John Snow e A Epidemia Do Cólera de Londres 1854
John Snow e A Epidemia Do Cólera de Londres 1854
John Snow e A Epidemia Do Cólera de Londres 1854
Julho/Agosto/Setembro de 2012)
Agosto de 1854. Londres é uma cidade de catadores de lixo: coletores de ossos, de fezes e de ostras, junta-trapos,
lameiros, exploradores de esgotos, lixeiros, limpadores de fossa, cata-velas, cata-bagulhos e varredores da Costa. Pelo
menos 100 mil pessoas formavam esse segmento social inglês na era vitoriana (Século XIX), às voltas com uma
infraestrutura elisabetana (Século XVI-XVII). Sem saneamento básico, a solução fora espontânea e sem planejamento. A
população londrina chegava perto de 2,5 milhões de pessoas, amontoada em uma área de 50 km de circunferência.
Nenhuma descrição da Londres dessa época estaria completa se não mencionasse o mau cheiro da cidade, que já possuía
maravilhosos cartões-postais, como a Trafalgar Square, o Palácio de Cristal e o Palácio de Westminster. A quantidade de
pessoas que geravam lixo praticamente triplicara no intervalo de meio século, com a busca de empregos nas fábricas
londrinas por trabalhadores pobres, vivendo em condições absolutamente desumanas. A desenfreada popularidade dos
vasos sanitários com descarga de água agravava a crise, pois não havia estrutura sanitária para escoar as fezes
acumuladas nas fossas espalhadas pela cidade. Tanques artificiais de esgotos e enormes montanhas de esterco, da altura
de algumas residências, agravavam os problemas.
No final do verão daquele ano, teria início uma das maiores batalhas entre os micróbios (desconhecidos à época) e os
seres humanos. Com a fetidez beirando o insuportável, em um bairro pobre da nova metrópole, perto da Golden Square,
Sarah Lewis cuidava de seu bebê de seis meses com quadro de intensa diarreia, que o levaria à morte algumas horas
depois.
Ela mal podia imaginar que começaria, nesse momento, um dos maiores desastres de Londres: uma epidemia
avassaladora, que mataria mais de 500 pessoas apenas nos primeiros dez dias. Os sintomas eram dor abdominal,
espasmos musculares e vômitos, seguidos de sensação de sede intensa e evacuação de enorme quantidade de água,
sem cheiro, com diminutas partículas brancas. Era o cólera.
As teorias, então, para explicar as epidemias eram defendidas por dois grupos, os adeptos dos miasmas e os do
contágio. Entre os primeiros estavam os liberais e os burgueses, e entre os contagionistas, os membros do Exército e
da Marinha. A comunidade médica era fortemente a favor da teoria dos miasmas, acreditando que a contaminação
provinha do ar e do mau cheiro da cidade.
Mapa de Londres, de 1854, utilizado por Snow para estabelecer correlação entre a incidência do cólera
e o fornecimento de água
Hábil investigador
John Snow tinha, nessa época, 42 anos e enorme prestígio profissional. Quieto e reservado, solteirão convicto, provindo
de uma família com poucos recursos, sempre teve ilimitadas ambições intelectuais. Vegetariano desde os 17 anos, sempre
evitou a carne e o álcool. Ainda muito jovem, estagiou com um famoso cirurgião em Newcastle, retornando a Londres
em 1835, estabelecendo-se no Soho.
Após concluir seu curso na Escola de Medicina de Hunterian, abriu seu consultório no número 54 da Frith Street, a cerca
de cinco minutos a pé da Golden Square. A despeito de seu temperamento, consolidou rapidamente uma prática de
sucesso. Na presença de pacientes, seus modos eram taciturnos, frios e destituídos de emoção, muito diferentes dos de
seus colegas clínicos, que tinham um temperamento amigável e conversador. Entretanto, por trás de suas atitudes,
escondia-se um grande pesquisador.
Antes que pudesse combater o cólera, Snow direcionara sua atenção para uma das maiores deficiências da Medicina – o
controle da dor. O conhecimento profundo que adquirira a respeito do uso adequado do éter e do clorofórmio o elevara
a um novo patamar na comunidade médica londrina, tornando-se o primeiro médico anestesiologista. Sua fama ganhou
enorme impulso quando foi chamado para ser o anestesista da rainha Vitória em dois de seus partos.
Seu espírito investigador e inquieto, e a proximidade de seu consultório da Golden Square, levaram-no a investigar o
surto de cólera. Snow achava estranho que uma doença transmitida pelo ar, por meio de miasmas, não atingisse os
pulmões, e, mais estranho ainda, que não atingisse predominantemente os catadores de lixo, ou seja, os mais expostos.
Avaliando a distribuição dos óbitos nas vizinhanças da bomba de água de Broad Street, observou que muitas pessoas
mortas pelo cólera tinham tomado água dali, enquanto os operários de uma cervejaria dos arredores, que dispunha de
abastecimento próprio, não contraíram a doença. Snow conseguiu convencer as autoridades a retirar a alavanca da
bomba d’água. Ocorreu significativa diminuição de casos da doença.
Era apenas o início. A possibilidade de a água ser o principal veículo de transmissão do agente do cólera era muito
promissora, mas sua tese deveria ser demonstrada. Passou então a visitar, a pé, as residências do bairro, perguntando,
de casa em casa, qual a companhia que fornecia água.
A água de Londres era fornecida às residências por diversas empresas privadas, mas, em seu bairro, principalmente pela
Southwark and Vauxhall e pela Lambert. Fez então um engenhoso mapa, colocando pontos nas residências acometidas
pelo cólera.
Com os dados obtidos, construiu uma tabela simples, mas que forneceu dados fundamentais em apoio à sua teoria. Ela
revelou que as residências abastecidas pela Southwark tinham muito mais casos de cólera que as que recebiam água da
Lambert. Continuou sua investigação e descobriu que enquanto essa captava água no Tâmisa antes da ejeção de
excrementos, a Southwark o fazia na parte mais poluída do rio.
Snow concluiu que “a doença era causada por algum agente que passava do doente para o são e tem a propriedade de
se multiplicar no organismo”. A tese foi motivo de deboche entre seus colegas e na imprensa. Somente muitos anos
depois, seu mérito foi reconhecido. O agente causador do cólera, o vibrio cholerae, somente foi descrito, por Robert Koch,
quase 30 anos depois, em 1883.
Segundo preconizava Moacyr Scliar, “médicos que contam” é uma definição bem-humorada dos epidemiologistas – os
detetives médicos. O trabalho de John Snow foi baseado na organização lógica de suas observações e na abordagem
quantitativa do surto. Sua pesquisa pioneira já continha todas as etapas, hoje clássicas, de uma investigação
epidemiológica: a definição precisa dos casos, sua contagem, distribuição, consolidação, fatores
predisponentes, confirmação do surto e definição do período, formulação de hipóteses e sua confirmação e, finalmente,
as medidas de controle e verificação de sua eficácia.
Snow faleceu jovem, aos 45 anos, vítima de um acidente vascular cerebral enquanto trabalhava em seus estudos, sem
ter noção das fundamentais contribuições a duas das mais importantes áreas da atividade médica – a anestesiologia e a
epidemiologia.
O reconhecimento de sua genialidade e pioneirismo na área da epidemiologia só ocorreu muito tempo depois, como
demonstra a breve e simples comunicação dada pelo Lancet, em sua seção de obituários, 10 dias após sua morte: “Dr.
John Snow – Este aclamado médico morreu ao meio-dia do dia 16 do mês corrente, em sua casa na Sackville Street, de
um ataque de apoplexia. Suas pesquisas sobre o clorofórmio e outros anestésicos foram tidas em apreço por seus pares”.
Referências bibliográficas
1 – Snow J. Cause and prevention of death from chloroform. Lond J Med 1852;4:320-
29.
2 – Snow J. Sobre a maneira de transmissão do cólera. Rio de janeiro: USAID, 1967.
3 – Scliar M. Do mágico ao social. Porto Alegre: L&PM, 1987.
4 – Johnson S. O mapa fantasma. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.