O Príncipe Dos Vampiros - Segredos de Sangue
O Príncipe Dos Vampiros - Segredos de Sangue
O Príncipe Dos Vampiros - Segredos de Sangue
Copyright
Folha de Rosto
Mapa de Alkmene
Glossário
Frase Introdutória
Prefácio
Prólogo
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Doze
Treze
Quatorze
Quinze
Dezesseis
Dezessete
Dezoito
Dezenove
Vinte
Vinte e Um
Vinte e Dois
Vinte e Três
Vinte e Quatro
Vinte e Cinco
Vinte e Seis
Vinte e Sete
Vinte e Oito
Vinte e Nove
Trinta
Trinta e Um
Trinta e Dois
Trinta e Três
Trinta e Quatro
Trinta e Cinco
Trinta e Seis
Epílogo
Nota das Autoras
Agradecimentos
Editora Charme
Copyright © 2018 de Aline Sant’ Ana e Clara de Assis
Copyright da Produção: Editora Charme
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, distribuída ou
transmitida por qualquer forma ou por qualquer meio, incluindo fotocópia,
gravação ou outros métodos eletrônicos ou mecânicos, sem a prévia
autorização por escrito do editor, exceto no caso de breves citações em
resenhas e alguns outros usos não comerciais permitidos pela lei de direitos
autorais.
Este livro é um trabalho de ficção. Todos os nomes, personagens, locais e
incidentes são produtos da imaginação das autoras. Qualquer semelhança
com pessoas reais, coisas, vivas ou mortas, locais ou eventos é mera
coincidência.
1ª Edição 2018.
Designer da capa: Veronica Góes
Fotos: Depositphotos
Revisão: Sophia Paz
Criação do e-book: Ana Martins.
Este livro segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
CIP-BRASIL, CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DE EDITORES DE LIVROS, RJ
Sant’ Ana, Aline / Assis, Clara de
O Príncipe dos Vampiros / Aline Sant’ Ana e Clara de Assis
Editora Charme, 2018.
ISBN: 978-85-68056-70-7
1. Romance Brasileiro | 2. Ficção Brasileira
CDD B869.35
CDU B869. 8 (81)-30
Aliança: União entre os clãs de vampiros no mundo. Sua maior tarefa é
manter em sigilo o segredo de sangue e a existência dos vampiros, a fim de
não serem caçados, como há tempos aconteceu.
Alkmene: Ilha ao norte do globo, que passa longas temporadas sem a luz
do sol.
Divisão Magna: Elite dos melhores guerreiros vampiros. Lutam em nome
da Aliança.
Lochem: Combatente. Pessoa designada para atestar a capacidade do
futuro regente de passar pelos desafios. Versada em várias artes, também
compreende a fundo a sociedade vampírica, as leis e a política.
Ma’ahev: Seu amor. Alma gêmea.
Ordem de Teméria: Onde são formados os guerreiros e subdivididos em
classes: guarda pessoal da monarquia dos reis ― “Brigada Real”; guardas
selecionados e de maior confiança dos reis ― “Brigada Vermelha”; os que
lutam por todos os clãs ― “Divisão Magna”; os que protegem diariamente a
população vampira/shifters na linha ― “Guardiões”.
Samhain: Halloween. Início do inverno no Hemisfério Norte.
Savach: Conexão sentida apenas pelos homens da família real, indicando a
pessoa amada. Estende-se para a companheira de quem a sente, mas não é
uma regra.
Shifters (subst.): aquele que se modifica. Seres com aparência humana que
se transmutam em animais quando querem, mantendo a racionalidade.
Ta’avanut: Período fértil para os vampiros. O desejo é aflorado. É a fase
na qual o vampiro pode fertilizar a mulher, e ela está pronta para gerar vida.
... "é necessário que um príncipe saiba muito bem disfarçar sua índole e ser
um grande hipócrita e dissimulador"... (p. 174), pois ... "os seres humanos, de
uma maneira geral, julgam mais pelo que veem e ouvem do que pelo que
sentem. Todos veem o que pareces ser, mas poucos realmente sentem o que
és.” (Ibid., p. 176)
MAQUIAVEL.
Ainda consigo sentir o arrepio que me atingiu quando aportei na Baía
Cachalote, dois anos atrás. O lugar, ao noroeste da Europa, na época,
desconhecido por mim, não é a primeira opção quando se trata de turismo.
Infelizmente, Alkmene não conta com um aeroporto, devido aos ventos fortes
em determinadas altitudes. É necessário desembarcar na Islândia e seguir
para Alkmene por transporte marítimo. Outra coisa que afasta os turistas é o
frio extremo e a inconstância das quatro estações do ano.
Vim aqui para dizer que vocês estão errados! Valeu a pena o esforço e a
espera para chegar lá.
Foi como pisar em solo sagrado.
Fui atraído, na primeira vez, justamente pelas fotografias no Google do
cenário estonteante e pela promessa de pescas extraordinárias.
Só que… não era só isso que tornava a ilha de Alkmene especial.
O povo, relativamente hospitaleiro, é diferente de outros locais do mundo.
Bebi vinho e curti festas na cidade de Labyrinth. Os preços não eram
exorbitantes e lá aceitam a maioria das moedas. O que é bom, né? Não
precisamos nem passar na casa de câmbio.
Mas, falando sério, apesar da música alta, das mulheres bonitas e dos
clubes lotados, eles pareciam fechados em sua própria sociedade. Talvez
fosse isso, a diferença de realidade, que me fez pensar em vinho e segredos.
Uma mistura interessante…
Já adianto a vocês que estou fazendo essa postagem porque fui convidado
para estar na mágica ilha de Alkmene, pela segunda vez, em um navio com
todas as despesas pagas. E… já fiz o meu roteiro de viagem. Mal posso
esperar para visitar Labyrinth de novo, um lugar cheio de gatas e a cidade
do rei; passear pelas exóticas praias de areias negras, em Creones; tomar
uma grande caneca de cerveja vermelha (Red Ale bem maltada e, por sinal,
que gosto peculiar!), em Biberbach.
Vamos fazer as malas?
Contarei para vocês como foi quando eu voltar.
Publicação feita em um fórum por um blogueiro viajante.
Séculos atrás.
De maneira geral, não havia nada de errado em correr por aí.
De maneira específica, usar os corredores do King Castle como parque de
diversões não era uma boa ideia.
Meus pais tentaram me manter quieta para a Cerimônia de Apresentação
do Príncipe, mas eu não queria ficar ali, no meio de tantas pessoas chatas.
Queria brincar e correr. Sim, deveria obedecê-los e me portar bem, mas
aquele espaço era comprido demais e eu não queria ignorar. Então, meus pés
se moveram.
Desde que comecei a compreender os ensinamentos dos meus pais, sabia
que estar entre a realeza era uma honra, mas, para falar a verdade, estar
naquele corredor vazio, sim, era um verdadeiro sonho. Mamãe me dizia que a
família real tinha o sangue mais antigo; eles eram especiais em uma ilha de
seres tão distintos.
Desobedeci à ordem dos meus pais, ansiosa com a possibilidade de correr.
As paredes de pedras brancas estavam frias quando as toquei. Apostei
comigo mesma que conseguiria chegar até o final da linha em menos de dez
segundos, soltei Natassa, minha boneca, e me preparei.
Corri e contei mentalmente:
Oito segundos!
Gritei um sim, ainda respirando fundo, e virei para buscar Natassa.
Mas ela estava nas mãos de outra pessoa.
Abri a boca para reclamar, e então olhei suas roupas: preto e dourado.
Ele deveria ter a minha idade, mas era da realeza. E eu não conhecia
ninguém da realeza além do rei e da rainha.
Oh!
Segurei a parte de baixo do vestido e, sentindo as bochechas quentes, fiz a
mesura.
Eu não deveria ter trazido a Natassa.
Mantive a cabeça baixa.
— Boa noite, Meu Senhor.
Mamãe me ensinou que, ao encontrar alguém da realeza, sem saber quem
era, eu deveria chamá-lo de Meu Senhor.
— Você não é velha demais para ter uma boneca?
Levantei o olhar para ele e desfiz a mesura.
— Velha demais?
— Eu não brinco desde que era um neném — zombou.
Fiquei irritada.
A cor dos olhos dele não era natural. Ele tinha as íris da mesma cor do
sangue que corria em nossas veias: rubro. Toda a família real possuía aquela
mesma tonalidade de vermelho.
— Sempre a levo para onde vou. — Eu precisava ser educada; ele parecia
ser filho de alguém muito importante. Todos da realeza estavam no Castelo
naquela noite.
— E ainda brinca com ela?
— Não é um brinquedo. É meu amuleto da sorte. Eu a levo, mesmo todos
achando que é besteira.
O menino tinha os cabelos mais escuros que já vi. Pretos como a noite.
Brilhando em vários tons de azul-marinho à luz das velas.
Ele deu vários passos, e o solado de suas botas de couro ecoou pelo
corredor e ficou perto o bastante de mim.
Fiquei dura no lugar.
Encarei Natassa, querendo-a de volta, como se ela estivesse presa nas
mãos de um sequestrador.
O menino sorriu.
Mas não um sorriso sincero, e sim endiabrado.
— Meu pai me ensinou que não devemos nos apegar a coisas materiais,
porque elas se vão. A única coisa que você pode manter é a essência de quem
é.
No momento em que aquelas palavras saltaram de sua boca, eu soube.
O único homem que falaria uma coisa daquelas e que já falou em diversos
discursos me veio à mente.
Não ousei respirar.
Ele era Orion Bloodmoor, filho legítimo do rei. O príncipe de Alkmene e
futuro líder do clã Redgold.
Apenas a família real conhecia o seu rosto, até aquele momento, conforme
a tradição, a fim de preservar a segurança de alguém tão importante para o
nosso povo. E, nesta noite, durante a cerimônia do Samhain, era chegado o
momento de apresentá-lo à sociedade.
Engoli em seco, ignorando tudo aquilo, porque mamãe entraria em pânico
se soubesse.
A Cerimônia de Apresentação era fechada aos membros da corte. Não
deveríamos trocar uma palavra sequer, afinal, eu não era uma Bloodmoor. E
somente no solstício de inverno, no próximo ano, o príncipe seria apresentado
para os vampiros de sua idade.
— Alteza, pode devolver a Natassa? Preciso ir.
— Está enlouquecendo porque eu sou o príncipe, não é?
Abri a boca, chocada. Ele podia falar assim?
Deu de ombros.
— Sabe, você é a primeira menina da minha idade que eu conheço e que
não é da família real. Acho que estamos em um ponto positivo aqui. Não
gritou nem saiu correndo. Você é corajosa.
Mesmo tremendo, não vacilei.
— Por favor, a Natassa, Alteza.
Ele pegou a boneca de cabelos ruivos e ficou encarando-a, como se
tentasse entender o motivo de ela ser especial para mim.
Então, o príncipe enfiou-a debaixo do braço e sorriu de novo, daquele
jeito diabólico.
— Gostei dela, o nome é legal também. Acho que vou pegá-la para mim.
Amuleto da sorte, você disse?
— Não!
— Está negando algo ao seu príncipe?
— Você é muito… teimoso, arrogante e idiota! Qual o problema em
devolver a minha boneca?
Ele gargalhou.
— Não pode se referir a mim de maneira tão íntima. E você está brigando
com alguém da realeza. No próximo inverno, quando eu te reencontrar,
devolvo Natassa.
— Eu quero ela agora!
O príncipe respirou fundo, estalou os lábios e sorriu.
— Não.
Ele virou as costas e começou a ir embora.
Pisquei, estupefata. Queria chocá-lo também, queria fazê-lo parar,
queria…
— Orion Bloodmoor! — gritei.
Ele acenou, ainda de costas ― pouco se importando por eu tê-lo chamado
intimamente ―, e levou Natassa embaixo do seu braço direito, sem nem ao
menos perguntar meu nome. Na outra ponta do corredor, aguardando o
príncipe, surgiu a imponente figura de Warder Tane, conselheiro do rei, tutor
da família real e amigo pessoal do meu pai. Ele exibiu um semblante sério e
vincos em sua testa que confirmaram que não estava nada feliz com as
quebras de protocolo.
Eu poderia ir até ele, brigar e pedir para devolver Natassa. Até bater
naquele rosto metido, mas eu teria problemas demais para enfrentar com
meus pais. E Warder. Então, querendo gritar de raiva, desci as escadas e fui
até o salão da festa. Meus pais me abraçaram e perguntaram se eu havia me
perdido. Não sabiam que eu tinha trazido Natassa ― eles odiavam que eu
ainda tinha um elo com a boneca ―, então não se deram conta da ausência
dela. Eu a mantinha sempre embaixo dos muitos panos dos vestidos ridículos
que me faziam usar…
A apresentação do príncipe Orion à sociedade não demorou a começar.
O rei e a rainha estavam felizes.
— Há tão poucos de nós… No entanto, os Bloodmoor permanecem fortes,
e este é o momento de atestar a cada súdito de Alkmene que a nossa família
continuará lutando para manter todos a salvo. E não nos cansaremos de
buscar nossa redenção. A renovação de tal compromisso com nosso clã se dá
através da vida que emana de vosso príncipe, Orion Bloodmoor, do clã
Redgold, príncipe de Alkmene…
O príncipe Orion entrou em meio a aplausos entusiasmados. Vestido da
mesma forma de quando o encontrei: blusa e colete, calça preta justa, botas
que subiam até pouco antes dos joelhos e sobretudo preto com detalhes
dourados. No entanto, diferente de antes, seus cabelos estavam penteados
para trás.
O príncipe seguiu fielmente o protocolo, apesar de parecer sorrir
timidamente de alguma piada particular.
Nossos olhares se encontraram, de repente. Ele não demonstrou qualquer
falha enquanto obedecia a uma série de movimentos ensaiados. Ocupou o seu
lugar, ao lado esquerdo do rei Callum, e, conforme os demais imitavam o
Duque Real, erguendo suas taças e aplaudindo. O príncipe Orion me olhou
uma vez mais, e de trás do seu sobretudo, ele deixou discretamente à mostra
para que eu pudesse ver… Natassa.
Fingido!
Eu o odiei naquele momento, ansiosa por recuperar a boneca, meu
amuleto da sorte. Infelizmente, não teria outra chance de estar a sós com o
príncipe Orion, a não ser durante o baile do solstício de inverno, quando eu
recuperaria Natassa, nem que para tanto eu precisasse derrubá-lo.
E, então, o tempo passou.
Com ele, o inesperado veio.
Em um dia gelado, no mês de janeiro, uma grande tragédia se abateu
sobre a família Black, e eu jamais poderia me esquecer do dia em que perdi o
homem mais importante da minha vida: o meu pai.
Dias atuais
Do alto da colina escarpada, observei a magnífica carnificina metros
abaixo, sentindo prazer no gosto em minha boca e o enorme deleite de quem
havia cumprido seu dever.
A água, antes prateada sob a luz da lua, agora exibia também matizes de
vermelho, graças aos corpos amontoando-se ao sabor do ritmo moroso das
ondas.
E era a visão mais bela que eu poderia ter.
Os inimigos foram dizimados, e tão logo o sol despontasse no horizonte,
eles não passariam de pó. Levados pelo vento, misturados no meio das águas,
seriam apenas parte do todo, e, ao mesmo tempo, não seriam nada.
Sobre meu ombro direito, o hálito de vinho e sangue bateu em meu rosto.
— Quanta felicidade e você nem mesmo bebeu.
— Sai daqui, Titus.
— Por que não tira uma foto pra colocar na sua sala de estar? As visitas
vão adorar ver um pouco do seu trabalho… Ouff!
Eu ri quando Titus tropeçou para trás e por pouco não caiu.
— Golpe baixo, Goldblack, eu estava distraído.
— Mandei você sair daqui. — Dei de ombros.
— Eu só queria te parabenizar… que horror… quanta violência. — Não
perdi a ironia de suas palavras. Ali embaixo jaziam dezenas de vampiros,
mortos por nós.
— Seja breve, estou em meu momento contemplativo, lorde Titus.
— Então, voltamos a isso de lorde… — Ele moveu a cabeça, em negativa.
Gostava de jogar seu charme comigo, mas não funcionava. Eu tinha uma
meta na minha existência, e Titus, que havia frequentado a Ordem de
Teméria comigo, deveria saber. Além disso, jamais me envolveria com um
aristocrata, e disse isso para Titus certa vez. Eu vinha de uma linhagem de
guerreiros, vassalos do rei. E tinha que honrar a memória do meu pai.
— Quando você me irrita, sim, lorde — brinquei. Ali não havia
superioridade, éramos todos soldados. Eu era grata por Titus não ser um
idiota sobre isso, na verdade. Ele era um bom lutador e estava ali porque seu
clã havia enfraquecido de tal forma que a única maneira de se restabelecerem
era enviando seus homens mais fortes para deter as ameaças.
Titus me encarou por um tempo, antes de desviar sua atenção para baixo.
Aquela batalha foi significativa para ele. Para todos nós.
— Depois de cem anos trabalhando na mesma função, começo a me
perguntar quando essa droga vai ter fim.
Não o respondi de imediato. Francamente, nem poderia arriscar.
— Às vezes, eu só queria ir pra casa — Titus disse baixinho,
contemplando o horizonte. Estávamos muito distantes para qualquer um de
nós não se permitir pensar em lar. As lutas nos jogavam cada vez mais longe.
Ele deu um longo gole em sua bebida, não se incomodando em limpar os
lábios.
Continuei encarando Titus, prestes a responder alguma coisa, quando um
shifter de tigre siberiano se aproximou. Percebi, pelo semblante tenso, que
era algo importante.
— Goldblack, pode me acompanhar, por favor?
— O que houve, Sven?
Ele umedeceu os lábios.
— Você recebeu uma correspondência.
Pela visão periférica, notei Alte, nosso mordomo há mais séculos do que
poderia contar da minha própria existência, oculto nas sombras, atrás de uma
das pilastras, no pátio. Ainda assim, eu sabia que desejava falar comigo.
Decidi não soltar a espada.
Brandi-a, rindo de Beast quando dominou o movimento ao ir para a direita.
Eu poderia desarmá-lo indo para a esquerda, jogando sua espada no chão e
encostando a minha linda punta na base do seu pescoço. Isso conquistaria sua
rendição. Afinal de contas, aquele shifter de urso era meu segurança privado
e um dos meus melhores amigos.
Afastei-me, com um sorriso brincando nos lábios.
— Você está meio enferrujado, príncipe — zombou Beast.
Um príncipe jamais mostrava todo o seu potencial, nem mesmo em uma
brincadeira com um de seus confidentes amigos.
— Acredita mesmo nisso, Beast?
— Certeza.
Rindo, andei para trás. Não estava ofegante da luta quando Alte se
aproximou e disse que minha presença era requisitada no salão de estratégia.
Por sua expressão tensa, soube que encontraria meu pai acompanhado,
esperando-me para uma reunião com toda a turma de puxa-sacos. Sem
escolha, guardei a espada na bainha e desafivelei o suporte da cintura,
entregando para Alte.
— Pode ficar com ela?
Ele estremeceu ao segurar a espada.
— Claro, Alteza. Certamente.
— Era do meu avô, mas o senhor sabe disso — provoquei-o, erguendo a
sobrancelha. Alte quase revirou os olhos. Não aguentei e voltei a rir. —
Relaxa, Alte.
Beast riu ao fundo.
— Depois da reunião, quer dar uma volta em Labyrinth? — convidou meu
amigo.
— Músicas e shifters?
— Músicas e shifters.
Virei o rosto o suficiente para o meu sorriso ser a resposta.
Ajeitei o colarinho da camisa social e respirei fundo, caminhando pelo
King Castle, desatento aos detalhes.
Abri a porta de repente, precisando usar meu sorriso mais cativante para
que ninguém percebesse o quanto a presença do Duque Real me desagradava.
Astradur era o braço direito do meu pai, mas havia algo naquele nobre que
não descia bem na minha garganta.
— Que bela noite! — Me joguei na cadeira à direita do rei, sentando
confortavelmente, girando e brincando com os anéis dos meus dedos.
Olhar para o meu pai, naquele momento, era me ver daqui a uns anos. A
diferença, além da idade, é que tudo nele parecia tenso. Até a coroa em sua
cabeça tornava a reunião mais séria. Contei mentalmente quantos segundos
levaria para o Duque de Merda, quer dizer, o Duque Real, começar a falar,
antes do meu pai.
— Príncipe Orion, eu o chamei aqui para conversarmos sobre…
Sorri, exibindo os caninos pontudos. Sem olhá-lo, como se não me
importasse, comecei a mexer nos papéis que estavam sobre a mesa. Deixei
que Astradur terminasse o discurso importante, porque eu sou um vampiro
muito bem-educado.
— Certo, Duque de… Duque Real. Exceto por uma coisa: foi meu pai que
me chamou, o rei. Não o senhor.
Voltei meus olhos para o rei.
— Do que precisa, pai?
O rei respirou fundo e, com isso, eu soltei os papéis e me sentei mais
ereto. Veja bem, seis séculos ao lado desse homem me permitiam entendê-lo.
Se o rei de Alkmene parecia nervoso, então, eu também deveria estar.
— Há alguns clãs rebeldes se movimentando pelo norte da Europa —
soltou, e fixou os olhos nos meus.
— Quantos?
— Mais do que podemos contar — respondeu meu pai.
— Os insurgentes estão em cerca de oitocentos vampiros maduros —
falou Astradur, o Duque de Merda. — E isso é muito.
Encarei o grande mapa sobre a mesa.
— Mostre onde.
— Aqui e aqui. — Apontou meu pai.
Tirei meus anéis e comecei a colocá-los sobre o mapa.
— Se mandarmos os nossos guerreiros para esse ponto estratégico… —
Deslizei um anel sobre o norte da Europa e outro na região central. — Bem,
acho que isso controlaria qualquer um que quisesse botar os pés em nossa
ilha.
— Já tentamos, filho. — Observei meu pai. — Não foi fácil — finalizou.
Fiquei em silêncio, assimilando suas palavras.
Ele tentou.
Homens nossos estavam mortos.
Os rebeldes estavam vencendo.
— Eu posso lutar. Posso levar Beast, Echos e quantos nossos
conseguirmos. Não vamos entrar em guerra. Não permitiria.
Meu pai sorriu.
— Eu vou precisar de você, mas não para isso.
Os conselheiros ficaram em silêncio, exceto o Duque de Merda, que falou,
mas pouco. Uma sensação ruim percorreu minha pele quando o rei se
levantou da cadeira. Os puxa-sacos o acompanharam, e eu continuei sentado,
sem entender que porra era aquela.
Eu entendia, na verdade.
Só estava em negação.
— Devo me tornar o embaixador dos clãs para elaborarmos um tratado de
paz. Preciso estar na base mais antiga para conversar e oferecer algo em
troca. Tenho, então, que me oferecer em troca. É a solução ideal. A paz só
será possível se houver alguém que seja forte e respeitado o bastante para ser
ouvido.
— Isso automaticamente te tornaria alguém diferente do que é hoje,
Alteza — acrescentou Astradur, sorrindo para mim.
Engoli em seco.
— Você deve se tornar o rei de Alkmene, você deve governar o clã
Redgold — finalizou meu pai.
Foi a minha vez de ficar em pé.
— Pai…
— Legalmente, não há um empecilho sequer. Eu vou abdicar do trono e
você poderá passar por todo o processo.
— Não estou pronto.
— Ninguém está preparado para ser rei — meu pai pontuou —, até se
tornar um.
— Ora, Príncipe. Grandes responsabilidades! Que excitante! Eu imagino
que você desejava continuar aproveitando sua vida de príncipe dos vampiros.
Isso pode até soar assustador, mas terá um Lochem para auxiliá-lo e… —
Astradur continuou a fala do rei, enquanto meus olhos não saíam do meu pai.
Fiquei paralisado encarando tudo, pensando que poucos minutos mudaram
a minha vida completamente. Além de não me sentir pronto, teria uma babá
controlando tudo que eu fizesse até a coroação.
Sem músicas e shifters, então.
Nada bom.
— É o pior cenário, mãe. A revolta chegou a tal ponto que meu pai
precisará abdicar. Durante essa disputa com os rebeldes, perdemos muitos
homens.
— Embora a revolta se estenda há anos e é terrível, houve momentos
piores na história da humanidade. — Minha mãe era a única capaz de trazer a
leveza em meio ao caos.
— Eu sei — ponderei. — Mesmo assim...
— Orion, é chegado o momento de que nossos ensinamentos, semeados
ao longo da sua existência, estejam prontos para serem colhidos, e sei que
darão bons frutos.
Eu sorri. Apesar de tantos séculos sendo Rainha do clã Redgold, minha
mãe gostava de usar metáforas que caracterizavam seu passado, quando ainda
era uma humana, camponesa, uma época que a enchia de orgulho, mas nada
na minha mãe era comum.
— Não imaginei me tornar rei, pelo menos, até daqui a quinhentos anos.
A parte de eu ser atestado por um desconhecido também não me agrada.
— Também não gosto desse teste que você terá que passar... ainda assim,
precisamos seguir as regras da nossa monarquia. Você é o príncipe de
Alkmene, futuro líder do clã Redgold, não duvide que nasceu para estas
atribuições. Concentre-se no que seu Lochem disser.
— Obviamente. E eu vou adorar ter um coach pessoal.
— Warder o conhece desde que nasceu, Orion, confie que ele indicará
alguém dedicado e ideal.
Me afastei dela, e observei o céu de outono. Estava limpo, com as estrelas
brilhando e a lua cheia. Tentei me dispersar da conversa, e enfiei as mãos nos
bolsos da calça.
— O que está te incomodando além disso, filho? — A rainha se levantou
do banco, caminhando para perto de mim.
— É só sobre a revolta e o cargo que terei que ocupar prematuramente —
afirmei.
— Você está mentindo para sua mãe?
Franzi o cenho.
— Não...
— Está sim. — Minha mãe sorriu.
Respirei fundo.
Coincidentemente, eu passaria pelos testes ao mesmo tempo em que
enfrentaria as distrações de uma época... complicada para os vampiros: o
Ta’avanut, conhecido como o período fértil vampírico.
— Mãe... não dá para conversar tudo com você.
— Tudo... você quer dizer...?
Ergui uma sobrancelha.
Um reconhecimento passou por seu semblante.
— Orion, querido. Está pensando que vai ter que lidar com um Lochem, as
preocupações da revolta dos rebeldes e mais a intensidade do Ta’avanut? —
Ela sorriu.
— Não é bem a intensidade, é físico... é a distração, é o meu corpo
falando o tempo todo a mesma coisa. E você sabe, a gente se perde nas
prioridades.
— Seu pai enfrenta o mesmo a cada cinquenta anos, e continua sendo um
rei. Eu enfrento o mesmo, e sou a rainha. — Deu de ombros. — Não entendo
onde vê o problema. Somos assim e não é a primeira vez que passará por esse
momento. Com um pouco de sorte, viverá o Ta’avanut ao lado da pessoa
certa.
Ri alto.
— A pessoa certa? Mãe...
— O quê? — Abriu a boca, divertida. — Acha que a possibilidade de
encontrar um amor atrapalharia seus planos?
— E não?
— Não!
Para cada vampiro, o primeiro Ta’avanut acontece distintamente; não há
uma data, está relacionado à maturidade de cada corpo. Na primeira vez que
passei pelo Ta’avanut, aos 16 míseros anos de vida, meus pais se
preocuparam. Eu era imaturo ao extremo, seria o pior momento para
encontrar o amor. Aos 66 anos, minha mãe começava a torcer para que minha
alma gêmea surgisse para me aquietar. Agora, aos 616, ela implorava
silenciosamente para que eu encontrasse aquela que geraria um herdeiro.
A rainha parecia já imaginar essa criança em seus braços.
— Eu sei que você é romântica, mãe. Sei que viveu o elo de uma alma
gêmea com meu pai, o tal Ma’ahev, e sei que acredita na força dessa
conexão, a Savach. Mas eu nunca vivenciei isso. Nem sei se é possível. Quer
dizer, eu sou de uma geração diferente.
Ela suspirou.
— A Savach é poderosa, Orion. E não passará com o tempo, nem com as
gerações. Acredito que seu pai tenha lhe dito explicitamente o que sentiu,
mas há algo que… — Suspirou uma vez mais. — Venha e preste atenção no
que vou dizer.
Eu e minha mãe nos acomodamos em seu lugar preferido: os bancos do
seu grande jardim em King Castle.
— Acredite, encontrar sua prometida resultará em sentir a conexão e tudo
se harmonizará. Orion, a Savach é… mais do que quando os humanos falam
em amor à primeira vista. E… este é um segredo entre mim e seu pai, mas
vou confiá-lo a você: quando estávamos diante um do outro, meu período
fértil se alterou, a ponto de antecipar o meu Ta’avanut em trinta anos. No
começo, foi tão estranho, mas, depois, entendi... essa era a prova de que havia
encontrado minha alma gêmea. Foi incrível e perfeito. Minha percepção se
alterou. Não existia nada nem ninguém além de Callum Bloodmoor, não o
meu rei, mas o vampiro. Pensava que, se não estivesse com ele, sufocaria até
a morte. Eu não precisava estar à sua vista, ele me sentia. E, quando ele me
tocava, era como se um rastilho de fogo vivo se espalhasse desde o local onde
estivesse a ponta do seu dedo até incinerar o meu coração. E por mais que eu
quisesse lutar contra isso, seria impossível não amar o homem da minha vida,
o meu Ma’ahev, sentindo meu corpo inteiro pedir por ele, no Ta’avanut, ao
mesmo tempo que senti um amor arrebatador à primeira vista, a Savach.
Aquilo não era possível.
Romântica, eu disse.
E eu deveria encontrar a minha alma gêmea, minha Ma’ahev, em uns
quinhentos anos. Mais meio milênio de farra seria tão bom...
— Encontrar a mulher que será minha Ma’ahev está fora de questão. Não
acredito que isso acontecerá. Eu não a sinto. Nem deve ter nascido ainda.
Eu gostava quando estávamos a sós, quando a rainha Stella Bloodmoor
podia ser apenas… minha mãe. Era leve e trazia um sopro de ar fresco.
— Você teme encontrá-la? Porque achar que ela nem nasceu ainda é
empurrar para longe a possibilidade de vê-la a qualquer momento.
— Eu espero que ela não tenha nascido ainda. Já pensou que esse lance de
alma gêmea pode ser uma furada? Mãe, de acordo com o que você diz, não é
algo que escolhemos. É o universo que coloca em nossa vida a vampira que
ele acha que combina.
Ela riu baixo.
— E se a mulher da minha vida for uma pessoa horrível, com uma
personalidade maluca? E se tiver os caninos tortos? E se só tiver um dos
caninos, uh? Pensou nisso? Ela pode falar sibilando. Ela pode roncar.
A rainha Stella me ouviu com humor, rindo de cada uma das questões que
tumultuavam minha mente.
— Por favor, pare de rir. É sério.
Me contemplou por um tempo, o sorriso ainda em seu rosto.
— Se sua Ma’ahev roncar, você vai acreditar que é a canção mais bela. Se
ela sibilar, parecerá um lindo sotaque. Pare de se preocupar.
Parar de me preocupar? A única coisa que eu era capaz de fazer era
justamente me preocupar.
— Mãe, eu admiro como você consegue ver beleza em tudo.
— Você também verá quando se apaixonar.
Daqui a quinhentos anos, talvez.
Levamos aquele jantar por mais quarenta exaustivos minutos. Foi tão
estranho que, ao terminarmos, tive a sensação de que um moinho inteiro
havia desabado sobre a minha cabeça.
O ponto alto do jantar foi descobrir que a sobremesa de maçã, sangue e
chocolate era a preferida da minha Lochem.
— Então, sua Lochem chegou há três dias e tem feito perguntas íntimas
como: qual seu pior pesadelo? — Echos sorriu.
Soltei uma risada e tomei o sangue na taça. Dessa vez, era de um gado de
uma das fazendas de Espinhosa. Estava na hora de beber um pouco de sangue
humano, já que mantive minha dieta no jantar de ontem. Era capaz de sentir
uma fraqueza, e não me lembrava da última vez que precisei me render. A
questão toda era o Ta’avanut. Se eu bebesse da fonte, justo nessa época, não
poderia prever a reação do meu corpo.
Eu já estava tendo pensamentos muito errados. Inclusive, sobre minha
Lochem.
— Ela só me resumiu como vai ser. Hoje que vou descobrir como
conduzirá isso. Conversamos sobre os desafios, os quais já conheço, embora
o teste final seja um mistério para mim. — Bebi mais um gole e senti uma
gota escorrer no canto da boca. Peguei-a com a ponta da língua. — Mia vai
me analisar diariamente. Pelo cronograma, vou ficar tempo demais com ela.
Mia é afiada. Ela deu ótimas respostas no jantar. É esperta demais.
— Aconteceu alguma coisa no jantar? — Echos tirou a brincadeira da
voz.
— Foi intenso.
— Por quê?
— Não suporto Bali Haylock, Astradur e falando nessa linhagem...
Constance ficou se jogando pra cima de mim.
— Ela ainda está interessada em você?
Apoiei a taça sobre a mesa e encarei Echos.
— Eu ainda não estou interessado nela.
Echos riu.
— Porra, Orion. Você fala com mais interesse das aulas do que da
possibilidade de transar com Constance. Ela é bonita pra cacete.
Decidi ficar em silêncio.
— O que tá pegando?
Passei os dedos pelo cabelo, jogando-os para longe do rosto. Respirei
fundo e me recostei na cadeira.
— Eu não disse ao meu pai, mas me parece uma péssima ideia ter uma
Lochem, enquanto estou… você sabe…
— No seu período azul? — Echos riu.
Fechei a cara.
— O quê?
— Não se faça de idiota. Sabe que os humanos têm um remédio
milagroso. A pílula azul da felicidade. — Echos abriu um sorriso largo.
Soltei uma gargalhada, que foi cessando enquanto me lembrava da razão
do meu temor. Mia Black se tornou espetacular, para dizer o mínimo, e ainda
o elogio seria um insulto. Nunca vou me esquecer de como ela levou a maçã
à boca, deixando os caninos à mostra e…
Tá bem, que merda!
Eu estava atraído por ela.
Sabia que isso aconteceria; eu estava no Ta’avanut. Humanas, vampiras,
shifters… tudo me interessava. E talvez Mia não fosse ser um problema, se
me concentrasse nas tarefas.
— Príncipe Orion, Mia está esperando para vê-lo. — Escutei a voz de
lorde Tane e me levantei. Se havia alguém que eu respeitava, era Warder. O
cara era como um pai para Mia. Se ele soubesse o que eu pensava, ficaria
decepcionado.
— Sim, já estou indo. — Firmei a voz e observei Warder com o cabelo
negro preso em um rabo de cavalo baixo, vestido como se estivesse pronto
para uma batalha.
Warder desceu o olhar por mim.
— Alteza, talvez queira... abotoar sua camisa?
Anuí e comecei a fechar os botões.
— Perfeitamente.
Echos foi se retirando com um sorriso, e pude ver que ele segurou muito
forte para não começar a gargalhar.
— Te vejo depois, Alteza.
— Echos, ainda precisamos conversar sobre aquele assunto.
Os olhos do meu amigo ficaram mais intensos e amarelados.
— É, eu sei.
Nos últimos trinta e dois minutos, tentei ignorar a sensação que corria
sobre minha pele na mesma velocidade dos shifters, quando estavam atrás de
uma boa caça.
Orion Bloodmoor estava conseguindo ficar a cada dia mais bonito, e
aquele perfume dele…
Também havia a roupa, que estava me irritando profundamente. Não
poderia ser mais inapropriada. Era uma camisa feita por algum alfaiate que
teve a péssima ideia de se inspirar no século XIX. A peça feita de algodão e,
a princípio, sem colarinho e sem punho, extremamente decotada no peitoral,
era uma afronta. Além de tudo, era possível vê-lo através do tecido fino.
Resumindo? Seria mais apropriado ele estar sem roupa. Fora que Orion optou
por uma calça de couro preta, justa em cada saliência, músculo e parte do seu
corpo que eu precisava afastar da minha cabeça.
Eu nunca esqueceria do olhar que ele me deu assim que nos
reencontramos.
— Sentiu a minha falta, Mia?
— Queria dizer que sim, para amaciar seu ego, Alteza, no entanto, como
tenho a liberdade de lhe dizer o que penso, enquanto sou sua Lochem, posso
lhe afirmar que não.
Orion Bloodmoor desceu os olhos por mim.
— Sabe, Mia. Sua voz estremece em algumas vogais quando você está
mentindo. É uma coisa que tem desde criança, e nunca vou me esquecer de
quando descobri. Foi em um momento em que mentiu para mim sobre ter
bebido o último O+ da cozinha. — Sorriu. — A letra vibra em sua boca, e
geralmente é bem sexy, exceto que sei que é uma mentira. Lochem saiu como
luuurrem. E, caramba, é… você sentiu a minha falta.
— Vamos para a aula, Alteza.
Orion umedeceu a boca, sorrindo sedutoramente.
— Como quiser.
Beast havia saído há alguns minutos, ele ficaria em uma ala específica,
longe o bastante para nos dar privacidade e perto o suficiente se precisasse de
ajuda.
Mal pude acreditar que a tinha comigo. Ou melhor, que ela estava diante
de mim, embora não nos tocássemos.
Mia olhou em volta. Apesar de confortável, não se poderia comparar a
King Castle. A casa, construída há cinco séculos, fora modernizada nos
últimos anos. Foi o presente de aniversário dos meus pais quando começaram
a pensar que seria o lugar perfeito para que eu passasse por meu Ta’avanut. O
formato de anel, ou halo angélico, que deu o nome às ilhotas, era meu
refúgio, mas agora, com Mia ali de pé no meio da sala, tinha a impressão de
que jamais poderia recordar do refúgio particular da mesma maneira.
— Anell Angels mudou bastante… Lembro de um lugar tão selvagem,
vegetação densa, pouca estrutura…
Aproximei-me dela. Qualquer coisa era melhor do que ficar ali parado,
longe do seu calor.
— Estou surpresa por encontrar uma casa tão… — Mia encarou as janelas
abertas e a vista para o lago e as árvores. Meu coração estava a ponto de
explodir. Como ela conseguia fazer aquilo comigo? — O que foi?
— Como chegou aqui?
— Fiz com que Echos desse a volta quando mal havia atracado. Então ele
me trouxe. — Deu de ombros, mas, em seguida, pigarreou, parecendo
incomodada. — Me disse que eu deveria decidir e… bem, aqui estou.
Silêncio se instalou entre nós.
— Escolheu este momento para ficar calado? Nenhuma de suas ironias?
Concordei, movendo a cabeça. Depois negando, respondendo suas
perguntas.
— Sabe o que significa que esteja aqui? — Ah, mas que merda. Eu não
poderia acreditar que ela estava mesmo diante de mim.
Mia mordeu o lábio inferior e o olhar intenso respondeu todas as minhas
dúvidas sobre ela entender a impossibilidade de permanecermos juntos e
mantermos seu tão apreciado distanciamento profissional. Fechei o espaço
entre nós, abraçando-a, sentindo seu calor e abrigando seu corpo no meu. Eu
queria que ela pudesse ouvir todas as batidas insanas que meu coração dava
por ela.
Beijei Mia. Desde o topo da sua cabeça até suas bochechas. Segurei em
seu queixo, olhamo-nos nos olhos, e por fim, tocamos nossos lábios.
Começou com algo parecido com gratidão quando apertei forte minha boca
na dela. Mia estava ali para mim. De repente, e como sempre quando se
tratava de nós dois, nenhum movimento pôde ser controlado. Podar nossos
anseios era antinatural.
Receptiva, em meus braços, sentia como se tudo ao nosso redor desse
pane, apenas por nos beijarmos.
Mia se afastou quando a carga se tornou demais. Senti da mesma forma.
Era assustador, intenso e passional. A violência com que aquela emoção me
atingiu me fez consciente de que já não havia autonomia e racionalidade em
mim. Tudo se resumiu, em um lampejo, a viver unicamente para amar aquela
mulher.
A mansão nas ilhas Anell Angels era completamente branca por fora,
grandes vãos e janelas imensas cobrindo o pé-direito duplo, que, segundo
Orion, escureciam caso o sol surgisse repentinamente. O estilo arquitetônico
me fez lembrar da Grécia.
Não compreendia absolutamente nada de decoração, mas tudo era muito
limpo, claro e acolhedor. Muitos cômodos, mas, pelo lado de fora, notei a luz
acesa e a porta entreaberta.
Quando soltei a mala no chão, ouvindo o baque grave, percebi que não
havia mais volta.
Beast sinalizou que sairia, dando uma desculpa qualquer. Pelo que
entendi, ele ficaria em um local afastado, feito para o guardião pessoal de
Orion, mas o fato de ser em outro ambiente me fez pensar que, sendo assim,
ficaríamos juntos, sozinhos, e…
Senti um calafrio na espinha.
Por que eu vim?
Comecei a falar sobre a casa e as pequenas ilhas, mas Orion não mordeu a
isca. Eu deveria saber que ele me questionaria quanto a estar em Anell
Angels. Quando dei por mim, estávamos nos beijando e nos tocando como se
não pudéssemos ter mais um do outro.
Eu me afastei, porque precisava impor limites a mim mesma, para
começar.
Orion levou um tempo, observando enquanto eu colocava um pouco de
distância entre nós. Ele olhou para a mala e deu um sorriso que não consegui
decifrar. Me virei para pegar a pequena bagagem, mas ele se antecipou ao
movimento.
— Deixa comigo. — Orion colou seu peito nas minhas costas, inspirou no
meu pescoço e deixou um beijo ali, enquanto pegava a mala aos meus pés. —
Você tem um apego a essa mala...
Ri e ele se afastou para o corredor, mas a sensação inquietante continuou
até Orion retornar, sorrindo.
Ele levou a mão direita à manga esquerda da camisa social preta, e
começou a tirar o botão da casa.
— Aceita alguma coisa, Yafah? — Esticou o braço, fazendo o mesmo com
a outra manga. De repente, Orion começou a abrir o botão do colarinho.
Eu estive em guerras que fariam os anjos chorarem. Estive em massacres e
eu fui o próprio massacre quando precisei dizimar clãs inteiros para que o
meu sobrevivesse. Vivi entre a insanidade e a solidão por incontáveis
décadas. E nunca tive medo. Nunca estremeci em frente à batalha. No
entanto, quando Orion me encarava daquele jeito, quando sentia a conexão
entre nós deslizar como seda, me tornava o oposto do que sempre fui.
— Aceito, na verdade.
Orion ergueu uma sobrancelha, abrindo o resto dos botões da camisa. Ele
arrancou-a do corpo, sem pudor algum, e abriu um sorriso sacana para mim.
Era como se estivesse se oferecendo.
Engoli em seco.
— Estou te ouvindo.
— Eu… quero algumas regras.
— Regras?
— Sim. — Inspirei o ar com força. — Um: vamos com calma. Dois: eu
preciso que seja secreto, porque isso pode prejudicar toda a minha carreira
que tanto lutei. Três…
— Uou, espera. — Ele veio até mim. Não consigo pensar com Orion sem
camisa. — Eu jamais deixaria que o nosso relacionamento prejudicasse quem
você é. Não entendeu ainda, Mia?
— O que eu… não entendi?
— A sua existência faz parte da minha. — Droga, o perfume dele me
atingiu quando Orion segurou as laterais do meu rosto. Meu corpo se colou
automaticamente ao dele, nossos lábios rasparam. — Você é a minha
Ma’ahev. Eu senti a Savach por você. É a minha prometida, a minha futura…
— Segura esse pensamento aí — interrompi e precisei me afastar, mais
uma vez. Meus olhos foram para o peito dele, a barriga com gomos, o vão
que levava a… — Não vamos conversar sobre o futuro, porque eu
sinceramente não sei o que fazer com essa sensação dentro de mim. Sufoca
até a morte e eu sinto que não posso respirar sem você por perto. E é por isso
que vim, para tentarmos descobrir como vamos lidar com tudo, porque eu
aceito que é arrebatador, não impensado.
Ele abriu um sorriso largo, os caninos pontudos à mostra.
— Não consegue respirar sem mim?
Deu um passo à frente e eu, um para trás.
— Alteza...
Ele parou.
— Tá bom, então, me fala: o que há mais para se pensar?
— Será que não é só o Ta’avanut falando mais alto?
— Como disse? — questionou, irritado.
— Precisamos de um tempo para estudarmos o que está acontecendo.
Essa convivência vai ser positiva.
— O que não está me contando, Mia?
Prendi a respiração.
— Eu… sinto que falhei em ser sua Lochem.
Isso o surpreendeu.
— Por quê?
— Nos envolvemos, Alteza. Era suposto que eu confirmasse, perante o
clã, que está pronto para ser rei, não um amante.
— Você foi designada para ser minha Lochem, mas descobrimos que é
também a minha Ma’ahev. Acha que poderia prever isso?
Jamais admitiria, nem sob tortura, mas ouvir aquilo de Orion… aqueceu o
meu coração.
— E se eu não for nada do que você espera? E se eu roncar? E se eu odiar
a sua cama? E se…
Parei de falar porque Orion começou a gargalhar. E foi uma risada tão
alta, que eu a senti vibrar dentro de mim. Lágrimas saíram dos seus olhos, ele
ainda rindo da minha cara, e eu abrindo a boca, chocada com a reação dele.
— Ah, Mia… — Orion suspirou. — Porra, não. Você não faz ideia de
como é a minha prometida.
— Não sabe o que está dizendo.
— Eu sei. Falei com minha mãe antes de você chegar, alegando que teria
uma vampira péssima como Ma’ahev, que roncaria e teria os caninos tortos.
— Orion pausou, o olhar divertido e carinhoso. — Se roncar, Yafah,
provavelmente vou achar o melhor som do universo e ficarei te olhando
enquanto você dorme. Ah, e… ponto positivo: seus caninos não são tortos.
Abri um sorriso.
— Você é tão idiota.
— Não acredita realmente no que está dizendo.
Meu sorriso ficou mais largo.
— Não.
Nos encaramos por quase um minuto inteiro.
— Vamos fazer um tour pela casa.
Luz.
Orion, você está comigo?
Sangue.
Uma picada seguida de um líquido gelado.
Escuridão.
Beast sussurrou que estava cuidando de tudo.
Luz.
As janelas ainda estavam fechadas.
Escuridão.
Isso era bom, né?
Luz.
Cheiro de éter.
Escuridão.
Gosto metálico em minha boca.
Luz.
Minhas pálpebras estavam pesadas e senti meus olhos arderem por trás
delas. A voz de Beast me norteou em algum momento, tranquilizando uma
parte minha que estranhou sobre onde estava.
— Onde está… Orion? — Minha voz saiu arranhada e quase inaudível.
— Ela acordou! — alguém disse.
— Chamem o Beast! — pediram.
A luz forte me cegou. Coloquei o braço sobre meus olhos, criando uma
sombra. O cheiro de hospital me atingiu antes que eu entendesse onde estava.
Tinha o gosto daquele odor na minha boca.
— Mia, está tudo bem… — Warder? Senti mãos quentes em meu rosto.
Consegui focar a visão. Warder Tane, meu segundo pai. — Foi um gás. Você
está segura, em King Castle, na enfermaria do reino.
— Orion…
— Calma, Mia. Não tente se levantar agora.
— Preciso…
— Sangue, eu sei.
— Orion… — Tateei, procurando por minha espada. Ainda confusa, os
movimentos desencontrados. Busquei ao redor por meu Ma’ahev.
— Orion está bem. Você está recebendo uma transfusão. Muito do seu
sangue estava contaminado. Agora, um cateter está conectado ao seu braço.
Não se mova muito.
A primeira coisa que consegui ver foram as linhas do rosto de Warder. Ele
estava dizendo que tudo estava bem, mas o cenho estava franzido e manchas
arroxeadas circundavam seus olhos.
Segurei em seus braços, tentando buscar a razão.
— O q-que… aconteceu?
— Todos vocês caíram. — Era a voz de Beast. Com os sentidos
embaralhados, não percebi que ele estava ali. — Deu trabalho.
Principalmente porque antes, fomos nós, shifters, que fechamos as grelhas de
ventilação, com cortinas e roupas velhas… muito embora não tenha dado
totalmente certo… e, você sabe, eu nem tinha roupa direito.
— Agora você parece vestido…
— Passou um tempo, Mia. — Beast puxou o banquinho em que estava
sentado para mais perto de mim. — Em um primeiro momento, não
entendemos o que tinha acontecido. Como estava dizendo… apenas nós,
shifters, ficamos em pé. Compreendi que era algum gás nas grelhas de
ventilação quando senti o cheiro dos componentes químicos. Foi um pouco
caótico, porque alguns funcionários acreditaram que o gás poderia ser tóxico
também a eles, e eu precisei tomar a frente da situação. Mostrei que
estávamos de pé e que precisávamos nos organizar e ajudar. Mandei alguns
tamparem as grelhas de ventilação, outros tirarem vocês do salão e trazerem
para cá, enquanto fui encontrar a fonte daquela porra de dispositivo e,
caralho, ainda bem por você ter tirado fotos e enviado para mim, ou não teria
sido fácil.
— E você encontrou. — A afirmação saiu em tom de pergunta.
— Não levei nem uma hora para encontrar. — Beast sorriu, mas o arquear
de seus lábios se apagou lentamente. — O foda é que mesmo desconectando
e quebrando aquela merda em mil pedaços… o gás já havia sido liberado.
Pensei rápido e acionei o sistema de exaustão. Eu sabia que, na enfermaria,
estariam cuidando de vocês, mas quando cheguei aqui… a coisa estava feia.
Não havia sangue suficiente no estoque, nem humano, nem de animais, nem
sintético… e nós não poderíamos doar ou fazê-los beber o nosso, porque não
é compatível. A situação estava mesmo tensa.
Olhei para o cateter, pensando em como Beast conseguiu resolver. Ele
acompanhou meu movimento.
— Um carregamento chegou de Rosys, junto com médicos e enfermeiros.
Porra, pareceu um milagre. Acho que respirei fundo pela primeira vez desde
que vi vocês caindo. Mas o shifter que chegou ao castelo me avisou que as
bolsas de sangue foram uma ordem do rei. Também mostrou um bilhete de
uma das irmãs do General Darius, falando que tentaram impedir a saída do
furgão e tiveram problemas por lá. Astradur é um ardiloso filho da puta
mesmo.
Beast conseguiu.
— Espera… só tem uma coisa que não entendi disso tudo. Onde estavam
os funcionários humanos? Por que ninguém nos acudiu?
Beast trocou olhares com Warder.
— Não havia nenhum, receberam uma mensagem e aparentemente Alte
deu folga a todos eles — Warder explicou.
— Alte jamais faria isso.
— Nós sabemos. Inclusive, Alte também caiu. — Warder coçou a cabeça,
bufando, consternado. — Astradur e Bali deviam planejar isso há muito
tempo. Seria um esquema catastroficamente perfeito, se fosse um dia normal
e estivéssemos dormindo. As informações que tivemos antes nos pôs em
alerta. Caso contrário, estaríamos mortos.
— Todos acordaram? — questionei, ansiando e temendo pela resposta.
— O príncipe, o rei, Duque Vallen e Conde Donn… ainda não — Warder
informou, com pesar. — As meninas já acordaram. Leanne e Julieth estão
bem. As pessoas, na ala de segurança, incluindo a rainha, não sofreram as
consequências do gás. Darius acordou e está acompanhando à distância o
ataque na Baía Cachalote, que tem acontecido por algumas horas, como
também outras frentes. — Fez uma pausa. — Mia, o Decreto Sentinela foi
acionado.
— Tropas nas ruas, estradas bloqueadas… — Olhei para as janelas, que se
mantinham fechadas. Ainda é dia. — Você disse que Baía Cachalote está
sendo atacada há algumas horas… por quanto tempo eu apaguei?
Beast tocou meu pulso, fazendo-me prestar atenção nele. De verdade.
Brad estava exausto. Com a mão livre, segurava uma garrafa d’água. As
roupas novas, uniformes da Brigada Real, estavam amassadas pelo constante
movimento. Além dos cabelos bagunçados e um pouco de fuligem em suas
bochechas.
— Estamos no início da tarde. Aproximadamente por dez horas.
A enfermeira passou ao lado da cama, verificando e anotando algumas
coisas.
— Mia, acho que você tem que descansar mais um pouco — sussurrou
Warder.
— Quero vê-lo.
Warder tentou me deter, ao mesmo tempo em que Beast segurou na cama,
para se levantar. Parei a movimentação de ambos ao olhar fixamente para
eles.
— Eu vou sair dessa cama — informei. — E vou ver Orion Bloodmoor.
Deram espaço para mim e eu me sentei.
— Onde ele está?
— Na sala ao lado — Warder explicou. Fiquei tonta assim que meus pés
tocaram o chão.
— Senhorita, precisa terminar a transfusão — um médico shifter
intercedeu. — Não pode…
Tirei a bolsa de sangue do suporte e entreguei para Beast.
— Segure isso bem no alto. Vamos.
Me despedi de Warder e fui até a outra sala. Consegui caminhar
normalmente, a tontura passou assim que me estabilizei, e dei um passo. A
força da transfusão e o sangue bebido me deram a energia necessária. Beast
ficou em silêncio ao meu lado, com a bolsa de sangue acima da sua cabeça.
Observei a ala médica. Vallen e o vampiro de cabelos castanhos estavam
recebendo assistência em outro quarto. O rei estava parado e impotente,
também sendo auxiliado. Foquei imediatamente na linha de sangue, descendo
pelo cateter, conectado em suas veias.
Engoli em seco.
— Por aqui — Beast indicou.
Inspirei fundo quando avistei Orion.
Entrei e fiquei ao lado da cama do meu Ma’ahev e precisei sufocar dentro
de mim o medo de perdê-lo. Observei seu rosto, marcado por veias azuis
saltadas, e acariciei desde a ponta do seu nariz, desenhando com o indicador
seus lábios secos, o maxilar quadrado, o furinho no queixo.
As pálpebras estão fechadas.
Desejei ver as íris vermelhas, tão incomuns e lindas. Quis ouvi-lo, sentir
suas mãos em mim. Seu sorriso. A voz chamando-me de Yafah, ainda que
não soubesse o que significava.
— Be... ast. — Minha voz falhou meio segundo antes de eu calar minhas
emoções. — Os médicos deram garantias? Funcionou comigo. Sei que o
sangue dele é diferente, e mais antigo… mas vai dar certo, né? Vai dar certo?
Ele vai ficar bem?
— Vai. — Assentiu. Uma garantia que precisávamos. — Tem que dar
certo.
Desviei minha atenção para o corredor, onde enfermeiros e médicos
passavam apressados. Ouvi-os comemorar porque o rei Callum estava
despertando. E, como o bom monarca que era, estava preocupado com a
situação do país e de sua família.
Um médico entrou no quarto de Orion e pegou o prontuário do suporte aos
pés da cama. Seus olhos foram primeiro para o meu Ma’ahev, para depois
irem até mim.
— Deveria estar deitada.
— Precisei vê-lo.
A compreensão tocou seu rosto.
— Entendo. Ainda assim… — O médico deu a volta, ficando do outro
lado da cama. Iniciou uma sequência de procedimentos e, por mais que
quisesse deixá-lo cuidar de Orion, precisei perguntar.
— Como ele está?
— O estado clínico de Sua Alteza é estável, considerando a gravidade da
situação. — Respirou fundo. — Antes de termos o máximo de informação
sobre o gás, todos os pacientes ficaram no oxigênio. Não obtivemos
resultados significativos. A ingestão oral de plasma enriquecido também não
surtiu o efeito esperado.
— Por quê?
— O organismo dos vampiros funciona de outra forma. Então, precisamos
de uma abordagem menos ortodoxa. Depois de identificarmos o agente tóxico
principal, ácido cianídrico, buscamos, como forma de tratamento, a
transfusão de sangue. Arriscado, mas efetivo.
Meu coração bateu rápido.
— E Orion respondeu a este tratamento?
— Obtivemos melhora na temperatura corporal de Sua Alteza, assim
como uma diminuição no inchaço das veias. Clinicamente, é um progresso.
— Isso é bom — Beast murmurou, pensativo. — Se há um progresso,
significa que deve acordar logo. Certo?
— Não posso afirmar — o médico considerou.
— Por que ele está demorando mais que os outros? — indaguei. — Eu
acordei… quase todos acordaram, e Orion…
— Os Bloodmoor possuem o sangue mais antigo dos vampiros. Criaram
muitos anticorpos, após a contaminação do vírus que deu origem à espécie de
vocês.
— Rei Callum está de pé.
— O que corre nas veias de um vampiro é único, senhorita Black. Vallen
e Donn, por exemplo, ainda não acordaram. Precisamos ser pacientes e
aguardar. — O médico observou algum ponto em meu braço. — Sente-se,
por favor.
Beast puxou um banco para eu me sentar. O médico retirou a bolsa de
sangue, agora vazia, das mãos de Brad. Vagarosamente, tirou o esparadrapo e
o acesso do meu braço, e pressionou a ferida por um ou dois segundos, antes
de afastar o algodão.
Ele sorriu.
— Vocês cicatrizam bem mais rápido que nós, shifters. Às vezes, esqueço.
Beast sentou na ponta de um leito vazio.
— E essa foi a última bolsa de sangue, senhorita Black — adicionou o
doutor.
— Finalmente — Beast sussurrou. — Meu braço já estava doendo por
segurar no alto.
— Fique em repouso o máximo que puder. Ordens médicas.
— Tudo bem, mas vai ser um pouco difícil. — Fui sincera.
O médico assentiu antes de jogar fora o algodão. Escutei seus passos, a
porta se fechando e soube que estávamos sozinhos. Levei meus dedos mais
uma vez para os cabelos de Orion, acariciando os fios úmidos. Vê-lo assim
me fez sentir que parte do meu coração havia se perdido e estava procurando
o caminho para casa.
Fiquei quieta por um tempo e, estranhamente, Beast também. Nós dois
estávamos preocupados com o príncipe de Alkmene, e agoniados com a
espera. Só de pensar no que Astradur fez, em todas suas maldades e
ambições, em como colocou Orion naquele leito…
O silêncio foi quebrado minutos depois quando o General Darius entrou
no quarto. Primeiro, dirigiu-se ao príncipe e franziu o cenho.
— Rei Callum queria vir, mas o médico o forçou a ficar deitado. Tentou
levantar, mas logo o fizeram descansar mais um pouco.
Darius tinha a expressão divertida e impressionada ao mesmo tempo ao
me encarar.
— Lembro-me de vê-la escondida no pátio de treinamentos, observando o
Goldblack… Ele mandava que fosse ficar com sua mãe, mas você era
teimosa.
— Sempre gostei de ver meu pai ensinando aos guerreiros.
Darius desviou a atenção para longe de mim, nostálgico por um momento.
Como se precisasse retornar ao presente, suspirou e pigarreou em seguida.
— O doutor que entrou para ver o rei Callum informou que o príncipe está
respondendo bem ao tratamento, mas vê-lo desse jeito… ver o que todos nós
acabamos de passar… Astradur e eu sempre tivemos nossas diferenças, mas
nunca antes tive tanta vontade de matá-lo arrancando seus membros um a um.
— Compartilho do sentimento. — Brad acenou com a cabeça, anuindo.
— Beast. — Darius desviou a atenção para ele. — Rei Callum ordenou
que eu pessoalmente agradecesse a você pelos serviços prestados a Alkmene
e a Coroa.
— Foi uma honra. — Beast sorriu.
— E, apesar de o momento ser agoniante, o rei Callum me pediu para
atualizá-los da situação.
— Qual a posição sobre os enfrentamentos, General? — pedi.
— Como disse ao rei Callum, há várias frentes de contra-ataque. Em Gila,
invadimos a casa do Governador. Durante a missão, não autorizei armas de
fogo, especialmente por existir um bunker com produtos tóxicos e munição.
Se entrássemos atirando…
— Poderia explodir — concluí.
Darius assentiu.
— Vocês entraram com o pé na porta e tudo? — Beast questionou,
ansioso. — Queria ter visto isso.
— Com o pé na porta e tudo. — Darius sorriu. — Encontramos tonéis e
uma espécie de veneno que altera quimicamente o cérebro dos shifters.
— Ah, sim. Sei bem. — Olhei rapidamente para Beast. — O que mais?
— Apreendemos todos os carregamentos e caminhões que já estavam em
curso — Darius continuou. — A missão foi concluída com sucesso. Já em
Rosys, tivemos um ataque surpresa. Não esperávamos que soldados rebeldes
vigiassem o centro médico. Eles atacaram o furgão. Recebi notícias recentes
de que os irmãos Eymor faleceram protegendo o estoque de sangue.
— Que merda… — Beast resmungou.
— A proteção deles e o senso de dever salvou todos nós. — Admirei
Orion por um segundo. — Serei eternamente grata.
— Na Baía Cachalote, a batalha continua. Barão de Egron…
— Echos? Echos está lá? — Beast interrompeu.
— Echos fazia o trabalho de espionagem para Sua Alteza. Como o Barão
de Egron já estava no local, o Príncipe Orion o designou para comandar a
batalha da Baía Cachalote. Estão sob fogo, contendo o máximo de inimigos
possível. O ataque veio por terra e água. Alguns navios da nossa frota
marítima foram sabotados.
Plano Navio… em Alabar.
— Mas, navio… — sussurrei — vocês verificaram o porto de Alabar?
Darius ficou confuso por um momento.
— Sim, verificamos. Não havia nenhuma movimentação. Caminhões,
pessoas escondidas, navios ou até mesmo uma milícia. Nem sinais, no radar,
da aproximação de um navio.
Quatro planos.
O Plano Ferradura estava em andamento. Um ataque ao principal centro
comercial e militar do país.
O Plano Zoológico foi contido. A transformação dos shifters não teve
sucesso.
O Plano Câmara…
Câmara de gás.
Olhei para Beast quando compreendi o maldito nome. Poético, até.
Lembrei-me da voz de Constance elogiando o pai, embora chateada por
perder quem ela queria.
Me levantei e bati na minha testa com o punho fechado seguidas vezes.
Por que eu não percebi isso antes?
— Beast. — Minha voz saiu afiada como uma navalha. — Plano Câmara.
Uma câmara de gás.
Sua boca abriu em choque.
— Ferradura, Zoológico e Navio. — Beast encarou o General. — Você
precisa verificar seus homens em Alabar. Agora. Vai anoitecer.
— Mas está tudo nos conformes e…
— Quando foi a última vez que recebeu uma atualização? — questionei,
elevando um tom.
Darius arregalou os olhos e nos pediu um momento. Afastou-se às
pressas, a sola de suas botas batendo firme no piso.
— Beast, será?
— Irei atrás do General e voltarei assim que tiver notícias. — Beast saiu,
me deixando sozinha com Orion.
Por mais angustiada que estivesse para saber notícias de Alabar, eu quis
ficar com Orion. Segurei sua mão, testando o encaixe dos nossos dedos, a
textura de sua pele. Inspirei fundo e observei cada detalhe do seu lindo rosto.
— Preciso que lute por você, por nós, por Alkmene — sussurrei, e me
inclinei para dar um beijo em sua testa.
Amava Orion com cada parte do meu coração, e não tinha vivido nem um
por cento de tudo que sonhava com ele.
— Esse pesadelo acabará em breve… Você vai acordar, seremos
vitoriosos sobre os inimigos do clã, então voltaremos para Anell Angels.
Veremos as estrelas, as constelações, e eu direi repetidas vezes o quanto amo
você. Não somos uma tragédia grega, Orion. Somos o que é eterno.
Foquei no sobe e desce do seu peito, a respiração cadenciada, e pedi em
silêncio que não parasse.
Somos eternos.
Afastei o lençol do seu corpo. Orion estava vestido como um guerreiro
Bloodmoor. Aconcheguei-me em um pedaço estreito da cama e apoiei a
cabeça em seu tórax, ouvindo a respiração e as batidas tranquilas do seu
coração.
— Acorde — murmurei, acariciando a farda de couro rígido.
A porta se abriu e uma enfermeira entrou, trazendo uma nova bolsa de
sangue. Em silêncio, retirou a que estava no suporte de Orion. Semicerrei os
olhos e me sentei quando não compreendi a troca. A bolsa antiga ainda estava
pela metade.
— Por que está trocando?
A enfermeira sorriu para mim.
— Foram encontradas, no meio do estoque vindo de Rosys, algumas
bolsas de sangue humano.
Encarei-a.
— O que… o que estavam dando a ele?
— Sangue sintético enriquecido.
— Por quê?
Vi o movimento da enfermeira, concentrada em sua tarefa, pronta para
substituir o acesso de Orion, e segurei levemente seu braço.
— Por que o sangue sintético? — repeti.
— Houve aumento significativo dos valores de eritrócitos, volume
globular e hemoglobina… — Não entendi coisa alguma. — Por favor,
senhorita Black, deixe-me fazer o meu trabalho, Sua Alteza precisa aumentar
o volume plasmático.
— Esse tempo todo… — pensei e soltei seu braço. — É por isso que ele
não está melhorando rápido.
— Sim, faz sentido. Mas, agora, com a substituição, irá se recuperar
completamente.
— Não.
Ela me observou, confusa.
— Como?
— Dê para ele.
— Sim, mas…
— Não em uma transfusão. Dê para ele beber.
A enfermeira franziu as sobrancelhas.
— Os médicos tentaram antes e não obtiveram sucesso.
— Até entendo que o sintético não fez efeito, mas, dessa vez, confie em
mim, Orion tem que beber.
— Não posso desacatar ordens médicas e mudar o tratamento do paciente.
Meus olhos focaram nos dela. Senti-os arderem, enchendo de emoção.
— Por favor.
— Hum… ah… senhorita Black... — A enfermeira pareceu considerar. —
Tudo bem, temos algumas bolsas… podemos tentar fazê-lo beber, mas, se
não funcionar, irei fazer a transfusão. — Ela suspirou, murmurando em
seguida: — Espero não perder o meu emprego… Fui a única da ninhada a
conseguir trabalhar na enfermaria real...
— Tudo bem.
A enfermeira fez os preparos e me disse como segurar o rosto de Orion no
ângulo perfeito. Ajeitei-me, ainda sentada ao lado do meu Ma’ahev. Apoiei
sua nuca em meu braço e ergui suas costas alguns centímetros da cama.
— Abra a boca de Sua Alteza, mas mantenha o queixo um pouquinho
inclinado para cima, não muito, para que não engasgue. Deixe a cabeça
mais… isso, assim, perfeito. Daremos pequenos goles, tudo bem?
Concordei.
O sangue humano gotejou em sua língua, pouco a pouco. Não tirei meus
olhos dele, analisando cada centímetro, ansiando por sua melhora, torcendo
para que desse certo. Beijei-o na têmpora, inspirei em seus cabelos.
— Por favor — sussurrei.
— Senhorita Black…
Em meus lábios, o calor de sua pele aumentou. Afastei-me e estudei seu
rosto. A cor arroxeada de suas veias foi suavizando, assim como o inchaço.
Segurei sua mão, e a esperança me sufocou.
Senti espasmos em seus dedos, e meu coração bateu forte. As bochechas
de Orion voltaram à aparência normal, coradas e com saúde. Em sua boca
entreaberta, manchada de sangue, vi o exato momento em que seus caninos
cresceram lentamente.
Meu coração descompassou.
— Deu certo — murmurei e olhei para a enfermeira.
Ela anuiu, sorrindo.
— Sim. Informarei aos médicos que esse procedimento deu certo.
Podemos testar nos outros. Vou deixá-los a sós.
Antes que ela pudesse se mover, virei-me para Orion. As íris de fogo, as
combinações da cor vermelha, dançando pela intensidade; as presas exibidas,
a boca emoldurando seu largo sorriso.
O peso que havia em mim saiu de forma tão abrupta que resfoleguei em
meio a um riso. Pisquei repetidas vezes, para conter as lágrimas que
ameaçavam sair.
— Você já estava chorando por mim, Yafah? — Seu timbre saiu rouco e
potente.
Bruscamente, segurei seu rosto, querendo gritar e ao mesmo tempo beijá-
lo. Mas o que fiz não pode sequer ser considerado um beijo. Foi alívio. A
emoção de vê-lo vivo. Em saber que minha ideia funcionou. E que não deixei
de acreditar.
— Eu quis tanto ouvi-lo me chamar assim que não me importo se acordou
com suas ironias. Significa que está bem.
Dessa vez, dei um beijo suave em sua boca, que foi retribuído de forma
muito mais intensa do que eu esperava. O medo e o sentimento de impotência
não tiveram vez. Seus beijos me fizeram entrar em combustão e me
devolveram a paz.
Meu coração voltou para casa.
Seus braços me envolveram, puxando-me mais para ele, até que me vi
sobre seu corpo. Pernas entrelaçadas, meus dedos em seus cabelos e os seus
apertando meus quadris quase dolorosamente. Sua boca devorou-me, a língua
envolvendo, os dentes puxando meu lábio inferior.
Orion desceu as mãos e apertou minha bunda com vontade, pressionando
meu corpo contra o dele, e, sob a farda de couro, fui capaz de sentir seu
desejo por mim.
O beijo foi abrandando até que só restaram suaves toques de sua boca em
meu rosto.
À distância, soaram as badaladas do sino em King Castle.
Estávamos no início da escuridão da noite, mas nunca me senti tão cheia
de luz.
Mia levou alguns minutos me atualizando a respeito dos acontecimentos.
Uma arma química dentro do castelo foi acionada. Um dos componentes era
meu sangue. Beast se fodeu para resolver quase tudo sozinho. Baía Cachalote
estava sob ataque, e Alabar, incomunicável. Labyrinth estava a salvo. Em
King Castle, meus pais estavam bem. Tio Vallen, Donn e outros se
recuperaram. O problema é que havia uma coisa naquela história que não
desceu pela minha garganta. E nem dez litros de O+ me fariam engoli-la.
Astradur poderia pegar o dispositivo silencioso e traiçoeiro que jogou
sob meu teto e enfiá-lo…
Muitas horas se passaram. Não havia mais um minuto a perder.
Já de pé, calcei as luvas, afivelei o cinto e coloquei a katana na bainha.
Ajustei a farda, ignorando a sensação que zanzava em meu corpo.
— Obrigado pelas atualizações, meu amor. Mas você está bem, Yafah?
Analisei a mulher que o destino havia escolhido para ser minha. Na
superfície, o que mostrava era a dureza e o preparo de uma guerreira. Mas,
por baixo disso tudo, estava minha Ma’ahev, a vampira que eu amava.
Quando acordei, a primeira coisa que vi foram seus olhos verdes
preocupados. Eu não quis ser o causador desse sentimento. O instinto forte de
proteção se misturou a emoções conflituosas.
— Sim, estou. — Mia me observou, atenta aos meus movimentos, curiosa.
— E você, como está se sentindo?
— Tenho a energia de mil vampiros em mim. — Desci o olhar para sua
boca vermelha, inchada dos meus beijos. — A sorte é que o Ta’avanut
abrandou assim que me aceitou como seu Ma’ahev. Caso contrário, não teria
razão que me parasse.
— É, essa sua intensidade… — Mia pigarreou.
Poderia contar nos dedos da mão quantas vezes estive assim. Foram
poucas. Naquele segundo, sangue humano efervescia em minhas veias. A
bravura perigosamente beirando a inconsequência. Fogo dançava sob minha
pele. A energia serpenteava, quase impossível de ser contida. No milésimo de
segundo em que segurei a katana, a sensação que veio foi que eu poderia
quebrá-la se quisesse, trazendo à superfície a noção da minha força. Senti-me
capaz de fazer tudo ao mesmo tempo. Minha pulsação estava acelerada. A
perspectiva aguçada: textura, formas e cores.
Confidenciei em um sorriso a intimidade de conhecê-la profundamente.
De já ter provado a nossa química quando se misturava. De saber o que Mia
quis dizer.
— Preciso ver meu pai. E, depois, a ideia é sair e lutar. Se estão brandindo
espadas na Baía Cachalote, é lá que o Príncipe de Alkmene tem que estar. —
Fiz uma pausa. — Quero dividir o campo de batalha com você. Seria fonte de
honra e orgulho lutar ao seu lado.
Mia abriu um sorriso amplo, sincero, do jeito que eu gostava.
Ah, porra… suas presas.
— Mas não comigo vestida assim… — brincou, apontando para sua
camisola hospitalar. Aproximou, colocou suas mãos em meus ombros, ficou
na ponta dos pés e beijou-me. — Converse com o rei Callum enquanto me
preparo. Prometo que volto em breve.
Mia saiu do quarto, e a acompanhei. Ela virou à direita e me olhou sobre o
ombro antes de desaparecer de vista. Caminhei pelo corredor da ala de
enfermagem, observando, aliviado, que os quartos estavam vazios.
Todos tinham se recuperado.
Conforme minhas botas pisavam no chão, fui acompanhado pelas janelas
de King Castle se abrindo para a noite absoluta. Descansei a mão sobre o
punho da katana, sentindo a segurança de tê-la ali.
— Vossa Alteza… — Um funcionário shifter me reverenciou, não se
erguendo até que eu passei.
A cena foi se repetindo até que cheguei ao salão de estratégia.
Era a forma de eles demonstrarem que estavam felizes por eu estar vivo e
pronto para lutar em nome de Alkmene, em nome de todos.
Expirei fundo quando avistei meu pai, Donn, Warder, Vallen e Darius na
mesa retangular. O rei foi o primeiro que me viu e parou imediatamente o que
estava fazendo para se aproximar. Nunca antes, publicamente, meu pai me
olhou como Callum. Foi a primeira vez que senti que o seu amor por mim
pesou mais do que a Coroa. Seus braços vieram na altura dos meus ombros, e
ele me apertou forte, batendo seguidas vezes em minhas costas.
— Estamos bem? — sussurrou e se afastou para ver a resposta em meus
olhos.
Esperei que estivéssemos olho no olho e anuí.
— Sim, estou bem.
O rei assentiu uma única vez e se afastou.
— Sua mãe está bem, na ala de segurança. Ela, sua tia Gwen e outros não
sofreram as consequências do gás. A ventilação daquele setor estava fechada.
Não descansei até ter certeza de que sua mãe estava bem.
— Astradur estava muito certo de que estariam nas alas nobres — Warder
se aproximou e pontuou. — Que bom que está bem, Orion.
Paralelamente, percebi Vallen com os braços cruzados, observando Donn e
Darius divergirem em suas opiniões.
— De moto seria mais rápido.
— Precisamos preparar a montaria. A cavalo, o modo tradicional…
— Que modo tradicional, Darius? Estamos no século XXI. E daí que
temos meio milênio? Vamos de moto e pronto. A modernidade existe para
nos servir.
Darius abriu a boca, consternado.
— Vocês já estão se preparando para Baía Cachalote? — perguntei ao
meu pai.
— Sim.
— Imaginei.
Andei até Vallen, Darius e Donn, com meu pai e Warder em meu encalço.
Alte parou no vão da porta e aguardou. O rei autorizou com um meneio de
cabeça e o mordomo se aproximou delicadamente, carregando uma bandeja
com taças cheias de sangue.
— Alte, o que está fazendo aqui? — o rei indagou, curioso, aceitando a
taça. — Não ordenei que fosse ficar com a rainha e a duquesa?
Todos pegaram os cálices, inclusive eu.
— Vossa Majestade, vim servi-los antes de ir para a ala de segurança.
Diante da tormenta que se anuncia, não fará mal se estiverem melhor
alimentados.
— Sobrou uma taça — Donn reparou. — Posso pegar?
Alte elevou uma sobrancelha.
— É para a senhorita Goldblack.
Retirei a taça da bandeja e a apoiei sobre a mesa.
— Obrigado, Alte.
Nosso mordomo se retirou, cumprindo as ordens do meu pai.
— Senhorita… quem? — Donn murmurou.
— Se você tivesse cumprido todas as obrigações familiares nos últimos
séculos, enquanto eu estava aqui me fodendo, talvez tivesse conhecido minha
Lochem — falei, ríspido. — É um dos momentos mais singulares da minha
vida, Donn.
— Ah, primo. Eu sou um viajante. E a minha vida vai continuar a mesma.
Aproveitarei cada minuto.
Vallen sorriu com a resposta do filho.
— Viajante, sinônimo para não conseguir ficar em um só lugar.
— Gosto de conhecer o mundo. — Deu de ombros. Donn me observou, os
olhos estreitos focados em um ponto específico do meu pescoço: a marca que
me tornava o vampiro de Mia Black. — Humm… primo. Essa moça é só
Lochem?
— Não somente — afirmei.
Senti todos os olhares, de repente, cravados na marca.
— O que foi? — Arqueei as sobrancelhas.
— Nada — disse Vallen.
— Absolutamente nada — afirmou meu pai, junto ao seu irmão.
— Nadinha — Donn concordou.
Darius balançou a cabeça, negando.
Warder cruzou os braços e abriu um sorriso de lado.
Senti a aproximação de Beast muito antes de sua voz nos alcançar. Ele
anunciou sua presença batendo brevemente à madeira da porta, entrou e
cumprimentando todos. Depois, se dirigiu a mim.
— Orion… — Tocou meu ombro e respirou aliviado. — Deu realmente
certo! Que bom que está tudo bem…. ou não. — Franziu a testa. — Você
está pelando, cara.
— Sangue humano — respondi, e Beast imediatamente recolheu a mão,
retrocedendo um passo.
— Você sabe que está bem louco agora, né?
— Nem tanto.
Beast sorriu. Estava estampado em sua cara que não havia acreditado em
uma palavra do que eu disse.
É, meu amigo me conhecia bem.
— Bom saber. — Focou a atenção no meu pai. — Majestade, estou feliz
em informar que consegui reunir todos os shifters maduros de King Castle.
Estão prontos para lutar em vosso nome.
— Fico satisfeito em ouvir isso. — O rei assentiu.
— E Alabar, General? — questionei.
— Mandei nossos soldados em Tática Espalha. Nossos homens se
dispersaram para atacar agressivamente o adversário. O inimigo não nos verá.
Estarão esperando um bloco ou um círculo defensivo.
— E se for mesmo um navio? Qual a estratégia? — perguntei.
— Martelo e bigorna — respondeu Darius.
— Que porra é essa? — Donn questionou.
— Os aliados se dividirão em três blocos. O primeiro, com escudo.
Depois, um bloco leve, para prender o inimigo na retaguarda. O último, mais
pesado, mantendo uma pressão constante, enquanto a função do bloco leve é
contornar os inimigos e brutalmente dominá-los pelos flancos.
— Ótimo, General. — Assenti. — Podemos continuar, pai.
O rei meneou a cabeça em concordância. Apontou para o mapa de
Alkmene sobre a mesa e mostrou as peças de marfim bege, indicando o
exército inimigo. Onde se daria nossa presença militar era marcado com as
peças de marfim negro.
— Atuaremos em duas frentes distintas, sem descuidar de nossa
retaguarda. A ideia é retirar o exército do seu posto, entre Gila e Baía
Cachalote, e atrair os soldados para locais com menos defesa, onde estaremos
em vantagem de terreno, que é o caso de Vale Potenay. Isso facilitará nosso
ataque, por reduzir a tentativa defensiva, e também fará com que o inimigo
tenha que lutar em um local fora do planejamento prévio. — Meu pai
empurrou as peças, demonstrando seu raciocínio.
— Com todo o respeito, Majestade, sei que a população de Vale Potenay
estará a salvo, protegida pela cadeia montanhosa, mas, no momento, nossos
homens estão encurralados entre as fragatas de Astradur, no porto, e os
soldados que tomaram a zona central da Baía Cachalote. — Darius moveu a
cabeça, negando.
— Orion? — O rei indicou o mapa, aguardando minha opinião.
— Concordo com o General, mas também não posso descartar a sabedoria
de empurrar nossos inimigos para as montanhas do Vale. Eu… eu… — Senti
algo dentro de mim se agitar. —… penso que seria… interessante unificar
essas ideias de algum modo.
Meu coração tropeçou nas próprias batidas quando a conexão entre nós
reconheceu sua presença. Não precisei me virar para vê-la. Eu soube. O rei
pediu para a Major Goldblack adentrar o salão de estratégia, e foi aí que me
virei.
Para qualquer um na sala, suas roupas eram apenas para o cumprimento de
um dever. No entanto, para mim, aquela era a forma de Mia dizer que estava
indo à luta como minha Lochem, como a responsável por atestar o futuro rei
de uma nação, como o cargo que se sentiu honrada em receber. Era a maneira
de me dizer, nas costuras prata e vinho, um sim.
O rosto suave, o cabelo preso e os olhos desafiadores trouxeram à
superfície a Major. Segura de si, com a espada favorita a tiracolo, lançou um
discreto olhar em minha direção.
Aquela mulher…
— Senhorita Goldblack, vejo que está pronta — meu pai aprovou.
— A Lochem do Orion? — Donn sugeriu.
Adverti-o com os olhos semicerrados.
Donn quase riu.
— Mia Goldblack, e você é….
— Donn Bloodmoor, o Conde Profano.
Mia anuiu, inclinando a cabeça para o lado, quase imperceptível, ligando o
nome à pessoa.
— Se me permite… — Vallen sussurrou. — A senhorita é muito parecida
fisicamente com sua mãe, mas, neste momento, a determinação em seu
olhar... é como se visse Malya na minha frente.
Mia observou-o curiosamente.
— Você é a primeira pessoa que me diz isso.
— Eu conhecia Malya — Vallen esclareceu.
Os olhos verdes de Mia, a maneira que ela observava tudo ao seu redor,
discreta o bastante para ninguém, além de mim, conhecê-la. Como se
soubesse que pensava nela, Mia se aproximou, ficando ao meu lado. Sob a
mesa, a ponta de seus dedos resvalou nos meus.
— Major Goldblack — o rei quebrou o silêncio. — Quero sua opinião
sobre nossa estratégia de ataque.
Mia pontuou os tópicos mais importantes, pediu o status da batalha e quis
saber quantos homens nossos, aproximadamente, ainda estavam de pé. Darius
alertou que estávamos usando todo o nosso poder bélico na Baía Cachalote.
Mia sugeriu que Beast liderasse o exército dos shifters, atuando na linha de
frente. Após concluído o estudo da operação, nos dirigimos ao salão principal
de King Castle. Minha prima, Leeanne, e Julieth Haylock nos aguardavam,
vestindo armadura de couro, prontas para nos acompanharem para a frente de
batalha.
O rádio de Darius chiou alto, a voz de um homem desesperado soando do
outro lado.
— Eles… estão… aqui… — O som rouco e entrecortado denunciou que
estava ferido.
Darius tirou o rádio da cintura.
— Onde está, soldado? — questionou.
— Estr… do… rei… — A estática tomou o outro lado da linha.
O General arregalou os olhos. Então tentou localizar seus homens no
rádio, caminhando de um lado para outro.
— Até momentos atrás, tudo estava bem — Darius resmungou.
— O que está acontecendo, General?
Darius não teve tempo de responder.
Soldados da Brigada Real entraram no castelo.
Nossos homens estavam recuando?
Eles fecharam as portas, apavorados. Alguns viraram-se para nós,
empalidecidos.
— Abatemos... tantos quanto foi possível… — exaltou-se um dos
guardas. — Eles parecem famintos... e estávamos em desvantagem numérica.
É uma horda. Ainda estão lá embaixo, mas inevitavelmente subirão.
— Majestade… eu… não sei como dizer… mas não são… simples
vampiros — o Capitão tomou a frente. — Não são humanos, muito menos
shifters. Eles são uma coisa.
O rei desembainhou a espada.
— O exército de Astradur.
Puxei a katana e me posicionei, sabendo que tínhamos tempo. O castelo
ficava alto o suficiente para retardar o exército.
Pensei nos médicos que tinham vindo nos ajudar e, o mais rápido que
consegui, ordenei aos meus homens dentro do castelo, que isolassem a ala de
enfermagem, protegendo-os.
Mia desembainhou sua espada, interrompendo meus pensamentos.
Poderia ser impressão, mas ela me pareceu diferente naquele instante.
— Você está bem? — Antes de lutar, eu precisava ter certeza.
Mia girou a espada na mão.
— Estou pronta. — Seus olhos se estreitaram. — E você?
— Pronto.
Neguei com a cabeça.
— O que foi, Orion?
— Estou pensando que a maior concentração do nosso exército está na
Baía Cachalote. Somos a última linha de resistência entre esse desgraçado do
Astradur e o lar ancestral dos Bloodmoor.
— O principal elemento de qualquer estratégia é a consequência de suas
ações e uma vitória sustentável. Astradur e Bali foram traiçoeiros porque não
têm competência de nos enfrentar num combate cara a cara. Onde estão
agora? — Mia observou os demais no salão e sorriu enviesado. — Temos
homens… e shifters suficientes para vencermos.
— E mesmo se houvesse apenas nós dois, minha Yafah. — Sorri
lentamente de volta para ela. — Se eles quiserem o trono, terão que tomá-lo à
força.
À certa distância, Beast tirou a camisa e as botas rapidamente. Leeanne o
advertiu para que não prosseguisse. Ele riu, mas não havia diversão nisso.
— Eu vou querer ter o que vestir depois que essa merda acabar e
destruirmos aqueles...
Houve um estrondo na porta principal do castelo.
Gritos e grunhidos, a madeira sendo arranhada. Cheiro de carne
apodrecida chegou a nós. Mil vozes em uma só, lamuriando em tormento.
Ficamos a postos quando o peso do que quer que estivesse do outro lado
forçou-se contra a porta.
— O que era para ser só uma reunião de família… — Donn se
pronunciou. — Acho que, enfim, temos visitas.
— Não conseguiremos conter os vampiros-demônios por muito tempo…
— um shifter anunciou.
— Como chegaram tão rápido até aqui em cima? — Warder questionou.
— Uma parte veio pela lateral, subindo a encosta que liga Alabar a King
Castle. O resto veio pela estrada principal — um dos guardas respondeu.
— Astradur não podia ter criado um exército normal, né? Tinha que vir
com uma surpresinha — concluiu Donn.
— A pergunta de Warder foi pertinente e me fez pensar. O castelo é
enorme. Eles bateram justamente aqui? Como sabiam exatamente onde
estávamos? — Mia se manifestou.
Darius desviou o olhar da porta para a grelha de ventilação.
— Foram atraídos até nós.
— Criamos, com o cheiro do sangue na ala da emergência, um rastro para
cá — Warder complementou.
Ia me pronunciar, mas não tive tempo. A porta foi chacoalhada. E, quando
isso aconteceu, vi os shifters abandonando as armas para aderirem à sua
forma natural. Roupas rasgaram ao mesmo tempo em que rugidos e rosnados
se misturaram ao som do exército de Astradur. Beast se tornou um urso de
mais de dois metros.
Nós também nos preparamos. Formamos, atrás dos shifters, uma linha para
defender a nossa casa. Meu pai veio ao meu lado, enquanto Mia ficou do
outro. Vallen se aproximou também, colocando-se perto da minha Ma’ahev.
Donn, ao lado do rei, ajeitou sua espada. Darius se posicionou à direita de
Julieth, e Leeanne ficou próxima a Warder. Formamos um arco e não tivemos
tempo para tomarmos mais um fôlego. A porta veio para frente uma, duas,
três vezes. Na fresta, dedos espreitaram, unhas longas, afiadas e duras como
cascos fincaram na madeira, forçando a entrada, antes de a dobradiça estourar
de vez.
Foi como se tivessem rompido as barreiras do inferno.
Surgiu uma horda de vampiros deformados. As pupilas dilatadas, as mãos
atrofiadas, os cabelos caindo. Grunhiram, monstruosos demais para serem
naturais, e derrubaram boa parte dos soldados no chão. Seus dentes, grandes e
afiados, arrancavam a carne dos nossos homens, para beberem o sangue que
jorrava de suas veias. Outros avançavam em grupos sobre os shifters,
rasgando sua pelagem, consumindo-os como caças, secando-os, sugando até
a última gota de sangue.
Para todos os lugares, havia inimigos.
Eles eram rápidos e estavam famintos. Vinham, não com o intuito de
eliminar ameaças. Nos enxergavam como um banquete. Os shifters, na linha
de frente da batalha, defendiam-se com suas patas e garras, lançando-os para
longe, quando os abocanhavam.
Foi nisso que Astradur transformou o navio de turistas?
Levei segundos inteiros para estudar a movimentação que faziam os seres
diabólicos que estavam diante de mim.
Puta que pariu.
Pulavam direto para a jugular, estraçalhando.
Caíam como animais, mãos e pés no chão, e montavam nos corpos de suas
vítimas. Afundavam as unhas em suas cabeças, incapacitando-as
imediatamente.
Compreendi, então, como deveríamos matar aquelas coisas.
A luta corpo a corpo seria um grande erro. Tínhamos que pegá-los no ar,
exatamente no momento em que pulavam sobre nós.
— Mantenham-nos à distância de suas espadas. — Um veio até mim. Eles
pareciam pesar toneladas, ainda que seus corpos fossem magros e
aparentemente débeis. A katana atravessou a carne flácida, espetando o
coração, puxando-o para fora do corpo, acompanhando o movimento da
minha espada. Apontei a lâmina para o chão e tirei o maldito negócio com a
bota. Eles literalmente estavam se decompondo. — Não permitam que
cheguem perto. Ficam vulneráveis quando saltam. Atinjam seus corações —
gritei sobre os sons da luta.
Lancei um olhar para Mia, vendo que já tinha pegado o jeito. Ela derrubou
uma das criaturas com um chute, decepando sua cabeça em seguida.
Voltou sua atenção para mim.
— Cortar cabeças também serve.
Uma dupla de vampiros-demônios se impulsionou em minha direção. Fiz
a katana formar um arco no ar, sentindo da leveza ao impacto, o momento em
que atingiu os pescoços, aniquilando dois de uma só vez. Seus corpos inertes
caíram amontoados.
— Realmente — disse para Mia. — Também funciona.
O ser bestial veio com vontade de sangue para cima do meu pai. Dei um
passo para o lado, mas, antes que pudesse me aproximar, o rei girou, indo
para as costas do monstro. Acertou-lhe um golpe na nuca, com o punho da
espada. Tamanha foi a força que o bicho cambaleou para a frente, mas ainda
vivo, emitindo um som terrível. Meu pai inclinou-se sobre ele, atravessando
com os dedos enluvados o corpo do vampiro-demônio, alcançando sua
coluna.
Ele arrancou a espinha dorsal, jogando o osso pútrido no chão.
— Do caralho.
O rei deu de ombros.
— Sou tradicional.
Sorri para ele e me tornei só movimento à medida que a luta ficou
perigosamente próxima. Encarei um vampiro-demônio nos olhos, as íris
brancas, as pupilas vazias.
— Vem. — Minhas presas rasparam o lábio inferior.
Ele saltou e eu desviei, levantando a espada bem alto, acima da minha
cabeça, criando um movimento ascendente e preciso. A força aplicada e o fio
da lâmina atingiram o centro do seu crânio, descendo enquanto separava-o ao
meio. Entre a carne partida, vi Beast nos portões do salão, usando a
brutalidade de suas garras e dentes. Ao lado dos soldados, filtrava o máximo
de inimigos que encontrava, aliviando nossa luta.
Diante do cenário, perdi a noção do tempo. Minha espada mutilava e
degolava dezenas de monstros. Tio Vallen lutava ao lado de Warder e meu
pai. Darius, em uma zona isolada, restringia a luta ao salão, evitando que
chegassem aos corredores. Julieth e Leeanne, de costas uma para a outra,
sendo auxiliadas por alguns shifters, lutavam destemidas. Donn, confiante
com sua lâmina, estava determinado a proteger o acesso às escadas. Juntos,
éramos uma potência. Antes que pudesse encontrar Mia, o vulto de algo
pontiagudo passou ao lado do meu rosto. Acompanhei o movimento. Atrás de
mim, a perna quebrada de um móvel empalava na parede um dos vampiros-
demônios. A cabeça se desmembrou e o corpo se espatifou no chão.
Encarei Mia.
Completamente descabelada, sangue em seu rosto, as roupas desalinhadas,
suas presas exibidas pela adrenalina da luta. Enxerguei-a mais bonita do que
jamais a vi. Mia Black era a minha valquíria.
— Pelo visto, a guerreira salva o príncipe. — Ouvi-a dizer, orgulhosa.
Assisti, em câmera lenta, a uma daquelas monstruosidades às costas da
minha Ma’ahev. A intenção de voar sobre Mia ficou clara. Prendi a
respiração e, pela visão periférica, enxerguei uma espécie de lança no chão.
Vai servir.
Enfiei a ponta da bota embaixo e joguei a peça para cima. Capturei no ar o
varão de uma das cortinas e, com a mão livre, em um só impulso, arremessei.
Como havia calculado, o maldito demônio saltou, abrindo sua boca com
dentes afiados, preparando-se para mordê-la. A lança improvisada atingiu o
ponto exato, atravessando a garganta do monstro e levando-o direto para o
inferno de onde havia saído.
— Pelo visto, o príncipe também salva a guerreira por aqui.
Mia olhou para trás, e depois para mim, expressando gratidão com um
breve sorriso.
Não senti desesperança pela duração da batalha, apesar de perceber que
parecia não ter fim. Chequei o perímetro mais uma vez. Todos que amava
estavam vivos, mas cansados, lutando com suas vidas. Poucos soldados
ficaram de pé, os funcionários shifters que sobraram estavam banhados em
sangue seco.
A cada membro mutilado, prometia que o Duque sofreria. A cada cabeça
cortada, jurei que Astradur morreria. Quanto mais o cheiro podre
contaminava o castelo construído pelos meus antepassados, maior a ânsia
pela vingança.
Astradur não me destruiria.
Ele, na verdade, estava criando um rei que iria caçá-lo.
A katana zuniu no ar.
Torturá-lo.
Sangue espirrou em meu rosto.
Matá-lo.
De longe, o brilho prateado de uma espada atingiu meus olhos,
iluminando a minha fúria. Julieth empunhou a lâmina para abrir caminho,
seguida de Leeanne. Semicerrei as pálpebras quando percebi que ambas
vinham em minha direção. Havia o dobro de vampiros-demônios do começo,
e estávamos dispersos. Troquei olhares com a namorada de Echos e
compreendi, então, o que ela queria fazer.
— Reagrupar! — gritei mais alto que o som da luta, minha voz
chicoteando nas paredes do salão leste do castelo.
Aos poucos, formamos um círculo no centro do salão. Exceto por Donn e
o General, que tinham que proteger as outras entradas para o interior do
castelo.
Soldados, shifters, minha família, amigos...
Mia colou seu corpo ao lado do meu, a espada cortando.
— Eu amo você — sussurrei somente para ela.
— Também amo você, Orion — prometeu, não só com as palavras, mas
também com seu olhar.
Combatemos o mal pela raiz. As cabeças e os corações dos vampiros-
demônios caindo no assoalho. Respeitando o espaço de defesa, nossas
espadas formaram uma única arma. O ataque dos shifters uniu-se à força dos
soldados. A ideia de Julieth de tornar a sincronia nossa aliada salvou nossas
vidas.
A luta imprimiu um ritmo novo. Juntos, conseguimos diminuir a
quantidade dos monstros.
A esperança vibrou entre nós, eu pude sentir.
Porra!
Dispersamos, cada um atrás de um grupo de inimigos. Quando tive uma
janela de batalha, procurei por Julieth, o agradecimento em meus olhos, mas
seu foco estava em meu pai.
O rei havia sido cercado, impedindo de lutar contra todos ao mesmo
tempo. Apressadamente, tentei chegar para salvá-lo, quando um grupo de
vampiros-demônios bloqueou meu caminho. Abati os que pude, e isso me
retardou. Entre a luta, assisti, impotente, ao maior dos vampiros-demônios
prestes a saltar sobre o rei.
— Pai! — gritei e todo o ar saiu dos meus pulmões.
Com dois passos largos, Julieth chegou ao rei. Vi sua silhueta feminina
girar para a frente, bloqueando a investida do inimigo. Levantou a espada,
transpassando o corpo da criatura, muito acima de sua cabeça. Os braços dela
não sustentaram o peso, o ângulo foi infeliz e o monstro, ainda vivo,
escorregou pela lâmina, atingindo-a com suas garras, letalmente.
Beast bramiu dolorosamente ao ver a cena.
Escutei Mia gritar o nome de Julieth.
Arquejos, bramidos e urros. Os sons trouxeram a mesma indignação:
nenhum de nós teria sido capaz de salvá-la.
Amaldiçoei o momento, conflituosamente agradecendo-a por proteger
meu pai. Enquanto aniquilava os demônios com a katana, acelerado e
possuído pela raiva, revi a trajetória que entrelaçava nossas vidas. A revolta
fundamentada contra o pai, Bali Haylock. O coração puro de uma vampira
que tinha um infinito de bondade dentro de si. Os jantares em que a
recebíamos como nossa família. O sorriso que ela dava ao Echos, em cada
um de seus encontros secretos.
Echos.
Como ficaria quando soubesse que o pai de Julieth elaborou um plano
traidor e que, no fim, trouxe sua filha até aqui, para ela fielmente se
sacrificar pelo rei?
A aflição e o ódio saíram do meu coração, indo direto até a ponta da
minha katana. Retalhei os vampiros-demônios, calando a exaustão. Meu pai
conseguiu eliminar as ameaças iminentes, enxergando quem salvou sua vida.
Nunca o escutei urrar daquela maneira. Sua voz ecoou pelo salão, e a mesma
fúria que senti vi em seus olhos e na rapidez de seus movimentos.
Por mais força e velocidade que investíamos, alguma coisa foi
vagarosamente se transformando. A princípio, não soube identificar o quê.
Reduzi um pouco a energia que vinha aplicando para entender o que estava
acontecendo. A multidão de vampiros-demônios nos pressionou, nos
obrigando a recuar. Pensei em minha mãe, resguardada na ala de segurança, e
na promessa que fiz a ela. Bradei violentamente a espada. Ao meu lado,
minha Ma’ahev fez o mesmo. Poderíamos suportar a batalha em força física,
por dias, se precisássemos, mas, ao olhar o tumulto dos vampiros-demônios,
seus rostos, pouca coisa humanizados, resquícios de quem já foram um dia…
Estávamos matando monstros que outrora foram inocentes.
— Orion, concentre-se nos sons. — Mia tirou-me dos pensamentos. —
Ouça além dos salões deste castelo.
Entre os grunhidos das criaturas, escutei tiros. Os sons externos
clarificaram a situação geral. Os vampiros-demônios não atacavam mais com
tanto fervor, era o comportamento de quem buscava refúgio. Amontoaram-se
sobre nós, querendo nos atropelar para escaparem.
Próximo a Beast, um caiu. O efeito dominó foi lentamente chegando até
nós à medida que deixávamos de ver os monstros para identificarmos…
Semicerrei os olhos.
— Echos?
Os vampiros-demônios pouco a pouco foram aniquilados, e nossos aliados
tomaram seu lugar sob o teto de King Castle. Fiquei feliz ao ver tantas
espadas, armas e uniformes da Brigada Real e Guardiões.
Unidos a um verdadeiro exército implacável, demos fim à exaustiva
batalha que perdurou por horas.
Apesar do alívio inicial, meu coração se apertou ao ver o resultado da luta.
Na verdade, ninguém ganha em uma disputa sangrenta. A vitória é
subjetiva.
Os shifters que sobreviveram ainda se mantinham em sua forma animal, a
fim de se recuperarem mais rápido dos ferimentos. Outros soldados também
foram amparados, por culpa de suas lesões.
Próximo a mim, escutei Warder solicitar um médico para o General
Darius, que, recostado na parede, pressionava o pescoço, onde fora atingido.
O General, com dificuldade, acenou para que um sargento da Brigada Real se
aproximasse.
— Senhor? — O homem olhou para Darius com atenção.
— Baía… Cachalote…
— Acabou, senhor.
— Meus… homens…
— As perdas estão dentro do número esperado.
O General pressionou ainda mais sua ferida com a mão livre, enquanto
recebia o relatório de como havia sido o ataque e a defesa. O médico não
demorou a chegar. Observei o General Darius sendo acolhido pelo doutor,
falando baixinho com Warder e seu sargento, como se soubesse que aquelas
seriam suas últimas instruções. A cor do seu rosto estava se apagando, mas
ele manteve a grandeza. Eu já vi homens sendo atingidos no mesmo local em
que Darius foi. Nenhum havia resistido tão bem.
Tirando-me daquele cenário, braços fortes me envolveram e o peito firme
cobriu minha visão. O calor da sua pele tocou minha bochecha quando passei
as mãos por sua cintura. O odor salgado misturado ao sangue foi a certeza de
que ainda estávamos vivos. O conforto que nunca senti depois de uma
batalha.
O amor.
— Estava com meu pai, enviando ordens para que liberassem a ala de
segurança. Verificamos a busca que estão fazendo por Astradur e Bali
Haylock.
— Qual o status? — perguntei e desviei o olhar para ele.
— Sem pistas ainda. Duvido muito que consigamos alguma coisa ainda
esta noite. — O maxilar de Orion travou. — Estava com Warder e Darius,
não é? Qual o estado de saúde do General?
— Nada bem.
— Leeanne aguentou o quanto pôde, mas desmaiou. Donn a levou para o
quarto.
— Está ferida?
— Abalada. — Orion endureceu, tenso. — Merda.
Girei a cabeça, seguindo seu olhar.
Ajoelhado, entre os corpos dos inimigos e de nossos soldados, estava
Echos. Sua postura era o cenário da desolação. Banhado pelas luzes do
castelo, encoberto pelas sombras das janelas gradeadas, embalou, em um
abraço, o corpo de Julieth.
Segurei a mão de Orion, entrelaçando nossos dedos, e caminhei com ele
ao encontro de Echos.
— Não… não… Nós estávamos nos conhecendo, dando uma chance a
algo que diziam ser impossível acontecer. — Os olhos de Echos estavam
focados em Julieth, sem lágrimas. As pálpebras dela, fechadas. Ele ergueu a
mão para o rosto de Julieth e começou a acariciar. O indicador de Echos
passeou pela bochecha. — Um romance entre um shifter e uma vampira. —
Riu, sem humor. — Disse para mim mesmo tantas vezes que estava louco,
mas foi a sua perspectiva do mundo, sua personalidade…
Orion apertou com força minha mão. Não consegui me mover diante da
declaração de Echos. A sensação que estava em Orion também me alcançou.
— Eu nem arranhei a superfície de quem você é. Precisávamos de mais
tempo. Mas o pouco que me mostrou, Julieth, foi o bastante. Eu entendi que,
ao lutar por uma causa, descobrimos mais sobre nós mesmos. Ainda que seja
preciso ir contra quem mais amamos, não podemos ir contra quem somos.
Nossa integridade e nossos valores não podem se perder.
Echos percorreu os olhos pelo corpo sem vida de Julieth, a ferida em seu
pescoço evidenciando a causa da morte. Ele mudou a atenção para Orion. Já
presenciei tantas vezes aquele mesmo olhar... A mistura entre a perplexidade
e a mágoa, a impotência, inúmeros sentimentos reprimidos. E o choque, que
o impedia de externar seu sofrimento.
— Diga-me que não foi em vão. — Sua voz saiu baixa e grave.
O rei Callum se aproximou e ficou ao lado de Orion. Sua expressão estava
rígida e seus olhos, fixos em Julieth.
— Ela salvou a minha vida, Barão de Egron — garantiu.
Echos olhou para Julieth e, em seguida, voltou a admirar o rei.
— Obrigado, Majestade.
Os dedos de Orion soltaram os meus e ele deu um passo à frente.
— Na verdade, salvou todos nós. — Meu Ma’ahev se agachou para ficar
na altura do olhar de Echos. — Julieth nos uniu em meio à luta. Ela acreditou
e, por isso, fomos mais fortes.
— Se o pai de Julieth tivesse um terço da lealdade que ela demonstrou…
— o rei pontuou.
— Julieth quis tanto lutar pelo clã, sempre brigou com o pai justamente
por causa disso. — Ele se levantou, com Julieth nos braços, e Orion o
acompanhou. Seus olhos alternaram entre meu Ma’ahev e o rei. O pomo de
Adão subiu e desceu. — Tenho que levá-la para um dos quartos, devo cuidar
dela… Não posso deixá-la sozinha.
Foi a minha vez de dar um passo até ele.
— Echos… — tentei chamá-lo à razão.
Atraí sua atenção. Suas íris ficaram vermelhas quando focaram em mim,
as lágrimas se acumulando. Então, um lampejo de consciência atravessou seu
rosto, ao mesmo tempo em que ele puxou o ar com força.
Em sua expressão, percebi o que faria. Echos tinha que dizer em voz alta,
e deixá-la ir.
— Ela se foi.
O rei deu uma ordem e, quando viu que Echos estava pronto, os soldados
se aproximaram e respeitosamente tiraram Julieth dos braços do Barão de
Egron. Ele passou a mão pelo cabelo, jogando-o para longe dos olhos, e
voltou sua atenção para Orion, como se esperasse novas ordens.
— Pode ir para casa, Echos. — Orion engoliu em seco.
— Não. — Riu, descrente.
— Barão de Egron, é melhor ouvir meu filho — o rei pontuou. — Temos
pessoas suficientes por aqui. Você já cumpriu a missão. Respeite seu próprio
luto.
Echos ia rebater, mas decidi falar primeiro.
— Talvez fosse interessante avisar ao parente mais próximo e… — me
interrompi, lembrando-me de sua mãe. — Alguém tem notícias de Meredith
Haylock?
Os homens trocaram olhares, a confusão estampada em seus rostos.
— Não tenho ideia… não sabemos se estava com o marido, ou se foi leal
ao clã — Orion respondeu.
— Quem poderia saber onde ela está? Ou ter notícias sobre Meredith…
— pensei alto.
— Ahm… — Echos bufou, apoiou as mãos na cintura e olhou para baixo.
O cabelo caiu na frente do rosto. — Deixa-me pensar… — Levantou a
cabeça e semicerrou os olhos. — Além de Leeanne, Julieth tem uma amiga.
Alguém que ela se apegou quando a garota era ainda pequena. Ingrid é
humana, e Julieth sempre conta histórias sobre ela.
Echos falou de Julieth como se ainda estivesse viva.
Senti um aperto no coração.
— Tem contato com essa moça? — o rei indagou.
— Na verdade, não. Tenho o telefone dela, já nos falamos, mas nunca a vi
pessoalmente.
— Talvez deva ligar, Echos — Orion auxiliou seu amigo.
Echos puxou o celular do bolso da calça e discou o número. Levou um
tempo para Ingrid atender. Ele virou as costas, e caminhou para longe,
enquanto se tornava, para aquela moça, o portador de uma péssima notícia.
Acompanhei seu caminhar, preocupada. Echos não estava bem.
Subitamente, avistei um borrão brilhante, longe de mim. Enrolado em
uma cortina dourada, estava Beast, preocupado com suas roupas. Ele estava
sentado em um degrau, recebendo cuidados médicos.
— É o pior momento, mas… Brad está parecendo o próprio Oscar —
Orion murmurou.
Quase sorri e o rei soltou uma risada curta.
— Anote isso para mais tarde — sussurrei para Orion.
— Pode deixar.
— Pelo menos, não está nu outra vez.
— Quando viu isso? Vou anotar isso para mais tarde também.
— Orion… — o rei repreendeu.
Droga, falei o que não devia.
Próximos à escada, um grupo de homens vestidos de prata também atraiu
minha atenção. Divisão Magna? Olhei para cada dos rostos conhecidos.
Observando-me ao longe, estava Titus. O cabelo castanho, amarrado e
bagunçado pela luta, a barba cobrindo seu maxilar, as sobrancelhas em um
vinco profundo. Ele suavizou a expressão ao perceber que sua atenção foi
retribuída. Abriu um sorriso.
Seus pés começaram a se mover.
Veio em minha direção e ficou próximo o bastante para fazer uma
reverência ao rei. Novamente ereto, percebi que era pouca coisa mais baixo
que Orion.
— Majestade.
— Titus de Baden, Duque do clã Adamo — o rei cumprimentou e, por um
segundo, vi seus lábios quase expressarem um sorriso. — Como vai seu
irmão, o rei Thales?
— Perfeitamente bem, Majestade. Saudável. — Fez uma pausa. —
Lamento muitíssimo a situação em que Alkmene se encontra. Sorte que não é
tão desesperadora quanto foi a do meu clã.
— Também lamento as perdas inestimáveis pelo ataque dos rebeldes que
assolaram seu país — o rei disse. — Em breve, me tornarei embaixador da
Aliança, justamente para acalmar os ânimos. Quero administrar isso de perto.
— Será uma valiosa adição à Aliança, por ser um vampiro respeitado,
íntegro e comprometido com seu povo — elogiou Titus.
O rei sorriu.
— Alteza.
— Alteza. — Orion estendeu a mão para Titus, cumprimentando-o.
— Aperto de mão forte — observou Titus.
— Preciso deixá-los. Tenho que ver por que minha rainha ainda não está
aqui.
O rei se retirou e ficamos apenas Orion, Titus e eu. Percebi o erro quando
um sorriso largo surgiu na boca do meu companheiro de batalha. Ele deu um
passo, suas mãos envolveram meus ombros, e o lorde me abraçou apertado.
— Mia — sussurrou e se afastou. — Como é bom vê-la aqui.
— Mia? — Orion pontuou cada letra, cruzando os braços, como se não
acreditasse que o irmão do rei de Adamo pudesse me chamar tão
intimamente. — Vocês lutaram juntos?
— Na verdade… — Ri, subitamente nervosa. — É uma história bem
engraçada, nem ficaríamos sob o mesmo comando, mas então...
— Mia já te contou, Alteza, sobre seus gostos... peculiares… em batalha?
— Titus me interrompeu, com um sorriso debochado.
Assim que olhei para Orion, engasguei. Vi, em seu rosto, a frieza de um
olhar assassino, o mesmo semblante que exibiu antes de matar um de seus
inimigos.
— Contou? — Orion ironizou. — Lutamos juntos. Não vi nenhum gosto
peculiar em batalha, mas fora dela...
Titus ergueu uma sobrancelha e olhou para mim.
— Ah, é, Mia? — Riu baixinho. — Eu me lembro vagamente de uma
conversa sobre aristocratas, algo sobre nunca se envolver…
— Titus!
— Agora você esqueceu o Lorde.
Orion puxou-me pela cintura, colando meu corpo ao dele. Encostou seu
rosto em meu cabelo e, embora não pudesse vê-lo, sabia que avaliava Titus.
— Eu realmente disse e foi a minha intenção — respondi —, só não
esperava que o meu Ma’ahev fosse o príncipe do meu próprio clã.
O sorriso provocativo de Titus se desfez. Em respeito, deu um passo para
trás. Sua postura se alterou para o modo profissional. Em seus olhos, vi o
entendimento. Por mais amigo que ele fosse, acostumado a aprontar comigo,
a palavra Ma’ahev tinha um significado muito forte para nós, vampiros.
— Compreendo e sinto muito pela brincadeira. — Seus olhos continuaram
nos meus. Titus pigarreou. — Fico feliz que… é…. hum…. de toda forma, o
momento de sua mensagem foi ideal e imediatamente trouxe meus homens
para cá. Viemos pelo mar, aportando na Baía Cachalote. Chegamos no calor
da batalha. Quero ressaltar a bravura do seu Capitão… Echos? Enfim,
lutamos lado a lado e foi uma honra poder defender o clã Redgold.
Titus piscou algumas vezes, aguardando uma resposta que não veio. Orion
não moveu um músculo e continuou em silêncio por mais tempo do que seria
educado. Titus percebeu o ciúme de um Ma’ahev, lançou um último olhar
para mim, antes de pedir licença, virar as costas e ir para o outro lado do
salão.
Separei-me de Orion, e ele soltou os braços ao lado do corpo, sem esboçar
reação. Sua mandíbula estava travada, o foco em Titus enquanto podia
acompanhá-lo com o olhar. Quando Titus se perdeu entre as pessoas, virou-se
para mim.
— O quê? — perguntei, esperando.
Semicerrou os olhos.
— Estava me perguntando se compartilharam abrigo na Divisão Magna.
Talvez tenha visto a espada dele bem de perto, não?
Senti um calor subir para minhas bochechas, mas mantive a expressão
neutra.
— Qual é a razão da sua loucura agora?
Ele quase abriu um sorriso, talvez ao lembrar da nossa dança.
— Você.
Fiquei na ponta dos pés, apoiando uma das mãos em seus ombros. Com a
outra, tirei uma mecha do seu cabelo da testa, antes de puxar seu rosto e colar
seus lábios nos meus. Orion tentou resistir ao beijo por um segundo, antes de
sua boca amolecer contra a minha. Puxou-me para perto, o ciúme criando
uma fagulha entre nós.
Não tivemos tempo de curtir o beijo, porque uma comoção se iniciou logo
atrás, e Orion separou nossos lábios.
— Mãe?
Girei o corpo e um grupo de pessoas entrou por um dos corredores. Entre
shifters e vampiros, a rainha retornou. O rei Callum correu, abrigando-a em
seus braços para, em seguida, afastá-la. Certamente percebeu o mesmo que
eu. Orion imediatamente se moveu, puxando-me pela mão, para chegarmos
mais perto.
Se a rainha antes estava em uma ala segura, por qual motivo retornaria
daquele jeito?
— Mãe, o que aconteceu? — Orion indagou, e sua mãe olhou
rapidamente para ele.
Seu vestido negro, antes impecável, estava com uma mancha que cobria o
corpete. O rosto trazia uma expressão desolada. Olhos vermelhos, de quem
havia chorado, somados aos lábios ressecados. Na bochecha, um rastro rubro
seguia até o colo. Também suas mãos e braços estavam sujos de sangue seco.
Ela encarou o filho e depois o marido, abriu a boca diversas vezes, mas
pareceu incapaz de falar.
O Duque Vallen andou entre as pessoas que saíram da ala de segurança.
Escutei o rei tentar falar baixinho com Stella, ao mesmo tempo em que vi
Alte. Ele chegou tão abismado quanto a rainha. Suas roupas estavam
igualmente sujas e a gravata borboleta, torta em seu pescoço.
Orion se soltou de mim, chegando mais perto da mãe. No entanto, a
rainha desviou o foco de seu filho e marido para Vallen.
— Gwen? — o Duque gritou para as pessoas. Voltou seus olhos para o
mordomo. — Onde está Gwen? Ela já sabe que Leeanne não está bem? Donn
a levou para ver nossa filha, é por isso que não veio com vocês? Alte, me
diga onde minha esposa está!
Stella saiu dos braços do rei e do filho e foi lentamente para Vallen.
Merda.
As mãos da rainha seguraram o rosto do irmão do rei. Lágrimas suaves
deslizaram até seu queixo e Stella teve toda a sua atenção.
— Meu querido cunhado… — Aos poucos, encontrou a voz. — Eu sinto
tanto…
Orion e o rei se aproximaram de Vallen e da rainha. Meus ombros ficaram
tensos. Estive em tantas batalhas, mas em nenhuma delas vivenciei tamanha
dor. Não fisicamente, mas em meu coração. Não eram apenas soldados
defendendo seus ideais, era uma família perdendo seus entes queridos.
— Não se preocupe — Vallen tentou acalmar Stella. — Leeanne só teve
um desmaio… ela… ela… está bem. Tudo está bem.
Stella moveu a cabeça, negando.
— É apenas isso, certo? Está preocupada com Leeanne, não é? Leeanne?
— Vallen, eu sinto muito.
O Duque vacilou, incerto do que estava ouvindo.
— Como? O gás? Mas o rei verificou e estava tudo bem… — Vallen
notou o estado em que a rainha se encontrava. — Ela foi ferida? Os vampiros
de Astradur a feriram?
— Havia um inimigo entre nós. — A rainha engoliu sua emoção para
esclarecer a Vallen. — Não sabíamos até ser tarde demais. Uma das
empregadas veio até mim e tentou me esfaquear. Outros tentaram conter a
moça, mas foi Gwen quem a impediu, entrando na frente. Alte me puxou para
longe, protegendo-me. Em algum momento, a faca… Gwen…
Em seguida, o silêncio se instalou, perdurando enquanto recebíamos a
notícia.
Vallen deu um passo para trás e respirou fundo.
— Ela sofreu?
— Foi… — Stella não conseguiu explicar.
Então, Alte tomou a frente.
— Alteza, foi tudo muito rápido. Não acredito que tenha sofrido. —
Inspirou. — Eu sinto muito por sua perda.
Vallen ficou pensativo, até seus olhos encontrarem os da rainha. Pegou
em sua mão.
— Ela salvou a sua vida — Vallen falou, compreendendo.
— Sim — sussurrou Stella.
— Não planejei amá-la. — confessou — Nosso casamento foi…
diferente. Eu aprendi a amar Gwen durante nossa convivência.
Vallen pareceu perdido em suas palavras, e encarou o sobrinho e o irmão.
O rei o puxou para um abraço, que durou algum tempo. Orion trouxe sua mãe
para perto, sussurrando baixinho contra seus cabelos, confortando-a. Vallen
se afastou do rei e pediu licença, para encontrar seus filhos e dar a notícia.
Abraçando a rainha, Orion fitou-me em um misto de pesar e carinho.
Exaustos e unidos pela dor.
Encarei meus pés descalços no piso de pedra. A água quente já estava
escorrendo dos meus ombros por todo o corpo há um tempo, levando o
sangue e o suor para o ralo. Não consegui relaxar os músculos, meus
trapézios estavam rígidos e dolorosamente inchados.
Orion tentou me distrair sobre o que tínhamos enfrentado, falando sobre
seus próximos passos e o que faria com os cargos que seria obrigado a
designar antes de subir ao trono. Consegui sorrir quando a narrativa de suas
decisões acalmou meu coração.
A pressão suave em minhas costas e a esponja com sabonete, livrando-me
dos resquícios da batalha, me fez fechar os olhos. A espuma escorregou pela
décima vez; não havia mais a cor alaranjada sob meus pés.
— Inspire, Yafah. — A voz tranquila de Orion me atingiu. — Deixe a água
ajudá-la.
— Estou bem.
Ele riu suavemente.
— Temos uma conexão, Mia. Eu sinto o que você sente. Não há como
mentir para mim. Por mais que eu a distraia com minhas obrigações de um
futuro monarca, sei que não consegue parar de pensar…
Orion terminou de passar a esponja por meu corpo, ficando em silêncio.
Estávamos embaixo do chuveiro há uma hora e, ainda assim, não conseguia
me livrar da tensão. Ele pegou o shampoo e, em seguida, senti a massagem
leve em meu couro cabeludo. A ponta dos seus dedos iniciou movimentos
circulares, e pendi a cabeça para trás.
— Você já lavou meus cabelos — sussurrei.
— Vamos de novo.
Dei um passo para debaixo d’água e o mundo ficou melhor. O aroma
frutado preencheu o boxe, o vapor aquecendo o ar, a espuma deslizando em
minha pele, o tórax de Orion quase colado nas minhas costas, enquanto seus
dedos enxaguavam meus cabelos.
Inverti nossas posições e virei de frente para ele. Ensaboei a esponja e
passei em seu peito.
— Pela segunda vez, vai me esfregar, Yafah? — brincou, imitando a forma
que falei.
— Vamos de novo.
Observou-me em silêncio, as íris ainda não estavam naturais, com nuances
de vermelho e vinho. Admirei-o de volta. O cabelo encharcado da água, ainda
mais negro que o tom ônix. Acompanhei a trilha de uma única gota que veio
de sua testa, deslizando carinhosamente por sua têmpora, seguindo a linha do
maxilar, até pairar no furinho do queixo. Ela caiu, abandonando o rosto de
Orion, para continuar a explorar aquele vampiro. Se juntou a outras, uma
expedição por seu corpo, descendo para o peito, em linha reta. Contornaram o
vale do tórax enrijecido, dividindo-se para conquistá-lo. Avançaram pelo
estômago e chegaram ao abdome marcado por músculos, apressadas pela
promessa final. O profundo V de seus quadris…
— Você é tão bonito, Orion.
Ele segurou a ponta do meu cabelo, acariciando. Seus olhos desviaram
dos meus.
— O loiro incomum dos seus cabelos, a cor verde-uva dos seus olhos, o
vermelho-vivo dos seus lábios quando te beijo. Você exibe uma gama de
cores. E não é só a sua beleza, minha Ma’ahev. É o conjunto de quem você é.
Me concentrei em seu peito, o sabão criando pequenas bolhas pelo contato
com a água, misturando-se aos pelos que havia ali.
Seu polegar e indicador seguraram meu queixo, levando meu foco para
seus olhos.
— O tom rosa das suas bochechas… — As presas de Orion cresceram na
boca entreaberta. — Tenho vontade de mordê-la.
— Morder minhas bochechas? — Sorri.
Inclinou meu rosto para o lado, admirando meu pescoço.
— Morder você. Amar você. Mas, agora, eu só quero estar com você.
Colocou a mão em meu ombro, pressionando levemente o ponto dolorido
dos meus músculos. Suspirou, sentindo dentro dele o que havia em mim.
Estávamos juntos.
Vivos.
Não foi preciso dizer qualquer palavra, a sensação mútua e que estávamos
tentando afogar não poderia ser descrita. Orion se inclinou, beijou-me
delicadamente nos lábios e pairou sua boca em minha testa.
A devoção por mim uniu-se à dor pelo que enfrentamos.
— Podemos continuar a falar sobre as cores e sobre o que gosta em mim?
— pedi.
— Yafah… — Meu coração doeu. — Eu sei — sussurrou.
Por mais que evitássemos a conversa sobre a luta exaustiva, física e
emocionalmente, aquele era o único pensamento que resistia sobre qualquer
outro. Ao mesmo tempo, nomear aquilo era impossível. Guerrear com
vampiros que se rebelaram contra a monarquia se tornou o meu trabalho mais
difícil. A importante responsabilidade de proteger nosso segredo de sangue
não era um fardo, apesar de seu peso. Percebi que enfrentar o que havíamos
acabado de testemunhar… Foi uma verdadeira afronta ao nosso povo. Foi
cruel com aqueles turistas.
— Venha para a banheira comigo. À essa altura, deve estar cheia.
Olhei para meu corpo limpo e assenti. Não queria entrar na banheira até
ter tirado de mim o resultado da maldade de Astradur.
Saímos do boxe e Orion reduziu a iluminação para a área da banheira ficar
mais aconchegante. O perfume dos sais que ele derramou na água quente
exalou através do vapor. A banheira nos acolheu e ficamos de frente um para
o outro. Orion pegou delicadamente meu tornozelo, levando meu pé para seu
peito. Os dedos aplicaram uma massagearam no dorso e na sola. Fechei os
olhos, conseguindo, finalmente, relaxar um pouco.
— Isso é bom…
Orion ergueu um pouco mais meu pé, beijando próximo ao tornozelo,
repetindo todo o movimento com o outro. Foi como se a tensão evaporasse
junto com a água, e a pressão de seus dedos foi responsável por me
desconectar do sofrimento travado em meu peito.
— Eu não o perdoo por Julieth, por Gwen, por aqueles turistas, por Darius,
pelos soldados, pelos irmãos Eymor e os inocentes que perdemos nessa
batalha. Eu não o perdoo pela atitude fraca, desumana e pela arrogância. Eu
não o perdoo pelo teste feito nos shifters, por cada segundo de sua vida que
planejou cada ataque. Eu não o perdoo e não conseguirei perdoá-lo mesmo
que minha própria espada crave seu coração.
Orion desviou o olhar do que fazia, observando meu rosto. Seu semblante
estava sério. Seus dedos pararam de se mover em minha pele, mas manteve o
aperto moderado.
— O que viu em Gila?
Ri, sem humor.
— Encontrei quatro formas diferentes de matar o nosso país.
— Yafah…
— Um tanque imenso, entre pilastras, com um shifter submerso, um teste
para um de seus planos. E era tão cruel que o chamavam de Zoológico. Se
aquilo desse certo…
— Conseguimos conter.
— Eu sei.
Um lampejo de reconhecimento passou por Orion.
— Beast chegou com outras roupas — afirmou. Suas pálpebras se
estreitaram. — Ele foi submetido a qualquer…
— Só ao inalar o ar — expliquei. — O bunker do Governador estava cheio
de produtos tóxicos que transformavam os shifters.
Parei de falar.
Eu quase o matei.
— Você lutou com Beast — Orion compreendeu.
— Sim.
Ele se inclinou e puxou-me para mais perto. Algo em meu coração
denunciou que não queria ter aquela conversa sem me tocar. Suas mãos
vieram para meu rosto, os polegares acariciando minhas bochechas.
— Aprendi que há coisas neste mundo que não somos capazes de
controlar. O ódio, o amor e a culpa. Embora não tenhamos chance de colocar
esses sentimentos em um baú e esquecê-los… é a forma que reagimos a eles
que nos torna pessoas boas ou ruins.
— O desejo por matar Astradur me torna como ele? — ponderei. —
Ruim?
— Não, Mia… não é o que estou falando. Acho que me expressei mal.
Quero dizer que o amor que você sente por esse país está guiando você para o
que é certo. Matá-lo não é uma vingança, é justiça.
— Astradur merece ser punido em praça pública.
— E será.
Ficamos em silêncio por um tempo, Orion ainda acariciando meu rosto.
Pareceu estudar minhas reações. Desde o vinco em minha testa até os lábios
franzidos.
— Fale-me sobre Beast — pediu baixinho.
— Não era Brad ali… só um urso correndo atrás e… eu fiz o possível.
Mas sabia que, se não conseguisse trazê-lo de volta, teria que…
— Seu pesar pela luta com Beast me atingiu antes que eu soubesse que se
sentia culpada por qualquer coisa, Mia — murmurou. — Dentro de mim,
consigo experimentar parte das suas emoções. Quando tocamos no assunto,
sua reação veio para mim. Meu conselho é que deve tentar perdoar a si
mesma.
— Eu vou tentar.
— Você vai conseguir e nós vamos ficar bem.
— Ainda quero um julgamento para Astradur.
Orion sorriu, jurando silenciosamente. Naquele momento, não como
minha alma gêmea, mas como um monarca. Desceu as mãos para o meu
ombro, pairando uma delas sobre meu coração, como se quisesse tirar o peso
dali. Um arrepio pelo toque quente cobriu-me da cabeça aos pés. Por mais
que não houvesse nada sexual naquele momento, meus caninos apontaram.
— Sua tensão… quase se foi. Mas está cansada. Vamos deitar?
Concordei.
Nos levantamos e saímos da banheira. Nos cobrimos com um hobby e
envolvi uma toalha em meus cabelos. Quando fui dar um passo, Orion pegou
minha mão.
— Se me permitir, quero levá-la, em meus braços, para a minha cama.
Ao invés de respondê-lo, enlacei seu pescoço e Orion entendeu meu sim.
Pegou-me no colo, com cuidado, valorizando cada segundo do gesto. Se
tratava de carinho e abrigo. Andou em silêncio, colocou-me na cama e
desnudou meu corpo. Sob o edredom, apenas nos abraçamos, trocando calor
e esperando que aquela manhã de descanso renovasse nossas energias.
Ainda havia muito a fazer.
— Seis da tarde — deduzi, escutando a persiana se abrir.
Encarei o teto.
Mesmo correndo o risco de parecer egoísta, eu só quis pular aquela noite.
Não havia como escapar. Eu tinha que enfrentar o peso dos acontecimentos,
mas uma parte minha desejou não levantar da cama.
Fui capaz de escutar, na privacidade do meu quarto, os passos dos
funcionários nos corredores de King Castle. O cheiro dos incensos de olíbano
e mirra, enquanto eram espalhados ― a tradição dos clãs vampíricos ao redor
do mundo ―, remetia às lendas antigas sobre o respeito àqueles que partiram
e à imortalidade.
O luto tocou a minha pele, me convidando a senti-lo.
Olhei para o lado, vendo a minha alma gêmea dormir profunda e
suavemente. Afastei uma mecha de cabelo do seu rosto. O semblante de Mia
parecia tão sereno. Ela precisou desabafar comigo, externar seus pesadelos.
Saber que era capaz de tirar aliviar o peso dos sentimentos dela…
Levantei devagar, com medo de acordá-la. Fui verificar o celular, sobre a
mesa de cabeceira, e uma sequência de mensagens e ligações perdidas
estavam lá. Inclusive, as provas que Mia e Beast conseguiram em Gila. Em
algum momento, Mars conseguiu desbloquear os telefones, mas eu estava
ocupado demais lutando, para sequer lembrar que existia um celular.
Eu precisava ligar para Mars.
Me afastei da Mia e caminhei pelo quarto até chegar ao outro lado.
Interfonei para a cozinha, pedindo nosso desjejum. Enquanto esperava, fui ao
banheiro, tomei banho e escovei os dentes. Com a toalha enrolada na cintura,
apoiei uma das mãos na bancada fria do lavatório e, com a outra, limpei o
espelho embaçado. Encarei o reflexo entre os vapores quentes e pensei nos
600 anos da minha existência. A dualidade da certeza de que vivi muito e, ao
mesmo tempo, a estranheza de parecer que vivi tão pouco.
Alte estava me esperando no hall, e colocou a bandeja sobre a mesa.
Percebi que já estava pronto para a Cerimônia de Despedida.
— Vossa Alteza precisa de mais alguma coisa?
Neguei com a cabeça.
— Eu odeio aquela farda — murmurei.
— Perdão, Alteza?
Apontei para sua roupa.
— Ah, sim… com certeza… certamente. — Fez uma pausa. — Devo me
retirar?
— Hum… o que mais está acontecendo no castelo?
Ergueu a sobrancelha.
— Tudo?
Nossa, nem pensar…
— Quero saber sobre os convidados.
— Oh… — Alte ergueu novamente a sobrancelha. — Os companheiros de
jornada da senhorita Black foram embora. Agradeceram a hospitalidade.
Tiveram que sair rápido devido à nova movimentação dos rebeldes na
Alemanha e… o Duque do clã Adamo, lorde Titus, deixou lembranças à
senhorita…
— Esse recado pode deixar que eu mesmo dou.
— Está certo disso, Alteza?
Semicerrei os olhos.
— Sim. Me fale sobre a cerimônia.
— Suas Majestades estão se arrumando. Seu primo Donn está com o
Duque Vallen e Leeanne. No outro aposento, o Barão de Egron retornou a
King Castle. No momento, acompanha os preparativos. A família Lawford já
está presente.
— Meredith Haylock…
— Durante a busca e apreensão na casa do Governador, soldados
encontraram uma carta da mãe para a filha, pedindo perdão por ter sido
omissa quanto ao envolvimento do marido com o… Enfim, desejando que
Lady Julieth fosse livre das garras do pai. Não conseguimos contato nem
descobrimos seu paradeiro, mas suspeitam que ela fugiu da ilha.
Fugiu? Deixou a ilha com vergonha.
— Então, ela não sabe…
— Não, Alteza. Acredito que não.
— Estarei pronto em breve — afirmei.
— Oh, Alteza… quer que eu fique para ajudá-lo com a farda ou prefere
que eu chame o seu valete?
— Não precisa, Alte. Já dispensei meu valete há muito tempo e sei que
você tem coisas importantes para fazer.
— Perfeitamente, Alteza. Então, vou me retirar. — O mordomo fez uma
mesura e se dirigiu à porta.
Estava na hora de acordar Mia.
Levei a bandeja e a coloquei no criado-mudo. Agachei para ficar na altura
de Mia e tracei seu rosto com os nós dos dedos. Suas pálpebras se ergueram,
e ela me admirou. Desceu o olhar por meu corpo, reparando na toalha
amarrada na cintura. Sua mão veio até meus cabelos molhados, acariciando-
os.
— Boa noite — sussurrei. — Está com fome?
— Faminta.
— Que bom.
Mia bocejou e se sentou na cama. Ela puxou o lençol e cobriu os seios,
com os olhos fixos na bandeja. Fiquei de pé, peguei a bandeja e a coloquei
sobre a cama.
— Alte?
Puxei a tampa e me sentei.
Frutas de diversos tipos, taças de sangue humano, cervídeo e sintético.
Mia umedeceu os lábios e atacou. Comemos em silêncio, o sabor gostoso do
sangue em nossas bocas e as frutas doces nos lábios.
A taça que Mia tinha nas mãos refletiu a luz da lua. Ela a estendeu, me
oferecendo.
Arqueei uma sobrancelha.
— Você se saiu bem quando tomou da última vez. Não acho que precisa
ter medo dos seus instintos, Orion. Não mais.
— São muito primitivos.
— Você é capaz de lidar com eles. Beba.
— Gastei energia na batalha… — ponderei.
— Você não pode ir contra a sua natureza. Não se trata apenas de força
física, Orion. Tudo em você potencializa ao beber sangue humano. Você não
viu o que eu vi. Durante a luta, enxerguei o poder que emanou: a velocidade,
a perspicácia, seus reflexos, a tomada de decisões em um cenário atípico.
Você não errou um golpe, não sofreu um arranhão.
Caralho, Mia… o que responder? A mulher que eu amo me observou em
batalha e falou de mim com ternura e admiração.
Peguei a maldita taça e dei um longo gole. Passei a ponta da língua nos
lábios para capturar qualquer resquício do sangue.
As íris verdes de Mia brilharam.
— Você tem razão — sussurrei. — Além do mais, vou precisar… Esta
noite vai ser…
— Eu sei — Mia sussurrou. — Preciso de um banho.
Beijei-a rapidamente nos lábios e Mia se levantou, completamente nua.
Acompanhei-a com o olhar. Antes de chegar à porta do banheiro, virou o
rosto para mim.
— Se importa se, antes da Cerimônia de Despedida, eu der uma
palavrinha com a Divisão Magna?
— Por telefone? — ofereci, sorrindo.
— Não… — Mia ficou confusa. — Os que estão no castelo.
— Ah, Yafah… já foram.
Abriu a boca.
— Todos? Mas acabou de anoitecer e…
— Eles são rápidos. — Dei de ombros.
— Não disseram nada?
— Hum… — fingi considerar. — Não… não que eu saiba.
Mia franziu o cenho, mas aceitou a resposta. Entrou no banheiro e deixou
a porta entreaberta.
Peguei o celular, ainda olhando para a porta encostada.
Tá bom que ela vai falar com esse Titus de Baden… Duquezinho safado…
“Miiiaaa”... Babaca.
Digitei o número de Mars. Ele atendeu no primeiro toque.
— Notícias?
— Astradur e Bali Haylock desapareceram, mas ainda não saíram de
Alkmene.
— Como sabe?
— Meus melhores homens estão nisso.
Precisava dar a notícia a Mars. Ele não se expunha em todos os lugares,
mas Darius era conhecido pelo meu informante.
— Preciso te dar uma notícia.
O silêncio foi a deixa para eu continuar.
— O General Darius faleceu protegendo-nos, Mars.
O vampiro continuou mudo. Achei que a ligação tinha caído, até ouvi-lo
respirar fundo.
— Darius foi um excelente General. Eu lamento, porque foi uma perda
para toda a nação. — Fez uma pausa. — Informarei, a Vossa Alteza, qualquer
novidade a respeito do paradeiro daqueles desgraçados. — Desligou a
chamada.
Fo-da.
Tirei a toalha da cintura quando cheguei ao closet. Parei diante da pior
seção do meu guarda-roupa. A farda cerimonial branca, dentro de uma capa
protetora, destinada a despedidas, por sorte, era pouco usada. Cada povo tem
uma história para mostrar seus sentimentos e profundo respeito pela morte de
alguém. Entre nós, vampiros, utilizávamos a cor branca para a reflexão,
especialmente em casos de mortes decorrentes de atos violentos.
Hoje era o dia em que Alkmene vestiria branco.
Coloquei a boxer e, resignado, comecei a me uniformizar. Passei as
mangas da camisa social de algodão pelos braços e fechei os botões. Subi a
calça, assentando-a no corpo. Na parte superior, o dólmã ― a túnica militar
ornamentada ― trazia detalhes nas mangas e na gola alta, com arabescos em
ouro. Agasalhei-me e comecei a fechar os largos botões dourados.
Primeiro, peguei as luvas suedine. Em seguida, as ombreiras. As faixas
multicoloridas da farda, ainda no closet, atingiram-me. Parei. A cor roxa fez a
bile subir pela minha garganta.
— Orion… está tudo bem?
Pelo reflexo do espelho, vi Mia enrolada em uma toalha.
— É… — Suspirei e pensei na sorte que tinha de não precisar usar roxo
naquela cerimônia. — Preciso colocar o cinto, a faixa, as luvas e as
ombreiras.
Ela não disse nada, e caminhou até mim. O cheiro floral do sabonete me
agraciou e trouxe feminilidade ao ambiente. Mia sequer olhou para a faixa
roxa. Pegou a branca e separou meu cinto e as ombreiras. Virei-me de frente
para ela.
— Vocês pensaram em tudo quando fizeram meu guarda-roupa… menos
nessa possibilidade — Mia sussurrou e colocou as peças sobre o banco,
analisando o que faria primeiro. Decidiu pelas ombreiras.
— Quer que eu providencie uma farda cerimonial militar para você?
Posso conseguir.
Mia prendeu as peças sobre meus ombros, sem precisar olhar para saber
se fazia certo. Sua atenção se manteve em meu rosto.
Ela deve ter feito isso infinitas vezes.
— Eu tenho. — Escutei o suave estalo. — A malinha que vocês acharam
que eu não usaria…
— Você trouxe a farda de uma Cerimônia de Despedida? — questionei,
surpreso.
— Eu trouxe as poucas coisas que eu tinha. Faz muito tempo que não
tenho exatamente uma casa para guardar… e basicamente uso uniformes. —
Mia prendeu a faixa branca atravessada na diagonal em meu peito. — Você
ficaria surpreso com as perdas e as cerimônias que vêm depois de uma
batalha.
— Não consigo imaginar como você lida com isso.
Ela passou o cinto em torno de mim, ajustando-o perfeitamente, as íris
reluzindo sua sabedoria.
— Nunca é fácil, mas com o tempo… se aprende a lidar.
— Você aprendeu?
— Sinceramente? — Mia deu um passo para trás, admirando-me dos pés à
cabeça. — Não aprendi. Mas “com o tempo se aprende a lidar” é o que
dizem.
Anuí, sem ter resposta.
— Agora que está pronto, é minha vez. Não vou me demorar, não é como
se o quarto que me designou ficasse do outro lado do castelo… — disse mais
para si mesma do que para mim. Em seguida, me contemplou por quase um
minuto inteiro. — Mesmo vestido com uma roupa que remete à saudade...
sua beleza se sobressai.
Encarei minha amada por um tempo. Com o silêncio prolongado, ela
inclinou um pouco a cabeça.
— O que foi?
— Vou mandar trazer suas coisas para cá — informei. — Todas elas.
Calcei as luvas, ajeitando-as entre os dedos.
Mia parou e ergueu o olhar, encarando-me.
— Para cá? Já disse que trouxe tudo que tenho para King Castle.
— Para o meu quarto.
Ela arqueou as sobrancelhas.
— Surpresa? Não deveria. Já nos prometemos um ao outro, marcamos
nossos pescoços, assumimos nossa ligação como Ma’ahev… a não ser…
Antes de eu concluir a frase, Mia se aproximou. Ela olhou para a farda e
ficou nítido, em seu semblante, o medo de amassá-la. Apoiou as mãos sobre
as ombreiras delicadamente. Eu desci o rosto para oferecer o que Mia queria:
meus lábios. Beijou-me suavemente, apenas um toque.
— A não ser? Orion Bloodmoor, no momento em que disse sim para
sermos almas gêmeas e no instante em que deixei-o beber do meu sangue…
sou inteiramente sua. Mande trazer as coisas para cá, e ajude-me também
com a minha farda.
Durante a cerimônia, era necessário guardar silêncio até depois do
discurso do rei. Nossa única interação era no ato de passar o incenso de
olíbano e mirra: aquele que recebia o incenso deveria deixar em uma urna um
pedaço de sua história com quem havia partido.
A Cerimônia de Despedida era fechada ao público, apenas convidados
entravam no Salão das Memórias, o local onde se revisitava nossos
antepassados para lembrarmos de seus ideais e de se sua importância em
nosso clã. Não havia pesar no Salão das Memórias, nenhum sofrimento ou
dor pela perda, como era comum, em alguns lugares do mundo, cultuar a
morte. Nós, vampiros, celebrávamos a oportunidade de termos feito parte do
convívio uns dos outros. Especialmente por sermos sobreviventes de um
passado que quase nos condenou à inexistência.
A vida de um vampiro era diferente de um shifter ou humano. Muitas
vezes, acreditávamos ser uma maldição ver todos os outros, pessoas de outras
raças, nossas épocas, tudo que plantamos, o que ouvimos e vemos se perder
no tempo.
Tudo tinha um curso natural. Menos nós.
Então, aprendemos a enxergar a perda como a descontinuidade de uma
trajetória, e não o fim.
Mia resvalou nossos dedos, livrando-me da reflexão. O gesto breve de
conforto me fez prestar atenção em nossa volta.
Apesar de Donn não ser filho biológico de Gwen, ele também usava vestes
roxas, assim como Leeanne e tio Vallen.
Lá fora, aguardando o discurso do rei, os cidadãos de Alkmene entoavam
canções sobre esperança e também cantavam o hino do nosso país.
Aqui dentro, havia silêncio e reflexão.
No dia seguinte, como parte de nossa tradição, acompanharíamos os
corpos serem levados para o Lago das Almas, onde receberiam um fim digno
através dos raios de sol. Todos os vampiros mortos em combate, incluindo os
turistas que sofreram pela arma biológica de Astradur, teriam seu ponto final.
Echos recebeu olhares surpresos quando entrou no Salão das Memórias
vestindo a cor do luto de um ente querido: roxo. Nas mãos, levava um lenço
de seda colorido. Mesmo não sendo comum se levantar e pular a tradição do
incenso passar de mão em mão, ignorei no momento em que o vi. Sem me
importar com os demais membros da aristocracia ou o que poderiam achar,
levei ao Barão de Egron o incenso e esperei até que Echos tomasse coragem
de pegá-lo das minhas mãos. Ele estava se desfazendo de uma parte de sua
trajetória com Julieth: aquele lenço que certamente lhe trazia muitos
significados e fez jus à urna das lembranças.
Echos piscou rapidamente. Deixou o ar sair de seus pulmões de uma só
vez, renovando-o ao inspirar no momento em que segurou o incenso. Foi até
a urna, ficou parado lá, o lenço pairando na borda. Echos recolheu a mão e do
bolso de trás de sua calça retirou um envelope e o levou ao peito, quase
esmagando-o, então os soltou com cuidado dentro da urna de Julieth.
Quando Echos se sentiu pronto, voltou para nós, os olhos buscando uma
pessoa. Seguiu até Vallen, e entregou o incenso ao meu tio. As cinzas do
incenso caíram no chão quando o Duque o segurou. Se encararam por um
momento, a troca dizendo tudo que não caberia nas palavras.
Com a cabeça baixa, Vallen caminhou até a urna de Gwen. A
compreensão me atingiu quando percebi que essa era a segunda vez para ele.
Havia perdido a mãe de Donn e, agora, a mãe de sua Leeanne. Suas mãos
trouxeram uma foto de sua família. Meu tio deu um beijo demorado e
carinhoso na imagem, sobre o rosto de sua esposa. Inspirou audivelmente e
um sorriso se abriu em seu rosto quando deixou o papel sumir na fenda
escura.
Gwen estava em paz.
Leeanne e Donn vieram logo atrás, entregando objetos importantes. O
incenso passou, em seguida, para as irmãs Lawford. Bem como a chance de
dizerem adeus ao General Darius.
Pouco a pouco, fomos todos. Meu pai entrou por último, com minha mãe
ao seu lado. Conforme ele adentrava, quem estava sentado erguia-se. Eles me
buscaram em um primeiro momento, e anuíram quando me encontraram.
Vestidos de acordo com o protocolo, despediram-se de Julieth, Darius e
Gwen, entregando pedaços de uma memória que não se perderia com os
séculos.
Quando o rei se posicionou atrás das urnas, todos se aproximaram.
Ele levou a mão à altura do peito, e repetimos seu gesto. Nossos olhos se
fecharam. Um minuto se passou. Então, de pálpebras abertas, o rei fez um
pequeno discurso, quebrando o silêncio. No fim, convidou todos para o
extenso campo, aberto ao público, e a sacada de onde falaria para o povo de
Alkmene.
Nos jardins da entrada de King Castle, sua voz solene acalmou os
corações de todos os moradores da ilha, com palavras sobre união de um
povo, amor à pátria e a importância de manterem a aliança entre as raças que
coabitam em Alkmene. Narrou sobre a tradição vampírica e a Cerimônia de
Despedida. Fechou seu discurso afirmando que os últimos atentados foram
casos isolados, pois a nação prezava pela paz. O rei Callum foi ovacionado
por seu povo.
Em seguida, passou a palavra para mim. Não imaginava ouvir meu nome
repetidas vezes entoados pelos presentes. O sangue Bloodmoor, meu legado,
se agitou nas minhas veias. A surpresa pela recepção não se tratava de ser
impopular, mas meu pai era o representante daquele povo, aclamado e
verdadeiramente adorado. Alkmene não se envolvia em assuntos do restante
do mundo, não entrava em guerra ou contendas políticas dos demais
governos. Nossa população tinha um dos maiores e mais modernos centros
médicos do planeta, a cidade de Rosys. Ninguém sentia fome. A educação
privilegiada estava disponível para todos, assim como o serviço militar.
Sentir o amor do povo de Alkmene toca meu coração; ver o rosto da família
Bloodmoor, que desceu para me assistir discursar, causou uma sensação
ímpar.
Espalmei a pedra fria do guarda-corpo da sacada. Através da iluminação
dos jardins, observei um mar de rostos, desde os portões de entrada do nosso
castelo: crianças, mulheres, homens, jovens e idosos. Shifters, vampiros e
humanos. Soldados, comerciantes, camponeses e membros da realeza.
Aqueles que puderam lutar ou se abrigar, escapando do horror das últimas
horas vivenciadas em nossa ilha.
— As perdas foram incalculáveis, mas não irei enumerá-las, pois nenhum
dos que se foram são ou serão tratados como número por qualquer um de nós
da família real de Alkmene. Corações sangraram literal e metaforicamente.
Eu vi o mundo se partir ao meio e engolir o que há de bom. O baque da
guerra civil dentro de um país que viu apenas amor, carinho e fraternidade,
durante muitos séculos, fez todos nós percebermos que a existência é um
presente. Os mortos durante o ato criminoso contra nossa nação receberão
justiça. Eu, Orion Bloodmoor, príncipe de Alkmene e Anell Angels, dou-lhes
minha palavra.
A comemoração fez o chão sob mim vibrar. Milhares de vozes e palmas
soaram enquanto eu sentia a força de uma promessa. Naquele instante, jurei
para mim mesmo que faria o melhor para aquelas pessoas. Jurei que seria um
rei tão honrado e digno delas como meu pai.
Ofereci a voz para quem estava ao meu lado. Beast e Echos falaram da
guerra enfrentada, da coragem daqueles que lutaram bravamente por
Alkmene. Ressaltaram os turistas, que vieram à cidade, sem saberem qual
destino os esperava. Beast frisou, como porta-voz dos shifters e humanos, a
confiança consagrada durante gerações aos Bloodmoor. Echos adicionou à
fala do amigo, e encerrou com a transparência em relação à perseguição
incansável por justiça.
— Sou o responsável pela captura de Bali Haylock. — Vi-o engolir em
seco pelo ódio de dizer o nome do homem que fez a própria filha de vítima
do atentado. — E Astradur. Não descansarei até vê-los em Ashes, pagando
por todos os crimes cometidos, durante cada segundo de sua existência. Eu,
Barão de Egron, após enfrentar a batalha na Baía Cachalote e sair vivo, me
vejo capaz de levar os criminosos para o inferno, onde merecem estar.
Os discursos da Cerimônia de Despedida foram finalizados com a quebra
do silêncio, a cada trinta segundos, com o estrondo dos canhões militares.
Antes de os moradores de Alkmene irem embora, poderiam deixar sobre o
solo, preparado para este momento, sementes de flores em memória dos que
se foram. O símbolo renovou a esperança e nos fez sentir que éramos
realmente capazes de renascer das cinzas.
As pessoas ainda se retiravam dos jardins de King Castle, e alguns
membros da realeza recebiam o carinho do povo. Mia conversava com nosso
antigo tutor, Warder. Trocamos olhares e ela assentiu sutilmente, aprovando
quando percebeu que sinalizaria para Beast e Echos me acompanharem.
Andamos lado a lado, cumprimentando rostos conhecidos. Quando passamos
por uma vampira, com certa semelhança a Constance, Beast inclinou a cabeça
para cochichar.
— Depois de tudo que a gente viveu, cara… sinceramente… eu só preciso
te falar que você não deveria ter convidado aquela morcegona louca para
jantar — Beast desabafou, sorrindo, aliviando o clima tenso.
Echos ouviu o comentário e, por mais incrível que pudesse parecer, riu.
— Não tem como discordar do Beast. Sério… Constance também está na
minha lista negra — Echos acrescentou.
Entramos em uma sala vazia, e fechei a porta para nos dar privacidade.
Beast sentou sobre a escrivaninha, afastando o porta-incenso, presente em
todos os cômodos. Echos puxou uma cadeira, e eu fiquei em pé, com os
braços cruzados.
— É por causa dessa lista negra que chamei vocês.
Echos ergueu sutilmente a sobrancelha.
— Manda — Beast falou.
— Quero saber tudo que encontraram sobre Bali e Astradur até agora.
— Achei outras fórmulas — Echos iniciou. — Assinadas por um homem
chamado Ivar, sem sobrenome. Ele desenvolveu desde a criação do soro, que
originou a arma química em King Castle, até o componente que transformava
biologicamente humanos naquelas coisas…
— O que temos sobre esse Ivar?
— A princípio, o nome nunca existiu em Alkmene — Beast apontou.
Ivar… realmente, nunca ouvi.
Sendo este um país relativamente pequeno, se houvesse algum químico ou
engenheiro com esse nome, eu saberia.
— Talvez ele não seja daqui — deduzi. — Há qualquer indício de um
novo dispositivo… arma química ou biológica?
— Bali desenvolvia os projetos em conjunto com Ivar. — Echos coçou a
sobrancelha. — Na casa do Governador, não achamos mais planos, além dos
já executados.
— Temos o status das áreas afetadas pelos planos dos filhos da puta? —
Exalei fundo.
— O que restou da Brigada Vermelha, sob as ordens do rei Callum, está
verificando os locais de ataque — Beast explicou. — No navio, por exemplo,
mesmo não havendo sinais de sobreviventes, ficou claro que foram
submetidos a um vírus... parecido com o que assolou os humanos no passado,
originando sua espécie.
Se eles conseguiram identificar e isolar o vírus… estão a um passo de
conseguir uma cura. Sol. Liberdade. No entanto...
— Há risco de contágio para quem está na ilha? — preocupei-me.
— Sem dúvida, não. — Beast chegou a mover a cabeça ao negar. — O
pessoal lá de Rosys está com parte desse material, e já analisaram um pedaço
de tecido encontrado no navio.
— E o paradeiro dos desgraçados? — dirigi-me a Echos.
— Nenhuma informação, mas falamos com Mars, que está pessoalmente
com essa função, e ele nos afirmou que apenas a Divisão Magna partiu de
Alkmene. Nenhum visitante ou morador usou nossos portos. A ordem de
fechar as vias marítimas, dada pelo General Darius, ainda está em vigor.
Soltei os braços ao lado do corpo e fechei os punhos.
Eles sabem que serão caçados até o último lugar do meu país. Em algum
momento, vão tentar usar os portos, já que não há outro meio de sair de
Alkmene. Quando tentarem, não vão conseguir, porque os meus soldados
estarão lá. Os cretinos miseráveis não têm para onde correr.
— Além das provas que recebi no celular — pensei alto —, fotografias
enviadas por Mia e o vídeo de Beast, há mais algum documento
incriminatório? Vamos precisar de tudo para fazê-los pagar.
— Não diria incriminatório, mas algo suspeito? Ah, isso sim. — Echos se
levantou. — Eu e Beast achamos, na casa do Astradur, notas contratuais para
a instalação de um sistema de segurança: câmeras, travas… o pacote
completo.
— Instalação na casa do ex-governador de Gila? — inquiri.
— Não… — Beast fez uma careta enquanto coçava o rosto, frustrado. —
Aí é que está. A planta baixa do edifício não bate com nossa arquitetura. Não
está construída em Alkmene. — Meu amigo bufou. — Astradur parece querer
manter alguém sob constante vigilância.
Vendo-me confuso, Echos se adiantou.
— Não era um cofre, um armazém, nada disso. Parecia um presídio de
segurança máxima. Com camas e compartimentos separados por grossas
paredes e bem distantes um do outro. Se eu puder dar um palpite sobre esse
prédio, diria que tem isolamento acústico.
— É para lá que eles vão — afirmei. — Quero que entrem em contato,
descubram o que puderem sobre as empresas que prestaram serviços para
esse lugar. Devem manter registros.
— Estamos nisso. Vamos pessoalmente conduzir a operação e…
— Eu vou participar — informei.
Beast e Echos se entreolharam.
— Alteza, dentro de suas limitações, como rei, lembre-se que você não
poderá se ausentar constantemente de Alkmene. — Por mais que Beast
estivesse brincando com meu título, ele tinha um bom ponto.
— Nem vocês.
— O quê? — Beast questionou.
— Como assim? — perguntou Echos.
— Em breve, começarei os trâmites para minha coroação. — Andei pela
sala. Meus olhos se fixaram no incenso. — Mas quero antecipar um pouco
isso e avisá-los a respeito da decisão que tomei. Deixo claro que os últimos
acontecimentos…
— Cara, você tá falando como um rei. — Beast ergueu as mãos, com as
palmas viradas para a frente, pedindo-me para ter calma. — Relaxa.
Sorri e pensei que eles não faziam ideia…
— Eu vi vocês lutarem por Alkmene, pelo que acreditam. A inteligência,
força em combate e tudo que trouxeram à superfície quando optaram por se
juntar a mim. Se conseguimos, é porque fizemos isso juntos.
Beast saiu da mesa e se aproximou. Echos já estava em pé, e também veio
para perto.
— Não fomos exatamente os três mosqueteiros, mas… — brincou. — Mia
pode ficar com o papel de D’Artagnan.
Ela ficaria sexy como uma mosqueteira.
— Gosto disso — concordei com Beast.
O sorriso do shifter ficou mais largo.
— Vocês foram fodas. Nós fomos. — Levei a mão à nuca. — Quero
compartilhar com vocês o meu primeiro decreto. Vou abolir “Duque Real” da
aristocracia de nosso clã. Eu odeio essa merda de nome.
— O que vai ser, então? — Echos achou estranho. — Não terá um braço
direito? Vai ser Primeiro Ministro? Vamos nos tornar uma monarquia
parlamentar? — metralhou suas perguntas sem tomar fôlego.
— Não, Echos. — Cruzei novamente os braços. — Eu não terei um
Duque Real, terei um Primeiro Duque. Você.
Echos ficou completamente surpreso, a boca entreaberta e os olhos
arregalados. Ele passou a mão nos cabelos, jogando-os para longe do rosto.
— Mas… — sussurrou, desnorteado. — O quê…?
— Irei nomeá-lo Primeiro Duque.
Echos sorriu e quase que imediatamente franziu as sobrancelhas.
— Você está dizendo…
— Que será o administrador que eu preciso, que confio e que tenho
certeza de que poderei contar.
— Orion…
— Não aceito não como resposta. — Virei para Beast. — E eu vou
precisar de um novo General.
Ele riu, nervoso.
— Não está falando sério, né?
— Estou sim.
— Como?
— Você comandou um exército de shifters sozinho. Se colocou à frente de
um ataque em King Castle. Dominou uma situação extraordinária quando um
gás tóxico foi liberado, invalidando todos os vampiros. Eu caí, e você foi
quem ficou em pé.
Beast ficou sério, e o silêncio reinou por um tempo. Echos dobrou-se em
um joelho, e Beast seguiu seu movimento.
— Como Primeiro Duque, prometo que irei honrar o seu voto de
confiança.
— Como General, juro que cuidarei da segurança de nossa ilha.
Eles se levantaram, e eu sorri para os meus amigos, que seriam meus
aliados quando me tornasse o soberano de Alkmene.
— Orion, mas e a Mia? — Beast questionou.
Meu coração acelerou só com a menção do seu nome.
— Ela será a minha rainha.
Antes que pudessem processar o anúncio, meu celular tocou e o puxei da
farda. O número de Mars apareceu na tela e o coloquei no viva-voz.
— Estou com Beast e Echos. Me fale, Ma…
— Sem tempo para regras sociais. Uma pequena embarcação sairá de
Creones. Não está registrada e suspeito que seja…
— A rota de fuga de Bali e Astradur — completei.
— Por que agora? — Echos questionou.
— Por que não agora? — rebateu Mars. — Alkmene está envolvida com a
Cerimônia de Despedida. Grande parte dos militares está nos jardins de King
Castle. Quer momento mais oportuno que esse?
— É quase como um feriado. A população está distraída — ponderou
Beast.
— Tentei avisar ao porto de Creones, mas ninguém atendeu. Enviei uma
equipe particular para o local, mas eles demorarão a chegar. — Mars exalou,
irritado. — Tinha colocado meu pessoal em Minas Irindill, achei que era o
único buraco que Astradur poderia se enfiar, mas estava errado. Enfim, vocês
têm que sair daí. Agora.
Já estávamos nos movimentando para fora do escritório. Beast virou à
esquerda, em direção à porta principal.
— Beast… Beast, espera. Pegarei os atalhos subterrâneos de King Castle.
— Com a mão livre, segurei na manga de sua camisa branca, ainda com o
celular na outra. — Tanto foi usado para ir contra o Reino, agora servirá para
pegarmos os desgraçados. Mars, eu…
Ele já tinha desligado a ligação.
— Porra! — vociferei. Cheguei a espremer o telefone entre os dedos,
estalando-o. — Ele não espera eu terminar de falar!
— Precisamos avisar ao rei — Echos pontuou.
— Não dá tempo. — Procurei Mia com o olhar. Ela franziu o cenho
imediatamente ao nos ver e começou a se aproximar. Virei as costas, em um
pedido silencioso para que nos acompanhasse. — Nós vamos pegar o
elevador e descer. Lá embaixo, os túneis largos terão meios de locomoção.
Chegaremos em Gila em dez minutos.
— Então, vamos pegá-los — Beast rosnou.
— O que aconteceu? — Mia perguntou, chegando ao meu lado.
— Os filhos da puta estão se preparando para fugir agora.
— Vão descendo… — Beast falou. — Encontro vocês em um minuto.
Reunirei a Brigada Real e quem mais estiver aqui.
Nos separamos de Beast quando entramos no elevador. A ira foi me
cegando lentamente. O sangue se agitou em minhas veias, a ansiedade em
pegá-los e matá-los com minhas próprias mãos crescendo a cada minuto.
Pensei na Cerimônia de Despedida que tínhamos acabado de ter. As pessoas
que se foram, os gritos clamando meu nome, ansiando por justiça.
— Bali é meu — Echos rosnou, a voz feroz do shifter quase
completamente animal.
Virei-me para o meu amigo.
— Feito — garanti.
— Você vai sem sua espada? — Mia me observou.
— Pegarei uma arma com um dos guardas no caminho. Não temos tempo
para buscar minha katana. — Apesar da rispidez em meu tom de voz, Mia
compreendia que não era direcionado a ela. Anuindo, virou-se para encarar o
visor que marcava os andares de modo decrescente.
-2… -3… -4…
Mia tornou a me olhar, o cenho ainda mais franzido. Ela ergueu o
indicador, pensativa, os lábios entreabertos.
— Isso é…?
— O quê?
— A música de elevador? — Echos perguntou, erguendo uma das
sobrancelhas.
Mia moveu a cabeça, aquiescendo, ao mesmo tempo em que parecia se
recordar da canção.
— É Bossa Nova. É do Brasil. Já estive lá. Matamos alguns vampiros…
As portas deslizaram lentamente e eu quase as empurrei para abrirem de
uma vez. Chegamos à passagem larga dos túneis, e soldados armados
guardavam o local.
— Ei, você! — Apontei. — Uma pistola. Rápido.
O homem entregou-me imediatamente a sua.
Foi o tempo de colocá-la no cós da calça, encontrar uma moto veloz e
montá-la. Mia subiu, logo atrás de mim, segurando-se em minha cintura. O
som do acelerador chamou minha atenção para Echos, que já estava fazendo
o mesmo. Dei partida, e olhei para Mia.
— Eu vou acelerar.
— Eu sei. — Seus dedos se apertaram no meu dólmã.
Por cima de seu ombro, vi Beast passando pelas portas do outro elevador,
com uma equipe grande. Ele assentiu. Com um gesto, me disse que estava
pronto.
Olhei para a frente.
E, num piscar de olhos, King Castle ficou para trás.
Por mais que eu quisesse exigir toda a potência da Ducati, o piso molhado
me fez ser prudente, realizando as curvas com cautela, quase deitando a moto
no chão para a direita e a esquerda. Cairmos nos túneis apenas nos atrasaria e
tínhamos o dever de buscar Astradur até no inferno, se preciso fosse.
Não levou dez minutos, fizemos em oito.
Encontramos a equipe que fazia a investigação no bunker do Governador.
Corremos pelo local quase vazio. Caixotes abertos, restos de madeira no
chão, evidências de que ali havia algo acontecendo.
Quase parei quando vi um tanque vazio. Entre pilastras, exatamente como
Mia descreveu. Antes, trazia vida para o propósito deturpado. Agora, apenas
cinzas. O monumento da barbárie feita sob a casa do ex-governador.
Ela e Beast encararam-no com horror.
Continuamos a correr até chegarmos ao lado de fora. Não havia tempo
para responder às mesuras ou receber condolências pelo dia da Cerimônia.
Ordenei que me entregassem as chaves do jipe militar Humvee ao mesmo
tempo que os demais seguiam para fora do bunker. Os soldados, de
prontidão, aguardaram com expectativa para saber o que deveriam fazer.
— Você, você e você continuem a manter a vigilância do local. Os demais
venham conosco para o porto de Creones.
— A informação é de que o ex-governador e o Duque Real deposto
tentarão sair pelo lado oeste da ilha — complementou Echos.
O soldado jogou as chaves e as peguei no ar. No entanto, Mia se adiantou,
tirando-a da minha mão.
— Mia… não temos tempo para…
— Orion, Vossa Alteza já dirigiu um desses? — Ela abriu a porta do
veículo.
— Não, mas carro é carro! — resmunguei.
Ela riu, sem humor. Echos e Beast entraram logo atrás, sem questionar.
— Dessa vez — Mia me encarou, séria —, eu dirijo.
E estava certa. O painel era completamente diferente do que eu imaginava.
Entre os bancos dianteiros, havia um grande espaço preenchido por um
monte de equipamentos: rádio de comunicação e outros aparelhos que eu não
soube identificar. O volante era similar ao de um caminhão, e havia mais
mostradores do que um carro comum.
— Eu vou ser um General e não sei dirigir essa merda — Beast comentou.
— Você terá tempo para aprender — Mia respondeu, acelerando o
Humvee.
— Quer dizer que já sabe do meu futuro novo cargo?
— Já, e estou feliz. Echos, também sei que será um ótimo Primeiro
Duque.
— Vou administrar com senso de honra e dever, senhorita Mia — Echos
prometeu.
— Não esperaria nada de diferente. — Mia desviou o olhar da estrada
para mim e moveu os lábios em um sorriso singelo.
Em seguida, seu semblante tornou a se fechar. Ela apertou o volante com
ainda mais força e acelerou. O motor rugiu pela urgência de nossa missão.
Os pensamentos voaram sem que eu pudesse impedir.
Donn ainda criança. Eu não era tão mais velho. Foi uma ótima época. Meu
primo se inclinou para sussurrar no meu ouvido a respeito da mulher de
cabelos escuros e sorriso largo ao lado do tio Vallen: “Essa é Lady
Gwennever Reeves. Vai ser minha madrasta. Quer apostar?”. Darius e
Warder nos advertiram com o olhar. Estávamos prestes a subir mais um lance
das escadas pelo lado de fora do guarda-corpo, nos equilibrando no espaço
minúsculo do mármore.
Virei o rosto para trás, observando Echos com o olhar perdido para o lado
de fora. A paisagem entre Gila e Creones passava rápido demais, tornando
impossível se fixar no cenário.
Julieth Haylock.
“Alteza, perdoe minha indiscrição… mas aquele shifter, vosso amigo… o
filho do Barão de Egron, ele… foi o que retornou da universidade, na
Europa?”
Mia abruptamente freou, os pneus produzindo fumaça ao travarem,
levantando poeira e barulho. Quando o som do Humvee cessou, escutamos
tiros no porto de Creones. Não esperamos nem meio segundo e saímos do
jipe. Puxei a arma, destravei e nos protegemos atrás do veículo militar.
Observei ao redor e não vi Astradur, apenas seus homens atirando nos meus.
Filho de uma…
Echos, impulsivamente, se levantou, antes que qualquer um de nós
pudesse pará-lo. Foi de peito aberto com a arma em punho, e atirou, aos
gritos. Mia se lançou sobre ele rapidamente, fazendo ambos rolarem no chão.
A ansiedade para capturar Bali Haylock calava seu bom senso. Arfando, Mia
olhou para mim, já à distância. Naquela troca, soube que ficaria ao lado do
Barão de Egron.
— Esquerda, Beast.
Ele assentiu.
Seguimos depressa para o lado oposto ao que Mia e Echos foram;
precisávamos dar a volta na estrada. Ainda procurávamos pelo ex-governador
de Gila e o antigo Duque de Merda em meio aos sons de tiro e correria dos
nossos soldados, buscando se posicionarem da melhor forma possível.
Durante a troca de tiros, Beast acertou um homem no peito, e eu mirei e
atirei em outro, perfurando o exato ponto entre as sobrancelhas. Encontramos
mais dois, que tiveram o mesmo destino. Curvados, corremos para trás de um
jipe, a fim de nos protegermos. Estudei o cenário. O porto pesqueiro era
isolado. Nos poucos armazéns, homens de Astradur e Bali nos atacavam,
pretendendo manter suas posições e nos impedir de chegar ao deck.
Espertos pra caralho.
Os disparos, vindos de pontos dispersos, fez com que pensássemos na
desvantagem numérica em que eles se encontravam.
Vamos matar esses filhos da puta.
— Granada! — um gritou.
A explosão, junto ao som ensurdecedor, me atingiu e me pôs em
movimento. A nuvem de fumaça branca foi a chance que eu precisava. Fiquei
em pé, e fui direto para o soldado que percebi que não era morador da minha
ilha. Avancei em segundos e, para não denunciar minha posição, fui direto
para a arma apontada em uma direção cega e impedi seu braço de se mover.
Ele não viu o que o atingiu quando a arma caiu no chão. Quebrei seu
pescoço, ouvindo o estalo alto dos ossos se partindo, e Beast me
acompanhou, fazendo o mesmo com um vampiro à nossa esquerda.
A nuvem de fumaça se dissipou, e nós rolamos. Meus olhos não paravam
de buscar os desgraçados que começaram essa merda. Desviei quando a
sequência de tiros veio em nossa direção, perfurando a parede do armazém.
— Chão! — Beast gritou.
Ele se deitou, e eu também. Nos enfiamos sob um Humvee. Os inimigos
se aproximaram, e escutei suas vozes.
Quatro, cinco, seis homens?
— Você é rápido, Orion — Beast pontuou, ofegante. Recarregou a arma e
me encarou. — No três. Pé e cabeça. Nessa ordem.
— No três — confirmei.
— Se não der certo, eu me transformo.
Assenti.
— Um — eu contei.
— Dois — Beast seguiu.
— Três — falamos juntos.
Dois tiros rápidos no pé direito e esquerdo dos bastardos. Eles caíram,
urrando de dor, e eu explodi seus miolos. Saí debaixo do Humvee, e Beast me
olhou do outro lado.
— Caralho, arma não é uma coisa muito prática — resmunguei.
— Mas é eficaz.
A sequência de acontecimentos passou despercebida pela adrenalina
correndo em minhas veias, adicionada ao sangue humano no meu organismo.
Cabeça, coração, estômago. Troquei de pistola várias vezes, carregando
armas distintas, pegando dos corpos no chão.
Uma Taurus 9mm… Bom.
Atingi os homens, sem me importar com quem eram ou o que faziam ali,
ansiando pelo momento em que teria o cano da pistola apontado para a
cabeça de Astradur.
O som do tiro e o baque do corpo do último que atingi me fizeram
perceber que Beast e eu tínhamos ido para longe da água.
— Precisamos voltar.
— Aqui está limpo — Beast concordou.
Movi a cabeça, afirmando.
Com armas em punho, demos a volta em um dos armazéns. Nosso
objetivo era chegar ao deck do porto seguindo o som do enfrentamento. Do
outro lado de onde estávamos, poderíamos cercar os homens ou impedi-los
de chegar ao mar.
Os sons dos projéteis atingindo metal, madeira, perfurando corpos foram
calados um por um.
Até não restar mais nada.
A espada de Mia.
O clique do engatilhar de uma arma nos fez estacar. Beast e eu nos
entreolhamos. Das sombras, o sorriso maldoso foi o que vi primeiro no rosto
do estrangeiro, mirando em Beast, observando nossas roupas, diferentes dos
outros uniformes.
Merda.
Atrás de mim, ouvi passos lentos se aproximarem. A voz era carregada
com um sotaque.
— Coloquerremm as arrrmas no chão e chutem parrra longe.
Beast ergueu uma sobrancelha para mim e não respondeu.
Aqueles não eram vampiros nem shifters… eram humanos.
— Vocês não são sorrrldados… — o outro disse.
Estudei-os.
— E vocês são mercenários — respondi.
Não seria rápido o bastante para conter o homem antes de ele puxar o
gatilho e atingir meu amigo. Assim como Beast não poderia fazer nada, se
estávamos rendidos. Talvez ele se transformasse. Ainda assim, o processo
natural era lento.
Ao ouvir minhas palavras, o mercenário se posicionou na diagonal à
minha direita. A risadinha do segundo homem foi irônica.
— Sim. E morrrortos vocês valem mais.
Beast começou a respirar mais rápido e fechou as pálpebras. O som que
veio do seu corpo denunciou, para mim, o que faria.
Suas mãos cresceram e os olhos se abriram, a parte branca quase toda
oculta pela cor negra de suas íris. O homem atrás de mim arfou. Ouvi o
tremular da arma antes que pudesse pensar em atirar.
— Lobisorrromem!
O estampido da arma soou alto quanto puxou o gatilho. Ouvi o metal ser
atingido e o segundo mercenário, ao lado esquerdo de Beast, levou um tiro na
têmpora, explodindo seu cérebro. O sangue, junto com os miolos, jorrou na
cara de Beast. Com o susto, o outro gritou, a arma foi jogada em nossa
direção e Brad, que tinha o rosto coberto de pelos, desviou facilmente.
— Ah, caralho, que nojo — Beast resmungou baixinho, retrocedendo a
transformação.
Virei. Não sabia se as palavras do meu amigo eram por seu rosto imundo
ou pelo homem que eu encarava agora. Pela primeira vez, prestou atenção em
quem tinha pego. Senti a movimentação quente das minhas íris vermelhas, as
presas crescendo em minha boca enquanto levava a ponta da língua para elas.
Uma poça de urina se formou aos seus pés. Ele estava congelado no lugar.
Apavorado.
— Vo-vo-você lo-lo-bi…
Sorri largo, com os caninos à mostra.
— Eu não.
— Vampirrrro!
Mordi o lábio inferior, assistindo Mia sorrir para mim, ao ver a emoção
em meu rosto, de braços dados com Warder. Os cabelos dela estavam presos
ao alto da cabeça, e um batom coloria sua boca. Com um decote generoso e o
vestido colado em suas curvas, ela brilhava entre prata e azul. Mia Black era
todas as luzes das estrelas.
A minha constelação.
— Mia está linda — sussurrou Echos, ao meu lado.
— Ela é… uma visão, Echos.
— Mia é a pessoa certa pra você. — Beast sorriu, também observando
minha futura esposa.
— É toda a minha vida — concluí.
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