Platão

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Dados de Catalogao na Publicao (CIP) Internacional


(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Plato.
Dilogos / Plato ; seleo de textos de Jos Amrico Motta
Pessanha ; traduo e notas de Jos Cavalcante de Souza, Jorge
Paleikat e Joo Cruz Costa. 5. ed. So Paulo : Nova Cultural,
1991. (Os pensadores)

Inclui vida e obra de Plato.


Bibliografia.
Contedo: O Banquete Fdon Sofista Poltico.
ISBN 85-13-00215-1

1. Filosofia antiga 2. Literatura grega 3. Plato I. Pessanha,


Jos Amrico Motta, 1932- II. Ttulo, m. Ttulo: 0 Banquete. IV. Ttulo:
Fdon. V. Ttulo: Sofista. VI. Ttulo: Poltico. VII. Srie.

CDD-184
-180.92
91-0201 - 888

ndices para catlogo sistemtico:


1. Filosofia platnica 184
2. Filsofos antigos : Biografia e obra 180.92
3. Literatura grega antiga : Poligrafia 888
4. Plato : Obras filosficas 184
5. Poligrafia : Literatura grega antiga 888
CONTRA-CAPA
PLATO
Os gregos antigos inventaram a democracia, a noo de cidadania e foram os primeiros a
sentir e expor a necessidade de ultrapassar o terreno das meras opinies, os ensinamentos dos mitos e
as crenas supersticiosas. Propuseram-se a atingir um conhecimento verdadeiro, um saber
efetivamente cientfico. Nessa busca, Plato, que cria sua Academia em 387 a.C. em Atenas, tem papel
fundamental. Apura a dialtica socrtica para torn-la apta a desenvolver um saber sistemtico, capaz
de se alar do sensvel para o inteligvel o mundo das idias. Sua influncia, uma das mais
profundas da histria do pensamento, ainda hoje encontra-se no horizonte de toda investigao terica.
NESTE VOLUME

O BANQUETE
Scrates, Agato, Alcibades e outros conversam a respeito do amor. Para Scrates, o amor
um meio de atingir a viso do princpio eterno de todas as coisas belas, o belo em si.
FDON
Na priso, espera da cicuta, Scrates debate sobre a morte. 0 dilogo relata o caminho
socrtico, retomado e desenvolvido por Plato: o conhecimento como reminiscncia e a doutrina das
idias.
SOFISTA
A oposio verdade-erro, inerente ao combate socrtico-platnico aos sofistas (vistos como
mercadores de falsidades), renova-se nessa etapa final do platonismo.
POLTICO
Plato retoma um dos temas centrais de sua reflexo filosfica: a caracterizao do poltico e
da arte de governar.

Nesta srie esto as idias fundamentais que, nos ltimos 25 sculos, ajudaram a construir a
civilizao. A escolha de autores procura refletir a pluralidade de temas e de interpretaes que
compem o pensamento filosfico. A seleo de textos busca, nas fontes originais, uma viso
abrangente e equilibrada da Filosofia e de sua contribuio ao conhecimento do homem e do universo.

ISBN 85-13-00214-3 ISBN 85-13-00215-1


PLATO

DILOGOS

O BANQUETE FDON

SOFISTA POLTICO

Seleo de textos de Jos Amrico Motta Pessanha


Traduo e notas de Jos Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e Joo Cruz Costa

NOVA CULTURAL
1991
Ttulos originais:
(O Banquete)
(Fdon)
(Sofista)
(Poltico)

Copyright desta edio, Editora Nova Cultural Ltda.,


So Paulo, 1972. - 2a ed., 1978. - 3? ed.. 1983.
4a ed., 1987. - 5a ed., 1991.
Av. Brigadeiro Faria Lima, 2000 3? andar
CEP 01452 - So Paulo, SP - Brasil.
Tradues publicadas sob licena da Editora Bertrand Brasil S.A.,
Rio de Janeiro (O Banquete) e da Editora Glob.o S.A., So Paulo
{Fdon, Sofista, Poltico).
Direitos, exclusivos sobre "Plato Vida e Obra",
Editora Nova Cultural Ltda., So Paulo.
PLATO
VIDA E OBRA

Consultoria: Jos Amrico Motta Pessanha


"Outrora na minha juventude experimentei o que tantos jovens
experimentaram. Tinha o projeto de, no dia em que pudesse dispor de mim
prprio, imediatamente intervir na poltica." Quem assim escreve, em cerca de 354
a.C, o setuagenrio Plato, numa de suas cartas a carta VII, endereada aos
parentes e amigos de Dion de Siracusa.
O interesse de Plato pelos assuntos polticos decorria, em parte, de
circunstncias de sua vida; mas era tambm uma atitude compreensvel num grego
de seu tempo. Toda a vida cultural da Grcia antiga desenvolveu-se estreitamente,
vinculada aos acontecimentos da cidade-Estado, a polis. Essa vinculao resultava
fundamentalmente da organizao poltica, constituda por uma constelao de
cidades-Estados fortemente ciosas de suas peculiaridades, de suas tradies, de seus
deuses e heris. A prpria dimenso da cidade-Estado impunha, de sada, grande
solidariedade entre seus habitantes, facilitando a ao coercitiva dos padres de
conduta; ao mesmo tempo, propiciava polis o desenvolvimento de uma fisionomia
particular, inconfundvel, que era o orgulho e o patrimnio comum de seus
cidados. O fenmeno geogrfico e o poltico associavam-se de tal modo que, na
lngua grega, polis era, ao mesmo tempo, uma expresso geogrfica e uma expresso
poltica, designando tanto o lugar da cidade quanto a populao submetida
mesma soberania. Compreende-se, assim, por que um grego antigo pensava a si
mesmo antes de tudo como um cidado ou como um "animal poltico".
Essa ligao estreita entre o homem grego e a polis transparece na vida e no
pensamento dos filsofos. J Tales de Mileto (sculo VI a.C), segundo o historiador
Herdoto, teria desempenhado importante papel na poltica de seu tempo,
tentando induzir os gregos da Jnia a se unirem numa federao e, assim, poderem
oferecer resistncia ameaa persa que ento se configurava. Desse modo, com
Tales que a tradio considera o ponto inicial da investigao cientfico-
filosfica ocidental teria comeado tambm a linhagem dos filsofos-polticos e
dos filsofos-legisladores, cuja vida e cuja obra desenvolveram-se em ntima
conexo com os destinos da polis. No prprio vocabulrio dos primeiros filsofos
manifesta-se essa conexo: muitas das palavras que empregam sugerem
experincias de cunho originariamente social, generalizadas para explicar a
organizao do cosmo. Por outro lado, a estrutura poltica fornece ao pensador
esquemas interpretativos: a polis monrquica corresponde uma interpretao do
processo cosmognico entendido como o desdobramento ou a transformao de
um nico princpio (arque), tal como aparece nas primeiras cosmogonias filosficas.
Com o tempo, esses esquemas interpretativos vo, porm, se alterando, em parte
pela dinmica inerente ao pensamento filosfico, em parte como reflexo das novas
formas de vida poltica. A instaurao do regime democrtico em Atenas e em
outras cidades suscita novos temas para a investigao e sugere novos quadros
explicativos: o filsofo Empdocles de Agrigento lder democrtico em sua
cidade concebe a organizao do universo como resultante do jogo de mltiplas
"razes" regidas pela isonomia (igualdade perante a lei). Ao monismo corporalista dos
primeiros pensadores pode ento suceder o pluralismo: o cosmo compreendido
imagem da pluralidade de poderes da polis democrtica.

Na Assemblia, quem pede a palavra?

Entre 460 e 430 a.C, Atenas, sob o governo de Pricles, atingiu o apogeu de
sua vida poltica e cultural, tornando-se a cidade-Estado mais proeminente da
Grcia. Essa situao fora conquistada sobretudo depois das guerras mdicas,
quando Atenas liderou a defesa do mundo grego e derrotou os persas. Libertando
as cidades gregas da sia Menor e apoiando-se sobre poderosa confederao
martima, Atenas teve seu prestgio aumentado; enquanto expandia e fortalecia seu
imperialismo, internamente aprimorava a experincia democrtica, instaurada desde
508 a.C. pela revolta popular chefiada por Clste-nes. Pela primeira vez na histria,
o governo passara a ser exercido pelo povo, que, diretamente, na Assemblia
(Ekklesia), .decidia os destinos da polis. Mas, na verdade, a democracia ateniense
apresentava srias limitaes. Em primeiro lugar, nem todos podiam participar dos
debates da Assemblia: apenas os que possuam direitos de cidadania. Essa
discriminao exclua das resolues polticas a maior parte dos habitantes da polis:
as mulheres, os estrangeiros, os escravos. Em conseqncia, constitua uma minoria
o demos (povo) que assumira o poder em Atenas.
A democracia ateniense era, na verdade, uma forma atenuada de oligarquia
(governo dos olgoi, de poucos), j que somente aquela pequena parcela da
populao os "cidados" usufrua dos privilgios da igualdade perante a lei e
do direito de falar nos debates da Assemblia (isegoria). As decises polticas
estavam, porm, na dependncia de interferncias ainda mais restritas, pois na
prpria Assemblia nem todos tinham os mesmos recursos de atuao. Lido o
relatrio dos projetos levados ordem do dia, o arauto pronunciava a frmula
tradicional: "Quem pede a palavra?" Segundo o princpio da isegoria, qualquer
cidado tinha o direito de responder a esse apelo. Mas, de fato, apenas poucos o
faziam. Os que possuam dons de oratria associados ao conhecimento dos
negcios pblicos, os hbeis no raciocinar e no usar a voz e o gesto, estes que
obtinham ascendncia sobre o auditrio, impunham seus pontos de vista atravs da
persuao retrica e lideravam as decises. A eloqncia tornou-se, assim, uma
verdadeira potncia em Atenas; sem ter necessidade de nenhum ttulo oficial, o
orador exercia uma espcie de funo no Estado. Se alm de orador era um homem
de ao como Pricles tornava-se, durante algum tempo, o verdadeiro chefe
poltico.
O cuidado dos democratas em impedir que o poder retornasse s mos da
antiga aristocracia e outra vez se centralizasse, reassumindo carter vitalcio e
hereditrio, acabava por erigir obstculos prpria democracia. A preocupao em
preservar a pureza das instituies democrticas, defendendo-as das faces
adversrias derrotadas mas sempre atuantes e prontas a tentar recuperar antigos
privilgios , levou os democratas a estabelecer inclusive uma durao limitada
para o exerccio das funes pblicas. Para que nenhum magistrado se acostumasse
ao poder e nele quisesse se perpetuar, as funes pblicas duravam apenas um ano.
Alm disso adotou-se a tiragem de sorte para a escolha dos ocupantes daquelas
funes, com exceo dos comandos militares, dos ocupantes de cargos financeiros
e dos que exerciam comisses tcnicas que exigissem competncia especial. Com o
processo de tiragem de sorte que parece estranho e irracional mentalidade
afeita administrao pblica moderna a democracia grega procurava defender-
se firmando o poder nas mos da Assemblia dos cidados. Tais escrpulos,
porm, vinham tornar ainda mais instveis e flutuantes as decises polticas. O
comparecimento Assemblia era freqentemente escasso, j que, em condies
normais, muitos cidados preferiam ocupar-se de seus negcios particulares; os que
compareciam aos debates estavam sujeitos s influncias dos oradores mais hbeis,
que faziam oscilar as decises; finalmente, a curta durao das funes pblicas
aumentava mais ainda a dificuldade de se desenvolver uma linha poltica estvel,
contnua, duradoura.
As deficincias do regime democrtico ateniense tornaram-se patentes para
alguns pensadores, que se empenharam em corrigi-las. Se a liberdade
proporcionada aos cidados era um patrimnio caro a ser preservado, a estabilidade
poltica exemplificada por outros pases, como o Egito, parecia invejvel. Sem falar
que, dentro da prpria Grcia, o militarismo de Esparta sugeria uma soluo
poltica baseada no sacrifcio das liberdades individuais em nome da disciplina e da
ordem social.
A crtica democracia ateniense e a procura de solues polticas do mundo
grego foram preocupaes centrais da vida e da obra daquele que por muitos
considerado o maior pensador da Antigidade: Plato. Nele, filosofia e ao poltica
estiveram permanentemente interligadas, pois alimentou sempre a convico de que
"... os males no cessaro para os humanos antes que a raa dos puros e autnticos
filsofos chegue ao poder, ou antes que os chefes das cidades, por uma divina
graa, ponham-se a filosofar verdadeiramente" (Carta VII).

Entre a filosofia e a poltica

Plato nasceu em Atenas em 428-7 a.C. e morreu em 348-7 a.C. Essas datas
so bastantes significativas: seu nascimento ocorreu no ano seguinte ao da morte de
Pricles; seu falecimento deu-se dez anos antes da batalha de Queronia, que
assegurou a Filipe da Macednia a conquista do mundo grego. A vida de Plato
transcorreu, portanto, entre a fase urea da democracia ateniense e o final do
perodo helnico: sua obra filosfica representar, em vrios aspectos, a expanso
de um pensamento alimentado pelo clima de liberdade e de apogeu poltico
Filho de Ariston e de Perictione, Plato pertencia a tradicionais famlias de
Atenas e estava ligado, sobretudo pelo lado materno, a figuras eminentes do mundo
poltico. Sua me descendia de Slon, o grande legislador, e era irm de Crmides e
prima de Crtias, dois dos Trinta Tiranos que dominaram a cidade durante algum
tempo. Alm disso, em segundas npcias Perictione casara-se com Pirilampo,
personagem de destaque na poca de Pricles. Desse modo, se Plato em geral
manifesta desapreo pelos polticos de seu tempo, ele o faz como algum que viveu
nos bastidores das encenaes polticas desde a infncia. Suas crticas democracia
ateniense pressupunham um conhecimento direto das manobras polticas e de seus
verdadeiros motivos.
Segundo o depoimento de Aristteles, Plato, na juventude, teria conhecido
Crtilo, que, adotando as idias de Herclito de feso sobre a mudana permanente
de todas as coisas e certamente interpretando de forma parcial e empobrecida a
tese heracltica , afirmava a impossibilidade de qualquer conhecimento estvel.
Os dados dos sentidos teriam validade instantnea e fugaz, o que tornava intil e
ilegtima qualquer afirmativa sobre a realidade: quando se tentava exprimir algo,
este j deixara de ser o que parecia no momento anterior. Na verso apresentada
por Crtilo, o incessante movimento das coisas tornava-se um empecilho cincia
e ao, que no podiam dispensar bases estveis. Buscando justamente estabelecer
esses fundamentos seguros para o conhecimento e para a ao, Plato
desenvolver, na fase inicial de sua filosofia, teses que tendem a sustentar a
realidade no intemporal e no esttico. S posteriormente seu pensamento ir
reabilitar e reabsorver o movimento e a transformao, tentando estabelecer a
sntese entre a tradio eletica (que negava a racionalidade de qualquer mudana) e
a heracltica (que afirmava o fluxo contnuo de todas as coisas).
Mas o grande acontecimento da mocidade de Plato foi o encontro com
Scrates. Na poca da oligarquia dos Trinta (entre os quais estavam Crmides e
Crtias), os governantes haviam tentado fazer de Scrates cmplice na execuo de
Leon de Salamina, cujos bens desejavam confiscar. Scrates recusou-se a participar
da trama indigna e, evidentemente, deixou de ser visto com simpatia pelos tiranos.
Mais tarde, j reinstaurado o regime democrtico em Atenas, Scrates foi acusado
de corromper a juventude, por difundir idias contrrias religio tradicional, e
condenado a morrer bebendo cicuta.
Plato, que seguira os debates de Scrates e que o considerava como
escrever no Fdon "o mais sbio e o mais justo dos homens", pde acompanhar
de perto o tratamento que seu mestre recebera de ambas as faces polticas.
Parecia no existir em Atenas um partido no qual um homem que no quisesse
abrir mo de princpios ticos pudesse se integrar. Diante da injustia sofrida por
Scrates, aprofunda-se o desencanto de Plato com aquela poltica e com aquela
democracia: "Vendo isso e vendo os homens que conduziam a poltica, quanto
mais considerava as leis e os costumes, quanto mais avanava em idade, tanto mais
difcil me pareceu administrar os negcios de Estado" (Carta VII). Mas o impacto
causado por Scrates no pensamento e na vida de Plato teve tambm outra
significado, este de repercusses ainda mais duradouras: com Scrates, o jovem
Plato pudera sentir a necessidade de fundamentar qualquer atividade em conceitos
claros e seguros. Por intermdio de Scrates e de sua incessante ao como
perquiridor de conscincias e de crtico de idias vagas ou preconcebidas, o
primado da poltica torna-se, para Plato, o primado da verdade, da cincia. Se o
interesse de Plato foi inicialmente dirigido para a poltica, atravs da influncia de
Scrates ele reconhece que o importante no era fazer poltica, qualquer poltica,
mas a poltica. Por isso que justamente se recusa a participar, na mocidade, de
atividades polticas: primeiro tem de encontrar os fundamentos tericos da ao
poltica e de toda ao para orient-la retamente. A filosofia para Plato
representou, assim, de incio, a ao entravada, a que se renuncia apenas para poder
vir a ser realizada com plenitude de conscincia.
Depois da morte de Scrates, disperso o ncleo que se congregara em torno
do mestre, Plato viaja. Visita Megara, onde Euclides, que tambm pertencera ao
grupo socrtico, fundara uma escola filosfica, vinculando socratismo e eleatismo.
Vai ao sul da Itlia (Magna Grcia), onde convive com Arquitas de Tarento. O
famoso matemtico e poltico pitagrico d-lhe um exemplo vivo de sbio-
governante, que ele depois apontar, na Repblica, como soluo ideal para os
problemas polticos. Na Siclia, em Siracusa, conquista a amizade e a inteira
confiana de Dion, cunhado do tirano Dionsio. Essa ligao com Dion talvez o
mais forte lao afetivo da vida de Plato representa tambm o incio de
reiteradas tentativas para interferir na vida poltica de Siracusa. Plato visita ainda o
norte da frica, mas de sua ida ao Egito quase nada se sabe com segurana. Certo
que, em Cirene, inteirou-se das pesquisas matemticas desenvolvidas por Teodoro,
particularmente as referentes aos "irracionais" (grandezas, como V2, cujo valor
exato no se podia determinar). Os irracionais matemticos inspiraro vrias
doutrinas platnicas, pois representam uma "justa medida" que nenhuma
linguagem consegue exaurir.
Nessa poca Plato compe seus primeiros Dilogos, geralmente chamados
"dilogos socrticos", pois tm em Scrates a personagem central. Entre esses
dilogos est a Apologia de Scrates, que pretende reproduzir a defesa feita pelo
prprio Scrates diante da Assemblia que o julgou e condenou. Porm, de certa
forma, outros dilogos dessa fase constituem tambm defesas que Plato faz de seu
mestre, mostrando que nem era mpio nem pervertia os jovens. Nessa categoria
podem ser includos o Crton, o Laques, o Lsis, o Crmides e o Eutfron. Dentre os
primeiros dilogos situam-se ainda o Hpias Menor (talvez tambm o Hpias Maior), o
Protgoras, o Grgias nos quais aparecem os grandes sofistas e o lon. possvel
que, tambm nessa poca, Plato tenha comeado a escrever a Repblica. Em geral,
os "dilogos socrticos" desenvolvem discusses sobre tica, procurando definir
determinada virtude (coragem, Laques; piedade, Eutfron; amizade, Lsis;
autocontrole, Crmides). Mas so dilogos aporticos, ou seja, fazem o levantamento
de diferentes modos de se conceituar aquelas virtudes, denunciam a fragilidade
dessas conceituaes, mas deixam a questo aberta, inconclusa. Isso possivelmente
estaria relacionado ao objetivo do prprio Scrates, que se preocupava antes com o
desencadeamento do conhecimento de si mesmo e no propriamente com
definies de conceitos. De qualquer modo, algumas teses socrticas bsicas podem
ser encontradas nesses dilogos, como a da identificao da virtude com certo tipo
de conhecimento e a da unidade de todas as virtudes. Os outros dilogos dessa fase
manifestam duas preocupaes que permanecero constantes na obra platnica: o
problema poltico (como no Crmides) e o do papel que a retrica pode
desempenhar na tica e na educao (Grgias, Protgoras, os dois Hpias).
A Academia ou Siracusa?

Cerca de 387 a.C. Plato funda em Atenas a Academia, sua prpria escola de
investigao cientfica e filosfica. O acontecimento da mxima importncia para
a histria do pensamento ocidental. Plato torna-se o primeiro dirigente de uma
instituio permanente, voltada para a pesquisa original e concebida como
conjugao de esforos de um grupo que v no conhecimento algo vivo e dinmico
e no um corpo de doutrinas a serem simplesmente resguardadas e transmitidas. O
que se sabe das atividades da Academia, bem como a obra escrita de Plato e as
notcias sobre seu ensinamento oral, testemunham sobre essa concepo da
atividade intelectual: antes de tudo busca a inquietao, reformulao permanente e
multiplicao das vias de abordagem dos problemas, a filosofia sendo
fundamentalmente filosofar esforo para pensar mais profunda e claramente.
Nessa mesma poca, em Atenas, Iscrates dirige um outro estabelecimento
de educao superior. Mas Iscrates seguindo a linha dos sofistas pretende
educar o aspirante vida pblica, dotando-o de recursos retricos. Nada de cincia
abstrata: bastava munir o educando de "pontos de vista", que ele deveria saber
defender de forma persuasiva. Numa democracia dirigida de fato por oradores, a
instituio de Iscrates indiscutivelmente desenvolve uma educao realista,
atendendo s necessidades do momento. Mas outra a perspectiva da Academia.
Para Plato a poltica no se limita prtica, insegura e circunstancial. Deve
pressupor a investigao sistemtica dos fundamentos da conduta humana
como Scrates ensinara. Porm, suas bases ltimas no se limitariam ao plano
psicolgico e tico: os fundamentos da ao requerem uma explicao global da
realidade, na qual aquela conduta se desenrola. Depois de suas viagens, quando
freqentou centros pitagricos de pesquisa cientfica, Plato via na matemtica a
promessa de um caminho que ultrapassaria as aporias socrticas as perguntas
que Scrates fazia, mas afinal deixava sem resposta e conduziria certeza. A
educao deveria, em ltima instncia, basear-se numa episteme (cincia) e ultrapassar
o plano instvel da opinio (doxa). E a poltica poderia deixar de ser o jogo fortuito
de aes motivadas por interesses nem sempre claros e freqentemente pouco
dignos, para se transformar numa ao iluminada pela verdade e um gesto criador
de harmonia, justia e beleza.
Durante cerca de vinte anos, Plato dedica-se ao magistrio e composio
de suas obras. Sob forte influncia do pitagorismo, escreve os "dilogos de
transio", que justamente marcam segundo muitos intrpretes o progressivo
desligamento das posies originariamente socrticas e a formulao de uma
filosofia prpria, a partir da nova soluo para o problema do conhecimento,
representada pela doutrina das idias: formas incorpreas e transcendentes que
seriam os modelos dos objetos sensveis. Essas novas formulaes aparecem em
vrios dilogos: Mnon, Fdon, Banquete, Repblica, Fedro. Do mesmo perodo o
Eutidemo, que procura estabelecer a distino entre a dialtica socrtica (que Plato
adota e pretende desenvolver) e a erstica, ou arte das discusses lgicas sutis e da
disputa verbal, que se tornara a preocupao central da escola de Euclides de
Megara. J no Menexeno o tema poltico reaparece, atravs da stira a Pricles.
Particular importncia apresenta, entre os dilogos dessa fase, o Crtilo, no qual
abrindo perspectivas que ainda hoje a filosofia e a lingstica exploram Plato
investiga a possibilidade de extrair a verdade filosfica da estrutura da linguagem.
Mas um fato interrompe a produo filosfica de Plato e seu magistrio na
Academia. Novamente o apelo de Siracusa e da prtica poltica: em 367 a.C. morre
Dionsio I, o tirano, que ento sucedido por Dionsio II. Dion chama Plato a
Siracusa. Parece o momento propcio para se tentar reformar a vida poltica da
cidade. Numa polis governada por um nico indivduo, parece bastar convenc-lo
para que tudo se encaminhe da maneira almejada e correta. Esse pensamento faz
Plato afinal decidir-se, como confessa na Carta Vil, a atender os rogos de Dion.
Para muitos historiadores, Plato vai ento a Siracusa tentar aplicar
praticamente os ideais polticos que, a essa altura, j havia configurado na Repblica.
Isso no parece muito provvel. Siracusa, considerada a mais luxuriosa cidade do
mundo grego, no por seus costumes, o local indicado para Plato tentar
concretizar o modelo poltico proposto na Repblica e que representa um esforo de
racionalizao das funes pblicas e da estrutura social. Voltando a Siracusa, o
objetivo de Plato seria outro, bem mais prtico e realista: com viso de verdadeiro
estadista, preocupa-o o conjunto do mundo grego. Seu intento, tudo leva a crer, o
de preparar o jovem tirano para refrear o avano dos cartagineses e, se possvel,
expuls-los da Siclia, onde j esto instalados. Siracusa poderia transformar-se no
centro de forte monarquia constitucional, que abarcaria o conjunto das
comunidades gregas do oeste da Siclia. E o mundo grego, fortalecido por essa
unio, poderia opor resistncia ao estrangeiro invasor. Mas a misso de Plato
fracassa: no consegue mudar as disposies de Dionsio II. Apenas consegue que
ele se ligue, em relaes de amizade, a Arquitas de Tarento, dando um passo em
direo ao ideal poltico de unificar essa parte do mundo helnico.
Essa segunda tentativa poltica malograda deve ter interrompido a
composio da srie de dilogos constituda pelo Parmnides, Teeteto, Sofista e Poltico.
Dilogos da plena maturidade intelectual de Plato, neles as primeiras formulaes
da "doutrina das idias" (como, por exemplo, apareciam no Fdon) comeam a ser
revistas e todo o pensamento platnico reestrutura-se a partir de bases
epistemolgicas mais exigentes e seguras. Ao mesmo tempo, as fronteiras entre o
pensamento do prprio Plato e do seu mestre tornam-se mais ntidas, de tal modo
que, no Parmnides, em lugar de Scrates conduzir e dominar a discusso ele aparece
jovem e inseguro diante de um Parmnides que, levantando dificuldades teoria
das idias, deixa-o embaraado. Costuma-se ver nessa inverso do papel atribudo a
Scrates nos dilogos o indcio de que o platonismo j avanara para alm das
concepes socrticas, que o haviam inicialmente inspirado
Mas a crise que o Parmnides parece instaurar na teoria das idias no significa
que Plato desiste dessa doutrina. No Teeteto, a discusso sobre o problema do
conhecimento e as crticas identificao do conhecimento com a sensao
posio que a atribuda ao sofista Protgoras de Abdera leva reafirmao de
que o conhecimento verdadeiro no pode dispensar a fundamentao nas idias:
E esse mundo de essncias estveis e perenes que o dilogo chamado
Sofista investiga. Ao examinar as bases da distino entre verdade e erro, apresenta
aguda crtica da atividade docente dos sofistas, acusados de criar e difundir imagens
falsas, simulacros da verdade J o Poltico retoma a tese de que o ideal para a polis
seria a existncia de um rei filsofo, que inclusive pudesse governar sem
necessidade de leis.
A preocupao poltica que reaparece ao longo dos dilogos continua a ter
seu contraponto no campo prtico. Atravs da Carta VII sabe-se que Plato volta
uma vez mais a Siracusa, pressionado por Dion e por Arquitas e a convite de
Dionsio II, que se declara disposto a seguir sua orientao filosfica. A essa altura
Dion havia sido banido de Siracusa pelo tirano, mas longe de sua ptria continua a
alimentar o ideal de reformar sua cidade, para nela instaurar um regime que aliasse,
como prescrevia Plato, a autoridade e a liberdade.
Essa nova incurso de Plato a Siracusa foi decepcionante. Dionsio no
cumpriu nenhuma de suas promessas: nem modificou sua conduta poltica, nem
trouxe de volta Dion, nem se entregou ao estudo srio da filosofia. Apesar disso
quis reter Plato em Siracusa, e o filsofo s consegue afinal sair de l graas
interferncia de seus amigos de Tarento. Ao regressar, Plato encontra Dion, que
prepara uma expedio contra Dionsio. A expedio inicialmente tem xito: afinal
Dion consegue livrar sua cidade da tirania que a oprime. Dion, entretanto, comea
a encontrar oposies s reformas que quer introduzir e, em meio s perturbaes
que passam a agitar a vida poltica da cidade, acaba trado por seus prprios amigos
e assassinado. E o que pior para Plato: o mandante do crime, Calipos, um
ateniense ligado Academia e que fora com Dion para Siracusa.
Perdido o amigo, encerrada a aventura poltica de Siracusa, restam a Plato
os debates da Academia e a elaborao de sua obra escrita. Resta-lhe o principal: o
seu mundo de idias.
Manifestando uma vida espiritual inquieta, em reelaborao permanente, as
ltimas obras de Plato levantam novos problemas ou reexaminam os antigos sob
outros ngulos. Ao Sofista e ao Poltico deveria seguir-se o Filsofo, dilogo que teria
novamente Scrates como personagem central. Mas no chegou a ser escrito. Em
seu lugar surgiram o Timeu e o Crtias, que deveriam fazer parte de uma trilogia que
ficou inacabada (o Hermocrates seria o terceiro). O Timeu constitui um vasto mito
cosmognico, no qual Plato revelando a crescente influncia do matematismo
pitagrico descreve a origem do universo. O Crtias apresenta um Estado
semelhante ao descrito na Repblica , identificando-o com a Atenas pr-histrica,
que teria salvo o mundo mediterrneo da invaso dos habitantes de Atlas.
Da fase final da obra de Plato ainda o Filebo, que retoma o tema da
felicidade humana, tratado luz das ltimas formulaes do platonismo. Ao
morrer, Plato deixa interminada uma grande obra: as Leis. Retomando o problema
poltico e alterando teses expressas anteriormente na Repblica, Plato prope, em
sua ltima obra, uma conciliao entre monarquia constitucional e democracia. O
interesse juvenil pelos assuntos polticos acompanhou-o at o fim de sua vida. Mas
o aprofundamento da conscincia poltica significou um longo itinerrio que
permitiu a construo da primeira grande sntese filosfica do pensamento antigo e
abriu horizontes de pesquisa ainda hoje explorados, servindo de inspirao e de
estmulo a grandes aventuras do esprito.

O mundo perfeito das idias

"Admitamos pois o que me servir de ponto de partida e de base que


existe um Belo em si e por si, um Bom, um Grande, e assim por diante. Se
admitires a existncia dessas coisas, se concordares comigo, esperarei que elas me
permitiro tornar-te clara a causa, que assim descobrirs, que faz com que a alma
seja imortal." Scrates quem fala a Cebes, no Fdon, dilogo no qual Plato,
descrevendo os ltimos instantes de vida e as ltimas conversaes de seu mestre,
pouco antes de beber a cicuta, atribui-lhe explicitamente uma nova linha de
resoluo de antigos problemas filosficos e cientficos: a doutrina das idias.
Pouco antes, no mesmo dilogo, Scrates declarara: "... Eis o caminho que segui.
Coloco em cada caso um princpio, aquele que julgo o mais slido, e tudo o que
parece estar em consonncia com ele quer se trate de causas ou de qualquer
outra coisa
admito como verdadeiro, admitindo como falso o que com ele no
concorda". Aquela afirmao de que existe um Belo em si, um Bom em si ou um
Grande em si surge, dentro do desenvolvimento da filosofia platnica, justamente
no momento em que esta segundo a maioria dos intrpretes comea a
assumir fisionomia prpria e se distingue do socratismo. Essa separao teria
ocorrido no ponto em que a formulao da noo de idia, como essncia existente
em si
independente das coisas e do intelecto humano , representa a adoo,
por Plato, de um mtodo de pesquisa de ndole matemtica. Colocar um princpio
e aceitar como verdadeiro o que est em consonncia com ele, rejeitando o que lhe
est em desacordo como afirmara Scrates significa pensar "como
gemetra", que prope hipteses das quais extrai as conseqncias lgicas. E o
que Plato prope atravs da boca de Scrates: remontar do condicionado (os
problemas a serem resolvidos ou as coisas a serem explicadas) condio (a
hiptese explicativa), visando antes de tudo a estabelecer uma relao de
conseqncia lgica entre as duas proposies (a que exprime o problema e a que
exprime sua hipottica resoluo). Provisoriamente deixa-se de lado a questo de
saber se a condio ela prpria auto-sustentvel ou se exige o recurso a condies
mais amplas ou bsicas que a condicionem. De sada, o importante verificar o que
est em consonncia com o princpio proposto. Todavia o platonismo no se
deter a: o exame da primeira hiptese que resulta da aplicao do "mtodo dos
gemetras" a existncia de entidades em si, as idias, causas inteligveis do que os
sentidos apreendem
remeter a outras hipteses que a condicionam. O pensamento de Plato
ir se construindo, assim, como um jogo de hipteses interligadas. Ao relativismo
dos sofistas, Plato ope no uma afirmao de verdade simplria e dogmtica. A
busca de uma condio incondicionada para o conhecimento, o encontro com o
absoluto fundamento da verdade (que s ento se distingue do erro e da fantasia),
para Plato no o ponto de partida mas a meta a ser alcanada. Porm s se chegar
a depois que se atravesse todo o campo do possvel. O absoluto, o no-hipottico,
habita alm das ltimas hipteses.
Nos primeiros dilogos os da "fase socrtica" j se buscava algo de
idntico e uno que estaria por trs das mltiplas maneiras de se entender conceitos
como "temperana" ou "coragem". Mas esse mesmo que existiria em diversas coisas
no era ainda uma entidade metafsica, algo que existisse em si e por si. No Eutfron
que as palavras idia e eidos aparecem empregadas, pela primeira vez, numa
acepo propriamente platnica. Ambas aquelas palavras so derivadas de um
verbo cujo significado "ver" e tm, assim, como acepo originria, a de "forma
visvel" (primariamente no sentido de "formato" ou "figura"). Ao que parece, j
estavam integradas ao vocabulrio dos pitagricos, com o sentido de modelo
geomtrico ou figura.
Nos dilogos da primeira fase, que parecem reproduzir as conversaes do
prprio Scrates, a procura do mesmo, alm de ficar restrita busca de um
denominador comum no nvel da significao das palavras, limitava-se a debates
sobre questes morais. Esses debates no eram conclusivos: deixavam os
problemas enriquecidos e revoltos, com isso denunciando a fragilidade ou a
parcialidade dos pontos de vista confrontados. Ao chegar a esse ponto, a dialtica
socrtica podia dar-se por satisfeita, na medida em que seu objetivo seria o
dramtico embate das conscincias, condio para o autoconhecimento. J em
Plato a partir da fase do Fdon a dialtica vai progressivamente perdendo o
interesse humano imediato e a dramaticidade, para se converter, cada vez com mais
apoio em recursos matemticos, num mtodo impessoal e terico, que visa aos
prprios problemas e no apenas sondagem da conscincia dos interlocutores.
Torna-se uma pesquisa das interligaes entre as idias, chegando, na fase final do
platonismo, a ser considerada um tipo de "metrtica" ou arte das medidas e das
propores.
"Admitamos pois o que me servir de ponto de partida e de base que
existe um Belo em si e por si, um Bom, um Grande, e assim por diante." Essas
palavras, que Plato faz Scrates dizer no Fdon, representam uma mudana de
direo da investigao filosfica em relao aos pensadores do passado. A
explicao do mundo fsico, desde os filsofos da escola de Mileto, convertia-se na
procura de uma situao primordial que justificaria, em seu desdobramento, a
situao presente do cosmo. Antes, a gua (Tales), o ilimitado (Anaximandro), o
"tudo junto" (Anaxgoras) depois, devido a diferentes processos de
transformao ou de redistribuio espacial, o universo em seu aspecto atual. A
explicao filosfica representava, assim, o encontro de um princpio (arque)
originrio, e era, por isso mesmo, movida por interesse arcaizante, de busca das
razes, de desvelamento das origens. Com Plato essa ndole retrospectiva e
"horizontal" da investigao substituda pela perspectiva "vertical" e ascendente
que prope, seguindo a sugesto do mtodo dos gemetras, as idias como causas
intemporais para os objetos sensveis. O que belo, mais ou menos belo, belo
porque existe um belo pleno, o Belo que, intemporalmente, explica todos os casos e
graus particulares de beleza, como a condio sustenta a inteligibilidade do
condicionado.
Atravs dos dilogos, Plato vai caracterizando essas causas inteligveis dos
objetos fsicos que ele chama de idias ou formas. Elas seriam incorpreas e invisveis
o que significa dizer justamente que no est na matria a razo de sua
inteligibilidade. Seriam reais, eternas e sempre idnticas a si mesmas, escapando
corroso do tempo, que torna perecveis os objetos fsicos. Merecem por isso
mesmo, o qualificativo de "divinas", qualificativo que os filsofos anteriores j
atribuam arque. Perfeitas e imutveis, as idias constituiriam os modelos ou
paradigmas dos quais as coisas materiais seriam apenas cpias imperfeitas e
transitrias. Seriam, pois, tipos ideais, a transcender o plano mutvel dos objetos
fsicos.
A afirmativa de que o mundo material se torna compreensvel atravs da
hiptese das idias deixa, porm, em suspenso um problema decisivo: o da
possibilidade de se conhecer essas realidades invisveis e incorpreas. Com efeito, o
que inicialmente foi tomado como hiptese explicativa a existncia do mundo
das idias no basta a si mesmo. preciso que se admita um conhecimento das
idias incorpreas que antecede ao conhecimento fornecido pelos sentidos, que s
alcanam o corpreo. No Mnon Plato expe a doutrina de que o intelecto pode
apreender as idias porque tambm ele , como as idias, incorpreo. A alma
humana, antes do nascimento antes de prender-se ao crcere do corpo , teria
contemplado as idias enquanto seguia o cortejo dos deuses. Encarnada, perde a
possibilidade de contato direto com os arqutipos incorpreos, mas diante de suas
cpias os objetos sensveis pode ir gradativamente recuperando o
conhecimento das idias. Conhecer seria ento lembrar, reconhecer. A hiptese da
reminiscncia vem, assim, sustentar a hiptese da existncia do mundo das formas.
Mas, por sua vez, implica outra doutrina, que a condiciona: a da preexistncia da
alma em relao ao corpo, a da incorruptibilidade dessa alma incorprea e,
portanto, a da sua imortalidade. Essa imortalidade, de que Scrates no teve certeza
nos primeiros dilogos, converte-se, na construo do platonismo, numa condio
para a cincia, para a explicao inteligvel do mundo fsico.
Mas se a doutrina da reminiscncia liga a alma s idias e justifica que o
homem as conhea, como explicar o relacionamento entre as formas e os objetos
fsicos, entre o incorpreo e o seu oposto, o corpreo? Essa uma questo que o
prprio Plato levanta no dilogo Parmnides. Antes ainda suscita outro problema,
que est na base daquele e que no havia sido esclarecido nas obras anteriores:
afinal, de que h idias?
Os exemplos de idias apresentados no Fdon so extrados ou da esfera dos
valores estticos e morais (o Belo, o Bom), ou das relaes matemticas (o Grande).
De fato, desses dois campos que o platonismo vai colher preferencialmente os
pontos de apoio para propor um mundo de modelos transcendentes. Isso
compreensvel, uma vez que a variao de mais e menos (mais belo, menos belo;
maior, menor) parece sugerir a referncia a um padro absoluto, a uma "justa
medida" (o Belo, o Grande). Todavia, j no Crtilo, onde aparece a primeira
afirmao da transcendncia das idias, ela feita a propsito da idia referente a
um objeto fsico, a um artefato, a naveta. No Parmnides o problema ainda mais se
agua ao fazer-se a pergunta: h uma forma correspondente ao fogo (realidade
fsica e natural), uma forma correspondente ao lodo (objeto fsico "inferior")?
Valores negativos ou realidades abjetas teriam um modelo no plano das essncias
divinas? O que est a em questo , na verdade, o significado que o mundo fsico
tem enquanto corpreo; se cpia, o que lhe confere o estatuto de cpia, distanciando-
o do arqutipo? Se sua causa inteligvel o mundo das idias, o que constitui isto
que lhe d concreo e materialidade?
Num primeiro momento, de dialtica ascendente, impulsionada pelo mtodo
inspirado no procedimento dos matemticos, Plato deixara de lado,
provisoriamente, a natureza do sensvel enquanto sensvel. Mas na etapa final de
seu pensamento, animada tambm por uma dialtica descendente que procura
vincular o inteligvel ao sensvel, essa questo assume crescente interesse,
motivando a cosmogonia e a fsica do Timeu. Tambm no ensinamento oral dessa
fase segundo o depoimento de Aristteles Plato ocupou-se do mesmo
problema, embora tratando-o noutra direo, ao investigar as idias relativas aos
objetos de arte.
A relao existente entre as formas e os objetos fsicos que lhe so
correspondentes a outra grande questo levantada pelo Parmnides. Plato
pretende resolv-la atravs de duas noes fundamentais: a de participao e a de
imitao. No Parmnides o prprio Plato formula muitas das objees que
pensadores posteriores (inclusive Aristteles) faro a essas noes. E, se ao longo
da evoluo de seu pensamento, permanentemente aprofundou, esclareceu ou refez
o significado de participao e de imitao, jamais abriu mo da transcendncia das
idias.
A doutrina platnica da imitao (mmesis) difere da que os pitagricos
propunham desde o sculo VI a.C. Desenvolvendo um pensamento fundamentado
nas investigaes matemticas, os primitivos pitagricos afirmavam que "todas as
coisas so nmeros", entendendo como nmeros realidades corpreas, constitudas
por unidades indecomponveis que eram ao mesmo tempo o mnimo de corpo e o
mnimo de extenso. As coisas imitariam os nmeros, para os pitagricos, numa
acepo plenamente realista: os objetos refletiriam exteriormente sua constituio
numrica interior. A mmesis, no pitagorismo, apresentara portanto um carter de
imanncia: o modelo e a cpia esto ambos no plano concreto; so as duas faces
interna (apreendida racionalmente) e externa (apreendida pelos sentidos) da
mesma realidade. Com Plato a noo de imitao adquire acepo metafsica,
como lgica decorrncia do "distanciamento" entre o plano sensvel e o inteligvel.
Os objetos fsicos mltiplos, concretos e perecveis aparecem como cpias
imperfeitas dos arqutipos ideais, in-corpreos e perenes. O mundo sensvel seria
uma imitao do mundo inteligvel, pois todo o universo, segundo a cosmogonia
do Timeu, seria resultante da ao de um divino arteso (demiurgo) que teria dado
forma, pelo menos at certo ponto, a uma matria-prima (a "causa errante"),
tomando por modelo as idias eternas. A arte divina teria produzido as obras da
natureza e tambm as imagens dessas obras (como o reflexo do fogo numa parede).
Analogamente, a arte humana produz de dupla maneira: o homem tanto constri
uma casa real como, na condio de pintor, pode reproduzir num quadro a imagem
dessa casa. O artista aparece por isso, na Repblica, como "criador de aparncias". O
problema da imitao torna-se mais complexo quando referido aos objetos de arte,
objetos artificiais, artefatos. Faz-se ento a distino entre graus intermedirios de
imitao: o objeto natural imita a idia que lhe correspondente e a arte imita, por
sua vez, aquela imitao. A relao cpia-modelo usada metafisicamente por Plato
para explicar a relao sensvel-inteligvel reaparece assim em sua concepo
esttica e justifica as restries feitas aos artistas na Repblica. Particularmente os
poetas, como Homero, so a apresentados como fazendo "simulacros com
simulacros, afastados da verdade". No caso das artes plsticas, Plato recusa a
utilizao dos recursos da perspectiva, que ento se difundiam e lhe pareciam a
sofistica na arte, pois acentuavam a "iluso de realidade". A arte imitativa deveria
preservar o carter de cpia de seus produtos, no querendo confundi-los com os
objetos reais. Outro caminho para as artes plsticas seria tentar reproduzir a
verdadeira realidade das formas incorpreas , o que coloca Plato, segundo
alguns intrpretes, como antecipador da arte abstrata.

O itinerrio da sombra luz

Na Repblica, a organizao da cidade ideal apia-se numa diviso racional do


trabalho. Como reformador social, Plato considera que a justia depende da
diversidade de funes exercidas por trs classes distintas: a dos artesos, dedicados
produo de bens materiais; a dos soldados, encarregados de defender a cidade; a
dos guardies, incumbidos de zelar pela observncia das leis. Produo, defesa,
administrao interna estas as trs funes essenciais da cidade. E o importante
no que uma classe usufrua de uma felicidade superior, mas que toda a cidade seja
feliz. O indivduo faria parte da cidade para poder cumprir sua funo social e nisso
consiste ser justo: em cumprir a prpria funo.
A reorganizao da cidade, para transform-la em reino da justia, exige
naturalmente reformas radicais. A famlia, por exemplo, deveria desaparecer para
que as mulheres fossem comuns a todos os guardies; as crianas seriam educadas
pela cidade e a procriao deveria ser regulada de modo a preservar a eugenia; para
evitar os laos familiares egostas, nenhuma criana conheceria seu verdadeiro pai e
nenhum pai seu verdadeiro filho; a execuo dos trabalhos no levaria em conta
distino de sexo mas to-somente a diversidade das aptides naturais.
A efetivao dessa utopia social dependeria fundamentalmente, por outro
lado, de um cuidadoso sistema educativo, que permitisse a cada classe desenvolver
as virtudes indispensveis ao exerccio de suas atribuies. Mas a cidade ideal s
poderia surgir se o governo supremo fosse confiado a reis-filsofos. Esses chefes
de Estado seriam escolhidos dentre os melhores guardies e submetidos a diversas
provas que permitiriam avaliar seu patriotismo e sua resistncia. Mas,
principalmente, deveriam realizar uma srie de estudos para poderem atingir a
cincia, ou seja, o conhecimento das idias, elevando-se at seu fundamento
supremo: a idia do Bem.
A discusso em torno da cidade ideal cede ento lugar, na Repblica, a duas
apresentaes sintticas de como se desdobraria o conhecimento humano ao
ascender at a contemplao do mundo das essncias: o esquema da linha dividida
e a alegoria da caverna.
Uma linha dividida em dois segmentos (AB, BC), um representando o plano,
sensvel e outro o plano inteligvel, serve a Scrates (a certamente apenas porta-voz
de Plato) para tornar visualizvel a ascese dialtica. Esses dois segmentos
apresentam subdivises correspondentes a diferentes tipos de objetos sensveis e
inteligveis e, conseqentemente, a modalidades diversas de conhecimento:
O processo de conhecimento representa a progressiva passagem das
sombras e imagens turvas ao luminoso universo das idias, atravessando etapas
intermedirias. Cada fase encontra sua fundamentao e resoluo na fase seguinte.
O que no visto claramente no plano sensvel (e s pode ser objeto de conjetura)
transforma-se em objeto de crena quando se tem condio de percepo ntida.
Assim, o animal que na obscuridade "parece um gato" revela-se de fato um gato
quando se acende a luz. Mas essa evidncia sensvel ainda pertence ao domnio da
opinio: uma crena (pstis), pois a certeza s pode advir de uma demonstrao
racional e, portanto, depois que se penetra na esfera do conhecimento inteligvel.
No plano sensvel o conhecimento no ultrapassa o nvel da opinio, da
plausibilidade. A primeira etapa do conhecimento inteligvel representada pela
dinoia, conhecimento discursivo e mediatizador, que estabelece ligaes racionais:
o conhecimento tpico das matemticas. O conhecimento sensvel deve
fundamentar-se nesse patamar que lhe est sobreposto e lhe d sustentao. Isso
significa que, para Plato (sugesto que o Renascimento desenvolver), o
conhecimento do mundo fsico deve ser construdo com instrumental matemtico.
Mas os conhecimentos matemticos no constituem, no platonismo, o pice da
cincia. So ainda uma forma de inteligibilidade primeira, marcada por
compromissos com o plano sensvel: as entidades matemticas so mltiplas (faz-se
um clculo ou uma demonstrao geomtrica utilizando-se diversos 3 ou vrios
tringulos); alm disso a prpria representatividade manifesta um liame do plano
matemtico com a sensibilidade, a denunciar seu carter de intermedirio entre a
percepo sensvel e a inteligibilidade plena. Esta s se alcana quando, alm das
entidades matemticas, chega-se evidncia puramente intelectual (nesis) das idias.
No se trata mais de vrios 3, mas da essncia mesma de "trindade", que confere
sentido queles seus reflexos matemticos; no se trata mais de tringulos de
vrios tipos , mas da "triangularidade" que neles se efetiva, sem se esgotar em
nenhum deles. Chega-se assim ao domnio das formas, dialtica que se apresenta
como uma metamatemtica. Finalmente, no cume do mundo das idias, a
superessncia do Bem daria sustentao a todo o edifcio das formas puras e
incorpreas. Princpio de conhecimento (do ponto de vista do sujeito) e de
cognoscibilidade (do ponto de vista do objeto), o Bem exerce papel anlogo ao que
o Sol possui no plano sensvel e material. Princpio de realidade ele que
confere s coisas essncia e existncia, transmutando em estrutura real a tessitura
inicialmente hipottica das idias. Superessncia o absoluto irrelacionvel e por
isso mesmo indefinvel: dele como dos irracionais matemticos s se podem
ter indicaes aproximadas, como as que se obtm de uma "justa medida". Do
carter indefinvel do Bem necessariamente decorre um senso agudo da limitao
da palavra, que perpassa toda a obra platnica e est expresso particularmente no
Fedro e na Carta VII.
A alegoria da caverna dramatiza a ascese do conhecimento, complementando
o esquema da linha dividida. Descreve um prisioneiro que contempla, no fundo de
uma caverna, os reflexos de simulacros que sem que ele possa ver so
transportados frente de um fogo artificial. Como sempre viu essas projees de
artefatos, toma-os por realidade e permanece iludido. A situao desmonta-se e
inverte-se desde que o prisioneiro se liberta: reconhece o engano em que
permanecera, descobre a "encenao" que at ento o enganara e, depois de galgar
a rampa que conduz sada da caverna, pode l fora comear a contemplar a
verdadeira realidade. Aos poucos, ele, que fora habituado sombra, vai podendo
olhar o mundo real: primeiro atravs de reflexos como o do cu estrelado
refletido na superfcie das guas tranqilas , at finalmente ter condies para
olhar diretamente o Sol, fonte de toda luz e de toda realidade.
Essa alegoria de mltipla dimenso pode ser vista tanto como fabulao
da ascese religiosa, como da filosfica e cientfica guarda ainda uma conotao
poltica, que o contexto da Repblica no permite negligenciar. Aquele que se liberta
das iluses e se eleva viso da realidade o que pode e deve governar para libertar
os outros prisioneiros das sombras: o filsofo-poltico, aquele que faz de sua
sabedoria um instrumento de libertao de conscincias e de justia social, aquele
que faz da procura da verdade uma arte de desprestidigitao, um desilusionismo.
O aspecto emocional que a alegoria da caverna ressalta no processo de
converso das conscincias luz tambm est apresentado no Banquete. A ascese ao
mundo das idias a descrita particularmente no discurso que Scrates atribui a
Diotima de Mantinia como uma "ascese ertica". Eros desempenha em relao
aos sentimentos e s emoes o mesmo papel de intermedirio que as entidades
matemticas representam para a vida intelectual. Ele comanda a subida por via da
atrao que a beleza dos corpos exerce sobre os sentidos e remete, afinal,
contemplao do Belo supremo, o Belo em si.
A construo do conhecimento constitui, assim, no platonismo, uma
conjugao de intelecto e emoo, de razo e vontade: a episteme fruto de
inteligncia e de amor.

Cronologia
508 a.C. A revolta popular liderada por Clstenes instaura a democracia em
Atenas.
490-479 a.C. Atenas toma parte nas guerras mdicas (contra os persas).
460-430 a.C. Perodo de apogeu de Atenas, no qual ocorre o governo de
Pricles.
460 a.C. (aproximadamente) Chega a Atenas o filsofo Anaxgoras de
Clazmena, que, embora protegido por Pricles, afinal tem de deixar a cidade,
devido s perseguies suscitadas por suas idias, contrrias religiosidade popular
e oficial.
432 a.C. Irrompe a guerra do Peloponeso: entre Atenas e Esparta.
428-427 a.C. Nasce Plato em Atenas.
399 a.C. Julgado pela Assemblia popular de Atenas, Scrates condenado a
morrer bebendo cicuta.
388 a.C. (aproximadamente) Plato viaja: Magna Grcia (sul da Itlia, Siclia); em
Siracusa, conhece Dion, cunhado do tirano Dionsio I; convive com Euclides em Megara; vai a
drene (onde toma cincia das pesquisas matemticas de Teodoro) e visita o Egito.
387 a.C. Plato funda, em Atenas, a Academia.
367 a.C. Morre Dionsio I, de Siracusa, sendo sucedido por seu filho Dionsio
II. Segunda viagem de Plato a Siracusa.
361 a.C. Terceira viagem a Siracusa.
348-347 a.C. Plato morre em Atenas.
338 a.C. Filipe da Macednia conquista a Grcia, vitorioso na batalha de
Queronia.
Bibliografia
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Belles-Lettres, Paris, 1920. Em Ingls: The Dialogues of Plato, trad. de
Benjamim Jowett, Oxford, 4.a ed., 1953.
BRUN, JEAN: Platon et l'Acadmie, Presses Universitaires de France, Paris, 1960.
SCHUHL, PIERRE-MAXIME: LOeuvre de Platon, Hachette, Paris, 1954.
CHTELET, F.: Platon, Gallimard, 1965.
KOYR, A.: Introduction Ia Lecture de Platon, Gallimard, Paris, 1962.
SCHAERER, R.: La Question Platonicienne, Mmories de l'Universit de Neuch-tel X,
Neuchtel Universit, 1938.
ROBIN, L.: Platon, nova edio pstuma com bibliografia atual Paris, P.U.F.,
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Dis: Autour de Platon I et II, Beauchesne, Paris, 1927.
MILHAUD, G.: Philosophes Gomtres de Ia Grce, Livro II Plato, Alcan, Paris, 1900.
MUGLER, C: Platon et Ia Recherche Mathmatique de son poque, Strasbourg-Zurich,
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MICHEL, P. H.: De Pythagore Euclide, Belles-Lettres, Paris, 1950.
MOREAU, J.: Le Sens du Platonisme, Les Belles-Lettres, Paris, 1967.
Ross, DAVID: Plato's Theory of Ideas, Oxford, 1953.
CHERNISS: Aristotle's Criticism of Plato and the Academy, John Hopkins Press,
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TAYLOR, A. E.: Plato, Meridian Books, Nova York, 1956.
CORNFORD, F. M.: Plato's Theory of Knowledge, Routledge & Kegan Paul Ltd.,
Londres.
FIELD, G. C: Plato and his Contemporaries, Methuen, Londres, 1.aed., 1930.
GOLDSCHMIDT, V.: Les Dialogues de Platon, Presses Universitaires de France, 1947.
GOLDSCHMIDT, V.: A Religio de Plato, Difuso Europia do Livro, 1970.
O BANQUETE
Traduo e Notas de Jos Cavalcante de Souza

Texto, traduo e notas

Para a presente traduo servi-me dos textos de J. Burnet, da Bibliotheca Oxoniensis


(Oxford) e de L. Robin, da coleo "Les Belles Lettres". Como comecei a trabalhar com o
primeiro, serviu-me ele naturalmente de primeiro fundamento, ao qual apliquei algumas lies do
segundo, que mais recente1 e que oferece um aparato crtico bem mais rico. O confronto dessas
duas excelentes edies possibilitou-me mesmo a apresentao de um terceiro texto, que representa
uma tentativa de aproveitamento do que elas tm de melhor, e que espero poder ser um dia
aproveitado numa edio bilinge. Na impossibilidade de o fazer agora, julgo todavia que no ser
de todo fora de interesse, sobretudo para a apreciao da traduo, prestar algum esclarecimento
sobre a maneira como se preparam as edies modernas dos textos gregos.
O estabelecimento de um texto grego antigo um trabalho primeira vista altamente
maante, sem dvida alguma rduo, mas afinal capaz de suscitar profundo interesse e mesmo
empolgar o esprito de quem se disponha a abord-lo. Um editor moderno encontra-se em face de
vrias edies anteriores, de uma profuso de manuscritos medievais, de alguns papiros e uma
quantidade de citaes de autores antigos. Tudo isso perfaz a tradio do texto que ele se dispe a
reapresentar. Numa extenso de dois mil e tantos anos, as vicissitudes da histria fizeram-na
seccionar-se em etapas com desenvolvimento prprio, sob o qual se dissimulam os sinais de sua
continuidade. Assim, ele tem que levar em conta uma tradio antiga, uma tradio medieval e
mesmo, podemos acrescentar, uma tradio moderna. Cada uma delas reclama um tratamento
especial, a se efetuar todavia sempre em correlao com as demais.

1
De 1929, enquanto que a de Burnet de 1901. (N. do T.)
Os documentos que lhe vo servir de base so os da tradio medieval, os manuscritos. A
quantidade destes considervel para uma boa parte dos autores gregos, mas seu valor
naturalmente desigual. Impe-se um trabalho de seleo e classificao em que se procure o liame
perdido da tradio antiga, e em que portanto o testemunho dos papiros e das citaes dos autores
antigos podem muitas vezes ser de grande prstimo. Alm desse cotejo precioso com os restos
da tradio antiga, muitas vezes a cincia da tradio moderna, iniciada com as
primeiras edies do Renascimento, que corrige as insuficincias das duas tradies precedentes.
Atravs dos dados e instrumentos de interpretao dessas trs tradies que se exerce o esforo
para reconstituir o texto que possa representar o mais possvel o prprio texto de um autor dos
sculos V ou IV, por exemplo, esforo capaz, como foi dito acima, de estimular poderosamente a
curiosidade intelectual.
No que se refere a Plato2, contam-se atualmente 150 manuscritos de suas obras. Sem
dvida, sua seleo e classificao j se encontra em estabelecimento mais ou menos definitivo,
depois do trabalho sucessivo de vrios editores e crticos, a partir do Renascimento. medida que
se foram sucedendo as edies, foi-se elevando o nmero dos manuscritos consultados e colacionados,
o que evidentemente complicava cada vez mais o trabalho crtico. Essa dificuldade culminou com a
atividade extraordinria de Immanuel Bekker, que no comeo do sculo XIX colacionou 77
manuscritos, sobre os quais baseou sua edio, provida de dois volumes de Commentaria
Critica, aparecidos em 19233.
Os crticos e editores seguintes sentiram ento a necessidade de simplificar o aparato crtico
resultante de um to grande acervo de documentos, que s poderia estorvar, em lugar de facilitar o
seu uso proveitoso. Foi ento que surgiu a idia de remontar origem dos manuscritos medievais e
de, em funo dessa origem, proceder sua classificao. Tal projeto tomou logo a forma de uma
procura do arqutipo, isto , do manuscrito da tradio antiga do qual proviriam todos os
manuscritos medievais. Em funo do arqutipo foram os manuscritos agrupados em famlias,
cujas caractersticas procurou-se explicar pelas vrias lies que ele apresentava, em notas abaixo
ou margem do texto. As variantes do arqutipo denotariam, assim, que se tratava de uma
edio erudita, e portanto representante das melhores correntes da tradio antiga do texto
2
Todas as informaes sobre o texto de Plato foram tiradas do belo livro de Alline, Histoire du Texte de Platon, Edouard Champion, 1915.
(N. do T.)
3
Essa edio a vulgata dos aparatos crticos. V. Alline, op. cit., p. 317. (N. do T.)
platnico. Tais correntes estariam, desse modo, representadas pelas vrias famlias de manuscritos
medievais, e assim, por conseguinte, teramos garantida a continuidade entre a tradio antiga e a
moderna, aparentemente quebrada.
A luz dessa teoria foi possvel a utilizao metdica dos manuscritos. Agrupados em
famlias, apenas os melhores, os mais representativos de cada uma delas foram tomados para
colao e referncia. De uma primeira destaca-se o Bodleianus 39, da Biblioteca de Oxford,
tambm chamado Clarkianus, do nome do mineralogista ingls, Edw. D. Clarke, que o adquiriu
juntamente com outros do mosteiro de Patmos, em comeos do sculo XIX. Esse manuscrito data
do fim do sculo IX ou do comeo do seguinte, e contm apenas o primeiro dos dois volumes que
geralmente perfazem, nos manuscritos, as obras completas de Plato. Os aparatos crticos desde
Schanz, um dos grandes estudiosos do texto platnico, assinalam-no com a sigla B. Uma segunda
famlia tem dois principais representantes, que se complementam; o Parisinus gr. 1807 (sigla A),
da mesma poca que o Bodleianus, e que ao contrrio deste tem apenas o segundo volume; e o
Venetus, append. class. 4, n. 1 (sigla T), da Biblioteca de S. Marcos de Veneza, que parece
derivar-se do primeiro e data do fim do sculo XI ou comeo do seguinte. Enfim, uma terceira
famlia representada pelo Vindobonensis 54, sup-plem.philo. gr. 7 (sigla W), que data
provavelmente do sculo XII.
Qualquer outro manuscrito porventura utilizado no estabelecimento de um texto ser
sempre a ttulo suplementar e como representante de uma tradio especial dentro de uma das trs
famlias acima referidas. Por exemplo, no caso do Banquete, enquanto Burnet utiliza apenas os
manuscritos B, T e W, Robin serve-se, alm desses, do Vindobonensis 21 (sigla Y), cujas lies
em parte se aproximam da tradio AT, em parte da de B. Ao lado desses manuscritos 4, os
nossos dois editores conferem tambm o Papyrus Oxyrhynchus n. 843, que contm um texto
integral do Banquete, a partir de 201 a 1. A esses textos de base acrescentam-se as citaes dos
autores antigos (que com o Papyrus Oxyrhynchus representam a tradio antiga, designada
tambm de indireta pela crtica) e as correes dos crticos e editores modernos. esse o material
que figura num aparato crtico, condensado em algumas linhas abaixo do texto.

4
As correes que esses manuscritos apresentam so indicadas por Burnet com a letra minscula (b, t, w) e por Robin com as mesmas
maisculas, mas com o expoente 2 (B2, T2, W2). (N. do T.)
As edies de Burnet e de Robin apresentam em seu texto muitas concordncias. Ambas
se efetuaram ao termo de uma longa evoluo da crtica de texto, e em conseqncia trazem ambas
um trao comum que as diferencia da maioria das edies do sculo XIX, e que uma acentuada
prudncia na adoo das correes modernas, abundantes entre os editores do sculo anterior. O
aparato crtico de ambas, particularmente o de Robin, bem mais rico a esse respeito, d bem uma
idia disso. O texto de Robin, quanto escolha das lies, parece mais conservador ainda que o de
Burnet, mais respeitador da tradio dos manuscritos, o mesmo no ocorrendo porm quanto
pontuao do texto e disposio dos pargrafos, que ele procura apresentar moda dos livros
modernos. Tal procedimento, justificvel alis diante da irregularidade que os manuscritos
apresentam a este respeito como alis a tradio antiga , se tem a vantagem da clareza,
muitas vezes afeta o estilo ou mesmo o sentido de certas passagens do texto. A dissimulao do
estilo particularmente sensvel aqui no Banquete, nos discursos de Pausnias e de Alcibades,
em que uma pontuao moderna reduz os longos perodos do primeiro e disciplina as frases
naturalmente desordenadas do segundo. Esse motivo levou-me afinal a conservar o texto de Burnet
como base, embora adotando um maior nmero de lies de Robin.
Em algumas dificuldades da traduo vali-me das tradues francesas de L. Robin ("Les
Belles Lettres ") e de Emile Chambry (Edies Garnier), assim como em uns poucos casos da
traduo latina de B. B. Hirschig, da coleo Didot. Todavia, cumpre-me declarar, com o risco
embora de parecer incorrer em pecado de fatuidade, o prazer especial que me deu a verso direta do
texto grego ao vernculo, cujas genunas possibilidades de expresso me parecem ofuscadas e
ameaadas no tradutor brasileiro de textos gregos e latinos pelo prestgio das grandes lnguas
modernas da cultura ocidental. bem provvel que a presente traduo nada tenha de
excepcional, e que o seu autor, em muitos torneios de frases e em muita escolha de palavra, tenha
sido vtima da falta de disciplina e de tradio que est porventura alegando nesse setor da nossa
atividade intelectual. No entanto, em alguma passagem ele ter talvez acertado, e esse parco
resultado poder dar uma idia do que seria uma reao especial nossa a um texto helnico, que
conhecemos geralmente atravs da sensibilidade e da elucubrao do francs, do ingls, do alemo,
etc. Nossa lngua tem necessariamente uma maleabilidade especial, uma peculiar distribuio do
vocabulrio, uma maneira prpria de utilizar as imagens e de proceder s abstraes, e todos esses
aspectos da sua capacidade expressiva podem ser poderosamente estimulados pelo verdadeiro desafio
que as qualidades de um texto grego muitas vezes representam para uma traduo. A linguagem
filosfica sobretudo, e em particular a linguagem de Plato, oferece sob esse aspecto um vastssimo
campo para experincias dessa natureza. Alguns exemplos do Banquete ilustram muito bem esse
tipo especial de dificuldades que o tradutor pode encontrar e para as quais ele acaba muitas vezes
recorrendo s notas explicativas. No entanto, se estas so inevitveis numa traduo moderna, no
absolutamente inevitvel que sejam as mesmas em todas as lnguas modernas. Fazer com que se
manifestasse nesta traduo justamente a diferena que acusa a reao prpria e o carter de nossa
lngua, eis o objetivo sempre presente do tradutor.
Quanto s pequenas notas explicativas, do elas naturalmente um rpido esclarecimento
sobre nomes e fatos da civilizao helnica aparecidos no contexto do Banquete, mas o que elas
almejam sobretudo ajudar compreenso desta obra platnica, ao mesmo tempo em seus trechos
caractersticos e em seu conjunto. Alguns anos de ensino de literatura grega levaram-me curiosa
constatao da impacincia e desateno com que uma inteligncia moderna l um dilogo
platnico. Quem quiser por si mesmo tirar a prova disso, procure a uma primeira leitura resumir
qualquer um desses dilogos, mesmo dos menores, e depois confira o seu resumo com uma segunda
leitura. Foi a vontade de ajudar o leitor moderno nesse ponto que inspirou a maioria das notas.
Finalmente devo assinalar que, no obstante a modstia de contedo e de propores deste
trabalho, eu no teria sido capaz de efetu-lo sem a constante orientao do Prof. Aubreton, cujas
observaes levaram-me a sucessivos retoques, particularmente na traduo e na confeco das
notas. A ele, por conseguinte, quero deixar expressos, com a minha admirao, os mais sinceros
agradecimentos.
J. C. de Souza
Apolodoro1 e um Companheiro

APOLODORO
Creio que a respeito do que que-reis saber no estou sem preparo. Com
efeito, subia eu h pouco cidade, vindo de minha casa em Falero2, quando um
conhecido atrs de mim avistou-me e de longe me chamou, exclamando em tom de
brincadeira3: "Falerino! Eh, tu, Apolodoro! No me esperas?" Parei e esperei. E ele
disse-me: "Apolodoro, h pouco mesmo eu te procurava, desejando informar-me
do encontro de Agato, Scrates, Alcibades, e dos demais que ento assistiram ao
banquete4, e saber dos seus discursos sobre o amor, como foram eles. Contou-mos
uma outra pessoa que os tinha ouvido de Fnix, o filho de Filipe, e que disse que
tambm tu sabias. Ele porm nada tinha de claro a dizer. Conta-me ento, pois s o
mais apontado a relatar as palavras do teu companheiro. E antes de tudo,
continuou, dize-me se tu mesmo estiveste presente quele encontro ou no." E eu
respondi-lhe: " muitssimo provvel que nada de claro te contou o teu narrador,
se presumes que foi h pouco que se realizou esse encontro de que me falas, de
modo a tambm eu estar presente. Presumo, sim, disse ele. De onde, Glauco?,
tornei-lhe. No sabes que h muitos anos Agato no est na terra, e desde que eu
freqento Scrates e tenho o cuidado de cada dia saber o que ele diz ou faz, ainda
no se passaram trs anos5? Anteriormente, rodando ao acaso e pensando que fazia
alguma coisa, eu era mais miservel que qualquer outro, e no menos que tu agora,
se crs que tudo se deve fazer de preferncia filosofia"6. "No fiques zombando,

1
O interlocutor de Scrates no est s. (N. do T.)
2
Porto de Atenas, ao sul do Pireu, a menos de 6 km da cidade. (N. do T.)
3
A brincadeira consiste no tom solene da interpelao, dado pelo patronmico e pelo emprego do demonstrativo em vez do pronome pessoal.
(N. do T.)
4
Literalmente, jantar coletivo. Depois da refeio propriamente dita que havia o simpsio, i.e., "bebida em conjunto", acompanhado das
mais variadas diverses, entre as quais as competies literrias. (N. do T.)
5
Entre a data da realizao do banquete (v. infra 173a) e a da sua narrao por Apolodoro medeiam portanto muitos anos. Tanto quanto um
indcio cronolgico, essa notcia vale como uma curiosa ilustrao da importncia da memria na cultura da poca. V. infra 173 b e cf.
Fdon, 57a-b (N. do T.)
6
O entusiasmo de Apolodoro, raiando o ridculo, constitui sem dvida o primeiro trao do retrato que o Banquete nos d de um Scrates
capaz de suscitar desencontradas adeses, e nesse sentido uma hbil antecipao da atitude de Alcibades, tambm ridcula, mas noutra
perspectiva. Cf. infra 222 c-d (N. do T.)
tornou ele, mas antes dize-me quando se deu esse encontro". "Quando ramos
crianas ainda, respondi-lhe, e com sua primeira tragdia. Agato vencera o
concurso7, um dia depois de ter sacrificado pela vitria, ele e os coristas8. Faz muito
tempo ento, ao que parece, disse ele. Mas quem te contou? O prprio Scrates?
No, por Zeus, respondi-lhe, mas o que justamente contou a Fnix. Foi um certo
Aristodemo, de Cidateneo, pequeno, sempre descalo9; ele assistira reunio,
amante de Scrates que era, dos mais fervorosos a meu ver. No deixei todavia de
interrogar o prprio Scrates sobre a narrao que lhe ouvi, e este me confirmou o
que o outro me contara. Por que ento no me contas-te? tornou-me ele;
perfeitamente apropriado o caminho da cidade a que falem e ouam os que nele
transitam."
E assim que, enquanto caminhvamos, fazamos nossa conversa girar sobre
isso, de modo que, como disse ao incio, no me encontro sem preparo. Se
portanto preciso que tambm a vs vos conte, devo faz-lo. Eu, alis, quando
sobre filosofia digo eu mesmo algumas palavras ou as ouo de outro, afora o
proveito que creio tirar, alegro-me ao extremo; quando, porm, se trata de outros
assuntos, sobretudo dos vossos, de homens ricos e negociantes, a mim mesmo me
irrito e de vs me apiedo, os meus companheiros, que pensais fazer algo quando
nada fazeis. Talvez tambm vs me considereis infeliz, e creio que verdade o que
presumis; eu, todavia, quanto a vs, no presumo, mas bem sei.
COMPANHEIRO
s sempre o mesmo, Apolodoro! Sempre te ests maldizendo, assim
como aos outros; e me pareces que assim sem mais consideras a todos os outros
infelizes, salvo Scrates, e a comear por ti mesmo. Donde que pegaste este
apelido de mole, no sei eu; pois em tuas conversas s sempre assim, contigo e com
os outros esbravejas, exceto com Scrates.
APOLODORO

7
Em 416, no arcontado de Eufemo. V. supra nota 5. (N. do T.)
8
Os que formavam o coro de sua tragdia. (N. do T.)
9
Tal como o prprio Scrates (v. infra 174a). Sem dvida, outra indicao do fascnio que Scrates exercia sobre os amigos. (N do T.)
Carssimo, e assim to evidente que, pensando desse modo tanto de
mim como de ti, estou eu delirando e desatinando?
COMPANHEIRO
No vale a pena, Apolodoro,
brigar por isso agora; ao contrrio, o que eu te pedia, no deixes de faz-lo;
conta quais foram os discursos.
APOLODORO
Foram eles em verdade mais ou menos assim. . . Mas antes do comeo,
conforme me ia contando Aristodemo, que tambm eu tentarei contar-vos.
Disse ele que o encontrara Scrates, banhado e calado com as sandlias, o
que poucas vezes fazia; perguntou-lhe ento onde ia assim to bonito.
Respondeu-lhe Scrates: Ao jantar em casa de Agato. Ontem eu o evitei,
nas cerimnias da vitria, por medo da multido; mas concordei em comparecer
hoje. E eis por que me embelezei assim, a fim de ir belo casa de um belo. E tu
disse ele que tal te dispores a ir sem convite ao jantar?
Como quiseres tornou-lhe o outro.
Segue-me, ento continuou Scrates e estraguemos o provrbio,
alterando-o assim: "A festins de bravos10, bravos vo livremente." Ora, Homero
parece no s estragar mas at desrespeitar este provrbio; pois tendo feito de
Agameno um homem excepcionalmente bravo na guerra, e de Menelau um "mole
lanceiro", no momento em que Agameno fazia um sacrifcio e se banqueteava, ele
imaginou Menelau chegado sem convite, um mais fraco ao festim de um mais
bravo.11
Ao ouvir isso o outro disse: provvel, todavia, Scrates, que no
como tu dizes, mas como Homero, eu esteja para ir como um vulgar ao festim de
um sbio, sem convite. V ento, se me levas, o que deves dizer por mim, pois no
concordarei em chegar sem convite, mas sim convidado por ti.
10
Ilada, XVII, 587, "de bravos" coincide com o nome do poeta Agato, O provrbio homrico fica estragado, primeiramente por se
subentender de Agato, e tambm pelo fato de o prprio Scrates se qualificar de bravo, contra o hbito de sua irnica modstia. (N. do T.)
11
A "mais fraco" e "mais bravo" correspondem no texto grego simplesmente os comparativos de "ruim" e "bom". Tal relao deixa-nos ver
assim, sob a capa de uma crtica ao grande poeta o aspecto fundamental do pensamento de Scrates, i.e., sua constante referncia idia do
bem. Outra indicao dramtica, sem dvida, e preludia a doutrina da atrao universal do bom e do belo. V. infra 205d-e. (N. do T.)
Pondo-nos os dois a caminho12 disse Scrates decidiremos o que
dizer. Avante!
Aps se entreterem em tais conversas, dizia Aristodemo, eles partem.
Scrates ento, como que ocupando o seu esprito consigo mesmo, caminhava
atrasado, e como o outro se detivesse para aguard-lo, ele lhe pede que avance.
Chegado casa de Agato, encontra a porta aberta e a lhe ocorre, dizia ele, um
incidente cmico. Pois logo vem-lhe ao encontro, l de dentro, um dos servos, que
o leva onde se reclinavam13 os outros, e assim ele os encontra no momento de se
servirem; logo que o viu, Agato exclamou: Aristodemo ! Em boa hora chegas
para jantares conosco ! Se vieste por algum outro motivo, deixa-o para depois, pois
ontem eu te procurava para te convidar e no fui capaz de te ver. Mas. . . e
Scrates, como que no no-lo trazes?
Voltando-me ento prosseguiu ele em parte alguma vejo Scrates a
me seguir; disse-lhe eu ento que vinha com Scrates, por ele convidado ao jantar.
Muito bem fizeste disse Agato; mas onde est esse homem?
H pouco ele vinha atrs de mim; eu prprio pergunto espantado onde
estaria ele.
No vais procurar Scrates e traz-lo aqui, menino14? exclamou
Agato. E tu, Aristodemo, reclina-te ao lado de Erixmaco.
Enquanto o servo lhe faz abluo para que se ponha mesa, vem um outro
anunciar: Esse Scrates retirou-se em frente dos vizinhos e parou; por mais que
eu o chame no quer entrar.
estranho o que dizes exclamou Agato; vai cham-lo! E no mo
largues!
Disse ento Aristodemo: Mas no!

12
Outra alterao de um verso homrico tambm tornado proverbial (Ilada, X, 224), em que o (= um pelo outro) substitudo por
(= a caminho). (N. do T.)
13
Em longos divas, que geralmente comportavam dois convivas, s vezes trs. (N. do T.)
14
Agato est falando a um servo, tal como muitas vezes um patro entre ns fala com empregado. (N. do T.)
Deixai-o! um hbito seu esse15: s vezes retira-se onde quer que se
encontre, e fica parado. Vir logo porm, segundo creio. No o incomodeis
portanto, mas deixai-o.
Pois bem, que assim se faa, se teu parecer tornou Agato. E
vocs, meninos, atendam aos convivas. Vocs bem servem o que lhes apraz,
quando ningum os vigia, o que jamais fiz; agora portanto, como se tambm eu
fosse por vocs convidado ao jantar, como estes outros, sirvam-nos a fim de que os
louvemos.
Depois disso continuou Aristodemo puseram-se a jantar, sem que
Scrates entrasse. Agato muitas vezes manda cham-lo, mas o amigo no o deixa.
Enfim ele chega, sem ter demorado muito como era seu costume, mas exatamente
quando estavam no meio da refeio. Agato, que se encontrava reclinado sozinho
no ltimo leito16, exclama: Aqui, Scrates! Reclina-te ao meu lado, a fim de que
ao teu contato desfrute eu da sbia idia que te ocorreu em frente de casa. Pois
evidente que a encontraste, e que a tens, pois no terias desistido antes.
Scrates ento senta-se e diz: Seria bom, Agato, se de tal natureza fosse a
sabedoria que do mais cheio escorresse ao mais vazio, quando um ao outro nos
tocssemos, como a gua dos copos que pelo fio de l escorre17 do mais cheio ao
mais vazio. Se assim tambm a sabedoria, muito aprecio reclinar-me ao teu lado,
pois creio que de ti serei cumulado com uma vasta e bela sabedoria. A minha seria
um tanto ordinria, ou mesmo duvidosa como um sonho, enquanto que a tua
brilhante e muito desenvolvida, ela que de tua mocidade to intensamente brilhou,
tornando-se anteontem manifesta a mais de trinta mil gregos que a testemunharam.

15
curiosa essa explicao de um hbito socrtico a amigos de Scrates, tanto mais que, um pouco abaixo (dl-2), Agato revela estar
familiarizado com ele. Isso denuncia a fico platnica, e em particular a inteno de sugerir desde j a. capacidade socrtica para as longas
concentraes de esprito, como a que Alcibades contar em seu discurso (220c-d). (N. do T.)
16
Os divas do banquete se dispunham em forma de uma ferradura. No extremo esquerdo ficava o anfitrio, que punha sua direita o
hspede de honra. o lugar que Agato oferece a Scrates. (N.doT.)
17
Sem dvida um processo de purificao da gua. Aristfanes (Vespas, 701-702) refere-se ao mesmo processo, mas com relao ao leo.
(N.doT.)
s um insolente, Scrates disse Agato. Quanto a isso, logo mais
decidiremos eu e tu da nossa sabedoria, tomando Dioniso por juiz18; agora porm,
primeiro apronta-te para o jantar.
Depois disso continuou Aristodemo reclinou-se Scrates e jantou
como os outros; fizeram ento libaes e, depois dos hinos ao deus e dos ritos de
costume, voltam-se bebida. Pausnias ento comea a falar mais ou menos assim:
Bem, senhores, qual o modo mais cmodo de bebermos? Eu por mim digo-vos
que estou muito indisposto com a bebedeira de ontem, e preciso tomar flego e
creio que tambm a maioria dos senhores, pois estveis l; vede ento de que modo
poderamos beber o mais comodamente possvel.
Aristfanes disse ento: bom o que dizes, Pausnias, que de qualquer
modo arranjemos um meio de facilitar a bebida, pois tambm eu sou dos que
ontem nela se afogaram.
Ouviu-os Erixmaco, o filho de Acmeno, e lhes disse: Tendes razo!
Mas de um de vs ainda preciso ouvir como se sente para resistir bebida; no ,
Agato?
Absolutamente disse este tambm eu no me sinto capaz.
Uma bela ocasio seria para ns, ao que parece continuou Erixmaco
para mim, para Aristodemo, Fedro e os outros, se vs os mais capazes de beber
desistis agora; ns, com efeito, somos sempre incapazes; quanto a Scrates, eu o
excetuo do que digo, que ele capaz de ambas as coisas e se contentar com o que
quer que fizermos19. Ora, como nenhum dos presentes parece disposto a beber
muito vinho, talvez, se a respeito do que a embriaguez eu dissesse o que ela ,
seria menos desagradvel. Pois para mim eis uma evidncia que me veio da prtica
da medicina: esse um mal terrvel para os homens, a embriaguez; e nem eu
prprio desejaria beber muito nem a outro eu o aconselharia, sobretudo a quem
est com ressaca da vspera.

18
Patrono dos concursos teatrais e deus do vinho, Dioniso apropriadamente mencionado por Agato como o rbitro natural da prxima
competio entre os convivas, no simpsio propriamente dito. (N. do T.)
19
A o socrtica, i.e., o domnio dos apetites e sentidos do corpo, resiste tanto fadiga e dor como ao prazer (v. infra 220a), :al
como Plato queria que fossem os guardies da sua cidade ideal. V. Repblica III, 413d-e. iN. doT.)
Na verdade exclamou a seguir Fedro de Mirrinote20 eu costumo
dar-te ateno, principalmente em tudo que dizes de medicina; e agora, se bem
decidirem, tambm estes o faro. Ouvindo isso, concordam todos em no passar a
reunio embriagados, mas bebendo cada um a seu bel-prazer21.
Como ento continuou Erixmaco isso que se decide, beber cada
um quanto quiser, sem que nada seja forado, o que sugiro ento que mandemos
embora a flautista que acabou de chegar, que ela v flautear para si mesma, se
quiser, ou para as mulheres l dentro; quanto a ns, com discursos devemos fazer
nossa reunio hoje; e que discursos eis o que, se vos apraz, desejo propor-vos.
Todos ento declaram que lhes apraz e o convidam a fazer a proposio.
Disse ento Erixmaco: O exrdio de meu discurso como a Melanipa22 de
Eurpides; pois no minha, mas aqui de Fedro a histria que vou dizer. Fedro,
com efeito, freqentemente me diz irritado: No estranho, Erixmaco, que
para outros deuses haja hinos e pes, feitos pelos poetas, enquanto que ao Amor
todavia, um deus to venervel e to grande, jamais um s dos poetas que tanto se
engrandeceram fez sequer um encmio23? Se queres, observa tambm os bons
sofistas: a Hrcules e a outros eles compem louvores em prosa, como o excelente
Prdico24 e isso menos de admirar, que eu j me deparei com o livro de um
sbio25 em que o sal recebe um admirvel elogio, por sua utilidade; e outras coisas
desse tipo em grande nmero poderiam ser elogiadas; assim portanto, enquanto em
tais ninharias despendem tanto esforo, ao Amor nenhum homem at o dia de hoje
teve a coragem de celebr-lo condignamente, a tal ponto negligenciado um to
grande deus! Ora, tais palavras parece que Fedro as diz com razo. Assim, no s

20
Um dos numerosos demos (no tempo de Herdoto 100), i.e., distritos em que se subdividia a populao de tica. (N. do T.)
21
Geralmente o , i.e., o chefe do simpsio, eleito pelos convivas, determinava o programa da bebida, fixando inclusive o grau
de mistura do vinho a ser obrigatoriamente ingerido. V. infra 213e, 9-10. (N. do T.)
22
Melanipa, a Sbia, tragdia perdida de Eurpedes, que tambm escreveu Melanipa, a Prisioneira. Erixmaco refere-se ao verso
(frag. 487 Wagner) : no minha a histria, mas de minha me. (N. do T.)
23
Isto , uma composio potica, consagrada exclusivamente ao louvor de um deus ou de um heri. Um elogio potico belssimo, embora
no esprito da tragdia, encontra-se no famoso 3 estsimo da Antgona de Sfocles, 783-800. (N. do T.)
24
Natural de Ceos, nasceu por volta de 465. Preocupou-se especialmente com o estudo do vocabulrio. No Protgoras (315d) Scrates
chama-o de Tntalo, aludindo ao seu tormento na procura da expresso exata. (N. do T.)
25
O sbio em questo talvez Polcrates, o mesmo autor do panfleto que justificava a condenao de Scrates e que tambm escrevera peas
retricas de elogio panela, aos ratos, aos seixos. (N. do T.)
eu desejo apresentar-lhe a minha quota26 e satisfaz-lo como ao mesmo tempo,
parece-me que nos convm, aqui presentes, venerar o deus. Se ento tambm a vs
vos parece assim, poderamos muito bem entreter nosso tempo em discursos; acho
que cada um de ns, da esquerda para a direita, deve fazer um discurso de louvor
ao Amor, o mais belo que puder, e que Fedro deve comear primeiro, j que est
na ponta e o pai da idia.
Ningum contra ti votar, Erixmaco disse Scrates. Pois nem
certamente me recusaria eu, que afirmo em nada mais ser entendido seno nas
questes de amor, nem sem dvida Agato e Pausnias, nem tampouco
Aristfanes, cuja ocupao toda em torno de Dioniso e de Afrodite, nem
qualquer outro destes que estou vendo aqui. Contudo, no igual a situao dos
que ficamos nos ltimos lugares; todavia, se os que esto antes falarem de modo
suficiente e belo, bastar. Vamos pois, que em boa sorte comece Fedro e faa o seu
elogio do Amor.
Estas palavras tiveram a aprovao de todos os outros, que tambm
aderiram s exortaes de Scrates. Sem dvida, de tudo que cada um deles disse,
nem Aristodemo se lembrava bem, nem por minha vez eu me lembro de tudo o
que ele disse; mas o mais importante, e daqueles que me pareceu que valia a pena
lembrar, de cada um deles eu vos direi o seu discurso.
Primeiramente, tal como agora estou dizendo, disse ele que Fedro comeou
a falar mais ou menos desse ponto, "que era um grande deus o Amor, e admirado
entre homens e deuses, por muitos outros ttulos e sobretudo por sua origem. Pois
o ser entre os deuses o mais antigo honroso, dizia ele, e a prova disso que
genitores do Amor no os h, e Hesodo afirma que primeiro nasceu o Caos
. . . e s depois Terra de largos seios, de tudo assento sempre certo, e Amor...27
Diz ele ento28 que, depois do Caos foram estes dois que nasceram, Terra e
Amor. E Parmnides diz da sua origem bem antes de todos os deuses pensou29 em Amor.

26
Erixmaco vai atender queixa de Fedro com a proposta de um concurso de discursos, ao qual ele logo se prontifica a dar sua parte
(pavov) como se faz num piquenique, em que cada um traz uma parte da refeio coletiva. (N.doT.)
27
Hesodo, Teogonia, 116 ss. (N.doT.)
E com Hesodo tambm concorda Acusilau30. Assim, de muitos lados se
reconhece que Amor entre os deuses o mais antigo. E sendo o mais antigo para
ns a causa dos maiores bens. No sei eu, com efeito, dizer que haja maior bem
para quem entra na mocidade do que um bom amante, e para um amante, do que o
seu bem-amado. Aquilo que, com efeito, deve dirigir toda a vida dos homens, dos
que esto prontos a viv-la nobremente, eis o que nem a estirpe pode incutir to
bem, nem as honras, nem a riqueza, nem nada mais, como o amor. A que ento
que me refiro? vergonha do que feio e ao apreo do que belo. No com
efeito possvel, sem isso, nem cidade nem indivduo produzir grandes e belas obras.
Afirmo eu ento que todo homem que ama, se fosse descoberto a fazer um ato
vergonhoso, ou a sofr-lo de outrem sem se defender por covardia, visto pelo pai
no se envergonharia tanto, nem pelos amigos nem por ningum mais, como se
fosse isto pelo bem-amado. E isso mesmo o que tambm no amado ns notamos,
que sobretudo diante dos amantes que ele se envergonha, quando surpreendido
em algum ato vergonhoso. Se por conseguinte algum meio ocorresse de se fazer
uma cidade ou uma expedio de amantes e de amados, no haveria melhor
maneira de a constiturem seno afastando-se eles de tudo que feio e porfiando
entre si no apreo honra; e quando lutassem um ao lado do outro, tais soldados
venceriam, por poucos que fossem, por assim dizer todos os homens31. Pois um
homem que est amando, se deixou seu posto ou largou suas armas, aceitaria
menos sem dvida a idia de ter sido visto pelo amado do que por todos os outros,
e a isso preferiria muitas vezes morrer. E quanto a abandonar o amado ou no
socorr-lo em perigo, ningum h to ruim que o prprio Amor no o torne
inspirado para a virtude, a ponto de ficar ele semelhante ao mais generoso de
natureza; e sem mais rodeios, o que disse Homero "do ardor que a alguns heris

28
Alguns editores, entre os quais Burnet, acham que esse comentrio de Fedro ocioso, razo por que transferem para aqui a primeira frase
de c (E com Hesodo tambm concorda Acusilau . . .). Como pondera Robin, de fato ele est "dando uma lio", atitude perfeitamente
conforme com a seriedade do seu esprito medocre (N.doT.)
29
Isto , a deusa Justia (Simpl. Fs. 39, 18 Diels). (N. do T.)
30
Natural de Argos (sculo VI a.C), Acusilau escreveu vrias genealogias de deuses e homens. (N.doT.)
31
Se no isso uma aluso ao batalho sagrado dos tebanos, que se notabilizou em Leutras (371), uns dez anos depois da provvel
publicao do Banquete, pelo menos um indcio de que essa idia j corria o mundo grego, originria de cidades dricas. (N. do T.)
inspira o deus"32, eis o que o Amor d aos amantes, como um dom emanado de si
mesmo.
E quanto a morrer por outro, s o consentem os que amam, no apenas os
homens, mas tambm as mulheres. E a esse respeito a filha de Plias, Alceste33, d
aos gregos uma prova cabal em favor dessa afirmativa, ela que foi a nica a
consentir em morrer pelo marido, embora tivesse este pai e me, os quais ela tanto
excedeu na afeio do seu amor que os fez aparecer como estranhos ao filho, e
parentes apenas de nome; depois de praticar ela esse ato, to belo pareceu ele no
s aos homens mas at aos deuses que, embora muitos tenham feito muitas aes
belas, foi a um bem reduzido nmero que os deuses concederam esta honra de
fazer do Hades subir novamente sua alma, ao passo que a dela eles fizeram subir,
admirados do seu gesto; assim que at os deuses honram ao mximo o zelo e a
virtude no amor. A Orfeu, o filho de Eagro, eles o fizeram voltar sem o seu
objetivo, pois foi um espectro o que eles lhe mostraram da mulher a que vinha, e
no lha deram, por lhes parecer que ele se acovardava, citaredo que era, e no
ousava por seu amor morrer como Alceste, mas maquinava um meio de penetrar
vivo no Hades34. Foi realmente por isso que lhe fizeram justia, e determinaram que
sua morte ocorresse pelas mulheres; no o honraram como a Aquiles, o filho de
Ttis, nem o enviaram s ilhas dos bem-aventurados; que aquele, informado pela
me de que morreria se matasse Heitor, enquanto que se o no matasse voltaria
ptria onde morreria velho, teve a coragem de preferir, ao socorrer seu amante
Ptroclo e ving-lo, no apenas morrer por ele mas sucumbir sua morte; assim
que, admirados a mais no poder, os deuses excepcionalmente o honraram, porque
em tanta conta ele tinha o amante. Que Esquilo sem dvida fala toa, quando
afirma que Aquiles era amante de Ptroclo, ele que era mais belo no somente do
32
Homero, Ilada, X, 182 = inspirou-lhe ardor (a Diomedes) Atena de olhos brilhantes; e XV,
262: assim tendo dito, inspirou um grande ardor no pastor de povos. (N.doT.)
33
Casada com Admeto, rei de Feres, na Tesslia, Alceste aceita morrer em lugar do esposo, quando os prprios pais deste se tinham
recusado ao sacrifcio. Mas pouco depois de sua morte, Hrcules, hospedado por Admeto e informado do ocorrido, desce ao Hades e traz
Alceste de volta. o tema da bela tragdia de Eurpedes, que traz o nome da herona. (N.doT.)
34
No essa evidentemente a verso comum da lenda. Descendo ao Hades para trazer de volta sua querida Eurdice, Orfeu consegue
convencer a prpria Persfone, rainha daquele reino, graas aos doces acentos de sua msica. Mas esta lhe impe uma condio: Orfeu no
deve olhar para trs, enquanto no subir regio da luz. J quase ao fim da jornada, porm, o msico duvida da sinceridade de Persfone e
olha para trs: logo sua amada desaparece, e para sempre. A lembrana constante de Eurdice faz-lhe esquecer as outras mulheres que,
enciumadas, matam-no. (N. do T.)
que este como evidentemente do que todos os heris, e ainda imberbe, e alm disso
muito mais novo, como diz Homero. Mas com efeito, o que realmente mais
admiram e honram os deuses essa virtude que se forma em torno do amor,
porm mais ainda admiram-na e apreciam e recompensam quando o amado que
gosta do amante do que quando este daquele. Eis por que a Aquiles eles
honraram mais do que a Alceste, enviando-o s ilhas dos bem-aventurados.
Assim, pois, eu afirmo que o Amor dos deuses o mais antigo, o mais
honrado e o mais poderoso para a aquisio da virtude e da felicidade entre os
homens35, tanto em sua vida como aps sua morte."
De Fedro foi mais ou menos este o discurso que pronunciou, no dizer de
Aristodemo; depois de Fedro houve alguns outros de que ele no se lembrava bem,
os quais deixou de lado, passando a contar o de Pausnias. Disse este: "No me
parece bela, Fedro, a maneira como nos foi proposto o discurso, essa simples
prescrio de um elogio ao Amor. Se, com efeito, um s fosse o Amor, muito bem
estaria; na realidade porm, no ele um s; e no sendo um s, mais acertado
primeiro dizer qual o que se deve elogiar. Tentarei eu portanto corrigir este seno, e
primeiro dizer qual o Amor que se deve elogiar, depois fazer um elogio digno do
deus. Todos, com efeito, sabemos que sem Amor no h Afrodite. Se portanto
uma s fosse esta, um s seria o Amor; como porm so duas, foroso que dois
sejam tambm os Amores. E como no so duas deusas? Uma, a mais velha sem
dvida, no tem me e filha de Urano36, e a ela que chamamos de Urnia, a
Celestial; a mais nova, filha de Zeus e de Dione, chamamo-la de Pandmia, a
Popular. foroso ento que tambm o Amor, coadjuvante de uma, se chame
corretamente Pandmio, o Popular, e o outro Urnio, o Celestial. Por conseguinte,
sem dvida preciso louvar todos os deuses, mas o dom que a um e a outro coube
deve-se procurar dizer. Toda ao, com efeito, assim que se apresenta: em si
mesma, enquanto simplesmente praticada, nem bela nem feia. Por exemplo, o que

35
Confrontar essa peroraao com o final do discurso de Scrates, particularmente 212a-b. O poder do amor, a virtude e a felicidade tm
contedo diferente nos dois discursos. (N. do T.)
36
Hesodo, Teogonia, 188-206. Urano foi mundo por seu filho Zeus, e o esperma do seu Membro viril, atirado ao mar, espumou sobre as
guas, donde se formou Afrodite. Em Homero, no entanto, essa deusa filha de Zeus. e de Dione (Ilada, V, 370). (N.doT.)
agora ns fazemos, beber, cantar, conversar, nada disso em si belo, mas na ao,
na maneira como feito, que resulta tal; o que bela e corretamente feito fica belo,
o que no o fica feio. Assim que o amar e o Amor no todo ele belo e digno
de ser louvado, mas apenas o que leva a amar belamente.
Ora pois, o Amor de Afrodite Pandmia realmente popular e faz o que lhe
ocorre; a ele que os homens vulgares amam. E amam tais pessoas, primeiramente
no menos as mulheres37 que os jovens, e depois o que neles amam mais o corpo
que a alma, e ainda dos mais desprovidos de inteligncia, tendo em mira apenas o
efetuar o ato, sem se preocupar se decentemente ou no; da resulta ento que
eles fazem o que lhes ocorre, tanto o que bom como o seu contrrio. Trata-se
com efeito do amor proveniente da deusa que mais jovem que a outra e que em
sua gerao participa da fmea e do macho. O outro porm o da Urnia, que
primeiramente no participa da fmea mas s do macho e este o amor aos
jovens38 e depois a mais velha39, isenta de violncia; da ento que se voltam
ao que msculo os inspirados deste amor, afeioando-se ao que de natureza
mais forte e que tem mais inteligncia. E ainda, no prprio amor aos jovens poder-
se-iam reconhecer os que esto movidos exclusivamente por esse tipo de amor40;
no amam eles, com efeito, os meninos, mas os que j comeam a ter juzo, o que
se d quando lhes vm chegando as barbas. Esto dispostos, penso eu, os que
comeam desse ponto, a amar para acompanhar toda a vida e viver em comum, e
no a enganar e, depois de tomar o jovem em sua inocncia e ludibri-lo, partir
procura de outro. Seria preciso haver uma lei proibindo que se amassem os
meninos, a fim de que no se perdesse na incerteza tanto esforo; pois na verdade
incerto o destino dos meninos, a que ponto do vcio ou da virtude eles chegam em
seu corpo e sua alma. Ora, se os bons amantes a si mesmos se impem
voluntariamente esta lei, devia-se tambm a estes amantes populares obrig-los a lei

37
Confrontar com 208 e, onde Scrates encontra o grande sentido do amor normal mulher, aqui especiosamente confundido como o tipo
inferior do amor. (N.doT.)
38
Muitos editores consideram esta frase uma glosa. (N. do T.)
39
Na velhice domina a razo. Da que os amantes desse amor procuram os que j comeam a ter juzo... (N. do T.)
40
Confrontar com 210a-b. A progresso do amor, segundo Diotima, exige que o amante largue o amor violento de um s. (N. do T.)
semelhante, assim como, com as mulheres de condio livre41, obrigamo-las na
medida do possvel a no manter relaes amorosas. So estes, com efeito, os que
justamente criaram o descrdito, a ponto de alguns ousarem dizer que
vergonhoso o aquiescer aos amantes; e assim o dizem porque so estes os que eles
consideram, vendo o seu despropsito e desregramento, pois no sem dvida
quando feito com moderao e norma que um ato, seja qual for, incorreria em justa
censura.
Alis, a lei do amor nas demais cidades fcil de entender, pois simples a
sua determinao; aqui42 porm ela complexa. Em Elida, com efeito, na
Lacedemnia, na Becia, e onde no se saiba falar, simplesmente se estabeleceu que
belo aquiescer aos amantes, e ningum, jovem ou velho, diria que feio, a fim de
no terem dificuldades, creio eu, em tentativas de persuadir os jovens com a
palavra, incapazes que so de falar; na Jnia, porm, e em muitas outras partes
tido como feio, por quantos habitam sob a influncia dos brbaros. Entre os
brbaros, com efeito, por causa das tiranias, uma coisa feia esse amor, justamente
como o da sabedoria e da ginstica43; que, imagino, no aproveita aos seus
governantes que nasam grandes idias entre os governados, nem amizades e
associaes inabalveis, o que justamente, mais do que qualquer outra coisa,
costuma o amor inspirar. Por experincia aprenderam isto os tiranos44 desta cidade;
pois foi o amor de Aristogito e a amizade de Harmdio que, afirmando-se,
destruram-lhes o poder. Assim, onde se estabeleceu que feio o aquiescer aos
amantes, por defeito dos que o estabeleceram que assim fica, graas ambio
dos governantes e covardia dos governados; e onde simplesmente se determinou
que belo, foi em conseqncia da inrcia dos que assim estabeleceram. Aqui
porm, muito mais bela que estas a norma que se instituiu e, como eu disse, no

41
Isto , no escravas. (N. do T.)
42
Os manuscritos trazem a expresso "e na Lacedemnia" depois de "aqui", o que no concorda com a notria tendncia dos lacedemnios
ao homossexualismo. (N. do T.)
43
Observar a expresso grega correspondente ( e) lembrar que os ginsios eram dos locais prediletos de
Scrates (cf. a introd. do Crmides, Lisis, Laques, etc). (N. do T.)
44
Hpias e Hiparco, filhos de Pisstrato. Numa primeira conspirao em 514, ao que parece por -motivos pessoais, Hiparco foi assassinado,
enquanto Armdio morria na luta e seu companheiro Aristogito era condenado morte. Quatro anos depois Hpias perdia o poder, vtima de
uma nova conspirao (V. Tucdides, VI, 54). (N. do T.)
fcil de entender. A quem, com efeito, tenha considerado45 que se diz ser mais belo
amar claramente que s ocultas, e sobretudo os mais nobres e os melhores, embora
mais feios que outros; que por outro lado o encorajamento dado por todos aos
amantes extraordinrio e no como se estivesse a fazer algum ato feio, e se fez ele
uma conquista parece belo o seu ato, se no, parece feio; e ainda, que em sua
tentativa de conquista deu a lei ao amante a possibilidade de ser louvado na prtica
de atos extravagantes, os quais se algum ousasse cometer em vista de qualquer
outro objetivo e procurando fazer qualquer outra coisa fora isso, colheria as
maiores censuras da filosofia46 pois se, querendo de uma pessoa ou obter
dinheiro ou assumir um comando ou conseguir qualquer outro poder, consentisse
algum em fazer justamente o que fazem os amantes para com os amados, fazendo
em seus pedidos splicas e prosternaes, e em suas juras protestando deitar-se s
portas, e dispondo-se a subservincias a que se no sujeitaria nenhum servo, seria
impedido de agir desse modo, tanto pelos amigos como pelos inimigos, uns
incriminando-o de adulao e indignidade, outros admoestando-o e
envergonhando-se de tais atos ao amante porm que faa tudo isso acresce-lhe a
graa, e lhe dado pela lei que ele o faa sem descrdito, como se estivesse
praticando uma ao belssima; e o mais estranho que, como diz o povo, quando
ele jura, s ele tem o perdo dos deuses se perjurar, pois juramento de amor dizem
que no juramento, e assim tanto os deuses como os homens deram toda
liberdade ao amante, como diz a lei daqui por esse lado ento poder-se-ia pensar
que se considera inteiramente belo nesta cidade no s o fato de ser amante como
tambm o serem os amados amigos dos amantes. Quando porm, impondo-lhes
um pedagogo47, os pais no permitem aos amados que conversem com os amantes,
e ao pedagogo prescrita essa ordem, e ainda os camaradas e amigos injuriam se
vem que tal coisa est ocorrendo, sem que a esses injuria-dores detenham os mais

45
Essa subordinada, iniciando um longo perodo, no tem seqncia lgica com a sua principal, formulada em 183c (Poder-se-ia pensar
que...). Mesmo custa da clareza, preferimos conservar a mesma articulao ampla e irregular, a fim de permitir uma melhor apreciao do
estilo do discurso, geralmente apontado como uma pardia de Iscrates. (N. do T.)
46
Por que da filosofia? Vrios crticos tentaram corrigir essa lio dos mss. Burnet aps-lhe o belo da suspeita. No entanto, no se deve
entender a palavra no seu conceito platnico, mas antes na acepo menos especfica de cultura superior, tal como, por exemplo, a entendia
Iscrates, um saber prtico que inclua entre outras coisas o conhecimento das boas normas do cidado. (N. do T.)
47
o escravo encarregado de acompanhar os jovens palestra e escola. (N. do T.)
velhos ou os censurem por estarem falando sem acerto, depois de por sua vez
atentar a tudo isso, poderia algum julgar ao contrrio que se considera muito feio
aqui esse modo de agir. O que h porm , a meu ver, o seguinte: no isso uma
coisa simples, o que justamente se disse desde o comeo, que no em si e por si
nem belo nem feio, mas se decentemente praticado belo, se indecentemente, feio.
Ora, indecentemente quando a um mau e de modo mau que se aquiesce, e
decentemente quando a um bom e de um modo bom. E mau aquele amante
popular, que ama o corpo mais que a alma; pois no ele constante, por amar um
objeto que tambm no constante48. Com efeito, ao mesmo tempo que cessa o
vio do corpo, que era o que ele amava, "ala ele o seu vo"49, sem respeito a
muitas palavras e promessas feitas. Ao contrrio," o amante do carter, que bom,
constante por toda a vida, porque se fundiu com o que constante. Ora, so esses
dois tipos de amantes que pretende a nossa lei provar bem e devidamente, e que a
uns se aquiesa e dos outros se fuja. Por isso que uns ela exorta a perseguir e
outros a evitar, arbitrando e aferindo qual porventura o tipo do amante e qual o
do amado. Assim que, por esse motivo, primeiramente o se deixar conquistar
tido como feio, a fim de que possa haver tempo, que bem parece o mais das vezes
ser uma excelente prova; e depois o deixar-se conquistar pelo dinheiro e pelo
prestgio poltico tido como feio, quer a um mau trato nos assustemos sem reagir,
quer beneficiados em dinheiro ou em sucesso poltico no os desprezemos;
nenhuma dessas vantagens, com efeito, parece firme ou constante, fora o fato de
que delas nem mesmo se pode derivar uma amizade nobre. Um s caminho ento
resta nossa norma, se deve o bem-amado decentemente aquiescer ao amante.
com efeito norma entre ns que, assim como para os amantes, quando um deles se
presta a qualquer servido ao amado, no isso adulao nem um ato censurvel,
do mesmo modo tambm s outra nica servido voluntria resta, no sujeita a
censura: a que se aceita pela virtude. Na verdade, estabeleceu-se entre ns que, se
algum quer servir a um outro por julgar que por ele se tornar melhor, ou em

48
Uma longnqua antecipao da idia desenvolvida plenamente em 207d-208b. (N. do T.)
49
Expresso homrica (Ilada, II, 71), aplicada a Oneiros, o sonho personificado, que veio a Agameno. (N. do T.)
sabedoria ou em qualquer outra espcie de virtude, tambm esta voluntria servido
no feia nem uma adulao50. preciso ento congraar num mesmo objetivo
essas duas normas, a do amor aos jovens e a do amor ao saber e s demais virtudes,
se deve dar-se o caso de ser belo o aquiescer o amado ao amante. Quando com
efeito ao mesmo ponto chegam amante e amado, cada um com a sua norma, um
servindo ao amado que lhe aquiesce, em tudo que for justo servir, e o outro
ajudando ao que o est tornando sbio e bom, em tudo que for justo ajudar, o
primeiro em condies de contribuir para a sabedoria e demais virtudes, o segundo
em preciso de adquirir para a sua educao e demais competncia, s ento,
quando ao mesmo objetivo convergem essas duas normas, s ento que coincide
ser belo o aquiescer o amado ao amante e em mais nenhuma outra ocasio. Nesse
caso, mesmo o ser enganado no nada feio; em todos os outros casos porm
vergonhoso, quer se seja enganado, quer no. Se algum com efeito, depois de
aquiescer a um amante, na suposio de ser este rico e em vista de sua riqueza,
fosse a seguir enganado e no obtivesse vantagens pecunirias, por se ter revelado
pobre o amante, nem por isso seria menos vergonhoso; pois parece tal tipo revelar
justamente o que tem de seu, que pelo dinheiro ele serviria em qualquer negcio a
qualquer um, e isso no belo. Pela mesma razo, tambm se algum, tendo
aquiescido a um amante considerado bom, e para se tornar ele prprio melhor
atravs da amizade do amante, fosse a seguir enganado, revelada a maldade daquele
e sua carncia de virtude, mesmo assim belo51 seria o engano; pois tambm nesse
caso parece este ter deixado presente sua prpria tendncia: pela virtude e por se
tornar melhor, a tudo ele se disporia em favor de qualquer um, e isso ao contrrio
o mais belo de tudo; assim, em tudo por tudo belo aquiescer em vista da virtude.
Este o amor da deusa celeste, ele mesmo celeste e de muito valor para a cidade e
os cidados, porque muito esforo ele obriga a fazer pela virtude tanto ao prprio
amante como ao amado; os outros porm so todos da outra deusa, da popular.

50
Todo esse detalhe dos casos feios do amor ao mesmo tempo caracterstico do realismo prtico de Pausnias e revela o que para ele
tambm contedo da filosofia. (N. do T.)
51
Paradoxo tipicamente retrico, bem encaixado na argumentao, e aparentemente resultando em louvor da virtude a virtude enganada.
Para Scrates porm o engano, uma falta de sabedoria, , portanto, uma falta de virtude e como tal no belo. (N. do T.)
52
essa, Fedro, concluiu ele, a contribuio que, como de improviso , eu te
apresento sobre o Amor".
Na pausa53 de Pausnias pois assim me ensinam os sbios a falar, em
termos iguais disse Aristodemo que devia falar Aristfanes, mas tendo-lhe
ocorrido, por empanturramento ou por algum outro motivo, um acesso de soluo,
no podia ele falar; mas disse ele ao mdico Erixmaco, que se reclinava logo abaixo
dele: Erixmaco, s indicado para ou fazer parar o meu soluo ou falar em
meu lugar, at que eu possa parar com ele. E Erixmaco respondeu-lhe:
Farei as duas coisas: falarei em teu lugar e tu, quando acabares com isso,
no meu. E enquanto eu estiver falando, vejamos se, retendo tu o flego por muito
tempo, quer parar o teu soluo; seno, gargareja com gua. Se ento ele muito
forte, toma algo com que possas cocar o nariz e espirra; se fizeres isso duas ou trs
vezes, por mais forte que seja, ele cessar. No comears primeiro o teu
discurso, disse Aristfanes; que eu por mim o que farei.
Disse ento Erixmaco: "Parece-me em verdade ser necessrio, uma vez que
Pausnias, apesar de se ter lanado bem ao seu discurso, no o rematou
convenientemente, que eu deva tentar pr-lhe um remate. Com efeito, quanto a ser
duplo o Amor, parece-me que foi uma bela distino; que porm no est ele
apenas nas almas dos homens, e para com os belos jovens, mas tambm nas outras
partes, e para com muitos outros objetos, nos corpos de todos os outros animais,
nas plantas da terra e por assim dizer em todos os seres o que creio ter constatado
pela prtica da medicina, a nossa arte; grande e admirvel o deus, e a tudo se
estende ele, tanto na ordem das coisas humanas como entre as divinas. Ora, eu
comearei pela medicina a minha fala, a fim de que tambm homenageemos a
arte54. A natureza dos corpos, com efeito, comporta esse duplo Amor; o sadio e o
mrbido so cada um reconhecidamente um estado diverso e dessemelhante, e o

52
Num concurso improvisado essa indicao intil seria estranha se no fosse entendida como uma aluso irnica ao repertrio de lugares-
comuns fornecido pelo ensino formal da retrica. (N. do T.)
53
expresso grega , que na boca de Apolodoro como um eco dos desenvolvimentos simtricos e dos paralelismos
( )do discurso de Pausnias. (N. do T.)
54
A arte por excelncia para esse mdico, isto , a medicina. A palavra indica geralmente uma determinada atividade disciplinada e
orientada por um corpo de preceitos e princpios. Assim, a medicina era tambm uma arte. (N. do T.)
dessemelhante deseja e ama o dessemelhante55. Um portanto o amor no que
sadio, e outro no que mrbido. E ento, assim como h pouco Pausnias dizia
que aos homens bons belo aquiescer, e aos intemperantes feio, tambm nos
prprios corpos, aos elementos bons de cada corpo e sadios belo o aquiescer e se
deve, e a isso que se d o nome de medicina, enquanto que aos maus e mrbidos
feio e se deve contrariar, se se vai ser um tcnico. com efeito a medicina, para
falar em resumo, a cincia dos fenmenos de amor, prprios ao corpo, no que se
refere repleo e evacuao, e o que nestes fenmenos reconhece o belo amor e
o feio o melhor mdico; igualmente, aquele que faz com que eles se transformem,
de modo a que se adquira um em vez do outro, e que sabe tanto suscitar amor onde
no h mas deve haver, como eliminar quando h, seria um bom profissional. de
fato preciso ser capaz de fazer com que os elementos mais hostis no corpo fiquem
amigos e se amem mutuamente. Ora, os mais hostis so os mais opostos, como o
frio ao quente, o amargo ao doce, o seco ao mido, e todas as coisas desse tipo; foi
por ter entre elas suscitado amor e concrdia que o nosso ancestral Asclpio, como
dizem estes poetas aqui56 e eu acredito, constituiu a nossa arte. A medicina
portanto, como estou dizendo, toda ela dirigida nos traos deste deus, assim
como tambm a ginstica e a agricultura; e quanto msica, a todos evidente, por
pouco que se lhe preste ateno, que ela se comporta segundo esses mesmos
princpios, como provavelmente parece querer dizer Herclito, que alis em sua
expresso no feliz. O um, diz ele com efeito, "discordando em si mesmo,
consigo mesmo concorda, como numa harmonia de arco e lira"57. Ora, grande
absurdo dizer que uma harmonia est discordando ou resulta do que ainda est
discordando58. Mas talvez o que ele queria dizer era o seguinte, que do agudo e do
grave, antes discordantes e posteriormente combinados, ela resultou, graas arte

55
O contexto manda interpretar a frase de Erixmaco assim: o mrbido (dessemelhante do sadio) ama o mrbido (dessemelhante do sadio) e
vice-versa. No entanto, em d 4 infra, h uma transio, que no fica muito clara, para a idia de atrao (identificada ao amor por Erixmaco)
dos contrrios no organismo. Tal idia atribuda ao mdico Alcmeo de Crotona (fr. 4 Diels), do comeo do sculo V. (N. do T.)
56
Erixmaco refere-se a Aristfanes e Agato. Asclpio, filho de Apoio e da mortal Coronis, da Tesslia, o heri patrono da medicina.(N.
do T.)
57
Fr. 51, Diels. (N. do T.)
58
No entanto, bem isso o que Herclito quer dizer, e no h realmente uma expresso infeliz da sua parte. Convm lembrar que a riqueza
de particpios na lngua grega, e em particular a ntida distino entre o particpio aoristo (pretrito) e o particpio presente, no lhe
permitiriam perpetrar a confuso 'que Erixmaco lhe atribui. (N. do T.)
musical. Pois no sem dvida do agudo e do grave ainda em discordncia que
pode resultar a harmonia; a harmonia consonncia, consonncia uma certa
combinao e combinao de discordantes, enquanto discordam, impossvel, e
inversamente o que discorda e no combina impossvel harmonizar assim
como tambm o ritmo, que resulta do rpido e do lento, antes dissociados e depois
combinados. A combinao em todos esses casos, assim como l foi a medicina,
aqui a msica que estabelece, suscitando59 amor e concrdia entre uns e outros; e
assim, tambm a msica, no tocante harmonia e ao ritmo, cincia dos
fenmenos amorosos. Alis, na prpria constituio de uma harmonia e de um
ritmo no nada difcil reconhecer os sinais do amor, nem de algum modo60 h
ento o duplo amor; quando porm for preciso utilizar para o homem uma
harmonia ou um ritmo, ou fazendo-os, o que chamam composio, ou usando
corretamente da melodia e dos metros j constitudos, o que se chamou educao,
ento que difcil e que se requer um bom profissional. Pois de novo revm a
mesma idia, que aos homens moderados, e para que mais moderados se tornem os
que ainda no sejam, deve-se aquiescer e conservar o seu amor, que o belo, o
celestial, o Amor da musa Urnia; o outro, o de Polmnia61, o popular, que com
precauo se deve trazer queles a quem se traz, a fim de que se colha o seu prazer
sem que nenhuma intemperana ele suscite, tal como em nossa arte uma
importante tarefa o servir-se convenientemente dos apetites da arte culinria, de
modo a que sem doena se colha o seu prazer. Tanto na msica ento, como na
medicina e em todas as outras artes, humanas e divinas, na medida do possvel,
deve-se conservar um e outro amor; ambos com efeito nelas se encontram. De
fato, at a constituio das estaes do ano est repleta desses dois amores, e

59
E assim a arte acaba sendo criadora do amor, e este um mero produto. Erixmaco parece no perceber as dificuldades que encerra a relao
desses dois elementos, cuja conceituao rigorosa no lhe importa muito, e continua a fazer com as outras artes o que fez com a medicina e a
msica. (N. do T.)
60
Essa expresso trai a habilidade retrica do cientista orador: depois de afirmar que h dois tipos de amor no organismo (v. nota 55),
Erixmaco passa a falar da sade como o equilbrio (isto , concrdia, amor) dos contrrios, e do mesmo modo da harmonia dos sons, sem
evidentemente referir-se ao que seria, por exemplo, o resultado do amor de contrrios mrbidos. Aqui, porm, no momento de referir-se
utilizao humana da harmonia, reaparece-lhe a idia do bom e do mau amor que preciso discernir e que justifica ou no o aquiescimento
do bem-amado ao amante...(N. do T.)
61
Padroeira da poesia lrica. Ao contrrio de Pausnias, Erixmaco associou o amor s Musas e no a Afrodite, o que est de acordo com O
carter que seu discurso lhe empresta: o de uma fora de aglutinao universal, suscetvel de ser tratada pela arte. Em lugar de Afrodite
Pandmia, ele imaginou a Musa da poesia lrica, a poesia dos sentimentos pessoais e das paixes (N. do T.)
quando se tomam de um moderado amor um pelo outro os contrrios de que h
pouco eu falava, o quente e o frio, o seco e o mido, e adquirem uma harmonia e
uma mistura razovel, chegam trazendo bonana e sade aos homens, aos outros
animais e s plantas, e nenhuma ofensa fazem; quando porm o Amor casado
com a violncia que se torna mais forte nas estaes do ano, muitos estragos ele
faz, e ofensas. Tanto as pestes, com efeito, costumam resultar de tais causas, como
tambm muitas e vrias doenas nos animais como nas plantas; geadas, granizos e
alforras resultam, com efeito, do excesso e da intemperana mtua de tais
manifestaes do amor, cujo conhecimento nas translaes dos astros e nas
estaes do ano chama-se astronomia. E ainda mais, no s todos os sacrifcios,
como tambm os casos a que preside a arte divinatria e estes so os que
constituem o comrcio recproco dos deuses e dos homens sobre nada mais
versam seno sobre a conservao e a cura62 do Amor. Toda impiedade, com efeito,
costuma advir, se ao Amor moderado no se aquiesce nem se lhe tributa honra e
respeito em toda ao, e sim ao outro, tanto no tocante aos pais, vivos e mortos,
quanto aos deuses; e foi nisso que se assinou arte divinatria o exame dos amores
e sua cura, e assim que por sua vez a arte divinatria produtora 63 de amizade
entre deuses e homens, graas ao conhecimento de todas as manifestaes de amor
que, entre os homens, se orientam para a justia divina e a piedade.
Assim, mltiplo e grande, ou melhor, universal o poder que em geral tem
todo o Amor, mas aquele que em torno do que bom se consuma com sabedoria e
justia, entre ns como entre os deuses, o que tem o mximo poder e toda
felicidade nos prepara, pondo-nos em condies de no s entre ns mantermos
convvio e amizade, como tambm com os que so mais poderosos que ns, os
deuses. Em concluso, talvez tambm eu, louvando o Amor, muita coisa estou
deixando de lado, no todavia por minha vontade. Mas se algo omiti, tua tarefa,
Aristfanes, completar; ou se um outro modo tens em mente de elogiar o deus,
elogia-o, uma vez que o teu soluo j o fizeste cessar."
62
A assimilao das outras artes medicina tornou-se to completa que o Amor considerado como uma afeco como as outras doenas.
(N. do T.)
63
V. supra nota 59.
Tendo ento tomado a palavra, continuou Aristodemo, disse Aristfanes:
Bem que cessou! No todavia, verdade, antes de lhe ter eu aplicado o espirro, a
ponto de me admirar que a boa ordem do corpo requeira tais rudos e comiches
como o espirro; pois logo o soluo parou, quando lhe apliquei o espirro.
E Erixmaco lhe disse: Meu bom Aristfanes, v o que fazes. Ests a
fazer graa, quando vais falar, e me foras a vigiar o teu discurso, se porventura vais
dizer algo risvel, quando te permitido falar em paz.
Aristfanes riu e retomou: Tens razo, Erixmaco! Fique-me o dito pelo
no dito. Mas no me vigies, que eu receio, a respeito do que vai ser dito, que seja
no engraado o que vou dizer pois isso seria proveitoso e prprio da nossa
musa mas ridculo64.
Pois sim! disse o outro lanada a tua seta, Aristfanes, pensas em
fugir; mas toma cuidado e fala como se fosses prestar contas. Talvez todavia, se
bem me parecer, eu te largarei.
"Na verdade, Erixmaco, disse Aristfanes, de outro modo que tenho a
inteno de falar, diferente do teu e do de Pausanias. Com efeito, parece-me os
homens absolutamente no terem percebido o poder do amor, que se o
percebessem, os maiores templos e altares lhe preparariam, e os maiores sacrifcios
lhe fariam, no como agora que nada disso h em sua honra, quando mais que tudo
deve haver. ele com efeito o deus mais amigo do homem, protetor e mdico
desses males, de cuja cura dependeria sem dvida a maior felicidade para o gnero
humano. Tentarei eu portanto iniciar-vos65 em seu poder, e vs o ensinareis aos
outros. Mas preciso primeiro aprenderdes a natureza humana e as suas
vicissitudes. Com efeito, nossa natureza outrora no era a mesma que a de agora,
mas diferente. Em primeiro lugar, trs eram os gneros da humanidade, no dois
como agora, o masculino e o feminino, mas tambm havia a mais um terceiro,

64
De fato seu discurso engraadssimo. A precauo de Aristfanes faz lembrar o tom e a funo de uma parbase, na comdia antiga,
onde o poeta, pela voz do coro, explica-se a respeito de sua pea. V. Os Cavaleiros, 515-516, e 541-545, onde se sente a mesma nota de
prudncia que aqui. Alm desse trao de verossimilhana dramtica, Plato estaria insinuando uma aluso insuficincia da arte de
Aristfanes, que no tem domnio de seus prprios recursos, dependente que de uma inspirao. (N. do T.)
65
A palavra prpria da linguagem dos Mistrios. Aristfanes no vai explicar as virtudes do Amor, como os dois oradores precedentes,
mas tentar o acesso direto sua natureza, como numa iniciao. (N. do T.)
comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa; andrgino
era ento um gnero distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois, ao
masculino e ao feminino, enquanto agora nada mais que um nome posto em
desonra. Depois, inteiria66 era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os
flancos em crculo; quatro mos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mos,
dois rostos sobre um pescoo torneado, semelhantes em tudo; mas a cabea sobre
os dois rostos opostos um ao outro era uma s, e quatro orelhas, dois sexos, e tudo
o mais como desses exemplos se poderia supor. E quanto ao seu andar, era
tambm ereto como agora, em qualquer das duas direes que quisesse; mas
quando se lanavam a uma rpida corrida, como os que cambalhotando e virando
as pernas para cima fazem uma roda, do mesmo modo, apoiando-se nos seus oito
membros de ento, rapidamente eles se locomoviam em crculo. Eis por que eram
trs os gneros, e tal a sua constituio, porque o masculino de incio era
descendente do sol, o feminino da terra, e o que tinha de ambos era da lua, pois
tambm a lua tem de ambos; e eram assim circulares, tanto eles prprios como a
sua locomoo, por terem semelhantes genitores. Eram por conseguinte de uma
fora e de um vigor terrveis, e uma grande presuno eles tinham; mas voltaram-se
contra os deuses, e o que diz Homero de Efialtes e de Otes67 a eles que se refere,
a tentativa de fazer uma escalada ao cu, para investir contra.os deuses. Zeus ento
e os demais deuses puseram-se a deliberar sobre o que se devia fazer com eles, e
embaraavam-se; no podiam nem mat-los e, aps fulmin-los como aos gigantes,
fazer desaparecer-lhes a raa pois as honras e os templos que lhes vinham dos
homens desapareceriam nem permitir-lhes que continuassem na impiedade.
Depois de laboriosa reflexo, diz Zeus: "Acho que tenho um meio de fazer com
que os homens possam existir, mas parem com a intemperana, tornados mais
fracos. Agora com efeito, continuou, eu os cortarei a cada um em dois, e ao mesmo
tempo eles sero mais fracos e tambm mais teis para ns, pelo fato de se terem

66
Cf. Empdocles, fr. 62, vs. 4(Diels) primeiro, tipos inteirios surgiram da terra. (N. do
T.)
67
Os dois gigantes que tentaram pr sobre o Olimpo o monte Ossa e sobre este o Pelio, a fim de atingirem o cu e destronarem Zeus. V.
Odissia, XI, 307-320. (N. do T.)
tornado mais numerosos; e andaro eretos, sobre duas pernas. Se ainda pensarem
em arrogncia e no quiserem acomodar-se, de novo, disse ele, eu os cortarei em
dois, e assim sobre uma s perna eles andaro, saltitando." Logo que o disse ps-se
a cortar os homens em dois, como os que cortam as sorvas68 para a conserva, ou
como os que cortam ovos com cabelo; a cada um que cortava mandava Apoio
voltar-lhe o rosto e a banda do pescoo para o lado do corte, a fim de que,
contemplando a prpria mutilao, fosse mais moderado o homem, e quanto ao
mais ele tambm mandava curar. Apoio torcia-lhes o rosto, e repuxando a pele de
todos os lados para o que agora se chama o ventre, como as bolsas que se
entrouxam, ele fazia uma s abertura e ligava-a firmemente no meio do ventre, que
o que chamam umbigo. As outras pregas, numerosas, ele se ps a polir, e a
articular os peitos, com um instrumento semelhante ao dos sapateiros quando esto
polindo na forma as pregas dos sapatos; umas poucas ele deixou, as que esto
volta do prprio ventre e do umbigo, para lembrana da antiga condio. Por
conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por
sua prpria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mos e enlaando-se um
ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inrcia em geral, por
nada quererem fazer longe um do outro. E sempre que morria uma das metades e a
outra ficava, a que ficava procurava outra e com ela se enlaava, quer se
encontrasse com a metade do todo que era mulher o que agora chamamos
mulher quer com a de um homem; e assim iam-se destruindo. Tomado de
compaixo, Zeus consegue outro expediente, e lhes muda o sexo para a frente
pois at ento eles o tinham para fora, e geravam e reproduziam no um no outro,
mas na terra69, como as cigarras; pondo assim o sexo na frente deles fez com que
atravs dele se processasse a gerao um no outro, o macho na fmea, pelo
seguinte, para que no enlace, se fosse um homem a encontrar uma mulher, que ao
mesmo tempo gerassem e se fosse constituindo a raa, mas se fosse um homem

68
Emile Chambry (Platon, Oeuvres completes, III, p. 577, Garnier) cita o seguinte texto de Varro: "Putant manere sorba quidam dissecta et
in sole macerata, ut pira, et sorba per se ubi-cumque sint posita, in rido facile durare" (Dere rstica, L, 60). (N. do T.)
69
No mito do Poltico (271a). Plato refere-se a essa gerao da terra, e Aristfanes nas Nuvens (vs. 853) alude sem dvida a essa idia.
(N.doT.)
com um homem, que pelo menos houvesse saciedade em seu convvio e pudessem
repousar, voltar ao trabalho e ocupar-se do resto da vida. ento de h tanto
tempo que o amor de um pelo outro est implantado nos homens, restaurador da
nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um s de dois e de curar a natureza
humana. Cada um de ns portanto uma tssera complementar70 de um homem,
porque cortado como os linguados, de um s em dois; e procura ento cada um o
seu prprio complemento. Por conseguinte, todos os homens que so um corte do
tipo comum, o que ento se chamava andrgino, gostam de mulheres, e a maioria
dos adultrios provm deste tipo, assim como tambm todas as mulheres que
gostam de homens e so adlteras, deste tipo que provm. Todas as mulheres que
so o corte de uma mulher no dirigem muito sua ateno aos homens, mas antes
esto voltadas para as mulheres e as amiguinhas provm deste tipo. E todos os que
so corte de um macho perseguem o macho, e enquanto so crianas, como
cortculos do macho, gostam dos homens e se comprazem em deitar-se com os
homens e a eles se enlaar, e so estes os melhores meninos e adolescentes, os de
natural mais corajoso. Dizem alguns, verdade, que eles so despudorados, mas
esto mentindo; pois no por despudor que fazem isso, mas por audcia, coragem
e masculinidade, porque acolhem o que lhes semelhante. Uma prova disso que,
uma vez amadurecidos, so os nicos que chegam a ser homens para a poltica71, os
que so desse tipo. E quando se tornam homens, so os jovens que eles amam, e a
casamentos e procriao naturalmente eles no lhes do ateno, embora por lei a
isso sejam forados, mas se contentam em passar a vida um com o outro, solteiros.
Assim que, em geral, tal tipo torna-se amante e amigo do amante, porque est
sempre acolhendo o que lhe aparentado. Quando ento se encontra com aquele
mesmo que a sua prpria metade, tanto o amante do jovem como qualquer outro,
ento extraordinrias so as emoes que sentem, de amizade, intimidade e amor, a
ponto de no quererem por assim dizer separar-se um do outro nem por um
70
No grego (de , juntar, fazer conjunto). Era um cubo ou um osso que se repartia entre dois hspedes, como sinal de
um compromisso. Transmitindo-se aos descendentes de ambos, podiam estes conferir os seus "smbolos" e ter assim a prova de antigos
liames de hospitalidade. (N. do T.)
71
A stira mordaz aos homossexuais completa-se habilmente com a sua identificao com os polticos. Comparar essa passagem com 184 a-
7. (N.doT.)
pequeno momento. E os que continuam um com o outro pela vida afora so estes,
os quais nem saberiam dizer o que querem que lhes venha da parte de um ao outro.
A ningum com efeito pareceria que se trata de unio sexual72, e que porventura
em vista disso que um gosta da companhia do outro assim com tanto interesse; ao
contrrio, que uma coisa quer a alma de cada um, evidente, a qual coisa ela no
pode dizer, mas adivinha o que quer e o indica por enigmas. Se diante deles,
deitados no mesmo leito, surgisse Hefesto73 e com seus instrumentos lhes
perguntasse: Que que quereis, homens, ter um do outro?, e se, diante do seu
embarao, de novo lhes perguntasse: Porventura isso que desejais, ficardes no
mesmo lugar o mais possvel um para o outro, de modo que nem de noite nem de
dia vos separeis um do outro? Pois se isso que desejais, quero fundir-vos e forjar-
vos numa mesma pessoa, de modo que de dois vos torneis um s e, enquanto
viverdes, como uma s pessoa, possais viver ambos em comum, e depois que
morrerdes, l no Hades, em vez de dois ser um s, mortos os dois numa morte
comum; mas vede se isso o vosso amor, e se vos contentais se conseguirdes isso.
Depois de ouvir essas palavras, sabemos que nem um s diria que no, ou
demonstraria querer outra coisa, mas simplesmente pensaria ter ouvido o que h
muito estava desejando, sim, unir-se e confundir-se com o amado e de dois ficarem
um s. O motivo disso que nossa antiga natureza era assim e ns ramos um
todo; portanto ao desejo e procura do todo que se d o nome de amor.
Anteriormente, como estou dizendo, ns ramos um s, e agora que, por causa
da nossa injustia, fomos separados pelo deus, e como o foram os rcades pelos
lacedemnios74; de temer ento, se no formos moderados para com os deuses,
que de novo sejamos fendidos em dois, e perambulemos tais quais os que nas
esteias esto talhados de perfil, serrados na linha do nariz, como os ossos que se
fendem75. Pois bem, em vista dessas eventualidades todo homem deve a todos

72
Observar a facilidade com que o discurso muda de tom, atingindo aqui um lirismo saudvel que permite a ecloso de uma idia importante
nessa sucesso dialtica dos discursos: a de que o sentimento amoroso no exclusivamente sexual. (N. do T.)
73
O deus do fogo e da metalurgia, o Vulcano latinos. (N. do T.)
74
Em 385 os lacedemnios destruram a cidade de Mantinia, na Arcdia, e dispersaram seus habitantes por vrias povoaes (Xenofonte,
V, 2, 1). o que Os gregos chamavam de , o contrrio de uma colonizao, isto , um . Notar que o dilogo se passa
em 416 (v. supra nota 7). O anacronismo gritante. (N. do T.)
75
Justamente um dos tipos ( ) dos "smbolos", referidos acima, n. 70. (N. do T.)
exortar piedade para com os deuses, a fim de que evitemos uma e alcancemos a
outra, na medida em que o Amor nos dirige e comanda. Que ningum em sua ao
se lhe oponha e se ope todo aquele que aos deuses se torna odioso pois
amigos do deus e com ele reconciliados descobriremos e conseguiremos o nosso
prprio amado, o que agora poucos fazem. E que no me suspeite Erixmaco,
fazendo comdia de meu discurso, que a Pausnias e Agato que me estou
referindo talvez tambm estes se encontrem no nmero desses e so ambos de
natureza mscula mas eu no entanto estou dizendo a respeito de todos, homens
e mulheres, que assim que nossa raa se tornaria feliz, se plenamente
realizssemos o amor, e o seu prprio amado cada um encontrasse, tornado sua
primitiva natureza. E se isso o melhor, foroso que dos casos atuais o que mais
se lhe avizinha o melhor, e este o conseguir um bem-amado de natureza
conforme ao seu gosto; e se disso fssemos glorificar o deus responsvel,
merecidamente glorificaramos o Amor, que agora nos de mxima utilidade,
levando-nos ao que nos familiar, e que para o futuro nos d as maiores
esperanas, se formos piedosos para com os deuses, de restabelecer-nos em nossa
primitiva natureza e, depois de nos curar, fazer-nos bem-aventurados e felizes.
Eis, Erixmaco, disse ele, o meu discurso sobre o Amor, diferente do teu.
Conforme eu te pedi, no faas comdia dele, a fim de que possamos ouvir
tambm os restantes, que dir cada um deles, ou antes cada um dos dois; pois
restam Agato e Scrates."
Bem, eu te obedecerei tornou-lhe Erixmaco; e com efeito teu
discurso foi para mim de um agradvel teor. E se por mim mesmo eu no soubesse
que Scrates e Agato so terrveis nas questes do amor, muito temeria que
sentissem falta de argumentos, pelo muito e variado que se disse; de fato porm eu
confio neles.
Scrates ento disse: que foi bela, Erixmaco76, tua competio! Se
porm ficasses na situao em que agora estou, ou melhor, em que estarei, depois
que Agato tiver falado, bem grande seria o teu temor, e em tudo por tudo estarias
como eu agora.
Enfeitiar o que me queres, Scrates, disse-lhe Agato, a fim de que
eu me alvoroce com a idia de que o pblico est em grande expectativa de que eu
v falar bem.
Desmemoriado eu seria, Agato tornou-lhe Scrates se depois de
ver tua coragem e sobranceria, quando subias ao estrado com os atores e encaraste
de frente uma to numerosa platia, no momento em que ias apresentar uma pea
tua, sem de modo algum te teres abalado, fosse eu agora imaginar que tu te
alvoroadas por causa de ns, to poucos.
O qu, Scrates! exclamou Agato; no me julgas sem dvida to
cheio de teatro que ignore que, a quem tem juzo, poucos sensatos so mais
temveis que uma multido insensata!
Realmente eu no faria bem, Agato tornou-lhe Scrates se a teu
respeito pensasse eu em alguma deselegncia; ao contrrio, bem sei que, se te
encontrasses com pessoas que considerasses sbias, mais te preocupadas com elas
do que com a multido. No entanto, de temer que estas no sejamos ns pois
ns estvamos l e ramos da multido mas se fosse com outros que te
encontrasses, com sbios, sem dvida tu te envergonharias deles, se pensasses estar
talvez cometendo algum ato que fosse vergonhoso; seno, que dizes?
verdade o que dizes respondeu-lhe.
E da multido no te envergonhadas, se pensasses estar fazendo algo
vergonhoso77?

76
A observao de Scrates fina. Comentando o discurso de Aristfanes, Erixmaco expressava seu receio de que os dois ltimos
concorrentes tivessem dificuldades "pelo muito e variado que se disse" (Isto , no apenas Aristfanes). Scrates o ajuda ento nesse
pequeno detalhe e insiste na sua contribuio. Ao mesmo tempo ele tem uma tima deixa para dirigir-se competncia de Agato. (N. do T.)
77
Esse breve dilogo, aqui interrompido, tem um duplo efeito dramtico: serve de intervalo entre os discursos de dois poetas, to diferentes
de mtodo e de esprito, e constitui como um preldio ao discurso especial de Scrates, que vai comear, ao contrrio dos outros, por um
dilogo. (N. do T.)
E eis que Fedro, disse Aristodemo, interrompeu e exclamou: Meu caro
Agato, se responderes a Scrates, a mais lhe importar do programa, como quer
que ande e o que quer que resulte, contanto que ele tenha com quem dialogue,
sobretudo se com um belo. Eu por mim sem dvida com prazer que ouo
Scrates a conversar, -me foroso cuidar do elogio ao recolher de cada um de vs
o seu discurso; pague78 ento cada um o que deve ao deus e assim j pode
conversar.
Muito bem, Fedro! exclamou Agato nada me impede de falar, pois
com Scrates depois eu moderei ainda conversar muitas vezes.
"Eu ento quero primeiro dizer . mo devo falar, e depois falar. Parece-me
com efeito que todos os que antes falaram, no era o deus que elogiavam, mas os
homens que felicitavam pelos bens de que o deus lhes causador; qual porm a
sua natureza, em virtude da qual ele fez tais dons, ningum o disse. Ora, a nica
maneira correta de qualquer elogio a qualquer um , no discurso, explicar em
virtude de que natureza vem a ser causa de tais efeitos aquele de quem se estiver
falando79. Assim ento com o Amor. justo que tambm ns primeiro o louvemos
em sua natureza, tal qual ele . e depois os seus dons. Digo eu ento que de todos
os deuses, que so felizes, o Amor, se lcito diz-lo sem incorrer em vingana80,
o mais feliz, porque o mais belo deles e o melhor. Ora, ele o mais belo por ser
tal como se segue. Primeiramente, o mais jovem dos deuses, Fedro. E uma
grande prova do que digo ele prprio fornece, quando em fuga foge da velhice, que
rpida evidentemente, e que em todo caso, mais rpida do que devia, para ns se
encaminha. De sua natureza Amor a odeia e nem de longe se lhe aproxima. Com os
jovens ele est sempre em seu convvio e ao seu lado; est certo, com efeito, o
antigo ditado, que o semelhante sempre do semelhante se aproxima. Ora, eu,
embora com Fedro concorde em muitos outros pontos, nisso no concordo, em
que Amor seja mais antigo que Crono e Jpeto, mas ao contrrio afirmo ser ele o
78
Como um bom "simposiarca", Fedro zela reio bom andamento do programa estabelecido. V. supra n. 21. (N. do T.)
79
Scrates louvar mais adiante ,a excelncia desse princpio, que representa uma etapa deci-a na progresso dos discursos. Com efeito,
embora no v acertar na definio da natu--eza do Amor, Agato traz baila o problema, reabilitando assim a refutao socrtica (189 l-
204c) e a definio platnica (201c-204a). N. doT.)
80
Cf. 180e-3. As palavras e os atos humanos podem suscitar a justia vingativa (nemesis) dos deuses. (N. do T.)
mais novo dos deuses e sempre jovem, e que as questes entre os deuses, de que
falam Hesodo81 e Parmnides, foi por Necessidade82 e no por Amor que
ocorreram, se verdade o que aqueles diziam; no haveria, com efeito, mutilaes
nem prises de uns pelos outros, e muitas outras violncias, se Amor estivesse
entre eles, mas amizade e paz, como agora, desde que Amor entre os deuses reina.
Por conseguinte, jovem ele , mas alm de jovem ele delicado; falta-lhe porm um
poeta como era Homero para mostrar sua delicadeza de deus. Homero afirma, com
efeito, que Ate uma deusa, e delicada que os seus ps em todo caso so
delicados quando diz:
seus ps so delicados; pois no
[sobre o solo
se move, mas sobre as cabeas dos
[homens ela anda83.
Assim, bela me parece a prova com que Homero revela a delicadeza da
deusa: no anda ela sobre o que duro, mas sobre o que mole. Pois a mesma
prova tambm ns utilizaremos a respeito do Amor, de que ele delicado. No
com efeito sobre a terra que ele anda, nem sobre cabeas, que no so l to moles,
mas no que h de mais brando entre os seres onde ele anda e reside. Nos
costumes, nas almas de deuses e de homens ele fez sua morada, e ainda, no
indistintamente em todas as almas, mas da que encontre com um costume rude ele
se afasta, e na que o tenha delicado ele habita. Estando assim sempre em contato,
nos ps como em tudo, com os que, entre os seres mais brandos, so os mais
brandos, necessariamente ele o que h de mais delicado. ento o mais jovem, o
mais delicado, e alm dessas qualidades, sua constituio mida. Pois no seria ele
capaz de se amoldar de todo jeito, nem de por toda alma primeiramente entrar,
despercebido, e depois sair, se fosse ele seco84. De sua constituio acomodada e

81
Cf. Teogonia, passim. (N.doT.)
82
talvez idia de Parmnides. O que este escreveu sobre os deuses devia estar na parte do seu poema referente s "opinies" dos mortais.
Segundo Acio II, 7, 1 (Diels 28, A, 37), ele punha Justia e Necessidade no meio de vrias esferas concntricas, como causa de movimento
e gerao. (N. do T.)
83
Iliada, XIX, 92. Ate a personificao da fatalidade. (N. do T.)
84
Sendo mido, mole, Amor cede presso, adapta-se, modela-se; ao contrrio, sendo seco, no se adapta e no adquire forma conveniente.
O argumento de uma fantasia extravagante, de acordo com o carter requintado de Agato. (N. do T.)
mida uma grande prova sua bela compleio, o que excepcionalmente todos
reconhecem ter o Amor; que entre deformidade e amor sempre de parte a parte
h guerra. Quanto beleza da sua tez, o seu viver entre flores bem o atesta; pois no
que no floresce, como no que j floresceu, corpo, alma ou o que quer que seja,
no se assenta o Amor, mas onde houver lugar bem florido e bem perfumado, a
ele se assenta e fica.
Sobre a beleza do deus j isso bastante, e no entanto ainda muita coisa
resta; sobre a virtude de Amor devo depois disso falar, principalmente que Amor
no comete nem sofre injustia, nem de um deus ou contra um deus, nem de um
homem ou contra um homem85. fora, com efeito, nem ele cede, se algo cede
pois violncia no toca em Amor nem, quando age, age, pois todo homem de
bom grado serve em tudo ao Amor, e o que de bom grado reconhece uma parte a
outra, dizem "as leis, rainhas da cidade"86, justo. Alm da justia, da mxima
temperana ele compartilha. com efeito a temperana, reconhecidamente, o
domnio sobre prazeres e desejos; ora, o Amor, nenhum prazer lhe predominante;
e se inferiores, seriam dominados por Amor, e ele os dominaria, e dominando
prazeres e desejos seria o Amor excepcionalmente temperante. E tambm quanto
coragem, ao Amor "nem Ares se lhe ope"87. Com efeito, a Amor no pega Ares,
mas Amor a Ares o de Afrodite, segundo a lenda e mais forte o que pega
do que pegado: dominando assim o mais corajoso de todos, seria ento ele o mais
corajoso. Da jus-aa portanto, da temperana e da coragem do deus, est dito; da
sua sabedoria porm resta dizer; o quanto possvel ento deve-se procurar no ser
omisso. E em primeiro lugar, para que tambm eu por minha vez honre a minha
arte como Erixmaco a dele, um poeta o deus, e sbio, tanto que tambem a outro
ele o faz; qualquer um em todo caso torna-se poeta, "mesmo que antes seja
estranho s Musas"88, desde que lhe toque o Amor. o que nos cabe utilizar como

85
Como a seguinte, essa frase, com seus paralelismos exagerados, tpica do maneirismo do estilo retrico de Agato. (N. do T.)
86
Expresso do retrico Alcidamas, aluno de Grgias, citado por Aristteles, Ret., 1406a. (N. do T.)
87
Frag. de um Tiestes de Sfocles: (fr. 235 Nauck2). (N. do T.)
88
Eur., Stenobeia (fr. 663 Nauck2). (N.doT.)
testemunho de que um bom poeta o Amor, em geral em toda criao artstica89;
pois o que no se tem ou o que no se sabe, tambem a outro no se poderia dar ou
ensinar. E em verdade, a criao90 dos animais todos, quem contestar que no
sabedoria do Amor, pela qual nascem e crescem todos os animais? filas, no
exerccio das artes, no sabemos que aquele de quem este deus se torna mestre
acaba clebre e ilustre, enquanto aquele em quem Amor no loque, acaba obscuro?
E quanto arte do arqueiro, medicina, adivinharo, inventou-as Apoio guiado
pelo desejo e pelo amor, de modo que tambm Apolo seria discpulo do Amor.
Assim como tambm as Musas nas belas-artes. Hefesto na metalurgia, Atena na
tecelagem, e Zeus na arte "de governar os deuses e os homens"91. E da que at as
questes dos deuses foram regradas, quando entre eles surgiu Amor, evidentemente
da beleza pois no feio no se firma Amor92 , enquanto que antes, como a
princpio disse, muitos casos terrveis se davam entre os deuses, ao que se diz,
porque entre eles a Necessidade reinava; desde porm que este deus existiu, de se
amarem as belas coisas toda espcie de bem surgiu para deuses e homens.
Assim que me parece, Fedro, que o Amor, primeiramente por ser em si
mesmo o mais belo e o melhor, depois que para os outros a causa de outros
tantos bens. Mas ocorre-me agora tambm em verso dizer alguma coisa, que ele o
que produz paz entre os homens, e no mar bonana, repouso tranqilo de ventos e sono na
dor.
ele que nos tira o sentimento de estranheza e nos enche de familiaridade,
promovendo todas as reunies deste tipo, para mutuamente nos encontrarmos,
tornando-se nosso guia nas festas, nos coros, nos sacrifcios; incutindo brandura e
excluindo rudeza; prdigo de bem-querer e incapaz de mal-querer; propcio e bom;
contemplado pelos sbios e admirado pelos deuses; invejado pelos desafortunados
e conquistado pelos afortunados; do luxo, do requinte, do brilho, das graas, do
ardor e da paixo, pai; diligente com o que bom e negligente com o que mau; no
89
O grego tem , correspondente a , ao e agente respectivamente de : fazer, produzir. O sentido lato de
presta-se assim muito bem s analogias que a seguir faz Agato. Cf. infra 205b-7 rss. (N.doT.)
90
Tambm . V. nota anterior.(N. do T.)
91
Fragmento de alguma tragdia, no identificada. (N.doT.)
92
dessa pequena afirmao que Scrates partir no s para a refutao do poeta como para a sua prpria definio do Amor.(N. do T.)
labor, no temor, no ardor da paixo, no teor da expresso, piloto e combatente,
protetor e salvador supremo, adorno de todos os deuses e homens, guia belssimo e
excelente, que todo homem deve seguir, celebrando-o em belos hinos, e
compartilhando do canto com ele encanta o pensamento de todos os deuses e
homens.
Este, Fedro, rematou ele, o discurso que de minha parte quero que seja ao
deus oferecido, em parte jocoso93, em parte, tanto quanto posso, discretamente
srio."
Depois que falou Agato, continuou Aristodemo, todos os presentes
aplaudiram, por ter o jovem falado altura do seu talento e da dignidade do deus.
Scrates ento olhou para Erixmaco e lhe disse: Porventura, filho de
Acmeno, parece-te que no tem nada de temvel o temor94 que de h muito sinto,
e que no foi proftico o que h pouco eu dizia, que Agato falaria
maravilhosamente, enquanto que eu me havia de embaraar?
Em parte respondeu-lhe Erixmaco parece-me proftico o que
disseste, que Agato falaria bem; mas quanto a te embaraares, no creio.
E como, ditoso amigo disse Scrates no vou embaraar-me, eu e
qualquer outro, quando devo falar depois de proferido um to belo e colorido
discurso? No que as suas demais partes no sejam igualmente admirveis; mas o
que est no fim, pela beleza dos termos e das frases95, quem no se teria perturbado
ao ouvi-lo? Eu por mim, considerando que eu mesmo no seria capaz de nem de
perto proferir algo to belo, de vergonha quase me retirava e partia, se tivesse
algum meio. Com efeito, vinha-me mente o discurso de Grgias, a ponto de
realmente eu sentir o que disse Homero96: temia que, concluindo, Agato em seu

93
Essa advertncia de Agato atenua, em favor do mrito do seu discurso, o significado que comumente se atribui extravagncia dos seus
argumentos, tais como o que vimos pgina 34, n. 84. Ele tem conscincia do carter leve e fantasioso dos argumentos com que preencheu o
esquema srio do seu discurso. (N. do T.)
94
No grego um medo que no medo. Como que contagiado pela retrica de Agato, Scrates imita suas aliteraes e
paradoxos. (N. do T.)
95
Na segunda parte (197c-e) do discurso de Agato, a preciosidade do seu estilo atinge o mximo com aquela longa litania de eptetos.
Alguns crticos querem ver na palavra (que est "traduzida por "frases", mas que em Plato significa s vezes "verbos", em
oposio a "nomes"), uma ambigidade de sentido que esconde assim uma irnica aluso ausncia de verbos nesse trecho. (N. do T.)
96
Odissia, XI, 633-635: ... , / /
, um medo esverdeante me tomava, no me enviasse do Hades a augusta Persefone a cabea de Grgona, "o monstro terrvel".
O adjetivo (= Grgona) homfono de (= Grgias). (N. do T.)
discurso enviasse ao meu a cabea de Grgias, terrvel orador, e de mim mesmo me
fizesse uma pedra, sem voz. Refleti ento que estava evidentemente sendo ridculo,
quando convosco concordava em fazer na minha vez, depois de vs, o elogio ao
Amor, dizendo ser terrvel nas questes de amor, quando na verdade nada sabia do
que se tratava, de como se devia fazer qualquer elogio. Pois eu achava, por
ingenuidade, que se devia dizer a verdade sobre tudo que est sendo elogiado, e que
isso era fundamental, da prpria verdade se escolhendo as mais belas manifestaes
para disp-las o mais decentemente possvel; e muito me orgulhava ento, como se
eu fosse falar bem, como se soubesse a verdade em qualquer elogio. No entanto,
est a, no era esse o belo elogio ao que quer que seja, mas o acrescentar o mximo
coisa, e o mais belamente possvel, quer ela seja assim quer no; quanto a ser
falso, no tinha nenhuma importncia. Foi com efeito combinado como cada um
de ns entenderia elogiar o Amor, no como cada um o elogiaria. Eis por que,
pondo em ao todo argumento, vs o aplicais ao Amor, e dizeis que ele tal e
causa de tantos bens, a fim de aparecer97 ele como o mais belo e o melhor possvel,
evidentemente aos que o no conhecem pois no aos que o conhecem eis
que fica belo, sim, e nobre o elogio. Mas que eu no sabia ento o modo de
elogiar, e sem saber concordei, tambm eu, em elogi-lo na minha vez: "a lngua
jurou, mas o meu peito no"98; que ela se v ento. No vou mais elogiar desse
modo, que no o poderia, certo, mas a verdade sim, se vos apraz, quero dizer
minha maneira, e no em competio com os vossos discursos, para no me prestar
ao riso. V ento Fedro, se por acaso h ainda preciso de um tal discurso, de ouvir
sobre o Amor dizer a verdade, mas com nomes e com a disposio de frases que
por acaso me tiver ocorrido.
Fedro ento, disse Aristodemo, e os demais presentes pediram-lhe que,
como ele prprio entendesse que devia falar, assim o fizesse.

97
Scrates critica nos elogios anteriores a preocupao exclusiva da aparncia, em detrimento da realidade. Como concorrentes, os oradores
agiram como se a mxima beleza dos seus discursos fosse uma conseqncia da mxima beleza atribuda ao Amor. Scrates evita essa fala
fundamental. (N. do T.)
98
Eurpedes, Hiplito, 612. . (N. do T.)
Permite-me ainda, Fedro retornou Scrates fazer umas perguntas a
Agato, a fim de que tendo obtido o seu acordo, eu j possa assim falar.
Mas sim, permito disse Fedro. Pergunta! E ento, disse
Aristodemo, Scrates comeou mais ou menos por esse ponto:
Realmente, caro Agato, bem me pareceste iniciar teu discurso, quando
dizias que primeiro se devia mostrar o prprio Amor, qual a sua natureza, e depois
as suas obras. Esse comeo, muito o admiro. Vamos ento, a respeito do Amor, j
que em geral explicaste bem e magnificamente qual a sua natureza, dize-me
tambm o seguinte: de tal natureza o Amor que amor de algo ou de nada?
Estou perguntando, no se de uma me ou de um pai pois ridcula seria essa
pergunta, se Amor amor de um pai ou de uma me mas como se, a respeito
disso mesmo, de "pai", eu perguntasse: "Porventura o pai pai de algo ou no?
Ter-me-ias sem dvida respondido, se me quisesses dar uma bela resposta, que de
um filho ou de uma filha que o pai pai99; ou no?"
Exatamente disse Agato.
E tambm a me no assim?
Tambm admitiu ele.
Responde-me ainda, continuou Scrates, mais um pouco, a fim de
melhor compreenderes o que quero. Se eu te perguntasse: "E irmo100, enquanto
justamente isso mesmo que , irmo de algo ou no?"
, sim, disse ele.
De um irmo ou de uma irm, no ? Concordou.
Tenta ento, continuou Scrates, tambm a respeito do Amor dizer-me: o
Amor amor de nada ou de algo?
De algo, sim.

99
Entender: Assim como pai pai com relao a filho, amor amor com relao a alguma coisa. por esse objeto especfico do amor que
Scrates pergunta. (N. do T.)
100
A repetio dos exemplos numa argumentao, que muitas vezes nos parece ociosa e geralmente nos impacienta tpica dos dilogos,
que parecem nesse ponto refletir um hbito da poca. (N. do T.)
Isso ento, continuou ele, guarda contigo101, lembrando-te de que que
ele amor; agora dize-me apenas o seguinte: Ser que o Amor, aquilo de que
amor, ele o deseja ou no?
Perfeitamente respondeu o outro.
E quando tem isso mesmo que deseja e ama que ele ento deseja e ama,
ou quando no tem?
Quando no tem, como bem provvel disse Agato.
Observa bem, continuou Scrates, se em vez de uma probabilidade no
uma necessidade que seja assim, o que deseja deseja aquilo de que carente, sem o
que no deseja, se no for carente. espantoso como me parece, Agato, ser uma
necessidade; e a ti?
Tambm a mim disse ele.
Tens razo. Pois porventura desejaria quem j grande ser grande, ou
quem j forte ser forte?
Impossvel, pelo que foi admitido.
Com efeito, no seria carente disso o que justamente isso.
verdade o que dizes.
Se, com efeito, mesmo o forte quisesse ser forte, continuou Scrates, e o
rpido ser rpido, e o sadio ser sadio pois talvez algum pensasse que nesses e
em todos os casos semelhantes os que so tais e tm essas qualidades desejam o
que justamente tm, e para no nos enganarmos que estou dizendo isso ora,
para estes, Agato, se atinas bem, foroso que tenham no momento tudo aquilo
que tm, quer queiram, quer no, e isso mesmo, sim, quem que poderia desej-lo?
Mas quando algum diz: "Eu, mesmo sadio, desejo ser sadio, e mesmo rico, ser
rico, e desejo isso mesmo que tenho", poderamos dizer-lhe: " homem, tu que
possuis riqueza, sade e fortaleza, o que queres tambm no futuro possuir esses
bens, pois no momento, quer queiras quer no, tu os tens; observa ento se,
quando dizes "desejo o que tenho comigo", queres dizer outra coisa seno isso:

101
Para diz-lo em 201 a 206. (N. do T.)
"quero que o que tenho agora comigo, tambm no futuro eu o tenha." Deixaria ele
de admitir?
Agato, dizia Aristodemo, estava de acordo.
Disse ento Scrates: No isso ento amar o que ainda no est mo
nem se tem, o querer que, para o futuro, seja isso que se tem conservado consigo e
presente?
Perfeitamente disse Agato.
Esse ento, como qualquer outro que deseja, deseja o que no est mo
nem consigo, o que no tem, o que no ele prprio e o de que carente; tais so
mais ou menos as coisas de que h desejo e amor, no ?
Perfeitamente disse Agato.
Vamos ento, continuou Scrates, recapitulemos o que foi dito. No
certo que o Amor, primeiro de certas coisas, e depois, daquelas de que ele tem
preciso?
Sim disse o outro.
Depois disso ento; lembra-te de que que em teu discurso disseste ser o
Amor; se preferes, eu te lembrarei. Creio, com efeito, que foi mais ou menos assim
que disseste, que aos deuses foram arranjadas suas questes atravs do amor do que
belo, pois do que feio no havia amor102. No era mais ou menos assim que
dizias?
Sim, com efeito disse Agato.
E acertadamente o dizes, amigo, declarou Scrates; e se assim, no
certo que o Amor seria da beleza, mas no da feira? Concordou.
No est ento admitido que aquilo de que carente e que no tem o
que ele ama?
Sim disse ele.
Carece ento de beleza o Amor, e no a tem?
foroso.

102
V. supra n. 92. (n. do T.)
E ento? O que carece de beleza e de modo algum a possui, porventura
dizes tu que belo?
No, sem dvida.
Ainda admites por conseguinte que o Amor belo, se isso assim?
E Agato: bem provvel, Scrates, que nada sei do que ento
disse103?
E no entanto, prosseguiu Scrates, bem que foi belo o que disseste,
Agato. Mas dize-me ainda uma pequena coisa: o que bom no te parece que
tambm belo?
Parece-me, sim.
Se portanto o Amor carente do que belo, e o que bom belo,
tambm do que bom seria ele carente.104
Eu no poderia, Scrates, disse Agato, contradizer-te; mas seja assim
como tu dizes.
verdade105, querido Agato, que no podes contradizer, pois a
Scrates no nada difcil.
E a ti eu te deixarei agora; mas o discurso que sobre o Amor eu ouvi um
dia, de uma mulher de Mantinia, Diotima, que nesse assunto era entendida e em
muitos outros foi ela que uma vez, porque os atenienses ofereceram sacrifcios
para conjurar a peste, fez por dez anos106 recuar a doena, e era ela que me instrua
nas questes de amor o discurso ento que me fez
aquela mulher eu tentarei repetir-vos, a partir do que foi admitido por mim e
por Agato, com meus prprios recursos e como eu puder. de fato
preciso, Agato, como tu indicaste, primeiro discorrer sobre o prprio Amor, quem
ele e qual a sua natureza e depois sobre as suas obras. Parece-me ento que o mais

103
Agato reage como um discpulo ou um amigo de Scrates, isto , confessando francamente a ignorncia que acaba de descobrir em si.
(N. do T.)
104
Essa associao do bom e do belo. bem familiar ao grego (ob. o epteto corrente: ), e insistentemente defendida na
argumentao socrtica (v. por exemplo, Grgias, 474d-e). ser de muita utilidade em 204e. (N. do T.)
105
No se trata aqui de refutar a A ou a B, o que quer dizer Scrates: uma vez estabelecida a veracidade de um argumento, no mais
possvel, ou melhor, no mais questo de contest-lo. (N. do T.)
106
Se se trata da peste que assolou Atenas no comeo da guerra do Peloponeso, Diotima teria feito o sacrifcio em 440, quando Scrates
entrava na casa dos trinta. (N. do T.)
fcil proceder como outrora a estrangeira, que discorria interrogando-me107, pois
tambm eu quase que lhe dizia outras tantas coisas tais quais agora me diz Agato,
que era o Amor um grande deus, e era do que belo; e ela me refutava, exatamente
com estas palavras, com que eu estou refutando a este, que nem era belo segundo
minha palavra, nem bom.
E eu ento: Que dizes, Diotima? feio ento o Amor, e mau?
E ela: No vais te calar? Acaso pensas que o que no for belo, foroso
ser feio?
Exatamente.
E tambm se no for sbio ignorante? Ou no percebeste que existe
algo entre sabedoria e ignorncia?
Que ?
O opinar certo, mesmo sem poder dar razo, no sabes, dizia-me ela, que
nem saber pois o que sem razo, como seria cincia? nem ignorncia108
pois o que atinge o ser, como seria ignorncia? e que sem dvida alguma
coisa desse tipo a opinio certa, um intermedirio entre entendimento e ignorncia.
verdade o que dizes, tornei-lhe.
No fiques, portanto, forando o que no belo a ser feio, nem o que
no bom a ser mau. Assim tambm o Amor, porque tu mesmo admites109 que no
bom nem belo, nem por isso vs imaginar que ele deve ser feio e mau, mas sim
algo que est, dizia ela, entre esses dois extremos.
E todavia por todos reconhecido que ele um grande deus.110
Todos os que no sabem, o que ests dizendo, ou tambm os que
sabem?
Todos eles, sem dvida.
107
estranho que uma sacerdotisa use o mtodo de explicao dos sofistas do sculo V, atravs de perguntas forjadas por ela mesma. Esse
parece um dos mais fortes indcios de que o fato contado por Scrates fictcio, sobretudo se se considera a exata correspondncia dos
dilogos Scrates-Agato, Diotima-Scrates. (N. do T.)
108
Cf. Meno, 97b-e. (N. doT\)
109
No Lsis (216d - 221e) Scrates faz uma proposio semelhante ( amigo do belo e do bom o que no nem bom nem mau), que ele
encaminha para a seguinte aporia: A presena do mal no que no bom nem mau o que faz este desejar o belo e o bom, e assim, ausente
o mal, o belo e o bom no seriam capazes de suscitar o amor. Como se v trata-se de puras idias, cuja relao dificultada na razo direta da
sua exata conceituao. (N. do T.)
110
Essa observao de Scrates vai determinar a passagem do mtodo dialtico para a exposio alegrica. Demonstrada a natureza
intermediria do Amor, Diotima chama-o de gnio, conta sua origem e traa seu retrato.(N. do T.)
E ela sorriu e disse: E como, Scrates, admitiriam ser um grande deus
aqueles que afirmam que nem deus ele ?
Quem so estes? perguntei-lhe.
Um s tu respondeu-me e eu, outra.
E eu: Que queres dizer com isso?
E ela: simples. Dize-me, com efeito, todos os deuses no os afirmas
felizes e belos? Ou terias a audcia de dizer que algum deles no belo e feliz?
Por Zeus, no eu retornei-lhe.
E os felizes ento, no dizes que so os que possuem o que bom e o
que belo?
Perfeitamente.
Mas no entanto, o Amor, tu reconheceste que, por carncia do que bom
e do que belo, deseja isso mesmo de que carente.
Reconheci, com efeito.
Como ento seria deus o que justamente desprovido do que belo e
bom?
De modo algum, pelo menos ao que parece.
Ests vendo ento disse que tambm tu no julgas o Amor um
deus?
Que seria ento o Amor? perguntei-lhe. Um mortal?
Absolutamente.
Mas o qu, ao certo, Diotima?
Como nos casos anteriores disse-me ela algo entre mortal e
imortal.
O qu, ento, Diotima?
Um grande gnio, Scrates; e com efeito, tudo o que gnio est entre
um deus e um mortal.
E com que poder? perguntei-lhe.
O de interpretar e transmitir aos deuses o que vem dos homens, e aos
homens o que vem dos deuses, de uns as splicas e os sacrifcios, e dos outros as
ordens e as recompensas pelos sacrifcios; e como est no meio de ambos ele os
completa, de modo que o todo fica ligado todo ele a si mesmo. Por seu intermdio
que procede no s toda arte divinatria, como tambm a dos sacerdotes que se
ocupam dos sacrifcios, das iniciaes e dos encantamentos, e enfim de toda
adivinhao e magia. Um deus com um homem no se mistura, mas atravs desse
ser que se faz todo o convvio e dilogo dos deuses com os homens, tanto quando
despertos como quando dormindo; e aquele que em tais questes sbio um
homem de gnio111, enquanto o sbio em qualquer outra coisa, arte ou ofcio, um
arteso. E esses gnios, certo, so muitos e diversos, e um deles justamente o
Amor.
E quem seu pai perguntei-lhe e sua me?
um tanto longo de explicar, disse ela; todavia, eu te direi. Quando
nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se encontrava
tambm o filho de Prudncia, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para
esmolar do festim a Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o
nctar pois vinho ainda no havia penetrou o jardim de Zeus e, pesado,
adormeceu. Pobreza ento, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho
de Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o Amor. Eis por que ficou
companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalcio, ao mesmo
tempo que por natureza amante do belo, porque tambm Afrodite bela. E por ser
filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condio em que ele ficou.
Primeiramente ele sempre pobre, e longe est de ser delicado e belo, como a
maioria imagina, mas duro, seco, descalo e sem lar, sempre por terra e sem forro,
deitando-se ao desabrigo, s portas e nos caminhos, porque tem a natureza da me,
sempre convivendo com a preciso. Segundo o pai, porm, ele insidioso com o
que belo e bom, e corajoso, decidido e enrgico, caador terrvel, sempre a tecer

111
A expresso grega , isto e, homem marcado pelo gnio, pela divindade ( ). Nossos correspondentes "genial"
ou "de gnio" derivam para a idia de talento. (N.doT.)
maquinaes, vido de sabedoria e cheio de recursos, a filosofar por toda a vida,
terrvel mago, feiticeiro, sofista112: e nem imortal a sua natureza nem mortal, e no
mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece113; ora morre e de novo
ressuscita, graas natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo
que nem empobrece114 o Amor nem enriquece, assim como tambm est no meio
da sabedoria e da ignorncia. Eis com efeito o que se d. Nenhum deus filosofa ou
deseja ser sbio pois j 115, assim como se algum mais sbio, no filosofa.
Nem tambm os ignorantes filosofam ou desejam ser sbios; pois nisso mesmo
que est o difcil da ignorncia, no pensar, quem no um homem distinto e gentil,
nem inteligente, que lhe basta assim. No deseja portanto quem no imagina ser
deficiente naquilo que no pensa lhe ser preciso.
Quais ento, Diotima perguntei-lhe os que filosofam, se no so
nem os sbios nem os ignorantes?
o que evidente desde j respondeu-me at a uma criana: so
os que esto entre esses dois extremos, e um deles seria o Amor. Com efeito, uma
das coisas mais belas a sabedoria, e o Amor amor pelo belo, de modo que
foroso o Amor ser filsofo e, sendo filsofo, estar entre o sbio e o ignorante. E a
causa dessa sua condio a sua origem: pois filho de um pai sbio e rico116 e de
uma me que no sbia, e pobre. E essa ento, Scrates, a natureza desse gnio;
quanto ao que pensaste ser o Amor, no nada de espantar o que tiveste. Pois
pensaste, ao que me parece a tirar pelo que dizes, que Amor era o amado e no o
amante; eis por que, segundo penso, parecia-te todo belo o Amor. E de fato o que
amvel que realmente belo, delicado, perfeito e bem-aventurado117; o amante,
porm outro o seu carter, tal qual eu expliquei.

112
O epteto de sofista vem sem dvida por associao com os dois anteriores. V. Protgoras, 328d. (N.doT.)
113
No grego (derivado de = recurso). A transposio dessa temporal para depois de "ressuscita", feita por Wilamovits e
adotada por Robin, no nos parece suficientemente justificada por razes estilsticas. Ao contrrio do que alegam os seus defensores, tal
como est o texto dos mss., o perodo mostra-se bem articulado, pela correspondncia dessa temporal com a expresso "graas natureza do
pai" no seguinte esquema: vive quando enriquece/ morre/ ressuscita graas natureza do pai (N.doT.)
114
No grego (tambm derivado de ). (N. do T.)
115
Cf. no Lsis um argumento semelhante: o bom, bastando-se a si mesmo, no amigo (isto , no ama e no deseja) do bom.(N. do T.)
116
No grego , assim como infra = pobre, ambos derivados de (N. do T.)
117
Cf. supra 180a-4. (N. do T.)
E eu lhe disse: Muito bem, estrangeira! belo o que dizes! Sendo porm
tal a natureza do Amor, que proveito ele tem para os homens?
Eis o que depois disso respondeu-me tentarei ensinar-te. Tal de
fato a sua natureza e tal a sua origem; e do que belo, como dizes. Ora, se algum
nos perguntasse: Em que que amor do que belo o Amor, Scrates e
Diotima? ou mais claramente: Ama o amante o que belo; que que ele ama?
T-lo consigo respondi-lhe.
Mas essa resposta dizia-me ela ainda requer118 uma pergunta desse
tipo: Que ter aquele que ficar com o que belo?
Absolutamente expliquei-lhe eu no podia mais responder-lhe de
pronto a essa pergunta.
Mas , disse ela, como se algum tivesse mudado a questo e, usando o
bom119 em vez do belo, perguntasse: Vamos, Scrates, ama o amante o que bom;
que que ele ama?
T-lo consigo respondi-lhe.
E que ter aquele que ficar com o que bom?
Isso eu posso disse-lhe mais facilmente responder: ele ser feliz.
com efeito pela aquisio do que bom, disse ela, que os felizes so
felizes, e no mais preciso ainda perguntar: E para que quer ser feliz aquele que o
quer? Ao contrrio, completa parece a resposta.
verdade o que dizes tornei-lhe.
E essa vontade ento e esse amor, achas que comum a todos os
homens, e que todos querem ter sempre consigo o que bom, ou que dizes?
Isso respondi-lhe comum a todos.
E por que ento, Scrates, no so todos que dizemos que amam, se
que todos desejam a mesma coisa120 e sempre, mas sim que uns amam e outros
no?
Tambm eu respondi-lhe admiro-me.
118
A expresso no grego pitoresca ( , isto , deseja), por sua relao com a idia discutida no contexto. (N. do T.)
119
V. supra n. 104. (N. do T.)
120
Isto , o que bom ou, mais literalmente, as coisas boas. (N. do T.)
Mas no! No te admires! retrucou ela; pois porque destacamos
do amor um certo aspecto e, aplicando-lhe o nome do todo, chamamo-lo de amor,
enquanto para os outros aspectos servimo-nos de outros nomes.
Como, por exemplo? perguntei-lhe.
Como o seguinte. Sabes que "poesia"121 algo de mltiplo; pois toda
causa de qualquer coisa passar do no-ser ao ser "poesia", de modo que as
confeces de todas as artes so "'poesias", e todos os seus artesos poetas.
verdade o que dizes.
Todavia continuou ela tu sabes que estes no so denominados
poetas, mas tm outros nomes, enquanto que de toda a "poesia" uma nica parcela
foi destacada, a que se refere msica e aos versos, e com o nome do todo
denominada. Poesia com efeito s isso que se chama, e os que tm essa parte da
poesia, poetas.
verdade disse-lhe.
Pois assim tambm com o amor. Em geral, todo esse desejo do que
bom e de ser feliz, eis o que "o supremo e insidioso amor, para todo homem"122,
no entanto, enquanto uns, porque se voltam para ele por vrios outros caminhos,
ou pela riqueza ou pelo amor ginstica ou sabedoria, nem se diz que amam nem
que so amantes, outros ao contrrio, procedendo e empenhando-se numa s
forma, detm o nome do todo, de amor, de amar e de amantes.
bem provvel que estejas dizendo a verdade disse-lhe eu.
E de fato corre um dito123, continuou ela, segundo o qual so os que
procuram a sua prpria metade os que amam; o que eu digo porm que no
nem da metade o amor, nem do todo; pelo menos, meu amigo, se no se encontra
este em bom estado, pois at os seus prprios ps e mos querem os homens
cortar, se lhes parece que o que seu est ruim. No com efeito o que seu,
penso, que cada um estima, a no ser que se chame o bem de prprio e de seu, e o

121
no grego ao de = fazer, isto , confeco, produo e num sentido mais limitado, poesia. (N. do T.)
122
Provavelmente uma citao do verso no identificado (N. do T.)
123
Essa aluso ao discurso de Aristfanes , como nota Robin em sua introduo ao Banquete, um indcio habilmente dissimulado na
verossimilhana da narrao do carter fictcio de Diotima. (N. do T.)
mal de alheio; pois nada mais h que amem os homens seno o bem; ou te parece
que amam?
No, por Zeus respondi-lhe.
Ser ento continuou que to simples124 assim, dizer que os
homens amam o bem?
Sim disse-lhe.
E ento? No se deve acrescentar que ter consigo o bem que eles
amam?
Deve-se.
E sem dvida continuou no apenas ter, mas sempre ter?
Tambm isso se deve acrescentar.
Em resumo ento disse ela o amor amor de consigo ter sempre o
bem.
Certssimo afirmei-lhe o que dizes.
Quando ento continuou ela sempre isso o amor, de que modo,
nos que o perseguem, e em que ao, o seu zelo e esforo se chamaria amor125?
Que vem a ser essa atividade? Podes dizer-me?
Eu no te admiraria ento, Diotima, por tua sabedoria, nem te
freqentaria para aprender isso mesmo.
Mas eu te direi tornou-me isso, com efeito, um parto em beleza,
tanto no corpo como na alma.
um adivinho disse-lhe eu que requer o que ests dizendo: no
entendo.
Pois eu te falarei mais claramente, Scrates, disse-me ela. Com efeito,
todos os homens concebem, no s no corpo como tambm na alma, e quando
chegam a certa idade, dar luz que deseja a nossa natureza. Mas ocorrer isso no
que inadequado impossvel. E o feio inadequado a tudo o que divino,
124
O que segue at b deve ser relacionado com 200b-e. O desejo de ter para o futuro o desejo de ter sempre. Da associar-se a idia do bem
de continuidade, a qual, logo mais referida ao homem, ser mortal, assume a feio de imortalidade. (N. do T.)
125
Nova mudana no mtodo de exposio, que agora passa a ser discursivo. Assimilando abruptamente, maneira dos profetas, a atividade
amorosa ao processo da gerao, Diotima discorre ento sobre o sentido desta, revelando-a como uma maneira de participarem os seres deste
mundo da perene estabilidade do mundo ideal. (N. do T.)
enquanto o belo adequado. Moira ento e Ilitia126 do nascimento a Beleza. Por
isso, quando do belo se aproxima o que est em concepo, acalma-se, e de jbilo
transborda, e d luz e gera; quando porm do feio que se aproxima, sombrio e
aflito contrai-se, afasta-se, recolhe-se e no gera, mas, retendo o que concebeu,
penosamente o carrega. Da que ao que est prenhe e j intumescido grande o
alvoroo que lhe vem vista do belo, que de uma grande dor liberta o que est
prenhe. com efeito, Scrates, dizia-me ela, no do belo o amor, como pensas.
Mas de que enfim?
Da gerao e da parturio no belo.
Seja disse-lhe eu.
Perfeitamente continuou. E por que assim da gerao? Porque
algo de perptuo e imortal para um mortal, a gerao. E a imortalidade que, com
o bem, necessariamente se deseja, pelo que foi admitido, se que o amor amor de
sempre ter consigo o bem127. de fato foroso por esse argumento que tambm da
imortalidade seja o amor.
Tudo isso ela me ensinava, quando sobre as questes de amor discorria, e
uma vez ela me perguntou: Que pensas, Scrates, ser o motivo128 desse amor e
desse desejo? Porventura no percebes como estranho o comportamento de
todos os animais quando desejam gerar, tanto dos que andam quanto dos que
voam, adoecendo todos em sua disposio amorosa, primeiro no que concerne
unio de um com o outro, depois no que diz respeito criao do que nasceu? E
como em vista disso esto prontos para lutar os mais fracos contra os mais fortes, e
mesmo morrer, no s se torturando pela fome a fim de aliment-los como tudo o
mais fazendo? Ora, os homens, continuou ela, poder-se-ia pensar que pelo
raciocnio que eles agem assim; mas os animais, qual a causa desse seu
comportamento amoroso? Podes dizer-me?

126
Divindade que preside aos nascimentos, assim como uma das trs Moiras ou Parcas. (N. do T.)
127
206a. V. nota respectiva. (N. do T.)
128
Diotima e Scrates j se entenderam sobre o motivo do amor (206-207a, 207c-8-d). Por conseguinte, sua pergunta agora apenas para
iniciar uma verificao desse motivo, considerando-o a partir do amor fsico, a forma mai sensvel do amor. V. supra 205b-d. (N. do T.)
De novo eu lhe disse que no sabia; e ela me tornou: Imaginas ento
algum dia te tomares temvel nas questes do amor, se no refletires nesses fatos?
Mas por isso mesmo, Diotima como h pouco eu te dizia que
vim a ti, porque reconheci que precisava de mestres. Dize-me ento no s a causa
disso, como de tudo o mais que concerne ao amor.
Se de fato continuou crs que o amor por natureza amor daquilo
que muitas vezes admitimos, no fiques admirado..Pois aqui, segundo o mesmo
argumento que l, a natureza mortal procura, na medida do possvel, ser sempre e
ficar imortal. E ela s pode assim, atravs da gerao, porque sempre deixa um
outro ser novo em lugar do velho129; pois nisso que se diz que cada espcie animal
vive e a mesma assim como de criana o homem se diz o mesmo at se tornar
velho; este na verdade, apesar de jamais ter em si as mesmas coisas, diz-se todavia
que o mesmo, embora sempre se renovando e perdendo alguma coisa, nos
cabelos, nas carnes, nos ossos, no sangue e em todo o corpo. E no que s no
corpo, mas tambm na alma os modos, os costumes, as opinies, desejos, prazeres,
aflies, temores, cada um desses afetos jamais permanece o mesmo em cada um
de ns, mas uns nascem, outros morrem. Mas ainda mais estranho do que isso
que at as cincias no s que umas nascem e outras morrem para ns, e jamais
somos os mesmos nas cincias, mas ainda cada uma delas sofre a mesma
contingncia. O que, com efeito, se chama exercitar como se de ns estivesse
saindo a cincia; esquecimento escape de cincia, e o exerccio, introduzindo uma
nova lembrana em lugar da que est saindo, salva a cincia, de modo a parecer ela
ser a mesma. desse modo que tudo o que mortal se conserva, e no pelo fato
de absolutamente ser sempre o mesmo, como o que divino, mas pelo fato de
deixar o que parte e envelhece um outro ser novo, tal qual ele mesmo era. por
esse meio, Scrates, que o mortal participa da imortalidade, no corpo como em
tudo mais130; o imortal porm de outro modo. No te admires portanto de que o

129
Segue at 208b um quadro muito vivo da viso heraclitiana da realidade. Mas, sob o fluxo desesperador das coisas, Diotima v em sua
gerao, a sua maneira de continuar, o seu modo de participar do ser perene das idias. (N. do T.)
130
Alguns crticos querem ver nessa passagem uma contradio com a doutrina da imortalidade da alma, e conseqentemente um indcio da
anterioridade do Banquete ao Fdon, onde aquela doutrina longamente exposta. Na verdade, ela no autoriza a inferncia de que a alma
seu prprio rebento, todo ser por natureza o aprecie: em virtude da imortalidade
que a todo ser esse zelo e esse amor acompanham.
Depois de ouvir o seu discurso, admirado disse-lhe: Bem, doutssima
Diotima, essas coisas verdadeiramente assim que se passam?
E ela, como os sofistas consumados, tornou-me: Podes estar certo,
Scrates; o caso que, mesmo entre os homens, se queres atentar sua ambio,
admirar-te-ias do seu desarrazoamento, a menos que, a respeito do que te falei, no
reflitas, depois de considerares quo estranhamente eles se comportam com o amor
de se tornarem renomados e de "para sempre uma glria imortal se preservarem", e
como por isso esto prontos a arrostar todos os perigos, ainda mais do que pelos
filhos, a gastar fortuna, a sofrer privaes, quaisquer que elas sejam, e at a
sacrificar-se. Pois pensas tu, continuou ela, que Alceste131 morreria por Ad-meto,
que Aquiles morreria depois de Ptroclo, ou o vosso Codro132 morreria antes, em
favor da realeza dos filhos, se no imaginassem que eterna seria a memria da sua
prpria virtude, que agora ns conservamos? Longe disso, disse ela; ao contrrio, ,
segundo penso, por uma virtude imortal e por tal renome e glria que todos tudo
fazem, e quanto melhores tanto mais; pois o imortal que eles amam. Por
conseguinte, continuou ela, aqueles que esto fecundados em seu corpo voltam-se
de preferncia para as mulheres, e desse modo que so amorosos, pela procriao
conseguindo para si imortalidade, memria e bem-aventurana por todos os
sculos seguintes, ao que pensam; aqueles porm que em sua alma pois h os
que concebem na alma mais do que no corpo, o que convm alma conceber e
gerar; e o que que lhes convm seno o pensamento e o mais da virtude133? Entre
estes esto todos os poetas criadores e todos aqueles artesos que se diz serem
inventivos; mas a mais importante, disse ela, e a mais bela forma de pensamento a
que trata da organizao dos negcios da cidade e da famlia, e cujo nome
mortal. Diotima diz que seus afetos e conhecimentos so passageiros, como os elementos do corpo, mas no afirma que a alma so esses
afetos e conhecimentos. A idia de vrias encarnaes da alma e a do conhecimento-reminiscncia, exposta tambm no Fdon, ilustra muito
a compatibilidade de uma alma imortal com acidentes transitrios. (N. do T.)
131
uma referncia ao discurso de Fedro, 179 ss. (N. do T.)
132
Rei legendrio de Atenas. Informado de que um orculo prometera vitria aos drios, se estes no o matassem, disfara-se em soldado e
como tal encontra a morte com que salvou sua ptria. (N. do T.)
133
Entender .virtude no sentido amplo de excelncia, tal como o grego . Notar a distino feita no Banquete entre (de
) = disposio para a sabedoria, pensamento e , isto , sabedoria (v. 202) que s os deuses possuem. (N. do T.)
prudncia e justia134 destes por sua vez quando algum, desde cedo fecundado
em sua alma, ser divino que , e chegada a idade oportuna, j est desejando dar
luz e gerar, procura ento -tambm este, penso eu, sua volta o belo em que possa
gerar: pois no que feio ele jamais o far. Assim que os corpos belos mais que os
feios ele os acolhe, por estar em concepo; e se encontra uma alma bela, nobre e
bem dotada, total o seu acolhimento a ambos, e para um homem desses logo ele
se enriquece135 de discursos sobre a virtude, sobre o que deve ser o homem bom e o
que deve tratar, e tenta educ-lo. Pois ao contato sem dvida do que belo e em
sua companhia, o que de h muito ele concebia ei-lo que d luz e gera, sem o
esquecer tanto em sua presena quanto ausente, e o que foi gerado, ele o alimenta
justamente com esse belo, de modo que uma comunidade muito maior que a dos
filhos ficam tais indivduos mantendo entre si, e uma amizade mais firme, por
serem mais belos e mais imortais os filhos que tm em comum. E qualquer um
aceitaria obter tais filhos mais que os humanos, depois de considerar Homero e
Hesodo, e admirando com inveja os demais bons poetas, pelo tipo de
descendentes que deixam de si, e que uma imortal glria e memria lhes garantem,
sendo eles mesmos o que so; ou se preferes136, continuou ela, pelos filhos que
Licurgo deixou na Lacedemnia, salvadores da Lacedemnia e por assim dizer da
Grcia. E honrado entre vs tambm Slon137 pelas leis que criou, e outros
muitos em muitas outras partes, tanto entre os gregos como entre os brbaros, por
terem dado luz muitas obras belas e gerado toda espcie de virtudes; deles que
j se fizeram muitos cultos por causa de tais filhos, enquanto que por causa dos
humanos ainda no se fez nenhum.

134
Prudncia ( ) e justia so aqui formas do pensamento ( ); como no Protgoras (361b ss.) elas so, como as demais
virtudes, formas ou aspectos de uma cincia ( ) (N. do T.)
135
No grego V. supra n. 113. (N. do T.)
136
A ordem em que aparecem os exemplos da poesia e da legislao parece sugerir a preeminncia da primeira sobre a segunda. Cf. todavia
Repblica, X, 597 e ss., em que Plato, ao contrrio, explica a superioridade da segunda.(N.doT.)
137
Em conferncia na Associao dos Estudos Clssicos do Brasil (Seo de So Paulo), sobre o autocriticismo em Atenas, o Prof.
Aubreton observou com muito acerto os sentimentos de laconismo que revela essa maneira de um ateniense citar depois das leis de Licurgo
salvadores da Grcia ... as leis do seu conterrneo e tambm Slon . . . (N. do T.)
So esses ento os casos de amor em que talvez, Scrates, tambm tu
pudesses ser iniciado138; mas, quanto sua perfeita contemplao, em vista da qual
que esses graus existem, quando se procede corretamente, no sei se serias capaz;
em todo caso, eu te direi, continuou, e nenhum esforo pouparei; tenta ento
seguir-me se fores capaz: deve com efeito, comeou ela, o que corretamente se
encaminha a esse fim, comear quando jovem por dirigir-se aos belos corpos, e em
primeiro lugar, se corretamente o dirige o seu dirigente, deve ele amar um s corpo
e ento gerar belos discursos139; depois deve ele compreender que a beleza em
qualquer corpo irm da que est em qualquer outro, e que, se se deve procurar o
belo na forma, muita tolice seria no considerar uma s e a mesma a beleza em
todos os corpos; e depois de entender isso, deve ele fazer-se amante de todos os
belos corpos e largar esse amor violento de um s, aps desprez-lo e consider-lo
mesquinho; depois disso a beleza que est nas almas deve ele considerar mais
preciosa que a do corpo, de modo que, mesmo se algum de uma alma gentil tenha
todavia um escasso encanto, contente-se ele, ame e se interesse, e produza e
procure discursos tais que tornem melhores os jovens; para que ento seja obrigado
a contemplar o belo nos ofcios e nas leis, e a ver assim que todo ele tem um
parentesco comum140, e julgue enfim de pouca monta o belo no corpo; depois dos
ofcios para as cincias que preciso transport-lo, a fim de que veja tambm a
beleza das cincias, e olhando para o belo j muito, sem mais amar como um
domstico a beleza individual de um crianola, de um homem ou de um s
costume, no seja ele, nessa escravido, miservel e um mesquinho discursador,
mas voltado ao vasto oceano do belo e, contemplando-o, muitos discursos belos e
magnficos ele produza, e reflexes, em inesgotvel amor sabedoria, at que a

138
Feito o exame das diversas formas da atividade amorosa (procriao, poesia, legislao), Diotima as considera como estgios
preliminares do supremo ato do amor, que a conquista ia cincia do belo em si. Para dar no entanto i entender o carter dessa cincia e de
sua aquisio, ela recorre alegoria da iniciao aos mistrios. Compar-la a esse respeito com o mito da Caverna na Repblica. (N.doT.)
139
Evidentemente no se trata aqui do amor fsico entre o homem e a mulher, que tem a justificao na procriao (208e), e sim de uma
primeira etapa do amor entre o amante e o bem-amado, que deve estar condicionado produo dos belos discursos. Essa etapa inicial'
corresponde ao que Pausnias, numa perspectiva menos clara, afirma ser o nobre amolde Afrodite Urnia. (N.doT.)
140
Assim como, pouco antes, um belo corpo irmo de um belo corpo, todos estes por sua vez tm a mesma relao com os belos ofcios e
as belas leis. (N.doT.)
robustecido e crescido141 contemple ele uma certa cincia, nica, tal que o seu
objeto o belo seguinte. Tenta agora, disse-me ela, prestar-me a mxima ateno
possvel. Aquele, pois, que at esse ponto tiver sido orientado para as coisas do
amor, contemplando seguida e corretamente o que belo, j chegando ao pice dos
graus do amor, sbito perceber algo de maravilhosamente belo em sua natureza,
aquilo mesmo142, Scrates, a que tendiam todas as penas anteriores,
primeiramente sempre sendo, sem nascer nem perecer, sem crescer nem decrescer,
e depois, no de um jeito belo e de outro feio, nem ora sim ora no, nem quanto a
isso belo e quanto quilo feio, nem aqui belo ali feio, como se a uns fosse belo e a
outros feio; nem por outro lado aparecer-lhe- o belo como um rosto ou mos,
nem como nada que o corpo tem consigo, nem como algum discurso ou alguma
cincia, nem certamente como a existir em algo mais, como, por exemplo, em
animal da terra ou do cu, ou em qualquer outra coisa; ao contrrio, aparecer-lhe-
ele mesmo, por si mesmo, consigo mesmo, sendo sempre uniforme143, enquanto
tudo mais que belo dele participa, de um modo tal que, enquanto nasce e perece
tudo mais que belo, em nada ele fica maior ou menor, nem nada sofre.
Quando ento algum, subindo a parti: do que aqui belo144, atravs do
correto amor aos jovens, comea a contemplar aquele belo, quase que estaria a
atingir o ponto final. Eis, com efeito em que consiste o proceder corretamente nos
caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir: em comear do que aqui belo
e, em vista daquele belo, subir sempre, como que servindo-se de degraus, de um s
para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos
ofcios, e dos ofcios para as belas cincias at que das cincias acabe naquela
cincia, que de nada mais seno daquele prprio belo, e conhea enfim o que em
si belo. Nesse ponto da vida, meu caro Scrates, continuou a estrangeira de
141
A abundncia a grandeza dos discursos decorrentes da extenso do belo j contemplado ( ) condio para
atingir a contemplao do prprio belo.
142
Observar no que precede at essa expresso uma extraordinria tcnica de suspense para preparar o deslumbramento do que segue, isto ,
a descrio do belo em si. Desencantados da magia desse trecho, podemos perceber que ele uma resposta quela litania final do discurso de
Agato (197d-e), mas quo superior em emoo e grandeza! (N. do T.)
143
Essas expresses, que aparecem freqentemente no Fdon para caracterizar as idias em sua pureza essencial, contrapem-se a frmulas
usadas pouco acima (de um jeito ... de outro .. ., ora . . . ora . . . quanto a isso . .. quanto quilo... etc.) para qualificar as coisas deste mundo, e
que representam por assim dizer os marcos da argumentao socrtica. (N. do T.)
144
O pronome parece-me aqui referir-se claramente idia do belo. Assim, traduzimo-lo especificando: "as coisas belas daqui". A
meno explcita , um pouco abaixo, explica-se pelo fato de que Diotima est resumindo sua lio. (N. do T.)
Mantinia, se que em outro mais. poderia o homem viver, a contemplar o prprio
belo. Se algum dia o vires, no como ouro145 ou como roupa que ele te parecer
ser, ou como os belos jovens adolescentes, a cuja vista ficas agora aturdido e
disposto, tu como outros muitos, contanto que vejam seus amados e sempre
estejam com eles, a nem comer nem beber, se de algum modo fosse possvel, mas a
s contemplar e estar ao seu lado146. Que pensamos ento que aconteceria, disse
ela. se a algum ocorresse contemplar o prprio belo, ntido, puro, simples, e no
repleto de carnes, humanas, de cores e outras muitas ninharias mortais, mas o
prprio divino belo pudesse ele em sua forma nica contemplar? Porventura
pensas, disse, que vida v a de um homem a olhar naquela direo e aquele
objeto, com aquilo147 com que deve, quando o contempla e com ele convive? Ou
no consideras,
disse ela, que somente ento, quando vir o belo com aquilo com que este
pode ser visto, ocorrer-lhe- produzir no sombras148 de virtude, porque no em
sombra que estar tocando, mas reais virtudes, porque no real que estar
tocando?
Eis o que me dizia Diotima, Fedro e demais presentes, e do que estou
convencido; e porque estou convencido, tento convencer tambm os outros de que
para essa aquisio, um colaborador da natureza humana melhor que o Amor no
se encontraria facilmente. Eis por que eu afirmo que deve todo homem honrar o
Amor, e que eu prprio prezo o que lhe concerne e particularmente o cultivo, e aos
outros exorto, e agora e sempre elogio o poder e a virilidade do Amor na medida
em que sou capaz. Este discurso, Fedro, se queres, considera-o proferido como um
encmio149 ao Amor; se no, o que quer e como quer que se apraza cham-lo, assim
deves faz-lo.

145
Como o sofista Hpias o define para Scrates. V. Hpias Maior, 289e. (N. do T.)
146
Cf. supra 192d-e. (N. do T.)
147
Isto , com a inteligncia, ou antes, com a prpria alma, livre das suas relaes com o corpo. V. Fdon, 65b-e. (N. do T.)
148
So as virtudes praticadas pelo comum dos homens, tais como Plato as explica no Fdon, 68b-69b. (N. do T.)
149
Porque foi proferido maneira socrtica. supra 199b. (N. do T.)
Depois que Scrates assim falou, enquanto que uns se pem a louv-lo,
Aristfanes tenta dizer alguma coisa150, que era a ele que aludira Scrates, quando
falava de um certo dito; e sbito a porta do ptio, percutida, produz um grande
barulho, como de folies, e ouve-se a voz de uma flautista. Agato exclama:
"Servos! No ireis ver? Se for algum conhecido, chamai-o; se no, dizei que no
estamos bebendo, mas j repousamos".
No muito depois ouve-se a voz de Alcibades no ptio, bastante
embriagado, e a gritar alto, perguntando onde estava Agato, pedindo que o
levassem para junto de Agato. Levam-no ento at os convivas a flautista, que o
tomou sobre si, e alguns outros acompanhantes, e ele se detm porta, cingido de
uma espcie de coroa tufada de hera e violetas, coberta a cabea de fitas em
profuso, e exclama: "Senhores! Salve! Um homem em completa embriaguez vs o
recebereis como companheiro de bebida, ou devemos partir, tendo apenas coroado
Agato, pelo qual viemos? Pois eu, na verdade, continuou, ontem mesmo no fui
capaz de vir; agora porm eis-me aqui, com estas fitas sobre a cabea, a fim de
pass-las da minha para a cabea do mais sbio e do mais belo, se assim devo dizer.
Porventura ireis zombar de mim, de minha embriaguez? Ora, eu, por mais que
zombeis, bem sei portanto que estou dizendo a verdade. Mas dizei-me da mesmo:
com o que disse, devo entrar ou no? Bebereis comigo ou no?"
Todos ento o aclamam e convidam a entrar e a recostar-se, e Agato o
chama. Vai ele conduzido pelos homens, e como ao mesmo tempo colhia as fitas
para coroar, tendo-as diante dos olhos no viu Scrates, e todavia senta-se ao p de
Agato, entre este e Scrates, que se afastara de modo a que ele se acomodasse.
Sentando-se ao lado de Agato ele o abraa e o coroa.
Disse ento Agato: Descalai Alcibades, servos, a fim de que seja o
terceiro em nosso leito151.
Perfeitamente tornou Alcibades; mas quem este nosso terceiro
companheiro de bebida? E enquanto se volta avista Scrates, e mal o viu recua em
150
Aristfanes no parece, como os demais convivas, empolgado com o que foi dito por Scrates, o que bem revela sua pouca predisposio
para captar o contedo do discurso de Alcibades. (N. do T.)
151
V. supra n. 13, e n. 16. (N. do T.)
sobressalto e exclama: Por Hrcules! Isso aqui que ? Tu, Scrates? Espreitando-
me de novo a te deitaste, de sbito aparecendo assim como era teu costume, onde
eu menos esperava que haverias de estar? E agora, a que vieste? E ainda por que foi
que aqui te recostaste? Pois no foi junto de Aristfanes152, ou de qualquer outro
que seja ou pretenda ser engraado, mas junto do mais belo dos que esto aqui
dentro que maquinaste te deitar.
E Scrates: Agato, v se me defendes! Que o amor deste homem se me
tornou um no pequeno problema153. Desde aquele tempo, com efeito, em que o
amei, no mais me permitido dirigir nem o olhar nem a palavra a nenhum belo
jovem, seno este homem, enciumado e invejoso, faz coisas extraordinrias, insulta-
me e mal retm suas mos da violncia. V ento se tambm agora no vai ele fazer
alguma coisa, e reconcilia-nos; ou se ele tentar a violncia, defende-me, pois eu da
sua fria e da- sua paixo amorosa muito me arreceio.
No! disse Alcibades entre mim e ti no h reconciliao. Mas pelo
que disseste depois eu te castigarei; agora porm, Agato, exclamou ele, passa-me
das tuas fitas, a fim de que eu cinja tambm esta aqui. a admirvel cabea deste
homem, e no me censure ele de que a ti eu te coroei, mas a ele, que vence em
argumentos todos os homens, no s ontem como tu, mas sempre, nem por isso
eu o coroei. E ao mesmo tempo ele toma das fitas, coroa Scrates e recosta-se.
Depois que se recostou, disse ele: Bem, senhores! Vs me pareceis em
plena sobriedade. o que no se deve permitir entre vs, mas beber; pois foi o que
foi combinado entre ns. Como chefe ento da bebedeira, at que tiverdes
suficientemente bebido, eu me elejo a mim mesmo154. Eia, Agato, que a tragam
logo, se houver a alguma grande taa. Melhor ainda, no h nenhuma preciso:
vamos, servo, traze-me aquele porta-gelo! exclamou ele, quando viu um com

152
por que essa referncia a Aristfanes? No temos nenhuma outra notcia da predileo de Scrates pelos cmicos, em particular por
Aristfanes. Por outro lado de supor que Alcibades de pronto percebesse a possibilidade de Scrates ter sido convidado pelo prprio
Agato, como de fato aconteceu. Assim, suas palavras devem ser entendidas mais como um artifcio dramtico para chamar a ateno sobre a
incapacidade em Aristfanes de entender o verdadeiro aspecto cmico da atitude de Alcibades para com Scrates. (N. do T.)
153
Essa observao de Scrates, como a de Alcibades logo a seguir, anuncia maneira de um preldio as concluses que vamos tirar do
discurso de Alcibades sobre a irresponsabilidade de Scrates no comportamento de Alcibades. (N. do T.)
154
Alcibades sente em sua embriaguez que o "simposiarca" (v. supra p. 17 , n. 21) no se houve bem em sua funo e pretende reparar a
falta... (N. do T.)
capacidade de mais de oito "ctilas"155. Depois de ench-lo, primeiro ele bebeu,
depois mandou Scrates entornar, ao mesmo tempo que dizia: Para Scrates,
senhores, meu ardil no nada: quanto se lhe mandar, tanto ele beber, sem que
por isso jamais se embriague156.
Scrates ento, tendo-lhe entornado o servo, ps-se a beber; mas eis que
Erixmaco exclama: Que ento que fazemos, Alcibades? Assim nem dizemos
nada nem cantamos de taa mo, mas simplesmente iremos beber, como os que
tm sede?
Alcibades ento exclamou: Excelente filho de um excelente e
sapientssimo pai, salve!
Tambm tu, salve! respondeu-lhe Erixmaco; mas que devemos
fazer?
O que ordenares! preciso com efeito te obedecer: pois um homem que
mdico vale muitos outros157; ordena ento o que queres.
Ouve ento disse Erixmaco. Entre ns, antes de chegares,
decidimos que devia cada um direita proferir em seu turno um discurso sobre o
Amor, o mais belo que pudesse, e lhe fazer o elogio. Ora, todos ns j falamos; tu
porm como no o fizeste e j bebeste tudo, justo que fales, e que depois do teu
discurso ordenes a Scrates o que quiseres, e este ao da direita, e assim aos demais.
Mas, Erixmaco! tornou-lhe Alcibades sem dvida bonito o que
dizes, mas um homem embriagado proferir um discurso em confronto com os de
quem est com sua razo, de se esperar que no seja de igual para igual. E ao
mesmo tempo, ditoso amigo, convence-te Scrates em algo do que h pouco disse?
Ou sabes que o contrrio de tudo o que afirmou? ele ao contrrio que, se em
sua presena eu louvar algum, ou um deus ou um outro homem fora ele, no tirar
suas mos de mim.
No vais te calar? disse Scrates.

155
Uma "ctila" equivalia a pouco mais de um quarto de litro. (N. do T.)
156
V. infra 220a. (N. do T.)
157
Ilada, XI, 514. (N. do T.)
Sim, por Posido respondeu-lhe Alcibades; nada digas quanto a isso,
que eu nenhum outro mais louvaria em tua presena.
Pois faze isso ento disse-lhe Erixmaco se te apraz; louva Scrates.
Que dizes? tornou-lhe Alcibades; parece-te necessrio, Erixmaco?
Devo ento atacar-me ao homem e castig-lo158 diante de vs?
Eh! tu! disse-lhe Scrates que tens em mente? No para
carregar159 no ridculo que vais elogiar-me? Ou que fars?
A verdade eu direi. V se aceitas!
Mas sem dvida! respondeu-lhe a verdade sim, eu aceito, e mesmo
peo que a digas.
Imediatamente tornou-lhe Alcibades. Todavia faze o seguinte. Se
eu disser algo inverdico, interrompe-me incontinenti, se quiseres, e dize que nisso
eu estou falseando; pois de minha vontade eu nada falsearei. Se porm a lembrana
de uma coisa me faz dizer outra, no te admires; no fcil, a quem est neste
estado, da tua singularidade dar uma conta bem feita e seguida.
"Louvar Scrates, senhores, assim que eu tentarei, atravs de imagens. Ele
certamente pensar talvez que para carregar no ridculo, mas ser a imagem em
vista da verdade, no do ridculo. Afirmo eu ento que ele muito semelhante a
esses silenos160 colocados nas oficinas dos estaturios, que os artistas representam
com um pifre ou uma flauta, os quais, abertos ao meio, v-se que tm em seu
interior estatuetas de deuses. Por outro lado, digo tambm que ele se assemelha ao
stiro Mrsias161. Que na verdade, em teu aspecto pelo menos s semelhante a esses
dois seres, Scrates, nem mesmo tu sem dvida poderias contestar; que porm
tambm no mais tu te assemelhas, o que depois disso tens de ouvir. s
insolente162! No? Pois se no admitires, apresentarei testemunhas. Mas no s

158
Contando a decepo que lhe causou o outro como "amante". O comportamento de Scrates desfizera seus planos escabrosos, pondo a nu
suas verdadeiras intenes. Comparar essa confisso de Alcibades com a apologia de Pausnias. (N. do T.)
159
Scrates est falando em conhecimento de causa. A experincia de Alcibades foi ridcula, e o elogio que este lhe promete fazer vai exp-
lo, portanto, a mal-entendidos como os que j sofreu por parte de Aristfanes. (N. do T.)
160
Tambm chamados stiros, os silenos eram divindades campestres que faziam parte do squito de Dioniso. Eram figurados com cauda e
cascos de boi ou de bode e rosto humano, singularmente feio. (N. do T.)
161
Exmio flautista, Mrsias desafiou Apoio com sua lira e, vencido, foi esfolado pelo deus.
162
A liberdade espiritual de Scrates d-lhe realmente, em muitas circunstncias, essa aparncia. V. Apol. 20e-23c, 30c e ss. e 36b-37. (N. do
T.)
flautista? Sim! E muito mais maravilhoso que o stiro. Este, pelo menos, era atravs
de instrumentos que, com o poder de sua boca, encantava os homens como ainda
agora o que toca as suas melodias pois as que Olimpo163 tocava so de Mrsias,
digo eu, por este ensinadas as dele ento, quer as toque um bom flautista quer
uma flautista ordinria, so as nicas que nos fazem possessos e revelam os que
sentem falta dos deuses e das iniciaes, porque so divinas. Tu porm dele diferes
apenas nesse pequeno ponto, que sem instrumentos, com simples palavras, fazes o
mesmo. Ns pelo menos, quando algum outro ouvimos mesmo que seja um
perfeito orador, a falar de outros assuntos, absolutamente por assim dizer ningum
se interessa; quando porm a ti que algum ouve, ou palavras tuas referidas por
outro, ainda que seja inteiramente vulgar o que est falando, mulher, homem ou
adolescente, ficamos aturdidos e somos empolgados. Eu pelo menos, senhores, se
no fosse de todo parecer que estou embriagado, eu vos contaria, sob juramento, o
que que eu sofri sob o efeito dos discursos deste homem, e sofro ainda agora.
Quando com efeito os escuto, muito mais do que aos coribantes164 em seus
transportes bate-me o corao, e lgrimas me escorrem sob o efeito dos seus
discursos, enquanto que outros muitssimos eu vejo que experimentam o mesmo
sentimento; ao ouvir Pricles porm, e outros bons oradores, eu achava que
falavam bem sem dvida, mas nada de semelhante eu sentia165, nem minha alma
ficava perturbada nem se irritava, como se se encontrasse em condio servil; mas
com este Mrsias aqui, muitas foram as vezes em que de tal modo me sentia que
me parecia no ser possvel viver em condies como as minhas. E isso, Scrates,
no irs dizer que no verdade. Ainda agora tenho certeza de que, se eu quisesse
prestar ouvidos, no resistiria, mas experimentaria os mesmos sentimentos. Pois me
fora ele a admitir que, embora sendo.eu mesmo deficiente em muitos pontos
ainda, de mim mesmo me descuido, mas trato dos negcios de Atenas166. A custo
ento, como se me afastasse das sereias, eu cerro os ouvidos e me retiro em fuga, a

163
Em Minos Scrates cita-o como bem-amado de Mrsias. Muitas canes antigas lhe eram atribudas. (N. do T.)
164
Sacerdotes de Cibele, da Frgia, que danavam freneticamente ao som de flautas, cmbales e tamborins. (N. do T.)
165
que no eram estes oradores "homens de gnio", suscetveis de uma inspirao divina (v. supra 203a). (N. do T.)
166
Cf. Alcibades, 109d e 113b. (N. do T.)
fim de no ficar sentado l e aos seus ps envelhecer. E senti diante deste homem,
somente diante dele, o que ningum imaginaria haver em mim, o envergonhar-me
de quem quer que seja; ora, eu, diante deste homem somente que me envergonho.
Com efeito, tenho certeza de que no posso contestar-lhe que no se deve fazer o
que ele manda, mas quando me retiro sou vencido pelo apreo em que me tem o
pblico. Safo-me ento de sua presena e fujo, e quando o vejo envergonho-me
pelo que admiti. E muitas vezes sem dvida com prazer o veria no existir entre os
homens; mas se por outro lado tal coisa ocorresse, bem sei que muito maior seria a
minha dor, de modo que no sei o que fazer com esse homem.
De seus flauteios ento, tais foram as reaes que eu e muitos outros
tivemos deste stiro; mas ouvi-me como ele semelhante queles a quem o
comparei, que poder maravilhoso ele tem. Pois ficai sabendo que ningum o
conhece; mas eu o revelarei, j que comecei. Estais vendo, com efeito, como
Scrates amorosamente se comporta com os belos jovens, est sempre ao redor
deles, fica aturdido e como tambm ignora tudo e nada sabe167.
Que esta sua atitude no conforme dos silenos? E muito mesmo. Pois
aquela com que por fora ele se reveste, como o sileno esculpido; mas l dentro,
uma vez aberto, de quanta sabedoria imaginais, companheiros de bebida, estar ele
cheio? Sabei que nem a quem belo tem ele a mnima considerao, antes despreza
tanto quanto ningum poderia imaginar, nem tampouco a quem rico, nem a quem
tenha qualquer outro ttulo de honra, dos que so enaltecidos pelo grande nmero;
todos esses bens ele julga que nada valem, e que ns nada somos o que vos
digo e ironizando e brincando com os homens que ele passa toda a vida. Uma
vez porm que fica srio e se abre, no sei se algum j viu as esttuas l dentro; eu
por mim j uma vez as vi, e to divinas me pareceram elas, com tanto ouro, com
uma beleza to completa e to extraordinria que eu s tinha que fazer
imediatamente o que me mandasse Scrates. Julgando porm que ele estava
interessado em minha beleza, considerei um achado e um maravilhoso lance da

167
Como numa cilada para atrair os incautos. Cf. supra 203d. (N. do T.)
fortuna, como se me estivesse ao alcance, depois de aquiescer a Scrates, ouvir
tudo o que ele sabia; o que, com efeito, eu presumia da beleza de minha juventude
era extraordinrio! Com tais idias em meu esprito168, eu que at ento no
costumava sem um acompanhante ficar s com ele, dessa vez, despachando o
acompanhante, encontrei-me a ss preciso, com efeito, dizer-vos toda a
verdade; prestai ateno, e se eu estou mentindo, Scrates, prova pois
encontrei-me, senhores, a ss com ele, e pensava que logo ele iria tratar comigo o
que um amante em segredo trataria com o bem-amado, e me rejubilava. Mas no,
nada disso absolutamente aconteceu; ao contrrio, como costumava, se por acaso
comigo conversasse e passasse o dia, ele retirou-se e foi-se embora. Depois disso
convidei-o a fazer ginstica comigo e entreguei-me aos exerccios, como se
houvesse ento de conseguir algo. Exercitou-se ele comigo e comigo lutou muitas
vezes sem que ningum nos presenciasse; e que devo dizer? Nada me adiantava.
Como por nenhum desses caminhos eu tivesse resultado, decidi que devia atacar-
me ao homem fora e no larg-lo, uma vez que eu estava com a mo na obra,
mas logo saber de que que se tratava. Convido-o ento a jantar comigo,
exatamente como um amante armando cilada ao bem-amado. E nem nisso tambm
ele me atendeu logo, mas na verdade com o tempo deixou-se convencer. Quando
porm veio primeira vez, depois do jantar queria partir. Eu ento, envergonhado,
larguei-o; mas repeti a cilada, e depois que ele estava jantado eu me pus a conversar
com ele noite adentro, ininterruptamente, e quando quis partir, observando-lhe que
era tarde, obriguei-o a ficar. Ele descansava ento no leito vizinho ao meu, no
mesmo em que jantara, e ningum mais no compartimento ia dormir seno ns.
Bem, at esse ponto do meu discurso ficaria bem faz-lo a quem quer que seja; mas
o que a partir daqui se segue, vs no me tereis ouvido dizer se, primeiramente,
como diz o ditado, no vinho, sem as crianas ou com elas, no estivesse a
verdade169; e depois, obscurecer um ato excepcionalmente brilhante de Scrates,

168
Alcibades passa a contar os seus esforos para conquistar o amor de Scrates. Tais esforos constituem, como observa Robin em sua
Introduo, uma verdadeira tentao, isto , uma caricatura da iniciao amorosa tal como caracterizada por Diotima. Atravs dessa
caricatura, Plato pretende ilustrar a qualidade superior do cmico obtido com uma verdadeira arte. (N. do T.)
169
Aluso ao provrbio : o vinho e as crianas so verdicas. (N. do T.)
quando se saiu a elogi-lo, parece-me injusto. E ainda mais, o estado do que foi
mordido pela vbora tambm o meu. Com efeito, dizem que quem sofreu tal
acidente no quer dizer como foi seno aos que foram mordidos, por serem os
nicos, dizem eles, que o compreendem e desculpam de tudo que ousou fazer e
dizer sob o efeito da dor. Eu ento, mordido por algo mais doloroso, e no ponto
mais doloroso em que se possa ser mordido pois foi no corao ou na alma, ou
no que quer que se deva cham-lo que fui golpeado e mordido pelos discursos
filosficos, que tm mais virulncia que a vbora, quando pegam de um jovem
esprito, no sem dotes, e que tudo fazem cometer e dizer tudo e vendo por
outro lado os Fedros, Agatos, Erixmacos, os Pausnias, os Aristodemos e os
Aristfanes; e o prprio Scrates, preciso mencion-lo? E quantos mais. . . Todos
vs, com efeito, participastes em comum170, do delrio filosfico e dos seus
transportes bquicos e por isso todos ireis ouvir-me; pois haveis de desculpar-me
do que ento fiz e do que agora digo. Os domsticos, e se mais algum h profano
e inculto, que apliquem aos seus ouvidos portas bem espessas171 como com efeito,
senhores, a lmpada se apagara e os servos estavam fora, decidi que no devia fazer
nenhum floreado com ele, mas francamente dizer-lhe o que eu pensava; e assim o
interpelei, depois de sacudi-lo:
Scrates, ests dormindo?
Absolutamente respondeu-me.
Sabes ento qual a minha deciso?
Qual exatamente? tomou-me.
Tu me pareces disse-lhe eu ser um amante digno de mim, o nico,
e te mostras hesitante em declarar-me. Eu porm assim que me sinto:
inteiramente estpido eu acho no te aquiescer no s nisso como tambm em
algum caso em que precisasses ou de minha fortuna ou dos meus amigos. A mim,
com efeito, nada me mais digno de respeito do que o tornar-me eu o melhor
170
No deixa de ser estranha essa incluso de Aristfanes no grupo dos amantes da filosofia. Como poeta cmico, este devia estar presente a
todas as reunies desse tipo, e da poder Alcibades confundi-lo naturalmente com os que ardorosamente a defendiam, em oposio aos
indiferentes. (N. do T.)
171
Aluso a uma frmula de iniciao rfica: , . "Falarei queles a quem permitido; aplicai
portas (aos ouvidos), profanos." (N do T.)
possvel, e para isso creio que nenhum auxiliar me mais importante do que tu.
Assim que eu, a um tal homem recusando meus favores172, muito mais me
envergonharia diante da gente ajuizada do que se os concedesse, diante da multido
irrefletida.
E este homem, depois de ouvir-me, com a perfeita ironia que bem sua e do
seu hbito, retrucou-me: Caro Alcibades, bem provvel que realmente no
sejas um vulgar, se chega a ser verdade o que dizes a meu respeito, e se h em mim
algum poder pelo qual tu te poderias tornar melhor; sim, uma irresistvel beleza
verias em mim, e totalmente diferente da formosura que h em ti. Se ento, ao
contempl-la, tentas compartilh-la comigo e trocar beleza por beleza, no em
pouco que pensas me levar vantagens, mas ao contrrio, em lugar da aparncia a
realidade do que belo que tentas adquirir, e realmente "ouro por cobre"173 que
pensas trocar. No entanto, ditoso amigo, examina melhor; no te passe
despercebido que nada sou. Em verdade, a viso do pensamento comea a enxergar
com agudeza quando a dos olhos tende a perder sua fora; tu porm ests ainda
longe disso.
E eu, depois de ouvi-lo: Quanto ao que de minha parte, eis a; nada do
que est dito diferente do que penso; tu porm decide de acordo com o que
julgares ser o melhor para ti e para mim.
Bem, tornou ele, nisso sim, tens razo; daqui por diante, com efeito,
decidiremos fazer, a respeito disso como do mais, o que a ns dois nos parecer
melhor.
Eu, ento, depois do que vi e disse, e que como flechas deixei escapar,
imaginei-o ferido; e assim que eu me ergui sem ter-lhe permitido dizer-me nada
mais, vesti esta minha tnica pois era inverno estendi-me por sob o manto
deste homem, e abraado com estas duas mos a este ser verdadeiramente divino e
admirvel fiquei deitado a noite toda. Nem tambm isso, Scrates, irs dizer que
estou falseando. Ora, no obstante tais esforos meus, tanto mais este homem

172
Alcibades aplicou literalmente a doutrina de Pausnias. Cf. supra 184d-185b. (N. do T.)
173
Ilada, VI, 236. Enganado por Zeus, Glauco troca suas armas de ouro pelas de bronze de Diomedes (N. do T.)
cresceu e desprezou minha juventude, ludibriou-a, insultou-a e justamente naquilo
que eu pensava ser alguma coisa, senhores juzes; sois com efeito juzes da
sobranceria de Scrates174 pois ficai sabendo, pelos deuses e pelas deusas,
quando me levantei com Scrates, foi aps um sono em nada mais extraordinrio
do que se eu tivesse dormido com meu pai ou um irmo mais velho.
Ora bem, depois disso, que disposio de esprito pensais que eu tinha, a
julgar-me vilipendiado, a admirar o carter deste homem, sua temperana e
coragem, eu que tinha encontrado um homem tal como jamais julgava poderia
encontrar em sabedoria e fortaleza? Assim, nem eu podia irritar-me e privar-me de
sua companhia, nem sabia como atra-lo. Bem sabia eu, com efeito, que ao dinheiro
era ele de qualquer modo muito mais invulnervel do que jax ao ferro, e na nica
coisa em que eu imaginava ele se deixaria prender, ei-lo que me havia escapado.
Embaraava-me ento, e escravizado pelo homem como ningum mais por
nenhum outro, eu rodava toa. Tudo isso tinha-se sucedido anteriormente; depois,
ocorreu-nos fazer em comum uma expedio em Potidia175, e ramos ali
companheiros de mesa. Antes de tudo, nas fadigas, no s a mim me superava mas
a todos os outros quando isolados em algum ponto, como comum numa
expedio, ramos forados a jejuar, nada eram os outros para resistir e por
outro lado nas fartas refeies, era o nico a ser capaz de aproveit-las em tudo
mais, sobretudo quando, embora se recusasse, era forado a beber, que a todos
vencia176; e o que mais espantoso de tudo que Scrates embriagado nenhum
homem h que o tenha visto. E disso, parece-me, logo teremos a prova. Tambm
quanto resistncia ao inverno terrveis so os invernos ali entre outras
faanhas extraordinrias que fazia, uma vez, durante uma geada das mais terrveis,
quando todos ou evitavam sair ou, se algum saa, era envolto em quanta roupagem
estranha, e amarrados os ps em feltros e peles de carneiro, este homem, em tais
circunstncias, saa com um manto do mesmo tipo que antes costumava trazer, e
174
Em sua embriaguez, Alcibades figura momentaneamente um processo em que a acusao de sobranceria dissimula justamente sua
defesa no processo histrico: a recusa de Scrates, um crime de orgulho nessa patuscada, significa de fato sua inocncia. (N. do T.)
175
Em 432, Potidia, na Calcdica, recusou-se a pagar- tributo a Atenas e foi pelos atenienses sitiada, capitulando em 430. Essa insurreio
foi uma das causas imediatas da Guerra do Peloponeso. (N. do T.)
176
V. supra n. 19. (N. do T.)
descalo sobre o gelo marchava mais vontade que os outros calados, enquanto
que os soldados o olhavam de soslaio, como se o suspeitassem de estar troando
deles. Quanto a estes fatos, ei-los a:
mas tambm o seguinte, como o
fez
e suportou um bravo177
l na expedio, certa vez, merece ser ouvido. Concentrado numa reflexo, logo se
detivera desde a madrugada a examinar uma idia, e como esta no lhe vinha, sem
se aborrecer ele se conservara de p, a procur-la. J era meio-dia, os homens
estavam observando, e cheios de admirao diziam uns aos outros: Scrates desde a
madrugada est de p ocupado em suas reflexes! Por fim, alguns dos jnicos178,
quando j era de tarde, depois de terem jantado pois era ento o estio
trouxeram para fora os seus leitos e ao mesmo tempo que iam dormir na fresca,
observavam-no a ver se tambm a noite ele passaria de p. E ele ficou de p, at
que veio a aurora e o sol se ergueu; a seguir foi embora, depois de fazer uma prece
ao sol. Se quereis saber nos combates pois isto bem justo que se lhe leve em
conta quando se deu a batalha pela qual chegaram mesmo a me condecorar os
generais, nenhum outro homem me salvou seno este, que no quis abandonar-me
ferido, e at minhas armas salvou comigo. Eu ento, Scrates, insisti com os
generais179 para que te conferissem essa honra, e isso no vais me censurar nem irs
dizer que estou falseando; todavia, quando j os generais consideravam minha
posio e desejavam conceder-me a insigne honra, tu mesmo foste mais solcito
que os generais para que fosse eu e no tu que a recebesse. E tambm, senhores,
valia a pena observar Scrates, quando de Delio180 batia em retirada o exrcito; por
acaso fiquei ao seu lado, a cavalo, enquanto ele ia com suas armas de hoplita. Ora,
ele se retirava, quando j tinham debandado os nossos homens, ao lado de Laques;

177
Odissia, IV, 242.(N. do T.)
178
Robin prefere aqui a lio de Schmidt ( = dos que o viram) lio dos mss. ( = dos jnicos), sob a alegao de que
no havia tropas da Jnia, e de que a lio dos mss. se compreende dificilmente como uma especificao da expresso "homens", usada
pouco acima. Essa ltima razo absolutamente no convence. (N. do T.)
179
Essa batalha, travada em 432, precedeu imediatamente o cerco de Potidia. (N. do T.)
180
Cidade da Becia, na fronteira da tica. Os atenienses foram a batidos pelos tebanos, comandados por Pagondas, em 424 a.C.(N. do T.)
acerco-me deles e logo que os vejo exorto-os coragem, dizendo-lhes que os no
abandonaria. Foi a que, melhor que em Potidia, eu observei Scrates pois o
meu perigo era menor, por estar eu a cavalo primeiramente quanto ele superava
a Laques, em domnio de si; e depois, parecia-me, Aristfanes, segundo aquela
tua expresso181 que tambm l como aqui ele se locomovia "impando-se e olhando
de travs", calmamente examinando de um lado e de outro os amigos e os inimigos,
deixando bem claro a todos, mesmo a distncia, que se algum tocasse nesse
homem, bem vigorosamente ele se defenderia. Eis por que com segurana se
retirava, ele e o seu companheiro; pois quase que, nos que assim se comportam na
guerra, nem se toca, mas aos que fogem em desordem que se persegue.
Muitas outras virtudes certamente poderia algum louvar em Scrates, e
admirveis; todavia, das demais atividades, talvez tambm a respeito de alguns
outros se pudesse dizer outro tanto; o fato porm de a nenhum homem
assemelhar-se ele, antigo ou moderno, eis o que digno de toda admirao. Com
efeito, qual foi Aquiles, tal poder-se-ia imaginar Brasidas182 e outros, e
inversamente, qual foi Pricles, tal Nestor e Antenor183 sem falar de outros e
todos os demais por esses exemplos se poderia comparar; o que porm este
homem aqui, o que h de desconcertante em sua pessoa e em suas palavras, nem de
perto se poderia encontrar um semelhante, quer se procure entre os modernos,
quer entre os antigos, a no ser que se lhe faa a comparao com os que eu estou
dizendo, no com nenhum homem, mas com os silenos e os stiros, e no s de
sua pessoa como de suas palavras.
Na verdade, foi este sem dvida um ponto em que em minhas palavras eu
deixei passar, que tambm os seus discursos so muito semelhantes aos silenos que
se entreabrem. A quem quisesse ouvir os discursos de Scrates pareceriam eles
inteiramente ridculos primeira vez: tais so os nomes e frases de que por fora se
revestem eles, como de uma pele de stiro insolente! Pois ele fala de bestas de
carga, de ferreiros, de sapateiros, de correeiros, e sempre parece com as mesmas
181
Nas Nuvens, 362: (N. do T.)
182
Grande general espartano, vencedor dos atenienses em Anfpolis (422 a.C), onde morreu. (N. do T.)
183
Dois grandes conselheiros, o primeiro dos gregos e o segundo dos troianos, durante a Guerra de Tria. (N. do T.)
palavras dizer as mesmas coisas, a ponto de qualquer inexperiente ou imbecil
zombar de seus discursos.184 Quem porm os viu entreabrir-se e em seu interior
penetra, primeiramente descobrir que, no fundo, so os nicos que tm
inteligncia, e depois, que so o quanto possvel divinos, e os que o maior nmero
185
contm de imagens de virtude , e o mais possvel se orientam, ou melhor, em
tudo se orientam para o que convm ter em mira, quando se procura ser um
distinto e honrado cidado.
Eis a, senhores, o que em Scrates eu louvo; quanto ao que, pelo contrrio,
lhe recrimino, eu o pus de permeio e disse os insultos que me fez. E na verdade
no foi s comigo que ele os fez, mas com Crmides186, o filho de Glauco, com
Eutidemo, de Docles, e com muitssimos outros, os quais ele engana fazendo-se de
amoroso, enquanto antes na posio de bem-amado que ele mesmo fica, em vez
de amante. E nisso que te previno, Agato, para no te deixares enganar por
este homem e, por nossas experincias ensinado, te preservares e no fazeres como
o bobo do provrbio, que "s depois de sofrer aprende"187.
Depois destas palavras de Alcibades houve risos por sua franqueza, que
parecia ele ainda estar amoroso de Scrates. Scrates ento disse-lhe: Tu me
pareces, Alcibades, estar em teu domnio. Pois de outro modo no te porias,
assim to destramente fazendo rodeios, a dissimular o motivo por que falaste;
como que falando acessoriamente tu o deixaste para o fim, como se tudo o que
disseste no tivesse sido em vista disso, de me indispor com Agato, na idia de que
eu devo amar-te e a nenhum outro, e que Agato por ti que deve ser amado, e por
nenhum outro. Mas no me escapaste! Ao contrrio, esse teu drama de stiros e de
silenos ficou transparente188. Pois bem, caro Agato, que nada mais haja para ele, e
faze com que comigo ningum te indisponha.

184
Cf. Hpias Maior, 288c-d. (N. do T.)
185
Tal como os silenos esculpidos (215b) tm em seu interior esttuas divinas. Confrontar com essa a expresso anloga em 213a-5, mas
num contexto diferente. (N. do T.)
186
Tio materno de Plato, um dos membros do governo dos Trinta, seu nome intitula um dos dilogos menores do filsofo. Quanto a
Eutidemo, no se trata evidentemente do sofista ridicularizado no dilogo do mesmo nome, mas sem dvida do jovem que aparece nas
Memorveis de Xenofonte, IV, 2-6. (N. do T.)
187
Hesodo, Trabalhos e Dias, 218: : "depois de sofrer que o tolo aprende". (N. do T.)
188
No propsito de insistir na feira de Scrates e, conseqentemente, afast-lo de Agato. (N. do T.)
Agato respondeu: De fato, Scrates, muito provvel que estejas
dizendo a verdade. E a prova a maneira como justamente ele se recostou aqui no
meio, entre mim e ti, para nos afastar um do outro. Nada mais ele ter ento; eu
virei para o teu lado e me recostarei.
Muito bem disse Scrates reclina-te aqui, logo abaixo de mim.
Zeus, que tratamento recebo ainda desse homem! Acha ele que em
tudo deve levar-me a melhor. Mas pelo menos, extraordinria criatura, permite que
entre ns se acomode Agato.
Impossvel! tornou-lhe Scrates. Pois se tu me elogiaste, devo eu
por minha vez elogiar o que est minha direita. Ora, se abaixo de ti189 ficar
Agato, no ir ele por acaso fazer-me um novo elogio, antes de, pelo contrrio, ser
por mim elogiado? Deixa, divino amigo, e no invejes ao jovem o meu elogio, pois
grande o meu desejo de elogi-lo.
Evo! exclamou Agato; Alcibades, no h meio de aqui eu ficar;
ao contrrio, antes de tudo, eu mudarei de lugar, a fim de ser por Scrates elogiado.
Eis a comentou Alcibades a cena de costume: Scrates presente,
impossvel a um outro conquistar os belos! Ainda agora, como ele soube facilmente
encontrar uma palavra persuasiva, com o que este belo se vai pr ao seu lado.
Agato levanta-se assim para ir deitar-se ao lado de Scrates; sbito porm
uns folies, em numeroso grupo, chegam porta e, tendo-a encontrado aberta com
a sada de algum, irrompem eles pela frente em direo dos convivas, tomando
assento nos leitos; um tumulto enche todo o recinto e, sem mais nenhuma ordem,
-se forado a beber vinho em demasia. Erixmaco, Fedro e alguns outros, disse
Aristodemo, retiram-se e partem; a ele porm o sono o pegou, e dormiu
muitssimo, que estavam longas as noites; acordou de dia, quando j cantavam os
galos, e acordado viu que os outros ou dormiam ou estavam ausentes; Agato
porm, Aristfanes e Scrates eram os nicos que ainda estavam despertos, e
bebiam de uma grande taa que passavam da esquerda para a direita. Scrates

189
Isto , sua direita, entre ele e Scrates. Agato passara para a direita de Scrates, ficando este no meio do diva. (N. do T.)
conversava com eles; dos pormenores da conversa disse Aristodemo que no se
lembrava pois no assistira ao comeo e ainda estava sonolento em resumo
porm, disse ele, forava-os Scrates a admitir que de um mesmo homem o saber
fazer uma comdia e uma tragdia, e que aquele que com arte um poeta trgico
tambm um poeta cmico. Forados a isso e sem o seguir com muito rigor eles
cochilavam, e primeiro adormeceu Aristfanes e, quando j se fazia dia, Agato.
Scrates ento, depois de acomod-los ao leito, levantou-se e partiu; Aristodemo,
como costumava, acompanhou-o; chegado ao Liceu190 ele asseou-se e, como em
qualquer outra ocasio, passou o dia inteiro, depois do que, tarde, foi repousar em
casa.

190
Ginsio dedicado a Apoio, s margens do Ilisso, mais tarde utilizado por Aristteles para a sua escola, que ficou com esse nome.
(N.doT.)
FDON
Traduo e Notas de Jorge Paleikat e Joo Cruz Costa

Introduo

EQUCRATES
Estiveste, Fdon, ao lado de Scrates, no dia em que ele bebeu o veneno
na priso? Ou acaso sabes, por outrem, o que l se passou?
FDON
L estive em pessoa, Equcrates.
EQUCRATES
E ento, de que coisas falou ele
antes de morrer? Qual foi o seu fim? Isso eu gostaria de saber, pois
atualmente no h nenhum de meus concidados de Flionte1 que esteja em Atenas,
e de l, faz muito tempo, que no nos vem nenhum estrangeiro capaz de nos dar
informaes seguras, a no ser que Scrates morreu aps ter bebido o veneno. Mas,
quanto ao mais, ningum nada nos soube relatar.
FDON
No sabeis, tampouco, nada tambm a respeito das circunstncias do seu
julgamento?
EQUCRATES

1
Em Flionte ou Flio, no Peloponeso, um discpulo de Filolau, Eurito de Tarento, havia estabelecido um crculo de pitagricos, em cuja sede
Fdon foi recebido por Equcrates e associados (58d, 102a). (N. doE.)
Sim, dele tivemos alguma informao. E uma das coisas, mesmo, que
muito nos surpreendeu foi ter ocorrido sua morte muito tempo depois do
julgamento. Que houve, Fdon?
FDON
Houve no seu caso, Equcrates, uma coincidncia fortuita: a do dia que
precedeu ao julgamento com a coroao da popa do navio que os atenienses
mandam a Delos.
EQUCRATES
E que navio este?
FDON
Segundo conta a tradio, o navio no qual Teseu transportou outrora os
sete moos e as sete moas que deviam ser levados para Creta2. Ele os salvou e
salvou a si mesmo. E assim, como a Cidade houvesse feito a Apoio, segundo se diz,
a promessa de enviar todos os anos uma peregrinao a Delos se daquela vez os
jovens fossem salvos, desde aquele fato at o presente se continuou a fazer essa
peregrinao ao templo do deus. Manda uma lei do pas que, a partir do momento
em que se comea a tratar da peregrinao e enquanto ela dura, a Cidade no seja
maculada por nenhuma execuo capital em nome do povo, at a chegada do navio
a Delos e sua volta ao porto. s vezes, quando os ventos so contrrios, sucede ser
longa a travessia. Alm disso, a peregrinao comea no dia em que o sacerdote de
Apoio coroa a popa do navio, e aconteceu, como vos disse, que tal fato se realizou
no dia que precedeu o julgamento. Foi por esse motivo que Scrates, entre o
julgamento e a morte, teve de passar tanto tempo na priso.
EQUCRATES

2
A peregrinao a Delos um simples culto ao deus Apoio e deusa rtemis. A lenda a seguinte: Androgeu, filho do afamado rei Minos
de Creta, visitara Atenas e tomara parte nos jogos ginsticos; fora superior a todos, despertando assim a inveja dos atenienses, que' o
mataram. Seu pai, ento, para vingar a morte do filho, declarou guerra aos atenienses, vencendo-os, e estabelecendo como condio de paz
que os vencidos enviassem periodicamente 7 moos e 7 moas a Creta. Estes jovens iriam servir de alimento ao monstro Minotauro que vivia
no Labirinto de Creta, palcio fabuloso cuja sada ningum conseguira encontrar. Por muito tempo os atenienses continuaram a enviar novas
vtimas para Creta, at que o heri Teseu, herdeiro do trono, voluntariamente entrou no nmero das vtimas sorteadas, a fim de pr termo a
esse sacrifcio peridico. Teseu conquistou em Creta o amor da princesa Ariadne, que lhe deu um novelo de l vermelha e, assim, entrando
no Labirinto, atou ele uma ponta do novelo numa pedra da entrada e, enquanto avanava, o desenrolava, ficando desta forma com o caminho
de regresso assegurado. Conseguiu assim matar o Minotauro e retornar com seus companheiros salvos para a ptria. (N. do T.)
Mas quanto s circunstncias da prpria morte, Fdon? Que foi o que se
disse e fez ento? Quais de seus discpulos se achavam a seu lado? Os magistrados
no lhes permitiram assistir a seu fim, ou este foi, pelo contrrio, privado de
amizade?
FDON
No, no. A verdade que vrios o presenciaram, um bom nmero
mesmo.
EQUCRATES
Apressa-te, pois, a contar-nos todas essas coisas com a maior exatido
possvel, a menos que algo to impea.
FDON
No, realmente nada tenho que fazer no momento, e tratarei de vos dar
uma descrio minuciosa. Alis, nada h para mim que seja to agradvel como
recordar-me de Scrates, seja que eu mesmo fale dele, seja que oua algum faz-lo!
EQUCRATES
Pois, Fdon, encontras em idntica disposio a todos os que te vo
escutar. Portanto, procura ser o mais exato possvel e nada esquecer.

A Narrativa

FDON
Enquanto estive ao lado de Scrates minhas impresses pessoais foram,
de fato, bem singulares. Na verdade, ao pensamento de que assistia morte desse
homem ao qual me achava ligado pela amizade, no era a compaixo o que me
tomava. O que eu tinha sob os olhos, Equcrates, era um homem feliz: feliz, tanto
na maneira de comportar-se como na de conversar, tal era a tranqila nobreza que
havia no seu fim. E isso, de tal modo que ele me dava a impresso, ele que devia
encaminhar-se para as regies do Hades, de para l se dirigir auxiliado por um
concurso divino, e de ir encontrar no alm, uma vez chegado, uma felicidade tal
como ningum jamais conheceu! Por isso que absolutamente nenhum sentimento
de compaixo havia em mim, como teria sido natural em quem era testemunha
duma morte iminente. Mas o que eu sentia no era tambm o conhecido prazer de
nossos instantes de filosofia, embora fosse essa, ainda uma vez, a natureza das
nossas conversas. A verdade que havia em minhas impresses qualquer coisa de
desconcertante, uma mistura inaudita, feita ao mesmo tempo de prazer e de dor, de
dor ao recordar-me que dentro em pouco sobreviria o momento de sua morte! E
todos ns, ali presentes, nos sentamos mais ou menos com a mesma disposio,
ora rindo, ora chorando; um de ns, at, mais do que qualquer outro: Apolodoro3.
Deves saber, com efeito, que homem ele e qual seja o seu feitio.
EQUCRATES
Sim, bem o sei.
FDON
Nele, esse estado confuso de dor
e prazer atingia o auge; mas eu mesmo me encontrava presa duma agitao
semelhante, e, da mesma forma, os outros.
EQUCRATES
Mas os que ento estiveram a seu lado, Fdon, quais foram?
FDON
Alm do mencionado Apolodoro estavam l, de sua terra, Critobulo com
seu pai, e tambm Hermgenes, Epgenes, Esquines, e Antstenes. L se
encontravam ainda Ctesipo de Penia, Menexeno e alguns outros da mesma regio.
Plato, creio, estava doente4.
EQUCRATES
Havia estrangeiros presentes?
FDON

3
Apolodoro j nosso conhecido do Banquete: no era o mais inteligente, mas, por certo, o mais entusiasta dos discpulos de Scrates. (N.
do T.)
4
De todas estas pessoas, os nicos importantes so Antstenes, Euclides e Aristipo, fundadores de escolas filosficas. Antstenes, na poca
em que foi escrito o presente dilogo, j grande adversrio da metafsica de Plato, mas o autor o considera boa pessoa e lhe permite, no
drama, assistir morte de Scrates, embora como personagem muda. Mas Aristipo, o filsofo dos gozadores, unicamente objeto de
desprezo, e por isso Plato o afasta. (N. do T.)
Sim, havia, notadamente Smias
o Tebano, Cebes e Fedondes; e mais, de Mgara, Euclides e Terpsio.
EQUCRATES
Dize-me: Aristipo e Clembroto
no estavam presentes?
FDON
No. Dizia-se que andavam por
Egina5.
EQUCRATES
E quem mais l estava?
FDON
Creio que foram estes, mais ou menos, todos os que ento se
encontravam a seu lado.
EQUCRATES
Bem; e agora, dize, sobre que
cousas falaram eles?
FDON
Tomando as cousas desde o comeo, vou esforar-me por cont-las
todas minuciosamente. Sabe, pois, que em nenhum dos dias anteriores havamos
deixado de encontrar-nos, eu e os outros, junto a Scrates, segundo era nosso
hbito. Nosso local de encontro, ao romper do dia, era o tribunal onde se realizava
o julgamento, pois ficava prximo priso. E assim todos os dias, a conversar,
espervamos que a priso fosse aberta. Ela no se abria muito cedo; logo, porm,
que era franqueada, dirigamo-nos at onde estava Scrates, e muitas vezes,
passvamos o dia todo em sua companhia. Naquele dia, como deixramos ajustado,
encontramo-nos ainda mais cedo que de costume, porque na vspera, ao sair da
priso pelo entardecer, havamos sabido que o navio sagrado retornara de Delos.
Por isso ficara assentado que nos reuniramos o mais cedo possvel no lugar

5
Egina: ilha perto de Atenas. Plato quer significar que estes homens fizeram tal viagem para se recrearem, no se tratando de uma viagem
longa, necessria e intransfervel; logo, que ambos no sentiam interesse pela sorte de Scrates nem por sua grandiosa filosofia. (N. do T.)
habitual. Ao chegarmos, o porteiro, vindo ao nosso encontro (era ele quem sempre
nos atendia), at pediu-nos que ficssemos por ali e esperssemos, para entrar, que
nos houvesse chamado. ", disse ele, que os Onze6 esto a tirar as correntes de
Scrates e a comunicar-lhe que este ser o seu dia derradeiro." Depois disso quase
no demorou a voltar, e convidou-nos para entrar.
Entramos, pois, e encontramos junto a Scrates, que acabava de ser
desagrilhoado, Xantipa7 (tu a conheces!), que segurava o filho mais novo, sentada
ao lado do marido. Assim que ela nos viu, choveram maldies e palavrrios como
s as mulheres sabem proferir: "V, Scrates, esta a ltima vez que conversam
contigo os teus amigos, e tu com eles!" Scrates lanou um olhar na direo de
Crton: "Crton, disse, faze com que a conduzam para casa!" E, enquanto era levada
pela gente de Crton, ela se debatia e gritava.

O Prazer e a Dor

Quanto a Scrates, sentara-se no leito e, tendo encolhido a perna, esfregava-


a fortemente com a mo. E enquanto a esfregava dizia-nos: "Como parece
aparentemente desconcertante, amigos, isso que os homens chamam de prazer!
Que maravilhosa relao existe entre a sua natureza e o que se julga ser o seu
contrrio, a dor! Tanto um como a outra recusam ser simultneos no homem; mas
procure se um deles tenhamos preso um deles e estaremos sujeitos quase
sempre a encontrar tambm o outro, como se fossem uma s cabea ligada a um
corpo duplo! Parece-me, mesmo, que Esopo, se nisso tivesse pensado, teria
composto uma fbula a esse respeito: A Divindade, desejosa de lhes pr fim aos
conflitos, como visse frustrado o seu intento, amarrou juntas as duas cabeas; e
por isso que, onde se apresenta um deles, o outro vem logo. , assim, que se lhe

6
Os Onze: um grupo de onze homens escolhidos por votao cuidava em Atenas do crcere e das execues. Cf. Arist., Const. Aten., 52, 1.
(N.doT.)
7
Xantipa deixou a fama de ser uma senhora algo violenta, que atormentou a vida do marido. Segundo Xenofonte, era uma verdadeira
megera, mas enterneceu-se por ocasio da morte de Scrates. (N. do T.)
afiguram as coisas: devido ao grilho, h pouco sentia dor na minha perna, e j
agora sinto prazer!
Cebes interrompeu: Por Zeus, Scrates, foi bom me haveres lembrado
isso! De fato, a propsito dessas tuas composies, em que transpuseste para o
metro cantado os contos de Esopo e o hino a Apolo, vrias pessoas j me tm
perguntado e entre elas, h pouco tempo, Eveno8 com que inteno as
compuseste depois de tua chegada aqui, tu que at agora jamais fizeras coisas desse
gnero. Se tens, pois, qualquer interesse em que eu possa responder a Eveno
quando ele novamente me interrogar (porque bem sei que tornar a faz-lo!), fala:
que deverei dizer-lhe?
Dize-lhe a verdade, Cebes: no foi com a inteno de lhe fazer
concorrncia, e muito menos s suas composies, que fiz aqueles versos: sei que
isso teria sido difcil! Eu os fiz em virtude de certos sonhos, cuja significao
pretendia assim descobrir, e tambm por escrpulo religioso prevendo,
sobretudo, a eventualidade de que as repetidas prescries que me foram feitas se
relacionassem com o exerccio dessa espcie de poesia. Eis como se passaram as
cousas: Vrias vezes, no curso de minha vida, fui visitado por um mesmo sonho;
no era atravs da mesma viso que ele sempre se manifestava, mas o que me dizia
era invarivel: "Scrates", dizia-me ele, "'deves esforar-te para compor msica !"
E, palavra! sempre entendi que o sonho me exortava e me incitava a fazer o que
justamente fiz em minha vida passada. Assim como se animam corredores,
tambm, pensava eu, o sonho est a incitar-me para que eu persevere na minha
ao, que compor msica: haver, com efeito, mais alta msica do que a filosofia,
e no justamente isso o que eu fao? Mas sucede agora que, depois de meu
julgamento, a festa do Deus est retardando minha morte. O que preciso ento,
pensei, no caso de que o sonho me tenha prescrito essa espcie comum de
composio musical, que eu no lhe desobedea; que eu componha versos. E,
de fato, muito mais seguro no me ir sem antes ter satisfeito esse escrpulo

8
Eveno: poeta grego (N. do T.)
religioso com a composio de tais poemas, nem antes de haver prestado
obedincia ao sonho. E, por isso, minha primeira composio foi dedicada ao Deus
em cuja honra estava sendo realizado o sacrifcio. Depois de haver prestado a
minha homenagem ao Deus, julguei que um poeta para ser verdadeiramente um
poeta deve empregar mitos e no raciocnios. No me sentindo capaz de compor
mitos, por isso mesmo tomei por matria de meus versos, na ordem em que me
vinham ocorrendo lembrana, as fbulas ao meu alcance, as de Esopo que eu
sabia de cor. Assim, pois, a est, Cebes, o que deveras dizer a Eveno. Transmite-
lhe tambm a minha saudao, e alm disso o conselho, se de fato ele sbio, de
seguir minhas pegadas o mais depressa que puder! Quanto a mim, parece que me
vou hoje mesmo, uma vez que os atenienses me ordenam.
Ento Smias disse: Que belo convite, Scrates, para Eveno! J por vrias
vezes tive ocasio de encontrar esse homem, e, a julgar pela minha experincia, ele
sem dvida seguir de boa vontade o teu conselho!
Ora tornou Scrates , ser que Eveno no filsofo?
Segundo penso, respondeu Smias.
Ento no h de desejar coisa melhor, ele ou quem quer que d filosofia
a ateno que ela merece. Todavia, de esperar que Eveno no far violncia
contra si mesmo, pois, segundo dizem, isso no permitido.
Assim falando, desencolheu as pernas e, desde ento, foi sentado dessa
forma que continuou a conversar. A esta altura Cebes lhe fez a seguinte pergunta:
Como podes dizer, Scrates, que no permitido fazer violncia contra si
mesmo, e, por outro lado, que o filsofo no deseja nada melhor do que poder
seguir aquele que morre?
Qu? Ento, Cebes, no fostes instrudos a respeito deste gnero de
questes, tu e Smias, que vivestes tanto tempo em companhia de Filolau9?
No, nada de claro, Scrates.

9
Filolau: filsofo pitagrico. Plato o conhecia pessoalmente, e muito o estimou. (N. do T.)
Eu, tambm, o que digo por ouvir dizer, e seguramente nada impede
que se transmita o que dessa forma me foi dado aprender. E, com efeito, talvez
convenha particularmente aos que devem transladar-se para o alm a tarefa de
empreender uma investigao sobre essa viagem e de relatar, num mito, o que
julgamos ser tal lugar. E por que no? Que poderamos fazer seno isso durante o
tempo que nos separa do pr-do-sol?
Dize-nos pois, Scrates, por que motivo se pode certamente negar que
seja coisa permitida o suicdio? Eu mesmo, com efeito ( o que nos perguntavas h
pouco), j ouvi Filolau dizer, no tempo em que se encontrava entre ns, e tambm
a outros, que tal coisa no se pode fazer. Mas ningum j foi capaz de ensinar-me
qualquer coisa de exato a esse respeito.
Vamos disse Scrates , vamos examinar isso. possvel, talvez, que
eu te possa ensinar alguma coisa. provvel tambm que isso te parea
maravilhoso e que te espantes ao saber que, para todos os homens, h uma
absoluta necessidade de viver, necessidade invarivel mesmo para aqueles para os
quais a morte seria prefervel vida. Achars espantoso ainda que no seja
permitido queles, para os quais a morte seja um bem prefervel vida, o direito de
procurarem, por si, esse bem e que, para o obterem, necessitem receb-lo de
outrem.
Cebes sorriu docemente:
Deus o sabe! disse no modo de falar de seu pas10.
Poder-se-ia, com efeito volveu Scrates encontrar nisso, pelo
menos considerado sob essa forma, qualquer coisa de irracional. Todavia no
assim, e, muito provavelmente, a no falta razo. A esse respeito h, mesmo, uma
frmula que usam os adeptos dos Mistrios11: " uma espcie de priso o lugar
onde ns, homens, vivemos, e dever no libertar-se a si mesmo nem evadir-se."
Frmula essa, sem dvida, que me parece to grandiosa quo pouco transparente!

10
Cebes de Tebas, e os tebanos tm a fama de serem pouco instrudos e falarem um grego algo provinciano. Cebes, o aluno ardente de
Scrates, fala em geral a lngua da gente letrada, mas neste momento, apaixonado por uma interessante questo filosfica, descura a
linguagem e usa o dialeto regional de seu pas. (N. do T.)
11
Plato refere-se aos mistrios rficos, que mencionara no Meno. (N. do T.)
Mas no menos exato, Cebes, que a se encontra justamente expresso, creio, o
seguinte: os Deuses so aqueles sob cuja guarda estamos, e ns, homens, somos
uma parte da propriedade dos Deuses. No te parece que assim?
Parece-me respondeu Cebes.
E tu, por acaso continuou Scrates no havias de querer mal a um
ser de tua propriedade que se matasse sem que tal lhe tivesses permitido? E no
tirarias de seu ato a vingana que fosses capaz de tirar?
Efetivamente.
provvel, portanto, que neste sentido nada exista de irracional no dever
de no nos matarmos, de aguardarmos que a divindade envie qualquer ordem
semelhante quela que hoje se apresenta para mim.
Seja disse Cebes. Acho, sim, acho isso natural. Mas a coisa toma
outro aspecto quando se trata do que h pouco dizias, acerca da facilidade com que
os filsofos consentiriam em morrer. Isso, Scrates, parece-me uma
inconseqncia, se que h boas razes para afirmar o que dizamos faz poucos
instantes: que nos encontramos sob a tutela da Divindade, e que em ns ela tem
uma de suas propriedades. Que no haja irritao da parte de homens sensatos,
quando se lhes retira essa tutela dos Deuses, que so, precisamente, os melhores
tutores, coisa bem difcil de compreender! No crvel, em tais circunstncias,
que algum, em liberdade, possa encontrar maiores vantagens na sua prpria
autonomia. possvel que algum, destitudo de inteligncia, possa ter essas idias
e, desse modo, fuja a seu dono sem refletir que, quando este bom, no se deva
escapar sua autoridade mas, ao contrrio, ficar o mais possvel junto a ele. Fugir,
pois, seria mostra de falta de reflexo por parte de tal homem. E quanto ao que tem
inteligncia, sem dvida alguma teria o desejo de encontrar-se incessantemente ao
lado de quem vale mais do que ele prprio. Ora, Scrates, desta forma o que
natural justamente o contrrio do que dizamos h pouco. Porque so justamente
os homens de bom senso que devem irritar-se no momento da morte, enquanto
que os insensatos se alegraro.
Scrates havia escutado Cebes e sentira prazer, pareceu-me, ante a
dificuldade levantada por ele. Olhando para o nosso lado disse:
Verdadeiramente Cebes sempre est em busca de argumentos: no tem a
mnima inclinao para acreditar imediatamente no que se lhe diz!
Mas, Scrates acudiu Smias , segundo penso, h tambm muita
razo nos dizeres de Cebes: de fato, com que inteno homens incontestavelmente
sbios haveriam de fugir de donos que valem mais do que eles prprios, e sem
grandes cuidados, se afastariam deles? Meu pensamento tambm que, alm disso,
a objeo de Cebes se dirige contra ti mesmo, pois da mesma forma que, sem
muito pesar, suportas a contingncia de abandonar-nos, a ns e queles excelentes
donos acabaste de convir nisto! que so os Deuses.
Tendes razo disse Scrates; eu vos entendo: eis uma acusao de
que me devo defender como se estivesse no tribunal.
Isso mesmo volveu Smias.
Pois bem, vamos a isso! E procuremos sobretudo apresentar diante de
vs uma defesa mais convincente do que a que fiz perante os juzes! Sim, confesso-
o, Smias e Cebes: eu cometeria um grande erro no me irritando contra a morte, se
no possusse a convico de que depois dela vou encontrar-me, primeiro, ao lado
de outros Deuses, sbios e bons; e, segundo, junto a homens que j morreram e
que valem mais do que os daqui. Mas, em realidade, ficai sabendo que, se no me
esforo por justificar a esperana de dirigir-me para junto de homens que so bons,
em troca hei de envidar todo o esforo possvel para defender a esperana de ir
encontrar, depois da morte, um lugar perto dos Deuses, que so amos em tudo
excelentes, e, se h coisa a que eu me dedique com todas as minhas energias, ser
essa! Assim, por conseguinte, no tenho razes para estar irritado. Mas, ao
contrrio, tenho a firme convico de que depois da morte h qualquer coisa
qualquer coisa, de resto, que uma antiga tradio12 diz ser muito melhor para os
bons do que para os maus.
Que dizer, Scrates? tornou Smias. Sers capaz de guardar
unicamente para ti esses pensamentos, quando tens a inteno de partir? No os
partilhars conosco? Pois a est certamente, segundo penso, um bem que nos
comum a todos. Ao mesmo tempo ters feito tua defesa, se tuas palavras
conseguirem convencer-nos.
Pois bem! Esforar-me-ei por faz-lo. Mas antes vejamos o que o bom
Crton tem desde algum tempo a inteno de dizer-me.
Que quero dizer? perguntou Crton. Nada mais do que o que est a
repetir-me h muito o homem que deve ministrar-te o veneno: pede-me te explique
que deves falar o menos possvel. Porque falando muito a gente se aquece, e
necessrio no contrariar assim a ao do veneno. Se continuas a conversar desse
modo talvez seja preciso que o tomes duas ou trs vezes para ter efeito.
Dize-lhe que v s favas! respondeu Scrates. Para desempenhar-se
de sua misso, ele que me d o veneno uma, duas ou mesmo trs vezes, se for
preciso !
Arre! era essa mais ou menos a resposta que eu previra disse Crton
mas h muito que este homem estava a importunar-me.

A morte como libertao do pensamento

Deixa-o falar! prosseguiu Scrates. A vs, entretanto, que sois


meus juzes, devo agora prestar-vos contas, expor as razes pelas quais considero
que o homem que realmente consagrou sua vida filosofia senhor de legtima
convico no momento da morte, possui esperana de ir encontrar para si, no alm,
excelentes bens quando estiver morto ! Mas como pode ser assim? Isso ser, Smias
12
Plato refere-se s tradies religiosas do pensamento grego, no centro das quais se encontra, tambm, a crena de uma boa sorte no
Alm. Os mistrios mais afamados eram os de Elusis, cujos adeptos esperavam ter melhor sorte do que os demais mortos. Cf. De-charme,
La Critique des Traditions Religieuses ches les grecs e E. Rohde, Psych. (N. do T.)
e Cebes, o que me esforarei por vos explicar. Receio, porm, que, quando uma
pessoa se dedica filosofia no sentido correto do termo, os demais ignoram que
sua nica ocupao consiste em preparar-se para morrer e em estar morto! Se isso
verdadeiro, bem estranho seria que, assim pensando, durante toda sua vida, que no
tendo presente ao esprito seno aquela preocupao, quando a morte vem, venha a
irritar-se com a presena daquilo que at ento tivera presente no pensamento e de
que fizera sua ocupao!
Nesta altura Smias se ps a rir:
Por Zeus, Scrates, eu no tinha nenhuma vontade de rir, mas tu me
fizeste rir! que, penso, se o vulgo te ouvisse falar desse modo se convenceria de
que h muito boas razes para atacar os que se ocupam de filosofia, e a ele fariam
coro sem reserva os nossos amigos13: "na verdade", diria ele, "os que se dedicam
filosofia so homens que se esto preparando para morrer"; e, se h uma cousa que
seguramente pensaro, que justamente esse o fim que eles merecem!
E o vulgo teria razo, Smias, de dizer isso, embora, claro, no soubesse
que estava a dizer uma verdade. Pois os que ignoram ele e os que lhe fazem coro
de que modo se esto preparando para morrer aqueles que verdadeiramente so
filsofos, de que modo eles merecem a morte, e que espcie de morte merecem.
Entre ns, com efeito, que devemos tratar dessa questo, e, quanto ao vulgo e aos
outros, no lhes demos ateno !
Segundo nosso pensar, a morte alguma cousa?
Claro replicou Smias.
Nada mais do que a separao da alma e do corpo, no ? Estar morto
consiste nisto: apartado da alma e separado dela, o corpo isolado em si mesmo; a
alma, por sua vez, apartada do corpo e separada dele, isolada em si mesma. A morte
apenas isso?
Sim, consiste justamente nisso.

13
Aluso ao que diz Aristfanes nas Nuvens. F. 65 e 67 deste texto. (N.doT.)
Examina agora, meu caro, se te possvel compartilhar deste modo de
ver, pois nisso reside, com efeito, uma condio do progresso de nossos
conhecimentos sobre o presente objeto de estudo. Crs que seja prprio de um
filsofo dedicar-se avidamente aos pretensos prazeres tais como o de comer e de
beber?
To pouco quanto possvel, Scrates ! respondeu Smias.
E aos prazeres do amor?
Tambm no!
E quanto aos demais cuidados do corpo, pensas que possam ter valor
para tal homem? Julgas, por exemplo, que ele se interessar em possuir uma
vestimenta ou uma sandlia de boa qualidade, ou que no se importar com essas
coisas se a fora maior duma necessidade no o obrigar a utiliz-las?
Acho que no lhes dar importncia, se verdadeiramente for filsofo.
De forma que, na tua opinio prosseguiu Scrates , as preocupaes
de tal homem no se dirigem, de um modo geral, para o que diz respeito ao corpo,
mas, ao contrrio, na medida em que lhe possvel, elas se afastam do corpo, e
para a alma que esto voltadas?
Sim, sem dvida.
, pois, para comearmos a nossa conversa, em circunstncias desta
espcie, que se revela o filsofo, quando, ao contrrio de todos os outros homens,
afasta tanto quanto pode a alma do contato com o corpo?
Evidentemente.
Sem dvida, a opinio do vulgo, Smias, que um homem, para o qual
no existe nada de agradvel nessa espcie de coisas e que com elas no se
preocupa, no merece viver, mas, pelo contrrio, est muito prximo da morte
quem assim no faz nenhum caso dos prazeres de que o corpo instrumento?
a prpria verdade o que acabas de dizer.
E agora, dize-me: quando se trata de adquirir verdadeiramente a
sabedoria, ou no o corpo um entrave se na investigao lhe pedimos auxlio?
Quero dizer com isso, mais ou menos, o seguinte: acaso alguma verdade
transmitida aos homens por
intermdio da vista ou do ouvido, ou quem sabe se, pelo menos em relao a
estas coisas no se passem como os poetas no se cansam de no-lo repetir
incessantemente, e que no vemos nem ouvimos com clareza? E se dentre as
sensaes corporais estas no possuem exatido e so incertas, segue-se que no
podemos esperar coisa melhor das outras que, segundo penso, so inferiores
quelas. No tambm este o teu modo de ver?
exatamente esse.
Quando , pois, que a alma atinge a verdade? Temos dum lado que,
quando ela deseja investigar com a ajuda do corpo qualquer questo que seja, o
corpo, claro, a engana radicalmente.
Dizes uma verdade.
No , por conseguinte, no ato de raciocinar, e no de outro modo, que a
alma apreende, em parte, a realidade de um ser?
Sim.
E, sem dvida alguma, ela raciocina melhor precisamente quando
nenhum empeo lhe advm de nenhuma parte, nem do ouvido, nem da vista, nem
dum sofrimento, nem sobretudo dum prazer mas sim quando se isola o mais
que pode em si mesma, abandonando o corpo sua sorte, quando, rompendo tanto
quanto lhe possvel qualquer unio, qualquer contato com ele, anseia pelo real?
bem isso!
E no , ademais, nessa ocasio que a alma do filsofo, alando-se ao
mais alto ponto, desdenha o corpo e dele foge, enquanto por outro lado procura
isolar-se em si mesma?
Evidentemente!
Mas que poderemos dizer, Simias, do seguinte: afirmaremos a existncia
do "justo em si mesmo", ou a negaremos?
Certamente que a afirmaremos, por Zeus!
E tambm a do "belo em si" e a do "bom em si", no verdade?
Como no?
Ora, certo que jamais viste qualquer ser desse gnero com teus olhos?
Jamais.
Mas ento porque os apreendeste por qualquer outro sentimento que
no por aqueles de que o corpo instrumento? Ora, o que eu disse h pouco para
todos os seres, tanto para a "grandeza", a "sade", a "fora", como para os demais
, numa s palavra e sem exceo , a sua realidade: aquilo, precisamente, que
cada uma dessas coisas . E ser, ento, por intermdio do corpo que o que nelas
h de mais verdadeiro poder ser observado? Ou quem sabe se, pelo contrrio,
aquele dentre ns que se tiver o mais cuidadosamente e no mais alto ponto
preparado para pensar em si mesma cada uma dessas entidades, que considera e
toma por objeto quem sabe se no esse quem mais deve aproximar-se do
conhecimento de cada uma delas?
Isso absolutamente certo.
E quem haveria de obter em sua maior pureza esse resultado, seno
aquele que usasse no mais alto grau, para aproximar-se de cada um desses seres,
unicamente o seu pensamento, sem recorrer no ato de pensar nem vista, nem a
um outro sentido, sem levar nenhum deles em companhia do raciocnio; quem,
seno aquele que, utilizando-se do pensamento em si mesmo, por si mesmo e
sem mistura, se lanasse caa das realidades verdadeiras, tambm em si mesmas,
por si mesmas e sem mistura? e isto s depois de se ter desembaraado o mais
possvel de sua vista, de seu ouvido, e, numa palavra, de todo o seu corpo, j que
este quem agita a alma e a impede de adquirir a verdade e exercer o pensamento,
todas as vezes que est em contato com ela? No ser este o homem, Smias, se a
algum dado faz-lo neste mundo, que atingir o real verdadeiro?
Impossvel, Scrates, falar com mais verdade!
Assim, pois prosseguiu Scrates , todas essas consideraes fazem
necessariamente nascer no esprito do autntico filsofo uma crena capaz de
inspirar-lhe em suas palestras uma linguagem semelhante a esta: "Sim, possvel
que exista mesmo uma espcie de trilha que nos conduz de modo reto, quando o
raciocnio nos acompanha na busca. E este ento o pensamento que nos guia:
durante todo o tempo em que tivermos o corpo, e nossa alma estiver misturada
com essa coisa m, jamais possuiremos completamente o objeto de nossos desejos!
Ora, este objeto , como dizamos, a verdade. No somente mil e uma confuses
nos so efetivamente suscitadas pelo corpo quando clamam as necessidades da
vida, mas ainda somos acometidos pelas doenas e eis-nos s voltas com novos
entraves em nossa caa ao verdadeiro real! O corpo de tal modo nos inunda de
amores, paixes, temores, imaginaes de toda sorte, enfim, uma infinidade de
bagatelas, que por seu intermdio (sim, verdadeiramente o que se diz) no
recebemos na verdade nenhum pensamento sensato; no, nem uma vez sequer!
Vede, pelo contrrio, o que ele nos d: nada como o corpo e suas concupiscncias
para provocar o aparecimento de guerras, dissenes, batalhas; com efeito, na posse
de bens que reside a origem de todas as guerras, e, se somos irresistivelmente
impelidos a amontoar bens, fazemo-lo por causa do corpo, de quem somos mseros
escravos! Por culpa sua ainda, e por causa de tudo isso, temos preguia de filosofar.
Mas o cmulo dos cmulos est em que, quando conseguimos de seu lado obter
alguma tranqilidade, para voltar-nos ento ao estudo de um objeto qualquer de
reflexo, sbito nossos pensamentos so de novo agitados em todos os sentidos
por esse intrujo que nos ensurdece, tonteia e desorganiza, ao ponto de tornar-nos
incapazes de conhecer a verdade. Inversamente, obtivemos a prova de que, se
alguma vez quisermos conhecer puramente os seres em si, ser-nos- necessrio
separar-nos dele e encarar por intermdio da alma em si mesma os entes em si
mesmos. S ento que, segundo me parece, nos h de pertencer aquilo de que nos
declaramos amantes: a sabedoria. Sim, quando estivermos mortos, tal como o
indica o argumento, e no durante nossa vida! Se, com efeito, impossvel,
enquanto perdura a unio com o corpo, obter qualquer conhecimento puro, ento
de duas uma: ou jamais nos ser possvel conseguir de nenhum modo a sabedoria,
ou a conseguiremos apenas quando estivermos mortos, porque nesse momento a
alma, separada do corpo, existir em si mesma e por si mesma mas nunca antes.
Alm disso, por todo o tempo que durar nossa vida, estaremos mais prximos do
saber, parece-me, quando nos afastarmos o mais possvel da sociedade e unio com
o corpo, salvo em situaes de necessidade premente, quando, sobretudo, no
estivermos mais contaminados por sua natureza, mas, pelo contrrio, nos acharmos
puros de seu contato, e assim at o dia em que o prprio Deus houver desfeito
esses laos. E quando dessa maneira atingirmos a pureza, pois que ento teremos
sido separados da demncia do corpo, deveremos mui verossimilmente ficar unidos
a seres parecidos conosco; e pr ns mesmos conheceremos sem mistura alguma
tudo o que . E nisso, provavelmente, que h de consistir a verdade. Com efeito,
lcito admitir que no seja permitido apossar-se do que puro, quando no se
puro!" Tais devem ser necessariamente, segundo creio, meu caro Smias, as palavras
e os juzos que proferir todo aquele que, no correto sentido da palavra, for um
amigo do saber. No te parece a mesma cousa?
Sim, Scrates, nada mais provvel.

A Purificao

Assim pois, companheiro continuou Scrates , se verdade o que


acabamos de dizer, que imensa esperana no existe para aquele que se encontra
nesta altura de minha rota! L no alm, se tal deve acontecer em algum lugar, ele ir
possuir com abundncia tudo aquilo que exigiu de ns a realizao de um imenso
esforo, em nossa vida passada. E assim esta viagem, esta viagem que ora me foi
prescrita, acompanhada de uma feliz esperana; e o mesmo acontece a quem quer
que possa afirmar que seu pensamento est pronto e o possa dizer purificado.
Absolutamente certo disse Smias.
Mas a purificao no , de fato, justamente o que diz uma antiga
tradio?14 No apartar o mais possvel a alma do corpo, habitu-la a evit-lo, a
concentrar-se sobre si mesma por um refluxo vindo de todos os pontos do corpo, a
viver tanto quanto puder, seja nas circunstncias atuais, seja nas que se lhes
seguiro, isolada e por si mesma, inteiramente desligada do corpo e como se
houvesse desatado os laos que a ele a prendiam?
exatamente isso.
Ter uma alma desligada e posta a parte do corpo, no esse o sentido
exato da palavra "morte"?
exatamente esse o sentido.
Sim. E os que mais desejam essa separao, os nicos que a desejam, no
so por acaso aqueles que, no bom sentido do termo, se dedicam filosofia? O
exerccio prprio dos filsofos no precisamente libertar a alma e afast-la do
corpo?
Evidentemente.
No seria, pois, como eu dizia ao comear esta nossa conversa, uma coisa
ridcula por parte dum homem, que durante toda a vida se houvesse esforado por
se aproximar o mais possvel do estado em que ficamos quando estamos mortos,
irritar-se contra a morte quando esta se lhe apresentasse?
Por certo que seria ridculo!
Assim, pois, Smias, em verdade esto se exercitando para morrer todos
aqueles que, no bom sentido da palavra, se dedicam filosofia, e o prprio
pensamento de estar morto para eles, menos que para qualquer outra pessoa, um
motivo de terrores! Eis como devemos julg-los. No seria o supra-sumo da
contradio que eles, por uma parte sentindo-se de todos os modos misturados
com o corpo, e por outra desejando que sua alma existisse em si mesma e por si
mesma, se tomassem de pnico e de irritao quando sobre-viesse a realizao de
seus desejos? Sim, no seria uma contradio se no se encaminhassem com alegria

14
Esta tradio do Orfismo. Veja Chantepie Je Ia Saussaye, Histria das Religies, Cap. XII. Cf. tambm E. Rohde, op. cit., assim como .
Reinach, Orpheus; Zielinski, La Religion :s'-s Ia Grce Antique. (N. do T.)
para o alm onde, uma vez chegados, tero a esperana de encontrar aquilo por que
em toda a sua vida se mostraram apaixonados: a sabedoria, que era o seu amor; e
tambm no seria contraditrio deixarem de sentir alegria ante a esperana de
serem libertados da companhia daquilo que os molestava? Mas ento! Os amantes,
as mulheres, os filhos no foram capazes, quando mortos, de inspirar a muitos o
desejo de ir voluntariamente para as regies do Hades, na esperana de l os
encontrarem, de rever o objeto de seus amores e permanecer ao seu lado; ao passo
que um homem que fosse apaixonado pela sabedoria, que tivesse ardorosamente
abraado a esperana de em nenhuma parte seno no Hades encontr-la sob uma
forma digna de ser desejada, ento esse homem haveria de irritar-se no momento
de morrer, ento esse homem no se rejubilaria de poder dirigir-se para aquelas
regies? Eis o que deve pensar, meus companheiros, um filsofo, se realmente
filsofo; pois nele h de existir a forte convico de que em parte alguma, a no ser
num outro mundo, poder encontrar a pura sabedoria. Ora, se assim , no ser o
cmulo da extravagncia, como disse h pouco, que exista o temor da morte no
esprito de um tal homem?
Seguramente que seria o cmulo, por Zeus!
Dize-me, pois continuou Scrates , no tiveste oportunidade de
observar vrias vezes que quando algum se irrita no momento de morrer, no a
sabedoria que algum ama15, mas sim o corpo? E que esse algum talvez ame ainda
as riquezas, ou as honrarias, quer uma, quer outra dessas coisas, ou quem sabe
seno as duas juntas?
Realmente. como dizes.
Assim, Smias, o que chamamos coragem tambm convm ou no
convm, no seu mais alto grau, queles em quem se encontram, pelo contrrio, as
disposies de que eu falava?
Sem nenhuma dvida!

15
Plato serve-se de um jogo de palavras: philsophos (o que ama a sabedoria), philosmatos (o que ama o corpo), philokhrmatos (o que
ama as riquezas) e philtimos (o que ama as honrarias). (N. doE.)
No acontece a mesma cousa com a temperana, e at com a temperana
no sentido comum da palavra? Porventura a ausncia de veemncia nos desejos e
uma atitude desdenhosa e prudente no so prprias unicamente daqueles que, no
mais alto grau, sentem desprezo pelo corpo e vivem na filosofia?
Necessariamente.
Alis, basta que tenhas a bondade de refletir um momento apenas sobre a
coragem e a temperana do resto dos homens, para que percebas toda a sua
estranheza.
Que queres dizer, Scrates?
No ignoras que a morte considerada por todo o resto dos homens
como pertencendo ao nmero dos grandes males.
Ah! bem o sei.
O temor de males maiores no leva, por acaso, os que dentre eles tm
mais coragem a enfrentarem a morte, quando se apresenta a ocasio de enfrent-la?
Como no!
Assim, pois, por serem medrosos e por temerem que so corajosos
todos os homens, com exceo dos filsofos. E, contudo, absurdo pensar que o
temor e a covardia dem coragem!
Tens toda a razo!
Vejamos agora os que dentre eles so considerados prudentes. No uma
espcie de desregramento, o princpio de sua temperana? Podemos afirmar
enfaticamente que impossvel serem as cousas assim, mas um fato, contudo, que
eles se encontram em situao anloga, na sua ridcula temperana! Porque pelo
fato de temerem ser privados de outros prazeres que cobiam que se abstm em
face de alguns porque, afinal, h muitos outros que os dominam. Parece errneo
chamar de desregramento a uma certa continncia em face dos prazeres, e todavia
certo que, se esses homens suportam o jugo de certos prazeres, porque dessa
forma conseguem dominar alguns outros. Ora, isto concorda com o que acabamos
de dizer h pouco. De qualquer modo, num desregramento que est o princpio
de sua temperana!
Verossimilmente, com efeito.
Na verdade, excelente Smias, talvez no seja em face da virtude um
procedimento correto trocar assim prazeres por prazeres, sofrimentos por
sofrimentos, um receio por um receio, o maior pelo menor, tal como se se tratasse
duma simples troca de moedas. Talvez, ao contrrio, exista aqui apenas uma moeda
de real valor e em troca da qual tudo o mais deva ser oferecido: a sabedoria! Sim,
talvez seja esse o preo que valem e com que se compram e se vendem
legitimamente todas essas coisas coragem, temperana, justia a verdadeira
virtude, em suma, acompanhada de sabedoria. E indiferente que a elas se
acrescentem ou se tirem prazeres, temores e tudo o mais que h de semelhante!
Que tudo isso seja, doutra parte, isolado da sabedoria e convertido em objeto de
trocas recprocas, talvez no passe de alucinao uma tal virtude: virtude realmente
servil, onde no h nada de so nem de verdadeiro! Talvez, muito ao contrrio, a
verdade nada mais seja do que uma certa purificao de todas essas paixes e seja a
temperana, a justia, a coragem; e o prprio pensamento outra coisa no seja do
que um meio de purificao. possvel que aqueles mesmos "a quem devemos a
instituio das iniciaes no deixem de ter o seu mrito, e que a verdade j de h
muito tempo se encontre oculta sob aquela linguagem misteriosa. Todo aquele que
atinja o Hades como profano e sem ter sido iniciado ter como lugar de destinao
o Lodaal, enquanto aquele que houver sido purificado e iniciado morar,-uma vez
l chegado, com os Deuses. que, como vs, segundo a expresso dos iniciados
nos mistrios: "numerosos so os portadores de tirso, mas poucos os Bacantes16".
Ora, a meu ver, estes ltimos no so outros seno os de quem a filosofia, no
sentido correto do termo, constitui a ocupao. E quanto a mim, durante toda a
vida e pelo menos na medida do possvel, nada deixei de fazer para pertencer ao
nmero deles; nisso, pelo contrrio, pus sem reservas todos os meus esforos.

16
Aluso aos mistrios em que havia cerimnias de purificao e graus de consagrao: o grau de Bacante o superior, enquanto que os
portadores de tirso constituem o grau inferior. (N. do T.)
Entretanto, se tudo o que fiz estava certo, se meus esforos obtiveram algum xito,
coisa que espero saber com certeza dentro em pouco, no alm, se Deus quiser: tal
, pelo menos, minha opinio.
"Aqui est, Smias e Cebes, minha defesa; so estas as razes pelas quais vos
deixo, tanto a vs como a meus donos daqui, sem sentir dor nem clera, pois que
disso estou convencido no outro mundo irei encontrar, no menos do que
aqui, outros bons donos como outros bons companheiros. O vulgo, na verdade,
incrdulo a respeito dessas coisas. Se, pois, diante de vs fui em minha defesa mais
persuasivo do que diante dos juzes de Atenas, bem haja!"

A Sobrevivncia da Alma

As palavras de Scrates suscitaram esta rplica de Cebes: "Tudo isso , na


minha opinio pessoal, muito bem dito, Scrates; mas de tudo isso excetuo todas
aquelas coisas que dizem respeito alma e que so, para os homens, uma fonte
abundante de incredulidade. Talvez, dizem eles, uma vez separada do corpo, a alma
no exista mais em nenhuma parte e talvez, com maior razo, seja destruda e
perea no mesmo dia em que o homem morre. Talvez desde o momento dessa
separao, se evole do corpo para dissipar-se tal como um sopro ou uma fumaa17,
e que assim separada e dispersa nada mais seja em parte alguma. E em
conseqncia, se fosse verdade que em qualquer parte ela se houvesse concentrado
em si mesma e sobre si mesma, depois de se ter desembaraado daqueles males que
h pouco passaste em revista, que grande e bela esperana,
Scrates, nasceria da verdade de teu discurso ! Isso, todavia, requer sem
dvida uma justificao, a qual provavelmente no h de ser coisa fcil, para fazer
crer que depois da morte do homem a alma subsiste com uma atividade real e com
capacidade de pensar.

17
Aluso s doutrinas dos primeiros filsofos gregos que, ainda como os primitivos, consideram a alma como um sopro (pneuma). Foi. alis,
por essa razo que ao conjunto dos fenmenos que mais tarde seriam estudados se deu, at Idade Mdia, o nome pneumatologia. (N. do T.)
verdade, Cebes disse Scrates. E ento? Que nos resta fazer?
No desejas que a respeito deste mesmo assunto examinemos se de fato
verossmil ou no que as coisas se passem dessa forma?
Naturalmente que sim! respondeu Cebes. Eu teria at muito prazer
em ficar sabendo que idias tens a esse respeito.
Pelo menos, se assim fizer observou Scrates , talvez no haja
ningum, ao ouvir-me falar neste momento ningum, mesmo que seja um poeta
cmico18, para pretender que sou tagarela e que falo de coisas que no me dizem
respeito! Se, pois. tal o teu desejo, eis uma coisa que deve ser examinada a fundo.

Os contrrios

"Ora, examinemos a questo por este lado: , em suma, no Hades que esto
as almas dos defuntos, ou no? Pois, conforme diz uma antiga tradio nossa
conhecida, l se encontram as almas dos que se foram daqui, e elas novamente,
insisto, para c voltam e renascem dos mortos. E se assim , se dos mortos nascem
os vivos, que podemos admitir seno que nossas almas devem mesmo estar l? Sem
dvida, no poderia haver novo nascimento para almas que j no tivessem
existncia, e para provar esta existncia bastaria tornar manifesto que os vivos no
nascem seno dos mortos. Mas se as coisas no se passarem assim, ento algum
outro argumento ser necessrio.
Isso absolutamente certo disse Cebes.
Toma cuidado, pois continuou Scrates , no caias no erro de
encarar essa questo unicamente em relao ao homem, mas, se desejas que ela se
torne mais fcil, considera-a tambm em relao a tudo que animal ou planta.
Quero dizer, numa palavra, que, levando em conta todas as coisas que nascem,
devemos verificar se em cada caso bem assim que nasce cada um dos seres, isto ,
se os contrrios no nascem seno dos seus prprios contrrios, em toda parte
18
Aluso a Aristfanes que. nas Nuvens, apresenta Scrates como mero conversador ridculo (N.doT.)
onde existe tal relao: entre o belo, por exemplo, e o feio, que , penso, o seu
contrrio; entre o justo e o injusto; e assim em milhares de outros casos.
Eis, pois, o que devemos examinar: ser que necessariamente, em todos os
casos em que existe um contrrio, este no nasce de outra coisa que no seja o seu
prprio contrrio? Exemplo: quando uma coisa se torna maior, no necessrio que
anteriormente ela tenha sido menor, para em seguida se tornar maior?
.
No verdade que, quando ela se torna menor, um estado anterior, em que
era maior, deve dar origem posteriormente a um estado em que ser menor?
Assim .
E, por certo, dum mais forte que nasce o mais fraco, e dum mais lento o que
mais rpido?
Evidentemente.
E que mais? Se uma coisa se torna pior, no porque antes era melhor, ou
mais justa porque antes era mais injusta?
Com efeito, como no haveria de ser assim?
Isto nos basta. Assim obtemos este princpio geral de toda gerao,
segundo o qual das coisas contrrias que nascem as coisas que lhes so contrrias.
Efetivamente.
E agora dize-me alm disso, no ocorre com essas coisas mais ou menos
o seguinte: entre um e outro contrrio no h, em todos os casos, uma vez que so
dois, uma dupla gerao ; uma que vai de um desses contrrios ao seu oposto,
enquanto outra, inversamente, vai do segundo para o primeiro? Observemos, com
efeito, uma coisa maior e uma coisa menor: no h entre as duas crescimento e
decrescimento, o que permite afirmar, de uma, que ela cresce, e, da outra, que
descresce?
H.
E a decomposio e a composio, o resfriamento e o aquecimento, e
todas as oposies semelhantes, ainda que s vezes no possuam nomes
apropriados em nossa lngua, no haveriam de comportar em todos os casos essa
mesma necessidade, tanto de engendrar-se mutuamente como de admitir em cada
termo uma gerao dirigida para o outro?
Sim, perfeitamente.
Por conseguinte, que deveremos dizer? continuou Scrates. Acaso
"viver" no possui um contrrio, assim como "estar acordado" tem por contrrio
"estar dormindo"?
absolutamente necessrio que tenha.
Qual ?
"Estar morto".
No Verdade que esses estados se engendram um ao outro, j que so
contrrios, e tambm que a gerao entre um e outro dupla, j que so dois?
Assim !
Ora pois continuou Scrates vou mencionar-te um dos dois pares
de contrrios, de que h pouco falei, e sua dupla gerao; e tu depois me indicars o
outro par. Primeiro falo eu: dum lado, direi "estar dormindo", do outro, "estar
acordado"; em seguida, de "estar dormindo" que provm "estar acordado", e de
"estar acordado" que provm "estar dormindo";
enfim, para estes dois termos, as geraes so, uma, "adormecer", outra,
"acordar". Achas que isto basta, ou no?
Certo que basta!
Cabe-te agora a vez de dizer outro tanto a respeito da vida e da morte.
No dirs, de incio, que "viver" tem por contrrio "estar morto"?
o que eu diria.
E, em seguida, que esses estados se engendram mutuamente?
Diria.
Que , por conseguinte, o que provm do que est vivo?
O que est morto.
E do que est morto, que que provm?
Impossvel disse Cebes no admitir que o que est vivo.
, pois, de coisas mortas que provm, Cebes, as que tm vida, e, com
elas, os seres vivos?
claro.
Quer dizer, ento, que nossas almas existem no Hades19.
Parece mui verossmil.
Das duas geraes, enfim, que aqui temos, no h pelo menos uma que
no nos deixe dvida sobre sua realidade? Por que o termo "morrer", penso, est
fora de dvida! No est?
Sim, absolutamente certo.
Que faremos, ento? No o compensaremos pela gerao contrria?
Porque, se no fosse assim, a Natureza seria coxa f Ou, pelo contrrio, ser preciso
supor uma gerao contrria ao "morrer"?
Isso , segundo penso, absolutamente necessrio.
E qual essa gerao?
"reviver".
Por conseguinte continuou Scrates uma vez que "reviver" existe,
no se poder dizer que o que constitui a gerao dos mortos para os vivos
precisamente "reviver"?
Evidentemente.
H, pois, acordo entre ns ainda neste ponto: os vivos no provm
menos dos mortos que os mortos dos vivos. Ora, assim sendo, haveria a, parece,
uma prova suficiente de que as almas dos mortos esto necessariamente em alguma
parte, e que de l que voltam para a vida.
tambm o que penso, Scrates; segundo os princpios em que
conviemos, as coisas necessariamente devem ser assim.
V agora, Cebes, por que motivo no cometemos erro, segundo me
parece, ao ficarmos de acordo a respeito dessas coisas. Suponhamos, com efeito,

19
Hades. Para Plato este nome tem aqui a significao de Invisvel, o pas do Invisvel, o reino das sombras. (N. do T.)
que no haja uma eterna compensao recproca das geraes, alguma coisa assim
como um crculo em que giram esses contrrios, mas que a gerao v em linha reta
somente de um dos contrrios para o outro que lhe est em frente, sem voltar em
sentido inverso para o outro contrrio e sem fazer a volta; ento, bem o percebes,
todas as coisas se imobilizariam na mesma figura, o mesmo estado se estabeleceria
em todas elas, e cessaria a gerao.
Como assim?
Nenhuma dificuldade h disse Scrates em compreender o :_e
acabei de dizer. Em vez disso, suponhamos, por exemplo, que existe o adormecer",
mas que no existe o "acordar" para fazer-lhe equilbrio; nesse caso, hs de perceb-lo,
a situao resultante tornaria uma infantilidade a aventura de Endimio20, que j no
teria sentido algum, uma vez que tudo mais se encontraria no mesmo estado, e
como ele dormiria! Suponhamos, agora, que todas as coisas se unam e que no
mais se separem; em pouco teriam realizado as palavras de Anaxgoras: "Todas as
coisas estavam juntas!"21 Suponhamos, da mesma forma, meu caro Cebes, que
venha a morrer tudo o que participa da vida, e que, uma vez mortos, os seres
permaneam nesse estado, sem reviver. Nesse caso, no ser foroso que tudo no
fim esteja morto, e que nada mais viva? Admitamos, com efeito, que o que vive
provm de outra coisa que no a morte, e que o que vive, morre; haver algum
modo de evitar que tudo se venha a perder na morte?
Absolutamente nenhum, pelo que penso disse Cebes. Segundo me
parece, o que dizes a pura verdade.
Nada h, com efeito, Cebes, que conforme meu prprio modo de pensar
seja mais verdadeiro do que isso; e no erramos, creio, ao ficar de acordo a esse
respeito. No, a esto coisas bem reais: o reviver, o fato de que os vivos provm

20
Endimio: figura da lenda grega. Era um belo adolescente, a quem Zeus deu um sono e uma mocidade eternos. A deusa da Lua se
apaixonou pelo belo rapaz, raptou-o e o depositou no monte Latmos, onde ficava a dormir, e onde a deusa o visitava e acariciava vontade.
(N. do T.)
21
Palavras tiradas ao princpio do livro de Anaxgoras, filsofo naturalista. Segundo ele, a matria e' composta de pequenas partculas
denominadas homeomerias. No princpio do mundo, todas as molculas formavam uma mistura desordenada, um caos no qual o Esprito
(nous) introduziu ordem, determinando que cada molcula procurasse suas companheiras. Plato menciona ainda uma vez Anaxgoras em
nosso dilogo, e o critica. (N. do T.)
dos mortos, de que as almas dos mortos tm existncia, e insisto neste ponto
de que a sorte das almas boas melhor, e pior a das almas ruins.
Em verdade, Scrates tornou ento Cebes precisamente esse
tambm o sentido daquele famoso argumento que (suposto seja verdadeiro) tens o
hbito de citar amide. Aprender, diz ele, no outra coisa seno recordar22. Se
esse argumento de fato verdadeiro, no h dvida que, numa poca anterior,
tenhamos aprendido aquilo de que no presente nos recordamos. Ora, tal no
poderia acontecer se nossa alma no existisse em algum lugar antes de assumir, pela
gerao, a forma humana. Por conseguinte, ainda por esta razo verossmil que a
alma seja imortal.
Mas, Cebes atalhou por sua vez Smias de que modo se poder
provar isso? Faze com que me lembre, pois, de momento, no consigo recordar-me
muito bem desse argumento.
Temos disso volveu Cebes uma prova magnfica: interroga-se um
homem. Se as perguntas so bem conduzidas, por si mesmo ele dir, de modo
exato, como as coisas realmente so. No entanto, esse homem seria incapaz de
assim fazer se sobre essas coisas no possusse um conhecimento e um reto juzo!
Passa-se depois s figuras geomtricas e a outros meios do mesmo gnero, e assim
se obtm, com toda a certeza possvel, que as coisas de fato assim se passam.
Entretanto disse Scrates muito provvel, Smias, que, pelo
menos dessa maneira, no se consiga convencer-te! V se, encarando a questo de
outra forma, poders compartilhar de minha opinio. Porque, o que parece difcil
de ser compreendido precisamente de que maneira o que chamamos aprender
seja apenas recordar.
Incredulidade respeito disso? volveu Smias; no, no a tenho!
Sinto apenas necessidade de ser posto nesse estado de que fala o argumento, e de
que me faam recordar. Na verdade, Cebes contribuiu um pouco, com a exposio

22
Cf. Meno, 80 (N. do T.)
que fez, para despertar minhas lembranas e convencer-me. Mas nem por isso,
Scrates, deixarei de ouvir, com prazer, a tua explicao.
Aqui a tens: estamos sem dvida de acordo em que para haver recordao
de alguma coisa num momento qualquer preciso ter sabido antes essa coisa?
Sim.
E, por conseguinte, sobre o ponto que segue estamos tambm de acordo:
que o saber, se se vem a produzir em certas circunstncias, uma rememorao?
Que circunstncias sejam essas, vou dizer-te: se vemos ou ouvimos alguma coisa,
ou se experimentamos no importa que outra espcie de sensao, no somente a
coisa em questo que conhecemos, mas temos tambm a imagem de uma outra
coisa, que no objeto do mesmo saber, mas de um outro. Ento, dize-me, no
temos razo em pretender que a houve uma recordao, e uma recordao daquilo
mesmo de que tivemos a imagem?
Como assim?
Tomemos alguns exemplos. So coisas muito diferentes, penso, conhecer
um homem e conhecer uma lira?
Efetivamente.
Ignoras tu que os amantes, vista duma lira, duma vestimenta ou de
qualquer outro objeto de que seus amados habitualmente se servem, rememoram a
prpria imagem do amado a quem esse objeto pertenceu? Ora, aqui temos o que
vem a ser uma recordao. Da mesma forma, tambm acontece que, se algum v
Smias,, muitas vezes isso lhe faz recordar Cebes. E poder-se-iam encontrar
milhares de exemplos anlogos.
Milhares, seguramente, por Zeus! assentiu Smias.
Assim, pois, um caso desse gnero constitui uma recordao,
principalmente quando se trata de coisas que o tempo ou a distrao j nos tinham
feito esquecer, no verdade?
Absolutamente certo.
Mas responde-me continuou Scrates: ao ver o desenho dum
cavalo, o desenho de uma lira, pode-se recordar um homem? Ao ver um retrato de
Smias, recordar-se de Cebes?
Certo que pode.
Ao ver um retrato de Smias, no fcil recordar-se do prprio Smias?
Seguramente que sim!
Assim no verdade? o ponto de partida da recordao em todos
esses casos , algumas vezes, um semelhante, outras vezes tambm um
dessemelhante?
verdade.
Mas, considerando o caso em que o semelhante nos sirva de ponto de
partida para uma recordao qualquer, no somos forosamente levados a reflexes
como esta: falta ou no alguma coisa ao objeto considerado, em sua semelhana
com aquilo de que nos recordamos?
Sim, isso necessrio.
Examine agora tornou Scrates se no deste modo que isso se
passa: afirmamos sem dvida que h um igual em si; no me refiro igualdade
entre um pedao de pau e outro pedao de pau, entre uma pedra e outra pedra,
nem a nada, enfim, do mesmo gnero; mas a alguma coisa que, comparada a tudo
isso, disso, porm se distingue: o Igual em si mesmo. Deveremos afirmar que ele
existe, ou negar?
Seguramente que devemos afirm-lo, por Zeus! disse Cebes. Muito
bem!
E sabemos tambm o que ele em si mesmo?
Tambm.
E onde obtemos o conhecimento que dele temos? Acaso no foi dessas
coisas de que falamos h pouco? Acaso no foram esses pedaos de pau, essas
pedras, ou outras coisas semelhantes, cuja igualdade, percebida por ns, nos fez
pensar nesse igual que entretanto distinto delas? Ou dirs que ao teu parecer ele
no se distingue delas? Pois bem; examina outra vez a questo, mas sob este outro
aspecto: no acontece que pedaos de pau ou pedras, sem se modificarem, se
apresentem a ns ora como iguais, ora como desiguais?
Acontece, realmente.
Mas ento? O Igual em si acaso te pareceu em alguma ocasio desigual,
isto , a igualdade uma desigualdade?
Jamais, Scrates!
Logo, a igualdade dessas coisas no o mesmo que o Igual em si.
De nenhum modo, Scrates. Isso para mim evidente.
E, entretanto, no certo que foram essas mesmas igualdades que,
embora sendo distintas do Igual em si, te levaram a conceber e adquirir o
conhecimento do Igual em si?
Nada mais certo!
E, isso, quer ele se lhes assemelhe, quer seja dessemelhante delas, no ?
Realmente.
Sim, por certo; isso indiferente. Desde que, vendo uma coisa, a viso
desta faz com que penses numa outra, desde ento, quer haja semelhana ou
dessemelhana, necessariamente o que se produz uma recordao?23
Necessariamente.
Mas dize-me continuou Scrates: passam-se as coisas para ns da
mesma forma como as igualdades dos pedaos de pau e como as de que falvamos
h pouco? Essas coisas nos parecem iguais assim como o que Igual em si? Falta-
lhes ou no lhes falta algo para poderem convir ao Igual?
Oh, falta-lhes muito!
Estamos, pois, de acordo quando, ao ver algum objeto, dizemos: "Este
objeto que estou vendo agora tem tendncia para assemelhar-se a urri outro ser,
mas, por ter defeitos, no consegue ser tal como o ser em questo, e lhe , pelo
contrrio, inferior". Assim, para podermos fazer estas reflexes, necessrio que
23
Aluso ao Fedro: as idias eternas so o ser verdadeiro; os objetos materiais no passam de imitaes insuficientes daquelas. As almas,
antes de entrar nos corpos, contemplaram as idias eternas, e a percepo sensvel dos objetos materiais lhes desperta uma recordao dessas
idias (teoria da reminiscncia). (N. do T.)
antes tenhamos tido ocasio de conhecer esse ser de que se aproxima o dito objeto,
ainda que imperfeitamente.
Sim, necessrio.
Que poderemos concluir? Encontramo-nos, sim ou no, no mesmo caso
a propsito das coisas iguais e do Igual em si?
Sim, seguramente.
Portanto, necessrio que tenhamos anteriormente conhecido o Igual,
mesmo antes do tempo em que pela primeira vez a viso de coisas iguais nos deu o
pensamento de que elas aspiram a ser tal qual o Igual em si, embora lhe sejam
inferiores?
isso mesmo.
Mas tambm estamos de acordo sobre o seguinte: uma tal reflexo e a
possibilidade mesma de faz-la provm unicamente do ato de ver, de tocar, ou de
qualquer outra sensao; pois o mesmo podemos dizer a respeito de todas.
De fato, o mesmo, Scrates, pelo menos em relao ao fim visado pelo
argumento.
Como quer que seja, seguramente so as nossas sensaes que devem
dar-nos tanto o pensamento de que todas as coisas iguais aspiram realidade
prpria do Igual, como o de que elas so deficientes relativamente a este. Quer
dizer, seno isto?
Isso mesmo!
Assim, pois, antes de comear a ver, a ouvir, a sentir de qualquer modo
que seja, preciso que tenhamos adquirido o conhecimento do Igual em si, para
que nos seja possvel comparar com essa realidade as coisas iguais que as sensaes
nos mostram, percebendo que h em todas elas o desejo de serem tal qual essa
realidade, e que no entanto lhe so inferiores!
Necessria conseqncia, Scrates, do que j dissemos.
Logo que nascemos comeamos a ver, a ouvir, a fazer uso de todos os
nossos sentidos, no verdade?
Efetivamente.
Sim, mas era preciso antes, como j dissemos, ter adquirido o
conhecimento do Igual?
Sim.
Foi, portanto, segundo parece, antes de nascer que necessariamente o
adquirimos?
o que parece.
Assim, pois, que o adquirimos antes do nascimento, uma vez que ao
nascer j dele dispnhamos, podemos dizer, em conseqncia, que conhecamos
tanto antes como logo depois de nascer, no apenas o Igual, como o Maior e o
Menor, e tambm tudo o que da mesma espcie? Pois o que, de fato, interessa
agora nossa deliberao no apenas o Igual, mas tambm o Belo em si mesmo,
o Bom em si, o Justo, o Piedoso, e de modo geral, digamos assim, tudo o mais que
a Realidade em si, tanto nas questes que se apresentam a este propsito, como
nas respostas que lhes so dadas. De modo que uma necessidade adquirir o
conhecimento de todas essas coisas antes do nascimento. . .
bem isso.
E tambm, supondo pelo menos que depois de t-lo adquirido no o
esqueamos constantemente, uma necessidade lgica que tenhamos nascido com
esse saber eterno, conservando-o sempre no curso de nossa vida. Saber, com efeito,
consiste nisto: depois de haver adquirido o conhecimento de alguma coisa, dispor
dele e no mais perd-lo. Alis, o que denominamos "esquecimento" no , por
acaso, o abandono de um conhecimento?
Sem dvida, Scrates.
E em troca, penso, poder-se-ia supor que perdemos, ao nascer, essa
aquisio anterior ao nosso nascimento, mas que mais tarde, fazendo uso dos
sentidos a propsito das coisas em questo, reaveramos o conhecimento que num
tempo passado tnhamos adquirido sobre elas. Logo, o que chamamos de "instruir-
se" no consistiria em reaver um conhecimento que nos pertencia? E no teramos
razo de dar a isso o nome de "recordar-se"?
Toda a razo.
possvel, com efeito e assim pelo menos nos pareceu que ao
percebermos uma coisa pela vista, pelo ouvido ou por qualquer outro sentido, essa
coisa nos permita pensarmos num outro ser que tnhamos esquecido, e do qual se
aproximava a primeira, quer ela lhe seja semelhante ou no. Por conseguinte, torno
a repetir, de duas uma: ou nascemos com o conhecimento das idias e este um
conhecimento que para todos ns dura a vida inteira ou ento, depois do
nascimento, aqueles de quem dizemos que se instruem nada mais fazem do que
recordar-se; e neste caso a instruo seria uma reminiscncia.
exatamente assim, Scrates!
Qual , por conseguinte, dessas alternativas a que escolhes, Smias? O
saber inteiro e perfeito para ns ao nascermos, ou talvez uma recordao ulterior
de tudo aquilo de que anteriormente havamos adquirido o conhecimento?
De momento, Scrates, estou incapacitado de fazer uma escolha.
Mas responde, eis aqui uma escolha que ests em condies de fazer,
dizendo-me a seu respeito qual a tua opinio: um homem que sabe capaz, ou
no; de dar razes daquilo que sabe?
Necessariamente, Scrates!
Crs, alm disso, que toda a gente seja capaz de explicar o que so os
seres de que h pouco nos ocupvamos?
Ah! Bem o desejaria eu respondeu Smias. Mas receio, pelo
contrrio, que amanh no haja mais um s homem no mundo que esteja em
condies de sair-se dignamente dessa tarefa.24
Da resulta pelo menos, Smias, que, no teu entender, o conhecimento das
idias no pertence a todo o mundo?
Absolutamente no!

24
Glorificao um tanto exagerada de Scrates: amanh Scrates estar morto, e aps sua morte no se h de encontrar mais um bom
filsofo. (N. do T.)
Vale ento dizer que os homens se recordam daquilo que aprenderam
num tempo passado?
Necessariamente.
E que tempo foi esse em que nossas almas adquiriram saber acerca desses
seres? Seguramente, no havia de ser a datar de nosso nascimento humano?
Seguramente que no!
Seria pois, anteriormente?
Sim.
As almas, Smias, existiam, por conseguinte, antes de sua existncia numa
forma humana, separadas dos corpos e dotadas de pensamento?
A menos, Scrates, que o instante de nosso nascimento seja aquele
mesmo em que adquirimos tais conhecimentos; pois essa a ocasio que nos resta.
verdade, meu amigo; mas ento, em que outra ocasio ns os
perdemos? certo que no dispnhamos deles quando nascemos, e a este respeito
estvamos de acordo faz pouco. Assim, ou ns os perdemos no momento mesmo
em que os adquirimos; ou acaso podes alegar algum outro momento?
Impossvel, Scrates! A verdade que, sem o perceber, falei
levianamente.
Em conseqncia, Smias, se existe, como incessantemente o temos
repetido, um Belo, um Bom, e tudo o mais que tem a mesma espcie de realidade;
se a essa realidade que relacionamos tudo o que nos provm dos sentidos, porque
descobrimos que ela j existia, e que era nossa; se, enfim, realidade em questo
comparamos esses fenmenos ento, em virtude da mesma necessidade que
fundamenta a existncia de tudo isso, podemos concluir que nossa alma existia j
antes do nascimento. Suponhamos, ao contrrio, que tudo isso no exista. No
seria, ento, pura perda o que estivemos a demonstrar? No desta forma que se
apresenta a situao? No h acaso uma igual necessidade de existncia, tanto para
esse mundo ideal, como tambm para nossas almas, mesmo antes de termos
nascido, e a no-existncia do primeiro termo no implica a no-existncia do
segundo?
No h quem sinta, Scrates, mais do que eu disse Smias que a
necessidade idntica em ambos os casos! Que bela base para uma prova, esta
semelhana entre a existncia da alma antes do nascimento com a realidade de que
acabas de falar! Quanto a mim, parece-me que no h evidncia que se emparelhe
com esta: tudo o que deste gnero possui o mais alto grau de existncia, Belo,
Bom, e tudo o mais de que falavas h um instante. Assim, pelo que me toca, estou
satisfeito com tua demonstrao.
Mas quanto a Cebes? tornou Scrates preciso tambm convencer
Cebes.
Ele tambm h de estar satisfeito respondeu Smias; pelo menos
assim creio, embora no mundo no haja em matria de demonstraes, duvidador
mais obstinado que ele! Entretanto julgo-o plenamente convencido de que a alma
existe antes do nascimento. Mas ser verdade que depois de nossa morte ela
continua a existir? Aqui est, Scrates, segundo me parece, uma coisa que ainda no
foi demonstrada. Muito pelo contrrio: em face de ns ainda permanece de p a
opinio vulgar h pouco lembrada por Cebes. possvel que, no momento da
morte, a alma no se dissipe, e se esse no , tambm, o seu fim? Com efeito, que
h que impea isso? A alma pode muito bem ter alguma outra origem, pode existir,
enfim, antes de vir para um corpo humano, mas por outro lado, quando, depois de
ter vindo, dele se separa, possvel que tambm ela encontre nesse instante o seu
fim e a sua destruio.
Muito bem dito, Smias! volveu Cebes. Com efeito, evidente que
da demonstrao decorre que a nossa alma existe antes do nascimento. Mas
imprescindvel demonstrar ainda que nos achamos apenas na metade do que
cumpre demonstrar. preciso provar ainda que depois da morte ela existe como
antes do nascimento. S assim a demonstrao atingir plenamente o seu alvo.
Essa demonstrao j est feita, Smias e Cebes tornou Scrates; t-
la-eis neste mesmo instante, uma vez que estejais dispostos a unir, em uma s, esta
prova com aquela que a precedeu e a respeito da qual estvamos de acordo; a saber,
que tudo o que vive nasce do que morto. No verdade que admitimos h pouco
a preexistncia da alma, e, alm disso, a impossibilidade de que seu advento vida e
que o seu nascimento tenham outra origem que no a morte? Logo, como que
sua existncia, mesmo que se esteja morto, no h de ser necessria, uma vez que
ela deve ter uma nova gerao? De qualquer modo, j a existe uma prova, uma
demonstrao. Contudo, parece-me que gostarias, Cebes, e tu tambm, Smias, de
aprofundar esta prova, pois estais dominados pelo medo pueril de que um vento
qualquer possa soprar sobre a alma no momento de sua sada do corpo para
dispers-la e dissip-la, sobretudo quando, por pura coincidncia, h uma brisa
forte no instante de morrermos!25
Cebes riu:
No so uns poltres, Scrates? Talvez, mas procura reconfort-los!
Admitamos, porm, que no sejamos poltres, mas que dentro de cada um de ns
h no sei qu de infantil a que este gnero de coisas causa medo. Por isso, esfora-
te para que essa criana, convencida por ti, no sinta diante da morte o mesmo
medo que lhe infundem as assombraes.
Mas preciso ento replicou Scrates que lhe faam exorcismos
todos os dias, at que as encantaes o tenham libertado disso uma vez por todas!26
Mas, Scrates, onde poderemos encontrar contra esse gnero de terrores
um bom exorcista, uma vez que ests prestes a deixar-nos?
A Grcia, Cebes, bem grande respondeu Scrates e nela no
faltaro homens capazes! E, alm dela, quantas naes brbaras existem!27 Dirigi
vossa busca por entre todos esses homens; e na procura de um tal exorcista no
poupeis trabalhos nem bens, repetindo convosco, a cada momento, que nada h
25
Ironia contra os naturalistas, que consideram a alma como sendo constituda pelo ar. (N. do T.)
26
Aluso aos costumes populares, que acreditavam na possibilidade de expulsar fantasmas e assombraes mediante a recitao cantada de
certas frmulas mgicas. (N. do T.)
27
Naes brbaras quer dizer naes estrangeiras, e no naes incultas; Plato no ignorava que os egpcios possuam doutrinas muito
importantes acerca da cincia. (N. do T.)
em que possais com mais proveito gastar a vossa fortuna! Mas, antes disso,
necessrio que procureis entre vs mesmos, pois talvez vos seja muito difcil
encontrar uma pessoa que esteja em melhores condies do que vs para realizar
essa tarefa!28
Pois bem, assim faremos! disse Cebes. Agora voltemos
investigao, no ponto em que a deixamos, a menos que isso te cause
aborrecimento.
Muito .ao contrrio, isso agrada-me muito! Por que havia de ser de outro
modo?
Ah, bom ouvir isto! disse Cebes.
No uma questo, mais ou menos como esta, a que temos de propor-
nos: quais so as coisas que so suscetveis de decomposio? A propsito de que
espcie de coisas devemos temer esse estado, e para que espcie de seres isso no
acontece? Depois disso, teremos ainda de examinar qual dos dois o caso da alma,
para finalmente, conforme o resultado que obtivermos, haurir da confiana ou
temor com respeito nossa alma.
verdade.
No , pois, s coisas compostas ou quelas cuja natureza composta,
que cabe corresponder precisamente a composio? Mas, se acontece haver alguma
coisa no-composta, no s a ela que convm, mais do que a qualquer outra
coisa, o escapar a esse estado de decomposio?29
Sim disse Cebes o que penso; assim deve ser.
Dize-me ento: os seres que sempre se conservam imutveis e sempre se
comportam do mesmo modo, no altamente verossmil que sejam esses
precisamente os seres que no se decompem? Ao contrrio, o que jamais o
mesmo, o que ora se comporta de um modo, ora de outro, ou I no isso o que
chamamos composto?
Segundo penso, .
28
De fato foram os discpulos de Scrates, que constituram a mais rica sementeira de doutrinas e escolas da antigidade. (N. do T.)
29
Opinio dos filsofos Anaxgoras e Empdocles: o transformar-se resulta da composio de certas substncias simples; o desaparecer
nada mais do que a decomposio ou desagregao destas substncias anteriormente unidas num corpo composto. (N. do T.)
Passemos, agora, quilo para onde nos havia encaminhado a
argumentao precedente! Essa essncia, de cuja existncia falamos em nossas
interrogaes e em nossas respostas, dize-me: comporta-se ela sempre do mesmo
modo, mantm a sua identidade, ou ora se apresenta de um modo, ora doutro?
Pode-se admitir que o Igual em si mesmo, o Belo em si mesmo, que cada realidade
em si o ser seja suscetvel de uma mudana qualquer? Ou acaso cada uma
dessas realidades verdadeiras, cuja forma uma em si e por si, no se comporta
sempre do mesmo modo em sua imutabilidade, sem admitir jamais, em nenhuma
parte e em coisa alguma, a menor alterao?
necessrio disse Cebes que todas conservem do mesmo modo a
sua identidade, Scrates!
E, doutra parte, que dizer dos mltiplos objetos, como homens, cavalos,
vestimentas, ou quaisquer outros do mesmo gnero, e que so ou iguais, ou belos
so sempre os mesmos ou apostos s essncias pelo fato de nunca estarem no
mesmo estado nem em relao a si nem em relao aos outros?
E dessa maneira atalhou Cebes eles nunca se comportam da
mesma forma.
Assim, pois, a uns podes tocar, ver ou perceber por intermdio dos
sentidos; mas quanto aos outros, os seres que conservam sua identidade, no existe
para ti nenhum outro meio de capt-los seno o pensamento refletido, pois que os
seres desse gnero so invisveis e subtrados viso?
Nada mais certo!
Admitamos, portanto, que h duas espcies de seres: uma visvel, outra
invisvel.
Admitamos.
Admitamos, ainda, que os invisveis conservam sempre sua identidade,
enquanto que com os visveis tal no se d.
Admitamos tambm isso.
Bem, prossigamos tornou Scrates. No verdade que nos somos
constitudos de duas coisas, uma das quais o corpo e a outra, a alma?
Nada mais verdadeiro!
Com qual dessas duas espcies de seres podemos dizer, pois, que o corpo
tem mais semelhana e parentesco?
Eis uma coisa que clara para toda a gente: com a espcie visvel.
Por outro lado, que a alma? Coisa visvel ou coisa invisvel?
No visvel, pelo menos aos homens, Scrates!
Todavia, quando falamos do que visvel e do que no o , fizemo-lo
com relao natureza humana? Ou talvez creias que foi a propsito de qualquer
outra coisa?
Foi a propsito da natureza humana.
Portanto, que diremos da alma? Que ela coisa visvel, ou que no se v?
Que no se v.
Vale dizer, por conseguinte, que ela uma coisa invisvel?
Sim.
Logo, a alma tem com a espcie invisvel mais semelhana do que o
corpo, mas este tem, com a espcie visvel, mais semelhana do que a alma?
Necessariamente, Scrates.
No dizamos, ainda h pouco, que a alma utiliza s vezes o corpo para
observar alguma coisa por intermdio da vista, ou do ouvido, ou de outro sentido?
Assim o corpo um instrumento, quando por intermdio de algum sentido que
se faz o exame da coisa. Ento a alma, dizamos, arrastada pelo corpo na direo
daquilo que jamais guarda a mesma forma; ela mesma se torna inconstante, agitada,
e titubeia como se estivesse embriagada: isso, por estar em contato com coisas
desse gnero.
Realmente.
Mas quando, pelo contrrio nota bem! ela examina as coisas por si
mesma, quando se lana na direo do que puro, do que sempre existe, do que
nunca morre, do que se comporta sempre do mesmo modo em virtude de seu
parentesco com esses seres puros sempre junto deles que a alma vem ocupar o
lugar a que lhe d direito toda realizao de sua existncia em si mesma e por si
mesma. Por isso, ela cessa de vaguear e, na vizinhana dos seres de que falamos,
passa ela tambm a conservar sempre sua identidade e seu mesmo modo de ser:
que est em contato com coisas daquele gnero. Ora, este estado da alma, no o
que chamamos pensamento?
Muito bem dito, Scrates, e muito verdadeiro!
Portanto, ainda uma vez: com qual das duas espcies mencionadas,
segundo te parece, diante de nossos argumentos passados e dos de agora, a alma
tem mais semelhana e parentesco?
Penso no haver ningum, Scrates, por mais dura que tenha a cabea,
que seja capaz de no concordar, seguindo este mtodo, em que, em tudo e por
tudo, a alma tem mais semelhana com o que se comporta sempre do mesmo
modo, do que com as coisas que no o fazem.
E o corpo, por seu lado?
Com a outra espcie.
Tomemos agora um outro ponto de vista. Quando esto juntos a alma e
o corpo, a este a natureza consigna servido e obedincia, e primeira comando e
senhorio. Sob este novo aspecto, qual dos dois, no teu modo de pensar, se
assemelha ao que divino, e qual o que se assemelha ao que mortal? Ou acaso
pensas que o que divino existe, por sua natureza, para dirigir e comandar, e o que
mortal, ao contrrio, para obedecer e para ser escravo?
Penso como tu.
Com qual dos dois, portanto, a alma se assemelha?
Nada mais claro, Scrates! A alma, com o divino; o corpo, com o mortal.
Bem; examina agora, portanto, Cebes, se tudo o que foi dito nos conduz
efetivamente s seguintes concluses: a alma se assemelha ao que divino, imortal,
dotado da capacidade de pensar, ao que tem uma forma nica, ao que indissolvel
e possui sempre do mesmo modo identidade: o corpo, pelo contrrio, equipara-se
ao que humano, mortal, multiforme, desprovido de inteligncia, ao que est
sujeito a decompor-se, ao que jamais permanece idntico. Contra isto, meu caro
Cebes, estaremos em condies de opor uma outra concepo, e provar que as
coisas no se passam assim?
No, Scrates.
Que se segue da? Uma vez que as coisas so assim, no acaso uma
pronta dissoluo o que convm ao corpo, e alma, ao contrrio, uma absoluta
indissolubilidade, ou pelo menos qualquer estado que disso se aproxime?
E por que no, com efeito?
Mas a esta altura podes fazer a seguinte reflexo: depois da morte do
homem, o que nele h de visvel, seu corpo, a parte que continua visvel, ou, por
outra, o que chamamos cadver, a isto que convm dissolver-se, desagregar-se,
dissipar-se em fumo, e entretanto nada de tudo isso lhe acontece imediatamente.
Bem ao contrrio, ele resiste durante um tempo relativamente longo. Sobretudo
para um corpo que, ao morrer, est cheio de vida e em todo o seu vio, tal durao
de fato muito grande. Ademais, fato que, se for reduzido e embalsamado como
as mmias do Egito, sua conservao ser quase perfeita durante uma durao, por
assim dizer, incalculvel. Alm disso h, mesmo num corpo em putrefao, certas
partes, como os ossos, os tendes e outras do mesmo gnero, que so, pode-se
dizer, imortais. No verdade?
.
Mas ento a alma, aquilo que invisvel e que se dirige para um outro
lugar, um lugar que lhe semelhante, lugar nobre, lugar puro, lugar invisvel, o
verdadeiro pas de Hades, para cham-lo por seu verdadeiro nome30, perto do Deus
bom e sbio, l para onde minha alma dever encaminhar-se dentro em breve, se
Deus quiser; ento h de ser essa alma, digo, cujos caracteres e constituio natural

30
Aluso filosofia contempornea de Plato: os gregos derivavam a palavra (Hades) de e encontraram nesta palavra a
significao de invisvel, explicando simplesmente que Hades, como rei dos mortos, mora com as almas destes debaixo da terra, e por isso
invisvel aos homens e aos outros deuses. Mas Plato modifica a acepo: Hades o "invisvel verdadeiro", isto , a substncia invarivel,
eterna e imperceptvel aos sentidos, mas captvel pelo esprito, que depois da morte se aparta dos obstculos da matria (corpo) e v
diretamente o Hades, isto , o ser eterno. (N. do T.)
acabamos de ver, ento h de ser ela que, to depressa se separe do corpo, se
dispersar e aniquilar, assim como pretende o comum dos homens? No, muito ao
contrrio, meu caro Cebes, meu caro Smias; muito ao contrrio, vede o que
acontece.

O Destino das almas

"Suponhamos que seja pura a alma que se separa do corpo: deste ela nada
leva consigo, pela simples razo que, longe de ter mantido com ele durante a vida
um contato voluntrio, ela conseguiu, evitando-o, concentrar-se em si mesma e
sobre si mesma, e tambm pela razo de que foi para esse resultado que ela tendeu.
O que equivale exatamente a dizer que ela se ocupa, no bom sentido, com a
filosofia, e que, de fato, sem dificuldade se prepara para morrer. Poder-se- dizer,
pois, de uma tal conduta, que ela no um exerccio para a morte?" Sim,
realmente isso.
Ora, se tal o seu estado, para o que se lhe assemelha que ela se dirige,
para o que invisvel, para o que divino, imortal e sbio; para o lugar onde sua
chegada importa para ela na posse da felicidade, onde divagaao, irracionalidade,
terrores, amores tirnicos e todos os outros males da condio humana cessam de
lhe estar ligados, e onde, como se diz dos que receberam a iniciao, ela passa na
companhia dos Deuses o resto do seu tempo! deste modo, Cebes, que devemos
falar, ou cumpre-nos procurar outro?
Esse mesmo, por Zeus!
Segundo me parece, pode-se tambm supor o contrrio: que esteja
poluda, e no purificada, a alma que se separa do corpo; do corpo, cuja existncia
ela compartilhava; do corpo, que ela cuidava e amava, e que a trazia to bem
enfeitiada por seus desejos e prazeres, que ela s considerava real o que
corpreo, o que se pode tocar, ver, beber, comer e o que serve para o amor; ao
passo que se habituou a odiar, a encarar com receio e a evitar tudo quanto aos
nossos olhos tenebroso e invisvel, inteligvel, pelo contrrio, pela filosofia e s
por ela apreendido! Se tal o seu estado, crs que essa alma possa, ao destacar-se
do corpo, existir em si mesma, por si mesma e sem mistura?
totalmente impossvel.
Muito ao contrrio, julgo eu, tu a crs mesclada de qualidades corpreas
que sua familiaridade com o corpo, de cuja existncia partilhou, lhe tornou ntimas
e naturais, pois que jamais cessou de viver em comunho com ele e at mesmo
procurou multiplicar as suas ocasies de contato?
Realmente.
Sim, mas isso tem peso, meu caro; no o duvidemos: denso, terroso,
visvel! E uma vez que este o contedo de tal alma, por ele que ela se torna
pesada, atrada e arrastada para o lugar visvel, devido ao medo que lhe inspira o
que invisvel e o que chamamos de pas do Hades; essa alma ronda os
monumentos funerrios e as sepulturas, ao redor dos quais de fato foram vistos
certos espectros sombrios de almas, imagens apropriadas das almas de que falamos.
Elas, por terem sido libertadas, em estado de impureza e de participao com o
visvel, so assim tambm elas visveis!
Pelo menos verossmil, Scrates!
Seguramente, Cebes! E o que certamente no o , pretender que essas
almas sejam as almas dos bons. So as dos maus, que se vem obrigadas a vaguear
nesses lugares, que recebem assim o castigo de sua maneira de viver anterior, que
foi m. E vagueiam desse modo at o momento em que encontram o companheiro
desejado, algo corporiforme, e tornam a entrar num corpo! Ora, aquilo a que elas
assim novamente se juntam, deve ser, como natural, possuidor dos mesmos
atributos que as distinguiram no curso de sua vida.
Quais so, Scrates, esses atributos de que falas?
Exemplo: em corpos de asno ou de animais semelhantes que muito
naturalmente iro entrar as almas daqueles para quem, a voracidade, a impudiccia,
a bebedeira constituram um hbito, as almas daqueles que jamais praticaram a
sobriedade. No pensas assim?
Perfeitamente! muito natural, com efeito.
E para aqueles para os quais o mais alto prmio era a injustia, a tirania, a
rapina, esses animaro corpos de lobos, falces e milhafres. Ou acaso pode haver
outra destinao para essas almas?
No. E bem que assim seja disse Cebes; as almas desses homens
tomaro essas formas.
E perfeitamente claro, para cada um dos outros casos, que o destino das
almas corresponder s semelhanas com o seu comportamento na vida?
Bem claro; e como no haveria de ser assim?
Os mais felizes continuou Scrates sero aqueles cujas almas ho
de ter um destino e lugar mais agradveis, sero aqueles que sempre exerceram essa
virtude social e cvica que ns chamamos de temperana e de justia e nas quais
eles se formaram pela fora do hbito e do exerccio, sem o auxlio da filosofia e da
reflexo?
Mas em que sentido, dize-me, so esses os mais felizes?
E que muito naturalmente sua migrao se far, de um modo adequado,
para alguma espcie animal que tenha hbitos sociais e seja organizada de modo
policiado, sem dvida abelhas, vespas, ou formigas; ou ainda, se que voltam
realmente forma humana, ser para dar nascimento a pessoas honestas.
Naturalmente.
E quanto espcie divina, absolutamente ningum, se no filosofou, se
daqui partiu sem estar totalmente purificado, ningum tem o direito de atingi-la, a
no ser unicamente aquele que amigo do saber!
A funo da filosofia

"'Pois bem, a esto, Smias, meu amigo, e tu, Cebes, os motivos pelos quais
os que, no exato sentido da palavra, se ocupam com a filosofia, permanecendo
afastados de todos os desejos corporais sem exceo, mantendo uma atitude firme
e no se entregando s suas solicitaes. A perda de seu patrimnio, a pobreza no
lhes infunde medo, como multido dos amigos das riquezas; e, da mesma forma,
a existncia sem honrarias e sem glria, que lhes confere o infortnio, no capaz
de atemoriz-los, como faz aos que amam o poder e as honras. Por isso, eles
permanecem afastados dessa espcie de desejos."
Alis, o contrrio de tudo isso, Scrates, que lhes ficaria mal!
acrescenta Cebes.
De fato, por Zeus! Eis a por que motivo se aparta de todas essas pessoas,
Cebes, o homem que tem alguma preocupao com sua alma e cuja vida no
gasta em mimar o corpo. Seu caminho no se confunde com o daqueles que no
sabem para onde vo. Acreditando que no deve agir em sentido contrrio
filosofia, nem ao que ela proporciona para libertar-nos e purificar-nos, esse homem
volta-se para o lado dela e segue-a na rota que ela lhe aponta.
De que modo, Scrates?
Vou dizer-te. uma coisa bem conhecida dos amigos do saber, que sua
alma, quando foi tomada sob os cuidados da filosofia, se encontrava
completamente acorrentada a um corpo e como que colada a ele; que o corpo
constitua para a alma uma espcie de priso, atravs da qual ela devia forosamente
encarar as realidades, ao invs de faz-lo por seus prprios meios e atravs de si
mesma; que, enfim, ela estava submersa numa ignorncia absoluta. E o que
maravilhoso nesta priso, a filosofia bem o percebeu, que ela obra do desejo, e
quem concorre para apertar ainda mais as suas cadeias a prpria pessoa! Assim,
digo, o que os amigos do saber no ignoram que, uma vez tomadas sob seus
cuidados as almas cujas condies so estas, a filosofia entra com doura a explicar-
lhes as suas razes, a libert-las, mostrando-lhes para isso de quantas iluses est
inado o estudo que feito por intermdio dos olhos, tanto como o que se faz pelo
ouvido e pelos outros sentidos; persuadindo-as ainda a que se livrem deles, a que
evitem deles servir-se, pelo menos quando no houver imperiosa necessidade;
recomendo-lhes que se concentrem e se voltem para si, no confiando em nada
mais do que em si mesmas, qualquer que seja o objeto de seu pensamento. Que no
creiam enfim seno no prprio testemunho desde que tenham examinado bem o
que cada coisa na sua essncia e que se persuadam de que as coisas que so
examinadas por meio de um intermedirio qualquer nada possuem de verdadeiro, e
pertencem ao gnero do sensvel e do visvel enquanto que o que elas vem pelos
seus prprios meios inteligvel e, ao mesmo tempo, invisvel!
"Contra essa libertao a alma do verdadeiro filsofo persuade-se de que no
se deve opor, e por isso se afasta tanto quanto possvel dos prazeres, assim como
dos desejos, dos incmodos e dos terrores. Ela sabe com efeito que, quando
sentimos com intensidade um prazer, um incmodo, um terror ou um desejo, por
maior que seja o mal que possamos sofrer nesse momento, entre todos os que se
podem imaginar cair doente, por exemplo, ou arruinar-se por causa de suas
paixes ela sabe que no h nenhum desses males que no seja ultrapassado por
aquele que o mal supremo; deste mal que sofremos, e no o notamos!"
E que mal esse, Scrates?
que em toda alma humana, forosamente, a intensidade do prazer ou
do sofrimento, a propsito disto ou daquilo, se faz acompanhar da crena de que o
objeto dessa emoo tudo o que h de mais real e verdadeiro, embora tal no
acontea. Esse o efeito de todas as coisas visveis, no ?
Efetivamente.
E no em tais afetos que no mais alto grau a alma fica sujeita s cadeias
do corpo?
De que modo, dize?
Assim: todo prazer e todo sofrimento possuem uma espcie de cravo
com o qual pregam a alma ao corpo, fazendo, assim, com que ela se torne material
e passe a julgar da verdade das coisas conforme as indicaes do corpo. E pelo fato
de se conformar a alma ao corpo em seus juzos e comprazer-se nos mesmos
objetos, necessariamente deve produzir-se em ambos, segundo penso, uma
conformidade de tendncias assim como tambm uma conformidade de hbitos; e
sua condio tal que, em conseqncia, ela jamais atinge o Hades em estado de
pureza, mas sempre contaminada pelo corpo de que sai; o resultado que logo
recai num outro corpo, onde de certa forma se planta e deita razes. E por fora
disso fica desprovida de todo direito a participar da existncia do que divino e,
portanto, puro e nico em sua forma.
Tuas palavras, Scrates disse Cebes so a prpria verdade!
A esto, pois, Cebes, os motivos pelos quais aqueles que so, de fato,
amigos do saber so prudentes e corajosos, e no pelas razes que alega o vulgo.
Ou talvez penses tambm como o vulgo?
No, seguramente que no!
No, verdade! Muito pelo contrrio, eis como, sem dvida, refletir uma
alma de filsofo: ela no ir pensar que, sendo o trabalho da filosofia libert-la, o
seu possa ser, enquanto a filosofia a liberta, o de se entregar voluntariamente s
solicitaes dos prazeres e dos sofrimentos, para tornar a colocar-se nas cadeias,
nem o de realizar o labor sem fim duma Penlope que trabalhasse de maneira
contrria quela com que trabalhou aquela31. No! ela acalma as paixes, liga-se aos
passos do raciocnio e sempre est presente nele; toma o verdadeiro, o divino, o
que escapa opinio, por espetculo e tambm por alimento, firmemente
convencida de que assim deve viver enquanto durar sua vida, e que dever, alm
disso, aps o fim desta existncia, ir-se para o que lhe aparentado e semelhante,
desembaraando-se destarte da humana misria! Tendo sido esse o seu alimento,
no h recear que ela tenha medo", nem porquanto foi precisamente nisso,
31
Penlope: esposa de Ulisses, figura da Odissia. Na ausncia de seu marido, perseguida por muitos pretendentes que desejavam com ela
casar, Penlope prometeu desposar um deles quando houvesse acabado de tecer um pano em que estava trabalhando. Mas desfazia durante a
noite a parte que tecera de dia, de modo que jamais concluiu o trabalho, nem casou com nenhum pretendente. (N. do T.)
Smias e Cebes, que ela se exercitou que tema vir a decompor-se no momento
em que se separar do corpo, ou ser dispersada ao sopro dos ventos, ou dissipar-se
em fumo e, uma vez dissolvida, no ser mais nada em nenhuma parte!
Depois destas palavras de Scrates, fez-se um silncio que durou algum
tempo. Scrates, isso se notava ao olh-lo, tinha o esprito completamente absorto
na meditao do argumento que acabara de expor, e o mesmo acontecia com a
maioria dos presentes. Quanto a Cebes e Smias, estavam conversando a meia voz.
Vendo isso, Scrates dirigiu-se aos dois: Dizei-me se tambm no vosso
pensamento que falta alguma coisa ao que at agora dissemos? bem certo que
para trs ficou mais de um ponto suspeito, que daria margem a ataques contra ns
se no fizssemos uma suficiente reviso deles todos. Mas, se falais de outra coisa
neste momento, ento estou a interrogar-vos em vo! Se, pelo contrrio, isto
mesmo o que vos embaraa, nada de hesitaes! Falai, dizei o que vos parecer
necessrio e, por vossa vez, tomai-me por auxiliar, se acreditais que vos ser mais
fcil sair das dificuldades- com o meu auxlio!
Pois bem, Scrates respondeu Smias vou dizer-te a verdade; j faz
um bom tempo que, sentindo certa dificuldade a propsito do teu argumento, cada
um de ns est procurando fazer com que o outro se decida e te interrogue; temos,
com efeito, muito desejo de ouvir-te falar, mas receamos tambm causar-te
incmodo e angstia, pois levamos em conta a situao penosa em que te
encontras!
Ouvindo isso, Scrates teve um leve sorriso: Misericrdia, Smias! Como
me seria difcil e incmodo convencer a outros homens de que no considero
penosa a situao em que atualmente me encontro, uma vez que no consigo
convencer disso nem a vs prprios, e que, alm disso, tendes a desconfiana de
que nesta ocasio eu esteja possudo de uma enorme tristeza, como nunca senti em
minha vida passada! Isso, possivelmente, provm de me julgardes menos bem
dotado do que os cisnes para a adivinhao. Realmente, quando eles sentem
aproximar-se a hora da morte, o canto que antes cantavam se torna mais freqente
e mais belo do que nunca, pela alegria que sentem ao ver aproximar-se o momento
em que iro para junto do Deus a que servem. Mas os homens, com o pavor que
tm da morte, caluniam at os cisnes: estes esto, dizem, a lamentar a sua morte, e a
dor que lhes inspira aquele canto supremo. No entanto, ningum se lembra de
que nenhuma ave canta quando sente fome ou frio, ou quando sente dor; no, nem
mesmo o rouxinol, a andorinha e a poupa, que so precisamente, segundo a
tradio, os pssaros cujo canto um lamento dolorido. Para mim, no a dor que
faz com que eles cantem, como no ela que faz cantar os cisnes32. Estes, muito ao
contrrio, provavelmente porque so as aves de Apoio, possuem um dom
divinatrio, e a prescincia dos bens existentes no Hades que os faz, no dia de sua
morte, cantar de modo to sublime, como jamais o fizeram no curso anterior de
sua existncia. Ora, eu, quanto a mim, penso ter a mesma misso que os cisnes;
creio que estou consagrado ao mesmo Deus, que os cisnes no me superam na
faculdade divinatria que recebi de nosso Soberano33, e que, do mesmo modo, no
sinto mais tristeza do que ele ao separar-me desta vida. Essas so as cousas que
deveis ter em mente quando quiserdes falar e propor as questes que desejardes,
tanto quanto o permitirem os Onze34 em nome do povo de Atenas.
Alegra-me, Scrates, esse teu modo de falar! disse Smias. Vou,
portanto, expor-te o que est me embaraando, e Cebes, depois, dir por que
motivo no aceita o que at agora foi dito. Meu ponto de vista, Scrates, a respeito
de questes deste gnero e sem dvida ser tambm o teu que um
conhecimento certo disso tudo , na vida presente, se no impossvel, pelo menos
extremamente difcil de obter. Mas por outro lado, est claro, se as opinies
relacionadas com tudo isso no forem submetidas a uma crtica realmente
aprofundada, se se abandonar o assunto sem antes ser examinado em todos os
sentidos ento, porque se tem uma natureza fraca! necessrio, pois, a este
propsito, fazer uma das cousas seguintes: no perder a ocasio d instruir-se, ou
32
H aqui aluso a uma antiga lenda da tica. segundo a qual a andorinha e o rouxinol so Procne e Filomela, filhas do rei Pandio, de
Atenas. (N. do T.)
33
O cisne a ave consagrada a Apoio, deus da adivinhao. Scrates aqui se compara poeticamente ao cisne e considera como seu
derradeiro canto a doutrina sobre a imortalidade da alma. (N. do T.)
34
Funcionrios encarregados da execuo do* condenados e de fiscalizar a priso. (N. do T.)
procurar aprender por si mesmo, ou ento, se no se for capaz nem de uma nem de
outra dessas aes, ir buscar em nossas antigas tradies humanas o que houver de
melhor e menos contestvel, deixando-se assim levar como sobre uma jangada, na
qual nos arriscaremos a fazer a travessia da vida, uma vez que no a podemos
percorrer, com mais segurana e com menos riscos, sobre um transporte mais
slido: quero dizer, uma revelao divina! Assim, pois, j estamos entendidos: no
terei, de minha parte, cerimnia em interragar-te, j que a isso me convidas, e para
que no futuro eu no tenha de recriminar-me por no te haver dito hoje o que
penso! De fato, Scrates: depois da reviso qual eu mesmo submeti, como Cebes,
o que se disse em nossa conversa, fiquei convencido de que as provas no so
satisfatrias.
Ento disse Scrates: Pode muito bem ser, meu amigo, que realmente
estejas com a verdade. Mas dize-me em que, precisamente, no ests satisfeito.
que, para mim, uma harmonia e uma lira com suas cordas podem dar
lugar a esta mesma argumentao: a harmonia, dir-se-ia ento, uma coisa invisvel,
incorprea, absolutamente bela, divina, enfim, quando a lira dedilhada, ao passo
que a prpria lira e suas cordas so coisas corporiformes, compostas, terrenas,
aparentadas com a natureza mortal. Suponhamos, pois, que algum quebre a lira,
que se lhe cortem ou rebentem as cordas; e depois que se sustente, com uma
argumentao idntica tua, que a harmonia de que falamos existe necessariamente
e que no foi destruda. De que modo compreender que subsistam, tanto a lira,
depois que suas cordas se partiram, como as prprias cordas, que so de natureza
mortal, e a harmonia a harmonia que da mesma natureza e da mesma famlia
que o divino e o imortal, destruda mesmo antes do que mortal? No, seria o que
diriam; necessrio que a harmonia continue ainda a existir em alguma parte,
embora a madeira da lira e suas cordas apodream, harmonia nada suceder!
Alis, Scrates, creio que no esqueceste aquela concepo da natureza da alma, a
que damos preferncia. Admitido que nosso corpo seja semelhante a um
instrumento de cordas e que sua unidade seja mantida pelo calor e o frio, pelo seco,
pelo mido e outras qualidades anlogas, a combinao e a harmonia desses
mesmos contrrios que constitui a nossa alma, quando se combinam em
propores convenientes. Portanto, se justamente a alma uma harmonia, a coisa
clara: desse modo sempre que nosso corpo for excessivamente relaxado ou
retesado pelas doenas ou por outros males, necessrio que a alma, apesar de
divina, seja logo destruda como as outras harmonias, quer se realizem em sons,
quer em outras formas de arte; ao passo que o despojo corporal resiste ainda por
muito tempo, at o dia em que o tenha destrudo o fogo ou a putrefao. Examina,
pois, Scrates, o que poderamos objetar a essa teoria segundo a qual a alma, sendo
a combinao dos elementos de que feito o corpo, deve ser destruda em primeiro
lugar quando sobrevm aquilo a que chamamos morte.
Scrates teve aquele olhar penetrante que, em muitas circunstncias, lhe era
habitual, e sorriu: H alguma verdade, palavra!, no que Smias acaba de dizer!
Com efeito, se h dentre vs algum que esteja menos aturdido do que eu por suas
palavras, por que no lhe responde? Pois um temvel golpe que ele parece ter
desfechado contra as minhas provas! Contudo, segundo penso, antes de responder-
lhe devemos primeiramente ouvir dos lbios de Cebes o que este por sua vez
reprova no meu argumento. Assim teremos tempo para refletir sobre o que
devemos dizer. Depois disso, ouvidos ambos, por-nos-emos acordes com eles, se
julgarmos que seu canto est bem cantado; seno, ser porque o processo do
argumento deve ser revisado. Pois bem, Cebes, avante! Fala, por tua vez, sobre o
que te preocupa.
Para mim disse ento Cebes bem claro que o argumento ainda se
encontra na mesma situao e continua a ser passvel das mesmas objees de h
pouco. Que nossa alma realmente existiu antes de assumir a forma que agora
possui, isso no sou obrigado a admitir. Nada a existe que v contra o meu modo
de pensar e que no tenha sido (se pelo menos no presuno afirm-lo)
demonstrado de modo plenamente satisfatrio. Mas, pretender que depois de nossa
morte a alma continue a existir, eis uma coisa com que no estou de acordo. Por
certo, a alma uma entidade mais vigorosa e durvel que o corpo; e isso no
concedo objeo levantada por Smias, pois minha convico a de que, em
todos os pontos, a superioridade da alma imensa. "Ento por que motivo, dir-me-
o, permaneces ainda em dvida? No reconheces que, uma vez morto o homem, o
que continua a subsistir precisamente o que h de mais frgil? E quanto ao que
mais durvel no achas necessrio que continue a viver durante esse tempo?"
Examina agora se minha linguagem encerra alguma verdade, pois eu, naturalmente,
assim como Smias, sinto necessidade duma imagem para que me possa exprimir.
Para mim, com efeito, seria isso o mesmo que dizer algum a respeito da morte
dum velho tecelo: "O bom do velho tecelo no est morto; ele continua a viver
em qualquer parte, e, como prova, aqui est o vesturio que ele usava, e que ele
prprio tecera, conservado em bom estado e no destrudo." E a quem no
concordasse, poderia fazer esta pergunta: "Qual dos dois, em seu gnero, mais
durvel: o homem ou a veste de que se serve e traz no corpo?" Ento, baseado na
resposta de que muito mais durvel o homem, imaginaria ter demonstrado que,
com maior razo ainda, o homem deve permanecer inteiro em alguma parte, pois o
que menos durvel do que ele no foi destrudo!
"Contudo, segundo penso, as coisas no se passam assim, Smias; e,
portanto, deves tu tambm prestar ateno ao que vou dizer, pois no que respeita
argumentao precedente, todos podem facilmente perceber sua ingenuidade. E
vou prov-lo: se verdade que o desaparecimento de nosso tecelo, aps haver
usado uma multido de tais vesturios e de haver tecido outros tantos, ocorre
depois deles todos, mas antes daquele que foi sua ltima vestimenta, a no se
encontra menor motivo para afirmar que o homem seja inferior s suas vestes e
mais frgil do que elas! Pois bem: esta mesma imagem, se no me engano,
aplicvel alma em sua relao com o corpo. Quem fizer uso dela dir
(acertadamente, no meu entender) que a alma coisa durvel, e o corpo, por seu
lado, coisa frgil e de menor durao. Quem assim fizer, poder acrescentar ainda
que cada alma usa diversos corpos, principalmente se ela vive muitos anos, pois
sendo o corpo como possvel supor uma torrente que se esvai enquanto o
homem vive, a alma incessantemente renova o seu vesturio perecvel. Mas, assim
mesmo, necessrio que a alma, no dia em que for destruda, se revista com a
ltima vestimenta que teceu e que seja esta a nica anteriormente qual tenha lugar
esta destruio. Uma vez aniquilada a alma, o corpo patentearia desde logo a sua
fragilidade essencial e, caindo em podrido, no tardaria a desaparecer
definitivamente. Por conseguinte, no estamos -ainda em condies de aceitar o
argumento de que tratamos, e, assim, confiar em que mesmo depois de nossa morte
nossa alma continue a existir em alguma parte! "A prova que qualquer um poderia
dizer: "A esse raciocnio, concedo ainda mais do que tu". E o que lhe concederia
que no somente as nossas almas existem no tempo que precedeu o nascimento,
mas que tambm nada impede, mesmo aps a morte, que algumas delas continuem
a existir, para dar lugar a futuros nascimentos e a novas mortes. Nesta hiptese,
com efeito, a alma bastante forte para fazer frente a esses repetidos nascimentos.
Entretanto, depois de haver concedido isto, esse algum se recusaria a admitir que a
alma no se esgote nesses mltiplos nascimentos e no termine por ser
radicalmente destruda, afinal, em uma dessas mortes. Ora, essa morte, essa
dissoluo do corpo que vibra na alma o golpe fatal, no h homem, diria esse
algum, que a possa conhecer, pois impossvel a quem quer que seja que possa ter
essa impresso. Mas, se as coisas so assim, no h homem que possa estar
tranqilo diante da morte, a menos que ele seja capaz de provar que a alma
totalmente imortal e imperecvel. Se assim no for, necessariamente, todo aquele
que vai morrer deve sempre temer que sua alma, no momento em que se separa do
corpo, seja destruda inteiramente."
Tendo-os ouvido falar, todos ns experimentamos um sentimento de
angstia, como alis, mais tarde, mutuamente no-lo confessamos. O que pouco
antes fora exposto nos havia firmemente convencido, e eis que agora esses dois nos
lanam outra vez na inquietao e nos abandonam incredulidade, no s quanto
aos argumentos j expostos, mas tambm de antemo quanto a tudo que se viesse a
dizer a seguir. No seramos ns, realmente, incapazes de decidir de obter soluo
sobre o que quer que fosse? Ou era porventura a prpria questo que no
comportava certeza?
EQUCRATES
Ah, Fdon, bem vos compreendo ! A mim mesmo, com efeito, enquanto
te escutava, me ocorriam mais ou menos estas palavras: "Qual ser, doravante, o
argumento em que nos poderemos fiar, uma vez que, no obstante sua forma
persuasiva, o argumento exposto por Scrates assim se esboroa na incerteza?" o
efeito do maravilhoso poder que sempre exerceu sobre mim a teoria que afirma que
a alma uma harmonia. A exposio dessa tese me fez, por assim dizer, recordar
que ela tivera at ento o meu assentimento; mas eis que, novamente, sinto tambm
grande necessidade de que, partindo de novas razes me demonstrem que nossa
morte no acompanhada pela morte da alma! Dize-nos, pois, em nome de Zeus,
de que modo Scrates defendeu o seu argumento. Ele se mostrava descorooado,
assim como dizes que vs todos estveis? Ou, ao contrrio, acudiu com serenidade
em socorro de sua teoria? E esse socorro foi eficaz ou no? Conta-nos tudo isso
minuciosamente, com a maior exatido de que fores capaz.
Em verdade, Equcrates, muitas vezes me maravilhei diante de Scrates,
mas confesso que nunca senti tanta admirao por ele como naquelas horas finais
em que estive a seu lado. Que um homem como ele fosse capaz de responder,
coisa que nada tem de extraordinrio. Mas o que achei maravilhoso de sua parte foi
antes de tudo o bom humor, a bondade, o ar interessado com que acolhia as
objees daqueles moos e, alm disso, a finura com que percebeu e soube avaliar o
efeito que sobre ns tinham produzido as suas objees. E, enfim, como na soube
curar! Pois parecamos uns fugitivos, uns vencidos. Sua voz nos alcanou
novamente, nos obrigou a fazer meia volta e a tornar, sob sua conduta e com ele,
ao exame do argumento.
EQUCRATES:
De que modo?
Fdon retoma a narrativa

FDON:
Vou contar-te. Eu me encontrava ento sua direita, sentado num
tamborete e encostado ao seu leito, de modo que ele ficava muito mais alto do que
eu. Ps-se ento a afagar-me a cabea, brincando com os cabelos que caam sobre
meus ombros; era, com efeito, um costume seu troar s vezes de minha cabeleira.
E disse-me:
Ento ser amanh, Fdon, que mandars cortar esta soberba cabeleira?35
E com toda a razo, Scrates!
No, no por isso.
Explica-te, ento!
Hoje mesmo respondeu mandarei cortar a minha e tu a tua, se
verdade que este dia o ltimo de nossa discusso, e que somos incapazes de lhe
infundir vida! Quanto a mim, em teu lugar, e se o argumento me escapasse assim
por entre os dedos, eu me comprometeria por um juramento, seguindo o exemplo
dos argeus36 a no mais ostentar uma tal cabeleira enquanto no obtivesse, em
novos combates, uma vitria sobre a argumentao de Smias, assim como sobre a
de Cebes!
Mas contra dois interpus o prprio Hrcules, ao que se diz, nada
podia!
E eu, ento emendou Scrates. Eu sou Iolau!37. Chama-me em teu
auxlio enquanto ainda dia.

35
Cortar os cabelos era prova de tristeza: amanh Fdon cortar sua basta cabeleira por causa da morte de Scrates. Scrates costumava
troar da longa cabeleira de Fdon, que era do Peloponeso. Em Atenas no se usavam cabelos longos. (N. do T.)
36
Aluso a um texto de Herdoto: Os argeus, aps uma derrota sofrida, fizeram a promessa de no mais deixar crescer os cabelos enquanto
no tivessem obtido uma vitria sobre o inimigo. Da mesma forma Scrates e Fdon, que desejam vencer os argumentos inimigos de sua
doutrina. (N. do T.)
37
Hrcules o grande heri fabuloso; Iolau, quem o ajudou uma vez. Scrates se compara a Iolau, que o mais fraco dos dois.(N. do T.)
Sim, eu te chamo! respondi. Apenas, no sou Hrcules, mas a
Hrcules que Iolau pede socorro!
Isso no faz diferena alguma.
Mas, antes, tomemos cuidado para que no nos venha a acontecer um
desastre.
Qual? perguntei.
O de nos transformarmos em inimigos da cincia, em mislogos, assim
como h alguns que se convertem em inimigos dos homens, em misantropos; pois
no h maior mal do que tornar-se inimigo da cincia. Alis, desenvolvem-se do
mesmo modo tanto o dio cincia como o dio aos homens. O dio aos homens,
a misantropia, penetra nos coraes quando confiamos demais numa pessoa, sem
nos acautelarmos; quando acreditamos que uma pessoa boa, sincera, honesta, e
vimos a descobrir mais tarde que tal no , que pelo contrrio m, desonesta e
mentirosa; e se isso acontecer repetidas vezes a um mesmo homem, e justamente a
propsito daquelas pessoas a quem considerava como seus melhores e mais
sinceros amigos, esse passar finalmente a odiar todos os homens, persuadido de
que em ningum h de encontrar a menor qualidade boa. Acaso no notaste que,
efetivamente, as coisas se passam dessa forma?
Sim respondi , justamente desse modo.
E proceder assim no , acaso, proceder mal? No claro que esse
descrente vive entre os homens sem entretanto conhecer a humanidade? Se
procedesse com juzo, notaria que bem poucos homens so absolutamente bons ou
maus, e que inmeros so os que se encontram entre esses extremos.
Que queres dizer?
Que se d aqui o mesmo que se d a propsito das coisas pequenssimas
e grandssimas respondeu-me. Achas que possa haver- coisa mais rara do que
um homem enorme-mente grande ou extraordinariamente pequeno? E isso vale
tambm para o co, como para qualquer outra coisa.
E no te parece tambm que muito difcil encontrar-se um ser rapidssimo
e um vagarosssimo, assim como um belssimo e um feissimo, ou um muito alvo e
outro muito negro? Acaso no notaste por ti mesmo como so raros em todas
essas coisas os pontos extremos, ao passo que os termos mdios so muito mais
numerosos?
De fato.
De modo que, se fosse feito um concurso de maldade, no te parece
tambm que apenas uns poucos seriam premiados?
Com certeza concordei.
Com certeza, com efeito. Mas no nesse ponto que os argumentos so
comparveis aos homens. Como enveredaste nessa direo, nada mais fiz do que
seguir-te. . . Mas a comparao esta: uma pessoa, que desconhece a arte de provar
por argumentos, se entrega com cega confiana a um argumento que lhe parece
verdadeiro; pouco depois, este passa a lhe parecer falso. Ora o , ora no o ; e
assim muitas vezes. Sabes tambm, com efeito, que os que se dedicam a
demonstrar o pr e o contra38 afirmam ter encontrado o cume da sabedoria e haver
descoberto, como mais ningum, que em nenhuma coisa ou demonstrao que
seja, existe absolutamente base segura ou certeza, mas sim que, em tudo o que
existe, semelhana do Euripes39, a parte inferior se mistura com a parte superior,
jamais permanecendo estvel e em seu lugar.
Tens razo assenti eu.
Mas no seria deplorvel desgraa, Fdon, quando existe um argumento
verdadeiro, slido, suscetvel de ser compreendido, que, aqueles que se puseram
a ouvir argumentos que ora so verdadeiros e ora so falsos que aqueles
mesmos, em lugar de acusarem as suas prprias dvidas ou a sua falta de arte,
lancem toda a culpa na prpria razo e passem toda a vida a caluni-la e odi-la,
privando-se, desse modo, da verdade dos seres e da cincia?40
Por Zeus! disse eu isso seria, com efeito, um lamentvel desastre!
38
Crtica Sofistica que se liga ao ceticismo lgico. (N. do T.)
39
Estreito que separa do continente a ilha de Eubia; clebre pelo fato de suas correntes variarem sete vezes por dia. (N. do T.)
40
Plato critica ainda aqui a Sofistica e o desenvolvimento do ceticismo. (N. do T.)
Ora pois volveu Scrates tomemos cuidado para que no venha a
penetrar em nossas almas o pensamento de que nos argumentos nada h de
razovel. Suponhamos sempre, ao contrrio, que ns que no temos ainda
bastante discernimento. Devemos, com efeito, ser corajosos e fazer tudo o que for
necessrio para obter os conhecimentos verdadeiros tu e os outros, porque
ainda vivereis bastante, eu simplesmente porque vou morrer. Pois estou exposto,
visto que se trata apenas da morte, a no me comportar como filsofo mas sim
maneira dos homens completamente iletrados, que s pensam em levar a melhor.
Repara quando discutem um problema: no se preocupam em absoluto com obter
a soluo certa, mas o que desejam unicamente conseguir que todos os ouvintes
estejam de acordo com eles. isso que querem; entretanto, creio que me distingo
desses argumentadores pelo menos num ponto: no pretendo convencer os
ouvintes de que verdadeiro tudo o que eu disser embora o deseje
secundariamente mas em primeiro lugar desejo persuadir-me, a mim mesmo,
disso. Penso, pois, caro amigo, como um egosta. Se verdade o que digo, ento
bom estar convencido; se, pelo contrrio, no h esperana- para quem morre, eu,
pelo menos, no terei tornado meus ltimos instantes desagradveis para meus
amigos, obrigando-os a suportar minhas lamentaes. De resto, no terei muito
tempo para meditar nisso (o que seria efetivamente desagradvel). Mais um pouco e
logo tudo estar acabado. Assim, preparado com esse esprito, Smias e Cebes,
entro na discusso. Vs, entretanto, se me acreditais, cuidai menos de Scrates que
da verdade! Concordai comigo, se achardes que digo a verdade; se no, objetai-me a
cada argumento, a fim de que iludindo a vs e a mim tambm, com meu
entusiasmo eu no me v daqui, como a abelha, deixando o ferro!41
"Ento, avante! Antes de tudo, porm, fazei-me recordar bem o que
dissestes, se notardes que no me recordo. Para Smias, salvo erro meu, o objeto de
sua dvida e dos seus temores o de que a alma, sendo algo de mais belo e mais
divino do que o corpo, venha a corromper-se antes dele, pois pensa que aquela

41
A abelha, que deixa seu ferro na ferida, provoca dores. Assim Scrates, que faria mal e causaria sofrimentos a seus discpulos se se fosse,
deixando-lhes erros. (N. do T.)
nada mais do que uma espcie de harmonia. Quanto a Cebes, concede, por seu
lado, que a alma dure mais do que o corpo, mas, segundo pensa, bem difcil saber
se a alma, depois de haver gasto muitos corpos sucessivamente, no se dissolve ao
sair do ltimo, e se a morte no consiste justamente nisto, na destruio da alma,
pois que o corpo, esse, est continuamente destruindo-se. No isto, Smias e
Cebes, o que devemos examinar? Ambos declararam que sim.
Ora tornou Scrates , no aceitais o conjunto das afirmaes que
fizemos ou que apenas aceitais umas e outras, no?
Umas sim, outras no responderam os dois.
Que pensais a respeito da doutrina segundo a qual instruir-se apenas
recordar e, que sendo assim, necessrio que nossa alma, antes de vir encadear-se
em nosso corpo, tenha vivido primeiramente noutro lugar?
Quanto a mim respondeu Cebes estou perfeitamente persuadido
disso, e que no h pensamento ao qual eu mais ligado esteja.
Eu tambm ajuntou Smias ficaria muito admirado se viesse a
mudar de opinio a esse respeito.

Resposta a Smias

Pois deverias mudar de opinio, homem de Tebas disse Scrates


se de fato persiste em ti a idia de que a harmonia uma coisa composta e que a
alma nada mais do que a harmonia, uma composio das tenses das cordas do
corpo. Pois claro, com efeito, que no podes ter aquela opinio e afirmar ao
mesmo tempo que a harmonia existiu antes dos elementos dos quais viria a ser
composta. Ou pensas assim?
No, Scrates.
Percebes ento disse Scrates o que resulta do teu juzo? Afirmas,
de um lado, que a alma existia antes de tomar a forma de homem, num corpo e, de
outro que ela composta de coisas que ainda no existiam ! A alma no , pois,
como a harmonia com a qual tu a comparas. A harmonia, com a qual comparas a
alma, no apresenta analogia com ela neste ponto: primeiro, com efeito, existem a
lira e as cordas, e depois os sons inarticulados e a harmonia, que se forma por
ltimo e desaparece antes de tudo mais. Como, pois, fars concordar esta teoria
com aquela opinio?
impossvel confessou Smias.
No entanto retrucou Scrates , se h uma linguagem que seja
coerente, bem aquela que fala da harmonia!
De fato isso lhe convm! disse Smias.
Ora, essa linguagem acrescentou Scrates nada tem, na tua
opinio, de coerente. necessrio ento escolher entre essas duas
linguagens; qual aquela que preferes? A que afirma que instruir-se lembrar-se ou
a de que a alma uma harmonia?
Evidentemente a primeira, caro Scrates; a outra se apresentou diante de
mim sem provas em seu favor; como apenas plausvel ao sabor de uma
convenincia apenas verossmil e especiosa, como tudo que fonte da opinio da
maioria42. Bem sei que as teorias baseadas em demonstraes provveis nos
enganam e, se no tomarmos cuidado com elas, elas demonstram tudo e at a
geometria! Ao contrrio, a teoria relativa recordao e ao estudo est assente em
bases mais slidas. O que ns dissemos que a nossa alma, antes de vir animar um
corpo, existe como a prpria essncia, isto , que tem existncia real. Reconheo
que esta proposio correta e foi suficientemente provada; tal minha convico.
E por esse motivo no me parece certo afirmar que a alma uma harmonia, seja eu
quem o diga ou seja outrem.
Bem; mas eis outra questo, Smias: crs que uma harmonia, ou qualquer
outra coisa composta, possa ter qualidades outras e diferentes daquelas que
possuem os elementos de que composta?
Nunca!
42
A opinio vulgar dos gregos que a alma sem corpo passa a ter uma vida sem conscincia no Hades. interessante que Homero no limiar
da Ilada diga mais ou menos a mesma coisa: a ira de Aquiles enviou muitas almas de heris para o Hades, mas quanto a "eles mesmos" (isto
, seus corpos), entregou-os aos ces e s aves para comerem. (N. do T.)
Nem, segundo me parece, poder fazer ou sofrer seno aquilo que fazem
ou sofrem as coisas que a empolgam?
Smias concordou.
E, por conseguinte, a harmonia no pode reger os elementos de que se
compe, mas, pelo contrrio, os deve seguir?
Smias concordou novamente.
, ento, absurdo dizer que uma harmonia se move ou soa
contrariamente s suas partes constitutivas, ou que a elas se ope?
Por certo que absurdo!
Com efeito. Entretanto, eis outra questo: a harmonia no ser
precisamente aquela que exigem as suas partes constitutivas?
No entendo disse Smias.
Pergunto se, quando os elementos esto mais ou menos de acordo, se a
harmonia tambm no existe mais ou menos? E quando mais fracos e menos
extensos, se a harmonia tambm no mais fraca e menos extensa?
Claro!
E com a alma se passar o mesmo? o fato' de uma alma ter, no menor
de seus elementos, em grau mais elevado do que outra, mais extenso e mais
grandeza ou menos extenso e mais fraqueza, que precisamente constitui o que ela
, a saber, uma alma?
De modo algum!
Prossigamos, por Zeus! Quando uma alma possui razo e virtude, no se
diz que boa, e quando cheia de desrazo e maldade, que m? E no exato
dizer isso?
absolutamente certo, com efeito!
Mas, ento, aqueles que consideram a alma como uma harmonia, como
iro eles explicar a virtude e o vcio que se encontram nas almas? Diro que uma
uma harmonia e a outra uma dissonncia? Diro eles que a alma boa, sendo por
natureza uma harmonia, possui ainda consigo uma outra harmonia dentro de si43,
enquanto que a outra, desprovida de harmonia, nada mais possui?
No sei dizer-te respondeu Smias. bem provvel que um
partidrio dessa opinio havia de dizer algo de parecido.
Mas ns concordamos disse Scrates em que uma alma no nem
mais nem menos alma do que outra alma; e o acordo era este: nada h de maior ou
mais numeroso, nem nada de mais fraco ou mais extenso numa harmonia do que
noutra, no foi?
Foi!
E que a harmonia, visto que nem mais nem menos harmonia, tambm
no pode ser nem mais nem menos harmonizada, no assim?
Sim.
Ora, a harmonia, no sendo nem mais nem menos harmonizada, pode
participar mais ou menos da harmonia, ou o faz sempre da mesma maneira?
Da mesma maneira, claro.
Ora, visto que uma alma no pode ser mais nem menos alma do que
outra, tambm no pode ser mais nem menos harmonizada?
Exatamente.
Portanto, no pode participar nem mais nem menos da desarmonia nem
da harmonia?
No.
Em conseqncia, uma alma pode participar mais da maldade ou da
virtude do que outra, considerando-se a maldade como desarmonia e a virtude
como harmonia?
Nunca!
Ou a razo nos leva, Smias, a dizer que a maldade no se encontra em
nenhuma alma se a alma uma harmonia, pois claro que a genuna harmonia
nunca poder participar da desarmonia?
43
Trecho difcil de traduzir. O que Plato quer dizer que h um acordo essencial e mais uma modalidade desse acordo. A virtude, por
exemplo, na opinio de Planto (cf. Repblica) um acordo das trs partes da alma, cada uma delas agindo na sua modalidade prpria. Cf.
Semelhana com as cordas alta, mdia e baixa da lira. Cf. Len Robin, Platon, ed. P.U.F. (N. do T.)
Nunca!
Nem, portanto, uma alma, sendo plenamente alma, participar da
maldade!
Como seria isso possvel, com efeito, diante de nossas premissas?
Se permanecermos de acordo com tua comparao e com o que dela se
infere, deveremos considerar todas as almas, de todos os seres vivos, como sendo
uniformemente boas, se as almas se formaram tal como so, isto , como almas!
Assim me parece, Scrates.
Achas tambm que isso assim estaria bem expresso e razovel, se fosse
certa a teoria segundo a qual a alma harmonia?
De modo algum!
Ademais volveu Scrates afirmars que o governo de todas as
coisas que se encontram no homem cabe a algo que no seja a alma e a inteligncia?
Eu no!
Crs que a alma que cede s paixes do corpo ou que ela as contraria?
Por exemplo: temos febre, temos sede, e a alma nos diz: "tu no bebers", temos
fome, e a alma nos diz: "tu no comers!", e em mil outros casos observamos que a
alma resiste s inclinaes do corpo, no verdade?
Absolutamente certo.
E no havamos, acaso, concordado antes em que a alma, sendo
harmonia, jamais poderia ressoar em desacordo com as tenses, relaxamentos,
movimentos e quaisquer outras modificaes dos elementos de que constituda,
mas que, pelo contrrio, deveria segui-los e nunca dirigi-los?
Realmente, concordamos nisso confirmou Smias e nem poderia
ser de outra forma.
E agora? A alma no nos parece fazer exatamente o contrrio disso?
Porventura no dirige ela tudo aquilo de que, segundo se pretende, constituda?
No ela que resiste e governa, como um senhor, todas as modalidades da vida, s
vezes rigorosamente e com dores, como na ginstica e na medicina, e s vezes com
menos rudeza, como uma pessoa que conversa com outra, ameaando-a e
advertindo-a contra cobias, cleras ou temores? mais ou menos assim, com
efeito, que Homero apresenta Ulisses na Odissia:
"Batendo no peito, apostrofou rudemente seu corao:
"Suporta, corao! Infelicidades, j as suportaste bem piores!"44
Crs que ele teria dito isso se houvesse considerado a alma como simples
harmonia, inteiramente sujeita s inclinaes do corpo, e no como algo que rege e
governa o corpo, em suma como uma coisa por demais divina para se comparar
harmonia?
Por Zeus! isso justamente o que penso, Scrates.
Logo, meu excelente amigo, no coisa assisada considerar a alma como
uma simples harmonia; pois, assim, no ficaramos de acordo nem com Homero,
divino poeta, nem conosco mesmos.
justamente isso concedeu Smias.

Resposta a Cebes

Muito bem continuou Scrates. Agora que a Harmonia tebana45 se


nos tornou de certo modo propcia, e do modo que lhe convm, isto , com
comedimento, ocupemo-nos de seu esposo Cadmo. Mas como, meu caro Cebes, e
com que provas, poderemos conciliar Cadmo?46
Creio que o sabers respondeu Cebes; a prova contra a harmonia,
tu a desenvolveste de modo admirvel e imprevisto. Quando Smias exps a
dificuldade que havia encontrado, fiquei assombrado e perguntei a mim mesmo se
algum seria capaz de movimentar um nico argumento contra ele. Por isso
admirei-me muito quando sua objeo no resistiu ao ataque de tua argumentao.

44
O autor recorre aqui a Homero, divino poeta, porque este dstico se encaixa perfeitamente na tese que vem desenvolvendo no dilogo; mas
em outras obras Plato o censura, deixando de lhe chamar divino e sem reconhec-lo como autoridade com a qual conveniente "estarmos de
acordo". (N. do T.)
45
Aluso fbula de Anfio, que construiu Tebas com a harmonia da sua lira. Smias tebano. (N. do T.)
46
Cadmo o esposo da mencionada deusa Harmonia. Cebes tebano como Smias, e ambos esto a discutir com Scrates. (N. do T.)
E pela mesma razo eu no me espantaria agora se o argumento de Cadmo viesse a
ter a mesma sorte.
Evita, meu caro disse Scrates , de falar assim com tanta confiana!
bem possvel que o mau olhado volte contra mim o argumento que desejo
apresentar agora!47 Enfim, de qualquer modo, isso ficar sob os cuidados da
Divindade! Ns, porm, nos aproximaremos um do outro moda homrica48 e
averiguaremos se disseste alguma coisa de importncia.
Ora, o essencial do que queres saber isto: desejas que se demonstre que
nossa alma indestrutvel e imortal; sem o que, para o filsofo que est prximo de
morrer, a confiana, a convico de ir encontrar no alm, depois da morte, uma
felicidade que jamais teria alcanado se vivesse doutra forma, essa confiana seria,
pensas, desarrazoada e tola. Mostrar que a alma forte e semelhante divindade, e
que existia antes de nos havermos tornado homens, pode ser prova, como dizes,
no de que a alma imortal, mas apenas de que ela dura muito, de que sua
existncia anterior preencheu um tempo incalculvel com uma multido enorme de
conhecimentos e de aes; o que, no entanto, no lhe confere imortalidade, pois o
prprio fato de vir localizar-se num corpo humano marca o incio de seu fim, e
uma espcie de doena; por isso, num estado de misria que deve viver essa
existncia, e, quando a termina por aquilo a que chamamos morte, deve ela ser
destruda. indiferente, como dizes, saber se ela se localiza em corpos uma s ou
muitas vezes; cada um de ns tem razo de recear por sua alma. Quem no tem
certeza, nem sabe provar que a alma imortal, deve temer a morte, se no for tolo.
E mais ou menos isto, caro Cebes, o que dizes? Repito-o propositadamente, para
que no olvidemos nada e para que acrescentes ou tires alguma coisa, se quiseres.
Ento Cebes Nada tenho, no momento, que acrescentar, nem que tirar.
aquilo justamente o que pretendo.

47
Aluso a uma superstio vulgar, para significar que quem ambicioso e deseja demais orgulhoso e no consegue nada perdendo s
vezes o que j tem. (N. do T.)
48
Homero na Ilada descreve numerosas vezes o modo cauteloso como dois inimigos se aproximam no combate para mutuamente se
atacarem: Scrates compara-se a um heri que luta contra outro. (N. do T.)
O Problema da Fsica

A esta altura fez Scrates uma longa pausa, absorto em alguma reflexo.
Depois disse No coisa sem importncia, Cebes, o que procuras. A causa da
gerao e da corrupo de todas as coisas, tal a questo que devemos examinar
com cuidado. Se o desejares, poderei relatar-te detalhadamente as minhas
experincias a esse respeito. E se vires que uma ou outra coisa do que eu disser
til aproveita-a para reforar tua tese.
Sim disse Cebes justamente o que eu quero.
Escuta, ento, o que vou contar: em minha mocidade senti-me
apaixonado por esse gnero de estudos a que do o nome de "exame da natureza":
parecia-me admirvel, com efeito, conhecer as causas de tudo, saber por que tudo
vem existncia, por que perece e por que existe. Muitas vezes detive-me
seriamente a examinar questes como esta: se, como alguns pretendem, os seres
vivos se originam de uma putrefao em que tomam parte o frio e o calor; se o
sangue que nos faz pensar, ou o ar, ou o fogo, ou quem sabe se nada disso, mas sim
o prprio crebro, que nos d as sensaes de ouvir, ver e cheirar, das quais
resultariam por sua vez a memria e a opinio, ao passo que destas, quando
adquirem estabilidade, nasceria o conhecimento49. Examinei, inversamente, a
maneira como tudo isso se corrompe, e, tambm, os fenmenos que se passam na
abbada celeste e na terra. E acabei por me convencer de que em face dessas
pesquisas eu era duma inaptido notvel! Vou contar-te uma ocorrncia que bem
esclarece minha situao naquele tempo. Havia coisas acerca das quais eu antes
possua um conhecimento certo, ao menos na minha opinio, e na dos outros. Pois
bem, essa espcie de estudo chegou a produzir em mim uma tal cegueira que
desaprendi at aquelas coisas que antes eu imaginava saber, como, por exemplo, o
conhecimento que eu julgava ter das causas que determinam o crescimento do
homem! Outrora eu acreditava, como claro para todos, que isso acontece em
49
Plato, quer dizer aqui que em sua mocidade se dedicou ao estudo de todas as teorias da filosofia naturalista pr-socrtica. No h dvida
de que ele coloca nos lbios de Scrates a histria de sua prpria evoluo intelectual. Cf. Burnet, Early Greek Philosophy (N.doT.)
virtude do comer e do beber: adicionando, pelos alimentos, carne a carne e ossos
aos ossos, e em geral substncia semelhante a substncia semelhante, acontece que
o volume, antes pequeno, aumenta, e assim, o homem pequeno se torna grande.
Desse modo pensava eu naquela poca. No achas tu que isso era razovel?
Pelo que me parece, sim respondeu Cebes.
Mas repara no seguinte: naquele tempo, eu tambm achava razovel
pensar que quando um homem grande visto ao lado dum pequeno, ele de uma
cabea50 maior do que o pequeno, e, da mesma forma, um cavalo maior do que
outro. E o que mais evidente: o nmero "dez" me parecia maior do que o nmero
"oito", precisamente por causa do acrscimo de "dois", e o tamanho de dois
cvados me parecia ser maior do que o de um cvado por este ser a metade
daquele.
E agora perguntou Cebes qual a tua opinio a esse respeito?
Por Zeus, atualmente estou muito longe de saber a causa de qualquer
dessas coisas! No sei resolver nem sequer se quando se adiciona uma unidade a
outra, a unidade qual foi acrescentada a primeira torna-se duas, ou se a
acrescentada e a outra que assim se tornam duas pelo ato de adio. Fico admirado!
Quando as duas unidades estavam separadas uma da outra, cada uma era uma, e
no havia dois; logo, porm, que se aproximaram uma da outra, esse encontro
tornou-se a causa da formao do dois. Tambm no entendo por que motivo,
quando algum divide uma unidade, esse ato de diviso faz com esta coisa que era
uma se transforme pela separao em duas! Essa coisa que produz duas unidades
contrria outra: antes, acrescentou-se uma coisa a outra agora, afasta-se e
separa-se uma de outra51. Nem sequer sei por que um um! Enfim, e para dizer
tudo, no sei absolutamente como qualquer coisa tem origem, desaparece ou existe,
segundo este procedimento metodolgico. Escolhi ento outro mtodo, pois, de
qualquer modo, este no me serve. Ora, certo dia ouvi algum que lia um livro de
Anaxgoras. Dizia este que "o esprito o ordenador e a causa de todas as coisas".

50
O tamanho da cabea usado aqui como medida. (N.doT.)
51
Crtica aos filsofos eleticos, que abusam s vezes da dialtica. (N.doT.)
Isso me causou alegria. Pareceu-me que havia, sob certo aspecto, vantagem em
considerar o esprito como causa universal. Se assim , pensei eu, a inteligncia ou
esprito deve ter ordenado tudo e tudo feito da melhor forma. Desse modo, se
algum desejar encontrar a causa de cada coisa, segundo a qual nasce, perece ou
existe, deve encontrar, a respeito, qual a melhor maneira seja de ela existir, seja de
sofrer ou produzir qualquer ao. E pareceu-me ainda que a nica coisa que o
homem deve procurar aquilo que melhor e mais perfeito, porque desde que ele
tenha encontrado isso, necessariamente ter encontrado o que o pior, visto que
so objetos da mesma cincia.
Pensando desta forma, exultei acreditando haver encontrado em Anaxgoras
o explicador da causa, inteligvel para mim, de tudo que existe. Esperava que ele iria
dizer-me, primeiro, se a terra plana ou redonda, e, depois de o ter dito, que
explicao acrescentasse a causa e a necessidade desse fato, mostrando-me ainda
assim como ela a melhor. Esperava tambm que ele, dizendo-me que a terra se
encontra no centro do universo, ajuntasse que, se assim , porque melhor para
ela estar no centro. Se me explicasse tudo isso, eu ficaria satisfeito e nem sequer
desejaria tomar conhecimento de outra espcie de causas. Naturalmente, a
propsito do sol eu estava pronto tambm a receber a mesma espcie de
explicao, e da mesma forma para a lua e os outros astros, assim como tambm a
respeito de suas velocidades relativas como de suas revolues e de outros
movimentos que lhes so prprios; Nunca supus que depois de ele haver dito que o
Esprito os havia ordenado, ele pudesse dar-me outra causa alm dessa que a
melhor e que a que serve a cada uma em particular assim como ao conjunto.
Grandes eram as minhas esperanas! Pus-me logo a ler, com muita ateno e
entusiasmo os seus livros. Lia o mais depressa que podia a fim de conhecer o que
era o melhor e o pior. Mas, meu grande amigo, bem depressa essa maravilhosa
esperana se afastava de mim! medida que avanava e ia estudando mais e mais,
notava que esse homem no fazia nenhum uso do esprito nem lhe atribua papel
algum como causa na ordem do universo, indo procurar tal causalidade no ter. no
ar, na gua em muitas outras coisas absurdas!52. Parecia-me que ele se portava como
um homem que dissesse que Scrates faz tudo o que faz porque age com seu
esprito; mas que, em seguida, ao tentar descobrir as causa de tudo o que fao,
dissesse que me acho sentado aqui porque meu corpo ; formado de ossos e
tendes, e os ossos so slidos e separados uns dos outros por articulaes, e os
tendes contraem e distendem os membros, e os msculos circundam os ossos
com as carnes, e a pele a tudo envolve! Articu-lando-se os ossos em suas
articulaes, e estendendo-se e contraindo-se, sou capaz de flexionar os meus
membros, e por esse motivo que estou sentado aqui, com os membros dobrados.
Tal homem diria coisas mais ou menos semelhantes a propsito de nossa conversa,
e assim que consideraria como causas dela a voz, o ar, o ouvido e muitas outras
coisas mas, em realidade, jamais diria quais so as verdadeiras causas disso tudo:
estou aqui porque os atenienses julgaram melhor condenar-me morte, e por isso
pareceu-me melhor ficar aqui, e mais justo aceitar a punio por eles decretada53.
Pelo Co54. Estou convencido de que estes tendes e estes ossos j poderiam h
muito tempo se encontrar perto de Mgara ou entre os Becios, para onde os teria
levado uma certa concepo do melhor, se no me tivesse parecido mais justo e
mais belo preferir fuga e evaso a aceitao, devida Cidade, da pena que ela me
prescreveu!
Dar o nome de causas a tais coisas55 seria ridculo. Que se diga que sem
ossos, sem msculos e outras coisas eu no poderia fazer o que me parece, isso
certo. Mas dizer que por causa disso que realizo as minhas aes e no pela
escolha que fao do melhor e com inteligncia essa uma afirmao absurda.
Isso importaria, nada mais nada menos, em no distinguir duas coisas bem

52
Foi discutido muitas vezes o problema de saber se Plato tinha razo ao descrever historicamente, desta forma, o pensamento de
Anaxgoras. Os mencionados livros de Anaxgoras s nos chegaram em reduzidos fragmentos. O que sabemos que aquele filsofo
reconhecia como princpio material, umas partculas mnimas de matria as homeomerias e ainda, como outro princpio o esprito
cuja funo para ns no ainda bem clara, e sobre a qual, alis, j havia dvidas na antigidade: alguns explicadores antigos viam nesse
esprito um deus, outros, um ordenador do mundo, e finalmente outros, como nosso autor e tambm Aristteles, uma simples primeira fora
motriz, isto , um princpio quase material ou mesmo material. Cf. J. Burnet, Early Greek Philosophy e Carl Joel, Geschichte der Antiken
Philosophie. (N. do T.)
53
Plato conta que Scrates, tendo uma oportunidade para fugir do crcere, no se aproveitou dela porque era sua convico que um cidado
deve obedecer sempre s leis e decretos do Estado, mesmo quando os concidados e autoridades legtimas so injustos. (N. do T.
54
Pelo Co: Scrates jura muitas vezes desta forma, certamente porque o co sempre foi considerado como smbolo da lealdade. (N. do T.)
55
Isto : as causas materiais. (N. do T.)
distintas, e em no ver que uma coisa a verdadeira causa e outra aquilo sem o que
a causa nunca seria causa. Todavia, a isso que aqueles que erram nas trevas,
segundo me parece, do o nome de causa, usando impropriamente o termo 56. O
resultado que um deles, tendo envolvido a terra num turbilho57, pretende que
seja o cu o que a mantm em equilbrio, ao passo que para outro ela no passa
duma espcie de gamela58, qual o ar serve de base e de suporte. Mas quanto
fora, que a disps para que essa fosse a melhor posio, essa fora, ningum a
procura; e nem pensam que ela deva ser uma potncia divina. Acreditam, ao
contrrio, haver descoberto um Atlas59 mais forte, mais imortal e mais garantidor
da existncia do universo do que esse esprito; recusam-se a aceitar que
efetivamente o bom e o conveniente formem e conservem todas as coisas.
Ardentemente desejaria eu encontrar algum que me ensinasse o que tal causa!
No me foi possvel, porm, adquirir esse conhecimento ento, pois nem eu
mesmo o encontrei, nem o recebi de pessoa alguma. Mas quererias, estimado
Cebes, que descrevesse a segunda excurso que realizei em busca dessa causalidade?
impossvel que algum o deseje mais do que eu respondeu Cebes.

A Idia

Ento prosseguiu Scrates minha esperana de chegar a conhecer


os seres comeava a esvair-se. Pareceu que deveria acautelar-me, a fim de no vir a
ter a mesma sorte daqueles que observam e estudam um eclipse do sol. Algumas

56
Esta frase exprime desprezo pela filosofia naturalista: "os demais" poderia ser entendido aqui como indicando apenas a opinio vulgar,
mas o que o autor posteriormente atribui aos 'demais" so os sistemas filosficos naturalistas. Plato, como quase sempre quando fala nas
teorias naturalistas, acha que no vale a pena citar os nomes de seus autores, contentando-se com dizer "uns", "alguns" e "outros".(N. do T.)
57
A palavra dne (turbilho) tcnica no sistema de Demcrito e Leucipo. Para estes naturalistas gregos, o princpio de todas as coisas so
os tomos, corpos minsculos e indivisveis (donde tomos, em grego), eternos e invisveis; esses tomos esto a cair no vcuo; os mais
pesados caem mais depressa, pelo que se apartam dos demais. Do, assim, encontres uns nos outros, com a conseqente formao de
turbilhes, produtores de complexos de tomos, que nada mais so do que os objetos existentes. Esses turbilhes jamais terminam, e
continuamente os tomos esto a separar-se e a reunir-se; a isto que damos o nome de gerao e corrupo. A terra existe e permanece em
seu lugar, porque continuamente est a receber e a perder tomos; e o mesmo vale para os demais corpos. Logo, quando um corpo no recebe
novos tomos em troca dos que vai perdendo, d-se sua destruio. Plato se refere aqui ao turbilho do cu para meter a ridculo esta teoria,
que mais tarde iria ter grande importncia nas cincias naturais. (N. do T.)
58
uma ironia contra Anaxmenes, mas indicadora das doutrinas deste filsofo. Conforme ele, o princpio de todas as coisas o ar: tudo se
forma do ar, volta ao ar, e o prprio ar tambm o sustentculo da terra, a qual tem a forma de um tamborim. O termo propriamente
empregado por Plato o de "gamela", com o que exprime seu desprezo deste sistema.
59
Atlas: figura da lenda grega; um gigante que trazia sobre os ombros a abbada celeste. (N. do T.)
pessoas que assim fazem estragam os olhos por no tomarem a precauo de
observar a imagem do sol refletida na gua ou em matria semelhante. Lembrei-me
disso e receei que minha alma viesse a ficar completamente cega se eu continuasse a
olhar com os olhos para os objetos e tentasse compreend-los atravs de cada um
de meus sentidos. Refleti que devia buscar refgio nas idias e procurar nelas a
verdade das coisas. possvel, todavia, que esta comparao no seja perfeitamente
exata, pois nem eu mesmo aceito sem reservas que a observao ideal dos objetos
que uma observao por imagens seja melhor do que aquela que deriva de
uma experincia dos fenmenos60. Entretanto, ser sempre para o lado daquela que
me inclinarei. Assim, depois de haver tomado como base, em cada caso, a idia, que
, a meu juzo, a mais slida, tudo aquilo que lhe seja consoante eu o considero
como sendo verdadeiro, quer se trate de uma causa ou de outra qualquer coisa, e
aquilo que no lhe consoante, eu o rejeito como erro. Vou, porm, explicar com
mais clareza o que estou a dizer, pois me parece que no o compreendeste bem.
Por Zeus, com efeito, que no o entendo bem! confirmou Cebes.
Quero dizer o seguinte volveu Scrates e no estou a enunciar
nenhuma novidade, mas apenas a repetir o que, em outras ocasies como na
pesquisa passada, tenho me fatigado de dizer61. Tentarei mostrar-te a espcie de
causa que descobri. Volto a uma teoria que j muitas vezes discuti e por ela
comeo: suponho que h um belo, um bom, e um grande em si, e do mesmo modo
as demais coisas. Se concordas comigo tambm admites que isso existe, tenho
muita esperana de, por esse modo, explicar-te a causa mencionada e chegar a
provar que a alma imortal.
Naturalmente admito que isso existe confirmou Cebes; e, agora,
faze depressa o que dizes.
Examina, pois, com cuidado, se ests de acordo, como eu, com o que se
deduz dessa teoria! Para mim evidente: quando, alm do belo em si, existe um
outro belo, este belo porque participa daquele apenas por isso e por nenhuma
60
o sensualista que observa mais em "imagens", pois os objetos materiais no passam de imitaes imperfeitas das idias eternas. (N. do
T.)
61
Aluso ao Fedro e ao Banquete, que j apresentaram a doutrina das idias: (N. do T.)
outra causa. O mesmo afirmo a propsito de tudo mais. Reconheces isto como
causa?
Reconheo.
Logo prosseguiu Scrates no compreendo nem posso admitir
aquelas outras causas cientficas. Se algum me diz por que razo um objeto belo,
e afirma que porque tem cor ou forma, ou devido a qualquer coisa desse gnero
afasto-me sem discutir, pois todos esses argumentos me causam unicamente
perturbao. Quanto a mim, estou firmemente convencido, de um modo simples e
natural, e talvez at ingnuo, que o que faz belo um objeto a existncia daquele
belo em si, de qualquer modo que se faa a sua comunicao com este. O modo
por que essa participao se efetua, no o examino neste momento; afirmo,
apenas62, que tudo o que belo belo em virtude do Belo em si. Acho que
muitssimo acertado, para mim e para os demais, resolver assim o problema, e creio
no errar adotando esta convico. Por isso digo convicta-mente, a mim mesmo e
aos demais, que o que belo belo por meio do Belo. Acaso no esta tambm a
tua opinio?
.
E o que grande grande por meio da Grandeza; e o que maior pelo
Maior; e o que menor Menor por meio da Pequenez?
Indubitavelmente.
Em conseqncia, jamais estarias de acordo com quem te viesse dizer que
um maior do que outro pela cabea, e que o menor menor pelo mesmo motivo;
mas continuadas firmemente a afirmar que tudo aquilo que maior do que outro,
no o por nenhuma outra causa seno pela Grandeza; e que o que menor, no o
por nenhuma outra causa seno pela Pequenez. Pois acho que terias medo de cair
em contradio se dissesses que uma coisa maior ou menor pela cabea:
primeiro, porque nesse caso o maior seria maior e o menor seria menor, ambos em
virtude da mesma coisa; segundo, porque o maior seria maior pela cabea que

62
Cf. Parmnides. (N. do T.)
pequena! Seria, com efeito, prodigioso que algum fosse grande em virtude de uma
coisa pequena! Acaso essa tolice te assusta?
Eu? Claro que sim! Cebes riu e disse.
E no temerias igualmente dizer continuou Scrates que o dez
maior do que o oito porque o ultrapassa de dois e considerar isso como causa, ao
invs de dizer que pela quantidade e por causa da quantidade? E serias capaz de
dizer, da mesma forma, que um objeto do tamanho de dois cvados maior do que
outro de um cvado pela metade, em lugar de dizer que pela grandeza? Pois, sem
dvida, isso no menos estapafrdio!
Efetivamente.
No te envergonharias de dizer que, acrescentando-se a unidade
unidade, esse acrscimo, e dividindo-se a unidade, essa separao, so ambos causas
da formao do dois? No protestarias aos gritos que no compreendes como cada
coisa se possa formar por outro modo que no seja pela participao na prpria
substncia em que essa coisa toma parte? No dirias, neste caso, que no encontras
outra causa de formar-se o dois a no ser a participao na idia do dois, e que deve
participar dela o que vem a tornar-se dois, e tambm que deve participar da idia de
unidade o que se torna unidade? E, em conseqncia, no haverias de pr de lado
essas tais separaes e acrscimos e demais artimanhas do mesmo gnero, deixando
a discusso de tais coisas a homens que so mais sbios do que tu? Mas o medo que
tens, como se costuma dizer, da tua prpria sombra63, o receio da tua ignorncia e o
teu apego segurana que encontraste ao tomar por base a tese em questo
tudo isso te inspiraria uma resposta semelhante. E se algum se apresentasse
censurando essa tese, porventura no o deixadas em paz e sem resposta, at o
momento em que houvesses examinado as conseqncias dela extradas e
verificado se ela concorda consigo mesma ou se contradiz? E depois, quando viesse
a ocasio de dar as razes desta tese em si mesma, no o farias da mesma forma,
tomando desta vez por base uma outra tese, aquela em que encontrasses maior

63
Temer a prpria sombra: expresso proverbial que exprime o cmulo do medo.(N. do T.)
valor, at atingires um resultado satisfatrio? E no claro que tu, desejando uma
doutrina do ser verdadeiro, te absterias de tagarelices e mais discusses a propsito
do princpio e das suas conseqncias, assim como fazem os que polemizam
profissionalmente? Nada daquilo, com efeito, figura nas pesquisas e preocupaes
de tais homens: do-se por superiormente satisfeitos com a sabedoria que possuem,
embora confundam tudo64.
Tu, porm, se na verdade s filsofo, tenho a certeza de que fars o que
digo!
O que dizes a pura verdade responderam ao mesmo tempo Smias e
Cebes.
EQUCRATES:
Por Zeus, caro Fdon, e com toda a razo! Quanto a mim, parece-me que
Scrates explicou tudo com maravilhosa clareza, mesmo para quem tenha pouca
inteligncia!
FDON:
Nada mais certo, Equcrates! E tal foi tambm a opinio de todos os que
l estavam presentes.
EQUCRATES:
E tambm a nossa, dos que l no estivemos, mas que ouvimos agora o
teu relato! Dize-me, porm: como prosseguiu a conversa?65

O Problema dos Contrrios e as Idias

FDON:
Se no me engano, depois de haverem concordado com ele nesse ponto e
admitido a existncia real de cada uma das idias, e igualmente que os demais

64
Golpe violento contra naturalistas e sofistas: estes desejam apenas discutir por discutir, sem cogitar de obter a verdade; aqueles podem ter
uma convico pessoal da veracidade de suas teorias, mas seus mtodos so to deficientes que no conseguem oferecer mais do que fracas
tolices, no merecendo por isso o nome de filsofos. (N. do T.)
65
Plato torna a lembrar ao leitor que Fdon est contando em Flius, a Equcrates e a uma roda de flisios, as discusses havidas no ltimo
dia de Scrates. (N. do T.)
objetos, que delas participam, delas tambm recebem as suas denominaes,
Scrates perguntou o seguinte:
Se disseres que Smias maior do que Scrates, mas menor do que
Fdon, no ters dito, acaso, que em Smias se encontram essas duas coisas:
grandeza e pequenez?
Sim.
Mas, na realidade no ? reconheces que nesta frase: "Smias
maior do que Scrates", o modo por que a linguagem se exprime no corresponde
verdade e que indubitavelmente no pertence natureza de Smias o ser maior,
pelo simples fato de ser Smias, mas sim pela grandeza, na medida em que a possui,
e tampouco se pode dizer que seja maior do que Scrates porque Scrates
Scrates, mas unicamente porque Scrates
participa da pequenez, em relao grandeza dele?
Efetivamente assim .
E, da mesma forma, tambm Fdon no o ultrapassa pelo simples fato de
ser Fdon, mas sim porque Fdon possui grandeza em comparao com a
pequenez de Smias?
De fato.
Ora, temos que Smias chamado pequeno e( tambm grande; est entre
os dois: submete sua pequenez grandeza de um, para que este o ultrapasse,
enquanto que o outro apresenta uma grandeza que ultrapassa sua pequenez.
Ento, sorrindo: "Parece prosseguiu que estou a redigir um contrato.
Entretanto acho que as coisas esto certas assim como as digo".Cebes aquiesceu.
Digo isto, porque desejo que tenhas a mesma opinio que eu. Pois,
quanto a mim, parece-me claro isto: a grandeza em si jamais consente em ser
simultaneamente grande e pequena. Da mesma forma procede a grandeza, nunca
admitindo a pequenez nem desejando ser ultrapassada, mas optando por uma
destas alternativas: ou se retira e foge quando o seu contrrio, a pequenez, se
aproxima ou, ento, cessa de existir quando aquela avana. O que admite e
aceita a pequenez jamais deseja ser outra coisa seno o que . Eu, por exemplo,
havendo admitido e aceitado a pequenez, continuo a ser o que sou, pequeno; mas a
grandeza em si no suportou ser grande e ao mesmo tempo pequena; e, da mesma
forma, a nossa pequenez jamais deseja tornar-se ou ser grande; alis, nenhuma
outra coisa deseja, enquanto existe, tornar-se ou ser o seu contrrio, mas se retira
ou se destri quando isso acontece.
Com tudo isso estou, eu tambm, de acordo declarou Cebes.
Mas, nesse momento, um dos que estavam presentes (no me recordo bem
quem foi) ao ouvir isso tomou a palavra:
Mas, pelos deuses! No se afirmou j, nesta discusso, justamente o
contrrio do que acaba de ser dito agora? Acaso no foi dito que o maior se
desenvolve do menor e o menor do maior, e que realmente constitui a gerao para
os contrrios, provir dos contrrios? O que se diz agora, pelo que vejo, que
jamais isso acontece!
Scrates volveu a cabea para o lugar de onde vinha a voz, escutou e depois
disse:
s um bravo por nos haveres recordado isso! Entretanto, no refletiste
na diferena que h entre o que se diz agora e o que se disse antes. No incio de
nossa palestra foi afirmado que uma coisa se forma da coisa contrria; mas, neste
momento, o que se diz que
o contrrio em si no se forma de seu contrrio, tanto em ns mesmos como
em sua prpria natureza. Antes, meu amigo, falvamos de coisas que possuem
qualidades contrrias, e ento as classificamos de acordo com estas. Agora, porm,
estamos a falar daqueles prprios contrrios que esto dentro de uma coisa e lhe
do o nome, e no dissemos que esses contrrios possam ter sua origem na coisa
contrria.
Ao mesmo tempo, olhou para Cebes e perguntou:
Acaso alguma coisa do que este disse, caro Cebes, causou-te perturbao?
Cebes respondeu: Oh, no ! absolutamente. Mas confesso que muitas
coisas me preocupam.
Responde-me, ento, simplesmente, se estamos de acordo em que um
contrrio nunca poder ser o seu contrrio?
Estamos completamente de acordo.
Vejamos, pois, se concordars tambm com o que vou dizer. H uma
coisa a que chamas quente e outra a que chamas frio?
H.
So elas as mesmas coisas a que chamas neve e fogo?
Por Zeus que no!
Quer dizer, ento, que o calor uma coisa e o fogo, outra; e que o frio
uma coisa e a neve, outra?
Evidentemente.
Por certo h de ser tambm tua opinio que a neve jamais aceita o calor,
conforme antes dissemos, nem continuar a ser o que foi quando o calor se
aproximar: ou fugir dele, ou deixar de existir; no assim?
Efetivamente.
E o fogo, por sua vez, ao aproximar-se o frio, retirar-se- ou deixar de
existir, mas nunca se resolver a aceitar o frio e continuar ao mesmo tempo a ser o
que era, fogo e frio.
Tens razo.
Poder acontecer, pois, continuou Scrates, que em outros exemplos
anlogos as coisas sucedam de tal sorte, que no somente a forma em si mesma
tenha direito a seu prprio nome por um tempo eterno, mas que haja ainda a outra
coisa que, embora no sendo a forma propriamente dita, possua todavia o carter
desta, e isto em virtude da eternidade de sua existncia.66 Todavia, possvel que
minhas palavras se tornem mais claras com o seguinte: o mpar, por exemplo, deve
ser chamado sempre por este nome com que o denominamos agora, ou no?

66
O fogo, por exemplo, se forma pela participao na idia eterna de fogo, mas o calor atributo especial do fogo; logo, a idia de calor
tambm se encontra dentro do fogo. (N. do T.)
Claro que sim!
Agora, pergunto-te: isto vale s para o mpar, ou acaso poder aplicar-se
tambm a outra coisa que no o mesmo que o mpar em si, mas que apesar disso
deve ser chamada pelo seu nome, porquanto por sua natureza de tal modo que
jamais pode abandonar o mpar? Refiro-me, por exemplo, a uma coisa como o
"trs", e muitas outras semelhantes. Reflete sobre o trs: no achas que ele deve ser
chamado sempre pelo seu prprio nome e tambm pelo nome de mpar que
todavia, no a mesma coisa que o trs? Da mesma maneira, o trs, o cinco e a
metade dos nmeros, por sua natureza, so tais que cada um deles, embora no seja
o mpar, sempre mpar67. E o mesmo com o contrrio: o dois, o quatro e a outra
metade inteira dos nmeros no so a mesma coisa que o par, mas cada um sempre
par. Concordas comigo, ou no?
Como no concordar?
Pois bem, repara agora atentamente no que desejo explicar. No s tais
conceitos excluem os seus contrrios, mas o mesmo fazem estes objetos que, sem
ser contrrios, possuem o contrrio; com efeito, eles no admitem a idia, contrria
que os informa, mas, ao aproximar-se esse contrrio, ou fogem ou cessam de
existir. Ou acaso no devemos dizer que o trs se destruiria ou sofreria qualquer
coisa de preferncia a tornar-se par?
Isso absolutamente certo.
Mas o trs no contrrio do dois?
No, seguramente.
Portanto, no so s as idias que no permitem a aproximao de seus
contrrios, mas certas outras coisas, por sua vez, no consentem tambm que eles
se aproximem.
O que dizes a pura verdade- tornou Cebes.

67
O nmero trs participa da idia eterna de trs; o nmero cinco, da idia de cinco mas ambos, assim como muitos outros nmeros, "a
metade da srie numrica", participam tambm da idia de imparidade, ou de mpar, que essencial a esses nmeros. O nmero trs como tal
no o contrrio do nmero dois; mas a imparidade o contrrio da paridade, e por isso o trs nunca aceita a paridade, nem o dois a
imparidade. (N. do T.)
Queres ento prosseguiu Scrates que determinemos, se pudermos,
de que natureza so essas coisas?
Desejo-o muitssimo.
No sero, caro Cebes, essas coisas cuja existncia as obriga a conter em
si no s sua prpria idia, mas tambm, e sempre, a idia contrria a uma certa
coisa?
No compreendo o que dizes.
Quero dizer o que disse h pouco: sabes, com efeito, que o que contm a
idia do trs necessariamente no s trs, mas tambm a idia de mpar.
Sim.
E que dele jamais se aproximar a idia de par?
.
Ento a idia de par jamais se aproximar do trs?
Efetivamente, jamais se aproximar.
Em conseqncia, o trs no participa da idia de par?
Nunca, com efeito.
Com isso, ento, diremos que o trs mpar?
Necessariamente.
Desta forma, pois, que se determina, como disse, a natureza das coisas,
que, sem serem contrrias, no admitem a presena de seu contrrio: o trs, por
exemplo, sem ser contrrio ao par, nunca aceita, e no o aceita porque sempre
tem includo em si o contrrio do par; e do mesmo modo o dois inclui o contrrio
do mpar, o fogo o do frio, e assim em muitssimos outros exemplos. Pensa agora e
dize-me se no concluirias assim: no somente o contrrio que no recebe em si o
seu contrrio, mas o mesmo acontece tambm a coisas que, sem serem
mutuamente contrrias umas s outras, possuem sempre em si os contrrios, e as
quais verossimilmente no recebero jamais uma qualidade que seja o contrrio da
que nelas existe. Volta, alis, s tuas lembranas (no h mal que se repitam as
mesmas coisas!): O cinco no receber em si a natureza do par; nem o dez, que lhe
o dobro, a do mpar. Este dez, como tal, no contrrio ao outro, mas apesar
disso no receber a idia do mpar. o mesmo o que acontece com o um e meio e
com os outros nmeros que comportam o "meio", em face da natureza do inteiro;
e o mesmo, tambm, com o tero e as demais fraes dessa espcie. Suponho que
ests a acompanhar-me e a participar da minha opinio?
Participo com todas as minhas foras disse Cebes e te acompanho.
Agora disse Scrates recorda-te de nosso ponto de partida e fala,
sem empregar, para responder, as prprias palavras de minha pergunta, mas
tomando-me por modelo. Explico-me: ao lado da resposta de que eu em primeiro
lugar falava, a resposta certa a que me referia, vejo, luz do que agora dissemos,
uma outra certeza. Podes perguntar-me: que. que entrando num corpo o faz
quente? No te darei aquela resposta certa, mas simples, que o calor, mas
responder-te-ei com uma mais hbil, dizendo que o fogo. Perguntas: que que,
entrando num corpo, o torna doente? No direi que a doena, mas a febre. Da
mesma forma, no irei declarar que um nmero se torna mpar devido
imparidade, mas sim devido unidade, e assim por diante. Examina, entretanto, se
compreendeste bem o que quero dizer!
Compreendi suficientemente respondeu Cebes.
Ento responde-me, se puderes: qual a coisa que, entrando num corpo,
o torna vivo?
A alma.
Mas sempre assim?
Como no?
Portanto a alma, empolgando uma coisa, sempre traz vida para essa coisa?
Sempre traz vida!
Existe um contrrio da vida, ou no?
Existe.
Qual ?
A morte.
No verdade que a alma jamais aceitar o contrrio do que ela sempre
traz consigo?
Decididamente!
Ora pois; como chamvamos h pouco ao que no aceita a idia do par?
mpar.
E ao que no aceita o justo e ao que no admite o harmnico?
Inarmnico respondeu Cebes - e injusto.
Bem; e ao que no admite a morte como chamaremos?
Imortal.
A alma no admite a morte, pois no ?
.
Logo, a alma imortal?
imortal!
E, ento, afirmaremos ou no que isso est provado? Que achas?
Parece-me que est suficientemente provado, caro Scrates!
Por conseguinte, meu caro Cebes, se o mpar fosse necessariamente
indestrutvel, o trs poderia ser outra coisa, seno indestrutvel?
Claro que no !
Se o que no contm o calor em si fosse necessariamente indestrutvel, e
dado que algum aproximasse calor neve, a neve no haveria de retirar-se
conservando sua essncia e sem se fundir? Pois ela no poderia ser destruda, nem,
se subsistisse, aceitaria o calor.
verdade!
E, da mesma forma, se o que no possui o frio fosse indestrutvel, o fogo,
ao aproximar-se o frio, no seria extinto nem destrudo, mas, fugindo depressa,
continuaria a subsistir.
Necessariamente.
E no podemos falar do mesmo modo a propsito do que imortal?
Assim, pois, se tambm o imortal indestrutvel, a alma no pode ser destruda
quando a morte se aproxima. Em conseqncia do que dissemos, a alma nem
aceitar a morte, nem ficar morta, da mesma forma como de conformidade
com as nossas precedentes explanaes nem o trs ser par, nem o mpar ser
par, nem o fogo ser frio, nem o calor no fogo ser frio, e assim por diante.
Todavia, algum nos poderia dizer: bem, o mpar pela aproximao do par no se
torna par, mas que impede que depois da destruio do mpar se forme o par? A tal
linguagem, no poderamos replicar que o mpar no cessa de existir: pois o mpar
no indestrutvel. Se isso fosse provado poderamos responder que, ao
aproximar-se o par, o mpar e o trs fogem depressa. E o mesmo poderamos dizer
a propsito do fogo, do calor e das demais coisas. Ou porventura no?
Poderamos, sim.
Portanto, se a propsito do que imortal est provado que tambm
indestrutvel, segue-se que a alma no s imortal, mas tambm indestrutvel. Se
no, precisamos ir em busca doutra prova.
Mas no necessrio buscar outra prova! Se o que imortal, quer dizer, o
que eterno, aceitasse a destruio, no poderia haver nenhuma outra coisa que
deixasse de admiti-la!68
Creio, por conseguinte continuou Scrates , que todos esto de
acordo em que Deus e a prpria idia da vida, e o mais que de imortal existe, nunca
desaparecem?
Evidentemente, por Zeus! exclamou Cebes. Todos os homens, e
mais ainda os deuses, segundo penso, concordam nisso!
Por conseguinte, o que imortal tambm indestrutvel; e a alma, sendo
imortal, no deve ser tambm indestrutvel?
Necessariamente!

68
A neve portadora do frio; logo, aproximando-se o calor, a neve se deve retirar ou cessar de ser neve; mas naturalmente a neve nem
sempre pode escapar do calor, e por isso se destri sob a sua influncia, deixando de ser neve. Isto tambm verdadeiro de todas as coisas
que so portadoras de certas idias cujo contrrio no podem aceitar. Esses corpos podem ser destrudos pelo seu contrrio, mas a alma,
como portadora da vida, faz exceo: o conceito da imortalidade exclui a destruio. Logo, a nica coisa que a alma sofre retirar-se quando
a morte se aproxima. (N. do T.)
Logo, quando a morte sobrevm ao homem, a sua parte mortal
naturalmente morre mas a parte imortal foge, rpida, subsistindo sem se
destruir, escapando morte.
Evidentemente!
Portanto, meu caro Cebes, a alma antes de tudo uma coisa imortal e
indestrutvel, e nossas almas de fato ho de persistir no Hades!
Quanto a mim disse Cebes no tenho, caro Scrates, - depois disso
nada mais a ajuntar, nem nada a apresentar contra a tua demonstrao. Se h,
todavia, alguma coisa que Smias aqui presente, ou algum mais, tenham a dizer,
ser bom que no silenciem. Pois haver outra ocasio, alm desta, para a qual
possa adiar o desejo de falar ou de ouvir falar sobre tais questes?69
Tampouco eu confessou Smias jamais poderia duvidar, aps essas
demonstraes mas, apesar disso, devido magnitude da matria tratada e por
desconfiana em face da fraca natureza humana, acho necessrio no confiar na
discusso.
Nem s isso, caro Smias exclamou Scrates. A justeza de tuas
palavras se estende tambm s premissas: por mais certas que vos paream ser, no
deixam por isso de exigir um exame mais profundo70. Sim, com a condio de que
as examineis com toda a preciso requerida, a marcha do raciocnio ser seguida
por vs, se no me engano, com a maior proficincia de que o homem capaz! E
suponhamos, enfim, que isso se tenha revelado a vs como certo e evidente
ento, no precisareis procurar mais nada!
verdade assentiu Cebes.

69
Scrates tem poucas horas de vida, e quem quiser algum esclarecimento a propsito da imortalidade da alma deve aproveitar esta ocasio;
dentro em breve o mestre no mais estar com eles. (N. do T.)
70
Este ltimo dilogo entre Scrates e Smias no expresso de ceticismo, como se poderia pensar, mas leal reconhecimento da dificuldade
da matria em tratamento: o discpulo de Scrates, isto , de Plato, deve sempre revisar estas argumentaes difceis, para compreend-las
sempre de modo mais perfeito. Esta filosofia, portanto, no divertimento, nem pode ser compreendida rapidamente. Exige reflexo. (N. do
T.)
Mito do Destino das Almas

H, entretanto volveu Scrates , pelo menos uma coisa sobre a qual


seria justo que vs sim, vs todos ainda refletsseis: se verdadeiramente a
alma imortal, cumpre que zelemos por ela, no s durante o tempo atual, isso a
que chamamos viver, mas tambm pela totalidade do tempo; pois seria um grande
perigo no se preocupar com ela. Admitamos que a morte nada mais seja do que
uma total dissoluo de tudo. Que admirvel sorte no estaria reservada ento para
os maus, que se veriam nesse momento libertos de seu corpo, de sua alma e da
prpria maldade! Mas, em realidade, uma vez evidenciado que a alma imortal, no
existir para ela nenhuma fuga possvel a seus males, nenhuma salvao, a no ser
tornando-se melhor e mais sbia. A alma, com efeito, nada mais tem consigo,
quando chega ao Hades, do que sua formao moral e seu regime de vida o que
alis, segundo a tradio, justamente o que mais vale ou prejudica ao morto, desde
o incio da viagem que o conduz ao alm. Assim, dizem que o mesmo gnio que
acompanha cada um de ns durante sua vida , tambm, quem conduz cada morto
a um determinado lugar. Ento, os que l se encontram reunidos so submetidos a
um julgamento e, imposta a sentena, so levados ao Hades, conduzidos por um
guia a quem foi dada a ordem de lev-los para l. Depois de haverem recebido o
que mereciam e de terem l permanecido durante o tempo conveniente, outro guia
os reconduz para c, atravs de muitos e demorados perodos de tempo. O que
quer dizer, portanto, que o caminho no tal como o pretende o Tlefo de
Esquilo71: este, com efeito, diz que simples o caminho que conduz ao Hades; a
mim, todavia, quer me parecer que ele no nem simples, nem um s: pois, se
houvesse uma s estrada para ir ao Hades, no era necessria a existncia de guias,
j que ningum poderia errar a direo. Mas evidente que esse caminho contm

71
Tlefo o heri de uma tragdia do mesmo nome, escrita pelo grande trgico grego Esquilo, e sobre a qual temos apenas umas poucas
notcias dos historiadores antigos. (N. do T.)
muitas encruzilhadas e voltas: e prova disso so os cultos e costumes religiosos que
temos72.
"Desta maneira, pois, a alma ordenada e sbia acompanha obedientemente
ao guia, pois bem conhece a situao. Mas a alma que se agarra avidamente ao
corpo coisa que antes expliquei permanece por muito tempo ainda
adejando ao redor do cadver e dos monumentos funerrios, oferece resistncia e
sofre, e s se deixa levar pelo gnio sob violncia e exigindo grandes esforos. Mas
quando essa alma, afinal, chega ao lugar em que j se encontram as outras almas,
cada uma destas imediatamente se afasta e a evita, pois sabem que ela praticou uma
das negras aes seguintes: ou matou injustamente algum, ou praticou qualquer
crime desse gnero, ou qualquer obra que seja prpria dessa espcie de almas. Por
isso, ningum deseja ter sua amizade e ser seu companheiro, nem servir-lhe de guia.
Assim, essa alma erra desnorteada daqui para l, em ignorncia absoluta, durante
certo tempo, e em virtude de uma necessidade fatal levada a uma residncia que
lhe conveniente. Inversamente, a alma cuja vida na terra foi pura e sbia l
encontra, por companheiros e guias, os prprios deuses, e sua residncia ser, da
mesma forma, a que lhe adequada.
"Ora, a terra possui grande nmero de regies maravilhosas, e nem pela sua
constituio nem pela sua grandeza, ela no o que admitem as pessoas que tm o
costume de falar sobre ela, conforme a convico que algum me transmitiu73."
Mas que queres dizer, Scrates?
perguntou Smias. J tenho ouvido dizer muitas coisas a propsito da
terra, mas, confesso, nenhuma parecida com a de que falas. Teria, pois, muito
prazer em te ouvir a esse respeito.

72
Cf. Decharme, op. cit. Veja tambm Pe. Fes-tugire, "La Religion de Platon dans 1'Epino-nus" in Bulletin de Ia Socit Franaise de
Philosophie, n. 1-2 (1948). A religio grega no conhecia dogmas estabelecidos por uma igreja autoritria. Por esta razo, as opinies sobre a
outra vida divergiram de acordo com as diferentes pocas e regies. Entretanto, sempre e em toda parte houve um culto aos mortos e
conjuraes dirigidas a estes, assumindo aspectos diferentes conforme o que a respeito deles se imaginava. (N. do T.)
73
Plato apresenta a exposio de uma fantstica teoria cosmogrfica, na qual no se mostra de acordo com nenhuma das
teorias naturalistas que haviam sido elaboradas at ento. (N. do T)
Pois bem, meu caro Smias. Todavia, para explicar como isso ,
evidentemente no necessitamos da arte de Glauco74. Provar, porm, que isso de fato
assim , eis uma tarefa que de muito ultrapassa a arte de Glauco.
Eu talvez no seja capaz de demonstr-lo, e, mesmo que fosse, parece-me
que ainda assim a minha prpria vida, caro Smias, no seria suficiente para faz-lo,
tendo em vista a extenso do assunto. Quanto a explicar-vos, entretanto, as minhas
opinies a respeito da terra e de suas regies, nada me impede de faz-lo.
Nada mais queremos! exclamou Smias.
Pois bem continuou Scrates. Em primeiro lugar, estou
convencido de que a terra, sendo redonda e estando colocada no centro da abbada
celeste, no precisa nem do ar nem de qualquer outra matria para no cair. Ao
contrrio, a uniformidade existente em cada parte do cu, dum lado, e, de outro, o
prprio equilbrio da terra so suficientes para sustent-la. Assim, pois, um objeto
que se mantm em equilbrio no centro de um continente uniforme no tem
motivo nenhum para inclinar-se mais para l ou mais para c e mantm-se
efetivamente em sua posio, sem descair para os lados. Aqui tendes o primeiro
ponto de que me convenceram75.
E essa teoria me parece efetivamente muito certa concordou Smias.
Aquilo de que me convenci em segundo lugar prosseguiu Scrates
que a terra muito grande e que ns moramos apenas numa pequena parte dela
naquela que do Fsis s colunas de Hrcules76, ao redor do mar77, assim como

74
Glauco: nome de alguns personagens da lenda grega, que realizaram obras dificlimas. A expresso "obra de Glauco" serve para designar
uma realizao rdua e complicadssima. (N. do T.)
75
Combinao das teorias de Anaximandro de Mileto e dos filsofos do sul da Itlia, em primeiro plano dos pitagricos. Anaximandro,
como todos os filsofos pr-socrticos da Jnia, tem a terra como um corpo de forma cilndrica, numa de cujas bases ns, os homens,
estamos estabelecidos. Anaximandro o primeiro a negar que a terra para se manter no espao necessite de um sustentculo. Deste modo, foi
levado por primeira vez a reconhecer a lei da gravitao universal, declarando que cair significa apenas mover-se em direo ao centro do
universo, e Como a terra se encontra (para ele) no centro do universo, no cai e, portanto, no necessita que a sustentem. Os filsofos
pitagricos, por sua vez, concluram que a terra e o universo inteiro so esfricos, porque viam na esfera o corpo mais perfeito. Plato
combina ambas opinies: a terra uma esfera que se acha colocada no centro do universo e ao redor dela gravita a abbada celeste, que
uma esfera oca e cujo centro se confunde com o centro da prpria terra. Cf. Fedro e veja ainda L. Robin, La Science Grecque, A. Reymond,
Histoire des Sciences Exactes et Naturelles dam 1'Antiquit Greco-Romaine. (N. do T.)
76
Fsis e Colunas de Hrcules, na linguagem geogrfica tradicional, indicavam o extremo leste e o extremo oeste da terra conhecida at
ento. Fsis um rio que desemboca no Mar Negro, prximo da cadeia do Cucaso e as Colunas de Hrcules so o estreito de Gibraltar. (N.
do T.)
77
O mar aqui referido o Mediterrneo: os pases conhecidos naquele tempo estavam agrupados ao redor desse mar. (N. do T.)
formigas e rs78 que vivem em torno dum paul. Muitos outros homens moram em
muitas outras partes semelhantes a essa. que em muitas partes, ao redor da terra,
h um grande nmero de cavidades79, diferentes entre si pela forma e pelo
tamanho, para as quais correram e onde se juntaram guas, vapor e ar. Quanto
terra em si mesma, pura, encontra-se situada na pura abbada celeste, l onde
demoram os astros, e parte chamada de ter pelos que disso tratam. A borra
precipitada do ter vem aglomerar-se nas cavidades da terra80. Ns habitamos, pois,
essas cavidades, embora no o notemos: cremos que estamos a morar na superfcie
superior da terra, da mesma forma como acreditaria morar na superfcie do oceano
aquele que habitasse o seu fundo, pois, vendo o sol e os demais astros atravs da
gua, haveria de tomar o oceano por um cu. Sua indolncia e fraqueza jamais lhe
permitiriam vir ter flor do mar, nem, uma vez emerso da gua e volvida a cabea
na direo desses lugares, ver como so mais puros e mais belos do que os outros,
sobre os quais alis ningum o poderia informar por jamais t-los visto. mais ou
menos a mesma coisa que sucede anos. Morando num buraco da terra,
acreditamos estar em sua superfcie exterior, e damos ao ar o nome de cu, como se
os astros de fato planassem no ar, nosso cu. O caso bem o mesmo: por fraqueza
e indolncia estamos impossibilitados de subir at o ar superior. Se algum escalasse
a parte superior da terra, ou voasse com asas, esse algum haveria de contemplar o
que existe por l, e se sua natureza fosse bastante forte para lhe permitir uma
observao prolongada, verificaria que aqueles que so o cu verdadeiro, a luz
verdadeira e a terra verdadeira assim como os peixes, que sobem do mar, vem
o que h em nossa terra! Esta parte da terra em que nos achamos, as prprias
pedras e suas diferentes regies, esto corrodas e desgastadas, assim como est
desgastado e corrodo pela gua salgada tudo o que h no mar, onde nada existe
que merea meno, onde nada perfeito, acabado, por assim dizer, mas onde s
78
Formigas e rs so pequenas como o homem em relao terra: tal a caracterstica comum a esses dois animais. Quanto segunda a de
viver em torno de um paul cabe somente s rs. Plato emprega aqui o que se denomina em filologia clssica um anacoluto, isto , uma
unio de termos discordantes supondo que o leitor saiba fazer por si a distino. (N. do T.)
79
Aqui ressalta claramente que Plato faz Uma combinao da teoria segundo a qual a terra uma esfera com a outra, segundo a qual nosso
planeta uma chapa: a terra como tal uma esfera, mas est cheia de cavidades no fundo de uma das quais moramos ns, os homens. Ou
seja: a parte da terra ocupada pelos homens plana, e no seu centro est o Mediterrneo. (N. do T.)
80
Transparece aqui claramente que o ter o invlucro da superfcie da terra e que o ar no passa de uma borra ou dejeto do ter,
precipitado nas cavidades da terra. (N. do T.)
se encontram anfratuosidades e areia e lama, muita lama, e sujeira onde h terra
nada, enfim, que se possa chamar belo, em comparao com nossas coisas. Ao
contrrio, aqueles lugares que se encontram na parte superior da terra ho de ser
indubitavelmente muito mais belos do que os nossos. E se h, caro Smias, ocasio
propcia para referirmos uma lenda mitolgica, seria esta; assim poderamos
conhecer o que se encontra na parte superior da terra, debaixo do cu verdadeiro.
No vos parece?
Sim, e teramos vivo prazer, Scrates, em ouvir essa lenda respondeu
Smias.
Pois dizem, . meu excelente amigo prosseguiu Scrates , que a terra,
se algum a observasse do alto, ofereceria o aspecto de uma mola de couro
formada de doze gomos, toda
colorida, correspondendo a cada gomo uma diferente cor, das quais so
fracas imitaes as cores aqui usadas por nossos pintores. Ora, naquela longnqua
regio a totalidade da terra decorada com tais cores alis muito mais ntidas e
puras do que as nossas conhecidas: aqui, com efeito, ela prpura e de uma beleza
deslumbrante, ali semelha o ouro puro, alm perfeitamente branca e muito mais
alva do que o giz e a neve; e as demais cores de que est revestida so, da mesma
forma, ainda mais numerosas e muito mais belas do que todas aquelas que ns
conhecemos. Ademais, as grandes cavidades de que falei, cheias de ar e de gua, se
mostram tambm coloridas, e, em combinao com os outros orifcios, igualmente
coloridos, apresentam um conjunto de viso esplndida, um todo de harmoniosas
cores. Quanto outra terra, constituda como , tudo o que a existe existe
adequadamente rvores, flores e frutos; do mesmo modo, por sua parte, as
montanhas; e as pedras a tm, proporcionadamente, muito mais beleza quanto ao
polimento, transparncia e colorao: e as pedrarias de c embaixo, as pedrarias que
qualificamos de preciosas, nada mais so do que suas lascas sim, lascas so os
nossos srdios, o nosso jaspe, as nossas esmeraldas, e tudo o mais do mesmo
gnero. Enfim, nessa remota regio, se no h nada comparvel s coisas daqui,
tudo muito mais lindo e mais precioso. A causa disso a seguinte: as pedras
daquela regio so puras; no esto, como as daqui, corrodas e deterioradas pela
ao da gua suja e salgada, que inquina de doena e fealdade as pedrarias, a terra e
as outras coisas, assim como aos animais e s plantas. E ao ornamento dessa terra
verdadeira, constituda pela multido deslumbrante das gemas, se ajuntam ainda o
ouro, a prata e tudo o mais que pertence mesma espcie. Ornamentao que de
per si e por sua natureza se revela aos olhos de um modo to pleno, to grandioso e
to universalmente esparso sobre a terra que esta na verdade um espetculo
especialmente feito para a contemplao dos bem-aventurados!
"Nessa terra verdadeira vivem animais em grande nmero diferentes dos
daqui e tambm homens. Destes alguns moram no interior da terra; outros, na orla
do ar, como ns outros beira do mar; outros, ainda, em ilhas cercadas de ar e
prximas do continente. Numa palavra, o que para ns representam a gua e o mar
em face de nossas necessidades, l o ar; e o que para ns o ar, para esses
homens o ter. H, no clima de que gozam, uma tal perfeio de temperatura que
se acham isentos de doenas e, ademais, quanto durao da vida, ultrapassam de
muito os homens c debaixo. E quanto vista, ao ouvido, ao pensamento e todas
as funes anlogas, eles se encontram mais ou menos mesma distncia de ns,
como, quanto pureza, o ar da gua e o ter do ar.
"L tambm existem lugares sagrados e templos, nos quais os deuses
efetivamente residem; e vozes, e profecias, mediante as quais os deuses se tornam
sensveis a eles; desse modo, entram em contato com as divindades, face a face. E o
sol, a lua e os demais astros so contemplados por esses homens, tais como
verdadeiramente so em si mesmos. A esses privilgios se junta uma felicidade que
lhes acompanhamento natural.
"Assim, pois, tal a natureza da terra em seu conjunto e a do que pertence
terra. Quanto s regies interiores encontram-se muitos espaos ocos, conforme as
cavidades: uns so mais profundos e mais largamente abertos do que este em que
moramos. Outros, embora sejam mais fundos, apresentam aberturas menores do
que a de nossa regio; e outros enfim, com menor profundidade do que a daqui,
tm uma largura maior. Mas todas essas cavidades esto de muitas maneiras ligadas
entre si no seio da terra: por meio de canais, uns mais amplos, outros mais estreitos;
e muita gua se precipita de uma cavidade para outra, assim como o vinho nos
vasos em que o misturam. H, com efeito, enormes caudais subterrneos, de
imensa grandeza, carregando gua quente e gua fria; e tambm h muito fogo e
grandes rios de fogo. E h muitos, enfim, que so de lama lquida, ora mais claros,
ora mais barrentos e por isso que na Siclia escorrem antes das lavas os rios de
lama e depois a prpria lava. Esses rios inundam cada regio, conforme o sentido
em que a corrente de cada vez se encaminha para cada uma. Ora, o que causa todos
esses movimentos de subida e descida uma espcie de oscilao que se faz na
parte interior da terra, e a existncia dessa oscilao deve provir do seguinte:
"Entre os abismos da terra h sobretudo um, que o maior, precisamente
porque atravessa a terra inteira dum lado a outro. dele que fala Homero, quando
diz: Bem longe, no lugar em que sob a terra est o mais fundo dos abismos, e a ele que o
prprio Homero em outros trechos, e da mesma forma muitos outros poetas, do
o nome de Trtaro81. O fato que esse vazio o lugar para onde convergem os
cursos de todos os rios, e tambm o de onde inversamente partem, adquirindo cada
um ento caractersticas prprias, conforme o terreno que atravessa. Quanto
razo pela qual todos os rios vo ter a esse lugar e dele saem, est no fato de que a
gua a no encontra nem fundo nem base: , pois, natural que a haja um
movimento de oscilao e de ondulao, que a faa subir e descer. O ar e o sopro
que a ele se prende fazem o mesmo82: ambos acompanham e seguem, com efeito, o
movimento da gua, tanto quando este lana para o outro lado da terra como
quando para o nosso lado mais ou menos assim como no processo da
respirao, quando se inspira e expira, se forma uma corrente de ar. Do mesmo

81
Plato neste passo interpreta dados da mitologia com grande liberdade potica: Trtaro s vezes sinnimo de Hades, mas em geral a
mitologia o considera como uma parte do Hades, na qual os maiores criminosos recebem a pena merecida. Jamais se disse, porm, que o
Trtaro fosse o centro do sistema hidrogrfico universal. (N. do T.)
82
O Trtaro de Plato um orifcio que perfura completamente a terra, passando pelo seu centro. A gua corre no Trtaro de uma para a
outra extremidade, mas jamais sai fora desse canal, porque o centro da terra, como centro de gravidade, a mantm segura. O ar, no Trtaro,
faz movimentos como a gua. (N. do T.)
modo o sopro, a entrando e saindo com as massas d'gua, produz ventos de uma
irresistvel violncia.
"Suponhamos que a gua se tenha retirado para as chamadas regies
inferiores; afluindo ento atravs do solo nos lugares onde, como vimos, se opera a
descida da sua corrente, ela enche os rios do outro lado, do mesmo modo que nos
processos de irrigao. Suponhamos, inversamente, que a gua fuja desses lugares e
se arroje em direo ao nosso lado. Sero ento os rios deste "lado que, por sua
vez, se enchero. Cheios, os rios correm pelas vias de passagem e atravessam a
terra, chegando a lugares que se abrem para o exterior, dando nascimento a mares,
a lagos, a outros rios e a fontes. Mas, daqui, a gua desce novamente para o interior
da terra e, depois de haver feito ora circuitos de grande extenso e em grande
nmero, ora mais curtos e em menor nmero, desemboca no Trtaro; uns, muito
abaixo do lugar de sada; outros, um pouco menos mas todos sempre abaixo da
sada do Trtaro. Alguns desses rios correm pelo lado oposto quele por onde
saram; outros, pelo mesmo lado. Alguns deles tambm descrevem um crculo
completo, enlaando a terra uma ou duas vezes. como serpentes, e descem maior
profundidade que possvel, para voltar ao Trtaro. Ora, o que possvel que,
numa ou noutra direo, a descida se faa apenas at o centro, mas nunca alm;
pois a parte da terra que se acha de cada um dos dois lados do centro , para cada
corrente, a origem de uma ascenso.
"Seguramente esses rios so muito numerosos, enormes e variados: nessa
multido, porm, se podem distinguir quatro mais importantes. O maior de todos,
e aquele cujo curso descreve o crculo mais exterior, o rio a que chamam de
Oceano83. Face a face com este, e rolando em sentido oposto, corre o Aqueronte84:
serpeia por entre desertos, vrias vezes corre tambm por baixo da terra, e ao cabo
precipita-se no lago Aquersia. A este lago que vm ter as almas dos mortos, as
quais, aps ali permanecerem durante o tempo que lhes foi prescrito, tempo mais
longo para umas, mais breve para outras, so outra vez enviadas para formarem os
83
Oceano: na lenda, ele um rio que perfaz um crculo ao redor da terra plana. (N. do T.)
84
Aqueronte (ao p da letra: rio dos lamentos) um fabuloso rio que existe no Hades; a mencionada lagoa Aquersia tambm um dado
mitolgico que Plato utiliza. (N. do T.)
seres vivos. Um terceiro rio nasce a meia distncia entre os dois primeiros e, perto
do ponto em que nasceu, vem a desembocar num vasto espao onde arde um fogo
imenso; a, ento, forma um lago muito maior do que o nosso mar85, fervendo
sempre gua e lama; e da sai, sujo e cheio de lama, serpeando por muitas voltas e
passando por muitos lugares, chegando a cruzar pela extremidade do lago
Aquersia, sem todavia se misturar com suas guas, para ir, finalmente, aps mais
alguns coleios repetidos, lanar-se no Trtaro, num ponto mais abaixo: a este
terceiro rio que se d o nome de Periflegetonte86, e dele que brota toda lava que
se encontra, onde quer que ela exista, sobre a face de nossa terra. Fazendo por sua
vez face a este, corre o quarto rio: rolam suas guas primeiramente por uma regio
de assombrosa horripilncia e selvageria, completamente revestida de uma
uniforme colorao azulada a regio que se denomina regio Estgia; e Estige87
ento o nome do lago formado por esse rio. Depois de se haver lanado nesse
lago, onde suas guas adquirem temveis propriedades, mergulha pela terra adentro
e, descrevendo espirais, corre em sentido contrrio ao Periflegetonte, ante o qual
avana, nas proximidades do lago Aquersia, mas do lado oposto. Suas guas
tampouco se misturam com outra; tambm elas, aps o trajeto circular, finalmente
desembocam no Trtaro, num ponto oposto ao Periflegetonte: o nome deste rio,
ao dizer dos poetas Cocito88.
"Tal , pois, meus amigos, a distribuio natural desses rios. Eis, agora, os
mortos chegados ao lugar para onde cada um foi conduzido por seu gnio tutelar.
A, antes do mais, todos so julgados, tanto os que tiveram uma vida s e piedosa
como os outros. Em seguida, aqueles de quem se verifica que tiveram uma
existncia comum so dirigidos ao Aqueronte, e nele, em qualquer embarcao, se
encaminham para o lago Aquersia. L, ento, passam a morar e a submeter-se a
purificaes, quer remindo-se pelas penas que sofrem das aes de que se tornaram
85
No bem claro se "nosso mar" indica o Mediterrneo ou o Egeu, que o mar propriamente grego. Em todo caso, este lago bem grande.
(N. do T.)
86
Periflegetonte (ao p da letra: rio de chamas de fogo) tambm um rio fabuloso que corre no Hades. Nosso autor utiliza este rio em
sentido naturalista para explicar os vulces. (N.doT.)
87
Estige, na mitologia, um rio do Hades. Plato o transforma em lago. (N. do T)
88
Cocito (rio das queixas) igualmente um dos fabulosos rios do Hades. Plato esclarece: "ao dizer dos poetas". Mas aproveitou dos poetas
apenas o nome do rio, pois em nenhuma poesia ele desempenha o papel que Plato lhe empresta. (N. do T.)
culpados, quer obtendo pelas boas aes que praticaram recompensas
proporcionadas aos mritos de cada um89. Outros, porm, que se verifica serem
incurveis por causa da grandeza dos pecados que cometeram, autores de roubos
em templos repetidos e graves90, de muitos homicdios contra a justia e contra a
lei, e de muitas outras coisas desse gnero estes recebem a paga merecida e so
precipitados no Trtaro, de onde nunca mais sairo91. Quanto queles cujos erros
foram reconhecidos como sendo faltas que, no obstante sua gravidade, no
deixam de ter remdio, como as cometidas pelos que sob o domnio da ira usaram
de violncia contra o pai e a me, e que disso se arrependeram para o resto da vida,
ou que, em condies semelhantes, se tornaram assassinos estes, tambm,
devem necessariamente ser lanados no Trtaro; mas, quando houver decorrido um
ano depois que foram precipitados, uma onda os arremessa para fora e os
assassinos so lanados no Cocito, e os criminosos contra pai e me no Periflege-
tonte. Comboiados por esses rios, chegam ao lago Aquersia: e ali, chamam e
pedem em altos brados, uns queles que mataram, outros queles que violaram; e
lhes suplicam que os deixem passar do rio ao lago e vir ter com eles. Se conseguem
o que pedem, saem do rio e no sofrem mais. Em caso contrrio so de novo
jogados ao Trtaro, e de l outra vez aos rios, assim numa repetio sem trguas,
at que hajam obtido o perdo de suas vtimas pois essa a punio que os
juzes lhes impuseram. Aqueles, enfim, cuja vida foi reconhecida como de grande
piedade, so libertados, como de crceres, dessas regies interiores da terra, e
levados para as alturas da morada pura, indo morar na superfcie da verdadeira
terra!92 E, entre estes, aqueles que pela filosofia se purificaram de modo suficiente
passam a viver absolutamente sem os seus corpos, durante o resto do tempo, e a

89
Os que viveram uma vida comum constituem a maioria: no tm nem grandes vcios, nem grandes virtudes. Conforme a vida que'
levaram, recebem punio ou recompensa temporria e, ademais, como indica o trecho anterior, voltam a inserir-se em novos corpos. Plato
no descreve as punies nem as recompensas. (N. do T.)
90
Os salteadores de templos figuram entre os maiores criminosos: onde se observa o respeito de Plato religio tradicional. Scrates,
acusado de inimigo desta religio, que expressa tais pensamentos. Assim, Plato est defendendo seu caro mestre. (N. do T.)
91
Castigo eterno para os maiores pecadores. Plato no d preciso acerca dos sofrimentos por que passam no Trtaro. Possivelmente,
opinio sua que os turbilhes de gua e ar, atrs descritos, faam padecer os habitantes daquela regio. (N.doT.)
92
Chegamos enfim a conhecer quais so os felizes habitantes da superfcie da verdadeira terra, sobre os quais e sobre cuja bem-aventurana
Plato tanto tem falado: so os adeptos da religio tradicional, os piedosos. Agora se compreende tambm por que Plato disse antes que
estes tinham comunicao direta com os deuses: adoravam os deuses nesta vida e nas cavidades da terra, e sua recompensa na superfcie da
mesma ser uma vida feliz e o contato com os deuses. (N.doT.)
residir em lugares ainda mais belos que os demais93. Mas descrever esses lugares
no fcil nem possvel, pois temos pouco tempo!
"Pois bem, meu caro Smias, so estas as realidades, cuja exposio fizemos
por alto, e, que nos devem levar a tudo fazermos por participar da virtude e da
sabedoria nesta vida. Bela a recompensa e grande a esperana! Entretanto,
pretender que essas coisas sejam na realidade exatamente como as descrevi, eis o
que no ser prprio de um homem de bom senso! Mas crer que uma coisa
semelhante o que se d com nossas almas e o seu destino porque a alma
evidentemente imortal eis uma opinio que me parece boa e digna de confiana.
Belo ser ter esta coragem! preciso repeti-lo como frmula mgica e palavra!
por tal razo que h muito estou a falar nessa lenda mitolgica. Pois bem!
Considerando estas crenas, deve permanecer confiante sobre o destino de sua
alma o homem que durante sua vida desprezou os prazeres do corpo e os
ornamentos deste, principalmente, pois so, a seu ver, coisas estranhas e nocivas. O
homem que, ao contrrio, se dedicou aos prazeres que tm a instruo por objeto, e
que dessa forma ornou sua alma, no com adornos estranhos e nocivos, mas com o
que propriamente seu e mais lhe convm, com a temperana, a justia, a coragem,
a liberdade, a verdade94 esse aguarda confiante e corajoso o momento de por-se
a caminho do Hades, quando seu destino o chamar!
"Vs, seguramente ajuntou Scrates , vs, Smias, Cebes, e todos os
outros ser mais tarde, no sei quando, que vos poreis a caminho. Quanto a
mim, o meu destino neste momento me chama, como diria um ator de tragdia95.
"Creio que ainda me sobra algum tempo para tomar um banho: parece-me
melhor, com efeito, lavar-me antes de tomar o veneno, e no deixar para as
mulheres o trabalho de lavar um cadver."

93
Grau superior da classificao dos homens: os filsofos. Estes fazem parte dos piedosos a que nos referimos na nota anterior; mas so
entre eles os mais genuinamente piedosos, e por este motivo tero uma sorte melhor do que os demais adeptos da religio tradicional. (N. do
T.)
94
Nesta enumerao de virtudes, a liberdade s pode ter o sentido de "libertao de paixes e vcios". (N.doT.)
95
Nas tragdias, os heris despedem-se de seus amigos com frases como esta e em tom dramtico. (N.doT.)
Depois destas palavras de Scrates, Crton falou: Ento, que ordens nos
ds, Scrates, a estes ou a mim, a respeito de teus filhos ou de qualquer outro
assunto? Quanto a ns, essa seria, por amor a ti, nossa tarefa mais importante!
Justamente, Crton, no cesso de falar sobre ela respondeu e nada
de novo tenho para vos dizer! Vede: cuidai de vs prprios, e de vossa parte ento
toda tarefa ser feita com amor, tanto a mim e aos meus quanto a vs mesmos,
ainda que no tenhais assumido esse compromisso. Suponhamos, pelo contrrio,
que de vs prprios no tomeis cuidado, e que no queirais absolutamente viver
em conformidade com o que foi dito tanto hoje como em outras ocasies. Ento,
quaisquer que possam ser hoje o nmero e a fora de vossas promessas, nada tereis
adiantado!
Poremos todo o nosso corao, naturalmente disse Crton em
conduzir-nos dessa forma. Mas como haveremos de enterrar-te?
Como quiserdes respondeu , isto , se conseguirdes reter-me a mim,
e se eu no vos escapar! Ento riu-se docemente e, voltando-se para ns, disse:
No h meio, meus amigos, de convencer Crton de que o que eu sou este
Scrates que se acha presentemente conversando convosco e que regula a ordem
de cada um de seus argumentos! Muito ao contrrio, est persuadido de que eu sou
aquele outro Scrates cujo cadver estar daqui a pouco diante de seu olhos; e ei-lo
a perguntar como me deve enterrar! E quanto ao que desde h muito venho
repetindo que depois de tomar o veneno no estarei mais junto de vs, mas me
encaminharei para a felicidade que deve ser a dos bem-aventurados tudo isso,
creio, eram para ele vs palavras, meras consolaes que eu procurava dar-vos, ao
mesmo tempo que a mim mesmo! Sede, pois, meus fiadores junto a Crton,
garantindo-lhe o contrrio daquilo que ele afianou aos juzes96. Ele jurou que eu
ficaria no meio de vs; vs, porm, afirmai-lhe que no ficarei entre vs quando
morrer, mas que partirei, que me irei embora! Este o nico meio de fazer com
que esta provao seja mais suportvel a Crton, o meio de evitar que, vendo

96
Aluso ao processo de Scrates; Crton garantiu ao tribunal que Scrates no fugiria. (N.doT.)
queimar ou enterrar meu corpo97, se impressione e pense que estou sofrendo dores
inenarrveis, e que no decorrer dos funerais diga estar expondo Scrates,
conduzindo-o sepultura e enterrando-o! Nota bem, meu bravo Crton: a
incorreo da linguagem no somente uma falta cometida contra a prpria
linguagem. Ela faz mal s almas! No! preciso perder esse temor. Realiza estes
funerais como quiseres e como achares mais conforme aos usos.

Eplogo

Dito isto, Scrates ps-se de p, e, para banhar-se, passou a outra pea.


Crton seguiu-o, fazendo-nos sinal que esperssemos. Ficamos, pois, a conversar e
a examinar tudo quanto se havia dito. Lamentvamos a imensidade do infortnio
que sobre ns descera. Verdadeiramente, era para ns como se perdssemos um
pai, e iramos passar como rfos o resto de nossa vida!
Depois de se ter banhado, trouxeram-lhe seus filhos (tinha dois pequenos e
um j grande), e as mulheres de casa98 tambm vieram; entreteve-se com eles em
presena de Crton, fazendo-lhes algumas recomendaes. Em seguida ordenou
que se retirassem e veio para junto de ns.
J o sol estava prximo de recolher-se, pois Scrates havia passado muito
tempo no outro quarto. Ao voltar do banho sentou-se novamente, e a conversa
desta vez durou pouco. Apresentou-se ento o servidor dos Onze, e, em p, diante
dele disse:
Scrates, por certo no me dars a mesma razo de queixa que tenho
contra os outros! Esses enchem-se de clera contra mim e me cobrem de

97
A poca clssica dos gregos no conheceu o costume generalizado dos funerais, tendo institudo a liberdade de queimar ou enterrar os
cadveres, como se quisesse, (N.doT.)
98
Esta frase suscitou na antigidade a seguinte tentativa de explicao: em seguida guerra do Peloponeso, em que morreram muitos
homens; os atenienses consentiram que cada cidado passasse a ter mais mulheres alm da legtima esposa; e Scrates, modelo de patriota,
acrescentou a Xantipa uma nova esposa, da qual teve um de seus trs filhos. Mirto era o nome desta ltima. Mas tudo isso no est bem
provado. Plato, quando aqui fala em mulheres de casa, talvez queira significar apenas que Xantipa compareceu ao crcere acompanhada de
parentes ou de escravas. (N.doT.)
imprecaes quando os convido a tomar o veneno, porque tal a ordem dos
Magistrados. Tu, como tive muitas ocasies de verificar, s o homem mais
generoso, o mais brando e o melhor de todos aqueles que passaram por este lugar.
E, muito particularmente hoje, estou convencido de que no ser contra mim que
sentirs dio, pois conheces os verdadeiros culpados, mas contra eles. No ignoras
o que vim anunciar-te, adeus! Procura suportar da melhor forma o que necessrio!
Ao mesmo tempo ps-se a chorar e, escondendo a face, retirou-se. Scrates
tendo levantado os olhos para ele:
Adeus! disse. Seguirei o teu conselho.
Depois, voltando-se para ns:
Quanta gentileza neste homem! Durante toda a minha permanncia aqui
veio vrias vezes ver-me, e at conversar comigo. Excelente homem! E, hoje,
quanta generosidade no seu pranto! Pois bem, avante! Obedea-mos-lhe, Crton, e
que me tragam o veneno se j est preparado; se no, que o prepare quem o deve
preparar!
Ento disse Crton:
Mas, Scrates, o sol se no me engano est ainda sobre as montanhas e
no se deitou de todo. Ademais, ouvi dizer que outros beberam o veneno s muito
tempo depois de haverem recebido a intimao, e aps terem comido e bebido
bem, e alguns, at, s depois de haverem tido contato com as pessoas que
desejaram. Vamos! nada de precipitaes; ainda h muito tempo!
Ao que Scrates respondeu:
muito natural, Crton, que as pessoas de quem falas tenham feito o que
dizes, pensando que ganhavam alguma coisa fazendo o que fizeram. Mas, quanto a
mim, natural que eu no faa nada disso, pois penso que tomando o veneno um
pouco mais tarde nada ganharei, a no ser, tornar-me para mim mesmo um objeto
de riso, agarrando-me dessa forma vida e procurando economiz-la quando dela
nada mais resta! Mas temos falado demais; vai, obedece, e no me contraries.
Assim admoestado, Crton fez sinal a um de seus servidores que se
mantinham nas proximidades. Este saiu e retornou da a poucos instantes,
conduzindo consigo aquele que devia administrar O' veneno. Este homem o trazia
numa taa. Ao v-lo Scrates disse:99
Ento, meu caro! Tu que tens experincia disto, que preciso que eu
faa?
Nada mais respondeu do que dar umas voltas caminhando, depois
de haver bebido, at que as pernas se tornem pesadas, e em seguida ficar deitado.
Desse modo o veneno produzir seu efeito.
Dizendo isso, estendeu a taa a Scrates. Este a empunhou, Equcrates,
conservando toda a sua serenidade, sem um estremecimento, sem uma alterao,
nem da cor do rosto, nem dos seus traos. Olhando em direo do homem, um
pouco por baixo e perscrutadoramente, como era seu costume, assim falou:
Dize-me, ou no permitido fazer com esta beberagem uma libao s
divindades?"
S sei, Scrates, que trituramos a cicuta em quantidade suficiente para
produzir seu efeito, nada mais.
Entendo. Mas pelo menos h de ser permitido, e mesmo um dever,
dirigir aos deuses uma orao pelo bom xito desta mudana de residncia, daqui
para alm. esta minha prece; assim seja!
E em seguida, sem sobressaltos, sem relutar nem dar mostras de desagrado,
bebeu at o fundo.
Nesse momento ns, que ento conseguramos com muito esforo reter o
pranto, ao vermos que estava bebendo, que j havia bebido, no nos contivemos
mais. Foi mais forte do que eu. As lgrimas me jorraram em ondas, embora, com a
face velada, estivesse chorando apenas a minha infelicidade pois, est claro, no
podia chorar de pena de Scrates! Sim, a infelicidade de ficar privado de um tal
companheiro! De resto, incapaz, muito antes de mim, de conter seus soluos,
99
Nos banquetes dos gregos era costume que todos os convivas, antes de tocarem na primeira taa, derramassem no cho algumas gotas, em
homenagem aos deuses, e que ao mesmo tempo recitassem uma breve orao. Aqui, Plato quer sublinhar a tranqilidade de Scrates: este se
comporta como se estivesse num banquete. (N.doT.)
Crton se havia levantado para sair. E Apolodoro100, que mesmo antes no cessara
um instante de chorar, se ps ento, como lhe era natural, a lanar tais rugidos de
dor e de clera, que todos os que o ouviram sentiram-se comovidos, salvo,
verdade, o prprio Scrates:
Que estais fazendo? exclamou. Que gente incompreensvel! Se
mandei as mulheres embora, foi sobretudo para evitar semelhante cena, pois,
segundo me ensinaram, com belas palavras que se deve morrer. Acalmai-vos,
vamos! dominai-vos!
Ao ouvir esta linguagem, ficamos envergonhados e contivemos as lgrimas.
Quanto a Scrates, ps-se a dar umas voltas no quarto, at que declarou
sentir pesadas as pernas. Deitou-se ento de costas, assim como lhe havia
recomendado o homem. Ao mesmo tempo, este, aplicando as mos aos ps e s
pernas, examinava-os por intervalos. Em seguida, tendo apertado fortemente o p,
perguntou se o sentia. Scrates disse que no. Depois disso recomeou no
tornozelo, e, subindo aos poucos, nos fez ver que Scrates comeava a ficar frio e a
enrijecer-se. Continuando a apalp-lo, declarou-nos que quando aquilo chegasse at
o corao, Scrates ir-se-ia101. Scrates j se tinha tornado rijo e frio em quase toda
a regio inferior do ventre, quando descobriu sua face, que havia velado, e disse
estas palavras, as derradeiras que pronunciou:
Crton, devemos um galo a Asclpio ; no te esqueas de pagar essa
dvida.
Assim farei respondeu Crton. Mas v se no tens mais nada para
dizer-nos.
A pergunta de Crton ficou sem resposta. Ao cabo de breve instante,
Scrates fez um movimento. O homem ento o descobriu. Seu olhar estava fixo.
Vendo isso, Crton lhe cerrou a boca e os olhos.

100
o leitor do Banquete j conhece Apolodoro como o mais emotivo dos alunos de Scrates. (N.doT.)
101
A descrio minuciosa do efeito do veneno est a mostrar que na realidade se trata da cicuta, planta muito venenosa; e manifesta, da
mesma forma, a humanidade com que os atenienses realizavam suas execues capitais, procurando torn-las isentas de sofrimentos e dores.
(N.doT.)
Tal foi, Equcrates, o fim de nosso companheiro. O homem de quem
podemos bendizer que, entre todos os de seu tempo que nos foi dado conhecer,
era o melhor, o mais sbio e o mais justo.
SOFISTA

Traduo e Notas de Jorge Paleikat e Joo Cruz Costa


Teodoro, Scrates, Estrangeiro de Elia, Teeteto

TEODORO
Fiis ao compromisso de ontem, caro Scrates, aqui estamos. Trouxemos
conosco este estrangeiro natural de Elia e que, alis, realmente um filsofo,
pertencente ao crculo de Parmnides e Zeno.
SCRATES
Caro Teodoro! No terias trazido, sem o saber, um deus em lugar de um
estranho, para empregar uma expresso de Homero? Ele diz que, embora haja
outros deuses companheiros dos homens que reverenciam a justia,
especialmente o Deus dos Estrangeiros, que melhor pode avaliar a disparidade ou a
eqidade das aes humanas. Certamente quem te acompanha um desses seres
superiores que vir observar e contradizer, como refutador divino, a ns que somos
fracos pensadores.
TEODORO
Tal no o costume do nosso estrangeiro, Scrates. Ele mais comedido
do que os ardorosos amigos da Erstica1. No o vejo como um deus, mas parece-
me um ser divino, pois chamo assim a todos os filsofos.
SCRATES
Tens razo, caro amigo. Temo, entretanto, tratar-se de um gnero que
no em nada mais fcil de determinar do que o gnero divino, tais as aparncias

1
Erstica (de ris, querela, controvrsia, de onde, erist-ikos), relativo controvrsia. Escola erstica, escola fundada por Euclides, em
Melara. (N. do T.)
diversas de que ele se reveste ao juzo ignorante das multides, quando "indo de
cidade a cidade", aqueles que no apenas parecem, mas que realmente so filsofos,
observam das alturas em que esto a vida dos homens de nvel inferior. A uns eles
parecem, na realidade, nada valer, e a outros, valer tudo. Tomam as formas de
polticos, ou de sofistas, e outras vezes dariam ainda, para certas pessoas, a
impresso de estarem completamente em delrio. E precisamente ao estrangeiro
que queria perguntar, se que a minha pergunta no o desagrada, por quem os
tomam as gentes de seu pas e por que nomes os chamam.
TEODORO
A quem?
SCRATES
Ao sofista, ao poltico e ao filsofo.
TEODORO
Que queres saber, precisamente; qual a questo que te propuseste a
respeito deles e para a qual queres uma resposta?
SCRATES
Esta: v-se, nesse todo, uma nica unidade ou duas? Ou ainda, pois
que h trs nomes, ali se distinguiriam trs gneros, um para cada nome?
TEODORO
Creio que no haveria dificuldade alguma em explic-lo. No esta a
nossa resposta, estrangeiro?
ESTRANGEIRO
Perfeitamente, Teodoro. No terei dificuldade alguma nem tampouco
qualquer mrito em responder que se tomam por trs gneros distintos. Mas defini-
los claramente, um por um, no trabalho fcil nem pequeno.
TEODORO
As questes que propuseste, Scrates, foram realmente bem escolhidas,
pois se avizinham das questes sobre as quais o havamos interrogado, antes de
virmos at aqui. Discutia, ento, conosco, precisamente as mesmas dificuldades que
agora te ops, e a propsito das quais diz ele haver ouvido tantos ensinamentos
quantos necessrios, e no hav-los esquecido.
SCRATES
No queiras, pois, estrangeiro, recusar-te ao primeiro favor que te
pedimos. Mas dize-nos antes se, de costume, preferes desenvolver toda a tese que
queres demonstrar, numa longa exposio ou empregar o mtodo interrogativo de
que, em dias distantes, se servia o prprio Parmnides ao desenvolver, j em idade
avanada, e perante mim, ento jovem, maravilhosos argumentos?
ESTRANGEIRO
Com um parceiro assim agradvel e dcil, Scrates, o mtodo mais fcil
esse mesmo; com um interlocutor. Do contrrio, valeria mais a pena argumentar
apenas para si mesmo.
SCRATES
Neste caso, escolhe tu mesmo a quem, dentre ns que aqui estamos,
queres por interlocutor, pois que todos o sero igualmente dceis. Se aceitas meu
conselho, toma a este jovem, Teeteto, ou a qualquer outro, tua escolha.
ESTRANGEIRO
Scrates! Sinto-me confuso neste primeiro encontro em que
deveramos conversar, trocando nossas idias por frases curtas, em vir aqui
desenvolver longamente uma argumentao copiosa, quer fazendo-o s, ou mesmo
dirigindo-me a um interlocutor, tal como se fizesse uma demonstrao oratria. Na
realidade, a questo em que tocamos no assim to simples como parece, na
maneira por que a propes; ao contrrio, ela exige uma longa conversao. Por
outro lado compreendo bem que seria incivil e grosseiro, no me tornar, eu, teu
hspede, a instncias tuas e de teus amigos, e especialmente depois de ouvir o que
disseste. Alis consinto de bom grado em que Teeteto me replique, pois com ele j
conversei e agora tu o recomendas.
TEETETO
Faze pois assim, estrangeiro como disse Scrates, que a todos ns nos
dars prazer.
ESTRANGEIRO
Ao que dizes, temo que toda palavra a mais ser suprflua. Mas ao que
parece, tu que deves, doravante, proceder discusso. E, se afinal, este trabalho
prolongado vier a cansar-te, acusa a teus amigos aqui presentes e no a mim.
TEETETO
No creio, de modo algum, que v cansar-me logo. Se entretanto assim
acontecer, tomaremos a este Scrates que aqui se encontra. Homnimo de
Scrates, ele da minha idade e meu parceiro no ginsio, e j est acostumado a
comigo realizar o mesmo trabalho.

O dilogo entre o estrangeiro e Teeteto:


a definio do sofista

ESTRANGEIRO
Disseste bem. Alis, a deciso importar a ti e poders tom-la durante a
discusso. Entretanto cabe a mim e a ti, ao empreender esta anlise, inici-la desde
logo pelo estudo do sofista, ao que me parece, procurando saber e definir
claramente o que ele . At aqui s concordamos, tu e eu, quanto ao seu nome, mas
a funo que, por esse nome lhe cabe, poderia ser, para cada um de ns, uma noo
toda pessoal. Todavia, em qualquer anlise, sempre indispensvel, antes de tudo,
estar de acordo sobre o seu prprio objeto, servindo-nos de razes que o definam,
e no apenas sobre o seu nome, sem preocupar-nos com a sua definio: No
nada fcil saber o que so as pessoas, objeto de nossa anlise, e dizer o que o
sofista. Mas, o mtodo aceito por todos, e em todo lugar, para levar a bom termo as
grandes obras o de que se deve procurar, primeiramente, ensaiar em exemplos
pequenos e mais fceis antes de chegar propriamente aos temas grandiosos. No
caso presente, Teeteto, tambm me parece ser esse o mtodo que aconselho a ns:
antes desta procura difcil e penosa a que, bem sabemos, nos obrigar o gnero
sofistico, deve-se, primeiramente, ensaiar em algum assunto mais fcil o mtodo
aplicvel a esta pesquisa; a menos que tenhas outro caminho mais fcil a propor-
nos.
TEETETO
No, no tenho nenhum outro.
ESTRANGEIRO
Concordas, pois, que investiguemos um assunto simples qualquer,
procurando nele encontrar um modelo para o nosso tema grandioso?
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
O que, ento, de mnimo poderamos propor-nos, que fosse fcil de
conhecer, comportando, entretanto, uma definio to trabalhosa quanto a de
qualquer outro assunto mais importante? O pescador com anzol, por exemplo,
no te parece um assunto conhecido de todos e que no exige ateno demasiada?
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Apesar do que, creio, o mtodo que comporta em sua definio ser,
certamente, de algum proveito ao fim que perseguirmos.
TEETETO
Seria excelente.
ESTRANGEIRO
Pois bem: v por onde comearemos. Dize-me: devemos reconhecer-lhe
uma arte, ou se no uma arte, qualquer outra faculdade?
TEETETO
Negar-lhe uma arte seria inadmissvel.
ESTRANGEIRO
Mas tudo o que realmente arte, se reduz, afinal, a duas formas.
TEETETO
Quais?
ESTRANGEIRO
A agricultura e todos os cuidados relativos manuteno dos corpos
mortais; todo o trabalho relacionado ao que, composto e fabricado, se compreende
pelo nome de mobilirio, e, enfim, a imitao, no podem, como um todo, merecer
um nico nome?
TEETETO
Como assim, e que nome?
ESTRANGEIRO
Das coisas que do no-ser anterior foram posteriormente tornadas ser,
no se dir que foram produzidas, pois que, produzir tornar ser, e ser tornada
ser produzida?
TEETETO
certo.
ESTRANGEIRO
Ora, este poder prprio a todas as artes que h pouco enumeramos.
TEETETO
Tens razo.
ESTRANGEIRO
Produo , pois, o nome em que todas, elas necessariamente se
incluem.
TEETETO
Seja.
ESTRANGEIRO
Consideremos depois as atividades que tm a forma de disciplina e de
conhecimento, e ainda, de ganho pecunirio, de luta e de caa. Na realidade,
nenhuma delas nada fabrica; trata-se sempre do preexistente, ou do j produzido
que ou bem apoderado pela palavra ou pela ao, ou bem defendido contra
quem pretenda dele apossar-se. Seria melhor, ento, reunir de uma vez todas estas
partes num s todo sob o nome de arte de aquisio.
TEETETO
Sim, na realidade, o que seria melhor.
ESTRANGEIRO
Se a aquisio e a produo assim compreendem o conjunto das artes,
sob que ttulo devemos ns, Teeteto, colocar a arte do pescador com anzol?
TEETETO
Em algum lugar da aquisio, evidentemente. ESTRANGEIRO
Mas no h duas formas de aquisio? De um lado a troca voluntria, por
presentes, locao e compra, ao passo que o resto, onde tudo o que se faz
apoderar-se pela ao ou palavra, seria a arte da captura?
TEETETO
E o que se segue do que dissemos.
ESTRANGEIRO
E tambm a arte da captura no deve dividir-se em duas?
TEETETO
De que maneira? ESTRANGEIRO
Tudo o que nela se faz s claras seria dito pertencer luta e tudo o que
nela se faz por armadilha, caa.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Mas a prpria arte da caa deve ela mesma ser dividida em duas, se
quisermos evitar um absurdo.
TEETETO
Em quais? dize-me.
ESTRANGEIRO
A primeira relativa ao gnero inanimado, e outra ao animado.
TEETETO
Na verdade, inegvel que elas se distinguem.
ESTRANGEIRO
E como se distinguem? Alis, desde que para a caa ao gnero inanimado
no h nomes prprios seno para algumas partes do ofcio do mergulhador e
outras artes muito limitadas, teremos que abstrair-nos completamente delas. De
outro lado h a caa ao que possui alma e vida: ns a chamaremos de caa aos seres
vivos.
TEETETO
Seja.
ESTRANGEIRO
Mas, nesta caa aos seres vivos no poderemos distinguir duas formas,
uma para o gnero dos seres que andam sobre a terra e que se distribui numa
pluralidade de formas e de nomes, a caa aos terrestres; outra, compreendendo
todos os seres vivos nadadores, a caa aos aquticos?
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
E ainda, no gnero nadador, h o grupo dos animais voadores e o dos
que s vivem na gua.
TEETETO
Evidentemente.
ESTRANGEIRO
A toda caa ao gnero voador creio que poderemos chamar de caa s
aves.
TEETETO
esse, na realidade, o seu nome.
ESTRANGEIRO
Ao contrrio, a caa aos aquticos , creio, em sua quase totalidade, a
pesca.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
E, nesta espcie de caa aqutica, no podemos, atendendo s suas partes
mais importantes, distinguir ainda duas divises?
TEETETO
Atendendo a que partes?
ESTRANGEIRO
A que, numa delas, a caa se faz por meio de redes que por si mesmas
prendem a presa; e noutra, fere-se a presa.
TEETETO
Que pretendes dizer e como distingues uma da outra?
ESTRANGEIRO
De um lado, tudo que serve para envolver e cercar o que se quer prender,
pode chamar-se de cerca.
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
s redes, aos laos, s enseadas, s armadilhas de junco e aos engenhos
semelhantes caber outro nome que no o de cerca?
TEETETO
Certamente no.
ESTRANGEIRO
Esta parte da caa designaremos, pois, pelo nome de caa por cerco, ou
por algum outro nome anlogo.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Mas aquela que se faz por anzol ou arpes diferente da primeira e o
nome que, agora, devemos dar a toda ela o de caa vulnerante. E de que outra
forma poderamos melhor denomin-la, Teeteto?
TEETETO
No nos preocupemos com o nome; e, alis, esse est bem.
ESTRANGEIRO
Para esta caa vulnerante, quando ela se realiza durante a noite e luz do
fogo, os seus prprios profissionais deram o nome, creio, de caa ao fogo.
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
E quando se realiza luz do dia, armando-se de fisga a prpria ponta do
arpo, cabe-lhe o nome comum de caa por fisga.
TEETETO
esse, na realidade, o nome que se lhe d.
ESTRANGEIRO
Mas esta caa vulnerante, servindo-se da fisga, se ferir do alto para baixo,
ter empregado o arpo, na maioria das vezes, e da o seu nome de caa por arpo,
creio.
TEETETO
Pelo menos como alguns a chamam.
ESTRANGEIRO
Todas as demais constituem, pode-se dizer, uma forma nica.
TEETETO
Qual?
ESTRANGEIRO
A que ferindo em sentido inverso ao da primeira, e por meio do anzol,
no fere o peixe em qualquer parte do corpo, como faz o arpo, mas segura a presa,
sempre, nalgum lugar da cabea ou da boca, tirando-a do fundo at a superfcie por
meio de varas e paus. Por que nome, Teeteto, teramos de cham-la?
TEETETO
Ao que me parece, encontramos o objeto a que h pouco nos havamos
proposto procurar.
ESTRANGEIRO
Chegamos, pois, a um acordo, tu e eu, a respeito de pesca por anzol; e
no apenas a respeito do seu nome mas, sobretudo,. relativamente a uma definio
que nos propusemos sobre o seu prprio objeto. Na realidade, consideradas as
artes em seu todo, uma metade inteira era a aquisio; na aquisio havia a arte de
captura, e, nesta, a caa. Na caa, a caa aos seres vivos, e nesta a caa aos
aquticos. Da caa aos aquticos, toda a ltima diviso constitui-se da pesca, e na
pesca, h a pesca vulnerante e nela a pesca por fisga. Nesta ltima, a que golpeia de
baixo para cima, por trao ascendente do anzol, recebeu seu nome de sua prpria
maneira de proceder: chama-se aspaliutica, ou pesca por anzol e essa era a
prpria forma que procurvamos.
TEETETO
A est, pelo menos, uma demonstrao plenamente evidente.
ESTRANGEIRO
Tomando-a por modelo, procuremos determinar de igual modo, para o
caso do sofista, o que ele poder ser.
TEETETO
Perfeitamente.
A aplicao do mtodo na definio dos sofistas

ESTRANGEIRO
No caso anterior a questo inicial fora de saber se o pescador com anzol
devia ser considerado um leigo ou um tcnico.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
E a este homem, Teeteto, como consideraremos? Como um leigo, ou, em
toda a sua competncia de sofista?
TEETETO
De forma alguma como um leigo; pois entendo bem o que queres dizer:
nada tem de leigo quem traz um nome assim importante.
ESTRANGEIRO
Devemos, ento, consider-lo, ao que parece, como tendo uma arte
determinada?
TEETETO
Mas que arte seria ela precisamente?
ESTRANGEIRO
Pelos deuses! No teremos ainda compreendido a afinidade entre estes
dois homens?
TEETETO
Entre que homens?
ESTRANGEIRO
Entre o pescador com anzol e o sofista.
TEETETO
E que afinidade?
ESTRANGEIRO
A mim, ambos parecem claramente caadores.
TEETETO
E que espcie de caador seria este? pois, quanto ao outro, j
sabemos.
ESTRANGEIRO
Dividimos h pouco, creio, a caa a toda presa em duas partes: numa
consideramos os nadadores e noutra os seres que andam sobre a terra.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Uma delas j discutimos, tendo em vista os nadadores que vivem s na
gua. Da outra, a dos seres que andam sobre a terra, apenas dissemos distriburem-
se numa pluralidade de formas, mas no a dividimos.
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
At aqui, portanto, o sofista e o pescador com anzol caminham juntos,
tendo em comum a arte de aquisio.
TEETETO
Pelo menos, assim parece.

A primeira definio do sofista:


caador interesseiro de jovens ricos

ESTRANGEIRO
Entretanto, a partir da caa aos seres animados, os seus caminhos
divergem. Um deles se dirige ao mar, e talvez aos rios e lagunas; e a sua presa o
que ali dentro vive.
TEETETO
No h dvida.
ESTRANGEIRO
O outro se dirige terra e a outras espcies de rios, e aos campos onde,
se assim podemos dizer, floresce a riqueza e a juventude: o que ali vive lhe ser boa
presa.
TEETETO
Que queres dizer?
ESTRANGEIRO
A caa aos seres que andam sobre a terra permite duas grandes divises.
TEETETO
Quais so elas?
ESTRANGEIRO
Uma delas a dos animais domsticos; a outra a dos animais
selvagens.
TEETETO
Haveria, ento, uma caa aos animais domsticos?
ESTRANGEIRO
Sim, se considerarmos o homem como um animal domstico. Escolhe a
tese que mais te agrade; que no h nenhum animal domstico, ou que, embora
havendo, o homem no est entre eles, pois selvagem; ou ainda, mesmo
considerando que o homem seja domstico, que no h caa ao homem. Qualquer
que seja a tese que te agrade, dize-nos o que decides.
TEETETO
Pois bem: ns somos um animal domstico, o que creio, estrangeiro, e
acredito ainda haver uma caa ao homem.
ESTRANGEIRO
Digamos ento que h, na prpria caa aos domsticos, duas partes.
TEETETO
Sob que ponto de vista?
ESTRANGEIRO
A rapina, a caa ao escravo, a tirania, a guerra em todas as suas formas
constituiro uma s unidade que definiremos por caa violenta.
TEETETO
Muito bem.
ESTRANGEIRO
Mas as razes jurdicas, a oratria pblica e as conversas privadas
constituem um todo novo ao qual daremos o nome de arte de persuaso.
TEETETO
Certo.
ESTRANGEIRO
E nesta mesma arte de persuaso distinguiremos dois gneros.
TEETETO
Quais?
ESTRANGEIRO
Num deles ela se dirige ao pblico, noutro a indivduos.
TEETETO
Consideremos pois, cada um deles, como uma forma distinta.
ESTRANGEIRO
A caa ao particular, por sua vez, se faz tendo-se, algumas vezes, a
inteno do lucro, e outras, por meio de presentes?
TEETETO
No entendo.
ESTRANGEIRO
Ao que parece, no pensaste ainda na caa aos amantes.
TEETETO
E o que tem ela?
ESTRANGEIRO
Pois nela a perseguio se acompanha de presentes.
TEETETO
Isso verdade.
ESTRANGEIRO
Faamos, pois, desta arte do amor, uma espcie distinta.
TEETETO
Concordo.
ESTRANGEIRO
Mas na caa interesseira, h uma arte que consiste em conviver custa
de favores, em atrair apenas o prazer, no procurando outro ganho que no a
prpria subsistncia, arte essa que, acredito, todos ns chama ramos de arte do
galanteio ou da lisonja.
TEETETO
E como no haveramos de assim cham-la?
ESTRANGEIRO
Por outro lado, dizer que nesta convivncia apenas se tem interesse na
virtude, mas receber por ela bom dinheiro, no um outro gnero a que devemos
dar um nome diferente?
TEETETO .
Sem dvida alguma.
ESTRANGEIRO.
Mas que nome? V se o descobres.
TEETETO
evidente, a meu ver, que precisamente esse o caso do sofista, que
agora encontramos. E, assim dizendo, creio haver-lhe dado o nome que lhe
convm.
ESTRANGEIRO
Recordando, pois, o nosso raciocnio parece-me, Teeteto, que na arte da
captura, na caa, na caa aos seres vivos, s presas da terra firme, aos animais
domsticos, ao homem como indivduo, na caa interesseira em que se recebe
dinheiro a pretexto de ensinar, na caa que persegue os jovens ricos e de alta
sociedade encontramos o que devemos chamar, como concluso de nosso prprio
raciocnio, de sofistica. TEETETO
Certamente.

A segunda definio do sofista:


o comerciante em cincias

ESTRANGEIRO
Tomemos agora um outro ponto de vista, pois a arte a que se refere o
objeto de nossa pesquisa, longe de ser simples, muito complexa. Segundo as
divises precedentes, esse objeto apresenta no o aspecto que definimos, e sim, o
simulacro de um outro gnero.
TEETETO
Como assim?
ESTRANGEIRO
Na arte de aquisio havia duas formas: uma era a caa, a outra a troca.
TEETETO
exato.
ESTRANGEIRO
Podemos dizer, agora, que na troca h duas formas: de um lado, o
presentear; de outro, a troca comercial?
TEETETO
Digamos.
ESTRANGEIRO
E ainda, que a prpria troca comercial tenha duas partes?
TEETETO
Quais?
ESTRANGEIRO
Na primeira, h a venda direta pelo produtor; noutra, em que se vende o
que foi produzido por terceiros, h o comrcio.
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Pois bem, deste comrcio, quase a metade se realiza dentro das cidades;
o comrcio a varejo.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Mas o comrcio de cidade para cidade, de compra ou venda, no a
importao?
TEETETO
Como no?
ESTRANGEIRO
Ora, na importao no percebemos esta distino: que so os objetos
que servem ao alimento ou ao uso, tanto do corpo como da alma, que se vendem e
se trocam por dinheiro?
TEETETO
Que queres dizer com isso?
ESTRANGEIRO
Que, talvez, falte-nos reconhecer parte relativa alma, pois a outra, creio,
-nos clara.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Podemos dizer que a msica em todas as suas formas, levada de cidade
em cidade, aqui comprada para ser para l transportada e vendida; que a pintura, a
arte dos prestidigitadores em seus prodgios, e muitos outros artigos destinados
alma, que se transportam e vendem, seja a ttulo de divertimento ou de estudos
srios, do quele que as transporta e vende, tanto quanto ao vendedor de
alimentos e bebidas, direito ao ttulo de negociante?
TEETETO
O que dizes a pura verdade.
ESTRANGEIRO
quele que, de cidade em cidade vende as cincias por atacado, trocando-
as por dinheiro, darias o mesmo nome?
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
Nesta importao espiritual, uma parte no se chamaria, com justia, arte
de exibio? O nome da outra parte no ser menos ridculo que o da primeira e,
pois que o que ela vende so as cincias, deveremos cham-la, necessariamente, por
um nome que tenha correspondncia prxima com o nome de sua prpria prtica.
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
Assim, nesta importao por atacado das cincias, a seo relativa s
cincias das diversas tcnicas ter um nome; e a que cuida, em sua importao, da
virtude, um outro nome.
TEETETO
Naturalmente.
ESTRANGEIRO
primeira convm o nome de importao por atacado das tcnicas.
Quanto outra, procura tu mesmo encontrar-lhe o nome.
TEETETO
Que nome daremos, que no parea falso, a menos que digamos: a est o
objeto que procuramos, o famoso gnero sofistico.
ESTRANGEIRO
Esse, e nenhum outro. Agora, vejamos, recapitulando, e repitamos: esta
parte da aquisio, da troca, da troca comercial, da importao, da importao
espiritual, que negocia discursos e ensinos relativos virtude, eis, em seu segundo
aspecto, o que a sofistica.
TEETETO
Perfeitamente.

Terceira e quarta definies do sofista: pequeno


comerciante de primeira ou de segunda-mo

ESTRANGEIRO
H um terceiro aspecto: a quem se estabelecer numa cidade, para vender
os ensinos relativos a este mesmo objeto, os quais, uma parte compra e outra
produz, vivendo desse mister, darias nome diverso daquele que h pouco
lembraste?
TEETETO
Como poderia faz-lo?
ESTRANGEIRO
Ento, a aquisio por troca, por troca comercial, seja ela uma venda de
segunda-mo ou venda pelo prprio produtor no importa , desde que este
comrcio se refira aos ensinos de que falamos, ser sempre, a teu ver, a sofistica?
TEETETO
Necessariamente, uma conseqncia que se impe.
ESTRANGEIRO
Vejamos ainda se possvel assimilar o gnero que procuramos ao
seguinte.
TEETETO
Ao qu?

Quinta definio do sofista: erstico mercenrio

ESTRANGEIRO
Dentre as partes da arte de aquisio, havia a luta.
TEETETO
exato.
ESTRANGEIRO
No est, pois, fora de propsito dividir a luta em duas partes.
TEETETO
Explica de que modo.
ESTRANGEIRO
Colocando, de um lado, a simples rivalidade, e de outro, o combate.
TEETETO
Bem.
ESTRANGEIRO
Poderamos definir convenientemente o combate que se realiza corpo a
corpo, como um assalto a fora bruta?
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Mas, quele em que se opem argumentos contra argumentos, por que
outro nome chamaramos, Teeteto, alm de contestao?
TEETETO
Por nenhum outro.
ESTRANGEIRO
Ora, o gnero de contestao deve ser considerado em duas partes.
TEETETO
De que ponto de vista?
ESTRANGEIRO
Uma vez, opondo-se a um longo desenvolvimento outro
desenvolvimento igualmente longo de argumentos contrrios, mantendo-se uma
controvrsia pblica sobre as questes de justia e de injustia; a contestao
judiciria.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Mas, se a contestao privada, fragmentando-se na alternncia de
perguntas e respostas, que outro nome lhe damos, comumente, alm do de
contestao contraditria?
TEETETO
Nenhum outro.
ESTRANGEIRO
A contradio que tem por objeto contratos e que, realmente,
contestao, mas que procede ao acaso e sem arte, deve, certo, constituir uma
forma especial, uma vez que a sua originalidade ressalta claramente de nossa
discusso. Mas, os que viveram antes de ns no lhe deram nome algum, e a
procura de um nome que lhe seja prprio no merece agora a nossa ateno.
TEETETO
certo; as suas divises so realmente muito pequenas e muito diversas.
ESTRANGEIRO
Mas a contestao conduzida com arte, e relativa ao justo em si, ou ao
injusto em si, e a outras determinaes gerais, no a chamamos, comumente, por
erstica?
TEETETO
E de que outra forma haveramos de cham-la?
ESTRANGEIRO
Ora, na realidade, a erstica ou bem nos leva a perder ou a ganhar
dinheiro.
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Procuremos dizer que nome prprio se aplica a cada uma delas.
TEETETO
Sim, procuremos.
ESTRANGEIRO
Quando, encantados por esta ocupao, sacrificamos os negcios
pessoais sem darmos, como se diz, prazer algum massa de nossos ouvintes, ela se
chamar, ao que creio, e tanto quanto posso julgar, simplesmente, tagarelice.
TEETETO
precisamente esse o nome que se lhe d.
ESTRANGEIRO
tua vez, agora. Procura dizer que nome se d arte oposta que recebe
dinheiro por disputas privadas.
TEETETO
Que hei de dizer, ainda desta vez, sem risco de erro, seno que
novamente a est o prestigioso personagem e que assim nos aparece, pela quarta
vez, aquele a quem procuramos: o sofista?
ESTRANGEIRO
Assim, to simplesmente como parece, o gnero que recebe dinheiro, na
arte da erstica, da contradio, da contestao, do combate, da luta, da aquisio,
o que, segundo a presente definio, chamamos de sofista.
TEETETO
Certamente.

Sexta definio: o sofista, refutador

ESTRANGEIRO
Compreendes agora a razo ao afirmar-se que este animal mutvel e
diverso, e que bem justifica o provrbio: "No o apanhars com uma s mo"?
TEETETO
Nesse caso preciso usar as duas mos.
ESTRANGEIRO
Sim, certamente preciso que ns assim tentemos fazer, na medida de
nossas foras, seguindo-lhe as pegadas, nesta pista. Dize-me: no temos nomes
para designar os trabalhos domsticos?
TEETETO
Muitos. Mas quais os que, dentre eles, te interessam?
ESTRANGEIRO
Os do gnero seguinte: filtrar, peneirar, escolher, debulhar.
TEETETO
Que mais?
ESTRANGEIRO
Alm deles, cardar, desembaraar, entrelaar, e mil outros que, sabemos,
constituem misteres completos.
TEETETO
Que queres demonstrar a esse respeito e a que questo se destinam todos
estes exemplos?
ESTRANGEIRO
separao que se referem todas estas palavras.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Assim deduzo que h uma mesma arte includa em todos eles, e que nos
parece digna de um nome nico.
TEETETO
E como a chamaremos?
ESTRANGEIRO
A arte de separar.
TEETETO
Seja.
ESTRANGEIRO
Agora, examina se nela podemos distinguir, sob algum ponto de vista,
duas formas.
TEETETO
O exame que pedes muito rpido para mim.
ESTRANGEIRO
Entretanto, ao falar das separaes, havia dito que elas tinham por fim
dissociar, fosse o melhor do pior, ou o semelhante do semelhante.
TEETETO
Agora que tu o dizes, quase evidente.
ESTRANGEIRO
Para a ltima espcie no tenho nome algum que a designe, mas para a
primeira, a que retm o melhor e rejeita o pior, tenho um nome.
TEETETO
Dize-o.
ESTRANGEIRO
Toda a separao desta espcie , creio, universalmente chamada de
purificao.
TEETETO
precisamente assim que chamada.
ESTRANGEIRO
A dualidade desta forma de purificao no visvel primeira vista?
TEETETO
Talvez, se refletirmos. Por enquanto, no vejo dualidade alguma.
ESTRANGEIRO
Em todo o caso, as mltiplas formas de purificao que se aplicam aos
corpos podem ser reunidas sob um nico nome.
TEETETO
Que formas e que nome?
ESTRANGEIRO
Para os corpos vivos, todas as purificaes internas que se operam, graas
a uma exata discriminao, pela ginstica e pela medicina, e todas as purificaes
externas, por menos caracterstico que lhe seja o nome, e as quais a arte do banhista
nos prescreve; e para os corpos inanimados, todos os cuidados prprios do
apisoador, ou mais universalmente, prprios preparao do couro, e que se
distribuem em nomes que parecem ridculos.
TEETETO
E bem ridculos, certamente.
ESTRANGEIRO
Totalmente ridculos, Teeteto. Mas, afinal, ao mtodo de argumentao
no importa menos a lavagem com esponjas do que os medicamentos, atendendo-
se a que a ao purificadora de uma arte seja mais ou menos benfica que a de
outra. Na realidade, para alcanar a penetrao de esprito que, investigando todas
as artes, ele se esfora em descobrir as suas afinidades e as suas dessemelhanas.
Assim, deste ponto de vista, todas elas valem igualmente para ele. Nenhuma arte,
desde que atenda conformidade procurada, lhe parecer mais ridcula que outra.
Que a arte da estratgia seja uma ilustrao mais grandiosa do que a arte da caa, o
que no aconteceria com a arte de matar piolhos, no admite o mtodo de
argumentao que, naquela primeira arte, apenas v maior pompa. Assim, no caso
presente, ele apenas considera a questo que propes: que nome se deve dar ao
conjunto destas foras purificadoras destinadas aos corpos, animados ou
inanimados, sem se preocupar em saber que nome seja o mais distinto. Bastar
separar tudo o que purifica a alma e agrupar, em um novo todo, tudo o que purifica
outras coisas que no a alma. O que lhe compete, agora, se que compreendemos
os seus propsitos como mtodo de argumentao, discernir, realmente, a
purificao que se dirige ao pensamento e distingui-la de todas as demais.
TEETETO
Sim, compreendo, e concordo
que h duas formas de purificao, uma das quais tem por objeto a alma e
perfeitamente distinta daquela que se dirige ao corpo.
ESTRANGEIRO
timo! Presta ateno, agora, ao que se segue, e procura acompanhar esta
diviso.
TEETETO
Procurarei acompanhar-te neste trabalho de diviso em todos os passos
por onde me conduzires.
ESTRANGEIRO
A maldade, na alma, para ns algo de diferente da virtude?
TEETETO
Naturalmente.
ESTRANGEIRO
Pois bem: purificar no afastar tudo o que possa haver de mal,
conservando o resto?
TEETETO
Exatamente.
ESTRANGEIRO
Ento, estaremos sendo conseqentes conosco mesmos ao chamar,
tambm com relao alma, de purificao, a todo meio que possamos encontrar
para suprimir o mal.
TEETETO
Perfeitamente conseqentes.
ESTRANGEIRO
preciso que digamos que o mal, na alma, assume duas formas.
TEETETO
Quais?
ESTRANGEIRO
Uma delas a enfermidade que sobrevm ao corpo; outra, a que nele
constitui a fealdade.
TEETETO
No compreendo.
ESTRANGEIRO
que talvez no reconheas a identidade entre a enfermidade e a
discrdia.
TEETETO
Tambm agora no sei o que responder.
ESTRANGEIRO
Na discrdia, vs algo de diverso do seguinte: uma corrupo qualquer
nascida da ruptura do acordo entre o que a natureza havia tornado afim?
TEETETO
Nada de diverso.
ESTRANGEIRO
E na fealdade, vs algo de diverso da falta de medida que a tudo leva a
sua deformidade genrica?
TEETETO
No, nada de diverso.
ESTRANGEIRO
Pois bem! No notamos que na alma dos maus h um desacordo mtuo
e geral entre opinies e desejos, coragem e prazeres, razo e sofrimento?
TEETETO
Muito claramente.
ESTRANGEIRO
Entretanto, h, entre tudo isso, uma afinidade original inevitvel.
TEETETO
Ningum o nega.
ESTRANGEIRO
Se, pois, dissermos que a maldade uma discrdia e uma enfermidade da
alma estaremos servindo-nos de uma linguagem correta?
TEETETO
Absolutamente correta.
ESTRANGEIRO
Pois bem! Quando algo que participa do movimento e que se tenha
proposto um fim, esforando-se por atingi-lo, se desvia e falha em cada um de seus
impulsos, dizemos que ele deve tais fracassos simetria que h entre eles, ou sua
assimetria?
TEETETO
Evidentemente sua assimetria.
ESTRANGEIRO
Mas para a alma e para qualquer alma, ns sabemos que toda a ignorncia
involuntria.
TEETETO
Completamente involuntria.
ESTRANGEIRO
Ora, ignorar precisamente o fato de uma alma atirar-se verdade, e
neste prprio impulso para a razo, desviar-se: no outra coisa seno um contra-
senso.
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Deveremos, pois, afirmar que na alma insensata h fealdade e falta de
medida.
TEETETO
Parece que sim.
ESTRANGEIRO
H pois, aparentemente, na alma, estes dois gneros de males: e um
deles a que o vulgo chama maldade, para ela, evidentemente, uma enfermidade.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Ao outro, o vulgo chama ignorncia; recusando-se entretanto a admitir
que este mal, na alma, e apenas para ela, seja um vcio.
TEETETO
Sim, preciso admitir ainda que h dois gneros de vcio na alma: a
covardia, a intemperana e a injustia devem todas ser consideradas como uma
enfermidade em ns; e nesta afeco mltipla e diversa que a ignorncia, devemos
ver uma fealdade.
ESTRANGEIRO
E para o corpo, ao menos, j no se encontram duas artes relativas a
estas duas afeces?
TEETETO
Quais?
ESTRANGEIRO
A ginstica para a fealdade, e a medicina para a enfermidade.
TEETETO
o que parece.
ESTRANGEIRO
Assim, a correo para a falta de medida, para a injustia e a covardia ,
dentre todas as tcnicas, a que melhor se aproxima da Justia.
TEETETO
o que parece, pelo menos se quisermos falar conforme opinio
humana.
ESTRANGEIRO
E ainda: para toda a ignorncia haver uma arte mais apropriada que o
ensino?
TEETETO
Nenhuma.
ESTRANGEIRO
Vejamos, pois: o ensino constituir um nico gnero ou deveremos nele
distinguir vrios gneros dos quais dois so os principais? Examina a questo.
TEETETO
E o que fao.
ESTRANGEIRO
A meu ver, este o meio mais rpido de resolv-la.
TEETETO
Qual?
ESTRANGEIRO
Ver se a ignorncia permite uma linha mediana de diviso. Se a
ignorncia for dupla, torna-se claro, realmente, que no prprio ensino haveria,
necessariamente, duas partes, respondendo, uma e outra, a cada um dos gneros de
ignorncia.
TEETETO
Pois bem, queres indicar alguma soluo do problema?
ESTRANGEIRO
Creio, pelo menos, distinguir uma forma especial de ignorncia, to
grande e to rebelde que equivale a todas as demais espcies.
TEETETO
Qual ela?
ESTRANGEIRO
Nada saber e crer que se sabe; temo que a esteja a causa de todos os
erros aos quais o pensamento de todos ns est sujeito.
TEETETO
verdade.
ESTRANGEIRO
E precisamente esta nica espcie de ignorncia que qualifica o nome de
ignaro.
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Mas que nome daremos parte do ensino qual compete dela libertar-
nos?
TEETETO
A meu ver, estrangeiro, a outra parte da competncia do ensino das
profisses; mas o ensino de que falas, aqui chamamos de educao.
ESTRANGEIRO
, na realidade, esse o seu nome, Teeteto, entre quase todos os helenos.
Mas preciso ainda que examinemos se a existe um todo j indivisvel ou se ele
permite alguma diviso na qual valha a pena colocar nomes.
TEETETO
Teremos ento de proceder a esse exame.
ESTRANGEIRO
Creio, realmente, ter encontrado ainda aqui onde realizar uma diviso.
TEETETO
Onde, ento?
ESTRANGEIRO
No ensino pelo discurso, um dos caminhos que se oferecem , ao que
parece, mais spero; entretanto, a sua segunda ramificao mais fcil.
TEETETO
Quais so eles?
ESTRANGEIRO
H, primeiramente, a antiga maneira de nossos pais, a de que
preferivelmente se servem para com seus filhos e que ainda hoje muitos deles
empregam quando os vem cair em algum erro: nela se alterna a repreenso com o
tom mais terno da admoestao. Em seu todo, poder-se-ia muito justamente
cham-la de admoestao.
TEETETO
bem assim.
ESTRANGEIRO
Quanto ao outro mtodo, parece que alguns chegaram, aps amadurecida
reflexo, a pensar da seguinte forma: toda ignorncia involuntria, e aquele que se
acredita sbio se recusar sempre a aprender qualquer coisa de que se imagina
esperto; e apesar de toda a punio que existe na admoestao, esta forma de
punio tem pouca eficcia.
TEETETO
Eles tm razo.
ESTRANGEIRO
E propondo livrar-se de tal iluso, se armam contra ela, de um novo
mtodo.
TEETETO
Qual?
ESTRANGEIRO
Propem, ao seu interlocutor, questes s quais acreditando responder
algo valioso ele no responde nada de valor; depois, verificando facilmente a
vaidade de opinies to errantes, eles as aproximam em sua crtica, confrontando
umas com outras, e por meio desse confronto demonstram que a propsito do
mesmo objeto, sob os mesmos pontos de vista, e nas mesmas relaes, elas so
mutuamente contraditrias. Ao perceb-lo, os interlocutores experimentam um
descontentamento para consigo mesmos, e disposies mais conciliatrias para
com outrem. Por este tratamento, tudo o que neles havia de opinies orgulhosas e
frgeis lhes arrebatado, ablao em que o ouvinte encontra o maior encanto e, o
paciente, o proveito mais duradouro. H, na realidade, um princpio, meu jovem
amigo, que inspira aqueles que praticam este mtodo purgativo; o mesmo que diz,
ao mdico do corpo, que da alimentao que se lhe d no poderia o corpo tirar
qualquer proveito enquanto os obstculos internos no fossem removidos. A
propsito da alma formaram o mesmo conceito: ela no alcanar, do que se lhe
possa ingerir de cincia, beneficio algum, at que se tenha submetido refutao e
que por esta refutao, causando-lhe vergonha de si mesma, se tenha
desembaraado das opinies que cerram as vias do ensino e que se tenha levado ao
estado de manifesta pureza e a acreditar saber justamente o que ela sabe, mas nada
alm.
TEETETO
Essa , infalivelmente, a melhor disposio e a mais sensata.
ESTRANGEIRO
A esto, pois, muitas razes, Teeteto, para afirmarmos que a refutao
o que h de mais importante e de mais eficaz na purificao e para acreditarmos,
tambm, que permanecer parte desta prova , ainda que se trate do grande Rei,
permanecer impurificado das maiores mculas e conservar a falta de educao e a
fealdade onde a maior pureza, e a mais perfeita beleza se requer, a quem pretenda
possuir a verdadeira beatitude.
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Pois bem! Que nome daremos aos que praticam esta arte? Pois eu tenho
receio de cham-los de sofistas.
TEETETO
Que receio?
ESTRANGEIRO
De dar muita honra aos sofistas.
TEETETO
E entretanto, h alguma semelhana entre eles e aquele de quem, h
pouco, falamos.
ESTRANGEIRO
Na realidade, tal como entre o co e o lobo, como entre o animal mais
selvagem e o mais domstico. Ora, para estarmos bem seguros sobretudo com
relao s semelhanas que preciso manter-nos em constante guarda: na verdade,
um gnero extremamente escorregadio. Mas, por enquanto, admitamos que sejam
os mesmos, pois desde que observem uma fronteira rigorosa, no haveria o mnimo
conflito de termos.
TEETETO
Pelo menos, o que parece.
ESTRANGEIRO
Estabeleamos, pois, como parte da arte de separar, a arte de purificar.
Nesta ltima separemos a parte que tem por objeto a alma. Coloquemos de lado a
arte do ensino e, nesta, a arte da educao. Enfim, na arte da educao, a
argumentao presente nos mostrou, ao acaso, exercendo-se em torno duma v
demonstrao de sabedoria, um mtodo de refutao no qual no vemos mais que
a sofistica autntica e verdadeiramente nobre.
TEETETO
Chamemo-la por esse nome. Mas sinto-me hesitante ante a multiplicidade
de seus aspectos: como deverei realmente definir a sofistica se quiser dar uma
frmula verdica e segura?
ESTRANGEIRO
Compreende-se a tua dificuldade. Mas a do sofista, procurando um meio
de, a esta altura, escapar nossa argumentao, bem grande, creia-se; pois com
razo diz o provrbio: "No fcil esquivar-se a todas elas." Mais do que nunca, a
hora de ir ao seu encalo.
TEETETO
Falaste bem.

Recapitulao das definies

ESTRANGEIRO
Primeiramente descansemos e durante esta pausa vejamos o que
dissemos. Sob quantos aspectos se apresentou a ns o sofista? Creio que, em
primeiro lugar, ns descobrimos ser ele um caador interesseiro de jovens ricos.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Em segundo lugar, um negociante, por atacado, das cincias relativas
alma.
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Em seu terceiro aspecto, e com relao s mesmas cincias, no se
revelou ele varejista?
TEETETO
Sim, e o quarto personagem que ele nos revelou foi o de um produtor e
vendedor destas mesmas cincias.
ESTRANGEIRO
Tua memria fiel. Quanto ao seu quinto papel, eu mesmo procurarei
lembr-lo. Na realidade, filiava-se ele arte da luta, como um atleta do discurso,
reservando, para si, a erstica.
TEETETO
Exatamente.
ESTRANGEIRO
O seu sexto aspecto deu margem discusso. Entretanto, ns
concordamos em reconhec-lo, dizendo que ele quem purifica as almas das
opinies que so um obstculo s cincias.
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
No crs, que, quando um homem se nos apresenta dotado de mltiplos
misteres, ainda que para design-lo baste o nome de uma nica arte, trata-se apenas
de uma aparncia, que no uma aparncia verdadeira, e que ela, evidentemente, s
se impe, a propsito de uma dada arte, porque no sabemos nela encontrar o
centro em que todos esses misteres vm unificar-se, ficando ns, dessa forma,
obrigados a dar, a quem for assim dotado, vrios nomes em lugar de um s?
TEETETO
essa, provavelmente, a explicao mais natural.
ESTRANGEIRO
Ns, pelo menos, no sejamos indolentes a ponto de deixar em meio a
nossa pesquisa. Antes, voltemos a uma de nossas definies do sofista. Na verdade,
uma delas me pareceu realmente revel-lo melhor.
TEETETO
Qual?
ESTRANGEIRO
Ns o chamamos, creio, contraditar.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Pois bem! No acontece que ele ensina aos outros esta mesma arte?
TEETETO
Como no?
ESTRANGEIRO
Examinemos, pois, a propsito de que assuntos pretendem eles formar
contraditores. Procederemos a este exame, mais ou menos, desta forma: ensinam
eles a discusso das coisas divinas que esto escondidas das vistas do vulgo?
TEETETO
Pelo menos, pretende-se que assim ensinem.
ESTRANGEIRO
E de tudo o que visvel na terra, no cu e de seus fenmenos?
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
Mas, no os vemos tambm, em reunies particulares, hbeis em
contradizer, comunicando aos demais o que sabem sobre qualquer questo geral do
devir ou do ser?
TEETETO
Exatamente.
ESTRANGEIRO
E ainda, a propsito das leis e de todas as coisas polticas, no pretendem
eles formar bons discutidores?
TEETETO
Pode-se dizer que no teriam ningum para ouvi-los se assim no
pretendessem.
ESTRANGEIRO
Na discusso sobre o conjunto das artes e sobre cada uma em particular,
os argumentos necessrios para contradizer a cada profissional em sua prpria
especialidade so conhecidos, pode-se dizer, de todo mundo, pois se encontram
disposio de quem quer que queira aprend-los.
TEETETO
Ao que parece, queres falar sobre os escritos de Protgoras, a respeito dos
exerccios fsicos e outras artes.
ESTRANGEIRO
E, tambm, dos de muitos outros, meu caro amigo. Mas na realidade, o
que parece essencialmente prprio a esta arte de discusso, no uma aptido
sempre pronta a discutir, seja o que for, a propsito de qualquer assunto?
TEETETO
Pelo menos, ao que parece, quase nenhum assunto lhe escapa.
ESTRANGEIRO
Mas, pelos deuses, meu jovem amigo, tu acreditas ser isso possvel?
Talvez, vs, jovens, o percebeis com olhares mais penetrantes, e ns, com vistas
menos sensveis.
TEETETO
Como assim? Em que pensas, precisamente? Ainda no percebi
claramente a questo que propes.
ESTRANGEIRO
Se possvel que um homem saiba tudo.
TEETETO
Se assim fosse, estrangeiro, ns
seramos felizes.
ESTRANGEIRO
Como poderia ento o incompetente, ao contradizer a algum
competente, jamais dizer qualquer coisa de verdadeiro?
TEETETO
De modo algum.
ESTRANGEIRO
O que ento poderia dar sofistica este poder prestigioso?
TEETETO
Qual?

As artes ilusionistas: a mimtica

ESTRANGEIRO
Como chegam esses homens a incutir na juventude que somente eles, e a
propsito de todos os assuntos, so mais sbios que todo o mundo? Pois, na
realidade, se como contraditores no tivessem razo, ou no parecessem, sua
juventude, ter razo; se, mesmo assim, a sua habilidade em discutir no desse algum
brilho sua sabedoria, ento seria caso de dizer, como tu, que ningum viria
voluntariamente dar-lhes dinheiro para deles aprender estas duas artes.
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
Ora, na verdade, os que os procuram o fazem voluntariamente.
TEETETO
E bem voluntariamente.
ESTRANGEIRO
que, ao que creio, eles parecem ter uma sabedoria pessoal sobre todos
os assuntos que contradizem.
TEETETO
Irrecusavelmente.
ESTRANGEIRO
E assim fazem, a propsito de tudo, segundo cremos?
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Do, ento, a seus discpulos a impresso de serem oniscientes.
TEETETO
Como no!
ESTRANGEIRO
E sem o ser, na realidade; pois, como vimos, isso seria impossvel.
TEETETO
E como no haveria de ser impossvel?
ESTRANGEIRO
Ao que vemos, pois, o que traz o sofista uma falsa aparncia de cincia
universal, mas no a realidade.
TEETETO
Exatamente! O que dizes parece ser o que de mais justo se possa dizer a
seu propsito.
ESTRANGEIRO
Tomemos agora, a seu propsito, um exemplo mais claro.
TEETETO
Qual?
ESTRANGEIRO
Este. E procura seguir-me bem atentamente para responder-me.
TEETETO
A qu?
ESTRANGEIRO
Quem se afirmasse capaz, no de explicar nem contradizer, mas de
produzir e executar, por uma nica arte, todas as coisas. . .
TEETETO
Que entendes por todas as coisas?
ESTRANGEIRO
o prprio princpio de nossa explicao que deixaste de perceber, pois
parece nada compreenderes da minha expresso "todas as coisas".
TEETETO
Realmente nada compreendi.
ESTRANGEIRO
Ora, minha expresso "todas as coisas" quer dizer tu e eu e, alm de ns,
tudo o que mais h, tanto os animais como as rvores.
TEETETO
Que dizes com isso?
ESTRANGEIRO
Quem se julgasse capaz de produzir a mim e a ti e a tudo que nasce e
cresce. . .
TEETETO
A que produo te referes? Certamente no pensas num agricultor, pois
esse homem produz at mesmo seres vivos.
ESTRANGEIRO
Perfeitamente, e com eles, o mar, a terra e o cu, e os deuses e tudo o
mais. Produzindo, de um s golpe, uma e outra destas criaturas, ele as vende por
uma quantia bem pequena.
TEETETO
Pretendes brincar ao falares assim!
ESTRANGEIRO
E ento? Quando se afirma que tudo se sabe e que tudo se ensinar a
outrem, por quase nada, e em pouco tempo, no caso de se pensar que se trata de
uma brincadeira?
TEETETO
Creio que sim, inteiramente.
ESTRANGEIRO
Ora, conheces alguma forma de brincadeira mais sbia e mais graciosa
que a mimtica?
TEETETO
Nenhuma, pois a forma a que te referiste, como a unidade a que
subordinaste todas as demais, a mais complexa, e quase a mais diversa que existe.
ESTRANGEIRO
Assim, o homem que se julgasse capaz, por uma nica arte, de tudo
produzir, como sabemos, no fabricaria, afinal, seno imitaes e homnimos das
realidades. Hbil, na sua tcnica de pintar, ele poder, exibindo de longe os seus
desenhos, aos mais ingnuos meninos, dar-lhes a iluso de que poder igualmente
criar a verdadeira realidade, e tudo o que quiser fazer.
TEETETO
Sem dvida.
ESTRANGEIRO
No devemos admitir que tambm o discurso permite uma tcnica por
meio da qual se poder levar aos ouvidos de jovens ainda separados por uma longa
distncia da verdade das coisas, palavras mgicas, e apresentar, a propsito de todas
as coisas, fices verbais, dando-lhes assim a iluso de ser verdadeiro tudo o que
ouvem e de que, quem assim lhes fala, tudo conhece melhor que ningum?
TEETETO
Por que razo no existiria tambm essa tcnica?
ESTRANGEIRO
Para a maior parte daqueles que ento ouviram tais discursos, no
inevitvel, Teeteto, que, transcorrido o tempo suficiente de anos, com o avanar da
idade, e vistas as coisas de mais perto, as provas que os obrigam ao claro contato
com as realidades os levem a mudar as opinies ento transmitidas, a julgar
pequeno o que lhes havia parecido grande, difcil o que lhes parecera fcil, uma vez
que os simulacros que transportavam as palavras desapaream em presena das
realidades vivas?
TEETETO
Sim, tanto quanto, minha idade, posso julgar. Quanto a mim,
entretanto, creio que ainda me encontro dentre os que uma longa distncia separa.
ESTRANGEIRO
precisamente porque todos ns que aqui estamos nos esforaremos, e
desde agora, em fazer-te avanar o mais perto possvel, poupando-te as provas. E,
para voltar ao sofista, dize-me: j est claro que se trata de um mgico que somente
sabe imitar as realidades ou guardamos ainda alguma veleidade acreditando que, de
fato e realmente, ele tem a cincia de todos os assuntos aos quais parece capaz de
contradizer?
TEETETO
Como ainda hesitar, estrangeiro? Em vista do que precedeu j est
bastante claro que o seu lugar entre aqueles que participam das diverses.
ESTRANGEIRO
Devemos, pois, situ-lo como mgico e imitador.
TEETETO
Sem dvida alguma.
ESTRANGEIRO
Tratemos agora de no mais deixar-nos escapar a presa que, na realidade,
j est bem amarrada s malhas com que o raciocnio sabe deter estas caas.
Tambm a nossa no se esquivar mais, pelo menos, disto.
TEETETO
Do qu?
ESTRANGEIRO
De ter de colocar-se no gnero dos prestidigitadores.
TEETETO
A esse respeito, pelo menos eu, concordo contigo.
ESTRANGEIRO
Eis, pois, o que ficou decidido: dividir sem demora a arte que produz
imagens e, avanando nesse esconderijo, se, desde logo, nos aparecer o sofista,
apanh-lo conforme o edito do rei, entregando-o ao soberano, e declarando-lhe a
nossa captura. E se, nas sucessivas partes da mimtica, ele encontrar um covil onde
esconder-se, persegui-lo passo a passo, dividindo logo cada parte em que se
resguarde, at que ele seja apanhado. Nem ele, nem espcie alguma, poder jamais
vangloriar-se de se haver esquivado a uma perseguio levada a efeito to
metodicamente, em seu todo e em seus pormenores.
TEETETO
Tens razo no que dizes e o que devemos fazer.
ESTRANGEIRO
Prosseguindo na diviso maneira do que at aqui fizemos, creio
perceber duas formas de mimtica; e apenas ainda no me sinto capaz de descobrir
em qual delas encontraremos o aspecto preciso que procuramos.
TEETETO
Pelo menos, dize e distingue primeiramente as duas formas de que falas.
ESTRANGEIRO
A primeira arte que distingo na mimtica a arte de copiar. Ora, copia-se
mais fielmente quando, para melhorar a imitao, transportam-se do modelo as
suas relaes exatas de largura, comprimento e profundidade, revestindo cada uma
das partes das cores que lhe convm.
TEETETO
Como? No assim que procuram fazer todos os que imitam?
ESTRANGEIRO
Menos aqueles, pelo menos, que devem modelar ou pintar uma obra de
grandes dimenses. Se, na realidade, reproduzissem estas maravilhas em suas
verdadeiras propores, sabes que as partes superiores nos apareceriam
exageradamente pequenas e as partes inferiores, muito grandes, pois, a umas vemos
de perto, e a outras, de longe.
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Dando de mo verdade, no sacrificam os artistas as propores exatas
para substitu-las, em suas figuras, pelas propores que do iluses?
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
primeira destas produes, ento, no poderemos chamar, com razo,
uma cpia, desde que ela fielmente copiada do objeto?
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
E esta primeira parte da mimtica no deve chamar-se pelo nome que
anteriormente lhe havamos dado, arte de copiar?
TEETETO
certo.
ESTRANGEIRO
Mas que nome daremos ao que parece copiar o belo para espectadores
desfavoravelmente colocados, e que, entretanto, perderia esta pretendida fidelidade
de cpia para os olhares capazes de alcanar, plenamente, propores to vastas? O
que assim simula a cpia, mas que de forma alguma o , no seria um simulacro?
TEETETO
Como no!
ESTRANGEIRO
Ora, no neste caso que se encontra uma grande parte da pintura e da
mimtica, em seu todo?
TEETETO
Sem dvida.
ESTRANGEIRO
Mas arte que, em lugar de uma cpia, produz um simulacro, no
caberia, perfeitamente, o nome de arte do simulacro?
TEETETO
Sim, perfeitamente.
ESTRANGEIRO
A esto as duas formas que te anunciei da arte que produz imagens: a
arte da cpia e a arte do simulacro.
TEETETO
Isso mesmo.
ESTRANGEIRO
Para o problema que ento me deixara perplexo, o de saber em qual
destas artes colocar o sofista, ainda no vejo, claramente, uma soluo. Esse
homem verdadeiramente um assombro e muito difcil apanh-lo
completamente, pois ainda desta vez, l est ele, belo e bem refugiado, em uma
forma cujo mistrio indecifrvel.
TEETETO
mesmo o que parece.
ESTRANGEIRO
a conscincia da dificuldade que te leva a essa afirmao ou estar
sendo levado pelo curso da argumentao e pela fora do hbito, ao afirmares, to
prontamente, o que eu afirmo?
TEETETO
Que queres dizer? Por que essa pergunta?
ESTRANGEIRO
que, realmente, jovem feliz, nos vemos frente a uma questo
extremamente difcil; pois, mostrar e parecer sem ser, dizer algo sem, entretanto,
dizer com verdade, so maneiras que trazem grandes dificuldades, tanto hoje, como
ontem e sempre. Que modo encontrar, na realidade, para dizer ou pensar que o
falso real sem que, j ao proferi-lo, nos encontremos enredados na contradio?
Na verdade, Teeteto, a questo de uma dificuldade extrema.
TEETETO
Por qu?

O problema do erro e a questo do no-ser

ESTRANGEIRO
A audcia de uma tal afirmao supor o no-ser como ser; e, na
realidade, nada de falso possvel sem esta condio. Era o que, meu jovem, j
afirmava o grande Parmnides, tanto em prosa como em verso, a nos que ento
ramos jovens: "Jamais obrigars os no-seres a ser; Antes, afasta teu pensamento
desse caminho de investigao."
Dele, pois, j nos vem o testemunho. Entretanto, a prpria afirmao o
testemunharia mais claramente, por pouco que a submetssemos prova. Essa,
pois, que devemos examinar desde logo, se nada tiveres a opor.
TEETETO
Minha opinio ser a que tu quiseres. Quanto discusso, cuida tu
mesmo da melhor maneira de conduzi-la e prossegue; pelo caminho escolhido, eu
te seguirei.
ESTRANGEIRO
Pois bem, comecemos. Dize-me: atrever-nos-amos a proferir de uma ou
outra maneira o que absolutamente no ?
TEETETO
Como haveramos de faz-lo?
ESTRANGEIRO
Sem, pois, qualquer esprito de discusso ou de brincadeira, suponhamos
que, ponderada seriamente a questo, algum que nos ouve tivesse que indicar a
que objeto se deve aplicar este nome de "no-ser"; pensamos como ele o aplicaria, a
que objeto e com que qualidades, quer em seu prprio pensamento quer em
explicao que ento tivesse de apresentar?
TEETETO
Tua pergunta difcil e, para um esprito como o meu, diria que quase
completamente insolvel.
ESTRANGEIRO
Em todo o caso, uma coisa certa: no se poderia atribuir o no-ser a
qualquer ser que se considere.
TEETETO
Como haveramos de faz-lo?
ESTRANGEIRO
Ora, se no podemos atribu-lo ao ser, seria igualmente de todo incorreto
atribu-lo ao "qualquer".
TEETETO
Como no?
ESTRANGEIRO
Ao que creio, est tambm claro a ns, que este vocbulo "qualquer" se
aplica, em todas as nossas expresses, ao ser. Com efeito, impossvel formul-lo
s, nu, despido de tudo o que tenha o ser, no ?
TEETETO
Sim, impossvel.
ESTRANGEIRO
Considerando a questo dessa forma tu concordaras comigo que dizer
"qualquer" dizer inevitavelmente pelo menos "qualquer um".
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Pois, e com isto concordaras, este "qualquer" quer dizer precisamente
"um' e "quaisquer" quer dizer ou dois ou vrios.
TEETETO
Como no concordar?
ESTRANGEIRO
E, inevitavelmente, quem no diz alguma coisa, ao que parece,
absolutamente, nada diz.
TEETETO
Sim, incontestavelmente.
ESTRANGEIRO
No ser mesmo necessrio evitar essa concesso, pois que nada dizer
no dizer? Ao contrrio, no ser caso de afirmar que o esforar-se por enunciar o
no-ser nada dizer?
TEETETO
A est quem haveria de pr um ponto final s dificuldades da questo.
ESTRANGEIRO
No te exaltes demasiadamente ainda; a questo subsiste, jovem feliz, e a
dificuldade que permanece a maior e a primeira de todas. Na realidade, ela reside
no prprio princpio.
TEETETO
Que queres dizer? Explica-te sem tergiversar.
ESTRANGEIRO
Ao ser, creio, pode unir-se algum outro ser.
TEETETO
Sem dvida alguma.
ESTRANGEIRO
Mas poderamos afirmar como possvel que um ser jamais se unisse ao
no-ser?
TEETETO
Como afirm-lo?
ESTRANGEIRO
Ora, para ns, o nmero em sua totalidade o ser.
TEETETO
Sim, se h algo com direito a esse ttulo precisamente ele.
ESTRANGEIRO
Evitemos, pois, at mesmo a tentativa de transportar para o no-ser o que
quer que seja do nmero, pluralidade ou unidade.
TEETETO
Ao que parece, ns erraramos se assim tentssemos: a razo nos impede
de faz-lo.
ESTRANGEIRO
Como ento enunciar oralmente ou mesmo apenas conceber em
pensamento os no-seres ou o nao-ser, sem servir-nos do nmero?
TEETETO
Explica-te.
ESTRANGEIRO
Ao falarmos dos no-seres no tentamos a aplicar o nmero plural?
TEETETO
Indubitavelmente.
ESTRANGEIRO
E ao falar do no-ser, de aplicar, desta vez, a unidade?
TEETETO
Manifestamente.
ESTRANGEIRO
Ora, afirmamos que no justo nem correto pretender unir ser e no-ser.
TEETETO
bem verdade.
ESTRANGEIRO
Compreendes ento que no se poderia, legitimamente, nem pronunciar,
nem dizer, nem pensar o no-ser em si mesmo; que, ao contrrio, ele impensvel,
inefvel, impronuncivel e inexprimvel?
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Estaria eu errado, h pouco, ao dizer que iria enunciar a maior das
dificuldades a ele relativas?
TEETETO
Como? Haver outra mais grave que ainda nos falte enunciar?
ESTRANGEIRO
E ento, surpreendente jovem, s do enunciado das" frases precedentes,
no percebes em que dificuldade o no-ser coloca mesmo a quem o refuta, de
modo que tentar refut-lo cair em inevitveis contradies?
TEETETO
Que disseste? Explica-te mais claramente.
ESTRANGEIRO
No em mim que preciso procurar esta maior clareza. Eu que, h
pouco e ainda agora, afirmei como princpio que o no-ser no deve participar nem
da unidade nem da pluralidade, j ao afirm-lo eu o disse uno; pois disse "o no-
ser". Compreendes certamente.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Instantes antes afirmava ainda que ele impronuncivel, inefvel e
inexprimvel. Ests seguindo?
TEETETO
Sim, como no te seguir?
ESTRANGEIRO
Tentar aplicar-lhe este "" no contradizer as minhas proposies
anteriores?
TEETETO
Provavelmente.
ESTRANGEIRO
E ento? Aplicar-lhe no era dirigir-me, nele, a uma unidade?
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
E mais: dizendo-o inexprimvel, inefvel, impronuncivel, eu o expressava
como unidade.
TEETETO
Como no reconhec-lo?
ESTRANGEIRO
Ora, ns afirmamos que impossvel a quem fale com rigor, defini-lo,
seja como uno ou como mltiplo, e mesmo absolutamente impossvel de falar dele,
pois, ainda aqui, essa maneira de falar lhe aplicaria a forma de unidade.
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Por que ento falar de mim por mais tempo? Para mostrar que fui
vencido, agora como sempre, nesta argumentao contra o no-ser? No , pois, no
que eu falo, como te dizia, que devemos procurar as regras de falar corretamente a
respeito do no-ser. Mas prossigamos e agora vamos procur-las em ti.
TEETETO
Que queres dizer?
ESTRANGEIRO
Adiante pois. Tu que s jovem, s grande e bravo. Concentra todas as
tuas foras e, sem unir ao no-ser, nem o ser, nem a unidade, nem a pluralidade
numrica, procura dar-nos um enunciado correto a seu respeito.
TEETETO
Seria grande a minha temeridade, e insensata a minha empresa se me
atrevesse onde vi sofreres um tal revs.
ESTRANGEIRO
Pois bem! Se te parece melhor, no cogitemos nem de ti nem de mim.
Mas, at que encontremos algum capaz dessa proeza, digamos que o sofista, da
maneira mais astuciosa do mundo, se escondeu num refgio inextricvel.
TEETETO
precisamente o que parece.
ESTRANGEIRO
Em conseqncia, se afirmamos que ele possui uma arte de simulacro, o
emprego de tais frmulas lhe tornaria fcil a resposta. Facilmente ele voltaria contra
ns as nossas frmulas, e quando o chamssemos de produtor de imagens ele nos
perguntaria o que, afinal de contas, chamamos de imagens. Devemos, pois,
procurar, Teeteto, o que se poderia responder, com acerto, a este espertalho.
TEETETO
Evidentemente que responderemos lembrando as imagens das guas e
dos espelhos, as imagens pintadas ou gravadas, e todas as demais, da mesma
espcie.
ESTRANGEIRO
Bem se v, Teeteto, que jamais viste um sofista.
TEETETO
Por qu?
ESTRANGEIRO
Ele te parecer um homem que fecha os olhos ou que, absolutamente,
no tem olhos.
TEETETO
Como assim?
ESTRANGEIRO
Quando assim lhe responderes, ao lhe falar do que se forma nos espelhos
ou do que as mos amoldem, ele se rir de teus exemplos, destinados a um homem
que v. Fingir ignorar espelhos, guas e a prpria vista e te perguntar,
unicamente, o que se deve concluir de tais exemplos.
TEETETO
O qu?
ESTRANGEIRO
O que h de comum entre todos esses objetos que tu dizes serem
mltiplos mas que honras por um nico nome, que o nome de imagem, e que
entendes como uma unidade sobre todos eles. Fala agora, e sem permitir-lhe
vantagem alguma, repele o adversrio.
TEETETO
Que outra definio daramos imagem, estrangeiro, se no a de um
segundo objeto igual, copiado do verdadeiro?
ESTRANGEIRO
Teu "segundo objeto igual" significa um objeto verdadeiro, ou, ento, que
queres dizer com esse "igual"?
TEETETO
De forma alguma um verdadeiro, certamente, mas um que com ele se
parea.
ESTRANGEIRO
Mas, por verdadeiro, tu entendes "um ser real"?
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
Ento? Por no-verdadeiro tu entendes o contrrio do verdadeiro?
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
O que parece , pois, para ti, um no-ser irreal, pois o afirmas no-
verdadeiro.
TEETETO
Entretanto, h algum ser.
ESTRANGEIRO
Em todo o caso, no um ser verdadeiro, o que dizes.
TEETETO
Certamente no; ainda que ser por semelhana seja real.
ESTRANGEIRO
Assim, pois, o que chamamos semelhana realmente um no-ser irreal?
TEETETO
Temo que em tal entrelaamento : que o ser se enlace ao no-ser, de
maneira a mais estranha.
ESTRANGEIRO
Estranha, certamente. Vs, penando bem, pelo menos que, ainda agora,
por um tal entrecruzamento, o nosso sofista de cem cabeas2, nos obrigou a
reconhecer a contragosto que, de alguma forma, o no-ser .
TEETETO
Vejo-o perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Pois bem! Que dizer, agora, de sua arte? Como deveremos defini-la se
no quisermos contradizer-nos?
TEETETO
Que queres dizer e o que temes?
ESTRANGEIRO

2
Aluso lenda do combate de Hrcules com a hidra. (N. do T.)
Atribuindo-lhe o simulacro por domnio e caracterizando por embuste ' a
sua obra, afirmaremos que a sua arte uma arte ilusionista, e, ento, diremos que a
nossa alma se forma de opinies falsas, em conseqncia da sua arte? Do contrrio,
que poderemos dizer?
TEETETO
isso mesmo. Que mais poderamos dizer?
ESTRANGEIRO
A opinio falsa seria, agora, a que concebe o contrrio daquilo que , ou o
qu?
TEETETO
O contrrio do que .
ESTRANGEIRO
Ao que crs, ento so os no-seres, o que a opinio falsa concebe.
TEETETO
Necessariamente sim.
ESTRANGEIRO
Isto quer dizer que ela concebe os no-seres como no sendo ou que
concebe como sendo de algum modo o que no de modo algum?
TEETETO
Que ela concebe os no-seres como sendo de algum modo; o que se
impe se se quer que o erro, por menor que seja, seja possvel.
ESTRANGEIRO
E ento? No conceberia tambm ela como no sendo, absolutamente, o
que absolutamente ?
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
E isso tambm seria falsidade?
TEETETO
Tambm.
ESTRANGEIRO
Neste caso, creio que tambm este discurso seria condenado por falso,
pela mesma razo, que a de dizer, dos seres, que eles no so, e dos no-seres, que
eles so.
TEETETO
Poderia ser ele falso por alguma outra razo?
ESTRANGEIRO
No vejo nenhuma outra. Mas essa o sofista recusar. Haver algum meio
de faz-la aceitar por um homem de bom senso, quando j anteriormente
concordou ele que ali est algo de impronuncivel, inefvel, inexprimvel,
impensvel? Compreendemos, Teeteto, o que o sofista pode dizer?
TEETETO
Como no compreender que ele nos acusar de dizer agora o contrrio
do que ento dizamos, ns que temos a audcia de afirmar que h falsidade tanto
nas opinies como nos discursos? Na verdade, isso mesmo nos leva a unir o ser ao
no-ser em muitas frmulas, quando havamos concordado na sua impossibilidade,
a mais absoluta.
ESTRANGEIRO
Tua lembrana exata. Mas chegamos ao ponto de perguntar-nos o que
fazer do sofista; pois, se pretendermos melhor observ-lo, atribuindo-lhe como arte
a dos impostores e mgicos, vs que as objees e as dificuldades se acumulam
vontade.
TEETETO
Vejo-o muito bem.
ESTRANGEIRO
Ora, mnima a parte que examinamos: seu nmero, por assim dizer, no
tem fim.
TEETETO
Ento, se assim, parece impossvel apoderar-nos do sofista.
ESTRANGEIRO
Como? A esta altura perderamos ns a coragem, a ponto de nos
furtarmos?
TEETETO
Absolutamente no, por menor que seja a nossa possibilidade de alcanar
com a mo o nosso homem.
ESTRANGEIRO
Nesse caso posso contar com a tua indulgncia, e como acabas de dizer,
tu te contentars com o pouco que possamos ganhar, no importa em qu, sobre
uma tese de tal vigor.
TEETETO
Como poderias duvid-lo?
ESTRANGEIRO
Far-te-ei, pois, um pedido ainda mais veemente.
TEETETO
Qual?
ESTRANGEIRO
De no me tomares por um parricida.
TEETETO
Que queres dizer?

Refutao tese de Parmnides

ESTRANGEIRO
Que, para defender-nos, teremos de necessariamente discutir a tese de
nosso pai Parmnides e demonstrar, pela fora de nossos argumentos que, em certo
sentido, o no-ser ; e que, por sua vez, o ser, de certa forma, no .
TEETETO
Evidentemente, esse o ponto que teremos de debater em nossa
discusso.
ESTRANGEIRO
Como no haveria de ser evidente mesmo para um cego, como se diz?
Enquanto no houvermos feito esta contestao, nem essa demonstrao, no
poderemos, de forma alguma, falar nem de discursos falsos nem de opinies falsas,
nem de imagens, de cpias, de imitaes ou de simulacros, e muito menos de
qualquer das artes que deles se ocupam, sem cair, inevitavelmente, em contradies
ridculas.
TEETETO
bem verdade.
ESTRANGEIRO
Essa a razo por que chegada a hora de atacar a tese de nosso pai ou
se algum escrpulo nos impede de faz-lo, de renunciar absolutamente questo.
TEETETO
Isso no; creio que nada deve deter-nos.
ESTRANGEIRO
Nesse caso, pela terceira vez quero pedir-te um pequeno favor.
TEETETO
Dize o que .
ESTRANGEIRO
Declarei h pouco, creio, e de uma maneira expressa, que uma tal
contestao sempre ultrapassou as minhas foras e, certamente, ainda ultrapassa.
TEETETO
Sim, declaraste.
ESTRANGEIRO
Temo, depois do que declarei, que me tomes por insensato, vendo-me
passar vontade, de um a outro extremo. Ora, na verdade, somente para teu
agrado que nos decidimos a contestar a tese, no caso de tal contestao ser
possvel.
TEETETO
Confia que, pelo menos eu, nunca te observarei se te lanares nessa
contestao e nesta demonstrao. Se s o que te preocupa, prossegue sem nada
temer.
ESTRANGEIRO
Ento prossigamos. Por onde comearemos uma argumentao to
perigosa? A meu ver, este o caminho que se impe.
TEETETO
Qual?

As teorias antigas do ser. As doutrinas pluralistas

ESTRANGEIRO
Iniciar o nosso exame pelo que nos parece evidente, evitando que,
mantendo a seu respeito noes confusas, no concordemos to facilmente a seu
propsito, como concordaramos se tivssemos idias bem claras.
TEETETO
Expressa mais claramente o que queres dizer.
ESTRANGEIRO
A meu ver, Parmnides e todos os que com ele empreenderam discernir e
determinar o nmero e a natureza dos seres, assim fizeram sem proceder a uma
anlise cuidadosa.
TEETETO
Como?
ESTRANGEIRO
Do-me todos eles a impresso de contar-nos fbulas, cada um a seu
modo, como faramos a crianas. Segundo um deles, h trs seres que, ou bem
promovem entre si uma espcie de guerra ou, tornando-se amigos, fazem-nos
assistir a seus casamentos, ao nascimento de seus filhos, os quais educam. Outro,
contenta-se com dois; mido e seco ou quente e frio, os quais faz coabitar e casar
em forma devida. Entre ns, os eleatas, vindos de Xenfanes e mesmo de antes
dele, admitem que o que chamamos o Todo um nico ser e assim o apresentam
em seus mitos. Posteriormente, certas Musas da Jnia e da Siclia concluram que o
mais certo seria combinar as duas teses e dizer: o ser , ao mesmo tempo, uno e
mltiplo, mantendo-se a sua coeso pelo dio e pela amizade. O seu prprio
desacordo um eterno acordo: assim dizem, entre estas musas, as vozes mais
elevadas; mas as de voz mais fraca diminuram o eterno rigor desta lei: na
alternncia que pregam, umas vezes o Todo uno, pela amizade que nele Afrodite
mantm, outras vezes mltiplo e hostil a si mesmo, em virtude de no sei que
discrdia. Quem, dentre eles, fala verdadeiramente, e quem falsamente? Seria difcil
dizer e pretensioso levantar crticas, em assuntos to importantes, a homens que
defendem a sua glria e antigidade. Mas, sem incorrer em censura, podemos
declarar que. . .
TEETETO
O qu?
ESTRANGEIRO
Que pouco se interessaram e pouca considerao tiveram para conosco, o
vulgo; pois todos eles prosseguem em suas teses at ao fim, sem se importarem em
saber se ns os estamos acompanhando ou se, j muito antes, nos perdemos.
TEETETO
Que queres dizer?
ESTRANGEIRO
Quando algum deles levanta a voz para dizer que o ser , que foi, que se
torna mltiplo ou uno ou duplo; e quando outro nos conta a mistura do quente ao
frio depois de haver afirmado o princpio das associaes e dissociaes, pelos
deuses, Teeteto, compreendes alguma coisa do que dizem, um ou outro? Quanto a
mim, quando jovem, eu acreditava, todas as vezes que se falava deste objeto que
ora nos pe em dificuldade, o no-ser, compreend-lo exatamente. E agora, tu vs
que dificuldades ainda encontramos a seu respeito.
TEETETO
Sim, vejo.
ESTRANGEIRO
Ora, bem pode acontecer que, com relao ao ser, a nossa alma se
encontre em igual confuso; e que ns que acreditamos tudo compreender, sem
dificuldade, quando dele ouvimos falar, e nada compreender a propsito do outro
termo, na realidade estejamos na mesma situao no que concerne a um e outro.
TEETETO
Sim, pode.
ESTRANGEIRO
Faamos, pois, a mesma reserva para todos os termos de que acabamos
de falar.
TEETETO
De bom grado.
ESTRANGEIRO
Se concordas, examinaremos mais tarde os demais; mas primeiramente
examinemos o maior deles, o principal.
TEETETO
A qual deles te referes? Evidentemente, ao que crs, o ser que deve
ocupar-nos de incio para descobrirmos que significado lhe emprestam aqueles que
dele falam.
ESTRANGEIRO
Descobriste logo meu pensamento, Teeteto. A est, pois, ao que creio, o
mtodo que se impe nossa pesquisa. Ns os suporemos presentes,
pessoalmente, e lhes proporemos estas perguntas: "Que devereis vs todos, para
quem o Todo o quente e o frio ou algum par desta espcie, entender por esse
vocbulo que aplicais ao par quando dizeis que tanto o par, como cada um de seus
termos, ""? Que pretendeis fazer-nos entender por este ""? Deveremos nele ver
um terceiro termo somado aos dois outros, ou deveremos, segundo acreditais,
admitir que o Todo trs, e no mais dois? Pois, se chamardes de ser a um dos
dois, no podereis mais dizer que os dois igualmente "so"; e nesse caso, teramos,
em rigor, uma maneira dupla de fazer com que apenas um seja, mas nenhuma
maneira de fazer com que dois "sejam".
TEETETO
O que dizes verdade.
ESTRANGEIRO
"Seria, pois, ao par, que pretendeis chamar de ser?"
TEETETO
possvel.
ESTRANGEIRO
"Mas ento, amigo", responderamos, "ainda nesse caso se afirmaria
muito claramente que dois um".
TEETETO
Tua rplica perfeitamente justa.
ESTRANGEIRO
"Uma vez, pois, que nos encontramos em dificuldade, caber a vs
explicar-nos o que entendeis por este vocbulo "ser". Evidentemente estas coisas
vos so, de h muito, familiares. Ns mesmos, at aqui, acreditamos compreend-
las, e agora nos sentimos perplexos. Comeai, pois, por nos ensin-las desde o
princpio, de sorte que, acreditando compreender o que dizeis, no nos acontea,
na verdade, o contrrio". Estas so as questes e as observaes que faremos a
estas pessoas e a todas as demais que dizem que o Todo mais que um. Encontras
nela, meu filho, algo de falso?
TEETETO
Absolutamente nada.
As doutrinas unitrias

ESTRANGEIRO
E mais: no envidaramos todos os esforos para saber, dos que dizem
que o Todo uno, o que entendem eles pelo ser?
TEETETO
Como no!
ESTRANGEIRO
Devero eles responder-nos, pois, a esta pergunta: "Vs afirmais, creio,
que no h seno um nico ser?" E no certo que respondero: "Sim, ns o
afirmamos"?
TEETETO
,
ESTRANGEIRO
"Bem, pelo nome de Ser, entendeis vs alguma coisa?"
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
"E sendo essa coisa o mesmo que o uno, empregais dois nomes para um
mesmo e nico objeto, ou, que deveremos ns pensar?"
TEETETO
Como te respondero eles a essa pergunta, estrangeiro?
ESTRANGEIRO
Evidentemente, Teeteto, para quem supuser esta hiptese, no ser nada
fcil responder questo presente, nem alis, a qualquer outra.
TEETETO
Como assim?
ESTRANGEIRO
Admitir que h dois nomes quando se acabou de afirmar que s existe o
Uno, e nada mais, um pouco ridculo.
TEETETO
Sem dvida.
ESTRANGEIRO
Por outro lado, rigorosamente falando, concordar com quem afirmasse
que um nome,seja ele qual for, tem existncia seria insensato.
TEETETO
Em qu?
ESTRANGEIRO
Afirmar que o nome diferente da coisa dizer que, afinal, h duas
coisas.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Por outro lado, afirmar que o nome idntico coisa necessariamente,
ou dizer que ele no nome de nada, ou, se dissermos que ele nome de alguma
coisa, admitirmos como conseqncia que o nome s ser nome de um nico
nome e de nenhum outro.
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
E, sendo o Uno, unidade apenas de si mesmo, no ser, ele mesmo, seno
a unidade de um nome.
TEETETO
Necessariamente.
ESTRANGEIRO
Mas, que dizer do Todo? Afirmaro eles que diferente do Uno, ou que
idntico a ele?
TEETETO
Certamente eles afirmaro, como afirmam, que idntico.
ESTRANGEIRO
Se, ento, ele um Todo, como o diz o prprio Parmnides: "Semelhante
massa de uma esfera, bem redonda, em todas as suas partes, Do centro,
igualmente distante, em todos os sentidos, Pois, impossvel que de um lado, seja
maior ou menor do que do outro", o ser que assim tem um meio e extremidades;
e, desse fato, necessariamente tem partes, no certo?
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Entretanto, nada impede ao que assim dividido de ter uma unidade que
se sobreponha ao conjunto de suas partes e de ser, dessa forma, no apenas total
mas tambm una.
TEETETO
Nada haveria de impedir.
ESTRANGEIRO
Mas, o que assim no pode ser em si mesmo, o prprio Uno, no ?
TEETETO
Por qu?
ESTRANGEIRO
Porque o verdadeiro Uno, corretamente definido, s pode ser
absolutamente indivisvel.
TEETETO
Necessariamente.
ESTRANGEIRO
E um Uno assim constitudo de vrias partes no corresponderia,
absolutamente, a esta definio.
TEETETO
Compreendo.
ESTRANGEIRO
Poderia ento o Ser, com este carter de unidade, ser Uno e Todo ou
absolutamente necessrio recusar que o ser um Todo.
TEETETO
A alternativa que propes difcil.
ESTRANGEIRO
Tua observao , realmente, muito certa; pois o ser com esta unidade
relativa no apareceria de forma alguma idntico ao Uno e, assim sendo, a
totalidade seria maior que um.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Se, pois, o ser no o Todo, em virtude deste carter de unidade que
recebeu do Uno, e se o Todo absoluto existe em si mesmo, segue-se que o ser falta
a si mesmo.
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
E, por este raciocnio, o ser, assim privado de si mesmo, no seria ser.
TEETETO
certo.
ESTRANGEIRO
Assim, ainda mais esta vez a totalidade se torna maior que o uno pois que
o Ser, de um lado, e o Todo, de outro, tm agora, cada um, sua natureza distinta.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Mas se supusermos que o todo absoluto no existe, o mesmo acontecer
ao ser que, alm de no ser "Ser", jamais poder vir a s-lo.
TEETETO
Por qu?
ESTRANGEIRO
Tudo o que veio a ser, veio a ser sob forma de um todo; de sorte que no
se pode admitir como reais, nem a existncia, nem a gerao se no considerarmos
o Uno ou o Todo no nmero dos seres.
TEETETO
Parece ser bem certo o que dizes.
ESTRANGEIRO
E mais: o que no for um Todo no poder ter nenhuma quantidade,
pois, o que tiver alguma quantidade, seja ela qual for, necessariamente a ter como
um todo.
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
E assim surgiro, em cada caso, milhares e interminveis dificuldades a
quem definir o ser ou como um par ou como uma unidade.
TEETETO
o que nos permitem supor as que ora se entrevem. Na verdade, elas se
seguem, sem cessar, uma outra, e a dvida que levantam, a propsito de cada
soluo dada, cada vez maior e mais inquietante.

Materialistas e Amigos das Formas

ESTRANGEIRO
Embora no tenhamos procedido aqui ao exame de todos os que,
pormenorizadamente, tratam do ser e do no-ser, aceitemos o exame que fizemos
como suficiente. H outros que, em suas explicaes, tm pretenses diferentes; e
devemos examin-los, igualmente, para convencer-nos, por um exame completo,
que no nada mais fcil dizer o que o Ser do que o que o no-ser.
TEETETO
preciso ento examin-los tambm.
ESTRANGEIRO
Na verdade, parece que, entre eles, h um combate de gigantes, tal o
ardor com que disputam, entre si, sobre o ser.
TEETETO
Como assim?
ESTRANGEIRO
Alguns procuram trazer terra tudo o que h no cu e no invisvel,
tomando, num simples aperto de mo, a rochas e carvalhos. E, na verdade, em
virtude de tudo o que, dessa forma, podem alcanar que afirmam obstinadamente
que s existe o que oferece resistncia e o que se pode tocar. Definem o corpo e a
existncia como idnticos e logo que outros pretendam atribuir o Ser a algo que
no tenha corpo, mostram por estes um soberbo desprezo nada mais querendo
ouvir.
TEETETO
verdade. Os homens de quem falas so intratveis! Eu mesmo j
encontrei vrios deles.
ESTRANGEIRO
Por sua vez, os seus adversrios nesta luta se mantm cuidadosamente em
guarda, defendendo-se do alto de alguma regio invisvel, e esforando-se por
demonstrar que certas formas inteligveis e incorpreas so o ser verdadeiro. Ao
que os demais tomam por corpos, e por "nica Verdade", eles a despedaam em
seus argumentos, e recusando-lhe o ser, neles vem apenas um mvel devir. em
torno a tais doutrinas, Teeteto, que h sempre uma luta sem fim a esse propsito.
TEETETO
verdade.
ESTRANGEIRO
Perguntemos, pois, a uns e outros a explicao do que entendem por ser.
TEETETO
Como obteremos essa explicao?
ESTRANGEIRO
Dos que fazem a existncia consistir em formas ns a obteramos mais
facilmente, pois so mais acessveis. Mas, dos que pretendem, fora, tudo reduzir
ao corpo, mais difcil e talvez mesmo quase impossvel. Entretanto, parece-me
que esta ser a maneira pela qual devemos proceder com relao a eles.
TEETETO
Qual?
ESTRANGEIRO
Se possvel, o ideal seria torn-los, realmente, mais razoveis. Mas, se tal
no estiver ao nosso alcance, admitamos por hiptese que eles so razoveis e
suponhamos que concordam em responder-nos de uma maneira mais cordial do
que a de agora. A palavra dos honestos tem mais valor, creio, que a dos demais.
Alis, no so propriamente eles que nos preocupam; o que procuramos a
verdade.
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Pergunta, pois, aos que se tornaram mais tratveis e faze-te o intrprete
de suas respostas.
TEETETO
Assim farei.
ESTRANGEIRO
Procuremos ento saber se ao falarem de um vivo mortal afirmam ali
alguma realidade.
TEETETO
Naturalmente que sim.
ESTRANGEIRO
Em sua opinio, esta realidade no um corpo animado?
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
Colocam assim a alma no grupo dos seres?
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
E no afirmam tambm que a alma , s vezes justa, outras vezes injusta;
umas vezes sensata, outras insensata?
TEETETO
Sem dvida.
ESTRANGEIRO
Ora, no na posse e na presena da justia que as almas assim se tornam
justas; e na posse dos contrrios que se tornam o contrrio?
TEETETO
Sim, ainda a eles concordaro contigo.
ESTRANGEIRO
Mas, em sua opinio, tudo o que pode comear ou deixar de ser presente
em qualquer parte, ser certamente um ser.
TEETETO
Efetivamente, eles assim reconhecem.
ESTRANGEIRO
Uma vez que se concede o ser justia, sabedoria e virtude em geral, e
a seus contrrios, e finalmente alma, onde residem, afirmaro que alguma destas
realidades visvel e tangvel ou diro que todas elas so invisveis?
TEETETO
Diro que quase nenhuma delas visvel.
ESTRANGEIRO
E estas realidades invisveis, tero elas, segundo eles, algum corpo?
TEETETO
A esse propsito, no se limitaro mais a uma nica e mesma resposta.
Segundo dizem, a alma , certa mente, corprea. Mas, quanto sabedoria e a todas
as demais realidades a que se refere tua pergunta, o temor lhes impedir de se
atreverem tanto a negar-lhes, absolutamente, o ser, quanto a afirmar,
categoricamente, que todas so corpos.
ESTRANGEIRO
Isto prova claramente, Teeteto, que nossos homens se tornaram mais
razoveis, pois nenhum temor impediria, pelo menos aos que, dentre eles, foram
semeados3 e nasceram da terra, de sustentar o contrrio at o fim, dizendo que tudo
o que no possam apertar em suas mos, por essa razo, absolutamente no existe.
TEETETO
O que dizes quase que palavra, por palavra, o que eles pensam.
ESTRANGEIRO
Continuemos ento a interrog-los; pois, por poucos que sejam os seres
que admitam incorpreos, j bastar. Tero de explicar agora o que, na verdade,
encontram de essencialmente comum entre estes e os corpreos e que lhes permita
dizer, referindo-se tanto a uns como a outros, que eles existem. possvel que se
sintam em dificuldades, e nesse caso examina se estariam dispostos a admitir e
concordar com a seguinte definio do ser, oferecida por ns.
TEETETO
Qual? Dize-a e saberemos logo.

3
Aluso lenda grega que narrava haver Cadmo semeado os dentes de um drago que matara. Dessa semeadura surgiram homens armados
que se puseram a assaltar Cadmo. Aconselhado pela deusa Minerva, este lanara entre os seus assaltantes uma pedra e, ento, os assaltantes
puseram-se a bater uns contra os outros, havendo uma verdadeira mortandade. Desse combate acharam cinco homens que. com Cadmo,
fundariam a cidade de Tebas. (N.doT.)
Uma definio do ser. Mobilistas e estticos

ESTRANGEIRO
A seguinte: o que naturalmente traz em si um poder qualquer ou para agir
sobre no importa o qu, ou para sofrer a ao, por menor que seja, do agente mais
insignificante, e no por uma nica vez, um ser real; pois afirmo, como definio
capaz de definir os seres, que eles no so seno um poder.
TEETETO
Uma vez que, at agora, eles no tm nenhuma definio melhor,
aceitaro essa.
ESTRANGEIRO
Est bem. Talvez adiante, tanto ns como eles mudaremos de opinio.
Por enquanto, fique assim entendido, entre eles e ns. TEETETO
Sim, entendido.
ESTRANGEIRO
Passemos agora aos outros, aos Amigos das Formas, e ainda aqui traduze-
nos tu a sua resposta.
TEETETO
Assim farei.
ESTRANGEIRO
Vs separais o devir do ser e a ele vos referis Como sendo distintos, no
?
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
E pelo corpo, por meio da sensao, que estamos em relao com o
devir; mas pela alma, por meio do pensamento, que estamos em comunho com
o ser verdadeiro, o qual dizeis vs, sempre idntico a si mesmo e imutvel;
enquanto que o devir varia a cada instante.
TEETETO
precisamente o que afirmamos.
ESTRANGEIRO
Mas que sentido, diremos, emprestais vs, excelentes pessoas, a esta
comunho, em sua dupla atribuio? Ser o mesmo sentido a que h pouco nos
referimos?
TEETETO
Qual?
ESTRANGEIRO
A paixo ou a ao resultante de um poder que se exerce ao encontro de
dois objetos. Talvez tu, Teeteto, desconheas a resposta que do a esta pergunta,
mas eu talvez a saiba, pois, eles me so familiares.
TEETETO
Qual , ento, essa resposta?
ESTRANGEIRO
No concordam, absolutamente, com o que h pouco dizamos, a
respeito do Ser, aos filhos da Terra4.
TEETETO
O qu?
ESTRANGEIRO
A definio que adiantamos: "aquilo em que est presente o poder de
exercer ou de sofrer a ao, por menor que seja", bastaria para, de algum modo,
definir os seres?
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Pois eles respondero o seguinte: o devir participa, certamente, do poder
de sofrer e de exercer; mas ao ser, nenhum destes poderes convm.

4
Referncia irnica aos filsofos, ou mais precisamente, aos sofistas por sua impiedade. (N.doE.)
TEETETO
E, no que dizem, h alguma coisa?
ESTRANGEIRO
Alguma coisa a que devemos responder pedindo-lhes que nos ensinem,
mais claramente, se concordam em que a alma conhece e que o ser conhecido.
TEETETO
Quanto a isso, certamente concordam.
ESTRANGEIRO
Pois bem, conhecer ou ser conhecido , segundo vs, ao, paixo, ou
ambas ao mesmo tempo? Ou ainda um paixo, outro ao? Ou ento, nem um
nem outro no tm qualquer relao nem com uma nem com outra?
TEETETO
Evidentemente nem um nem outro, nem em relao a uma, nem em
relao a outra. Do contrrio seria contradizer suas afirmaes anteriores.
ESTRANGEIRO
Compreendo. Mas, nisto ao menos, concordaro: se se admite que
conhecer agir, a conseqncia inevitvel que o objeto ao ser conhecido sofre a
ao. Pela mesma razo o ser, ao ser conhecido pelo ato do conhecimento, e na
medida em que conhecido, ser movido, pois que passivo, e isso no pode
acontecer ao que est em repouso.
TEETETO
certo.
ESTRANGEIRO
Mas como? Por Zeus! Deixar-nos-emos, assim, to facilmente, convencer
de que o movimento, a vida, a alma, o pensamento no tm, realmente, lugar no
seio do ser absoluto; que ele nem vive nem pensa e que, solene e sagrado,
desprovido de inteligncia, permanece esttico sem poder movimentar-se?
TEETETO
Na verdade, estrangeiro, estaramos aceitando, assim, uma doutrina
assustadora!
ESTRANGEIRO
Admitiremos ento que ele tem inteligncia e no tem vida?
TEETETO
Como admiti-lo?
ESTRANGEIRO
Mas, afirmando nele a presena de uma e outra poderemos negar que
tenha tais presenas numa alma?
TEETETO
De que outra forma poderia t-las?
ESTRANGEIRO
Teria, ento, inteligncia, vida e alma, e ainda que animado, permaneceria
esttico sem mover-se de nenhuma maneira?
TEETETO
Seria absurdo!, ao que me parece.
ESTRANGEIRO
Temos, pois, de conceder o ser ao que movido e ao movimento.
TEETETO
Como neg-lo?
ESTRANGEIRO
Do que se segue, Teeteto, que se os seres so imveis, .no h inteligncia
em parte alguma, em nenhum sujeito e para nenhum objeto.
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
Por outro lado se admitirmos que tudo est em translaao e em
movimento excluiremos a prpria inteligncia do nmero dos seres.
TEETETO
Como?
ESTRANGEIRO
Haver jamais, a teu ver, permanncia de estado, permanncia de modo e
permanncia de objeto onde no houver repouso?
TEETETO
Nunca.
ESTRANGEIRO
E, faltando estas condies, crs que exista a inteligncia ou que jamais
tenha existido, em alguma parte?
TEETETO
Certamente no.
ESTRANGEIRO
Ora, se h algum a quem devemos combater com todas as foras do
raciocnio quem, eliminando a cincia, o pensamento claro ou a inteligncia, a
esse preo afirma uma tese qualquer.
TEETETO
Muito bem!
ESTRANGEIRO
Ao filsofo, pois, e a quem quer que coloque este bem acima de todos,
parece prescrever-se uma regra absoluta: recusar a doutrina da imobilidade
universal que professam os defensores ou do Uno ou das formas mltiplas, bem
como no ouvir aos que fazem o ser mover-se em todos os sentidos. E preciso que
imite as crianas que querem ambos ao mesmo tempo, admitindo tudo o que
imvel e tudo o que se move, o ser e o Todo, ao mesmo tempo.
TEETETO
a pura verdade.
A irredutibilidade do ser ao movimento e ao repouso

ESTRANGEIRO
E ento? No parece que, a partir de agora, encerramos perfeitamente o
ser em nossa definio?
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Oh! assim fosse, Teeteto!, pois ao que creio precisamente este o
momento em que veremos o quanto o seu exame difcil.
TEETETO
Em qu, ainda? Que queres dizer?
ESTRANGEIRO
jovem feliz! No te apercebes de que, embora acreditando discerni-lo
claramente, ns agora nos encontramos na ignorncia mais profunda a seu
respeito?
TEETETO
Era o que pelo menos eu acreditava, e no sei bem em que estejamos
assim enganados.
ESTRANGEIRO
Examina, ento, mais claramente, se a propsito de nossas ltimas
concluses, no se teria direito de propor-nos as mesmas questes que propusemos
antes aos que definiam o Todo pelo quente e o frio.
TEETETO
Que questes? Dize-as de novo.
ESTRANGEIRO
De bom grado. Ao record-las, procurarei faz-lo interrogando-te da
mesma forma como ento os interrogara; o que nos servir para, ao mesmo tempo,
progredir um pouco.
TEETETO
Muito bem.
ESTRANGEIRO
Vejamos: o repouso e o movimento no' so, na tua opinio,
absolutamente contrrios um ao outro?
TEETETO
Sem dvida.
ESTRANGEIRO
Entretanto tu afirmas que ambos so e tanto um como outro?
TEETETO
Sim, certamente o afirmo.
ESTRANGEIRO
Dizendo que so, declaras estarem os dois e cada um deles em
movimento?
TEETETO
Nunca.
ESTRANGEIRO
Mas dizendo que ambos so, declaras que esto imveis?
TEETETO
Como isso?
ESTRANGEIRO
Logo, supes em teu esprito, alm dessas duas coisas, uma terceira: o ser.
Este abrange repouso e movimento. No dizes que os dois so, unindo-os e
observando a sua participao na existncia?
TEETETO
Parece realmente que pressentimos uma terceira coisa, o ser, quando
dizemos que movimento e repouso so.
ESTRANGEIRO
Logo, o ser no a reunio de repouso e movimento, mas coisa
diferente de ambos.
TEETETO
Naturalmente.
ESTRANGEIRO
Por sua prpria natureza, o ser no est imvel nem em movimento.
TEETETO
mais ou menos assim.
ESTRANGEIRO
Para onde deve dirigir o raciocnio quem quiser descobrir uma teoria bem
fundada a esse respeito?
TEETETO
Para onde? Dize.
ESTRANGEIRO
Creio que em nenhuma parte fcil; pois, se uma coisa no se move,
como possvel que no esteja parada? E como deixar de ter movimento aquilo
que nunca est quieto? Portanto, o ser revelou-se agora como separado dos dois.
Isto possvel?
TEETETO
a coisa mais impossvel entre todas.
ESTRANGEIRO
Aqui devemos lembrar isto.
TEETETO
O qu?
ESTRANGEIRO
Que encontramos grande dificuldade quando algum nos perguntou com
que coisa se relaciona a expresso "no-ser". Recordas?
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
Ser porventura menor a dificuldade em que ora nos encontramos a
propsito do ser?
TEETETO
A meu ver, estrangeiro, se me permites dizer, ainda maior.
ESTRANGEIRO
Nesse caso, paremos nossa exposio nessa delicada questo. J, pois, que
o ser e o no-ser nos trazem iguais dificuldades, podemos doravante esperar que,
no dia mais ou menos claro, em que um deles se revlar, o outro se esclarecer de
igual que nos for possvel, tomando a ambos modo. Se nenhum deles se revelar a
simultaneamente, ns, no deixaremos de prosseguir em nossa discusso, da
melhor maneira
TEETETO

Muito bem.
O problema da predicao
e a comunidade dos gneros
ESTRANGEIRO
Expliquemos, pois, como pode acontecer que designemos uma nica e
mesma coisa por uma pluralidade de nomes.
TEETETO
Tens um exemplo? Dize-o.
ESTRANGEIRO
Como sabes, ao falarmos do "homem" damos-lhe mltiplas
denominaes. Atribumos-lhe cores, formas, grandezas, vcios e virtudes; em
todos esses atributos, como em inmeros outros, no afirmamos apenas a
existncia do homem, mas ainda do bom, e outras qualificaes em nmero
ilimitado. O mesmo se d com todos os objetos: afirmamos, igualmente, que, cada
um deles um, para logo a seguir consider-lo mltiplo e design-lo por uma
multiplicidade de nomes.
TEETETO
verdade.
ESTRANGEIRO
E creio que assim fazendo estaremos servindo aos jovens e a alguns
velhos, que s agora comeam a instruir-se, um verdadeiro banquete. Est ao
alcance de qualquer um dar a resposta imediata: impossvel que o mltiplo seja
um e que o uno seja mltiplo. E, na verdade, aprazem-se em no permitir que o
homem seja chamado bom, mas apenas que o bom seja chamado bom, e o homem,
homem. Creio que freqentemente encontras, Teeteto, pessoas cujo zelo se inflama
a respeito deste assunto: muitas vezes, pela pobreza de sua bagagem intelectual,
pessoas de idade mais que madura, se extasiam a esse propsito, crendo,
certamente, haver feito uma descoberta de grande sabedoria.
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Para que nossa argumentao se aplique a todos aqueles que, no importa
em que sentido, discorreram a respeito do ser, suponhamos que dirigimos as
questes que se seguem no apenas a nossos atuais contendores mas a todos
aqueles com quem acabamos de dialogar.
TEETETO
Que questes?
ESTRANGEIRO
Ser-nos- vedado unir o ser ao repouso e ao movimento, assim como
unir uma a outra quaisquer coisas que sejam, e, considerando-as, ao contrrio,
como inaliveis, como incapazes de participao mtua, trat-las como tais em
nossa linguagem? Ou as uniremos todas supondo-as capazes de se associarem
mutuamente? Ou, enfim, diremos que algumas possuem essa capacidade e outras
no? Dessas possibilidades, Teeteto, qual poderemos afirmar que se orientar a
preferncia dos homens?
TEETETO
Eu, pelo menos, nada posso responder em seu nome, a esse respeito.
ESTRANGEIRO
Por que no resolves estas questes uma a uma, procurando as
conseqncias a que cada hiptese nos conduz?
TEETETO
Tua idia excelente.
ESTRANGEIRO
Suponhamos, pois, pelo menos como hiptese, que a primeira afirmativa
seja, se concordas, a seguinte: nada possui, com nada, possibilidade alguma de
comunidade sob qualquer relao que seja. Isto no significa excluir o movimento e
o repouso de toda participao na existncia?
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
E ento? Poder dar-se o caso de algum deles existir e no possuir
comunidade com a existncia?
TEETETO
impossvel.
ESTRANGEIRO
Eis uma concluso que, rapidamente, inverteu tudo, ao que parece: a tese
daqueles' que movem o Todo, a tese daqueles que, afirmando-o uno, o imobilizam,
e a tese de todos aqueles que, classificando os seres por Formas, afirmam-nos
eternamente idnticos e imutveis. Pois todas essas pessoas fazem essa atribuio
do ser, quer falando do ser realmente mvel, quer falando do ser realmente imvel.
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
Alm do mais, todos aqueles que ora unificam o todo e ora o dividem,
seja conduzindo unidade, ou da unidade fazendo surgir uma infinidade; seja
decompondo-o em elementos fini-tos e em elementos finitos recompondo; quer
descrevam este duplo devir como uma alternncia ou uma coexistncia eterna, no
importa: nada dizem, desde que nada pode associar-se.
TEETETO
certo.
ESTRANGEIRO
Mas aqueles que, entre todos, exporiam sua tese ao ridculo mais ruidoso,
so os que no querem, em caso algum, consentir que, pelo efeito dessa
comunidade que um ser suporta com outro, qualquer que seja ele, receba outra
denominao que no a sua.
TEETETO
Como?
ESTRANGEIRO
que a propsito de tudo, vem-se obrigados a empregar as expresses
"ser" " parte", "dos outros", "em si", e milhares de outras determinaes.
Incapazes de delas se livrarem e delas se servindo em seus discursos, eles no
necessitam que outro os refute mas, como se diz, alojam no seu ntimo, o inimigo e
o contraditor; e essa voz que os critica no seu interior eles a arrastam para onde
queiram maneira do bizarro Euricles5.
TEETETO
Tua comparao admirvel e verdadeira.
ESTRANGEIRO
Mas que aconteceria se concedssemos a todas as coisas este poder de
mtua comunidade?
TEETETO
Essa pergunta eu mesmo posso responder.

5
Euricles, clebre ventrloquo daquela poca, mencionado tambm nas Vespas de Aristfanes. (N. do T.)
ESTRANGEIRO
Em que sentido?
TEETETO
Do seguinte modo: o movimento se tornaria repouso absoluto e o
prprio repouso, por sua vez, mover-se-ia no momento em que eles se unissem um
ao outro.
ESTRANGEIRO
Ora, impossvel, absolutamente impossvel, creio, que o movimento seja
imvel e o repouso mvel?
TEETETO
Sem dvida alguma.
ESTRANGEIRO
Resta-nos, ento, somente a terceira hiptese.
TEETETO
Realmente.
ESTRANGEIRO
Ora, uma ao menos, destas hipteses, certamente verdadeira: ou tudo se
une ou nada se une, ou ento, h algo que se presta e algo que no se presta
mtua associao.
TEETETO
Sem dvida.
ESTRANGEIRO
Mas precisamente as duas primeiras se revelaram impossveis.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Quem quiser responder corretamente, poder sustentar apenas a ltima.
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
Desde que, pois, algumas vezes se consente a unio, e outras vezes se
recusa, o caso seria mais ou menos idntico ao que se d com as letras: entre elas
tambm, com efeito, h desacordo entre algumas e acordo entre outras.
TEETETO
No h dvida.
ESTRANGEIRO
Mas as vogais, certamente, se distinguem das outras letras, pelo fato de
circularem como laos atravs de todas; alm disso, sem uma delas impossvel que
as outras se combinem uma a uma.
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
Nesse caso, saber o novato quais so aquelas que podem ter essa
comunidade, ou ser necessria uma arte a quem, a respeito delas, pretender o
emprego de uma cincia eficaz?
TEETETO
-lhe necessria uma arte.
ESTRANGEIRO
Qual?
TEETETO
A gramtica.
ESTRANGEIRO
Com relao aos tons agudos e graves no acontece o mesmo? Aquele
que possui a arte de saber quais os que se combinam e quais os que no se
combinam msico; e aquele que nada entende a esse respeito no um leigo?
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
E em toda arte, entre competncias e incompetncias encontraremos as
mesmas diferenas.
TEETETO
Naturalmente.

A dialtica e o filsofo

ESTRANGEIRO
Muito bem. Desde que os gneros, como conviemos, so eles tambm
mutuamente suscetveis de semelhantes associaes, no haver necessidade de
uma cincia que nos oriente atravs do discurso, se quisermos apontar com
exatido quais os gneros que so mutuamente concordes e quais os outros que
no podem suportar-se, e mostrar mesmo, se h alguns que, estabelecendo a
continuidade atravs de todos, tornam possveis suas combinaes, e se, ao
contrrio nas divises, no h outros que, entre os conjuntos, so os fatores dessa
diviso?
TEETETO
Certamente necessria tal cincia que , talvez, a suprema cincia?
ESTRANGEIRO
Que nome, ento, daramos a essa cincia, Teeteto? Por Zeus, no
estaremos, sem o sabermos, dirigindo-nos para a cincia dos homens livres e
correndo o risco, ns que procuramos o sofista, de haver, antes de encontr-lo,
descoberto o filsofo?
TEETETO
Que queres dizer?
ESTRANGEIRO
Dividir assim por gneros, e no tomar por outra, uma forma que a
mesma, nem pela mesma uma forma que outra, no essa, como diramos, a obra
da cincia dialtica?
TEETETO
Sim, assim diramos.
ESTRANGEIRO
Aquele que assim capaz discerne, em olhar penetrante, uma forma nica
desdobrada em todos os sentidos, atravs de uma pluralidade de formas, das quais
cada uma permanece distinta; e mais: uma pluralidade de formas diferentes umas
das outras envolvidas exteriormente por uma forma nica repartida atravs de
pluralidade de todos e ligada unidade; finalmente, numerosas formas inteiramente
isoladas e separadas; e assim sabe discernir, gneros por gneros, as associaes que
para cada um deles so possveis ou impossveis.
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Ora, esse dom, o dom dialtico, no atribuirs a nenhum outro, acredito,
seno quele que filosofa em toda pureza e justia.
TEETETO
Como atribu-lo a outrem?
ESTRANGEIRO
Eis, pois, em que lugar, agora ou mais tarde, poderemos encontrar o
filsofo se chegarmos a procur-lo. Ele prprio difcil de ser visto com bastante
clareza. Mas esta dificuldade no a mesma para ele e para o sofista.
TEETETO
Como assim?
ESTRANGEIRO
Este se refugia na obscuridade do no-ser, a se adapta fora de a viver;
e obscuridade do lugar que se deve o fato de ser difcil alcan-lo plenamente,
no verdade?
TEETETO
Ao que parece.
ESTRANGEIRO
Quanto ao filsofo, forma do ser que se dirigem perpetuamente seus
raciocnios, e graas ao resplendor dessa regio que ele no , tambm, de todo
fcil de se ver. Pois os olhos da alma vulgar no suportam, com persistncia, a
contemplao das coisas divinas.
TEETETO
uma explicao to verossimilhante quanto a primeira.
ESTRANGEIRO
Dentro em pouco procuraremos uma idia clara do filsofo, se assim
quisermos. Mas quanto ao sofista, parece-me que ho devemos abandon-lo antes
de o havermos examinado muito bem.
TEETETO
Tens razo.

Os gneros supremos e suas relaes mtuas

ESTRANGEIRO
J que, relativamente aos gneros, chegamos ao acordo de que uns se
prestam a uma comunidade mtua, outros no; de que alguns aceitam essa
comunidade com alguns, outros com muitos, e de que outros, enfim, penetrando
em todos os lugares, nada encontram que lhes impea de entrar em comunidade
com todos, resta-nos apenas deixarmo-nos conduzir por essa ordem de
argumentao, prosseguindo em nosso exame. No o estenderemos alis,
universalidade das formas, temendo confundirmo-nos nessa multido.
Consideraremos, entretanto, algumas destas, que nos parecem as mais importantes,
e veremos, em primeiro lugar, o que so elas, tomadas separadamente, para em
seguida examinar em que medida so elas suscetveis de se associarem umas s
outras. Dessa forma, se no chegarmos a conceber com plena clareza o ser e o no-
ser, poderemos ao menos deles dar uma explicao to satisfatria quanto o
permita este mtodo de pesquisa. Saberemos ento se podemos dizer que o no-ser
realmente inexistente e dele nos livrarmos sem nada perder.
TEETETO
o que necessrio fazer.
ESTRANGEIRO
Ora, os mais importantes desses gneros so precisamente aqueles que
acabamos de examinar: o prprio ser, o repouso e o movimento.
TEETETO
De longe, os maiores.
ESTRANGEIRO
Dissemos, por outro lado, que os dois ltimos no podiam associar-se um
ao outro.
TEETETO
exato.
ESTRANGEIRO
Mas o ser se associa a ambos: pois, em suma, os dois so.
TEETETO
No h dvida.
ESTRANGEIRO
Ento, h trs.
TEETETO
Evidentemente.
ESTRANGEIRO
Assim, cada um outro com relao aos dois que restam, e o mesmo que
ele prprio.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Mas que significado demos a este "mesmo" e a este "outro"? Sero estes
dois gneros diferentes dos trs primeiros, se bem que sempre necessariamente
associados a eles? Deveremos, ento, considerar cinco seres e no trs, ou este
"mesmo" e este "outro" sero, sem que o saibamos, simplesmente outros nomes
que damos a qualquer um dos gneros precedentes?
TEETETO
Talvez.
ESTRANGEIRO
Mas certamente nem o movimento nem o repouso no sero o "outro"
nem o "mesmo".
TEETETO
Como assim?
ESTRANGEIRO
O que quer que atribuamos de comum ao movimento e ao repouso no
poder ser nem um nem outro deles.
TEETETO
Por qu?
ESTRANGEIRO
Porque ao mesmo tempo o movimento se imobilizaria, e o repouso se
tornaria mvel. Com efeito, se qualquer um dentre eles se aplicar a esse par,
obrigar o outro a mudar sua prpria natureza na natureza contrria, pois o tornar
participante de seu contrrio.
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
Mas ambos participam, quer do mesmo, quer do outro.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
No digamos, pois, que o movimento o mesmo ou o outro, nem o
digamos para o repouso.
TEETETO
Realmente, no o diremos.
ESTRANGEIRO
Muito bem, deveremos entender o ser e o mesmo como constituindo
um?
TEETETO
Talvez.
ESTRANGEIRO
Mas se o ser e o mesmo no significam nada de diferente, ao afirmar-mos
que o movimento e o repouso so, diremos que eles so o mesmo, como seres que
so.
TEETETO
Entretanto, isso impossvel.
ESTRANGEIRO
Ento impossvel que o mesmo e o ser no sejam seno um.
TEETETO
Sim, ao que parece.
ESTRANGEIRO
Deveremos, pois, s trs formas precedentes, adicionar "o mesmo" como
quarta forma?
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
E ento? "O outro" dever ser contado como uma quinta forma? Ou ser
necessrio entender a ele e ao ser como dois nomes que servem a um gnero nico?
TEETETO
Talvez.
ESTRANGEIRO
Mas concordars, creio, que dentre os seres uns se expressam por si
mesmos e outros, unicamente em alguma relao.
TEETETO
Evidentemente.
ESTRANGEIRO
Ora, "o outro" se diz sempre relativamente a um outro, no ?
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
Isso no se daria se o ser e o "outro" no fossem totalmente diferentes.
Supondo-se que o "outro" participasse das duas formas, como acontece com o ser,
poderia acontecer que, a um dado momento, houvesse um outro que no fosse
relativo a outra coisa. Ora, j vimos perfeitamente que tudo o que outro s o
por causa da sua relao necessria a outra coisa.
TEETETO
verdade o que dizes.
ESTRANGEIRO
necessrio, pois, considerar a natureza do "outro" como uma quinta
forma, entre as que j estabelecemos.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Diremos, tambm, que ela se estende atravs de todas as demais. Cada
uma delas, com efeito, outra alm do resto, no em virtude de sua prpria
natureza, mas pelo fato de que ela participa da forma do "outro".
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
Eis, pois, o que nos necessrio dizer a respeito dessas cinco formas
tomadas uma a uma.
TEETETO
O qu?
ESTRANGEIRO
Em primeiro lugar, o movimento: ele absolutamente outro que no o
repouso. No o que dizemos?
TEETETO
.
ESTRANGEIRO
Logo, ele no repouso.
TEETETO
De maneira alguma.
ESTRANGEIRO
Entretanto, ele "" pelo fato de participar do ser.
TEETETO
.
ESTRANGEIRO
E mais: o movimento outro que no o "mesmo".
TEETETO
Seja.
ESTRANGEIRO
Ento ele no "o mesmo".
TEETETO
Certamente no.
ESTRANGEIRO
Entretanto, vimos que ele o mesmo, pois como conviemos tudo
participava do mesmo.
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
Ento o movimento o mesmo, e no o mesmo: necessrio convir
nesse ponto sem nos afligirmos, pois, quando dizemos o mesmo e no o mesmo,
no nos referimos s mesmas relaes. Quando afirmamos que ele o mesmo
porque, em si mesmo, ele participa do mesmo, e quando dizemos que ele no o
mesmo, em conseqncia de sua comunidade com "o outro", comunidade esta
que o separa do "mesmo" e o torna no-mesmo, e sim outro; de sorte que, neste
caso, temos o direito de cham-lo "no-o-mesmo".
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Se, pois, de alguma maneira, o prprio movimento participa do repouso,
haveria algo de estranho em cham-lo estacionrio?
TEETETO
Seria, ao contrrio, perfeitamente correto, se devemos convir que, entre
os gneros, uns se prestam associao mtua, outros no.
ESTRANGEIRO
Ora, essa justamente a demonstrao qual havamos chegado antes de
atingirmos esta, e havamos provado que precisamente essa a sua natureza.
TEETETO
Evidentemente.
ESTRANGEIRO
Retomemos, pois: o movimento outro que no o "outro", assim como
era outro que no o mesmo e que no o repouso?
TEETETO
Necessariamente.
ESTRANGEIRO
Em certa relao ele no , pois, o outro; e outro de acordo com o
nosso raciocnio de agora.
TEETETO
verdade.
ESTRANGEIRO
Da o que se segue? Iremos ns, afirmando-o outro que no os trs
primeiros, negar que seja outro que no o quarto, havendo concordado que os
gneros que estabelecemos e que nos propusemos examinar eram cinco?
TEETETO
E o meio? No podemos admitir um nmero menor que aquele que h
pouco demonstramos?

Definio do no-ser como alteridade

ESTRANGEIRO
, pois, sem temor que sustentamos esta afirmao: o movimento outro
que no o ser.
TEETETO
Sim, sem sombra de escrpulo.
ESTRANGEIRO
Assim, pois, est claro que o movimento , realmente, no ser, ainda que
seja ser na medida em que participa do ser?
TEETETO
Absolutamente claro.
ESTRANGEIRO
Segue-se, pois, necessariamente, que h um ser do no-ser, no somente
no movimento, mas em toda a srie dos gneros; pois na verdade, em todos eles a
natureza do outro faz cada um deles outro que no o ser e, por isso mesmo, no-
ser. Assim, universalmente, por essa relao, chamaremos a todos, corretamente,
no-ser; e ao contrrio, pelo fato de eles participarem do ser, diremos que so seres.
TEETETO
possvel.
ESTRANGEIRO
Assim, cada forma encerra uma multiplicidade de ser e uma quantidade
infinita de no-ser.
TEETETO
possvel.
ESTRANGEIRO
Logo, necessrio afirmar que o prprio ser outro que no o resto dos
gneros.
TEETETO
Necessariamente.
ESTRANGEIRO
Assim, vemos que tantos quantos os outros so, tantas vezes o ser no ;
pois, no os sendo, ele um em si; e por sua vez, os outros, infinitos em nmero,
no so.
TEETETO
Parece ser verdade.
ESTRANGEIRO
Aqui, ainda, no h nada que nos deva preocupar, pois a natureza dos
gneros comporta comunidade mtua. Aquele que se recusa a concordar conosco
neste ponto, que comece por converter sua causa os argumentos precedentes,
antes de procurar negar as concluses.
TEETETO
O que pedes justo.
ESTRANGEIRO
Eis, ainda, um ponto a considerar.
TEETETO
Qual?
ESTRANGEIRO
Quando falamos no no-ser isso no significa, ao que parece, qualquer
coisa contrria ao ser, mas apenas outra coisa qualquer que no o ser.
TEETETO
Como assim?
ESTRANGEIRO
Quando, por exemplo, falamos de algo "no grande", crs que por essa
expresso designamos mais o pequeno que o igual?
TEETETO
Que razo teramos ns?
ESTRANGEIRO
No podemos, pois, admitir que a negao signifique contrariedade, mas
apenas admitiremos nela alguma coisa de diferente. Eis o que significa o "no" que
colocamos como prefixo dos nomes que seguem a negao, ou ainda das coisas
designadas por esses nomes.
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Ainda uma observao se me permites.
TEETETO
Qual?
ESTRANGEIRO
A natureza do outro me parece dividir-se do mesmo modo que a cincia.
TEETETO
Como?
ESTRANGEIRO
Tambm a cincia una, no ? Mas cada parte que dela se separa, para
aplicar-se a um determinado objeto, tem um nome que lhe prprio: por isso que
se fala de uma pluralidade de artes e cincias.
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO .
Pois bem; as partes dessa unidade que a natureza do outro, especificam-
se do mesmo modo.
TEETETO
Talvez sim; mas explica-nos de que maneira.
ESTRANGEIRO
H alguma parte do outro que se oponha ao belo?
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Ela annima ou tem um nome particular?
TEETETO
Sim, h um nome: pois tudo o que chamamos no-belo outro que o
belo, exclusivamente.
ESTRANGEIRO
Eis agora minha questo.
TEETETO
Qual?
ESTRANGEIRO
O no-belo no um ser que separamos de um gnero determinado, e
que depois opomos a outro ser?
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
O no-belo se reduz, pois, ao que parece, a uma oposio determinada de
ser a ser.
TEETETO
Perfeitamente justo.
ESTRANGEIRO
Poderamos ento, dizer que, desta maneira, o belo seria mais ser, e o
no-belo, menos?
TEETETO
Absolutamente no.
ESTRANGEIRO
Devemos afirmar, ento, que o no-grande , pela mesma razo que o
prprio grande?
TEETETO
Sim, e pela mesma razo.
ESTRANGEIRO
Logo, o no-justo deve colocar-se, tambm, na mesma plana que o justo,
na medida em que, de maneira alguma, um no mais ser que o outro.
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
O mesmo se dir de todo o resto, pois que a natureza do outro, pelo que
vimos, se inclui entre os seres; e se ela , necessrio considerar as suas partes
como seres pela mesma razo que o que quer que seja.
TEETETO
Evidentemente.
ESTRANGEIRO
Assim, ao que parece, quando uma parte da natureza do outro e uma
parte da natureza do ser se opem mutuamente, esta oposio no , se assim
podemos dizer, menos ser que o prprio ser; pois no o contrrio do ser o que
ela exprime; e sim, simplesmente, algo dele diferente.
TEETETO
claro.
ESTRANGEIRO
E, ento, que nome lhe daramos?
TEETETO
Claro que o de "no-ser" precisamente; o no-ser que buscvamos a
propsito do sofista.
ESTRANGEIRO
Ele no , pois, como disseste, inferior em ser a nenhum outro.
necessrio animarmo-nos a proclamar, desde j, que o no-ser , a ttulo estvel,
possuidor de uma natureza que lhe prpria do mesmo modo que o grande era
grande e o belo era belo, e o no-grande, no-grande, e o no-belo, no-belo; por
essa mesma razo tambm, o no-ser era e no-ser, unidade integrante no nmero
que constitui a multido das formas. Ou a teu ver, Teeteto, teramos alguma
dvida?
TEETETO
Nenhuma.

Recapitulao da argumentao
sobre a realidade do no-ser

ESTRANGEIRO
Sabes, a este respeito, que nosso desafio a Parmnides, nos levou bem
alm dos limites por ele interditados?
TEETETO
Para onde?
ESTRANGEIRO
Levamos nossas pesquisas muito alm, estendendo-as a um campo bem
mais vasto que aquele que ele nos permitia explorar, e, contra ele, estabelecemos
nossas demonstraes.
TEETETO
Como?
ESTRANGEIRO
Se me recordo, ele disse: "Jamais obrigars os no-seres a ser; Antes,
afasta teu pensamento desse caminho de investigao."
TEETETO
Sim, foi exatamente o que disse.
ESTRANGEIRO
Ora, no nos contentamos apenas em demonstrar que os no-seres so,
mas fizemos ver em que consiste a forma do no-ser. Uma vez demonstrado, com
efeito, que h uma natureza do outro, e que ela se divide entre todos os seres em
suas relaes mtuas, afirmamos, audaciosamente, que cada parte do outro que se
ope ao ser constitui realmente o no-ser.
TEETETO
E a meu ver, estrangeiro, o que dissemos a pura verdade.
ESTRANGEIRO
No nos venham, pois, dizer, que porque denunciamos o no-ser como
o contrrio do ser, que temos a audcia de afirmar que ele . Para ns, h muito
tempo que demos adeus a no sei que contrrio do ser, no nos importando saber
se ele ou no, se racional ou totalmente irracional. Quanto definio que h
pouco demos do no-ser, que nos convenam de sua falsidade, refutando-a, ou,
no lhes sendo possvel, que aceitem afirmar o que ns afirmamos. H uma
associao mtua dos seres. O ser e o outro penetram atravs de todos e se
penetram mutuamente. Assim, o outro, participando do ser, , pelo fato dessa
participao, sem, entretanto, ser aquilo de que participa, mas o outro, e por ser
outro que no o ser, , por manifesta necessidade, no-ser. O ser, por sua vez,
participando do outro, ser pois, outro que no o resto dos gneros. Sendo outro
que no eles todos, no , pois, nenhum deles tomado parte, nem a totalidade dos
outros, mas somente ele mesmo; de sorte que o ser, incontestavelmente, milhares e
milhares de vezes no , e os outros, seja individualmente, seja em sua totalidade,
so sob mltiplas relaes, e, sob mltiplas relaes no so.
TEETETO
verdade.
ESTRANGEIRO
Quem se recusar a crer nessas oposies, que pesquise, ento, e explique
melhor do que acabamos de explicar. Mas crer que realizamos uma inveno difcil
por sentirmos prazer em forar os argumentos em todos os sentidos, preocupar-
se com coisas que no valem esse trabalho; nossos argumentos presentes o
confirmam. No h aqui, com efeito, inveno elegante nem descoberta difcil.
Mas, eis o que ao mesmo tempo difcil e belo.
TEETETO
O qu?
ESTRANGEIRO
J o disse: abandonar essas argcias prprias ao novato, e que no
envolvem dificuldade alguma, e mostrar-se capaz de seguir a marcha de uma
argumentao, criticando-a passo a passo, e, quer ela afirme ser o mesmo sob uma
certa relao o que outro, ou outro o que mesmo, discuti-la de acordo com a
prpria relao e o ponto de vista que ela considera em uma ou outra dessas
assertivas. Mas, mostrar no importa como, que o mesmo outro, e o outro, o
mesmo; o grande, pequeno; o semelhante, dessemelhante, sentindo prazer em
apresentar perpetuamente essas oposies nos argumentos, isso no constitui a
verdadeira crtica: apenas, evidentemente, o fruto prematuro de um primeiro
contato com o real.
TEETETO
Certamente.

Aplicao questo do erro na opinio e no discurso

ESTRANGEIRO
Na verdade, meu caro amigo, esforar-se por separar tudo de tudo, no
apenas ofender harmonia, mas ignorar totalmente as musas e a filosofia.
TEETETO
Por qu?
ESTRANGEIRO
a maneira mais radical de aniquilar todo discurso, isolar cada coisa de
todo o resto; pois pela mtua combinao das formas que o discurso nasce.
TEETETO
verdade.
ESTRANGEIRO
Vs, pois, como era oportuno, como o fizemos h pouco, lutar contra
essas pessoas e constrang-las a aceitar a associao mtua.
TEETETO
Oportuno para qu?
ESTRANGEIRO
Para assegurar ao discurso lugar no nmero dos gneros do ser. Privar-
mo-nos disso, com efeito, seria, desde logo perda suprema privar-nos da
filosofia. Alm disso, -nos necessrio, agora, definirmos a natureza do discurso. Se
dele fssemos privados, recusando-lhe absolutamente o ser, isso significaria negar-
nos toda possibilidade de discorrer sobre o que quer que fosse, e dele estaramos
privados se concordssemos que absolutamente nada se associa a nada.
TEETETO
Tens razo nesse ponto. Mas no compreendo por que devemos, agora,
definir em comum o discurso.
ESTRANGEIRO
Eis, talvez, algumas razes que te faro se me quiseres ouvir
compreender mais facilmente.
TEETETO
Quais?
ESTRANGEIRO
Havamos descoberto que o no-ser um gnero determinado entre os
demais, e que se distribui por toda srie dos gneros.
TEETETO
exato.
ESTRANGEIRO
Muito bem; resta-nos agora examinar se ele se associa opinio e ao
discurso.
TEETETO
Por qu?
ESTRANGEIRO
Se ele no se associa, segue-se necessariamente que tudo verdadeiro.
Mas, uma vez que a ele se associe, ento, a opinio falsa e o discurso falso sero
possveis. O fato de serem no-seres o que se enuncia ou se representa, eis o que
constitui a falsidade, quer no pensamento, quer no discurso.
TEETETO
Com efeito.
ESTRANGEIRO
Ora, se h falsidade, h engano.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
E desde que h engano, h em tudo, inevitavelmente, imagens, cpias e
simulacros.
TEETETO
Naturalmente.
ESTRANGEIRO
Ora, como dissemos, exatamente neste abrigo que o sofista se refugiou,
e, uma vez ali, negou obstinadamente a prpria existncia da falsidade. A seu ver,
ningum h que conceba ou que enuncie o no-ser; pois o no-ser no possui, sob
relao alguma, parte nenhuma no ser.
TEETETO
Foi exatamente essa sua atitude.
ESTRANGEIRO
Agora, entretanto, o no-ser se revelou participar do ser, e aquele
argumento j no lhe servir mais de arma. Objetaria ele, talvez, que algumas
formas participam do no-ser, e outras no, e que, precisamente, o discurso e a
opinio esto no nmero daquelas que no possuem essa participao. Assim,
arte que produz imagens e simulacros, e na qual pretendamos aloj-lo, ele negaria
absolutamente e com toda sua fora o ser, uma vez que a opinio e o discurso no
possuem comunidade com o no-ser; pois no poder haver ali falsidade se essa
comunidade no existe. Eis, pois, por que razes nos necessrio examinar
cuidadosamente o que podem ser o discurso, a opinio e a imaginao; e, uma vez
assim esclarecidos, descobrir a comunidade que eles possuem com o no-ser; e a
partir desta descoberta, demonstrar a existncia da falsidade; demonstrada a
existncia da falsidade, nela aprisionar o sofista se contra ele couber esta acusao
ou, dela o absolvendo, procur-lo em qualquer outro gnero.
TEETETO
Eis que me parece bom, estrangeiro, verificar com certeza o que dissemos
do sofista, no incio: que seu gnero era de difcil caa. Realmente, ele nos aparece
frtil em problemas; e to logo nos proponha um, necessrio destru-lo
violentamente, antes de chegar at ele, sofista. Na verdade, apenas chegamos ao fim
do problema que ele nos ops, negando o no-ser, e eis que ele nos prope outro:
o do falso, cuja existncia no discurso e na opinio nos necessrio agora
demonstrar. Aps o que se levantar, talvez, um novo problema, que um outro
ainda vir secundar, e, ao que parece jamais veremos o fim.
ESTRANGEIRO
necessrio ter coragem, Teeteto, por pequeno que seja o avano que
possamos, a cada passo, progredir. Desencorajando-nos diante desses primeiros
obstculos, que poderamos contra os demais j no avanando sequer um passo,
ou mesmo sendo impelidos para trs? Como diz o provrbio, um tal esprito, fraco,
nunca tomar uma cidade. J que, por ora, meu caro, levamos a termo a
demonstrao que dizes. a mais forte muralha est vencida: o resto ser, de agora
em diante, mais fcil e de menor importncia.
TEETETO
Disseste bem.
ESTRANGEIRO
Tomemos, pois, de incio, como dizamos h pouco, o discurso e a
opinio, para verificar mais claramente, se o no-ser a eles se prende, ou se eles so
absolutamente verdadeiros, um e outro, e jamais falsos.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Prossigamos, a exemplo do que falamos das formas e das letras, e do -
esmo modo refaamos esta pesquisa, tomando por objetos os nomes. Este um
ponto de vista, no qual se deixa entrever a soluo que procuramos.
TEETETO
Que questo propors, pois, a propsito desses nomes?
ESTRANGEIRO
Se todos concordam, ou nenhum; ou se uns se prestam a um acordo, e
outros no.
TEETETO
A ltima hiptese evidente: uns se prestam a ele; outros no.
ESTRANGEIRO
Eis, talvez, o que entendes por isso: aqueles que, ditos em ordem, fazem
sentido, concordam; os outros, cuja seqncia no forma sentido nenhum, no
concordam.
TEETETO
Como assim? Que queres dizer?
ESTRANGEIRO
O que julguei teres no esprito, ao concordares comigo. Possumos, na
verdade, para exprimir vocalmente o ser, dois gneros de sinais.
TEETETO
Quais?
ESTRANGEIRO
Os nomes e os verbos, como os chamamos.
TEETETO
Explica tua distino.
ESTRANGEIRO
O que exprime as aes, ns chamamos verbo.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Quanto aos sujeitos que executam essas aes, o sinal vocal que a eles se
aplica um nome.
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Nomes apenas, enunciados de princpio a fim, jamais formam um
discurso, assim como verbos enunciados sem o acompanhamento de algum nome.
TEETETO
Eis o que eu no sabia.
ESTRANGEIRO
que, certamente, tinhas outra coisa em vista, dando-me, h pouco, teu
assentimento; pois o que eu queria dizer era exatamente isso: enunciados numa
seqncia como esta, eles no formam um discurso.
TEETETO
Em que seqncia?
ESTRANGEIRO
Por exemplo, anda, corre, dorme, e todos os demais verbos que significam
ao; mesmo dizendo-os todos, uns aps outros, nem por isso formam um
discurso.
TEETETO
Naturalmente.
ESTRANGEIRO
E se dissermos ainda: leo, cervo, cavalo, e todos os demais nomes que
denominam sujeitos executando aes, h, ainda aqui, uma srie da qual jamais
resultou discurso algum; pois, nem nesta, nem na precedente, os sons proferidos
indicam nem ao, nem inao, nem o ser, de um ser, ou de um no-ser, pois no
unimos verbos aos nomes. Somente unidos haver o acordo e, desta primeira
combinao nasce o discurso que ser o primeiro e mais breve de todos os
discursos.
TEETETO
Que entendes com isso?
ESTRANGEIRO
Ao dizer: o homem aprende no reconheces ali um discurso, o mais simples
e o primeiro?
TEETETO
Para mim, sim.
ESTRANGEIRO
E que, desde esse momento, ele nos d alguma indicao relativa a coisas
que so, ou se tornaram, ou foram, ou sero; no se limitando a nomear, mas
permitindo-nos ver que algo aconteceu, entrelaando verbos e nomes. Assim,
dissemos que ele discorre, e no somente que nomeia, e, a esse entrelaamento,
demos o nome de discurso.
TEETETO
Justamente.
ESTRANGEIRO
Assim, pois, do mesmo modo que, entre as coisas, umas concordam
mutuamente, outras no; assim, tambm, nos sinais vocais, alguns deles no podem
concordar, ao passo que outros, por seu mtuo acordo, criaram o discurso.
TEETETO
Perfeitamente exato.
ESTRANGEIRO
Mais uma pequena observao.
TEETETO
Qual?
ESTRANGEIRO
O discurso, desde que ele , necessariamente um discurso sobre alguma
coisa; pois sobre o nada impossvel haver discurso.
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
No ser necessrio, tambm, que ele possua uma qualidade determinada?
TEETETO
Sem dvida.
ESTRANGEIRO
Tomemos, pois, a ns mesmos, por objeto de nossa observao.
TEETETO
E o que devemos fazer.
ESTRANGEIRO
Vou pronunciar diante de ti um discurso, unindo um sujeito a uma ao
por meio de um nome e de um verbo; e tu dirs sobre o que esse discurso.
TEETETO
Se puder, assim farei.
ESTRANGEIRO
Teeteto est sentado, ser um longo discurso?
TEETETO
No; alis, bem curto.
ESTRANGEIRO
Cabe-te, pois, dizer a propsito de quem e sobre o que ele discorre.
TEETETO
Evidentemente, a propsito de mim e sobre mim.
ESTRANGEIRO
E este?
TEETETO
Qual?
ESTRANGEIRO
Teeteto, com quem agora converso, voa.
TEETETO
Aqui, ainda, s h uma resposta possvel: a propsito de mim e sobre
mim.
ESTRANGEIRO
Mas cada um desses discursos tem, necessariamente, uma qualidade.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Que qualidade devemos, pois, atribuir a um e outro?
TEETETO
Poderemos dizer que um falso, outro verdadeiro.
ESTRANGEIRO
Ora, aquele que, dentre os dois, verdadeiro, diz, sobre ti, o que tal
como .
TEETETO
Claro!
ESTRANGEIRO
E aquele que falso diz outra coisa que aquela que .
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Diz, portanto, aquilo que no .
TEETETO
Mais ou menos.
ESTRANGEIRO
Ele diz, pois, coisas que so, mas outras, que aquelas que so a teu
respeito; pois, como dissemos, ao redor de cada realidade h, de certo modo,
muitos seres e muitos no-seres.
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
Assim, o ltimo discurso que fiz a teu respeito deve, em primeiro lugar, e
tendo em vista o que definimos como a essncia do discurso, ser, necessariamente,
um dos mais breves.
TEETETO
Pelo menos o que resulta de nossas concluses de h pouco.
ESTRANGEIRO
Deve, em segundo lugar, referir-se a algum.
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
Ora, se no se refere a ti, no se refere, certamente, a ningum mais.
TEETETO
Evidentemente.
ESTRANGEIRO
No discorrendo sobre pessoa alguma, no seria ento, nem mesmo um
discurso. Na verdade demonstramos que impossvel haver discurso que no
discorra sobre alguma coisa.
TEETETO
Perfeitamente exato.
ESTRANGEIRO
Assim, o conjunto formado de verbos e de nomes, que enuncia, a teu
respeito, o outro como sendo o mesmo, e o que no como sendo, eis,
exatamente, ao que parece, a espcie de conjunto que constitui, real e
verdadeiramente, um discurso falso.
TEETETO
a pura verdade.
ESTRANGEIRO
E ento? No evidente, desde j, que o pensamento, a opinio, a
imaginao, so gneros suscetveis, em nossas almas, tanto de falsidade como de
verdade?
TEETETO
Como?
ESTRANGEIRO
Compreenders mais facilmente a razo se me deixares explicar em que
eles consistem e em que diferem um dos outros.
TEETETO
Explica.
ESTRANGEIRO
Pensamento e discurso so, pois, a mesma coisa, salvo que ao dilogo
interior e silencioso da alma consigo mesma, que chamamos pensamento.
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Mas a corrente que emana da alma e sai pelos lbios em emisso vocal,
no recebeu o nome de discurso?
TEETETO
verdade.
ESTRANGEIRO
Sabemos, alm disso, que h, no discurso, o seguinte. . .
TEETETO
O qu?
ESTRANGEIRO
Afirmao e negao.
TEETETO
Sim, sabemos.
ESTRANGEIRO
Quando, pois, isto se d na alma, em pensamento, silenciosamente,
haver outra palavra para design-lo alm de opinio?
TEETETO
Que outra palavra haveria?
ESTRANGEIRO
Quando, ao contrrio, ela se apresenta, no mais espontaneamente, mas
por intermdio da sensao, este estado de esprito poder ser corretamente
designado por imaginao, ou haver ainda outra palavra?
TEETETO
Nenhuma outra.
ESTRANGEIRO
Desde que h, como vimos, discurso verdadeiro e falso, e que, no
discurso, distinguimos o pensamento que o dilogo da alma consigo mesma, e a
opinio, que a concluso do pensamento, e esse estado de esprito que
designamos por imaginao, que a combinao de sensao e opinio, inevitvel
que, pelo seu parentesco com o discurso, algumas delas sejam, algumas vezes,
falsas.
TEETETO
Naturalmente.
ESTRANGEIRO
Percebes como descobrimos a falsidade da opinio e do discurso bem
mais prontamente do que espervamos, quando, h bem pouco, recevamos perder
o nosso trabalho, empreendendo tal pesquisa?
TEETETO
Sim, percebo.

Retomo definio do sofista

ESTRANGEIRO
No nos desencorajemos, pois, com aquilo que resta fazer. Uma vez
esclarecido este ponto, recordemos nossas anteriores divises por formas.
TEETETO
Exatamente que divises?
ESTRANGEIRO
Dividimos a arte que produz as imagens em duas formas: uma produz a
cpia, outra produz o simulacro.
TEETETO
Sim. ESTRANGEIRO
Quanto ao sofista, embaraa-mo-nos sem saber em que forma coloc-lo.
TEETETO
Realmente.
ESTRANGEIRO
E no meio desta dificuldade uma vertigem ainda mais tenebrosa nos
atacou quando se props o argumento que, contrariando a todos, sustenta que nem
a cpia, nem a imagem, nem o simulacro so; pois no h falsidade de modo algum,
em tempo algum, em parte alguma.
TEETETO
verdade.
ESTRANGEIRO
Agora, entretanto, uma vez descoberta, pelo menos, a existncia do
discurso falso, e da opinio falsa, so possveis as imitaes dos seres; e da inteno
em produzi-las, pode nascer uma arte da falsidade.
TEETETO
, realmente, possvel.
ESTRANGEIRO
Que o sofista, finalmente, fosse colocado em uma das formas acima
referidas, uma concluso sobre a qual j concordamos anteriormente.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Procuremos, ento, prosseguir novamente, dividindo em dois o gnero
proposto, e seguindo sempre a parte direita de nossas divises, e prendendo-nos ao
que elas apresentam de comum com o sofista, at que, havendo-o despojado de
tudo o que ele tem de comum, s lhe deixemos a sua natureza prpria. Poderemos,
assim, torn-la clara, primeiramente a ns mesmos, e, em seguida, queles que, com
este mtodo, tm as mais prximas afinidades de esprito.
TEETETO
Muito bem.
ESTRANGEIRO
No comeamos, ento, nossas divises pela arte da produo e arte da
aquisio?
TEETETO
Sim. ESTRANGEIRO
E, na arte da aquisio, a caa, a luta, o negcio, e outras formas desta
espcie, no nos deixaram entrever o sofista?
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
J que ele est includo na arte mimtica6, evidentemente necessrio, em
primeiro lugar, dividir em dois a prpria arte da produo. Pois a imitao , na
verdade, uma espcie de produo; produo de imagens, certamente, e no das
prprias realidades. No certo?
TEETETO
Sim, perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Comecemos, ento, por distinguir, na produo, duas partes.
TEETETO
Quais?
ESTRANGEIRO
Uma divina, outra humana.
TEETETO
Ainda no compreendo.
ESTRANGEIRO
produtor, dizamos, se nos recordamos de nosso incio, todo poder que
se torna causa daquilo que, anteriormente, no era, e, ulterior-mente, comea a ser.

6
Arte mimtica a arte da imitao, considerada em seus caracteres gerais e em suas semelhanas com o que se produz. (N. do T.)
TEETETO
Recordamo-nos.
ESTRANGEIRO
Todos os animais mortais, pois, todas as plantas que sementes e razes
fazem surgir sobre a terra, finalmente tudo o que se agrega, no interior da terra, em
corpos inanimados, fusveis e no fusveis, no unicamente uma operao divina
que o faz nascer, ulteriormente, do seu no-ser primitivo? Ou usaremos a maneira
vulgar de crer e falar. ..
TEETETO
Qual?
ESTRANGEIRO
Que a natureza os engendra por uma causalidade espontnea e que se
desenvolve sem o auxlio de pensamento algum? Ou deveremos dizer que se
criaram por uma razo e uma cincia divina, emanada de Deus?
TEETETO
Quanto a mim, talvez, devido minha idade, passo muitas vezes de uma
opinio a outra. Neste momento, entretanto, basta olhar-te para ver que, para ti,
estas geraes possuem, certamente, uma causa divina; e eu fao minha esta crena.
ESTRANGEIRO
Pensas corretamente, Teeteto. Se tivssemos de incluir-te entre aqueles
que, no futuro, tero outras opinies, este seria o momento de procurar empregar,
nesta demonstrao, a persuaso constrangedora que alcanasse o teu assentimento.
Mas vejo o ntimo de tua natureza: sem que haja necessidade de nossas
demonstraes, ela se inclina, por si mesma, para onde, como confessas, te sentes
atrado neste momento; e no me deterei em demonstrar, pois seria perder tempo.
Afirmarei, entretanto, que as obras ditas da natureza so obras de uma arte divina, e
aquelas que os homens compem, com elas, so obras de uma arte humana. De
acordo com este princpio h, pois, dois gneros de produo: um humano, outro
divino.
TEETETO
Muito bem.
ESTRANGEIRO
Divide, ainda, cada um deles em dois.
TEETETO
Como?
ESTRANGEIRO
Por exemplo: depois de haver dividido a produo em toda sua largura,
divide-a, agora, em todo seu comprimento.
TEETETO
Pois dividamos.
ESTRANGEIRO
Obteremos, assim, quatro partes: duas relativas a ns, e humanas; duas
relativas aos deuses, e divinas.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Mas, se retomarmos a diviso no primeiro sentido, de cada parte principal
se destacar uma parte produtora de realidade e as duas partes restantes devem, em
rigor quase absoluto, chamar-se produtoras de imagens. Eis, pois, que a produo
novamente se desdobra.
TEETETO
Explica-me esse novo desdobramento.
ESTRANGEIRO
Ns mesmos, creio, e o resto dos seres vivos e ainda seus princpios
componentes fogo, gua e substncias congneres somos considerados
igualmente a produo e a obra de Deus. o que sabemos, no certo?
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Ao lado de cada uma delas vm, em seguida, colocar-se suas imagens que
no so mais suas realidades, e que tambm devem a sua existncia a uma arte
divina.
TEETETO
Que imagens?
ESTRANGEIRO
Aquelas que nos vm no sono e todos os simulacros que, durante o dia,
se formam, como se diz, espontaneamente: a sombra que projeta o fogo quando as
trevas o invadem; e esta aparncia, ainda, que produz, em superfcies brilhantes e
polidas, o concurso, num mesmo ponto, de duas luzes: sua luz prpria e uma luz
estranha, e que ope, viso habitual, uma sensao inversa.
TEETETO
Eis, pois, as duas obras da produo divina: de um lado, a coisa em si
mesma; e de outro, a imagem que acompanha cada coisa.
ESTRANGEIRO
Mas que diremos de nossa arte humana? No afirmaremos que, pela arte
do arquiteto, se cria uma casa real, e, pela arte do pintor, uma outra casa, espcie de
sonho apresentado pela mo do homem a olhos despertos?
TEETETO
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Assim, pois, se repete at o fim esta dualidade de obras de nossa ao
produtora: de um lado, a prpria coisa, pela arte que produz as coisas reais; de
outro, a imagem, devida arte que produz imagens.
TEETETO
Agora compreendo melhor e estabeleo, para a arte da produo, duas
formas, das quais cada uma dupla; de um lado, produo divina e produo
humana; de outro, criao de coisas, ou criao de certas semelhanas.
ESTRANGEIRO
Muito bem; mas lembremos que esta produo de imagens deveria
compreender dois gneros: a produo de cpias e a produo de simulacros, uma
vez demonstrado ter o falso um ser real de falso e assim contado, por direito de sua
natureza, como unidade entre os seres.
TEETETO
Foi exatamente esse nosso raciocnio.
ESTRANGEIRO
Ora, a demonstrao foi feita e, por conseguinte, incontestvel nosso
direito de distinguir essas duas formas.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Dividamos, ainda, o simulacro em dois.
TEETETO
Em que sentido?
ESTRANGEIRO
De um lado, o simulacro se faz por meio de instrumentos. De outro, a
pessoa que executa o simulacro se presta, ela prpria, como instrumento.
TEETETO
Que queres dizer?
ESTRANGEIRO
Supe que algum movimente o seu corpo para reproduzir uma atitude
tua, ou sua voz para reproduzir a tua voz; esta maneira de simular , acredito, o que
se chama propriamente por mmica.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Separemos, pois, esta parte com o nome de mmica. Quanto ao resto,
deixemos tranqilamente de lado, sem com ele preocupar-nos, ficando a outros o
cuidado de reduzi-lo unidade e de dar-lhe um nome conveniente.
TEETETO
Sim, separemos e prossigamos.
ESTRANGEIRO
Mas esta primeira parte, Teete-to, deve ainda ser dividida em dois.
Vejamos por qu.
TEETETO
Dize-o.
ESTRANGEIRO
Dentre os que imitam, uns conhecem o objeto que imitam, e outros assim
fazem sem o conhecer. Ora, que maior princpio de diviso poderemos estabelecer
seno este do no-conhe-cimento e do conhecimento?
TEETETO
Nenhum.
ESTRANGEIRO
Bem; a imitao de que falvamos h pouco, era imitao por pessoas que
conhecem, pois tua figura e tua pessoa so possveis de serem conhecidas por quem
quer que queira imit-las.
TEETETO
Naturalmente.
ESTRANGEIRO
Mas que dizer da figura da justia, e, em geral, de toda virtude? No
haver muitos que, sem a conhecer, mas dela tendo apenas uma opinio qualquer,
se desdobram em todas as suas foras e zelo, para faz-la aparecer como uma
qualidade pessoal realmente neles presente, imitando-a o mais que podem em seus
atos e palavras?
TEETETO
Muitos, realmente, muitos.
ESTRANGEIRO
E ser que todos falham em parecer justos sem absolutamente o serem?
Ou exatamente o contrrio o que acontece?
TEETETO
Exatamente o contrrio.
ESTRANGEIRO
Eis, pois, dois imitadores que necessrio considerar diferentes um do
outro: aquele que no sabe e aquele que sabe.
TEETETO
Sim.
ESTRANGEIRO
Sendo assim, onde encontraremos para cada um deles um nome que lhes
caiba? Evidentemente difcil encontr-lo, pois para esta diviso por gneros e
formas, parece ter sido inveterada a indolncia de nossos predecessores que dela
tiveram to pouca noo que nem mesmo o tentaram. Assim, nossos recursos a
propsito de nomes so, necessariamente, pouco abundantes. Entretanto, embora
parea muito ousada nossa expresso, ns a usaremos para distinguir bem uma da
outra: imitao que se apia na opinio daremos o nome de doxo-mimtica; e
que se apia na cincia, o nome de mimtica sbia.
TEETETO
Est bem.
ESTRANGEIRO
Ora, da primeira que nos devemos ocupar, pois o sofista no pertence
ao nmero daqueles que sabem, mas daqueles que se limitam a imitar.
TEETETO
Certamente.
ESTRANGEIRO
Examinemos, ento, o doxmimo para ver se ele perfeito como uma
barra de ferro ou se h nele alguma diviso.
TEETETO
Examinemos.
ESTRANGEIRO
H, realmente, e uma diviso bem visvel. Dentre estes imitadores h o
ingnuo, que cr ter cincia do que apenas tem opinio, e, alm dele, outro que, de
tanto haver revolvido os argumentos, em si mesmo desperta uma forte
desconfiana, uma viva apreenso de ignorncia pessoal, mesmo em relao a
assuntos sobre os quais, diante dos outros, ele se d ares de sbio.
TEETETO
Um e outro gnero existem, certamente, tal como dizes.
ESTRANGEIRO
Assim, a um consideraremos simples imitador, e a outro como imitador
irnico?
TEETETO
razovel.
ESTRANGEIRO
E o gnero ao qual pertence este ltimo, consideraremos nico ou duplo?
TEETETO
Decide tu mesmo.
ESTRANGEIRO
Ao examinar, percebo claramente dois gneros. No primeiro, distingo o
homem capaz de praticar esta ironia em reunies pblicas, em longos discursos,
diante de multides; ao passo que o outro, em reunies particulares, dividindo seu
discurso em argumentos breves, obrigando seu interlocutor a se contradizer.
TEETETO
O que dizes bem exato.
ESTRANGEIRO
Que personagem, ser, pois, para ns, o homem dos discursos longos?
Poltico ou orador popular?
TEETETO
Orador popular.
ESTRANGEIRO
E como chamaremos ao outro? Sbio ou sofista?
TEETETO
Sbio, exatamente, impossvel, pois j afirmamos que ele no sabe nada.
Mas, porque imita ao sbio, ele ter um nome que se aproxime deste, e j estou
quase convencido de que a seu propsito que devemos dizer: eis,
verdadeiramente, nosso famoso sofista.
ESTRANGEIRO
Encerraremos aqui a cadeia, como o fizemos anteriormente, reatando
juntos, de ponta a ponta, retrospectivamente, os elementos de seu nome.
TEETETO
precisamente o que quero.
ESTRANGEIRO
Assim, esta arte de contradio que, pela parte irnica de uma arte
fundada apenas sobre a opinio, faz parte da mimtica e, pelo gnero que produz
os simulacros, se prende arte de criar imagens; esta poro, no divina mas
humana, da arte de produo que, possuindo o discurso por domnio prprio,
atravs dele produz suas iluses, eis aquilo de que podemos dizer "que a raa e o
sangue" do autntico sofista, afirmando, ao que parece, a pura verdade.
TEETETO
Perfeitamente.
POLTICO

Traduo e Notas de Jorge Paleikat e Joo Cruz Costa


Scrates, Teodoro, Estrangeiro, Scrates, o Jovem

SCRATES
Quanto te agradeo, Teodoro, por me haveres apresentado Teeteto e o
Estrangeiro1 !
TEODORO
Pois em breve, Scrates, hs de dever-me uma gratido trs vezes maior,
ao completarem eles o retrato do poltico, e a seguir o do filsofo.
SCRATES
Que assim seja! Mas, meu caro Teodoro, poderamos dizer tambm que o
que ouvimos nos foi contado pelo mais notvel mestre de clculo e de geometria?
TEODORO
O qu, Scrates?
SCRATES
Que tu ds a cada um desses homens o mesmo valor2, quando,
entretanto, a diferena que os separa no poderia expressar-se por qualquer
proporo da vossa arte3.
TEODORO
Scrates, por nosso Deus Amon! Eis a uma crtica boa e justa com
que revelas, de memria, o meu erro de clculo. Um dia ainda me vingarei por isso.

1
O incio deste dilogo liga-se s ltimas pginas do Sofista. Scrates refere-se, neste passo, discusso deste ltimo dilogo. (N. do T.)
2
Referncia aos perigos da analogia. Cf. Sof. 231a. (N. do T.)
3
Scrates refere-se matemtica. (N. do T.)
Agora, entretanto, quero pedir ao Estrangeiro que, espero, no faltar com a sua
boa vontade para conosco, nem nos abandonar, para falar-nos do poltico ou do
filsofo, escolhendo o de que prefere falar-nos primeiramente.
ESTRANGEIRO
o que faremos, Teodoro, pois j que iniciamos esta discusso preciso
no abandonar a nossa obra. Mas o que farei com Teeteto?
TEODORO
Que queres dizer?
ESTRANGEIRO
No seria melhor que o deixssemos descansar, tomando em seu lugar o
seu companheiro, este outro Scrates4 que aqui est? Que te parece?
TEODORO
Sim, toma ao outro em seu lugar, como propuseste. Ambos so jovens e
suportaro melhor esta prova, at o fim, se tiverem algum descanso.
SCRATES
Alis, meu caro Estrangeiro, estes jovens podero ser meus parentes
longnquos. Dizes que um deles se parece comigo, pelos traos fisionmicos5; o
outro, tendo nome semelhante ao meu, ter comigo certo parentesco. E ns
devemos sempre procurar reconhecer nossos parentes pela maneira por que
conversam. Com Teeteto conversei ontem e ouvi, ainda h pouco, o que te
respondeu; mas do jovem Scrates, nada ouvi. mister, porm, que o conheamos.
Interroga-o tu primeiro e mais tarde responder a mim.
ESTRANGEIRO
Muito bem. Ouviste, jovem Scrates, o que disse Scrates?
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Concordas com o que ele prope?
4
As personagens do Poltico so, bom notar desde logo, Scrates, Teodoro, o Estrangeiro de Elia; Teeteto e mais Scrates, o jovem. (N.
do T.)
5
Tambm no dilogo Teeteto assinala-se a semelhana fisionmica entre Scrates e Teeteto. (N.doT.)
SCRATES, O JOVEM
Com todo o gosto.
ESTRANGEIRO
Assim se tu no te recusas, muito menos posso eu recusar-me. Depois do
sofista, penso que devemos agora estudar o poltico. Dize-me, pois: devemos ou
no colocar o poltico entre os sbios?
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Nesse caso devemos classificar as cincias do mesmo modo como o
fazamos ao estudar a personagem precedente6?
SCRATES, O JOVEM
Creio que sim.
ESTRANGEIRO
Mas, ao que me parece, jovem Scrates, ele no teria lugar na mesma
classificao.
SCRATES, O JOVEM
Em qual, ento?
ESTRANGEIRO
Em outra.
SCRATES, O JOVEM
Sim, o que parece.
ESTRANGEIRO
E onde poderamos encontrar o caminho pelo qual poderemos chegar
compreenso do que o poltico? mister que o encontremos e que o separemos
dos demais, diferenciando-o por aquilo que lhe caracterstico, para, a seguir, dar
aos outros caminhos, que dele se afastam, um carter nico especfico a todos, de

6
A personagem precedente o Sofista. (N. do T.)
sorte a finalmente permitir ao nosso esprito classificar todas as cincias em duas
espcies.
SCRATES, O JOVEM
Esse trabalho, caro Estrangeiro, parece-me ser teu, e no meu.
ESTRANGEIRO
Entretanto, jovem Scrates, encontrando esse caminho, ele ser tanto teu
quanto meu.
SCRATES, O JOVEM
Est bem.
ESTRANGEIRO
A aritmtica assim como outras artes que lhe so semelhantes no so
separadas da ao e dirigidas apenas para o conhecimento?
SCRATES, O JOVEM
verdade.
ESTRANGEIRO
Entretanto, as artes que se relacionam com a arquitetura ou com qualquer
outra forma de construo manual esto ligadas originalmente ao e o seu
concurso cincia faz com que sejam produzidos corpos que antes no existiam.
SCRATES, O JOVEM
certo.
ESTRANGEIRO
Classifiquemos ento todas as cincias atendendo a este princpio. Demos
a uma parte o nome de cincia prtica e, outra, de cincia puramente terica.
SCRATES, O JOVEM
Sejam essas, se assim o queres, as duas espcies compreendidas na
unidade de todas as cincias.
ESTRANGEIRO
Poderemos ento admitir que o poltico, o rei, o senhor de escravos, e o
cabea de casal so uma s coisa, ou haver tantas artes quantos os nomes
pronunciados? Mas segue-me agora num outro caminho.
SCRATES, O JOVEM
Qual?
ESTRANGEIRO
Imagina que um leigo seja capaz de dar conselhos a um mdico. No
deveremos cham-lo pelo mesmo nome que damos a esse profissional?
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Pois bem, se um cidado qualquer capaz de dar conselhos ao soberano
de um pas, no poderemos dizer que nele existe a cincia que o prprio soberano
deveria ter?
-SCRATES, O JOVEM
Sim, poderemos.
ESTRANGEIRO
Mas a cincia de um verdadeiro rei, no a cincia prpria do rei?
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
E aquele que a tiver, sendo rei ou simples cidado, no ter direito, em
virtude de sua arte, ao ttulo real?
SCRATES, O JOVEM
Certamente que sim.
ESTRANGEIRO
Poderamos dizer o mesmo do senhor de escravos ou do cabea de casal?
SCRATES, O JOVEM
Sem dvida.
ESTRANGEIRO
E haver alguma diferena entre o governo de uma casa e o de uma
pequena cidade?
SCRATES, O JOVEM
Nenhuma.
ESTRANGEIRO
Assim tambm, em relao ao problema que discutimos, evidente que
s h uma cincia, quer se diga real, poltica ou econmica. Sobre isso no
discutiremos.
SCRATES, O JOVEM
Sim,para que...
ESTRANGEIRO
Por outro lado, evidente tambm que um rei para manter-se no poder
no recorre fora das mos ou ao vigor de seu corpo, mas fora de sua
inteligncia e de sua alma.
SCRATES, O JOVEM
evidente.
ESTRANGEIRO
Ento diremos que o rei tem muito mais relao com a cincia terica do
que com as artes manuais, ou com todas as artes prticas?
SCRATES, O JOVEM
certo.
ESTRANGEIRO
Poderemos fazer ento da cincia poltica e do poltico, da cincia real e
do homem real, uma s unidade?
SCRATES, O JOVEM
Evidentemente.
ESTRANGEIRO
No seria conveniente ento, a fim de proceder com mtodo, classificar a
cincia terica?
SCRATES, O JOVEM
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Examina, pois, com cuidado, se nela encontramos uma dualidade de
conhecimento.
SCRATES, O JOVEM
Qual?
ESTRANGEIRO
A seguinte: lembras-te de que falvamos da arte do clculo. . .
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Pois toda ela faz parte, creio eu, das cincias tericas.
SCRATES, O JOVEM
Nem poderia ser de outro modo.
ESTRANGEIRO
Bem, o clculo, que nos d a conhecer a diferena entre os nmeros, ter
ainda outra funo alm daquela de julgar estas diferenas?
SCRATES, O JOVEM
Que teria ele mais a fazer?
ESTRANGEIRO
Nenhum arquiteto trabalha como operrio, mas apenas dirige os
operrios.
SCRATES, O JOVEM
certo.
ESTRANGEIRO
A sua contribuio um conhecimento, e no uma colaborao manual.
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Seria certo ento dizer que ele participa da cincia terica?
SCRATES, O JOVEM
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Ele, no entanto, uma vez traado o plano, no deve considerar-se livre e
abandonar a tarefa como o faria o calculista. Ao que creio, cabe-lhe ainda indicar a
cada um dos operrios tudo quanto lhes compete fazer at que tenham terminado
todo o trabalho.
SCRATES, O JOVEM
certo.
ESTRANGEIRO
Assim, pois, todas essas cincias so tericas, incluindo as que participam
da arte do clculo, mas os dois gneros que elas formam diferem; pois um deles, em
seus clculos, apenas julga, e outro, alm de julgar, tambm dirige.
SCRATES, O JOVEM
Parece que sim.
ESTRANGEIRO
Se ento distinguirmos em toda a cincia terica uma parte a que
chamaremos diretiva e outra crtica, teremos feito uma diviso correta?
SCRATES, O JOVEM
o que creio.
ESTRANGEIRO
Mas quando realizamos alguma coisa em comum mister que nos
sintamos felizes em nos entendermos.
SCRATES, O JOVEM
Sem dvida.
ESTRANGEIRO
E, enquanto ns assim nos sentimos felizes, no nos preocupamos com o
que pensam os outros.
SCRATES, O JOVEM
Claro.
ESTRANGEIRO
Pois bem, em qual dessas duas partes colocaremos o rei? Na arte crtica,
com o papel de simples espectador, ou ser melhor decidirmos pela arte diretiva,
pois na realidade ele ordena, como o senhor?
SCRATES, O JOVEM
No h razo para hesitar.
ESTRANGEIRO
Devemos agora examinar se tambm a arte de dirigir permite qualquer
diviso. Penso que do mesmo modo que na arte dos comerciantes se distinguem os
produtores dos revendedores, da mesma foram se diferencia o gnero real do
gnero dos arautos.
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
Os comerciantes, comprando as mercadorias produzidas por outrem, as
revendem a terceiros.
SCRATES, O JOVEM
Claro.
ESTRANGEIRO
Assim tambm a famlia dos arautos recebe as decises alheias para
transmiti-las a terceiros.
SCRATES, O JOVEM
verdade.
ESTRANGEIRO
E ento? Confundiremos a arte do rei com a do intrprete, do patro de
barco, do adivinho, do arauto e muitas outras semelhantes, que tm em si,
realmente, um poder diretivo? Ou preferes que, prosseguindo a nossa comparao,
forjemos, por analogia, um outro nome, pois nenhum existe para designar esse
gnero de dirigentes cujo mando deriva deles mesmos? Este caracterstico servir
para a nossa diviso e assim poremos o gnero real na classe autodirigente sem nos
preocuparmos com as demais e darmos a elas outro nome qualquer, pois a nossa
pesquisa tem por objeto o dirigente e no o oposto do dirigente.
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Ora, muito bem, se o gnero em questo est bem separado dos outros
por meio desta oposio, do poder pessoal e do poder de emprstimo, mister que
o dividamos, por sua vez, se encontrarmos nele possibilidade para isso.
SCRATES, O JOVEM
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Julgo que h essa possibilidade. Acompanha-me e faze comigo essa
diviso.
SCRATES, O JOVEM
Qual?
ESTRANGEIRO
Quando pensamos em dirigentes, no exerccio de alguma direo, no
vimos tambm que as suas ordens tm sempre como finalidade alguma coisa a ser
produzida?
SCRATES, O JOVEM
Evidentemente.
ESTRANGEIRO
Pois bem. No difcil dividir-se em duas partes tudo o que se produz.
SCRATES, O JOVEM
De que maneira?
ESTRANGEIRO
Uma parte desse todo formada pelos seres inanimados, e a outra pelos
seres animados.
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
desse mesmo modo que a parte diretiva da cincia terica deve ser
dividida.
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
Atribuiremos uma das suas partes produo dos seres inanimados e a
outra dos seres animados, e assim teremos uma primeira diviso do conjunto.
SCRATES, O JOVEM
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Deixemos de lado uma das partes e tomemos outra; e novamente
dividamos essa parte em dois.
SCRATES, O JOVEM
Que parte queres que tomemos?
ESTRANGEIRO
Naturalmente aquela que dirige os seres vivos. natural que a cincia
real no dirige, do mesmo modo que a arquitetura, coisas sem vida: seu papel
muito mais nobre. sobre os seres vivos que ela reina e sobre eles que ela
sempre exerceu o seu imprio.
SCRATES, O JOVEM
certo.
ESTRANGEIRO
No que diz respeito populao e criao dos seres vivos possvel
distinguir a individual e o cuidado coletivo pelos seres que vivem em rebanhos.
SCRATES, O JOVEM
claro.
ESTRANGEIRO
No consideremos o poltico como criador de indivduos, tal como o
lavrador que cuida do seu boi ou do tratador que cuida de seu cavalo, mas sim
como o criador de todos os cavalos ou de todos os bois.
SCRATES, O JOVEM
O que disseste evidente.
ESTRANGEIRO
A parte relativa criao de seres vivos, especialmente relacionada com
grupos, chamaremos de "criao em rebanhos" ou de "criao coletiva"?
SCRATES, O JOVEM
Daremos o nome que convier.
ESTRANGEIRO
Muito bem, meu caro Scrates! Se continuares assim sers um sbio na
tua velhice. Faamos, pois, como dizes. De que maneira seria possvel, porm,
mostrar que h duas espcies de rebanhos e, ao mesmo tempo, conseguir que este
nosso inqurito, em lugar de ser relativo a um duplo objeto, se faa apenas em
relao sua metade?
SCRATES, O JOVEM
Aplicarei todos os meus esforos. A criao de homens, todavia, parece-
me ser diversa da dos animais.
ESTRANGEIRO
Distinguiste com diligncia e coragem. Tomaremos todo o cuidado a fim
de no incidir mais uma vez em erro.
Uma pequena lio de lgica: Espcie e parte

SCRATES, O JOVEM
Que erro?
ESTRANGEIRO
No ponhamos de parte, isolada, uma pequena poro em face de outras
maiores, sem considerar a sua espcie. Cuidemos, ao contrrio, que a parte traga em
si a espcie. fcil, por certo, separar logo o objeto que se procura do restante,
mas preciso ter sorte para desse modo acertar. Assim, tu, ainda h pouco,
acreditaste fazer uma diviso e precipitaste o teu raciocnio, logo que percebeste
que ele dizia respeito aos homens. Mas de fato, meu amigo, essas pequenas divises
no deixam de oferecer perigo. mais seguro proceder por partes, dividindo as
metades. Assim, h mais probabilidade de encontrar os caracteres especficos. Ora
isso que principalmente importa na nossa pesquisa.
SCRATES, O JOVEM
Que queres dizer com isso?
ESTRANGEIRO
Agrada-me a tua ndole, e, por isso, falarei mais claramente. No ponto em
que estamos impossvel explanar o que disse a no ser de modo imperfeito. No
obstante, procurarei faz-lo tendo em mira maior clareza.
SCRATES, O JOVEM
Por que dizes ento que a nossa diviso no fora feita corretamente?
ESTRANGEIRO
Porque o mesmo que tentar algum dividir a humanidade em duas
partes, como costuma a maioria, isto , separando-a como se o gnero helnico
constitusse uma unidade distinta das demais e dando-se a estas o nome comum de
"brbaros"; supondo que por causa dessa denominao coletiva formem tambm
uma unidade, quando de fato so numerosssimas, distintas entre si e de linguagens
bem diferentes, ou ainda, se se acreditasse que para dividir os nmeros por dois,
bastasse apenas destacar a cifra "dez mil" de todos os outros e coloc-la parte,
como que constituindo uma s espcie e dar ao resto um nico nome acreditando,
desta vez ainda, que esse simples nome fosse suficiente para criar um segundo
gnero em face do primeiro. Creio que a diviso seria melhor; que melhor seguiria
s formas especficas e seria mais dicotmica se, dividindo os nmeros em "pares"
e "mpares", dividssemos, do mesmo modo, o gnero humano em machos e
fmeas; e se nos decidssemos a no separar nem caracterizar, relativamente aos
demais, os Ldios, os Frgios, ou outras unidades seno quando j no fosse mais
possvel obter uma diviso em que cada um dos termos seria, ao mesmo tempo,
gnero e parte.
SCRATES. O JOVEM
verdade. Mas, caro Estrangeiro, como poderia algum conhecer com
maior clareza que o gnero e a parte no so idnticos mas diferentes?
ESTRANGEIRO
Scrates, tu, homem encantador, desejas algo que no fcil. J estamos
desviados de nossa discusso mais que o necessrio, e queres desvi-la ainda mais!
Por ora, convm que voltemos ao nosso trabalho. O problema que propes discuti-
lo-emos em outra ocasio, com calma, como bons pesquisadores. Cuidado, porm!
No penses que de mim ouviste, sobre esse ponto, uma perfeita explicao.
SCRATES, O JOVEM
Que explicao?
ESTRANGEIRO
Que gnero e parte so coisas diversas.
SCRATES, O JOVEM
De que maneira?
ESTRANGEIRO
O que for uma espcie ser necessariamente parte daquilo de que
espcie; mas nada impede que a parte seja, ao mesmo tempo, uma outra espcie.
Estas so, caro Scrates, das duas explicaes aquela que tu deveras dar como
sendo minha.
SCRATES, O JOVEM
o que sempre direi.
ESTRANGEIRO
Mais uma coisa, agora.
SCRATES, O JOVEM
Qual?

O Grou e a sua opinio

ESTRANGEIRO
Lembras-te onde estvamos antes da digresso que nos trouxe at aqui?
Era, creio, no momento em que te perguntava como se podia dividir a arte de criar
os rebanhos, e em que me declaraste, com tanta afoiteza, que h dois gneros de
seres vivos: o gnero humano e, de outro lado, todo o restante dos animais,
constituindo um s bloco.
SCRATES, O JOVEM
verdade.
ESTRANGEIRO
Nessa passagem notei que tu, separando uma parte, pensavas que todos
os outros seres constitussem um gnero, pois que lhes deste o nome de "animais".
SCRATES, O JOVEM
De fato assim foi.
ESTRANGEIRO
Mas, meu intrpido amigo! segundo essa maneira de julgar, outro ser vivo
dotado de inteligncia o que parece verificar-se com os grous ou com outras
espcies de animais poderia classificar do mesmo modo que tu classificas: oporia
os grous, como integrando um gnero a todos os outros seres vivos e, orgulhoso,
consideraria os demais seres, inclusive os homens, como pertencentes a uma
mesma famlia, dando-lhes talvez o nome de "animais". Procuremos, pois, evitar
erros semelhantes.
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
No dividindo o gnero inteiro dos animais, a fim de no incorrermos no
mesmo erro.
SCRATES, O JOVEM
De fato, o que se deve evitar.
ESTRANGEIRO
J antes cometramos erro idntico.
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
Lembras-te de que havamos considerado toda a parte diretiva da cincia
terica, no gnero da "criao de animais", de animais em rebanhos?
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Mas nesse caso, j no estaria implcita a diviso dos animais em mansos e
selvagens? Aqueles que, por sua natureza, podem ser domesticados chamam-se
mansos, e selvagens os que no so domesticveis.
SCRATES, O JOVEM
Bem.
ESTRANGEIRO
A cincia que perseguamos sempre se referiu aos mansos, devendo ser
procurada entre as criaturas que vivem em rebanhos.
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
No faremos a diviso como antes fizramos, tendo em vista todos os
seres; nem nos apressaremos a atingir a poltica, pois que isso nos imporia o
contratempo que est cominado no provrbio7.
SCRATES, O JOVEM
Qual?
ESTRANGEIRO
O de caminhar com maior pressa e s mais tarde chegar ao fim.
SCRATES, O JOVEM
Feliz contratempo, caro estrangeiro.

Animais aquticos e terrestres

ESTRANGEIRO
Pode ser. Recomecemos, ento, dividindo a arte de criar coletivamente.
Talvez, uma vez terminada a pesquisa, ela te mostre o que desejas saber. A
propsito dize-me uma coisa. . .
SCRATES, O JOVEM
Qu?
ESTRANGEIRO
Sei que pessoalmente no observaste a domesticao dos peixes no rio
Nilo ou nos aqurios reais mas, talvez, j ouviste falar muitas vezes dessa criao.
possvel, porm, que a tivesses visto nas fontes.
SCRATES, O JOVEM
Sim, nas fontes vi pessoalmente; e ouvi o que muitos contaram a respeito
das outras.
7
Os gregos possuam o seguinte provrbio Apressa-te devagar, cujo sentido : quem corre muito depressa cai e chega ao fim mais tarde do
que aquele que no corre. O eleata refere-se ao jovem que quer descobrir com demasiada rapidez a arte real e que por isso faz divises
precipitadas e temerrias. (N. do T.)
ESTRANGEIRO
Ouviste e acreditaste que h criao de gansos e grous apesar de no teres
passeado pelos campos da Tesslia.
SCRATES, O JOVEM
Como no?
ESTRANGEIRO
Perguntei tudo isso porque na arte de criao em rebanhos existem
animais que so aquticos e outros terrestres.
SCRATES, O JOVEM
Exatamente.
ESTRANGEIRO
No achas que a cincia da criao em rebanho deve ser dividida em duas
partes, uma delas correspondendo criao na gua, e outra criao em terra?
SCRATES, O JOVEM
Concordo.
ESTRANGEIRO
No ser necessrio examinar a que grupo pertence a arte regia pois que
isso evidente a qualquer homem?
SCRATES, O JOVEM
Como no?
ESTRANGEIRO
Qualquer pessoa saber dividir a criao em rebanhos feita em terra
firme.
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
Eu distinguiria entre seres que voam e seres que andam sobre a terra.
SCRATES, O JOVEM
verdade.
ESTRANGEIRO
Examinemos, ento, se certo que a arte poltica se refere aos que andam
sobre a terra. No julgas que o maior ignorante concordaria com isso?
SCRATES, O JOVEM
Julgo.
ESTRANGEIRO
No entanto, a arte de criar os animais que andam sobre a terra dever ser
dividida, tal como o nmero, em duas partes.
SCRATES, O JOVEM
Claro.
ESTRANGEIRO
Notamos dois caminhos que conduzem a essa subdiviso que
pretendemos examinar. Um mais curto e ope a pequena parte grande,
enquanto o outro, embora seja mais longo, respeita o que dissramos, isto , que se
deve, sempre que possvel, dividir ao meio. Podemos, todavia, tomar o caminho
que desejarmos.
SCRATES, O JOVEM
Como? No possvel tomar os dois caminhos?
ESTRANGEIRO
Simultaneamente, no, admirvel amigo. Mas claro que possvel ir
primeiro por um e depois por outro.
SCRATES, O JOVEM
Ento, decido. Percorreremos os dois, tomando, inicialmente, um, depois
o outro.
ESTRANGEIRO
fcil, pois o que nos falta fazer pouco. No princpio ou no meio do
caminho, seria difcil atender ao teu pedido. Agora, j que assim queres, iremos pelo
caminho mais longo. Descansados como estamos caminharemos sem dificuldade.
Repara agora como eu divido.
SCRATES, O JOVEM
Fala!
ESTRANGEIRO
Os animais que andam sobre a terra, mansos, e que vivem em rebanhos
esto distribudos, por natureza, em dois grupos.
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
Um grupo no possui chifres, enquanto o outro os tem.
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Divide, pois, a arte de criar os animais que andam sobre a terra
consagrando uma parte a cada um desses grupos; e observa que, se quisesses dar
um nome a cada espcie, encontradas maiores dificuldades do que as que so
necessrias.
SCRATES, O JOVEM
Como deverei denomin-las?
ESTRANGEIRO
Assim: dividindo-se a cincia da criao dos animais que andam sobre a
terra em duas partes; uma abranger a parte do rebanho com chifres e a outra, a
parte sem chifres.
SCRATES, O JOVEM
Concordo que isso bem claro.
ESTRANGEIRO
Quanto ao rei evidente que pastoreia um rebanho sem chifres.
SCRATES, O JOVEM
Nem poderia deixar de ser.
ESTRANGEIRO
Dividamos, ento, esse rebanho, e procuremos atribuir ao Rei o que lhe
pertence.
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Queres dividi-lo em seres de duas e de uma s unha? Ou, conforme o
princpio da procriao, em cruzados e puros? Creio que compreendes o que quero
dizer?
SCRATES, O JOVEM
O qu?
ESTRANGEIRO
Que, por exemplo, natural realizar-se a reproduo de cavalos e burros
por cruzamento.
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Por outro lado, os outros animais deste rebanho domesticvel no se
podem procriar por cruzamento.
SCRATES, O JOVEM
Claro.
ESTRANGEIRO
Pois bem, de qual destes grupos parece cuidar o poltico, dos que se
procriam por cruzamento, ou dos demais?
SCRATES, O JOVEM
Evidentemente, daqueles que no se cruzam.
ESTRANGEIRO
Temos, ao que parece, de dividir esta famlia, como as anteriores, em duas
partes.
SCRATES, O JOVEM
Sim, temos.

Quadrpedes e bpedes.
O concurso das duas majestades

ESTRANGEIRO
Todos os seres mansos e que vivem em rebanho j esto discriminados,
exceto duas espcies, pois, ao que creio, no convm incluir a famlia dos ces no
nmero dos animais que se criam em rebanhos.
SCRATES, O JOVEM
No, mas segundo que princpio dividiremos essas duas espcies?
ESTRANGEIRO
Segundo o princpio que distingue Teeteto de ti, pois que vs ambos vos
ocupais da geometria.
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
Pela diagonal, e depois pela diagonal da diagonal.
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
A natureza do gnero humano nos permitir um modo de caminhar
diverso daquele que se exprime pelo valor da diagonal, igual a dois ps8.
SCRATES, O JOVEM
No.

8
P medida grega. No Meno est substitudo pelo metro, a fim de facilitar a leitura do dilogo pelo leitor moderno. Encontramos no
Poltico idntico quadrado ao que aparece naquele livro. A diagonal dessa figura o lado de um quadrado cuja rea o duplo da rea do
primeiro quadrado. A digresso pela matemtica puramente simblica. A rea do quadrado cujo lado mede dois ps de quatro ps
quadrados e sua diagonal o lado do quadrado de rea dupla. Por causa desses dois nmeros dois e quatro o autor considera a diagonal
,do 10 quadrado como smbolo do modo de andar dos seres de dois ps e a do 2? quadrado cujo lado a diagonal do 19 como smbolo do
modo de andar dos quadrpedes. Essas proposies provocam sorrisos entre os ouvintes, predispondo-os a prestar mais ateno. Tal mtodo
didtico era empregado pelo autor em suas aulas. (N. do T.)
ESTRANGEIRO
Ora, o modo de caminhar prprio a um segundo gnero tem um valor
igual diagonal daquele valor prprio ao nosso modo de caminhar, pois que,
naturalmente, ele vale duas vezes dois ps.
SCRATES, O JOVEM
certo. Agora comeo a compreender aonde queres chegar.
ESTRANGEIRO
Mas, caro Scrates, no vemos ocorrer novamente, nessa diviso, algo
ridculo?
SCRATES, O JOVEM
O qu?
ESTRANGEIRO
Colocar o gnero humano na mesma lia e faz-lo disputar em velocidade
com o gnero de seres ao mesmo tempo imponente e o mais indolente.
SCRATES, O JOVEM
Sim, vejo, uma coincidncia curiosa.
ESTRANGEIRO
Mas como? No natural que o mais vagaroso venha por ltimo?
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Mas no observas tambm que o rei ser ainda mais ridculo ao concorrer
com seu rebanho e ao medir-se, sobre a pista, com o homem mais entregue a esta
vida indolente9.
SCRATES, O JOVEM
exato.
ESTRANGEIRO

9
Plato refere-se aqui aos monarcas persas que esto sempre cercados de ajudantes, fmulos e companheiros. (N. do T.)
E agora, Scrates, torna-se mais claro o que dissemos em nosso inqurito
sobre o sofista.
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
Que este nosso mtodo de argumentar no se preocupa com o mais ou
menos nobre e que no concede maior ateno ao que grande do que ao que
pequeno, porquanto s tomando a si mesmo por inspirao procura levar at ao
fim o seu inqurito sobre a verdade.
SCRATES, O JOVEM Sim.

O caminho mais curto. Recapitulao

ESTRANGEIRO
Dito isto e para que no perguntes antes qual o caminho mais curto que
mencionei para definir o rei, inquiro: queres conhec-lo?
SCRATES, O JOVEM
o que peo.
ESTRANGEIRO
Deveramos, desde logo, ter dividido os animais terrestres em bpedes e
quadrpedes e desde que somente os animais com asas ali estariam ao lado dos
homens, deveramos dividir o rebanho bpede, por sua vez, em uma famlia sem
penas e uma famlia com penas. Nessa classificao, espontaneamente se revelaria a
arte de pastorear homens, e assim poderamos descobrir o homem poltico e real,
colocando-o como condutor e entregando-lhe, como um direito, as rdeas do
Estado por serem homens que possuem a cincia que lhes necessria.
SCRATES, O JOVEM
Com esta discusso saldaste bem tua dvida, pois que este desvio em tua
argumentao rendeu-me juros.
ESTRANGEIRO
Agora voltemos ao ponto de que partimos, ligando tudo o que dissemos,
do princpio ao fim, para a definio deste termo: a arte do poltico.
SCRATES, O JOVEM
De acordo.
ESTRANGEIRO
Pois bem, nas cincias tericas ns comeamos por distinguir uma parte
diretiva, e, nesta, uma diviso a que chamamos, por analogia, autodirigente. A
criao dos animais foi, por sua vez, considerada como uma das divises da cincia
autodiretiva, da qual um gnero e certamente no o menor; a criao de animais
nos deu a espcie da criao em rebanho, e a criao em rebanho, por sua vez, deu-
nos a arte de criar os animais pedestres; e a seguir, esta arte de criar os animais
pedestres nos deu, como seo principal, a arte que cria a raa de animais sem
chifres; e, ainda, esta raa de animais sem chifres inclui uma parte que s poder ser
compreendida por um nico termo pela adio necessria de trs nomes: ela se
chamar "a arte de criar raas que no se cruzam". Por fim, a ltima subdiviso
restante nos rebanhos bpedes, ser a arte de dirigir os homens. precisamente
o que procuramos; a arte que se honra por dois nomes: poltica e real.
SCRATES, O JOVEM
Exatamente.
ESTRANGEIRO
Mas, Scrates, essa pesquisa foi realizada por ns assim como acabas de
dizer?
SCRATES, O JOVEM
Que pesquisa?

Crtica da definio. Os rivais do poltico

ESTRANGEIRO
Resolvemos o problema? No falta em nosso exame o principal? A
pesquisa foi realizada de modo um tanto vacilante, e no teremos cometido uma
falta das mais graves chegando a uma definio, mas no a uma definio perfeita
sob todos os pontos?
SCRATES, O JOVEM
Que queres dizer?
ESTRANGEIRO
Tentarei explicar o que penso, a ti e a mim mesmo.
SCRATES, O JOVEM
Fala!
ESTRANGEIRO
Entre as muitas formas da arte de pastorear encontra-se uma: a poltica, e
vemos qual o seu rebanho.
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
A discusso no a conceituou como criao de cavalos ou quaisquer
outros animais, e sim como cincia que cuida de homens que vivem em
comunidade.
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Observaremos as diferenas que existem entre os pastores e os reis.
SCRATES, O JOVEM
Que diferenas?
ESTRANGEIRO
Imagina que qualquer dos outros pastores tenha um rival, titular de outra
arte, que afirme e pretenda com ele participar da arte da criao do rebanho.
SCRATES, O JOVEM
Que pretendes dizer?
ESTRANGEIRO
Sabes que todos os comerciantes, agricultores, moleiros, inclusive atletas
e mdicos, protestariam energicamente junto a estes pastores de homens a quem
chamamos polticos afirmando que eles que cuidam da criao dos homens, no
apenas dos membros do rebanho, mas tambm dos governantes?
SCRATES, O JOVEM
E no teriam razo de assim protestar?
ESTRANGEIRO
Talvez. Haveremos de ver. Uma coisa, porm, sabemos, e que ningum
negar, que isso tambm se estende ao criador de bois. ele que alimenta o seu
rebanho, ele o mdico e s ele escolhe os coitos: tanto na procriao como no
nascimento, o nico parteiro competente. Na medida em que seus animais
participam da seduo da msica, nenhum outro mais capaz de acalm-los e de
consol-los por meio de sons. Sabe executar excelentemente a msica de que seu
rebanho gosta, seja por intermdio de instrumentos, seja apenas pela voz. O
mesmo poder-se-ia dizer dos demais pastores, ou no?
SCRATES, O JOVEM
Claro.
ESTRANGEIRO
Mas, ento, ser to certa e inatacvel a nossa teoria sobre o rei? Ns o
consideramos como pastor e alimentador do rebanho humano, dizendo que ele
mais importante do que 10 000 outros que pretendam s-lo.
SCRATES, O JOVEM
De nenhum modo.
ESTRANGEIRO
No teramos ns razes para inquietao quando, ainda h pouco, nos
assaltou a suspeita de que talvez houvssemos traado um esboo plausvel do
carter real mas que, no entanto, no o levramos at o retrato fiel do poltico, pelo
fato de no o distinguirmos de todos aqueles que sua volta se agitam e que
reclamam uma parte dos seus direitos de pastor? No o separamos suficientemente
dos seus rivais para mostr-lo, unicamente, na sua pureza?
SCRATES, O JOVEM
Muito bem.
ESTRANGEIRO
o que faremos, caro Scrates, se no quisermos levar esta discusso a
um fim que a desmerea.
SCRATES, O JOVEM
o que preciso evitar a todo custo.
ESTRANGEIRO
Partiremos de outro ponto, prosseguiremos por outro caminho.
SCRATES, O JOVEM
Qual?

O Recurso ao Mito

ESTRANGEIRO
Nesta conversa falaremos de algo que parece uma brincadeira, servindo-
nos de grande parte de uma grande lenda; aps o que, retomaremos at ao fim o
ponto em que estvamos, prosseguindo, de diviso em subdiviso, at que
cheguemos ao fim desejado. No esse o mtodo que se impe?
SCRATES, O JOVEM
Certamente.
ESTRANGEIRO
Presta bem ateno minha lenda, como o costumam fazer as crianas.
Alis, no ests to distante dos anos de infncia!
SCRATES, O JOVEM
Fala!
ESTRANGEIRO
Contavam-se, ento, muitas lendas de eras remotas e que ainda ho de ser
contadas. Uma delas versa sobre a luta de Atreu e Tiestes. Ouviste contar e
certamente guardas na memria o que, segundo dizem, aconteceu naquele tempo.
SCRATES, O JOVEM
Referes-te, talvez, lenda do cordeiro de ouro?10
ESTRANGEIRO
No. Refiro-me mudana que se operou no nascer e no por do sol e de
outros astros. Naquele.tempo desapareciam onde atualmente nascem e levantavam-
se onde agora se pem. Foi ento, que, para testemunhar ohorrvel crime de Atreu,
Deus alterou o seu curso para a ordem atual.
SCRATES, O JOVEM
o que se conta11.
ESTRANGEIRO
Tambm ouvimos falar muitas vezes do reino de Crono .
SCRATES, O JOVEM
Muitssimas.
ESTRANGEIRO
Diz-se tambm que os homens, nesses tempos, nasciam da terra, e no
uns de outros.
SCRATES, O JOVEM
o que se diz em muitas das velhas lendas.
ESTRANGEIRO
Todos esses sucessos resultaram do mesmo fenmeno; e no somente
esses, mas outros ainda mais espantosos. Pelo longo tempo que se escoou, uma

10
Atreu e Tiestes eram dois irmos e lendrios prncipes que viviam a disputar. O cordeiro de ouro havia sido dado a Atreu precisamente
para causar discrdia. (N. do T.)
11
Conforme uma lenda, Atreu convidou Tiestes com seu filho para jantar. Quando o pequeno estava brincando no ptio, prendeu-o Atreu,
matou-o e, assando-lhe a carne, p-la na mesa para ser servida. Tiestes, sem de nada suspeitar, comeu-a. Perguntando onde estava o menino,
Atreu, sorridente, mostrou-lhe a cabea do pequeno, explicando que h pouco ele comera a carne do prprio filho. Desse crime monstruoso, a
nica testemunha foi o deus do sol. De acordo com a mitologia, o sol a coroa brilhante do deus que dia aps dia percorre num carro a
abboda celeste, produzindo assim a luz do dia. A divindade em questo tudo v, e, quando presenciou o crime que se acabava de cometer,
perturbada virou a direo do carro. E desde aquele tempo o sol no mais nasce no oeste e sim a leste. Outros astros o acompanharam,
mudando do mesmo modo o sentido de seus movimentos. (N. do T.)
parte deles foi esquecida, enquanto outros transformaram-se em episdios isolados.
Ningum, todavia, falou da causa desses sucessos a qual agora, deveremos
conhecer, pois que ela nos ser til para definir a natureza do rei.
SCRATES, O JOVEM
Disseste bem. Conta-a, e nela no suprimas nada!
ESTRANGEIRO
Escuta! Este universo, em que estamos, algumas vezes o prprio Deus
que lhe dirige o curso e preside sua revoluo; outras vezes, terminados os
perodos que lhe foram determinados, ele o deixa seguir; e ento, por si mesmo, o
Universo retoma o seu curso circular, em sentido inverso, em virtude da vida que o
anima e da inteligncia que lhe foi dada, desde a sua origem, por aquele que o criou.
Esse movimento de retrocesso faz parte necessariamente da sua natureza, pelo
motivo seguinte.
SCRATES, O JOVEM
Que motivo?
ESTRANGEIRO
Somente ao que h de mais divino convm conservar sempre as mesmas
qualidades, permanecer no mesmo estado e ser sempre o mesmo. A natureza
corprea no participa dessa ordem. O que chamamos cu e mundo, apesar dos
muitos dotes esplndidos que recebeu de seu criador, est preso sorte do corpo.
Por isso impossvel que fique eternamente alheio mudana e, na medida de suas
foras, move-se no mesmo espao, com um movimento mais idntico e mais uno
de que capaz. Eis por que foi animado do movimento de retrocesso circular que
dentre todos o que menos o afasta de seu movimento primitivo. Ser a causa
contnua de sua prpria rotao no possvel seno ao que rege tudo aquilo que se
move. Esse ser, porm, no pode mover-se, ora num sentido, ora no sentido
contrrio. Por estas razes todas no podemos afirmar que o mundo seja a causa
contnua de sua prpria rotao nem dizer que toda ela, sem interrupo, dirigida
por um deus nas suas revolues contrrias e alternadas e muito menos que ela se
deve a duas divindades cujas vontades se opem. Mas, como dizia h pouco, a
nica soluo que resta que umas vezes ela seja dirigida por uma ao estranha e
divina e assim, recebendo uma nova vida, recebe, igualmente de seu autor, uma
nova imortalidade, que outras vezes, abandonado a si mesmo, caminhe em
retrocesso durante milhares e milhares de perodos, pois que a sua grande massa se
move num perfeito equilbrio sobre um eixo extremamente pequeno.
SCRATES, O JOVEM
Tudo o que acabas de dizer parece estar bem prximo da verdade.
ESTRANGEIRO
Prossigamos no raciocnio e examinemos a causa, como dissemos, de
todos esses prodgios. Ele consiste no seguinte:
SCRATES, O JOVEM
Em qu?

As alternncias do movimento e o seu curso

ESTRANGEIRO
Na rotao do universo que ora se faz no sentido atual, ora em sentido
oposto.
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
Essa mudana de sentido deve ser considerada como a mais importante e
mais perfeita das variaes a que est sujeito o universo, o maior e o mais
completo.
SCRATES, O JOVEM
Isso claro.
ESTRANGEIRO
Logo, deveremos supor que naquela poca que se produziram as
transformaes mais importantes para ns que residimos e vivemos no seu interior.
SCRATES, O JOVEM
claro.
ESTRANGEIRO
Mas no sabemos, tambm, que com grande dificuldade que a natureza
dos seres vivos suporta mudanas profundas, numerosas e diversas ao mesmo
tempo?
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Nessas ocasies fatal que a morte faa as suas maiores devastaes entre
os seres vivos, reduzindo, especialmente, o gnero humano a um nmero nfimo de
sobreviventes. Ao realizar-se a inverso do movimento atual, os que sobrevivem
sofrem toda espcie de estranhos e inslitos acidentes, dos quais o mais grave, que
se deve mudana de sentido do movimento do universo, este:
SCRATES, O JOVEM
Qual?

Os filhos da Terra

ESTRANGEIRO
Todos os seres vivos, ento, pararam na idade em que estavam e tudo o
que era mortal j no contemplou mais o espetculo de um envelhecimento
gradual. Depois, progredindo em sentido contrrio, cresceram em juventude e
frescor. Os cabelos brancos dos t velhos tornaram-se pretos.
Naqueles em que a barba j era crescida as faces se alisaram e cada um
retornou flor da mocidade. Os corpos dos imberbes tornando-se ainda mais
tenros e menores, dia por dia, noite por noite, voltaram afinal ao estado de crianas
recm-nascidas, a elas semelhantes em corpo e alma, e prosseguindo, aps o seu
declnio, acabavam por desaparecer completamente. Os cadveres dos que naquele
tempo haviam padecido morte violenta sofreram as mesmas transformaes, e com
tal rapidez que em poucos dias deles nada restava.
SCRATES, O JOVEM
E como ento, naquele tempo, se dava o nascimento dos seres vivos, caro
Estrangeiro? Como se procriavam uns aos outros?
ESTRANGEIRO
claro, Scrates, que segundo a natureza de ento, no podiam, como
dizes, procriarem-se uns aos outros; e foi, nesse tempo, que aconteceu a histria de
que se fala, de uma raa, outrora nascida da prpria terra; e os homens desse
tempo, nascidos do seio da terra, guardaram essa lembrana que nos foi transmitida
pelos nossos mais remotos antepassados, homens de um tempo que se seguiu
imediatamente ao fim deste antigo ciclo. Eles so as garantias destas tradies de
que muitos de nossos contemporneos duvidam, sem razo. A meu ver, impe-se
pensar assim: desde que os ancios voltavam a ser crianas, os mortos sepultados
na terra conseqentemente deveriam reconstituir-se e voltar vida, levados por este
movimento de volta que fazia com que as geraes caminhassem em sentido
oposto; e sendo que assim nasciam, necessariamente, do seio da terra, dela
receberam o seu nome e a sua histria; quando no foram dirigidos por um deus
para outros destinos.
SCRATES, O JOVEM
O que dizes se confirma perfeitamente pelo que antes afirmaste ; mas,
dize-me agora se a vida que, a teu ver, existia sob o imprio de Crono, pertencia ao
outro ciclo ou a este, pois que a mudana de sentido no curso dos astros e do sol
aconteceu, evidentemente, em ambos.
Os Pastores Divinos

ESTRANGEIRO
Acompanhaste bem a discusso. Mas a ordem a que tu te referes, em que
tudo nascia de si mesmo para servir aos homens, no tem relao alguma com o
ciclo ora em curso: pertencia ela ao ciclo precedente. Nesse tempo, a direo e a
vigilncia de Deus se exercia, primeiramente, tal como hoje, sobre todo o
movimento circular, e essa mesma vigilncia ainda existia localmente, pois todas as
partes do mundo estavam distribudas entre os deuses encarregados de govern-las.
Alis, os prprios animais ento se dividiam em gneros e rebanhos sob o bordo
de gnios divinos e cada um deles provia, plenamente, todas as necessidades de
suas ovelhas no havendo feras selvagens, nem acontecendo que uns devorassem a
outros, nem guerras, sem desentendimentos; e eu poderia contar, ainda, milhares de
outros benefcios a esse tempo dispensados ao mundo. Mas, voltando ao que se
refere aos homens que, ento, no tinham preocupao alguma para viver, esta a
explicao: era o prprio Deus que pastoreava os homens e os dirigia tal como
hoje, os homens (a raa mais divina) pastoreiam as outras raas animais que lhes
so inferiores. Sob o seu governo, no havia Estado, constituio, nem a posse de
mulheres e crianas, pois era do seio da terra que todos nasciam, sem nenhuma
lembrana de suas existncias anteriores. Em compensao tinham em quantidade
os frutos das rvores e de toda uma vegetao generosa, recebendo-os, sem cultiv-
los, de uma terra que, por si mesma os oferecia. Nus, sem leito, viviam no mais das
vezes ao ar livre, pois as estaes lhes eram to amenas que nada podiam sofrer, e
por leitos tinham a relva macia que brotava da terra. Era esta, Scrates, a vida que
se levava sob o imprio de Crono; e quanto outra, a de agora, e que, ao que se diz,
est sob o imprio de Zeus, tu a conheces por ti mesmo. Podes dizer qual delas a
mais feliz? SCRATES, O JOVEM
Impossvel.
ESTRANGEIRO
Queres, ento, que eu mesmo o diga?
SCRATES, O JOVEM
Claro que sim.
ESTRANGEIRO
Se os tutelados de Crono, em seus lazeres que eram muitos, e tendo a
faculdade de entreter-se, no apenas com homens, mas tambm com animais, se
usaram de todas essas vantagens para praticar a filosofia, conversando com os
animais e entre si, e interrogando a todas as criaturas para ver se haveria uma que,
melhor dotada, enriquecesse, com uma descoberta original, o tesouro comum dos
conhecimentos humanos, fcil seria dizer que eles eram infinitamente mais felizes
do que os homens do presente. Se, porm, apenas se ocuparam em fartar-se de
alimentos e bebidas, no procurando contar ou ouvir de outros e dos animais seno
fbulas, tais como as que hoje se contam a seu respeito, a resposta seria fcil, creio.
Mas, deixemos este problema at que encontremos algum, bastante hbil, que nos
testemunhe com que esprito os homens deste tempo procuravam o conhecimento
e entre si discutiam. Quanto razo por que lembramos este mito, eu a direi agora,
pois j tempo de continuarmos o nosso raciocnio se quisermos lev-lo a bom
termo.

O mundo abandonado

Quando se completou o tempo determinado a todas as coisas, e chegada a


hora em que deveria produzir-se a mudana, esta raa nascida da terra desapareceu
por completo, havendo cada alma completado o seu ciclo de nascimentos e voltado
terra tantas vezes como sementes quantas determinara a sua prpria lei. Ento o
piloto do Universo, abandonando, por assim dizer, o leme, voltou a encerrar-se em
seu posto de observao; e o mundo levado pela sua tendncia e pelo seu destino
natural, moveu-se em sentido contrrio. Todos os deuses locais que assistiam a
divindade suprema em seu governo, compreendendo prontamente o que se
passava, abandonaram, tambm eles, as partes do mundo confiadas aos seus
cuidados. E o mundo, subitamente mudando o sentido de seu movimento, de
comeo a fim, provocou, no seu prprio seio, um terremoto violento em que
pereceram os animais de toda espcie. Depois, ao fim de um tempo suficiente,
terminados os distrbios e o terremoto, prosseguiu num movimento ordenado o
seu curso habitual e prprio, zelando e governando, como senhor, tudo o que havia
em seu seio, bem como a si prprio e relembrando, tanto quanto lhe fora possvel,
as instrues de seu criador e pai, de incio, com maior exatido, mas, ao fim, com
crescente enfraquecimento. Esta falta se deveu aos princpios corporais que
entraram na sua constituio, aos caracteres herdados de sua natureza primitiva,
que comportava uma grande parte de desordem antes de alcanar a ordem csmica
atual. De seu construtor que recebeu tudo o que tem de belo e de sua constituio
anterior decorrem todos os males e todas as iniqidades que se cometem no cu, e
que da passaram ao mundo, transmitindo-se aos animais. Enquanto desfrutava da
assistncia de seu piloto que alimentava aos seus, que viviam em seu seio, salvo
raros fracassos, s produzira grandes bens; mas uma vez dele desligado, quando o
mundo foi abandonado a si mesmo, nos primeiros tempos que se seguiram ainda
procurou levar todas as coisas para o melhor; entretanto, com o avanar do tempo
e do esquecimento, tornando-se mais poderosos os restos de sua turbulncia
primitiva que finalmente alcanou o seu apogeu, raros so os bens e numerosos os
males que a ele se incorporam, arriscando-se sua prpria destruio e de tudo o
que ele encerra. Por esse motivo, o Deus que o organizou, compreendendo o
perigo em que o mundo se encontra, e temendo que tudo se dissolva na tempestade
e desaparea no caos infinito da dessemelhana, toma de novo o leme e
recompondo as partes que, neste ciclo, percorrido sem guia, tombaram em
dissoluo e desordem, ele o ordena e restaura de maneira a torn-lo imortal e
imperecvel.
O homem no estado de natureza

Assim termina este mito, do qual a primeira parte servir nossa teoria do
Rei. Quando o mundo, por um movimento reverso, desviou-se para o modo atual
de gerao, a evoluo das idades parou uma segunda vez para voltar num sentido
contrrio quele que ento seguia. Os seres vivos que se haviam reduzido a quase
nada voltaram a crescer e os corpos recm-nascidos da terra tornaram-se grisalhos,
definharam-se e voltaram terra. E todo o resto voltou, da mesma forma em
sentido contrrio, amoldando-se e regulando-se nova evoluo do universo; e
especialmente a gestao, o parto e a criao imitaram e seguiram o processo geral.
J no era possvel que o animal nascesse do seio da terra, por um concurso de
elementos estranhos; uma vez que o mundo assim se tornara o seu prprio senhor,
sujeito a dirigir a sua evoluo, tambm as suas partes deveriam, por uma lei
anloga, conceber, dar luz e criar por si mesmas, na medida em que pudessem. E
assim eis-nos agora chegados ao ponto a que se dirigia todo este raciocnio. No que
se refere aos outros animais seriam necessrias muitas palavras e muito tempo para
dizer qual era ento a condio de cada espcie e por que influncias ela se
modificou; mas relativamente aos homens, esta exposio ser mais breve e mais a
propsito. Uma vez privados dos cuidados deste deus que os possua e os mantinha
sob sua guarda, cercados de animais dos quais a maior parte era naturalmente feroz,
e que se tornaram desde logo selvagens, agora que tambm eles se viram sem fora
e sem proteo, os homens se tornaram presas desses animais. Nos primeiros
tempos, no tiveram qualquer indstria ou arte; e foi desde este momento de
grande abandono, em que seus alimentos deixaram de vir-lhes espontaneamente, e
em que no sabiam ainda procur-los, pois que nenhuma necessidade os havia, at
ento, obrigado a isso, que, segundo as antigas tradies, nos foram dadas, pelos
deuses, lies e ensinamentos indispensveis: o fogo por Prometeu12; as artes por

12
Prometeu: gigante amigo dos homens. Doou o fogo aos homens, contra a vontade de Zeus. Nesta verso, porm, o fogo ddiva feita aos
homens pelos prprios deuses. (N.doT.)
Hefesto13 e sua companheira; as sementes e as plantas por outras divindades. Assim
tudo o de que a vida humana feita nasceu desses primeiros passos; quando os
homens, como disse, viram-se privados da vigilncia divina, devendo conduzir-se
ss e zelar por si mesmos, tal como o universo, pois tudo o que fazemos imit-lo
e segui-lo, alternando, na eternidade do tempo, estas duas maneiras opostas de
viver e nascer. Terminemos aqui o nosso mito, dele nos servindo para medir a falta
que cometemos ao definir, como o fizemos anteriormente, o homem real e o
poltico.
SCRATES, O JOVEM
A que falta te referes, e qual a sua importncia?
ESTRANGEIRO
Pequena, uma vez; outra vez, considervel, muito mais sria e mais grave
que a outra.
SCRATES, O JOVEM
Como assim?
ESTRANGEIRO
Ao indagarmos do rei e do poltico do ciclo atual, e do modo atual de
geraes, fomos at ao ciclo oposto e falamos do pastor que governava o rebanho
humano, pastor divino ao invs de humano, o que uma falta grave. Por outro
lado, apresent-lo como chefe de toda uma cidade, sem explicar de que maneira ele
assim o , era dizer a verdade, mas no a verdade completa, nem a verdade clara, e
esta ltima falta menor do que a primeira.
SCRATES, O JOVEM
verdade.
ESTRANGEIRO
Precisamos, pois, ao que me parece, determinar primeiramente o gnero
de governo que o poltico exerce sobre a cidade, se quisermos orgulhar-nos de lhe
haver dado uma definio perfeita.

13
Hefesto: deus dos ferreiros. A companheira de Hefesto Atena, protetora dos trabalhos manuais femininos, como o bordado. (N. do T.)
SCRATES, O JOVEM
certo.
ESTRANGEIRO
Foi precisamente com esse propsito que nos referimos a este mito:
nossa inteno no era apenas mostrar que o ttulo de tratador do rebanho, o chefe
a quem procuramos, disputado por todos; quisemos tambm revelar melhor
aquele que, sendo o nico a assumir to completamente como os pastores de
ovelhas e de bois os encargos de educar o seu grupo de homens, fosse tambm o
nico com direito a honrar-se daquele ttulo.
SCRATES, O JOVEM
Justamente.
ESTRANGEIRO
Mas a meu ver, Scrates, esta figura do pastor divino ainda muito
elevada para um rei; os polticos de hoje, sendo por nascimento muito semelhantes
aos seus sditos, aproximam-se deles, ainda mais, pela educao e instruo que
recebem.
SCRATES, O JOVEM
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Mas, mesmo assim, eles devem ser examinados igualmente de sorte a ver
se esto acima de seus sditos, tal como o pastor divino, ou no mesmo nvel.
SCRATES, O JOVEM
Sem dvida.
ESTRANGEIRO
Voltemos, ento, onde estvamos. Lembras-te de que falamos desta arte
que concede um poder autodiretivo sobre os animais e que deles cuida no
individual, mas coletivamente, e a qual, alis, logo chamamos de "arte de cuidar dos
rebanhos"?
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Ali tambm cometemos algum erro. Em nenhum lugar consideramos o
poltico nem falamos em seu nome; antes, afastamo-nos dele sem dar-nos conta,
embora acreditando referirmo-nos a ele.
SCRATES, O JOVEM
Como assim?
ESTRANGEIRO
Cuidar de seu rebanho, para si mesmo, comum a todos os demais
pastores; mas ao poltico no cabia o nome que lhe atribumos; seria necessrio,
pois, um nome que servisse a todos, ao mesmo tempo.
SCRATES, O JOVEM
O que dizes certo, desde que tal nome exista.
ESTRANGEIRO
Como no? O cuidado para com os rebanhos desde que no se
determine como alimentao ou qualquer outro cuidado especfico, no comum a
todos? Falando, pois, da arte que se ocupa dos rebanhos, que por eles vela e deles
cuida, designando a funo que compete a todos, haveria um termo capaz de servir
ao poltico e a todos os seus rivais, e esse, precisamente, o fim de nossa pesquisa.
SCRATES, O JOVEM
Bem, mas como proceder ento diviso que seguiria?

O pastor humano: tirano ou rei?

ESTRANGEIRO
Tal corno fizemos h pouco, ao dividir a arte de cuidar de rebanhos
enumerando: animais que andam sobre a terra e no-voadores, animais que no se
cruzam e animais sem chifres. Procedendo por distines anlogas poderemos,
numa mesma noo, compreender a arte que cuida dos rebanhos no perodo atual e
aquela que se exerce sob o reino de Crono.
SCRATES, O JOVEM
o que parece; mas o que seguiria da?, pergunto eu.
ESTRANGEIRO
claro que assim caracterizando a arte que se ocupa dos rebanhos jamais
ouviramos algum duvidar de que ela implicasse algum cuidado, qualquer que
fosse. Ora, vimos h pouco, com razo, que no existe arte alguma entre ns que
pudesse ser entendida como a de cuidar dos rebanhos; e ainda, se existisse, muitos
homens haveriam de pretender, com maior pressa e maior razo que qualquer rei,
ser ela a sua arte.
SCRATES, O JOVEM
exato.
ESTRANGEIRO
Pois bem. Nenhuma arte pretenderia, com maior pressa e maior razo do
que a arte real, ter a si os cuidados para com a comunidade humana, em seu todo, e
constituir-se numa arte de governo dos homens, em geral.
SCRATES, O JOVEM
Tens razo.
ESTRANGEIRO
Mas, dito isto, Scrates, no nos apercebemos de que, ao fim de nossa
anlise, cometemos um grave erro?
SCRATES, O JOVEM
Qual?
ESTRANGEIRO
O seguinte: como poderamos ns, supondo que existisse uma arte qual
coubesse cuidar dos rebanhos bpedes, t-la por certa e desde logo dizer que essa
arte a do rei e a do poltico?
SCRATES, O JOVEM
E ento?
ESTRANGEIRO
O que devemos, primeiramente, precisar-lhe o nome, aproximando-o
mais da idia de um cuidado geral do que da idia de um cuidado pela alimentao,
e a partir da, dividi-la, pois ela mesma ser ainda suscetvel de divises que no
podem ser negligenciadas.
SCRATES, O JOVEM
Quais?
ESTRANGEIRO
A primeira diviso nos levar a distinguir o pastor divino, do
administrador humano.
SCRATES, O JOVEM
Muito bem.
ESTRANGEIRO
Depois, havendo assim determinado esta arte de cuidar, devemos dividi-la
novamente em duas partes.
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
Distinguindo entre o que imposto pela fora e o que aceito de boa
vontade.
SCRATES, O JOVEM
Sim, compreendo.
ESTRANGEIRO
E foi precisamente por no haver feito esta distino que ns cometemos
este erro, mais por distrao, confundindo o rei e o tirano, bem distintos entre si,
pelas suas maneiras de governar.
SCRATES, O JOVEM
verdade.
ESTRANGEIRO
Corrigindo-nos, dividamos, ento, como dizia, a arte do cuidado para
com os homens em duas, atendendo a que este cuidado seja imposto pela fora ou
aceito de boa vontade.
SCRATES, O JOVEM
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Poderemos, ento, quando ela se exerce pela fora, cham-la tirnica, e
quando seus prstimos, livremente oferecidos, so livremente aceitos pelo rebanho
de bpedes, cham-la poltica; afirmando, desde j, que quem exercer esta arte e
tiver a si estes cuidados ser, verdadeiramente, um Rei e um Poltico?
SCRATES, O JOVEM
E assim fazendo, Estrangeiro, creio havermos terminado a nossa
demonstrao, relativamente ao Poltico.
ESTRANGEIRO
Seria esplndido, Scrates. Mas no basta a tua convico, apenas;
preciso que tu e eu, em comum, a tenhamos. Ora, a meu ver, a nossa descrio do
Rei ainda no est terminada. Ao contrrio: tal como escultores que, algumas vezes,
trabalhando apressadamente e havendo exagerado vrias partes de sua obra,
perdem tempo, depois, em corrigi-las, retardando o que lhes cabe fazer, da mesma
forma ns, procurando corrigir, sem demora, e de maneira grandiosa o erro
cometido em nossa exposio anterior, acreditamos que para o Rei s eram dignos
os modelos de alta grandeza; e assim tomamos uma parte enorme de uma lenda da
qual nos servimos mais do que seria necessrio, alongamo-nos na demonstrao
sem havermos, afinal, chegado ao fim de nosso mito. Ao contrrio do que te
parece, o nosso discurso se assemelha a um quadro muito bem desenhado em suas
linhas exteriores, de sorte a dar a impresso de terminado, mas ao qual, entretanto,
falta o relevo que lhe ser dado pela pintura e pela harmonia de cores. E o que
melhor nos convm no o desenho, nem uma representao manual qualquer;
so as palavras e o discurso; pois que se trata de expor um assunto vivo a espritos
capazes de segui-lo. Para outros, seria necessria uma representao material.
SCRATES, O JOVEM
certo. Mas preciso mostrar ento o que, segundo crs, falta em nossa
exposio.

Definio e uso do paradigma

ESTRANGEIRO
Seria difcil, meu caro amigo, tratar satisfatoriamente um assunto
importante sem recorrer a paradigmas. Poderamos quase dizer que cada um de ns
conhece todas as coisas como sonho, mas que, luz do despertar, se apercebe de
nada saber.
SCRATES, O JOVEM
Que queres dizer?
ESTRANGEIRO
Parece-me ser uma descoberta curiosa que me leva a falar em que
consiste, em ns, a cincia.
SCRATES, O JOVEM
Em qu?
ESTRANGEIRO
Precisarei, meu caro, de um outro paradigma para explicar o meu.
SCRATES, O JOVEM
Pois bem, fala. No h razo para hesitares ao falar comigo.
ESTRANGEIRO
Sim, falarei, pois vejo que ests pronto a seguir-me. Ns sabemos, creio,
que as crianas, logo que comeam a aprender a escrita. . .
SCRATES, O JOVEM
Que vais dizer?
ESTRANGEIRO
Que elas distinguem suficientemente bem as vrias letras, nas slabas mais
curtas e mais fceis, e so capazes de, a esse respeito, dar respostas exatas.
SCRATES, O JOVEM
Sem dvida.
ESTRANGEIRO
Entretanto, j no as distinguem em outras slabas, e pensam e falam
erradamente a seu respeito.
SCRATES, O JOVEM
certo.
ESTRANGEIRO
Pois bem, o melhor mtodo, o mais fcil e o mais seguro para lev-las aos
conhecimentos que ainda no possuem, no seria. . .
SCRATES, O JOVEM
Qual?
ESTRANGEIRO
Mostrar-lhes primeiramente os grupos em que interpretaram essas letras
corretamente e depois coloc-las frente aos grupos que ainda no conhecem,
fazendo-as comparar uns com os outros a fim de ver o que h de igual em ambas
estas combinaes; at que fora de mostrar-lhes, ao lado dos grupos que as
confundem, aqueles que interpretam com exatido, estes assim mostrados
paralelamente se tornam, para elas, paradigmas que as auxiliaro, seja pela letra que for,
e em qualquer slaba, a soletrar diferentemente o que for diverso, e sempre de uma
mesma e invarivel maneira, o que for idntico.
SCRATES, O JOVEM
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
V, pois, se no verdade, e bem compreensvel: constitui um paradigma
o fato de, ao encontrar-se um mesmo elemento em um grupo novo e bem distinto,
a interpret-lo exatamente , uma vez identificado nos dois grupos, permitir que
ambos se incluam numa noo nica e verdadeira.
SCRATES, O JOVEM
o que parece.
ESTRANGEIRO
Haveria ento de que se admirar ao saber que a nossa alma est sujeita s
mesmas vicissitudes no que se refere aos elementos de todas as coisas? Umas vezes
solidamente segura da verdade com relao a cada elemento de certos compostos;
outras vezes errante em seus julgamentos sobre todos os elementos de outros; e a
respeito de uns ou de outros elementos destas combinaes, capaz, s vezes, de
encontrar a opinio certa mas incapaz de reconhec-los quando transportados para
algumas destas slabas do real, complexas e difceis.
SCRATES, O JOVEM
No, nada h que admirar.
ESTRANGEIRO
Por que meios poder, meu caro, quem parte de uma opinio falsa
alcanar alguma poro da verdade e chegar sabedoria?
SCRATES, O JOVEM
Por nenhum meio.
ESTRANGEIRO
Se assim, haver mal em que tu e eu, aps este esforo para ver num
pequeno paradigma particular o que o paradigma em geral, procuremos agora
elevar sua mais alta forma, sua forma real, este mesmo processo que ensaiamos
a propsito de pequenos objetos, tentando, por um novo uso do paradigma,
explicar-nos metodicamente em que consiste o cuidado para com as coisas da
cidade, e assim passar do sonho viglia?
SCRATES, O JOVEM
Seria perfeitamente legtimo.
ESTRANGEIRO
Retomemos ento o raciocnio e h pouco: milhares de rivais disputam ao
gnero real a honra dos cuidados que ele dispensa s cidades; para bem isol-los
preciso, naturalmente, separ-los; e para tanto que dissemos ser necessrio um
paradigma.
SCRATES, O JOVEM
Exatamente.

O paradigma da tecedura

ESTRANGEIRO
Que paradigma poderamos tomar, o qual, embora curto, pela sua
analogia com as operaes da poltica nos permitisse encontrar, por comparao, o
objeto que procuramos? Concordas, por Zeus, meu caro Scrates, que na falta de
melhor, tomemos a tecedura por exemplo? Se assim concordas, tomemos no toda
e qualquer tecedura, mas somente a de l: pode ser que somente ela baste para
testemunhar o que ns procuramos.
SCRATES, O JOVEM
Por que no?
ESTRANGEIRO
E por que, tendo at aqui distinguido as diferentes partes para, a seguir,
dividi-las, no procedemos agora da mesma forma relativamente tecedura? E por
que no havemos de tentar conhec-la numa viso rpida, para voltarmos logo ao
que nos til no momento?
SCRATES, O JOVEM
Que queres dizer?
ESTRANGEIRO
medida que assim fizer, responderei tua pergunta.
SCRATES, O JOVEM
Disseste bem.
ESTRANGEIRO
Pois bem, tudo o que fazemos ou adquirimos nos serve ou como meio
para alguma ao ou para prevenir-nos de algum sofrimento. Do que nos previne,
h os antdotos divinos ou humanos, e h os meios de defesas. Dentre estas
defesas, umas so armaduras de guerra, outras abrigos. Dos abrigos, uns so
providncias contra o frio e o calor, e dentre estes h os telhados e os tecidos. Os
tecidos, por sua vez, ou servem como cobertas ou como vestimentas, e estas se
compem de uma ou de vrias peas. As vestimentas de vrias peas so costuradas
ou no, e dentre as que no so costuradas umas so feitas de fibras de plantas e
outras de pelos. Das que so feitas de plo, umas so ligadas com gua e terra, e
noutras os prprios pelos se entrelaam. Ora, a estes meios de defesa, e a estes
tecidos feitos de pelos que se ligam uns com os outros que se deu o nome de
vestimentas. Pois que demos o nome de poltica arte que se ocupa da polis,
daremos, da mesma forma a esta nova arte que se ocupa especialmente das
vestimentas, atendendo ao seu objeto, o nome de arte vestimentria. No
poderemos dizer, ento, que a tecedura, na medida em que ela a parte mais
importante na confeco da vestimenta, em nada se distingue da arte vestimentria,
a no ser pelo nome, da mesma forma como a arte real s difere em nome da arte
poltica?
SCRATES, O JOVEM
Sim, seria perfeitamente justo.
ESTRANGEIRO
Isso dito, lembremos que a arte de tecer as vestimentas poderia parecer
suficientemente explicada nessa exposio se no refletssemos o bastante para ver
que ainda no a distinguimos de artes muito prximas, que apenas lhe so
auxiliares, e muito embora j a tenhamos separado de outras da mesma famlia.
SCRATES, O JOVEM
A que outras te referes?
ESTRANGEIRO
No acompanhaste minhas palavras, ao que parece; teremos, pois, de
voltar recomeando pelo fim. Se alguma coisa compreendes com relao a
parentesco, lembra-te de que h pouco pusemos de lado a fabricao de cobertas
distinguindo entre o que serve de vestimenta e o que serve de manta.
SCRATES, O JOVEM
Entendo.
ESTRANGEIRO
E o que se faz com o linho, o esparto e com tudo o que acabamos de
chamar, por analogia, nervos das plantas, eis uma fabricao que descartamos
inteiramente; tambm separamos a arte de piscar, e a de unir furando e costurando,
que tem como parte maior a cordoaria.
SCRATES, O JOVEM
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Depois afastamos a peleria, que, pela curtidura, nos d uma s pea;
assim como a fabricao de telhados, quer para a construo, ou quer, em outras
artes, para defender das guas correntes; e ainda todas as artes que permitem os
diferentes engenhos de cercamento para proteger-nos contra roubos e atos de
violncia, e as que dirigem a feitura de tampas e a colocao de portas e que so as
partes especiais da carpintaria. Afastamos tambm a fabricao de armas que
apenas uma diviso da indstria grande e complexa dos meios de defesa. E de
incio j eliminamos toda a parte da magia, que tem por objeto os antdotos, s
deixando assim a arte que nos interessa, a que nos preserva do frio do inverno,
fabricando-nos as defesas de l, e que tem o nome de tecedura.
SCRATES, O JOVEM
De fato o que parece.
ESTRANGEIRO
Mas, caro jovem, ainda no chegamos ao fim de nossa enumerao, pois
ao iniciar a fabricao de vestimentas fazemos o contrrio de tecer.
SCRATES, O JOVEM
Como assim?
ESTRANGEIRO
Tecer, afinal, consiste em entrelaar.
SCRATES, O JOVEM
certo.
ESTRANGEIRO
Falamos agora, precisamente, em separar o que estava unido e tranado.
SCRATES, O JOVEM
De que falas?
ESTRANGEIRO
Do que faz a arte do cordador; ou poderamos dizer que tecer cardar e
que o cardador , na verdade, um tecelo?
SCRATES, O JOVEM
Nunca.
ESTRANGEIRO
O mesmo acontece com a arte de fabricar urdiduras e tramas; cham-la
de tecedura seria faltar verdade e verossimilhana.
SCRATES, O JOVEM
Sem dvida.
ESTRANGEIRO
E que dizemos da arte do pisoeiro em todas as suas formas e a do
remendo; no tero nada a ver com a feitura das vestimentas ou dizemos que se
trata sempre da tecedura?
SCRATES, O JOVEM
De nenhum modo.
ESTRANGEIRO
Entretanto, todas estas artes disputaro com a arte da tecedura este
privilgio de cuidar e fabricar as vestimentas, e, embora lhe concedam maior
importncia, reivindicaro para si uma grande parte.
SCRATES, O JOVEM
Certamente.
ESTRANGEIRO
Segundo elas, as artes que fabricam os instrumentos, com os quais se
exerce a tecedura, ho de pretender, creia-se, serem, pelo menos, causas auxiliares
de cada tecido fabricado.
SCRATES, O JOVEM
certo.
ESTRANGEIRO
A noo de tecedura, desta parte da tecedura que escolhemos, estar
suficientemente determinada se, dentre todas as tcnicas relativas s vestimentas de
l, ns a definirmos como a mais nobre e a mais importante? Ou ao contrrio,
estaramos dizendo ento algo de verdadeiro, mas que nada esclarece nem nada
conclui, enquanto no houvssemos afastado todas estas artes rivais?
SCRATES, OJOVEM
Tens razo.
ESTRANGEIRO
E no ser este o momento para assim fazer, se quisermos que a nossa
dissertao prossiga ordenadamente?
SCRATES, O JOVEM
No h por que hesitar.
ESTRANGEIRO
Consideremos, pois, em primeiro lugar, que tudo aquilo que se produz
objeto de duas artes.
SCRATES, O JOVEM
Quais?
Causas prprias e causas auxiliares

ESTRANGEIRO
Um causa simplesmente auxiliar da produo, outro a sua prpria causa.
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
Todas as artes que no produzem a coisa propriamente mas que
fornecem quelas que a produzem os instrumentos indispensveis sua execuo
so apenas causas auxiliares; ao passo que as que a produzem so causas prprias.
SCRATES, O JOVEM
A distino bem fundamentada.
ESTRANGEIRO
Por conseguinte, quelas que fornecem os fusos, as lanadeiras e os
demais instrumentos necessrios produo da vestimenta, ns chamaramos
auxiliares, enquanto as demais, que a executam e fabricam diretamente, seriam suas
causas.
SCRATES, O JOVEM
Justamente.
ESTRANGEIRO
Ora, com relao a essas artes-causas, a arte de lavar e de remendar, e os
demais cuidados relativos vestimenta, sendo to vasto o domnio de sua
preparao, poderemos reuni-los num todo que constituir uma parte e que se
chamar, de modo geral, a arte do pisoeiro.
SCRATES, O JOVEM
Muito bem.
ESTRANGEIRO
Mas a arte de cardar, tecer e todas as operaes relacionadas com aquilo
que chamamos a fabricao direta da vestimenta formam uma arte nica,
universalmente conhecida: a arte de trabalhar a l.
SCRATES, O JOVEM
Sem dvida.
ESTRANGEIRO
Ora, nesse trabalho da l h duas divises, cada uma das quais
constituda pela reunio de duas artes.
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
A cardadura, a metade do trabalho que executa a lanadeira, e todas as
operaes cujo fim separar o que estava embaraado, tudo isto tomado em
conjunto constitui verdadeiramente o trabalho da l, e ns sempre distinguimos
universalmente duas grandes artes: a arte de unir e a arte de separar.
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Ora, na arte de separar incluem-se a cardadura e todas as operaes de
que falamos, pois o trabalho que separa as ls ou os fios e que se executa aqui com
a lanadeira, l com as mos, tem todos os nomes que acabamos de enunciar.
SCRATES, O JOVEM
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Observemos agora outra parte que pertence tambm ao trabalho da l e
que a arte de unir, deixando de lado a arte de separar que a havamos encontrado,
dividindo, assim, o trabalho da l em suas duas partes: aquela em que se separa e
aquela em que se rene.
SCRATES, O JOVEM
Faamos, pois, a diviso.
ESTRANGEIRO
Agora, esta parte que une, compreendida no trabalho da l, deve ser
dividida por sua vez, Scrates, se quisermos apreender perfeitamente a chamada
arte da tecedura.
SCRATES, O JOVEM
Sim, devemos dividi-la.
ESTRANGEIRO
Diramos que sua finalidade ou torcer ou entrelaar.
SCRATES, O JOVEM
Terei compreendido bem? Pois a meu ver, na confeco do fio da
urdidura que pensas, ao falares em toro.
ESTRANGEIRO
No apenas no fio da urdidura mas tambm no da trama. Ou haveria um
meio de produo sem torc-lo?
SCRATES, O JOVEM
Nenhum.
ESTRANGEIRO
Analisa, pois, pormenorizadamente cada uma dessas operaes: talvez
essa distino te seja lio oportuna.
SCRATES, O JOVEM
Como faz-lo?
ESTRANGEIRO
Do seguinte modo: entre os produtos da cardadura, existe um que possui
comprimento e largura, a que chamamos roca?
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Muito bem, pela fiao rotativa no fuso, que a transforma num slido fio,
obteremos o fio da urdidura e a arte que dirige esta operao a arte de fabricar
urdidura.
SCRATES, O JOVEM
Correto.
ESTRANGEIRO
Mas todas as fibras que produzem apenas fios frouxos e que possuem
justamente a flexibilidade necessria para se entrelaarem na urdidura e resistirem
s traes da tecedura, chamamos fios da trama e dizemos que a arte que preside
sua colocao tem por finalidade a fabricao da trama.
SCRATES, O JOVEM
Muito bem.
ESTRANGEIRO
Eis, pois, a parte da tecedura que nos interessava, perfeitamente
compreensvel daqui por diante. Quando a operao de reunio, que a parte do
trabalho da l, entrelaou a urdidura e a trama, de maneira a formar um tecido,
damos, ao conjunto do tecido, o nome de vestimenta de l, e, arte que o produz,
o nome de tecedura.
SCRATES, O JOVEM
Muito bem.
ESTRANGEIRO
Bem, mas ento por que no dizer logo: "A tecedura a arte de entrelaar
a urdidura e a trama" em lugar de fazer tantos rodeios e um acervo de distines
inteis?
SCRATES, O JOVEM
A meu ver, Estrangeiro, nada h de intil no que dissemos.
A medida relativa e ajusta medida

ESTRANGEIRO
No me admira o que respondeste; mas, caro amigo, o que dissemos
poderia, a outros, parecer intil, e sendo bem possvel que esse mesmo mal te
acontecesse, mais tarde o que bem pode suceder ouve estas consideraes
que convm a todas as questes deste gnero.
SCRATES, O JOVEM
Explica-te melhor.
ESTRANGEIRO
Examinemos primeiramente, de maneira geral, o excesso e a falta; e assim
teremos uma regra para elogiar ou censurar, n momento prprio, o que parecer
demasiado ou o que for muito pouco, nas conversas que mantemos.
SCRATES, O JOVEM
Examinemos, ento.
ESTRANGEIRO
Ora, penso que exatamente a essas coisas que deveramos aplicar as
consideraes que fao.
SCRATES, O JOVEM
A que coisas?
ESTRANGEIRO
grandeza e pequenez, a tudo que constitui excesso ou falta; pois
acredito que a isso tudo que se aplica a arte da medida.
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Dividamos, pois, essa arte em duas partes: tal diviso necessria ao
propsito que nos domina.
SCRATES, O JOVEM
Explica-me em que ela se fundamentar.
ESTRANGEIRO
No seguinte: de um lado, na relao que possuem entre si a grandeza e a
pequenez; de outro, nas necessidades essenciais do devir.
SCRATES, O JOVEM
Que queres dizer?
ESTRANGEIRO
No s da opinio de que o maior s maior com relao ao menor, e o
menor com relao ao maior, exclusivamente?
SCRATES, O JOVEM
Sim, certamente.
ESTRANGEIRO
Mas, ento, aquilo que ultrapassa o nvel da medida, ou permanece
inferior a ele, seja em nossa conversa, seja na realidade, no exatamente, a nosso
ver, o que melhor denuncia a diferena entre os bons e os maus?
SCRATES, O JOVEM
Aparentemente.
ESTRANGEIRO
Eis-nos, pois, forados a admitir, para o grande e para o pequeno, dois
modos de existncia e dois padres: no nos podemos ater, como fazamos h
pouco, sua relao recproca, mas sim distinguir, como o fazemos agora, de um
lado, sua relao recproca e, de outro, a relao de ambos com a justa medida. No
nos seria interessante saber a razo disso?
SCRATES, O JOVEM
Certamente.
ESTRANGEIRO
Negar natureza do maior qualquer relao que no seja com a
natureza do menor, no ser exclu-lo de toda relao com ajusta medida?
SCRATES; O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
No iramos destruir, com tal pretenso, as artes e tudo o que elas
produzem, e abolir, por outro lado, a prpria poltica que procuramos definir e
essa. arte da tecedura que acabamos de estudar? Pois podemos afirmar que, para
todas essas artes, aquilo que se situa aqum ou alm da justa medida no uma
coisa irreal; , ao contrrio, uma realidade desagradvel que elas procuram afastar
de suas produes, e preservando a medida que elas asseguram a bondade e a
beleza de suas obras.
SCRATES, O JOVEM
E evidente.
ESTRANGEIRO
Abolir a poltica no ser impedir-nos de continuar nossa anlise sobre a
cincia real?
SCRATES, O JOVEM
Certamente.
ESTRANGEIRO
Faamos, pois, como na questo do sofista, em que fomos obrigados a
afirmar a existncia do no-ser. Essa existncia constitua o nico recurso de nosso
raciocnio. Admitamos assim a comensurabilidade do mais e do menos; no apenas
relacionados entre si, mas tambm com a justa medida que necessrio estabelecer.
Pois impossvel colocar fora de toda dvida a existncia do poltico ou de
qualquer outra competncia em matria de ao se no chegarmos a um acordo
sobre esse ponto.
SCRATES, O JOVEM
Neste caso, na medida do possvel faamos o mesmo com relao
questo presente.
ESTRANGEIRO
Esta tarefa, caro Scrates, ser maior do que a primeira, e lembremo-nos
quo grande foi ento. Mas eis, a esse respeito, uma previso que podemos fazer
com segurana.
SCRATES, O JOVEM
Qual?
ESTRANGEIRO
A de que o princpio de que falamos ser-nos- necessrio um dia para
demonstrar em que consiste a exatido em si. Entretanto, limitando-nos quilo que,
para nosso propsito atual, se acha bem e suficientemente provado, creio que
encontramos magnfico auxlio neste raciocnio, que declara igualmente certas as
duas afirmativas: de um lado, a de que todas as artes so realidades, e, de outro, a
de que o grande e o pequeno so avaliados no somente por sua relao recproca
mas tambm com relao ao estabelecimento da justa medida. Pois, se esta ltima
relao existe, as artes existem tambm, e se as artes existem, esta relao existe;
abolida uma destas existncias, a outra jamais ser possvel.
SCRATES, O JOVEM
Exatamente. E depois?
ESTRANGEIRO
Evidentemente, para dividir a arte de medir da maneira que falamos
teramos que distinguir apenas duas partes: de um lado colocaramos todas as artes
para as quais o nmero, os comprimentos, as profundidades, larguras e espessuras
se medem por seus opostos, e de outro, todas aquelas que se referem justa
medida, a tudo aquilo que conveniente, oportuno e devido, a tudo que conserva o
meio entre dois extremos.
SCRATES, O JOVEM
Mencionaste duas divises amplas que diferem grandemente entre si.
ESTRANGEIRO
Na realidade, Scrates, estamos precisamente a ponto de dizer novamente
essa expresso que muitos sbios se aprazem em repetir como profunda mxima:
que a cincia da medida se aplica a todas as coisas que se transformam. Pois todas
as obras de arte participam de algum modo da medida. Mas as pessoas no esto
habituadas a dividir as coisas em espcies a fim de estud-las; assim, por diferentes
que sejam essas espcies de medida, elas se identificam, desde logo, sob o pretexto
de julg-las semelhantes, cometendo o erro inverso com relao a outras coisas por
no dividi-las em suas partes. A regra exata seria, quando nos apercebemos de que
um certo nmero de coisas possui algo em comum, no abandon-las antes de
haver distinguido, naquilo que tem em comum, todas as diferenas que constituem
as espcies; e, com relao s dessemelhanas de toda espcie, que podemos
observar numa multido, no nos desencorajarmos nem delas nos separarmos,
antes de havermos reunido, em uma nica similitude, todos os traos de
semelhana que elas encerram, reunindo-as na essncia de um gnero. Basta o que
fica dito quanto a esse problema e quanto s faltas e aos excessos: observemos
apenas que aqui encontramos dois gneros de medida, lembrando-nos dos
caracteres que lhes atribumos.
SCRATES, O JOVEM
No os esqueceremos.

A norma verdadeira. A sntese dialtica

ESTRANGEIRO
Terminada esta discusso iniciemos outra, relacionada no apenas com a
questo presente, mas com todas as que suscita este gnero de discusses.
SCRATES, O JOVEM
De que se trata?
ESTRANGEIRO
Supe que nos proponham a seguinte questo: nas classes onde se
aprende a ler, quando se pergunta a algum de que letras formada esta ou aquela
palavra, fazemo-lo com o intuito de lev-lo a resolver esse problema particular ou
com o intuito de torn-lo mais apto a resolver todos os problemas gramaticais
possveis?
SCRATES, O JOVEM
Todos os problemas possveis, evidentemente.
ESTRANGEIRO
Que diremos, ento, de nossa pesquisa sobre o poltico? ela ditada
diretamente pelo interesse que nos inspira, ou existe para nos tornar melhores
dialticos a propsito de todos os assuntos possveis?
SCRATES, O JOVEM
Aqui, ainda, evidentemente para a formao geral.
ESTRANGEIRO
Alis podemos afirmar que nenhum homem de bom senso consentiria
em entregar-se a uma anlise da noo da tecedura por amor prpria tecedura.
Mas acredito que h uma coisa que o vulgo ignora: certas realidades possuem suas
semelhanas naturais, fceis de se descobrirem, em objetos que falam aos sentidos,
e que podem com facilidade ser apontadas queles que pedem uma explicao,
quando queremos d-la facilmente, sem nos embaraarmos com argumentos; mas
as maiores e mais preciosas realidades no possuem imagens criadas que dem aos
homens uma intuio clara, imagens que apontaramos quando quisssemos
satisfazer a alma que nos interroga, e que bastaria adaptar a este ou quele sentido
para satisfazer a curiosidade. Assim necessrio procurarmos saber dar a razo de
cada coisa e compreend-la; pois as realidades incorpreas, que so as maiores e
mais belas, revelam-se apenas razo e somente a ela, e a tais realidades que se
refere nossa discusso de agora. Alm disso, mais fcil, qualquer que seja o
assunto de que se trate, servir-mo-nos de pequenos exemplos em lugar de grandes.
SCRATES, O JOVEM
Falaste muito bem.
ESTRANGEIRO
Lembremo-nos por que fizemos, a esse propsito, to longas reflexes.
SCRATES, O JOVEM
Por qu?
ESTRANGEIRO
Exatamente devido ao tdio que experimentamos ao falar dos
pormenores da tecedura, que realmente nos aborreceram, do grande discurso sobre
a revoluo retrgrada do universo, e dessa discusso em torno do sofista, sobre a
existncia do no-ser. Sentimos que essas exposies foram demasiado extensas,
censurando-nos por isso, e temendo que no passassem de digresses, e digresses
excessivamente prolongadas. Foi, pois, com o propsito de evitar para o futuro
semelhantes mincias, que fizemos todas as observaes precedentes.
SCRATES, O JOVEM
Entendido. Continua.
ESTRANGEIRO
Creio, pois, que tu e eu devemos lembrar-nos das observaes agora
feitas, quando censurarmos ou aprovarmos a extenso ou brevidade de nossas
conversaes sobre qualquer assunto, a fim de no avaliar suas extenses por sua
relao recproca, mas antes por esta parte da arte de medir que recomendamos h
pouco nossa lembrana: a convenincia.
SCRATES, O JOVEM
Muito bem.
ESTRANGEIRO
Mas, agora, no sujeitemos todas as coisas a esta regra. Pois a necessidade
de agradar nos impor o cuidado das propores, apenas acessoriamente; e quanto
soluo do problema apresentado, encontr-la da maneira mais fcil e pronta
possvel deve ser apenas uma preocupao secundria e no uma finalidade
primordial, se dermos crdito razo, que nos aconselha a preferir e a colocar em
primeiro lugar o mtodo que prescreve a diviso por espcies; e, mesmo que um
discurso seja demasiado longo, prosseguir resolutamente se isso torna mais hbil
quele que o ouve, sem nos preocuparmos agora com sua extenso como antes
com sua brevidade. Alis, no podemos desprezar rpida e sumariamente o
julgamento que censura a extenso do discurso em conversas como as nossas, e
reprova as digresses que o acompanham, com este simples comentrio: "essas
conversaes so muito longas"; devemos antes demonstrar que se fossem mais
breves tornariam os ouvintes mais aptos dialtica e mais hbeis em encontrar
raciocnios que lanassem luz sobre a verdade; com relao s demais crticas ou
elogios fingidos no compreender apreciaes dessa natureza. Eis-nos, entretanto,
muito longe, se concordas comigo: retornemos, pois, ao poltico, aplicando a ele
nosso exemplo sobre a tecedura.
SCRATES, O JOVEM
Tens razo. Faamos como dizes.
ESTRANGEIRO
Havamos, pois, separado o Rei de todas as artes que possuem o mesmo
domnio e, especialmente, de todas aquelas relativas aos rebanhos. Restam,
entretanto, no interior da cidade, as artes auxiliares e as artes produtoras, e
necessrio, antes de tudo, separar umas das outras.
SCRATES, O JOVEM
Muito bem.
ESTRANGEIRO
Sabes que difcil dividi-las em duas? Penso que compreenderemos
melhor a razo disso, prosseguindo.
SCRATES, O JOVEM
Prossigamos, ento.
ESTRANGEIRO
Sendo impossvel a diviso em duas, temos que dividi-las membro a
membro como a uma vtima. Pois necessrio sempre dividir no menor nmero de
partes possvel.
SCRATES, O JOVEM
Como faremos neste caso?
ESTRANGEIRO
Como h pouco, com relao a todas as artes que fornecem os
instrumentos tecedura, e que classificamos como artes auxiliares.
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Pois bem, devemos agora fazer o mesmo e por mais forte razo. Todas as
artes que fabricam, na cidade, um instrumento pequeno ou grande devem ser
classificadas como auxiliares. Sem elas, com efeito, jamais haver polis nem poltica;
mas no h, por outro lado, operao alguma da arte real que lhes possamos
atribuir.
SCRATES, O JOVEM
No, com efeito.
ESTRANGEIRO
Realmente difcil a tarefa que nos propusemos, procurando distinguir
este gnero dos demais, pois no h nada que no se possa com alguma razo
chamar de instrumento disto ou daquilo. H, entretanto, entre os objetos que
possui a cidade, uma espcie que necessrio caracterizar de outro modo.
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
Suas propriedades so diferentes. Pois ela no fabricada como
instrumento, para servir produo de qualquer coisa, mas para conserv-la, uma
vez produzida.
SCRATES, O JOVEM
A que te referes?
ESTRANGEIRO
A esta espcie variada, produzida para a preservao dos objetos secos ou
midos, preparados ao fogo ou no, qual damos o nome comum de vasilhame,
espcie certamente muita rica e que no pertence de maneira alguma cincia em
questo.
SCRATES, O JOVEM
Sem dvida alguma.
ESTRANGEIRO
Vejamos agora uma terceira espcie de objetos, absolutamente diferente
das outras: terrestre ou aqutica, mvel ou fixa, preciosa ou sem preo possui um
nome apenas, pois sua finalidade simplesmente dar um assento, servindo de sede
a alguma coisa.
SCRATES, O JOVEM
De que se trata?
ESTRANGEIRO
Chamamo-los, geralmente, veculos14: so obras no da poltica, mas do
carpinteiro, do oleiro e do ferreiro.
SCRATES, O JOVEM
Compreendo.
ESTRANGEIRO
Qual ser a quarta? No ser necessrio distinguir das espcies
precedentes uma que compreende a maior parte das coisas antes mencionadas, o
conjunto dos objetos de vesturio, a maior parte das armas, os muros, os abrigos de
terra ou pedras e uma multido de coisas semelhantes? E, j que todo esse conjunto
feito para abrigar, justo dar-lhe o nome geral de abrigo. Alis, a maioria delas se
incluiria com maior propriedade na arte do arquiteto ou do tecelo do que na
poltica.
SCRATES, O JOVEM
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO

14
khema: designa, em grego, no s tudo o que transporta mas tambm o que serve de suporte. (N. do E.)
Admitamos ainda uma quinta espcie constituda pela ornamentao e
pintura, com todas as imitaes que esta ltima ou a msica produzem, e cuja
finalidade nosso prazer. No ser justo reuni-las sob um nico nome?
SCRATES, O JOVEM
Qual nome?
ESTRANGEIRO
Chamam-lhe, creio, divertimento.
SCRATES, O JOVEM
Sem dvida.
ESTRANGEIRO
Ora, esse ser o nome que lhe convir como denominao geral, pois
entre todas elas nenhuma possui propsito srio: constituem todas, unicamente,
uma distrao.
SCRATES, O JOVEM
Compreendo muito bem.
ESTRANGEIRO
Mas aquilo que serve de corpo a tudo isso, aquilo de que e no que todas
as artes de que falamos fabricam suas obras, esta espcie diversa, produzida por
tantas artes diferentes, no a classificaremos em sexto lugar?
SCRATES, O JOVEM
A que te referes?
ESTRANGEIRO
Ao ouro, prata e a tudo que se extrai das minas; a tudo que corta ou
seciona a madeira a fim de fornec-la ao carpinteiro ou ao cesteiro; em seguida
arte de descascar plantas ou quela do curtidor tirando a pele aos animais; a todas
as artes conexas, quelas que preparam a cortia, o papiro, as ataduras; a todo esse
conjunto de artes que fornecem os gneros simples dos quais obteremos espcies
mais complexas. Com tudo isto formaremos um todo a que chamaremos a primeira
aquisio do homem, todo isento ainda de qualquer composio e que no
absolutamente a obra da cincia real.
SCRATES, O JOVEM
Muito bem.
ESTRANGEIRO
Relativamente ao alimento e a todas as coisas que, reunindo-se ao nosso
corpo, so prprias ao sustento de suas partes, por intermdio dessas prprias
partes, formamos uma stima espcie que, coletivamente, chamaremos a
alimentao, se no encontrarmos expresso melhor. Ora, atribuindo-as
agricultura, caa, ginstica, medicina e cozinha estaremos mais certos que se as
atribuirmos poltica.
SCRATES, O JOVEM
Sem dvida alguma.
ESTRANGEIRO
Assim, quase todos os bens suscetveis de serem possudos, salvo os
animais domsticos, esto includos nestes sete gneros. V: era justo mencionar
em primeiro lugar a espcie primitiva; a seguir o instrumento, o vasilhame, o
veculo, o abrigo, o divertimento, o alimento. Omitimos coisas que, dada sua
pequena importncia, ficaram esquecidas e que podero ser includas em qualquer
destas espcies, tais como a arte de cunhar moedas, selos e estampas. Pois esses
objetos no contm nada de especfico que os habilite a figurar ao lado dos demais;
ao contrrio, classificar-se-o, uns na ornamentao, outros com um pouco de
esforo, concordo, no final de contas podero ser classificados entre os
instrumentos. Quanto aos animais domsticos, parte os escravos, poderemos
facilmente inclu-los na arte de cuidar de rebanhos, anteriormente analisada.
SCRATES, O JOVEM
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Resta-nos o grupo dos escravos e servidores de todas as espcies, entre os
quais encontraremos, parece-me adivinh-lo, aqueles que disputam ao Rei a prpria
confeco do tecido, como o faziam, h pouco, aos teceles, os fiadores,
cardadores ou aqueles que executavam outros trabalhos, a que nos referimos.
Quanto aos demais, denominados auxiliares, foram afastados com as ocupaes
referidas, e separados da profisso real e poltica.
SCRATES, O JOVEM
Concordo.
ESTRANGEIRO
Prossigamos e examinemos aqueles que restam, abordando-os de perto
para ter um conhecimento mais seguro.
SCRATES, O JOVEM
Faamo-lo.
ESTRANGEIRO
Do nosso ponto de vista os mais nfimos entre os servidores se nos
apresentam com uma funo e um carter absolutamente contrrios ao que
imaginamos.
SCRATES, O JOVEM
Quem so eles?
ESTRANGEIRO
Aqueles que compramos ou adquirimos de modo semelhante. Devemos,
sem dvida, cham-los escravos, e no tm a mnima participao na arte real.
SCRATES, O JOVEM
Sem dvida alguma.
ESTRANGEIRO
E ento? Os homens livres que, voluntariamente, se dedicam ao servio
daqueles que acabamos de mencionar, desempenhando, entre a agricultura e as
outras artes, o papel de intermedirios e compensadores, quer nos mercados, quer
de cidade em cidade por terra ou por mar, trocando moeda, quer se chamem
cambistas, comerciantes, armadores ou revendedores, possuem eles qualquer
pretenso poltica?
SCRATES, O JOVEM
Talvez sim, a comercial pelo menos.
ESTRANGEIRO
Em todo o caso, no h perigo de que esses assalariados e interessados,
que vemos oferecer seus servios a qualquer que se apresente, possuam jamais uma
participao na funo real.
SCRATES, O JOVEM
Certamente no.
ESTRANGEIRO
Que dizer dos homens atravs dos quais sempre nos foram prestados
certos servios?
SCRATES, O JOVEM
Que homens e que servios?
ESTRANGEIRO
Refiro-me aos arautos e a todos aqueles que, fora de prestarem
servios, se tornam hbeis letrados; e a outros, cuja universal competncia leva a
mltiplos trabalhos junto s magistraturas. Como os chamaremos?
SCRATES, O JOVEM
Como dizias h pouco., servidores e no chefes possuidores de
autoridade prpria nas cidades.
ESTRANGEIRO
Creio, entretanto, que no sonhei ao afirmar que dentre eles surgiriam os
mais declarados pretendentes poltica; e seria estranho procur-los em qualquer
outra atividade.
SCRATES, O JOVEM
Certamente.
ESTRANGEIRO
Aproximemo-nos agora daqueles que ainda no foram examinados; e
dentre eles, em primeiro lugar, dos que se dedicam arte do adivinho, praticando
certamente uma cincia til, pois passam por intrpretes dos deuses junto aos
homens.
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Em seguida, h a classe sacerdotal que, segundo afirma a crena pblica,
oferece aos deuses em nosso nome os sacrifcios que eles desejam, dirigindo-lhes as
preces necessrias para que nos outorguem seus favores. Ora, creio que numa ou
noutra dessas funes praticam uma arte til.
SCRATES, O JOVEM
Sim, o que parece.
ESTRANGEIRO
Eis-nos, pois, a meu ver, a caminho do fim a que nos propusemos, pois
que os sacerdotes e os adivinhos parecem ter grande importncia e desfrutam de
grande prestgio pela grandeza de seus empreendimentos. Assim que no Egito um
rei no pode reinar se no possuir a dignidade sacerdotal e se, por acaso, apoderar-
se do governo, pertencendo a uma classe inferior, dever, finalmente, fazer-se
admitir nesta ltima casta. Entre os gregos tambm, na maioria das vezes, aos
mais altos magistrados que se confia a tarefa de realizar os mais importantes desses
sacrifcios, e entre vs, alis, parece verificar-se claramente o que digo, pois so
tambm os magistrados que pela sorte se tornaram reis que se incumbem dos
antigos e mais solenes sacrifcios consagrados pela tradio.
SCRATES, O JOVEM
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Muito bem; examinemos esses reis e sacerdotes eleitos, com seus
servidores, e alm deles, um grupo novo e grande de pessoas que agora se
manifesta, uma vez afastados os demais rivais.
SCRATES, O JOVEM
A que te referes?
ESTRANGEIRO
Certamente a pessoas estranhas.
SCRATES, O JOVEM
Quem so elas?
ESTRANGEIRO
Uma raa de tribos numerosas, ao que parece primeira vista. So
homens que em grande nmero se parecem a lees, centauros e outros monstros
dessa espcie e que, em maior nmero ainda, se assemelham a stiros e outros
animais fracos, mas astuciosos, que rapidamente trocam entre si as aparncias
exteriores e propriedades. Realmente, Scrates, parece-me que sabes agora quem
so estes homens.
SCRATES, O JOVEM
Explica-te: tens o ar de quem descobriu algo estranho.
ESTRANGEIRO
Sim, pois o que h de estranho resulta de nossa ignorncia. Foi, com
efeito, o que aconteceu a mim mesmo, h pouco; eu no ousava crer que
repentinamente tinha diante de mim, reunidas, as pessoas que se agitam em torno
administrao pblica.
SCRATES, O JOVEM
De quem se trata?
ESTRANGEIRO
Do mais mgico de todos os sofistas, o mais consumado nesta arte, difcil
de distinguir dos verdadeiros polticos e do verdadeiro homem real; mas que,
entretanto, preciso distinguir, se quisermos bem compreender o que procuramos.
SCRATES, O JOVEM
Sim, e preciso no esmorecer.

As diversas formas das constituies

ESTRANGEIRO
tambm o que me parece. A propsito, dize-me o seguinte:
SCRATES, O JOVEM
Qu?
ESTRANGEIRO
A monarquia no uma das formas de poder poltico que conhecemos?
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Alm da monarquia poderamos mencionar, creio, o governo de um
pequeno nmero.
SCRATES, O JOVEM
Sem dvida.
ESTRANGEIRO
E a terceira forma de constituio no a soberania da massa, a que
chamamos democracia?
SCRATES, O JOVEM
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Mas, estas trs formas no constituem cinco, por derivarem delas duas
novas denominaes?
SCRATES, O JOVEM
Que denominaes?
ESTRANGEIRO
Considerando os caracteres que essas formas apresentarem, opresso ou
liberdade, pobreza e riqueza, legalidade ou ilegalidade, podemos dividir em duas
cada uma das duas primeiras formas. A monarquia apresenta duas espcies s quais
chamaremos tirania e realeza.
SCRATES, O JOVEM
Evidentemente.
ESTRANGEIRO
Em toda a cidade onde a fora est nas mos de um pequeno nmero
haver ou uma aristocracia ou uma oligarquia.
SCRATES, O JOVEM
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Apenas, na democracia, indiferente que a massa domine aqueles que
tm fortuna, com ou sem seu assentimento, ou que as leis sejam estritamente
observadas ou desprezadas; ningum ousa alterar-lhe o nome.
SCRATES, O JOVEM
verdade.
ESTRANGEIRO
E ento? Alguma dessas constituies ser exata se definirmos
simplesmente por estes termos: "um, alguns, muitos riqueza ou pobreza
opresso ou liberdade leis escritas ou ausncia de leis"?
SCRATES, O JOVEM
Nada o impede, realmente.
ESTRANGEIRO
Pensa melhor, atendendo a este ponto de vista.
SCRATES, O JOVEM
Qual?
ESTRANGEIRO
O que dissemos de incio subsistir ainda, ou j no estamos mais de
acordo?
SCRATES, O JOVEM
A que te referes?
ESTRANGEIRO
Que o governo real depende de uma cincia. Creio que o dissemos.
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
E no de qualquer cincia; mas de uma cincia crtica e diretiva, mais do
que de qualquer outra.
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Nesta cincia diretiva, havamos distinguido entre a direo das obras
inanimadas e a dos seres vivos, e procedendo sempre por esse modo de diviso,
chegamos ao ponto em que estamos, no qual no perdemos de vista a cincia mas
no nos tornamos capazes de defini-la com preciso suficiente.
SCRATES, O JOVEM
exato.
ESTRANGEIRO
Ora, para sermos conseqentes aos nossos princpios, no nos
apercebemos de que o carter que deve servir para distinguir essas constituies a
presena de uma cincia, e no a "liberdade" ou a "opresso", a "pobreza" ou a
"riqueza", "alguns" ou "muitos"?
SCRATES, O JOVEM
Nem se pode pretender de outra forma.
O verdadeiro chefe acima das leis

ESTRANGEIRO
O problema que se apresenta, doravante, , pois, necessariamente o
seguinte: em qual dessas constituies reside a cincia do governo dos homens, a
mais difcil e a maior de todas as cincias possveis de se adquirir? Pois essa a
cincia que necessrio considerar se quisermos saber que rivais devemos afastar
do rei competente, concorrentes que pretendem ser polticos, persuadindo a muitos
de que o so, embora no o sejam de maneira alguma.
SCRATES, O JOVEM
Sim, segundo o que j se demonstrou na discusso, essa separao
realmente se impe.
ESTRANGEIRO
Muito bem! Poderemos acreditar que numa cidade toda a multido seja
capaz de adquirir essa cincia?
SCRATES, O JOVEM
Impossvel.
ESTRANGEIRO
E ser que numa cidade de mil habitantes, haveria cem ou cinqenta
capazes de chegar a adquiri-la de maneira satisfatria?
SCRATES, O JOVEM
Nesse caso, a poltica seria a mais fcil de todas as artes; pois sabemos
muito bem que em toda a Grcia no encontramos tal proporo, por mil, nem
entre os campees do jogo de damas, e muito menos a encontraramos entre os
reis. Pois s merecem, realmente, o ttulo de rei os que possuem a cincia real, quer
reinem ou no, como anteriormente dissemos.
ESTRANGEIRO
Tens razo em lembrar-me. A concluso, pois, ao que me parece de que
a forma correta de governo a de apenas um, de dois, ou de quando muito alguns,
se que esta forma correta possa realizar-se.
SCRATES, O JOVEM
Claro.
ESTRANGEIRO
E quer governem a favor ou contra a vontade do povo; quer se inspirem
ou no em leis escritas; quer sejam ricos ou pobres, necessrio consider-los
chefes, de acordo com o nosso atual ponto de vista, desde que governem
competentemente por qualquer forma de autoridade que seja. Assim como aos
mdicos, quer nos curem contra ou por nossa prpria vontade, quer nos operem,
cauterizem ou nos inflijam qualquer outro tratamento doloroso, quer sigam regras
escritas ou as dispensem, quer sejam pobres ou ricos, no hesitamos absolutamente
em cham-los mdicos, bastando para isso que suas prescries sejam ditadas pela
arte; que purificando-nos ou diminuindo nossa gordura por qualquer modo, ou, ao
contrrio, aumentando-a, pouco importa, eles o faam para o bem do corpo,
melhorando seu estado, e que, como mdicos, assegurem a sade dos seres que lhes
so confiados. Essa , a meu ver, a nica maneira de definir corretamente a
medicina e qualquer outra arte.
SCRATES, O JOVEM
Certamente.
ESTRANGEIRO
Necessariamente, pois, parece
que entre todas as constituies, esta ser absoluta e unicamente a exata, na
qual os chefes seriam possuidores da cincia verdadeira e no de um simulacro de
cincia; e esses chefes, quer se apiem ou no em leis, quer sejam desejados ou
apenas suportados, pobres ou ricos, nada disso assume a menor importncia na
apreciao desta norma exata.
SCRATES, O JOVEM
Muito bem.
ESTRANGEIRO
indiferente tambm que eles sejam obrigados a matar ou exilar algum
a fim de purificar e sanear a cidade; que exportem emigrantes como enxames de
abelhas, para tornar menor a populao, ou importem pessoas do estrangeiro,
concedendo-lhes cidadania, a fim de torn-la maior. Enquanto se valerem da
cincia e da justia, a fim de conserv-la, tornando-a a melhor possvel, e por
semelhantes termos definida, uma constituio deve ser, para ns, a nica
constituio correta. Quanto s demais, que mencionamos, acreditamos no serem
constituies legtimas, nem verdadeiras: no passam de imitaes que, se
produzem boas leis, por serem apenas cpia dos melhores traos desta
constituio correta, e, em caso contrrio, por copiar-lhe os seus piores traos.
SCRATES, O JOVEM
Tuas reflexes me parecem sensatas, Estrangeiro, sob todos os pontos de
vista; entretanto, -me difcil admitir que se deva governar sem leis.

A ilegalidade ideal. A fora impondo o bem

ESTRANGEIRO
Tua observao, Scrates, antecipa uma pergunta que eu pretendia fazer:
aceitas todas essas reflexes, ou h alguma que te desagrada? Eis, entretanto, o que
est claro: a questo que queremos discutir a de saber se legtimo um governo
sem leis.
SCRATES, O JOVEM
Evidentemente.
ESTRANGEIRO
Ora, claro que, de certo modo, a legislao funo real; entretanto o
mais importante no dar fora s leis, mas ao homem real, dotado de prudncia.
Sabes por qu?
SCRATES, O JOVEM
Qual a tua explicao?
ESTRANGEIRO
que a lei jamais seria capaz de estabelecer, ao mesmo tempo, o melhor
e o mais justo para todos, de modo a ordenar as prescries mais convenientes. A
diversidade que h entre os homens e as aes, e por assim dizer, a permanente
instabilidade das coisas humanas, no admite em nenhuma arte, e em assunto
algum, um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos. Creio
que estamos de acordo sobre esse ponto.
SCRATES, O JOVEM
Sem dvida.
ESTRANGEIRO
Ora, em suma, precisamente este absoluto que a lei procura,
semelhante a um homem obstinado e ignorante que no permite que ningum faa
alguma coisa contra sua ordem, e no admite pergunta alguma, mesmo em presena
de uma situao nova que as suas prprias prescries no haviam previsto, e para
a qual este ou aquele caso seria melhor.
SCRATES, O JOVEM
verdade: a lei age sobre cada um de ns, exatamente como acabas de
dizer.
ESTRANGEIRO
E no , porventura, impossvel, ao que permanece sempre absoluto,
adaptar-se ao que nunca absoluto?
SCRATES, O JOVEM
Assim parece.
ESTRANGEIRO
Por que, pois, necessrio fazer as leis se elas no so a regra perfeita?
necessrio investigar por qu?
SCRATES, O JOVEM
Naturalmente.
ESTRANGEIRO
No h entre vs, assim como nas outras cidades, constituies onde os
homens praticam a corrida, ou outras provas, por simples esprito de emulao?
SCRATES, O JOVEM
Certamente, e muitas espcies.
ESTRANGEIRO
Lembremo-nos ento das mximas que prescrevem, ao dirigir essas
competies, os treinadores que as conduzem de acordo com regras cientificas.
SCRATES, O JOVEM
Que mximas?
ESTRANGEIRO
A eles, no parece necessrio considerar os pormenores dos casos
individuais, formulando, para cada pessoa, prescries especiais; ao contrrio,
acreditam que necessrio ver as coisas de um modo geral, estabelecendo, para a
maioria dos casos e das pessoas, preceitos que sejam teis para o corpo em geral.
SCRATES, O JOVEM
Muito bem!
ESTRANGEIRO
Essa a razo por que, na realidade, impem a um grupo de pessoas as
mesmas fadigas, iniciando e parando ao mesmo tempo a corrida, a luta ou qualquer
outro exerccio corporal.
SCRATES, O JOVEM
verdade.
ESTRANGEIRO
Acontece o mesmo com o legislador: tendo que prescrever a suas ovelhas
obrigaes de justia e contratos recprocos, jamais seria capaz, promulgando
decretos gerais, de aplicar, a cada indivduo, a regra exata que lhe convm.
SCRATES, O JOVEM
Provavelmente.
ESTRANGEIRO
Estabeleceria, antes, o que conviesse maioria dos casos e dos
indivduos, e assim de modo geral, legislaria para cada um, por meio de leis escritas
ou no, contentando-se, neste caso, em dar fora de lei aos costumes nacionais.
SCRATES, O JOVEM
Tens razo.
ESTRANGEIRO
Sem dvida, como poderia algum, Scrates, a cada momento
aproximar-se de cada indivduo a fim de prescrever exatamente o que ele deve
fazer? A meu ver, claro que no dia em que um ou outro fosse capaz de assim
fazer, dentre aqueles que verdadeiramente possuem a cincia real, ele no se
restringiria mais ao trabalho de escrever essas pretensas leis.
SCRATES, O JOVEM
Certamente, Estrangeiro, pelo menos, de acordo com o que acabamos de
dizer.
ESTRANGEIRO
E ainda mais certamente, meu bom amigo, de acordo com o que vamos
dizer.
SCRATES, O JOVEM
O qu?
ESTRANGEIRO
O seguinte: suponhamos que um mdico ou professor de ginstica queira
empreender uma viagem que o reter por muito tempo afastado de seus alunos ou
clientes. Persuadido de que estes no se lembrariam de suas prescries, gostaria de
deixar-lhes instrues escritas, no certo?
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
E ento? Voltando antes do tempo, aps ausncia mais curta do que
imaginara, no teria ele, porventura, coragem de substituir essas ordens escritas por
outras novas, que no caso favoreceriam os enfermos, dado o estado dos ventos ou
a interveno imprevista de Zeus? Ou iria, ao contrrio, obstinar-se, julgando que
as velhas prescries, uma vez feitas, so inviolveis, nada lhe cabendo ordenar de
novo, nem ao seu doente, nada fazer fora das frmulas escritas que so as nicas
medicinais e salutares, enquanto as outras prescries so malficas. E toda
conduta semelhante, em matria de cincia e de arte verdadeira, no atrairia, em
qualquer circunstncia, o mais profundo ridculo sobre tal maneira de legislar?
SCRATES, O JOVEM
Sem dvida alguma.
ESTRANGEIRO
Mas quando essas leis, escritas ou no, editadas para um ou outro desses
rebanhos humanos que, repartidos em cidades, a vivem sob as leis de seus
respectivos legisladores, se referem ao que justo ou injusto, e o legislador
competente ou outro que lhe seja igual, volta atrs, deve-se interdit-lo de modificar
essas primeiras prescries? Tal interdio no seria, nesse caso, pelo menos to
ridcula quanto a primeira?
SCRATES. O JOVEM
Certamente.
ESTRANGEIRO
Sabes o que diz, a esse respeito, a maioria das pessoas?
SCRATES, O JOVEM
No me recordo.
ESTRANGEIRO
E interessante. Dizem, com efeito, que se algum conhece leis melhores
que as existentes no tem o direito de d-las sua prpria cidade seno com o
consentimento de cada cidado; de outro modo no.
SCRATES, O JOVEM
Muito bem! No estaro eles certos?
ESTRANGEIRO
Talvez. Em todo caso, se algum dispensa esse consentimento e impe a
reforma pela fora, que nome se dar a esse golpe? Mas, espera. Voltemos primeiro
aos exemplos precedentes.
SCRATES, O JOVEM
Que queres dizer?
ESTRANGEIRO
Suponhamos um mdico que no procura persuadir seu doente e, senhor
de sua arte, impe a uma criana, a um homem ou uma mulher o que julga melhor,
no importando os preceitos escritos. Que nome se dar a essa violncia? Seria por
acaso o de violao da arte e erro pernicioso? E a vtima dessa coero no teria o
direito de dizer tudo, menos que foi objeto de manobras perniciosas e ineptas por
parte de mdicos que as impuseram?
SCRATES, O JOVEM
Dizes a pura verdade.
ESTRANGEIRO
Ora, como chamaramos quele que peca contra a arte poltica? No o
qualificaramos de odioso, mau e injusto?
SCRATES, O JOVEM
Exatamente.
ESTRANGEIRO
Se se quiser censurar a violncia dos que foram obrigados a transgredir a
lei escrita ou costumeira para agir de um modo mais justo, til e belo, evitando-se a
censura ridcula, no se excluir, de todas as afrontas possveis que se apontem, a
acusao de um tratamento odioso, injusto e mau infligido s vtimas dos autores
dessa violncia?
SCRATES, O JOVEM
a pura verdade.
ESTRANGEIRO
Ser a violncia justa, por ser rico o seu autor, e injusta, por ser ele pobre?
Ou seria melhor dizer que o chefe pode ou no lanar mo da persuaso, ser rico
ou pobre, ater-se s leis escritas ou livrar-se delas, desde que governe utilmente?
No nisto que reside a verdadeira frmula de uma administrao correta da
cidade, segundo a qual o homem sbio e bom administrar os interesses de seu
povo? Da mesma forma como o piloto, longe de escrever um cdigo, mas tendo
sempre sua ateno voltada para o bem do navio e seus marinheiros, estabelece a
sua cincia como lei e salva tudo o que com ele navega, assim tambm, de igual
modo, os chefes capazes de praticar esse mtodo realizaro a constituio
verdadeira, fazendo de sua arte uma fora mais poderosa do que as leis. E no ser
verdade que os chefes sensatos podem fazer tudo, sem risco de erro, desde que
observem esta nica e grande regra: distribuir em todas as ocasies, entre todos os
cidados, uma justia perfeita, penetrada de razo e cincia, conseguindo no
somente preserv-la, mas tambm, na medida do possvel, torn-la melhor?

A legalidade necessria: os dois perigos

SCRATES, O JOVEM
Estas ltimas afirmaes so, pelo menos, incontestveis.
ESTRANGEIRO
Mas tambm incontestvel.
SCRATES, O JOVEM
O qu?
ESTRANGEIRO
Que a massa, qualquer que seja, jamais se apropriar perfeitamente de
uma tal cincia de sorte a se tornar capaz de administrar com inteligncia uma
cidade e que, ao contrrio, a um pequeno nmero, a algumas unidades, a uma s,
que necessrio pedir esta nica constituio verdadeira; e as demais, finalmente,
devem ser consideradas imitaes que, como dissemos h pouco, reproduzem
algumas vezes os belos traos da verdadeira constituio e outras vezes a
desfiguram ignominiosamente.
SCRATES, O JOVEM
No sei o que pretendes dizer com isso, pois nada compreendi mesmo a
respeito dessas "imitaes" de que falamos h pouco.
ESTRANGEIRO
Seria pernicioso suscitar semelhantes discusses para rejeit-las em
seguida, em lugar de prosseguir mostrando qual o erro que se comete agora, a esse
respeito.
SCRATES, O JOVEM
Que erro?
ESTRANGEIRO
Eis, pelo menos, o que nos necessrio procurar, embora no nos seja
familiar, nem fcil de descobrir. Tentemos, entretanto, conhec-lo. Vejamos: no
havendo, para ns, seno uma nica constituio exata, aquela a que nos referimos,
sabes que as demais devem, para subsistir, procurar naquela as suas leis escritas e
agir de acordo com o que hoje se aprova, ainda que no seja o mais justo.
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
Proibir a todas as pessoas, na cidade, de transgredir as leis, e punir pela
morte ou pelos maiores suplcios aquele que ousar faz-lo. Este um segundo
recurso que constitui um princpio mais justo e mais belo do que o primeiro, que
mencionamos h pouco. Resta-nos explicar como se chegou ao que chamamos
segundo recurso. Concordas?
SCRATES, O JOVEM
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Voltemos, pois, s imagens indispensveis ao nosso propsito de
descrever os chefes de predicados reais.
SCRATES, O JOVEM
Que imagens?
ESTRANGEIRO
A do verdadeiro piloto e a do mdico que vale por outras. Consideremos
a hiptese que vamos imaginar, a esse respeito.
SCRATES, O JOVEM
Que hiptese?
ESTRANGEIRO
A seguinte: suponhamos que ns todos digamos quo terrivelmente
sofremos em suas mos. Queiram eles, um ou outro, salvar qualquer um de ns, e o
faro; queiram maltratar indignamente e o faro, cortando, queimando, exigindo
pagamentos que so verdadeiros tributos dos quais uma parte pequena ou nula
empregada em proveito do doente, e o resto para seu uso prprio ou de sua casa; e,
o que pior, deixam-se por fim comprar pelos parentes ou outros inimigos do
doente, e o matam. Os pilotos por sua vez fazem mil coisas semelhantes:
maquinam astuciosamente para abandonar homens em qualquer lugar solitrio
quando se pem ao largo, fazem manobras falsas em pleno oceano, jogando
homens ao mar, planejando mais outras traies. Supe, pois, que considerando
tudo isso, tomemos em conselho a seguinte resoluo: no ser permitido a
nenhuma dessas duas artes exercer controle absoluto sobre quem quer que seja,
escravos ou homens livres; reunir-nos-amos em assemblia, todo o povo ou
somente os ricos, permitindo aos incompetentes e pessoas de todas as profisses
dar opinio sobre a navegao e as doenas, dizendo como devem ser aplicados os
remdios e os instrumentos de medicina aos enfermos, como devem ser
manobrados os navios e os instrumentos nuticos, seja para navegar ou para
escapar aos perigos da travessia, causados pelos ventos, pelo mar ou pelos
encontros com piratas, e ainda como lutar nos combates navais em batalhas de
navios de guerra, contra outros da mesma espcie. As decises tomadas pela
multido, a esse respeito, por inspirao ou no de mdicos, pilotos ou de simples
leigos, seriam escritas em colunas ou esteias, ou ento, mesmo que no escritas,
teriam fora de costumes nacionais: seriam elas o critrio pelo qual se regulariam
para sempre, e a partir de ento, a navegao por mar e o tratamento dos enfermos.
SCRATES, O JOVEM
As coisas que dizes so sumamente absurdas.
ESTRANGEIRO
Anualmente seriam escolhidos chefes, quer entre os ricos ou entre o
povo, por meio de sorteio; e os chefes escolhidos desse modo agiriam de acordo
com a lei escrita, dirigindo os navios ou tratando os enfermos.
SCRATES, O JOVEM
O que dizes ainda mais incompreensvel.
ESTRANGEIRO
Considera agora o que segue. Quando cada governo houvesse terminado
a sua gesto anual, seria necessrio organizarem-se tribunais de juzes sorteados
entre os ricos ou entre uma lista preparada anteriormente e conduzir a esses
tribunais os dirigentes que deveriam prestar suas contas; qualquer pessoa que
desejasse poderia acus-los de no haverem, no decurso desse ano, dirigido os
navios de conformidade com a lei escrita ou de haverem dirigido em desacordo
com os vetustos costumes dos antepassados. A mesma oportunidade seria dada
contra aqueles que trataram dos enfermos e, aos condenados, os juzes fixariam as
penas a aplicar ou a multa a pagar.
SCRATES, O JOVEM
Muito bem! Os que aceitassem de bom grado governar em tais
circunstncias, mereceriam, em plena justia, essa pena e essa multa, fosse qual
fosse.
ESTRANGEIRO
Alm de tudo isso seria necessrio ainda elaborar a seguinte lei: quem
quer que procurasse estudar a arte nutica e a cincia da navegao, as regras da
sade, a exatido da medicina sobre os ventos frios e quentes, fora das leis escritas,
tornando-se conhecedor desses assuntos, no poderia, em primeiro lugar, ser
chamado mdico ou piloto e sim, visionrio e sofista fraseador; em seguida, o
primeiro que tivesse esse direito acus-lo-ia diante de um tribunal, denunciando-o
como corruptor de jovens a quem induz dedicar-se cincia nutica e medicina,
arvorando-se eles prprios em senhores dos navios e dos enfermos, sem se
orientarem pelas leis. Se ficar provado que ele instrui jovens e velhos no desprezo
s leis e palavra escrita, ser punido com os maiores suplcios. Pois no temos o
direito de sermos mais sbios que as leis nem de ignorar a medicina, a higiene, a
arte nutica e a navegao, sendo permitido, a quem quiser, aprender os preceitos
escritos e os costumes tradicionais. Se essas cincias, caro Scrates, fossem tratadas
da maneira por que descrevemos, inclusive a estratgia ou qualquer outro ramo da
caa, a pintura ou qualquer outra parte da imitao, a marcenaria ou qualquer outra
arte de fabricar mveis, a agricultura ou outra espcie da arte de cultivar plantas; se
fossem reguladas por um cdigo a criao de cavalos ou de qualquer outro
rebanho, a nutica ou qualquer outra parte da cincia do trabalho, os jogos de
damas ou a cincia dos nmeros seja pura ou aplicada ao plano, ao slido, ao
movimento o que aconteceria a tudo isso, conduzido pela sorte, regido pela letra
escrita em lugar de orientado pela arte?
SCRATES, O JOVEM
E claro que veramos desaparecer completamente todas as artes, sem
esperana alguma de retorno, sufocadas por essa lei que probe toda pesquisa. E a
vida que j bastante penosa, tornar-se-ia ento totalmente insuportvel.
ESTRANGEIRO
E que dizes desta outra hiptese: quando houvssemos submetido letra
escrita a prtica de cada uma dessas artes e imposto esse cdigo de governo ao
chefe que a eleio ou a sorte designasse e supondo que no respeitasse ele a lei
escrita e, desprovido de conhecimentos, se dispusesse a agir contra ela, tendo em
vista uma vantagem qualquer ou simplesmente um capricho pessoal, no haveria
um mal muito maior que o precedente?
SCRATES, O JOVEM
Sim, realmente.
ESTRANGEIRO
A meu ver, pois, as leis resultam de mltiplas experincias e cada artigo
apresentado ao povo atravs da orientao e exortao de conselheiros bem-
intencionados. Aquele que ousasse infringi-las cometeria uma falta cem vezes mais
grave que a primeira, perturbando qualquer atividade muito mais que a lei escrita.
SCRATES, O JOVEM
Como no?
ESTRANGEIRO
Portanto, em qualquer domnio em que se estabeleam leis e cdigos
escritos, impe-se, em segundo lugar, jamais permitir ao indivduo ou massa
qualquer ato que possa infringi-los, no que quer que seja.
SCRATES, O JOVEM
Exatamente.

As constituies imperfeitas

ESTRANGEIRO
Esses cdigos no seriam, pois, em cada domnio, imitaes da verdade
executadas o mais perfeitamente possvel, sob a inspirao daqueles que sabem?
SCRATES, O JOVEM
Sem dvida.
ESTRANGEIRO
Entretanto, se bem nos lembramos, havamos dito que o homem
competente, o verdadeiro poltico, inspirar-se- na maioria dos casos unicamente
em sua arte e no se preocupar, de modo algum, com a lei escrita se lhe parecer
que um novo modo de agir valer mais, na prtica, do que as prescries redigidas
por ele e promulgadas para o tempo de sua ausncia.
SCRATES, O JOVEM
Foi, realmente, o que dissemos.
ESTRANGEIRO
Quando o primeiro indivduo ou a primeira massa, possuindo leis,
resolvem agir contrariamente a elas, acreditando assim agir melhor, no procedem,
dentro de seu alcance, da mesma forma como o poltico verdadeiro?
SCRATES, O JOVEM
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Agindo, por ignorncia, ao procurar imitar a verdade, eles a imitaro
erradamente. Mas se agirem com competncia, em lugar de uma imitao, no
teremos a prpria realidade em toda a sua verdade?
SCRATES, O JOVEM
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Anteriormente, entretanto, concordamos em que a massa jamais seria
capaz de assimilar arte alguma.
SCRATES, O JOVEM
Continuamos de acordo.
ESTRANGEIRO
Se existe pois uma arte real, a massa dos ricos ou do povo jamais se
apropriar dessa cincia poltica.
SCRATES, O JOVEM
No seria possvel.
ESTRANGEIRO
necessrio pois que tais simulacros de constituies, para imitar o mais
perfeitamente possvel esta constituio verdadeira o governo do nico
competente procurem, uma vez estabelecidas suas leis, jamais fazer algo contra
as leis escritas e os costumes nacionais.
SCRATES, O JOVEM
Disseste bem.
ESTRANGEIRO
Quando pois so os ricos que realizam esta imitao, a constituio se
chama uma aristocracia; mas se no observam as leis, ser uma oligarquia.
SCRATES, O JOVEM
Provavelmente.
ESTRANGEIRO
Se, porm, governa um chefe nico, de acordo com as leis, imitando o
chefe competente, chamamo-lo rei, sem servir-nos de nomes diferentes para os
casos em que esse monarca, respeitador das leis, seja guiado pela cincia ou pela
opinio.
SCRATES, O JOVEM
o que parece.
ESTRANGEIRO
Mesmo quando o chefe nico possui verdadeiramente a cincia, ns lhe
daremos, sem hesitar, esse mesmo nome de rei, pois o conjunto das constituies
que distinguimos aqui no comporta mais de cinco nomes.
SCRATES, O JOVEM Assim , pelo menos ao que parece.
ESTRANGEIRO
E se este chefe nico age sem levar em conta as leis, nem os costumes e,
contrariando o chefe competente, pretende violar a letra escrita a pretexto de assim
exigir o bem maior, quando, na verdade, so a cobia e a ignorncia que inspiram
sua imitao, no merecer ele, sempre e em qualquer parte, o nome de tirano?
SCRATES, O JOVEM
Sem dvida.
ESTRANGEIRO
Eis, pois, como nasce o tirano, o rei, a oligarquia, a aristocracia e a
democracia: pela averso que os homens sentem contra o monarca nico de que
falamos. Recusam-se a acreditar que algum possa jamais ser bastante digno de tal
autoridade para pretender e poder governar com virtude e cincia, distribuindo a
todos, imparcialmente, justia e eqidade, sem injuriar, maltratar e matar a quem
lhe aprouver, em todas as ocasies. Pois um monarca como descrevemos seria
aclamado, regeria e governaria com felicidade por uma nica constituio de
absoluta retido.
SCRATES, O JOVEM
Como duvid-lo?
ESTRANGEIRO
Entretanto, j que na realidade as cidades no se assemelham a uma
colmia, produzindo reis reconhecidos como nicos por sua superioridade de
corpo e de alma, necessrio, ao que parece, que os homens se renam e faam as
leis procurando seguir os traos da verdadeira constituio.
SCRATES, O JOVEM
Assim parece.
ESTRANGEIRO
E quando estas constituies se baseiam no princpio de regular sua ao
pela letra escrita e pelo costume, e no pela cincia, teramos de que admirar-nos,
Scrates, por tudo o que acontece de mal e tudo o que delas adviesse? Em qualquer
outro setor um tal mtodo arruinaria completamente todas as obras. No
deveramos, antes, admirar essa fora inata de resistncia que uma cidade possui?
Pois, no obstante esse mal que corri as cidades, desde tempos imemorveis,
algumas dentre elas permanecem sem se deixarem destruir; muitas, de tempos a
tempos, tais como navios que soobram, perecem, pereceram e perecero ainda,
pela incria de seus indignos pilotos e marinheiros que, culpados da mais grave
ignorncia das noes fundamentais, e nada conhecendo da poltica, crem possuir
essa cincia em todos os seus pormenores, com maior exatido que as demais.
SCRATES, O JOVEM
a mais pura verdade.
ESTRANGEIRO
Qual pois, entre essas constituies imperfeitas, aquela onde a vida
menos desagradvel pois desagradvel em todas e qual a mais
insuportvel? Eis o que nos necessrio ver, ainda que isso tenha pequena
importncia com relao ao nosso assunto atual. Mas talvez, de um modo geral,
essa questo que domina todas as nossas aes.
SCRATES, O JOVEM
Examinemo-la. Como evit-la?
ESTRANGEIRO
Muito bem. necessrio dizer-te agora que, dessas trs, uma , ao
mesmo tempo, a mais desagradvel e a melhor.
SCRATES, O JOVEM
Que queres dizer?
ESTRANGEIRO
Que os governos de um s, de alguns, ou da multido, constituem as trs
grandes constituies de que falamos no incio desta enorme conversa.
SCRATES, O JOVEM
verdade.
ESTRANGEIRO
Dividamos cada uma delas em duas partes, formando seis, e coloquemos
de lado a constituio verdadeira, como stima.
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
O governo de um apenas d origem, como dissemos, realeza e tirania;
o governo de alguns origina a aristocracia, de belo nome, e a oligarquia; quanto ao
governo do grande nmero havamos considerado apenas o que chamamos
democracia; vamos agora, entretanto, considerar nela tambm, duas formas.
SCRATES, O JOVEM
Quais? Como a dividiremos?
ESTRANGEIRO
De maneira semelhante das demais, ainda que ela no possua um
segundo nome; em todo o caso, possvel governar conforme ou em desacordo
com as leis, nela como nas demais.
SCRATES, JOVEM
Realmente.
ESTRANGEIRO
Ora, no momento em. que buscamos a constituio verdadeira, essa
diviso no era necessria, como demonstramos. Entretanto, afastada essa
constituio perfeita e aceitas, como inevitveis, as demais, a legalidade e a
ilegalidade constituem, em cada uma delas, um princpio de dicotomia.
SCRATES, O JOVEM
Aparentemente, de acordo com essa explicao.
ESTRANGEIRO
Muito bem. A monarquia, unida a boas regras escritas a que chamamos
leis, a melhor das seis constituies, ao passo que, sem leis, a que torna a vida
mais penosa e insuportvel.
SCRATES, O JOVEM
possvel.
ESTRANGEIRO
Quanto ao governo do pequeno nmero, sendo o de "poucos", ele se
situa entre a unidade e o grande nmero e necessrio consider-lo intermedirio
entre os dois outros. Finalmente o da multido fraco em comparao com os
demais e incapaz de um grande bem ou de um grande mal, pois nele os poderes so
distribudos entre muitas pessoas. Do mesmo modo, esta a pior forma de
constituio quando submetida lei e a melhor quando estas so violadas. Estando
todas elas fora das restries da lei, na democracia que se vive melhor; sendo,
porm, todas bem ordenadas esta a ltima que se dever escolher. Sob este ponto
de vista a que nomeamos em primeiro lugar a primeira e a melhor de todas exceto
a stima, pois esta se assemelha a um deus entre os homens e necessrio coloc-la
parte de todas as demais constituies.
SCRATES, O JOVEM
Parece que deve ser, e que assim : faamos, pois, como dizes.
ESTRANGEIRO
Por conseguinte, todos aqueles que desempenham um papel nessas
constituies, exceto aqueles que possuem conhecimentos, devem ser rejeitados
como falsos polticos, partidrios e criadores das piores iluses, e visionrios eles
prprios, momos e grandes charlates e, por isso, os maiores sofistas entre todos os
sofistas.
SCRATES, O JOVEM
Eis uma expresso que me parece adaptar-se perfeitamente a esses
pretensos polticos.
ESTRANGEIRO
Muito bem. Podemos dizer que estamos agora no desfecho de um drama.
No falvamos, h pouco, de um bando de centauros e stiros que era necessrio
separar da arte poltica? Eis, agora, com grande esforo, feita a separao.
SCRATES, O JOVEM
Aparentemente.

Eliminao das artes auxiliares

ESTRANGEIRO
Resta ainda outro bando muito mais difcil de separar por estar ao mesmo
tempo mais prximo ao gnero real e ser mais difcil de discernir: parece-me
estarmos na mesma situao daqueles que refinam o ouro.
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
Aqueles que fazem esse trabalho comeam, eles tambm, por uma
eliminao, rejeitando a terra, as pedras e muitas outras impurezas; depois disso
permanecem na mistura os metais preciosos da mesma famlia do ouro que se
separa pelo fogo, o cobre, parte e, algumas vezes, tambm o diamante. Assim,
dificilmente separados pelas chamas, deixam a descoberto o que chamamos ouro
puro.
SCRATES, O JOVEM
exatamente assim que acontece, pelo que se diz.
ESTRANGEIRO
Parece-me que seguimos o mesmo processo, separando da cincia
poltica tudo aquilo que difere dela, que lhe estranho e hostil, e conservando
apenas as cincias preciosas, suas parentes. So elas a cincia militar, a cincia
jurdica e toda essa retrica aliada da cincia real, que, de comum acordo com ela,
emprestando justia sua fora persuasiva, governa toda a atividade no interior das
cidades. Qual ser, pois, o meio mais fcil de separ-las, revelando em estado puro
e despido de toda a combinao o objeto que procuramos?
SCRATES, O JOVEM
isso evidentemente que nos necessrio tentar de qualquer maneira.
ESTRANGEIRO
Se no se trata seno de tentar, seja!, ns o encontraremos. E para melhor
compreend-lo recorramos msica. Assim, dize-me. . .
SCRATES, O JOVEM
Qu?
ESTRANGEIRO
A msica requer um aprendizado, e no acontece o mesmo com todas as
artes que exigem exerccios manuais?
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
E ento? No ser ainda uma cincia que decidir da necessidade ou no
de aprendermos esta ou aquela dessas cincias? Que achas?
SCRATES, O JOVEM
Sim, ser uma cincia:
ESTRANGEIRO
No concordamos em que ela distinta das primeiras?
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Deveriam as demais cincias ser superiores a esta ou nenhuma delas ser
superior s outras? Ou a esta cincia que pertencem o controle e a direo geral?
SCRATES, O JOVEM
A ela sobre todas as demais.
ESTRANGEIRO
Entre a cincia que decide se necessrio ou no aprender e aquela que
ensina, declaras, pois, que primeira que ns devemos dar a primazia.
SCRATES, O JOVEM
Certamente.
ESTRANGEIRO
D-se o mesmo entre aquela que decide da necessidade ou no de
persuadir e aquela que sabe persuadir?
SCRATES, O JOVEM
Sem dvida.
ESTRANGEIRO
Muito bem. A que cincia atribuiremos, pois, a virtude de persuadir as
massas e multides, narrando-lhes fbulas em lugar de instru-las?
SCRATES, O JOVEM
Isso pertence evidentemente retrica, ao que me parece.
ESTRANGEIRO
Mas a que cincia atribuiremosa deciso de saber se se deve tratando-
se destas ou daquelas pessoas, neste ou naquele caso usar de fora ou de
persuaso, ou simplesmente nada fazer?
SCRATES, O JOVEM
quela que governa a arte de persuadir e de falar.
ESTRANGEIRO
Ora, acredito que ela no outra seno aquela de que dotado o
poltico.
SCRATES, O JOVEM
Disseste muito bem.
ESTRANGEIRO
Eis, pois, ao que parece, esta famosa retrica rapidamente separada da
poltica: pertence a uma outra espcie e sua subordinada.
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Mas que pensar desta outra faculdade?
SCRATES, O JOVEM
Qual?
ESTRANGEIRO
A de saber como fazer guerra queles a quem decidimos faz-la: diramos
que a guerra depende de uma arte ou que esta arte lhe estranha?
SCRATES, O JOVEM
Como poderamos consider-la estranha arte quando ela a causa da
estratgia e de toda operao blica?
ESTRANGEIRO
Mas a arte que sabe e pode decidir se necessrio fazer a guerra ou viver
em paz a mesma ou necessrio distingui-la?
SCRATES, O JOVEM
Distingui-la-emos, necessariamente, para sermos conseqentes conosco
mesmos.
ESTRANGEIRO
Afirmaremos, pois, que ela dirige a outra, se quisermos permanecer fiis
s nossas afirmativas precedentes?
SCRATES, O JOVEM
minha opinio.
ESTRANGEIRO
Entretanto, considerando a sabedoria e a vastido da arte blica e seu
conjunto, que outra cincia poderamos dizer sua soberana, a no ser a verdadeira
cincia real?
SCRATES, O JOVEM
Nenhuma outra.
ESTRANGEIRO
No colocaramos, pois, no mesmo plano que a poltica, uma cincia que
a ela apenas subordinada, a cincia dos generais?
SCRATES, O JOVEM
Claro que no.
ESTRANGEIRO
Adiante examinaremos, tambm, a fora que possuem os juzes quando
julgam corretamente.
SCRATES, O JOVEM
Muito bem.
ESTRANGEIRO
Estende-se ela alm das decises em matria de contratos, decises
baseadas em artigos de leis que ele recebe prontos das mos do rei legislador,
julgando da justia ou injustia desses atos, e a revelando aquilo que prprio da
virtude judiciria, que nem presentes nem temores, piedades, dios ou amores de
espcie alguma podero levar a violar voluntariamente o que foi estabelecido pelo
legislador nas decises que devem fazer entre as queixas opostas dos querelantes?
SCRATES, O JOVEM
No, sua fora no se estende alm do que dizes.
ESTRANGEIRO
Vemos, assim, que os juzes no se elevam fora real: so apenas
guardies das leis e subordinados a essa fora.
SCRATES, O JOVEM
Aparentemente.
ESTRANGEIRO
O que nos resta verificar, aps havermos assim examinado todas as
cincias, que nenhuma delas nos aparece como a cincia poltica. A verdadeira
cincia real no possui, com efeito, obrigaes prticas: dirige, ao contrrio, aquelas
que existem para realizar essas obrigaes, pois sabe que ocasies so favorveis ou
no para iniciar ou levar adiante os grandes empreendimentos e as demais apenas
executaro suas ordens.
SCRATES, O JOVEM
Tens razo.
ESTRANGEIRO
Assim, as cincias que acabamos de passar em revista, se bem que
nenhuma delas seja senhora de si mesma nem das demais, possuem, entretanto,
cada uma delas, seu gnero de atividade que lhe d, justamente, seu nome
particular.
SCRATES, O JOVEM
Aparentemente, pelo menos.
ESTRANGEIRO
Mas quela que dirige a todas, que tem o cuidado das leis e dos assuntos
referentes polis, e que une todas as coisas num tecido perfeito, apenas lhe faremos
justia escolhendo um nome bastante amplo para a universalidade de sua funo e
chamando-a a poltica.
SCRATES, O JOVEM Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
No gostaramos de utilizar nosso paradigma de tecedura para explicar,
por sua vez, a poltica, agora que possumos uma viso clara de todos os gneros
contidos na cidade?
SCRATES, O JOVEM
Certamente.

A natureza social e suas contradies

ESTRANGEIRO
Nesse caso, a funo real de entrelaamento que necessrio
descrever, ao que parece: sua natureza, sua maneira de entrelaar, e a qualidade do
tecido que ela assim nos oferece.
SCRATES, O JOVEM
Evidentemente.
ESTRANGEIRO
A que demonstrao difcil nos propusemos, ao que vejo!
SCRATES, O JOVEM
necessrio faz-la, todavia, custe o que custar.
ESTRANGEIRO
Que uma parte da virtude seja, em certo sentido, diferente de uma outra
espcie da virtude, eis o que oferece, com efeito, bela matria de contenda aos
trapaceiros do discurso que apelam para as opinies populares.
SCRATES, O JOVEM
No compreendo.
ESTRANGEIRO
Explicar-me-ei de outro modo. Creio que tu encaras a coragem como
constituindo, para ns, uma parte da virtude.
SCRATES, O JOVEM
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Entretanto, a sabedoria uma coisa diferente da coragem, embora seja
tambm uma parcela da virtude.
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Muito bem. Ousemos, pois, dizer, a esse respeito, uma coisa que causar
admirao.
SCRATES, O JOVEM
O qu?
ESTRANGEIRO
que ambas so, num certo sentido, grandemente inimigas uma da outra,
opondo-se em faces adversas em muitos dos seres nos quais residem.
SCRATES, O JOVEM
Que queres dizer?
ESTRANGEIRO
Nada do que comumente se diz: pois se afirma que todas as partes da
virtude so naturalmente amigas.
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
Examinemos, pois, com bastante ateno se sua amizade to absoluta
como se diz ou se, ao contrrio, existe alguma que seja diferente de suas
congneres.
SCRATES, O JOVEM
Entendido; explica somente como deve ser feito esse exame.
ESTRANGEIRO
Procurando, em todos os domnios, as coisas que chamamos belas, mas
que classificamos sob duas espcies contrrias uma da outra.
SCRATES, O JOVEM
Explica-te mais claramente.
ESTRANGEIRO
J elogiaste ou ouviste elogiar diante de ti a rapidez e a velocidade, quer se
revelem nos corpos, nas almas ou nos movimentos da voz, quer pertenam s
prprias realidades ou s imagens realizadas pelo esforo de imitao da msica ou
da pintura?
SCRATES, O JOVEM
E ento?
ESTRANGEIRO
Recordas tambm como se expressa este elogio em todas as ocasies?
SCRATES, O JOVEM
No, absolutamente.
ESTRANGEIRO
Seria eu capaz de explicar-te por frmulas que traduzem bem meu
pensamento?
SCRATES, O JOVEM
Por que no?
ESTRANGEIRO
Pareces acreditar que isso muito fcil: examinemo-lo considerando
gneros contrrios uns aos outros. Em muitas aes, com efeito, e em muitas
circunstncias, quando nos sentimos encantados pela velocidade, pela fora, pela
vivacidade do pensamento, do corpo ou da voz, nossa admirao encontra apenas
uma palavra para se exprimir: energia.
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
Dizemos, por exemplo, que vivo e enrgico, pronto e enrgico, ou
forte, e assim por diante: em suma, aplicando a todas essas qualidades o epteto
comum de que falo, que fazemos o seu elogio.
SCRATES, O JOVEM
Sim.
ESTRANGEIRO
E ento? A maneira tranqila pela qual uma coisa se faz, no constitui
uma nova espcie que muitas vezes tambm elogiamos a propsito de muitas
aes?
SCRATES, O JOVEM
Certamente.
ESTRANGEIRO
E no empregamos, ao falar, expresses contrrias s precedentes?
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
Todas as vezes que chamamos de pacficos e sbios os pensamentos ou
aes cuja lentido e doura admiramos, ou ento os sons unidos e graves ou ainda
todo movimento bem cadenciado e toda produo artstica que se desenvolve
numa lentido oportuna, em todos esses casos j no da energia que falamos mas
sim da sobriedade.
SCRATES, O JOVEM
bem verdade.
ESTRANGEIRO
Ao contrrio, se uma ou outra dessas qualidades opostas se manifesta
fora de propsito, mudamos de linguagem e, para critic-los, recorremos a eptetos
cuja inteno bem outra.
SCRATES, O JOVEM
Como assim?
ESTRANGEIRO
Se as coisas de que falamos nos aparecem mais vivas, mais rpidas, mais
rudes do que convm, ns a chamaremos violentas, extravagantes; mais graves,
mais lentas, mais brandas do que convm, ns a chamaremos frouxas, indolentes.
E, quase sempre, essas qualidades, assim como as qualidades opostas de moderao
e energia, se revelam a ns como caracteres que a sorte fixou em duas faces
inimigas, incapazes que so de se unirem uns aos outros nas aes em que se
realizam; e por menos que observemos os espritos que possuem esses caracteres,
encontraremos neles os mesmos conflitos. SCRATES, O JOVEM
Onde?
ESTRANGEIRO
Em todas as circunstncias que acabamos de descrever e, naturalmente,
em muitas outras. Pois, segundo as afinidades que possuem com uma ou outra
tendncia, elogiam aquela onde encontram um pouco de sua prpria natureza,
censurando a outra que sentem ser estranha, tomando-se, dessa forma, de dios
sem fim contra inmeras pessoas.
SCRATES, O JOVEM
Parece-me que assim .
ESTRANGEIRO
Ora, este simples conflito de caracteres no passa de um jogo.
Entretanto, nas coisas graves torna-se a enfermidade mais perigosa que h para as
cidades.
SCRATES, O JOVEM
A que coisas graves te referes?
ESTRANGEIRO
Naturalmente quelas que dizem respeito organizao da vida. H, com
efeito, pessoas dotadas de um temperamento extremamente moderado; dispostas a
levar uma vida de perptua tranqilidade, elas se afastam e se isolam para ocupar-se
de seus negcios e, revelando essa disposio, conservam-na com relao s cidades
estrangeiras, sempre prontas, tambm aqui, a qualquer espcie de paz. Por este
amor verdadeiramente intempestivo chegam elas inconscientes, vivendo ao sabor
de seus desejos, a perder toda aptido para a guerra, a educar seus jovens nessa
incapacidade, colocando-os merc do primeiro assaltante: no so necessrios
muitos anos para que se encontrem elas, seus filhos, e toda a sua cidade,
transformados de livres em escravos, sem que disso se apercebam.
SCRATES, O JOVEM
Dura e terrvel sorte!
ESTRANGEIRO
Que dizer daqueles mais inclinados energia? No tm sempre alguma
nova guerra para onde arrastar sua cidade, pela enorme paixo que nutrem por esse
gnero de vida, expondo sua ptria aos dios to numerosos e fortes que a arrastam
sua runa completa ou a colocam sob a servido e o jugo inimigo?
SCRATES, O JOVEM
o que tambm sucede.
ESTRANGEIRO
Como, pois, negar que h entre esses dois gneros de espritos uma fonte
contnua e profunda de inimizade e discrdia?
SCRATES, O JOVEM
Impossvel neg-lo.
ESTRANGEIRO
No temos assim verificado o primeiro ponto de nossa pesquisa, isto ,
que certas partes da virtude, e no pequenas, so por natureza opostas entre si, e
engendram, nos espritos onde residem, as mesmas oposies?
SCRATES, O JOVEM
Parece.
ESTRANGEIRO
Examinemos, agora, o ponto seguinte.
SCRATES, O JOVEM
Qual?
ESTRANGEIRO
Procuremos saber se entre as cincias combinatrias h alguma que por
ser a mais humilde, aceite, ao compor uma outra de suas obras, tanto os maus
como os bons elementos; ou se o esforo de toda cincia , em qualquer domnio,
o de eliminar o mais possvel os maus elementos conservando os elementos teis e
bons e, quer sejam estes semelhantes ou dessemelhantes, fundi-los todos numa
obra que seja perfeitamente una por suas propriedades e estrutura.
SCRATES, O JOVEM
Claro!
ESTRANGEIRO
Nossa poltica, a poltica verdadeiramente conforme natureza, jamais
consentiria em constituir uma cidade formada de bons e maus. Ao contrrio,
comearia, evidentemente, por submet-los prova do jogo, e, terminada essa
prova, confi-los-ia a educadores competentes e habilitados para esse servio.
Reservaria, entretanto, a si o governo e a direo, assim como faz o tecedor com
relao aos cardadores e a todos os demais auxiliares que preparam os materiais que
ele urdir, mantendo-se constantemente junto deles para governar e dirigir todos os
seus movimentos, e determinando a cada um as obrigaes que julga necessrias ao
seu prprio trabalho de tecedura.
SCRATES, O JOVEM
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
Ora, assim tambm, ao que me parece, far a cincia real com relao a
todos aqueles que, sob a gide das leis, ministram a instruo e a educao:
reservar a si a autoridade diretiva, no permitindo treinamento algum que no
tenda a facilitar sua prpria amlgama, formando caracteres que se prestem a isso, e
recomendar a eles que tudo ensinem nesse esprito. Se houver caracteres aos quais
no seja possvel comunicar energia, temperana e outras inclinaes virtuosas, que
sejam arrastados, ao contrrio, pelo mpeto de natureza m, ao atesmo,
imoderao e injustia, deles se livrando a cincia real, por sentenas de morte ou
exlio e por penas as mais infamantes.
SCRATES, O JOVEM
Essa , pelo menos, a doutrina usual.
ESTRANGEIRO
Aqueles que permanecem na ignorncia e abjeo ela submeter ao jugo
da escravido.
SCRATES, O JOVEM
Muito bem.
ESTRANGEIRO
Quanto aos demais, suficientemente bem nascidos para que uma boa
formao possa lev-los s virtudes generosas e para que um mtodo hbil possa
amalgam-los uns aos outros, se se inclinarem mais para a energia, pela rigidez de
seu carter, a cincia real marcar o seu lugar na urdidura; os outros que se inclinam
mais para a moderao constituem, para essa mesma cincia, e prosseguindo em
nossa comparao, o tecido flexvel e brando da trama. Sendo opostas suas
tendncias, a poltica se esfora por uni-los e entrela-los da seguinte maneira.
SCRATES, O JOVEM
Que maneira?
ESTRANGEIRO
Rene, em primeiro lugar, segundo as afinidades, a parte eterna de sua
alma com um fio divino, e em seguida, depois dessa parte divina, une a parte animal
com fios humanos.
SCRATES, O JOVEM
Que queres novamente dizer?
ESTRANGEIRO
Se uma opinio realmente verdadeira e firme se estabelece nas almas, a
propsito do belo, do bom, do justo e de seus opostos, digo que algo divino se
realizou numa raa demonaca.
SCRATES, O JOVEM
Isto, seguramente, convm dizer.
ESTRANGEIRO
Ora, no sabemos que somente o poltico e o sbio legislador tm esse
privilgio de, auxiliados pela musa da cincia real, poder imprimir tal opinio nos
espritos formados pela boa educao de que falvamos h pouco?
SCRATES, O JOVEM
Pelo menos verossmil.
ESTRANGEIRO
Mas, Scrates, jamais daremos os ttulos em questo a quem no tenha
esse poder.
SCRATES, O JOVEM
justo.
ESTRANGEIRO
Muito bem. Uma alma enrgica no se suavizaria quando penetrada assim
de verdade, e no se abriria mais espontaneamente s idias de justia, enquanto
antes se fechava numa ferocidade quase bestial?
SCRATES, O JOVEM
Sem dvida alguma.
ESTRANGEIRO
Mas que dizer do natural moderado? Estas opinies no o tornariam
verdadeiramente sbrio e prudente, pelo menos tanto quanto o requer a vida em
cidade, ao passo que, privado das luzes que apontamos, atrairia a si, com justia, a
humilhante fama de tolo?
SCRATES, O JOVEM
Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
No ser necessrio afirmar, agora, que este lao jamais unir de maneira
durvel, nem os maus, entre si, nem os maus com os bons, e que cincia alguma
jamais pensar seriamente em servir-se de pessoas desta espcie?
SCRATES, O JOVEM
Como pretend-lo, com efeito?
ESTRANGEIRO
somente entre caracteres em que a nobreza inata e mantida pela
educao que as leis podero criar este lao; para eles que a arte criou esse
remdio; ela , como dizamos, o lao verdadeiramente divino que une entre si as
partes da virtude, por mais dessemelhantes que sejam, por natureza, e por mais
contrrias que possam ser pelas suas tendncias. SCRATES, O JOVEM
verdade.
ESTRANGEIRO
Quanto aos demais laos puramente humanos, j no difcil conceb-
los, uma vez criado esse primeiro lao, nem, havendo-os concebido, realiz-los.
SCRATES, O JOVEM
Como assim, e de que laos se trata?
ESTRANGEIRO
Daqueles que se criam, entre cidades, pelos casamentos que elas
autorizam e pela troca de seus jovens; e, entre particulares, pelos casamentos que
contratam. Ora, a maioria contrata essas alianas em condies desfavorveis
procriao.
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
Tem-se em mira, nessa ocasio, a riqueza e o poder. Tal fato merece
mesmo a honra de uma crtica?
SCRATES, O JOVEM
Nem mesmo.
ESTRANGEIRO
Faramos melhor em falar das pessoas a quem preocupa o cuidado da
raa e em mostrar qual o erro de sua maneira de agir.
SCRATES, O JOVEM
Exatamente.
ESTRANGEIRO
Ora, eles agem fora de todo bom senso, buscando apenas o comodismo
imediato e, unindo-se a seus semelhantes, cheios de averso pelos outros, deixam-
se guiar sobretudo por suas antipatias.
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
Os moderados procuram naturezas semelhantes s suas, escolhendo tanto
quanto possvel suas mulheres nesse meio, e a casando seus filhos; assim fazem
tambm os da raa enrgica, querendo encontrar natureza igual sua, enquanto
uma e outra raa deveriam fazer o contrrio.
SCRATES, O JOVEM
Como e por qu?
ESTRANGEIRO
Porque natural energia, que permanece durante muitas geraes sem
mistura nenhuma com o carter moderado, manifestar-se com toda violncia de sua
fora no incio, para degenerar finalmente em verdadeiras loucuras furiosas.
SCRATES, O JOVEM
o resultado provvel.
ESTRANGEIRO
Por outro lado, uma alma demasiado reservada que, em lugar de se unir
audcia enrgica, se reproduz sempre a mesma durante muitas geraes, torna-se
excessivamente fraca terminando num estado de completa enfermidade.
SCRATES, O JOVEM
Isso, tambm, parece certo.
ESTRANGEIRO
Eis, pois, a que laos eu me referia, dizendo que no seriam
absolutamente difceis de formar, desde que essas duas raas tivessem a mesma
opinio sobre o bem e o mal. E aqui est, pois, a verdadeira funo dessa arte real
de tecedura: jamais permitir o estabelecimento do divrcio entre o carter
moderado e o carter enrgico, antes uni-los pela comunidade de opinies, honras e
glrias, pela troca de promessas, para fazer deles um tecido flexvel e, como se diz,
bem cerrado, confiando-lhes sempre em comum as magistraturas nas cidades.
SCRATES, O JOVEM
Como?
ESTRANGEIRO
Onde for necessrio um nico chefe, escolher um que tenha esse duplo
carter; onde so necessrios muitos, formar partes iguais das duas naturezas. As
pessoas de temperamento moderado so, com efeito, circunspectas, justas, pouco
propensas a se aventurarem, mas falta a elas a agudeza e essa espontaneidade que
prpria ao.
SCRATES, O JOVEM
Isso tambm parece verdadeiro.
ESTRANGEIRO
Os enrgicos, por sua vez, tm menos respeito justia e prudncia;
mas quando se trata de agir possuem mais espontaneidade que ningum. Assim,
impossvel que tudo corra bem nas cidades, para os particulares e para o Estado, se
esses dois caracteres no estiverem associados.
SCRATES, O JOVEM
Evidentemente.
ESTRANGEIRO
Eis, pois, terminado em perfeito tecido o estofo que a ao poltica urdiu
quando, tomando os caracteres humanos de energia e moderao, a arte real
congrega e une suas duas vidas pela concrdia e amizade, realizando, assim, o mais
magnfico e excelente de todos os tecidos. Abrange, em cada cidade, todo o povo,
escravos ou homens livres, estreita-os todos na sua trama e governa e dirige,
assegurando cidade, sem falta ou desfalecimento, toda a felicidade de que pode
desfrutar. SCRATES, O JOVEM
Excelente retrato, estrangeiro, que terminas, agora, do homem real e do
homem poltico.
NDICE
PLATO Vida e obra
Cronologia
Bibliografia
O BANQUETE
Texto, traduo e notas
Apolodoro e um Companheiro
FDON
Introduo
A Narrativa
O Prazer e a Dor
A morte como libertao do pensamento
A Purificao
A Sobrevivncia da Alma
Os contrrios
O Destino das almas
A funo da filosofia
Fdon retoma a narrativa
Resposta a Smias
Resposta a Cebes
O Problema da Fsica
A Idia
O Problema dos Contrrios e as Idias
Mito do Destino das Almas
Eplogo
SOFISTA
Teodoro, Scrates, Estrangeiro de Elia, Teeteto
O dilogo entre o Estrangeiro e Teeteto: a definio do sofista
A aplicao do mtodo na definio dos sofistas
A primeira definio do sofista: caador interesseiro de jovens ricos
A segunda definio do sofista: o comerciante em cincias
Terceira e quarta definies do sofista: pequeno comerciante de primeira ou de
segunda-mo
Quinta definio do sofista: erstico mercenrio
Sexta definio: o sofista, refutador
Recapitulao das definies
As artes ilusionistas: a mimtica
O Problema do erro e a questo do no-ser
Refutao tese de Parmnides
As teorias antigas do ser. As doutrinas pluralistas
As doutrinas unitrias
Materialistas e amigos das formas
Uma definio do ser. Mobilistas e estticos
A irredutibilidade do ser ao movimento e ao repouso
O problema da predicao e a comunidade dos gneros
A dialtica e o filsofo
Os gneros supremos e suas relaes mtuas
Definio do no-ser como alteridade
Recapitulao da argumentao sobre a realidade do no-ser
Aplicao questo do erro na opinio e no discurso
Retorno definio sofista
POLTICO
Scrates, Teodoro, Estrangeiro, Scrates, o Jovem
Uma pequena lio de lgica: Espcie e parte
O Grau e sua opinio
Animais aquticos e terrestres
Quadrpedes e bpedes. O concurso das duas majestades
O caminho mais curto. Recapitulao
Crtica da definio. Os rivais do poltico
O Recurso ao Mito
As alternncias do movimento e o seu curso
Os filhos da terra
Os Pastores Divinos
O mundo abandonado
O homem no estado de natureza
O pastor humano: tirano ou rei?
Definio e uso do paradigma
O paradigma.da tecedura
Causas prprias e causas auxiliares
A medida relativa e a justa medida
A norma verdadeira. A sntese dialtica
As diversas formas das constituies
O verdadeiro chefe acima das leis
A ilegalidade ideal. A fora impondo o bem
A legalidade necessria: os dois perigos
As constituies imperfeitas
Eliminao das artes auxiliares
A natureza e suas contradies
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