecidas pelos grandes navegadores e


aventureiros, a nascente Antropologia tomou como objecto de estudo as «sociedades
primitivas ou selvagens», isto é, sociedades exteriores à civilização europeia. Estas
sociedades tinham como característica:

Þ Dimensão restrita da noção de territorialidade, tendo pouco ou nenhum contacto


com outras sociedades;
Þ Tecnologia pouco desenvolvida e com pouca especialização das actividades e
funções sociais;
Þ Ausência de indumentária ou indumentária baseada em peles de animais ou
cascas de árvores;
Þ Comportamentos alimentares relacionados com o consumo de carnes cruas (o
que passou a ser associado com o canibalismo);
Þ Ausência de religião e de crença em Deus.

Este discurso sobre sociedades tidas como selvagens ou primitivas abriu um amplo
leque de ausências: sem moral, sem lei, sem religião, sem planos, sem Estado, sem
escrita, sem história, sem consciência, sem objectivos, sem arte, sem filosofia, sem

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APOSTILA DE ANTROPOLOGIA CULTURAL 2012
passado sem futuro, etc. No entanto, estas crenças e noções sobre povos não-europeus
estiveram coroadas de estereótipos e preconceitos e procuravam ridicularizar todo o
legado cultural que os povos não-europeus tinham conservado.

Todavia, tendo a Antropologia escolhido o seu objecto (a cultura dos povos que
pertenciam à civilização ocidental), precisou de elaborar técnicas, ferramentas e
metodologias de investigação que permitissem a colecta directa de informações. Mas
visto que a evolução social foi também abrangendo às sociedades tidas como primitivas
em consequência do contacto entre os povos, a Antropologia vê-se confrontada com
uma crise de identidade, isto é, o seu objecto desaparece, o que fez com se reformulasse
o objecto da Antropologia.

Então, a Antropologia deixou de se ocupar apenas de povos primitivos e passou ao


estudo do Homem inteiro; p Homem de todas as sociedades, sob todas as latitudes, em
todos os seus estados e de todas as épocas.

O estudo do Homem inteiro: os ramos da Antropologia.

Designa-se Antropológica, só e só, uma abordagem holística ou global que perspective


considerar as múltiplas dimensões do ser humano em sociedade. A acumulação de
dados colectados a partir de trabalhos de campo, assim como o aperfeiçoamento de
técnicas de investigação, conduzem à uma especialização do saber. Porém, a vocação da
Antropologia consiste em não parcelar o Homem, mas em tratar de relacioná-lo e
compará-lo com os outros indivíduos da sua espécie. Nesse contexto, existem cinco
ramos ou áreas principais da Antropologia que embora metodologicamente separados,
todas dizem respeito ao Homem inteiro.

a) Antropologia biológica: centra-se no estudo dos caracteres biológicos do Homem


no espaço e no tempo; problematiza sobre a relação o património genético e o meio
(geográfico, ecológico, social); analisa as particularidades morfológicas e
fisiológicas ligadas ao meio ambiente, bem como a evolução destas particularidades
ao longo do tempo. Por exemplo, procura explicar porque o Homem africano tem
uma pele preta e o Homem europeu a tem branca, ou porque os chineses são na
generalidade baixos e os alemães, altos, altos, etc. A antropologia biológica, entre
outros aspectos, procura compreender no Homem o que é congénito e o que é
adquirido.
b) Antropologia pré-histórica (Arqueologia): estuda o Homem através dos seus
vestígios materiais enterrados no solo (crânios, dentição outros ossos humanos e
quaisquer marcas da actividade humana); o seu projecto visa reconstituir as
sociedades desaparecidas, tanto em técnicas de organizações sociais, como em
produções artísticas, literárias e culturais. O antropólogo pré-histórico (arqueólogo)
recolhe pessoalmente objectos do solo, para a reconstituição do passado com base
em fontes orais ou no conhecimento da história.
c) Antropologia linguística: a linguagem é parte do património cultural de um povo.
É por meio dela que os indivíduos que compõem uma sociedade expressam os seus
valores, seus pensamentos, suas aflições e suas preocupações. O conhecimento das
línguas permite perceber como os povos pensam o que vivem e o que sentem; como
esses povos expressam o seu universo social (relacionamentos, tradições, costumes,
crenças, etc.); como eles interpretam o seu saber e o seu saber-fazer. Portanto, nisto
tudo radica a pertinência da Antropologia linguística. Hoje em dia, esta disciplina

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não diz respeito apenas ao estudo dos dialectos (dialectologia), mas também se
interessa pelas áreas novas abertas à comunicação social, designadamente os meios
de comunicação audiovisuais e as tecnologias de informação e comunicação.
d) Antropologia psicológica: estuda os processos do funcionamento do psiquismo
humano. Ora, o antropólogo é confrontado com comportamentos individuais,
comportamentos cuja totalidade permite apreender e compreender os seres humanos,
ou seja, o conhecimento dos comportamentos individuais levam-no a conhecer os
comportamentos da totalidade dos grupos sem os quais não há Antropologia.
e) Antropologia social e cultural ou etnologia: concerne a tudo o que incorpora a
sociedade, a saber seus modos de produção, suas técnicas de organização
sociopolítica, suas leis, seus sistemas de parentesco, sua moral, sua religião, arte,
conhecimentos, filosofia, linguística, educação, etc. No entanto, a Antropologia
sócio-cultural não se preocupa com a abordagem sistemática e meticulosa dos
aspectos acima levantados, mas pelo contrário procura mostrar o modo como estão
relacionados entre si no contexto de uma sociedade em específico.

O estudo do Homem em sua diversidade: dificuldades de percurso.

Como já vimos antes, o objecto de que a Antropologia se ocupara nos seus primórdios
são os povos de culturas não-europeias. No entanto, esta Antropologia revelou-se ser
estereotípica e preconceituosa face às abordagens sobre essas culturas.

A verdadeira ciência antropológica é isenta e objectiva, estudando todas as culturas da


humanidade como um todo em suas diversidades históricas e geográficas. Esta ciência
rompe frontalmente com a ideia da existência de «um centro do mundo», ou de
«culturas superiores e inferiores» e considera a diversidade como sendo o traço mais
marcante nas relações inter-culturais, ou seja, considera que aquilo que os seres
humanos têm em comum é capacidade de se diferenciar uns dos outros e de elaborar
costumes, normas, valores, línguas, instituições, conhecimentos variados e
culturalmente diversificados. A Antropologia privilegiará o estudo científico destas
diversidades e variedades culturais. Todavia, ela enfrentará um sem-número de
dificuldades quer de carácter metodológico quer de carácter conceptual quer ainda
resultantes da falta de consensos entre os autores sobre como abordar esta ou aquela
temática. Trataremos aqui de enunciar algumas dessas dificuldades.

v A primeira dificuldade é de âmbito terminológico e resulta da dicotomia


(Etnologia-Antropologia): o primeiro termo da dicotomia é (Etnologia) e
corresponde à tradição francesa que considera a pluralidade das etnias como sendo o
objecto desta disciplina. O segundo termo (Antropologia) diz respeito ao uso mais
frequente em países anglo-saxónicos que insistem na unidade do ser humano como
sendo o objecto da disciplina; optando-se por Antropologia Social na Inglaterra,
cujo objecto é o estudo das instituições, e por Antropologia Cultural na América
do Norte que se centra no estudo de comportamentos individuais.
v A segunda dificuldade é o facto de a Antropologia ter como objecto, o estudo do
Homem: ora, o Homem pode estudar o Homem, ou seja, o Homem pode ser objecto
de si próprio, agindo simultaneamente como sujeito e objecto do seu conhecimento?
O facto de os primeiros antropólogos terem escolhido como objecto da sus
investigação os povos primitivos explica-se, em parte, pela dificuldade de estes
assentarem as suas investigações nas suas próprias sociedades, facto que degenerou
em preconceitos a respeito desses povos.

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APOSTILA DE ANTROPOLOGIA CULTURAL 2012
v A terceira dificuldade consiste na (dificuldade) de conciliar as pesquisas
antropológicas com a vida prática: há pensadores que afirmam que a pesquisa
antropológica não tem qualquer valor se os seus resultados não forem utilizados
para melhorar a vida dos povos. Nesse contexto, propõem aquilo a que denominam
«Antropologia Aplicada», isto é, uma antropologia que não resida apenas no nível
epistemológico, mas forneça ferramentas para a operação de mudanças sóciocuturais
desejáveis. Contrariamente, outro grupo de pensadores considera que a
Antropologia deve ser neutra, imparcial, sendo o seu papel estudar desapaixonada e
desinteressadamente as culturas dos povos, sem, no entanto, procurar intervir nos
problemas relativos a esses povos e suas culturas.
v A quarta dificuldade está relacionada à vastidão do campo de acção da
Antropologia: ora, apesar de a Antropologia ser uma disciplina relativamente
recente (surgiu no século XIX) especializou-se num campo bastante vasto,
designadamente o estudo do Homem em todas as suas dimensões, o que dá origem
aos vários ramos da própria Antropologia cujos domínios exigem do antropólogo a
especialização numa área específica.

Bibliografia
LAPLATINE, François. Aprender antropologia, pgs.13-33.

Trabalho independente.

1-A Antropologia cultural actualmente ocupa um lugar de destaque em muitos cursos


formativos da sociedade moderna e concretamente no curriculum de formação de
futuros sacerdotes da igreja (MARTINEZ, 1994:5).
a)Dê a noção de cultura.
b)Quais os princípios do método antropológico?
c) Comente sobre a pertinência da leccionacao da disciplina de Antropologia no seu
curso.

1.8- Periodização do pensamento antropológico.

Parece-nos arbitrária qualquer divisão da história da Antropologia, no entanto, a


pertinência da periodização histórica desta disciplina repousa na necessidade de permitir
um mínimo de rigor e sistematização metodológicos que permitam a localização teórica
das abordagens dos vários pensadores. Segundo T.K. Penniman, o pensamento
antropológico obedece à quatro períodos, a saber:

Período de formação: (… à 1835)

Começa com a história da própria humanidade e diz respeito a toda a reflexão do


homem sobre si e sobre o universo que o rodeia. Neste período esteve presente a
preocupação com a origem a realidade e o destino do Homem, procurando explicar
sobre o seu passado, sua história e sua relação com o mundo do além.

Neste contexto, podemos dizer que todas as manifestações culturais do Homem ao


longo do tempo desde as mais longínquas contribuíram para a efectiva formação da
Antropologia, nomeadamente as pirâmides do Egipto, as pinturas rupestres, o sistema
de parentesco, os sistemas sociais da antiguidade, os fósseis, sistemas religiosos, etc.

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APOSTILA DE ANTROPOLOGIA CULTURAL 2012
Este período corresponde ainda à época de grandes descobertas e expansão dos
Europeus pelo mundo que permitiu a colecta de dados etnográficos, compreender a
complexidade das manifestações culturais o que mais tarde iria incidir na separação da
Antropologia em vários ramos (Arqueológica, social, física, etc.), mercê da acumulação
de conhecimentos vastos que por si exigiam uma especialização dos estudiosos.
Período de convergência (1835 – 1869)

Este período é assim designado porque existiu nele uma unidade em torno do conceito
de “evolução”. Este conceito neste período anima as pesquisas e reflexões nos domínios
da Biologia, Filosofia, Sociologia e da própria Antropologia. O período é ainda marcado
por acesos debates, surgimento de várias revistas e numerosas associações científicas e
humanitárias como:

a)Sociedade de Etnografia (1839) e sociedade de Antropologia (1843) ambas


em Paris.
b)Sociedade de Etnologia de Londres (1843).

Estas sociedades eram tidas como humanitárias porque o motivo que deu a sua origem
estava ligado a um sentimento humanista em relação aos povos “primitivos” face às
depredações coloniais. Estas sociedades eram tidas como amigas dos povos primitivos.

Período de construção (1869 – 1900)

Este período é uma simples consolidação do anterior, o número de associações e


sociedades cresceu vertiginosamente por toda a Europa e os EUA. O período de
convergência distingue-se do da construção pelo facto de neste último, o evolucionismo
ter alcançado o seu auge com a teoria de Charles Darwin (1859) sobre a origem das
espécies.

Ainda neste período, a Antropologia moderniza-se com o surgimento de grandes


publicações de Edward Tylor como “ A Cultura Primitiva” (1871), onde através do
método comparativo o autor tenta explicar a evolução pela qual passou a religião ao
longo dos tempos. Outra obra marcante é a de Lewis Morgan “ Sociedade Primitiva”
(1877), que procurou estabelecer o caminho seguido pela instituição familiar através de
vários estádios do desenvolvimento.

Período crítico (1900 à …)

Este período vai até aos nossos dias, tendo-se caracterizado pelos avanços em vários
domínios do saber, progresso dos meios de comunicação, democratização da educação e
institucionalização da Antropologia como uma disciplina universitária. Estes factores
permitiram a publicação de escritos que puseram a ciência antropológica ao serviço não
só do colonialismo, como também das universidades.

Os povos outrora objectos de estudo de antropólogos Europeus e Norte-Americanos


começaram a cultivar também estudos de Antropologia. A realidade sociocultural
tomou novos rumos e passou a ser analisada por olhos diversos.
Alguns antropólogos também começaram a dedicar-se aos estudos na área da
psicologia, da linguística, de folclorística e dos efeitos de perversos do urbanismo.

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APOSTILA DE ANTROPOLOGIA CULTURAL 2012
Bibliografia.
DE MELLO, Luiz Gonzaga, Antropologia cultural, pgs 180-197

1.9- Antropologia de Moçambique: as origens da cultura moçambicana.

Os povos que os portugueses encontraram no território hoje designado por Moçambique


tinham as suas culturas típicas que os distinguiam de outros povos do mundo. Tinham
os seus modos de vida, uma visão concreta do mundo e manifestações religiosas ou
crenças. Portanto, quando os portugueses chegaram a esta região encontraram povos a
quem usurparam as suas terras, trazendo opressão e fazendo do território sua colónia.

No entanto, antes da chegada dos portugueses, sabe-se que teriam passado por cá
árabes, persas, hindus, chineses e outros povos que nos permitem dizer que houve desde
cedo uma fusão ou mescla de povos e de culturas. Ora, cada cultura desloca-se e entra
em contacto com outras formas de cultura através de relações individuais dos seus
membros ou por vias colectivas como é o caso, por exemplo, das migrações de povos.
Essas mesclas resultantes dos contactos entre povos, as transformações e os efeitos daí
decorrentes denominam-se aculturação.

Por conseguinte, ao falarmos da cultura moçambicana é necessário que observemos


todos esses aspectos, ou seja, o actualmente conhecido por povo moçambicano tem a
raiz basilar no povo Bantu, porém, com o decurso do tempo, esse povo foi-se mesclando
tanto com outros povos de tal modo que hoje podemos dizer que a cultura moçambicana
é a simbiose ou a fusão entre as culturas das populações africanas dos diversos grupos
éticos deste país e as de origem europeia e asiática, isto é, as culturas portuguesa, árabe,
hindu, persa, etc., cujos povos por aqui passaram, viveram e/ou vivem.

Os contactos entre as culturas existem e resultam objectivamente das alterações


sucessivas das estruturas da sociedade. No caso vertente da cultura moçambicana, a
presença de comerciantes vindos de outras latitudes, as acções de missionários e de
agentes do colonialismo constituem os factores impulsores do processo de aculturação
do país. Assim, na sua condição de homens de negócio e de comércio, os árabes vieram
para estas terras e se tornaram grandes propagadores do islamismo, sendo esta religião,
das que mais seguidores tem no nosso país.

A actividade missionária não escapa, porquanto não consistiu apenas na expansão do


cristianismo, como também actuou sobre as culturas locais, procurando inculcar novos
valores e costumes sobre as instituições africanas, moldando a mentalidade e a
consciência do africano.

Para além de ter sido um veículo de conquista política, a função da colonização


consistiu num meio de contactos culturais entre aos moçambicanos e os europeus. Por
exemplo, o povo português em si tem uma certa mescla com a nossa cultura. Há
portugueses cujos antepassados são moçambicanos, mas que neste caso são, no
verdadeiro sentido, portugueses na essência, e vice-versa. Consequentemente, o povo
moçambicano e a sua cultura compartilham essa fusão de origens entre os povos Bantu
e os das origens asiáticas e europeias; o que faz com que pareça incorrecta a ideia de
que os negros são os donos absolutos desta terra, pois a história dá-nos conta da
congregação de outras raças que se mesclaram com os negros para conceber uma
moçambicanidade heterogénea que incorpora vários padrões de origens.

Page 22
APOSTILA DE ANTROPOLOGIA CULTURAL 2012

Os factos ora retrocitados concorreram para a aculturação do povo moçambicano.


Todavia, relativamente ao colonialismo português, a aculturação teve alguns efeitos
perversos sobre as populações e as culturas locais. Por exemplo, a escravatura foi um
dos mais cruéis e sinuosos actos que a humanidade já conheceu. Ela destruiu as
estruturas culturais existentes nas aldeias dos africanos, desumanizou o homem
africano, obrigando-o a fugir das suas zonas para outras, deportando-o e bestializando-o.

Com esta prática de subjugação, o colonialismo legou uma herança cultural negativa ao
povo moçambicano, isto é, o analfabetismo. Não era do interesse colonialista educar
científica, afectiva, ética, intelectual e somiticamente ao povo indígena. Como resultado
disso, aquando da data da proclamação da Independência Nacional (1975) existiam em
Moçambique cerca de 93% de analfabetos.3

Portanto, três grupos culturais prevaleceram no território moçambicano durante o


período de subjugação colonial.
a) A cultura das populações negras africanas representadas pelos vários grupos
étnicos existentes em Moçambique: esta aparece como o conjunto de tradições e
modos de vida típicos desses povos, estendendo-se em todas as regiões rurais e
sendo culturas da maioria. Essas culturas tinham/têm as suas práticas bastante
diversificadas segundo os costumes e estilos de vida de cada grupo étnico e
possuem em comum, no entanto, a raiz que é o povo Bantu.
b) A cultura colonial: instalou-se nas cidades, nas vilas e nas de interesse económico
e turístico, representando os valores e as ideologias do aparelho administrativo
português e preocupando-se com/pelo reforço do sistema de opressão através da
transformação das populações indígenas para a sua integração na sociedade e
cultura portuguesas.
c) A cultura das minorias: ora, por aqui passaram, moraram e deixaram vestígios
culturais que hoje perfazem a cultura moçambicana, um conjunto de povos,
designadamente hindus, persas, árabes, chineses, etc. Esses povos, embora
ostentassem outro estatuto, partilharam com a população indígena as vicissitudes do
colonialismo, e hoje não se pode aludir à riqueza da nossa cultura sem considerar
esta parte da nossa moçambicanidade.

Pese embora prevalecesse estratificação cultural acima referida, a cultura colonial


sempre procurou formas de se sobrepor aos restantes estratos culturais, utilizando para
além de dispositivos repressivos, meios ideológicos para dissociar e desintegrar a
população indígena das suas origens e da sua cultura. Por exemplo, a designação da
população africana por nomes pejorativos como “macacos, selvagens, primitivos,
pretos, etc.”, por um lado, e a política de assimilação praticada pelas autoridades
coloniais, por outro lado, tinham a finalidade não só de legitimar a dominação e a
imposição da cultura colonial mas também de ridiculizar ou inferiorizar a cultura dos
dominados levando os dominados a se conformarem com a dominação.

Na sua obra «Lutar por Moçambique», Mondlane4 refere que para ascender ao estatuto
de assimilado os africanos deveriam:

3
SILIYA, Carlos Jorge: Ensaio sobre a Cultura em Moçambique, pg.52
4
MONDLANE, Eduardo Chivambo: Lutar por Moçambique, pag. 46.

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APOSTILA DE ANTROPOLOGIA CULTURAL 2012
1. Saber ler, escrever e falar português correctamente.
2. Ter meios suficientes para sustentar a família.
3. Ter bom comportamento.
4. Ter a necessária educação, hábitos individuais e sociais de modo a poder viver
sob lei pública e privada de Portugal.
5. Requerer à autoridade administrativa da área, que o levará ao governador do
distrito para ser aprovado.

Na verdade, a assimilação denotou crassos complexos de inferioridade que os africanos


foram tendo diante da comunidade portuguesa, isto é, identificar-se com a africanidade
ou com a moçambicanidade e orgulhar-se por isso não era coisa de gente socialmente
aceitável. Em poucas palavras, para ascender à assimilação os africanos deviam negar a
sua africanidade, as tradições da sua terra para serem admitidos como cidadãos
portugueses de direitos e deveres iguais aos brancos.

Em conclusão, há uma cultura moçambicana que decorre da fusão dos vários povos que
habitaram esta parte oriental da África, porém, as tradições dos povos originais têm sido
marginalizadas ao longo da história, por vezes, designadas misteriosas e atrasadas, e
outras vezes, manipuladas como instrumentos de atracção turística.

1.10- As correntes do pensamento antropológico.

A Antropologia evoluiu à luz de várias correntes ou escolas de pensamento,


designadamente a escola evolucionista, a difusionista, a funcionalista e a estruturalista.

O evolucionismo.

Esta corrente parte do princípio enunciado por Charles Darwin de que o mundo vivo é o
resultado de uma longa acumulação de mutações e evoluções de espécies. Tendo sido
trazido esta ideia à Antropologia, acreditava-se que assim como as espécies animais, as
culturas também evoluem com o tempo. As culturas evoluem através de mutações,
interagindo ou não com o meio exterior. O evolucionismo oficial é associado a
académicos como Edward Burnett Tylor, Lewis Henry Morgan e Herbert Spencer e
representou uma tentativa de formalizar o pensamento antropológico com linhas
científicas modeladas conforme a teoria biológica da evolução, ou seja, se os
organismos podem se desenvolver com o passar do tempo de acordo com leis
compreensíveis e deterministas, parece então razoável que sociedades também o podem.
Por conseguinte, as principais características do evolucionismo resumem-se em:

Ø Vastidão do objecto: o objecto do evolucionismo é tão vasto que se confunde


com da Antropologia no geral pois abrange a cultura como um todo ligado à
espécie humana. O evolucionismo não trata sobre manifestações culturais de um
povo particular, mas diz respeito à cultura como um património comum a toda a
humanidade, procurando explicar os aspectos culturais comuns aos povos.
Ø Factor tempo: o evolucionismo levou em consideração o factor cronológico,
tendo criado uma temporização nova designada «tempo cultural» por meio do
qual são caracterizados os estádios de cultura vividos pelos povos, daí resulta a
utilização do conceito «paralelismo cultural» que assenta no pressuposto de que
tanto os povos primitivos como os civilizados têm uma origem cultural

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APOSTILA DE ANTROPOLOGIA CULTURAL 2012
simultânea, diferindo no facto de os povos primitivos terem-se retardado na
evolução cultural devido ao facto de se terem apegado aos valores e tradições do
passado.
Ø Uso do método comparativo: o evolucionismo faz interpretações das
instituições do passado através da reconstrução do próprio passado, por
intermédio do método comparativo, explicando o desconhecido por aquilo que
se conhece.
Ø Principais temas e conceitos: os principais temas abordados pelo
evolucionismo são a religião e a família e em qualquer destes temas a
preocupação é explicar que a cultura obedece a uma evolução universal, isto é,
que a cultura surgiu simultaneamente em todas as partes.
O evolucionismo teve o mérito de trazer para a Antropologia uma série de
neologismos que enriqueceu o quadro conceptual desta disciplina e que até hoje
se mantém actualizado, por exemplo; o conceito de cultura, religião, patriarcado,
magia, clã, tribo, incesto, totem, matriarcado, parentesco, evolução cultural, etc.

O difusionismo.
Também conhecido por historicismo, o difusionismo engloba várias tendências da
antropologia. Surge como um movimento de reacção à orientação evolucionista tanto
nos seus postulados teóricos como nos metodológicos; pretende dar uma explicação
histórica às semelhanças existentes entre as culturas particulares. Sustenta que as
inovações são iniciadas numa cultura específica, para só então serem difundidas de
várias maneiras a partir desse ponto inicial.

De acordo com o difusionismo, uma inovação maior (como por exemplo, a invenção da
roda) terá sido criada num tempo e local particular para então ser passada para
populações vizinhas através da imitação, de negociações, de conquistas militares ou
outras maneiras. Dessa forma, a inovação irradia lentamente de seu ponto de partida. A
teoria pode ser aplicada a temas artísticos, crenças religiosas, engenharias e
arquitecturas e/ou qualquer outro aspecto da cultura humana.

O método difusionista tem sido usado para investigar inovações, traçando rotas até
presumíveis pontos de partida, localizando assim sua origem em culturas distintas e
mapeando a história de sua difusão.

Há historicamente três linhas de pensamento difusionistas a que chamaremos escolas:

a) O difusionismo inglês ou a escola inglesa: defende a difusão como sendo a


única causa da expansão e dinâmica cultural, nega a teoria do paralelismo
cultural exposta pelo evolucionismo e considera a existência apenas de um
centro cultural (difusão heliocêntrica), desde o qual todos os traços culturais
foram difundidos. Este centro cultural era o Egipto Antigo. Os principais
proponentes dessa teoria foram Grafton Elliot Smith (1871-1937) e William
James Perry (1887-1949), ambos estudaram o Egipto Antigo intensamente,
resultando na sua crença que o Egipto era o único centro cultural. As teorias
destes pensadores passaram a ser designadas de pan-egiptismo.
b) O difusionismo alemão ou escola alemã: os seus fundadores são Father
Wilhelm Schmidt e Fritz Graebner, os quais defenderam a teoria dos círculos
culturais de difusão que surgiram em determinados espaços e épocas e daí se
difundiram. Estes teóricos acreditavam que o progresso da difusão seria a via

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APOSTILA DE ANTROPOLOGIA CULTURAL 2012
mais eficiente para o avanço da civilização e advogavam a necessidade de
fortalecer os contactos dos povos menos civilizados com os círculos culturais. O
que em certo modo procurava legitimar a exploração colonial da Europa pelo
mundo. O difusionismo é importante ainda hoje. O conceito de difusão explica
como alguns traços culturais são adquiridos e difundidos.
c) O difusionismo americano ou escola americana: considerou as culturas
particulares como sendo o principal campo de do estudo da Antropologia.
Segundo Franz Boas, a cultura é tão complexa que não permite um levantamento
histórico de carácter universal. A Antropologia deve centrar os seus estudos em
pequenas comunidades culturais, nomeadamente clãs, tribos, castas e outras
formas primitivas de organização social. Acrescenta Boas que a difusão não é
um processo linear e mecânico, mas pressupõe uma elaboração complexa por
parte do (s) povo (s) que apreende (m) certos traços culturais. Considera que
para a compreensão das culturas é importante o seu levantamento histórico, pois
o facto de determinados traços culturais terem origens diversas condiciona a
compreensão da cultura, ou seja, precisa-se conhecer a história de uma dada
cultura para compreender a cultura em si.

Em síntese, o difusionismo ajuda a explicar a aculturação, mas não é capaz de


explicar todos os aspectos culturais como os primeiros difusionistas acreditavam.
Existem exemplos de culturas em contactos próximos, mas que não partilham
muitos traços. Por isso, o difusionismo aparece como uma corrente problemática por
várias razões. Primeiro, é difícil demonstrar que uma inovação teve um ponto de
partida único. Segundo, muitas invenções e ideias culturais podem ter sido
descobertas ou ter evoluído isoladamente. Terceiro, a adaptações às necessidades
humanas e sociais podem facilmente ter tomado formas similares em diversas
culturas, caso tenham sido as melhores soluções possíveis para problemas similares.
Por exemplo, o aparecimento de pirâmides no Egipto e na América Central sem que,
até hoje, nada tenha provado que a técnica de edificação de pirâmides se tenha
difundido do Egipto à América Central, o mesmo pode se afirmar em relação ao
fogo que já era utilizado pelos índios americanos e pelos africanos sem que estes
povos tenham tido contacto algum no passado.

Trabalho independente
1- O que está na origem da evolução e da mudança cultural?
2- Qual o impacto das ideias difusionistas quando assimiladas pelos povos
colonizados?

Bibliografia: MELLO, Luís Gonzaga. Antropologia Cultural, pgs. 220-277.

O funcionalismo.

a) O funcionalismo de Bronisław Malinowski

O funcionalismo é uma corrente da Antropologia segundo a qual, o sentido de um facto


cultural só aparece quando se examina a sua função no conjunto dessa cultura, isto é, a
necessidade que tal facto cultural satisfaz no contexto da cultura em que está inserido.

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APOSTILA DE ANTROPOLOGIA CULTURAL 2012
O funcionalismo surge com os trabalhos do polaco Bronisław Malinowski (1884-1942)
e de Radcliffe-Brown procurando explicar o funcionamento de uma cultura num dado
momento.

Malinowski, nos seus estudos distinguiu o conceito “natureza humana” do conceito


“cultura”. Para ele, a natureza humana está relacionada com o facto de todos os homens
terem que comer, beber, respirar, dormir, procriar, etc., onde quer vivam e qualquer que
seja o seu tipo de civilização. Ou seja, a natureza humana exprime-se pelo determinismo
biológico que impõe a todas as civilizações a realização de funções corporais. Quanto à
cultura, o autor considera-a como um sistema de objectivos, actividades e atitudes que
os homens realizam como reacção tanto aos estímulos biológicos como aos imperativos
impostos pela natureza. Esses objectivos e actividades são organizados em torno de
tarefas importantes e vitais por instituições como a família, o clã, a tribo, a comunidade
local e se transformam em cultura, sendo esta cultura acomodada a vários aspectos tais
como a educação, a economia, a religião, o casamento, os funerais, a arte, a diversão, a
moral, etc.

À diferença do evolucionismo que estudava a cultura como um todo, o funcionalismo


de Malinowaki elegeu a “instituição” como a unidade básica da sua análise. Para o
autor, há um conjunto de elementos que caracterizam a instituição, a saber:

O pessoal: pois toda a instituição funciona graças aos indivíduos que a compõem cada
um dos quais realizando uma função determinada.

O estatuto: é para o autor a posição que cada indivíduo ocupara na instituição e em


função da qual espera um certo reconhecimento por parte dos outros integrantes da
instituição.

A função: a função é justamente o papel que cada indivíduo irá desempenhar na


instituição, isto é, o conjunto de expectativas que os membros da instituição têm para
com cada um dos seus membros.

As normas e sanções: Malinowski observa que qualquer instituição só cumpre os


propósitos para os quais foi criada se cada membro do grupo cumprir as suas funções,
isto é, se obedecer as normas da instituição. Observa ainda que para fazer cumprir essas
funções, o grupo institui um conjunto de sanções/recompensas que orientam as
actuações dos indivíduos.

A satisfação de necessidades: qualquer instituição segundo Malinowski só existe para


resolver ou satisfazer alguma necessidade do grupo. Por exemplo, funda-se a família
para satisfazer a necessidade social de procriação, a igreja para satisfazer as
necessidades espirituais do povo, etc.

***
Malinowski vê uma relação necessária entre a instituição e cada um dos elementos que a
caracterizam, isto é, toda a instituição é concebida para realizar uma função,
satisfazendo uma necessidade, implicando normas e sanções e atribuindo algum estatuto
social ao pessoal que a corporiza.

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APOSTILA DE ANTROPOLOGIA CULTURAL 2012
O funcionalismo com a sua teoria da “função” várias ciências sociais, como é o caso da
Sociologia onde Robert King Merton (1910-2003) introduz as noções de função
manifesta, função latente e disfunção.

Função manifesta: é o que espera que aconteça, o que é previsível em relação a uma
prática cultura. Por exemplo, quem ingere álcool, embriaga-se. Portanto, a embriaguez
é o que se espera que se verifique em função da prática cultural da ingestão de álcool.

Função latente: é ou são os efeitos benéficos ou perversos que embora não esperados,
podem ocorrer na sequência determinadas contingências culturais. Por exemplo, a
comemoração de uma data festiva tem como função manifesta, a diversão e o lazer,
mas, como função latente, pode constituir uma ocasião para o levantamento de
escaramuças, pancadarias e ofensas corporais entre os participantes.

Disfunção: é uma contribuição negativa de um elemento (religião, costume, práticas,


ritos, etc.) ao sistema social ou cultural ao qual o elemento pertence, podendo pôr em
perigo um outro elemento do mesmo sistema. Por exemplo, a prática da poliginia
constitui-se uma disfunção social, na medida em que põe em risco a protecção da saúde
sexual e reprodutiva dos indivíduos envolvidos.

b) O funcionalismo de Radcliffe-Brown.

Alfred Reginald Radcliffe-Brown (1881-1955) foi discípulo de Malinowski, os seus


estudos centram-se nos conceitos de “estrutura” e “função” em que apela para a
analogia com os organismos vivos.

A estrutura deve ser entendida como uma série de relações entre entidades. Assim
como a estrutura da célula realiza um sem-número de relações entre moléculas
complexas, a estrutura da sociedade também o faz em relação às várias partes que a
compõem, cada uma das quais realizando uma função específica.

Para Radcliffe-Brown (1881-1955), a função é a contribuição que faz parte da


manutenção da estrutura. Por exemplo, a realização de funerais, a implementação das
leis, a prática de rituais, etc., são funções que fundamentam e dão sentido a uma dada
estrutura sócio-cultural. A função implica uma estrutura constituída de uma série de
relações e entidades, sendo mantida a continuidade da estrutura por um processo vital
constituídos por actividades integradas.

Radcliffe-Brown criticou severamente aquilo a que denominou de "a história


conjectural" dos evolucionistas cujo método era o da abordagem dos costumes dos
povos baseando-se simplesmente em conjecturas ou suposições sobre o passado e não
em observações directas no presente. Dizia que esse carácter historicista do método
evolucionista não podia dar resultados significativos para a compreensão da vida e da
cultura humana, já que os arranjos contemporâneos existiam porque eram funcionais no
presente e não como "sobreviventes" de épocas passadas. Para esse antropólogo, como
para Malinowski, interessava o estudo do presente, do tempo sincrónico, e não havia
espaço para especulações sobre ‘sociedades primitivas’ vistas sob o prisma do tempo
diacrónico.

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APOSTILA DE ANTROPOLOGIA CULTURAL 2012

Radcliffe-Brown fundou uma abordagem teórico-antropológica conhecida como


estruturo-funcionalismo. Cada sociedade estudada era considerada como uma
‘totalidade’, como um organismo cujas partes eram integradas e funcionavam de um
modo mecânico para manter a estabilidade social. Como estruturo-funcionalista, as
preocupações de Radcliffe-Brown estavam ligadas à descoberta de princípios comuns
entre as diversas estruturas sociais, o significado dos rituais e mitos e suas funções
exercidas na manutenção da sociedade.

Radcliffe-Brown introduz dois conceitos básicos na literatura antropológica: significado


e função social. Segundo o autor, para compreender um determinado ritual é necessário,
inicialmente, encontrar seu significado, isto é, os sentimentos que ele expressa e as
razões que os nativos apontam, para em seguida identificar sua função social naquilo
que é importante para assegurar a coesão social necessária para a subsistência do grupo.

Para Radcliffe-Brown, os sistemas de sentimentos regulam a actuação dos indivíduos


de acordo com as necessidades da sociedade; porém, tais sentimentos não são
espontâneos mas antes são desenvolvidos e expressos pelos indivíduos graças à acção
da sociedade sobre eles. A sociedade mantém-se coesa por força de uma estrutura de
normas morais e regras civis reguladoras do comportamento. Estas normas e regras
actuam então como uma espécie de ‘consciência colectiva’. Desse modo, os indivíduos
submetem-se aos desígnios da sociedade.

Assim, para Radcliffe-Brown os indivíduos são apenas a expressão da estrutura social.


Aí reside a grande diferença que o separa de Malinowski, pois, enquanto Radcliffe-
Brown considera como mais relevante os princípios da estrutura social e os mecanismos
de integração social, Malinowski detém-se nas motivações humanas e define a função
dos elementos culturais segundo as necessidades biológicas do indivíduo.

Contrariamente aos difusionistas de geração anterior, que comparavam elementos


culturais isolados de regiões diversas, Radcliffe-Brown advogava o método
comparativo de sistemas culturais totais, tipificados, entendendo que somente assim
seria possível a descoberta de princípios ou leis universais que actuam em todas as
sociedades humanas. Tais princípios, segundo ele, necessitavam da prova da pesquisa
de campo para confirmação, rejeição ou modificação.

O sistema de parentesco foi um dos elementos fundamentais de sua análise.


Considerava-o, mesmo, como elemento fundamental para compreensão da organização
social em sociedades de pequena escala, já que expressava um sistema jurídico de
normas e regras que impõem direitos e deveres.

Ao lado do sistema de parentesco, o totemismo tomou parte importante em seus


estudos, e foi objecto de pesquisas na sociedade dos aborígenes, durante trabalhos de
campo na Austrália, entre 1910 e 1914. o autor concebia o totemismo como sendo "uma

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APOSTILA DE ANTROPOLOGIA CULTURAL 2012

relação mágico-religiosa específica e permanente entre uma pessoa ou um grupo social


e uma espécie ou certo número de espécies de objectos naturais ou animais"(Melatti,
p.16).
Em conclusão, a busca de princípios comuns, comparando as diferentes sociedades,
tornou-se o principal objecto de preocupação de Radcliffe-Brown.

O estruturalismo
O termo estruturalismo procede do substantivo «Estrutura», e entende-se por estrutura a
maneira pela qual as partes de um todo estão dispostas entre si, oferecendo um carácter
de sistema em que a modificação de elemento que a compõe acarreta a modificação do
todo. A estrutura é um sistema de transformações que têm leis próprias pelo facto de ser
um sistema.

O estruturalismo como corrente antropológica foi fundado por Claude Lévi-Strauss


(1908-2009) para que o próprio estruturalismo deve analisar a cultura como um todo,
sem a preocupação com os seus fundamentos individuais, pois é na sociedade e não no
indivíduo que se hão-de encontrar as posições essências aos indivíduos, aos grupos e às
instituições, que são os elementos que perfazem a cultura5.

Para Lévi-Strauss, as estruturas mentais inconscientes são universais e estão por de trás
de todas as culturas, sendo elas as responsáveis pelas diferenças entre culturas
particulares. Chama Lévi-Strauss à atenção para existência de «culturas frias» e
«culturas quentes». As culturas frias estão estagnadas na história, com uma sabedoria
particular que as incita desesperadamente a resistir a qualquer mudança em sua
estrutura, preservando o seu ser. São frias porque o seio interno está próximo do zero
de temperatura histórica, funcionam mecanicamente e são pouco tolerantes as
mudanças e alterações da sua estrutura. Vivem de dogmas, tabus, interdições e
tradições sagradas e arcaicas, estabelecidos de uma vez para sempre. Podem ser
consideradas culturas frias, as culturas de povos africanos, índios, melanésios, etc. As
culturas quentes são contingentes, isto é, mudam historicamente, apresentando uma
estrutura sucessivamente alterável em função das necessidades e exigências da
sociedade. As culturas quentes estão mais distante do zero do termómetro histórico e
incluem as dos povos da Europa ocidental, da América do Norte e de outras latitudes.

Segundo Lévi-Strauss, a cultura corrompe as estruturas elementares da mente humana,


sobretudo por parte das sociedades complexas com culturas quentes onde as mudanças
constantes dos hábitos, dos valores e das tradições sujeitam as estruturas mentais
inconscientes dos indivíduos à racionalização das suas actuações, provocando uma
corrupção das suas estruturas mentais.

Algumas semelhanças entre o funcionalismo e o estruturalismo.

1. Tanto o funcionalismo com o estruturalismo centram os seus estudos em


aspectos da cultura não-material (tabus, mitos, rituais, crenças, preceitos, etc.).

5
Reflexão face ao estruturalismo: Pode analisar-se a cultura ou a sociedade à margem dos indivíduos
que a compõem?

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APOSTILA DE ANTROPOLOGIA CULTURAL 2012
2. Ambos defendem a ideia de que a sociedade e a cultura formam uma totalidade
por meio da qual se podem explicar as partes componentes (indivíduos,
instituições, grupos, costumes, etc.).
3. Ambos advogam a possibilidade de explicações da cultura e da sociedade sem
necessidade de recurso da história.

1.11- Perspectivas actuais da Antropologia.

O objecto de estudo da Antropologia clássica tradicional foi sempre a cultura dos povos
iletrados, também conhecidos como primitivos. Esta Antropologia esteve desde o seu
primórdio ao serviço de potências coloniais.

O quase-desaparecimento de culturas iletradas tem exigido que a antropologia reveja o


seu objecto, estruturando-o às sociedades complexas, aos meios urbanos e às outras
formas de organização cultural. Outro factor que está na origem da necessidade de
reformulação do objecto da Antropologia é o permanente contacto entre povos e nações
portadores de diferentes culturas que interagem provocando mudanças nos padrões
culturais de cada qual. Por exemplo, o comércio de escravos interveio em contactos
intensos entre africanos e europeus alterando valores e culturas desses povos.

Assim, a Antropologia clássica ou tradicional pode ser classificada como um agente de


etnocídio,6 na medida em que esteve ao lado de «agentes civilizadores», colonialistas e
imperialistas. Consequentemente, várias culturas foram sacrificadas; línguas e dialectos
foram desaparecendo; povos inteiros abandonaram os seus padrões de cultura;
morreram experiências milenárias, enquanto outras foram aparecendo; etc. No entanto,
cabe aos povos das nações vitimadas enveredar por um caminho crítico e construtivo no
sentido da (re)afirmação das suas culturas.

***
As mais recentes teorias da Antropologia são marcadas por abordagens formais que
designadas por «Nova Etnografia» que centra as suas abordagens na etnociência,
etnossemântica, na análise comportamental, etc. a Nova Etnografia tem a pretensão de
fornecer à Antropologia modelos de análise que garantam objectividade e fiabilidade
nos resultados da pesquisas, pois os trabalhos de campo dos primeiros antropólogos
eram manchados pela tendenciosidade e pelo subjectivismo. Por outro lado, a Nova
Etnografia inspira-se na linguística, nas ciências da comunicação, e na cibernética como
meio de superação desse subjectivismo nos estudos etnográficos, através do uso de
métodos matemáticos e estatísticos nesses estudos.

Segundo Goodenough, a Nova Etnografia procura descobrir o pensamento e a maneira


de ser do nativo. Este autor propõe as abordagens «Emic» e «Etic».

A abordagem Emic descreve as culturas baseando-se nos conceitos e categorias dos


povos nativos, representa aquilo que explica a cultura de um povo em si mesmo e é
quase que incompreensível pelos outros povos ou culturas, por exemplo, o facto da
proibição de saldar dívidas no período nocturno entre os thongas, ou a interdição do uso
da mesma casa de banho entre sogro e nora, etc.

6
Genocídio cultural ou eliminação das culturas, combate contra a subsistência de uma dada cultura.

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A abordagem Etic designa os conceitos técnicos do etnólogo, expressa categorias
universais da cultura e permite que o antropólogo se comunique com outros
antropólogos, ou com o público em geral. Nesse contexto, as categorias e conceitos dos
povos nativos (Emic) só se tornam compreensíveis aos outros povos quando o
antropólogo os “eticiza”, ou seja, quando os adapta à conceitos inteligíveis seguindo um
certo rigor científico.

Em conclusão, refere Goodenough, que o Emic corresponde à Antropologia tradicional


que faz uma pura descrição dos factos, enquanto o Etic diz respeito à etnografia, isto é,
à Antropologia com fundamentos teóricos que recorrem a uma perspectiva científica.

Leituras complementares.

A nova etnografia, etnociência ou etnossemântica.

Nos Estados Unidos, surgiu, na década de 1960-1970, uma nova problemática teórica
que recebeu a designação de etnociência, apesar de ser igualmente conhecida por
etnossemântica ou mesmo nova etnografia, cujos trabalhos mais representativos são os
de Berlin, Kay, Conklin, Frake, Goodenough, Metzger, Romney e Tyler.

A etnociência considera a cultura como um sistema de cognições partilhadas


intersubjectivamente ou, simplesmente, como um sistema de conhecimentos e de
crenças. A criação da cultura não é atribuída aos factores biológicos ou ambientais,
mas ao intelecto humano. As emoções, as acções, o meio e outros elementos mais não
são que elementos materiais organizados pelo intelecto humano. Goodenough (1957)
concebe cada cultura concreta como «um sistema de perceber e organizar os
fenómenos naturais, as coisas, os acontecimentos, o comportamento e as emoções».
Daqui resulta que o objecto de estudo da etnociência «não são os fenómenos materiais
como tais, mas o modo como estes se organizam na cabeça das pessoas. As culturas
não são fenómenos materiais, mas organizações (mentais) de fenómenos materiais»
(Tyler, 1969).

Na perspectiva da etnociência, o intelecto humano gera a cultura através de um


determinado número de regras finitas ou por meio da lógica inconsciente. O seu
objectivo é determinar quais são essas regras. Ora, esta ideia de que, por debaixo da
diversidade da cultura, existe um «conjunto de regras para a construção e
interpretação socialmente adequadas das distintas mensagens» (Frake, 1964) retoma o
programa da gramática transformacional, elaborado por Chomsky (1975), que procura
descobrir as estruturas mentais apriorísticas e universais subjacentes à linguagem, bem
como o programa estruturalista desenvolvido por Claude Lévi-Strauss (1975, 1987).
Enquanto o estruturalismo interessava-se pela formulação das regras gramaticais que
governam a totalidade das trocas sociais e que são válidas para todas as culturas, a
etnociência interessa-se directamente pela formulação das regras gramaticais que
regem cada cultura concreta.

Entendemos a gramática de uma língua quando podemos enunciar uma proposição


gramaticalmente correcta, ou seja, uma proposição que seja considerada correcta por
todos os falantes nativos dessa língua. De modo semelhante, argumenta a etnociência,
podemos dizer que entendemos uma cultura quando conhecemos as regras que nos
permitem enunciar as formas de comportamento que os nativos consideram adequadas

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a cada circunstância. Apesar de não podermos predizer o que cada falante dirá ou fará
unicamente com o conhecimento da gramática, a etnociência considera que isso seria
possível se, além das regras gramaticais, conhecêssemos o conteúdo informacional
necessário para poder falar ou tomar decisões.

Devido à ênfase dada aos problemas cognitivos, o estudo da gramática de cada cultura
consiste em estudar «a forma das coisas que os indivíduos têm nas suas cabeças e os
seus modelos de percepção, para os relacionar entre si e, se for possível, poder integrá-
los» (Goodenough, 1957). Daí que a tarefa fundamental da etnociência seja a de
descobrir as formas de percepção dos membros de cada cultura concreta e o modo
como eles descrevem o seu mundo. Esta perspectiva tem sido chamada descrição emic
ou «interna» de uma cultura, por oposição ao ponto de vista «externo» ou descrição
etic, que consiste em descrever cada cultura concreta utilizando as categorias de que o
investigador dispõe.

Deste modo, a etnociência tende a centrar a sua atenção naqueles aspectos de uma
cultura que reflectem de forma mais cingida a concepção que os nativos têm do seu
meio, da natureza humana e da sociedade, dando por pressuposto que as expressões
linguísticas e o discurso em geral expressam, de maneira directa, os princípios que
organizam o intelecto humano. Daí a sua dedicação ao estudo dos sistemas
terminológicos ou dos sistemas de nomes que os membros de uma cultura usam para
descrever as plantas (etnobotânica), as cores e os animais (etnozoologia) do seu meio
(etnoecologia), bem como aos termos do seu sistema de parentesco. Estes sistemas de
termos estão organizados de maneira sistemática, através de um conjunto fixo de
princípios organizativos. Supondo a existência de um número fixo e limitado de
princípios que são os que todas as culturas empregam para gerar e construir os seus
próprios sistemas, a etnociência espera poder determinar os princípios usados para
gerar cada um destes sistemas terminológicos ou domínios. Contudo, ao contrário do
estruturalismo, a etnociência não considera que esses princípios estejam fundados em
estruturas mentais subjacentes.

A etnociência tem sido alvo das mais diversas críticas, algumas das quais a identificam
com o idealismo (Harris, 1993), mas é necessário reconhecer a sua utilidade na
investigação de terreno ou etnográfica. De facto, ela permite descobrir os processos e
as regras estruturais mediante as quais uma determinada população classifica o seu
mundo. A tentação idealista da etnociência pode ser superada quando integramos a sua
etnometodologia nos métodos que nos possibilitam ter um acesso indirecto ao
funcionamento do sistema nervoso humano através dos resultados da sua actividade: os
comportamentos, a linguagem e a cognição.

Encarar a etnociência como uma ciência auxiliar das neurociências da cognição


implica uma reformulação teórica: a linguagem estrutura uma concepção do mundo
que, do ponto de vista científico, deve ser considerada como um domínio da ideologia.
Ao mesmo tempo que é produzida pela mente-cérebro, a ideologia contribui, durante o
desenvolvimento, para a organização do próprio cérebro. De origem marxista, o
conceito de ideologia traz as marcas da filosofia que tutela o projecto científico. Com
efeito, se a ideologia é usar o sentido para estabelecer e sustentar relações assimétricas

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de poder, o seu estudo reconstrutivo implica necessariamente a desmistificação das


relações sociais.
Referências
1- Melatti, Júlio Cezar. ‘Introdução’, In Radcliffe-Brown: Antropologia. Orgs. J.C 2-
Melatti & F. Fernandes. Colecção Grandes Cientistas Sociais, São Paulo, Ática, 1978.
Pp.7-35
3-Eriksen, Thomas H. & Nielsen, Finn S. História da Antropologia. Petrópolis, RJ, Ed.
Vozes, 2007.
Trabalho independente

1-A Antropologia trata do Homem e do seu comportamento como um todo; leva em


conta todos os aspectos da existência humana biológica e cultural, passado e presente,
combinando esses aspectos numa abordagem integrada (HERSKOVITS).

a) Quais os ramos da Antropologia?


b) Que semelhanças se podem estabelecer entre os postulados da corrente
funcionalista e os da estruturalista?

1.12- O conceito antropológico de cultura

Os seres humanos têm vivido em grupo. O primeiro contacto entre si tornou-os seres
sociais e tal facto tornou-se o primeiro fenómeno cultual. Com efeito, as diferentes
formas de estruturação da sociedade dão origem a complexas diversificadas culturas, o
que nos leva a afirmar que: todo o comportamento humano tem um significado cultural.

O vocábulo “cultura” procede do verbo latino “colere” que significa cultivar a terra.
Thomas Hobbes (1588-1679) designava a cultura como o trabalho de educação do
espírito. Já desde o século XIX, vários antropólogos têm coincidido em que “ cultura é
um conjunto complexo de que compreende conhecimentos, crenças, hábitos, moral, leis,
artes do Homem, enquanto membro de uma sociedade”7

Noutro âmbito, a cultura pode ser entendida como um legado colectivo que o indivíduo
adquire do seu grupo; modo de vida global de um povo; um mecanismo para a
regulamentação normativa do comportamento, conjunto de significados e valores
partilhados e aceites por uma comunidade; etc.

Em todos os espaços e tempos, a vida humana tem acarretado crenças, criado normas,
idealizado valores, inventado instrumentos, desenvolvido aptidões, produzido obras de
arte, etc., que a caracterizam e lhe conferem autenticidade ou identidade própria. Isto é,
cada grupo humano realiza-se através de uma cultura e esta apresenta-se como a
expressão material e/ou espiritual da vida social concretizando-se no que é socialmente
aprendido e partilhado pelos membros do grupo.

A cultura é, então, um domínio vastíssimo que abrange todas as actividades da vida


humana. Dito em palavras breves: a vida humana é um estado de cultura. Por
conseguinte, no conceito de cultura as palavras-chave são aprendizagem e partilha.
Estas palavras ajudam-nos a distinguir a herança biológica da cultural. Por exemplo, as

7
TYLOR Edward, Primitive Culture, London, 1871, p.1

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necessidades de sono, de respiração e de alimentação são parte da herança biológica e
acontecem com/em todos os seres humanos. Porém, os modos com satisfazer essas
necessidades, os traços peculiares de um estilo de vida, etc., são legados culturais
aprendidos e partilhados não hereditária mas, socialmente.

Ora, a cultura, enquanto uma aprendizagem social compreende traços de índole


espiritual ou imaterial e material. Os traços imateriais (espirituais) da cultura são ideais,
crenças, costumes, dogmas, hábitos, preceitos, religiões, tabus, rituais, etc., de uma
sociedade. Outrossim, os valores revestem-se como traços imateriais da cultura de
capital importância, porquanto as vivências colectivas assentam neles. Assim, as ideias
do altruísmo/egoísmo, bem/mal, escravidão/liberdade, justiça/injustiça apreço/desprezo,
etc., condicionam e moldam efectivamente o comportamento dos homens e das
mulheres pela aprendizagem social.

Por seu turno, os traços materiais da cultura abarcam obras de arte, meios de
comunicação, literatura, técnicas, instrumentos de trabalho, etc. Os traços matérias da
cultura reflectem a luta do Homem pela sobrevivência e neles encontra-se o sentido da
evolução que se constata graças à reacção do Homem sobre a natureza.

Naturalmente, como parte integrante da cultura, os traços materiais e imateriais


(espirituais) não existem um independente do outro, mas interagem produzindo a
identidade cultural. Com efeito, a inovação tecnológica, ao promover maior domínio da
natureza trouxe uma alteração dos valores e das crenças da sociedade. Assim aconteceu
com os valores políticos, económicos e morais da Idade Média que se alteraram
radicalmente em consequência da ascensão política e económica da burguesia liberal. O
mesmo acontece hoje em dia com os meios de comunicação (Rádio, Internet, Televisão,
Telemóveis, etc.) que têm posto em contacto directo povos portadores de culturas
diferentes, criando espaços transculturais com novas formas de estar, novos hábitos e
valores.

Hoje, os meios de comunicação (traços matérias da cultura) ilustram a uma interacção


dialéctica que se estabelece entre as diferentes culturas. Por consequência, a
comunicação em tempo real, a globalização da economia, a abolição das fronteiras
nacionais, etc., são factores que permitem pensar numa “Aldeia Global” e exprimem a
alteração colossal dos traços imateriais da cultura, ou seja, dos costumes, das crenças,
dos comportamentos e dos valores dos povos que interagem no sentido de mudança
cultural.

Leituras complementares

Características da cultura.

Para além das características mencionadas mais acima, iremos descrever outras
características consideradas por Lerma como fundamentais:

A cultura é simbólica: porque é o conjunto de significados e valores transmitidos


através de símbolos e sinais.

A cultura é social: Por causa do seu carácter simbólico, ela é transmitida e


comunicada socialmente por meio de hábitos, costumes e preceitos que padronizam os

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comportamentos dos indivíduos. Ela pertence ao grupo humano e não é individual
sendo que o indivíduo recebe socialmente a cultura que lhe é transmitida pela
sociedade no seu conjunto.

A cultura é selectiva: Ela é um permanente processo que implica reformulações. Este


processo se acentua na sucessão das gerações, onde alguns valores são relegados ao
esquecimento enquanto outros são incorporados, ditando, deste modo novos padrões
diferentes.

A cultura é dinâmica e estável: É estável porquanto se submete à tradição, à


identidade e à institucionalização de padrões de comportamento. é dinâmica porque é
susceptível às mudanças.

A cultura é universal e regional: é universal na medida em que é um fenómeno que


acontece em todas as sociedades, pois não há povo desprovido de cultura. É regional
não porque seja diferente do fenómeno geral ou da cultura universal, mas pelo facto de
cada povo alimentar seus interesses dentro do conjunto cultural próprio, conforme às
situações e necessidades particulares.

A cultura é determinante e determinada: é determinante quando se impõe aos


indivíduos e eles não podem agir de uma forma diferente daquela imposta pela própria
cultura, isto é, quando o homem se torna produto da cultura. É determinada quando se
transforma ao longo do tempo através de factores que possam ditar suas mudanças, ou
seja, quando o homem se torna produtor da cultura.

Bibliografia
MARTINEZ, Lerma Francisco, Antropologia cultural, Paulinas. Editorial, pgs.49-60.

1.13- Valores, normas e comportamentos socioculturais.

A vida em grupo pressupõe uma certa ordem. Tal ordem resulta do facto de a vida
social colocar um sem-número de indivíduos detentores de comportamentos próprios e
diferentes uns dos outros, cada um dos quais agindo no sentido de satisfazer as
respectivas necessidades.

Ora, se cada indivíduo agir somente em função dos seus arbítrios, das sua motivações e
interesses, seguir-se-á a «guerra de todos contra todos8», dificultando a vida social.
Deste modo, no seu papel de socialização, o grupo (a sociedade) exige que cada um dos
seus membros reconheça que a seu comportamento deve obedecer a um conjunto de
normas que defendem e garantem a ordem social, preservando a subsistência do grupo
em si. Nesse sentido, as atitudes de cada indivíduo devem obedecer ao padrão vigente e
aceite como válido.
Ora, cada grupo social tem os seus padrões que representam comportamentos esperados
dos seus membros e que variam de sociedade para sociedade. Por exemplo, o
reconhecimento da liberdade religiosa constitui-se num padrão que se espera de uma

8
Expressão originalmente usado por Thomas Hobbes para designar o Estado Natural da sociedade no
qual primava a ausência da legalidade impondo-se a lei dos mais fortes.

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sociedade dada, porém, pode não ter sentido em sociedades onde se preza o extremismo
religioso.

Portanto, a vida sociocultural tem-se manifestado elaborado regras e normas exteriores


ao indivíduo, independentes da sua consciência, mas, que a ele se impõe, dando-lhe a
conhecer qual deve ser o seu comportamento, de tal modo a ser reconhecido como
membro dessa sociedade. Cada indivíduo é, portanto, convencido, a comportar-se de
acordo com as normas social e culturalmente vigentes e consubstanciadas nos valores
aceites pelo grupo.

Doravante, o valor será o modo de ser ou de agir que um indivíduo ou uma


colectividade reconhecem como ideal e que fazem com que os comportamentos aos
quais são atribuídos sejam desejáveis (TOMÁS; 2007:52)

Exemplo de valores: altruísmo, equidade, solidariedade, liberdade, caridade,


humildade, honestidade, temperança, justiça, bondade, modéstia, etc.
Exemplo de contra-valores ou valores negativos: egoísmo, arrogância, avareza,
avidez, incontinência, desonestidade, corrupção, vingança, vaidade, luxúria,
hostilidade, hedonismo, etc.

A vida em sociedade decorre dos valores que, como já dissemos, são independentes da
vontade e da consciência do indivíduo, tudo o qual nos permite elaborar a seguinte
síntese (MAIA; 2002:398):

· Todas as mudanças importantes (migrações, guerras, alterações sociopolíticas,


etc.) são acompanhadas por mudanças de valores.

· Os conflitos de gerações e os conflitos étnicos são, até certo ponto, conflitos de


valores.

· A coesão de um povo passa necessariamente pela esfera valorativa.

· As ideologias que intervêm na transformação histórica das sociedades têm nos


valores a sua causa mais importante.

Neste caso, podemos afirmar com justeza que o comportamento humano é


significativo e condicionado pelos valores do grupo. Logo, o que haverá de comum no
comportamento dos membros de um grupo social será esse relativo conformismo com
os modelos de comportamento impostos pela prática sociocultural.

Leituras complementares

Necessidade de formação e transmissão de valores

O ser humano orienta o seu comportamento em função dos valores que a sociedade
preza ou privilegia. Por tal razão, e, a fim de fazermos uma aproximação ao
comportamento desejável, propusemo-nos a tarefa de fazer uma análise axiológica que
permita compreender a importância metodológico-prática da transmissão de valores

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que por sua essência, podem contribuir para o desenvolvimento de condições menos
propensas ao desvio de normas culturais.

A sinceridade: este valor implica simplicidade, veracidade e exclui o fingimento, a


hipocrisia e a dissimulação. A sinceridade pode estender-se a duas vertentes:
· Sinceridade para consigo próprio.

· Sinceridade para com os outros.

A primeira é importante para gozar-se de óptima saúde mental pois que, quando um
indivíduo não é sincero sente-se mal consigo próprio, pelo que não pode encontrar
sossego.

A sinceridade para com os outros é crucial para estabelecer relações interpessoais em


qualquer sistema (família, escola, empresa, sociedade em geral). A falta de sinceridade
pode causar frustrações ao receptor e tal, pode ser, em certa proporção, objecto de
desconfianças, inimizades e hostilidades. Porém, quando o emissor é sincero para com
o seu receptor, produz-se um feedback9 que possibilita o estabelecimento de fortes
laços com ele. O requisito de garantia da sinceridade é a aceitação de cada situação
tal como é, pois isso evita que as coisas se disfarcem camuflando a falsidade numa
verdade fictícia.

O diálogo: o valor do diálogo acarreta conversações entre duas ou mais pessoas. Um


diálogo pleno, permite encontrar acções favoráveis à cooperação social e aos
interesses comuns a todos.

Um bom diálogo requer que a pessoa se abra com a outra, a respeite, a escute, usando
uma linguagem acessível e deixando de lado o medo, a prudência excessiva e o
tratamento sarcástico. Quando um destes elementos falha, engendra-se a desconfiança
e a discórdia. O diálogo é o valor pelo qual se reduzem as diferenças ideológicas,
religiosas, étnica, políticas, culturais, etc. Ironicamente, os Acordos Gerais de Paz de
04 de Outubro de 1992 resultaram do diálogo, o que alerta para a importância deste
valor.

Assim, para um diálogo adequado recomendamos a selecção discreta de palavras, pois,


uma palavra qualquer pode causar conflitos; uma palavra cruel pode destruir a vida;
uma palavra amarga pode romper com todas as vivências e sentimentos que se geram
ao longo da infância e da adolescência como etapas mais importantes na formação da
personalidade e a aquisição da auto-estima.

A auto-estima: tem a ver com a opinião ou a impressão que cada qual tem de si
próprio. Quando a partir da infância a criança é ajudada a descobrir o melhor da sua
personalidade e quanto mais amor, carinho e atenção receber, melhor conceito terá de
si própria.

A pessoa com alta auto-estima caracteriza-se pelo optimismo e por enfrentar com
coragem e valentia qualquer meta que se propuser. Pelo contrário, a baixa auto-estima

9
Palavra de origem anglo-saxónica que se pode traduzir como retroacção.

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implica o pessimismo, o fracasso, a timidez, a ausência de confiança em si mesma, a
falta de comunicação, etc.

A estimulação de jogos e de brincadeiras na infância e na adolescência pode ajudar a


elevar a auto-estima por meio de valorações positivas relativamente ao adolescente. A
auto-estima é um valor muito importante na formação e consolidação da personalidade
do indivíduo, mas, o seu excesso pode impulsionar e gerar a arrogância, a imodéstia, o
menosprezo aos outros, etc.

A paz: a paz é um valor sem cuja prática é inútil falar de entendimento entre pessoas,
de cooperação altruísta na sociedade, de aceitação das diferenças individuais (raça,
etnia, aptidão física, etc.).

Moçambique, ao ser um país de orientações político-ideológicas diversas e de


composição étnica múltipla, a consolidação da unidade nacional só pode ser possível
num clima de paz e por meio do diálogo. Através da paz e apenas, diante de uma
situação pacífica é que se pode erguer um ambiente de entendimento, de solidariedade,
de aceitação das diferenças políticas, etc.

Ao trabalharmos o valor da paz, pretendemos que as pessoas tenham conhecimentos


sobre o seu significado e discriminem os seus antónimos mais próximos como: guerra,
inimizade, hostilidade, intolerância, discórdia, etc. Também, pretendemos que as
pessoas vivam uma atitude pacífica, ou sejam capazes de distinguir uma situação hostil
daquela que tem um alto conteúdo de paz.

A justiça: é a atitude de excelência moral ou a vontade decidida de entregar a cada


quem o que por direito é seu. Conhecer este valor é fundamental porque é a base de
outros valores e, também, a base de toda a ordem social. Sem justiça é falsa a
pretensão de paz, de tolerância, de reconciliação, etc.

A injustiça pressupõe deficiência moral naquele que a pratica e pode convergir na


violência social e no descontentamento.

Em linhas gerais, estas são as distinções que a respeito de certos valores, quisemos
discriminar para fazer prevalecer o seu conteúdo e significado na moldagem, guia e
orientação dos membros da sociedade.

Bibliografia
1-MAIA, Leandro Rui. Dicionário de Sociologia, Porto Editora, Porto, 2002.
2- TOMÁS, Adelino Esteves. Ensaio Experimental de Sociologia, UniSaF, 2007.

1.14- Padrões de cultura: Etnocentrismo versus Relativismo cultural.

Dado que cada sociedade gera a sua cultura, é natural que possua os seus padrões de
cultura, ou seja, tipos formais de comportamento individual ou colectivo que
condicionam e explicam as atitudes do grupo.

Assim, a compreensão dos comportamentos humanos exige conhecimento dos seus


padrões de cultura. Tal conhecimento permite entender certos comportamentos que, de
outro modo, pareceriam um contra-censo, uma aberração ou uma irracionalidade.

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Os padrões de cultura são um código que torna inteligível o fenómeno cultural que
acontece nos diferentes grupos e o modo de reacção que cada grupo manifesta face a um
determinado estímulo. Ora, dos múltiplos modos de reacção aos diferentes estímulos
infere-se a multiplicidade de padrões de cultura.

A cultura, por seu turno, aparece como sendo algo relativo, pois, não há culturas
inferiores nem culturas superiores, mas culturas diferentes (relativismo cultural).

O relativismo cultural, em oposição ao etnocentrismo, debate-se com a necessidade de


superação de discursos estereotípicos e preconceituosos face às práticas culturais. A
ignorância do relativismo cultural tem impedido que alguns grupos étnicos aceitem aos
outros e tem levado à exaltação e ao reconhecimento do seu grupo como o melhor, o
mais perfeito e único digno de respeito (etnocentrismo).

O etnocentrismo tem justificado o surgimento de um sem-número de comportamentos


preconceituosos, designadamente o da superioridade e da pureza racial. Por
conseguinte, o etnocentrismo é um padrão de cultura que refere ao facto de cada povo
ou etnia pressupor a superioridade da sua própria cultura. Assim, por exemplo, quando a
civilização ocidental pretende que os diferentes povos adoptem os sues costumes
religiosos, artísticos, políticos, económicos, arquitectónicos, pedagógicos, etc., está a
tomar uma postura etnocêntrica.

Outras formas de manifestação do etnocentrismo são a xenofobia, o racismo, o


tribalismo, o apartheid, o chauvinismo, etc.

Leituras complementares.

A cultura é uma referência da sociedade.

A noção de cultura está associada a todas as sociedades. O indivíduo, seja qual for o
seu estatuto, é um ser não apenas social mas, sobretudo, cultural. Pela constituição do
seu espírito, ele organiza o seu mundo metal, o seu sistema de relações e, até mesmo,
um grande número de dados fisiológicos, segundo regras estabelecidas no seu contexto
sociocultural. Daí decorre que os indivíduos que nascem numa dada sociedade
adoptem os comportamentos ditados pela sociedade onde vivem.

O modo de comportamento baseado na cultura estabelecida numa sociedade é


adquirido espontânea e quase inconscientemente por cada um dos seus membros.
Constitui-se como um sistema de referência que molda os comportamentos e
hierarquiza os valores em função dos padrões de cultura nela privilegiados.

Adaptado: Augusto Mesquita et al., Introdução à Antropologia.

O texto acima ilustra-nos a importância da cultura como factor de expressão dos


membros de um grupo. Portanto, dele devemos extrair as seguintes ideias:

Ø A cultura não é só um amontoado de normas, crenças, técnicas, valores e


tradições. Mas antes, corresponde a um sistema organizado de

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comportamentos.
Ø Os indivíduos não são apenas seres sociais, mas, também, culturais.
Ø Cada indivíduo adquire espontânea e quase involuntariamente a cultura do
grupo de que faz parte e age em conformidade com ela.
Ø Não há culturas inferiores nem culturas superiores, mas, diferentes.

Trabalho independente.
1- Tendo em conta a asserção “ Não há culturas superiores nem culturas
inferiores.”
a) Diga duas vantagens e duas desvantagens do etnocentrismo.
b) Comente a importância dos valores como garantes da coesão social.
c) Porque se pode afirmar que “todo o comportamento humano tem um significado
cultural”?

1.15- O dinamismo e a mudança cultural: processos de endoculturação,


desculturação, aculturação, e transculturação.

A dinâmica cultural explica-se pelo facto de as estruturas culturais não serem estáticas e
estarem permanentemente em transformação e tais transformações ocorrem
essencialmente por dois processos: as descobertas no interior dos próprios grupos e os
contactos dos grupos com outros grupos portadores de culturas diferentes. O primeiro
processo dá origem à endoculturação e o segundo origina as restantes formas que
corporizam a dinâmica das culturas.

A endoculturação ou enculturação.

A criança ao nascer é apenas um ser que responde aos estímulos biológicos (respiração,
sono, alimentação, satisfação de necessidade metabólicas, etc.). Porém, desde cedo ela
vai incorporar formas de ser, designadamente a forma de se alimentar, o local onde
satisfazer necessidades metabólicas, utensílios para servir os alimentos, etc., isto é, ela
vai ajustar as suas reacções individuais aos padrões da cultura da sociedade de que ela
faz parte.

A endoculturação ou enculturação é o processo pelo qual cada grupo adapta a


organização biológica dos seus neo-natos (recém-nascidos) a um conjunto de dogmas
culturais pré-existentes.

A endoculturação permite que a criança assuma uma orientação do seu comportamento,


tenha consciência de si e dos outros, adquirindo uma personalidade própria. Quer dizer,
a endoculturação, diz respeito à dinâmica interna de uma cultura particular. Trata-se de
um processo condicionado consciente ou inconscientemente pelos limites impostos
pelos padrões culturais e resume-se na:
Þ Adaptação da vida individual aos hábitos, valores e tradições socialmente
aceites.
Þ Aprendizagem de comportamentos e hábitos do grupo.
Þ Moldagem da personalidade dos indivíduos.

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Þ Duração do processo, começando com o nascimento do individuo, estendendo-se
ate à morte.

A desculturação.

O termo remete-nos à perda de cultura e designa um aspecto negativo da dinâmica


cultural. Ora, durante os contactos culturais há traços mais ou menos importantes da
cultura que se vão perdendo como resultado do crescimento da própria ou devido à
situações históricas que vão verificando, o que grosso modo, provoca uma subtracção
ou destruição do património cultural.

Outras causas da desculturação podem ser:


§ Crises originadas pelo contacto de culturas, provocando reformulações no
interior das culturas, o que pode implicar a selecção de alguns traços da cultura
própria.
§ Perda natural da energia dos traços de uma cultura em resultado das alterações
económicas, políticas, ecológicas, etc., que se vão constatando na sociedade.

A aculturação.

Este processo é referente às relações estabelecidas entre povos portadores de culturas


diferentes e à possibilidade de um deles apreender parte da cultura do outro, isto é, um
acto que permite que um povo assimile total ou parcialmente uma cultura alheia.

Ora, a aculturação nem sempre ocorre pacificamente, pois do contacto entre povos nem
sempre resultam relações afáveis ou amigáveis. Por conseguinte, podemos falar de dois
tipos de aculturação:

· A aculturação que se verifica quando povos estabelecem contactos sem nenhum


deles exercer qualquer poder coercivo sobre o outro. Por exemplo, o fenómeno da
globalização por meio do qual toda a humanidade tende a uma única cultura.
· A aculturação que resulta do controlo das culturas em consequência de uma
conquista militar ou de uma dominação política. Neste caso, a cultura do povo
conquistador sobrepõe-se à do conquistado. Por exemplo, a ocupação militar de
Moçambique por Portugal que sobrepôs a cultura deste último país à do povo
moçambicano.

A transculturação.

Trata-se de um processo da dinâmica cultural que permite que sociedade legue traços à
outra, em troca de outros que ela recebe daquela. A transculturação é resultante de
intercâmbios comerciais, artísticos e científicos que possibilitam que as partes
envolvidas assimilem reciprocamente a cultura ou os traços culturais da contraparte. Por
exemplo, no Brasil o contacto entre afro-descendentes, euro-descendentes e ameríndios
originou um quadro transcultural que propiciou na cultura resultante aspectos diferentes
das culturas originais.

Bibliografia
1-TITIEV, Mischa. Introdução à Antropologia Cultural, 9ª edição, pgs 272/288.

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2-BERNARDI, Bernardo. Introdução aos estudos etno-antropológicos, pgs 95/137.

Trabalho independente.
1- O pode acontecer com um sujeito que não aceita agir ou comportar-se em função
dos valores da sua sociedade?
2- Apresente argumentos que fundamentam a ideia da dinâmica cultural?

1.16- A tradição e a identidade cultural em Moçambique.

Aula será proposta como trabalho de aplicação do estudante nas horas de estudo
individual em o próprio estudante terá que aprofundar nos seguintes temas.
a) Identidade moçambicana: já e ainda não, pgs 17-32.
b) Notas sobre a identidade, pgs 71-74.
c) Definição do conceito de identidade social, pgs 116-119.
d) Pluralidade, unicidade e compatibilidade das identidades, pgs 119-122.
e) Algumas observações sobre a territorialidade e a identidade em Moçambique
antes e depois da Independência, pgs 131-141.

Note-se que para a efectuação do trabalho o estudante terá que recorrer ao livro:
Identidade, Moçambicanidade e Moçambicanização, Livraria Universitária da U.E.M.

1.17- Parentesco, família e casamento em Moçambique: Classificação dos tipos de


parentesco e dos tipos de família.

O estudo das relações de parentesco dentro da Antropologia ocupa um lugar


privilegiado. Nesta epígrafe pretendemos introduzir um conjunto de terminologias
técnicas muito frequentemente usadas no estudo do parentesco.

Parentesco: no sentido restrito refere-se aos laços de sangue, mas num sentido mais
amplo, também aplica-se aos laços de afinidade ou de casamento. (parentesco por
consanguinidade e parentesco por afinidade ou por casamento)
Laços de parentesco: é a relação que decorre da posição ocupada pelo sujeito no
sistema de parentesco. Pode-se falar de três tipos de laços de parentesco:
Ø Laço de sangue (descendência).
Ø Laço de afinidade (matrimónio ou casamento).
Ø Laço fictício (adopção).

Descendência: relação do sujeito com os seus parentes de sangue. Embora o critério de


descendência seja biológico, em Moçambique a descendência obedece à critérios
culturais (de descendência unilateral). Por exemplo, um indivíduo é sempre filho de
uma mãe e um pai, mas na zona norte de Moçambique leva-se em consideração a
descendência matrilinear, enquanto no sul considera-se a descendência patrilinear. Nas
sociedades europeias a descendência dos dois progenitores (descendência bilateral).

A descendência matrilinear é também conhecida como descendência uterina, a


patrilinear tem também a designação de descendência agnática, enquanto a
descendência bilateral (de ambos os progenitores) é denominada cognática.

Descendência unilateral dupla: acontece em sociedades que não consideram como


preponderante a linhagem matrilinear nem a patrilinear, porém, orientam-se pela

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linhagem patrilinear para uns propósitos (ex: realização de funerais, delegação da
herança, etc.), e orientam-se pela linhagem matrilinear para outros propósitos (ex: o
cuidado de crianças, a atribuição de apelidos, etc.)

Nomenclatura de parentesco ou terminologia de parentesco: é o sistema de


denominações das posições relativas aos laços de sangue e de afinidade. Exemplos de
nomenclaturas de parentesco: pai, mãe, marido, avô, tio, irmão, primo, esposa,
cunhado, sogra, enteado, filho, neto, sobrinha, etc. Importa referir que a nomenclatura
de parentesco pode ser descritiva e classificatória.

A nomenclatura de parentesco descritiva é aquela em que se usa um termo diferente


para designar a cada um dos parentes. Exemplo: papá (pai biológico), mamã (mãe
biológica), mana (irmã mais velha), etc.

A nomenclatura de parentesco classificatória é aquela em que se emprega


indistintamente o mesmo termo para designar a um grupo de pessoas com quem se tem
um laço de parentesco. Por exemplo, quando se aplica o termo “mamã” para designar à
mãe biológica, à irmã da mãe, ou à madrasta. Também estamos perante a nomenclatura
de parentesco classificatória quando se trata como irmão, ao próprio irmão biológico, ao
primo ou ao filho de uma madrasta.

Clã: grupo de pessoas dotado de nome e de descendência unilateral, isto é, que deriva
de um ancestral comum e que segue regras de descendência matrilinear/uterina ou
patrilinear/agnática e jamais de ambas simultaneamente.

Os clãs do sul de Moçambique que seguem a descendência agnática ou patrilinear são


designados patriclãs, enquanto os do norte do país que se orientam pela descendência
uterina ou matrilinear denominam-se matriclãs.

Família: no sentido mais restrito é o conjunto de pessoas que vivem sob o mesmo tecto.
Mas no sentido lato, a família é o conjunto das sucessivas gerações descendentes de
antepassados comuns; já na linguagem do senso comum costuma-se dizer que a família
é a célula básica da sociedade. Por família, também, pode-se entender como o conjunto
de parentes por consanguinidade ou por aliança ou afinidade.

No entanto, existe um tipo de classificação que se vale dos seguintes critérios: regras de
residência, número de cônjuges, relação de poder e parentesco.

Quanto às regras de residência.


A família pode ser:

Patrilocal: a família patrilocal é aquela que estabelece uma residência conjunta entre
um casal e os pais homem.
Matrilocal: aquela que estabelece residência conjunta entre o casal e os pais da mulher.
Neolocal: é a família cujo casal tem uma residência independente da dos pais de ambos
os cônjuges.

Quanto ao número de cônjuges.


Assim, segundo este critério a família pode ser:

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Monogâmica: quando a união é de um só homem com uma só mulher.
Poligâmica: é a união de um só marido com várias esposas ou de uma só mulher com
vários maridos.
Poligínica: é a família em que o homem é quem pratica a poligamia, isto é, a união de
um marido com várias esposas.
Poliândrica: é a família em que a mulher é quem pratica a poligamia, ou seja, a união
de uma mulher com vários esposos.

Quanto às relações de poder.


A família pode classificar-se em:

Patriarcal ou patrilinear: é a família cujo poder é exercido pelo marido. As famílias


patriarcais abundam no sul de Moçambique, sendo que o patriarcado como uma relação
de poder incide também no casamento, na sucessão na herança e na estrutura social das
famílias.
Matriarcal ou matrilinear: é a família cujo poder é exercido pela mulher. As famílias
patriarcais abundam no norte de Moçambique, sendo que a mulher exerce o poder
indirectamente através do seu irmão do sexo masculino. É este a quem cabe zelar pela
orientação da vida dos filhos da irmã, cuidar pela iniciação desses filhos e legar-lhes a
sua herança em caso de morte. O papel do pai biológico é quase que passivo, pelo que
quando o filho porta-se mal ou comete uma infracção, o pai remete a solução dessa
situação ao tio materno do filho, isto é, ao irmão da mãe do filho.

Quanto ao parentesco.
A família pode adquirir as seguintes classificações:

Nuclear: é a família constituída pelo marido, esposa e os filhos resultantes dessa união,
todos morando juntos numa residência neolocal. A família nuclear pode ser de
orientação, aquela da qual cada um de nós proveio e família nuclear de procriação, que
é a que cada um de nós funda estabelece.
Alargada ou extensa: este tipo de família constitui-se por um casal, os filhos e os
familiares colaterais (sobrinhos, netos, primos, irmãos, etc.), todos vivendo numa
mesma residência patrilocal ou matrilocal.
Reconstituída: composta por um homem divorciado ou viúvo com os filhos e uma
mulher (a madrasta), ou por uma mulher divorciada ou viúva com os filhos e um
homem (o padrasto).
Monoparental: aquela composta só pelo pai solteiro ou viúvo e os filhos, ou só pela
mãe solteira ou viúva e os filhos.

Bibliografia
1-DE MELO, Luíz Gonzaga. Antropologia cultural, pgs 316/339
2-BERNARDI, Bernardo. Introdução aos estudos etno-antropológicos, pgs 289/294.

1.18- O Lobolo em Moçambique: “Um velho idioma para novas vivências


conjugais”.

O lobolo é uma prática cultural por meio da qual se unem duas pessoas (homem e
mulher) pelo casamento condicionado ao pagamento real ou simbólico de um dote. Este

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dote pode ser uma enxada, uma cabeça ou várias de vaca, dinheiro em numerário ou
outros bens de natureza material ou pecuniária.

O jovem que tenciona contrair o casamento informa aos seus tutores (pais ou padrinhos)
sobre a sua intenção e estes marcam uma agenda de visita à família da pretendida noiva
com a finalidade de participar-lhes da pretensão do seu filho/afilhado. Uma vez
recebidos os hóspedes estabelecem-se garantias, designadamente uma lista contendo a
descrição dos itens que serão objectos do próprio lobolo. A lista pode incluir prendas
para os pais da noiva, catanas, enxadas, dinheiro para os encargos do cortejo nupcial,
bem como a menção da data em que o próprio lobolo será pago.

Chegado o dia marcado, a família da noiva prepara-se para a cerimónia de maneira


especial, pois cumpre-lhe garantir a hospitalidade ao noivo e aos seus acompanhantes.
Na hora do pagamento do lobolo, as prendas e todos os objectos descritos na lista são
dispostos no meio de uma praça visível. Logo, as duas famílias (a da noiva e a do noivo)
reúnem-se para verificar se o número dos objectos está certo, indicando uns aos outros
se estão ou não completos.

É extremamente importante que haja numerosas testemunhas de modo que se o


casamento for mal-sucedido não haja dificuldades de o homem reaver os objectos do
lobolo.

Ultrapassada esta parte, segue-se o acto religioso, logo, o cortejo nupcial, e em seguida
os festejos com abundância de comidas e bebidas alcoólicas. Todos estes actos solenes
selam para sempre a união dos dois nubentes. No entanto, dois grandes factores podem
ser preponderantes para a dissolução do casamento: o adultério e a esterilidade da
mulher.

Ora, embora a sociedade moçambicana consinta a poliginia (poligamia masculina) não


tolera que a mulher possa estabelecer relações extra-conjugais ou adultérios, sendo estes
actos suficientemente justificativos para o homem exigir a dissolução do casamento.

A esterilidade feminina é um outro aspecto que legitima a dissolução do casamento.


Ora, visto que entre os africanos a finalidade procriativa do casamento prima sobre as
outras finalidades (prazer, partilha, afecto, etc.), a dificuldade de procriação da mulher é
tida como um impedimento à manutenção do casamento, pelo que declara-se o divórcio.
Por conseguinte, o divórcio por adultério ou por esterilidade da mulher dá direito ao
marido de exigir de volta os objectos do lobolo.

Significação histórica da prática do lobolo.

O lobolo como símbolo de união matrimonial permite que uma das famílias envolvidas
adquira um novo membro, e a outra o perca. Deste modo, a mulher adquirida, ainda que
conserve o seu apelido (o nome do seu clã) torna-se propriedade do novo grupo
familiar, pertencem a este grupo tanto ela como os filhos que gerar. Não é uma escrava,
nem é propriedade individual do marido, mas uma propriedade colectiva do grupo.

Junod (1996: 257) faz as seguintes considerações a respeito dos efeitos do lobolo:

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· Toda a família do homem toma parte nas cerimónias do casamento, sobretudo no
dia em que o lobolo é levado pelo noivo. Os membros masculinos do grupo têm
o direito de opinar sobre os bois ou a soma entregue.
· Os irmãos estão sempre prontos a ajudar um dos seus, mais pobre, ao lobolo.
Trabalham assim para o grupo.
· A mulher adquirida desta maneira é esposa aparente deles, embora lhes não seja
permitido ter relações sexuais com ela. Recebê-la-ão em herança quando o
marido morrer (o kutchinga).
· Os filhos pertencem ao pai, vivem com ele, usam o seu apelido (o nome do clã)
e devem-lhe obediência: os filhos masculinos fortificam o grupo e os femininos
são vendidos em casamento para o benefício desse grupo.

Algumas vantagens e desvantagens do costume do lobolo para as famílias


moçambicanas.
O lobolo como uma prática costumeira de alguns segmentos sociais étnicos da
sociedade moçambicana tem algumas vantagens:

Ø Ajuda a fortificar a família, a patriarcal, o direito do pai.


Ø Marca diferenças entre casamentos legítimos e casamentos ilegítimos e, neste
caso, substitui o registo oficial do casamento.
Ø Dificulta a dissolução do casamento, pois a mulher não pode abandonar o
marido sem que a este lhe seja restituído o lobolo.
Ø Obriga os nubentes a terem atenção, um para com o outro.

No entanto, o lobolo acarreta também algumas desvantagens. Ei-las:


Ø A mulher é reduzida a uma situação de inferioridade pelo facto de ter sido paga.
a) A rapariga casada fica a mercê da família do marido. Em caso da morte do
marido ela pode ser entregue a um velho asqueroso por quem ela não sente
qualquer atracção, por causa de uma velha dívida de lobolo; b) a mulher
trabalha para o marido e para os parentes dele, que lhe dão muito pouco em
troca; c) no que toca aos filhos, mesmo que ela sinta amor por eles, não lhe
pertencem, são propriedade do marido ou do seu grupo familiar.
Ø O lobolo atribui quase que todos os direitos ao marido sobre a mulher, incluindo
os de ofendê-la, e a mulher perde até mesmo o direito de protestar.
Ø No caso de o lobolo e a suma do dinheiro envolvidos não tiver sido totalmente
pagos, podem levantar-se tensões e irritações que muitas vezes criam
sofrimentos para o casal e para as respectivas famílias.

Por tudo o acima descrito, conclui-se que seja falso dizer que o lobolo é um contrato
entre duas famílias com a finalidade de garantir que a mulher seja tratada decentemente
pelo marido e vice-versa. Parece-nos que em vez de esta prática obrigar os nubentes a
prestarem cuidados recíprocos, serve para legitimar comportamentos androcêntricos e
machistas de índole patriarcal.

Bibliografia
JUNOD, Henri Alexandre. Usos e costumes bantu, Editor Arquivo Hist. de Moç., Tomo
I Maputo, 1996.

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Trabalho independente.
1- Chongola, marido da dona Amélia pereceu na África do Sul de uma prolongada
doença. No entanto, a família reuniu-se e decidiu que Chivangue, irmão de
Chongola deveria “kutchingar” a Amélia para purificá-la dos maus espíritos do
finado irmão. (Adaptado pelo professor).

a) Faça um comentário sobre a pertinência desta prática costumeira para a coesão


cultural daquela comunidade familiar.
b) Justifique a importância da interdisciplinaridade das ciências sociais no estudo
deste facto cultural.

1.19- Crítica do parentesco: o caso macua.

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