Questionario Family Ace Versao Portuguesa
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O estudo das experiências adversas na infância tem recebido uma grande atenção pelos
investigadores nos últimos anos na medida em que são um dos principais factores de risco para
problemas psicossociais na idade adulta, quer sob a forma de psicopatologia, quer sob a forma
de queixas e problemas de saúde.
A adversidade tem sido descrita como a exposição a um conjunto de circunstâncias
pouco favoráveis para o normal desenvolvimento humano (e.g. Rizzini & Dawes, 2001;
Gunnar, 2000). Estas circunstâncias podem referir-se a acontecimentos mais ou menos comuns
que afectam o corpo, o self e a mente, cobrindo um conjunto de experiências físicas,
emocionais, sexuais e mentais.
O facto deste tipo de experiências ser bastante comum na população geral, e estar
associado a elevada mortalidade e morbilidade, tem acentuado a importância de integrar a
história de desenvolvimento na avaliação clínica e da elaboração de instrumentos que possam
ser usados na investigação nesta área.
O grupo de investigação norte-americano conhecido como Adverse Childhood
Experiences – ACE (e.g Felitti, Anda, Nordenber, Williamson, Spitz & Edwards, 1998) tem
realizado estudos muito importantes no âmbito dos efeitos da adversidade, tentando perceber de
que forma estas experiências se relacionam com a mortalidade e a morbilidade. Estes estudos
centram-se em análises retrospectivas e prospectivas, com cerca de 17 mil participantes, acerca
do efeito que as experiências de vida adversas durante os primeiros 18 anos de vida irão e estão
a ter no bem-estar geral, funcionamento social, comportamentos de risco para a saúde, doenças
e problemas de saúde, custos de saúde e na esperança média de vida (Felitti & Anda, in press).
Estes estudos têm sido realizados com um número muito significativo de participantes da
população geral e de amostras específicas, o que reforça a significância dos resultados.
O primeiro estudo realizado por este grupo de investigação (Felitti et al, 1998) surgiu
associado a um programa de perda de peso, em que se verificou uma elevada taxa de abandono
bem como uma grande incapacidade de perda e manutenção do peso. Os dados desta
investigação mostraram, de forma surpreendente, que as experiências adversas durante a
infância e a adolescência eram muito frequentes nesta população. Este facto levou os autores a
concluírem que a intervenção não estava voltada para as reais causas da obesidade e iniciou o
interesse do grupo pela compreensão do impacto que as experiências de adversidade vivida na
infância têm na idade adulta. Os investigadores verificaram que a prevalência destas
experiências na população geral também era inesperadamente elevada (Felitti & Anda, in press).
Para a realização destes estudos, o grupo de investigação norte-americano construiu um
questionário de auto-relato para adultos, que pretende avaliar as experiências de adversidade
ocorridas na infância – Family ACE Questionnaire (Felitti & Anda, 1998).
Os estudos aqui relatados pretendem descrever a prevalência das experiências relatadas
em diferentes populações portuguesas e analisar a relação que estas experiências têm com
indicadores de perturbação psicológica.
Método
Instrumentos1
Para atingir os objectivos do nosso estudo utilizamos o Questionário da História de
Adversidade na Infância, tradução por Silva e Maia (2006) do Family ACE Questionnaire
(Felitti & Anda, 1998) e o Brief Symptoms Inventory (Derogatis, 1993, adaptado por
Canavarro, 1995).
O Questionário da História de Adversidade na Infância é um questionário de auto-
relato para adultos, que pretende avaliar a ocorrência de experiências de adversidade na
infância. Ele é composto por 77 itens organizados em questões dicotómicas, de escolha múltipla
e resposta breve. As experiências de adversidade vividas na infância agrupam-se em 3
categorias: experiências contra o indivíduo, ambiente familiar disfuncional e negligência.
Em seguida é apresentada uma breve caracterização de cada uma destas categorias tal
como foram definidas e estudadas no âmbito do grupo de investigação que temos vindo a referir
(Anda, Felitti, Bremmer, Walker, Whitfield & Perry, 2006; Chapman, Whitfield, Felitti, Dube,
Edwards & Anda, 2004; Dong, Williamson, Thompson, Felitti & Anda, 2004).
1. Abuso emocional é uma categoria cotada numa escala de likert que varia entre 0
(nunca) e 4 (muitíssimas vezes e que se caracteriza pela existência frequente ou
muito frequente (cotado com “muitas” ou “muitíssimas vezes”) de situações de
insulto ou medo de violência física, sendo avaliada pelas questões “Quantas vezes
os seus pais, padrastos ou outro adulto que vivia em sua casa o insultou ou lhe
disse palavrões? “, “Quantas vezes os seus pais ou outros adultos que viviam em
sua casa agiram de forma que o deixou com medo que o magoassem fisicamente?”,
e “Quantas vezes os seus pais, padrastos ou outro adulto que vivia em sua casa
ameaçou bater ou atirar com alguma coisa mas não o fez? “.
1
Atendendo ao facto de todos os estudos utilizarem os mesmos instrumentos, a sua descrição é
apresentada antes da caracterização de cada um dos estudos.
2. Abuso físico é uma categoria cotada numa escala de likert que varia entre 0 (nunca)
e 4 (muitíssimas vezes) e que se caracteriza pela existência frequente ou muito
frequente (cotado com “algumas vezes”, “muitas” ou “muitíssimas vezes”) de
situações em que a criança foi batida por algum adulto de forma violenta deixando
sequelas. Esta categoria é avaliada pelas questões “Com que frequência lhe
bateram?”, “Com que severidade lhe bateram?” (que varia entre 0 “não forte” e 4
“muito forte”), “Quantas vezes os seus pais ou outros adultos que viviam em sua
casa efectivamente o puxou, agarrou ou atirou com alguma coisa?”, e “Quantas
vezes os seus pais ou outros adultos que viviam em sua casa lhe bateram com tanta
força que deixou marcas ou feriu?”.
3. Abuso sexual é definido pela existência de experiências sexuais antes dos 18 anos
com um adulto ou uma pessoa pelo menos cinco anos mais velho. Estas
experiências referem-se apenas a adultos que podem ser pessoas da família, outra
pessoa que vivesse em casa, um amigo da família ou um estranho. Esta categoria é
avaliada através das seguintes questões dicotómicas “Algum adulto tocou ou
acariciou o seu corpo de uma forma sexualizada?”, “Tocou o corpo delas de uma
forma sexualizada?” “Tentaram ter algum tipo de relação sexual (oral, anal ou
vaginal) consigo?”, “Tiveram algum tipo de relação sexual (oral, anal ou vaginal)
consigo?”.
4. Exposição a violência doméstica é cotada a partir de quatro itens adaptados do
Conflict Tactics Scale (1978, citado em Anda et al., 2006) e avaliam a ameaça ou
agressão física à mãe ou madrasta. As questões desta categoria são “Com que
frequência o seu pai, padrasto ou namorado da mãe puxou, agarrou ou atirou com
alguma coisa?”, “Pontapeou, mordeu, bateu com a mão, ou bateu com algum
objecto?”, “Bateu repetidamente durante alguns minutos?”, “Ameaçou com uma
faca ou arma, ou usou uma faca ou arma para magoar?”. Considera-se exposição a
situações de violência doméstica se alguma destas questões tiver acontecido
“algumas vezes”, “muitas” ou “muitíssimas vezes”.
5. Abuso de substâncias no ambiente familiar é avaliado pelo consumo de álcool ou
drogas por alguma pessoa que habitasse com o indivíduo. Esta categoria é avaliada
por duas questões categoriais, “Viveu com alguém que tivesse um problema com o
álcool ou fosse alcoólico?”, e “Havia alguém em sua casa que usasse drogas?”.
6. Divórcio ou separação parental foi avaliado a partir de uma questão dicotómica
“Os seus pais eram divorciados ou separados? “.
7. Prisão de um membro da família é avaliada pela questão dicotómica “Alguém em
sua casa esteve na prisão?”.
8. Doença mental ou suicídio caracteriza-se pela existência de algum elemento da
família que apresentasse, durante a infância do indivíduo, algum tipo de doença
mental ou tivesse realizado alguma tentativa de suicídio. Esta categoria é avaliada
pelas seguintes questões dicotómicas “Havia alguém em sua casa deprimido ou
com alguma doença mental?”, e “Alguma das pessoas que vivia consigo tentou
suicidar-se ou suicidou-se?”.
9. Negligência física é caracterizada por uma atitude passiva e de não responsividade
às necessidades básicas da criança quer a um nível físico, quer biológico. Esta
categoria é avaliada através de afirmações directas e invertidas em que se averigua,
numa escala de 0 (nunca) a 4 (muitíssimas vezes), a frequência desta tipo de
experiências. As afirmações utilizadas são “Não tinha o suficiente para comer.”,
“Os meus pais estavam demasiado bêbados ou perturbados para cuidar da
família.”, e pelos seguintes itens invertidos “Sabia que existia alguém para me
cuidar e proteger.”, “Havia quem lavasse a roupa.”, “Havia quem me levasse ao
médico caso necessitasse.”. Considera-se que a experiência ocorreu se algum item
for cotado com “muitas” ou “muitíssimas vezes”.
10. Negligência emocional é caracterizada por uma atitude passiva e de não
responsividade às necessidades emocionais e afectivas da criança. Esta categoria,
cotada numa escala de 0 (nunca) a 4 (muitíssimas vezes) é composta pelas
afirmações “Havia alguém na minha família que me ajudava a sentir especial ou
importante.”, “Senti-me amado”, “As pessoas da minha família tomavam conta
uns dos outros.”, “As pessoas da minha família sentiam-se próximas umas das
outras.”, “A minha família era fonte de força e suporte.”. Considera-se que a
experiência ocorreu se algum item for cotado, como “nunca” ou “raramente”.
Para cada um dos sujeitos, atendendo ao valor em cada uma das categorias de
adversidade antes apresentada, calcula-se uma nova variável - Adversidade Total. A
Adversidade Total surge do somatório do valor com que foi classificado cada sujeito em cada
uma das categorias, em que se atribui o valor “zero” se o sujeito não relata essa forma de
adversidade ou o valor “um” se essa adversidade é relatada (note-se que na maior parte das
formas de adversidade isto implica adversidade “muitas vezes” ou “muitíssimas vezes”). Esta
variável pode variar entre zero (se o sujeito não é positivo em qualquer das categorias) e dez (se
o sujeito obtém pontuação positiva em todas as categorias).
No âmbito dos estudos da equipa Americana, o estudo da validade deste instrumento,
através de um teste-reteste, com 644 sujeitos, verificou um coeficiente de Kappa de .56 a .72
para as categorias de abuso físico, abuso emocional e violência doméstica, e de .46 a .86 para as
restantes categorias, o que levou os autores a concluírem pela sua adequação (Dube et al, 2004).
O Brief Symptoms Inventory (Derogatis, 1993, adaptado por Canavarro, 1995, 1999) é
um inventário construído como uma versão abreviada do SCL-90-R (Derogatis, 1977). É um
instrumento de auto-resposta constituído por 53 itens, onde o sujeito deverá classificar o grau
em que cada problema o afectou durante a última semana, numa escala tipo likert, cotado desde
“nunca” (0) a “muitíssimas vezes” (4). Este instrumento avalia sintomas psicopatológicos em
nove dimensões básicas e três Índices globais (Índice Geral de Sintomas – IGS, Total de
Sintomas Positivos, Índice de Sintomas Positivos). Os estudos psicométricos da versão
portuguesa revelaram que este instrumento apresenta níveis adequados de consistência interna
para as nove escalas. Estudos de fiabilidade e validade indicam que este instrumento avalia
adequadamente a psicopatologia (Canavarro, 1999).
Participantes: Este estudo é constituído por três grupos: um grupo clínico de obesos
pré-cirurgia, um grupo de obesos pós-cirurgia e um grupo de controlo.
O grupo clínico de obesos pré-cirurgia é composto por 100 participantes, 20% (n = 20)
do género masculino e 80% (n = 80) do género feminino, com idades compreendidas entre os 21
e 61 anos ( X = 38.89, DP = 9.87). A média do peso máximo dos sujeitos é de 136.43 Kg (DP =
14) e a média do peso actual é de 125.57 Kg (DP=13.79).
O grupo clínico de obesos pós-cirurgia é composto por 46 participantes, sendo 15.2%
(n = 7) do género masculino e 84.8% (n = 39) do género feminino, com idades compreendidas
entre os 18 e 55 anos ( X = 38.93, DP = 9.80). A média do peso máximo dos sujeitos é de 126
Kg (DP = 19), a média do peso actual é de 103.18 Kg (DP = 21.15) e a média de peso mínimo
após a cirurgia é de 90.67 Kg (DP = 18.54).
O grupo controlo é composto por 80 participantes, 87.5% do género feminino (n = 70) e
Quadro 1: Estatística descritiva das experiências de adversidade na infância relatadas por obesos
mórbidos pré e pós cirurgia e não obesos, Índice Geral de Psicopatologia e Correlação de Spearman
X = .89 (DP =
IGS X = 1.24 (DP = .80) X = 1 (DP = 1)
.50)
R sp Adversidade e IGS .608*** .292 .131
*** p < . 000
Como se pode observar, estas experiências são bastante mais relatadas pelos sujeitos
obesos do que pelos do grupo controlo, sendo que os obesos pré-cirurgia relatam mais
experiências de adversidade na infância do que o grupo de obesos pós-cirurgia.
No grupo de obesos pré-cirurgia, podemos observar que mais de metade dos sujeitos
relata ter tido experiências de abuso emocional, abuso físico, exposição a violência doméstica,
abuso de substâncias e doença mental ou suicídio. Verificamos ainda que as experiências de
negligência continuam a ser bastante relatadas pelos sujeitos mas com menor prevalência. O
cálculo da variável Adversidade Total deu origem a uma média de 4.05 sendo que cinco é o
valor de adversidade mais frequentemente relatado. Verificamos que estes sujeitos apresentam
um índice geral de sintomas (avaliado pelo BSI) claramente superior ao da população geral e
que a adversidade na infância se relaciona de forma positiva com esta dimensão.
No grupo de obesos pós-cirurgia, verificamos que as experiências de adversidade na
infância também são prevalentes neste grupo. Como podemos observar as experiências mais
relatadas pelos sujeitos são as experiências de negligência, sendo que mais de metade dos
sujeitos relata ter tido experiências de negligência física e experiências de negligência
emocional. Podemos, ainda, verificar que 1 em cada 3 sujeitos relata ter sido exposto a situações
de abuso de substâncias por parte de elementos da família. O cálculo da variável de Adversidade
Total deu origem a uma média de 2.20 sendo que dois é o valor de adversidade mais
frequentemente relatado. Estes sujeitos apresentam um índice geral de sintomas ligeiramente
superior ao da população geral. Não se verifica qualquer relação entre a adversidade e o índice
de morbilidade psicológica.
No grupo controlo, podemos observar que as experiências de adversidade na infância
são pouco frequentes. Ainda assim, salientam-se como experiências mais relatadas pelos
sujeitos a negligência física e emocional. O cálculo da Adversidade Total originou uma média
de 1.65 sendo que o valor de adversidade mais frequentemente relatado é um. Verificamos que
estes sujeitos apresentam um índice geral de sintomas muito semelhante ao da população geral.
Como podemos observar, estas experiências são bastante frequentes neste grupo, sendo
que mais de metade dos sujeitos relata experiências de abuso de substâncias, divórcio ou
separação parental, doença mental ou suicídio, prisão de um membro da família e negligência
física. Verificamos ainda que um número muito significativo de sujeitos relata ter tido
experiências de abuso emocional, abuso físico e negligência emocional. O cálculo da
Adversidade Total deu origem a uma média de 4.55 sendo que o valor de adversidade mais
frequentemente relatado é 5. Verificamos que este grupo apresenta um índice geral de sintomas
claramente superior ao da população geral e que este se relaciona de forma muito significativa
com a adversidade.
Estudantes Universitários
(n = 195)
Experiências adversas na infância N %
Abuso emocional 15 7.7
Abuso físico 5 2.6
Abuso sexual 3 1.6
Exposição a violência doméstica 7 4.1
Abuso de substâncias 7 4.1
Divórcio ou separação parental 7 4.1
Doença mental ou suicídio 26 13.3
Prisão de um membro da família 1 .5
Negligência física 33 17
Negligência emocional 48 24.6