João Antônio - Lapa

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Melhores

Contos
João Antônio
Seleção de Antônio Hohlfeldt
Direção de Edla van Ateen

1ª edição digital
São Paulo
2013
Antônio Hohlfeldt nasceu em Porto Alegre, licenciou-se em Letras pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É jornalista profissional e crítico
literário. Eleito vereador de Porto Alegre pelo Partido dos Trabalhadores em
1982.
Publicações: Mudanças: 4 ensaios de sociologia da arte (1976), Antologia da
literatura rio-grandense contemporânea (1978 e 1979), Conto brasileiro
contemporâneo (1981), Gaúcho: ficção e realidade (1982), Erico Verissimo
(1984), João Simões Lopes Neto (1985). Como ficcionista para crianças,
publicou Porã (1980), A primeira guerra de Porã (1981), O anjo Malaquias
(1983) e Seu Quincas e o Palhaço (1985). Participou de obras coletivas como
Imigração italiana: estudos (1978), Vidas notáveis (1978), O gravador de
Juruna (1982), O chalé da Praça XV (1982), Literatura infantojuvenil: um
gênero polêmico (1983), Atualidade de Monteiro Lobato: uma revisão crítica
(1983), Autonomia ou submissão? (1983) e Literatura em tempo de cultura de
massa (1984). Colaborou ainda no Dictionary of contemporary Brazilian
authors (1981), da Arizona State University, Estados Unidos.
PRA LÁ DE BAGDÁ
"O que Marx definiu como o lumpemproletariado
seria, portanto, não o lúmpen, mas uma espécie
de herói-vítima da resistência ao capitalismo."

Alba Zaluar, A máquina e a revolta, p. 133.

I
Formalmente, podem-se distinguir três diferente fases na produção literária de
João Antônio: a primeira delas caracteriza-se essencialmente por uma produção
de ficção, um pouco puxada ao depoimento-memorialístico, com obras como
Malagueta, Perus e Bacanaço (1963) e Leão de chácara (1975). Assim mesmo,
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como anotei em ensaio publicado sobre o autor , “enquanto a primeira é uma
narrativa até certo ponto lírica e heroica, simpática a personagens
marginalizados, a segunda é um documento mais contundente, mais objetivo,
talvez menos literário, mas mais sociológico, mais concreto.” Isso ocorre,
fundamentalmente, porque o primeiro livro constitui-se de uma memória do
passado e, neste sentido, a memória reorganiza os fatos, valorizando-os de
maneira diversa. Seja como for, o final da última e principal narrativa, que dá
título ao volume, antecipa a sequência da obra de João Antônio. Leão de
chácara constitui-se numa espécie de exorcização da marginalização: “aqui, há
duas atitudes, a real e a fingida. Há representação a ser feita, e a regra do jogo
tem de ser cumprida. Porque tudo se constrói numa perspectiva negativa” diria
hoje, da carência.
A segunda série de obras está mais ligada ao jornalismo, e constitui-se dos
livros Malhação do Judas carioca (1975) e Casa de loucos (1976), além de
biografias como Calvários e porres do pingente Afonso Henriques de Lima
Barreto (1977) e Noel Rosa (1982), concluindo-se por uma terceira série, misto
de conto e reportagem, que se inicia com o lançamento de Lambões de caçarola
(1977) e Ô Copacabana (1978). João Antônio publica ainda uma antologia de
quatro textos mais dirigidos ao público juvenil, contendo um único trabalho
inédito, “Bolo na garganta”, que aliás abre esta antologia, e posteriormente edita
Dedo-duro (1982) que é a síntese de todas as tendências aqui apontadas, e que
encontra culminância na exemplar narração de “Paulo Melado do Chapéu
Mangueira Serralha”, igualmente apresentada neste volume.
A fortuna crítica do escritor multiplica-se em centenas de artigos, três teses
universitárias, ao que se saiba, e dois ensaios mais sérios, que se encontram nas
indicações bibliográficas. A coincidência de opinião tem destacado que João
Antônio ocupa-se dos marginais, dos malandros, dos otários, dos pingentes, dos
suburbanos, enfim, dos esquecidos da sorte. Alguns ligam-no à tradição do
romance picaresco, pelo que têm seus heróis e narrativas de mobilidade tanto
espacial quanto temporal. Outros preferem lembrar o chamado “romance de
formação” para lerem criticamente os seus contos. O mais importante, creio, é,
ao concordar-se com Fausto Cunha, para quem, já em 1970, João Antônio surgia
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como “uma das maiores revelações do conto destes últimos tempos” saber-se
qual a sua importância e qual a sua contribuição à nossa literatura, ou, dito de
maneira diversa, que tipo de relação estabelece a literatura de João Antônio com
a realidade brasileira, tema que constituiu, aliás, o cerne de análise sobre ele
3
desenvolvida por Heloísa Buarque de Hollanda, ainda recentemente.

II
No processo de desenvolvimento diferenciado em relação aos chamados países
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do Primeiro Mundo, conforme demonstrado por Paul Singer e outros autores,
verifica-se que houve, historicamente, um acirramento das diferenciações
socioeconômicas entre as várias classes sociais no Brasil. Várias foram as teorias
então cunhadas para analisar o remanescimento de uma ampla categoria social
que, indiferentemente aos processos de desenvolvimento nacional, verificados
sucessivamente durante as duas grandes guerras, mediante a substituição de
importações de manufaturados e consequente industrialização nacional,
permanecia absolutamente fora da distribuição de renda que então se verificava.
Manoel T. Berlinck, em objetivo ensaio, relaciona algumas destas teses,
lembrando que, primeiro, o conceito de marginalidade ligou-se ao próprio
espaço físico ocupado por estas populações, fora do perímetro central urbano,
constituindo as favelas e outros núcleos marginais. Posteriormente, esta
“definição espacial” foi substituída por novos conceitos que, por exemplo,
reconheciam haver contiguidade entre sua existência e as próprias necessidades
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do capitalismo aqui implantado. Assim, questiona-se o autor, deve-se indagar
sobre o próprio termo: “as ‘populações marginais’ são marginais em relação a
quê?”, concluindo que o conceito é, no mínimo, ambivalente e relativo. Por isso
mesmo, refuta ele também outra conceituação muito difundida, a de Oscar Lewis
sobre “cultura da pobreza”, ou seja, um conjunto de valores culturais
diferenciados do restante da população, que caracterizaria esse segmento.
Berlinck acentua que, contrariamente ao que se costuma dizer, este conjunto
populacional – aliás crescente entre nós – não é mera consequência conjuntural,
mas sim uma exigência estrutural, pois nele se agrupam, indiferentemente, os
lúmpen, o exército industrial de reserva e a superpopulação relativa, ou seja, o
conjunto pauper, de miseráveis e paupérrimos, que no entanto são a base do
sistema capitalista selvagem tal como se apresenta entre nós, e que, longe de se
colocar sem importância na avaliação das populações economicamente ativas,
constitui a base da chamada economia informal, em crescente expansão e
essencial para a concentração capitalista. O chamado “polo marginal”, assim,
tenha o nome que tiver, é um “fenômeno estrutural permanente” e, em sua
ambivalência, tanto se apresenta integrado quanto diferenciado em relação às
demais camadas populacionais hegemônicas.

III
Na epígrafe utilizada por nós na abertura deste trabalho, buscamos,
sinteticamente, unir dois fios de uma única meada: é surpreendente a escassez de
estudos teóricos formais sobre o lumpenproletariado no Brasil. Assim, o
referencial básico ainda se encontra nos escritos de Karl Marx, especialmente o
Manifesto do partido comunista, As lutas de classe na França de 1848 a 1850 e
O 18 brumário de Napoleão Bonaparte, e o prefácio A guerra camponesa na
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Alemanha, de Engels. Com pequenas variações, o conceito marxista refere o
lumpenproletariado como “escória integrada pelos elementos desclassificados de
todas as camadas sociais e concentrada nas grandes cidades”, ou, ainda, “esse
produto passivo da putrefação das camadas mais baixas da velha sociedade”...
“centro de recrutamento de gatunos e delinquentes de toda espécie, que vivem
dos despojos da sociedade, pessoas sem profissão fixa, vagabundos”... “lado a
lado com roués decadentes, de fortuna duvidosa e de origem duvidosa,
arruinados e aventureiros rebentos da burguesia, vagabundos, soldados
desligados do exército, presidiários libertos, forçados foragidos das galés,
chantagistas, saltimbancos, lazzaroni, punguistas, trapaceiros, jogadores,
maquereaus, donos de bordéis, carregadores, literati, tocadores de realejo,
trapeiros, amoladores de facas, soldadores, mendigos – em suma, toda essa
massa indefinida e desintegrada, atirada de ceca em meca”. A citação é longa,
mas vale pela explicitação do termo. No Brasil, as escassas pesquisas sobre tal
segmento social têm encontrado em Alba Zaluar, dentre os seus raros estudiosos,
uma atenção compreensiva, como, dentre outros, em seu recente trabalho A
máquina e a revolta, dirigido sobre os moradores da Cidade de Deus carioca,
exatamente tema de um dos textos de João Antônio aqui selecionados. Zaluar
preocupa-se especialmente com a convivência que existe entre os vários grupos,
os trabalhadores subempregados, os migrantes, os bandidos e malandros, em seu
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cotidiano.
Já é lugar-comum dizer-se que em João Antônio igualmente existe esta divisão
categórica: de um lado, os otários – o trabalhador que dá duro durante toda a
semana para garantir o seu sustento – e, de outro, o malandro, o sujeito que tira
do otário, em uns poucos segundos, todo o seu ganho. O que se deve verificar,
no entanto, é que existem leis de convivência entre eles, e, mais do que isso, as
relações entre os dois grupos devem ser um pouco mais relativizadas. O otário
não é apenas o trabalhador igualmente marginalizado, uma vez que, a exemplo
do que se vê no conto “Leão de chácara”, por exemplo, também o executivo,
uma vez na noite, transforma-se em potencial otário tanto da prostituta quanto
dos demais malandros e bandidos que pululam pelo ambiente boêmio. O otário,
ainda, pode ser inclusive aquele mesmo malandro ou bandido, quer entre si
mesmos, quer em relação a outros segmentos, dependendo tudo de uma situação
contextual que só os textos vão definindo com maior clareza. Por exemplo, em
“Merdunchos”, teoria explícita da experiência narrada dentre outros em
Malagueta, Perus e Bacanaço, João Antônio mostra existir o patrão (o que
empresta o dinheiro para o jogo) e o jogador propriamente dito, sendo que este,
evidentemente, joga o papel de otário em relação ao outro. Por aí vai a
representação: a “mina”, a prostituta, vê o freguês como um otário (como em
“Mariazinha tiro a esmo”), mas seu amor pelo gigolô transforma-a em otária, na
medida em que, como evidencia Paulinho de uma Perna Torta, mulher deve
apanhar e ainda entregar todo o lucro de seu trabalho ao homem. Também os
pequenos bandidos que afanam os otários transformam-se, por seu lado, em
otários eles mesmos, ante os malandros mais afamados ou até frente ao policial
que deles exige a compensação, isto é, pequena e permanente contribuição para
deixar-lhes o campo livre.
Enfim, com a mesma visão dialética que só encontramos em outro autor
brasileiro, aliás também paulista, Plínio Marcos, João Antônio evidencia que
existe uma permanente troca de papéis entre otários e malandros, mas,
sobretudo, o que fica claro é que no conjunto de modificações estruturais
verificadas em nosso país, atingiu-se a ordenação da própria marginália ou do
que como tal se convencionou chamar.
“Existe uma ordem superior que a todos engloba, sistematicamente. A
concentração de poder se reforça. O malandreco cede lugar a um bandido maior,
como se exemplifica em ‘Paulinho Perna Torta’. A escória tem de ser destruída
para dar lugar a uma ordem mais ampla. A marginalização histórica a que as
personagens já estavam reduzidas se aprofunda. As coisas cada vez mais
acontecem sem sua interferência. Elas sentem a vida passar por elas; não podem
interferir. E nesta impossibilidade, surge a única opção: a autodestruição.”

IV
Ao nível do texto, pode-se verificar com certa facilidade toda esta situação. A
organização que buscamos dar ao volume que o leitor ora tem em mãos tenta
evidenciar os elementos caracterizadores da literatura de João Antônio.
Tematicamente, encontramos a ausência de uma participação efetiva e de uma
integração mais profunda das personagens nas chamadas instituições sociais. As
condições de habitação são precárias, a organização social vai pouco além da
família nuclear. Aliás, verifica-se que por vezes a própria família é excludente,
seja no sentimento vivido, por exemplo, pelo menino de “Bolo na garganta”, seja
na melancolia do adolescente de “Visita”. A compensação substituidora pode
chegar através de novas amizades ou proteções, não obstante serem as mesmas
perigosas porque interesseiras, como em “Frio” ou “Paulinho da Perna Torta”. A
ausência de infância como estágio especialmente prolongado e protegido do
ciclo vital é regra geral, e a iniciação sexual precoce é consequência até mesmo
de abusos e violências cometidas no próprio âmbito familiar, como em
“Mariazinha tiro a esmo” violentada pelo próprio pai. A predisposição ao
autoritarismo, em ambiente essencialmente violento é uma constante, e assim,
sentimentos como o de solidão, medo e necessidade de autovalimento e
permanente desconfiança alternam-se nas personagens, que apresentam fortes
sentimentos de marginalidade, desespero e dependência, unindo-se em pequenas
gangs, não ultrapassando contudo sua própria desconfiança. O discurso é de
autoafirmação, mas o sentimento é de se estar vivendo uma “merda de vida”,
como o do narrador de “Três cunhadas – Natal 1960”. Daí decorre a necessidade
de fantasiar, e fica sempre mais fácil fantasiar quando não se tem testemunhas do
que se viu: como diz uma personagem, “a gente conta vantagens e conta as
lorotas, as perdas todo o mundo esconde.”. Ou então, revaloriza o passado,
sempre melhor do que o presente. Isso não esconde, porém, a autoconsciência da
marginalidade, permanentemente presente em todos os atos de cada personagem.
O jogo da vida, na expressão de João Antônio, determina um acúmulo de
elementos definidores do papel a ser representado por cada um. Mais do que a
posição social, é o espaço e o tempo que definem esta representação. Em certos
horários, ou fora da zona, ou de certas áreas, o malandro ou bandido torna-se
presa fácil. Por exemplo, durante o dia. Por exemplo, em certos ambientes
diferenciados. Assim, o otário da noite pode ser o malandro diurno. E o
malandro noturno transforma-se no otário diurno. Os contos de João Antônio
concentram sua ação entre o lusco-fusco da noite e o alvorecer. Mas não se
negam a reconhecer que existem vários círculos de dependência-marginalidade
em outros ambientes e outras situações. Assim, em “Bolo na garganta”, o
menino sente-se marginalizado pelo grupo familiar, da mesma maneira que os
meninos de “Dois Raimundos, um Lourival” tratam de tirar partido do turista-
otário que lhes aparece pela frente, como única alternativa de sobrevivência.
Também as mulheres de “Três cunhadas – Natal 1960” ou “As virgens blindadas
do footing” desempenham papel de otárias em relação a seus amantes ou seus
potenciais namorados e maridos, na medida em que deles dependem,
transformando-os porém em otários caso venham a fisgá-los.
Na medida em que, portanto, evidencia-se uma lei e uma ordem maior,
verifica-se que, na verdade, a alternância de papéis acaba beneficiando a alguma
coisa ou a alguém mais distante e inacessível, que é o próprio sistema. Disso têm
consciência algumas personagens, advindo o sentimento não apenas do
anonimato quanto da nulidade: “E é porcaria. Meu nome é ninguém (...) A gente
não é ninguém, a gente nunca foi. A gente some, apagado, qualquer hora dessas,
em que a polícia ou outro mais malandro nos acerte”. Ou a queixa sobre a
“merda de vida” que se repete em vários textos, como neste kafkiano
“Testemunho de Cidade de Deus” ou “Lapa acordada para morrer”. Alguém,
igualmente anônimo, decide por e sobre nós, sem qualquer possibilidade de que
tenhamos alguma interferência.
Estruturalmente, os contos de João Antônio metaforizam esta injunção: de
modo geral, valem-se da primeira pessoa do singular. Quando na terceira, o
narrador, raramente onisciente, adere à personagem, faz sua a perspectiva e o
ponto de vista da personagem. Os contos jamais se organizam regularmente. Em
geral sua estrutura é circularmente fechada: partem do presente, retornam ao
passado, com o que criam o contraste, e ao voltarem ao presente evidenciam a
situação crítica e de dependência ou derrocada em que se encontra a
personagem. O flashback, recurso cinematográfico apropriado pela literatura, ou
o paralelismo, são técnicas constantes. Na dialogação permanente, o uso da gíria
concretiza situações e sentimentos das personagens, evitando-se a narração
indireta ou a descrição, usada substancialmente para a caracterização dos
ambientes espaciais ou elementos históricos. O diminutivo é uma constante,
como que numa espécie de ambíguo menosprezo e tentativa de aproximação que
o malandro tenta junto ao otário, encobrindo o que na verdade sente: medo de
tudo e de todos, e solidão carreada pelo medo e a necessidade de uma
permanente vigília e autovalimento.
A marginalidade das personagens de João Antônio raramente se reduz a um
único elemento. À marginalidade socioeconômica, em geral, somam-se as
condições infantil, feminina, racial, um aleijume qualquer – na maior parte das
vezes advindas da própria condição social, da subnutrição ou de algum
enfrentamento de consequências mais sérias – mas que amplia a necessidade de
a personagem autoafirmar-se em permanente discursividade que encobre suas
incapacidades. E daí a oralidade essencial do conto de João Antônio, que é não
apenas técnica literária visando dinamizar o texto como reflexo psicológico da
personagem.
Sem lugar fixo, sem tempo fixo, a personagem de João Antônio aproxima-se
da tradição picaresca: ela precisa estar em permanente movimento para
sobreviver, seja em fuga, seja à cata dos otários. Assim, é um movimento
espacial de que “Malagueta, Perus e Bacanaço” nos dá o melhor exemplo, mas é
também um movimento temporal o que elas realizam, nutrindo-se, nos piores
momentos, das memórias dos bons tempos. A sobrevivência, por outro lado,
exige-lhes tensão e atenção constantes. As figuras de João Antônio, se gostam de
falar, precisam também ouvir: seu aprendizado é permanente, porque significa a
condição sem a qual não sobrevivem. Então, configura-se igualmente a tradição
8
de um “romance de formação”, tão bem anotada por Cassiano Nunes o que
diversifica os aspectos sob os quais podemos ler a ficção de João Antônio,
explicitada especialmente pelo texto com que se encerra esta antologia, “Paulo
Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, que é a mescla entre ficção e realidade
e, ao mesmo tempo, história de uma picaresca viagem em busca de aventura e de
afirmação. Contudo, também este último texto é um texto de negação, de
carência, de insatisfação, eis que o autor, ao final, não pretende dar conselhos.
“O ganhador ganha; não ensina o caminho”, diz ele. E então, na busca da
palavra, salta-lhe a expressão necessária. Também ele, à semelhança de suas
personagens, está fora do esquema, vê-se obrigado, permanentemente, a uma
luta corpo a corpo com a vida. Porque também ele, à semelhança de suas
personagens, vive à margem, vive pra lá de Bagdá. Ele, como suas personagens,
são heróis e vítimas deste capitalismo selvagem que entre nós medra.
Linha Imperial, julho de 1985
Antônio Hohlfeldt
1
HOHLFELDT, Antônio. O atual conto brasileiro – III. in “Caderno de Sábado”, Correio do Povo, Porto
Alegre, 6 dez. 1975.
2
CUNHA, Fausto. Situações da ficção brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.
3
HOLLANDA, Heloísa Buarque et al. Anos 70: literatura. Rio de Janeiro: Europa-Funarte, 1979.
4
SINGER, Paul. Economia política da urbanização. São Paulo: Brasiliense, 1973.
5
BERLINCK, Manoel T. Marginalidade social e relações de classes em São Paulo. Petrópolis: Vozes,
1975.
6
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa Omega, [s.d.].
7
ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta. São Paulo: Brasiliense, 1985.
8
NUNES, Cassiano. Releitura de João Antônio. In: 10 Contos escolhidos de João Antônio. Brasília:
Horizonte Editora-INL, 1983.
Sobre o autor, recomenda-se ainda o estudo de Jesus Antônio Drigan, publicado no volume Os pobres na
literatura brasileira, organizado por Roberto Schwartz (Brasiliense, 1983).
CONTOS
BOLO NA GARGANTA
O irmão se chegou e ajeitou-lhe as cobertas.
Sentiu que amolecia aos poucos, ouviu as gotas caindo. Um barulho baixinho,
gostoso. A impressão era de estio. Virou-se para a parede, mas não queria
dormir. A certeza de que era assim toda a noite, pouco a pouco se aproximando,
acabava dormindo, e quando se acordasse, a mãe zombaria dos roncos, trouxe-
lhe um desgosto fundo que o botou de olhos muito abertos a olhar o reflexo da
luz na parede. Que bom se arranjasse um jeito de não dormir.
Via o irmão entretido com o livro verde. Por que lia tanto? Não perguntou.
Lembrou-se de que poderia ser chamado de espírito santo de orelha e chato.
Ouviria coisas desagradáveis, ouviria dizer que estava na cama e cama é lugar da
gente dormir. Mas por que o irmão lia tanto? Não entendia. O irmão, gente
grande, usava bigodes e sabia tantas coisas de escola! Entretanto, falava de um
jeito confuso; uma pergunta redundava em vinte outras. Chamavam-no, então, de
pedaço de asno. Entendia e não entendia o xingamento, mas percebia a
finalidade; era o mesmo que: “Fique quieto”. É. A mesma coisa.
Olhava agora para o irmão, que lhe estava de costas. Procurar o foco de luz
indireta. Luz sempre lhe afugentava o sono. O livro verde era grosso, tinha
retratos no meio, o irmão dizia-lhe ser coisa séria. Coisas sérias... Para o irmão
todas as coisas eram sérias...
* * *
O tintureiro japonês contava-lhe histórias de guerras e de mares. Guerra – ele
sabia – os moleques fazem com um pedaço de lama endurecida. Metade da
trinca em cada borda da rua, atiram barro uns nos outros. Aquilo o agradava:
gostoso ver moleques brincarem, não havia os beliscões da empregada, não
havia as caçoadas da mãe. Papai também lhe disse que na guerra gente briga
com gente, trabalhando armas perigosas, terríveis, mais mortíferas que a
Winchester de matar passarinho. Torcia os beicinhos cada vez que ouvia.
– Puxa vida!
Mares – eram águas grandes, ganhavam metade do mundo. Mais da metade do
mundo. Mundo – não entendia o que fosse. Falavam de bola, o irmão dava-lhe o
atlas, ele não entendia. Bobagem alguém viver dentro de bola... O japonês era
bonzinho. Tudo que falava, ele entendia.
– Onde já se viu gente morando em bola.
Desistira de entender o que era mundo.
À tarde, o pai trouxe-lhe um embrulhinho amarelo. Estouvado, jogou para
longe o pião, quis abrir. Era um ioiô azul! Ah, arrancou-o, quis enfiá-lo nos
dedos, o elástico não obedecia. Procurou o dedão, inútil. O mindinho, o fura-
bolo, não ia. Enfezou-se.
– Calma, vem cá.
O pai ajustou o elástico. Mas era comprido, arrastava-se no chão.
– Quero que nem o de Paulo.
Arrumaram. Pareceu-lhe igual ao do vizinho. Bem. Agora brincar. Os dedinhos
brancos, terra nas unhas, mexeram-se, torceram-se, o ioiô não ia. Desgostou-se
com aquilo. Por que o ioiô não dava certo? Foi ver o “cheq... cheq…” aborrecido
das mãos da lavadeira lá no tanque. Pôs-se de longe, a olhar quietinho, senão
tiravam-no dali. Acocorou-se, meteu os dedos na terra, o ioiô atrapalhava-o;
entretanto, imaginou que iria construir túneis imensos com gente dentro, gente
grande, é claro, já que crianças como ele não podem viver em túneis. Construiria
com as mãos e a terra do quintal.
* * *
Mamãe o chamou para levar a capa do irmão ao tintureiro. Bom. Ouvir
histórias e aprender a jogar ioiô.
– Lava seco, duzentos cruzeiros.
Quanto seria duzentos cruzeiros? Não, não perguntaria, que assim não
esqueceria o ioiô.
Experimentando. Dedos para baixo, mão fechada, o ioiô dentro dela, palma
aberta, atira, puxa, atira... não dava certo.
– Calma, assim.
Acertou na sorte. Mas talvez não repetisse. Tentou com medo de errar.
Acertou. Agora fazia como Paulo; à ideia de que Paulo já não lhe era avantajado,
torceu os beicinhos vermelhos, suspirou fundo, fechou longamente os olhos,
baixou a cabeça, sorriu com malícia.
O tintureiro contou uma história de índios que matavam e devoravam pessoas,
como eles dois. Os brutos dominavam os matos.
– Matavam e comiam, pra quê?
O homem arrumou os óculos. Difícil explicar. Engendra exemplos, quer
comparar, não sabe esmiuçar os brutos que devoravam gente branca e mandavam
nos matos. Debandou, falou nos brancos, suas guerras e mares, torceu lorotas.
– Ora, criança esquece logo.
Mas a batida se repetiu. Se a gente come pudim... não, nada de brancos
miúdos. Queria os índios. O tintureiro engasgou, ressalvou-se, descartou-se,
escorregou nos índios.
– Menino impossível.
* * *
Para os lados da casa, ia encabulado. Os índios têm ioiô? A lavadeira gritou-lhe
que fosse tomar banho, mamãe mandou-o não roncar à noite, o irmão
atrapalhou-o com um palavrório que não entendeu. Amuou. Não lhe explicavam.
Foi ao papagaio.
– Louro, louro!
– Louro bobo que não sabe nada.
Por que índios comem carne de pessoas? Como eles são? Não lhe diziam, não
lhe diziam. Começou a crescer-lhe um bolo na garganta.
O pai catou-o na rede a choramingar. Aí, ele acusou todo mundo. Num
berreiro. Ninguém lhe dizia coisa alguma, era só caçoada que sabiam fazer.
Papai pôs cara severa, fingiu bater na empregada, advertir o irmão, botar a
mamãe de castigo.
– Para não zombar do menino.
E, voltando-se, certo do efeito, mimou-o. Prometeu levá-lo a ver índios do
cinema.
* * *
Índios nada. Bobagem. Comeram nada. Faziam, sim, algazarra, e tinham
feições de gente que joga bola. Cabelos de mulher e numa gritaria terrível.
Danadamente agitados, penas nas cabeças de mulher. Por que faziam-no ficar
com aquele bolo na garganta, aquela coisa dentro do peito? Raiva de não saber.
Cada vez que lhe negavam uma resposta o bolo crescia, subia à garganta,
tomava-o todo. Vinha-lhe, então, raiva e vontade de sair correndo e quebrar
todos os brinquedos de Paulo. Todos, deixar Paulo sem brinquedos, chorando.
* * *
Com força, o enxurro batendo na vidraça. Não explicavam, não explicavam.
Confusão de coisas: aqueles da fita não eram as coisas do tintureiro. Bichos com
penas, como mulheres, gritalhões. Mamãe diz que no sono ele fala e ronca. Ele
não gosta de caçoada e, não podendo se vingar, um bolo na garganta como
depois do cinema. Que chuva! Um livro verde que o irmão vira uma folha de
quando em vez, aquilo o distrai, o bolo diminui. Nos túneis vivem pessoas
grandes, crianças não. Ioiô igualzinho ao de Paulo, sem diferença (Paulo não tem
vantagem). Sente um pouco de frio, encolhe-se.
– Louro bobo que não sabe nada.
Olhinhos abertos, fugir do sono. A luz indireta projeta um círculo luminoso no
quarto; acompanhá-lo com os olhos. Estar atento. Índios não são aqueles do
cinema. Uma risadinha:
– Onde já se viu gente morando em bola?
Se perguntasse o valor de vinte cruzeiros teria sido melhor. Os beliscões da
empregada doem menos que o bolo na garganta. Mamãe zombará porque ele
ronca, no sono. Acompanhar o círculo de luz, não há de perdê-lo, que ele espanta
o sono. Que bom se conseguisse distrair-se, evitar o sono!
Aí, parece-lhe que o sono é um círculo de luz, projetado no quarto pela
lâmpada indireta. E que se vai fechando.
FRIO
O menino tinha só dez anos.
Quase meia hora andando. No começo pensou num bonde. Mas lembrou-se do
embrulhinho branco e benfeito que trazia, afastou a ideia como se estivesse
fazendo uma coisa errada. (Nos bondes, àquela hora da noite, poderiam roubá-lo,
sem que percebesse; e depois?... Que é que diria a Paraná?)
Andando. Paraná mandara-lhe não ficar observando as vitrinas, os prédios, as
coisas. Como fazia nos dias comuns. Ia firme e esforçando-se para não pensar
em nada, nem olhar muito para nada.
– Olho vivo – como dizia Paraná.
Devagar, muita atenção nos autos, na travessia das ruas. Ele ia pelas beiradas.
Quando em quando, assomava um guarda nas esquinas. O seu coraçãozinho se
apertava.
Na estação da Sorocabana perguntou as horas a uma mulher. Sempre ficam
mulheres vagabundeando por ali, à noite. Pelo jardim, pelos escuros da Alameda
Cleveland. Ela lhe deu, ele seguiu. Ignorava a exatidão de seus cálculos, mas
provavelmente faltava mais ou menos uma hora para chegar. Os bondes
passavam.
* * *
Paraná havia chegado com afobação. Nem tirou o chapéu, nem nada. O menino
dormia. Chegou-se:
– Nêgo... nêgo!
O menino não queria. Paraná puxou a manta.
– Paraná! Que foi? – acordou chateado.
O homem suado na testa. Barbado. Só explicou que precisava dele. Levar um
embrulho às Perdizes. Muito importante. O menino se arrumou fora do colchão
furado, meteu o tênis.
– Embrulho? Pra quem?
Paraná fez uma coisa que nunca fizera e que ele não entendeu bem. Fê-lo ficar
de pé, pousou-lhe as mãos nos ombrinhos. Sentado na beira da cama. Disse bem
devagar.
Ele tinha que ir às Perdizes, encontrar-se lá com Paraná. E não podia perder o
embrulhinho. Perguntou-lhe se conhecia uma Avenida grande que desce a igreja
das Perdizes. Sim. Ele deveria descê-la, três quarteirões. Sim. Tomar cuidado
com os guardas. Sim. Lá encontraria um ferro-velho. Sim. Pularia o muro.
– Lembra? Aquela viração do Diogo? Pois. Mudou de dono.
Pulasse o muro e esperasse Paraná aparecer. Havia, cama, escondida no
barracãozinho de zinco. Se não viesse, ele que dormisse. E acordasse cedo para
os donos do ferro-velho não perceberem que gente dormira lá. Se Paraná não
aparecesse deveria ir para o Largo da Barra Funda, lá na casa de Nora. Logo pela
manhã.
– O embrulho é sagrado, tá ouvindo?
Paraná apalpou-o, examinou-lhe a roupinha imunda de graxa de sapato. Tirou-
lhe o tênis, cortou dois pedaços de jornal e enfiou-os dentro. Embrulhou uma
manta verde. Meteu a mão no bolso, deu-lhe duas de dez. Os olhos brilharam:
– Se vira com elas. Olha, se eu não baixar lá...
– Ué, por quê? – o menino interrompeu.
– Nada. O embrulho é nosso, se guenta. Se manca. Que o abrisse, mas
escondesse. Nem Nora poderia mexer. E que se virasse lá na Pompeia,
engraxando. O menino teve um estremecimento. Será que os guardas iriam
agarrar Paraná? Ouvira contar que a cana é lugar ruim, escuro, onde se apanha
muito. Contudo, Paraná era muito vivo, saía-se bem de qualquer galho.
Sossegou. Depois, resolveu perguntar se ele apareceria mesmo.
Paraná fez não ouvir. Falou do muro do ferro-velho. Era alto e difícil. Tomasse
cuidado. Abriu a porta imunda:
– Se arranca. Se vira de acordo, tá? Olho vivo no embrulho.
E depois, lembrando-se:
– Mora, tá frio.
Passou-lhe o embrulho da manta. O menino sentiu as notas no bolso do
casacão. Coçou o pixaim:
– Puxa, como é de noite. Tchau.
Paraná respondeu com a mão no ar. O menino meteu o embrulhinho branco
entre o suspensório e a camisa. Só ficou o embrulho da manta na mão.
Andou.
* * *
Pequeno, feio, preto, magrelo. Mas Paraná havia-lhe mostrado todas as
virações de um moleque. Por isso ele o adorava. Pena que não saísse da sinuca e
da casa daquela Nora, lá na Barra Funda. Tirante o que, Paraná era branco,
ensinara-lhe engraxar, tomar conta de carro, lavar carro, se virar vendendo
canudo e coisas dentro da cesta de taquara. E até ver horas. O que ele não
entendia eram aqueles relógios que ficam nas estações e nas igrejas – têm
números diferentes, atrapalhados. Como os outros, homens e mulheres, podem
ver as horas naquelas porcarias?
Paraná era cobra lá no fim da Rua João Teodoro, no porão onde os dois
moravam. Dono da briga. Quando ganhava muito dinheiro se embriagava. Não
era bebedeira chata, não. Como a do seu Rubião ou a do Aníbal alfaiate.
– Nêgo, hoje você não engraxa.
Compravam “pizza” e ficavam os dois. Paraná bebia muita cerveja e falava,
falava. No quarto. Falava. O menino se ajeitava no caixãozinho de sabão e
gostava de ouvir. Coisas saíam da boca do homem: perdi tanto, ganhei, eu saí de
casa moleque, briguei, perdi tanto, meu pai era assim, eu tinha um irmão, bote
fé, hoje na sinuca eu sou um cobra. Horas, horas. O menino ouvia, depois tirava
a roupa de Paraná. Cada um na sua cama. Luz acesa. Um falava, outro ouvia. Já
tarde, com muita cerveja na cabeça, é que Paraná se alterava:
– Se algum te põe a mão... se abre! Qu’eu ajusto ele.
Paraná às vezes mostrava mesmo a tipos bestas o que era a vida.
O menino sabia que Paraná topava o jeito dele. E nunca lhe havia tirado
dinheiro.
Só por último é que ele passava os dias fora, girando. Era aquela tal Nora e era
a sinuca. A sinuca, então... Paraná entrava pelas noites, varava madrugada, em
volta da mesa. Voltava quebrado, voltava que voltava verde, se estirava na cama,
dormia quase um dia, e não queria que o menino o acordasse.
Só por último é que andava com fulanos bem vestidos, pastas bonitas debaixo
do braço. Mãos finas, anéis, sapatos brilhando. Provavelmente seriam sujeitos
importantes, cobras de outros cantos. O menino nunca se metera a perguntar
quem fossem, porque davam-lhe grojas muito grandes, à toa, à toa. Era só levar
um recado, buscar um maço de cigarros... Os homens escorregavam uma de
cinco, uma de dez. Uma sopa. Ademais, Paraná não gostava de curioso. Mas
eram diferentes de Paraná, e o menino não os topava muito.
Ele sempre sentia um pouco de medo quando Paraná estava girando longe.
Fechava-se, metia um troço pesado atrás da porta. Ficava até tarde, olhando os
cavalos da revista de turfe de Paraná. Muito altos, espigados, as canelas brancas,
tão superiores ao burro Moreno de seu Aluísio padeiro. Só com os soldados, à
noite, é que via coisa igual. Fortes e limpos. Fazendo um barulhão nos
paralelepípedos.
– Que panca!
Muita vez, sonhava com eles.
* * *
Havia Lúcia, a menina branca e havia seu Aluísio padeiro. Gostavam dele. O
resto eram pessoas que passavam na Rua João Teodoro com muita pressa.
Também um meganha que vinha engraxar os coturnos. Dava sempre gorjeta.
Esse, entretanto, não falava muito.
Lúcia era menor que ele e brincava o dia todo de velocípede pela calçada.
Quando alguma coisa engraçada acontecia, eles riam juntos. Depois,
conversavam. Ela se chegava à caixa de engraxate. O menino gostava de
conversar com ela, porque Lúcia lhe fazia imaginar uma porção de coisas suas
desconhecidas: a casa dos bichos, o navio e a moça que fazia ginástica em cima
dum balanço – que o pai dela chamava de trapézio. Na sua cabeça, o menino
atribuía à moça um montão de qualidades magníficas.
Seu Aluísio vivia brincando com todas as crianças que encontrava. Era só ver
criança. Uma conversa gozada, mexendo na cara o bigode poento. Piadas sem
graça, chochas. O menino gostava era do jeito que seu Aluísio tinha para contá-
las. Terminava e ria primeiro que os ouvintes. Paraná deixava que o menino se
entretivesse com ele.
Para o menino, todas as outras pessoas eram tristes, atarefadas na pressa da
Rua João Teodoro. Afobadas e sem graça.
* * *
Frio. Quando terminou a Duque de Caxias na Avenida São João. O pedaço de
jornal com que Paraná fizera a palmilha não impedia a friagem do asfalto.
Compreendeu que os prédios, agora, não iriam tapar o vento batendo-lhe na cara
e nas pernas. Andou um pouco mais depressa. Olhava para as luzes do centro da
Avenida, bem em cima dos trilhos dos bondes, e pareceu-lhe que elas não iriam
acabar-se mais. Gostoso olhá-las.
Que bom se tomasse um copo de leite quente! Leite quente, como era bom! Lá
na Rua João Teodoro podia tomar leite todas as tardes. E quente. Mas precisava
agora era andar, não perder a atenção.
– Paraná já deve tá na boca de espera.
O menino preto tinha um costume: quando sozinho, falar. Comparava os
cavalos taludos e a moça da ginástica e as coisas da Rua João Teodoro.
Desnecessário conhecer coisas para comparar. Cuidava que os outros não o
surpreendessem nos solilóquios. Desagradável ser pilhado. Impressão de todos
saberem o que se passava com ele – pensamento e fala. Paraná também achava
que aquilo era mania de gente boba. É. Não devia. Mas era muito bom. O
menino se achava muito bem, quando podia estar daquele jeito.
Eta frio! Tinha medo. Alguém poderia vê-lo sacar uma de dez. Que vontade!
Arriscou. Num bar da Marechal Deodoro. Entrou sorrateiro, encostou-se ao
balcão. Só um casal numa mesa, falando baixinho e bebendo cerveja.
Tremelicou, bebeu, pegou o troco, duas horas no relógio do bar. Cansado, com
sono. Por que diabo todos os relógios não eram como aquele, grande e fácil?
Entretanto, não se deteve nesses e noutros pensamentos. Mais meia hora de
chão, e se Paraná não viesse?... Teria que acordar muito cedo. Escapulir bem
escapulido para os caras que compraram o ferro-velho do Diogo não
perceberem. Apalpou o embrulhinho branco. Repetiu o exercício muitas vezes.
Não haveria de perdê-lo. Levava a manta embrulhada como se carregasse um
livro. As perninhas pretas começavam a doer.
– Mas que frio!
Lúcia contava que navios apitavam mais sonoros que chaminés. Enormes.
Gente e mais gente dentro deles. Iam e vinham no mar. O mar... Ele não sabia.
Seria, sem dúvida, também uma coisa bonita. Quando seu Aluísio ria, o bigode
se abria, parecia que ia sair da cara. É. Mas o burro Moreno não chegava nem
aos pés dos cavalos da revista.
– Cavalo não tem pé.
Quem é que lhe falara assim uma vez? Esforçou-se, não lembrava. Somente se
lembrou de que Paraná talvez estivesse esperando e apertou o passo. Vento. O
pezinho direito subia e descia na calçada e o menino sentia muito frio. Meteu
também o embrulho da manta entre a camisa e o suspensório. Mãos nos bolsos.
Evitava os olhares dos guardas. A Avenida teria muitos, era preciso, quem
sabe, desguiar. Enfiar-se, talvez, pelas ruas transversais. Mas temeu se perder nas
tantas travessas e não encontrar a igreja das Perdizes. Ia tremelicando, mas ia.
– Cavalo não tem pé.
Quem é que falara assim uma vez?
Largo Padre Péricles. Igreja das Perdizes. Suspirou. Estava perto. Por ali
ninguém. Tudo dormido. Só motoristas de praça que ouviam rádio baixinho,
cabeça deitada no volante. Deveria ser bom ficar como eles... Ou tocando pra
baixo e pra cima num carrão daqueles. Vida boa. Nenhum vagabundo dormindo
nas portas da igreja.
– E Paraná?
Parou, pensou um pouco. Perplexo, pareceu-lhe a princípio estar fazendo coisa
errada, não indo procurar Paraná noutro canto. Vasculhar outros lados. E se não
estivesse no ferro-velho? Um pressentimento desusado passou-lhe pela
cabecinha preta. Guarda-noturno surgindo no largo. O menino andou.
Logo que começou a descer a Água Branca veio-lhe um pouco de fome e uma
vontade maluca de urinar. Ali não dava. Se viesse alguém...
Já seriam duas e pouco.
Frio. Canseira. As casas enormes esguelhavam a Avenida muito larga. Pela
Avenida Água Branca o menino preto ia encolhido. Só dez anos. No tênis furado
entrando umidade. Os autos eram poucos, mas corriam, corriam aproveitando a
descida longa. Tão firmes que pareciam homens. O menino ia só.
Na segunda travessa, topou um cachorro morto. Longe, já o divisara.
Assustou-se com as deformações daquele corpo na beirada do asfalto. Analisou-
o de largo, depois marchou.
– O coitado engraxou alguma roda.
Ficou com pena do cachorro. Deveria estar duro, a dor no desastre teria sido
muito forte. Não o olhou muito, que talvez Paraná estivesse no ferro-velho.
Seguiu. A vontade forte ia com ele.
O muro pareceu-lhe menos alto e menos difícil de pular do que advertira
Paraná. O menino procurou o homem por todos os lados. Depois, chamou-o.
Abafava os sons com a mão, medroso de que alguém, fora, passasse. Chamou-o.
Nada de Paraná. E se os guardas tivessem... Uma dor fina apertou seu coração
pequeno. Ele talvez não veria mais Paraná. Nem Rua João Teodoro. Nem Lúcia.
– Para-naaá...
Repulou o muro. Ainda olhou para a Avenida. Frio.Queria ver um vulto.
Ninguém. Não havia nada. Só um ônibus lá em cima, que dobrava o largo, como
quem vai para os lados da Vila Pompeia. Então, desistiu. Agarrou-se com
esperança à ideia de que Paraná era muito vivo. Guarda não podia com ele.
Sorriu. Pulou de novo. Achou a tarimba prontinha. Tateou o embrulhinho
branco. No escuro, sem lua, os pedaços de folha de flandres era o que de melhor
aparecia. Abriu a manta verde, se enrolou, se esticou, ajeitou-se. Pensou numas
coisas. Olhando o mundão de ferrugem que ali se amontoava. Não se ouvia um
barulho.
– Cavalo não tem pé.
Onde lhe haviam dito aquilo? Não se lembrava, não se lembrava. Coitado do
cachorro! Amassado, todo torto na Avenida. Também, os automóveis corriam
tanto... Frio, o vento era bravo. Sentia ainda o gosto bom do leite. Onde diabo
teria se enfiado Paraná? Ah, mas não haveria de meter o bico no embrulhinho
branco! Nem Nora. Muito importante. Paraná é que sabia, Nora não. Um arrepio.
Que frio danado! Entrava nos ossos. Embrulhou-se mais no casacão e na manta.
Fome, mas não era muito forte. O que não aguentava era aquela vontade.
Lembrou-se de que precisava se acordar muito cedo. Bem cedo. Que era para os
homens do ferro-velho não desconfiarem. Lúcia, branca e muito bonita, sempre
limpinha. Sono. Esfregou os olhos. O embrulhinho branco de Paraná estava bem
apertado nos braços. Entre o suspensório e a camisa. Que bom se sonhasse com
cavalos patoludos, ou com a moça que fazia ginástica! Contudo, não aguentava
mais a vontade. Abriu o casacão.
Então, o menino foi para junto do muro e urinou.
DOIS RAIMUNDOS, UM LOURIVAL
E vem de um distante batuque descendo as ladeiras o balangado, o meneio no
andar das mulatas e o sorrir inteiro que esta gente põe no olhar.
Sol bate, rebate, faz um clarão todo por igual.
Sou puxado, num repente, pelo grisalho bêbado, um Joel, suando e dançado
nas pernas, que me empurra guiando para dentro do botequim e vai gritando,
cachaça!
Dois olhos raiados de sangue me espiam, esperando a palavra. Não era isso que
eu esperava do lugar, buscando aqui três famas diferentes. Patrimônio histórico,
barra pesada do candomblé e as mulheres mais bonitas da Bahia. Mas topo
bêbados delirantes, à luz de um sol sem pena, chega a embranquecer casas e
coisas debaixo deste azul, céu de doer.
Quero desguiar e não há modo. Tento uma camaradagem sem trompaços e
encontrões, no diga aí, meu compadre.
Ele engole a pinga, bota careta, cospe e despeja:
– Tudo bem. E tudo merda. É uma cidade da porra. Ajunta lamúrias, pragas,
imprecações. E vai contando nos dedos. Nenhum mercado de trabalho para
ninguém e os prefeitos são uns fiascos.
– Esta é uma cidade funerária e beberrária. Desguio de vez, envieso, pego a
praça do mercado e chego onde mais movimento e rumor se aformigam na
sujeira, nos cheiros fortes, promiscuidade, misturação, galinhas, bodes
fedorentos, porcos.
E chama a isto inverno. Suo neste março, no mercado que começa pela fileira
de barracas de armarinhos e sandálias de couro cru e solados de pneu. Entra, aí,
pelas frutas, ervas e salgados. Vou empurrado como em procissão e, de um lado
e de outro, vendem-se bichos, aves, talhas, cerâmicas, carnes, farinhas, feijão.
Barracas expõem uma mixórdia cheirosa, desmaiando, ensolarada.
Ruído muito e cantoria de cegos e pedintes, uma rabeca corta o ar. Jegues
pacienciosos, velhos guarda-chuvas descorados que de preto passaram a brancos,
ruços e hoje vão da cor de burro quando foge. Um marrom lavado, xexelento,
ficou sofrido, ruço. Pregoeiros me passam, é a pimenta-de-cheiro e o dendê;
trescalam frutas tantas, jaca, manga, laranja, abacate, banana, coco e se misturam
às negras e mulatas, que carregam tudo à cabeça e dão nó nas cadeiras. Sobem a
rampa de pedras irregulares, lentas e firmes, bem marcadas na cadência,
ancudas, tomam os lados da igreja.
As casas encaram os homens, mulheres, molecada miúda, jegues parados. O
sol de rijo, caindo amplo na cantoria dos cegos. Safira, acolá azul transparente,
largo, o céu é grande em cima da gente.
Parece meio-dia e são duas da tarde.
Atracado por três moleques, pés no chão, caras cavadas, lanhados,
despachados na fala. Dois roxinhos e um pardo.
– Nós somos direitos. Nós, quando vêm os turistas, a gente fala sobre a cidade.
O senhor quer visitar o Museu da Cidade? O senhor quer um bom pai de santo?
Tem um porreta, antes de São Félix. Tem muitas coisas boas. Tem uma das
melhores igrejas, Ordem Terceira do Carmo. Lá tem sofrimento de Cristo
apresentando uma cal chinesa. Mais o Senhor dos Passos, todo feito em madeira,
escultura portuguesa.
Debulha na ponta da língua. Um que matraqueia aos supetões, tomando a
palavra dos outros. Disputa se firma e os três deitam falação a um só tempo.
Malfirmes, prendem a respiração quando não aguentam mais e recomeçam,
metralham. Desembestam brigando, quase aos sopapos, que um só será o
cicerone. Tenteio, no começo. Mas vou me desvencilhar.
Ah, a mulher mais bonita, das vistas até então, não é negra?
Vejo cá da ponta, vendendo castanha-de-caju assada, a mais frajola das
mulheres do lugar. As maçãs do rosto dão ângulo, um pescoço fino, o colo liso
de alta e agazelada. Não é negra inteiriça, nem roxinha mais para o fosco como
as do Recôncavo. Mais está para o jambo, acanelada, mãos dobradas na curva
das cadeiras. É mulata e Veronice mesclada, de aí uns dezessete anos e um verde
nos olhos marinhos, lá longe e fatais. Mercadejando, a graça.
De perto, é mais. Olha de canto de olhos, sabedora, percebe um tudo, mulher,
abre só um pouco a boca branca toda igual.
A charla fica impossível, ali. Vivo como um gato, ladino e pronto, se planta
entre nós o pai, mulato dobrado sacudido, do chapelão de palha à cabeça,
querendo saber quantos quilos vai de castanha. E, por via das dúvidas, ressalta
que o óleo da castanha-de-caju serve até para mover avião.
E eu que quase ganhei um sorriso.
Voltam-me os moleques, a fim. Largam a ladainha de guias. Driblo mas não
escapo, me pegam na curva do portão, me puxam pelas calças, teimam, se
postam em campo aberto. Estão com a fome pega e me exigem, plantam-se nos
paralelepípedos quentes:
– Veio de Portugal. Dentro da sacristia tem um Cristo todo em marfim, todas
gotinhas de sangue são em rubi. Tem a parte do crucifixo mais antigo de 1686. É
a prata mais velha. Tem um túnel antigo que quando a santa jesuíta passava com
toda a sua riqueza ia sair no seminário de Belém.
Fácil, molecada me ganha. “São cidades históricas. Cachoeira, São Félix,
Belém, de onde saiu o padre Alexandre de Gusmão, inventor de aeróstatos.”
Alexandre ou Bartolomeu de Gusmão, tanto faz. São só uns trocados para
cada, não morderão mais do que cinquenta. Seja. Deixo, me tomem por barão.
Dois Raimundos, um Lourival. Rondam treze anos, se tanto, batem perna,
apanhando algum de turistas, decoradas as leituras que ouvem no escritório de
turismo. Decorebam tudo e soltam, com agilidade, na cabeça do barão visitante.
Também há umas e outras de cor e salteado. Um dos Raimundos, dez irmãos;
outro, tem seis. Lourival diz: são quatro. Mães trabalham para fora; pais, sem
profissão, se arrumam com o pescado no Paraguaçu. O rio de águas pretas dá
peixe bom.
– Tem o piso espanhol, o barroco italiano, a madeira ébano que só dá na África
ou na Ásia. Tem a escada que reza o Pai-nosso completo. E tem os ouros. É tudo
original. A talha é toda feita em rococó francês.
Grudaram-me. Arrancada a atenção, dançam de alegria, tropeçam um no outro.
Empolgados. Um dos Raimundos, o lanhado de cicatriz feia na testa, trabalha
mais.
Come um couro de atabaques no batuque distante descendo as ladeiras.
Arriadas à sombra, silenciosas defronte ao mundão de cerâmica, talhas,
gamelas, negras velhas, lenços à cabeça, se acocoram às beiradas do casario, saia
surrada no vão das pernas, num tufo. Cachimbam e cospem.
– Tem uma água especial. Contém magnésia e sais minerais. Tem uma cruz
toda feita de jacarandá, esculpida a canivete. Tem o grande artista dentro da
cidade, Dante Lamartine, de pinturas.
De cá da margem do Paraguaçu, São Félix aparece de frente, calmo presépio
colonial, traquejado e sestroso de palmeiras ancestrais. Escorrem na casaria
caiações claras em amarelo, azul e verde, mais leves e nítidas com a luz deste
sol. Sopra a brisa ligeira. Gostoso, olhar e ela na nossa cara.
O guardado para turistas e fariseus, já deformado pela pressa, atropela,
ansioso:
– Tem o artista chamado Louco, filho Boaventura, que trabalha em escultura
em madeira. Tem a Cabana do Pai Tomás que tem antiguidades. Precisa falar o
nome das antiguidades que tem dentro?
Bato a cinza do cigarro, chuto para longe um papelucho do caminho. Os três
não estão com a fome só, pés no chão só; manchas amarelas clareiam de
verminose nas caras.
– Louças, armas antigas, relógio oito de parede, punhal, clavinote, cerâmica do
Cândido Xavier, tem pilões antigos, escultura do Maloco Filho, Roque Bolão
que tem outra casa de negócio. E ele mesmo trabalha para ele.
Tomamos táxi que toca para os lados dos trilhos dos trens, os moleques se
enfiam no banco traseiro, rápidos e magros. Ganhamos a ponte histórica,
inaugurada por um imperador do Brasil.
– Tem uma ponte feita na Inglaterra transportada para Cachoeira. Ela tem 365
metros de comprimento e 9 metros de largura, feita pelos ingleses e inaugurada
por D. Pedro II em 1834. A gente passamos agora em cima dela.
Vencida a ponte, do outro lado, São Félix.
Às igrejas, feito turista. Basbaque e curioso, barão. E logo, antes que a tarde
comece a cair.
– Tem o Rio Paraguaçu. Paraguaçu era uma índia, mulher de Caramuru.
Quando ele chegava, aí se dizia: cuidado com esse homem que ele é feito de
fogo, filho do trovão e anda trocando guerras e dando tiro para cima e tiro para a
terra. Ele pegou uma vasilha e pôs álcool dentro e gritou para os índios que tava
tocando fogo no álcool. Se os índios começassem com a luta, ele tocava fogo no
rio e matava todos eles de sede. Aí, Caramuru ficou comandando a tribo dos
índios carajás. Ele ficou como rei da turma. Aí, no fim, todos os índios morreram
e ficou Caramuru sem alguns índios. Ele se revoltou e se matou.
Tem o Rio Paraguaçu, tem, tem, tem. A latomia renitente, dita de cor. Corto:
– Menino, o que é barroco?
– É um apreparo muito interessante que vem da Inglaterra. O que pintou a
pintura da igreja Ordem Terceira do Carmo foi José Teófilo de Jesus, que pintou
o ouro da igreja.
Ronca da praça uma zoada de reco-reco, som de sapo ou perereca, que um
vendedor de cigarrinho de criança oferece. O brinquedo, pobre, mas de engenho,
caixinha de percussão em que se amarram, ao papelão, uns poucos, cinco, seis
fios de sisal ao pauzinho com a ponta coberta de betume e breu. Vai girando feito
reco-reco, distrai a gurizada, daí o nome. Zoa que vai longe.
Meus, meus acompanhantes não querem nada de cigarrinho de criança.
Afoiteza não se distrai e o mais falante dos moleques está a trabalho, não a
recreio. Embala:
– A cidade foi fundada em 1595 por Henrique Paulo Dias Adorno. No mesmo
ano foi feita uma igrejinha. Foi a principal residência. Pero, um dos irmãos de
Caramuru, índio domado, fez uma residência que hoje é uma detenção e
antigamente foi uma das principais casas dos senhores de engenho. Tem a
Prefeitura na cidade de Cachoeira e lá tem um canhão de bronze com emblema
de Portugal que foi achado no litoral esquerdo do Rio Paraguaçu. Em frente da
Prefeitura se passou uma das primeiras lutas da independência da Bahia, a 25 de
junho de 1822. Tem o Museu Nacional que tem todos os móveis de D. Pedro II.
Quando ele esteve aqui na cidade, se hospedou num sobrado, em 1834. Foi
quando ele veio para inaugurar a ponte. Na Rua 13 de Março, defronte à Pousada
dos Guerreiros, tem o melhor motel da cidade, que antigamente foi uma das
primeiras casas das moendas.
Olhamos as cascatas admiráveis e, depois, mais igrejas ancestrais.
Três e meia da tarde e a turminha a pé, pelas ruas de calçamento irregular.
Minha cabeça baixa, quando em quando, com o falatório que retorna.
Comamos peixe. Feijão de cor, mulatinho, arroz, farinha. Ou moqueca. Venha
tudo e bastante, a molecada deve estar arada. Haver, há sempre, desde que se
pingue uma gorjeta. Assim, peço cachaça da terra, mesmo com o calorão.
Ocupamos a mesa oval, madeira forrada de oleado florido e gasto na pensão
vazia àquela hora da tarde. Para o lugar, isto não é mais hora de almoço. Tragam
refrigerantes para os moleques.
Ficam alegres como crianças. Falam entre eles, entretendo-se com vontade, e
comendo de colher nos pratos fundos. Arados. Entorno cachaça, belisco a
moqueca farta de dendê e pimenta.
Já se esqueceram, não rezam mais o landuá.
De longe em longe, passa um e passa outro na rua larga de sol. Chega-se um
mulato e se intromete, humilde na mesura, doutor e outros tratamentos, um rasgo
na calça gasta no lugar dos joelhos. Vai dizendo que sou filho de Xangô e ali,
logo mais, ladeira acima, há um pai de santo que adiantará a minha parte.
Questão de trocados.
Na mesa, um deles, saciado ou bêbado de comido, meio modorrava, meio
batucava bem baixinho no oleado, cantarolava numa meiguice. Era Lourival, o
da falha de dois dentes da frente.
Um Raimundo tem dez. Outro, seis. E Lourival tem quatro irmãos.
Dava para pegar:
Quando eu morrer, eu vou em troca de camisa
Neste mundo pobre de luxo não precisa
Cinquenta velhas desdentadas e carecas
Onde ia à frente tocando na rabeca
Cinquenta velhos bem barrigudos
Onde ia à frente tocando num canudo
Cinquenta velhos de forros e balões
Onde ia segurando nas argolas do caixão.
* * *
TRÊS CUNHADAS – NATAL 1960
Isto não é vida.
Mas a gente toma o primeiro chope do dia e é como se tudo começasse de
novo.
Da porta do botequim, o sujeito se chega para as beiradas do balcão. Encosta-
se ao mármore, fica olhando para os baixos da cafeteira onde a imundície meio
marrom, meio preta, vai encardindo azulejos. O calor está dando nos nervos, as
moscas numa agitação embirrada.
– Me dá um chopinho.
O moleque dá uma ginga, vai catar o copo.
Engole de uma, duas talagadas. Deixa o pensamento zanzar numas coisas, os
dedos virando o copo gelado. É. O que esculhamba a vida da gente são as
prestações.
– Queria um tira-gosto, tem?
O torresmo. Mascou, bebeu, pagou. Saiu.
Cada vez mais quieto vai à praça e, no meio do povo, se enfia para a barca de
Niterói. Sente as notas no bolso, um aborrecimento. Necessário se espremer
como um sabido, não gastar mais de vinte mil com o presente das cunhadas.
Também, a mulher não o devia aporrinhar com aquelas ocupações domésticas.
Diacho. A mulher bem poderia ter comprado os presentes para as irmãs, dado
logo um tiro naquilo. Ele, não. Não entendia dessa coisa de presentes. E o pior
seria quando começasse o mês, no comecinho do novo ano, a mensalidade da
geladeira e do liquidificador. Que ele nunca sabia a quantas andava. Amassou o
cigarro e os olhos baixaram.
– Essas porcarias comem a gente por uma perna.
Um pensamento fanado passou-lhe. E se o diabo da mulher tivesse comprado
os presentes a prestações em setembro ou outubro – não teria sido uma
economia?
Encalistrado. Assim pelo resto da travessia, aboletado no seu canto e curtindo
aquele embaraço, quietamente.
– Borboleta! Olha a borboleta!
Os preços driblam na Praça Quinze. O homem é empurrado para os lados do
Largo da Carioca. Ali se pede, se rasteja, se esmola. Molecadinha bate pandeiro
e canta em louvor a Jesus. Que nascerá amanhã e enquanto é hoje, as crianças,
bocas já cínicas, pedem ajuda pelo amor de Deus. As crianças pretas, uniformes
de brim, a bem dizer não pedem, cutucam: exigem do basbaque passante. Os
gasparinos no ar, sobre as mãos, vão gritando de cor:
– Cavalo, olha o cavalo!
Capiongo, enverga o espinhaço, pende a cabeça, começa o namoro com a
vitrina. Entra afinal, já está arrependido, os preços o assustam, tenta a meia
volta. Mas as falas do homem do balcão estendem um raio de simpatia. Olha
suplicante para as coisas que vão lhe morder a fatia maior dos trinta cruzeiros.
Entre tecidos, louças, vidros, quinquilharias, penduricalhos, ele sabe que aquilo
tudo não serve para nada. Ou não sabe exatamente para quê. No entanto as
coisas saem da boca do vendedor, muito antes de serem tangíveis ao toque da
mão.
O sujeito fala. Fala. Refala. A verdade é que já está enchendo. Há uma boneca
de cara humilde, dessas que dão vontade de se acocorar defronte da vitrina e
olhar demorado, de perto.
Estava aí, estava aí. Um sujeito de dinheirinho medido, contado, recontadinho.
E tinha de comprar os presentes das cunhadas. As três. Não se entretivesse, o
dinheiro andava recontado.
Então, levanta o nariz e põe cara séria, examina um cristal que finge conhecer,
enquanto o canto dos olhos acompanha umas pernas que passam. Aborrece o
cristal e segue as pernas. Também, não poderia gastar tanto.
O que a rua mais sabe fazer é misturar gente.
A rua geme, chia, chora, pede, esperneia, dissimula, engambela, contrabandeia.
Espirra gente. A gritaria dos camelôs parece um comando. E os óculos franceses
vieram de Cascadura, a seda do Japão saiu de algum muquinfo das beiradas da
Central, os relógios suíços foram trazidos de algum buraco da Senhor dos
Passos. A rua reúne bolos de safardanas. E quer vender.
Estivesse de olho aberto. Necessário comprar o presente das três cunhadas.
Começa a regatear uns embelecos de metal que brilham, que ele não entende e,
daqui a pouco, numa esquina, loja ou bazar, a rua lhe impingirá, mordendo o
pedaço mais pontudo dos trinta cruzeiros. O ruim é não entender de presentes e
menos de suas cunhadas que um dia viveram em sua casa de Niterói e um dia,
sem esta, nem mais aquela, se largaram para longe. Ou, por outra, foram tocar
suas vidas lá pelos lados do Flamengo. Flamengo ou Laranjeiras, ele nunca
sabia. Quase sempre dizia, “elas moram no Flamengo”.
Também, aquilo não era vida. Vidinha chué, uma mão na frente, outra atrás.
Aborreceram Niterói e suas travessias de lá pra cá, todo dia. Por fim, moças
carregando seus fogos. Não era vida de moças na força da idade. Aguentar
aquela pisada brava, só para quem tinha dois filhos e três bocas para dar de
comer. As cunhadas estavam certas em se botarem pelo mundo. E falando uma
verdade, até que o desapertaram. O tutu que apanha no fim do mês lá no banco,
como contínuo, dá para botar comida dentro de casa? Dá? Não dá e nunca deu.
Pobre não luta; pobre peleja. Então, o cavalo mete algumas safadezas pequenas e
se desdobra fora do expediente do banco. Aguenta o rojão, já que tem de segurar.
À noitinha, raspa-se à pressa para as corridas da Gávea, onde calcula e toma nota
de acumuladas, faz pagamento de poules quando é quinta-feira, sábado ou
domingo. É.
As três cunhadas se ajustaram em sociedade, hoje andam penduradas num
apartamento das Laranjeiras ou do Flamengo. Diz sempre Flamengo.
Apartamento. Têm televisor, um alta fidelidade, cascolac e, naturalmente, seus
homens. Coisas.
– Também, aquilo de Niterói não era vida – empurra para dentro, como
justificando ter-se livrado das cunhadas.
De mais a mais, lá naquele buraco de Pinheiral, de onde vieram, vidinha ainda
pior, nenhum desses confortos. Hoje em dia xingam aquilo de Pinheiral; já se
chamou Pinheiros, pouco antes das cunhadas se mandarem ao mundo. Mudou só
de nome e vai de mal a pior. As cunhadas... Bem. Essas nunca tiveram cabeça na
vida.
Fecha os olhos, larga o lance. Consegue uma economia sovina de cinco
cruzeiros. Com o jogo de copos, as louças e os guardanapos coloridos, alcança a
rua. O pacote de Natal é colorido e vai debaixo do braço.
Num golpe, de novo está na rua. Essa Rua da Carioca não se cansa de misturar
gente.
– Como vão as crianças? Bom Natal!
É sempre de repente e sem a gente saber como que um chato aparece. Esse,
agora, diz conhecê-lo do Saco de São Francisco e uma vez se encontraram, na
praia, por causa de uns siris. Agora fala, fala, repassa coisas, e o aperta num
abraço que machuca roupas e o pacote.
O que lhe dói mais é que não consegue deslocar os pensamentos do tipo que o
abraça. Gostaria muito de se deixar perder pela música saindo da casa de discos,
e principalmente, não ouvir aqueles augúrios de Natal e Ano Bom. E o sujeito
fala, refala. Então, resolve ter pressa, faz que vai pegar os lados do Tabuleiro da
Baiana.
Um táxi, um táxi. Enfia-se estabanado, antes tropeça na calçada, a canela
atingida. Senta-se bufando. O desconhecido, lá fora, está lhe enviando um aceno
de mão. Não responde, pede ao volante.
– Ô doutor, vamos para as Laranjeiras.
Dá de olhos no comércio, febre e pressa, é Natal. Mas acaba seguindo pernas e
decotes na rua, que ficam acordando outros, vistos ali, além, no banco, no mar
ou na Gávea, talvez num filme. O sol está queimando no Tabuleiro da Baiana, dá
de chapa no povo. Seus olhos pulam tudo e vão ficar na estação dos bondes de
Santa Teresa.
Lembra que pediu errado:
– Amigo, não é Laranjeiras. É Flamengo.
E o meu Papai Noel não vem
A repetição das batidas de limão, que fazem transpirar, lhe dão coragem; diz
que detesta bolo e se aceita café é para fumar depois.
Eu pensei que todo mundo
Comeram-se dois frangos buscados pra viagem ao churrasqueto do Largo do
Machado, que se juntaram a arroz, torresmos e farofa. Havia um uísque nacional.
E vinho de Bento Gonçalves, que ninguém bebeu. Preferiu as batidas e, como
não houvesse cerveja no congelador, foi de cachaça até a tarde cair. Vieram
passas e avelãs e a tarde deu de se arrastar, pesada.
O que você quer?
Estava-se num apartamento de nono andar, possível ver lá embaixo as
palmeiras e os casais zanzando no largo do Machado. A hora era aquela – dos
namoros, dos pardais. Rejeitou o doce de abóbora:
– Sabe, a gente que bebe não se dá com doce.
Fosse filho de Papai Noel
A cunhada do meio tem a cara inchada, irreconhecível, um mostrengo. A cara
sem expressão alguma, dolorosamente vai fazendo desfilar tédios, cansaços
afetados e suas últimas grandes despesas. Ou melhor, reconhece que não é a
cunhada do meio, é a mais velha, a que fez plástica e a cara piorou.
Já faz tempo que eu pedi
O uísque e as batidinhas vão tirando as peias, desatrelando línguas. Trocam-se
fuxicos, revelam-se pinimbas, fala-se de um parto complicado e do primo que
morreu nadando em Ramos. A conversa escapa da pasmaceira por causa da
lembrança de um bilhete de loteria. Por um número teria sido milhar seca. E só.
É brinquedo que não tem
O álcool lhe ronda a cabeça e ele já ensaiou escapulir dali algumas vezes, mas
tropeça e tropeça numa timidez que não explica. Afinal, o tempo passa, lhe vai
chegando o conhecimento da vida das cunhadas. Ou por outra, elas não dizem;
ele pressente nos silêncios de uma fala e outra.
Com certeza já morreu
Houve um momento em que se desculpou por não haver trazido umas flores
que vira na Buenos Aires e que... As flores descoroçoaram mais àquela hora
balofa da tarde, já quase lusco-fusco. As cunhadas sabiam que ele jamais dera
flores de presente.
Brincadeira de papel
Havia de sair, quando fosse hora. E não havia jeito de varar a encabulação
espessa que lhe sobrava das conversas descarnando a vida de suas cunhadas.
– Mas afinal, que é qu’eu tenho com isso? – se perguntou, amolado, enquanto
lá do Largo do Machado vinham subindo as seis horas apressadas do horário de
verão.
Vê se você tem a felicidade
Acertou o relógio, fingiu um interesse pelo disco de Natal gemendo na alta
fidelidade:
Eu pensei que todo mundo
fosse filho de Papai Noel.
O que você quer?
Papai Noel
Vê se tem a felicidade
Pra você me dar...
Com certeza já morreu
Ou então, felicidade
É brinquedo que não tem
Já faz tempo que eu pedi
Papai Noel
Pudesse acompanhá-la, evitaria as falas das cunhadas. Mas a letra da canção ia,
vinha, embaralhava-se, assaltada pelas vozes das mulheres. Bom, se a seguisse.
Ele ficou algum tempo, sem esperança, olhando o disco que girava.
Uma das cunhadas, terceira vez, disse que ele bem podia ter trazido uma das
crianças para ver a titia.
Quase sete horas. Havia bebido mais e falou que se ia. Precisava levar os
meninos à Missa do Galo, em Niterói.
– Tá cedo. Fica mais um pedaço.
Ele se endireitou para a ganhar a porta. Fez:
– Nada. É hora.
Na barca as caras são outras.
Os pobres são pobres, começando pelos modos. O movimento daquela gente é
desbocado, barulhento. As roupas pioram, caras descoradas e bebedeira de pobre
é quase sempre esporro. Nas festas do ano, seja São Jorge, São João, Ano Bom
ou Natal se bebe mais em todos os cantões da cidade.
Ele embioca na proa, vai deixando as luzes do Rio. Da barriga da barca vem
zunindo a baderna de um velho barrigudo, olhos raiados de sangue, fantasiado de
Papai Noel e insistindo em ser uma alegria para a criançada. É um Papai Noel de
propaganda de um rei barateiro, graúdo dos secos e molhados. Sua fantasia é
surrada, usa aquilo vai para mais de quinze dias.
Mas na proa está frio, a brisa bate no peito e ele entra. Há uma velha
lambuzada de batom, com um chapéu de flores amarelas e vermelhas,
amarrotado, pendendo para o lado. Velha a que todos chamam pancada e que vai,
por ir, de Niterói para o Rio e do Rio para Niterói, enquanto lhe paguem a
travessia. O seu rádio de pilha não para de perturbar. Provavelmente bebe nos
dias de festa; sua maluquice à vontade vai cantando, dançando, bestando de um
lado e outro da barca. Alegre, alegre; uma criança. Costuma dizer que seu
marido é almirante.
O disco dizia que felicidade com certeza já morreu.
– Tá cedo. Fica mais um pedaço.
Ele se lembra da primeira cunhada, a que estava num vestido preto, bem caído,
pintada e dizendo que o ano passado tinha enfiado a mesma roupa, o tutu andava
curto. Mas ele sabe, ela anda é dando todo o dinheiro ao amante. Outra vez. O
pinta é mordedor e lhe suga um aluguel de apartamento em Botafogo, as
gratificações, as horas extras e o décimo terceiro mês. Não adianta a gente falar,
nem xingar de fuleira. Briga dizendo que gosta do gajo e aquilo, segundo ela, é
amor. Vai não vai, aparece de olho pisado. Claro, foi o gajo. Nas proximidades
do Natal, amante viajou e ela está satisfeita com o televisor novo. Disse até que
vai criar vergonha e arrumar o apartamento. A casa vai ficar um brinco. Coitada,
vai é pagar prestação pelo resto da vida. Disse de vestidos, moda, modas. Estava
quase sem roupa e não gostava de Natal, uma festa muito triste, como a do Ano
Novo – só não disse por quê. As irmãs sabem que é porque não estão passando o
Natal em Pinheiral com a mãe. Lembrou que, menina, plantava flores em latas
vazias de manteiga. Depois as vendia. Parece que plantava cravos para conseguir
bonecas e brincou com elas, até quase dezesseis anos. Mas, dormindo, fazia pipi
e no outro dia chorava, susto e raiva, dando com as filhinhas encharcadas,
arruinadas.
A barca vai encontrando companheiros pela rota. Navios iluminados, enormes,
parados, estrangeiros. O povo costuma interromper as conversas e se debruçar
nas janelas para espiá-los.
Ele está querendo se livrar de um aborrecimento e logo, logo esbarra numa
contrariedade.
Não era vida, a que levava a cunhada do meio. Chegou desenxabida, rabo entre
as pernas, já que o português não havia aparecido ao encontro. A última vez em
que se viram, aprontaram um espetáculo no meio da rua e ela bateu nele. Uma
cunhada apanha, a outra planta a mão. Essa cunhada do meio não encontrou um
homem que a entenda e a meta nos trilhos. Tem, aí pelo mundo, sabe Deus
metido em que buraco, um filho de quase dez anos. Diz uma palavra, arremata
com cinco palavrões. Andarilhou todo o sul e zanzou no nordeste. Mas não
encontrou um homem. Seu vestido fora de moda, largo; cabelo escorrido de
quem saiu do banho; um salto alto, exagerado. Chegou e nem falou boa tarde.
Ficou olhando os três, bem desconfiada. Sentou-se, pernas abertas, a bolsa no
meio delas, como um lavrador. E as três se puseram a discutir o cartão de Natal
que a velha lhes mandou, arrastando o tamanco ainda em Pinheiral. Falou-se da
velha e era como se estivessem sentindo alguma coisa, mas sabendo, no fundo,
que se a mãe lhes escrevia era porque estava precisando de dinheiro. Parece que
não interessa à velha que os filhos se esqueçam dela. Sim. A cunhada do meio
cortou como um tiro. O cartão era para as três, sem diferenças. E começou a
insistir nisso. Talvez tencionasse dizer que as irmãs eram iguaizinhas a ela. Sem
tirar, nem pôr. Andam com flosô. Ela é lavadeira e mora com um cozinheiro no
Morro da Catacumba. E daí? Uma das cunhadas desconversou, lembrando
necessário desligar o televisor, que estava quente. Então, a cunhada do meio
puxou a bolsa, se levantou, se espreguiçou; devia sair a um encontro e não se
soube com quem. Ela não sustenta homem, que ganha mal e mal para comer.
Mas deve ter uns três.
No bojo da barca, a velha maluca, o Papai Noel de propaganda, a molecada
como assistência, armaram um tempo quente por causa do chapéu de flores
amarelas e vermelhas que alguém, gaiato, com um safanão, quase atirou ao mar.
O mar é escuro.
Assim, a cunhada mais velha. E logo atacou a outra, que ia se encontrar com
aquele gringo muito do sem-vergonha. Para a mais velha, homem é bicho
canalha, ainda que dê dinheiro a mulher. Que o jeito é não depender de homem,
principalmente quando se está ficando velha e se continua de fogo aceso. Sem
juízo ninguém se arruma na vida. Jogou na cara das irmãs. Umas erradas,
deveriam se dar ao respeito. A primeira, funcionária pública explorada pelo
amante que lhe suga o sangue; a segunda, vivendo de lavagem de roupa e
ardendo por um homem. Duas tontas na vida. Ela, não. Só atura o seu, porque
Homerinho não é dessas coisas. Disse que a ligação lá deles é espiritual. O tal
Homerinho é parente de uns graúdos do Paraná, importantes. Montado no
dinheiro. Difícil aturá-lo meia hora, que o tipo, gordo e visguento como uma
lesma, é desses que chupam os dentes, calçam sapatos que já levaram mais de
uma meia-sola e andam com blusões remendados. Pior que joão-ninguém.
Chupa os dentes e entende como ninguém de prédios de apartamentos. Capaz de
varar noite falando nos negócios. A cunhada mais velha toma-lhe o que pode e
tomaria tudo, se ele não fosse um safardana bem acordado. Os dois dão certo,
certinho. Um, a panela; o outro é o cabo. Tomou-lhe o apartamento na Glória e
maldiz que Homerinho, um unhas de fome inveterado, podia ter-lhe dado bem
mais. A mais velha julgou brilhar quando confessou que o amante lhe deu quatro
milhões para a plástica do rosto. E daqui pra frente, a qualquer pelezinha que lhe
aparecesse, faria uma plástica. O rosto deformado da cunhada mais velha, cabelo
cortado rente à cicatriz que rodeia a cabeça. Os olhos estão pequenos, repuxados,
como olho de japonesa. Sonhara, na sua vida, ganhar muito dinheiro para fazer
plástica e ter muitas joias. Gostaria de um filho, mas é que tem o útero infantil.
Aí, avermelhou. As veias do pescoço incharam. Ela quase gritou; Homerinho
tem de lhe pagar as despesas e muita estação de águas até o fim de sua vida. Que
o amante não mora com ela, vive na Gávea e aparece de quando em quando,
levando a vida que entende. As outras se chegaram e lhe pediram calma. Não
podia falar muito por causa dos pontos da operação.
Amedrontou-se num supetão, tomou fôlego. De repente, sem quê nem para
quê, atirou que outra irmã, Dirce, casada, ainda em Pinheiral, cinco filhos, tem
de trabalhar para o sustento da casa. Morressem todos os cinco, mais o marido,
já que o homem não dá sossego e ela tem um filho por ano. Além disso, ele
bebe. Sustenta, refala. A veia do pescoço crescendo. Homerinho tem é de lhe dar
tudo. E muita estação de águas. Até o fim.
A mais velha calou-se. Foi botar um disco de ave-marias e começou com
coisas tratadas sobre o amor, dessas que deve ter lido ou ouvido em algum lugar.
Veio-lhe uma alegria, um quê não esperado. E se sentiu que, a qualquer
momento, ela desandaria a cantar.
Então, ninguém entendeu, a cunhada mais moça alterou a voz e disse não. Os
filhos de Dirce são as coisas mais lindas do mundo e o mais novo é parecido
com o menino Jesus.
Vêm vindo as primeiras luzes de Niterói. Amassa o cigarro, pede passagem,
vai para a frente da barca. Suspira, sorve a brisa. A barca atracando. E sempre
que torna, ele olha demais para as águas, naquela vontade besta de ser mais
moço, sem carregar filhos e nenhuma preocupação excessiva, moço para se
atirar de cabeça à vida e malucar à vontade de outros jeitos, livre e firme como
um desgraçado. Para bem longe daquela vastidão de águas.
Aquilo não era vida.
AS VIRGENS BLINDADAS DO FOOTING
Vamos dizer. A tarde é de domingo no interior. E lampeiro é adjetivo que na
versão caipira significa todo cheio de si. Bem. O pessoal, todo lampeiro, vai
saindo da missa das sete. A das sete é o fino, missa de bacana da região.
Necessário se esclareça que os bacanas do lugar são fazendeiros decadentes,
comerciantes e comerciários, bancários e funcionários públicos. O mais, a
maioria, o resto é ralé. A comunidade, efetivamente, não possui ciências, letras e
artes.
Vista de cinco metros de altura, a praça da matriz expõe maior limpidez e
perspectiva, além de caras conhecidas, sempre as mesmas, desfilando seus
cabelos durinhos de laquê, já amanhecidos do cabeleireiro. Os cabelos das
mulheres são penteados na véspera, com o acompanhamento de manicure e
pedicure, sábado à tarde. As beldades interioranas amanhecem, domingo,
praticamente sentadas; que as ondas e os cachinhos não se desalinhem.
Na manhã domingueira, as ocupações são variadas. Aulas de catecismo, idas
ao clube de campo, voltas na praça. Algumas moças são filhas de Maria e
cumprem rigidamente o voto de castidade, enorme, proibidor de maiôs, biquinis
(a tanga é a própria ignomínia: ai, ai, ai, meu Deus!), calças compridas e beijos
nos namorados. Jamais saíram daqueles círculos, são excelentes cozinheiras,
lavadeiras e catequistas. Essas prendadas, nunca percorreram, em toda a vida,
trinta quilômetros fora da área em que vivem. Ou melhor, em que atuam
gravemente de uniforme branco, faixa azul amarrada à cintura e lacinho,
naturalmente. Os vestidos compridos, a norma é não mostrar os joelhos; as
blusas de manga até o cotovelo e a gola alta, abotoada no pescoço. Os alunos
dessas catequistas são meninos e meninas que passam o tempo todo sentados,
direitinhos, quietos e obrigados. Só que, tímidos e amedrontados, têm caras de
quem não entende patavina de catecismo, olhos grudados nos vestidos ou nas
caras descoradas das professoras.
Esta, a moça do interior paulista até os dezoito anos. Umas virgens blindadas.
Depois, o tempo castiga. Ele marchando, o casamento não vindo, as saias
começam a ser levantadas, enquanto descem as golas e as mangas vão sendo
subtraídas. E, ai delas, se ousarem passar dos trinta e cinco na condição de titias.
Então, severas, tornam ao recato antigo. Descem barras, encompridam mangas,
voltam a frequentar a igreja. Já não há mais perspectiva de casamento.
Moças procedem bem para interessar aos moços da região, que preferem as
honestas e direitinhas. A preferência é apenas para namorar, noivar ou casar. Um
ciclo. Ali pelas nove e meia da noite, depois do namoro, eles seguem para as
casas da zona de meretrício. Desoprimir, expandir, aliviar-se. Mantêm o hábito,
mesmo depois de casados e alguns, melhor aquinhoados, sustentam prostitutas lá
– são um arremedo de otário abastado, um tipo mirrado do coronel das grandes
cidades. Mas na região o costume é macheza plena.
Até os vinte anos podem ser viçosas e terem namorado. Avante, a esperança
vai ficando remota. Os rapazes vão estudar fora, se encantam de outras zinhas, se
casam por lá. Os que ficam na cidade são uns perdidos, jogadores ou boas-vidas,
não querendo nada com o altar e com a vida honesta, séria. E nem estariam em
condições: de comum, são sustentados pelos pais. Vide as melhores famílias do
interior do Estado.
O futuro das moças é um só, sejam riquinhas, classe média ou professorinhas.
Casar. Ou acabar dando voltas no footing da praça, vestidos juvenis, geralmente
suntuosos demais para circular numa praça de interior. E terminar de cara
marcada. Caras de velhas precoces, marcadas pelo vazio. Literalmente, um
envelhecimento sem nenhum caráter e sem lances do passado.
A praça, um centro nervoso dividido e subdividido. Cada indivíduo tem sua
área e tudo se mexe debaixo de muito critério. Há lugar específico e delimitado
para negros, pobres, ricos e aspirantes. Já depois da missa das sete, braços dados,
os grupos, os bandos vão tomando rumo da sua adequada área social. Para a
escurinha fica fácil, que lá, a um canto apagado, perto do portão da igreja, é o
lugar do footing dos crioulos. Ali, alguns bancos recolhem negros, mulatos ou
gente muito rampeira, indesejável aos costumes bem-comportados, os pés de
chinelo. Ainda assim, muito difícil preto se misturar. Somente um que outro raro
branco-sem-vergonha, dado às mixórdias e orgias dos negros, mormente na
gafieira. Já que gafieira de interior (Clube Luís Gama ou qualquer variação de
nome de abolicionista) é também um clube fechado. Ali, só negros.
O meio da praça é das pés de chinelo. Umas mocinhas sem eira nem beira, a
que os playboys interioranos chamam, biscates ou galinhas. Mulheres fáceis,
desfrutáveis, à mão. Já a palavra lambisgoia, até certo ponto bem-comportada
para determinar moça perdida, é quase uma propriedade exclusiva das mães de
família.
Drama. Draminha. Dramalhão. Mais abaixo, já outra calçada, outro tipo de
garota desfila, roupas caras. São as operárias da fábrica (usina, calçados, juta),
rodeadas de operários inibidos, cozinhando flertes tímidos. Uns chegam a manter
flerte fixo, sem jamais haver uma palavra, durante mais de cinco anos. Operária
no footing veste caro, embora lá em sua casa quase se passe fome. E os pais
compreendem – é um investimento que elas fazem no provável casamento
próximo. Mas há também, na praça da matriz, a calçadinha de ouro.
É o ponto máximo, apoteótico. Do lado de baixo da praça, defronte à
sorveteria. Para perambular na calçadinha de ouro, as elegantes, moças ricas ou
que pretendem aparentar dotes, urgenciam vestidos novos. Cada domingo, um.
Não devem repetir sapatos, bolsas ou vestidos usados no sábado, seria a
humilhação das humilhações. As outras futricariam.
– Olhe, ela está com o mesmo vestido de ontem. Imagine! Parece que não tem
outra roupa.
A cidade é que não tem outro lugar a que se ir. Então, footing expõe virgens de
todas as idades. Algumas, de esperanças caídas, ainda vão passeando lerdamente
na praça os seus sessenta e tantos anos. Os olhares suplicantes das mulheres
encontram os rapazes. Os olhares são um capítulo de esforços sem amanhã. Os
moços locais estão ali apenas para exibir ternos e sapatos domingueiros, alguma
bigodeira ou barba à la mode; outros, são caixeiros-viajantes em trânsito pela
cidade, a fim de ganhar alguma garota papo-firme ou não. Papo-firme é aquela
que se deita facilmente, geralmente passada dos trinta. As outras, mais novas, se
deitam (quando isso acontece é um acontecimento) com rapazes a quem possam
enroscar, emaranhar, enredar, comprometer. Cavar um casamento. Olhares batem
nos moços no meio da rua impedida durante o footing. Pedem, imploram,
rastejam, ou simplesmente atravessam a rua, sem horizontes, como se buscassem
algo mágico, o príncipe encantado ou alguém, de carne e osso, que as arrancasse
da cidade. E que tivesse boas intenções. E que pensasse em casamento. Claro.
Também moça de quarenta anos ainda circula na praça. Uma porção de
meninas passeiam a seu lado, dessas que conheceu quando bebê e carregou no
colo. Já naqueles idos ela gastava salto na calçada horrível. Mas não se queixa de
nada, apenas reclama os saltos de sapatos deixados na praça.
Pontualmente. Entre sete e meia e nove e trinta da noite, a praça ferve. E é
subitamente, depois do lusco-fusco, entre o aparecimento dos pernilongos e da
luz elétrica. Um formigueiro de gentes, intenções, fervores. O footing atopetando
a praça.
Ele não é uma exclusividade das cidades pequenas do interior. Bairros de
cidade grande, que têm igreja e praça, vide Tijuca, no Rio, ou Santana e Penha,
em São Paulo, mantêm footing com a religiosidade da praxe. Mas no interior
paulista ele desce a detalhes e intimidades degradantes.
Há o funil. As moças, as tais biscates ou galinhas, chegam à praça, aos bandos,
braços dados. Bem. Os rapazes ficam, uns defronte aos outros, distanciados dois
a três passos. Faz-se um corredor e as moças passam. Conforme andam, vão
sendo selecionadas pelos olhares no corredor, que vai se estreitando; são
escolhidas e arrumam o seu rapaz, do qual procurarão tirar proveito, já que
durante o dia trabalham como domésticas. E o ordenado não dá. O lucro, de
comum, é uma migalha: um jantar, uma dormida remunerada ou simplesmente o
orgulho de mostrar às outras a ainda capacidade de fisgar um homem, ser
desejada. O funil é um trotoir mais grotesco. No finalzinho do corredor, passam
as que sobraram, as que ninguém quis. Então, são bolinadas, às apalpadelas e em
termos do caçoado baixo dos interiores de São Paulo:
– Gostosa!
E etc.
Todas as grandes famílias regionais sabem, e bem, que na praça acontece o
funil. E fingem não ver. As mães de família sentam-se nos bancos logo abaixo,
dando as costas para o funil. E, virtuosas, garantem que o footing é um
acontecimento social, ingênuo e franco. Onde elas próprias conseguiram seus
maridos. Limpamente.
Chama-se Linda. É irmã de médicos conhecidos, famosos dentro e fora da
cidade, cursos no exterior e outros tratamentos. Especialistas. Veste caro e sem
gosto. Mesmo para o interior, ela é uma bronca, lambuza-se de rouge, desse que
empapa o rosto. Magro, o rosto tem peles sem viço. Pés de galinha nos cantos
dos olhos, exageradamente pintados. Feia, formam-se lendas em torno de sua
figura passadona.
– Pois é. Foi moça bonita, rica, tanto escolheu que ficou aí. Até hoje passeando
na praça. Jogada pras traças.
Ela, falando:
– Não sei por que venho aqui. Acostumei. Hoje me faz falta. No começo, eu
esperava arrumar um namorado, casar, poder ser gente.
E respondendo a outras coisas. Mentindo, claro:
– Não, não tenho quarenta anos. Trinta e oito, só. Hoje venho aqui como vou a
qualquer outro lugar, com as amigas. Passeio e converso. Lógico, a gente sempre
ainda guarda esperanças.
O sempre-ainda lhe sai estupidamente malicioso, meio juvenil e meio
calhorda.
Passa um vestido branco, bordado de vidrilhos, miçangas e contas. Caríssimo.
Sapatos prateados, estolas de seda pura, desfilando ao barulho compassado de
conversas em semitom dos rapazes. Tudo isso, para essa plateia de machos –
terno escuro, gravata, sapatos na moda e polidos, cabelos igualmente brilhosos e
alinhadinhos. Um que outro playboy manchando a dignidade da calçadinha de
ouro: calças unissex, enormes cinturões, bigodeiras, costeletas, cabeleira hippie,
ar bestalhão.
Dos assuntos tratados pela ala dos varões, salientam-se os carros, que em geral
não possuem; bebidas e bebedeiras à base de cerveja, cachaça, traçados, em
algum boteco da cidade onde só entram homens, que mulher ali seria o cúmulo
dos desplantes e nem mesmo prostituta frequenta botequim do interior:
mulheres, em torno das quais as opiniões infalivelmente coincidem: o ideal de
beleza são as fêmeas mais do que fornidas, gordotas. Muito seio, pernas grossas
e nádegas abundantes. Quanto mais glúteo, melhor. Nota – morena de olhos
verdes será a sofisticação suprema, o fino. E param aí as fecundidades mentais e
os temas dos bem vestidos rapazes da praça.
No footing, os galãs nunca se arriscam a um mínimo sinal às moças. Anos após
anos, analisando as mesmas caras, alguns raros iniciam namoro que pode até
terminar no altar. Mas lentamente, muito juízo. Namoro de quatro, noivado de
oito anos. Calmo, assim deve ser. Ou antes, morno, vai durando até o primo se
eleger deputado estadual e arrumar um empreguinho para o futuro marido. Ela,
tira o diploma de normalista, vai ser professora substituta no grupo escolar para
fazer pontos. Sendo moça de sorte, arrumará uma classe e lecionará na fazenda.
Todas as manhãs, irá de charrete, voltará de charrete. Alegre, carregada de
abóboras, galinhas, ovos e flores. O máximo das felicidades.
As mais espertas se engravidam de rapazes de famílias ricas. A vida, então,
melhora. E ganham prumo. Tiram carteira de motorista, vão andar o dia
inteirinho de karmann ghia (se não for carro esporte, não vale: automóvel de
dois lugares é coisa para a classe média). Rico é assim – tem um carrinho,
karmann ghia; e um carrão, galaxie, impala, opala, dodge dart...
As grávidas de moço rico são as sortudas. À boca pequena, correm cochichos
na cidade em que se apregoa, como bom exemplo, o fato de que elas são garotas
que se arrumaram na vida da região. As sortudas. E, de comum, se casam de
vestido branco, véu, grinalda, cortejo e altar. O neném chega, aos sete meses;
mas está salva a honra e a propriedade. Passa por bebê prematuro.
Passou para a crônica da cidade o capítulo em que a futura mãe, recém-casada,
se retirou para uma fazenda, teve o filho logo após e só o registrou seis meses
depois. Assim, o menino tinha, oficialmente, só um mês de idade quando foi
apresentado à sociedade local. Um pormenor – já engatinhava.
As virgens blindadas do footing são arrastadas às consequências da
desesperação. Não é possível morrer titia. E no limiar de caírem no caritó (canto
da casa onde se guardam trastes velhos, miúdos e imprestáveis), tanto se lhes dá
o tipo de gajo. Seu nível cultural, emocional e até sua condição social, ganham o
segundo plano. É preciso casar. Basta que seja solteiro, tenha um pênis e esteja
disposto a casar. Casar. Para algumas, indóceis, superexcitadas, o pânico
crescendo, até a condição de solteiro passa a ser secundária. É o horror de ficar
no caritó:
– Não tem importância. Ele pode ser até desquitado.
O dito é uma ignomínia para os quadros morais do interior. Mas são palavras
de uma moça rica do interior paulista. Está chegando à casa irremediável dos
vinte e cinco anos, é feia; porém, é rica e não se conforma. Sai a passeio todos os
dias. Quando não tem footing, senta-se nos bancos da praça, sozinha, à espera.
Para tanto, está sempre em guarda – cabelos alinhados, bem-vestida e atenta às
novidades. Novidade é algum forasteiro que possa passar pela cidade. Rica,
poderia mudar de cenário; pular de cidade, ganhar horizontes, que ainda é
jovem. Mas não é nova suficientemente para as exigências da região. E ela não
aceita a vitória fora das áreas do footing, longe de sua terra natal. Ela depende
dali e vencer, só é vencer, naquela geografia:
– Moça só vence na vida e só vira gente com o casamento.
MARIAZINHA TIRO A ESMO
Branca, ainda assim, Mariazinha Tiro a Esmo, é uma peça. Meteram-lhe esse
nome lá pelos altos encardidos da Favela da Rocinha, num ponto de pivetes tão
tumultuado, tão cheio de movimento, rumor e estripulias que ali acordar era
fácil, dormir é que não.
Direitinha, como diriam os últimos rapazes, família da Zona Sul. Ela tem
picardia e está na dela, como dizem os tipos amalandrados dos becos e das
favelas. Dissimulada em seu trabalho, matreira trabalhando na boca do mocó,
indo e vindo na baba de quiabo, enganando otários e pacatos, ela sobrevive. Só
ou acompanhada na marginalidade, vai beirando o crime na cidade que castiga –
para mais de quatro milhões de habitantes, mais de um milhão de favelados.
O sol bate e rebate nos cabelos da criança. Plantada na esquina da Travessa
Angrense, às onze da manhã, ela trabalha. Fica justinha na calça comprida e é
uma figura esguia, enrustida e sonsa, nenhuma gordura na barriga lisa, cujo
umbigo a miniblusa mostra. É, para os leigos, apenas atraente e bronzeada,
principalmente para os que não lhe viram os dentes. Para os distraídos e pacatos,
para fariseus ou não iniciados em malandragem dos morros e dos becos do Rio,
mais uma garota bonita em Copacabana. Veste na onde e está a fim de ser
paquerada. É o que pensam os rapazes passando de carro ou mesmo a pé na
calçada da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, Posto Cinco e Meio.
Viva, colocada na esquina, os olhos medidores correm o comprimento todo do
quarteirão. Vendo se aproximar uma menina maltrapilha de uns nove anos, entra
pela Travessa Angrense, estreita, vai esperar numa ponta. A garotinha lhe
entrega dinheiro e Maria lhe passa mais cinco pacotinhos de drops. Maria é
olheira daquele trecho de Copacabana e responsável por seis meninas pedintes,
que vão esmolar e vender coisas miúdas entre Nossa Senhora de Copacabana e a
praia.
Mariazinha Tiro a Esmo, uma olheira da indústria de pedintes, esmoleiros e
vendedores da arraia miúda, parece ter dezenove anos. Tem quatorze e
pouquinho, só. O rosto, quando ela se abandona de suas trampolinagens na faina
malandra, é suave. Mas é agressivo, burlão, quase sempre. Os cabelos andam na
moda, escorridos, longos, matizados de sol e sem tintura. Os cílios enormes, sem
postiços. Alguns dentes podres, é o ponto fraco, vive chupando bala de hortelã
para esconder o mau hálito.
Treze anos. Maria já se mexia bem como sambista num bloco de Catumbi.
Pouca roupa, sempre uma das atraentes.
Os passistas observavam. Gostavam:
– Isto aqui de recheio de mulher dentro dessa roupa.
E atiçavam a menina branca a rebolar.
Maria, claro, nasceu pobre. Pai, ferroviário português; mãe, marafona loira.
Não se pode dizer que tenha tido um lar, mas morou ou se escondeu num barraco
de uma favela, a Catacumba. Pouco viu a mãe, e o pai só via já calibrado,
braseado, bebido de tantas cachaças da birosca.
Dura, vivida, batida, já usada. Falando é crua, descarnada. Mas inflexível com
as leis e a ética da malandragem. Mulher já, apesar de meio aturdida. É de
caráter, embora pendure em tudo o seu humor carioca – antes uma forma de
driblar os percalços, do que de fazer graça:
– Sei lá como o coroa, meu pai, podia se arrumar como ferroviário. Tivesse de
dirigir trem e o pessoal que queria ir pra São Paulo acabava desembarcando em
Barra do Piraí.
Teve escola, aos trancos e barrancos, mas a convicção, que impõe em tudo o
que diz, faria inveja às frivolidades amenas das mais lindas garotinhas do Leblon
ou Ipanema:
– Tive escola, bicho. A tua acho que foi moleza, não? O padre subia o morro
pra ensinar catecismo. Cadê de aprender as lições de fé da Bíblia, se o meu
negócio era aprontar? Aprendi a ler um pouquinho, na Bíblia mesmo. O resto foi
a vida.
A fala é de caráter. Mas o sorriso, abrindo dentes arruinados, mostra nos cantos
da boca um traço cínico, acanalhado, sinistro. Ela assistiu ao primeiro crime
quando tinha sete anos:
– Meu neguinho, foi mais ou menos assim. O assassino, até que era legal, um
cara que vendia coisas na birosca. Manja? Atendia legal às pampas. O paca
arranjava cada piadinha gozada. Todo mundo gostava dele, sabe. Um cara, um
dia, apareceu na porta da birosca, grudado numa mulher. E deu para fazer acenos
para dentro da birosca. O grito do bicho era “eu sou o macho” e cocoreco e bico
de pato. E fazia aquela ginga de mão, você manja, né? Dizia que era o bom e
outros papos. Mas a tal mulher, ih, rapaz, era mulher de véu e grinalda do
birosqueiro. Aí o homem se queimou. Meu filhinho, ouve que eu te dou de
graça: nunca queira fazer um boa praça de otário. Viu? O cara da birosca pegou a
faca de cortar abóbora e, de peixeira, pulou. Pulou balcão, pulou e disparou pra
frente do casal. Os dois eram otários e não esperavam aquela de homem que ele
deu. Acharam que ele ia chorar, ficar apaixonado e outros fricotes. Mas o bicho
era um ponta firme, pedra noventa, e foi lá. E quem chorou foram os parentes
dos dois. Sangue, meu chapinha; de monte. Eu estava ali pertinho e me lembro
que a mulher parecia uma dona da vida. Acho que parecia com a minha mãe. Eu
até gostei de ver a morte da dona, sabe? Uma boa vaca, que nem minha mãe.
O pai, ferroviário, bêbado, lhe dava safanões. E apenas. Comia mal e mal.
Catava restos de comida do lixo das residências lá no asfalto e entregava a
lavagem a uma dona que criava porcos no morro. Valia um único prato por dia:
– Escuro e preto que eu comia, varada de fome.
Se Mariazinha Tiro a Esmo perceber que está causando pena, baixa os olhos.
Mas tem um repente. Repele, incisiva. Encara:
– Que que é, ô bicho? Ainda não viu gente assim, não, é?
Aos nove anos fez o primeiro crime: meteu giletes no escorregador de uns
meninos que a surravam. Aos onze teve uma alegria das grandes: conheceu uma
dona da vida que a ensinou a fumar, a usar garfo, a usar soutien “eu nunca havia
usado um, mas até que ficou bonitinho”. Aos doze foi seduzida pelo pai
alcoólatra e saiu de casa para sempre, caiu no bairro de Fátima e na Lapa, onde
viveu entre marafonas, camelôs, gente sem eira nem beira, merdunchos,
pingentes urbanos. Ali conseguiu um protetor, mulato quarentão, metido com
jogo do bicho, mistura de padrasto e amante prepotente. A noite, depois do
lusco-fusco, fugia do casarão do Catumbi para catar alguém que lhe desse uma
voltinha de carro e algum dinheiro.
Um dia, tem de fugir com medo dos ciúmes do protetor. Acaba na Praia do
Pinto, num dos pontos quentes de pivetes do Rio. Começa, então, a pintar nas
festinhas de embalo enturmada com as bandidetes e faz ponto no Castelinho, no
Leme e no Lido. Quando a polícia aperta o cerco sobre os pivetes, por causa de
maconha, assalto, furto ou outras estripulias e aprontações, Mariazinha Tiro a
Esmo enviesa nas fugas para a Rocinha, Catacumba, Macedo Sobrinho, Morro
do Catumbi, Morro de São Carlos, Santa Teresa ou alguma favela onde ainda
tenha chance. Que, nas suas andanças, também arranja desafetos e, muita vez,
manejou navalha contra as outras.
Tem conhecido dias de fartura e tem dormido em soleira de portas, entradas de
edifícios, botequins. Os iniciados em malandragem costumam chamá-la de
pivete, carro novo, bandidinha, minigirl, leoa, bandidete, piranha, filhinha,
piniqueira. Mariazinha Tiro a Esmo não se dá por ofendida:
– Sou piranha, e daí? Eu tenho culpa? Acho que não gostaria de ser. Seria bom
ter um homem só com um carro só. Parece que seria legal. Mas está aí uma coisa
que eu acho que os homens não querem.
OLÁ, PROFESSOR, HÁ QUANTO TEMPO!
Nono andar.
Havia policial à paisana, grisalho e blusão fora da camisa, na porta de entrada
do edifício, e com ele precisei deixar tudo, embora fosse avisando, tinha hora
marcada, seis da tarde, com o professor. O homem me pegou nome, ar, endereço,
barba por fazer, a que vinha e quanto tempo ia demorar. Percebo. O professor
está sendo sondado à risca, todos os movimentos. Então, abri o braço, como se já
fosse desguiar:
– Meu senhor, se isso vai criar qualquer tipo de problema, não visito ninguém.
Não estou aqui porque quero, estou a trabalho. Não quero galho, até já estou
querendo ir embora.
O grisalho de blusão claro fora da camisa provavelmente julgou estar diante de
um maluco. Acho, nessas ocasiões, melhor botar a boca no mundo ou fechar o
bico de vez. Assim, passo por pirado e me tiram o olho de cima. O recurso,
reconheço, não é tiro e queda. Já vi policiais batendo em doente mental. E
quando a polícia mata alguém, a cidade não põe luto.
O policial garatujou, com esforço, errando duas vezes os meus dados num
caderno de anotações. Não era um homem habituado a escrever e devia tomar o
registro de todas as visitas ao professor.
Peguei o elevador, pé atrás.
O professor havia envelhecido pouco, apesar de nunca tê-lo visto – era o
mesmo homem das fotografias, onze anos antes, ministro, antes de o cassarem e
de ir para o exílio. Lépido, miúdo, baixinho, rosto escanhoado, olhos firmes,
vivos, alegria das pessoas dinâmicas, coisas que não tenho.
Com sotaque nosso, blusão fora da calça, me atendeu de pés no chão no seu
apartamento do Posto Seis, em Copacabana. Aquele, o homem. Eu lhe apertei a
mão, duas vezes; a segunda, ele notou, para lhe olhar nos olhos.
Tímido, pelo menos a princípio chamando de senhor um homem de pés no
chão do apartamento amplo, ele percebendo que eu dissimulava mal a
admiração. Leve, rápido, não fumando, foi pedir café à empregada, ofereceu
suco, preferimos café. Pedi para fumar. Grossura – claro que aquilo o
incomodava.
Aí, lhe peguei num lance, o tamanho e a personalidade. Concordou
discordando, como se dissesse: “ô, rapaz, eu já me esqueci de fumar, e você vem
me lembrar – tenha jeito, dê-se ao respeito”. Falou como um mais velho:
– Fuma. Você pode.
Achou graça e começou a falar, engraçada, pitorescamente. Curioso alguém se
interessar em como ele havia vencido o câncer. Despejou tudo de vez, quase
tudo. Ou: o trânsito ridículo de médicos estrangeiros que lhe escondiam a
doença, dizendo tuberculose. Ridículos, principalmente em Paris, onde ele exigia
ver e ouvir os resultados de todos os exames. As pessoas evitavam o nome da
doença como se evitassem a morte. Era um câncer mortal. Havia percebido pela
primeira vez que ele também era mortal e, como amasse a vida, sentiu que não
iria ter nada para colocar no lugar. Afinal, câncer era coisa que poderia acontecer
a um primo seu, a um parente ou contraparente distante, ao vizinho do prédio,
não a ele. Nunca havia pensado, sentido, amargado, que era mortal. Confessa
que lhe deu medo. E pressa. Urgente fazer as coisas, terminar um livro. Resolveu
jogar franco com o médico parisiense: “O senhor pode me dar três meses de
vida, lúcido?”. Nada.
Tinha de operar. “O senhor tem uma bomba no peito.” A bomba iria explodir a
qualquer momento, tomaria conta do corpo todo. Não havia ilusões, no entanto.
Mesmo operando, um fato líquido e certo, noventa e cinco por cento das pessoas
operadas de câncer pulmonar não escapam. Não operasse, não ficaria nem entre
os ralos cinco por cento restantes. Até lhe dizerem que era câncer, passou por
vários dribles dos médicos franceses. Um deles, dissimulou, com jeito, fazendo o
exame clássico de tuberculose pulmonar e o professor teve de pronunciar,
repetidamente, trinta e três, em francês. Aí, o médico cometeu uma ingenuidade
de bom-tom, verificando-lhe os olhos: “o senhor está pálido”. O espírito
brasileiro do professor universitário cortou rente com uma coisa que causa
vexame ao espírito francês: “não, estou muito pálido. Na verdade, sou um
mulato”. Paris é o grande centro dessa medicina na Europa e já tinham tudo para,
em três dias, operá-lo. Mas preferiu operar no Brasil. Os franceses torceram o
nariz, escandalizados.
Os homens que o deixaram entrar aqui, contavam com a sua morte infalível,
inadiável, cancerígena. Por isso, exilado político de 64, foi deixado vir. O
apartamento de sua propriedade, na Rua Souza Lima, estava ocupado, alugado.
Então, o permitiram num hotelzinho do Leme, sob vigia permanente. Ridículo,
um homem tão miúdo e grande, guardado pelos profissionais da polícia,
pequenos, broncos e patoludos. Miudinho, não se sabe tenha aprendido caratê,
aikidô, kung fu ou judô lá no estrangeiro por onde andou, lecionou, trabalhou,
sobreviveu estes anos todos, onze. Ele, falando, procura tirar a prisão domiciliar
de letra, cariocamente. Humorado, recebe e responde à estupidez que o vigia.
Oficialmente, comunicam-lhe, está protegido contra atos terroristas. Olhos
miúdos, cara limpa, aconselha:
– Ótimo. Mas me protejam só a cinco metros de distância, pelo menos.
Câncer maldito mesmo. Às vezes, as pessoas que o cercavam, amigos, um
irmão, parentes, amigas, botavam uma cara de pavor. Pareciam que tinham a
doença e não ele, a um passo da operação delicadíssima. Noventa e cinco por
cento morriam.
A diferença entre ele e os outros, uma só, esta: os outros pensaram que 95%
morrem; ele, procurou encarar o outro lado – 5% se salvam. E tratou de se meter
entre os 5%. Provavelmente todos, além dos homens do governo, contavam com
a sua morte. Os amigos, os admiradores, o geral das criaturas. Todos a um.
Ele está enroscado na poltrona e, neste momento, sou mais entrevistado que
ele. Um brilho nos olhos miúdos, notando os ritus da minha cara e
imediatamente jogando na linguagem um palavrão leve, uma descida para a
gíria. Tem o domínio da conversa, detém o poder da mudança do tom e rumo dos
assuntos. Inteligente nessa manobra, assume uma liderança natural: o núcleo da
conversa está em suas mãos. Sempre.
Revelou, sem modéstia. Não acreditava em suas habilidades literárias a ponto
de produzir algo útil ou de exemplaridade sobre o capítulo do câncer,
provavelmente o mais cavernoso (uma caverna no peito) de sua vida.
– Mas se o senhor escrevesse como fala...
As pessoas não escrevem como falam. Comportam-se, disciplinam-se,
empostam-se. Há imposturas, a naturalidade vai embora, ninguém deixa passar a
chance de parecer inteligente, espirituoso, um homem que, de certo modo, está
acima dos outros.
– Por que você está me chamando de senhor?
Falando, é colorido, vivo, direto, humorado. Tem o poder da condução, o que
já foi dito. É líder natural, está em tudo e, se não mostrou esta qualidade ao
longo dos anos, terá sido por outro motivo que não a vocação.
Veio uma amiga, depois da operação, lhe disse que ele nem supunha quantos
amigos o queriam bem e quantas pessoas, das mais diversas faixas, o
admiravam. Naquela tarde, por exemplo, só se falava dele lá no cabeleireiro.
– De mim ou do câncer?
Está aí. Mas não havia ironia, hostilidade, amargura na observação. Era o que
era. Por mais que ele fosse assunto, o câncer seria repercussão nacional maior
que ele.
Os homens do governo haviam mandado distribuir nota oficial, câncer.
Indisfarçável, a crueldade seca da nota. Neste mundo todo, a doença quer dizer
morte. Certamente contavam fazer o seu enterro. Depois, iriam recolher uma boa
imagem. Foram bonzinhos, humanos, democráticos e cristãos – respeitavam a
condição humana. (Embora não respeitassem a liberdade de pensamento e a
ideologia de ninguém.)
Um policial o acompanha, aonde vai. Vai à praia, o protetor segue. Vai a um
chopinho com amigos, no calçadão de Copacabana, ali pelos lados do Posto
Seis, atrás vai o policial. Atravessa o calçadão, ganha as areias, senta-se. O
protetor fareja. Procura as águas, o protetor se levanta, avança na vigia. Lá no
hotelzinho do Leme, uma vez, um desses policiais que o guardam dia e noite, o
perde.
Quando volta ao hotel, o policial está verde:
– Professor, eu pensei que tivesse perdido o senhor.
– Sim? Mas eu estou vivo, olhe aqui, não está vendo? O policial cheio de
pavor. Confessou que se o professor sumisse, morresse ou lhe houvesse
acontecido algo, certamente lhe iriam botar num pau de arara e seria torturado
até que dissesse tudo o que sabia e também o que não sabia.
O professor, sério. Rosto crispado pela primeira vez em mais de uma hora de
conversa. Que regime é esse em que até os policiais que representam as mais
altas autoridades da segurança, têm medo de serem torturados? O que
acontecerá, em torturas, aos pobres-diabos que não são policiais, nem gente de
confiança do governo?
Torturados até o limite do desmaio. Acordados a água fria, a tipos especiais de
choque, a ponta de cigarros, sabe-se lá. Refeitos a comprimidos, recomeçado o
interrogatório. E a tortura.
Sérios, os dois. De vez em quando olhávamos maquinalmente, para a porta de
entrada do apartamento. Devíamos falar naturalmente aquelas coisas ou baixar o
tom de voz?
Faz menos de dez dias, um advogado da Rua Uruguaiana, indo a seu escritório,
foi sequestrado por homens que se disseram do DOPS. Levado ao Alto da Boa
Vista, encapuçado, interrogado, torturado por policiais encapuçados. Não tinha
nada a declarar. Os torturadores preferem, segundo o advogado, esse tipo de
homem – o que não tem nada a declarar. Foi batido surrado, submetido a
choques, metido em cela que mal cabia um homem. Ameaçaram o homem que
não tinha nada a contar: trariam sua mulher e ele iria ver as coisas. Abobalhado,
dizendo nada ter a declarar, concordou. Trouxessem sua mulher, fizessem o que
entendessem. Havia outros presos, sofrendo iguais torturas, gritos à noite e
barulhos de trombolhões pesados. Sofreu três dias, aturdido ou
inconscientemente, o fizeram assinar uma porção de papéis de que não se
lembra. A bestialidade não pode ser contada diante de mulheres ou crianças. Os
encapuçados o soltaram depois, com esta frase:
– Passe bem, doutor, precisando de alguma coisa é só nos procurar.
Depois de três dias de tortura debaixo da mesma pergunta:
– Qual é o seu codinome?
Saiu. Procurou a Ordem dos Advogados do Brasil, catou os jornais, um único,
O Estado de São Paulo, publicou uma nota na edição de 8-3-1975. Mas há outro
advogado sumido, provavelmente sequestrado, mesmas condições.
O professor universitário me ouve, olhos baixos. Olhamos, quando em quando,
para a porta da entrada do apartamento. O Ministro da Justiça diz que não há
tortura no país.
Há medo generalizado no país, o que certamente será resultante de tanto
progresso, fartura, liberdade, ordem, igualdade, segundo a ótica dos press
releases oficiais. Lá fora, na França ou Inglaterra, dizem que quando se vê um
policial, imediatamente se tem a sensação de segurança e se fica mais à vontade.
Aqui, ontem, passando diante da PMGB, da Rua Toneleiros, procurei a outra
calçada da rua, evitando olhar os fardados e andei depressa. Há dez anos vimos
neste crescendo: policiamento; policiamento ostensivo; policiamento muito
ostensivo. Hoje, temos repressão ostensiva. Sequestros indiscriminados,
interrogatórios com tortura, meios bestiais e desrespeito completo pela pessoa
humana. Há tanto policial, principalmente em São Paulo, que já não os notamos
mais. Estamos calejados. Estamos empedernidos com a bestialidade.
Convivemos com coisas terríveis e não estaremos ficando frios, nós, um povo
sentimentaloide, outrora vivendo num país cordial, onde havia, segundo um
poeta, escola risonha e franca?
O professor diversifica assuntos, passamos aos desenhos de Poty, humor,
jornalismo, indianismo, vida universitária, futebol, polícia, sexo, violência,
literatura, futebol de novo. Atiçadamente criativo, imaginoso, me sugere, rápido,
duas ou três ideias para a publicação nova em que trabalho. Baixinho, poucos
cabelos brancos, rosto escanhoado, enroscado na poltrona, descalço, falando
simples e bem. Um homem que libera o espírito do interlocutor, embora o
envolva com liderança. Literalmente, como diz, é um otimista.
Ideias loucas tem e gosta, inda mais dos efeitos. Tem carioquice ao contá-las,
saboreia os efeitos. Narrador hábil, extrapola.
Nunca pensava que pudesse e teve de deixar o cigarro. É o melhor dos vícios,
nem é um vício. Chamar o cigarro de vício menor é outra impropriedade.
Quando vivermos numa sociedade realmente civilizada, teremos cigarros de
tudo: de proteínas, vitaminas, degustações variadas, leves e pesadas. Haverá uma
geração de homens e mulheres incrivelmente elegantes, nenhuma barriga,
ombros largos, nenhuma celulite. Pois, cigarros alimentícios, motivarão a
chamada digestão sem excrementos. Veja, a princesinha da Inglaterra comendo
chocolate. Todos sabem que ela comerá e depois fará um cocô fedido na privada
real. Mas um vagabundo da Galeria Alaska fuma um cigarro e não produzirá
nenhum dejeto. Tomamos café, mas café só boca de pito, para acender a vontade
do cigarro. O bom da comida fina e regalada é o cigarro que vem depois. Como
é bom o cigarro, depois de duas horas no cinema em que não se pode fumar. O
cigarro, como é bom. Trepar também é bom, o melhor dos esportes, o que
exercita e mexe diretamente com tudo, músculos, cabeça, tronco e membros.
Bobagem, essa história de agora se praticar judô, caratê, ioga. O exercício sexual
é mais completo. Voltando ao cigarro, ele não é um vício, é um companheiro,
uma segurança psicológica. O professor fumava três maços por dia, hoje lamenta
que o cheiro do cigarro, lhe chegando, lhe faça mal. Até o beijo na boca de
mulheres, naquele tempo, era melhor. Não lhes sentia o gosto do cigarro.
Trepar é bom para a saúde. Mas o bem-bom é aquele espaço entre uma trepada
e outra, longamente, na hora neutra em que não se sabe se continuar ou não e,
então, fuma-se um cigarro. Ah, entre uma e outra, o cigarro. O mal é que contém
nicotina. Nas civilizações futuras, o homem pensará cigarros de proteínas,
vitaminas e sais minerais. Serão todos fortes e limpos, espadaúdos e sem barriga,
maravilhosos e enxutos. O cigarro não mais um vício e, sim, um companheiro de
utilidades.
Pensavam que ele morreria. De repente, seu nome pula nos jornais e revistas,
está escrevendo coisas. Estão longe de supor tudo sobre o homem e seu
despojamento. Provavelmente estejam com medo de suas verdades. E não dele,
criatura miúda, naturalmente bem-humorada, ar fundamente brasileiro, cara
limpa.
Voltamos à vida policial da cidade. Há um mistério em Ipanema com uma
garota que matou dois namorados. A conversa dá para ruça, de novo. Ele não vai
visitar amigos, seria o mesmo que entregá-los ao DOPS. Telefona, marca
encontros na porta do prédio. E sai para conviver com eles nos bancos do
calçadão do Posto Seis ou nos chopes dos bares. Atento, um policial se intromete
e diz que o vai proteger de algum ato terrorista ou subversivo.
– Ótimo. Mas fique a cinco metros de distância, pelo menos.
Olha-me. Passei duas horas em seu apartamento e não ouvi uma lamentação do
homem cassado, perseguido, sofrido, um pulmão fora do feito, o câncer jogado
fora, abriram-lhe todo o peito na operação.
Mais alegre, descontraído e saudável que eu, o professor universitário Darcy
Ribeiro disse:
– A gente não pode dar trela. Senão, os policiais sentam à mesa com a gente e
tomam conta.
TESTEMUNHO DE CIDADE DE DEUS
Ana Rita de Jesus, 50 anos, doméstica, moradora da Quadra 4, casa 10,
triagem, há 25 dias.
Lenço à cabeça, uma malha ordinária nos ombros, evitando a chuva,
encolhendo-se. Atarracada, um metro e sessenta, se tanto, vestidinho simples,
negra, gorda, nervosa, dizendo ter um pouco mais de cinquenta anos. Ela não
sabe exatamente, a certidão de nascimento perdeu-se entre os parentes mineiros
que a criaram em Boa Esperança. Está num ponto de ônibus do Largo de São
Francisco, centro da cidade, esperando condução para a Cidade de Deus, na
manhã depois do Natal. Chove há dois dias no Rio. Ela responde que vai para
Cidade de Deus num muxoxo, desdenhando. Logo sorri amarelo, abespinhada e
amarga:
“Vou. Vou pra Cidade de Deus, do Diabo, dos ladrões e dos mendigos. A
minha vizinhança lá é só ladrão e mendigo. Nem quero falar nisso que fico mais
nervosa. Roubaram tudo o que eu tinha de bom lá. Foram os meus vizinhos que
carregaram. Levaram o fogãozinho de duas bocas, o toca-discos, o bujão de gás,
tudo novo que eu tinha comprado para mudar para lá. O meu marido foi
reclamar e conseguiu que o pessoal do Distrito prendesse um dos ladrões. Mas as
coisas que eles roubaram não voltaram para a minha mão. E os outros ladrões,
que foram presos, ameaçaram ele de morte: ‘você vai caguetar que a gente te
apaga numa quebrada’. Então, o meu marido, que não é besta, nem nada,
resolveu dar no pé e abandonou tudo. Casa, mulher e tudo. Depois, sabe, ele
trabalha numa construção, lá no Leblon; e o que ele ia fazer lá naquela lonjura,
só pra dormir? Falando bem, aquilo nem é casa, é um lixo. Lá eu não consigo
dormir à noite por causa do mau cheiro da fossa. Eu trabalho e durmo no meu
emprego, em Ipanema. Ganho cento e cinquenta cruzeiros por mês. Faz três
anos, consegui ajuntar um dinheiro na Caixa Econômica e dei oitocentos
cruzeiros para comprar uma casa na Cidade de Deus. Mas casa, não aquele lixo.
Acho que me tomaram por algum mendigo da rua.”
O ônibus rola pela Avenida Presidente Vargas, ganha o Viaduto dos
Marinheiros. A doméstica Ana Rita de Jesus está rindo e chorando ao mesmo
tempo. À pergunta de por que não consegue viver na Cidade de Deus:
“Por causa dos ladrões. Eu deixei meu barracão na Gávea, na Estrada da
Gávea, que era um pouco melhor do que o que me deram. Na Gávea nunca me
roubaram nada e os vizinhos eram de mais confiança. O pessoal na favela se
ajuda muito. Eu queria uma casinha com um cômodo, banheiro e cozinha. Só
isso.”
Ana Rita de Jesus deu os oitocentos cruzeiros. Foi colocada numa das triagens
de Cidade de Deus, onde ficam as pessoas de ínfima condição econômica.
“Meu marido, que vive comigo a menos de um ano, com a mudança não
aguentou o rojão e, amedrontado com os roubos, deu no pé. Ele é pedreiro,
trabalha em obras perto do Leblon. O nome dele é Raimundo Gomes de Lima.
Não, não tenho nenhum parente no Rio de Janeiro. Voltaria com muita alegria
para a favela. Mas o meu barraco já foi derrubado e agora não tem mais jeito.”
“A Quadra 4 fica numa das triagens da Cidade de Deus, local provisório onde
se alojam ex-favelados, cujos barracos foram derrubados pela CHISAM.
Promiscuidade, insegurança, falta de higiene, fedor permanente, fossas
entupidas. Se chove, as águas não têm para onde escorrer, ficam empoçadas nos
arruamentos de terra. Há o perigo de enchentes, que o Rio Fundo, ali perto,
costuma transbordar. Defendendo-se do fedor das fossas entupidas da triagem,
alguns moradores usam creolina e fecham portas e janelas quando vão comer.”
A doméstica Ana Rita de Jesus desce no ponto terminal do ônibus 226, Largo
de São Francisco–Cidade de Deus, enfrenta a chuvinha renitente, ganha o asfalto
já meio arruinado, esburacado, da alameda principal de Cidade de Deus, em que
às quartas-feiras e domingos, há feiras. Nos seus começos, a feira lembra a
pobreza extrema de certas feiras do Nordeste, muita sujeira e muitos meninos
negros com suas carretas para auxiliar, a troco de gorjeta, o transporte de
compras das donas de casa. Depois, caminhando-se, a feira vai se parecendo
com todas as do Rio de Janeiro. Os preços, segundo Ana Rita de Jesus, empatam
com os de Ipanema e a qualidade tem alguma diferença. Em Ipanema é melhor.
Passada a feira, na alameda das casas melhores do conjunto, de dois a três
quartos, entra-se por ruas cada vez pior pavimentadas e se ganha os arruamentos
de terra. É uma das triagens.
Sem dúvida, as dobradiças foram forçadas, a janelinha está empenada e a
chave corre com dificuldade na fechadura da porta. Houve assalto na casa da
doméstica Ana Rita de Jesus. Sobraram os caixotes onde ela espalha, arruma
seus santos, a tarimba com o colchão de crina coberto mal com uma manta
encardida. A casa é um quarto só, com um banheiro minúsculo. A porta dos
fundos dá para um corredor de meio metro de largura por dois de comprimento.
E se tem o tanque, o fedor da fossa entupida aumenta.
A doméstica diz que veio apenas para verificar se não haviam carregado,
durante a noite, o resto de seus bagulhos, santos e enfeites. Porque ali não fica,
embora não saiba onde ficar.
“Mesmo que arrumem este lixo, eu não quero voltar. Meu companheiro já
disse que vai me abandonar. Eu dormia no emprego. No correr da semana e
quando era domingo, vinha pra cá. Agora, a patroa diz que vai tirar férias e
viajar. Não tenho parente nenhum no Rio e pelo jeito vou ter de arrumar outro
emprego ou ficar na rua. É melhor a rua do que aqui. Já não vou falar mais com
a polícia porque os ladrões, tudo meu vizinho, disseram que, se eu reclamar, eles
me matam. Meu marido já se mandou. Sabe, se eu pudesse, voltava com muita
alegria pra favela!”
Alcebíades Alves Pereira, 49 anos, solteiro, ajudante de carpinteiro, morador
do Bloco B – casa 13, triagem, há 28 dias.
Magro, cabelos grisalhos, puxando de uma perna, beirando cinquenta anos,
Alcebíades recebe um auxílio-doença de Cr$ 159,00 do INPS, em Copacabana, e
vive com o resto, que tira de biscates. Solteiro e sozinho. Tem um fogão de
quatro bocas, onde faz a comida e o café. Deu sorte, segundo ele. Sua casa, na
triagem, tem um quartinho, uma sala e banheiro conjugado. Tem um guarda-
roupa cambaio e uma cama, no quarto. O resto dos móveis são banquinhos e
uma mesa feita de caixote e repintada. Todos os dias, pela manhã, apanha dois
ônibus, um de Cr$ 1,00 e outro de Cr$ 0,80 e chega a Copacabana, para defender
biscates e apanhar uns trocados:
“Acaba dando pra ir tocando. Mas preciso desta droga, aqui, que não é minha e
eu não posso comprar outra” – ele se refere aos óculos, que mostra. “Pra
enfrentar esta lama aí fora, estou com esta bota de borracha até a canela, porque
se eu meter um sapato como o seu vou ficar sem ele. Faz 2 dias que estou aqui e
ainda não paguei nada. Até agora estou neutro neste ponto de vista. Ninguém me
disse nada. Nem sei se vou pagar luz separado, nem nada.”
Alcebíades chegou da Rua 1, da favela da Rocinha, faz um mês. Lá, quando
menos, para “tapear a solidão, de noite, eu podia dar umas voltas, tinha essa
regalia”. Agora, isso acabou:
“O ambiente aqui é bastante carregado. Eu fecho isto aqui e vou pra
Copacabana trabalhar e não sei como é que vou encontrar as coisas na volta.
Estava acostumado lá na Rocinha, vivi lá dez anos, aqui para mim é muito pior.
Não conheço ninguém e tenho que me virar lá em Copacabana, aqui não tenho
nem a regalia de sair certas horas da noite e dar um giro, refrescar a cabeça deste
fedor de fossa entupida. Eu vivo desconfiado, sou sozinho. Por favor, se tiverem
de fazer uma transferência, me botem longe do rio, que ele é um perigo no
tempo das enchentes. Essas águas de janeiro são um perigo.”
Alcebíades se levanta, capiongo de uma perna, vai até a pia e traz uma lata de
creolina:
“Este fedor é insuportável, não dá pra entender, a fossa arrebentou. Eu encho
tudo aí fora de creolina, porque tem bichinho, podridão, é isso aí. Tem dia que
pra comer aqui é preciso fechar as portas e as janelas e encher todos os buracos
da casa de creolina.”
Volta, vai ao quarto, onde um pedaço de plástico está forrando a cama, a
tarimba com colchão furado:
“Chove no quarto, conforme o senhor está vendo. E não há jeito; de se dar uma
melhorada nisso. Olhe aí” – aponta para o alto – “aqui chove em todos os cantos.
Eu não posso consertar, que não tenho uma escada e não quero mexer, porque o
pessoal da Cohab me disse que era para não fazer alterações na construção da
casa.”
Abre a carteira e mostra um Comunicado ao Novo Morador dos Conjuntos da
Cohab. Olhando o arruamento, onde passa um cachorro e uma charrete
espalhando lama, lodo e lixo:
“Olha, essa sujeira aí, é também do pessoal que mora aqui. Cada um precisa
cuidar do seu lixo para não virar bagunça. Aqui tem cachorro, gato, cavalos. É
preciso deixar a lata de lixo longe dos cachorros, senão eles viram tudo. Então,
vai tudo pra rua ou entope as fossas.”
As portas e as janelas emperradas, empenadas e Alcebíades desenvolve truques
e macetes com canivete e arames para abrir e fechar. Diz que não vai consertar
nada, porque a situação na triagem é sempre provisória e ninguém sabe para
onde vai quando for tirado dali.
“Outra coisa. Até o gás aqui é sacrificado, só vem uma vez por mês e a gente
precisa ficar em casa esperando, senão perde a vez.”
Volta a falar da Rocinha. “Havia o problema das barreiras, quando chovia; e,
depois, até 75 não haverá mais moradores na Rocinha, os homens do governo
vão derrubar tudo. Então, eu tenho de me aguentar por aqui mesmo.” O ajudante
de carpinteiro, gentil ou medroso, oferece café, vai fazer. (Difícil lhe explicar
que não será tão viável remover 15 mil famílias que moram na favela de
Rocinha.)
Sobre o guarda-roupa está a caixa de ferramentas. Tem fogão, não tem
geladeira, tem um rádio de pilha, fuma cigarros sem filtro, tem um dos pés
arruinado pelo reumatismo e uma deslocação nas vértebras: “sofro dores
incríveis, me torço aí nesta cama, como Jesus sofreu na cruz”.
Tem medo de ladrões:
“Aqui perto já houve assalto. Tem distrito policial, mas sabe como é: a polícia
lá vai ter tempo de cuidar de tanta gente. Não pode tomar nem conhecimento. Já
houve assalto aqui perto. Só que eu não sou otário de dizer como é que foi.”
Clemência Maria Oliveira, 92 anos, viúva, aposentada, vivendo de um
montepio; Celina Bernardo de Oliveira, 60 anos, casada, lavadeira e Maria
Isabel, 30 anos, não trabalha. As três mulheres são moradoras do Bloco A, casa
15, há 2 anos e 9 meses.
Mulher de sessenta anos, na triagem de Cidade de Deus, lavadeira, Celina
Bernardo de Oliveira é quem fala mais pela mãe, uma viúva de 92 anos e pelos
outros ocupantes do cômodo – que conjuga banheiro e em que vivem três
mulheres e uma criança de dois anos. Os móveis da casa são uma cama de casal
com lençóis encardidos, uma mesa rampeira, feita de caixote, umas cadeiras e
um fogão atulhado de coisas. No chão de cimento, com infiltração de águas e
lama, brincava a menina Bianca, mulatinha sarará. Falando Celina:
“Tem gente aqui na triagem que paga dezoito cruzeiros por mês. Mas desde 17
de março de 1969 estamos aqui e até o momento ainda não recebemos o papel
para pagar. O meu maior problema aqui é que sou lavadeira, só consigo bons
preços lá em Copacabana, porque por aqui é tudo pobre, não pode pagar
lavagem de roupa.”
Ignorantes, aturdidas, quase inconscientes. Não sabem sequer porque saíram
do Parque Proletário da Gávea para Cidade de Deus. Apenas, “gostaríamos de
morar nas casas aqui do conjunto e não nas triagens”. Têm raciocínio simplório:
“Pagar por pagar, tem muita gente lá nas casas que também não paga nada.”
Pouco depois de se mudarem, o marido de uma delas abandonou a casa. A
abandonada, Maria Isabel, crioula que não sabe dizer a idade, aparenta mais de
trinta, tem o rosto inchado, olhos empapuçados e o hálito de quem bebe
continuamente. Confessa, corrigindo algum tempo, com ironia: “estou de porre
desde o vinho de ontem”. Percebendo chegada de gente estranha, tranca-se no
banheiro. Sai, após algum tempo. Provavelmente ouvia o estranho agradar a
menina Bianca, oferecendo bombom. Aí, senta-se na cama, aceita um cigarro.
Começa, numa ginga carioca:
“Isto aqui? Na favela tem alegria, as pessoas se ajudam. Imagine que aqui tem
uns favelados que foram morar em apartamento e agora estão dando uma de
bacana. Na favela, o pessoal era todo igual. Aqui, o povo está dividido. Tem
gente pobre morando nas casas e se achando importante, porque tem dinheiro
pra pintar a casa, botar ladrilha e outras coisas; no entanto, eles não pagam os
cento e tantos cruzeiros por mês que o pessoal dos apartamentos paga. Aí,
porque têm dinheiro pra pagar, o pessoal dos apartamentos se acha mais bacana
que o pessoal das casas. E o povo das casas se acha mais importante que o da
triagem. Todo mundo debocha e despreza o pessoal da triagem. Eu? Claro que
gostaria de morar numa das casas. Lá, pelo menos, teria segurança. Imagine,
ontem fui agredida dentro de casa por um homem que queria me pegar à força na
frente de minha filha e da minha sogra. Precisou a sogra aí dar um sarrafo nele.
Um chega pra lá, entendeu? Eu não posso sair de casa, à noite, porque os caras
estão aí fora, nas esquinas, tocaiando a gente. E é aquela coisa, já viu? O que tem
mais aqui é homem querendo agarrar mulher dos outros. E é no pulso. Na marra.
Na mão” – suspira, abafada. – “Se se formasse uma favela outra vez, eu iria na
frente, com uma bandeira e seria a primeira moradora.” – Maria Isabel termina
isso, gingando de um lado e outro, abrindo os braços.
Celina, sessenta anos, diz que Maria Isabel ainda não está trabalhando e seu
marido sumido nunca mais deu notícia:
“Ele faz falta. Qualquer tutuzinho aqui nos faz falta. O dinheiro é curto. A
sujeira aqui é grande, mas é culpa dos próprios moradores, porque quando eles
resolvem se juntar, conseguem desentupir alguma fossa. A condução é difícil,
demorada e cara, devia ter um ônibus direto pra Copacabana, porque afinal a
gente só consegue dinheiro é lá mesmo. Mas dá pra ir tenteando, vivendo sem
morrer de fome.”
Neide não declara o nome todo, não quer dizer onde mora, parece sentir medo
e só começa a falar quando nota que Maria Isabel, moradora do Bloco A,
resolve abrir o bico, facilitada pela bebedeira. Moradora na triagem, 22 anos.
Vive na Cidade de Deus há cinco anos.
Mulata, bonita, benfeita de corpo, doméstica diarista, trabalha na Praça Seca, a
quinze cruzeiros por dia, ganha uns trezentos cruzeiros mensais e diz que “vou
ganhar mais porque estou tirando os papéis para ser cozinheira de botequim e, aí,
vou papar uns quatrocentos e cinquenta cruzeiros por mês. Eu cozinho muito
bem”.
Vive com uma filha de três anos, nascida na Cidade de Deus. A menina é
Rosilene. Neide não diz quem é o pai da garota e nem em que favela morava.
Conta que, na enchente de 66, foi alojada no Maracanã com a família, irmãos,
tios “e o resto”. Dali, foi levada para a Cidade de Deus:
“No começo era uma maravilha. Eles colocaram a gente aqui dentro. Deram
cama, colchão, comida, vinha um caminhão todos os dias distribuindo comida.
Até o Zarzur vinha dar a sopa pra gente. Fazíamos fila e conseguíamos comer
direitinho. Eles nos deram roupa de cama, fogão, cobertores, ferro elétrico e até
roupas. Era tudo novinho. Imagine, o ferro elétrico vinha dentro das caixinhas de
papelão. Eu tenho tudo conservado até hoje. Quando eu vim pra cá, fiquei nas
casas, naquelas bem do começo, perto do largo.”
Neide não confessa. Com o nascimento de sua filha, Rosilene, teve problemas
com a família. Daí ter ido morar na triagem.
“Aqui é bagunçado. Tem gente que fica, tempos e mais tempos, e nunca pagou
a triagem. Eu mesma nunca paguei, que o papel ainda não passou por aqui. A
gente também não pode fazer uma reclamação com a administração da Cohab.
Eu gostaria de morar nas casas. Eles constroem os apartamentos e dizem que é
para os pobres. O caso é que os pobres não podem pagar.”
Diz que o entupimento das fossas é porque “o pessoal não estava preparado
para viver desse jeito, não sabe nem usar o banheiro”. E o ambiente:
“O pessoal aqui bebe muito e os homens ficam querendo agarrar as mulheres.
Isto acontece todos os dias. Mas tem gente boa morando aqui nas triagens e eu
mesmo tenho alguns amigos. Minha filha não tem tido problemas aqui. Tem
posto médico, e quando ela crescer, terá escola. Mas o caso é que não tem um
único morador aqui em Cidade de Deus que não queira sair da triagem.”
Joaquina Martins, 53 anos, doméstica, moradora na Avenida Ezequiel, no 56 –
apartamento 108, há 9 meses.
Cinquenta e três anos, aparenta uns 45, apesar das banhas, e diz que se
conservou porque “não sou dada a extravagâncias”. O seu é um dos 906
apartamentos da Cidade de Deus. Tem uma sala, dois quartos, um banheiro, uma
cozinha e uma área de serviço. Ali, “eu e Deus sabemos como”, vive uma prole
de dezesseis pessoas.
Dona Joaquina, o marido, 12 filhos e 2 netos. Um filho é mongoloide. O
menorzinho tem 3 anos; a filha maior, já mãe, tem 33. O marido é faxineiro de
um prédio na Zona Sul e quatro dos filhos trabalham – a filha de 17, numa loja
de roupas; outra, de 19, comerciária em Copacabana; o filho de 23 é trocador de
ônibus. O de vinte anos se defende com biscates, mexe com móveis, “e não é
sempre que tem serviço”. O dinheiro, conforme se vê, é contado:
“Se for comer bonitinho, direitinho mesmo, a gente gasta um milhão por
semana. Mas eu tenho que esticar o dinheiro e gastar trezentos cruzeiros. E olhe
lá.”
Por ela, moraria numa casa, “além de mais barato, tem o quintal para as
crianças e não se paga condomínio”. Para ela, o filho mongoloide é “meio
bobo”, e dona Joaquina está longe de supor os riscos e perigos que uma criança
excepcional sabendo movimentar braços e pernas corre e o que pode acontecer
no convívio com os outros.
A família veio do Parque Proletário da Gávea:
“Lá era bem melhor por causa do espaço e porque a gente ia aumentando o
barraco, conforme as necessidades. Quando nos tiraram de lá para Cidade de
Deus, já tínhamos três quartos. Ninguém precisava apanhar tanta condução e
gastar tanto dinheiro para chegar ao batente. Havia mais comércio, a feira era
melhor e a gente tinha hospital mais perto. Graças a Deus, depois que viemos pra
cá ninguém ainda ficou doente. Mas não tem hospital e fico preocupada, aqui
tem gente demais, o senhor já viu como é que tem criança. Cada apartamento,
aqui, tem cinco, seis. É fogo. Faça as contas.”
Tem geladeira e televisão, uma eletrola escangalhada, precisando ser
consertada, “mas não sobrou dinheiro”. As diferenças de dona Joaquina, no
entanto, são outras:
“Acho que aqui devia ter hospital, antes mesmo deles construírem o conjunto.
Isto aqui é muito longe de tudo e a gente se pela de medo de doença nas
crianças. Coisa de comer custa caro, no conjunto tem muitas biroscas, é como
nas favelas, mas o preço o senhor já viu, é o mais alto de todos. Condução direta
para Copacabana tinha de ter, que é lá que a moçada trabalha. Todos trabalham
por lá. Aqui por perto nem tem onde arranjar emprego.”
PANORAMA HORIZONTAL
Visto dos rés do chão, o aglomerado de casas pouco distanciadas uma das
outras, parece bem uma favela, a de Brás de Pina. Favela na horizontal, sem
horizonte, sem embelecos e sem o disfarce de vista bonita olhando lá para baixo.
Nenhuma descida, nenhuma ladeira, os dejetos e os lixos não têm para onde
escoar com as chuvas, que as fossas vivem entupidas. Esses restos ficam à beira
do meio-fio, empoçados, fedendo. Ou mesmo no meio das ruas, onde lama e
lodo, de comum, costumam se juntar, inda mais nos dias de chuva.
Tem uns poucos arvoredos, oitis e flamboyants novinhos ou desmilinguidos,
precisando crescer, ganhar copa, dar sombra. Árvores, pois, não há formadas e se
está bem longe do mar, que se espraia lá nas areias da Barra da Tijuca e do
Recreio dos Bandeirantes. Assim, é calor, sol batendo de chapa, um castigo, a
canícula brava dos bairros da Zona Norte. Mormaço, nochorno dando quente na
cara das pessoas. Há cães, gatos e cavalos pelas ruas, pelos quintaizinhos, dentro
das casas. Inundando.
Pelos descascados e encardidos de suas casas, pela multidão de crianças,
maioria de negros, pelos tipos molanbentos, vestindo andrajos e tropeçando uma
bebedeira de dias à beira da birosca, umbigo encostado ao balcãozinho de
madeira, Cidade de Deus, inda mais nos trechos de casas e triagens, lembra Brás
de Pina.
Poucas casas foram melhoradas pelos proprietários, a maioria continua sem
muros, algumas com cerquinhas de paus ou bambus. Quando em quando, uma
ou outra cerca de ripas alinhadas, no esquadro, destoa do resto do casario.
Poeira, matos, urubus. Uma presença em quaisquer das divisões de Cidade de
Deus, seja nas triagens, nas casas ou nos apartamentos. Gente e mais gente nas
ruas, principalmente moleques e muitos bêbados. Homens e mulheres, tipos
mal-ajambrados, mal encarados, aguentando-se mal em cima das pernas. Muito
palavrão. Onde se vai, por todo canto, há movimento, rumor, azoada. Em tudo, a
incrível filosofia carioca também montou casa nesse conjunto habitacional. Há
samba e há pequenas festas, como a Folia de Reis, no dia 6 de janeiro. Cidade de
Deus, apesar dos pagodes, jamais tem a alegria das favelas. Favela é o lugar
onde mais se canta no Rio de Janeiro.
O asfalto meio arruinado, mais ralo de cimento da frente da casa está
arrebentado. Lixo, detritos, papeluchos. Não se pode dizer que a limpeza das
ruas esteja entregue aos urubus. Mas quase. O asfalto aumenta o calor. A sujeira
geral mostra claramente que a miséria não baixou ali para fazer graça. Se chove,
as águas se empoçam, há inundações, há infiltrações nas paredes das moradias.
As triagens são as mais prejudicadas.
Carroças, charretes, carrinhos, um e outro automóvel ganham as ruas,
principalmente nos dias em que estão todos em casa, sábados, domingos,
feriados. E nos dias de feira, quartas e domingos.
As triagens fedem mais e são piores que favela. Isso, na palavra de todos os
moradores do conjunto, ex-favelados, dos entendidos e até dos acostumados, que
tem gente vivendo lá há anos. Nas triagens, devido à mistura, dividiu-se a massa
de favelados, sumiu um certo respeito e senso de família ou comunidade que a
favela impõe, estabelece e até exige, de pronto. São casinhas de um quarto só,
com banheiro conjugado ou dois quartos, em número menor. Teoricamente seria
um local de abrigo provisório de ex-favelados. A verdade é que gente se arruma
ou se aperta, mora, se espreme há anos. Começa ficando, vai ficando e fica. O
pior é a falta de higiene. Mas há ainda a insegurança diante dos furtos, assaltos e
ataques às mulheres. E inexiste um posto médico eficiente.
Os apartamentos, a que injustamente alguns moradores das casas e das triagens
chamam de “lugar dos bacanas”, fazem o espetáculo mais completo de gueto, em
Cidade de Deus. Isolados até da própria Cidade de Deus. Repetem uma favela na
vertical, misturações típicas de biroscas, campinhos de futebol, pipas, muita
criançada e algum samba, quando é noite ou algum dia em que não haja trabalho.
Lamenta-se o mesmo das outras áreas: condução, posto médico. Reclama-se
pouco a ausência do policiamento:
“Polícia aqui já tem de sobra. Depois, polícia só encana trabalhador, além de
chegar na casa da gente para filar café e outras coisas. Então, polícia já tem
demais” – falou um morador de apartamento com três anos de Cidade de Deus.
No conjunto de apartamentos há 1.300 unidades, divididas em blocos de cinco
pavimentos. Sem elevadores, claro. Quando se implantou Cidade de Deus,
prometeu-se à população dos apartamentos, três escolas primárias, uma creche e
um jardim de infância. Nunca houve creche ou jardim de infância.
Segundo o plano inicial da Cohab, para cada gleba de casas, previam-se duas
escolas primárias, um jardim de infância, uma creche e um cinema com
capacidade para 612 pessoas. Dessas previsões, as escolas estão funcionando.
Apenas.
Havia ainda promessa de um supermercado e um posto médico. O
supermercado mantém portas abertas. O posto médico, não.
REVISTA DOS JORNAIS
Tem certidão de nascimento e implantação datada de fevereiro de 1965. A
paternidade principal é atribuída à Cohab.
Em janeiro de 66 cumpria papel importante ao abrigar 1.200 famílias de
favelados, vítimas das enchentes mais famosas e medonhas que o Rio de Janeiro
conheceu nos dez últimos anos. Inundações, desabamentos, desastres, mortes
tomando vários bairros cariocas, isolando e flagelando em dimensões de
catástrofe. As favelas, claro, foram os ajuntamentos humanos atingidos mais de
perto. No começo, o povo desabrigado foi para o Maracanãzinho. Depois,
transferido para Cidade de Deus.
Em 6.7.1968 os jornais gritavam que mais de cinquenta por cento da gente que
vivia em Cidade de Deus eram invasores e teriam de abandonar casas,
apartamentos e triagens para dar lugar, hora e vez aos proprietários legítimos. No
dia 13 daquele mês, Augusto Vilas-Boas, então Presidente da Cohab, prometia
encontrar jeito para a invasão. O jeito foi com modo pessoal. No dia 17, a Cohab
colocava uma tropa de choque da Polícia Militar na Cidade de Deus, para evitar
a invasão de casas por ex-favelados. Um mês e um dia depois, a mesma Cohab,
em cumprimento a despejo judicial, levou a operação às últimas consequências.
A ação rápida não encontrou resistência dos ex-favelados. Todos transferidos
para o Albergue João 23.
No mês de dezembro de 1968, o engenheiro Raul Marques de Azevedo,
diretor-técnico da Cohab, fazia um elogio na Revista de Engenharia do Estado
da Guanabara. Era um suculento, inspirado e talvez desinteressante (pela
linguagem) artigo sobre a Cidade de Deus. Apesar da cantilena ufanista, o
publicado contém mapas e números. Que se aproveita.
No dia 2 de março de 1969, os moradores chiavam objetivamente. Pediam
ônibus diretos para a Zona Sul, por causa dos empregos. Afinal, a maioria
daquele povo continuava a arranjar dinheiro em Copacabana durante o dia, e
usava as habitações apertadas como um esconderijo, à noite. Um canto em que
encostar os ossos, entre cinco ou seis filhos. Gente pobre é isso.
Em 22 de maio de 69, dizia uma senhora, dona Lúcia: “um horror, não tem
condução, falta água, é longe à beça, o esgoto está sempre entupido e com mau
cheiro. Médico só até cinco horas. Cidade de Deus, nada. Do diabo, isto sim”.
Moradora de Cidade de Deus. Em junho daquele ano, dia 15, os jornais
voltavam: o conjunto habitacional tinha capim, mau cheiro e poeira; esperava
melhorias urbanísticas.
No dia 3 de dezembro de 1969, um sociólogo “que evita dizer seu nome
porque o problema é delicado”, lavrava:
“É. Pode ser que essas comunidades venham a se transformar em guetos.
Principalmente a Cidade de Deus, que é a mais isolada da comunidade central.”
Chegou o ano de 1970 e, no dia 25 de março, o Governador Negrão de Lima
resolveu dar uma lição de fé ao povo do conjunto habitacional. Lançou nomes
bíblicos às avenidas, ruas, travessas e praças da Cidade de Deus, localizada na
XVI Região Administrativa, de Jacarepaguá. Profetas judaicos, maiores e
menores, acompanhados de personagens bíblicos e de maravilhas, tipos, forças e
obras de Deus começaram a aparecer substituindo os números frios. Assim, a
Avenida 1 passou a se chamar Ezequiel; a Avenida 2 transformou-se em José de
Arimateia; a Rua 1 ganhou o nome de Salomão; a Rua 2 chamou-se Daniel; a
Rua 3 passou a ser Moisés; a Rua 5, Ezequias; 6, Elias; 7, Josafá; 8, dos
Milagres; 9, Salatiel; 10, Josias; 11, Jessé; a Rua 47 chamou-se Zebulom; a 51,
Tarso; a 54, Samaria; a Rua 70 foi chamada Judá e a Rua 71 virou Amon. O
mesmo com travessas e praças. A Travessa 118, por exemplo, se chamou Murta;
a 119, Pecode; a 121, Purim e a Travessa 125 ganhou o nome de Mênfis.
Mas no dia 3 de maio do mesmo ano, os jornais incomodavam de novo. Cidade
de Deus continuava com uma só linha direta de ônibus para seu povo. Era a 266,
Largo de São Francisco–Cidade de Deus. Em 14.7.70 afirmou-se que os
moradores de Cidade de Deus desprezavam a boa alimentação para ter geladeira.
Nessa matéria não se escreve uma única linha sobre a temperatura da região,
uma das mais quentes do Rio.
No mesmo setembro de 70, os jornais gritavam que os moradores tinham um
mundo de problemas e, precisamente em 17.7.70, publicou-se que uma favela
crescia, há já um ano, à margem do Rio Fundo. Com barracos enfileirados à
margem direita do rio, assinalavam uma favela em formação, na entrada da
Cidade de Deus. Enquanto isso, esqueletos de bambu anunciavam a chegada de
mais gentes para as beiradas do rio. Uma ameaça grave, sem dúvida.
Estudantes do Brasil, cumprindo nova etapa do Projeto Rondon, fizeram uma
pesquisa socioeconômica da Operação Grande Rio e despejaram para a imprensa
a informação de 18.7.70: Cidade de Deus tinha apenas 3 (três) crianças
subalimentadas.
Mas no dia 27 daquele mês, um jornal malcomportado malhava. Cidade de
Deus não estava a merecer sequer o nome e havia virado um inferno com 2.500
pessoas no caldeirão. Um paraíso dos urubus.
Com a palavra o Sr. Vítor Pinheiro, Secretário dos Serviços Sociais, em 31
daquele julho de 1970: o Estado iria usar as pesquisas socioeconômicas
levantadas pelo Projeto Rondon para melhorar a Cidade de Deus.
MERDUNCHOS
Então, a sinuca sempre caminhou assim como um troço esquecido. Quando
realmente ela representava a concentração de um tipo que fica muito próximo do
marginal, que é o lúmpen, o cara marginalizado mesmo.
A sinuca é um troço desconhecido e quando aparece um cara falando disso
com propriedade, é levado como pitoresco. Não é pitoresco. É um meio de
divertimento, digamos assim: um lugar lúdico, e também um ganha-pão pra
outros caras que não têm meios pra grande jogo, entende? Os mesmos caras do
salão de sinuca colocados no Jóquei são uns pés de chinelo, uns caras que jogam
bem pouco. São gajos que nunca sonharam com Bolsa de Valores, eles nem
sabem o que é Bolsa de Valores... são sujeitos não dados ao pôquer, o máximo
que jogam é baralho, é jogo de ronda ou esses joguinhos de 21 ou o joguinho do
bicho.
Agora, a gravidade da sinuca está aí: nem no divertimento, nem no campo
lúdico esses caras têm assim o direito do divertimento, porque até isso pra eles é
uma transação patética, é um palco dramático, é um xaveco do dia de amanhã,
entende? O camarada quando está jogando 50 cruzeiros numa partida de sinuca,
ou 20, ou 10, ele está jogando é o dinheiro da xepa de amanhã, do ragu, da
comida. É a sobrevivência dele. Esse negócio ganha uma dimensão grande e isso
passou desapercebido, até agora, pelo menos pela maioria dos escribas. E cada
vez que um jornalista vai falar sobre sinuca, o sabido vai procurar uma porrada
de coisas que já estão escritas em outros jornais, revistas, vai conversar com
meia dúzia de malandros-chave, os medalhões da sinuca. São os gênios da
sinuca realmente – Lincoln, Carne Frita, Estilingue, Boca Murcha, Praça. Esses
caras aqui no Rio e em São Paulo, esses homens que dão uma visão fantasiosa da
sinuca porque da sinuca eles tiraram um statuzinho social, o de jogador de
sinuca. Frita chegou a viajar pra baixo e pra cima com o dinheiro de sinuca.
Então, a sinuca é mais um fenômeno que escapa ao intelectual da nossa
sociedade. Nosso intelectual está preocupado com outras coisas porque já
encontra todo um processo pronto para só pensar nessas outras coisas.
Por exemplo. Os americanos, com todos os defeitos que têm, com toda aquela
preocupação de fazer indústria de cinema, indústria de livro, indústria de não sei
o quê, ainda assim eles fizeram um filme sério sobre sinuca. Com muitos
defeitos. Um filme com Paul Newman, Desafio à corrupção. Claro que é um
título babaquara, como os outros que estão por aí. Mas era um filme sério. Ele
apresentava a sinuca realmente. A realidade. Só que não apresentava a polícia,
um elemento fundamental da sinuca, aparecendo como o componente mais
sórdido, como elemento de exploração do jogador. O policial aparece no jogo da
sinuca como explorador do próprio jogador, da força de trabalho, digamos.
Então, a sinuca também é uma cópia da nossa sociedade. Na sinuca existe o
patrão, existe o empregado, o cavalo. Existe o sujeito que tem o dinheiro e não
sabe jogar, que é o tipo que patroa o jogo. Aparentemente é um joguinho, mas se
visto da angulação do malandro, daí a grandeza, se visto da angulação do
malandro... ela é a própria sintese do patético da vida, da dramaticidade, da luta.
Daí, os caras dizem troços que me parecem, até hoje, meio piegas,
melodramáticos: “A mesa é triste como uma bola branca que cai”.
Isso é frase que apanhei de vagabundo da Lapa. Parece uma frase literária, mas
não é. Você imagina: um cassino do lúmpen, um cassino do merduncho. O que
seria? Seria uma mesa de sinuca, às quatro da manhã, ou às cinco, na hora em
que a polícia já se esbaldou de aproveitar, já passaram por ali aqueles que não
têm compromisso nenhum com a sinuca, os que jogam para passar o tempo, e
estão só os sobreviventes da sinuca, uns comendo os outros. Violentamente,
entendeu? Você vai encontrar um cassino em preto e branco, sem retoque, você
vai encontrar o cassino do chamado lúmpen. Que é lúmpen mesmo – o jogador
de sinuca não é bem o malandro, nem bem o trabalhador, nem bem o operário,
ele fica vizinhando a miséria, não é o esmoleiro também; pode pintar algum
elemento ligado à prostituição, que vai lá apostar... é um lúmpen mesmo. Acho
que a sinuca é a mais característica dessas coisas, dessa faixa social meio vaga, a
que chamo merduncho; assim talvez só tão característica quanto estes
escrevedores de jogo do bicho, que são caras realmente lúmpen – só sabem fazer
aquilo.
Essa gente ganha um poder dramático, a partir de sua figura física, da magreza,
da palidez, do envelhecimento precoce. Entende? Não são bem os bandidos, não
são bem os marginais, são bem uns pés de chinelo, o pé-rapado, o zé-mané, o
eira sem beira, o merduncho – aqui no Rio, se usa esta expressão merduncho.
Quer dizer, é um depreciativo quase afetivo de um merda, merda-merda; então,
em vez de um bosta-bosta, o cara diz – “é um merduncho”. É um troço da maior
tragédia, que evidentemente não podia sensibilizar a classe média, nem os
intelectuais brasileiros. Não é por mau-caratice, não é por nada, é que eles são
filhos da classe média, nunca vão olhar essas coisas.
Como é que um cara como eu – não escrevi sobre sinuca à toa, nada me
chegou de graça. Fechei botequim com dezesseis anos. Eu jogava bem: como é
que um cara como eu caí nisso? Um cara com sensibilidade, vivendo em Vila
Anastácio, em São Paulo, que é um fim de mundo, é onde judas perdeu as botas,
um problema sério, até de condução.
Então, esse cara de certa sensibilidade, tem desejo de aventura, tem essa coisa
maravilhosa da juventude, do “grande feito” – e onde ele vai jogar isso? Numa
vidinha danada de dura, com tudo certinho, contadinho, tudo recontadinho, um
miserê danado por todos os lados? A sinuca era o lúdico, a sinuca era a aventura,
finalmente ele ia fazer qualquer coisa maldita, mal-comportada. Esse desejo que
a juventude tem de contestar, a sinuca era claro, minusculamente – uma forma de
dizer: “Pô, não! Eu vou entrar num salão de sinuca. Não pode menor de idade?
Não quero nem saber!”.
Tinha cara na minha idade, com 16 e 17 anos, que só achava graça em beber
cerveja dentro de um salão de sinuca ou dentro de uma zona de meretrício...
Porque ali via alguma grandeza na vida. Ali ele topava com tipos autênticos –
não tinha aquele vai não vai dos lugares onde ele vivia. Geralmente eram os
lugares onde se afirmava a condição de homem. Porque desaparecia toda a
frivolidade, você precisava saber o que é que você estava fazendo. Você
precisava saber com quem estava mexendo. Ao mesmo tempo, havia um
aprendizado, assim de vida, naqueles ambientes que você sabia que nada podia
ser de graça. Tudo custava; alguma coisa, inclusive em termos éticos, de respeito
pelo outro. Embora, como diria uma visão burguesa, fosse “um mar de lama”,
uma perdição – eram realmente dramas tremendos. Mas havia outra grandeza,
que isso aí estonteava os caras da minha geração.
Naquele tempo o cara precisava saber dançar direitinho porque ele era um
duro; se fosse lá no dancing e não dançasse bem direitinho, as mulheres
cobravam dinheiro dele e ele não tinha com que pagar. Então, ele tinha de dançar
bem pra conquistar uma mulher, pra que aquela mulher ficasse camarada dele e
dançasse de graça.
A sinuca, como o taxi-dancing, esse mundo todo, onde os caras continuam se
devorando – que nem porco-espinho, enroscando um no outro, vai indo. O
grande momento é a tarde, a hora não percebida. A única vantagem desses caras,
esses caras jamais são óbvios, aprenderam a dissimulação. A dissimulação entre
eles, e também o desacato. Seguindo uma partida de sinuca entre jogadores
mesmo, você vai ver que eles têm as armas mais sutis, as mais políticas,
inclusive. O sujeito ganhar a partida do outro, desacatando o outro, encabulando
o outro através da fala. Assim um desacato debochado, aquela coisa que rumina
dentro do sujeito, instigação, e a coisa não acontece por acaso. Por exemplo: um
jogador de sinuca não bebe, não bebe nem café.
Você assiste um cara jogar, 8, 10 horas, eles bebem água com açúcar, ou um
suco de qualquer coisa bem açucarado, e ficam ali em volta da mesa durante
todo aquele tempo, num controle de nervos danado.
Ainda, hoje, na Central, por exemplo, você vê partidas assim. Você vê, por
exemplo, tipos desalojados de outros ramos de malandragem. E aquilo forma
uma faixa de gente especial, inclusive se esconde durante o dia, nas últimas
horas da manhã. O respeito com que eles tratam um otário é impressionante.
Porque eles só se desrespeitam, se desacatam entre si; quando chega o otário,
eles tratam o otário com uma majestade; como a prostituta trata o seu freguês, o
seu cliente e, se quiser, o seu prostituinte – ela é mesurosa, maneira, porque está
com tóxico na cabeça, se não ela enforca aquele cara. É mesurosa, agradável,
tolera, aguenta aquele sujeito até não poder mais, até o até. Já peguei uma fala de
uma delas, no Mangue, dizendo isso a um otário abusado:
– Meu amor, tudo o que vem de você é elogio.
O cara da sinuca é mais o cara de viver a vida, de procurar sugar um pouco
mais. O cara da sinuca é o cara que vive, realmente, dentro do padrão do seu
limite. Então, aqui no Rio, quando cai o Lamas, não é exatamente o Lamas do
filé à francesa, que foi frequentado por Coelho Neto, por Machado de Assis e
pelos estudantes não sei de quê: quando cai o Lamas, cai a sinuca atrás, separada
por uma porta, separada totalmente.
O cara que frequenta a mesa de sinuca do Lamas é o gajo que nunca sentou na
mesa pra comer aquele prato.
Talvez ele até desconheça a existência daquele prato, ele é um cara que comeu
em casa ou não comeu, ou defendeu um sanduíche. Ele é um miserável: e o
outro, qualquer cara que frequenta o Lamas, não entra lá com menos de 50
cruzeiros no bolso. Agora, o cara que passa direto pelas mesas e vai pro fundo,
esse não tem 50 cruzeiros, não; e se tiver é uma plantação que ele vai fazer com
aquele dinheiro, pra investir aquele dinheiro, pra retirar 70 ou 100. Ele é um
homem muito mais fixado naquela realidade, aquela não aparente do Lamas, que
é a verdade lá atrás, fora do quase acontecimento social.
É um problema de conceito. O Rio, capital do samba, o melhor carnaval do
mundo, esse negócio todo, o Rio de Janeiro não tem mais casa de samba. As
casas de samba eram divertimentos populares, onde você pedia uma cachaça,
uma cerveja, você comia um tira-gosto qualquer e tal. Era um negócio que você
fazia com pouco dinheiro. Isso foi invadido pela Zona Sul, pelos endinheirados.
Então, esses divertimentos pra uma faixa social, a gafieira, a casa de samba, os
dancings, esses eram os divertimentos populares. O mesmo processo acontece,
hoje, em limite muito maior com as escolas de samba. Portela, hoje é uma
indústria de samba, a Mangueira, hoje, é uma escola que fatura horrores, é uma
caixa registradora. Não tem mais aquela aventura da coisa pobre, não há mais
lugar pra pobre nesses lugares, como não há botequim. O desaparecimento do
botequim no Rio é um fato sensacional sobre o qual a grande imprensa se omite,
bem-comportada e farisaica, no fundo bem distante de qualquer expressão de
vida popular carioca. Ou você bebe de pé, ou o botequim de Rio de hoje é uma
farmácia, é um negócio com mesa de fórmica, embelecos de acrílico e tal.
Acabou aquele negócio de você poder sentar para tomar um café de manhã.
Acaba o botequim e acaba aquilo de você tomar uma cerveja a qualquer hora da
noite. Não tem botequim aberto.
No momento em que cai a distinção de Zona Norte e Zona Sul, sobe a de quem
tem carro e de quem não tem. As pessoas que não têm carro não usam mais a
rua, elas andam de carro pela rua. Acabou o pedestre. Ninguém tem mais a
praça, nem o botequim, a vida se transforma em quatro paredes. Não há mais
contato humano com a cidade. O que acabou? Acabou a praça, acabou a casa de
samba, acabou a Lapa. Hoje, o sujeito tem medo de entrar numa boate, e
vergonha porque ele não está bem-vestido, nem sabe o preço do uísque. Esse
distanciamento da vida na rua vai afastando todos de todos.
Porque rua hoje é um fato conflitante, é um elemento de desgosto, o cara sai de
casa, pisou na rua, pumba! Conflito. Conflito, você está na área de conflito, se
cuide, salve-se quem puder! Então, a sinuca era uma ilha dentro dessa área de
conflito, uma das últimas que restavam nessa fileira de casas de samba, de
gafieira em geral, de botequim em geral, de praça em geral. Ela aliava o alto
poder artístico à habilidade, mas também à devoração dos caras uns pelos outros.
Era o abrigo dos marginais do tipo ventanistas (ventana, janela). O cara que você
chegava, tirava o paletó, e daqui a pouco não tinha mais paletó. Cadê o paletó? O
ventana levou. Era um lugar de curtir solidão, de assumir a sua solidão com
aquela macheza que a solidão tem. Claro, qualquer antro de jogo é lugar de gente
complicada, os mal-amados, os esquecidos, os abandonados, os tímidos, esses
doentes nervosos todos, claro que a sinuca era um excelente escoadouro dessa
gente. O lugar de curtir solidão, mas aquela solidão menos doença nervosa,
solidão mesmo. Aqueles caras que ficam olhando o jogo, ficam até 3 da manhã,
jamais jogaram sinuca, sabem, percebem alguma coisa. Especialmente velhos, o
velho não tem mais lugar, aonde vai o velho? Eles ficam por ali fazendo apostas
por fora, que o jogador não tem nada a ver; com isso; é um divertimento em que
as horas passam, quando o cara se lembra já é de madrugada, vai pra casa,
dorme, esquece que está sozinho.
Na sinuca existe o leite de pato, o cara que brinca em serviço – é o estudante, o
gajo classe média sem compromisso, que vai ali para se divertir. E há o
profissional: o jogo é o sustento dele, por incrível que pareça, é o sustento. Há
uma diferença brutal de classe, que começa pela maneira de vestir e que acaba
na própria psicologia de vida. Até a gíria é diferente, só eles se entendem. Que é
pra poder dissimular os outros, que ficam em dúvida. É um sobrevivente urbano
num grau mesmo de lúmpen, não chega a pertencer à marginalidade. No
máximo, você pode enquadrá-lo no artigo 59, de Vadiagem. Se você correr as
bocas, vai encontrar casos até hoje de tuberculose, de caras que estão
tuberculosos. Inclusive aquele brilho nos olhos, caras subalimentados, que
passam ali dias e noites, e ao lado disso os seus exploradores, os seus patrões, os
caras que estão apostando neles, a total responsabilidade no taco.
Ficou célebre aqui, na Gávea, a passagem de Boca Murcha, que é um velho
malandro, o apelido vem do fato de ele não ter dente. O bicho se veste como um
caipira, um matuto, mete um chapelão, uma calça larga, e chega aqui, na Gávea,
e durante uma semana passa perdendo. Perde pra um, perde pra outro; hoje, 40
cruzeiros aqui, 50 ali; assim vai fazendo sua plantação. Sozinho, é um
merduncho solitário, arriscando-se. A curriola, se perceber o truque, pode matar
o vagabundo lá dentro ou na saída.
Vai aí numa segunda-feira, Boca Murcha apareceu no salão de madrugada, às 3
da matina, e começou a quebrar. O que vinha ele estraçalhava, já tinha estudado
as mesas, ele jogou até tarde, já tinha quebrado todo mundo, inclusive dois
patrões de jogo e lá pelas 5, 6 horas da tarde, ele conseguiu correr no meio de
uma partida pro meio da Rua Marquês de São Vicente e pegou um táxi.
Conseguiu derrubar toda a curriola de um botequim que ele tinha plantado uma
semana.
Boca Murcha vai desaparecer meses, vai se mandar por aí. A vida deles é isso
mesmo, circulam sem parar. Alguns se regeneram, ou “se regeneram”, como
Carne Frita. Frita, o Walfrido, considerado o melhor taco do Brasil. Ele é um
artista, um esteta jogando, e é dentro da malandragem uma certa aristocracia,
certo estilo de Gerson, de Nilton Santos, dessa categoria, apesar de malandro e
sórdido, como pra moço, é um sergipano pequenino, muito vaidoso no pra moço,
é um sergipano pequenininho, muito vaidoso no vestir, como todo jogador;
vaidoso, mão manicurada, aquele negócio todo, trocando de terno. Isso você
nota muito no jogador de futebol, nos Paulos Césares da vida. O cara precisa ser
visto. Inclusive alguns deles conseguem impressionar como grandes tipos fora
do salão, justamente pela vestimenta e pelo comportamento disciplinado no meio
da rua.
São educados, incapazes de brigar por uma ninharia, uma pessoa de fino trato.
É um pobre que mal sabe escrever, ler.
Então, acabou o divertimento popular, e a sinuca é uma dessas coisas. Imagine
nessa sociedade bem-comportada, embora torturada e sem comunicação, mas
bem-comportada, o cara tem vergonha de viver um grande amor. A palavra amor
é ridícula, hoje não existe coisa mais ridícula que o amor.
Você chegar prum cara e dizer que você está apaixonado, é ridículo. Não pode.
Hoje é vergonhoso viver um grande amor. É ridículo e não pega bem.
Então, a sinuca é um pedacinho dessas coisas todas.
A LAPA ACORDADA PARA MORRER
O último grande herói da Lapa foi o cachorro Elefante. Nos primeiros dias de
março de 67, ele se estraçalhava entre os escombros de um desabamento na Rua
dos Arcos, tentando salvar o seu dono, um emigrante espanhol, com trinta e
alguns anos de Brasil. Com a morte de Elefante, vítima de sua fidelidade, de
uma enchente e de um desabamento, se fechava o derradeiro capítulo heroico da
história da Lapa.
Essa espécie de Montmartre dos pobres, tantas vezes ameaçada de desaparecer
– tanto pelos boatos, quanto pelos planos oficiais – foi demolida definitivamente
em 74, para a Avenida Norte-Sul passar.
A verdade é que o bairro das quatro letras já morrera há muito tempo, e largava
o seu último grito de vida em maio de 1945, dia do colapso final da Alemanha
na Segunda Grande Guerra Mundial, quando se tentou, durante a comemoração,
ressuscitar a verdadeira Lapa numa noite à altura de seus melhores tempos.
Francisco Alves, algum tempo depois, tentou a reabilitação do bairro, num
samba famoso:
A Lapa está voltando a ser a Lapa,
A Lapa, confirmando a tradição,
A Lapa é o ponto maior do mapa
Do Distrito Federal... Salve a Lapa!
Era um ato de gratidão ao bairro. Chico Alves ali principiou carreira, saído do
volante de um táxi para ser artista de rádio, conduzido pelas paternidades de
Sinhô, Noel Rosa, Assis Valente e outros vitalícios de nossa música popular.
Deu-se que o salve-salve do samba não redimiu a Lapa. Piorando e piorando,
como desde 1940, a partir dos primeiros sintomas de uma realidade nova e
esmagadora no Rio de Janeiro – o aparecimento de Copacabana – a Lapa foi
engolida pelo seu verdugo da Zona Sul. O bairro “que até um rei conheceu”,
afamado pela vida noturna desbragada, mal-comportada e inconsequente,
tornava, aos poucos, à morna condição de família, à implantação doméstica do
lar, à invasão dos bons costumes. Um dos estudiosos da cidade do Rio de Janeiro
e da Lapa. Brito Broca, escrevia sobre a decadência: “A Lapa está voltando a ser
família”.
Famosa pela sua boêmia, vida livre, rosário de cabarés, clubes de jogo, blitzen
policiais, império, reinado e república da malandragem carioca, paraíso dos
sabidos e calvário dos otários, mostruário de mulheres famosas, centro da vida
política do País em certa faixa da idade republicana, moradia de um poeta bem-
comportado (Manuel Bandeira, ao lado do Beco dos Carmelitas) e de um pintor
famoso no mundo (Portinari, no atelier da Rua Teotônio Regadas), palco de
tempos heroicos de vários figurões do presente e de homens de valor em
diversos setores, a bem dizer, a Lapa só principiou o seu mau comportamento no
finzinho do oitocentismo, e apenas entre 1910-15 é que se fez famosa como uma
perdida da noite.
Em 1929 atingiu o fastígio e até 38 manteve um fio constante de loucura,
reunindo e irmanando músicos populares, políticos, malandros, escritores,
artistas, prostitutas, homossexuais e todas as variações de tipos que a elevaram,
através da boca e pena de seus cantores e cronistas à condição de Pigalle dos
pobres, sem dever grandes favores às matrizes francesas.
Um paradoxo, entretanto. Seu nascimento, indiscutivelmente nobre, teve o
acompanhamento de uma primeira dentição bem ingênua. Apesar de uma
juventude aloprada, nasceu ao redor de uma capela e de um seminário no ano de
1751. No seu primeiro século de vida era conhecida apenas como praia, com o
nome (até hoje sem explicação) de Areias de Espanha. Quase tão velha, pois,
quanto os seus Arcos, um dos fiéis remanescentes dos tempos primeiros da
Cidade. O Aqueduto da Carioca ou dos Arcos, construído em 1719-23, foi
reformado em 1750 e, como uma das grandes obras de utilidade pública da
Colônia, se prestava a conduzir o encanamento da água, desde o Silvestre até o
Campo de Santo Antônio. Somente em 1896 foi transformado em viaduto por
onde correm os bondinhos de Santa Teresa.
Quando o oitocentismo começou a desmaiar, a Lapa deu uma guinada.
Começou a acender as suas luzes de boêmia, amante e malandra.
Recebeu, então, e agasalhou movimentos renovadores de políticos que
acabaram derrubando Pinheiro Machado. O assassinato do líder terá sido, muito
provavelmente, engendrado no coração da Lapa, que também gestou a
candidatura de Epitácio Pessoa à Presidência da República, no antigo Hotel
Guanabara, na confluência da Rua da Lapa com Rua da Glória.
Em 1915 estabeleceu, sem nenhuma comunicação antecipada, nas Ruas Taylor,
Joaquim Silva, Conde de Laje e Beco dos Carmelitas (que Manuel Bandeira
cantou em “Última canção do beco”), uma prostituição de altíssimo padrão para
a época; de consequências novelescas – crimes de amor, boêmia desregrada e
completo sortimento de malandragem, e que também irmanou sambistas,
pintores e homens de letras.
Pixinguinha começou suas apresentações aos quatorze anos, ainda de calças
curtas, tocando flauta “a cinco e seis mil-réis por dia”, no Cine Rio Branco, para
depois rodar todos os cabarés da Lapa, nos bons idos em que não havia Juizado
de Menores. Heitor Villa-Lobos fez suas primeiras composições no leito da
Lapa, no teclado de velhos e encrencados pianos das hospedarias francesas.
Fez a mistura de Paris a uma carioquice luso-africana e mimoseou grandes
malandros, desde o primeiro leão de chácara lapeano, professor de valentias, de
nome pitoresco – Flores – e indumentária irrepreensível: camisa de seda-palha,
botões de brilhantes, anéis nos dedos, chapéu-de-chile à cabeça, último requinte
da moda. E depois Camisa-Preta, por só envergar camisa dessa cor; Meia-Noite,
o mais famoso e temido, que impressionado com os filmes e heróis de western
desenvolveu a imitação aborígene dos golpes dados no cinema e morreu como
um senhor: assassinado por um concorrente em 1938, na frente do Cabaret
Brasil Dourado. Era parceiro inarredável de Meia-Noite o campeão sul-
americano de capoeira Miguelzinho da Lapa. Ao enterro de Meia acorreram, a
rigor, todas as variedades da fauna lapeana, em desfile luxuoso. Uma enorme
concorrência, legítima multidão com centenas de automóveis. Outros
diminutivos marotos infestaram o bairro – Joãozinho da Lapa, Mariozinho da
Lapa. O primeiro filho de general do Exército, alta patente nos idos de Getúlio
Vargas, também foi fechado por um desafeto, em 1939. Depois houve o
aparecimento de Nelson Naval, que passou como uma avalanche sobre o
território da Lapa, mas o bastante para ganhar nome de valente muito sério e ser
apagado na Cinelândia, em 1953, na Rua Álvaro Alvim.
Um malandro maldito, contudo, continua a ser a mais curiosa e independente
figura da Lapa de todos os tempos. Madame Satã misturava valentia, ousadia,
toxicomania e sodomia e ficou célebre pelos seus imperdíveis contos (ou golpes)
do suadouro e, principalmente, pela fúria dos ciúmes fatais que sentia por certos
tipos másculos. Era um cordeiro entre os malandros, mas reagia como um
demônio diante da polícia e já mofou na Ilha Grande, condenado a uma pena
bastante longa. Apesar da homossexualidade, aguentava uma briga desigual com
três ou quatro desafetos, além de ser um mestre no trabalho da navalha e nas
gingas de capoeira. Ficou famoso o episódio em que degolou, na Lapa, um rival
amoroso, por causa de um marinheiro.
Foi no bojo dos cabarés da Lapa, de seus cafés-concerto, restaurantes, leiterias,
que se viveram as melhores noitadas do bairro; o Siri, da Rua da Lapa, tão
cantado por Mário de Andrade, na sua fase carioca (“Eu tanto aprecio uma boa
caminhada a pé até o alto da Lapa, como uma tocata de Bach”); o Café Bahia, de
onde se avistavam os Arcos e que era ponto de encontro de uma elite de bolsos
vazios e um enorme lastro de talento: Germano Augusto, Kid Pepe, Noel Rosa,
Assis Valente, Francisco Alves, Sinhô... A Gruta do Frade, estabelecimento
pertencente à Velha Vovó, heroína da Lapa. E o grande bar Viena-Budapeste,
com tablado apresentando orquestra cigana, ao gosto de Paris da belle époque e
que fazia as delícias do falecido Brito Broca. E os grandes cabarés novecentistas
Tabu, Brasil Dourado, Primor, Royal Pigalle, Rex, Apolo, Casanova, Night Club
Novo México.
A mais refinada prostituição franco-carioca da época por ali transitou,
escolhida com critério, ostentando joias e brilhos, recolhendo dinheiro a rodo.
Seus nomes: Boneca, Aída, Vanda, Alexandrina, Laura, Chouchou, Lili das
Joias. A última ficou célebre como fina especialista do amor, disputadíssima, a
ponto de carregar muito ricaço à bancarrota e muito figurão ao desespero.
Ao lado disso, a Lapa era ponto de encontro e reunião no famoso atelier de
Candinho Portinari, na Rua Teotônio Regadas. Uma geração inteira de escritores,
artistas e intelectuais fez ponto ali – Mário de Andrade, Murilo Mendes, Jorge
Amado, Marques Rebelo, Renato Palmério, Henrique Pongetti, Queirós Lima... e
ali Portinari hospedou até o famoso Fujita, pintor japonês de passagem pelo
Brasil, vindo de Buenos Aires.
Até 1940 era essa a Lapa que corria nos jornais, desfilava tragédias e belezas,
esmagava mulheres e otários, triturava fortunas, engolia malandros e favorecia
noitadas alegres, acendia ódios, congregava figurões, expunha e escondia
amantes, poetas e desbragados, enquanto o resto da Cidade dormia.
– Quem vai à Lapa deixa a alma em casa.
Balela. Esse antigo código da noite na Lapa tentou ainda se sustentar na boca
dos cronistas e guias anônimos, arremedando o apogeu valente e malandro de
uma Lapa que não existe mais e, quando muito, imita a si mesma, olhos
compridos no passado.
Era a busca de sustentação de um mandamento antigo, que sobrou dos tempos
de ouro. E ficava nisso.
A Lapa dos últimos anos era uma montagem da que já fora. Muito comum um
menino rico proclamar à sua roda, com voz macia e leve, anunciando uma
pretensa farra aos companheiros, dizendo que ia à Lapa beber, dançar e consumir
outros produtos. O menino faria a tal farra sem que absolutamente nada de mal
lhe acontecesse. Porque na Lapa o freguês pagante sempre teve razão. E era
justamente aí que o bairro das quatro letras perdia a classe e se diferenciava
daquele que já desaparecera na poeira dos anos: era uma contrafação bem-
comportada e elástica.
Até um rei conheceu, conforme o samba, e ficou famosa pelos seus cabarés
novecentistas, por onde transitaram, com glória, os impérios do foxtrote, do
tango e do bolero e, não foi à toa que Noel Rosa lhe ergueu um samba, Dama do
Cabaré (homenagem exclusiva à pessoa física e à psicologia das mulheres de
cabaré).
O esqueleto da Lapa (superfície) continuava fiel ao modelo antigo. Anatomia
específica do território noturno: a cabeça com vinte e alguns botequins,
admiráveis como recuperação de tipos humanos autênticos e fidelidade às
decorações originais; o tronco constituído pela marafonaria que só conseguia
nível igualmente baixo na Praça Mauá, na Praça Tiradentes, nas beiradas da
Central do Brasil e no próprio matadouro do Mangue; os membros eram os
quatro grandes cabarés, que sobraram dos tempos de ouro: Cabaret Boîte
Primor, Cabaret Brasil Dourado, Boîte Casanova e Night Club Novo México.
A Lapa embaçada e melancólica não repetia nada do que ostentou em matéria
de cabarés, e um exemplo era o Primor, onde o cidadão Humberto Cruz (vinte e
dois anos como profissional, muitos como cantor e outros como gerente do
estabelecimento) dava testemunho tristonho no assobradado da Avenida Mem de
Sá:
– Antes dos últimos vinte e dois anos, não posso dizer uma palavra sobre a
Lapa. Mas desse tempo para cá, já se teve de tudo. Hoje a Lapa está dando os
últimos suspiros.
Mas não fazia muito que o Primor mantivera um intérprete de várias línguas
para receber turistas, o falecido Max, que pontificava numa área de vinte e seis
mesas circulares, luzeiros vermelhos ainda originais, grandes espelhos laterais da
altura de um homem e um grande jogo de luzes variando entre azul, vermelho e
branco, típico belle époque (única iluminação do gênero na Lapa), patrimônio do
estabelecimento, como as vinte e seis mesas maciças de quatro cadeiras
estofadas.
Nos idos do show o cabaré esbanjou à larga, oferecendo simplesmente Derci
Gonçalves, Grande Otelo, Luís Vieira e até a Carmem Miranda dos primeiros
passos, “que aqui fizeram muito cachê de dez mil-réis”. E mantinha ainda toda a
pretensão de um show internacional.
O Primor foi o último cabaré que manteve regulamento firme e quinze minutos
de alta fidelidade em cada intervalo da orquestra e, apenas por isso, preservava a
dignidade da classe, embora a procura do uísque tenha minguado e os
frequentadores estivessem mesmo em tempos magros de cuba-libre, gim-tônica,
hi-fi e cerveja.
O testemunho do gerente veterano, sobre essa Lapa da hora da morte era uma
mistura pungente. Um fair play dissimulado de falsa resignação ou de ironia
amarga o fazia interromper um “a Lapa já acabou”, e entrar, quase frenético,
num ingênuo “mas a Lapa vai resistir mesmo que acabe. Isto aqui vai ficar
bordado de inferninhos. Não viu Copacabana?” E se agarrava ao fato de que,
ultimamente, quando em quando, o Primor vinha recebendo frequências novas,
de gente da Zona Sul, “e até de famílias”.
Enquanto isso, na Visconde de Maranguape, bem defronte a um buraco do
asfalto (muitas reclamações já o tinham levado até aos canais de televisão, mas
ele continuava lá para os autos espirrarem água nos passantes), a Lapa mantinha
o Cabaret Brasil Dourado, domínio de travestis que envolviam tudo com muita
propriedade e estabeleciam um clima especial em meio ao tango, e cujos preços
caíam sensivelmente antes das duas horas e trinta minutos, quando o show
começava sob a direção do maestro Malaquias Pimentel e o brilho criador do
diretor de travestis Ronaldo Crespo.
Nos últimos cabarés da Lapa que apresentavam shows, o convívio maior era de
toda uma faixa de poetas noturnos, rudes saudosistas ou improvisados,
debiloides ou patéticos, sendo a galeria maior salpicada de otários (também
chamados fregueses) que carregavam disposições medianas, não passando dos
cem cruzeiros. O Brasil Dourado, de exceção não tinha nada, e repetia o cenário
ora crepuscular e misterioso, ora risonho e gentil dos cabarés da Lapa atual. Mas
ao doutor visitante, lisonjeado pelos tantos sorrisos e diligências, era
recomendável que se bastasse na superfície desses sorrisos: quem aprofundasse
qualquer aspecto humano dos cabarés da Lapa daria de frente, quando menos,
com uma tragédia do neorrealismo carioca.
A realidade da Lapa dos últimos dias: nenhum travesti, instrumentista,
dançarina, ou profissional de cabaré trabalha em apenas um local da noite, e para
que faça a média de dez a doze cruzeiros, é necessário que comece a luta na
Lapa e termine às tantas da madrugada em algum inferninho de Copacabana ou
vice-versa. Os instrumentistas, alguns até razoáveis, pertencem àquela camada
de músico “que já foi bom no passado” ou “era o melhor clarinetista no tempo
de Francisco Alves”. As dançarinas tocam a vida porque na realidade se aplicam
a outros expedientes também, alguns clandestinos, como o do amor
cronometrado, remunerado e com garantias antecipadas, cuja taxa de serviços
pode variar entre dez cruzeiros, quinze cruzeiros e vinte cruzeiros (sem se incluir
o preço da entrada do hotel, é claro). Os próprios garçons já começaram sua vida
às duas da tarde em algum bar ou restaurante do centro da Cidade. Os cantores e
cantoras também fazem pontas e números em outras casas da noite, e muitos
chegam à Lapa vindos do Balalaika ou do Avenida Danças. No longo capítulo
das meninas que enfeitam as noites dos cabarés lapeanos é preferível que
igualmente não se desça muito em profundidades humanas: há implacavelmente,
à espreita dos desavisados, sentimentais ou líricos, sempre uma pungente
tragédia de garota passando seus primeiros ou últimos dias de Lapa, e aí o clima
fica como certos filmes italianos no presente e mexicanos no passado. Enquanto
se estiver na superfície, quase tudo na Lapa correrá com certa amenidade.
Um traço particular da maioria dos cabarés: quando o doutor avistar numa
mesa um sujeito de blusão caindo bem no corpo, ares sóbrios, que apenas bebe
cerveja e, entretanto, tem à sua roda uma variedade de mulheres, estará perante
um sintoma significativo da Lapa – ali bebendo, naquela mesa, está um animal
precioso e até abominável, prejuízo de uns e alegria de outras, professor de
charlas e habilidades da região, o malandreco, o sabido, o bem-bom da Lapa.
Mas o doutor esteja em paz, na tranquilidade morna do seu uísque, porque ali
está um animal que só morde onde sabe que não vai doer e, afinal, a grande
maioria dos clientes de cabarés são uns otários deslumbrados. E, se houver
tiroteio, não se assuste que a bala não chegará até a sua mesa. O código ainda é
válido na noite:
– Bala não se perde na Lapa e também não erra o destino.
Na crônica do Gabaret Brasil Dourado havia o sempre lembrado antigo dono,
Bueno Machado, suficientemente conhecido pela vultosa habilidade que
conseguiu desenvolver dançando vinte e quatro horas sem parar.
– Mas isso foi noutros tempos – garante o gerente. Agora aqui aparece muita
gente bem e isto aqui é uma verdadeira casa de família.
Corria também por sua inteira responsabilidade outro tipo de informação:
– Antigamente era preciso botar na porta dois leões de chácara. Hoje não se
precisa de nenhum e temos só um porteiro.
Quando a Lapa caísse, o prejuízo desses senhores donos de cabarés incluíria
também um botequim, uma tinturaria ou um buraco qualquer da Lapa. E
costumavam enviar uma receita de alerta (com algum ressentimento) aos turistas
defensores profundos do Rio antigo:
– Se os cabarés caírem, eles cairão mesmo. Se eles morrerem não irão para
parte alguma. Acabou-se cabaré no Rio.
No entanto, dos velhos cabarés afamados, ainda restavam dois grandes na
Mem de Sá, conhecidos de sobra pelos seus shows. E era esta, a Lapa dos
últimos dias.
Enquanto os mendigos, vagabundos e indigentes iam juntando seus farrapos e
transformando folhas de jornal em cobertores, fazendo suas moradas da noite
nos vãos da escadaria da Escola Nacional de Música e do Automóvel Clube do
Brasil, as ruas, bares e cabarés da Lapa continuavam um reino dourado e
saltitante dos invertidos do amor com suas franjinhas delicadas, seus fricotinhos,
desmunhecamentos e ares de etéreos sofrimentos.
A lida das mulheres, resto esfacelado do que a Lapa já tivera em termos de
beldades há vinte anos, vendia barato, aguado e rápido um amor de caras
pisadas, de cansaço nas pernas e de taxas decadentes: quatro cruzeiros e mais
três cruzeiros para o espanhol, porteiro do hotel da Travessa do Mosqueira ou da
Visconde de Maranguape. O domínio espanhol se estabelecera de tal maneira
conluiado no território hoteleiro da Lapa, que se transformou em monopólio
absoluto das pousadas do amor remunerado.
E era o quadro: a Boîte Casanova sustenta em ambiente baixíssimo (o
superlativo é redundância em se tratando da Lapa na hora da agonia) um show
exclusivamente de travestis, bastante movimentado, onze elementos e muita
variedade, graças ao talento criador de Nelito Flores, que há seis meses aguenta
a mesma “grandiosa produção”, em cartaz no palco do Casanova.
Em 74, ano da degola final, o Casanova mantém o olho aceso, na qualidade de
último cabaré da Lapa. A casa mantém os seus shows de travestis três vezes por
semana. Mas a freguesia decaiu mais e com ela as mulheres que envelheceram
com o bairro. Estão fanadas, vestindo mal, esbranquiçadas, sonolentas,
caqueradas na segunda ou terceira meia-sola da vida.
À entrada, iluminado dentro do porta-cartazes para o público, com lápis
vermelho e verde, é possível ler estes garranchos: Todas as quintas, e sextas, e
sábados – Grande Show – O Mundo Encantado das Bonecas – Com René Rial –
Fujika – Alcina – Vera – Madame Leopoldina – Marlene – E a atração
internacional Lee Ribanchera – Direção musical de Sutt – Direção artística de
Marlene. É este o show mais badalado das madrugadas – Venha curtir conosco
– É isso aí, bicho... Falado? Você vai se divertir às pampas e vai recomendar a
seus amigos. Você vai adorar a curtição. Estamos lhe aguardando.
Surpreende que o estabelecimento seja dirigido por uma mulher, faz trinta
anos, a veterana Dona Maria (ninguém sabe exatamente de quê). Mas quem
manda chuva no Casanova é essa Dona Maria, a quem se respeita e se mantém
distância. Fiscaliza de ponta a ponta, faz determinações, distribui ordens e
verifica tudo, desde que assumiu uma espécie de presidência vitalícia da casa,
com a morte do marido. E embora assevere: “o ambiente aqui agora é quase
familiar”, o fato líquido é que a grossa frequência do Casanova,
indisfarçavelmente de malandrinhos rampeiros, rameiras mal-ajambradas e
viradores sem eira nem beira, formam um lago dos mais escuros, com piranhas
por todos os lados e mesas de mulheres ostensivamente trabalhando seus otários
nos intervalos dos shows, como na mais legítima antessala de bordel.
Ao fundo há telefone de emergência e guarda-roupa, e alguma facilidade de
preços, com o fito de prender o sujeito pela noite inteira e atrair o visitante
basbaque.
É impressionante a pressa com que os travestis abandonam o palco do
Casanova (três ou quatro da manhã) para partirem, calças compridas muito
justas e perucas à cabeça, em busca dos inferninhos de Copacabana ou outros
cantos onde defenderão cachê em outro show qualquer. Os travestis da Boîte
Casanova serão talvez os mais ocupados do Rio de Janeiro, e se apresentam na
noite em dois, três pontos diferentes da Cidade. Esses artistas, bordando de canto
e dança todo o show do Casanova, apresentam um espetáculo medíocre, porém
curioso do ponto de vista humano do bastidor. É o espetáculo do espetáculo, com
travestis jovens e velhos, cansados e enrugados, começando ou terminando
carreira, luxuosamente vestidos, com uma variedade caríssima de perucas, joias,
apliques, adornos de um a um e meio mil cruzeiros antigos em cima dos corpos
magros, que transitam no palco entre luzes indiretas e risinhos da plateia também
medíocre. De feminilidade milimetrada em todos os pormenores, melindres,
negaças e dengues, são esses os artistas da Lapa que mais comovidamente
recebem os aplausos e, provavelmente, são eles os que mais vibram, na luta
talvez mais dura de arrancar o seu pão da noite. Essa, a Lapa da decadência.
Defronte ao Casanova, reunindo o de melhor que ainda resiste em termos de
cabaré da Lapa, se planta o Night Club Novo México, velho como o bairro
boêmio e ainda com traços autênticos, apesar do detrimento geral. Ali se
encontra, montando guarda há vinte e seis anos, o famoso Boi, a maior bossa
falante da Lapa atual, leão de chácara cheio de amenidades, desde que sinta que
o interlocutor é boa praça. Não trabalha sozinho, que o movimento do
assobradado do Novo México é indiscutivelmente o mais aceso e concorrido da
Lapa. Boi é assessorado por três outros pastores da noite, formando um quarteto
digno para uso interno e externo em situações quentes de fuzuê.
Dois shows comparecem (uma hora e trinta minutos e três horas da
madrugada) ao palco de vários degraus do Novo México, e um número enorme
de artistas desfila, dança e canta para as proporções magras da Lapa decadente.
Seis cantores, duas orquestras, três cômicos, uma dupla de bailarinos espanhóis,
alguns rumbeiros, um malabarista, um bando de mais de dez girls, um soprano
ligeiro, livre e dramático, um soprano lírico, fazem o regalo das principais
atrações soluçantes e saltitantes de um Novo México ainda animado, apesar dos
janeiros.
Ali a Lapa perderá frentes estimáveis, principalmente em matéria de gente.
Olinda Ribeiro, crioula sacudida e bem vivida, veterana, esbanjando talento,
dispensando microfones e enfeitando a noite com seus sambas autênticos que
vão ecoar lá embaixo, quando se passa do outro lado da calçada da Mem de Sá.
Um número chinês levado por doze garotas que relembra em cheio todo um
passado de fausto da Lapa, a loura Sueli fazendo striptease ao som do Rififi e
que só não despe a boina da cabeça, jogando brancura nas escuridões da Lapa.
Quando nas ruas da Lapa, o doutor visitante via a placa: “Hospedagem –
Alugam-se quartos a cavalheiros”, podia concluir sem dúvida como certo – ali só
entrava acompanhado. E, tirante a honorabilidade repintada na Sala Cecília
Meireles, onde outrora Cine Colonial, bem poucos eram os interiores lapeanos
por onde não transitavam, direta ou indiretamente, os interesses da prostituição.
Essa foi a última das Lapas. E esse tipo de breve amor, após combinação de
preço, duração e condições gerais (nas últimas horas da madrugada o número de
marafonas aumenta, a oferta é maior que a procura e, em decorrência, os preços
caem), acabava desembocando em hotéis da Visconde de Maranguape, da
Riachuelo e da Travessa do Mosqueira, legítimo braseiro por todos os motivos
de bulício, esbórnia e rumor. Hotéis de quarta e quinta categorias, onde o amor
de quinze minutos ia sendo praticado a dois cruzeiros para entrar e sair do quarto
ou quatro cruzeiros se o freguês preferisse pernoitar. (Tudo pago
antecipadamente, claro.)
Nos quartos de paredes imundas, contendo toda uma variedade de palavrões e
citações típicas, escritas e desenhadas a carvão, lápis ou batom, há simplesmente
uma cama de casal e um guarda-roupa antigos. (Mas trata-se de antigo autêntico:
atenção colecionadores!) Não há cadeiras e nem mesmo criados-mudos. O teto é
alto, as janelas são em geral de venezianas, os lustres antigos pendendo lá no
alto, o ar abafado, chão nu e encardido, higiene precária, não excluindo baratas,
pulgas e outros insetos indecorosos e, em quase todos, a presença de uma pia
para abluções ligeiras e insuficientes. A fechadura da porta é encrencada,
calvário dos bêbados. Os corredores intrincados abrigam muito movimento,
principalmente, nas sextas-feiras, nos sábados e nas vésperas, “dia de trouxa vir
à Cidade”, como assevera a linguagem malandra da região. O entra e sai nesses
dias é bastante intenso e a Lapa se confunde com o Mangue. Aliás, o gado
humano que se negocia nesse mercado, só encontra paralelo em cantos ainda
mais sórdidos do Rio. Quanto aos hotéis, se a higiene legal quisesse agir, é
evidente que já não existiriam mais.
Há um atilado senso profissional entre as marafonas da Lapa, objetivas, diretas
e pragmáticas, a não perder muito tempo com prosas moles. Se o papo for furado
e o otário estiver falando demais, elas cortam rente:
– Ó, meu chapa, me dá licença qu’eu preciso trabalhar.
Essa, a Lapa esfarrapada, na hora da morte, que o século viu nascer e viu cair
em obediência aos planos oficiais ou em consequência de enchentes e
desabamentos. Sempre entre andrajos, misérias e decadências.
Mas era a mesma Lapa, que para os doidos, poetas e líricos da noite, seria
sempre uma menina, que insistia e ficava acordada, enquanto não caíram os
cabarés da Mem de Sá, as leiterias do começo do século, os botequins e
restaurantes da Visconde de Maranguape e persistiram, abertos e impunes, os
hotéis da Travessa do Mosqueira com seus vidros coloridos, fachadas de ferro
batido e seus paralelepípedos ancestrais.
VISITA
Sonhei que voltara às grandes paradas. Eu e Carlinhos. Desprezando para
sempre nossos empregos, sozinhos no mundo e conluiados, malandros perigosos,
agora. Vagabundeávamos, finos na habilidade torpe de qualquer exploração. E
fisgávamos mulheres, donos de bar, zeladores de prédios engraxates, porteiros de
hotel, meninos que vendem amendoim...
Era quando a branca caía.
No jogo, no quente jogo aberto das parceiradas duras, partidas caríssimas, eu
tropicava, tropicava, repetidamente. Aquilo não se explicava! A tacada final era
dolorosa e era invariável – era a minha – e eu me perdia. Aquilo, aquilo nos
arruinava. Quem me visse e não soubesse diria que eu estava traindo. O ótimo
Carlinhos não se desnorteava, fazia fé, dava-me o embalo, imprimia moral.
– Firma e joga o jogo!
Mas nada. Ajeitasse giz no taco, estudasse os efeitos das tabelas, caçasse
combinações, lavasse o rosto para a tacada – não me salvava. A bola branca caía.
* * *
– Olha, este sabonete também.
– Sim senhora.
Diabos, toda noite esta história. Mal entro em férias, é isto. Não basta o
escritório, não basta. Os chefes, as idiotices. Tudo em promiscuidade e eu a
aturar. Quando a noite chega, hora da gente descansar, cinema, mulher, qualquer
coisa... não. Latinha de flite, sabonete, caixa de alfinetes, nem sei. Minha mãe
tem a mania de me arranjar estes probleminhas domésticos. Pelo ano inteiro, este
tonto trabalha e aguenta escola noturna. Dorme seis horas, acorda atordoado de
sono, vai buscar dinheiro numa profissão inútil. Dia todo somando, dividindo,
subtraindo, multiplicando. Por que diabo mandam-me tantos relatórios? Os
dedos pretos de fumo são fins de braços sem bíceps, sem tríceps, nada. Pudera!
Às vezes, vejo na expedição homens da sacaria, braços enormes. Imagino-me
vivendo à sombra deles. Parece-me que a vida teria músculos e sossego, não
cálculos e ocupações domésticas.
Uns dois meses sem ver Carlos. Desde o tempo da refinaria. Não sei bem como
era – mas eu não vivia mandado como agora, tinha sempre mais dinheiro, meu
jogo era bom, tinha um estilo e rendia.
Quando deixei aquilo, deixei-o e deixei outros colegas. Emprego novo, vida
diferente. Qualquer mudança me impinge ocupações novas, esquecer amigos,
abandonar certas coisas. Parceiros em tudo, parceirões. Dois tacos considerados
e de respeito, viris nas partidas caras. E na refinaria, sempre me arranjava um
jeito de estudar escondido, tapear os chefes. Num Natal dera-me um postal. A
aproximação de dezembro, agora, trouxe-me a lembrança de revê-lo e levar um
cartão. Carlos se alegraria, abraços, café, apresentar-me-ia sua irmã (ele deveria
ter uma irmã linda); bate-papo sobre futebol, a velha sinuca, umas horas longe
de latinhas de flite e sabonetes.
* * *
Arranco a gravata. Nem é gravata. Um nó e pronto. Mas todas são assim, não
as consigo conservar. E o pior é que aqueles sujeitos do escritório, gente
estrangeira que fuma charuto, espia isso. Nada o que fazer. Adoraria vê-los onde
estou, dia inteiro sobre a máquina, suportando desaforos.
– Onde é que anda minha camisa esporte?
– Camisa não anda.
– Deixe de brincadeiras! Onde é que está minha camisa esporte?
– Não sei, procure.
Que irmã, vejam. Uma tonta. Sabe é ouvir novela, ler romancinhos para moças,
discutir babados. Uma camisa nunca sabe onde está. Chateado, abro o guarda-
roupa. Há um estalo na porta, que a fechadura está velha, que é preciso trocá-la,
eu vivo falando nisso. Não encontro camisa esporte.
– Mas onde enfiaram?
– Nossa!... Você vive sempre amolado.
Ora, vou com esta. Sem gravata, tudo arranjado.
– Você viu a filha de seu Daniel, ontem?
– Não vi.
– Só mesmo vendo aquele vestido.
Vejam, em vestidos pensava...
– Por que você não me compra um vestido daqueles para o Natal? Fica tão
bem...
A filha do Daniel é uma sujeita antipática que vive por aí. Anda namoricando
Deus e todo o mundo. Agora é a vez dum sargentinho da Aeronáutica, muito
metido a balão. Julga-se, por isso, moça distinta, troço importante cá na vila.
Galinha assanhada! Da pouca-vergonha que faz à noite, no namoro de portão,
vive se esquecendo.
– Compro nada!
– Pão-duro!
Bem, até aí estava bem. Miserável, pão-duro, estava bem. Muito bem. Agora,
sustentar luxos e tendências, não. Já me bastam os meus gastos.
* * *
Uma calma gostosa.
O ônibus quase vazio me dá calma. Entrando vento pela janela. Bom. Mãos
cruzadas, olhando coisas lá fora. A casa do ótimo Carlinhos – perto. Poderia ir a
pé. Prefiro o ônibus; basta a canseira do dia. Gente como eu, bobagem
economizar níqueis. Jamais se tem alguma coisa. A taxa do colégio, uma farra
qualquer, levam tudo. O diabo é que eu não nasci trouxa, aqueles tempos de
jogo, quando desempregado, me ensinaram que eu não nasci trouxa. Agora, o
salário minguado dá para cigarros de vinte cruzeiros e cachaça de quando em
quando. Se o mês aperta, corta-se isso.
– Só mesmo vendo aquele vestido.
Calculem. E eu a aturar. Se perco as estribeiras, meto a boca no mundo, é a
velha história – estou dando escarcéu, acordando a boa vizinhança, mau
exemplo. Quietinho. Feito um menino, feito criado.
Carlos deveria ter uma irmã linda, cheia de modos e não cabeça oca. Nunca
estivera em sua casa. Sabia o endereço, que ele jamais esquece essas coisas. Eu
não. Tanto faz. Talvez por isso não arranje bom emprego. Mas... e se não tenho
jeito?
O cobrador. Tiro vinte cruzeiros, espero o troco. Gostosa, a noite. O ônibus
roncava, ganhava esquinas, passou a serraria, a fábrica de tubos. Passada a
ponte, eu desceria. Sentou-se a meu lado um tipo de chapéu, olhando de
esguelha. Assim fazem nos ônibus, parecem não ter coragem de encarar uma
pessoa. Caras de gente apoquentada nestes lados, que me parecem uma indústria
de neurastênicos.
O ônibus rolava pelo viaduto. Rio sujo lá embaixo. Ainda dizem ser grande
coisa lá na escola. Asnos engravatados! Não sei. Li, dia desses, a biografia de
um escritor morto há pouco, também professor. Coitado, mal tinha para os
quatro filhos, e um dia foi detido, trancafiado, por meter-se em política, mesmo
não sendo da esquerda. Homem admirável. Mas dizer-se maravilha do rio
fedorento, lá isto é asneira grossa. Até um ignorante como eu, percebe. Xingam
isto de nome indígena...
Já curti um desemprego, cinco meses que só eu sei... Vida do joguinho. O dia
na cama, a noite na rua. Cinco meses. Mas naquele tempo eu fumava cigarros
estrangeiros e mandava polir as unhas. Não engulia um desaforo. Dinheiro? Eu
tinha muita cabeça e era um taco de verdade. Noites de levantar quatro, cinco
contos! Mas jogo é jogo e eu não nego – peguei rebordosas medonhas – não foi
uma vez que deixei o salão sem dinheiro para o ônibus. A casa... a família
reunida para as reprimendas que duravam duas horas. O vagabundo, o ingrato, o
perdido, o isto e o aquilo ouvia sem dizer nem pau, nem pedra. Os olhos no bico
dos sapatos. Aborreciam-me. Puxava uma, duas das notas maiores e entregava.
Preocupação, remorso, vergonha? Não, não, nada disso. Era sono, que eu passara
a madrugada em volta da mesa me batendo, jogando, suando, arriscando,
perdendo, ganhando. Por isso aturava o esporro – queria dormir. Falassem.
Moral para a família rezadeira é aguentar máquina de cálculo oito horas por dia,
aguentar chefe estrangeiro, bitola, manha, idiotice e ganhar seis contos no fim do
mês. Hoje sou um bom rapaz...
Dou o sinal, pulo. Ganho a rua de paralelepípedos, dobro esquinas, olho o
endereço num cartão, entro por um corredor, rumo a um cortiço. A casa era a
última duma fileira de moradias de ferroviários. Na varanda, um casal em
namoro. Um pegadio sem modos. Avistando-me vem a moça atender.
– Boa noite. Carlos está?
– Não. Saiu. O senhor...
Coço a cabeça. Sempre me desajeito ante mulheres. E esta, agora, me
chamando senhor! Torço as mãos, desespero-me à toa. Deve ser irmã de
Carlinhos. Namorando ou noivando. Bonita, boas pernas. O sujeito que aí está –
bem apessoado. Voz firme e não corou, quando apareci interrompendo abraços.
Como essas pessoas que não se intimidam ante outras me parecem superiores!
Tiro o postal do bolso interno do paletó, vem junto um cigarro amassado que
guardo com atropelo.
– Pode-lhe, por favor, entregar isto?
– Pois não.
– Me desculpe, a senhora é irmã dele?
Era. Despeço-me, deixo-os sossegados. Curvo esquinas, subo ladeiras, acendo
cigarros maquinalmente. Encabulado. Pena não ter encontrado o excelente
Carlinhos. Chateado. Perdi uma noite agradável.
– Também... isto não deve ser hora de visitas.
É. Quem sabe... não entendo dessas coisas. Tanto faz.
Vou perambulando, a admirar coisas do caminho, mulheres que passam. Cedo,
nove horas. Um bar, entro. Num sobrado gente conversando na sacada.
– Cachaça pequena, faz favor.
Um sujeito solícito me enche o copo. Encosto-me ao balcão, fico olhando para
a calçada, onde besouros caem e gente passa de longe em longe. Remato a
bebida, saio. E agora, o quê? Cinema? Meio tarde para cinema. Besouros voam,
caem. A última sessão termina pela meia-noite passada, o último ônibus parte às
onze é meia. Porcaria de subúrbio! O sujeito que abraçava a irmã de Carlos era
alto e era loiro. Havia se arranjado muito bem.
– Por que não arranjo uma namorada?
Um engraxate batuca na caixa, me convida para limpar os sapatos. Viro a
esquina, entro para os lados do ponto do ônibus. Lendo um letreiro de
propaganda de dentifrício.
– Por que não arranjo uma namorada?
Que nada... arranjaria uma dessas franguinhas bobas, que se ajustam a meninos
bonitos. Ao pé do letreiro, um modelo de dentes muito brancos, teria pernas
bonitas como as da irmã do ótimo Carlinhos. Meus dentes são amarelos,
manchas de fumo. Ambas teriam coxas mornas, brancas. Espero uns minutos,
quieto. Aquela posição, de pé, mãos para trás feito soldado, me chateando. Ando
até outro ponto mais próximo do final. A filha do Daniel vive inchada pelo
sargentinho da Aeronáutica, e se tem como moça distinta. Para essa gente,
distinção é usar roupa nova, ter namorado bonito... Essas coisas. Ônibus não
vem. Diabo de linha! Por que não vem duma vez a prefeitura de um governo que
tome conta de tudo?
Bato a cinza do cigarro. A vila é bem mesquinha, rodeada de fábricas, dezenas
de bares, três igrejas, um grupo escolar. O casario feio abriga mal gente feia,
encardida, descorada. Nos meus cinco meses de vagabundagem eu me acordava
tarde, tarde, e podia ver melhor aquilo. Ia aos bares. As ruas com seus monturos,
cães e esgotos, muitas vezes me davam crianças que saíam do grupo escolar.
Não me agradavam aqueles pés no chão movendo corpinhos magros. Qualquer
ignorante podia perceber que aquilo não estava certo, nem era vida que se desse
aos meninos. Eu saía do botequim, chateado e fatalmente enveredava mal.
Encabulação, cachaça, erradas, desnorteava-me no jogo. Um sentimento
confuso, uma necessidade enorme de me impingir que não era culpado de nada.
Os meninos iam magros porque iam. Culpada era a vila ou alguém ou muitos. Eu
também engulia aquele pó, igualmente amassava aquele barro, aguentava aquela
vida cinzenta. Podia mudar o quê? Não havia sido um menino como aqueles, pé
no chão, desengoçado? Nos dias de chuva eu não me encolhia nessas ruas feito
um pardal molhado? Sem eira nem beira. Eu tinha culpa de quê?
Minutos de espera, o que me sobrou foi tédio e raiva. Onde se viu uma linha de
ônibus tão relaxada? E ainda querem aumento de tarifas... é, barriga está cheia,
goiaba tem bicho. Abandono a ideia do ônibus, vou a pé. Passo o pontilhão,
entro pela rua do quartel. Uma das sentinelas encosta-se a uma prostituta num
canto do portão, que a iluminação parca não abrange. Quartel intendente.
Meretrício logo ali. E depois a gente vê na televisão, ouve no rádio, homens de
farda falando em moral de costumes. E mostram bossa.
– Quartel indecente! – gracejei comigo.
Quando os passei de largo, pararam com a safadeza.
O praça olhou para o chão, esperando a minha ida.
Quis seguir estrada, o atalho me surpreendeu. Uns dez minutos e estaria na
vila. Sapos nas pocinhas das beiradas do campo de futebol. Até há pouco, aquilo
era do futebol da molecada. Indústrias querem surgir acompanhando a estrada de
ferro, acompanhando tudo, provavelmente serão usinas de concreto. Várzea
escura, breu. Meu pai disse-me que, quando menino na Europa, transpunha vales
escuros, para pastoreio, onde lobos uivavam. Aqui há mosquitos e fartum do
curtume próximo. Luzes ao longe, luzes da serraria. Posso caminhar olhando-as.
Às vezes, faço de conta que são guias, que eu sigo para alcançar a vila. Pena não
encontrar Carlinhos, não estaria tateando este breu.
— Quartel indecente!
Chego. Sapatos cheios de pó, sapatos cheios de pó, vivem sempre
empoeirados. Porcaria de vida! Para a cama a esta hora, asneira. Estava, ficava
até mais tarde. Gente povoava o largo do correio. Entrei no Bar e Café Colombo.
No fundo havia sinuca, pedi café, me fui encostando. Uns me reconheceram.
Outros reconheceram e fizeram que não. Sujeitos bestas, muita vez um terno a
mais, um tico de ordenado a mais e torcem o nariz. Arrogância besta.
— Sujeitos bestas — digo baixinho, para justificar-me de que estou acima
deles.
Logo caio em mim, reconheço que sou pobre-diabo como os que jogam. Como
reconheço que já vivi disto e eles não. Cada um no seu emprego.
— Vinte e um, Gazuza?
O mulato meneou a cabeça. Aquele sim, um bicho, mas sabe o que é e não é
balão.
— Aberto, cinquenta a mão.
— Posso entrar?
Os quatro se entreolharam. Também a sentinela e a molanqueira
entreolharam-se quando apareci. Na várzea havia mosquitos bravos, não lobos.
Um tipo musculoso mediu-me de soslaio, tinha a camisa apertando braços
enormes, uma cara enorme, um queixo enorme, de gringo. Talvez quizesse jogar.
Se quizesse, que fosse dizendo. Polidez com essa gente é tempo perdido.
— Vai, entra. Tira pedra.
Desatei o paletó, acendi um cigarro, escolhi taco, peguei num giz.
— Seu Neves, me dá cachaça grande.
— Em cima do café?
— Ahn?
— Puxa, não ouviu? Disse três vezes.
— Ahn... sim.
Chateado, escorando-me ao taco, esperando a vez. Um gole. Esperei que
ardesse na garganta. O modelo do cartaz tinha dentes tão brancos, teria pernas
mornas, brancas. Talvez, nesta vida besta jamais estarei com uma mulher como
aquela. É. Nunca conhecerei. O mundo para mim não tem dado voltas, rolado
como dizem alguns. Sempre as mesmas tiradas. Meus sapatos furam-se, os
ternos estragam-se, continuo o mesmo sujeito. Escritório, taxa de colégio, irmã
galinha. Vida xepe, porcaria!
Tanto preparei o postal... queria tanto rever o excelente Carlos! Não tenho jeito
para escrever, mas vá lá. “Vai pras cabeças!” – como se diz cá na sinuca.
Escrevi. As redações da escola... na escola sabem é falar de verbos e casos do
infinitivo. Servem-me bem pouco. Falando sou um sujeito como esses
marreteiros que por aí vivem. Palavrão. Perífrase. Gesticulação de gringo. Pago
um dinheirão de taxa.
Vejam a branca... Se caísse, eu teria um sete e um cinco de boca. Cinco e sete:
doze. Doze com pedra nove, faria os vinte-e-um e faria os duzentos cruzeiros.
Um sujeito bateu a rodada, agora. E eu tinha bom jogo! Diabo de branca, por que
não era minha vez? Meto a mão no bolso, enfio a cédula na caçapa. Saio para
outra.
– Por que não arranjo uma namorada?
Que maluquice de ideia de namorada é essa, que hoje me anda na cabeça!
Aqueles ingleses do escritório deviam aturar desaforo, para saberem o que é
vida. Aturar desaforos. Figurões que se agrupam, vêm para cá, moram em
palacetes, aqui encontram bobos a servirem-lhes em idioma e escrita. Sou um
deles. O que sei aí está – língua estrangeira para servir a estrangeiros. E ganhar
seis contos por mês. Para que eu viva é preciso tanto. Se descambo para a vida
do joguinho, a família rezadeira me atinge com o moral. Para os ingleses do
escritório, tudo fácil, escolhido, arrumadinho, asseadinho. Ainda espiam
gravatas. Ratos!
A branca subia, descia, nada de minha vez chegar. Seu Neves olhava-me
entediado. Tristeza aquela profissão de suportar bêbado. Seu Neves tem uma
história triste e eu não gosto de lembrar. Entretanto, é apenas uma história como
outras aqui da vila, que é rodeada de fábricas e em que não existe uma só rua
asfaltada, em que há algumas dezenas de bares, três igrejas, um grupo escolar. O
resto é o casario imundo e descorado com seus esgotos nas ruas. Até um
ignorante como eu gostaria que lhe explicassem porque pessoas que trabalham
hão de viver assim.
Olhem Seu Neves. Brigado com a mulher que o engana, suporta a sem-
vergonha, porque tem filha moça dentro de casa. Como pode uma mulher fazer
uma coisa dessas a um sujeito como seu Neves? Eu não entendo. Seco, fala
pouco, fuma calado, não entende futebol, não tem opinião. Às vezes, penso que é
um homem que morreu já faz muito tempo e está neste mundo nem sei para quê.
Talvez para aguentar bêbado ou ser corno manso.
Caiu a branca. Minha vez. O álcool rondava-me a cabeça. Terceiro, quarto
copo, nem sei. Uns quarenta minutos ali de pé, repetição de cigarros, pegando no
taco de longe em longe. Angústia me vem, cada vez que penso em coisas sérias,
quando bebo. Começos de desmaio, muita vez, quando bêbado, penso em coisas
sérias; com um estremecimento empurro a ideia de tê-los agora. Lastidão, o
amargo começando na boca, a canseira nas coxas e na barriga das pernas. Pedra
dez, é fácil, fácil. Deus do céu! Estava ali a deixa. Bola cinco meio difícil, é
certo, porém o seis... a um palmo da caçapa. Era só empurrar. Derrubava a rosa,
colocava a azul, fechava o jogo. Pagava meu tempo, meia-noite e tanto, ia
dormir. Não me aguentava nas pernas.
Mas que jogo triste! Fosse outrora e eu fechava este joguinho num instante.
Hoje tremo, cachaça e medo, peço com os olhos para as bolas caírem. Ora, eu
fazendo este joguinho sovina de cinquenta cruzeiros a mão!
– Por que não arranjo uma namorada?
Por que não esqueço duma vez esse negócio de namorada? A cara dura, os
beiços duros, a cabeça doendo pela cachaça. Olho a branca, posso fechar o jogo,
acabar com a alegria desses parceiros. Não me lembro da cor dos cabelos do
modelo de propaganda. Amanhã passo por ali, reparo naquilo. O mundo de
dimensões do pano verde de uma mesa de sinuca. Quase bicou o seis, não
tropiquei por bem pouco. Estou nervoso, é este medo sem jeito. Os parceiros
olham-se, olham-me. Na porretada, a azul. Diabos, não caiu na caçapa em que
mirei. Por que veio cair aqui em cima, na sorte? Mal, péssimo. Eu não queria na
sorte. Vejam a que meu jogo ficou reduzido. Sujo, é só sujeira, só me
encontrando na sorte. Vou é para a casa.
Atenazado, mergulho a cabeça na bacia. Faço a ablução aos poucos, fazendo a
água escorrer aos poucos... Os olhos pesam. As mãos ásperas de giz, os olhos
estão miúdos. Muito sono, muito urgente é dormir, luz apagada, travesseiro,
solidão, nada... Amanhã, curtir bebedeira. Cara inchada, olhos inchados, beiços
duros. Amanhã, saia sol ou não, os óculos escuros, ninguém perceberá os olhos
inchados.
Aborrecimento sem motivo. Para final, não vi o excelente Carlinhos, vi as
pernas brancas da irmã, ganhei trezentos cruzeiros (tirante o tempo), deixei o
postal, desertei uma noite das ocupações domésticas.
Mas amanhã, a repetição dos relatórios. Meus olhos viajarão do teclado aos
corpos taludos dos homens da sacaria. E nas paredes brancas do escritório,
balbúrdia, persianas entreabertas, ingleses a perambular.
9
PAULINHO PERNA TORTA
“Um valente muito sério,
Professor dos desacatos
Que ensinava aos pacatos
O rumo do cemitério”

Noel Rosa, “Século do Progresso”

“... quem gosta da gente é a gente. Só.


E apenas o dinheiro interessa.
Só ele é positivo. O resto são
frescuras do coração.”

(de acordo com o ensino


de Laércio Arrudão)

Que essa cambada das curriolas, que esses ratos da polícia e esses caras dos
jornais, gente esperta demais com seus fricotes, máquinas e pé-ré-pé-pés,
espalha que espalha mais brasa do que deve.
Sei que deram para gostar ultimamente de encurtar o nome de Paulinho duma
Perna Torta.
Paulinho duma Perna Torta. Paulinho da Perna Torta.
Apenas.
Nos jornais, nas revistas. Também na televisão já vi essas liberdades. Leio e
ouço por aí. E assim, São Paulo inteiro acabará me chamando de Perna Torta.
Não gosto.
MOLEQUE DE RUA
Dei duro. Enfrentei.
Comecei por baixo, baixo, como todo sofredor começa. Servindo para um,
mais malando, ganhar. Como todo infeliz começa.
Já cedinho batucava.
– Vai um brilho, moço?
Repicar na caixa, mandar os olhos nos pés que passavam. Chamar freguês. E
depois me mandar no brilho dos sapatos. Fazer um barulhão com o pano, atiçar
os braços finos, esperto ali.
Os dedos imundos não tinham sossego. Às vezes, cobiçava os pisantes dos
fregueses; então, apurava mais o brilho. O tipo se levantava da cadeira, se
arrumava todo; se empinava, me escorregava uma nota. Humilde, meio
encolhido, eu recolhia a gorja magra. Tudo pixulé, só caraminguás, uma nota de
dois ou cinco cruzeiros. Mas eu levantava os olhos e agradecia.
Aguentava frio nas pernas, andava de tênis furado, olhava muito doce que não
comia e os safanões que levei no meio das ventas, quando me atrevia a vontades,
me ensinaram que o meu negócio era ver e desejar. Parasse aí.
Aguentei muito xingo, fui escorraçado, batido e dormi de pelo no chão. Levei
nome de vagabundo desde cedo. Lá na rua do Triunfo, na Pensão do Triunfo, seu
Hilário e dona Catarina.
Aquilo, àquele tempo, já era o casarão descorado dos dias de hoje, já pensão de
mulheres. Mas abrigava também, à noite, magros, encardidos, esmoleiros,
engraxates, sebosos, aleijados, viradores, cambistas, camelôs, gente de crime
miúdo, mas corrida da polícia: safados da barra pesada que, mal e mal
amanhecia, seu Hilário mandava andar. Cada um para a sua viração.
A gente caía para a sua. Catava que catava um jeito de se arrumar. Vender
pente, vender jornal, lavar carro, ajudar camelôs, passar retrato de santo, gilete,
calçadeira... Qualquer bagulho é esperança de grana, quando o sofredor tem a
fome. Vontade, jeito? A fome ensina. A gente nas ruas parecia cachorro enfiando
a fuça atrás de comida.
Ainda escrevem aí que matei meu pai a tiros por causa de uma herança. Esses
tontos dos jornais me botam cabreiro.
Outra coisa errada que em meu nome corre é que comecei na zona. Que zona,
que nada... Zona foi vida boa. Foi depois de Laércio Arrudão me apadrinhar e
me ensinar o riscado do balcão, pra cima e pra baixo, servindo cachaça, fazendo
sanduíche e tapeação nos trocos; misturando água nas bebidas quando, noite alta,
as portas do bar desciam e Laércio ia fazer a féria e eu as marotagens nas
garrafas. Sim. Mas antes dessa coisa de zona, me rebentei por aí.
Bem. Engraxando lá nas beiradas da Estação Júlio Prestes. Era um na fileira
lateral dos caras. Entre velhos fracassados em outras virações e moleques como
eu e até melhores, gente que tinha pai e mãe e que chegava lá da Barra Funda, da
Luz, do Bom Retiro... Porque isso de engraxar é uma viração muito direitinha.
Não é frescura não. A gente vai lá, ao trambique da graxa e do pano, porque
anda com a faminta apertando. E é mais sério do que aquilo que os otários com
suas vidas mansas, do que os bacanas e os mocorongos com suas prosas moles
julgam. Aquela molecada farroupa com quem eu me virava, tirava dali uma
casquinha para acudir lá suas casas; e, engraxando, os velhos, sujos e
desdentados, escapavam de dormir amarrotados nas ruas, caquerados e de lombo
no chão. Como bichos.
A Júlio Prestes dava movimento e éramos explorados por um só. O jornaleiro.
Dono da banca dos jornais e das caixas de engraxar, do lugar e do dinheiro, ele
só agarrava a grana. Engraxar, não; ele lá com seus jornais.
Eu bem podia me virar na Estação da Luz. Também rendia lá. Fazia ali muito
freguês de subúrbio e até de outras cidades. Franco da Rocha, Perus, Jundiaí...
Descidos dos trens, marmiteiros ou trabalhadores do comércio, das lojas, gente
do escritório da estrada de ferro, todo esse povo de gravata que ganha mal. Mas
que me largava o carvão, o mocó, a gordura, o maldito, o tutu, o pororó, o
mango, o vento, a granuncha. A seda, a gaita, a grana, a gaitolina, o capim, o
concreto, o abre-caminho, o cobre, a nota, a manteiga, o agrião, o pinhão. O
positivo, o algum, o dinheiro. Aquele um de que eu precisava para me aguentar
nas pernas sujas, almoçando banana, pastéis, sanduíches. E com que pagava para
dormir a um canto com os vagabundos lá nos escuros da Pensão do Triunfo.
Onde muita vez eu curti dor de dente sozinho, quieto no meu canto, abafando o
som da boca, para não perturbar os outros.
Dona Catarina, naquela boca do inferno. Piranha velhusca, professora de
achaques, de manha e de lero-lero. Uma dessas veteranas que de gorda já não
tem cintura. Arrastando varizes lerdamente, aos resmungos e desbocada,
tomava-nos o que podia. Piranha, rápida, no tirar o que é dos outros e sem muita
explicação, dona Catarina era dona Catarina. E não sei se eram os meus olhos
verdes, como algumas mulheres têm dito ou a cara toda de coitado...
Se eu andava muito branco ou cara inchada de dor, a velha me dava um jeito. E
me arrastava para ver. Tinha lá no Largo Coração de Jesus, seus conhecidos, um
farmacêutico e um dentista.
Também me rendia a viração na Estação da Luz. Ganhava. Mas as porradas me
foram sapecando olho vivo. E já não era tão trouxa. De quando em quando, se
animava e explodia lá onde é hoje a Boca do Lixo, pegava a Luz, um tenderepá
qualquer e na quentura do batefundo, corria gente para todos os cantos que, à
chegada da polícia, as ruas ficavam azoadas, os otários botavam a língua no
mundo e até os mais malandros perdiam suas bossas. Que o castigo vinha a
galope. E nessas umas e outras, os pequenos se estrepam. Aprendi desde
moleque. Pois. Nos esporros lá da boca, sobrava sempre um rabo de foguete, um
estrepe para eu segurar. Um vadio ou uma vadia, terminando o fuá, vinham se
chegando à minha caixa, se encostando, me passando o açúcar. Charlavam que
era emprestado. Sim. Que depois me devolveriam. Sim. Que eu era faixa deles e
eles, meus do peito. Sim. E o jeito que a cambada tem para tomar... Eu, morto,
entregava depressinha. Muita vez, na arrumação me furtavam o dinheirinho
suado, arranjado no brilho dos sapatos. A devolução? Cobrasse e levaria safanão
ou deboche.
Lixão. Naquele tempo, estas ruas aí às beiras das estações de ferro não
expunham estes bordéis todos, onde basbaques, otários, malandros e polícia se
amontoam, se comprimem e multiplicam trampolinagens, brigas, corridas,
prisões, fugas. Lixão é agora. Falo da dos Andradas para baixo. A dos Gusmões,
a General Osório, a do Triunfo, a dos Protestantes... Só as duas últimas é que
tinham algum tropel. O resto, ordem. A Santa Efigênia enfeitava-se de muita
confeitaria e loja decente e fachadas bonitas onde se vendiam coisas de preço.
Até gente bacana, lá dos bairros jardins, do Jardim Europa, do Jardim América,
do Jardim Paulistano, vinha comprar coisas na Santa Efigênia. É.
É que na cidade havia zona. E a concentração maior da bagunça, da safadeza e
de todas picardias de malandragem e virações ficava lá longe. No Bom Retiro.
Aquilo era um formigueiro na rua Itaboca e dos Aimorés. Até gente morria. Tiro,
facada, navalhada, ferrada e todo o resto do acompanhamento. Mas era um
braseiro isolado e não bulia com ninguém fora dali.
Para os lados das estações, só vinham os pés de chinelo, sofredores sem eira
nem beira; trabalhadores da roça que chegavam à capital, uma mão na frente e a
outra atrás, querendo emprego; maloqueiras e seus machos, esmoleiros, camelôs,
aleijados. Caras de gente amarela, esfomeada. Trapos. Como eu.
Nada do movimento de hoje. Esse chamar homem com a cabeça, a boca e
gestos safados de mão sugerindo tudo, esse “vem cá, meu bem” do mulherio
enfileirado às portas, essa caftinagem rampeira ou cara que se aloja e se estende
por todo o Lixão, é coisa aparecida, aos poucos, a partir de 53, quando os cobras
do governo fecharam a zona. Naquele tempo, haver havia alguma brasa. Mas era
escondida. E as curriolas ferviam com maneiração. Claro que, muito come-
quieto de mulheres, boca de sinuca, dadinho, carteado. E os rendez-vous lá da
rua Aurora, da rua dos Timbiras, Vitória e Guaianases. Mas só. E tudo juntinho,
arrumadinho, direitinho. Organizado, mulheres de preço. Podia fazer forrobodó
não. Àquilo tudo de nome francês, a gente dava outro nome. Da gente. Pensões
Alegres.
Bem. Na Estação da Luz me tomavam o dinheiro. Com o tempo me apavorei,
achei que não estava no tom aquela malandragem correndo para cima de mim e
me manquei. Entendi. Parei de estalo. Desguiei, me espiantei, me esquinizei e,
deslizando dos malandros, bati perna, acabei me escorando lá na Estação Júlio
Prestes. Sondei. Pedi, peguei um lugar ali nas caixas do saguão. O jornaleiro era
dono. Um bicho gordo, vermelho, com o cigarro que não saía do bico.
— Você dá no couro?
Dei no couro, sabia muito bem o que estava fazendo no brilho de um sapato.
Mas me dei mal, desacostumado com aquilo de pagar taxa ao dono das caixas. O
homem nos tomava a metade... Meu capitalzinho se esfacelava às oito da noite, à
hora da divisão.
Para a Pensão do Triunfo voltava murcho, encabulado. Ô espeto! O
dinheirinho dava mal e mal para um prato feito, um sortido, muito, muito sem-
vergonha, lá no Bar do Porco, na rua dos Gusmões. Que eu comia, cabeça baixa,
enquanto as mulheres faziam gritaria, bebendo e folgando com seus otários.
O Bar do Porco era velho e fedia; era muquinfo de um português lá onde, por
uns mangos fuleiros, a gente matava a fome, engolindo uma gororoba ruim,
preta. Mas eu ia. Uns trinta, quarenta cruzeiros resolviam. E a gente andava
apavorada de fome.
Era um trouxinha. Moleque escorraçado, debaixo de um quieto rebaixado, mas
me roendo por dentro, recolhia calado, os pixulés que me sobravam da
exploração do jornaleiro.
Enfrentava a graxa, a escova e o pano; dia inteirinho alisando e polindo sapato
de bacana, de pilantra, de bandido, do que desse e viesse. Ainda me tomavam a
metade. Aquilo me deixava mordido, queimado, mordidinho.
O dinheiro do cara era gordo, era um tufo. Com aquilo, eu faria gato e sapato,
mil e uma presepadas, me arrumaria a vida. Ferveria.
Eu era um trouxinha que não sabia mandar o dinheiro do alheio.
Mandei a mão na maçaroca de grana. O sujeito me pilhou com os dedos na
coisa e me plantou a mão na cara. O bofete quase me cata a orelha em cheio,
aqui de lado, abaixo da costeleta. Doeu, estalou.
Ele estava à minha frente e eu meio agachado, pelo vão das pernas, podia ver
os outros engraxates. Cada um no seu lugar, olhando parado, não se dizia nada.
Ninguém se mexia.
Lá na plataforma se ouviu o grito fino, vivo, do apito do chefe de trem, a
locomotiva barulhou, ia arrancar sua partida. Gente passava carregando malas. O
saguão estava cheio e uma roda se formou. O jornaleiro me encarava, o carão
vermelho se torceu. O homem abriu o bico. O cigarro aceso caiu; largou uma
praga para cima de minha mãe.
Aprumei-me do desengoço em que o tapa me deixou. Então, o bicho quis me
agarrar o braço. Na outra mão sustentava um pedaço de ferro que não sei de
onde veio.
Eu já sabia correr o pé e dar cabeçada. Quando chifrava pra valer, não era para
fazer carinho, não. Botava outros moleques de bunda no chão, estiradinhos na
calçada. E então, não me cansava de chutar o freguês. Malhar, malhava; mas
agora, com aquele bicho gordo eu não podia. Vermelho e atento à minha frente,
ia me furar com o ferro da outra mão. Dei-lhe uma ginga. Duas.
A roda se abriu, gente apertou os olhos para nos ver, houve cochilos. Mas só os
guardas me passavam pela cabeça; se me pegassem, não dariam a menor colher
de chá, me arrastariam depressinha para o Juizado, não querendo explicação.
Escapulir bem escapulido. E já! Requebrei.
Fui e vim, rebolando. O gordo estatelado, os olhos me comendo. Na terceira
ginga, o homem entrou na minha, avançou, tombou para a direita. Então, fintei o
freguês pela esquerda e me voei de enfiada pelo portão de saída da Júlio Prestes.
Dei no pé, dei, me arrancando ganhei os lados da Santa Efigênia.
Só ficou uma esfoladela no antebraço.
Mas logo, logo percebi que caíra de dois pés num buraco só. Estava espetado,
espetadinho, engolobado. Como um martelo sem cabo.
Meu nome, na boca dos caras, ia correr as estações. E o Juizado atrás. Estava
complicado; eu que me cobrisse. Andasse dali.
Pé pisando no chão. Magrelo na camisa furada. Pálido, encardido, dei para
bater perna de novo, catando virações pelos cantos e pelos longes da cidade.
Vasculhei, revirei, curti fome quietamente, peguei chuva e sol no lombo; lavei
carro, esmolei nos subúrbios, entreguei flor, fui guia de cego, pedi sanduíches
nas confeitarias e nos botecos, corri bairros inteiros. Mooca, Penha, Cambuci,
Tucuruvi, Jaçanã... me enfiei nos buracos e muquinfos, mais esquisitos, onde
nem os ratos da polícia chegam, ajudei nos ferros-velhos, me juntei a
pipoqueiros, nos portões do Pacaembu e lá no Hipódromo de Cidade Jardim
sapequei muita charla, servi a mascates lá nas portas do mercado da Lapa, me
dei com gente de feira, vendi rapadura, catei restolhos de batatas às beiras do
Tamanduateí, morei na favela do Piqueri, me virei com jornais nos trens
suburbanos da Sorocabana; malandrei e levei porrada, corri da polícia, mudei
não sei quantas vezes, dei sorte, dei azar, sei lá, fucei e remexi.
Andando por aí como um bicho, decorei os nomes de todos esses becos,
praças, largos, ruas.
Minhas mãos ficaram quadradas como mãos de pedreiro.
Aprontei, sem exagero, tudo isso e mais algumas, que os caras da imprensa,
interessados só na minha grandeza, nunca escreveram.
No entanto, tudo tem seu senão e até aí havia sido só uma parte. Muitos anos
de janela, muito estrepe, muita subida e muita piora, me permitem dar fé de que
tudo tem seu senão. Eu ainda era um trouxinha. Cadê picardia?
Uma criança que não conhecia o resto do balangolé – cadeia, maconha, furto,
jogo, mulher.
Pois. Assim, até os quinze anos, quando Laércio Arrudão e eu nos topamos.
Mas nas minhas perambulagens aprendi a ver as coisas. Cada rua, cada esquina
tem sua cara. E cada uma é cada uma, não se repete mais. Aprendi.
Gosto mais da rua Barão de Paranapiacaba.
A Direita tem movimento demais. Perturbada pelos seus sujeitos gritando:
“burro, cavalo e cobra”, seus cambistas, seus camelôs, seus marreteiros de
gasparinos e rifas de automóveis; agitando-se com a pressa do povo passando
entre esmoleiros, molecada miúda, paralíticos, misturação crescendo com gente
que entope as lojas até as calçadas. E tem muito grito dos viradores, que se
defendem na venda de frutas nas carrocinhas, de livros de lei e de impostos e de
selos, e mapas e manuais de cozinha. Uma presepada. E tem tanta música
barulhenta dentro das lojas populares que abrigam mal e apertam gente aos
montes. À noite, fica dos negros. É onde se concentram, se reúnem e se topam a
parte maior dos crioulos da cidade. A crioulada. Para eles, a Direita é um código
à noite, um famoso ponto de aponto quando se pretende um encontro. Durante o
dia, são pernas que passam pra baixo e pra cima, deixando a Direita toda torta,
toda cheia, tomadinha. Que ali parece nascer gente do chão.
A Barão de Paranapiacaba é uma reta. Praça da Sé de um lado e Quintino
Bocaiuva do outro. Ela, escondidinha. Curtinha, ruela. Estreita, da sacada dos
edifícios, os sujeitos se debruçam e podem se comunicar com gente dos prédios
do outro lado da rua. Setenta, oitenta metros, mais não tem. Nenhum trânsito de
carros e até no meio da ruela as rodinhas se formam. E quanta boca de inferno
ali! Às rodas, discutindo, conversando, gesticulando, bolando suas atrapalhadas,
negócios, casos, ficam tipos vadios e medidores, pés de chinelos ou bem-
ajambrados, gente de alto negócio ou de grana miúda. Japonês, espanhol,
português, italiano, judeu, inglês. Um caldeirão. E há velhos estranhos, lentos e
esbranquiçados. A Paranapiacaba ferve de todos os vagabundos, vestidos de
todos os jeitos. Nem a Praça da Sé, nem a Direita e nem o Largo do Café têm
aquela variedade de bichos. E transita até bacana, que ali tem muito advogado e
dentista de nome. Parados, espiando, traçando charlas, acompanhando pernas
que passam, juntam-se bookmakers, cambistas, passadores de maconha e de
tóxicos, engraxates, camelôs, gente da polícia, otários. Viciados da sinuca, do
dominó e do barulho, mal dormidos e muito brancos, sobem para o primeiro
andar lá do Taco de Ouro, onde uma senhora fica à caixa e o dono é um velho
sírio que, se arrastando e praguejando, vai comendo de vez em quando uma fatia
de beterraba do prato que traz à mão... Gente responsável e apressada vem trocar
dinheiro na casa de câmbio... E tem escritório de advocacia, tem cartório,
barbearia, doçaria, dentista, drogaria... e a rua é curtinha. E ferve.
As duas são do centro da cidade. As duas ficam do lado do Viaduto do Chá.
Dia e noite, tirante as madrugadas, nas duas há sempre hora para os malandros,
os vagabundos e os viradores. Mas há uma diferença. É um toque, é um quê e a
gente não explica. Talvez porque na Direita os viradores gritam e na Barão de
Paranapiacaba eles pensam. Talvez assim – numa, se trabalha; noutra, se matuta.
Há negócios grandes e também há os engraxates na Paranapiacaba. E foi lá.
Engraxando lá uns tempos nas caixas da entrada da barbearia, que eu conheci,
bem-ajambrado e já senhor, no terno claro de brilhante inglês, que fazia a gente
olhar, mão luzindo um chaveiro e dentes brancos muito direitinhos, um mulato
muito falado nas rodas da malandragem, professor de picardias, dono de suas
posses e ô simpatia, ô imponência, ô batida de lorde num macio rebolado!
Laércio Arrudão.
Que foi pelos meus olhos acesos e verdes ou pela minha cara de esperto muito
acordado; que foi pela mão de Deus ou por uma trampolinagem do capeta. Mas
foi a minha maior colher de chá, o meu bem-bom, a minha virada nesta vida
andeja.
Laércio Arrudão me topou e me deu uma luz, me carregando para empregado
lá na zona, no boteco da Alameda Nothmann. Ali, no Bom Retiro. Pegado aos
trilhos do bonde, na esquina da rua Itaboca, defronte à rua dos Italianos; ali,
naquele moquinfo escuro, onde minha vida virou e a que os vadios das curriolas,
os trouxas das ruas, os tiras das rondas, as minas, as caftinas, os invertidos, as
empregadas da zona e os malandros encostavam o umbigo no balcão pedindo
coisas, balangando seus copos e queimando o pé nas bebidas. E cujo nome, de
muito peso e força, era repetido de boca cheia na fala da malandragem. Boca de
Arrudão.
Pela primeira vez eu morava em algum lugar.
ZONA
Vou pedalando.
O sol queima a rua Itaboca, me dá firme na cabeça, os bondes comem os
trilhos, é um barulhão que estremece até as casas; os trens da Sorocabana e da
Santos a Jundiaí vão se repetindo lá em cima do viaduto da Alameda Nothmann,
carregados e feios. Gente se pendura até nas portas. Vou pedalando.
Nestor ainda não abriu a barbearia, o posto de preventivos só começa a uma
hora. O salão de sinuca do Burruga fechado. A farmácia está quieta. A rua está
sem mulher.
Atrás das tabuinhas das venezianas verdes dormem todos.
Pego a esquerda, entro pela rua dos Aimorés, esta que fecha a forma de U que
a zona tem. A Aimoré, como a gente chama e onde estão as mulheres melhores.
Onde trabalha Ivete.
Lá no Largo do Coração de Jesus vêm chegando as batidas da igreja; toca
também a sirena da fábrica de máquinas de costura aqui da rua José Paulino.
Meio-dia, sol queimando. Sozinho no meio da rua, apenas deslizo, pedalando ao
contrário, folgando o impulso da descidinha, gozando.
Gatos aproveitam os restos da noite na calçada. Que ontem houve fervura,
tropel, esporro... a zona só foi dormir depois de muito louca e azoada... Como
sempre.
O vento quente me dando na cara, o sol me enxugando os cabelos, os olhos
doem um pouco, acordei agorinha. Gostoso, pedalar.
– Vem...
Eu, já de pé, me lavava. Ela me estendeu um braço, se ajoelhou. Brincou de me
catar.
– Que nada! Preciso me arrancar. São quase duas horas, mora.
Ajoelhada na cama, se botou quieta e pediu. Nua.
– Vem.
Mandando. Reparei as coxas juntinhas, o arrepio me correu pelas pernas, a
vontade começando. Empurrei o pensamento, desguiei, catei a bicicleta, ganhei a
porta, ri.
– Deixe pra lá – e fechei e abri a mão, lhe espirrei água.
Ivete me mandou um xingo, séria. A gente se despede assim.
Na rua pedalei, parei. Como todos os dias, me penteei na rua. Lá dentro, faço
mil e umas, acabo me esquecendo de dar um pente nos cabelos.
Com essa história de enganar Ivete nas horas, ganho um monte de tempo.
Horas. E zanzo demais por aí, em cima da minha magrela. Gosto do pedal. Nele
é bom curtir essa onda de andar.
Sei lá por que gosto. Sei que gosto. Atravesso essas ruas de peito aberto,
rasgando bairros inteirinhos, numa chispa, que vou largando tudo para trás –
homens, casas, ruas. Esse vento na cara... Agora vou indo lá para o Pacaembu.
Vou pegar a Nothmann, subir, desembocar, direto na Barra Funda, ô puxada
sentida! É me curvar sobre o guidão, teimar no pedal, enfiar a cara. Depois,
ganho a avenida larga e, numa flechada, alcanço o estádio.
Nas manhãs, ficar com Ivete é bom, que é bom entrar nela ainda no sono,
naquela madorna gostosa, na quentura das coxas se abrindo, os beijos que
duram, duram. Os olhos gozando fechados debaixo de mim. Mas estar na cama
depois das onze é uma dorzinha nas costas, que me empurra fora do colchão
surrado. Ivete, não. Seu sono parece um desmaio. Também...
Na noite, enche o caco com tudo quanto é bebida. Com os trouxas, seus
fregueses, amarra um pingão, ferve e queima o pé. Toma tóxico, perturba, fica à
vontade. Às vezes, começa a trambicar vestida. Ali pelas dez da noite, desfila
pelo Salão Azul, apenas de maiô, armando suas presepadas e bulindo com a vida
de todo o mundo. Bebendo.
No outro dia está desancada, quebrada. Um trapão. Dorme até às tantas. Pelas
três horas é que se acorda e fica um tempo sem fim sentada no meio da cama.
Fumando e cuspindo no penico, meio tonta. E fica. Ivete.
Lava-se depois, se arranja, começa a pintura. Um tempão empetecando a cara
pisada e escolhendo a duana. Troca. Despe e destroca não sei quantos vestidos.
Pintada demais, se apruma sobre os saltos muito altos, se empina. A bunda
aparece mais e os peitos se endireitam. Vai enfrentar.
Firma o corpo, chama os homens, levanta o dinheiro. Mango por mango, ali.
Pelo quarto, quinto freguês, está engolobada de cansaço. O corpo querendo
afrouxar. Mas firma e vai valente. Outra vez Ivete mete um tóxico na cabeça.
Otedrina misturada a espasmo de cibalena ou qualquer primeiro barato que
encontra na farmácia. Coraçãozinho ou baratino, maconha ou picada de injeção.
Tanto faz. Todo barato é um incentivo quando uma mulher tem vontade e um
homem para sustentar.
Fica esperta. Os olhos se arregalam nos homens da rua, chama. Dá duro.
Levanta uma grana alta.
A madrugada vai se acabando, eu chego do boteco de Laércio Arrudão, sempre
trepado na minha magrela, trazendo na esquerda o litro de leite gelado. Ponho a
acabada para dentro. A gente fala. Ela pergunta como foi o dia, enquanto bebe o
leite para cortar o tóxico. Agacho-me. Cato a caixa de charutos que fica debaixo
da cama, começo a contar o dinheiro que Ivete beliscou na noite. Vou estendendo
as notas sobre a colcha. A maçaroca de grana vai formando montinhos – tantas
de cem, tantas de duzentos... Separo tudo. Depois, conto para as despesas. Tanto
para a diária de madame, a cafetina aqui do Salão Azul; tanto para Dona Júlia
das joias; tanto para o cara das prestações. E tanto para a Caixa Econômica, em
meu nome. Mamo mais algum tutu decente para o meu consumo. Roubo
duzentas pratas.
Ivete vem se chegando com seus carinhos. Empurro, ela que me espere contar
o dinheiro. Insiste, sobe na cama, me enlaça o pescoço. Dou-lhe um bofete leve.
– Depois...
Arrependo-me de morder só duzentos cruzeiros. Malandro tem é que andar
com muito. Tomo mais uma nota graúda. Ivete já está choramingando.
– Você não liga pra mamãe.
Demoro-me ainda na contagem. Depois, empurro com os pés a caixa de
charutos e me estico da cintura para cima na cama. Meto a mão no bolso, fecho
os olhos, sinto as notas. Ivete vai me desabotoando a camisa. Uma estripulia na
cama vai abalar todo o quarto.
A gente só dorme quando os primeiros bondes da manhã estão passando.
Vou pedalando. Muito tranchã, esta magra em que pedalo, camisa aberta,
pondo o peito pra frente, o queixo quase-quase no guidão, fazendo curvas e
fincando disparadas por estas ruas de São Paulo, tirando minhas finas entre
postes e carros, avançando contramão, tirando as mãos do guidão e guiando só
com os pés, na gostosura maior desta vida... De quando em quando, me dando à
fantasia de ir pelas ruas desertas, curvando sempre, de calçada a calçada, como
se estivesse dançando uma valsa vienense...
Ô diabo, agora, o sinal está vermelho. Paro a magrinha, me encosto à guia,
enquanto a luz amarela não aparece. Fico numa risadinha besta.
– Tô de sinal fechado, compadre!
Assim dizem as mulheres da zona quando estão de paquete.
Quando fiz dezoito anos, Ivete me comprou a bicicleta. No começo, vacilei no
pedido, este medo besta me tranca toda a mão em que vou fazer coisas pela
primeira vez. Mas eu estava bulido pela magrela. E fui me abrir com Laércio.
O mulato Laércio Arrudão mexeu o bigode tratado, abriu os braços, como se
dissesse “o que é que você está esperando, meu?”. Tinindo nessa coisa de
mulheres, Laércio tem picardia, não é só a fama, não. Os olhos vivos se
mexeram.
– Pede, meu. Ela dá a grana. Mulher gamada dá tudo. Parte pra qualquer
negócio.
Deu. Da marca Philips, que escolhi. Ivete se entendeu com o cara das
prestações que empresta dinheiro a juros. Aqui estou, caminho do Pacaembu,
pedalando a magrinha.
Diz que me adora. Aferra-se numa ciumeira dos capetas, verifica se tenho
marcas pelo corpo e é um barulhão tremendo que ela faz debaixo de mim;
terminamos os dois arrebentados, resfolegando como bichos. Mas logo, logo
recomeça tanto tipo de carinho na cama e me ensina, vai me traquejando num
repertório de habilidades.
– Se você fizer isto com outra, te corto. Te apago.
Quando em quando, cata a navalha atrás do guarda-roupa. Abre a lâmina, faz
menção.
Fico só no acompanhamento, quieto no meu canto, aprendendo como são essas
coisas.
Já brigou com Nenê, com Janete, pôs para correr a mulata Elvira, brigou até
com Miriam. Com Miriam, concordo. Que era para se embocetar mesmo; a
mulher me comia com os olhos que me piscavam e, uma vez, até dinheiro me
ofereceu. As outras, não. Apenas me cantavam para o cinema.
– Suas chibadeiras, cambada de cocheiras!
(Claro que aceitei o dinheiro de Miriam...)
Saibam que Ivete, francesa, trinta e um anos, tem quinze de putaria. Faz a vida
na casa mais cara da zona. Salão Azul, o 178 da Aimoré. É completa na cama,
tem fregueses caros, sujeitos que chegam de Cadillac e pagam direitinho. É.
Cismou comigo à toa, à toa. Meus olhos verdes? Sei lá.
Um dia, tomando samba em berlim na Boca do Arrudão, quem me conversou
foi ela. Não sabia o que era uma mulher e fiquei zonzo, um medo me correu.
Laércio me deu o empurrão. Procurasse a piva na madrugada, à hora em que a
zona se esvazia. O mulato me cutucou a barriga com o indicador e piscou.
– É a hora dos amigos das minas, mora – sorriu.
A madrugada quente, estrelada lá em cima, encabulado eu ia. A zona fechava
suas portas e venezianas. Lâmpadas vermelhas ou verdes se apagavam. Atrás do
verde das tabuinhas das venezianas ia ficando escuro. Últimos otários
marchavam se indo para suas casas, para outros cantos da cidade. Malandros
passavam perambulando seus corpos magros. O posto de preventivos descia
portas. Eu me cheguei.
Duas pancadas na porta.
Eu lhe via o começo dos peitos e adoraria falar. Mas não conseguia engrolar
nada. Tinha um bolo na garganta, atravessando tudo. Estava bem entrevado.
– Entra.
Depois, riu na minha cara; me encabulei mais. Mexia os dedos dos pés dentro
dos sapatos, com desespero.
– Seu merdinha.
Acho que são meus olhos verdes ou a minha idade.De outro jeito não me
explico a gana daquela mulher. Fúria demais era aquela e, franqueza, topei uma
parada dura. Acordei quebrado, uma dorzinha em tudo no corpo; criei coragem e
fiz a besteira.
– Sabe, mina? Foi a primeira vez.
Ô estrepe, onde é que eu andava com a cabeça?
Começou mandando, folgando na minha cara; exigia exclusividades bestas,
armava quizumbas com suas vizinhas e enfarruscava-se comigo, metia-me a
língua ou pedia a todo o resto da zona que me tomasse conta. Espalhava um isto
e um aquilo. Quem ouvisse e não soubesse, pensaria que eu era o maior
perigoso.
– Meu modelo é um gato ladrão, um pilantra mulherzeiro. Olho vivo nele.
Termino a Alameda Nothmann, sigo o arrastado lerdo do bonde Barra Funda
zunindo como abelha, vou tomar a descida longa agora, entrando de fina entre o
bonde e o caminhão, deixando os dois para trás. Chispo. Saio do selim, me
curvo, meto força no pedal da magrela. E trim-trim, já me sinto absoluto na rua.
Vivia todo arranhado. Quando eu não dormia com ela, por ficar lá mesmo na
minha tarimba da Boca do Arrudão, na outra noite, Ivete estalava de nervos, se
metia a me bater. Eu entendia mal todo aquele movimento. Ficava como um
moleque bocó arriado à beira da cama. Aguentando a gritaria...
– Por onde foi que andou, cadelinho? – com aquele ar canalha me gozando no
canto da boca.
Uma criança. Um dia, de cabeça quente, boquejei com Laércio; pedi-lhe uma
luz. O mulato me zombou e ouvi xingo, esculhambação, desconsideração. Fiquei
desengonçado como um papagaio enfeitado. Entendendo nada.
– Também... Você deixa a gringa lhe fazer gato e sapato. Dá-lhe um chalau, seu
trouxa!
Arrudão arrastou este aqui para um canto e ensinou.
– Você vai deixar de ser um pivete frouxo. Vou te levantar a crista pra você dar
uma ripada nessa gringa – e me olhou dos pés à cabeça – porque você é gente
minha.
O brilho de simpatia nos olhos de Laércio Arrudão começou por me ensinar
que quem bate é o homem. E manda surra a toda hora e fala pouco. Quem chega
tarde é o homem. Quem tem cinco, dez mulheres é o homem a mulher só tem um
homem. Quem vive bem é ele para tanto, a mulher trabalha, se vira e arruma a
grana. Quem impõe vontades, nove horas, cocorecos, bico de patos e lero-leros é
o macho. Homem grita, manda e desmanda, exige, dispõe, põe cara feia e pede
pressa. A mulher ouve e não diz um a, nem sim, nem não, rabo entre as pernas.
Mulher só serve para dar dinheiro ao seu malandro. Todo o dinheiro. Por isso,
entre os malandros da baixa e da alta, as mulheres se chamam minas.
Laércio Arrudão me ensinou.
– Mulher lava os pés do seu homem e enxuga com os cabelos.
Laércio Arrudão me ensinou.
– Outra coisa: duas ondas bestas podem perder um homem. Gostar e mulher
bonita. Malandro que é malandro se espianta e evita tudo isso.
Pousando as duas mãos nos meus ombros, falando baixo e sério um português
bem clarinho, Laércio começava a me escolar que quem gosta da gente é a gente.
Só. E apenas o dinheiro interessa. Só ele é positivo. O resto são frescuras do
coração.
Eu precisava tomar uns pontos na ignorância.
A noite, à toa, à toa, meti-lhe um sopado na caixa do pensamento. Ela caiu e
quis pôr a boca no mundo. Chapoletei-lhe mais um muquete e se aquietou.
– Fale baixo comigo.
Agora, ganha porrada toda a mão que tenta uma liberdade. Às vezes, à frente
das outras mulheres do Salão Azul. Então, meu nome se espalha e começa a
ganhar tamanho na zona. Boquejam à boca pequena:
– Um valente ponta firme.
Ivete se sente mulher de malandro e me agrada mais.
Vem se aninhar como uma cachorra. Sou temido e presenteado.
Agora, é chispar e firme. Que a volada dos autos na Avenida Pacaembu vai de
enfiada, a setenta ou oitenta, por baixo, baixo. E, quem hesita, se estrepa. Corro
também, na maluquice de todos, sempre juntinho ao meio-fio e olho firme, que
uma porrada aqui na avenida costuma levar o freguês lá pra casa onde o diabo
mora.
Rasgo dois, três quarteirões voando, ganho o largo, pego a esquerda, tiro uma
fina depressinha entre o carrinho amarelo do sorveteiro e a ilha, já vejo o estádio
com suas bandeiras, seus refletores. A imponência dos portões.
Já é asfalto livre, calmo, para eu gozar. Agora, vou brincar com minha
magricela.
A moça da autoescola aparecerá hoje? Não havendo jogo no Pacaembu, este
trecho de uns quatrocentos metros fica vazio, vaziinho. Os homens das
autoescolas aproveitam para dar lições. Vem uma dona novinha, aprendendo a
guiar. Fico na minha perambulagem, embromo; fingindo voltas, indo e vindo,
batida velha de quem não está querendo nada. O que me interessa é o namoro de
olhos com a dona. Aquela é filha de bacanas, moça de seus bons tratos, enxuta,
enxuta. Uma boneca, uma princesa, gata. Está claro que não posso pular em
cima. É do partido alto e minha charla ali não dá pé. Depois, sempre o cara ao
lado que é o instrutor... Mas nos namoramos com os olhos e, se pego essa
criança costuro toda de carinho.
Desisto de esperar, ir, voltar e campanar. Hoje ela não vem. Toco de volta para
a zona. Preciso abrir a Boca do Arrudão. Tenho pressa.
Pacaembu, Barra Funda, Campos Elíseos, Bom Retiro. Vou pedalando.
Sem boato e sem tropel, sem movimento e sem rumor, a zona fica mais triste.
E o dia custa a se mexer aqui.
Três horas. Saio de trás do balcão, vou para a porta do boteco vazio.
O Burruga já abriu o salão de bilhar; o médico e o enfermeiro do posto de
preventivos estão lá desde uma da tarde, folgando; poucas mulheres nas casas,
mexendo a cabeça e chamando o otário, funcionando em silêncio que não varia,
o gesto velho de mão direita. A humilhação do “vem cá, benzinho”, “vem cá,
meu amor”, “vem cá, moreno” é acompanhada pelo indicador que se gruda ao
polegar. E as mãos ficam se mexendo, mudas e nervosas, como se nem
existissem braços. As mulheres querem ganhar na rua, que ainda não oferece
homem. O destacamento da Força Pública agora chega mais cedo e dobrado. O
último trouxa que mataram aqui era filho de gente graúda, a façanha ganhou
tamanho e foi para os jornais, buliu com a vida da polícia, deu reportagem,
retrato e todo o resto. Um delegado caiu e vários ratos da Divisão de Costumes
foram para o beleléu.
Na zona, faz pouco mais de um mês.
Mataram o trouxa a soco-inglês. O cara, filho de família, na zona fazia papel
de lorde, teimando em fazer presenças e aprontando marotagens. Largava aqui,
numa noite, um tufo de dinheiro, esbagaçando cervejas, conhaques, traficâncias
na roda das mulheres que lhe tomavam até o último, ou entre as curriolas da
sinuca do Burruga e aqui mesmo na Boca do Arrudão, entre partidas de carteado.
Seu nome era Pedrinho, filho de seu fulano. Um pixote, vinte e dois anos, um
papagaio enfeitado, um grosso embandeirado, que a gente aturava e levava em
banho-maria porque deixava a grana. Ia assim. Foi quando, enfiando os pés pelas
mãos, deu também para galã, agarrando o pé de Aieda, uma mina do 63 da
Aimoré. E insistia. Teimava que teimava, meteu-se na cabeça que a mulher era
amiga sua. Ferveu, deu esparramote, quis dormir todas as noites com ela. Aieda
era situação pertencente a um malandro curtido, expulso da polícia marítima de
Santos, uma piranha, um perigoso falado – Pernambuco. Que ficou plantado na
espreita. Depois, encarou o trouxa. Até falou com modos:
– Moço, isso aí tem dono.
Mas o filho de seu fulano era filho de seu fulano e achou que o mundo era seu.
Achou-se soberano querendo tomar o que era do alheio e não quis nem saber se
estava certo ou errado. Empolou-se num rompante, disse palavras difíceis,
perdeu a linha; destratou e até quis se encrespar com o malandro de Aieda.
Pernambuco, arisco; foi desguiando, num mansinho deixou o sujeito parolando
grandezas, como se a prosa nem fosse com ele.
Faz pouco mais de um mês, se deu aqui na zona, Pedrinho caiu do cavalo.
Daqui da Boca do Arrudão se viu a curriola de Pernambuco passar. Ele
arrastou cá pra zona, no seu quieto bem pensado, uma cambada de cinco
vagabundos da barra pesada. Para ajustar o otário.
Os caras fizeram uma casa de caboclo com Pedrinho no centro e eles a
malharem. Havia um soco-inglês na mão de Pernambuco. Os outros da curriola
carregavam navalha, cabo de aço e outros bagulhos. E acabaram de apagar o
loque debaixo de pau.
Os jornais rápidos como um susto. Deram e exageraram as coisinhas da
façanha, que o morto era filho de família. Os homens do governo caíram em
cima e a rataria da polícia se apavorou. Uma cambada de fardados invadiu aqui.
Vasculhou a zona, revirou todas as casas. Queriam o nome do valente.
Prensaram-se as mulheres na parede; deu-se uma dura em muita gente, largou-se
muita porrada e aperto, o Burruga tomou uma semana de cadeia, até eu entrei na
dança, levando pancada também. Os homens da lei arrastavam a gente e desciam
cacete.
Malandro que é malandro não entrega malandro. Ah, aguenta ripada no lombo,
mas não entrega... A polícia sabe. E fica mordida, queimada, despeitada.
Fomos trancafiados e batidos. Mas não se entregou o malandro Pernambuco.
Ele anda corrido por aí, sabe Deus em que buraco fora de São Paulo. E por via
de todas as dúvidas, Aieda também se raspou. E a fim de evitar maior enrosco,
que não são mortos, também se espiantaram para longe daqui os malandros
grandes – Bola Preta, Diabo Loiro e Marrom.
Das três da tarde às tantas da madrugada, me viro. Abro o botequim de Laércio
Arrudão, encosto a magrela e passo para o balcão, fazendo minhas dissimuladas
e marmelos nos trocos, adoçando os otários. Cinco, seis da tarde, chegam os dois
irmãos de Laércio. Dois caras muito iguais comigo, me consideram e botam fé
no que faço. Ivinho Americano e Jonas. Ivinho é aquele dos ternos bons e
sapatos de preço. Jonas, menos vistoso nos panos, é o motorista de um Chevrolet
de praça. Jonas, aquele de olhos deste tamanho. Se me enfio numa quizumba,
posso ir firme; os dois vão pra fogueira comigo. Que aqui entre malandros
ninguém mija pra trás, não. Quem desconsiderar e não for companheiro, dando
mancada ou fazendo pouco caso, não pode ser malandro. É um safado
precisando de lição. E é podado das curriolas.
Os Arrudão... três mulatos muito vivos. Dão cartas e jogam de mão no
comércio da zona, multiplicam a grana, levantando a mala do dinheiro. A noite é
sempre deles. Há outros botecos. Mas a malandragem baixa na Boca do
Arrudão, seduzida. Toda. Permitem jogo de ronda, cacheta e dominó lá em cima,
no depósito. É um come-quieto dos capetas. Os três têm mulheres no bordel e até
mesmo as cafetinas judias, polonesas (a gente diz polacas) e francesas, gordas e
seguras para o dinheiro, com suas pinturas empetecando exageradamente as
caras e os cabelos, vêm zanzar aqui no boteco, engolir seus copos, comprar
chicletes, balas de hortelã. Ficam comendo de olhos os malandros mais jovens.
(Essa velharada gringa tem uma gana terrível pelos meninos das curriolas.)
A gente nunca diz apenas Laércio. É Laércio Arrudão.
Que só aparece à noite alta, vistoso e mandão, barbeado e luzindo. Dono da
bola, sua palavra tem peso de lei. Canta de galo aqui e não trabalha. Fiscaliza.
Faz a féria, pede o livro. Dar ordens é com ele. Os malandros ficam à sua roda
ouvindo, aprendendo e adulando. Os irmãos guardam distâncias. Seu andar é de
doutor, de chefe, parece um deputado. Meu padrinho. Joga-me um agrado.
– Ô batuta!
Tem o ouro e nunca ninguém soube com certeza sobre o quanto que lhe
pertence. Sabe-se que é ligado ao Jóquei Clube, fala-se que tem lá um cavalo no
Haras Guarani; à boca pequena boqueja-se que é dono de dois rendez-vous da
rua Guaianases; diz que tem negócio com jogo e contrabando em Santos... A
certeza ninguém tem. A gente jamais fica conhecendo Laércio Arrudão. E se está
sempre por baixo dele. É homem que não abre o seu jogo. Nem com reza brava.
– Em casa de malandro, vagabundo não pede emprego – a lei de Laércio
Arrudão inclui poucas liberdades.
Cinco horas. Primeiros movimentos de otários começam a acordar a zona.
Basbaques passam bobeando, saídos de seus empregos, alguns carregando pastas
de trabalho. O trabalho das mulheres nas casas vai aceso. Ivete já deve ter
entrado na dança. Malandros pálidos e acordados há bem pouco vêm saindo a
campo, principiam seu trabalho lá na sinuca do Burruga ou na rua mesmo
aplicam seus contos, atrapalhando e iludindo os loques. Sirvo alguns copos,
vendo alguns bagulhos. Com mais algum tempo, chegará a cozinheira
preparando os petiscos para a noite.
É de repente.
O movimento cresce de supetão, toma conta das moscas e de tudo, sem a gente
esperar. Dou por mim já atiçado atrás do balcão, me virando sobre o estrado para
todos os lados, indo e vindo e sapecando coisas e me mexendo como um danado.
Rápido. Trabalho é muito, a maré é boa depois das seis da tarde. Necessário
vivacidade. Chega Ivinho Americano, chega Jonas. Ficamos três no balcão.
Lutamos.
A noite é uma menina, a noite é uma criança... Mas que anda depressa,
depressinha, avança e come as horas. Atrás do balcão, nós lutamos. Quando a
gente dá pela gente, muita coisa já se passou, muito malandro já entrou e saiu
daqui, muito dinheiro correu, se tolerou muito beberrão folgado e basbaque
sonolento, mulher barulhenta, vagabundo encardido e trouxa falador, se vendeu
um bom bocado e é hora de fechar. A febre deu ligeira e a noite passou correndo.
Pegarei minha magriça, passarei a chave em tudo, dormirei com Ivete. As
pernas estão precisando de cama.
Mas Arrudão me cata com um chamamento, me leva para um canto.
Laércio Arrudão, meu padrinho. Deu agora, nas últimas noites, para me
chamar de lado, falar baixo, pedir atenção e olho vivo na sua prosa. Quando o
movimento acaba e desço as portas do moquinfo, a gente conversa. O mulato me
esquenta a cabeça, me bota umas dúvidas na caixa do juízo... Vai falando baixo,
balangando macio, com a malícia de quem estivesse piscando mas não mexesse
os olhos, uma picardia no canto da boca. A conversa é maneira, antes insinua
que fala. Mas é feroz, corta. Corta. Tenho um pouco de medo dela. Arrudão
também está nervoso quando me fala e ajeita um dos pés sobre a caixa de
cervejas, procurando uma posição melhor para me enfiar as coisas na cabeça.
Ganho um frio.
Ele estala os dedos. Ouço apenas, nem sequer concordo, nem engrolo uma
palavra. Os ensinos de Arrudão ganham força, me amolam por dentro, abalam
tudo o que sei. O mulato para de vez em quando, para conferir o efeito.
– Viu? – o indicador me espeta a barriga.
E é como se ele me passasse o seu vício de piranha.
Critica. Que malandro sou eu? O nervoso de suas mãos continua. Joga-me na
cara que sou um trouxa, um coió muito pacato, tenho uma mulher só, perco
tempo andando na magrela pra baixo e pra cima, tenho essa mania besta de
namorar meninas honestas que trabalham nas lojas da rua José Paulino, não me
cuido de arrumar mais grana nas virações da zona. E que nunca serei um
malandro, não tenho ambição...
Meus olhos ficam baixos no azulejo gasto do boteco. Arrudão se despede, o
tapa no meu ombro. Muda o tom, a ruga some da cara, já outro Arrudão, já
brinca.
O Laércio que eu prefiro:
– Meu Paulinho duma Perna Torta, meu moleque...
O ensino de Arrudão quer o meu bem.
A ele só interessa é furtar, roubar, beliscar, morder, recolher, entortar, quebrar,
tomar, estraçalhar. Laércio Arrudão me quer vivo e cobra como ele, a cobiçar e
tomar todas as coisas alheias.
Essa história de Paulinho duma Perna Torta... eu explico.
Foi dessas besteiras de bordel. Logo depois que arrumei os trapos com Ivete,
ali mesmo no Salão Azul, rua dos Aimorés, 178, aprontei um recacau por um
conhaque vagabundo e um invertido.
A zona ferve de invertidos cheios de nove-horas. Ficam muito à vontade.
Fazem aqui o papel de empregadinhas domésticas fricoteiras, fuxiqueiras e
melindrosas; vivem de lá pra cá, levando e trazendo, como sempre insistentes
nos dengues e rebolados. Terríveis, safadinhos, vivos, aflitinhos. Pintam a boca e
os olhos, fazem regime para emagrecer. Querem-se enxutos, apertando-se em
panos que não são nem de homem, nem de mulher. Um é Carmen, outro
Margarida, Dolores, Rosana... sei lá.
Mas que ninguém se fie na frescura deles.
O Império, por exemplo. Trabalha a navalha, bate carteira, corre o pé e joga
cacheta. É um acordado no baralho. E se enraivecido fica cabreiro. Que se
cubram, então. Império é ponta firme numa briga. Como poucos malandros. No
entanto, a onda de valente se vai depressinha. Perde a ginga de brigador; Império
volta a rebolar à passagem dos machos, fazendo gritinhos e se desmunhecando.
Algum nojo, eu sinto. Mas são viradores também, sofredores sem eira nem
beira. E para final, cada um é cada um.
Bem. Uma tal Jane, empregada do Salão Azul, deu para me namorar. Uma
noite, saí da Boca do Arrudão para fazer não sei o quê no salão. Um braço magro
me puxou.
– Meu modelo, você quer conhaque?
Jane, canalhinha. Sabia até desta minha mania de conhaque. Saracoteou, gritou
lá para a caixa:
– Um conhaque para o meu amor! – me correndo a mão manicurada pelo rosto.
Veio abespinhada, uns olhos deste tamanho, que metiam medo. Ivete surgiu no
salão. Lembro-me que houve um silêncio sério de gente, e a vitrola tocava:
“Tava jogando sinuca,
Uma nega maluca me apareceu.”
O seu sapato de salto voou para sua mão e marchou para o invertido. Gente
abriu a roda. Eu, quieto. Ô, meu bom Jesus de Pirapora!
Ia feder.
– Vou te ensinar a cantar meu homem, seu puto morfioso! Chupador!
O tenderepá explodia, quando o otário que saía do quarto com Ivete se veio
chegando e me vomitou uma graça pontuda, zombando com a minha cara.
– Ah, então este é o cafetãozinho...
Arranquei-me da cadeira.
Um coió daquele que não sabia sequer se havia sido parido ou cagado, se metia
a gente, me jogando uma liberdade assim na cara? Estava armando quizumba?
Pois ia ter. Mandei-lhe o conhaque, mandei-me por cima do lixo, o cabo de aço
já na mão.
Mas o freguês era de luta e não levei boa vida, não. Pegou-me uma cadeirada
aqui na coxa e olhem – dei sorte. A ripada me vinha no crânio. Bem no meio.
Dois milicos da Força Pública se abalaram da rua para o salão. Baixaram
firmes, de supetão. Não querendo prosa fiada, iam largar porrada e prender.
Raspei-me pelos fundos, me grudei a uma janela e balanguei o corpo, ganhando
o telhado.
Tornei à Boca do Arrudão, encabulado, murcho como um balão furado. Horas
depois, capengando, capiongo e rasgado. Pegara um rabo de foguete. A façanha
voou e Laércio já era sabedor. Ria.
Ele quem me chamou primeiro de Paulinho duma Perna Torta.
Depois, só depois, os vadios da turma. Para adular Arrudão, os vagabundos
fizeram o acompanhamento estúpido. (Será que a mãe deles, na hora de pô-los
para fora da barriga, também não ficou com a perna torta?)
– Paulinho duma Perna Torta!
Paulinho duma Perna Torta. Fiquei.
Como outros malandros grandes e pequenos de São Paulo, eu ganhava um
nome de guerra. Que ia se exagerar e virar lenda na boca das curriolas, nas
ocorrências da polícia e na mentirada dos jornais. Como Saracura, como Bola
Preta, Ivinho Americano, Diabo Loiro, Marrom e como tantos outros.
E belisco e mordo, cobiçando e tomando as coisas dos outros, como é do
ensino de Laércio Arrudão.
Tenho abandonado a magrela a um canto. Não namorico mais as franguinhas
direitinhas que trabalham entre o balcão e as prateleiras de tecidos das lojas da
José Paulino, da rua da Graça, da Ribeiro da Silva e da Carmo Cintra. Faria
funcionar uns nove, dez truques a fim de marmelar, um otário nos trocos do
balcão – mas só uso uns três, que não falham: meu capital sobe na Caixa
Econômica da Praça da Sé.
Aprendi carteado, faço trapaça, marmelo, sociedade e qualquer negócio. Tenho
vocação. Dou açúcar antes. E deixo o trouxa duro, durinho na mesa. De pernas
pro ar, sem dinheiro e sem destino. Desempregadinho.
Crio nome de piranha. Como os trouxas pela perna, cobiço. Torno a tomar a
verba do alheio. Corro por dentro dos pacatos. Há tipos basbaques, pivetes ainda,
aprendizes principiantes na roda da malandragem, que vêm de longe para me
espiar jogando carteado. Porque atiço os dedos e vou ao jogo alto, não querendo
nem saber se ando certo ou errado. Vou lá. Sou um relógio. Mamo a grana. Meu
nome corre. O diz que diz me exagera, começa a me pintar de negro. Anda por aí
que, por uma herança, matei meu pai a tiros... Trouxas!
O diz que diz não está me dizendo nada. Fama não me ilude e não me
estorvando... Interessa é a grana.
Ivete foi a primeira. Mordo agora duas minas na zona. Vou mamando.
Sou de Valquíria também. Lá numa das poucas e caras casas da Ribeiro da
Silva. Mulata, novinha, me dá tudo o que ganha. Era doméstica e foi comigo que
caiu pela primeira vez. Charlei, abusei. Saquei a mina do emprego. Deflorei.
Dormimos uma semana num hotel da Alameda Glete. Preparei aquela criança,
ensinei a lidar com homem na cama.
E meti na vida.
Respeita-me como se eu fosse o sol e me chama de paizinho. Seu corpo
novinho me agrada. Tem isto aqui de pernas. Nua, seus cabelos ficam ainda mais
pretos.
Ivete sabe, está claro. Mas não abre o bico – meu nome de perverso anda
falado. Boquejam por aí que se me tiram do sério eu apago um. Que matei meu
pai a tiros. Durmo com as duas.
Cresço a galope. Aos vinte anos, a crônica policial já me adula. “Perigoso
meliante.” Trouxas... Volta e meia, dão o meu retrato e minúcias. Um desses
tontos dos jornais me comparou, dia desses, a um galã do cinema italiano...
Paulinho duma Perna Torta é respeitado, quase de igual para igual, pelos três
maiores cobras da malandragem baixa de São Paulo – Bola Preta, Diabo Loiro e
Marrom.
Sou um nome. Laércio Arrudão me aprova a conduta. E atiça.
Minha concentração é na zona, mas reviro os quatro cantos da cidade.
Faço um conluio com a curriola de assaltos de Bola Preta. Mão armada,
máquina na mão. Assalto, surrupio carteira, Colt 45, vou gatunando por aí.
Cinco passagens na Delegacia de Furtos. A Captura já farejou atrás de mim.
Carrego cinco processos no lombo, de que o Doutor Aniz Issara cuida a bom
preço. Trato Aniz de você, me impondo – e ele é o maior especialista do crime
em São Paulo.
Mas estou fichado apenas como ladrão e assaltante. Rufianismo, vadiagem e
jogo, não.
Faço h. Sirvo a Laércio Arrudão somente para confundir os ratos da polícia. É
um h. O empreguinho é uma dissimulada que eu e Arrudão aplicamos e que me
garante a carteira profissional em dia.
A cambada tem uma mania exagerada. Não gosto. Mamador, mordedor... Que
eu desponto como um absurdo, um menino prodígio, um bárbaro, um atirador.
Sei lá.
Quero é mais grana. Belisco e mordo. Pé-ré-pés-pés não me interessam.
Estou falado e meu capital subindo, quando um boato varre São Paulo todo,
estremecendo todas as rodas da baixa e alta malandragem, bulindo, abalando.
Por tantos crimes de morte, por tantas estripulias, pelos vícios e perturbações, as
curriolas todas vão cair do cavalo.
O governo vai fechar a zona. São Paulo está comendo quente.
No primeiro tiroteio, os milicos ligados aos guanacos trabalharam na
crocodilagem de emboscar. Encachorrados e campanando na espreita, fisgaram e
apagaram o malandro Saracura.
Os jornais pintaram a briga, e os tiras, adulados, ganharam moral. Então, os
ratos partiram para o terror. Estão ansiosos e funcionando, com vontade de
apresentar folha de serviço. Faz dez dias. Batida geral, as peruas da justa farejam
todas as bocas da cidade em diligências, guardando de supetão sessenta e cinco
sofredores.
Os malandros se apavoram. As mulheres choram e se embebedam.
– Hoje tem blitz.
É só o que se boqueja desesperando por aí. E é essa pixotada que as curriolas
têm de meter ainda mais fogo na panela:
– E da brava.
Será que não se mancam? Que o negócio bom seria fintar a polícia, partindo
para um gelo, para uma onda de calma? Não, não. Essa cambada de vagabundos
não tem a menor asa de barata de picardia. Uns apavoradões, uns coiós sem
sorte!
E a polícia fica sendo a força da guerra, é claro. Mas claro-clarinho – a
fraqueza das curriolas é a fortaleza da polícia. E os jornais, querendo fazer uma
presença para as famílias da cidade, tocam confete na polícia. E tudo se entorta.
Pudera...
Pegam o pé da gente de acordo. Dão de pau, nos dão a maior prensa. Que eles
são a força e vêm com gana. Também... a gente por aí, nas letras dos jornais, está
mais suja do que pau de galinheiro.
No aceso da maré raiada, Marrom perde a linha e o orgulho de malandro, se
separando das curriolas. Dá-se o cagaço, pede arrego à polícia. Faz arrumação
com a rataria da Delegacia de Costumes. Um escândalo, aquilo é se arreganhar
todo para os homens da lei – vinte e cinco mil mangos por semana. Se não paga
esse imposto, escondem Marrom na Penitenciária.
Está trincado o maior trio da malandragem baixa. Sobraram Bola Preta e Diabo
Loiro. Só. Marrom se largou na estrada. O pior será se Diabo Loiro e Bola,
engolobados também, perderem o tino, quebrarem suas sociedades. As bocas e
as virações vão pro beleléu – ninguém mais terá juízo ou bossa para alinhar os
pauzinhos e os conchavos.
Laércio Arrudão se mandou voando para Santos. Ou Londrina, ninguém viu.
Ivinho Americano e Jonas se rasparam para os longes de São Paulo. O boteco se
acabou. Fim da Boca do Arrudão.
Os da farda continuam na lambança, folgando. Soberanos. Azucrinam à
vontade. Duzentos e cinquenta malandros pés de chinelo e vadios das curriolas
da barra miúda já estão mofando nos chiqueiros da polícia. Sofrendo.
– Na Casa de Detenção não cabe mais.
A pegada é dura, a polícia abusada e que inteligência é essa de a gente andar
desunido? Bola Preta, Diabo Loiro, eu e outro, estamos pedidos e premiados
pela justa. Sendo caçados nas bocas. Espetado e apertado, quase funhanhado,
craneio, firmo e dou uma tacada. Chamo os dois. Fazemos um bate-boca de juízo
e depressinha, num come-quieto do Morumbi. No Morumba, traçamos a defesa,
catando solução. Armamos sociedade, conluiados os três. Vamos molhar a mão
dos homens com uma granuncha gorda e graúda. Ou os tiras entram nos bons
entendimentos ou irão rebolar.
Porque haverá guerra.
Os ratos aceitam dinheiro. Pororó vivo, vivinho, contado e recontadinho e
entregue debaixo de código. Sexta-feira, lá na Avenida do Estado, à beira do
Tamanduateí. Cinquenta mil por semana, a taxa de proteção. Marrom foi
substituído, o trio ainda é o trio. Os ratos não furarão as cabeças de Diabo Loiro,
de Bola Preta e a de Paulinho duma Perna Torta.
Quem quebrar esse acordo engole fogo.
Mas a zona está azoada demais. Os homens da polícia, afiados, fincam pé no
terror. As mulheres levam pancada e mal e mal podem trabalhar; os malandros se
espiantam e tomam chá de sumiço, se esquinizando pelas favelas e pelos
buracos; no tropel, até os otários e beldroegas que nada têm com a despesa,
acabam levando lenha e tomando cadeia.
Estou... não sei. Estou com mau palpite.
A vida está pretejando neste fim de 53.
E um bafo besta corre nos jornais, bigodeando a gente, escondendo os
pauzinhos e jogando um joguinho ladrão. A imprensa parte para a crocodilagem
e defende, atiça, torce para a polícia, concorda que a zona se acabe.
A quebração veio ao meio-dia e sangrou o dia inteiro. Dormia com Ivete e
entendi numa olhada pelo vão da veneziana.
– Tem sujeira.
E nem acordei a mulher, me escapuli. No telhado, entendi que eram uns cento e
cinquenta ou duzentos, nunca poderia abrir fogo; escorreguei, me enfiando na
caixa-d’água do Salão Azul. Até o peito, era água. Agachado, vi.
– Seja o que Deus quiser.
Não sou homem de fricotes ou balangolé e se tenho coração é para coisas do
meu gasto. E só. Mas nunca vi nada tão feio.
Como loucos, tantãs de muita zonzeira, acabam com a zona. Vão esvaziando.
Inundam as casas, tocam fogo nos colchões, entortam janelas, com guinchos
arrebentam as portas. Estraçalham, estuporam, quebram. Atacam as minas,
arrancadas do sono e quase nuas. Batem e chutam como se surrassem homens.
Sapateiam nos corpos das mulheres.
A polícia em massa. Toda a rataria – Força Pública, Exército, Corpo de
Bombeiros, Cavalaria, Aeronáutica, até o DST, os civis, os guanacos, os cabeça
de penicos, até a rapaziada da PE.
Os cavalos pisam também. Empinam-se no ar e atropelam as infelizes. Vão
pisando.
As mulheres engolem depressa tubos de tóxicos e despejam álcool no corpo.
Os corpos pelados, sem pressa pelas ruas vão às labaredas, ardendo como
bonecos de palha. O horror é uma misturação. Gente, cantoria, grito; é esguicho
d’água, é tiro, correria desnorteada. Xingação, berreiro, choro alto e arrastado,
cheiro de carne queimada e fumaça.
Voa de tudo pelas janelas. Quebram cama, cadeira, oratórios. Sangue se espirra
no lixo da rua.
Sujam, quebram o trato do nosso arrego. Capturam Bola Preta e Diabo Loiro,
metem algemas, lá vão os dois cobras cuspindo e correndo o pé, em resistência.
Dão pesadas. São casseteteados, Bola Preta cai e chutam-lhe os rins.
No meio da rua, os invertidos choram, gritam e se descabelam.
Meteu-se fogo também. Ivete está morrendo devagar na Rua Aimoré, há
cinquenta metros meus. Eu nunca vi morte assim e sei lá como me aguento
quieto, me remexendo por dentro e não podendo fechar os olhos. Nem sinto a
água gelada até o peito, nem o tempo que terei ainda de me aguentar aqui.
O vagabundo Daruá, empregado do Burruga, enfrenta. Dá o que fazer com o
ferro de abrir a porta do bar.
Já foi furado agora, e cai, as mãos na barriga.
Ivete está morrendo.
Passa-me um pensamento besta, que se mistura a coisas de cinema – uma
metralhadora.
– Com uma lurdinha, eu costurava esses folgados.
As sirenas das assistências parecem crianças chorando. Recolhem os corpos
em carne viva e, aos trombolhões, jogam para dentro. Carnes se desmancham,
braços e pernas. Dez, doze mulheres. Braços, pernas. Os cadáveres ainda ardem.
Minha boca fechada há muito, os lábios se mordendo.Ivete cai de vez.
Outras saem do casario imundo, a pauladas; procuram depois, na rua, agarrar
restos de coisas suas. Mas são escorraçadas. E vão chorando, sem roupa.
Lacram portas que sobraram de pé, pregam trancas a martelo, metem cadeados.
Os homens da lei apitam, tiros, os cassetetes sobem e descem. E os cavalos vão
pisando.
DE 53 PARA CÁ
A Casa de Detenção é a maior escola que um malandro tem. Na Detenção, um
malandro fica malandro dos malandros.
Entrei com o pé-frio no ano de 54, perturbei bem pouco e quase me virando
sozinho, dei a maior onda de azar da vida deste aqui. Morreu-me Ivete; Bola
Preta e Diabo Loiro caíram na Ilha das Cobras e de lá não voltaram vivos; me
sobraram apenas Valquíria e a rua. Por demais policiada. A cidade limpa da
gente.
Muita mulher foi deportada para os interiores de São Paulo e até para outros
Estados. As poucas que se aguentaram aqui, escapadas dos ataques da rataria,
vão ajeitando aos poucos, pela rua Guaianases, Gusmões, Vitória e por todas as
beiradas das estações até a Avenida São João e o Arouche, os buracos, os
esquisitos e os moquinfos, que continuarão a putaria. Mas os homens da polícia
oprimem e batem – a eles não interessa que as minas só tenham Deus e a rua.
Após 53, toda uma safra de malandros caiu do cavalo, sendo apagada nos
tiroteios ou guardada na cadeia. Até aí, o governo ganhou.
Os jornais fantasiaram, com falsidade, a queda da gente, jogando gabos no
governo. Só não reportaram o que foi a matança na zona e não houve fotografias,
nem pena, nem lero-leros para aquelas misérias. Só não explicaram, os tontos, o
porquê da nossa queda. Só ninguém soube que caímos de quatro porque nos
faltaram Bola Preta e Diabo Loiro. Na crepe danada de me faltarem os dois, o
trio ficou só em Paulinho duma Perna Torta. E não pude, como queria e craniei,
catar meus vagabundos para tomar alguns pontos na ignorância... O governo
ganhou. Mas ninguém explicou por quê.
Sozinho, meu capital se esfacelando, pulando de um hotel para outro, Valquíria
não ganhando, a polícia no meu calcanhar e ainda precisando de grana, Aniz
Issara mandando pedir verba para meus processos estourados, precisei trambicar.
Peguei um espeto atravessado num ônibus Avenida, quando mandava o couro
no bolso de um otário. Caí na Detenção.
Não faço conflito durante três anos. Neles, aprendo atenção. Puxando esta
cadeia, acho velhos camaradas das curriolas, meu nome se impõe aqui no
chiqueiro da Avenida Tiradentes. Sou juiz da cela do terceiro pavilhão – o lugar
especial dos perigosos. Aqui corre maconha, tóxico, cachaça e carteado. Afino
mais o meu joguinho: lá fora, em liberdade, há trouxas; aqui é só malandro. Vivo
mais acordado do que todos os carcereiros juntos. Cobiço e tomo tudo dos outros
e penso mais demorado no jeito de roubar. E vou ficando malandro dos
malandros.
Valquíria me faz visita. Exijo dinheiro, maconha (que me traga na barra da
saia) e esses novos tóxicos que vão surgindo agora, na praça – dexamil, pervitin,
dexin...
Ela me conta, aqui no pátio da Detenção, que a situação dos viradores está
arribando lá fora e até já existem casas montadas e hotéis que dão entrada a
casais sem documento. A putaria vai se ajeitando. Laércio Arrudão e seus irmãos
voltam a circular.
Valquíria se despede, esta hora da tarde de domingo é uma tristeza besta, eu
sinto falta do corpo dela. Distribuo ordens. Que me traga o advogado.
Recebo o Doutor Aniz Issara. Boquejamos.
Entendo as coisas aqui. E meu bom comportamento vira um provérbio. O
diretor me requisita, examina a papelada, me examina. Sou transferido para o
segundo pavilhão e dali para o primeiro. Valquíria levanta grana, passa cem
contos a Aniz e sou passado, todo o respeito a um bandido linha de frente, para
prisão especial.
Conheço os grandes Itiro Nakadaia, Hamleto Meneghetti e Zião da Gameleira.
Um, japonês e rei do estelionato e da falsificação moedeira: a malandragem
desse bicho é internacional. Meneghetti, já velho e descorado, é ainda o cobra
maior do assalto de joias – vinte e cinco passagens só na Detenção. O terceiro,
Zião da Gameleira, dono da macumba de São Paulo, cinco tendas só no
Jabaquara, levou na bicaria até um governador e alguns padrecos; um baiano
gordalhudo e acordado, que não se sabe se dirige mais macumbeiros estando em
liberdade ou guardado aqui na Detenção.
Eu me comporto muito direitinhamente, como reza Aniz Issara. Mas Itiro
Nakadaia recebe visita de gente graúda, que é capitão de indústria e outros
babados; Meneghetti faz atrapalhadas, dorme os dias inteiros e pelas noites
funciona como um bicho elétrico, tentando a fuga duas vezes por semana, e finta
os carcereiros: às vezes, vão farejá-lo nas ruas da cidade e ele ainda está na
cadeia.
Zião da Gameleira faz macumba, despachando daqui mesmo. Até deputado e
técnico de clube de futebol já vi apontar por aqui. Facilito-lhe, de fininha, alguns
macetes e tarecos. E não sei por quê. Mas tenho confiança nesse Zião.
É um picardo. Esse Zião da Gameleira me encabula. Uns olhos parados e
pequenos de bicho sonolento, uma papada enorme de quem come muito doce. E
que calma...Nada afoba esse Zião, gordo e sossegado. Um baiano que parece
saber das novidades antes delas acontecerem. Sou malandro dos malandros, mas
vi poucos caras como Zião da Gameleira. Que já vem de volta, enquanto a gente
está indo. Boto o maior respeito nesse bicho macumbeiro.
Uns dois anos e meio aqui e me apareceu Laércio Arrudão. Duas semanas
depois, a grana correndo por mim lá fora, ganhei um alvará de soltura.
Paulinho duma Perna Torta pisa o meio-fio da Avenida Tiradentes e é
fotografado. Mas não liga aos tontos da crônica policial que estão à sua roda.
Espera um táxi. Está com a grana, saiu de casa com a cobiça raiada.
São Paulo ia ser meu.
E vou.
O malandreco Frangão, Laércio Arrudão e eu montamos a maior boca de jogo
de ronda da cidade. Até a polícia frequenta o nosso come-quieto do Bom Retiro.
Dobro paradas de trezentos mil jiraus. A rataria se mistura com a gente no
quente do jogo e assim é que deve ser em tempos de paz.
Lá no Bom Retiro é completa a liberdade. A igreja fica de um lado e o come-
quieto do outro.
Tenho o jogo nas mãos. Mas o que cobiço é o comando da putaria e da
macumba. Estou trocando e retrocando os pauzinhos, armando uma política de
enfiada, que vai acabar sacando. Zião da Gameleira da cadeia. Quero aquele
baiano solto e sócio meu.
A Delegacia de Costumes voltou a recolher arrego das minas e vem nascendo a
Boca do Lixo. O formigueiro que era a zona está se espalhando por toda São
Paulo. O governo. começa a perder. Do lado de lá dos trilhos dos bondes da
Avenida São João é um cumprimento só. De braseiros. Vila Buarque também já
ferve de inferninhos nas boates de mentira, de grupo, que são boates só para
engambelar os trouxas. O negócio é putaria e firme. Monto um apartamento na
Praça Marechal Deodoro, andar todo, para servir às minas que trazem fregueses
caros e coronéis das boates. Tem telefone e outros cuidados. Mil mangos por
hora.
E vou.
Adoço um judeu proprietário e arranco o aluguel de um casarão da rua dos
Andradas, Boca do Lixo. Meto, exploro oito mulheres lá. Dois mil e quinhentos
mangos é a diária.
Dou ao abandono as curriolas do crime à mão armada. Dispenso, esqueço
Valquíria e os malandros pés de chinelo.
Passo para o partido alto. Manicuro as unhas, me ajambro com panos ingleses,
fumo charuto holandês e a crônica policial comenta com destaque porque
declarei, dia desses, que a minha marca é só Duc George. Holandês. E cafetinar
é o negócio.
Mas dou também para o comando da punga. Paulinho duma Perna Torta,
Paulinho Perna Torta – como encurtam os tontos dos jornais – e Ivinho
Americano têm uma curriola de lanceiros e roupeiros trabalhando em toda a
cidade e que só surrupiam carteira nos ônibus e nos cinemas, nas feiras e
lotações, se os nossos ratos da polícia derem liberdades para o pedágio.
Nas madrugadas altas, entro no Parreirinha, ali na Conselheiro Nébias.
Frequento, uma boneca a tiracolo sempre, dessas putinhas de teatro de revistas.
Sou tratado de doutor, jornalistas me adulam. E nessas umas e outras me
estendem convites. Com as equipes esportivas dos jornais e dos rádios, conheço
a Argentina, o Uruguai e o Peru. É Paulinho duma Perna Torta quem nessas
delegações melhor ajambra a elegância de sua picada.
Lido com tóxicos. Desço à zona de Sorocaba e ao Retiro de Jundiaí. Compro o
pervitin a cem mangos e passo por oitocentos. Passadores de fumo vêm comigo.
Nota encorpada. Só se trabalha com a melhor maconha, a pura. Cabeça-de-nego,
vinda de Alagoas.
A chegada da granuncha alta me refina. Quem conta tostões não chega a
cruzeiros. Aprendo. Monto um apartamento na Avenida Rio Branco e quero de
tudo. Jardim de inverno, televisão, telefone, carro e ar refrigerado.
E vou.
Cobiça raiada vai comigo. Por causa de dois braseiros da rua dos Gusmões,
apago a Colt 45, em tiroteio de rua, o cafetão Mandureba, falado cafiolo, que
atravessando o meu trajeto queria me beliscar aquelas situações.
Os jornais aprontam um escarcéu preto com o nome de Paulinho Perna Torta e
me espianto para Campo Grande, Mato Grosso, enquanto Aniz Issara me cuida
no fórum.
Torno a São Paulo, disposto e ansioso. Afiado. Cobiço toda a Boca do Lixo, já
me entendo como futuro dono único. Monto nova curriola, estabeleço terror e
tomo as melhores casas para mim. Como.
Trago meus empregados amarrados com corda curta.
Mas tudo tem seu senão...
O malandro Valdão, chamado também Valdãozinho, ex-boxeador e meu
empregado na colheita da taxa de proteção às mulheres, me fez uma safadeza.
Entrega Paulinho Perna Torta ao DI e vai à crônica policial fornecer reportagem
sobre o intocável das bocas. Tenho uma crise e quero a cabeça do cagueta.
Os jornais me pintam de tudo que teria um rei. Há a exposição de tudo quanto
é pose do corpo e da cara de Paulinho duma Perna Torta. Não gosto daquela
uma, sem óculos escuros, em que apareço só de camisa esporte e sem charuto na
boca.
Às três e meia da manhã, trago minha cambada, faço a invasão do Restaurante
Tabu, fecha-nunca da rua Vitória, ponto de aponto da malandragem baixa. E
apago, a tiros, o safado Valdão.
Os jornalecos me fervem outra vez. Nessa coisarada de façanhas, já não sei a
quantas ando.
O valente Paulinho duma Perna Torta vai para as primeiras páginas.
O enterro de Valdão é seguido por toda a malandragem ao cemitério público de
Vila Formosa. A consideração das curriolas a Valdão é um despeito das curriolas
a um benfeito de Paulinho duma Perna Torta. Fico mordido; me vingo partindo
para o jogo sujo. Ponho ratos da RUDE e da RONE, rondas especiais da polícia,
ocultos campanando dentro do cemitério. E, durante o enterro, capturam lá
cinquenta vagabundos.
Engessei a curriola de bocudos e fiz bem. Essa cambada anda precisada de um
pouco de cadeia para saber o que é vida.
E fujo de novo para as bocas de Curitiba, dobrando a verba de Aniz Issara.
É nessa minha ausência, prolongada lá no sul, nas farras de camas arrumadas
no melhor hotel de Curitiba, com uma menina de dezesseis anos, Maria Princesa,
que um baiano muito gordo, muito falado e acordado, deixava a Casa de
Detenção, Zião da Gameleira.
Não é mulher bonita, nem gostar o que está me perdendo.
Laércio Arrudão, os anos de janela e de Detenção não me ensinaram tudo.
Que minas eu tenho e até pivas e naimes das mais finas. Tive filhas de bacanas,
nas estranjas. E Maria Princesa, minha última umas e outras fixa, é uma boneca
e novinha, cheirando a broto do interior – tratada, vestida, desfila como rainha...
Nem gostar é o que me estrepa. Sempre gostei do melhor que é dos outros e
cobiçando tomei quanto pude. E bem pensando, também os últimos ataques da
polícia não me dizem nada – tenho pororó sobrando e quando me der a telha
mando a malandragem de volta para quem a inventou. Posso viver sem ela.
A encabulação maior me nasce de umas coisas bestas, cuja descoberta e
matutação a ginga macumbeira de Zião da Gameleira começou a me despertar.
Uma virada do destino, na vida andeja deste aqui. Um absurdo que Zião, sem
querer, acabasse me levantando dúvidas bestas.
É que fiz trinta anos e pensei umas coisas de minha vida.
E na continuação da besteira, atacado pelas últimas guinadas da polícia que
atende às famílias da cidade sobre o barulho dos meus esporros nas bocas;
difamado pelos jornais, revistas, televisão... Sou chamado às conversas comigo
mesmo.
E é uma porcaria. Meu nome é ninguém. Paulinho duma Perna Torta, de quem
andam encurtando o nome por aí é uma mentira. Como foram Saracura, Marrom,
Diabo Loiro, Bola Preta... e como são esses de hoje em dia, donos disso e
daquilo, da putaria, do jogo, das virações... A gente não é ninguém, a gente
nunca foi. A gente some, apagado, qualquer hora dessas, em que a polícia ou
outro mais malandro nos acerte.
– O que é qu’eu tenho feito?
A gente pensa que está subindo muito nos pontos de uma carreira, mas apenas
está se chegando para mais perto do fim. E como percebo, de repente, quanto
estou sozinho!
Uma parada sem jeito, ô encabulação! Agora a briga não é com ninguém, não.
O pior de tudo, o espeto é que eu mesmo estou me desacatando e me dando um
esporro. E é o maior enrosco!
Eu acho que ando muito cansado.
“São Cosme e São Damião, Doum...
Caboclinho da mata é quem manda,
São Cosme e São Damião, Doum...
Ô saravá, povo de umbanda!”
Isto é que Zião da Gameleira foi me aprontar...
“Olhe lá, seu caveira,
Exu tira fogo do ar...
É com sol, é com chuva
Exu tá em todo lugar
Eh, eh... Eh, ah...
Exu tá em todo lugar!”
E os atabaques e as gingas e os pontos da clioulada comiam os terreiros de
Zião, batucavam no Jabaquara, até quatro horas da manhã. E aqueles bate-bocas
sobre o bem e sobre o mal. Na tenda me esquentaram a caixa do juízo com uma
cambada de dúvidas, sobre as coisas que tenho feito nestes anos. E vejo que não
tenho andado certo, não.
Hora morfética em que ajudei a arrancar Zião da Gameleira da Casa de
Detenção!
Não tem diferença.
A rataria volta à mesma política de antes de 53, quando preparava o massacre
da zona. Os jornais andam encachorrados de novo. Os malandros pra cadeia, as
ruas varridas e as mulheres surradas.
Eu também começo a perder terreno.
Maria Princesa me acordou com um bafo besta, que me azedou o dia e a noite.
Laércio Arrudão e seus irmãos foram capturados e estão mofando na
Penitenciária. Aniz Issara quem mandou me avisar.
Às vezes, penso que é uma onda besta que está me tomando. Desguio-me dela,
meto maconha, engulo uns copos.
Mas hoje, eu tenho medo até de sair à rua sozinho.
RUPA. Outro azar raiado.
Os jornais só me trazem espeto em cima de espeto.
Agora, os cobras do governo inventaram essa RUPA.Maior que a RONE e a
RUDE juntas. Tiras desconhecidos, gente moça, ansiosa, máquina na mão e a
maldita gana de apresentar serviço. E os jornais ainda dão apoio...
Dia mais, dia menos. Essa rataria agora é moça. A molecada vai acabar me
catando.
A rua está ruim.
Saravando seus santos, estalando os dedos na sua ginga, chamando os capetas,
dividindo vela de não sei quanta cor, Zião já não me arruma nada. Deu para fazer
trabalho aqui mesmo no apartamento. Deu foi azar! Zião da Gameleira faz, faz,
faz. Fica aí rebolando na minha frente e chamando sei lá quantas linhas de
umbanda. Mas não me tira a ruindade da rua. A rua está ruim e assim está.
Chega Elisa do Pandeiro. Fala clarinho, que para bom entendedor um pingo é
letra. Mando. Que arranque a grana das minas, invente história, prense as
mulheres na parede, faça mil e uma presepadas. Mas que traga algum pororó.
Ela vai saindo. Reforço o mando. Quando foi mesmo que peguei Elisa do
Pandeiro como minha empregada? Meto os olhos na cara dela. Os olhos verdes
de Paulinho duma Perna Torta. Boto doçura na preta, sei como é mulher. Falo
baixo, os olhos na cara dela.
– Me traz.
Sai daqui meio boba, vai tropeçar na entrada do elevador, se eu não lhe abrir a
porta. Sei como é mulher. O estrepe todo é que se continuo dando essas
liberdades, mais dia, menos dia... tenho que arrastar a mina pra cama. Negócio
ruim. Perco a voz ativa, Elisa do Pandeiro é só minha empregada para recolher
diária das mulheres. Eu quero só a nota que Elisa me traz. Cama, não.
Lá vai Elisa do Pandeiro, preta de muito rabo, com esse andar balangado. Para
mim. Não quero cama com ela, não. Dizem que Elisa anda com uma nota alta,
muito bem enrustida, possuindo um bordel escondido lá em Mogi das Cruzes.
Elisa é escura, é um tição.
Mas se essa história de grana alta for quente eu arrisco uma pegada nela. Para
lhe tomar tudo.
A rua está ruim.
É sobre a rua que estou falando. Da dos Gusmões.Lá da Vilinha da Boca do
Lixo. Um saco furado, uma ideia de jumento foi a minha. Esse espeto da polícia
é que me entorta a alma. Tinha metido lá doze mulheres, movimento dia e noite,
meninas de trabalhar, de enfrentar a rua. Quatro mil pacotes cada diária. Sendo
menos, não adianta ter bordel, hoje em dia. Ia bem, quando furtei aquilo da Nega
Lola, na manobra fina que eu sei fazer. Eu queria aquilo, dei juízo, fui lá,
arruinei a Nega Lola, arruinei. Que eu sei fazer. Agora, que eu ia colher...
A rua está ruim.
Quem é que esperava? Deu para mudar delegado, deu para os tiras mudarem,
os homens da lei não querem mais acerto. Uma virada, uma virada! Até
mudaram o delegado de Costumes. E essa polícia me espeta a alma, me afana a
vida.
Mandar, eu mando. Mando. Elisa do Pandeiro vai, conversa, charla, pede. Mas
os homens não querem saber de acordo. E quem se estrepa? Elisa me pede
calma.
Tenho bebido muito, estou com tóxico na cabeça e não quero nem saber se
Elisa tem grana enrustida, tem bunda grande ou pequena.
– Ora, m’esquece, mulher!
A rua está ruim.
Os jornais me desrespeitando, me encurtando o nome; as ratarias apertam, meu
nome está se apagando. Acabará. Estão limpando as ruas, arrancando os
malandros das tocas mais escondidas.
Eu me refinei, eu me refinei, não devia tanto. Fiz muito fricote, me escarrapachei
mais do que a conta, me empapucei. Ou foi essa vida que me ensinou a cobiçar
tudo o que é dos outros, iludindo, avançando, tomando, estraçalhando. Também
por isso tenho uma situação, carro, apartamento, telefone, viagens, bordel. Não
nasci com isso não.
Mas sem tratamento, hoje eu viveria mal. Camelaria, batendo cabeça por aí. E
faria coisa de marmiteiro, sofredor.
Eu me refinei e cada vez mais, amanhã precisarei de alguma novidade, senão já
não serei o mesmo. Precisarei mais grana. E quando tiver, ainda assim,
descontente e encabulado, irei vazio por dentro. Cobiçando e inventando novas
nove-horas.
Diz aí um paspalhão de jornal, encurtando o meu nome e quase me chamando
só de Perna Torta, que venho decaindo, perco todas as casas do Lixão e já tenho
até medo da polícia. Uns trouxas!
Estou com tóxico no caco e uma ideia besta me passa – talvez eu devesse ter
ficado com a magrela e as namoradinhas do comércio das lojas do Bom Retiro.
Ou tirado Ivete da vida.
Não fossem as prosas da crioulada de Zião da Gameleira, e eu não estaria aqui
agora, me azucrinando com estes pensamentos bestas.
Trinta e um anos, faço pelo São João. E nem Jonas, nem Ivinho Americano e
nem Laércio Arrudão estarão aqui para uma champanha comigo.
Tenho a impressão de que me preguei uma mentirada enorme nestes anos
todos.
Outra vez o governo está vencendo Paulinho duma Perna Torta.
Mas não vou parar. Atucho-me de tóxico e me aguento. Para final, tenho ainda
a grana e Maria Princesa é uma boneca.
Eu só posso continuar. Até que um dia desses, na crocodilagem, a polícia me
dê mancada; me embosque como fez a tantos outros. E me apague.
E, nesse dia, os jornais digam que o crime perdeu um rei.
9
Este conto foi revisto pelo autor na Muda, Sanatório da Tijuca, Rio de Janeiro, entre maio e junho de 1970.
PAULO MELADO DO CHAPÉU
MANGUEIRA SERRALHA
– Epígrafe:
“Eu nunca senti falta do trabalho,
Desde pirralho
Que eu embrulho o paspalhão,
Minha boa sorte é o baralho
Mas minha desgraça é o garrafão:
Dinheiro fácil não se poupa
Mas agora com que roupa?”
Noel Rosa, “Com que Roupa?”, 1930
– outra:
“Solta a rédea a tua juventude,
não a poupes.”
Das canções que Zorba, o grego, de Nikos Kazantzakis, cantava se
acompanhando no santuri.
– uma outra:
“O meu pecado
Foi em querer
Na minha mocidade
Amar tantas mulheres
O tempo já passou
Eu tenho saudades
O meu pecado
Foi passar noites
Em serestas
E bebendo por aí
Pela cidade.”
“O Meu Pecado”, 1967. Samba gravado em disco por Paulinho da Viola,
chamado médio na partitura imprensa, com letra e música atribuídas a Zé
Kéti, mas lembrando, com firmeza, características e ares da majestade
dos clássicos de Nélson Cavaquinho.
UMA AVE NOTURNA
Vive-se.
Se se é uma chaga viva, nervo exposto, tontice. Ninguém vê. Meu trabalho tem
sido, quando presta, disfarçar isso.
Meu pecado é que as manhãs foram feitas para a meditação. As tardes para a
contemplação. E as noites, estas sim, para a concentração e a construção. Nelas,
explodo.
NÃO HÁ VOLTA
Hoje, a marca é nos quarenta anos. E desta eu não tenho retorno.
Vou firme. Ou penso que. Declaro gozar perfeita saúde. Se me perguntam, até
faço frase. Nesta vida, a três coisas dou apreço – todas as manhãs ao me acordar
e abrir os olhos, eu vejo que não tenho automóvel, não uso óculos e ainda estou
vivo. Agradeço e prezo.
Ainda uma quarta qualidade me acompanha. Não sou diretor de nada.
Melhor que isso, só pedindo a Deus uma velhice irresponsável.
* * *
CHOROS E LANDUÁS
Se me pego e esmiúço, e me componho, estou desfalcado. Hoje me cantam as
glórias, nenhum escriba me flagra os fiascos. Vejo, no momento, muita coisa
correr em meu nome e o mais é floreio, exageração, uma generosidade algo
oferecida. E distraída, também.
Meu cabedal é pobre, de livros e descendentes e, elas por elas, filho de um
transmontano emigrado e de uma mestiça do Estado do Rio, neta de negros,
nasci sem maior lordeza. A família de mestiços, fluminense naquele tempo,
andava arada de fome; correu para São Paulo nas beiradas de 29, ano ruço, e
tentou se arrumar no que restava de mercado de trabalho nos intestinos
industriais de Presidente Altino, Osasco e Jaguaré. Assim, nasci num tempo
desmilinguido, inda mais no meio operário. Muito retrato do dr. Getúlio Vargas
nas paredes dos estabelecimentos pobres. Sofria-se que não era vida.
A verdade é que ando cansado desse landuá bem-comportado, asséptico e sem
peleja, sem refrega, esporro, escorregão, enquanto a vida mesma é escrota,
malhada, safada. Algumas coisas me aborrecem em largo e profundo – o que é
diferente e bem. O buraco é um bocado mais embaixo. E o corpo humano tem
nove buracos. Estou ainda enfarado do lado estético, que falar do feio com forma
bonita é mais farisaísmo. Para que forma feitinha, comportada e empetecada;
para que um ismo funcionando como penduricalho para falar de coisas caóticas e
desconcertantes? Houvesse, de vez, uma escrita envenenada, escrachada,
arreganhada. Nem me venham dizer os sabidos que a vida, aqui fora, fede de
outro modo. Parece-me que onde se está abrindo com a frase: “Respeitável
público!”, talvez coubesse esta, assim: “Detestável público!”. Afinal,
deliberadamente ou não, o escriba é um servo da classe média. Então, não
comece com floreio de brilhareco, pois estará entrando exatamente no joguinho
que essa classe espera dele.
Acresce que esta franqueza, pesada e rente, é grossa para a maioria e é risco
para o cidadão, seu dono, que pode arrepelar no pedaço. Mas sem remédio, aí.
Sim. Que a imediato, a médio ou a longo prazo dará em prejuízo. Provavelmente
vá feder a provocação antiliterária. Uma ingresia, afinal, quase dispensável.
Preferível evitar. “Detestável público!” Isso não se declara a nenhum repórter.
Tudo baseado na flosô. Vi, dia desses, um conferencista que gastou e gastou
duas horas e trinta e alguns minutos falando de Graciliano Ramos. Fiquei com
um embrulho no estômago. E a impressão de que Graça, se vivo, ouviria o
falatório com outro embrulho no estômago. O sabido falava em fonemas na obra
de Graciliano, na cor – o branco e o amarelo – em Graciliano. Disse que no
curso e transcurso de todo o romance Angústia jamais se lê a palavra angústia.
Só no título. O homem dizia isso, empertigado e ativo, como se tivesse levantado
um achado. Quase disparei:
– Ô sabido! ô quiquiriqui, eu já descobri isso lendo Angústia aos dezessete
anos!
E não tive professores disso.
O branco e o amarelo na obra de Graciliano. O substantivo sem adjetivo.
Horas, horas. Falando, refalando: saturando. Um doutor de falsa fama, em duas
horas e trinta minutos, só não diz à plateia de basbaques, otários e sonolentos,
que a obra de Graciliano é, além do alvo padrão estético, uma denúncia social,
um feixe de documentos brasileiros, comovente pela atualidade, a refletir o que
ele mesmo pregava – a escrita como a estratificação da vida de um povo.
Manipulado, usado, deixado pra lá. O quiquiriqui, sambudo das importâncias, se
esqueceu que hoje Vidas secas ultrapassa a trigésima edição – ainda é uma
verdade nordestina, para bem além de ser obra de arte. E, assim, incomoda,
emociona, aporrinha, mexe com a calhordice ou com a impotência dos homens a
quem compete direção do Nordeste. Uns incompetentes, uns estéreis. Apenas.
Que me lembre. Frequentei, de cedo, rodas de chorões e seresteiros, levado
pela mão de meu pai. O velho sequer tinha escola primária completa. Mas tocava
por música. Banjo, violão, cavaquinho, bandolim e os instrumentos de cordas
que conheço. Todos.
Atarracado, mãos quadradas e grossas. Mas de onde haveria arrancado aquela
sensibilidade?
A mãe, desafinada. O pai, musical de todo. Ainda assim se entendiam, no
comprimento daqueles anos todos. Aquele homem tinha uma chave escondida
com que fazia a seleção das coisas, amorosamente. Onde diabo teria aprendido
aquilo? Fino, acima daqueles ambientes. Dava também para o cultivo de
orquídeas. Desconcertava-me. Eu lhe percebia a fineza, a categoria se esbatendo
no meio daquelas brutalidades. Levava na ponta da língua alguns nomes em
latim. Eu me lembro – onde se escrevia Helvetia, ele pronunciava com c. Onde
teria aprendido? Cuidava que cuidava de hibridações e, muita vez, viajou em
grupo à Serra do Mar, para caçar parasitas. Difícil usar a palavra orquídea. Um
dia, me explicou que elas parasitavam os troncos de árvores enormes da serra. E
a que eu não podia ir devido à mata cerrada, ao caminho duro, às pragas e aos
enxames de mosquitos bravos.
Mas me passou o instrumento. Ali pelos nove anos, pinicava rápido, jeitoso, o
“Apanhei-te, Cavaquinho” e uns pedaços avulsos da “Marcha Turca”. Mamãe,
implicada, encalistrava, mas quieta. Cautelosa, zelosa, por perto campanando.
Forte.
Para ela, o mundo dos chorões e dos cantores era a vida na farra.
Eu não levasse o vidão das rodas de choros e serestas, perdendo-me na boêmia,
nas bebidas, sapecando-me de mulheres, artes, maturutagens. Extravagância
antes do tempo. E escondia-me o bandolim. Tão, assim, o velho saía para o
trabalho, encafuava o instrumento longe do meu alcance. Que me entretivesse
com outra coisa.
Tão desafinada. E, de cedo, dei para reparar em palavras. Ela pronunciava
músiga e não música.
Como se entendiam duas pessoas tão diferentes?
Corre um tempo em que, naqueles pedaços suburbanos, a mulher não intervém
na andança do marido. Mas finca uma ditadura e impõe o paradeiro dos filhos.
Uma gestapo feminina. Isso, a que depois os autores preferiram chamar de
chauvinismo na mulher.
Choro varando a tarde, enfiando pela noite. Mamãe sequer imagina as rodas e
os encontros, em que a música de amadores e profissionais se enlaça, se
confunde em alto e profundo, em largo e no coração, com harmonia, na alma
longa dos choros. Nomes – Garoto, Teodorico, Nazareth, João Pernambuco,
Zequinha de Abreu, Guerino, Benedito Lacerda, Abel Ferreira, Pixinguinha,
Luperce Miranda, Barrios. Mamãe não sabe dessa legião. Flauta, cavaquinho,
bandolim, violão, saxofone, clarinete fazem o ritmo, a tensão, a torcida, a vida e
a pureza da gente.
Não toco no correr da semana. Nas tardes e noites de folga, sigo papai. Estou
numa prensa, entalado e bem. O pai me quer enlaçando o instrumento, a mãe me
esconde o bandolim.
Boca presa, boca de mocó. Não entregarei mamãe. Que, se o pai descobre,
haverá frege. Ficará fulo, tiririca, um bicho, desandará.
Guardarei com jeito, até onde eu puder, na tranca e no enruste. Esconderei dos
dois, não desconfiarão. A ciumada da mãe e o ensino do velho não se
trombariam. Mas a minha vida, aos nove anos, assim é um nó.
Tira-se um choro batuta. É do chapéu, vivo, traquejado. Há derrubadas,
afrontas e duelos, companheirismos e rixas. Nem tudo é camaradagem. Cada
homem de sopro, de percussão ou cordas, carrega sua vaidade acesa e, mais que
forte, escondida. Há paradas duras de solo e acompanhamento. Violões. Um
querendo comer o outro, inda mais quando se trata de contracanto e
improvisação, quando se quer correr por dentro e se entra num recacau lambido,
intrincado de sutilezas, recursos arrumados na hora, manhas, picardias.
Vou quieto, sondando. Corremos, eu e papai, as rodas de Presidente Altino,
Osasco, Vila Leopoldina, Lapa e nos trens caxinguentos e estropiados da
Sorocabana viajamos a Jandira e Itapevi. Ou tocamos para o outro lado da
cidade, para a Luz e para Santana. Reviramos os bairros, os dois nos damos as
mãos nas travessias das ruas, andejos. Mas eu não pinico mais nas cordas, a
palheta apertada, firme, entre o polegar e o indicador.
Sonsa, tão sonsa. Águia dissimulada. Tensa como as cordas do cavaquinho.
Coçando, a rixa não vem a furo. Então, fica no choro um clima que constrange e
faz que só resvala. Mas vai fundo e fere. Levanta inimizades que picam e não se
declaram. Caminha que caminha, a rixa. Arrasta um fio de anos, dissimulada e
roendo, quieta. Beleza de pinimba! Menino, eu não toco. Mas aprendo, na espia,
os modos da competição. E passo a torcer por um ou por outro estilo.
Quem ouve o choro ali tocado, não a vê. Mas é um quê engasgando, uma
lindeza fina e feia, de íntima. Ela vai crescendo nessas disputas, engordando a
cada encontro. Toma corpo. Fica no embalo das passagens para as segundas
partes, em crescendo. Tarde após tarde, noite após noite, nunca que explode. A
birra.
Só música se ouve. Mas já vou sabendo ouvir mais que ela. A briga está lá,
enfarruscada e enrugada, no seu escondido, tocaiada, espiando. Como um
cuidado zeloso de ciúme recolhido.
Essa diferença entre os homens, é ela. Esse ciúme, é ele. Esse travo, é ele. É
ela, é ele e é ele e são eles que fazem a vida, o vício e a continuação das rodas do
chorinho. Berçando.
Na derrubada do choro, só o bom fica de pé. Na derrubada do choro, de duas
você passa a desconfiar. Quando alguém lhe diz: “deixa isso comigo”. Quando
alguém lhe diz: “este cachorro não morde”. Você aprende. Quem corre, cansa. A
derrubada do choro faz com que, só depois dos vinte e cinco, trinta anos um
nome de chorão comece a correr as rodas e se imponha considerado, temido,
conhecido de longe. Solista, bandolim, cavaquinho ou sopro são, em geral, os
compositores. E guardam feito ouro, represando meses, uma composição nova.
Trabalham, gramam em silêncio, ensaiam longamente, em exercício solitário.
Não mostram a ninguém, nem à mulher. Trancam-se num quarto, se encafuam.
Que ninguém os ouça e não os roube. Soltarão a música mais tarde. Dominada,
acabada, todo o traquejo finalizado. Quando se sentirem os melhores intérpretes
de si mesmos e dominem os acompanhamentos, os improvisos, certos de que
serão imperdíveis e de que ninguém os baterá naquelas rodas de espertos,
rápidos e afiados. Na derrubada do choro, calha também o prodígio, a aberração,
o bárbaro, o gênio, feito Garoto. Que, em menino, derrubou os mais velhos,
pontificando em todos os instrumentos de corda. Era forte, era Anibal Augusto
Sardinha, o Garoto de Ouro falado. E o seu instrumento, o em que revolucionou
– o violão tenor. Carregou nas costas, compondo e interpretando, e levou o choro
em escalada contínua, crescendo a cada etapa num jorro, estremeção, rebuliço,
pegada diferente na palheta e tirada de som como nunca se ouviu, que clareza,
até fazer o primeiro concerto de choro no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Os outros eram bons, arrepiavam, etc. Mas Garoto era um só.
Mais tarde, já na casa dos trinta, eu viajaria e ouviria ases do violão, do
contrabaixo, do sopro. Toparia flautistas desconcertantes, clarinetistas porretas e
um sax, Pixinguinha, desacato. Nessas andanças, uma delas me jogou em Nova
Orleans e varei tardes e noites nos bares. Do cair do sol ao alvorecer do outro
dia, só ouvindo os crioulos tirarem o jazz puro. Eles mamavam no saxofone, no
pistão ou no clarinete como quem suga a vida. Brincavam no piano,
melancólicos ou arteiros. E tiravam das cordas improvisações trazendo
carregadas e suadas e chorando as cargas gemidas, represadas, de seus navios
negreiros, a estiva brava nos portos e o trabalho arrastado nos campos de
algodão. Sentia-se o sol, o sal e o açoite. E das embarcações, o apito cortante,
navioso, de quem vai embora para o outro lado do mundo e poderá não voltar
nunca.
Bem. Tudo isso muito bonito, o jazz é forte. Mas o choro é o choro. Sublime.
Aprendo o chorinho sem tocar. Até parece família, na aparência, a
companheiragem que segue nas rodas. Semana a semana, pessoal se encontrando
cria costumes, brincadeiras, manias. Grupinhos se conluiam dentro do grupo.
Sinais convencionados e falas cifradas surgem e funcionam criando
combinações, habilidades. Há derrubadas que se armam aos poucos, calibram-se
com estratégia manhosa, marotamente.
Como não falte aos encontros, passo a conhecido. E faço parte. Claro que não
toco, mas sou da turma. Pra cá e pra lá, de tanto ir e vir, os homens brincam
comigo e nos temos amizade.
Dão de presente a meu pai. Uma miniatura de chupeta num laço de fita
vermelha que o velho pendura na cravelha do bandolim. A chupeta ao bandolim
como eu ligado a meu pai. Todos sentem e ninguém fala.
Que jogo nunca aberto! Não notam que eu farejo, entendo, torço por um ou por
outro? Mas tudo para mim mesmo, em silêncio. Ninguém percebesse.
Vou seguindo o pai, a vontade beliscando, mas não me arrisco.
Não entregaria a mãe. Para final, os adultos vão, vêm e brigam. Mas sempre
arranjados, no entanto. E se as manobras engripam e derrapam, sobra um
safanão para os pequenos distraídos nas redondezas. Sempre. Gente grande é
isso.
Então, não pegava no instrumento.
* * *
AFINAÇÃO DA ARTE DE OUVIR
Uma tarde, já boca da noite, a gente num alpendre da Lapa de Cima e a
primeira estrela da tarde espetou aquele céu. Pedi com os olhos para que ela me
desse sorte. Os homens tocaram um número, ganharam uns aplausos e foram
para a sala beber. Muita gente na roda e na assistência. Descansaram os pinhos
no sofã. Deviam estar servindo café, devia haver bolo. Havia o retinir de xícaras,
colheres, alguma voz feminina. Mas eu estava de olhos firmes naquilo.
Espiei. Não vinha ninguém. Peguei o cavaco e o encostei ao peito. Dedilhando
brando, brando, a palheta para baixo e para cima, apertada nos dois dedos da
mão direita. Brando.
Papai, chegado sem que eu o visse, me pilhou, fala curta:
– Ah, gosta de tocar.
Um frio nos joelhos de fora, que a calça curta não cobria. Pousei o bandolim,
num arrepio. Tinha na cravelha, balangando na fita de cetim, vermelha e
brilhante, uma miniatura de chupeta, lembrança dos parceiros. Um som que eu
tirara, furtivo, ficou na sala. Houve um medo. E, diaba de primeira estrela da
tarde que em nada me adiantou. Ele teria percebido que não treinara mais a
“Marcha Turca” e o “Apanhei-te, Cavaquinho”?. Que, por último, eu nem relava
no bandolim?
O pai fez uns olhos pretos, miúdos, certeiros.
– É mais difícil ouvir do que tocar.
* * *
BOCA DE MOCÓ
Nunca descobrisse.
Também daquela vez me ralei, me curti e me calei.
Não haveria tempo quente em casa.
* * *
SANTA IGNORÂNCIA
De comum, seu ensino me batia de modo curto e pontudo:
– As mulheres são criaturas do sexo feminino.
Vivo, falador, atiçado. Isso, com o bandolim contra o peito. Fora das rodas do
chorinho, descaía, amuava para dentro de si. Então, sério como um sapato.
E não perdia a linha, homem de poucas falas. Difícil alguém desentranhar ou
pilhar, ao acaso, ainda que de passagem, opinião sua. Quem o buscasse, atirando
um lero para colher coisa concreta, sairia de mãos abanando. Tempo e tempo,
ouvia quieto, medidor. Uma ruga na testa e ironia desconfiada, parada nos olhos.
No canto da boca fechada. Prosa não interessando, se aquietava mais. Aquela
conversa fiada o punha abespinhado. Ou calmo? Sei lá. Parecia mais de explodir
por dentro. Avançava e não abria a guarda. Aí, o freguês vacilava, pejado,
tropeçando, perdia a margem de manobra, vacilão. Desencorajado, desguiava.
Papai, nenhuma palavra, plantado, teimosamente. Mas em posição de cobrança.
Que marra! E ninguém lhe aventurava uma liberdade. Firme, atarracado, boca
presa. Nos romances de Torga, mais tarde, e só com os pedreiros de Vasco
Pratolini, eu saberia de gente com igual espessura de munheca. E de caráter
assim.
– As mulheres são criaturas do sexo feminino.
As mulheres encaravam espetos dificultosos. Comiam feijão com arroz
requentado no banho-maria das marmitas levadas de casa. E não se cuidavam.
Operárias, quase todas. Trabalhando brabo, camelavam feito homens na
salamaria, na lataria, nos empacotamentos ou nas expedições dos frigoríficos, na
funilaria ou na litografia das refinarias de óleo. Salário mínimo. E, corridas,
aguentavam fortes, rápidas e se afobando, o serviço de casa. Faziam a marmita,
feijão com arroz, uma carninha ou um ovo, uma verdura, uma mistura, na noite
anterior. Saíam para a fábrica antes do sol. Enfeiavam cedo, prejudicadas,
banhudas e sem cintura. Afobadas e sem ginga. As fecundas, com o tempo e o
casamento, abandonavam o trabalho das fábricas. Desandavam numa gravidez
repetida, a cada ano. Arrastavam aí, barrigas quebradas de tanto parir. Criança no
colo, outra a caminho. O mulherio mais gordo que magro, mais despachado que
elegante. Barulhento, enfezado, raivoso, quando reunido. Nada esguio e todo
aferrado ao trabalho braçal. Faladoras, quiquiriquis, azoavam numa latomia
irritante. Um converseiro, ladainha encruada. Fofocavam ao redor da vizinhança
faladeira e, à boca pequena, trançavam seus leros, muitos, miúdos, picados e
nunca diversos. Renitentes afobações domésticas orbitavam um dia a dia
enfadonho. Queimavam tempo mexericando, pinimbavam intrigas, engordavam
lamúrias, fuxicavam namoricos e fiscalizavam os desregramentos. Enérgicas no
juízo das pessoas que extrapolassem, ainda que pouco, firmavam a ideia imóvel
que faziam sobre gente direita: a honra, quase sempre, se localizava no meio das
pernas. Umas leoas com os filhos e netos. Donas, zelosas, intransigentes. E
viravam-se ferozes, cruéis, amargas na investigação desnecessária e na crítica
carrancuda da vida alheia. Homens tinham os botequins e o futebol de domingo.
Elas, nem isso.
Não lhes dava trela, silencioso e cordato. Por dentro, ia se moendo,
aporrinhado com aquelas misérias. De comum, perspassado, aturava o falatório.
Fazia não ouvir. Raro em raro, estourava. Aí, se entornava de todo e disparava
com um:
– Santa ignorância!
Aí, se escarrapachava, taxava, desoprimia, amassava.
Saía do sério. Nos olhos, na boca, uma ojeriza que o enchia. Um aborrecimento
grosso de quem não suporta mais:
– São todas umas catarinas, pafúncias e hermengardas.
Com elas não se facilitasse, não.
Não havia raiva. Mas um sentimento descoroçoado, sim.
Não sei, sentimento quieto, nojo ou semelhante à aceitação da fatalidade.
Sofria, e bem, enfiado naquele ambiente.
– As mulheres são criaturas do sexo feminino. Provavelmente tencionasse abrir
outras coisas. Por exemplo, nem se bulisse com elas, apesar de.
* * *
PLANTÃO
Mas você me sorri, mulher, e a vida vive.
* * *
IMPRESCINDÍVEL
Era a roda se formar, o assunto dava em futebol ou nelas. Os machos
remoçavam das canseiras da vida e uma alegria nova corria. Descarregavam,
gingavam, expandiam, desataviados. Desoprimiam. Os mais moços
apetrechavam exaltações exageradas, onde o que de melhor se ouvia, o mais,
bandalha. Ou rememoravam criaturas magníficas, fantasiando qualidades
exuberantes, só imaginadas, inatingíveis. Havia pernas, havia rabos e havia
peitarias multiplicando atenção. Pois. Vinham histórias, tensões; paixões sem
vergonha e sem amanhã desembocavam num crescendo. E risadas finais, em
coro. Largadas. À toa, à toa, se exclamava e se ria que ia embora. Os mais
vividos queixavam-se, azucrinados, das fêmeas frias, velhas precoces. Deixavam
entrever calvários. Neles, o amor, horrível, se fazia como uma solidão a dois, na
madrugada, nos quartos de luz apagada. Trepar família, aquilo na zona era
melhor, bem; lá, havia alguma alegria. Policiado, incompleto, apalpando carnes
no escuro, respeitoso como falso, lateral, procurado não encontrado, abrangido
talvez, pleno só pelo gemido e arfar do macho. Pouco mais que masturbação,
esfregação faminta na carne de outro corpo. Também isso, na prosa, triste no
princípio, desandava em galhofa. Uma chacota sinistra. Já a descrição grotesca
dos pormenores desmoralizavam o drama. Então, se deformavam, disparando
para tretas de sogras. Viravam caricatura azeda, feiosa, desengonço. Para uns, a
sogra comia como um tigre. Outros, trocariam a mulher de trinta por duas de
quinze. Papai, ouvindo. Uma humildade sem barulho.
A prosa jogada fora, ao pé de cachaça e de outros copos, gandaiava boca em
boca, percorria dramalhões e caía escorrendo, de ordinário, para casos de
corneação. Daí, de pronta, a zona. E os leros desembestavam. Pintavam, assim,
apelidos grotescos no pedaço, bravatas com a polícia, parolagem, charlas e
fantasias em que entravam alcoviteiras misteriosas, de fama, e cafetinas
descaradas, desapiedadas. Algumas, piranhas afiadas, secretamente arranjavam
meninas novinhas para os mais sabidos ou endinheirados. Nesse tanto,
contavam-se vantagens, arrotavam-se grandezas. Habilidades na cama. E se ia.
O pai ouve. Nada de chegar sua vez de dizer.
Então, um dia, se deu aquilo.
Falaram. Refalaram. Até que algum, do mais afoito, vem que apalpa e lhe toma
o pulso. Vem outro. Mais um atiça. Insistem, rebeliscam, a patota cobra-lhe uma
opinião. Próprio nos jeitos, papai olha o bando. E fala devagar, diz baixo. Larga
para os sacanetas:
– O que dói não é dar dinheiro às putas. É elas nos chamarem de meu bem.
As risadas pararam nas caras. Uns tipos bobeavam, apanhados. Mas a prosa, aí
encabulou.
Ou noutras vezes, chamado a falar, despejava rente, como quem não quisesse
nada. Um machucho que não se importava com o que pudesse pensar.
Entendessem ou não. E, tanto se lhe dava se o tomariam por tímido ou
babaquara. Debulhava mais para ele do que para os outros. Estava limpo.
Alguma coisa íntima, arranhando lá dentro, considerada muito tempo antes de
lhe vir à boca, represada nas noites, remoída, remexida, ida e vinda. Pensada e
tamanha. Uma consideração:
– Mulher é imprescindível.
* * *
RIXA, BIRRA, GANA
Desses ensinos, outro me ficou, bulindo, cedo – um homem que não sabe
brincar vai morto no mundo. E, como não brincava no bandolim, dei para outro
arremedo. Caí para as escritas.
Melhor, pior? Haverei de saber. Sei, é diferente.
Mas musical a todo momento, daquele tempo me permito duas tiradas de
algum efeito, refletindo os ambientes que vi. Diria em tom palavroso. Se a rua é
escola, o botequim é universidade. E na igreja é que ninguém aprende essas
coisas. A segunda tirada é que atocharam todos os boicotes para cima da nossa
música mais rica, o choro. Entra aqui, por cabimento, a tal viagem, embora à
pressa e a serviço, uma empresa pagando, estirada a Nova Orleans. É um gênero
forte, de improvisação mais farta que o jazz. Cordas, percussão, metais, sopro,
diálogo de pinhos, quando o acompanhamento é mais, é contracanto e nova
melodia nascendo improvisada a cada nova interpretação, o choro.
Sobrevive e resiste. Dolente, espevitado, raçudo, sestroso, nobre e fibroso,
sem-vergonha, nervoso como a tiririca. Arrancado do mundo do disco, das
rádios, das gravadoras, expatriado no seu próprio país. Omitido, jogado ao
esquecimento por mãos ditas oficiais, se mete pelos buracos suburbanos mais
encafuados e escondidos. Deixa vir todas as ondas estrangeiras de ocupação
musical, swings, rocks, mambos, souls. Deixá-las correrem frouxas, à vontade e
bem. Tudo é trô-ló-ló. Nuvem passageira, mixurucagem. Que o tempo desgasta,
esvazia e transforma em carne de vaca. De repente, arteiro, ele ressurge. Vem
com tudo, insistente e espalhado, matreiro, desacatando, azucrinando como a
tiririca. Não adiantou o pouco caso, o gelo com que a televisão o destratou. Onde
esteve, por onde andou, esse tempo todo? Amoitado, nas rodas distantes dos
chorões anônimos, enfiou-se pelos longes, nos subúrbios onde o judas perdeu as
botas. Brigou nas derrubadas, como cobra criada. Mestiço, brejeiro, amante,
louco, cabriola arisco e fujão. Desconcertante, ele fica. Vão lá. Façam um mapa
dos subúrbios. Lá está o choro, plantado, se alastrando nas rodas pobres dos
domingos, feriados e dias santos de guarda, quilombado, longe dos patrões. E
dos patrões dos patrões. Levado pela mão dos amadores, machuchos, teimosos e
dissimulados. Tocado e ouvido. O esquecimento que impuseram aos mestres,
intérpretes e compositores, carrega em vez de esfriar e dá forças aos amadores,
sem nome nos jornais, na tevê, nas revistas, nas capas de discos, nessa
merdalhada toda.
Eles têm rixa e gana, birrentos, orgulhosos na humildade e persistem, como se
carregassem sozinhos os trens nas costas. E, como se isso fosse sem quê, sem
pra quê.
É. Mas eles sabem.
* * *
O CORAÇÃO NA MÃO
Dezesseis anos. Meus sapatos levam meia-sola, como no engasga-gato ou de
marmita, arrasto uma vidinha chué. Arrumo namoradas e não tenho o do cinema.
O estudo é à noite; o trabalho, de dia. Ando de ônibus e, muita vez, a pé. À noite,
vou sonado e saído das aulas em que me impõem ciências físicas e naturais,
latim, história da civilização e história do Brasil, inglês, francês, português,
desenho, canto orfeônico, geografia do Brasil e geografia geral, matemática e
uma fricoteira a exigir paciência vasta. Trabalhos manuais. As mocinhas
aguentam instruções sobre economia doméstica. Equilibrem calorias, proteínas,
vitaminas. O colégio noturno esbarra, no entanto, na vida. Todas trabalham. Não
há tempo e o dinheiro é curto. Há sanduíches ou pastéis dos chineses na hora do
almoço. De carne, palmito e queijo. Banhudos, encharcados e saídos do tacho
escuro de óleo de amendoim, fervente, o mais ordinário, usado vezes.
Tempo de saias. De raro em raro, mulher veste calças compridas. Os olhos nas
pernas nuas, compridamente, de quem sem meias vai para o trabalho. Muita vez,
em solidão, sonho com elas na cama de solteiro e me aferro. Masturbação no
meu quarto da Rua dos Botocudos, Vila Anastácio, a casa de duas águas na rua
de terra.
Uma vez e uma só por semana, o recolhimento municipal do lixo. Há fartum
da refinaria de óleo, das fábricas de maisena, das fundições, dos fósforos da Fiat
Lux, do Frigorífico Armour do Brasil, das serrarias, dos esgotos que
desembocam e correm, grossos, pelo Rio Tietê, águas espessas, escuras,
encalacradas de entulhos e arruinadas pelo óleo e pelas imundícies. Correm
lerdas, pesadas. O rio fedido, a que atiram o nome indígena, é o maior esgoto da
cidade.
Nas ruas, monturos proliferam moscas, ratos e insetos ruins. Que saem à noite
com os pernilongos dos seus escondidos. E espetam, azucrinam os ouvidos,
fazem ferver os nervos. Azoam. Algumas calçadas recobertas de massa escura e
pegajosa, que fede, pregando-se aos sapatos e desconfiamos seja borra de sabão
roubada da refinaria.
Vou indo, indo, procurando. Sozinho encontro, depois de pegar e juntar, no
quieto, pedaços de conversa de companheiros na fábrica. Zona da Rua Itaboca e
dos Aimorés, único canto da cidade que não briga comigo e até para beber uma
cerveja envieso para lá.
Não há, sei lá, nada para doer quanto o passado.
O coração na mão. A medo e ressabiado. Sem idade sem condições. Driblando
as farejadas e olhadelas das polícias, de guanacos, de civis, de militares, de
secretas, de cabeças de penico, me enfio pelo bordel, que para mim é mulher e
acaba sendo mais que mulher. A mesa de pano verde, o salão, o barbeiro, o posto
de preventivos, o bar do Burruga, a malandrecagem se mexendo, esguia, magra,
que desliza entre o U que as duas ruas formam, pois se encontram lá no final –
Itaboca e dos Aimorés. Onde a vida é um alegrão e se fica sabendo das
coisinhas, dissimulações, arrepios, trampolinagens, falsetas, armações. E das
façanhas, da boataria na gíria brava e enrustida, do mulherio que pode nos dar ou
tomar neste mundão de vida dividida entre otários e malandros.
Tem a lida da fábrica e da escola, dois sofrimentos. Ônibus na ida e na volta,
lotado, feio, difícil, onde as pessoas não se conversam nem se reconhecem, não
se dão e se empurram, se atropelam, estalando os beiços, beijando o santo,
soltando pragas para cima da vida. Na volta, desço na rua de terra. Com o ônibus
em movimento salto andando, ainda que na curva. Engulo conhaque, Otard
Dupuis, nacional, depois sumido dos botequins.
Onze e meia da noite. Vou ficar ali no bar do Tico até uma da manhã, jogar
sinuca, falar de mulher, campanar coisas, chavecos, ouvir os mais velhos. De
cedo, sacado, aprendi – ouvir os veteranos. Amanhã, tonto, sonado, vou que vou
largado. Tropeço nas ruas infestadas de cachorros mal-lambidos, sem dono ou
despelados, dou com moleques moncosos e de pé no chão. Água poluída se
acumula, se empoça e fede nas beiradas.
E toco a me virar na vida.
Estafeta, ganho salário mínimo de menor na Anderson Clayton, refinaria de
óleo dos americanos, sou chamado de office boy. E obedeço. Aturo chefões
estrangeiros, importantes, americanos e limpos, gordos, mandões, charutos no
bico. Os chefes brasileiros fumam cigarros sem filtro e são aduladores ativos e
rápidos. Acompanham-me os atrasos, falhas grandes e pequenas.
O livro de ponto.
– Quem chegar atrasado assina em vermelho.
O chefe do pessoal, tipo baixote, tem nome espanholado e capa branca,
barrigudo, pendura na cara um bigode de centopeia. Uma lesma, a lesma. E os
desenhistas, única gente do escritório com quem me dou, engendra uma justiça.
Eficiente, é. Terá, por isso, obrigação de cuidar do gramado. Toda graminha
que nascer com atraso será pintada de vermelho.
Essa entabulação fantástica vira boato, corre boca em boca, chega ao pé do
ouvido do gerente que se põe fulo, soca a mesa, quer a cabeça do insolente.
Manda caçar e não apura o autor. Escondido, a gente ri.
Uns lambões de caçarola, diz o avô, Virgínio, vigia do Frigorífico Armour do
Brasil, há vinte e tantos anos no batente.
Poucos conhecem este chão, estes cimentados e paralelepípedos das alamedas
internas. Eu viro e mexo. Conheço-os melhor que o gerente geral. Sei-lhes o
cheiro. Do escritório à funilaria, do tratamento de oxigênio à litografia-
transporte, esta fábrica eu ando e ando e ando, quilômetros e magro, capa branca
irrepreensível, asseado e cordato, quatro iniciais pretas no bolso externo de
funcionário do escritório.
Convivo, me entendo, charlo com tudo quanto é pintor, funileiro, homem da
sacaria e do transporte, pedreiro, almoxarife, guarda, apontador, ajudante,
operário sem nenhuma qualificação, maioria salário-mínimo, fresador, mecânico,
motorista, caldeireiro e quando venho lá longe, muito papel dentro da pasta-
sanfona, o pessoal se vira e me conhece o nome. Operário não é funcionário do
escritório e, logo, me chama pelo prenome. Os do escritório pegaram manias
com os gringos mandões. Uma é tratar pelo sobrenome.
Lambança. Tipos insuportáveis, limpinhos, óculos, escanhoados e solertes, no
escritório me aborrecem. Para mim, uns ensebados. Mexem-se aos passinhos
sovinas, que morrinhas até para andar fazem pose de chefe, me dão gana. Capas
brancas. Não estão nessa camorra os desenhistas, faladores, gravatas
desabotoadas, cantando e assobiando em expediente, alegres, loucos, largados.
Armam. Uns arreliados, aprontam gozações. Queimam horas, com paciência,
engendrando sacanagem. Gozam os outros, a parentada dos outros. Depois,
metem no fogo a própria família, sapecam a mãe. Por último, cansados, gozam a
si mesmos. Por isso, eu lhes tenho amizade.
* * *
DÁDIVA
Você, mulher, nem sabe a poesia que tem.
Eu a trabalhei nos escuros da estação de Domingos de Moraes, a bolina foi de
encontro a uma árvore que a iluminação cobria mal. Grudados, atracados,
esfregando-se e resfolegando, uma lua no céu. Branqueava cá embaixo. Crioula,
polpuda, lastreada de corpo e bem, eu a arrastei para o meu quarto, na marca das
duas da manhã. Ou isso. De pé, eu ficava menor que ela. Mas a cama estreita, de
solteiro, nos igualou o tamanho. Aquilo havia de ser sem gemido para ninguém
notar no sono do meio da noite. Se um cão latia lá fora, a gente sentia medo.
Parávamos, olhos arregalados.
Depois, nos engalfinhávamos mais. Eu a abria por completo, inteiriça e flor,
mulher. Eu a entrava sob a pressão das espáduas e dos joelhos, a cavalgava o que
sabia, e tudo, e tinhoso num controle, boca, respiro, pensamento manhoso,
consegui. Juntos, no gozo.
Senti mergulhar de cabeça para o centro da terra. Houve, quase urrado, um “me
rasga” e, depois, já brando, o arfar profundo como um agradecimento, no
ouvido, mansamente, que vinha com um beijo no meu pescoço.
– Filho da puta!
Que me correu o corpo todo, prêmio, dádiva, o maior elogio já ouvido nesta
vida.
Íamos dormindo, um dentro do outro. Mas a sacudi:
– Mora, amanhã é dia.
Ninguém acordasse. A mulher se mandou, escapulindo na madrugada, lua lá no
alto. Na pressa, deixa cair o pó Lady – ninguém pronuncia lêide, diz ladi – e o
assoalho embranquece em extensão. O resto da noite, o espanador na mão,
tentando vassourar aquilo. Um pensamento não me veio. Disfarçando o pó,
ficaria o perfume.
Na manhã, o pai notou. Mas saiu para o bar, nenhuma fala. Um silêncio de
bofetada.
Bem. O pai tem um bar na Rua Conselheiro Ribas, deu-me categoria de adulto
aos treze anos, botou-me a chave da casa na mão. Aos meus quinze, deu para me
ensinar a dirigir o jipe. Abespinhado e orientando aos trambolhões, esquentava-
me a cabeça. Um esporro que assustava. Eu só sabia fumar escondido, jogar
sinuca (ele dizia bilhar), beber, aprontar, craniar o que não devia. E nota baixa no
boletim. Mordendo beiço, meu pai ao lado, ia aporrinhado no volante.
Desgovernei o jipe num muro de Vila dos Remédios.
* * *
GENTE DO ERRO
Dona Nair. Arremedo o meu avô e a chamo de Dona Nair. Tem olhos azuis,
cabelos crespos aloirados, é feminina até para subir um degrau ou pedir um copo
de água. Esconde os meus deslizes, presepadas e armações. Esconde mais que a
noite. É avó.
Ela vive sem guerra. Mas, mulher, quando em quando está atacada. Acorda já
aprontando uma briga com o primeiro que vê. Aí, crise. Até o neto não lhe
escapa da língua. Solta-lhe os burros, expande, dá espetáculo. Uma cobra
jararaca, diz meu avô, numa risada escarrapachada, que vai que vai embora num
deboche.
Aliviada, volta a compor uns olhos azuis, as rugas da testa se acalmam. Daqui
a pouco está rindo, entretida e sarará. É dona Nair, a que ri e cantarola, feminina
até para tomar um copo de água.
Sou um sonso, dos malhados. Nem a ela engano – dos que perdem o pelo, mas
o vício não perdem. Vigia-me os lances e me pega de quina. Geniosa, os nervos
fervem de novo, a veia do pescoço incha, azul, perigosa. Derrapo repetidamente,
e ela, me flagra; dobra as mãos na cintura e lacra:
– Malandrando os seus dias. Você só vive com essa gente do erro. Sujeitinho.
Passo, escabriado, a pedalar na magrela, amorosamente; é a bicicleta Caloi,
meia corrida, companheira. Pequena, princesa, magrela. E vou mais atiçado,
alegre como um moleque. Atravesso, de enfiada, capeta, trim-trim, São Paulo
todinho, pego rabeira nos bondes que saem da Lapa para o centro da cidade,
trim-trim, uma volada chispando nas manhãs de domingo, varando Vila
Anastácio, Lapa, Água Branca, Perdizes, Santa Cecília, Centro. Pego a Avenida
Nove de Julho, o Paraíso, flecho até Moema. De um lado a outro da cidade
pedalando a minha magrela, chispa, trim-trim, firme envergo o lombo do selim
para o cano, ganho, são duas horas voadas no selim, a redação do jornalzinho
infantojuvenil, num quartinho de fundos de uma casa em Moema, na Avenida
Juriti, onde começo a escrever. Ou antes, a exortar, em patriotadas, a elevação
das honras de heróis no fragor de batalhas que nem entendo. Mas imagino.
– Malandrando os seus dias.
Disso caí para as escritas. Destrambelhei-me no gosto pelas palavras e que me
lembre, havia uma, lá longe, nos tempos em que lia gibi, minha primeira criação:
mononstro.
Numa historiada de Mandrake ou Brucutu havia um monstro de tal modo
horripilante, que nem era monstro só. Era mononstro e nem houve sabedoria que
emagrecesse ou esfriasse a minha nova palavra.
O redator-chefe da revistinha, gaúcho de São Sepé e me premiava as
colaborações com livros, sem dúvida, de qualidades magníficas. Eu podia
imaginar uma porção de coisas boas ou pressentidas como A vida do escravo
tartamudo Esopo sua inteligência e picardia, a inclinação para a justiça e a luta
pela liberdade. Minha comoção o acompanhou, fabulista, escravo, trácio ou
frígio, até que o jogavam num abismo.
Anda que até aqui pouco falei em sinuca. O joguinho, o joguinho ladrão.
Espiando maroteiras no bar do Tico, bebendo misturas, ouvindo casos, um dia.
Um é o primeiro. Nos fundos, havia duas mesas de sinuca e depois, em noite
alta, a conversa continuava lá. Uma vez, catei o taco. Sem acreditar que viciasse.
Nisso de pano verde, mesa, bigorna, salão, boca do inferno, costumo dizer que
a natureza, dadivosa, me deu esta cara de otário. Ou antes, de homem do povo.
Habilidade pouca, mas jogueiro, beliscado nos ambientes do joguinho, olheiro e
apostador. Que até para uma cerveja, eu procurava o salão.
* * *
MAIS ENSINO
Meu pai tem a frase seca, que mal e mal vou ao fundo:
– A idade faz velhos, não faz sábios.
* * *
SETE MUNGANGAS
Que idade é a minha, metido de cabeça nas bocas do inferno? Parece-me que
tenha uma das mais puras bossas para a malandragem, entre as muitas que vi.
Mas nunca vi ninguém com tanta vocação de otário.
Logo, minha vida é um trapézio. Mas a minha responsabilidade é grande – eu
não tenho rede que amenize as quedas.
Já a crioula que carreei para dentro do meu quarto era de polpa. E dessas
trampolinagens me encheram os gringos bêbados, vermelhões ou branquelos, do
subúrbio de Vila Anastácio. Os emigrados húngaros que a gente dizia
hungareses, os poloneses (polacos), os lituanos, os russos, os portugueses que
xingávamos burrugas e um que outro espanhol, espanhóis ferro-velho. Tudo
gente de sonho caído, chegada aqui com fantasias na cabeça, mas uma mão na
frente e outra atrás. E aqui batida pela vida, amassando o barro e comendo o pó
das ruas da vila.
Peguei o vício na zona. Ali entendo, pouco rodeio, jogo se aprende perdendo
dinheiro, tempo, sola de sapato em volta da mesa, sono. O mais é fricote, leite de
pato, passatempo, embromação de gente família e desocupada, distração. Mais
se apanha de um malandreco, mais se pega os efeitos, as tabelas, as
combinações, a visão da mesa. Se se perde – se perde no perde e ganha – já se
aprende a bater. Nenhum ensino baixa e se fixa por sorte. Sabe das coisinhas da
façanha quem joga o dinheiro da comida. O resto é embeleco. O bom taco, antes
disso, já é um olheiro de jogo. Necessário pendurar o chapéu onde a mão
alcance. Só a fome ensina.
Uma casa quase trepada na outra. Ali pelas beiradas dos trilhos dos trens da
Sorocabana, o casario apequenado e imundo, um e outro barracão de madeira no
meio da alvenaria. Um grupo escolar, nenhum posto médico, pouco telefone,
vendolas, quitandas pingadas, alguma padaria, uma igreja de padre húngaro e
muito desejo, amores atravessados, rompantes de macheza, molecadinha
tremelicando friorenta e miúda de pés no chão, murro semana brava nas fábricas.
Maisena, fósforos, frigoríficos, fundições da Sofunge, serrarias, Anderson
Clayton. Muito botequim. A vila, de pobre e de tristeza, nem campinho de
futebol tem.
E bebemos à noite nas bibocas, porres aos domingos, feriados e dias santos de
guarda. À noite, de comum, entornamos, jogamos sinuca, falamos de futebol,
mulher, ou tocamos para o cinema, na Lapa, que Vila Anastácio também cinema
não tem. Os certinhos vão aos namoros. Os apertados pelos pais, à escola
noturna.
Dei-me com a cambada, recordista na categoria consumidora de cachaça nos
subúrbios paulistas. Deu no jornal. Não deu que, no inverno a umidade nos
entrava nos ossos e nos doía. Gente abandonada, sem eira nem beira, e deixada
pra lá, morria de frio nas ruas, amanhecendo dura. Manhãs de domingo, antes da
missa do padre húngaro, a praça parece um fim de guerra – bêbados derreados,
batidos e somando feito pedras nas portas dos botecos. Gente feia e largada no
chão; operários de vida suada, na semana.
Meu avô, da pele azeitonada, mulato dobrado do Rio e Virgínio, filho de
baianos, é cismado como um mameluco, é difícil de rir; não compra fiado meio
quilo de cebola ou uma cabeça de alho, não põe uma gota de álcool na boca e
não se dá com aquele frege e com aquela devastação. Antes, me diz:
– A bebida dá de sete maneiras, fora as mungangas.
A gente se adora. E ele, querendo agradar, me chama de batuta. Aquilo, sim,
era açúcar. Mas, aluado, agito e arrepio; eu ouço os seus bons conselhos?
Nada. Gosto da rua.
* * *
CADELO
Mais tarde, eu leria nos romances, nos contos e no teatro de Gorki que
bebíamos por desespero.
De primeiro, a estrangeirada tatamba no falar, zoneando nos botecos, tomando
empurrões de bebidas e queimando o pé no fecha-nunca e no toda hora,
moquinfos e bocas que abriam as portas e dificilmente as fechavam: me passou
palavrões em húngaro. Curioso e sacado, aprendi e fui bamba.
Palavrada infamante, misturando sexo de cavalo e porco, tudo para cima da
mãe de quem ouvisse. Derrubavam cachaça, traçados, batidas, misturações,
farmácias, caipirinhas, sambas em berlim, conhaque e borótskó pólinkó. Magiar,
a aguardente de pêssego, açucarada, me deu porres consideráveis.
Por último, me atiçavam para as mulheres:
– Isso aí é só para sujar a cueca?
A cortada rente:
– Nada. Vou dar pra tua mãe.
Uma noite, na sinuca, única do lugar, bar do Tico, fechei o salão. Vindo da
escola, pulado do ônibus, calibrei bebida no balcão, encostei o umbigo na roda
do vinte e um.
As coloridas passeando na mesa. A lâmpada caía no centro do pano verde, as
bolas ecoavam, não se ouvia um nada de lá fora. O Juizado de Menores baixou,
arrepiando, me querendo os documentos e eu tinha só Alistamento Militar. Não
carrego Carteira de Trabalho. Pegaram-me com as duas mãos no taco. Os
homens bem vestidos, investigadores, ternos brilhantes, asseio, brilhantina nos
cabelos, mãos manicuradas, sapatos polidos. Fui dizendo que trabalhava na
refinaria de óleo. Mandaram-me andar. E me correram:
– Você que volte aqui e a gente te esfria.
Levei nome de cadelo. Mas na manhã, minha coragem vira boato na boca das
turmas. Sou comentado e engrandecido – vou limpo; não me borrei, medroso, à
chegada da polícia. Homem. Mas quem pagou foi o dono do bar. Os homens da
justa lhe recolheram as bolas, trancaram as mesas, cataram o alvará, meteram-lhe
multa de seiscentos cruzeiros.
O diz que diz bandeou tudo para o pé das orelhas do velho.
Os dois na mesa. Fechou o punho, crispou a cara quadrada, puxou um suspiro
de boca fechada. Devia sofrer, devia andar cansado – e bem. Minhas derrapagens
desandavam em repetição. Todo santo dia, pintando má notícia.
– Você tem todos os vícios que eu conheço e até os que eu não conheço.
Falou baixo e era como se urrasse. Pesava um azedume. Havia uma barreira,
sei lá, uma diferença me arranhava o peito e me tangia. Por que eu agredia e
agredia, sonso ou de cara, aquele homem? Um nada deste mundo e estávamos
enfarruscados.
Estamos bem sós, eu percebo. Um estrago. Ele, vindo de mau negócio,
rebordosa com uns sócios que o roubavam. Soprava um vento contrário naquela
vida.
Sós, na mesa. E atirei:
– Ora, eu não sou tão genial assim.
Não se buliu, não me chapoletou a cara. Recolheu a hostilidade, a testa
enrugou-se e os olhos pequenos brilharam, antes de baixarem. Pendeu a cabeça
para o prato e comeu até o último. Eu também sofria com aquilo e não podia
dizer que me sentisse satisfeito. Mas arrostá-lo, encará-lo, me dava força. Aí,
deu-me o golpe e me entravou:
– Eu já lhe dei categoria de adulto.
Mais brasileiro que eu. Que vinte fedelhos da minha marca. Ganhou, em
menino, o gosto pelos chorinhos e pelas serestas e no caminho de seus anos
todos, com sacrifício, fiel ao bandolim, ao cavaquinho, ao violão, às rodas dos
chorões suburbanos. Se a seleção jogava contra Portugal, torcia, abespinhado e
incandescente, pelo Brasil. Portugal ganhava, ele emburrava; se puxavam
conversa, brigava. Na casa dos quarenta, ia gramando ruço na vida, ele e mamãe.
O transmontano aqui chegado, uma mão na frente e outra atrás, aos trinta e
poucos dias de idade, nascido em águas portuguesas de Macedo de Cavalheiros,
trabalhador das padarias, empurrando vagonetas nos aterros e nos portos de areia
do Tietê, operário de frigorífico, depois com economias estabelecido em negócio
miúdo de secos e molhados.
Pula de uma mercearia nos cafundós de Vila Jaguara, chega a sócio de uma
pedreira em Pirituba, tem setenta homens trabalhando e dois sócios safados.
Provavelmente sonhasse, emigrante, com exportação e negócios internacionais,
raspando de perto a riqueza. Inda agora não entendo onde foi buscar cabeça fria
que não enfiou uma bala nos dois.
Estava rodado. Cavou de novo, corpo a corpo com a vida, com os dedos, com
as unhas, minha mãe ao lado depois da porrada. Catando e catando e catando
algum equilíbrio com um botequim na Rua Conselheiro Ribas, chamado por
ironia Gambrinus no meio das misérias de Vila Anastácio. Onde só havia sapos e
tartarugas, conforme a humilhavam os moradores da Lapa, folgados e limpinhos,
lambuzados das importâncias. O pai pelejava e se batia, os nervos estalavam.
Mamãe sofria e ia pra luta, se botava ao lado dele, dentro do balcão. Ali,
mexendo-se como formiguinhas insistentes, aturando bêbados, gringos e ralados
pelos credores, os dois começavam a envelhecer.
Eu entendia, e não, essas dores, que pensava nas minhas.
Vamos dizer. Entendia que, nos filmes, uma mulher rica e burguesa, com as
comodidades aos pés, chorasse. Tédio, nojo ou escárnio. Entendia. Só não me
cabia no juízo que mamãe, cozinhando, se fanando sem empregadas na lida da
casa, ajudando no bar e lavando roupa no tanque – depois daquela pilha viria
outra pilha e outra – encontrasse jeito de, às vezes, baixinho e desafinado,
cantarolar.
* * *
PAULO MELADO DO CHAPÉU MANGUEIRA SERRALHA
De comum, as coisas minhas atropelavam-se, precipitavam-se com mulher no
epicentro.
Soldado, um fiasco. Lá no Paraíso, outro canto da cidade, dois ônibus todos os
dias, um dinheirão só de passagem. Minha mãe tenta me resguardar e, no quieto,
me atravessa uns trocados. O soldado número 178 da terceira companhia de
infantaria toma cadeia, toma pernoite, dá alterações, repete por castigo cangurus
e exercícios físicos puxados, tropica na ordem unida, é julgado incapaz na
ginástica de cordas. Possivelmente nunca se viu tamanha falta de jeito nem
relapsia renitente para as artes militares.
Um dia, o capitão-comandante gritou na tarde, como se fosse para todo o
Paraíso ouvir:
– Esse recruta é encruado e parece que vai ser paisano o tempo todo!
Fui.
Deixo a farda, debando daqueles lados do Paraíso, volto mais sério e magro
para o serviço na refinaria. Com o certificado de reservista e um pouco de
datilografia, arrumo emprego no Frigorífico Armour do Brasil, lado de lá das
margens do Tietê, onde passo a tipar cheques e relatórios no departamento de
compras. Ainda salário-mínimo. Dou para o judô nos fins de semana e me sobra
tempo. Enfio-me com livros e me meto em escola normal noturna, já que não
tenho vocação para nada.
Aí, levo uma sorte. Lendo as revistas cariocas, me pego de curiosidade por um
homem que, entrevistado, desconhece o número do sapato, do colarinho, dos
ternos que tem ou não. Adora cachorros, escreve e reescreve algumas vezes um
texto, teima em cima do papel, fuma muito e Selma, toma cadeias sérias, se diz
ateu. Graciliano Ramos.
Apanhei, seco e fascinante, primeiro o Caetés; depois Vidas Secas, na
biblioteca circulante da Lapa. Difícil falar desse mergulho. Estava mordido. Um
pensamento me ficou cortando, líquido, certo, irrecorrível. Quase fatídico. Eu
iria envelhecer, azedamente, como um escriturário da Armour, gravata, camisa
social branca, passos miúdos e pesadão, pouco empertigado, alguma mulher
doméstica. E uns filhos medíocres, metidos no colégio da Lapa.
O tamanho do homem era outro, acordava-me consciências, revolvia. Uma
curiosidade me bulia, a mim, que fazia tudo pela conta de achar e, sozinho, cacei
a zona. Por Graciliano, que me intrigava – onde e com quem aquele teria
aprendido escrever com aquela garra e sentido? – desemboquei nos clássicos,
nos portugueses, e convivi com a chamada literatura de homem – Gorki, Jack
London, Hemingway, Steinbeck, Zola.
Um amor pela poesia começa. E eu me viajo, alta noite, dizendo trechos em
voz alta, no quartinho descascado da casa de duas águas, na rua de terra, Rua dos
Botocudos.
Amassava o barro de Vila Anastácio e lia os clássicos. Comia o pó das ruas de
terra preta e me tranquejava com Eça, Fialho. Ramalho Ortigão. E me atraíam
mais, os padres. Vieira, Bernardes. Gente fundamentada.
Ô texto de fundação, argamassa, firme, firme, farta amarração, frase batendo
com malícia, mostrando e escondendo, driblando, batendo, rebatendo, técnica,
rebanho, som e eco, contingente de harmonia, arquitetura, economia, picardia,
calmaria e falseio, plenos valimentos, desenho, música de cravo e viola, ir e vir
com exatidão, contexto e voo de pássaro que nunca vi – cotovia. Propriedade.
Não tendo com quem falar sobre o que lia. Não tendo uma escola que me
interessasse. Acabei na Liberdade, vi as mulheres, a pintura, judô, sakê, gravura,
fotografia, música. Nessa coisa de música me apeguei, viciado. Húngaros do
Pentecostes Rubro e das Três Melancias, em Vila Anastácio; o sopro e as cordas
dramáticas do Japão, na Liberdade; ou fosse o que fosse música – árabes,
espanhóis, caipiras, judeus, negros, russos. Eu me tocava mordido, impregnado.
Só exigia talento, que aprendi a ouvir em rodas de chorões. Nada desafinasse.
Nasceu-me, rasgando, o amor por Noel, Araci, Ciro, Ismael. E nem havia ouvido
falar ainda em Cartola, Nélson Cavaquinho, Carlos Cachaça.
Assim tocado pela Liberdade, digo que percorri milimetricamente aqueles
lados, paralelepípedos e asfalto. Vista de dentro, aninhava gente e tive uma dona.
Que jogava dois olhos rasgados, bons e maus, e era mulher do amigo. Horrível,
fundo e dolorido, aquilo foi comer-me a mim mesmo. Esparramada, secreta,
inteiriça, ela era a vida, sim. Doía e linda.
Prestou, não prestou? Não é mais hora de saber.
Deu um conto, como algumas mulheres dão samba.
Deu. Mas lhes explico também que me deu isso como algumas mulheres dão
sanatório, dão cancro ou instituto médico legal. Doeu.
Num jornal de São Paulo, já havia levantado um concurso, com um monólogo
interior insuficiente a que meti o nome de “Um Preso”. Agrippino Grieco
preferiu esconder que nos começos foi poeta. Digo que defequei aquilo, a que
chamei conto. Já o da japonesa, o primeiro, escrevi numa tarde de chuva,
chorando e bem, numa escrivaninha de jacarandá, na Rua dos Botocudos,
debaixo do fartum de Vila Anastácio. Claro, chorando.
Um dia, vinte anos depois, o conto ainda ficava de pé, frequentando antologias.
Mas esta confissão se prestaria à fofocagem e bisbilhotice letradas, esbarraria
nos requintes da crítica da moda, seria tida como um pecadilho. O fazer literário
não inclui as lágrimas de um frangote suburbano em tarde chuvosa.
Hoje, diz aí alguém, crítico, que escrevo como um naturalista, um neo-não-
sei-o-quê. Outro, diz que escrevo como quem mija.
Respondo, se respondo, que quem sabe de minha vida sou eu. Sei ainda quem
paga as minhas despesas. Escrever me ralava e eu devia publicar aquilo. Reviro
revistas, jornais, suplementos que leio, em solidão. O da japonesa empaca nas
redações, não se engrena, nem se encaixa. Os editores ou as pessoas a quem me
apresentam como, botam cara de guru, séria, nariz torcido. A peça entala.
Corria um tempo em que escrevia a mão e dizia o texto em voz alta. Depois, só
depois, bem mais tarde é que passava à máquina, na limpeza e na pureza. Não
me entrava na cabeça alguém escrever diretamente. Se aquilo era me curtir e
recurtir, sofrendo e sugando como quem extrai a vida. Lambendo e brincando,
uma a uma das palavras, atento, embalado, amante – do jeito, do sestro, do
desenho, sonoridade, sensualidade, doçura, porrada, murro, cipoada e suor
particular de cada uma das palavras. Uma, duas e cem vezes eu dizia, no quarto,
voz alta. Diretamente à máquina. Onde já se viu?
Serelepada, fervura, alvoroço, tropel, catança. Recatança. Depois da nissei, o
amor e não o conto, destrambelhei por uma febre, de teatro e de cinema, de
bordéis e de moquinfos, de madrugadas e armações, me enfiando e saindo de
empregos, amanhecendo, taco de sinuca na mão, nos cantões da Boca do Lixo,
arrumando chavecos e me enxodozando por lá, jogando, amando, bebendo e
levando na cabeça. De enfiada, danando a botar pra fora os vinte anos, mulherio
e esbórnia, solidão, alegrões e falências secretas. Vivi.
Há um peregrinar à noite, sem rumo certo pelos últimos subúrbios, muita vez
se acaba no cais de Santos, vejo morrer as tardes no Morro de Presidente Altino,
o Morro da Geada falado, onde o Jaraguá, monte à direita, é uma mancha meio
preta, meio azul, e vejo o nascimento da primeira estrela na tarde, faço
madrugada, vacilo e viajo nos trens da Sorocabana e uma vez chego ao interior,
arrumo uma dona num bordel chamado Terra Vermelha, ao lado de um
aeroclube, varo as noites no jogo ou andarilhando, enquanto ela faz a vida,
levanta a nota na zona brava empoeirada, se deita com matutos de botas
enlameadas ou poentas, para na minha volta, o dia já vem nascendo, dividir, dar

“As abelhas trabalhando no abelheiro fazem zum-zum
Quando pego no baralho faço sempre vinte-e-um.
Quem me vê aqui cantando pensará que não trabalho
Tenho os dedos calejados da viola e do baralho
Ai, ai...”
tenho roupas, tarecos, bagulhos, serventias em várias casas, faço um amigo
veterinário e o sigo a vacinar cães pelos subúrbios e morros, vejo morrer um
galo comido por varejeiras, entalado numa pilha de lenha, orbito quilômetros ou
léguas, fujo para o Rio algumas vezes, dou para a dança, brilho alguma coisa e
tenho mulher num taxi-dancing, olho a vida da favela da Cachoeirinha na casa
de um tio-avô, Otacílio, a cabeça branquinha e, ali, desando a acreditar no modo
novo de cantar e viver das favelas, que é onde mais se canta no Rio, circulo
como se procurasse uma claridade, aprendo a apanhar dinheiro da mão de
mulher e, claro, vou ensinado por elas, há um sentido de infâmia, ternura ou
horror vendo os trabalhadores do cais e a tarde morrer nos navios e no mar da
sacada de um armazém nas docas. É como se dedicasse a vida a encontrar a tal
claridade.
Minha mãe, chorosa, dá um nome a isso. Andaço.
Um capítulo, o teatro que estudei no Arena, me enfiando numa barra querida,
onde era mestre Kusnet e muitos outros pontificavam ou começavam a existir.
Outro, o cinema da cinemateca do Ibirapuera e os ciclos sueco, indiano, polonês,
russo, italiano.
Mais que esbórnia, mixórdia enlouquecida. Chave de bordel da Rua Aurora
num bolso, programa de teatro no outro. Uma nota de cem não sabia onde botar
– num páreo de Cidade Jardim, num livro que valesse ou entre as pernas de uma
mulata.
Na vida e no vidão me fisgavam os contos. Aquilo me parecia ter nascido em
mim muito antes de que percebesse, antes do meu nascimento. Um sentimento
quente, aqui do fundo, me empurrava para ele. E tudo era ele, visceralmente. O
conto. Gentes, filmes, ruas, caras, sapatos, corpos, esgares, cacoetes, franjas
femininas, a linha do trem, pernas nuas, a linha da cara do meu pai, o apito do
navio no cais de Santos, o gosto do conhaque, o retinir das xícaras do café do
Jeca cachimbando lá em cima na Avenida São João com Ipiranga, as cores das
bolas na sinuca, o eco seco das bolas se encontrando, a cor, a dança, a sombra
das bolas no pano verde, em harmonia tudo estalando, o samba que mata o sono
e mata a fome, o bonde Anastácio varando na noite, depois da madrugada varada
nos dancings da Avenida Rio Branco e da Ipiranga – onde tive uma mulher ou
ela me teve? – o frio das madrugadas, o trem cantando nos trilhos, o amor me
pegou na Liberdade, tudo por dentro de mim e me tomando e comendo. O conto.
Com a história da japonesa não ganhei um concurso permanente no Rio, de
que eram julgadores gente de nomeada. Tinha clima, ritmo e tensão e até
verdade, só não o bom comportamento exigido, mais fechado que saudável, por
uma publicação marcadamente familiar.
Espeto. Até nos é permitido cometer um adultério, no mundo. Inviável é
confessá-lo. Aprendi.
Mas foi com aquela peça que, sem tirar nem pôr, anos depois, já no Rio,
chamei a atenção dos homens e um deles, Marques Rebelo, fez nascer a
expressão clássico velhaco e que hoje anda aí, em meu nome, pelos jornais, pelas
revistas e até pela televisão.
Esbornear, escrever, continuar. Um dia, mandei com pseudônimo maroto e
lírico carta ao Rio pedindo publicação de meus contos. E segui, tocando a vida.
Que não há nada para ser tão tocada quanto a vida, e se você está fora dos
ambientes como é que vai ver a festa do mundo?
Era um sábado, era um sol, era um dia 28 de setembro. E, claro, eu bebera na
sexta-feira da semana inglesa. Ressaca na boca e nas pernas. Os olhos miúdos e
inchados, a cara enorme. Provavelmente precisaria de óculos escuros para
enfrentar a luz da rua.
Esponjei-me na soleira do quarto. Naquele momento, o carro de quatro portas,
americano e cinza do romancista freava na porta do bar. Desciam quatro homens,
paletós e gravatas. Eles se chegavam para o balcão. A carta do Rio indicava o
endereço do bar. Um deles falou o pseudônimo mais sestroso que já usei até hoje
– Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha.
– É aqui que mora o senhor...?
Meu pai baixou a cabeça. Atarracado, triste, português, envergonhado:
– Sim. Os senhores são da polícia?
* * *
NENHUMA VIRTUDE, NENHUMA: BAGDÁ
Que já não sou garoto, se sabe. Nem flor cheirosa, inda mais que metido a
pensar com a minha cabeça. Assim, estas rugas da cara não me chegaram de
graça.
Tenho tido vícios, vários e diversos. E os que perdi – fui eu quem saiu
perdendo – perdi por medo e calhordice. Nunca por virtude. Estes anos a fio,
tenho sido um viciado nas palavras. Catei e catei, e me prometi que um dia
acharia palavra ou expressão que contivésse e nomeasse, sem falseio, o meu
tempo de rapaz. Correram temporadas, andei, tive subidas e descidas. Mais
descidas, é claro, que, afinal, não sou um vitorioso e, se fosse, não haveria
motivo de estar aqui contando, com franqueza, pedaço nenhum de minha pessoa.
Eu teria mais o que fazer.
O ganhador ganha; não ensina o caminho.
Bem. E nada da palavra me chegar.
Um dia, uma tarde, uma noite, uma madrugada e uma manhã eu vivi –
escrotas, sublimes e derramadas – na Nairlândia, uma cidade só de marafonas, a
maior zona do Brasil, no caminho para Apucarana, Norte do Paraná, e pilhei
uma expressão querendo significar e valer assim: estar muito doido, à vontade;
botar pra quebrar, deixar cair.
Nada na vida tem me chegado por acaso.
A expressão era e valia: Pra lá de Bagdá.
Biografia
Nasceu em São Paulo, a 27 de janeiro de 1937, João Antônio Ferreira Filho,
descendente de uma família de trabalhadores. O pai, imigrante português, lutou
muito, ao longo da vida, para poder tornar-se proprietário de um pequeno
negócio de secos e molhados; mas, traído por seus sócios, acabou tudo perdendo,
devendo, já avançado em idade, recomeçar sua luta. A mãe, por seu lado, era
mestiça, e sempre ao lado do marido enfrentou com ele o desafio da
sobrevivência. A influência do pai sobre João Antônio foi extremamente
importante, ainda que, durante a adolescência, as descobertas da boemia por
parte do escritor, tenham-no colocado em oposição ao pai, situação que só seria
ultrapassada quando do atingimento da idade adulta. De qualquer maneira, João
Antônio creditou ao pai, antes de tudo, a influência musical, pois graças a ele
pôde conviver com os principais chorões paulistanos. Apesar da oposição da
mãe, que temia ser a música apenas uma desculpa para a boemia, João Antônio
acabou, adolescente de 16 anos, buscando libertar-se do controle familiar, por
descobrir a boemia, sendo para tanto facilitado pela moradia em bairros
eminentemente populares, como o assim batizado (pelo pai) Beco da Onça, que
aparece em seu “Lambões de caçarola”. Outra influência importante do pai foi
sua sensibilidade, por exemplo, para com flores como a orquídea, que conhecia,
cultivava e distinguia, nomeando por seus nomes científicos, o que viria a fazer
do filho um cuidadoso colecionador de tipos humanos populares, aqueles que
habitam em seus contos.
Trabalhando sucessivamente de office boy e balconista, João Antônio dividiu
seu tempo entre os estudos, que realizava à noite, e a frequência na sinuca.
Conviveu com malandros, que homenageou em seu primeiro livro. Escreveu
textos para um jornalzinho infantil, O Crisol, e sobretudo leu muito, descobrindo
desde cedo escritores clássicos, dentre os quais Graciliano Ramos, de quem
reconhece explicitamente influência pela preocupação com um estilo.
Seus primeiros trabalhos premiados ocorrem a partir de 1958. Chegou a
compor um livro em 1959, mas um incêndio destrói-lhe a casa e igualmente
acaba com seu trabalho. Graças ao auxílio de Mário da Silva Britto, e contando
com boa memória, recompõe o livro, em uma cabina da Biblioteca Mário de
Andrade, lançando-o em 1963. Malagueta, Perus e Bacanaço recebe o Prêmio
Fábio Prado daquele mesmo ano, mas João Antônio, apesar da boa crítica, ainda
não alcança reconhecimento maior, o que ocorrerá apenas a partir de 1975, com
a segunda edição daquele mesmo trabalho, seguido de um segundo texto, Leão
de chácara.
Nestes doze anos que permeiam sua vida, estudou jornalismo e integrou a
equipe da revista Realidade, seguindo sua mudança para o Rio de Janeiro, onde
atuou, sucessivamente, no Jornal do Brasil, O Globo e Diário de Notícias. É de
sua autoria a expressão “imprensa nanica”, referindo-se aos jornais alternativos
que se sucedem no difícil período da ditadura Médici.
José Antônio faleceu em 31 de outubro de 1996.
Bibliografia
Malagueta, Perus e Bacanaço. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.
Leão de chácara. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
Malhação do Judas carioca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
Casa de loucos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
Lambões de caçarola. Porto Alegre: L&PM, 1977.
Ô Copacabana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
Noel Rosa. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
Dedo-duro. Rio de Janeiro: Record, 1982.
Meninão do caixote. Rio de Janeiro: Record, 1983.
Abraçado ao meu rancor. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
Zicartola e que tudo mais vá pro inferno!. São Paulo: Scipione, 1991.
Guardador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.
Um herói sem paradeiro: vidão e agitos de Jacarandá, poeta do momento. São
Paulo: Atual, 1993.
Patuleia: gentes de rua. São Paulo: Ática, 1996.
Sete vezes rua. São Paulo: Scipione, 1996.
Dama do encantado. São Paulo: Nova Alexandria, 1996.
© João Antônio Ferreira Filho, 1986
3ª edição, Global Editora, São Paulo 2001

Diretor Editorial - Jefferson L. Alves


Produção Digital - Eduardo Okuno
Coordenadora Editorial - Sandra Regina Fernandes
Revisão - Juliana Alexandrino
Capa - Estúdio Nóz
CIP-BRASIL. Catalogação na fonte
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_____________________
A64j
Antônio, João, 1937-1996
João Antonio [recurso eletrônico] : melhores contos/
João Antonio ; seleção de Antônio Hohlfeldt. − 1. ed. −
São Paulo : Global, 2013.
recurso digital (Melhores contos)
Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-85-260-1906-5 (recurso eletrônico)
1. Conto brasileiro. 2. Livros eletrônicos.
I. Hohlfeldt, Antonio, 1948-. II. Título. III. Série.
13-02018
CDD: 869.93
CDU: 821.134.3(81)-3
_____________________

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