A Ridícula Ideia de Não Voltar A Ver-Te
A Ridícula Ideia de Não Voltar A Ver-Te
A Ridícula Ideia de Não Voltar A Ver-Te
A RIDÍCULA IDEIA
DE NÃO VOLTAR A VER-TE
Tradução de Helena Pitta
Oo
A arte de fingir dor
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germe ínfimo, de um ovinho minúsculo, de uma frase, de uma ima-
gem, de uma intuição; crescem como zigotos, organicamente, cé-
lula a célula, diferenciando-se em tecidos e estruturas cada vez mais
complexas até se transformarem numa criatura completa e, fre-
quentemente, inesperada. Confesso-te que tenho uma ideia do que
quero fazer com este texto; mas o projeto manter-se-á até ao fim ou
surgirá qualquer outra coisa? Sinto-me como o pastor daquela an-
tiga anedota que está a esculpir distraidamente um bocado de ma-
deira com a sua navalha e que, quando um passeante lhe pergunta,
«Que figura está a fazer?», responde: «Bom, se sair com barbas,
Santo Antão; se não, a Imaculada Conceição.»
Seja como for, uma imagem sagrada.
A «santa» deste livro é Marie Curie. Sempre se me afigurou uma
mulher fascinante, coisa que, por outro lado, acontece a quase toda
a gente, porque é uma personagem anómala e romântica que pa-
rece maior do que a sua própria vida. Uma polaca espetacular que
foi capaz de ganhar dois prémios Nobel: um de Física, em 1903, em
parceria com o marido, Pierre Curie, e outro de Química, em 1911,
sozinha. De facto, em toda a história dos Nobel, só outras três pessoas
obtiveram dois galardões: Linus Pauling, Frederick Sanger e John Bar-
deen; e só Pauling o fez em duas categorias diferentes, como Marie.
Mas Linus levou um prémio de Química e outro da Paz, e é preciso
reconhecer que este último vale bastante menos (como é sabido, até
o deram a Kissinger). Ou seja, Madame Curie permanece imbatível.
Inclusive, Marie descobriu e mediu a radioatividade, essa pro-
priedade aterradora da Natureza: fulgurantes raios sobre-humanos
que curam e que matam, que esturricam tumores cancerígenos na
radioterapia ou calcinam corpos após uma deflagração atómica.
Dela é também a descoberta do polónio e do rádio, dois elementos
mais ativos do que o urânio. O polónio, o primeiro que encontrou
(por isso o batizou com o nome do seu país), foi rapidamente ofus-
cado pela relevância do rádio, embora ultimamente tenha ficado
na moda como uma forma eficiente de assassinato: recordemos
a morte terrível do espião russo Alexander Litvinenko, em 2006,
depois de ingerir polónio 210, ou o polémico caso de Arafat (outro
Nobel da Paz inacreditável!); de modo que até a estas sinistras
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aplicações chegou a mão branca de Marie Curie. Mas, para o bem
ou para o mal, essa força devastadora está na própria base da cons-
trução do século xx e, com grande probabilidade, também do sé-
culo xxi. Vivemos tempos radioativos.
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machista), pegou nas anotações de Rosalind e numa importantíssima
fotografia do ADN que a cientista conseguira tirar recorrendo a um
processo complexo denominado difração de raios X e, sem que ela
soubesse ou autorizasse, mostrou tudo a dois outros colegas, Watson
e Crick, que estavam a trabalhar na mesma área e que, depois de se
apropriarem de forma ilegal daquelas descobertas, se basearam nelas
para desenvolver o seu próprio trabalho. Desconhece-se se Rosalind
chegou a saber do «roubo» intelectual de que fora objeto; faleceu
muito nova, aos trinta e sete anos, de um cancro de ovário causado,
muito provavelmente, pela exposição aos mesmos raios X que lhe
permitiram espreitar as entranhas do ADN. Em 1962, quatro anos
depois da morte de Franklin, Watson, Crick e Wilkins obtiveram
o Nobel da Medicina pelas suas descobertas sobre o ADN. Como
o galardão não se pode ganhar a título póstumo, Rosalind nunca
o teria recebido, ainda que naturalmente o merecesse. Mas o mais
vergonhoso é que nem Watson nem Crick mencionaram Franklin ou
reconheceram a sua contribuição. Enfim, uma história suja e triste,
mas, pelo menos, conhecida. Interrogo-me quantos outros casos de
espionagem, apropriação indevida e parasitismo terão existido na his-
tória da Ciência que não chegaram a tornar-se públicos.
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mensagem privada. Não nos conhecemos pessoalmente: só sei que
vive no Canadá e que é uma boa escritora principiante, porque já li
alguns dos seus escritos. Há meses que não falávamos e, de repente,
saído da crepitante vastidão cibernética, chega-me o seguinte:
Olá, Rosa
E em rodapé:
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Eu estava a preparar outro romance e há mais de dois anos que
tirava apontamentos e lia livros que tratavam de assuntos semelhan-
tes, deixando crescer o zigoto na minha cabeça. Comecei-o final-
mente, ou seja, passei ao ato – sentei-me diante de um computador
e pus-me a teclar – em novembro de 2011. Toda a trama acontece
na selva, nesse asfixiante, putrefacto, enlouquecedor ventre vegetal.
Escrevi os três primeiros capítulos, e agradaram-me. Além do mais,
sei tudo o que vai acontecer depois. Também me agrada… Quer
dizer, creio que pode ser emocionante para mim acabá-lo. No en-
tanto, no fim de dezembro deixei essa história, talvez para sempre
(espero que não). Só interrompi a escrita de um outro romance em
toda a minha vida: em 1984, numa altura em que já tinha uma cen-
tena de páginas. Deitei-as fora, exceto as cinco ou seis primeiras,
que publiquei como um conto, com o título «A Vida Fácil», no meu
livro Amantes e Inimigos. Esse romance nunca mais voltará. Deixei
de sentir as personagens, deixaram de interessar-me as peripécias
por que passavam, o tema cansou-me. Para conseguir escrever um
romance, para aguentar o tempo longuíssimo e aborrecido que esse
trabalho implica, mês após mês, ano após ano, a história tem de
manter bolhas de luz na nossa cabeça. Cenas que são ilhas de emo-
ção candente. E é pelo desejo de chegar a uma dessas cenas que,
não sabemos porquê, nos deixam a tiritar, que atravessamos talvez
meses de soberano e insuportável aborrecimento ao teclado. De
modo que a paisagem que avistamos ao começar uma obra de fic-
ção é como um longo colar de escuridão iluminado de quando em
quando por uma grande pérola iridescente. E avançamos com es-
forço pelo fio de sombras, de uma conta para outra, atraídos como
traças pelo brilho, até chegarmos à cena final que, para mim, é a úl-
tima dessas ilhas de luz, uma explosão radiosa. É verdade que cada
romance tem poucas pérolas. Com sorte, com muita sorte, umas
dez. Mas já nos conseguimos arranjar com quatro ou cinco, se para
nós forem suficientemente poderosas, se forem embriagadoras, se
as sentirmos tão grandes que não nos cabem no peito e nos assegu-
rarmos de que temos de as partilhar – até porque, se não o fizermos,
desconfiamos que a cena explodiria no nosso íntimo e que acaba-
ríamos a deitar fumo pelas narinas.
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E o que aconteceu com aquele romance de 1984 é que as luzi-
nhas do arraial se apagaram. Acabou-se a necessidade, o tremor e o
arrebatamento. Foi um verdadeiro aborto, e ainda por cima tardio
(metaforicamente; falamos de uns cinco meses), de tal forma que
a minha saúde literária se ressentiu – «A Seca capturou-me», como
diria Donoso –, e passei quase quatro anos sem conseguir escrever.
Um inferno desgraçado porque, ao perder a escrita, perdi o nexo
com a vida. Sentia uma atonia, um distanciamento da realidade, um
cinzentismo que apagava tudo, como se não fosse capaz de emo-
cionar-me com o que vivia se não o elaborasse mentalmente atra-
vés de palavras. Se virmos bem, é possível que Fernando Pessoa se
referisse a isso nos seus célebres versos: «O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que
deveras sente.» Talvez o escritor seja um tipo mais ou menos louco
e incapaz de sentir a sua própria dor se não finge ou constrói com
palavras; com as palavras que colocam, que consolam, que calmam,
que nos tornam conscientes de estarmos vivos. Vejam lá, todos os
termos me saíram com C. Extraordinário, o tilintar cego do cérebro.
Não creio que o meu relato da selva esteja tão morto como aquele
de 1984 que acabou por me bloquear. Prefiro pensar que é uma sim-
ples falta de sintonia entre o tema e eu; que não era o que queria
contar agora; que, se calhar, precisava de contar outra coisa. Esse ro-
mance surgiu na minha cabeça durante os meses de doença do meu
marido. É a trama mais obscura, mais desesperada e angustiante
que jamais idealizei. E agora não me vejo aí. Não quero meter-me
aí. Não desejo passar o próximo ano presa nessa selva trituradora.
E à volta disto refletia quando me chegou um e-mail de Elena
Ramírez, editora da Seix Barral, propondo-me que escrevesse
um prólogo para Únicos, uma coleção de livrinhos muito curtos.
O texto de que queria que falasse era o diário de Marie Curie: pouco
mais de uma vintena de páginas redigidas ao longo dos doze meses
posteriores à morte do marido, que faleceu aos quarenta e sete anos
atropelado por um carro puxado a cavalos. A sábia, feiticeira, maga
Elena Ramírez explicava: «Pensei em ti porque reflete com uma
crueza descarnada o luto pela perda do marido. Acho que, se gosta-
res da peça, podes fazer uma coisa estupenda, acerca dela ou acerca
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da superação (se assim se pode chamar) do luto em geral. Aliás,
creio que conforme fores fazendo a imersão no livro e à medida
que te sentares a escrever, poderias transformá-lo num prólogo ou
no corpo central, e o diário de Curie ficaria como complemento…
Aqui o deixo, aberto a qualquer surpresa.»
Li o texto. E impressionou-me. Mais do que isso, agarrou-me.
Mas aquele também não era um livro sobre o luto. Ou não só.
Comprei meia dúzia de biografias de Madame Curie, de quem
antes já sabia coisas, mas não tantas, e alguma coisa informe come-
çou a crescer na minha cabeça. Uma vontade de contar a história
dela à minha maneira. Uma vontade de usar a vida dela como me-
dida para entender a minha; e não estou a falar de teorias feministas,
mas de tentar averiguar qual é o #LugarDaMulher nesta sociedade
em que os lugares tradicionais se aboliram (o homem também anda
perdido, como é evidente, mas um varão que explore esse outro
pântano). Uma vontade de vadiar pelas esquinas do mundo, do meu
mundo, e de refletir sobre uma série de #Palavras que me desper-
tam ecos, #Palavras que ultimamente me andam às voltas na cabeça
como cães perdidos. Uma vontade de escrever como quem respira.
Com naturalidade, com #Leveza.
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do peito o ecrã de raios, também desagradavelmente frio. Eu apoiava
o queixo no rebordo superior: o aparelho tinha um ligeiro odor
a ferro, um bafo que mais tarde reconheci no cheiro do sangue. Dom
Justo e a minha mãe instalavam-se sem qualquer proteção diante da
máquina e, depois de a lâmpada apagar, começava o espetáculo; re-
cordo-me da penumbra do consultório e de como as caras do pediatra
e da minha mãe se iluminavam com o brilho azulado dos raios. «Está
a ver, dona Amalia?», observava dom Justo, apontando com o dedo
para algum lugar do meu peito, «esta parte aparece mais branca por-
que a lesão está a calcificar». Olhavam e conversavam animadamente
durante um tempo que me parecia longuíssimo, fascinados com o es-
petáculo do meu interior. Eu sentia-me importante, mas também in-
quieta e pouco à vontade. Aquela escuridão, aquele brilho espetral
que parecia transformá-los em fantasmas, não falando já da ideia as-
querosa de estarem a ver as minhas tripas. Hoje calculo a quantidade
de radiações que devemos ter recebido todos e gela-me o sangue, em-
bora seja tranquilizador saber que dom Justo faleceu com quase cem
anos e que a minha mãe continua viva e lutadora aos noventa e um.
Tudo isto aconteceu nos finais dos anos cinquenta e início dos anos
sessenta. Marie Curie morrera, destruída pelo rádio, havia um quarto
de século. Agora penso no brilho frio que me saía do peito como um
ectoplasma e no zumbido da máquina e sinto uma enorme proximi-
dade, uma rara intimidade com aquela carrancuda cientista polaca.
De alguma forma, o seu trabalho ajudou a que me diagnosticassem
e me curassem, não falando já no facto de a própria mãe de Marie
ter morrido de tuberculose. Além disso, também vi o brilho azul que
Curie tanto amou! Digamos que fui uma criança radioativa; e agora
sou uma madura velha ou uma velha jovem que, há uns dois anos,
mora a duas esquinas do antigo consultório de dom Justo, ou seja,
a cem metros do sítio onde estava aquela antiga máquina de raios X
que tinha o mesmo cheiro do sangue. Agora o andar é um consultório
ginecológico. Às vezes tenho a sensação de que nos movemos na vida
sempre em redor dos mesmos lugares, como num desconcertante
jogo da glória.
Marie Curie não foi só a primeira mulher a receber um Nobel e a
única a receber dois; foi também a primeira a licenciar-se em Ciências
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na Sorbonne, a primeira a doutorar-se em Ciências em França, a pri-
meira a ter uma cátedra… Foi a primeira em tantas frentes que se torna
impossível enumerá-las. Uma pioneira absoluta. Um ser diferente.
Também foi a primeira mulher a ser enterrada pelos seus próprios
méritos no Panteão de Homens Ilustres (sic) de Paris. Trasladaram os
seus restos mortais para aí a 26 de abril de 1995 com grande pompa
e circunstância (no Panteão estão também, a propósito, Pierre Curie
e Paul Langevin, respetivamente, o marido e o amante de Marie) e o
discurso do presidente Mitterrand, então já muito doente, enfatizou
«a luta exemplar de uma mulher» numa sociedade em que «as fun-
ções intelectuais e as responsabilidades públicas eram reservadas aos
homens». «Eram», declarou Mitterrand, como se essas desigualdades
já tivessem sido superadas por completo no mundo contemporâneo.
Mas Marie Curie continua a ser a única mulher enterrada no Pan-
teão; e o Panteão ainda é denominado (era o que mais faltava que não
fosse) de Homens Ilustres. Como terá essa polaca, sem apoios nem
dinheiro, conquistado tudo aquilo tão cedo, tão só, tão a contracor-
rente? Foi uma mulher nova. Uma lutadora. Uma #Mutante. Por isso
estava sempre tão séria, tão triste? Por isso exibia aquela expressão tão
trágica em todas as fotografias? Mesmo em instantâneos que, como
o seguinte, são anteriores à sua viuvez. Penso agora na velha anedota
do pastor que esculpia um bocado de madeira e digo a mim própria
que o que sairá deste livro talvez seja uma coisa intermédia; e que
Marie teve de ser, em simultâneo, Santo Antão e a Imaculada Con-
ceição para ter chegado a fazer tudo o que fez.
Pierre e Marie
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