A Ética Da Crença - W.K. Clifford
A Ética Da Crença - W.K. Clifford
A Ética Da Crença - W.K. Clifford
DESIDÉRIO MURCHO
Tradução de
VÍTOR GUERREIRO
A ÉTICA DA CRENÇA
Copyright
Prefácio
Sobre os autores
Todos os direitos para a publicação desta obra em Portugal reservados por Editorial Bizâncio.
Largo Luís Chaves, 11-11A, 1600-487 Lisboa Tel.: 21 755 02 28/Fax: 21 752 00 72
E-mail: [email protected]
ISBN: 978-972-53-0458-7
Desidério Murcho
Ouro Preto, 28 de Junho de 2010
SOBRE OS AUTORES
William Kingdon Clifford nasceu no dia 4 de Maio de 1845, na Inglaterra,
e morreu na Ilha da Madeira no dia 3 de Março de 1879, com apenas 34
anos. Apesar disso, deixou uma obra matemática considerável, assim como
palestras influentes de divulgação científica, ensino e filosofia. Antecipou
Albert Einstein (1879-1955), explorando as geometrias não-euclidianas.
Das suas ideias filosóficas, as mais influentes hoje são as que estão
presentes no ensaio aqui publicado, apresentando com grande clareza a
posição de que só é legítimo acreditar em algo se tivermos indícios a seu
favor. Mas defendeu também teorias filosóficas na área da filosofia da
mente e da ética. Das suas obras, quase todas publicadas postumamente,
destaca-se Elements of Dynamic, 2 vols. (1878, 1887), Seeing and Thinking
(1879), Lectures and Essays (1879), Mathematical Papers (1882) e The
Common Sense of the Exact Sciences (1885).
Alvin Plantinga (n. 1932) é um dos mais influentes filósofos actuais, com
trabalhos muitíssimo discutidos nas áreas da metafísica, filosofia da religião
e teoria do conhecimento. Cristão protestante, destacou-se por sustentar as
suas ideias religiosas de um modo não só integrado nas outras perspectivas
metafísicas e epistemológicas que defende, mas também com a mesma
precisão analítica. Das suas obras, destaca-se God and Other Minds (1967;
ed. rev. 1990), The Nature of Necessity (1974), Deus, a Liberdade e o Mal
(1974; trad. D. Murcho, Vida Nova, 2012), Does God Have A Nature?
(1980), Warrant: the Current Debate (1993), Warrant and Proper Function
(1993), Warranted Christian Belief (2000) e Essays in the Metaphysics of
Modality (2003).
1
Epistemologia
Uma análise da fé
A concepção fenomenológica de fé
Passemos então à análise da concepção fenomenológica de fé. Deste ponto
de vista, a fé não é como qualquer outra crença, diferindo apenas quanto ao
objecto; ao invés, além da diferença de objecto, envolve aspectos que as
outras crenças não envolvem. Um desses aspectos é a força da convicção: a
fé exibe a força da convicção do conhecimento, apesar de não ser
conhecimento (ou, pelo menos, não é como os outros conhecimentos
comuns, como o conhecimento de que a água é H2O, por exemplo;
exploraremos já de seguida a ideia de que a fé é um tipo especial de
conhecimento). E por não ser conhecimento, a fé é, nesse aspecto, como a
mera crença. Portanto, deste ponto de vista, a fé é como o conhecimento
num aspecto e como a mera crença noutro. Assim, a fé não é apenas uma
crença que tem por objecto um certo tipo de entidades: é uma crença que
tem características próprias, que a distinguem de muitas outras crenças, ou
mesmo de todas.
Comparar a força da convicção da fé com a força da convicção
associada ao conhecimento é esclarecedor. Efectivamente, quando sabemos
algo, temos uma forte adesão psicológica ao conteúdo do nosso
conhecimento, bastante mais forte do que quando temos uma mera crença,
ainda que parcialmente justificada. Quando acredito meramente que a Joana
está na praia porque me disseram, a força da minha convicção é muitíssimo
menor do que quando sei que ela está lá porque acabei de a ver.
Contudo, será a fé como o conhecimento em todos os aspectos, caso
em que a fé seria conhecimento? Podemos defender que a fé é
conhecimento — mas um tipo diferente de conhecimento — ou defender
que a fé não é conhecimento, apesar de ser fenomenologicamente como o
conhecimento no que respeita à força da convicção.
A primeira coisa a fazer quando se defende que a fé é conhecimento é
esclarecer de que género de conhecimento se trata: proposicional, saber-
fazer ou por contacto. Defender que a fé é conhecimento proposicional
implica defender que só há fé quando há justificação, pois só há
conhecimento proposicional quando há justificação. No caso da fé, a
justificação seria a revelação: a ideia de que Deus se deu a conhecer a
algumas pessoas especiais, que depois transmitiram por testemunho essa
ocorrência. Um argumento contra esta perspectiva é que, se fosse
verdadeira, quase nenhumas pessoas religiosas teriam de facto fé — só a
teriam aqueles teólogos e filósofos que sabem justificar adequadamente a
sua crença numa divindade. A maior parte das pessoas que acredita no Deus
cristão, por exemplo, pouco ou nada sabe sobre os supostos testemunhos da
revelação que sustentariam a sua fé. Como isto é implausível, a perspectiva
seria falsa.
Este argumento, contudo, não é convincente, pois ignora uma
diferença entre haver justificação e o agente do conhecimento ou da crença
em causa conseguir articular essa justificação. Por exemplo, uma criança
forma a crença de que está uma maçã em cima da mesa ao vê-la lá; a
justificação da sua crença é muitíssimo mais sofisticada do que o mero «Vi-
a lá» que ela é capaz de articular, pois envolve coisas como condições
normais de luz e o funcionamento correcto do seu aparato visual e
cognitivo. Parece excessivo exigir que um agente tenha de conseguir
articular uma justificação adequada das suas crenças para estas poderem
constituir conhecimento proposicional, dado que, na sua maior parte, as
pessoas têm grande dificuldade em fazer tal coisa. (Contudo, podemos
insistir que as pessoas quase nada sabem, na sua maior parte, vivendo
apenas com base em meras crenças.) Uma alternativa é então aceitar que
um agente tem conhecimento proposicional desde que tenha uma crença
verdadeira que se pode justificar adequadamente, ainda que ele mesmo não
o saiba fazer ou não o tenha efectivamente feito. Chama-se externismo a
esta posição sobre a justificação, e internismo à posição oposta.
Aplicando esta distinção à fé, poder-se-ia então insistir que as pessoas
só podem ter realmente fé numa divindade caso seja possível justificar tal
crença, ainda que elas mesmas sejam incapazes de o fazer. Ter fé numa
divindade seria, assim, análogo a muitas outras crenças que somos
incapazes de justificar adequadamente, mas que pensamos que outros seres
humanos sabem justificar adequadamente. Por exemplo, na sua maior parte,
as pessoas são incapazes de justificar adequadamente a crença na
cosmologia do Big Bang, pois não têm os conhecimentos nem os recursos
necessários para justificar esta teoria: limitam-se, por isso, a transferir para
os especialistas relevantes a tarefa da justificação.
Esta perspectiva implica que caso não exista justificação adequada
para crer numa divindade, ninguém teve jamais fé nessa divindade, apesar
de ter pensado que a tinha. Note-se que isto é compatível com a diversidade
de religiões e de divindades; pois apesar de as diversas divindades que são
objecto de fé em diferentes religiões serem incompossíveis (ou seja, não são
conjuntamente possíveis: não podem existir todas simultaneamente), é
perfeitamente possível que existam justificações adequadas para as crenças
religiosas nessas divindades. Recorde-se que podemos defender que a
justificação não é factiva, o que significa que diferentes pessoas em
diferentes contextos epistémicos podem ter justificação adequada para crer
em divindades diferentes e incompossíveis.
Contudo, a perspectiva que estamos a explorar não defende apenas que
só há fé quando há justificação: defende também que a fé é factiva, pois
defende que a fé é conhecimento, ou um tipo de conhecimento. E é isto que
torna esta concepção implausível, pois significaria que caso a única
divindade que realmente existe seja Diana, por mais genuína que fosse a fé
dos antigos egípcios no deus Rá, por exemplo, ou dos actuais cristãos em
Deus, nenhuma dessas pessoas tinha realmente fé — apenas acreditava
erradamente que a tinha. Isto parece excessivo: quem tem fé numa
divindade que, sem ela o saber, não existe, não parece ter uma fé menos
genuína do que quem tem fé numa divindade que realmente existe. Assim, a
fé, ao contrário do conhecimento, não parece factiva.
Uma saída para esta dificuldade seria sustentar que a fé é um tipo
diferente de conhecimento, que não envolve factividade. Mas isto seria
presumivelmente um mero jogo de palavras, dado que conhecimento
infactivo não é conhecimento, em qualquer acepção relevante do termo: é
mera crença (que pode até estar justificada).
Dado que tanto o conhecimento proposicional como o conhecimento
por contacto são factivos, o mesmo argumento se aplica para refutar a ideia
de que a fé poderia ser conhecimento por contacto: aceitar que a fé é
conhecimento por contacto implica a tese implausível de que a maior parte
da humanidade ao longo da maior parte da história não teve realmente fé,
apesar de pensar que a tinha.
Testemunho e risco epistémico
Aposta momentosa
Racionalidade distribuída
A objecção de Plantinga a Clifford é uma objecção geral a qualquer posição
indiciarista. Consiste em defender que, pelo próprio critério indiciarista, não
devemos acreditar em coisa alguma sem provas; mas não há provas de que
o indiciarismo seja verdadeiro; logo, não devemos acreditar no
indiciarismo.
Esta objecção depende, contudo, de uma concepção muito rígida de
prova, concepção que o próprio Clifford não defendia. Certamente que
Clifford não pensava que o único género de provas eram provas
matemáticas ou científicas. Em muitas matérias, prova-se ideias
argumentando, e os argumentos podem ser muito complexos. Aquilo a que
Clifford claramente se opunha era a crença sem provas, sem quaisquer
razões, só porque se decide arriscar acreditar.
Quando perguntamos se a fé é aceitável na ausência de provas, o termo
«aceitável», neste contexto, quer dizer «epistemicamente legítimo». Esta
expressão é melhor do que «prova», que tem um significado demasiado
restrito. Mas não é fácil saber o que é epistemicamente legítimo e o que o
não é. Para esclarecer este conceito, podemos recorrer a alguns paradigmas
de atitudes epistemicamente legítimas e ilegítimas.
Antes, porém, é importante fazer notar que é argumentável que nem
tudo o que é epistemicamente ilegítimo ou incorrecto é moralmente
ilegítimo ou incorrecto. Sem dúvida que há alguma conexão entre os dois
conceitos; em alguns casos, uma atitude pode ser moralmente incorrecta
precisamente por ser epistemicamente incorrecta; Clifford, todavia, ou
confundia ambos os conceitos ou estabelecia entre ambos uma conexão
excessivamente forte. O argumento de Clifford a favor da ideia de que é
sempre moralmente incorrecto acreditar em algo sem provas é que, mesmo
no caso de uma crença trivial e meramente pessoal, o facto de se acreditar
sem provas torna-nos crédulos e isso acabará por ter efeitos moralmente
maus. Isto é um exagero: é fácil pensar em contextos em que ser crédulo
não terá quaisquer consequências para a humanidade em geral: numa
pequena ilha, um ancião doente alimenta a crença injustificada de que os
seus companheiros serão salvos, mas nada lhes diz e morre pacificamente.
O máximo que se pode defender é que na maior parte dos contextos é uma
má ideia criar hábitos de credulidade, em vez de hábitos de análise
cuidadosa das coisas, porque as consequências, directas ou indirectas, a
curto ou longo prazo, são quase sempre desastrosas.
Por outro lado, podemos considerar que os deveres epistémicos —
procurar honestamente a verdade, não ser tendencioso, etc. — são casos
especiais de deveres morais. Neste caso, é verdadeiro que qualquer violação
de um dever epistémico é, eo ipso, a violação de um dever moral. Mas isto
é um pouco enganador, pois quer apenas dizer que descurar um dever
epistémico é descurar um dever moral: não quer dizer que, ao fazê-lo,
descuramos um dever moral de outra categoria. Por isso, é menos
enganador falar apenas do que é epistemicamente legítimo ou não, em vez
de usar a linguagem de Clifford, na qual não atender aos indícios é
moralmente incorrecto.
Voltemos ao esclarecimento do que é epistemicamente legítimo e
ilegítimo, recorrendo a exemplos claros de ambos. Começando pelo último
caso, é claramente ilegítimo rejeitar quaisquer argumentos contra uma dada
posição, ao mesmo tempo que se aceita o mesmo género de argumentos a
favor dela. Este tipo de ilegitimidade epistémica ocorre quando uma pessoa
põe em causa a ciência ou a lógica, por exemplo, quando estas parecem
militar contra as suas crenças mais queridas, ao mesmo tempo que abraça
ambas calorosamente quando parecem militar a seu favor. Esta
arbitrariedade é claramente ilegítima, epistemicamente, ainda que não
consigamos estabelecer condições necessárias e suficientes do que é uma
atitude epistemicamente legítima. Se uma pessoa considerar que acreditar
sem provas só é epistemicamente legítimo no caso da crença religiosa, há
alguma probabilidade de não ser epistemicamente virtuosa. James, note-se,
apresenta critérios suficientemente gerais que tornariam epistemicamente
legítimo ter qualquer crença, religiosa ou não, sem provas. (A dificuldade,
como vimos, é que em todos os casos não religiosos a crença sem provas só
é legítima quando crer tem uma conexão causal com um resultado
desejável, coisa que não há razões para pensar que ocorre no caso da crença
religiosa.)
Quanto à legitimidade epistémica, esta parece manifestar-se mais
claramente quando alguém muda de ideias por se deparar com razões
adequadas para isso: por exemplo, o João pensava que a Francisca tinha ido
ao cinema, mas ao chegar a casa encontra-a lá e muda por isso de ideias.
Contudo, nem toda a mudança de ideias é epistemicamente legítima:
só o é quando há razões adequadas para isso. Uma pessoa que acreditava
em Deus e deixa de acreditar só porque assistiu a uma palestra de uma hora
sobre o tema poderá não ser epistemicamente virtuosa, mas antes viciosa —
neste caso, por ser leviana.
Assim, o problema é saber o que são «razões adequadas» para mudar
de ideias. No caso do João, a razão adequada é ter visto a Francisca em
casa; mas a visão só em certos casos é fidedigna. Na seguinte imagem, por
exemplo, a segunda linha parece maior do que a primeira, mas ambas têm o
mesmo comprimento:
Assim, nem sempre a simples visão nos dá razões adequadas para
acreditar no que vemos: nos sonhos, também nos parece que vemos muitas
coisas, mas essas coisas podem não existir. Distinguir as condições em que
os dados dos sentidos são fidedignos dos casos em que não o são é por isso
crucial.
A tentação a evitar aqui é pensar como os cépticos, que negam a
possibilidade do conhecimento genuíno. Uma maneira de argumentar a
favor do cepticismo é que as ilusões cognitivas, como as visuais, são
recorrentes e não temos um modo de ter a certeza, perante uma dada crença
ou percepção, se é uma ilusão ou não.
A primeira crítica a fazer ao argumento céptico é que o conceito de
certeza é epistemicamente irrelevante e confuso. O conceito de certeza pode
ser entendido de duas maneiras. Por um lado, podemos conceber a certeza
meramente como uma forte convicção. Neste caso, a certeza é irrelevante
para o que está em causa, porque se podemos estar enganados quando
vemos, também podemos estar enganados quando temos uma forte
convicção de que não estamos enganados quando vemos. É argumentável
que, nesta acepção, a certeza é apenas mais um nível de ilusão epistémica
— como se a forte convicção fosse garantia de que não estamos enganados.
Outra maneira de conceber a certeza é pensar que se trata de estar
certo, no sentido de acertar. Nesta acepção de certeza, por definição,
quando se tem a certeza de algo, é porque se acertou na verdade. Mas nesta
acepção podemos sempre estar enganados: quando pensamos que
acertámos, podemos não ter acertado.
Assim, seja a certeza concebida do primeiro modo ou do segundo, é
irrelevante para a discussão em causa. Parece relevante, porque se confunde
e mistura os dois sentidos: como se acertar implicasse uma convicção mais
forte, e como se esta implicasse acertar. Mas isto é falso: na melhor das
hipóteses, uma convicção mais forte, que se mantém depois de uma
investigação cuidadosa, está correlacionada com maior probabilidade de se
ter acertado, o que é muito diferente de implicar que se acertou.
Seja qual for a concepção de legitimidade epistémica que tenhamos, a
mera certeza não parece relevante: podemos ter a certeza por sermos
casmurros, por exemplo, defendendo firmemente uma ideia contra a qual há
excelentes indícios ou argumentos. Também a mera possibilidade de
estarmos enganados, explorada pelo céptico, não parece relevante para a
ilegitimidade epistémica: do facto de podermos estar enganados não se
segue que estamos enganados, e do facto de não se poder garantir que não
estamos enganados não se segue que qualquer maneira de investigar as
coisas e de formar crenças tem o mesmo grau de legitimidade epistémica.
Não parece haver receitas automáticas para determinar quando um
dado processo de formação de crenças é epistemicamente legítimo, e este é
um dos problemas centrais da epistemologia da fé. Quem defende o
indiciarismo, como Clifford, tende a pensar que nenhuma crença é
epistemicamente legítima sem provas, incluindo as crenças religiosas,
porque tem em mente o género de processo de estabelecimento de verdades
que se usa em medicina, física, biologia, matemática, etc. Quem defende a
posição contrária tem em mente os processos mais quotidianos de formação
de crenças, que incluem coisas como a experiência pessoal, a tradição e a
confiança nos outros, além do poder motivador das crenças.
O indiciarismo está por vezes associado a uma certa ingenuidade
epistémica. A essa ingenuidade epistémica podemos chamar o mito do
investigador solitário. Esta ingenuidade epistémica dá origem a uma versão
infantil de indiciarismo, que é fácil refutar: a ideia de que cada um de nós
só tem legitimidade epistémica para aceitar o que nós mesmos somos capaz
de provar. Muitos crentes consideram, com razão, que esta posição é
insustentável, além de algo cega.
Para ver porquê, considere-se o memorável ensaio de George Orwell,
de 1946, em que ele se pergunta «Como sei que a terra é redonda?».
Rapidamente nos apercebemos que só por testemunho sabemos que a Terra
é esférica, ou que a água é H2O: os professores ou cientistas escreveram isso
ou disseram isso, e nós acreditamos. Não só não temos provas directas
dessas coisas, como a maior parte de nós não saberia estabelecer tais coisas,
mesmo que tivéssemos os meios para isso: eu, por exemplo, não saberia
estabelecer que a água é H2O, mesmo que tivesse acesso a um laboratório de
química. E, apesar de poder viajar num avião ou outro meio de transporte
para poder ver directamente que a Terra é esférica, não saberia dizer se o
que me pareceria visualmente evidente não ficaria a dever-se a alguma
ilusão perceptiva, dado que neste caso eu estaria muito afastado do meu
ambiente perceptivo comum.
Estas considerações parecem militar contra Clifford, mas a sua posição
é mais sofisticada do que isso. Na segunda parte do seu ensaio, Clifford
aborda explicitamente o que acontece quando temos de nos apoiar em
terceiros para justificar as nossas crenças. Este problema torna-se mais
vívido se compararmos estes dois casos: no primeiro, a Josefa vem do
supermercado e diz ao marido: «Afinal, não havia leite, esgotou-se»; no
segundo, a Marília vem também do supermercado e diz ao marido «Afinal,
não havia leite; vieram uns extraterrestres e levaram-no todo». No primeiro
caso, o marido aceita o testemunho da Josefa, sem mais perguntas, e será
capaz de dizer com toda a segurança a outra pessoa, alguns minutos depois,
que não há leite no supermercado porque se esgotou. Mas, no segundo, o
marido da Marília fica estupefacto e começa imediatamente a fazer
perguntas; muitas perguntas. Qual é a diferença?
No primeiro caso, o testemunho da Josefa é banal; no segundo, não é
banal. Aceitamos informações banais por testemunho, sem mais perguntas;
mas quando o testemunho transmite supostas informações que não são
banais, queremos razões mais fortes do que a mera confiança na pessoa.
Neste último caso, queremos algumas razões para pensar que a pessoa não
está a enganar-nos; ou que não se enganou ela, sendo vítima de uma ilusão.
O caso caricatural mais óbvio que esclarece o que está em causa é o
seguinte: passamos na rua e perguntamos as horas a alguém, e confiamos na
resposta; mas perguntamos a essa mesma pessoa se há extraterrestres e, seja
a resposta afirmativa ou não, não confiamos na resposta. Porquê? Clifford
viu porquê: porque num caso a pessoa está a dizer-nos algo que nós
próprios sabemos como podemos saber; no outro, está a dizer-nos algo que
nós mesmos não sabemos como poderíamos saber. Acreditar no testemunho
de alguém que afirma saber algo que não fazemos ideia como nós mesmos
poderíamos saber é credulidade; e, claro, a credulidade é mais tentadora
quando o que essa pessoa nos diz é o que queremos ouvir.
Contudo, não é num certo sentido verdadeiro que muitos de nós não
fazem ideia como seria possível descobrir a composição química da água?
No entanto, confiamos no testemunho dos cientistas. Será isso credulidade?
Se não o for, por que razão seria credulidade acreditar num profeta que
afirma ter tido contacto directo com uma divindade?
Há duas respostas a este desafio. Primeiro, o género de experiência em
causa é muitíssimo diferente. Num caso, trata-se apenas de estudar química,
e isso não exige quaisquer capacidades especiais da nossa parte. Quem
estuda química tem um acesso privilegiado à verdade, mas apenas num
sentido fraco: no mesmo sentido em que se eu estiver a ver uma árvore e a
outra pessoa não, eu tenho um acesso privilegiado à árvore — mas a outra
pessoa teria exactamente o mesmo acesso caso estivesse na minha situação,
vendo a árvore. Contudo, no que respeita a subir a uma montanha e ouvir a
palavra de Deus, as coisas são muito diferentes: não basta subir e ficar à
espera. Milhões de pessoas podem fazer isso e nenhuma voz ouvir. Quem
ouve tais vozes tem um acesso privilegiado à intimidade dos deuses, acesso
que os outros não têm.
Assim, a primeira resposta é que seremos crédulos se acreditarmos
num testemunho que pressupõe que a outra pessoa tem um acesso
privilegiado à verdade, no sentido forte. Isto é credulidade porque a pessoa
poderá ser vítima de alucinação, ainda que seja sincera; ou poderá estar a
mentir, por qualquer motivo. Acresce que qualquer pessoa que pense ouvir
a voz de uma divindade terá pelo menos de levantar a hipótese de estar a ser
vítima de ilusão, se for epistemicamente virtuosa, tal como olhamos com
estupefacção quando vemos coisas incomuns — uma mulher a ser
aparentemente serrada ao meio, num circo, e que, no entanto, continua a
mexer os pés no outro lado da caixa. O que poderá fazer-nos aceitar
prontamente a nossa experiência religiosa, sem um exame cuidadoso, ao
mesmo tempo que não aceitamos a nossa experiência visual de ver uma
mulher ser serrada ao meio e sobreviver, é a credulidade: a vontade de
acreditar no que gostaríamos que fosse verdadeiro.
Um antídoto à credulidade é o seguinte: quanto mais gostaríamos que
algo fosse verdadeiro, mais razões temos para ver cuidadosamente se é
mesmo verdadeiro, ou se estamos a enganar-nos a nós mesmos,
nomeadamente por sermos vítimas da superstição comum de que acreditar
em algo muito firmemente contribui para a sua verdade, ainda que nenhuma
relação causal exista entre uma coisa e outra. Rejeitar este princípio é
incompatível com a virtude epistémica.
A segunda resposta é que a estrutura epistémica da comunidade em
causa é crucial. Tenho razões para aceitar as afirmações de um cientista,
afirmações que pessoalmente não posso testar, se as próprias instituições
científicas tiverem uma estrutura epistémica adequada. Essa estrutura
epistémica resume-se na máxima de John Stuart Mill:
«As nossas crenças mais justificadas não têm qualquer outra garantia
sobre a qual assentar, senão um convite permanente ao mundo inteiro
para provar que carecem de fundamento» (Sobre a Liberdade, 1859, p.
58).
Diversidade epistémica
As considerações da secção anterior dão uma imagem da legitimidade
epistémica muito diferente do que por vezes se pensa. A ideia de que somos
agentes epistémicos sociais e de que estamos continuamente a fazer
controlos e ajustes nas nossas crenças colide com um ponto de vista
comum, na história da filosofia, no que respeita à justificação última das
nossas crenças. Esse ponto de vista tradicional tem a designação de
fundacionalismo. A ideia é que as nossas crenças só têm justificação, na sua
maioria, porque se baseiam noutras, das quais são inferidas. Assim,
acreditamos que não nascemos ontem, por exemplo, porque nos lembramos
de existir há vários anos. Portanto, a crença de que não nascemos ontem
baseia-se noutras crenças. Mas nem todas as crenças poderão basear-se
noutras, sob pena de regressão infinita; logo, algumas crenças são básicas:
crenças que não se baseiam noutras.
Às crenças básicas que são epistemicamente legítimas chama-se
crenças apropriadamente básicas. Determinar que crenças são
apropriadamente básicas é o que o fundacionalista terá de fazer. Quando o
fundacionalista considera que essas crenças básicas não incluem senão
crenças empíricas, é um empirista; quando considera que só incluem
crenças que não são empíricas, é um racionalista.
O fundacionalismo é um ponto de vista muito natural. E parece
particularmente apelativo a quem tem uma mentalidade científica. Neste
caso, a ideia é que as crenças apropriadamente básicas serão perceptivas. A
ciência é então vista como um desenvolvimento de teorias que se baseiam
em crenças perceptivas apropriadamente básicas. Suspeita-se que poderá
haver algo de errado nesta ideia quando consideramos que a agricultura
empírica, pré-científica, se baseia em crenças perceptivas básicas, mas não
tem o poder explicativo nem o grau de sofisticação e precisão que permita
afirmar que é científica. Um agricultor empírico sabe como cultivar um
terreno, mas não sabe explicar por que razão fazendo as coisas de uma
maneira tudo corre bem, mas tudo corre mal se fizermos de outra. Um
agricultor científico sabe explicar, pelo menos parcialmente, por que razão
as coisas funcionam de uma maneira e de outra não.
O que faz a diferença é que a agricultura científica resulta de se testar
explicitamente ideias diferentes e de se procurar activamente explicações
melhores, ao passo que a agricultura empírica consiste quase
exclusivamente na aceitação do que a tradição nos ensinou a fazer, e no que
podemos ver sem recorrer à observação sistemática nem a testes e controlos
explícitos. Assim, o que parece crucial é o carácter activo e temporal dos
nossos procedimentos epistémicos, num caso, e passivo e atemporal, no
outro. O que parece crucial não é, então, o carácter apropriadamente básico
das crenças de partida, nem o seu carácter observacional, mas antes a
atitude activa de procurar controlos e ajustes, ao longo do tempo.
Se rejeitarmos o fundacionalismo, contudo, não teremos de dizer que a
estrutura das nossas crenças é viciosamente circular? Afinal, se não há
crenças apropriadamente básicas com base nas quais estabelecemos as
outras, o que estabelece a verdade de uma crença? Chama-se coerentista à
ideia de que as nossas crenças podem justificar-se entre si sem que tal
círculo seja vicioso. Na teoria coerentista pode-se aceitar que algumas
crenças são mais básicas ou elementares do que outras; mas nega-se que
existam crenças rigorosamente básicas, com base nas quais todas as outras
se justifiquem.
O caso da Josefa, acima, ajuda a compreender o coerentismo: em
alguns contextos, confiamos na nossa memória; noutros, pomos a memória
em causa. Há uma dialéctica contínua entre o que está em causa, o contexto
em que estamos e muitas outras crenças relacionadas com o que está em
causa. Quotidianamente, não parece sensato pôr em causa que a Terra está
imóvel; mas a continuação do nosso estudo da natureza pode fazer-nos
rever esta crença. Para o fazermos, contudo, teremos de ter um conjunto de
outras crenças que julgamos mais sólidas do que essa: podemos rever
qualquer crença, mas não as revemos todas ao mesmo tempo nem à toa,
sem ter em consideração as outras crenças relacionadas. E este processo de
rever crenças é contínuo, decorrendo ao longo do tempo.
Porque somos falíveis, a virtude epistémica exige que estejamos
dispostos a pôr em causa as nossas crenças, incluindo as mais queridas. E é
difícil imaginar contextos epistémicos nos quais a falibilidade humana não
seja evidente. Contudo, em muitos contextos epistémicos, a falibilidade
humana é objecto de ocultação, fingindo-se que certas pessoas ou
instituições são infalíveis, sendo impróprio e até ofensivo e blasfemo pôr
em causa o que essas pessoas e instituições afirmam. Se levarmos a sério a
falibilidade humana, um agente terá tanto menos legitimidade epistémica
para aceitar o que afirma um grupo de pessoas quanto mais essas pessoas
procuram impedir que as suas afirmações sejam postas em causa. E, em
muitos casos, basta que nos perguntemos se as pessoas que afirmam algo
não poderão estar enganadas para destruir a aparência de autoridade
epistémica que fingem deter.
Considere-se o Adelino. Vive numa comunidade tradicional, sem
conhecimentos científicos. Não faz a mínima ideia sobre a constituição da
água, nem sobre a natureza do Sol. Ignora que a Terra não está imóvel, e
parece-lhe óbvio que está imóvel. Mas mesmo ele sabe que somos falíveis,
pois muitas vezes lhe parecia ver ao longe alguém, quando afinal era só
uma árvore; ou parece recordar-se de ter visto uma árvore num dado lugar,
e depois descobre que afinal estava noutro. Além disso, vê que o mesmo
ocorre com as outras pessoas da sua comunidade. Por isso, se reflectir
cuidadosamente, verá que não é só ele que não tem realmente razões de
muito peso para pensar que a Terra está imóvel: ninguém na sua
comunidade as tem. Com respeito a uma crença inócua como esta, o
Adelino talvez esteja disposto a abandoná-la, se com o decorrer do tempo
começar a ter razões para pensar que é falsa. E se não estiver disposto a
isso, será epistemicamente vicioso.
Se considerarmos agora o género de interlocutor que Clifford tem em
mente, vemos muitas diferenças. Clifford fala para ingleses do séc. XIX.
Nesta altura, muitas crenças tradicionais foram postas em causa, à medida
que os estudos cada vez mais complexos prosseguiam. Neste contexto
epistémico, já não é verdadeiro que toda a gente pensa que Deus existe, por
exemplo. Neste contexto, muitos estudiosos declaram-se descrentes. Neste
contexto, nenhum Adelino, educado na fé cristã, pode ficar indiferente
perante a hipótese de estar enganado quando pensa que a divindade cristã
existe; e se o ficar, é porque não é epistemicamente virtuoso.
O primeiro resultado desta análise é que aceitar a tese de Plantinga tem
consequências menos fortes do que se poderia pensar. Tudo o que Plantinga
defende é que em certos contextos é epistemicamente legítimo crer em
Deus sem provas. Mas não mostra que é epistemicamente legítimo crer em
Deus sem provas num contexto em que muitos outros agentes epistémicos
põem a existência de Deus em causa. Só conseguiria mostrar isso se
conseguisse mostrar que as crenças ateias não devem ser tidas em conta
pelos crentes, por qualquer razão. Mas que razão poderemos invocar?
Podemos defender que falta aos descrentes uma faculdade especial, o
sensus divinitatis; ou que esta faculdade foi corrompida pelo pecado. O
problema de qualquer uma destas ideias é não ser mais evidentemente
verdadeira do que a hipótese de que são as pessoas crentes que são vítimas
de ilusão, ou que são epistemicamente viciosas, crendo ser verdadeiro o que
lhes dá jeito crer que é verdadeiro.
Esta será outra discussão; para já, importa apenas mostrar o papel da
diversidade e da tolerância na nossa estrutura epistémica. A diversidade de
pontos de vista é uma ameaça a sistemas de crenças que se protegem
precisamente porque as pessoas que têm essas crenças desconfiam que são
falsas, mas gostariam que fossem verdadeiras. É difícil conceber qualquer
virtude epistémica nesta atitude. Trata-se tão-somente de evitar o incómodo
de ter de mudar de ideias. Quem crê sinceramente que as suas ideias são
verdadeiras não pode sentir-se assustado quando alguém as põe em causa. E
quem ao mesmo tempo crê na sua óbvia falibilidade epistémica, quererá
pô-las em causa, pois se não resistirem ao exame crítico é porque são
provavelmente falsas e devem ser abandonadas.
A diversidade epistémica é por isso saudável, e terá de ser acolhida
com agrado por quem for epistemicamente virtuoso. Cada um de nós pode
pôr em causa as ideias em que acredita, mas a melhor pessoa para o fazer é
o nosso semelhante que desde o início não acredita nessas ideias. Assim,
qualquer crente epistemicamente virtuoso acolhe com agrado os descrentes
que argumentam contra a sua fé; e qualquer descrente epistemicamente
virtuoso acolhe com agrado os crentes que argumentam a favor da fé. O
valor epistémico da diversidade de opiniões é permitir que as ideias mais
díspares sejam defendidas por quem genuinamente acredita nelas. E o
primeiro sinal de vício epistémico é a falta de tolerância, que se revela na
vontade de eliminar ou silenciar quem pensa de maneira diferente de nós,
ou na manipulação da discussão, tornando-a um exercício performativo que
visa cativar e seduzir, e não descobrir a verdade e detectar o erro.
Admitindo que James e Plantinga conseguem resolver as dificuldades
discutidas, o que se segue da aceitação das suas posições é a legitimidade
epistémica de crer sem provas; não se segue das suas posições a
legitimidade de crer com imensa convicção sem provas. Se considerarmos
que crer com imensa convicção é constitutivo da fé, então nenhum destes
dois filósofos foi bem-sucedido em defender a legitimidade epistémica da
fé sem provas.
Conclusão
Ambrose Bierce (1842–1914) definiu a fé como «Crença sem indícios no
que diz quem fala sem conhecimento de coisas sem paralelo».1 Esta
humorística definição caracteriza bem a atitude de muitos descrentes, que
consideram por vezes a fé um paradigma de vício epistémico. Muitos
crentes, por sua vez, consideram que esta atitude é insensível a realidades
mais importantes e profundas, incluindo os aspectos vivenciais de quem
tem uma vida e atitude religiosa. O exame preliminar aqui realizado de
algumas ideias e conceitos centrais desta área poderá ajudar crentes e
descrentes a discutir melhor o tema. Outro não era o objectivo.
2
A ÉTICA DA CRENÇA
W. K. CLIFFORD
1. O dever de investigar
A VONTADE DE ACREDITAR
WILLIAM JAMES
1. Uma opção viva é uma opção em que ambas as hipóteses estão vivas.
Se vos digo: «Sejam teosofistas ou maometanos», trata-se
provavelmente de uma opção morta, porque para vós nenhuma das
hipóteses tem probabilidade de estar viva. Mas se afirmo: «Sejam
agnósticos ou cristãos», a história é outra: dada a vossa formação, cada
hipótese apela, por muito pouco que seja, à vossa crença.
2. De seguida, se vos digo: «Escolham entre sair com ou sem a vossa
umbrela», não vos ofereço uma opção genuína, pois não é forçosa.
Podem facilmente evitá-la não saindo sequer. De igual modo, se digo
«Ou me amam ou me odeiam», «ou consideram a minha teoria
verdadeira ou a consideram falsa», a vossa opção é evitável. Podem
permanecer indiferentes a mim, nem me amando nem me odiando, e
podem recusar-se a emitir qualquer juízo a respeito da minha teoria.
Mas se digo «Ou aceitam esta verdade ou lhe passam ao lado», coloco-
vos uma opção forçosa, pois não há lugar fora da alternativa. Todos os
dilemas baseados numa disjunção lógica completa, sem a possibilidade
de não escolher, são opções deste tipo forçoso.
3. Finalmente, se eu fosse o Dr. Nansen e vos convidasse a juntarem-se à
minha expedição ao Pólo Norte, a vossa opção seria momentosa; pois
provavelmente não voltariam a ter uma oportunidade semelhante, e o
que escolhessem agora ou vos excluiria completamente do tipo de
imortalidade norte-polar ou colocaria pelo menos essa hipótese nas
vossas mãos. Quem recusa uma oportunidade única perde tão
seguramente o prémio como se tivesse tentado e falhado. Per contra, a
opção é trivial quando a oportunidade não é única, quando o que está
em causa é insignificante, ou quando a decisão é reversível se mais
tarde se mostrar insensata. Tais opções triviais abundam na vida
científica. Um químico considera que uma hipótese está
suficientemente viva para passar um ano a verificá-la: acredita nela até
esse ponto. Mas se as suas experiências se mostram duplamente
inconclusivas, perdoa-se a sua perda de tempo, não resultando daí
qualquer mal vital.
II
«O meu único consolo está em observar que, por muito má que a nossa
posteridade venha a ser, enquanto se ativerem à regra simples de não
fingir acreditar naquilo para o qual não dispõem de quaisquer razões,
por lhes poder ser vantajoso fingi-lo [a palavra «fingir» é seguramente
redundante aqui], não terão chegado ao patamar mais baixo da
imoralidade.»
III
Tudo isto nos parece saudável, mesmo quando expresso, como o faz
Clifford, com uma paixão demasiado vocal. O livre-arbítrio e o mero
desejo, no que diz respeito às nossas crenças, parecem estar a mais. No
entanto, se alguém pressupõe de imediato que a penetração intelectual é o
que resta depois de o desejo, a vontade e a preferência sentimental terem
partido, ou que as nossas opiniões passam a ser decididas pela razão pura,
opor-se-ia directamente à realidade dos factos.
São só as nossas hipóteses já mortas que a nossa natureza volitiva é
incapaz de trazer de novo à vida. Mas o que as fez morrer para nós é, na sua
maior parte, uma acção prévia, de tipo antagónico, da nossa natureza
volitiva. Quando digo «natureza volitiva», não me refiro apenas a volições
deliberadas que podem ter estabelecido hábitos de crença aos quais agora
não conseguimos escapar — refiro-me a todos os factores de crença, como
o medo e a esperança, o preconceito e a paixão, a imitação e o partidarismo,
a pressão envolvente da nossa classe e grupo. Na verdade, damos connosco
a acreditar sem saber ao certo como nem porquê. O Sr. Balfour dá o nome
de «autoridade» a todas estas influências, nascidas do clima intelectual, que
tornam as hipóteses possíveis ou impossíveis para nós, vivas ou mortas.
Aqui nesta sala, todos acreditamos em moléculas e na conservação da
energia, na democracia e no progresso necessário, no cristianismo
protestante e no dever de lutar pela «doutrina do imortal Monroe», tudo por
nenhuma razão digna do nome. A claridade interior com que discernimos
estes assuntos não é maior, e talvez até seja menor, do que aquela que
qualquer descrente nos mesmos pode ter. A sua inconvencionalidade teria
provavelmente algumas razões a mostrar a favor das suas conclusões; mas
para nós, não é a ideia sagaz e sim o prestígio das opiniões o que as faz
soltar uma centelha e acender os nossos paióis adormecidos da fé. A nossa
razão satisfaz-se cabalmente, novecentas e noventa e nove em cada mil de
nós, se encontrar alguns argumentos que se possa recitar no caso de alguém
criticar a nossa credulidade. A nossa fé é fé na fé de outrem e, nas questões
mais importantes, é isto sobretudo o que acontece. A nossa crença na
própria verdade, por exemplo, de que há uma verdade, e de que esta e as
nossas mentes foram feitas uma para a outra — o que é senão uma
afirmação apaixonada de desejo, em que o nosso sistema social nos apoia?
Queremos ter uma verdade; queremos acreditar que as nossas experiências,
estudos e discussões têm de nos colocar numa posição cada vez melhor em
direcção à verdade; e nesta linha concordamos resolver as nossas vidas
pensantes. Mas se um céptico pirrónico nos perguntar como podemos saber
tudo isto, poderá a nossa lógica dar-lhe uma resposta? Não! Certamente que
não. Trata-se apenas de uma volição contra outra — nós dispostos a avançar
para uma vida com base numa confiança ou pressuposto que ele, por sua
parte, não se preocupa em fazer.7
Por regra, rejeitamos a crença em todos os factos e teorias para as
quais não temos uso. As emoções cósmicas de Clifford não vêem qualquer
utilidade nos sentimentos cristãos. Huxley ataca duramente os bispos
porque no seu esquema de vida o sacerdócio não tem qualquer utilidade.
Newman, pelo contrário, passa para o catolicismo romano, e encontra todo
o género de boas razões para aí permanecer, porque um sistema sacerdotal é
para ele uma necessidade orgânica e um deleite. Por que são tão poucos os
«cientistas» que chegam sequer a olhar para os indícios a favor da chamada
«telepatia»? Porque pensam que, como um importante biólogo já falecido
me disse uma vez, mesmo se tal coisa fosse verdadeira, os cientistas deviam
unir-se para a manter reprimida e escondida. Esta desfaria a uniformidade
da natureza e todo o género de outras coisas sem as quais os cientistas não
podem levar a cabo as suas actividades investigativas. Mas se a este mesmo
homem se mostrasse algo que ele, como cientista, pudesse fazer com a
telepatia, talvez não só examinasse os indícios como até os considerasse
suficientemente bons. Esta mesma lei que os lógicos nos impõem — se me
permitem chamar «lógicos» a todos os que nesta questão excluiriam a nossa
natureza volitiva — em nada se baseia senão no seu próprio desejo natural
de excluir todos os elementos nos quais, na sua qualidade profissional de
lógicos, não conseguem ver qualquer utilidade.
É claro, portanto, que a nossa natureza inintelectual influencia as
nossas convicções. Há tendências passionais e volições que ocorrem antes
da crença, outras que surgem depois, e só as últimas entram em cena
demasiado tarde; e não entram demasiado tarde quando o trabalho passional
prévio já as vinha preparando. O argumento de Pascal, em vez de não ter
força, parece assim um tira-teimas como os outros, e é a última estocada
necessária para tornar completa a nossa fé nas missas e na água benta. É
evidente que este estado de coisas nada tem de simples; a mera penetração
intelectual e a lógica, seja o que for que possam fazer idealmente, não são
as únicas coisas que de facto produzem as nossas crenças.
IV
O nosso dever seguinte, tendo reconhecido este estado de coisas misturado,
é perguntar se é ou não simplesmente repreensível e patológico, ou se, pelo
contrário, temos ou não de o tratar como um elemento normal ao tomar
decisões. A tese que defendo é, em poucas palavras, a seguinte: A nossa
natureza passional não só pode, legitimamente, como deve decidir uma
opção entre proposições, sempre que se trata de uma opção genuína que
não pode, pela sua natureza, ser decidida numa base intelectual; pois
afirmar, em tais circunstâncias, «Não decidas, deixa a questão em aberto»,
é em si uma decisão passional — tal como decidir pelo sim ou pelo não — e
tem o mesmo risco de perder a verdade. A tese aqui expressa
abstractamente tornar-se-á em breve, espero, bastante clara. Mas antes
tenho de me demorar um pouco mais no trabalho preliminar.
VI
Mas agora, visto que todos somos tais absolutistas por instinto, o que
devemos fazer, na qualidade de estudantes de filosofia, acerca deste facto?
Devemos defendê-lo e sancioná-lo? Ou tratá-lo-emos como uma fraqueza
da nossa natureza, da qual temos de nos libertar, caso o possamos fazer?
Creio sinceramente que o último procedimento é o único que podemos
adoptar enquanto homens de reflexão. Os indícios objectivos e a certeza são
sem dúvida excelentes ideais com que brincar, mas onde, neste planeta
iluminado pela Lua e visitado por sonhos, os encontramos? Eu próprio sou,
portanto, um completo empirista no que diz respeito à minha teoria do
conhecimento humano. Vivo, certamente, de acordo com a fé prática de que
temos de continuar a experimentar e a reflectir sobre a nossa experiência,
pois só assim as nossas opiniões se podem aproximar da verdade; mas creio
que a atitude de adoptar qualquer uma delas — é-me de todo indiferente
qual — como se jamais pudesse ser reinterpretável ou corrigível, é um
tremendo equívoco, e penso que toda a história da filosofia me irá
corroborar. Não há senão uma verdade indefectivelmente certa, que o
próprio cepticismo pirrónico deixa de pé — a verdade de que o fenómeno
presente da consciência existe. Isso, contudo, é o ponto de partida nu do
conhecimento, a mera admissão de uma matéria acerca da qual filosofar. As
diversas filosofias são meras tentativas de exprimir o que esta matéria
realmente é. E se vamos às nossas bibliotecas quanto desacordo
descobrimos! Onde se encontra uma resposta indubitavelmente verdadeira?
Além de proposições abstractas comparativas (tais como «dois mais dois é
igual a quatro»), proposições que em si mesmas nada nos dizem acerca da
realidade concreta, não encontramos qualquer proposição que alguém tenha
considerado evidentemente certa ao ponto de nunca a terem declarado uma
falsidade, ou pelo menos cuja verdade nunca foi seriamente questionada por
outrem. Transcender os axiomas da geometria, não a brincar, mas a sério,
por parte de alguns dos nossos contemporâneos (como Zöllner e Charles H.
Hinton), e a rejeição de toda a lógica aristotélica pelos hegelianos, são
exemplos flagrantes a este respeito.
Nenhum teste concreto daquilo que é realmente verdadeiro foi alguma
vez objecto de consenso. Alguns tornam o critério externo ao momento da
percepção, colocando-o na revelação, no consensus gentium, nos instintos
do coração ou na experiência sistematizada do género humano. Outros
transformam o momento perceptivo em teste de si próprio — Descartes, por
exemplo, com as suas ideias claras e distintas garantidas pela veracidade de
Deus; Reid com o seu «senso comum»; e Kant com as suas formas do juízo
sintético a priori. O carácter inconcebível do oposto; a capacidade de ser
verificado pelos sentidos; a posse de unidade orgânica completa ou auto-
relação, realizada quando uma coisa é o seu próprio outro — são cânones
que foram, por sua vez, usados. Os louvadíssimos indícios objectivos não
estão, triunfalmente, em lado algum; é uma mera aspiração ou Grenzbegriff,
assinalando o ideal infinitamente remoto da nossa vida pensante. Afirmar
que determinadas verdades agora o possuem é simplesmente afirmar que,
quando as consideramos verdadeiras, e são verdadeiras, os indícios a seu
favor são objectivos e de contrário não. Mas na prática, a nossa convicção
de que os indícios por que nos guiamos são da variedade genuinamente
objectiva, é apenas mais uma opinião subjectiva que se acrescenta às outras.
Pois já se reivindicou a objectividade dos indícios favoráveis e a certeza
absoluta para uma tão grande variedade de opiniões contraditórias! O
mundo é inteiramente racional — a sua existência é um facto bruto último;
há um Deus pessoal — um Deus pessoal é inconcebível; há um mundo
físico extramental imediatamente conhecido — a mente apenas pode
conhecer as suas próprias ideias; existe um imperativo moral — a obrigação
é apenas o resultado dos desejos; há em todos um princípio espiritual
permanente — há apenas estados mentais inconstantes; há uma cadeia
interminável de causas — há uma primeira causa absoluta; uma necessidade
eterna — uma liberdade; um propósito — nenhum propósito; um Uno
primordial — um Múltiplo primordial; uma continuidade universal — uma
descontinuidade essencial nas coisas; uma infinidade — nenhuma
infinidade. Há isto — há aquilo; nada há, na verdade, que alguém não tenha
considerado absolutamente verdadeiro, ao passo que o seu vizinho o
considerou absolutamente falso; e nenhum absolutista entre eles parece ter
alguma vez considerado que o problema pode ter sido sempre essencial e
que o intelecto, mesmo com a verdade directamente ao seu alcance, pode
não ter qualquer sinal infalível para saber se é ou não verdadeiro.
Efetivamente, quando recordamos que a mais flagrante aplicação prática à
vida da doutrina da certeza objectiva foi o trabalho consciencioso do Santo
Ofício da Inquisição, sentimo-nos menos tentados do que nunca a ouvir
com bonomia tal doutrina.
Mas observem agora, peço-vos, que quando, na qualidade de
empiristas, abandonamos a doutrina da certeza objectiva, não deixamos por
isso de procurar a verdade em si ou ter esperança nela. Ainda depositamos a
nossa fé na sua existência e ainda acreditamos que conseguimos progredir
cada vez mais na sua direcção, continuando sistematicamente a acumular
experiências e a pensar sobre elas. A grande diferença entre nós e o
escolástico está no lado para o qual nos voltamos. A força do seu sistema
está nos princípios, na origem, no terminus a quo do seu pensamento; para
nós a força está no resultado, no desfecho, no terminus ad quem. O decisivo
não é de onde vem, mas aonde conduz. Não importa a um empirista qual a
procedência de uma hipótese que se lhe depara: pode tê-la obtido por meios
justos ou ilícitos; pode ter-lhe sido sussurrada pela paixão ou sugerida pelo
acaso; mas se a direcção total do pensamento continuar a confirmá-lo, é isso
o que significa dizer que é verdadeiro.
VII
Um aspecto ainda, pequeno, mas importante, e concluímos os nossos
preliminares. Há duas maneiras de encarar o nosso dever, no que diz
respeito à opinião — maneiras completamente diferentes e, no entanto,
maneiras a cuja diferença a teoria do conhecimento parece ter dado até
agora muito pouca atenção. Temos de saber a verdade; temos de evitar o
erro — estes são os nossos primeiros e grandiosos mandamentos, como
pretendentes ao conhecimento; mas não são duas maneiras de afirmar um
mesmo mandamento, são duas leis distintas. Embora possa de facto
acontecer que acreditar na verdade A tenha a consequência lateral de nos
livrarmos de acreditar na falsidade B, quase nunca se dá o caso de
acreditarmos necessariamente em A apenas por não acreditarmos em B.
Podemos, ao evitar B, acabar acreditando noutras falsidades, C ou D, tão
más como B; ou podemos evitar B tão-pouco acreditando seja no que for,
nem mesmo em A.
Acreditem na verdade! Evitem o erro! — Estas, como se vê, são duas
leis materialmente diferentes; e ao escolher entre elas podemos acabar por
dar uma tonalidade diferente a toda a nossa vida intelectual. Podemos
encarar a caça à verdade como primordial e a fuga ao erro como secundária;
ou podemos, por outro lado, tratar a fuga ao erro como algo mais
imperativo e deixar a verdade correr os seus riscos. Clifford, na instrutiva
passagem que citei, exorta-nos a escolher o segundo caminho. Não
acreditem em coisa alguma, diz-nos, mantenham para sempre a mente em
suspenso, em vez de, cingindo-se a indícios insuficientes, incorrer no
terrível risco de acreditar numa mentira. Vocês, por outro lado, podem
pensar que o risco de cair em erro é algo de somenos importância por
comparação à bênção do conhecimento genuíno, e aceitar serem enganados
muitas vezes na vossa investigação em vez de adiar indefinidamente a
hipótese de acertar na verdade. Por mim considero impossível acompanhar
Clifford. Temos de recordar que estes sentimentos sobre o nosso dever
perante a verdade ou o erro são, em todo o caso, apenas expressões da nossa
vida passional. Biologicamente consideradas, as nossas mentes são tão
aptas a destilar a falsidade como a veracidade, e quem afirma «Antes passar
toda a vida sem crenças do que acreditar numa mentira!» apenas mostra o
seu preponderante horror privado de se tornar um palerma. Pode ser crítico
relativamente a muitos dos seus desejos e medos, mas a este medo obedece
servilmente. Não pode imaginar que alguém questione a sua força
vinculadora. Da minha parte, tenho também horror a ser intrujado; mas
acredito que neste mundo podem acontecer coisas piores a um homem além
de ser intrujado: pelo que a exortação de Clifford tem uma ressonância
completamente fantástica nos meus ouvidos. É como um general que diz os
seus soldados que mais vale evitar eternamente a batalha do que arriscar
uma única ferida. Não se consegue assim vitórias sobre inimigos ou sobre a
natureza. Os nossos erros não são com certeza coisas tão horrivelmente
solenes. Num mundo onde estamos tão certos de incorrer neles, por muito
prudentes que sejamos, uma certa ligeireza de espírito parece mais saudável
do que este nervosismo exagerado por sua causa. Em todo o caso, parece o
mais apropriado ao filósofo empirista.
VIII
E agora, depois de toda esta introdução, passemos de imediato à nossa
questão. Afirmei, e agora repito, que não só vemos que, na realidade, a
nossa natureza passional influencia as nossas opiniões como que há opções
entre opiniões em que se tem de encarar esta influência como um factor
determinante, tanto inevitável como legítimo, da nossa escolha.
Receio neste ponto que alguns dos que me ouvem começarão a farejar
o perigo, interpretando-me então de modo não caridoso. Dois primeiros
passos da paixão tiveram de facto de admitir como necessários — temos de
pensar de maneira a evitar a intrujice, e temos de pensar de modo a obter a
verdade; mas o caminho mais seguro para essas consumações ideais,
considerarão muito provavelmente, é de agora em diante não dar mais
passos passionais.
Bom, claro que concordo, tanto quanto os factos o permitirem. Sempre
que a opção entre perder a verdade e ganhá-la não é momentosa, podemos
deitar fora a hipótese de obter a verdade e, em qualquer circunstância,
salvaguardar-nos de qualquer hipótese de acreditar em falsidades, não
decidindo sequer antes de haver indícios objectivos disponíveis. Nas
questões científicas, isto é quase sempre assim; e mesmo nos assuntos
humanos em geral, poucas vezes a necessidade de agir é tão urgente que
faça uma falsa crença sobre a qual basear a acção ser melhor do que
nenhuma crença sequer. Os tribunais, de facto, têm de decidir com base nos
melhores indícios que se pode obter no momento, porque o dever de um
juiz é tanto fazer a lei como averiguá-la, e (como me disse em tempos um
juiz de grande erudição) poucos são os casos em que vale a pena perder
muito tempo: o importante é decidi-los com base em qualquer princípio
aceitável, e passar adiante. Mas na nossa relação com a natureza objectiva
somos obviamente registadores e não produtores da verdade; e decisões
tomadas apenas em função de decidir prontamente e passar à próxima tarefa
seriam completamente deslocadas. Em toda a amplitude da natureza física
os factos são o que são, independentemente de nós, e raramente há a
propósito deles uma urgência tal que tenha de se enfrentar os riscos de ser
enganado por acreditar numa teoria prematura. As questões aqui são sempre
opções triviais, as hipóteses dificilmente estão vivas (em todo o caso, não
estão vivas para nós espectadores), a escolha entre acreditar na verdade ou
na falsidade raramente é forçosa. A atitude do equilíbrio céptico é, portanto,
absolutamente sensata, para que evitemos os erros. Que diferença realmente
fará para a maior parte de nós se temos ou não uma teoria dos raios
Röntgen, se acreditamos ou não na substância mental, se temos ou não
convicções acerca da causalidade dos nossos estados conscientes? É
indiferente. Tais opções não são forçosas para nós. Em todos os aspectos, é
melhor não as fazer, continuando, todavia, a pesar as razões pro et contra de
modo indiferente.
Falo aqui, é claro, da mente puramente judicativa. No que interessa à
descoberta, tal indiferença não é tão fortemente recomendável, e a ciência
estaria muito menos avançada do que está se se mantivesse fora de cena os
desejos inflamados dos indivíduos em ver confirmada a sua própria fé.
Veja-se, por exemplo, a sagacidade que Spencer e Weismann agora exibem.
Por outro lado, se querem um perfeito bronco a investigar, têm, afinal, de
escolher o homem que não tem qualquer interesse nos resultados: é o inepto
autorizado, o tolo genuíno. O investigador mais útil, porque é o observador
mais sensível, é sempre aquele cujo interesse ardente num dos lados da
questão é equilibrado por um nervosismo igualmente intenso, para que não
se deixe iludir.8 A ciência organizou este nervosismo tornando-o uma
técnica normal, o seu chamado «método de verificação»; e apaixonou-se
tão profundamente pelo método que se pode mesmo afirmar que parou de
se preocupar com a verdade por si, de todo em todo. É apenas a verdade
enquanto tecnicamente verificada que lhe interessa. A verdade das verdades
podia assumir uma forma meramente afirmativa e ela recusaria tocar-lhe. A
ciência podia repetir com Clifford que tal verdade seria roubada em
desrespeito ao seu dever perante a humanidade. As paixões humanas,
todavia, são mais fortes do que as regras técnicas. «Le coeur a ses raisons»,
como afirma Pascal, «que la raison ne connaît point»; e por muito que o
árbitro, o intelecto abstracto, seja indiferente a tudo excepto as simples
regras do jogo, os jogadores concretos que lhe dão os materiais para julgar
estão normalmente, cada um deles, apaixonados pela sua própria «hipótese
viva» de estimação. Concordemos, todavia, que sempre que não haja uma
opção forçosa, o intelecto friamente judicativo, desprovido de qualquer
hipótese de estimação, salvaguardando-nos, como faz, do engano, em todo
o caso, deve ser o nosso ideal.
Levanta-se em seguida a questão: não haverá algures opções forçosas
nas nossas questões especulativas, e será que podemos (como homens que
talvez estejam pelo menos tão interessados em obter positivamente a
verdade como em meramente evitar o engano) esperar sempre impunemente
até que tenham chegado os indícios coercivos? Parece a priori improvável
que a verdade se ajustasse assim tão bem às nossas necessidades e poderes.
Na grande hospedaria da natureza, raramente os bolos, a manteiga e o
xarope ficam tão suaves e deixam os pratos tão limpos. Na verdade,
devíamos encará-los com desconfiança científica se o fizessem.
IX
As questões morais apresentam-se imediatamente como questões cuja
solução não pode esperar por uma prova tangível. Uma questão moral não é
sobre o que tangivelmente existe, mas sobre o que é bom, ou seria bom se
existisse. A ciência pode dizer-nos o que existe; mas para comparar os
valores, tanto daquilo que existe como do que não existe, temos de
consultar não a ciência mas aquilo a que Pascal chama o nosso «coração».
A própria ciência consulta o coração quando estabelece que a infinita
averiguação dos factos e a correcção das crenças falsas são os bens
supremos para o homem. Desafie-se a afirmação e a ciência só pode repeti-
la de modo oracular, ou então prová-la, mostrando que tal confirmação e
correcção trazem ao homem todo o género de outros bens que o coração do
homem por sua vez declara. A questão de ter crenças morais, de todo em
todo, ou de não as ter, é decidida pela nossa vontade. Serão as nossas
preferências morais verdadeiras ou falsas, ou serão apenas fenómenos
biológicos peculiares, tornando as coisas boas ou más para nós, mas
indiferentes em si? Como pode o vosso puro intelecto decidir? Se o vosso
coração não quer um mundo de realidade moral, a vossa cabeça
seguramente nunca vos fará acreditar num. O cepticismo mefistofélico, na
verdade, satisfará os instintos lúdicos da cabeça muito melhor do que
qualquer idealismo rigoroso. Alguns homens (mesmo em idade estudantil)
são tão naturalmente frios que a hipótese moral nunca tem para eles
qualquer vida pungente, e na sua presença altiva o moralista ardente sente-
se sempre estranhamente pouco à vontade. A aparência de conhecimento
está do lado daqueles, a naiveté e a credulidade do lado deste. Contudo, no
seu coração mudo, este agarra-se à convicção de que não é um palerma e
que há um domínio em que (como afirma Emerson) toda a perspicácia e
superioridade intelectual daqueles não valem mais do que a astúcia de uma
raposa. O cepticismo moral não é mais fácil de refutar ou provar através da
lógica do que o cepticismo intelectual. Quando sustentamos que há verdade
(seja de que tipo for), fazemo-lo com toda a nossa natureza, e decidimos
ficar de pé ou cair, consoante os resultados. O céptico, com toda a sua
natureza, adopta a atitude da dúvida: mas qual de nós é o mais sensato, só a
Omnisciência sabe.
Passemos agora destas questões amplas sobre o bem para certa classe
de questões de facto, questões respeitantes a relações pessoais, estados
mentais entre um homem e outro. Gostam de mim ou não? — por exemplo.
Se gostam ou não, dependerá, em inúmeras circunstâncias, de chegar a
acordo convosco, da minha disposição para pressupor que devem gostar de
mim e de vos mostrar alguma confiança e expectativa. O que vos faz
simpatizar comigo, em muitos casos, é a fé prévia que tenho em como o
farão. Mas se me mantenho à distância e recuso mover-me um só
centímetro antes de ter indícios objectivos, antes de terem feito algo
apropriado, como dizem os absolutistas, ad extorquendum assensum meum,
aposto que a vossa simpatia nunca se manifestará. Quantos corações de
mulher se deixam conquistar pela mera insistência confiante de um homem
em como têm de o amar! Não aceitará a hipótese de que não o podem fazer.
O desejo por certo tipo de verdade provoca aqui a existência dessa verdade
especial; e assim é em inúmeros casos diferentes. Quem ganha promoções,
favores, nomeações, senão o homem em cuja vida se vê que estas coisas
desempenham o papel de hipóteses vivas, que conta com elas, sacrifica
outras coisas por causa delas antes de as ter à vista e se arrisca de antemão
por elas? A sua fé age sobre os poderes acima de si como uma
reivindicação, e cria a sua própria verificação.
Um organismo social de qualquer género que seja, pequeno ou grande,
é o que é porque cada membro cumpre o seu dever confiante de que os
outros cumprirão o deles. Sempre que se alcança um resultado desejado
pela cooperação de muitas pessoas independentes, a sua existência factual é
uma pura consequência da fé prévia que as pessoas imediatamente
envolvidas têm umas nas outras. Um governo, um exército, um sistema
comercial, um navio, um colégio, uma equipa de atletas, todos existem sob
esta condição, sem a qual não só nada se alcança, como nada alguma vez se
procura alcançar. Um comboio inteiro de passageiros (que individualmente
são bastante corajosos) será saqueado por um punhado de salteadores,
simplesmente porque os últimos podem contar uns com os outros, enquanto
cada passageiro receia que ao encetar um movimento de resistência, será
baleado antes que mais alguém o ajude. Se acreditássemos que todos os
passageiros se levantariam ao mesmo tempo connosco, cada um levantar-
se-ia individualmente, e jamais se tentaria assaltar comboios. Há, portanto,
casos em que um facto não se pode sequer dar a menos que exista uma fé
preliminar no seu advento. E onde a fé num facto pode ajudar a criar esse
facto, uma lógica segundo a qual a fé que se adianta aos indícios científicos
é o «tipo mais baixo de imoralidade» em que um ser pensante pode incorrer,
seria uma lógica doente. No entanto, tal é a lógica pela qual os nossos
absolutistas científicos pretendem regular as nossas vidas!
X
Nas verdades que dependem da nossa acção pessoal, portanto, a fé baseada
no desejo é certamente algo legítimo e possivelmente indispensável.
Mas agora, dir-se-á, tudo isto são puerilidades humanas, e nada têm a
ver com as grandes questões cósmicas, como a questão da fé religiosa.
Passemos então a essas. As religiões diferem tanto nas suas características
acidentais que ao discutir a questão religiosa temos de a tornar muito
genérica e lata. O que entendemos então agora por «hipótese religiosa»? A
ciência diz que as coisas são; a moralidade diz que umas coisas são
melhores do que outras; e a religião diz essencialmente duas coisas.
Em primeiro lugar, a religião afirma que as coisas melhores são as
mais eternas, as que se sobrepõem, as coisas que no universo lançam a
última pedra, por assim dizer, e dão a última palavra. «A perfeição é eterna»
— esta expressão de Charles Secrétan parece uma boa maneira de colocar
esta primeira afirmação da religião, uma afirmação que obviamente não
pode ainda ser cientificamente verificada, de todo em todo.
A segunda afirmação da religião é que mesmo agora ficamos melhor
se acreditarmos na sua primeira afirmação.
Consideremos agora quais são os elementos lógicos desta situação no
caso de a hipótese religiosa em ambas as suas ramificações ser realmente
verdadeira. (Evidentemente, temos de admitir à partida essa possibilidade.
Para discutirmos a questão, de todo em todo, esta tem de envolver uma
opção viva. Se para qualquer um de vocês a religião é uma hipótese que não
pode ser verdadeira segundo qualquer possibilidade viva, não precisam de ir
mais longe. Falo apenas para as «excepções que restarem».) Procedendo
assim, vemos, em primeiro lugar, que a religião se oferece como uma opção
momentosa. Supostamente ganhamos, agora mesmo, ao acreditar, e
perdemos ao não acreditar, um certo bem vital. Em segundo lugar, a religião
é uma opção forçosa, no que diz respeito a esse bem. Não podemos evitar a
questão permanecendo cépticos e esperando que se faça mais luz, porque,
embora assim evitemos realmente o erro no caso de a religião ser contrária
à verdade, perdemos o bem, no caso de ser verdadeira, tão seguramente
como se de facto escolhêssemos não acreditar. É como se um homem
hesitasse indefinidamente em pedir uma mulher em casamento, por não ter
a certeza absoluta de que depois de a levar para casa ela continua a ser um
anjo. Não estará a privar-se dessa possibilidade angélica particular tão
decisivamente como se casasse com outra pessoa? O cepticismo, portanto,
não consiste em evitar a opção; é a opção por certo tipo particular de risco.
Antes arriscar não acertar na verdade do que a hipótese de cair em erro —
esta é a posição exacta do nosso vetante da fé. Arrisca-se activamente tanto
quanto o crente; está a apostar todos os cavalos contra o cavalo da hipótese
religiosa, tal como um crente aposta na hipótese religiosa contra todos os
outros cavalos. Pregar-nos o cepticismo como um dever até se encontrar
«indícios suficientes» a favor da religião, equivale, portanto, a dizer-nos
que, na presença da hipótese religiosa, é mais sensato e melhor ceder ao
nosso medo de que esta seja errónea do que ceder à nossa esperança de que
pode ser verdadeira. Não se trata do intelecto contra todas as paixões,
portanto; trata-se apenas do intelecto com uma paixão impondo a sua lei. E
por que meio, em boa verdade, se garante a suprema sabedoria desta
paixão? Logro por logro, que prova há de que o logro que resulta da
esperança é pior do que o que resulta do medo? Por mim, não vejo prova
alguma; e simplesmente recuso obedecer à ordem do cientista para imitar o
seu tipo de opção, num caso em que o meu próprio interesse é
suficientemente importante para me dar o direito de escolher a minha
própria forma de risco. Se a religião for verdadeira e os indícios a seu favor
ainda insuficientes, não desejo, deixando que extingam as chamas da minha
natureza (que me parece afinal ter algo a ver com este assunto), abdicar da
minha única oportunidade na vida de entrar para o lado vencedor —
dependendo essa oportunidade, evidentemente, da minha disposição para
correr o risco de agir como se a minha necessidade passional de
compreender religiosamente o mundo possa ser profética e correcta.
Tudo isto supondo que pode realmente ser profética e correcta, e que,
mesmo para nós, que discutimos o assunto, a religião é uma hipótese viva
que pode ser verdadeira. Para a maioria de nós, a religião surge-nos de outra
maneira ainda, que torna ainda mais ilógico um veto à nossa fé activa. O
aspecto mais perfeito e eterno do universo é representado nas nossas
religiões como algo que tem uma forma pessoal. Quando se é religioso, o
universo não é mais um mero Isso, mas um Tu, para nós; e qualquer relação
que pode ser possível entre pessoas pode também ser possível aqui. Por
exemplo, embora num sentido sejamos parcelas passivas do universo,
noutro sentido mostramos uma curiosa autonomia, como se fôssemos
pequenos centros activos autónomos. Sentimos, além disso, que é como se
o apelo que sentimos da religião se exercesse sobre a nossa boa vontade
activa, como se os indícios pudessem ficar para sempre escondidos de nós a
menos que percorramos metade do caminho na sua direcção. Tomando
numa ilustração trivial: tal como um homem que numa companhia de
cavalheiros não tomasse quaisquer iniciativas, pedisse uma garantia por
cada concessão, e não acreditasse na palavra de quem quer que fosse sem
provas, privar-se-ia, com tal rudeza, de qualquer gratificação social a que
um espírito mais confiante teria acesso — também aqui, quem se fecha
numa atitude lógica resmungona e tenta fazer os deuses arrancar o seu
reconhecimento contra a sua vontade, não o obtendo de outro modo, pode
perder para sempre a sua única oportunidade de travar conhecimento com
os deuses. Este sentimento, que nos é imposto sem que saibamos de onde
vem, de que ao acreditar obstinadamente que há deuses (embora não o fazer
fosse tão fácil tanto para a nossa lógica como para a nossa vida) prestamos
ao universo o mais profundo serviço de que somos capazes, parece parte da
essência viva da hipótese religiosa. Se a hipótese fosse verdadeira em todas
as suas partes, incluindo esta, então o puro intelectualismo, com o seu veto
a que tomemos iniciativas voluntárias, seria um absurdo; e exigir-se-ia
logicamente alguma participação da nossa empatia natural. Eu, portanto,
por mim, não consigo ver-me aceitar as regras agnósticas para a procura da
verdade, ou concordar voluntariamente em manter a minha natureza
volitiva fora de jogo. Não o posso fazer por esta razão simples: uma regra
de pensamento que me impediria em absoluto de reconhecer certos tipos de
verdade se esses tipos de verdade estiverem realmente lá, seria uma regra
irracional. Isto, para mim, é tudo o que há a dizer sobre a lógica formal da
situação, independentemente dos tipos de verdade que possam
materialmente existir.
Confesso que não vejo como se pode escapar a esta lógica. Mas a triste
experiência faz-me recear que alguns de vocês ainda possam inibir-se de
afirmar radicalmente comigo, in abstracto, que temos o direito de acreditar
por nossa conta e risco em qualquer hipótese que esteja suficientemente
viva para ser uma tentação para a nossa vontade. Suspeito, contudo, que se
isto for assim, é porque se afastaram completamente do ponto de vista
lógico abstracto e pensam (talvez sem se aperceberem) em alguma hipótese
religiosa particular que para vós está morta. Aplicam a liberdade de
«acreditar no que se quer» a alguma superstição patente; e a fé em que
pensam é a fé definida pelo aluno quando disse: «A fé é quando
acreditamos numa coisa que sabemos não ser verdadeira». Não posso senão
repetir que isto é um equívoco. In concreto, a liberdade de acreditar só pode
abranger opções vivas que o intelecto do indivíduo não pode resolver por si;
e as opções vivas nunca parecem absurdas a quem as tem em consideração.
Quando olho para a questão religiosa tal como se coloca realmente a
homens concretos, e quando penso em todas as possibilidades que envolve,
tanto prática como teoricamente, esta ordem de pôr um travão ao nosso
coração, instintos e coragem, e esperar — agindo evidentemente entretanto
mais ou menos como se a religião não fosse verdadeira9 — até ao dia do
juízo, ou até ao dia em que o nosso intelecto e sentidos, trabalhando
conjuntamente, possam ter adquirido indícios suficientes — esta ordem,
digo, parece-me o ídolo mais bizarro que se fabricou na caverna filosófica.
Fôssemos absolutistas escolásticos, talvez tivéssemos uma desculpa maior.
Se tivéssemos um intelecto infalível, com as suas certezas objectivas,
podíamo-nos sentir desleais perante um órgão de conhecimento tão perfeito
ao não confiar exclusivamente nele, não esperando pela sua palavra
libertadora. Mas se somos empiristas, se acreditamos não haver em nós
quaisquer sinos a tocar a rebate quando estamos perante a verdade, parece
que pregar tão solenemente que temos o dever de aguardar pelo toque do
sino não passa de uma excentricidade vã. Na verdade, podemos aguardar, se
quisermos — espero que não pensem que o nego — mas se o fizermos,
fazemo-lo por nossa conta e risco, tal como se acreditássemos. Em todo o
caso agimos, tomando as rédeas da nossa própria vida. Nenhum de nós
devia impor vetos aos outros, nem trocar palavras agressivas. Devemos,
pelo contrário, respeitar delicada e profundamente a liberdade mental de
cada um: só então realizaremos a república intelectual, só então teremos
aquele espírito de tolerância interior sem o qual toda a tolerância exterior se
torna oca, e que é a glória do empirismo; só então viveremos e deixaremos
viver, tanto nas coisas especulativas como nas práticas.
Comecei com uma referência a Fitzjames Stephen; permitam-me que
termine citando-o:
6. Deus fala-me,
7. Deus criou tudo isto,
8. Deus desaprova o que fiz,
9. Deus perdoa-me, e
10. Há que agradecer a Deus e louvá-lo.
11. Há árvores,
12. Há outras pessoas, e
13. O mundo existe há mais de 5 minutos.
ao contrário do que parece, tem sentido? Claro que não. Mas nesse caso o
mesmo se aplica ao epistemólogo reformista; o facto de rejeitar o critério da
basicidade apropriada do fundacionalista clássico não significa que está
obrigado a supor que qualquer coisa é apropriadamente básica.
Mas qual é então o problema? Será porque o epistemólogo reformista
não só rejeita aqueles critérios para a basicidade apropriada, como não
parece sentir qualquer urgência de apresentar aquilo que considera um
melhor substituto? Se não tem qualquer critério semelhante, como pode
rejeitar honestamente a crença na Grande Abóbora como apropriadamente
básica?
Esta objecção trai um importante erro de perspectiva. Como chegamos
correctamente a critérios de significado, ou crença justificada, ou basicidade
apropriada? De onde vêm? Será que temos de ter tal critério antes de
podermos sensatamente fazer quaisquer juízos — positivos ou negativos —
acerca da basicidade apropriada? Seguramente que não. Suponhamos que
não conheço um substituto satisfatório para os critérios propostos pelo
fundacionalismo clássico; estou, não obstante, inteiramente no meu direito
ao defender que determinadas proposições não são apropriadamente básicas
em determinadas condições. Algumas proposições parecem auto-evidentes
quando na verdade não são; é essa a lição de alguns dos paradoxos de
Russell! Não obstante, seria irracional aceitar como básica a negação de
uma proposição que nos parece auto-evidente. De igual modo, suponha que
lhe parece ver uma árvore; seria então irracional aceitar como básica a
proposição segundo a qual não vê uma árvore; ou de que não há quaisquer
árvores. Da mesma maneira, ainda que não conheça qualquer critério de
significado esclarecedor, posso declarar bastante apropriadamente que 17,
acima, não significa coisa alguma.
E isto levanta uma importante pergunta — que Roderick Chisholm nos
ensinou a fazer. Qual é o estatuto dos critérios para o conhecimento, ou
basicidade apropriada, ou crença justificada? Tipicamente, são afirmações
universais. O critério fundacionalista moderno para a basicidade apropriada,
por exemplo, é duplamente universal:
Mas como se pode saber tal coisa? Quais são as suas credenciais? Sem
sombra de dúvida, 18 não é auto-evidente ou apenas obviamente
verdadeira. Mas se não é, como se chega a ela? De que género são os
argumentos apropriados? Claro que um fundacionalista pode achar 18 tão
atraente que simplesmente a aceita como verdadeira, nem apresentando
argumentos a seu favor, nem a aceitando com base noutras coisas em que
acredita. Se o faz, todavia, a sua estrutura noética será auto-
referencialmente incoerente. Em si, 18 nem é auto-evidente nem é
incorrigível; daí que ao aceitar 18 como básica o fundacionalista moderno
viole a condição da basicidade apropriada que ele próprio estabeleceu ao
aceitá-la. Por outro lado, talvez o fundacionalista tente apresentar algum
argumento a seu favor a partir de premissas que são auto-evidentes ou
incorrigíveis: é extremamente difícil ver, todavia, como poderia ser tal
argumento. E até que o fundacionalista apresente algum argumento, o que
farão os restantes de nós — que não consideramos 18 óbvia ou convincente,
de todo em todo? Como pode o fundacionalista usar 18 para nos mostrar
que a crença em Deus, por exemplo, não é apropriadamente básica? Por que
acreditaríamos em 18, ou lhe daríamos qualquer atenção?
O facto é que, penso, nem 18 nem qualquer outra condição
esclarecedora necessária e suficiente para a basicidade apropriada se segue
de premissas claramente auto-evidentes através de argumentos claramente
aceitáveis. E assim a maneira apropriada de chegar a tal critério é, grosso
modo, indutiva. Temos de reunir exemplos de crenças e condições tais que
as primeiras sejam, de uma maneira óbvia, apropriadamente básicas sob as
segundas, e exemplos de crenças e condições tais que as primeiras, de uma
maneira óbvia, não sejam apropriadamente básicas sob as segundas. Temos
então de enquadrar hipóteses quanto às condições necessárias e suficientes
da basicidade apropriada e testar estas hipóteses por referência àqueles
exemplos. Sob condições adequadas, por exemplo, é claramente racional
acreditar que o leitor vê uma pessoa humana à sua frente: um ser que tem
pensamentos e sentimentos, que conhece e acredita, que toma decisões e
age. É evidente, além disso, que o leitor não tem qualquer obrigação de
defender argumentativamente esta crença a partir de outras que tem; sob
aquelas condições, essa crença é apropriadamente básica para si. Mas então
18 tem de estar errada; a crença em questão, sob essas circunstâncias, é
apropriadamente básica, embora não seja auto-evidente nem incorrigível
para o leitor. De igual modo, talvez pareça recordar-se de ter tomado o
pequeno-almoço esta manhã, e talvez desconheça qualquer razão para supor
que a sua memória lhe prega partidas. Sendo assim, tem toda a justificação
para aceitar essa crença como básica. Claro que não é apropriadamente
básica à luz dos critérios dados pelos fundacionalistas clássicos; porém,
esse facto não conta contra si, mas contra aqueles critérios.
Em conformidade, tem de se obter os critérios para a basicidade
apropriada a partir de baixo e não a partir de cima; não se os devia
apresentar como ex cathedra, mas sujeitos à argumentação e ao teste por
um conjunto relevante de exemplos. Mas não há razão para supor,
antecipadamente, que todos irão concordar com os exemplos. O cristão irá
com certeza supor que a crença em Deus é inteiramente apropriada e
racional; se não aceita esta crença com base noutras proposições, concluirá
que é básica para si, bastante apropriadamente. Os seguidores de Bertrand
Russell e de Madelyn Murray O’Hare podem discordar, mas como será isso
relevante? Terão os meus critérios, ou os da comunidade cristã, de
conformar-se aos seus exemplos? Certamente que não. A comunidade cristã
é responsável pelo seu conjunto de exemplos, não do deles.
Em conformidade, o epistemólogo reformista pode defender
apropriadamente que a crença na Grande Abóbora não é apropriadamente
básica; apesar de defender que a crença em Deus é apropriadamente básica
e apesar de não ter qualquer critério, com pernas para andar, da basicidade
apropriada. Claro que está comprometido com o pressuposto de que há uma
diferença relevante entre a crença em Deus e a crença na Grande Abóbora,
se defende que a primeira é apropriadamente básica, mas não a segunda.
Mas isto não deverá ser um grande constrangimento; há bastantes
candidatos. Estes candidatos encontram-se na proximidade das condições
que mencionei na última secção, que justificam e fundamentam a crença em
Deus. Assim, por exemplo, o epistemólogo reformista pode concordar com
Calvino na afirmação de que Deus implantou em nós uma tendência natural
para ver a sua mão no mundo à nossa volta; o mesmo não se pode afirmar
da Grande Abóbora; não existindo qualquer Grande Abóbora nem qualquer
tendência natural para aceitar crenças acerca da Grande Abóbora.
Em jeito de conclusão, portanto: ser auto-evidente ou incorrigível, ou
evidente sensorialmente, não é uma condição necessária da basicidade
apropriada. Além disso, quem defende que a crença em Deus é
apropriadamente básica não está por isso comprometido com a ideia de que
a crença em Deus é infundada ou gratuita ou que não tem circunstâncias
justificantes. E mesmo que careça de um critério geral para a basicidade
apropriada, não está obrigado a supor que qualquer crença ou quase — a
crença na Grande Abóbora, por exemplo — é apropriadamente básica.
Como toda a gente o devia fazer, começa com exemplos; e pode aceitar a
crença na Grande Abóbora como um paradigma da crença irracional básica.
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A ética da crença
A vontade de acreditar
Será a crença em Deus apropriadamente básica?
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