Seixos Rolados

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SEIXOS ROLADOS

LUIZA HELENA TANNURI LAMEIRÃO


que segredo eles contam?
SEIXOS ROLADOS
que segredo eles contam?
Luiza Helena Tannuri Lameirão

São Paulo
2018
©Luiza Helena Tannuri Lameirão

REVISÃO
Marco Antônio Clímaco
Mariangela Motta de Lucca
Sandra Seabra Moreira

PROJETO GRÁFICO
Ricardo Tilkian

FOTOS
Beth Aragão
Cecilia Tilkian
Renata Alkmim
Ricardo Tilkian

Direito desta edição reservados à


Este livro é fruto de um sonho vivido às margens
João de Barro Editora Ltda de um lago sereno como um espelho, que escorre
Rua Barão do Triunfo, 88, sala 1612.
em fios d’água que ora se aproximam, ora se alongam,
04602-000 São Paulo-SP
Tel/fax: (11) 5681-4042 distanciando-se. Tornou-se realidade por meio
[email protected] do trabalho ao longo de décadas, com parceiros
www.editorajoaodebarro.com.br que ora se aproximaram, ora se distanciaram.

1ª edição A todos, minha gratidão.


2018

Ficha catalografica
Sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só.
Mas sonho que se sonha junto é realidade.

Eis o livro
A essência dos contos em um caminho de quatro passos

4
PREFÁCIO Esse livro nasceu de um sonho vindo da noite; Luiza o recordou logo ao despertar
e anotou em um pequeno pedaço de papel. Seu sonho mostrou uma sequência de
soas de diferentes grupos e que enaltecem qualidades, potencialidades e expressi-
vidades individuais. Luiza enobrece o encontro humano e vem, desta forma, promo-
doze contos com uma ordem clara e precisa que será apresentada aos leitores nes- vendo várias iniciativas e projetos sociais. Dentre muitos: alfabetização de adultos
se livro. Cada conto vem seguido de imagens e reflexões que podem nos despertar pelo método Paulo Freira (1969), fundação do Colégio Micael (1979), formação de
como um convite a percorrer nosso próprio caminho de percepções. Assim, o forma- educadores comunitários – Aliança pela Infância (2000) e de Organizações não Go-
to do livro inclui ainda um espaço para o leitor fazer suas observações e anotações. vernamentais (2007).Dentre muitos: ainda jovem, dedicou-se à alfabetização de
  adultos pelo método Paulo Freire (1969). Mais adiante, à fundação do Colégio Micael
Luiza tem uma intensa relação com as imagens. Como uma artista da palavra, (1979), formação de educadores comunitários na Associação Comunitária Monte Azul
em suas aulas e palestras, ela as utiliza tornando-as vivas e interativas. Sua rela- (2001), co-fundadora da Aliança pela Infância (2000). Concebeu o Programa Ilumina,
ção com as imagens é também de confiança; tanto para aquelas vindas da noite, do Instituto Olinto Marques, no qual vem, há onze anos, trabalhando na formação
nos sonhos; como para aquelas reveladas nos contos, na corrente da humanidade.  continuada de educadores de Organizações não Governamentais e creches públicas.

Assim surgiu a decisão de transformar o sonho em livro! Em todo o seu caminho de vida suas conquistas sempre fram generosamente com-
partilhadas, e dessa vez não foi diferete: Luiza nos convidou a participar da elabora-
Os seixos são pedras duras na sua essência. Rolados, trabalhados, são como rastros ção desse livro.  
de uma história que aconteceu com eles no tempo, no fluxo da água. Este livro, como
um seixo, pode ser lido e relido muitas vezes; lapidando e transformando os conteú- Durante quatro anos nos encontramos semanalmente; nos aproximamos desse pro-
dos, o leitor adulto e educador poderá obter informações preciosas. jeto como crianças, que brincando juntas, desvendam um novo universo. Foram en-
contros calorosos, repletos de emoções e descobertas. O quarteto até ganhou iden-
Como educadora e mãe, a autora convive há muitos anos com os contos. Esse tema tidade após a leitura de um dos contos – inspirada nesse ser que se enverga nas
vem sendo cultivado no tempo com dedicação e perseverança. Sua longa relação adversidades mas tem a força de manter sua verticalidade. Assim, carinhosamente
com a antroposofia e antropologia também lhe propiciaram um conhecimento am- nos batizamos de “Bambus”. 
plo do ser humano, através de uma constante e dedicada busca de autoconhecimen-
to e da observação interessada do mundo ao seu redor.  Foi uma honra participar do processo de elaboração desse livro ao lado de Luiza.

Vive em nós um sentimento de profunda gratidão por todo o caminho percorrido.


Nesse processo, Luiza se inspirou no método de observação de Goethe, criando um
Gratidão pela coragem e ousadia de inovar com esse método caminho que nos con-
caminho original de compreensão de contos em quatro passos.
duz ao exercício social, nos colocando diante de nós mesmos e do outro, e de toda a
Esse método desenvolvido pela autora vem sendo aplicado inúmeras vezes em cur- corrente da humanidade.
sos e formações. Neste livro, mais uma vez, ele é apresentado como um novo instru-
Por fim, agradecemos pela humildade da autora em possibilitar nossa participação
mento de aproximação dos contos.
com tanta abertura, onde compartilhamos dias de muita alegria e entusiasmo, onde
ouvimos e fomos ouvidas.
Após longo tempo narrando histórias para crianças e jovens, buscando compreen-
são maior acerca dos contos, Luiza desenvolveu esse caminho original, em quatro Que você, Luiza, possa ouvir o eco de todo este maravilhoso trabalho que você tem
passos, que vem sendo aplicado inúmeras vezes em cursos e formações. Nesse livro, construído! que vem construindo!
mais uma vez, ele é apresentado como um novo instrumento para o adulto vivenciar
e se aproximar dos conteúdos dos contos.
Para cada conteúdo ao qual ela se dedica é revelado um profundo interesse e amor Beth Aragão, Cecilia Tilkian e Renata Alkmim
pelo humano, traduzidos em propostas inovadoras e solidárias, agregadoras de pes-
SUMÁRIO

“... eu estava amarrada ao meu princípio. E tive uma mãe que


cantou só para mim. Esse embalo deu sombra à minha infância
18 e fez demorar o animal que havia em mim.” “De que suspende o beija-flor sua simetria deslumbrante?” 54

“e para te reconhecer
mudei de corpo
24 troquei de noites Dentro não há lugar apertado, não nos perdemos em excessos... 60
juntei crepúsculo e alvorada”

“O efêmero é o que de mais belo possui o eterno.”


30 Na porta, uma pequena abertura fresta permite olhar para dentro 68

“A poesia mora é nas entrelinhas


36 Mora no branco puro do papel” Quando os desejos se realizam, alguma sabedoria se efetiva.
76

“O que a memória ama fica eterno.”


42 Do lado de fora do portão, há um burrinho tocando alaúde... 84

48
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” O que pode mover tal panorama que me convida a permanecer? 92
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão e olha devagar para elas.
Seguem rolando os seixos que se colocam no caminho ou que são buscados no Imagens, imagens e imagens: é assim mesmo. E quanto mais essas imagens forem
lodo, ou nas encostas pedregosas... sempre acariciados, os seixos se alisam, se arre- coloridas, bem matizadas, bem presentes em detalhes, mais estarão fortes no fluxo
dondam. Das muitas nascentes em que rolam seixos, fontes de riachos que correm, da narrativa – começo, meio e fim. Os diálogos e as pequenas estrofes brilham como
espraiam, tornam-se rios, cachoeiras, lagos e chegam ao mar... tomaremos um úni- joias no fluxo da narrativa. São preciosidades que promovem, no caso dos diálogos,
co fluxo, na busca por integrar pureza e sabedoria. Um caminho entre tantos outros, contato direto com os personagens envolvidos na trama; nas singelas estrofes, vi-
com a certeza de que todos chegam ao mar. Espero encontrar os outros caminhos venciamos com maior intensidade o caráter poético da linguagem, que ao ser narra-
para me encantar, marolar, e soarmos juntos! da encanta o ser humano pela sonoridade, articulação, melodia e timbre.

Contar de boca a ouvido faz parte da vida. A musicalidade da linguagem é o que


levamos para o futuro por meio da memória, o que mais perdura em nosso íntimo.
Os contos, passados de geração em geração por meio da tradição oral, trazem na
Por meio da voz, podemos criar um ambiente amplo e íntimo, acolhedor e límpido,
linguagem a qualidade de seixos rolados, pois narrados dessa forma no decorrer
sagrado! A presença do calor também faz parte desse ambiente, e é tão decisiva
dos tempos tiveram a linguagem polida, arredondada. Também sofrem perdas ou
que, ao aquecer, vivencia-se o recolhimento, um entardecer na intimidade. E ao fi-
desgastes. Como podemos nomeá-los? Não poderíamos dizer apenas “tradicionais”,
nalizar a narrativa, amanhecemos como se acordássemos de um sonho pleno de
pois se assim fossem, como tantas outras convenções tradicionais, se tornariam
imagens sonoras.
anacrônicos. Entretanto, quantas nuances essas realidades arquetípicas nos tra-
zem! E por que será que essas histórias trazem realidades tão especiais, invisíveis, Quem ouve e acolhe os contos na intimidade não buscará seus conteúdos na rea-
mas ao mesmo tempo tão autênticas, que podemos vivenciá-las como perenes na lidade exterior, pois eles não são condizentes com ela, mas sim, caminhará pelas
alma humana? imagens que revelam o humano em processos autênticos. Os personagens eviden-
ciam as múltiplas facetas de um indivíduo humano, que constantemente vivencia
“...Tão antigo e tão novo como a luz de cada dia!”
seu desenvolvimento por meio da superação de desafios. Essa conquista o leva em
Essa milenar forma de comunicação ainda está viva entre nós, brasileiros, nos re- direção à autonomia. É uma trajetória individual, nela constatamos facilmente a so-
pentistas, contadores de casos e nos folhetos de cordel. Podemos também acessar lidão. Entretanto, ao permanecer na relação com um conto, chegamos a diferenciar
os conteúdos dessa rica linguagem por meio de lendas, ditos, parlendas e cantigas o que vive dentro. Para tal, o mundo interior exige pausa, silêncio e intimidade.
populares que foram amplamente registrados. Os ditos populares, por exemplo,
Intimidade para aninhar as preciosidades que nutrem e são iluminadas no amanhe-
preservam como pérolas o que essa linguagem conta de verdade imediata, com
cer da alma. O acesso fiel e sutil à delicada intimidade nos provê a força da presença.
amplitude de imagem. Como disse repetidas vezes Francis Edmunds, cada imagem
Assim, o espaço interior é visitado, ampliado e movido.
é uma revelação prévia da verdade e fala diretamente ao coração através dos sen-
timentos; posteriormente, a verdade dessa imagem revela-se como compreensão “O silêncio é mina, fonte de onde jorra a subversão capaz de ocupá-lo. Não se toca
plena, com clareza e lucidez. Sendo tão concisos, os ditos populares têm ainda a no silêncio, mas, por meio dele, adivinhamos o nosso destino”.
qualidade de expressar a imagem com precisão.
Bartolomeu de Queirós
“Quem espera sempre alcança, três vezes salve a esperança!”

Dito popular

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É curioso pensar que, em nossas buscas sempre tão individuais, encontramos tan- essas perguntas e onde elas habitam? Muitas vezes, são perguntas das quais eu
tos outros seres humanos que se mobilizam internamente e matizam em múlti- nem mesmo tinha consciência. Porque há coisas que permanecem ocultas, escon-
plas tonalidades o que é ser humano. A humanidade legou mais um tesouro que didas e podem voltar no futuro com maior intensidade do que as que ainda hoje
nos leva ao movimento. A necessidade do corpo humano de mover-se e nutrir-se são segredadas. Por mais paradoxal que soe, os contos também trazem as respostas
corresponde à necessidade da alma, em especial à da alma infantil, de nutrir-se e pelas quais almejávamos tanto. Conviver com as sombras, pressentir a luz, e não
mover-se no que flui dos Contos de fadas. Assim, a humanidade legou alimentos eliminá-las.
para os corações e almas jovens, e para os que jamais envelhecem. A alma bem nu-
Com as mais diversas sementes que a natureza oferece, observamos um bom exem-
trida na infância ampliará essa capacidade por toda a vida. As realidades entoadas
plo disso. Cada semente é uma promessa. A natureza entrega inúmeras sementes;
e narradas são como sementes, e em nosso íntimo serão plantas vivas, mais do que
todas elas poderão brotar, crescer, florescer e frutificar. Mas nem todas encontram
centenárias, perenes.
ambiente propício para percorrer esse processo. Assim sendo, o que foi feito da es-
“Pode a própria semente ser sua necessária terra?” perança que toda semente guarda? Ainda assim ela cumpre o seu papel: devolve
vitalidade para o solo, torna-se alimento imprescindível para seres humanos e ani-
João. Guimarães Rosa mais. Doa-se, e apesar de não ter feito seu caminho como espécie, abre espaço para
outras sementes germinarem.

Que sementes aninho em mim? Como despertá-las?


Quando as imagens dos contos aparecem nos sonhos, já estão em conversa com
alguma realidade íntima. É interessante: essa conversa conduz a reflexões próprias Os conteúdos arquetípicos guardados e transmitidos por meio das narrativas orais,
como se abríssemos uma porta da qual antes não tínhamos a chave. quando cultivados, ressoam no interior, muitas vezes, a partir de vivências indivi-
duais. Entretanto, tais vivências não são o único caminho; pois de uma imagem po-
O vínculo com o mundo das imagens traz a possibilidade de remover cortinas, vidra- demos dizer “não é apenas isso, é sempre muito mais do que isso”, como afirmou o
ças, janelas, portas ou mesmo couraças que criamos para o nosso mundo interno. grande Bachelard. É importantíssimo dialogar com as possíveis vertentes que emer-
O desvelar é lento e na direção contrária à da avalanche de impressões sensoriais girão, pois, havendo a possibilidade de que a imagem é maior, até ampliamos, rami-
que tende a nos devorar quando estamos desatentos. Às vezes, uma única imagem ficamos e detalhamos nossas vivências.
do conto já é capaz de romper estas camadas, pois evocam no íntimo o anseio pela
origem espiritual do ser humano. É como se conquistássemos a possibilidade de
flexibilizar a relação entre os mundos interior e exterior. As imagens autênticas se
“Vivendo, se aprende, mas o que se aprende, mais,
localizam na periferia da alma humana e quando visitadas, cultivadas, tornam-se
é só fazer outras maiores perguntas”.
mais elásticas, flexíveis. Ao refletir sobre essas imagens, elas se entrelaçam e for-
mam um manto de proteção da alma.
João. Guimarães Rosa

Misterioso e complexo, o mundo dos contos poderia levar a devaneios. Quando nos
aproximamos desse mundo, nos sentimos acolhidos, compreendidos ou, pelo me-
nos, atendidos? Cada conto responde uma pergunta que vive em mim. Quais são

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“... eu estava amarrada ao meu princípio. E tive uma mãe que
cantou só para mim. Esse embalo deu sombra à minha infância
e fez demorar o animal que havia em mim.”

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Quando uma mulher de certa tribo da África sabe que está grá- A tribo reconhece que a correção para as condutas antissociais não
vida, segue para a selva com outras mulheres, e juntas rezam e é castigo; é o amor e a lembrança de sua verdadeira identidade.
meditam até que apareça a canção da criança. Quando reconhecemos nossa própria canção deixamos de ter de-
sejos, ou necessidades de fazer algo que possa prejudicar as pes-
Elas sabem que cada alma tem sua própria vibração que expressa
soas. Seus amigos conhecem sua canção e a cantam quando você
sua particularidade, unicidade e propósito.
a esquece. Aqueles que o amam não podem ser enganados pelos
As mulheres entoam a canção e a cantam em voz alta. Depois
erros que comete ou as escuras imagens que mostra aos demais.
retornam à tribo e a ensinam a todos os demais. Quando nasce a
Eles se lembram da sua beleza quando você se sente feio; da sua
criança, a comunidade se junta e cantam-lhe sua canção.
integridade quando você está desanimado; sua inocência quando
Depois, quando a criança começa sua educação, as pessoas reú- se sente culpado e de seu propósito quando está indeciso.
nem-se e cantam sua canção.
Não necessito de uma garantia assinada para saber que o sangue
Quando chega à fase adulta, as pessoas juntam-se novamente e das minhas veias é da terra e sopra minha alma como o vento, re-
cantam. fresca meu coração como a chuva e limpa minha mente como a

Quando chega o momento do seu casamento, ela escuta sua canção. fumaça do fogo sagrado.

Finalmente quando está prestes a morrer, a família e os amigos apro-


ximam-se de sua cama, e como ocorreu na hora de seu nascimento,
cantam-lhe sua canção, a fim de acompanhá-la na transição.

Nesta tribo na África há outras ocasiões na qual os habitantes da-


quela região cantam a canção. Se, em algum momento durante sua
vida a pessoa comete um crime ou um ato social aberrante, é leva-
da ao centro do povoado e as pessoas da comunidade formam
um círculo ao seu redor. Então, cantam-lhe sua canção.

18
As percepções auditivas são básicas, desde
o batimento cardíaco de minha mãe, estando eu
ainda em seu ventre.
Elas se ampliam com as vozes dos familiares,
os sons da natureza, as músicas das quais gosto.
E uma pergunta pode me acompanhar:
qual é a minha música?
Será que ouço minha própria música sem o outro?
Será que é possível descobrir a música do outro
sem estar na floresta?
Como não consigo ouvir a música do outro,
ouço a minha própria voz.

É necessária uma aldeia inteira para educar uma criança


Provérbio africano

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