Hamlet de Shakespeare e o Mundo Como Palco - Karnal
Hamlet de Shakespeare e o Mundo Como Palco - Karnal
Hamlet de Shakespeare e o Mundo Como Palco - Karnal
1. Graduado em História pela Unisinos e doutor em História Social pela USP. Atualmente é professor da Unicamp,
membro do corpo editorial da Revista Brasileira de História e da Revista Poder & Cultura.
mexido porque existe uma maldição, quem tocar cortesão chamado Polônio, do seu filho Laerte – e
seu túmulo será amaldiçoado. E dizem que sobre ele também é o pai de Ofélia – e trata, enfim, de
o corpo dele está a sua trigésima oitava peça amigos, como Horácio, e de pessoas ao redor da
inédita. Então, há um mistério no ar. corte, como Rosencrantz e Guildenstern.
A peça que nós vamos tratar é um dos livros A temática clássica de Shakespeare e de toda
mais importantes da nossa tradição literária. tragédia grega é chamada hybris, o desequilíbrio,
É uma peça do modelo de vingança, que ou seja, um acontecimento que detona um
chamamos típica comédia espanhola, apesar da período catártico de transformação. É Édipo
origem dessa peça ser um texto dinamarquês descobrindo que se casou com a mãe e matou
de Saxo Grammaticus4 sobre o príncipe Hamlet. o pai; é Antígone querendo enterrar o irmão, é
Passa-se na Dinamarca, país que no passado Medeia descobrindo que seu marido a trocou por
havia invadido a Inglaterra, em torno de um uma esposa mais nova.5 E Shakespeare trabalha
príncipe, Hamlet, que volta dos seus estudos, com o mesmo princípio da tragédia grega: há uma
junto ao seu tio Cláudio que acaba de casar com hybris, um desequilíbrio: um rei foi morto, há algo
sua mãe viúva, Gertrudes, recém celebrando o estranho nisso, outro assumiu o poder de forma
casamento. Fala ainda sobre o espírito do seu pai, ilegítima e a ordem tem de ser restaurada. Poder,
também chamado Hamlet. A peça trata de sua legitimidade, dever e vingança, Hamlet trata muito
namorada em uma situação um pouco ambígua, da questão política, central em Shakespeare, e
que é Ofélia. As duas personagens femininas, nós a lemos por um diapasão existencial, porque
Gertrudes e Ofélia, são relativamente fracas temos outra leitura.
nesta peça, ao contrário de outras. Trata de um Hamlet é uma peça clássica do ponto de vista
pessoal. É provável, digo a vocês, que seja a peça
Gravura de William Shakespeare, produzida por Martin Droeshout, para capa de edição das Obras Completas do dramaturgo,
publicada em Londres, no ano de 1623.
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que eu mais tenha lido a minha vida inteira. Há mil palavras na língua inglesa, duas mil palavras
algo a aprender? Vou dar um exemplo pessoal. A em inglês são, pela primeira vez, localizadas em
partir do momento em que eu perdi meu pai, a Shakespeare. Seus temas: o amor – as pessoas
orfandade de Hamlet teve outro significado para interpretam que Romeu e Julieta é sobre amor,
mim, pela primeira vez eu senti o que significa a na verdade, não é, mas assim foi lida –; o ciúmes
perda de alguém muito próximo. A perda do meu em Otelo; o poder em Ricardo III e Ricardo II; e a
pai me fez ler Hamlet com outro olhar. Isso é uma velhice em Rei Lear. A frase que eu mais gosto no
obra clássica. Ela é uma companhia permanente. Rei Lear é quando ele completa noventa anos, e faz
Uma companhia que eu posso reler quantas vezes uma bobagem sem tamanho, e seu bobo comenta
eu quiser e reencontro algo, isso é a definição de com ele: “Pobre Lear, que ficou velho antes de
uma obra clássica: ela sempre me traz algo de ficar sábio.”6 É a pior coisa que pode acontecer, já
novo. que a velhice é inevitável e a sabedoria um ganho.
A ideia da companhia de um livro é uma das Porque senão você será apenas um velho bobo, e
mais agradáveis que a nossa cultura inventou. é o que o Bobo está dizendo neste caso.
Volto a insistir que, alguém que não lê, terá uma
infância muito solitária, uma juventude solitária
e uma velhice muito solitária, porque a nossa
“Poder, legitimidade, dever e
grande companhia são as pessoas, mas elas vingança, Hamlet trata muito
não estão sempre disponíveis. E os livros, como da questão política, central em
os de Shakespeare, nos fazem viajar de uma
Shakespeare, e nós a lemos por
forma extraordinária, porque eles unem o alto e
baixo, o vulgar e sublime. Ao contrário de outras um diapasão existencial, porque
obras, são universais, falam da liberdade do ser temos outra leitura.”
humano, falam do grau extremo da consciência
das pessoas. Um homem que escreveu na chamada Idade
E trazem os defeitos de uma época que hoje de Ouro da literatura inglesa, na Era Elisabetana.
nós consideramos errados, como a misoginia Elizabeth, a terceira filha sobrevivente do Rei
shakespeariana, sua desconfiança das mulheres. Henrique VIII, a filha de Ana Bolena, que sobe ao
Em Hamlet ele diz: “Fragilidade, teu nome é trono em 1558 e morre em 1603. E Shakespeare
mulher (2004, p. 18).” Fala do conservadorismo enfrentou bem a transição para a Era Stuart. Tanto
político shakespeariano; ele odeia povo, chusma, que, quando ele representou Hamlet para o rei e
ralé. Shakespeare gosta de reis, aristocratas. sua rainha – Ana da Dinamarca, a mulher do Rei
Shakespeare gosta de gente que seja nobre como James VI da Escócia e I da Inglaterra –, ele cortou
Hamlet. Fala também do seu antijudaísmo no algumas frases da peça, como, por exemplo,
Mercador de Veneza. Shakespeare, como quase que os dinamarqueses eram bêbados ou outras
todo mundo do século XVI, tem sentimentos coisas, porque a rainha era dinamarquesa.
negativos para com o judaísmo, apesar dele nunca Tudo isso para situá-los de uma época em que a
ter visto um judeu na vida, porque da Inglaterra Inglaterra está se formando como nação. E ainda
foram expulsos e só voltariam no século XVII. é apenas Inglaterra, não há Reino Unido, não há
Shakespeare também tem um defeito estrutural, ainda a união com a Escócia, com o País de Gales,
é um homem fraco para conceber enredos. Das com a chamada Irlanda do Norte. É um momento
37 peças – existe um debate sobre uma trigésima que a Espanha tentou invadir a Inglaterra. Maior
oitava –, 154 sonetos e dois poemas épicos, potência mundial em 1588, a Invencível Armada
Shakespeare criou o enredo original apenas
de uma, todas as outras ele adaptou, chupou,
copiou. Shakespeare é um homem que copia o 6. Na tradução de Millôr Fernandes: “Bobo – Tu não devias ter ficado velho
antes de ter ficado sábio.” SHAKESPEARE, William. Rei Lear. Porto Alegre:
enredo e dá a ele uma vida enorme. Criou duas L&PM, 2015, p. 40.
tentou tomar a Inglaterra e não conseguiu. Esse vez em que estamos diante de um homem que
é um momento de exaltação nacionalista, de um toma decisões a partir de lógicas e estratégias.
público sendo formado, de um teatro diferente O príncipe Hamlet é a primeira personagem
deste nosso. que vive O Príncipe, de Maquiavel8, é a primeira
Nós temos um palco italiano, ou seja, público personagem objetiva. A crença no poder do “Eu”,
e palco, os ingleses têm o palco elisabetano. Um da ação e da liberdade. A glória e a tragédia do
palco que vai até o meio do público, o público nosso tempo são exclusivamente a nossa crença
interage, joga coisas nos atores. Por isso que profunda no “Eu”, e Hamlet foi o primeiro ser que
as peças começam com fantasmas, como em proclamou o “Eu” como elemento fundante do
Macbeth ou como em Hamlet, para o público mundo, ou seja, como se dissesse: “Que pena que
se calar. A aparição de um fantasma assusta a eu tenha de consertar a Dinamarca”. Este “Eu”,
plateia e ela fica em silêncio. É uma estratégia que depois vai fluir nas redes sociais, sua origem
shakespeariana começar a peça com um dança, é o príncipe.
com uma tempestade, com um raio ou com as três O príncipe Hamlet diz isso tendo certeza que ele
bruxas em Macbeth. Então, tudo isso faz parte de é agente de sua história. Quando ele arranja uma
um universo que não daria uma aula, mas daria peça dentro da peça, quando ele se finge de louco,
dezenas de aulas sobre Shakespeare. quando ele engana as pessoas, quando ele aceita
Hamlet é uma personagem importantíssima da ou diz não às questões, é a primeira vez que o “Eu”
definição do homem moderno, como diz Harold é soberano. E essa é a grande modernidade. O
Bloom7, o primeiro grande homem moderno é o antropocentrismo moderno é a frase ambígua do
príncipe Hamlet. Mas o meu foco não é analisar príncipe ao dizer, citando fundos filósofos gregos:
Shakespeare ou seu verso, o famoso pentâmetro “Que obra de arte é o homem!”9 Ainda que ele
iâmbico, mas é analisar especificamente dez diga, logo em seguida, que para ele não seja nada.
questões tópicas daquilo proposto para este O primeiro passo do príncipe, para nós, é sobre o
módulo, que é: Os Clássicos e o Cotidiano. O que poder do “Eu”, o poder que o príncipe proclama
tem Hamlet para me dizer hoje, neste mundo de ao tomar uma decisão clara de não se matar no
Facebook, neste mundo de internet? O que Hamlet monólogo “Ser ou não ser” – há intérpretes que
diria ao publicar foto no Instagram? Qual seria a acham que o monólogo não é sobre o suicídio,
relação do príncipe com este mundo? Qual seria apesar de ele citar em dois versos o suicídio –,
a relação do príncipe com o fundamentalismo em é a primeira vez que alguém diz: “Eu sou senhor
ascensão? O que diria o príncipe Hamlet sobre do meu destino.”10 Príncipe Hamlet é a primeira
tudo isso? pessoa, no alto teatro moderno contemporâneo,
E eu destaquei dez perguntas ao príncipe, que que afirma o seu “Eu”, como princípio instaurador
eu acho que ele responderá pela minha boca e, da ordem, sem nenhuma metafísica.
talvez, eu não seja fiel a ele, mas ele também Hamlet é a primeira personagem da grande
entenderia isso. O príncipe Hamlet é o primeiro obra canônica a proclamar o fim da redenção
homem moderno, é o primeiro homem em que pelo amor. Ofélia não é a personagem importante
a metafísica não tem poder, apesar de a peça para ele, ele não se importa em matar o pai da sua
envolver três aparições de um fantasma, discursos ex-namorada, não se importa em matar o irmão
religiosos, como sobre o enterro de Ofélia ser lícito da sua recém-falecida namorada, e não manifesta
ou não, ou sobre o príncipe matar ou não o Rei uma culpa intensa por ela ter ficado louca, e se
Cláudio com medo de que o matando ele vá para
o céu, já que estava rezando. Mas é a primeira
8. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.
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Desenho de John Austen para edição ilustrada de Hamlet, publicada por Selwyn and Blount em Londres, no ano
de 1922.
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contemporânea, Hamlet começa a dizer que a “Uma companhia que eu posso
etiqueta não tem nenhum valor, que o importante
reler quantas vezes eu quiser e
é o que você é e não o que você aparenta.
Outro elemento importante, que eu chamei de reencontro algo, isso é a definição
quarto: Hamlet é o antifacebook. Hamlet não só de uma obra clássica: ela sempre
não é feliz como não faz questão de parecer feliz. me traz algo de novo.”
Hamlet nada publica ao estilo: “Almocei. Está sol
aqui.”, e jamais diz “Kkk...” Hamlet é melancólico. Inglaterra, ninguém notará a diferença.” 13 É uma
Hamlet se veste de preto e anuncia que o preto piada de 1600.
é a cor que melhor reflete o estado de sua alma. Quando os coveiros mostram os crânios e
E quando dizem que a sua melancolia é uma Hamlet encontra o bobo da corte Yorick, que o
doença, porque, no século XVI, a melancolia era colocara nas pernas, ele diz: “Mais um! Talvez, o
um humor, uma bile que entra nas pessoas, ele crânio de um advogado. Onde foram parar seus
diz no ato dois, na segunda cena: “Eu podia ser sofismas, suas cavilações, seus mandatos e
livre em uma casca de noz, não importa onde eu chicanas? Por que permite agora que um patife
esteja, o importante é a minha consciência.”12 estúpido lhe arrebente a caveira com essa pá
Hamlet tem uma consciência brutal, e quem imunda e não o denuncia por lesões corporais?
tem consciência brutal não sorri o tempo todo, No seu tempo esse sujeito talvez tenha sido um
não publica o tempo todo, não bate foto de tudo grande comprador de terras, com suas escrituras,
e não compartilha cada micro movimento da sua fianças, termos, hipotecas, retomadas de posse.
vida medíocre para que faça o mundo curtir e os Será isso a retomada final das nossas posses? O
outros respondam: “Kkk...” Hamlet não pertence à termo de nossos termos, será termos a caveira
geração que acha que ser feliz é uma obrigação. nesses termos?”14 Ou seja, ele está dizendo aquilo
Hamlet certamente acharia que os otimistas que a Igreja diz toda a Idade Média, mostrando
são mal informados. Hamlet anuncia que, tendo sua ligação com uma tradição religiosa e também
consciência do mundo, é muito difícil a ele viver estoica.
feliz. Apesar dele cultivar valores como a amizade. E as vanitas nos lembram da brevidade da
Além de ser melancólico, triste, além de ser vida, se a vida é breve, se a vida é passageira,
uma personagem que não tem a necessidade se a vida não tem um sentido imediato, se não
de demonstrar felicidade, Hamlet trabalha um se tem certeza do conceito metafísico, de que
tema muito clássico, que é a vanitas, ou seja, a serve viver? É muito curioso e eu coloco isso
vaidade; diz a bíblia que é a vaidade das vaidades. como sexto elemento tirado do Hamlet, que na
Este é um tema medieval clássico, que ressuscita peça talvez esteja o primeiro núcleo da autoajuda
na Idade Moderna. A cena mais impressionante contemporânea.
sobre a vanitas é quando Hamlet enfrenta a única Polônio, o homem vazio da retórica que
personagem de uma peça de cinco atos que ninguém suportava o jeito empolado, dá a seus
o encara de igual para igual, que é o coveiro. O filhos conselhos mais práticos e diretos para
coveiro é a única personagem que não cede a sua felicidade. Quando Laertes volta para estudar em
argumentação e faz piadas com ele. Uma piada Paris, Polônio lhe dá os seguintes conselhos, que
que faz muito sentido em 1600: “Mandaram o eu vou sintetizar da tradução do Millôr Fernandes:
jovem príncipe Hamlet para Inglaterra.”, e Hamlet
pergunta: “Por quê?”, “Porque enlouqueceu, e, na
13. Na tradução de Millôr Fernandes: “Primeiro coveiro – [...] o príncipe
Hamlet, o que ficou maluco e foi mandado pra Inglaterra. / Hamlet – Ó,
diabo, por que foi mandado pra Inglaterra? / Primeiro coveiro – Ué, porque
ficou maluco. Diz que lá recupera o juízo; e, se não recuperar, lá não
tem importância. / Hamlet – Por quê? / Primeiro coveiro – Na Inglaterra
12. Na tradução de Millôr Fernandes: “Hamlet – Oh, Deus, eu poderia viver ninguém repara nele, aquilo lá é tudo doido.” SHAKESPEARE, William.
recluso numa casca de noz e me achar o rei do espaço infinito se não Hamlet. Porto Alegre: L&PM, 1997, p. 121.
tivesse maus sonhos.” SHAKESPEARE, William. Hamlet. Porto Alegre:
L&PM, 1997, p. 50. 14. SHAKESPEARE, William. Hamlet. Porto Alegre: L&PM, 1997, p. 120.
“Não expressar tudo que se pensa, ouvir a todos, usando uma linguagem técnica, o signo do
mas falar com poucos. Ser amistoso, mas nunca signo. O mundo de Hamlet passa a ser mais real,
ser vulgar. Valorizar amigos testados, mas não porque o mundo da peça é mais irreal. Colocar
oferecer a amizade a cada um que aparecer a sua uma peça dentro da peça, um filme dentro de um
frente. Evitar qualquer briga, mas se for obrigado filme, colocar esse tipo de representação é algo
a entrar em uma, que seus inimigos o temam. que reflete uma consciência de dois planos, um
Usar roupas de acordo com a sua renda, sem plano que se aproxima mais do real e um plano
nunca ser extravagante. Não emprestar dinheiro a que pretende ser mais interpretativo. Há uma
amigos, para não perder amigos e dinheiro. E, por consciência terrível nele, que é sobre a política.
fim, ser fiel a ti mesmo, e jamais serás falso com A peça, como tudo em Shakespeare, tem um
ninguém.”15 Conselhos absolutamente lógicos, viés político. A frase mais citada da política
coerentes. É a primeira vez que a sabedoria é shakespeariana é quando o príncipe diz: “Há algo
sintetizada em alguns versos. É a primeira vez de podre no Reino da Dinamarca.”18
que alguém diz o princípio que no futuro se Hamlet sente que a corte está tomada pela
transformará na gênese da autoajuda: “Seja fiel corrupção e ele não sabe bem o que fazer.
a ti, que você será fiel a todas as pessoas.”16 Hamlet não pode se apoiar no tio, não pode se
Essa é uma ideia muito interessante, porque apoiar na mãe, não sente firmeza em Polônio,
enunciada pelo homem mais estúpido da Terra, e são mandados a ele dois amigos que são, na
que é Polônio, ou seja, ouçam seus conselhos, verdade, alcaguetes, Rosencrantz e Guildenstern.
mas não sigam sua prática. Ofélia tinha acabado Hamlet tem de dizer: “Há algo de podre no Reino
de dizer ao irmão algo parecido; quando o irmão da Dinamarca.” Diz o grande Harold Bloom, um
lhe aconselha virtude, ela diz: “Mas não siga o dos maiores especialistas em Shakespeare, que
exemplo de alguns pastores, que aconselham foi a consciência que o envelheceu, a consciência
virtude aos fiéis, mas seguem outro caminho.”17 catastrófica da mazela espiritual que assola o
Ofélia já o havia advertido, porque, naquela época mundo que ele internalizou e que não quer ser
terrível, alguns pastores diziam uma coisa na chamada a curar, tão somente porque a verdadeira
igreja e faziam outra... Era um momento muito causa da sua versatilidade é o impulso rumo à
difícil o fim do século XVI! liberdade. Faz séculos, os críticos concordam que
Há um elemento fabuloso dentro de Hamlet, o maior apelo de Hamlet é o paradoxo. Nenhum
que nos remete a um recurso que será muito outro personagem da alta tragédia parece tão
usado, inclusive em novelas futuras: uma peça livre, mas o mal de Elsinor é o mal de todo tempo
dentro da peça. A consciência de uma realidade e lugar, todo Estado tem algo de podre, e os que
têm sensibilidade semelhante à de Hamlet, cedo
15. Na tradução de Millôr Fernandes: “Polônio – [...] Não dá voz ao que ou tarde, vão se rebelar.
pensares, nem transforma em ação um pensamento tolo. / Amistoso, Há uma categoria de pessoas dando
sim, jamais vulgar. / Os amigos que tenhas, já postos à prova, / Prende-os
na tua alma com grampos de aço; / Mas não caleja a mão festejando conselhos políticos hamletianos, que são as
qualquer galinho implume / Mal saído do ovo. Procura não entrar em
nenhuma briga; / Mas, entrando, encurrala o medo no inimigo, / Presta pessoas felizes. Essas pessoas felizes, no Brasil,
ouvido a muitos, tua voz a poucos. / Acolhe a opinião de todos – mas você seriam aquelas que acreditam profundamente
decide./ Usa roupas tão caras quanto tua bolsa permitir, / Mas nada de
extravagâncias – ricas, mas não pomposas. / O hábito revela o homem, / que a corrupção está a cargo de um partido. As
E, na França, as pessoas de poder ou posição / Se mostram distintas e ge-
nerosas pelas roupas que vestem. / Não empreste nem peça emprestado: pessoas que acham que a corrupção está a cargo
/ Quem empresta perde o amigo e o dinheiro; / Quem pede emprestado de um partido e que bastaria tirar esse partido do
já perdeu o controle de sua economia. / E, sobretudo, isto: sê fiel a ti mes-
mo. / Jamais serás falso pra ninguém.” SHAKESPEARE, William. Hamlet. poder para que o reino da justiça e da igualdade
Porto Alegre: L&PM, 1997, p. 24-25.
17. Na tradução de Millôr Fernandes: “Ofélia – [...] Não faz como certos 18. Na tradução de MIllôr Fernandes: “Marcelo – “Há algo de podre no
pastores impostores, / Que nos mostram um caminho pro céu, íngreme e Estado da Dinamarca.” SHAKESPEARE, William. Hamlet. Porto Alegre:
escarpado, / E vão eles, dissolutos e insaciáveis libertinos, / L&PM, 1997, p. 30.
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Desenho de John Austen para edição ilustrada de Hamlet, publicada por Selwyn and Blount em Londres, no ano
de 1922. A imagem refere-se à primeira cena do segundo ato.
se instalasse no país são pessoas muito felizes, covardes, porque quanto mais eu envelheço – e
são pessoas que substituíram contos, como Hamlet envelhece muito nos atos finais – mais eu
do Papai Noel e do Coelhinho da Páscoa, pelo tenho medo; quanto mais eu tenho medo, mais
conto da corrupção isolada e, quando eu digo eu vou tendo consciência do mundo. Ou seja,
isso, não estou dizendo que um ou outro partido todo Estado tem algo de podre, e quando eu sei
não seja notável pela corrupção, estou dizendo que a mudança de um governo não é a mudança
sobre aquela corrupção que Hamlet nota, que de uma estrutura, eu não vou ter a expectativa,
começa no leito da sua mãe na Dinamarca. A a alegria daquela nova posse no dia primeiro de
“microfísica do poder”19. A corrupção começa ao janeiro com o novo partido que vai restaurar a
se andar pelo acostamento; começa no recibo de ética em um país enfim transformado.
dentista comprado para entregar no imposto de “Ser ou não ser?”20, pergunta o príncipe no
renda; a corrupção continua no atestado médico nono item que eu destaco. Qual é o sentido de
falso entregue pelo pai para justificar o filho que “ser ou não ser”? Porque “ser ou não ser” pode ser
apenas vagabundeou para a prova; continua traduzido, como fazem alguns tradutores recentes,
com o colega que, na aula de Ética Política em como “existir ou não existir”. Cada época faz uma
Filosofia, assina a lista pelo colega; continua em leitura. O próprio Hamlet dá uma pista, ao dizer
todos os lugares e, apenas como a ponta de um a Horácio que ele entregaria de bom grado seu
iceberg, como último elemento da corrupção, ela coração a um homem que fosse senhor das suas
chega a um partido, a um governo e a um poder. emoções, porque uma pessoa passional é uma
pessoa perigosa. Domínio de si; a pessoa que tem
domínio de si pensa. O príncipe é uma pessoa que
“Há uma categoria de pessoas jamais se ofenderá. Como eu já disse várias vezes,
dando conselhos políticos eu só posso me ofender se não me conhecer. Se
hamletianos, que são as pessoas alguém me insulta falando sobre uma questão
pessoal, só há duas hipóteses: a pessoa está
felizes. Essas pessoas felizes,
dizendo a verdade ou ela está mentindo.
no Brasil, seriam aquelas que Ou seja, o estoicismo de Hamlet é o estoicismo
acreditam profundamente que de quem se conhece. Quem pode ofendê-lo?
a corrupção está a cargo de um Quando Polônio pergunta: “O que o senhor está
lendo?”, ele diz: “Palavras, palavras, palavras...”21, e
partido.” Polônio vai começar a perceber que, debochando
dele, Hamlet não perdeu a razão, mas está em
Se a corrupção fosse de um grupo, eu seria uma outro tipo de sabedoria. Um homem que domina
pessoa profundamente feliz, seria uma pessoa a si é um homem a quem Hamlet entregaria seu
absolutamente tranquila porque, a partir desse coração. A consciência moderna nos leva ao
momento, eu teria consciência que, eliminando grande mal da modernidade que ninguém resolveu
aquelas pessoas que são do mal, eu estaria livre. e Hamlet apenas destampou essa pequena caixa
Hamlet, na sua consciência, vai percebendo de Pandora: a solidão estrutural da consciência
que o mal vai por todos os lados, inclusive nele, moderna. Somos seres solitários, sempre fomos,
e que a consciência, como ele diz no seu mais mas a consciência coletivista medieval dava
famoso monólogo – Hamlet é responsável por uma sensação de uma cristandade no Ocidente,
quase metade das falas da peça – nos torna
20. SHAKESPEARE, William. Hamlet. Porto Alegre: L&PM, 1997, p. 63.
19. Conceito trabalhado por Michael Foucalt, que também dá nome à 21. Na tradução de Millôr Fernandes: “Polônio – O que é que está lendo,
coletânea de textos do autor organizada Roberto Machado: Microfísica do meu Príncipe? / Hamlet – Palavras, palavras, palavras.” SHAKESPEARE,
Poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. William. Hamlet. Porto Alegre: L&PM, 1997, p. 48.
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de uma unidade, de um Deus que por todos amigo Horácio – Hamlet diz sua última frase:
zelava, de uma sociedade igual religiosamente. “O resto é silêncio (2004, p. 139).” Porque depois
A modernidade trouxe a diversidade religiosa e a de ter dito tudo que é possível dizer, Hamlet não
diversidade política. precisa dizer mais nada, porque agora o resto é
Hamlet chega à consciência de que ele está silêncio. O que Hamlet parece dialogar conosco
inevitavelmente isolado dentro da sua consciência é como se as dores que nós inventamos (dores
e a necessidade do mundo de nos oferecer coisas financeiras, dores físicas, dores de problemas
novas, porque eu não tenho nada a interagir com familiares) fossem o disfarce de uma grande dor
o mundo. Por que é que o príncipe Hamlet lê maior, a dor que nós não conseguimos nominar,
apenas um livro em toda peça? E por que é que por isso estabelecemos dores laterais, por isso
temos que ver Velozes e Furiosos 75, 86? Porque, estabelecemos que eu esteja bem ou não naquele
na verdade, eu não vi nenhum e não tendo visto dia.
nenhum, eu preciso que ele se repita. Como eu Hamlet diz exatamente que essa dor nasce
não tenho, de fato, amigos, eu tenho três mil no do fato de que todos naquela peça, em quase
Face. Como eu não tenho uma vida interessante, 4.500 versos, estão dizendo a ele o que ele deve
eu fotografo tudo e compartilho com todos. A ou não ouvir e não exatamente o que as coisas
minha solidão se insinua de tal forma, ela é tão são. Hamlet, objetivamente, está olhando para
estrutural, que eu tenho que fazer com que os o mundo e perguntando quando haverá alguém
outros me digam aquilo que eu desconfio, que a que vai lhe dizer o que as coisas são; quando
minha vida é uma vida que vale a pena ser vivida alguém dirá o que deve ser; quando parará de
através da observação dos outros. Isso não é sinal colocar fantasias; de beber muito (ele reclama da
de um narciso exatamente fraco, mas é sinal de bebedeira da corte); de disfarçar sua dor; quando
um narciso cada vez mais isolado em si, sem alguém começará a estar presente naquilo
comunicação com o mundo, sem ouvir mais a que fala; quando as pessoas começarão a ser e
ninguém. deixarão de não ser. Essa é uma pergunta muito
A solidão individual, a dois ou a três é a norma dura de ser respondida, e, como ela é muito dura,
de todas as pessoas. Celebramos essa variedade a maior parte de nós prefere não respondê-la.
de coisas porque exatamente nós temos cada vez
mais dificuldade em estabelecer algo significativo
e orgânico. O príncipe se sente mal na corte “Hamlet é o antifacebook. Hamlet
de Elsinor, porque ninguém em Elsinor diz a não só não é feliz como não faz
verdade. Polônio, seu tio Cláudio, sua mãe, sua questão de parecer feliz.”
ex-namorada, seus falsos amigos, Rosencrantz
e Guildenstern, todos dizem o que deve ser
dito, todos dizem o que é usual, e ninguém está Como nós falamos muito, é provável que nós
presente naquilo que fala. não tenhamos mais nada a dizer, e não tendo
O príncipe é extraordinariamente consciente nada a dizer, eu preencho esse vazio insuportável
e, sendo consciente, o príncipe vai pensar com falas constantes. Hamlet nos convida a olhar
seguidamente: o que eu faço de fato com a minha para uma caveira – essa é uma cena que não está
vida? E como viver uma vida que seja orgânica, prevista na peça, mas assim foi interpretada desde
se todos os valores estão esgarçados? Depois o século XVII. Como ele faz o seu monólogo olhando
de falar por milhares e milhares de palavras, para uma caveira e pergunta decididamente,
quando ele morre languidamente em uma cena diante da morte inevitável, quem ele é de verdade
trágica – morrem oito pessoas na peça Hamlet quando os outros que ele acha que o julgam pelo
e Hamlet é o ultimo a falecer nos braços do o que ele deve ser tiverem desaparecido.
“Por que é que eu não vivo desse jeito?”, meu “[...] todo Estado tem algo de
pai e minha mãe chamariam má fé, Hamlet
podre, e quando eu sei que a
chamaria apenas Polônio, ou seja, a encenação,
a etiqueta. “Não, eu não posso fazer isso, o que mudança de um governo não é
minha família diria?”, diria muito, ou nada, mas a mudança de uma estrutura,
igualmente irrelevante. Se a família apoiar ou eu não vou ter a expectativa, a
criticar, você continuará sozinho. Mas, ao invés de
enfrentar a solidão da minha decisão, eu prefiro alegria daquela nova posse no dia
dizer que há uma opção, por causa da minha primeiro de janeiro com o novo
família, dos meus filhos, dos vizinhos ou da partido que vai restaurar a ética
minha fé. Eu prefiro sentir-me vigiado a me sentir
em um país enfim transformado.”
sozinho. Eu prefiro me sentir protegido pela crítica
a largado pela indiferença, e essa é a pergunta Ifigênia22... Ismália23... Todas as personagens
central de Hamlet. O que eu responderia se nada trágicas, em todas as grandes peças... Nós
fosse relevante a não ser a minha decisão, e nada temos que purgar, temos que chegar à catarse.
garantisse que essa decisão fosse correta? Quem E Hamlet nos oferece algo um pouco distinto:
eu seria se eu estivesse absolutamente só no não é necessário que você mate outras pessoas
mundo? A resposta do príncipe seria: “Você está e a si para que você atinja sua consciência, é
só no mundo.” Até porque sua vida será sempre necessário que, pela primeira vez na vida, diz o
solitária, com outros solitários, ao seu redor, Hamlet em longos monólogos, você consiga dizer
dando opinião sobre eles, e você interagindo, apenas o que as coisas são. E, para isso, Hamlet
dando opinião sobre si, e dizendo que você não teve que se fingir de louco.
toma essa decisão, porque o outro é o obstáculo. A Idade Média não tinha hospícios, porque
Hamlet diria: “Às vezes, é preciso matar oito as separações entre loucos e não loucos eram
pessoas para que a corte da Dinamarca se veja.” O muito mais fluidas. Hamlet diz que nós temos
que fazer diante da consciência? Hamlet percorreu que estabelecer poderes, temos que estabelecer
cinco grandes atos, na maior peça de tamanho de cenas, temos que estabelecer etiquetas,
Shakespeare, para testar a amizade com Marcelo, formalidades, porque eu não aguento constatar
para testar a falsa amizade com Rosencrantz, que todo mundo é um teatro e que o papel que eu
para descobrir que sua mãe cedeu apenas a sua estou representando é insuportável. Porque não
sensualidade, para descobrir que seu pai quer é o papel que eu escrevi, não é o papel que eu
vingança e para chegar ao ponto em que – tendo queria, não é o papel absolutamente daquilo que
matado Polônio, tendo matado Cláudio, tendo se eu desejava.
envolvido em uma trama que levará à morte da sua Hamlet está dizendo que quando todo mundo
mãe, que levou ao suicídio de Ofélia, que matou o é normal, racional, equilibrado, com plano de
irmão de Ofélia, em que ele próprio acabou sendo saúde, que se veste equilibradamente e combina
ferido pela espada envenenada e passou por toda bege com marrom, azul marinho com azul celeste;
a provação – ele está pronto agora para olhar as quando todos dizem que querem contribuir para a
coisas com objetividade. empresa; quando todos publicam que são felizes;
Como a peça segue regras retóricas, como quando todos dizem, sem cessar: “Essa é minha
todas as grandes tragédias, a personagem deve vida e minha vida é legal, porque eu estou viajando,
se mutilar ou morrer no final, ela deve matar, ou porque eu estou comendo esse prato.”; quando
ser morta, ou se mutilar. Édipo arranca os olhos, todos dizem a mesma coisa, eu preciso dizer que
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| Caderno de Registro Macu (Pesquisa)
ser louco é a única possibilidade de ser sadio e descobrir que a felicidade, que a busca da
nesse mundo doente. Porque o louco da corte vai consciência, que a crítica social, que a ação
dizer ao final que ele é o único que tem alguma luz política, que o engajamento, não dependem nem
de raciocínio, alguma luz de felicidade, mesmo do lugar, nem da hora, nem do momento, mas
morrendo. E é por isso que diz, ao final, o melhor apenas exclusivamente daquilo que eu decida
elogio diante do cadáver, o Rei que restaurará a para aquela casca de noz onde ele encontra todo
ordem na corte: “Bons sonhos doce príncipe, se o universo.
tivesse reinado serias um grande rei.” 24 Todo o universo está contido na minha
Hamlet não reinou porque chegou a um ponto consciência, porque a única coisa que eu tenho,
tão grande de consciência, de sabedoria, que não eu sozinho lendo um livro ou trocando ideias
precisou pegar a coroa para ser príncipe, senhor como eu troco com os senhores, é um momento
da sua vida. Hamlet foi o primeiro homem livre, em que nossas consciências se questionam,
autônomo, como diz Bloom, o primeiro homem avançam; e eu posso dizer: tente descobrir
moderno. E ele nos desafia permanentemente, eu vagamente quem você é. Então, você não será
tive que matar toda a corte e morrer para chegar feliz, mas a sua consciência vai pelo menos fazer
nisso. Que preço cada um de nós está disposto a com que você não seja falso, vazio e comum. E
pagar pela consciência de se tornar quem você que você pare de postar felicidade falsa que não
é? Hamlet pagou um preço altíssimo. É um risco convence a mais ninguém há muito tempo, nem
e um desafio tão grandes, que é compreensível a você mesmo, por isso que você passa cada vez
porque a maioria não queira dar esse passo. mais horas postando pelo celular, porque a dose
Porque ser normal nesse mundo é ser louco e ser da droga tem que aumentar à medida que o corpo
enquadrado neste mundo é, em primeiro lugar, resiste a ela.
ser alguém que serve para o palco alheio, para a Hamlet nos falaria hoje: “Digam ao celular,
peça escrita pelos outros, o roteiro definido por ao computador, ao emprego, à roupa, à família,
terceiros e, ao final, como a morte solitária, sem a à academia, a tudo, pelo menos uma vez na vida,
palma de ninguém, apenas uma biografia vazia e quem é que manda, porque até o momento são
absolutamente infeliz. eles que mandam. Comece a fazer algo, porque se
Hamlet morreu como um doce príncipe, você não o fizer, em breve, o resto será silêncio.”
tendo purgado do mundo todos que viveram Esta é a lição do príncipe. E cada vez que eu leio o
papeis distintos. Um preço alto, épico, teatral e príncipe, eu me envergonho de ser muito menos
retórico. Nós podemos aprender com o príncipe do que a consciência dele é, eu me envergonho
a capacidade de viver em uma casca de noz de ainda ser tão social, tão enquadrado.
Eu me envergonho de várias coisas e me alegro
“Hamlet não reinou porque de que, aqui na minha contradição, na minha
hipocrisia, na minha absoluta mediocridade, eu
chegou a um ponto tão grande consigo olhar para o príncipe e dizer: eu gostaria
de consciência, de sabedoria, que de um dia, ao envelhecer, pelo menos tentar ficar
não precisou pegar a coroa para sábio. E era isso que eu queria trazer do bom
príncipe Hamlet: “O resto é silêncio.”25
ser príncipe, senhor da sua vida.
Hamlet foi o primeiro homem Palestra transcrita por Gabrielle Tucci e editada
livre, autônomo, [...] o primeiro por Kleber Danoli, com edição final de Roberta
homem moderno.” Carbone.
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| Caderno de Registro Macu (Pesquisa)
Arquivo Grupo Galpão
Arlequim Servidor de Dois Amos (1985), do Grupo Galpão.
Guto Muniz
quase natural. A montagem, no entanto, foi muito até as experiências mais contemporâneas.
conturbada. Havia uma confusão muito grande Eles se tornaram um importante instrumento
de propósitos, com uma enorme imaturidade em de aprendizado para o grupo, que no começo
termos de construção das personagens, desde a não tinha, por exemplo, nenhum traquejo com
leitura de mesa até a elaboração de um corpo que o trato da palavra. Ler peças em conjunto nos
definisse e desenhasse aqueles tipos, algo que proporcionou não só clareza sobre nossas
precisava estar além de um mero estereótipo. O deficiências, mas uma capacidade maior de
trabalho foi o tempo todo marcado pela dicotomia compreender a construção e a evolução de uma
entre a adaptação e uma montagem que fosse fiel tessitura dramática, com o desenvolvimento das
ao original. A consequência foi uma experiência personagens e dos conflitos, além de uma série
no meio do caminho, que acabou em um resultado de outros elementos, como estilos e gêneros de
insatisfatório. Ao final, as cenas produzidas dramaturgia que, sem dúvida, nos ajudaram muito
durante os ensaios nos pareciam bem mais para um entendimento mais amplo do teatro.
Glenio Campregher
Romeu e Julieta (1992), do Grupo Galpão.
interessantes do que o resultado do espetáculo. Esses ciclos de leitura e estudos fizeram com
O fracasso foi importante para que que textos como Romeu e Julieta, O Inspetor Geral,
entendêssemos a necessidade de se estudar mais a obra inteira de Nelson Rodrigues passassem a
o teatro. Nesse sentido, uma prática que passou fazer parte do nosso rol permanente de peças a
a fazer parte do nosso cotidiano foram os ciclos serem montadas. Um exemplo disso foi Romeu e
de leitura de textos. Produzidos especialmente Julieta. Se a montagem, com direção e concepção
nos momentos de entressafra, em que passamos de Gabriel Villela, aconteceu em 1992, já em
um bom tempo matutando sobre o que, como 1985 estávamos às voltas com a possibilidade
e com quem fazer uma peça nova, os ciclos de de montar o texto, entrando na ocasião em um
leitura buscavam sempre a diversidade mais projeto de financiamento que não se concretizou,
ampla possível, abarcando desde o teatro grego para encenar a peça de Shakespeare na rua.
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| Caderno de Registro Macu (Pesquisa)
Bianca Aun
Um Molière Imaginário (1997), do Grupo Galpão.
Quando Villela chegou a Belo Horizonte, sem Julieta. Isso mostra a necessidade e a importância
saber exatamente o que queria montar, sugerindo do grupo ter sempre à mão um repertório de textos
alguns temas e peças, imediatamente pedimos a preferidos e possíveis de serem montados.
ele que incluísse em suas possibilidades Romeu e O segundo encontro com um clássico da
Guto Muniz
Bianca Aun
Um Homem É um Homem (2005), do Grupo Galpão.
dramaturgia se deu através das mãos já bem misturar Shakespeare com Guimarães Rosa e a
calejadas de um diretor como Eid Ribeiro. Foi um criar um Molière com “a tinta da galhofa e a pena
trabalho bastante intenso, em que lemos toda a da melancolia”2 de Machado de Assis.
obra teatral e boa parte das crônicas e romances Nesse percurso, os riscos de se cair em algo
de Nelson Rodrigues. Misturamos várias peças, pretensioso ou vazio foram enormes. Estivemos
colocamos frases lapidares na boca de um sempre caminhando no fio da navalha entre
narrador, que era o próprio Nelson em cena, a fidelidade e a transgressão. O respeito aos
improvisamos muito e chegamos a um resultado autores e a necessidade de relê-los, fazendo
que, creio, podia não ser uma unanimidade, mas uma ponte com o mundo e o público de hoje,
era bastante consistente e fiel ao espírito do construíram uma tensão constante. Para o
autor. Foi nossa primeira incursão consistente sucesso de tal empreendimento de decifrar e
e profunda no universo de um dramaturgo. O devorar os clássicos, criando paralelos entre o
mesmo modelo de trabalho se repetiria, com passado e o presente, foi, sem sombra de dúvidas,
algumas variações, em processos como Romeu e fundamental a colaboração de um dramaturgo e
Julieta e Um Molière Imaginário. teórico do quilate de Cacá Brandão, que, além
Nas três abordagens desses clássicos, de trabalhar os cortes e os diálogos dos textos
usamos o subterfúgio de colocar o próprio autor originais, foi um verdadeiro titã na hora de elaborar
em cena. Era uma forma de falar sobra a função e estudos e pontos de aproximação entre universos
a gênese do próprio teatro. Esses textos, com sua tão amplos e díspares como o teatro elisabetano
complexidade, nos permitiram o mergulho em um e a obra de Guimarães Rosa ou as comédias de
universo histórico, humano e pessoal tão amplo, Molière e Memórias Póstumas de Brás Cubas, de
que foram fundamentais para ampliar nossa Machado de Assis.
percepção do teatro e da vida. Sem contar que nos
possibilitaram fazer conexões dessas obras com a
2. Trecho do prefácio da obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, de
cultura brasileira, o que nos levou, por exemplo, a Machado de Assis.
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| Caderno de Registro Macu (Pesquisa)
Acho que tanto Romeu e Julieta como de um homem, mas como tínhamos a Teuda
Um Molière Imaginário foram exemplos bem Bara como atriz escalada para o papel, nada mais
sucedidos de fusão do clássico com o popular. natural que transformássemos a personagem em
Levando para a rua os textos de Shakespeare e uma diretora que, em função do físico avantajado
Molière, conseguimos, de certa maneira, resgatá- de nossa atriz, além de roubar as verbas da
los em sua essência original, um teatro voltado educação, desviava boa parte da merenda escolar
para um público amplo e diversificado, o que para fins próprios.
acabou ficando meio esquecido com o excessivo Mas O Inspetor foi, certamente, a nossa
emburguesamento do teatro e seu consequente montagem mais fiel ao original, o que nos
confinamento nas casas de espetáculo. possibilitou focar principalmente em um apurado
Dois outros clássicos estiveram na nossa lista trabalho da palavra e no estudo de texto. A opção
de montagens, ambos com direção de Paulo José. por manter o contexto da peça na velha Rússia do
O primeiro foi O Inspetor Geral, de Nikolai Gógol, tempo dos Czares também foi importante para se
e, o outro, Um Homem É um Homem, de Bertolt criar o distanciamento que, paradoxalmente, só
Brecht. O texto russo foi escrito em 1836 e o reforçava a crítica aos nossos tempos de Brasil
alemão, noventa anos mais tarde, em 1926. atual, atolado na malversação do dinheiro público
Na montagem de O Inspetor Geral houve alguns e nos “pecadilhos” recorrentes pelos maus hábitos
ajustes, mas não propriamente uma adaptação. de nossos políticos e de nossa classe dominante.
Fizemos um profundo estudo de texto, em que Seguindo os preceitos de Brecht, mantivemos a
cada frase e cada palavra eram exaustivamente história na fábula, o que só reforçou mais a crítica
experimentadas. A versão final foi um amálgama aos tempos de hoje.
das várias traduções e algumas adaptações de que A segunda abordagem de um clássico
dispúnhamos. Algumas adaptações se fizeram comandada por Paulo José foi com Um Homem
necessárias como, por exemplo, a da personagem É um Homem, de Bertolt Brecht. Dessa feita,
do diretor das escolas. No texto original trata-se Paulo propôs a montagem de uma adaptação
Bianca Aun
que ele havia pensado em cima dos graves do chamado teatro épico, sendo por isso
acontecimentos internacionais que estávamos mesmo bastante impuro e irregular como estilo,
vivendo. Vivíamos o auge da desastrada invasão misturando poesia com narrativa épica, teatro de
americana e das tropas aliadas ao Iraque e a peça rua, cabaré, drama e distanciamento.
era um ótimo mote para tratarmos do assunto. Isso O próximo desafio que nos propusemos nessa
porque o texto de Brecht se passa em uma Índia trajetória, também relacionado aos clássicos, foi
invadida pelas tropas inglesas no início do século a chamada Viagem a Tchékhov, que representou
XX e é uma parábola sobre a transformação de o mergulho em uma linguagem realista de
um homem comum e do povo em uma máquina interpretação. Era, em certo sentido, uma
assassina de guerra. busca pelo oposto, pela antítese do que seria a
O curioso é que, nesse processo, os primeiros nossa linguagem popular de teatro de rua. A
ensaios tinham uma abordagem muito mais livre consciência de que tal risco nos faria encontrar
e desvinculada do original. Pouco a pouco, ela foi novos caminhos e nos ensinaria muitas novas
incorporando cada vez mais elementos do original coisas, abrindo outros horizonte e nos tornando
e essa experiência foi uma bela oportunidade de assim, melhores atores, foi a nossa principal
compreendermos o universo dialético do teatro motivação. A perspectiva do Galpão se dividir
de Brecht, com seu deslumbrante mundo de em dois núcleos também foi outra novidade.
contradições e movimentos, que oscilam o tempo Assim, nasceram os espetáculos Tio Vânia (Aos
todo entre reflexão e divertimento, a poesia e a Que Vierem Depois de Nós), dirigido por Yara de
secura das palavras, o épico e o dramático, o jogo Novaes, e Eclipse, dirigido por Jurij Alschitz, uma
de palavras que varia entre os mais diferentes adaptação de alguns contos do autor russo.
estilos. O fascinante desse texto, que teve sua E, por fim, nossa última incursão pelo universo
primeira versão em 1926 e ganhou quase dez dos clássicos se deu com Luigi Pirandello em Os
versões ao longo da vida do dramaturgo, é que ele Gigantes da Montanha. Nossa terceira parceria
se situa em uma fase de transição da elaboração com Gabriel Villela debruçou-se sobre essa, que
Elenize Dezgeniski
Tio Vânia (Aos Que Vierem Depois de Nós) (2011), do Grupo Galpão.
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| Caderno de Registro Macu (Pesquisa)
Guto Muniz
Os Gigantes da Montanha (2013), do Grupo Galpão.
é a mais poética e enigmática obra do autor Andes sul-americanos até o Tibete e o Oriente.
italiano. A peça torna-se um desafio ainda maior O passeio pelos clássicos, começando
pelo fato de ser uma obra inconclusa, uma vez por Goldoni, passando por Nelson Rodrigues,
que Pirandello morre antes de conseguir redigir Shakespeare, Molière, Gógol, Brecht, Tchékhov
sua cena final. Portanto, trata-se de uma obra e Pirandello, sem dúvida nos deu muitas chaves
aberta, que possibilita múltiplas leituras sobre para compreendermos e desfrutarmos, como
seu desfecho, em que a companhia de teatro da atores, da magia e da ciência profunda dessa
condessa acaba destroçada pelos misteriosos arte tão desafiadora que é o teatro. Os clássicos
gigantes da montanha. assim o são porque dizem algo de profundo e
Montar esse verdadeiro delírio de Pirandello, permanente sobre a condição humana. Nunca
com todos os seus múltiplos enredos que se tivemos a preocupação de abordar textos
misturam, e apresentá-lo para o público da clássicos por um preceito estético, uma linha de
rua, totalmente alheio às convenções teatrais, conduta ou estratégia de aceitação mercadológica
foi um grande desafio. A chave para essa mais ampla, como o circuito internacional.
ponte de ligação entre o universo poético e da Montamos alguns textos clássicos e continuamos
metalinguagem teatral do autor italiano com o “perseguidos” por uma série deles, simplesmente
mundo disperso e heterogêneo do público da rua porque eles nos dizem muito, tanto como
foi a cultura popular traduzida em um repertório artistas quanto como seres humanos. E nada
de músicas italianas bem pastiches, no estilo do mais fascinante do que contar histórias que nos
Festival de Sanremo3, além de cenário, figurinos e arrebatam, nos fazem entender e pensar sobre a
composições de personagens que passeiam pela grande aventura que é a nossa breve passagem
ancestralidade da cultura popular do Brasil e dos pela terra.
Talvez seja a hora de encarar uma tragédia
3. O Festival de Sanremo é considerado um dos mais importantes eventos grega na rua.
de música do mundo e realizado, sem interrupção, desde 1951.