Acórdão Do Tribunal Da Relação de Lisboa

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Acórdãos TRL Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa

Processo: 9107/2007-5
Relator: EMIDIO SANTOS
Descritores: RECURSO PENAL
PRINCÍPIO DA SUFICIÊNCIA DO PROCESSO PENAL
QUESTÃO PREJUDICIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 15-01-2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEIÇÃO
Sumário: 1. Nos termos do n.º 2 do artigo 7º do Código de Processo
Penal, o que é decisivo para limitar a suficiência do processo
penal não é a pendência da questão prejudicial no tribunal
competente. Decisivo é que esta questão não possa ser
convenientemente decidida no processo penal.
2. A necessidade de prevenir decisões contraditórias não
figura entre as razões determinantes da devolução do
julgamento da questão prejudicial ao tribunal competente.
3. Não obstante as decisões judiciais contraditórias
relativamente à mesma questão de direito constituírem um
factor de insegurança jurídica, o certo é que o princípio da
segurança jurídica e da protecção da confiança, elemento
constitutivo do Estado de direito, não significa uniformidade
da jurisprudência relativamente às questões de direito.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do tribunal da
Relação de Lisboa

F. , assistente nos autos de processo comum n.º


20/04.6TASCR, do 2º juízo do tribunal judicial de S. ,
interpôs recurso dos seguintes despachos proferidos
em audiência de julgamento:
1. Do despacho que indeferiu a suspensão do
processo até que a jurisdição administrativa se
pronunciasse em definitivo sobre as invalidades dos
actos administrativos narrados na acusação;
2. Do despacho que indeferiu a produção de prova
pericial para demonstração de alguma matéria de
facto indicada na acusação.
O recorrente fundamentou as suas pretensões, em
síntese, nas seguintes razões:
a) O arguido está a ser julgado pela prática de um
crime de prevaricação praticado por titular de cargo
político no exercício das suas funções, previsto pelos
artigos 11º e 3º, alínea i), da Lei n.º 34/87, de 16 de
Julho.
b) Para que esteja preenchido o tipo de crime de
que é acusado o arguido impõe-se a prática de actos
que violem as normas do direito administrativo.
c) Os actos imputados ao arguido na acusação,
enquanto vereador com o pelouro do urbanismo da
Câmara Municipal de S. , foram impugnados numa
acção administrativa especial no Tribunal
Administrativo e Fiscal do F. .
d) Nessa acção foi proferido acórdão, ainda não
transitado em julgado, a decretar a nulidade dos actos
administrativos praticados pelo arguido.
e) Os autos de acção administrativa constituem
causa prejudicial relativamente aos presentes autos
de processo comum colectivo.
f) Assim, impõe-se que a apreciação da actuação
do arguido contra as normas do direito administrativo
seja decidida previamente no âmbito da jurisdição
administrativa e que seja suspensa a presente
instância criminal enquanto não for proferida decisão
definitiva, em sede administrativa, sobre a indicada
questão.
g) O despacho que indeferiu a suspensão da
instância criminal violou o disposto no artigo 7º, n.º 2,
do Código de Processo Penal (CPP) e nos artigos
279º, n.ºs 1 e 2, e 97º, n.º 1, ambos do Código de
Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 4º do CPP.
h) Em face do despacho que indeferiu a suspensão
do processo, o recorrente requereu a realização de
prova pericial, tendo por objecto factos constantes da
acusação cuja demonstração exige especiais
conhecimentos técnicos de arquitectura ou
engenharia civil, conhecimentos esses de que as
testemunhas arroladas pelo Ministério Público não
são possuidoras.
i) A perícia é necessária e imprescindível, devendo
ser realizada antes do início da inquirição das
testemunhas, pois desta forma acautela-se a
continuidade da audiência e evita-se a perda de
eficácia da prova entretanto produzida.
j) O despacho que indeferiu a produção de prova
pericial antes da inquirição das testemunhas violou o
disposto nos artigos 124º, 151º e 328º, n.º 3, alínea b),
e n.º 6, todos do CPP.
Na primeira instância, o Ministério Público não
respondeu ao recurso.
Nesta instância, o Ministério Público emitiu parecer no
sentido da improcedência dos recursos. Na parte final
do seu parecer suscitou, no entanto, a questão do
momento da subida do recurso interposto da decisão
que indeferiu a produção da prova pericial.
*
Vejamos, pois, se deve manter-se o que foi
declarado pelo tribunal recorrido quando ao momento
da subida do mencionado recurso.
No despacho que admitiu o referido recurso
declarou-se, sem referência a qualquer disposição
legal, que o mesmo subia imediatamente, em
separado e com efeito devolutivo.
Como se procurará demonstrar, não é de manter
a decisão do tribunal recorrido quanto ao momento da
subida do recurso.
O momento da subida dos recursos é
disciplinado pelo artigo 407º, do CPP .
Enquanto o n.º 1 deste preceito indicava, por
referência às decisões recorridas, os recursos que
subiam imediatamente, o n.º 2 continha uma cláusula
geral dispunha que subiam ainda imediatamente os
recursos cuja retenção os tornaria absolutamente
inúteis.
Os recursos de decisões que indefiram os
requerimentos de produção de prova feitos em
audiência, ao abrigo do disposto no artigo 340º, do
CPP, não figuram entre os previstos nas várias alíneas
do n.º 1 do artigo 407º, do CPP, que sobem
imediatamente.
Daí que a subida imediata do recurso da decisão que
indeferiu a produção de prova pericial requerida pelo
assistente só podia fundar-se no n.º 2 do artigo 407º,
do CPP, isto é, só subiria imediatamente se a sua
retenção o tornasse absolutamente inútil.
Apesar de a lei não definir o alcance da
“retenção absolutamente inútil”, a jurisprudência tem
afirmado de modo constante que a retenção de um
recurso só o torna absolutamente inútil quando,
qualquer que seja a decisão que o tribunal superior
lhe dê, ela seja completamente inútil no momento em
que é proferida. Assim, não será absolutamente inútil
a retenção daquele recurso cuja procedência conduza
à anulação do processado (cfr. a título de exemplo o
Acórdão da Relação de Lisboa, de 29 de Abril de 1997,
publicado em http://www.dgsi.pt/jtrl).
No mesmo sentido se escreveu no acórdão n.º
242/2005, publicado em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos
“Como se escreveu no acórdão n.º 946/96, … «o
sentido constitucionalmente necessário da
determinação segundo a qual “sobem imediatamente
os recursos cuja retenção os tornaria absolutamente
inúteis” é o da não inviabilização da prova em ordem à
consecução da verdade material. A ponderação que o
juiz deve empreender é a de se o regime de subida
diferida que atribuiu ao recurso ainda está nos limites
da subsistência da afirmação da prova ou, se pelo
contrário, o diferimento do controlo em via de recurso
da apreciação da prova corresponde à negação de
subsistência da mesma prova».
“Podendo a prova ser ainda produzida e com
utilidade em função do objecto do processo, não
obstante a anulação da decisão e dos actos
subsequentes, incluindo o julgamento, continua a
subsistir a possibilidade da satisfação do interesse do
arguido de fazer valer a verdade material relativa ao
objecto do processo”.
Interpretando a absoluta inutilidade da retenção
dos recursos com o alcance acabado de apontar, é
manifesto que a retenção do recurso que indeferiu a
produção de prova pericial não o torna absolutamente
inútil.
Na verdade, caso o recorrente mantenha
interesse na sua subida, após a decisão que puser
termo à causa, a procedência dele é susceptível de
determinar a anulação do julgamento e a produção da
prova pericial com interesse para a causa. Deste
modo, dar-se-á satisfação ao interesse do recorrente
em ver produzida prova pericial tendo por objecto
alguns dos factos narrados na acusação.
Considerando que a decisão que admita o
recurso e que determina o regime de subida não
vincula o tribunal superior (artigo 414º, n.º 3, do CPP),
altera-se o regime de subida fixado ao recurso
interposto da decisão que indeferiu a produção de
prova pericial requerida pelo assistente,
determinando-se que o mesmo seja julgado com o
recurso interposto da decisão que puser termo à
causa (artigo 407º, n.º 3, do CPP).
Pelo exposto, não se conhece do referido recurso.
*
Afastado o conhecimento do recurso interposto da
decisão que inferiu a produção de prova pericial, a
principal questão que importa solucionar é a de saber
se, estando pendente no Tribunal Administrativo e
Fiscal do F. uma acção especial de impugnação dos
actos administrativos narrados na acusação, o
Meritíssimo juiz a quo devia ter ordenado a suspensão
do processo penal até que a jurisdição administrativa
se pronunciasse em definitivo sobre a impugnação.
*
Antes de nos pronunciarmos acerca desta
questão importa ter presentes, para melhor
compreensão da questão suscitada, os factos
essenciais que precederam a decisão recorrida.
O Ministério Público imputou ao arguido um
crime de prevaricação previsto pelo artigo 11º da Lei
n.º 34/87, de 16 de Julho.
No início da audiência, o assistente requereu o
seguinte:
“Nos autos de acção popular de acção
administrativa especial de impugnação dos actos
administrativos da Câmara Municipal de S . , e pelos
fundamentos constantes da acusação destes autos,
que pende no Tribunal Administrativo e Fiscal do F.
processo n.º 743/04.0IELSG, o Tribunal Administrativo
de Círculo do F. proferiu acórdão, ainda não
transitado em julgado, a decretar a nulidade dos actos
administrativos praticados pelo ora arguido enquanto
titular do cargo de Vereador do Pelouro do Urbanismo
da Câmara Municipal de S . , decretando a demolição
do edifício no prazo de 5 meses e a reposição do
terreno no seu estado anterior ao das obras”.
“Esses autos de acção popular administrativa especial
de impugnação de actos administrativos, os mesmos
destes autos e praticados pelo aqui arguido são
claramente prejudiciais relativamente à matéria do
presente processo comum colectivo pois que a
acusação neste proferida e pela qual o arguido
responde, reproduz ipsis verbis os articulados
daquela, sendo que as causas de nulidade dos actos
administrativos são, na parte tomada pela acusação,
iguais”.
“Sendo que os autos que pendem no Tribunal
Administrativo e Fiscal do F. não foram intentados
para se obter a suspensão destes autos, pois estes
são posteriores, nem o presente processo está tão
adiantado que os prejuízos superem as vantagens da
sua suspensão, quais sejam essas vantagens a
demonstração das nulidades demonstrada pelo
Ministério Público na sua acusação, nem tão pouco
estes autos são urgentes”.
“Pelo que, nos termos do disposto nos artigos 279º,
n.º 1 e 2 e 97º, n.º 1, ambos do C.P.C., aplicado ex vi
artigo 4º do C.P.P. e artigo 339º, do C.P.P. requer-se
que seja o presente processo comum colectivo
suspenso até que a jurisdição administrativa se
pronuncie em definitivo sobre as invalidades
constantes da matéria acusatória, mas naquela sede”.
Sobre este requerimento recaiu o despacho recorrido
com o seguinte teor:
“Nos termos do artigo 7º, do CPP, que estabelece o
princípio da suficiência do processo penal, este é
promovido independentemente de qualquer outro e
nele se resolvem todas as questões que interessam à
decisão da causa”.
“O n.º 2 do mesmo artigo refere que, quando para se
conhecer da existência de um crime, for necessário
julgar uma questão não penal, que não possa ser
resolvida convenientemente no processo penal, pode
o tribunal suspender o processo para que se decida
esta questão no tribunal competente”.
“Sobre o fundamento e alcance deste princípio
discorre Figueiredo Dias, in Processo penal, I, pág.
164 e seguintes, mencionando que se não se
contivesse dentro dos mais apertados limites a
possibilidade de o processo penal ser sustido ou
interrompido pelo surgimento de uma questão penal
ou não penal susceptível de cognição judicial
autónoma, pôr-se-iam em risco as exigências,
compreensíveis e relevantíssimas, de concentração
processual ou de continuidade do processo penal,
permitindo-se, assim, que, deste modo, se
levantassem indirectamente obstáculos ao exercício
da acção penal. Assim, o princípio deve ser defendido
na medida do possível, não obstante ser certo que o
relevo, a complexidade ou a especialidade de que se
revestem certas questões prejudiciais podem postular
insistentemente que, nestes caos, o processo penal se
suspenda e a questão seja devolvida ao tribunal
normalmente competente, a fim de aí ser decidida”.
“Recolhidos todos os elementos relativos à lide
administrativa, entende este tribunal colectivo que não
há fundamento para a suspensão do presente
processo crime porque a decisão contra direito
constitui elemento do crime de prevaricação. Sendo
assim é uma questão necessária á inteira
determinação dos pressupostos objectivos do ilícito
penal”.
“É no processo penal que esta questão tem de ser
resolvida, salvo se aqui não puder ser
convenientemente decidida (Acórdão do STJ de 12 de
Maio de 2004, proferida no processo n.º 4022/2003 da
3ª Secção)”.
“Não se vislumbra, aliás, qualquer motivo para que os
3 juízes de direito que constituem este Colectivo não
possam convenientemente decidir se o arguido agiu
ou não contra o direito, no caso, administrativo”.
“Acresce, por outro lado, que a decisão a proferir
neste processo penal só tem eficácia nos presentes
autos e não tem qualquer implicação na lide
administrativa”.
“É de referir, ainda, que nos termos do n.º 4 do artigo
7º, do C.P.P., o prazo máximo de suspensão é de um
ano, não tendo o tribunal a confirmação de que a
acção administrativa esteja definitivamente resolvida
neste prazo”.
“Pelo exposto, ao abrigo do disposto no artigo 7º, n.ºs
1 e 2, do CPP, face aos motivos expostos e também
porque, sendo a decisão contra o direito
administrativo um dos pressupostos do crime, esta
passa a ser uma questão penal, se indefere a
requerida suspensão do presente processo crime”.
*
Posto isto, entremos na resolução da questão acima
enunciada.
Na origem dela encontra-se a imputação ao arguido de
um crime de prevaricação previsto pelo artigo 11º da
Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, que tem entre os seus
elementos constitutivos a decisão de um processo
contra direito.
Segundo o Ministério Público, o arguido, vereador da
Câmara Municipal de S. a quem foi atribuído o
pelouro do licenciamento de obras particulares,
cometeu o crime de prevaricação porque autorizou a
construção de um edifício misto na rua Ponte Nova,
n.ºs 15 a 23, freguesia e concelho de S. , com a
intenção de beneficiar o requerente do licenciamento
da construção, apesar de saber que a construção da
obra violava várias normas de direito administrativo.
É, assim, indiscutível que, para se apurar se o crime
foi cometido, o tribunal tem de dizer se o arguido, ao
licenciar a construção da obra, decidiu dolosamente
contra as normas do direito administrativo indicadas
na acusação, designadamente contra o Regime
Jurídico da Urbanização e Edificação aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, o Decreto-
Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro, com as alterações
introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 310/2003, de 10 de
Dezembro, a Lei n.º 48/98, de 11 de Agosto, o Decreto-
Lei n.º 410/98, de 23/12, a Portaria n.º 1110/2001, de 19
de Setembro, o Decreto Regulamentar Regional n.º
21/2001/M, de 31 de Agosto, e o Decreto Legislativo
Regional n.º 9/97/M, de 18 de Julho.
Assim sendo, a questão da decisão do processo de
licenciamento contra normas de natureza
administrativa configura-se como uma questão
prejudicial não penal, entendida esta com o alcance
que lhe é dada por Figueiredo Dias, in Direito
Processual Penal, Primeiro Volume, Coimbra Editora,
páginas 164, ou seja como “aquela que possuindo
objecto – ou até natureza – diferente do da questão
principal do processo em que surge, e sendo
susceptível de constituir objecto de um processo
autónomo, é de resolução prévia indispensável para
se conhecer em definitivo da questão principal,
dependendo o sentido deste conhecimento da solução
que lhe for dada”.
Cabendo aos tribunais da jurisdição administrativa a
fiscalização da legalidade de actos administrativos
praticados por quaisquer órgãos do Estado (artigo 4º,
n.º 1, alínea c), do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais), a questão que se coloca é
a de saber se o tribunal penal deverá remeter para os
tribunais da jurisdição administrativa a decisão da
questão da legalidade do licenciamento da obra ou se
poderá ele próprio proceder à resolução dessa
questão, uma vez que ela se apresenta como
indispensável para se conhecer da responsabilidade
criminal do arguido.
A resposta a esta questão encontra-se no artigo 7º do
CPP.
Nos termos do n.º 1 desta norma, o processo penal é
promovido independentemente de qualquer outro e
nele se resolvem todas as questões que interessarem
à decisão da causa.
Esta norma consagra o princípio da suficiência do
processo penal. Nas palavras de Figueiredo Dias, na
obra supra citada, páginas 163, este princípio significa
que “o processo penal é, em princípio, lugar adequado
ao conhecimento de todas as questões cuja solução
se revele necessária à decisão a tomar”.
O n.º 2 do artigo 7º introduz, no entanto, uma limitação
ao mencionado princípio. Assim, quando, para se
conhecer da existência de um crime, for necessário
julgar qualquer questão não penal que não possa ser
convenientemente resolvida no processo penal, pode
o tribunal suspender o processo para que se decida
esta questão no tribunal competente.
O julgador penal pode, pois, não conhecer de uma
questão não penal que seja imprescindível para se
conhecer da existência do crime se verificar que esta
questão não pode ser convenientemente decidida no
processo penal.
Importa sublinhar que, apesar de o legislador não
especificar critérios de inconveniência do julgamento
da questão prejudicial no processo penal e de colocar
nas mãos do juiz um poder discricionário quanto à
questão da devolução da questão prejudicial, esta
ausência de critérios não significa, conforme refere
Figueiredo Dias, na obra supra citada, páginas 179,
um poder discricionário livre ou desvinculado, pois,
segundo o mesmo autor, “o juiz penal só deverá
deixar de ordenar a devolução quando o processo
(penal) forneça prova segura de todos os elementos
da infracção”.
No caso, o recorrente, embora assaque ao despacho
recorrido a violação do n.º 2 do artigo 7º do CPP, não a
funda directamente, no entanto, na ofensa do poder
discricionário que a lei atribui ao juiz.
Segundo o assistente, o tribunal devia ter ordenado a
suspensão do processo penal porque se encontra
pendente no Tribunal Administrativo e Fiscal do F.
uma acção administrativa especial de impugnação
dos actos administrativos narrados na acusação,
acção esta que constitui causa prejudicial
relativamente ao processo comum e que impõe, por
isso, que a apreciação da actuação do arguido contra
as normas de direito administrativo seja previamente
decidida no âmbito da jurisdição administrativa.
A argumentação que se acaba de expor introduz ao
princípio da suficiência do processo penal o seguinte
limite: se a resolução da questão prejudicial não penal
estiver pendente no tribunal competente, o processo
penal deve ser suspenso até que seja proferida
decisão definitiva nesse tribunal.
Salvo o devido respeito, este limite não se colhe no n.º
2 do artigo 7º do CPP, nem resulta dos artigos 97º e
279º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil,
invocados pelo assistente em abono da sua
pretensão.
Em primeiro lugar, nos termos do n.º 2 do artigo 7º do
CPP, o que é decisivo para limitar a suficiência do
processo penal não é a pendência da questão
prejudicial no tribunal competente. Decisivo é que
esta questão não possa ser convenientemente
decidida no processo penal.
Em segundo lugar, mesmo nos casos em que a
questão não penal não pode ser convenientemente
decidida no processo penal, o legislador não
abandona, de modo definitivo, o princípio da
suficiência. Assim:
a) Nos termos do n.º 4 do artigo 7º, a suspensão do
processo penal para se obter no tribunal competente a
decisão da questão prejudicial não pode ter duração
superior a um ano. Esgotado este prazo sem que a
questão prejudicial tenha sido decidida, o processo
penal readquire a plena suficiência e a questão é nele
decidida;
b) Confere-se ao Ministério Público o poder de
intervir no processo não penal para promover o seu
rápido andamento e informar o tribunal não penal.
Não tem, assim, apoio no n.º 2 do artigo 7º do CPP a
pretensão de obter a suspensão do processo penal
até que seja proferida decisão definitiva da questão
prejudicial no tribunal competente. O deferimento
desta pretensão implicaria admitir a suspensão do
processo penal para além do prazo máximo de um
ano, o que é vedado pelo n.º 4 do artigo 7º do CPP.
A pretensão do recorrente também não tem cobertura
nos artigos 97º e 279º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código de
Processo Civil.
Em primeiro lugar, a situação controvertida nos autos
não se ajusta às hipóteses dos citados artigos.
Vejamos.
O artigo 97º trata do conhecimento de questões
prejudiciais criminais ou administrativas numa acção
cível. No caso, do que se trata é do conhecimento de
uma questão prejudicial de natureza administrativa no
processo penal.
O artigo 279º dispõe que o tribunal pode ordenar a
suspensão da instância quando a decisão da causa
estiver dependente do julgamento de outra já proposta
ou quando ocorrer motivo justificado.
Dado que a prévia declaração de ilegalidade dos actos
administrativos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal
não é elemento constitutivo nem condição de
punibilidade do crime de prevaricação imputado ao
arguido, não pode afirmar-se que a decisão do
processo crime está dependente do julgamento da
acção que se encontra pendente nos tribunais da
jurisdição administrativa.
Em segundo lugar, nos termos do disposto no artigo
4º do CPP, o tribunal só deve socorrer-se das normas
do Código de Processo Civil para solucionar uma
questão do processo penal quando se esteja perante
um caso omisso e as disposições do Código de
Processo Penal não possam aplicar-se por analogia.
Ora a situação que se discute no presente recurso
está prevista e regulamentada no artigo 7º do CPP.
Não se está, pois, perante qualquer caso omisso,
entendido com o sentido que lhe dá o artigo 10º, n.º 1,
do Código Civil, isto é, como “um caso que a lei não
preveja”.
*
O recorrente invocou ainda a favor da suspensão do
processo penal um outro argumento, retirado do
princípio da certeza e da segurança jurídica.
Sustentou o recorrente que, sendo a questão
administrativa julgada no processo penal, existe o
risco de serem proferidas decisões contraditórias
atinentes à mesma questão fundamental de direito, o
que, a verificar-se, será susceptível de pôr em causa
os princípios da certeza e da segurança jurídicas, os
quais deveriam prevalecer sobre os princípios da
suficiência do processo penal e da concentração
processual ou continuidade do processo penal.
Esta argumentação também não colhe.
Em primeiro lugar, o que determina a devolução da
questão prejudicial ao tribunal competente não é a
necessidade de prevenir decisões contraditórias
acerca da mesma questão. O poder/dever de devolver
a resolução da questão ao tribunal competente
assenta na inconveniência da sua resolução no
processo penal.
Embora o legislador não forneça critérios para avaliar
essa inconveniência, socorrendo-nos da lição de
Figueiredo Dias na obra supra citada, páginas 176,
pode afirmar-se que a devolução é devida “sempre
que a questão seja muito especializada, de difícil
solução, de relevantes consequências ao seu nível
próprio, ou importe uma tramitação para a qual o
processo penal não esteja talhado”.
Torna-se, assim, claro que a necessidade de prevenir
decisões contraditórias não figura entre as razões
determinantes da devolução do julgamento da
questão prejudicial ao tribunal competente.
Em segundo lugar, não obstante as decisões
judiciais contraditórias relativamente à mesma
questão de direito constituírem um factor de
insegurança jurídica, o certo é que o princípio da
segurança jurídica e da protecção da confiança,
elemento constitutivo do Estado de direito (cfr. J.J.
Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, 7ª edição, Almedina, páginas 257), não
significa uniformidade da jurisprudência relativamente
às questões de direito.
O princípio da segurança jurídica e da protecção da
confiança significa, nas palavras de J.J. Gomes
Canotilho na obra supra citada, páginas 257, o direito
que o individuo tem de “de poder confiar em que aos
seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre
os seus direitos, posições ou relações jurídicas
alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas se
ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no
ordenamento jurídico”. Assim – continuando a citar o
referido autor - “as refracções mais importantes do
princípio da segurança jurídica são as seguintes: (1)
relativamente a actos normativos – proibições de
normas retroactivas restritivas de direitos ou
interesses juridicamente protegidos; (2) relativamente
a actos jurisdicionais – inalterabilidade do caso
julgado; (3) em relação a actos da administração –
tendencial estabilidade dos casos decididos através
de actos administrativos constitutivos de direitos”.
Interpretando o princípio da segurança jurídica e da
protecção da confiança com o alcance apontado, para
que se pudesse falar da sua violação seria necessário
que o assistente tivesse adquirido algum direito ou
posição jurídica com a pendência da acção
administrativa especial no Tribunal Administrativo e
Fiscal, que corressem o risco de ser postos em causa
pelo julgamento da questão prejudicial no processo
penal.
Ora é manifesto que a pendência da acção
administrativa especial no Tribunal Administrativo e
Fiscal não criou a favor do assistente qualquer direito
ou posição jurídica protegidos pelo princípio da
confiança.
Face ao exposto, conclui-se que a decisão recorrida
não violou nenhuma das disposições legais invocadas
pelo assistente. Improcede, pois, o recurso por ele
interposto.
*
Decisão:
Julga-se improcedente o recurso interposto da
decisão que indeferiu a suspensão do processo penal
e, em consequência mantém-se a decisão recorrida.
*
Condena-se o assistente no pagamento das custas,
fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.
*
Lisboa, 15 de Janeiro de 2008

Emídio Santos

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