Seixos Rolados
Seixos Rolados
Seixos Rolados
São Paulo
2018
©Luiza Helena Tannuri Lameirão
REVISÃO
Marco Antônio Clímaco
Mariangela Motta de Lucca
Sandra Seabra Moreira
PROJETO GRÁFICO
Ricardo Tilkian
FOTOS
Beth Aragão
Cecilia Tilkian
Renata Alkmim
Ricardo Tilkian
Ficha catalografica
Sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só.
Mas sonho que se sonha junto é realidade.
Eis o livro
A essência dos contos em um caminho de quatro passos
4
PREFÁCIO Esse livro nasceu de um sonho vindo da noite; Luiza o recordou logo ao despertar
e anotou em um pequeno pedaço de papel. Seu sonho mostrou uma sequência de
soas de diferentes grupos e que enaltecem qualidades, potencialidades e expressi-
vidades individuais. Luiza enobrece o encontro humano e vem, desta forma, promo-
doze contos com uma ordem clara e precisa que será apresentada aos leitores nes- vendo várias iniciativas e projetos sociais. Dentre muitos: alfabetização de adultos
se livro. Cada conto vem seguido de imagens e reflexões que podem nos despertar pelo método Paulo Freira (1969), fundação do Colégio Micael (1979), formação de
como um convite a percorrer nosso próprio caminho de percepções. Assim, o forma- educadores comunitários – Aliança pela Infância (2000) e de Organizações não Go-
to do livro inclui ainda um espaço para o leitor fazer suas observações e anotações. vernamentais (2007).Dentre muitos: ainda jovem, dedicou-se à alfabetização de
adultos pelo método Paulo Freire (1969). Mais adiante, à fundação do Colégio Micael
Luiza tem uma intensa relação com as imagens. Como uma artista da palavra, (1979), formação de educadores comunitários na Associação Comunitária Monte Azul
em suas aulas e palestras, ela as utiliza tornando-as vivas e interativas. Sua rela- (2001), co-fundadora da Aliança pela Infância (2000). Concebeu o Programa Ilumina,
ção com as imagens é também de confiança; tanto para aquelas vindas da noite, do Instituto Olinto Marques, no qual vem, há onze anos, trabalhando na formação
nos sonhos; como para aquelas reveladas nos contos, na corrente da humanidade. continuada de educadores de Organizações não Governamentais e creches públicas.
Assim surgiu a decisão de transformar o sonho em livro! Em todo o seu caminho de vida suas conquistas sempre fram generosamente com-
partilhadas, e dessa vez não foi diferete: Luiza nos convidou a participar da elabora-
Os seixos são pedras duras na sua essência. Rolados, trabalhados, são como rastros ção desse livro.
de uma história que aconteceu com eles no tempo, no fluxo da água. Este livro, como
um seixo, pode ser lido e relido muitas vezes; lapidando e transformando os conteú- Durante quatro anos nos encontramos semanalmente; nos aproximamos desse pro-
dos, o leitor adulto e educador poderá obter informações preciosas. jeto como crianças, que brincando juntas, desvendam um novo universo. Foram en-
contros calorosos, repletos de emoções e descobertas. O quarteto até ganhou iden-
Como educadora e mãe, a autora convive há muitos anos com os contos. Esse tema tidade após a leitura de um dos contos – inspirada nesse ser que se enverga nas
vem sendo cultivado no tempo com dedicação e perseverança. Sua longa relação adversidades mas tem a força de manter sua verticalidade. Assim, carinhosamente
com a antroposofia e antropologia também lhe propiciaram um conhecimento am- nos batizamos de “Bambus”.
plo do ser humano, através de uma constante e dedicada busca de autoconhecimen-
to e da observação interessada do mundo ao seu redor. Foi uma honra participar do processo de elaboração desse livro ao lado de Luiza.
“e para te reconhecer
mudei de corpo
24 troquei de noites Dentro não há lugar apertado, não nos perdemos em excessos... 60
juntei crepúsculo e alvorada”
48
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” O que pode mover tal panorama que me convida a permanecer? 92
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão e olha devagar para elas.
Seguem rolando os seixos que se colocam no caminho ou que são buscados no Imagens, imagens e imagens: é assim mesmo. E quanto mais essas imagens forem
lodo, ou nas encostas pedregosas... sempre acariciados, os seixos se alisam, se arre- coloridas, bem matizadas, bem presentes em detalhes, mais estarão fortes no fluxo
dondam. Das muitas nascentes em que rolam seixos, fontes de riachos que correm, da narrativa – começo, meio e fim. Os diálogos e as pequenas estrofes brilham como
espraiam, tornam-se rios, cachoeiras, lagos e chegam ao mar... tomaremos um úni- joias no fluxo da narrativa. São preciosidades que promovem, no caso dos diálogos,
co fluxo, na busca por integrar pureza e sabedoria. Um caminho entre tantos outros, contato direto com os personagens envolvidos na trama; nas singelas estrofes, vi-
com a certeza de que todos chegam ao mar. Espero encontrar os outros caminhos venciamos com maior intensidade o caráter poético da linguagem, que ao ser narra-
para me encantar, marolar, e soarmos juntos! da encanta o ser humano pela sonoridade, articulação, melodia e timbre.
Dito popular
12 13
É curioso pensar que, em nossas buscas sempre tão individuais, encontramos tan- essas perguntas e onde elas habitam? Muitas vezes, são perguntas das quais eu
tos outros seres humanos que se mobilizam internamente e matizam em múlti- nem mesmo tinha consciência. Porque há coisas que permanecem ocultas, escon-
plas tonalidades o que é ser humano. A humanidade legou mais um tesouro que didas e podem voltar no futuro com maior intensidade do que as que ainda hoje
nos leva ao movimento. A necessidade do corpo humano de mover-se e nutrir-se são segredadas. Por mais paradoxal que soe, os contos também trazem as respostas
corresponde à necessidade da alma, em especial à da alma infantil, de nutrir-se e pelas quais almejávamos tanto. Conviver com as sombras, pressentir a luz, e não
mover-se no que flui dos Contos de fadas. Assim, a humanidade legou alimentos eliminá-las.
para os corações e almas jovens, e para os que jamais envelhecem. A alma bem nu-
Com as mais diversas sementes que a natureza oferece, observamos um bom exem-
trida na infância ampliará essa capacidade por toda a vida. As realidades entoadas
plo disso. Cada semente é uma promessa. A natureza entrega inúmeras sementes;
e narradas são como sementes, e em nosso íntimo serão plantas vivas, mais do que
todas elas poderão brotar, crescer, florescer e frutificar. Mas nem todas encontram
centenárias, perenes.
ambiente propício para percorrer esse processo. Assim sendo, o que foi feito da es-
“Pode a própria semente ser sua necessária terra?” perança que toda semente guarda? Ainda assim ela cumpre o seu papel: devolve
vitalidade para o solo, torna-se alimento imprescindível para seres humanos e ani-
João. Guimarães Rosa mais. Doa-se, e apesar de não ter feito seu caminho como espécie, abre espaço para
outras sementes germinarem.
Misterioso e complexo, o mundo dos contos poderia levar a devaneios. Quando nos
aproximamos desse mundo, nos sentimos acolhidos, compreendidos ou, pelo me-
nos, atendidos? Cada conto responde uma pergunta que vive em mim. Quais são
14 15
“... eu estava amarrada ao meu princípio. E tive uma mãe que
cantou só para mim. Esse embalo deu sombra à minha infância
e fez demorar o animal que havia em mim.”
16 17
Quando uma mulher de certa tribo da África sabe que está grá- A tribo reconhece que a correção para as condutas antissociais não
vida, segue para a selva com outras mulheres, e juntas rezam e é castigo; é o amor e a lembrança de sua verdadeira identidade.
meditam até que apareça a canção da criança. Quando reconhecemos nossa própria canção deixamos de ter de-
sejos, ou necessidades de fazer algo que possa prejudicar as pes-
Elas sabem que cada alma tem sua própria vibração que expressa
soas. Seus amigos conhecem sua canção e a cantam quando você
sua particularidade, unicidade e propósito.
a esquece. Aqueles que o amam não podem ser enganados pelos
As mulheres entoam a canção e a cantam em voz alta. Depois
erros que comete ou as escuras imagens que mostra aos demais.
retornam à tribo e a ensinam a todos os demais. Quando nasce a
Eles se lembram da sua beleza quando você se sente feio; da sua
criança, a comunidade se junta e cantam-lhe sua canção.
integridade quando você está desanimado; sua inocência quando
Depois, quando a criança começa sua educação, as pessoas reú- se sente culpado e de seu propósito quando está indeciso.
nem-se e cantam sua canção.
Não necessito de uma garantia assinada para saber que o sangue
Quando chega à fase adulta, as pessoas juntam-se novamente e das minhas veias é da terra e sopra minha alma como o vento, re-
cantam. fresca meu coração como a chuva e limpa minha mente como a
Quando chega o momento do seu casamento, ela escuta sua canção. fumaça do fogo sagrado.
18
As percepções auditivas são básicas, desde
o batimento cardíaco de minha mãe, estando eu
ainda em seu ventre.
Elas se ampliam com as vozes dos familiares,
os sons da natureza, as músicas das quais gosto.
E uma pergunta pode me acompanhar:
qual é a minha música?
Será que ouço minha própria música sem o outro?
Será que é possível descobrir a música do outro
sem estar na floresta?
Como não consigo ouvir a música do outro,
ouço a minha própria voz.
20 21