BARRETO, João Paulo. Kumuã Na Kahtiroti-Ukuse
BARRETO, João Paulo. Kumuã Na Kahtiroti-Ukuse
BARRETO, João Paulo. Kumuã Na Kahtiroti-Ukuse
Manaus-AM
2021
2
Manaus, AM
2021
3
Ficha Catalográfica
Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).
"Você não pode se esquecer de onde você é e nem de onde você veio, porque assim você
sabe quem você é e para onde você vai".
Ailton Krenak
5
Dedico
Aos meus avós Ponciano Barreto e Maria Lemos (in memorian). Aos meus
pais, Ercília Lima Barreto (in memorian) e Ovídio Lemos Barreto.
6
AGRADECIMENTOS
Após intensa vida acadêmica, durante onze anos, é impossível não olhar para trás e ver
que a pessoa nunca esteve sozinha nessa empreitada. Devo “confessar” que durante essa
trajetória, muitas vezes fui tentado a desistir, vendo muitos desafios na minha frente. Porém,
consegui vencer com a ajuda de pessoas que dedicaram seu tempo, paciência e seus
conhecimentos apostando no meu potencial de contribuir com a Antropologia. O sucesso,
portanto, está diretamente ligado às pessoas com as quais eu pude compartilhar essa empreitada
e à instituição de apoio e ensino que me permitiu dedicar meu tempo integral para estudos e
pesquisa.
Devo a conclusão desta Tese ao apoio do meu orientador Gilton Mendes dos Santos que
– como amigo, colega e professor – esteve sempre me incentivando a pensar e sistematizar
minimente o sistema de conhecimento indígena Yepamahsã e a lógica indígena. Mais do que
isso, dedicou com muita paciência seu tempo precioso para, incansavelmente, trocar ideias
comigo sobre os temas e aperfeiçoar minha escrita da tese.
Devo meu agradecimento aos especialistas indígenas kumuã, em especial ao meu pai
Ovídio Barreto (Yepamahsu/Tukano), ao meu tio Manoel Lima (Ʉtãpirõmahsu/Tuyuca), e ao
outro meu tio Durvalino Fernandes (Ʉmukorimahasu/Dessana). A eles, dedico meu respeito e
admiração.
Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES,
pela bolsa de doutorado concedida nesses quatro anos. Isso foi importante, pois permitiu a
dedicação exclusiva do meu tempo para estudo, pesquisa e escrita da Tese. Agradeço também
ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade
Federal do Amazonas – PPGAS/UFAM, que me mostrou os modelos de teorias antropológicas.
Agradeço em especial aos membros do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena –
NEAI, aos professores coordenadores, aos colegas pesquisadores, com os quais compartilhei as
angústias e amadureci as ideias para produzir a tese. A vivência no núcleo, durante os onze
anos, foi de grande importância e de muito aprendizado. O companheirismo de todos os
membros, em especial de colegas indígenas, foi fundamental para aprofundamento de termos
conceituais indígenas do Alto Rio Negro.
Agradeço de coração à Talita Lazarin DalBó que desde o início acompanhou os
rascunhos dos capítulos da tese, lendo e orientando na escrita em português com muita
paciência e delicadeza. Também agradeço à minha amiga Lorena, pela leitura de textos e
sugestões. Ao Professor Sanderson pela correção dos dois primeiros capítulos.
7
Agradeço às pessoas que sempre estiveram do meu lado, desde o início da minha
caminhada e que são minha família: Ovídio Barreto, Ivan Barreto, Josivan Barreto, Cleofa
Barreto, Pedro Barreto, Cledyson Barreto, que sempre me deram apoio incondicional. Em
especial à Clarinda Ramos pelos momentos que compartilhamos, pelo companheirismo, pelos
momentos de muitas dificuldades, de angústia e de ansiedade. Agradeço aos jovens
colaboradores do Centro de Medicina Indígena Bahserikowi: Carla Fernandes Dessana,
Benison Machado Tukano.
8
RESUMO
Esta tese tem como objetivo central explorar a noção de corpo do ponto de vista dos
especialistas indígenas do Alto Rio Negro, comumente conhecidos como “pajés”. As bases da
investigação sobre o tema são os e os bahsese, o discurso e as experiências dos especialistas na
intervenção sobre o corpo. No fundo, o corpo é o ponto de partida para pensar o pensamento e
a filosofia rionegrina. O corpo constituído de elemento água, terra, luz/calor, animal, ar, floresta
e qualidade de pessoa. A pessoa é sujeita de ataques de seres waimahsã, dos animais, dos
alimentos, dos fenômenos naturais e das substâncias constitutivas que podem resultar no
desequilíbrio do corpo. Prevenir contra os ataques, qualificar e equalizar os elementos que
constituem o corpo via bahsese e uso de plantas medicinais é a garantia de qualidade da vida.
Na filosofia rionegrina, o corpo humano é dinâmico, algo que está sempre em transformação.
Essa transformação pode se dar pela qualificação via bahsese, pelo uso de sutiro e pelo devir
pós-morte. De igual modo, os animais e vegetais são dinâmicos, se transformam e multiplicam.
Dessa maneira, o corpo e as coisas do mundo não são algo fixo, mas estão em constante
transformação.
Palavras chaves: Mahã kahtiro (pessoa, gente), Ʉhpu (corpo), Doatise (doenças), Duhtitise
(ataques).
9
ABSTRACT
This thesis has its main focus on the concept of the body as seen from the point of view of the
experts in indigenous medicine in the Upper Rio Negro, popularly known as pajes. The basis
of this research are the kihti ukũse and bahsese, fundamental conceptions for the manipulation
and intervention on the body by the pajes. In a nutshell, the body is the starting point for
thinking about the Rio Negro philosophies. The body, built by vegetal and mineral (air and
water) substances, aerial phenomena (fire) and animal features. The self can be subject to
attacks by entities known as waimahsã, by animals, by foods, by natural phenomena and by
substances that are the results of an imbalance of the body energies. Prevent those attacks,
rebalance the substances that constitutes the body by the caring via bahsese and using
phytomedicine is the way to grant a good and balanced quality of life for the Upper Rio Negro
people. In the Rio Negro philosophy the body is dynamic, and something that is always in a
process of transformation. This transformation can happen via the process of bahsese, using
sutiro and by the final transformation after death. Like humans, animals and vegetables too are
dynamics, transform themselves and multiply themselves. As such, the body and everything in
this world are not something fixed and stable, but on the contrary are in a constant process of
transformation and metamorphosis.
LISTA DE SIGLAS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 14
1. Trajetória da Comunidade à Universidade .................................................................................... 14
2. Minha infância com meu avô Ponciano ........................................................................................ 15
3. Uma vida de adolescência, mudança de rotação e de perspectiva ................................................ 25
4. A Antropologia como estímulo para “pensar o pensamento” ....................................................... 31
5. A construção da Tese .................................................................................................................... 40
6. Organização da Tese ..................................................................................................................... 42
CAPÍTULO I ....................................................................................................................................... 45
Mahsã ʉhpu pati: A constituição do corpo ........................................................................................ 45
1. Kahtise: os elementos imateriais constitutivos do corpo............................................................... 46
1.1 Boreyuse kahtiro (“luz/vida”) ..................................................................................................... 48
1.2 Yuku kahtiro (“floresta/vida”) .................................................................................................... 50
1.3 Dita kahtiro (“terra/vida”) ........................................................................................................... 53
1.4 Ahko kahtiro (“água/vida”) ......................................................................................................... 54
1.5 Waikurã kahtiro (“animal/vida”) ................................................................................................. 56
1.6 Ome kahtiro (“ar/vida”) .............................................................................................................. 58
1.7 Mahsã kahtiro (“humano/vida”) .................................................................................................. 59
1.7.1 Heriporã bahseke wame e suas consequências .................................................................... 63
1.7.2 Heriporã Bahseke wame e as unidades sociais .................................................................... 68
1.7.3 Heriporã bahseke wame e o território .................................................................................. 70
1.7.4 Heriporã bahseke wame e Ʉmuko pati................................................................................. 71
1.7.5 Heriporã bahseke wame e pamumuhãnukãke dita ............................................................... 71
1.7.6 Heriporã bahseke wame e buakukãke ditá ........................................................................... 77
1.7.7 Heriporã bahseke wame e o “territorio pós-morte” ............................................................. 80
1.7.8 Heriporã hahseke wame e sua relação com Bahsakawi ....................................................... 81
1.7.9 Heriporã bahseke wame e artefatos ...................................................................................... 86
CAPÍTULO II...................................................................................................................................... 88
Doatise, Duhtitise e Bahsese: produção de cuidados do corpo ........................................................ 88
1. Os cuidados do corpo .................................................................................................................... 91
1.1 Ba’ase bahse ekase ...................................................................................................................... 92
1.2 Os cuidados da pessoa pós poose ................................................................................................ 96
1.3 O cuidado do corpo da mulher .................................................................................................. 100
12
EnzaPátrian
14
INTRODUÇÃO
1
Kihti ukũse o conjunto das narrativas míticas dos Yepamahsã (Tukano). Essas narrativas tratam das aventuras e
tramas vividas pelos demiurgos e por outros personagens e heróis responsáveis pela origem e pela organização do
mundo, da humanidade, dos seres, das coisas, das técnicas. O kihti ukũse fala de um tempo em que os humanos
ainda não existiam, de um tempo em que o mundo era habitado apenas pelos waimahsã. Assim, podemos dizer
que os kihti ukũse formam um conjunto de histórias sobre os waimahsã demiurgos e organizadores do mundo
terrestre. No kihti ukũse encontramos as lições, as regras, as obrigações, a origem das doenças e dos bahsese, as
etiquetas e os comportamentos exigidos nas relações entre os humanos e destes com os não humanos,
especialmente com os waimahsã. Além disso, a leitura e a interpretação dos Kihti ukũse nos permite entender a
origem e dinâmica das relações entre os diferentes povos da região rionegrina, seus grupos e suas comunidades
(Barreto et al, 2018, p. 26-27).
2
Os bahsese são um vasto repertório de fórmulas, palavras e expressões especiais retiradas dos kihti ukũse
(narrativas míticas) e proferidas formalmente pelos especialistas Pamurimahsã e Ʉmukorimahsã. É uma prática
de articular verbalmente as qualidades curativas e preventivas contidas nos tipos de vegetais, animais, outros
qualidades protetivos. Bahsese também é limpeza e “descontaminação” dos alimentos, tornando-os próprios para
o consumo humano (Barreto et al, 2018, p. 64).
3
O conceito de Bahsamori aqui empregado diz respeito ao conjunto de práticas sociais associadas aos marcadores
naturais, às doenças, às atividades agrícolas, de coleta, aos bahsese, à interação com os waimahsã, aos instrumentos
musicais, aos contos e às danças, às coreografias, às pinturas corporais, às etiquetas, peeru (caxiri), kahpi, à
formação de especialistas etc. Mais especificamente, bahsamori diz respeito ao conjunto das festas e cerimônias
rituais de oferta (poose) e compreende os conhecimentos e as práticas relacionadas à música, à coreografia e aos
instrumentos musicais, dentre outros. Essas festas e cerimônias estão organizadas ao longo do ciclo anual, de
acordo com um complexo calendário astronômico inscrito e estruturado pela passagem das constelações, que
orienta também as atividades anuais e cotidianas da roça, a construção das armadilhas de pesca, de caça, de coleta
e várias outras atividades ligadas às experiências da vida cotidiana (Barreto et al, 2018, p. 119).
4
Entre os povos indígenas do alto Rio Negro, existem três categorias de especialistas: yai, kumu e baya. São
detentores de conhecimentos, exercem o ofício de “xamã”, e são formadores de novos especialistas. Todos eles
têm a mesma base de formação, mas cada um tem sua especialidade.
15
yai, o kumu e o baya. Todos eles são detentores de Kihti ukũse, bahsese e bahsamori, e possuem
a mesma base de formação (Barreto, 2013). O especialista baya, além de ser mestre de festa de
poose e de danças kahpiwaya, é também kumu.
Ao escrever estas páginas, minha ideia não é relembrar uma parte importante de minha
vida, mas mostrar o caminho que percorri até aqui, a trajetória em que aprendi coisas do mundo
indígena e coisas do mundo não indígena, sobretudo os diferentes modos operandi de
construção de conhecimentos.
Eu e meus quatros irmãos (todos homens) éramos orientados a seguir regras bem
definidas, como: modo de falar com as pessoas, postura de sentar no banco, modo de participar
das rodas de conversa, adoção de postura de aprendiz de Kihti ukũse, bahsese e bahsamori,
modo de dirigir a fala para os mais velhos, modo de cuidar do corpo, modo de trabalhar no
roçado, a performance para recepcionar as pessoas e os amigos, dentre outras. Éramos também
cobrados para não falar linguagem de baixo calão, para não ser demasiadamente brincalhões e
para não chamar as pessoas pelo apelido.
Minha mãe era bastante rígida nesses quesitos. Dizia que os irmãos maiores de uma
determinada unidade social deveriam se comportar como irmãos maiores, adotar etiquetas
sofisticadas e ser discretos, deveriam se portar como homens adultos (ainda que fossem
pequenos).
Na alimentação também meus pais tinham muito cuidado, não nos deixavam alimentar
demasiadamente de carne de caça, pois diziam que o corpo ficava contaminado por preguiça e
sono. De igual modo, não nos permitiam comer assado, moqueado, pois diziam que o “corpo
queimava” com o calor do alimento, sobretudo uma parte do cérebro chamada de witõda, uma
parte importante para o equilíbrio da pessoa.
Os alimentos à base de peixe passavam pelos mesmos processos de cuidados e
restrições: era proibido ou restrito alimentar-se de peixes gordurosos, de grande porte, assados
ou moqueados. O argumento era que tais peixes poderiam causar volume ao corpo, uma doença
chamada de wisise. Seus indicadores eram a salivação excessiva durante o sono, o desejo de
comer terra, sonolência, preguiça, sintomas de desequilíbrio do corpo.
Assim, restava-nos comer, sob supervisão dos meus pais, os peixes miúdos, peixes sem
gordura, caça de carne branca como o inambu, alimentos considerados menos perigosos para o
corpo da criança.
As tarefas também eram diferenciadas pelo gênero (ou sexo), ou seja, nós éramos
orientados a realizar tarefas consideradas especificamente de homens. Jamais podíamos estar
envolvidos com as tarefas de mulheres, nem podíamos nos aproximarmos dos artefatos de
trabalho exclusivamente das mulheres, como aqueles de processamento de produtos de
derivados de mandioca.
Meus pais diziam que, se um homem se envolvesse nos afazeres especificamente das
mulheres, o corpo podia ser atingido por certas doenças. Da mesma maneira com as mulheres,
se elas tocassem nos instrumentos de trabalho e nos artefatos exclusivamente masculinos, o
corpo poderia desenvolver certas doenças. Não me lembro exatamente a quais doenças eles se
17
referiam, só sei que cumpríamos aquelas orientações e proibições na medida em que eles diziam
que isso era para garantir a qualidade de vida para a fase adulta.
Algumas vezes minha mãe me levava para o roçado, e meu avô também nos
acompanhava. Lembro-me que, quando meu avô ia para o roçado, era para colher as folhas de
patu (ipadu) e limpar as fileiras de plantas de patu, mantidas no meio do roçado. Ele tinha
grande estima pelo patu, retirava suas folhas com muita delicadeza, adotando uma técnica que
ele considerava apropriada. Dizia que só podia retirar as folhas maduras, caso colhesse as folhas
verdes a planta corria o risco de secar.
Acompanhar meu avô no roçado era minha atividade preferida. Eu ajudava a catar as
folhas e a limpar os pés de patu. Ele me ensinava as técnicas de coleta das folhas de modo certo
para não machucar os pés. Retirar as folhas de forma correta, segundo meu avô, era a garantia
de ter mais folhas para a próxima temporada. Caso não adotasse os devidos cuidados, segundo
meu avô, as plantas davam folhas raquíticas ou mesmo morriam, causando prejuízo para seu
dono-consumidor. Assim, meu avô, quando me via retirar as folhas de modo considerado
errado, pedia para eu parar e me ocupava com outros afazeres como, por exemplo, limpar o
mato entre os pés de patu.
Quando meu avô não ia ao roçado, minha ocupação era brincar de confeccionar arco e
flecha para caçar calango ou construir armadilha para pegar cutia, que muitas vezes roubava as
mandiocas da minha mãe. Às vezes, minha avó, com pena de mim, parava seu trabalho e me
levava com ela para o igarapé. Lá, ela pegava camarão, caranguejo, sarapó e outros peixes
miúdos, e eu ajudava. Nessas horas, ela contava histórias dos animais e me dava banho. Quando
não ia para o igarapé, ela me levava para uma sombra de árvore, sentava, servia água e me
contava outras histórias dos animais.
Voltando para casa, pela tardinha, meu avô começava sua fabricação de patu. De vez
em quando, ele me convidava para ajudar a torrar, pilar e pulverizar. Tudo parecia uma
brincadeira, mas meu avô levava a sério esses momentos. Ele me ensinava sobre o ponto certo
da torra das folhas, pois um dos ingredientes para produzir patu gostoso era saber o ponto certo
de torrar as folhas. Patu bem torrado produzia um aroma muito gostoso, um cheiro que atiçava
o desejo de comer.
Depois de torrada, a folha era socada no pilão até transformar-se num pó. Feito isso, era
a vez de queimar as folhas de embaúba para então misturá-las com o pó de patu para deixar o
produto meio adocicado. Em seguida, dava-se o processo de pulverização, quando o composto
era colocado no cilindro de madeira e, dentro dele, se batia o “saco” de pó de patu amarrado na
18
ponta de uma vara para finalmente obter um pó bem fino, próprio para o consumo. O pó retirado
do cilindro era armazenado numa lata.
Feito todo o processo de fabrico do patu, ao anoitecer, era hora de consumi-lo no pátio
da casa, onde mais gente se juntava e formava uma roda de conversa. Apenas os homens
comiam o pó, sendo proibido às crianças e às mulheres.
Os velhos diziam que o consumo de patu pelas crianças era muito perigoso, pois
poderiam ficar viciadas do pó. Assim, recomendavam que, antes do primeiro consumo de patu,
o menino se submetesse ao bahsese, para evitar o vício.
Na roda de conversa, quase sempre, o papo girava em torno dos Kihti ukũse e dos
bahsese, assunto de gente adulta, como eles costumavam dizer. Mas não proibiam as mulheres
com seus filhos de ficarem sentadas ao seu redor. Para nós, crianças, era proibido fazer barulho
e correr, nossas mães exigiam silêncio e recomendavam ouvir as conversas dos velhos.
Também durante as conversas, comentavam sobre os perigos das doenças, que
apareceriam conforme as constelações estelares, os perigos do tempo de cheia dos rios, do
tempo de verão, do tempo de fartura de frutas silvestres e do tempo de fartura de larvas
comestíveis, chamados de nihtiã.
Ao falar dos perigos também se falava de bahsese, dos Kihti ukũse e sobre os discursos
formais das cerimônias de poose, da organização social – dos grupos de irmãos maiores e de
irmãos menores. Enfim, aquelas rodas de conversa eram momentos de atualização dos
conhecimentos.
Para as crianças, contavam histórias dos bichos, do boraro (curupira), do bisio, do
saharowati e dos welrimahsã (humanóides da floresta). Falava-se também dos marcadores do
tempo, das constelações, dos bioindicadores, da divisão do tempo de verão, da divisão do tempo
de inverno, dos perigos dos waimahsã. Para as crianças, os velhos só faziam contar as histórias
de modo simplificado, eximiam de contar fazendo sua conexão com os bahsese ou bahsamori.
Por volta dos meus cinco anos de idade, eu passei a conviver mais com meus avós
paternos. A casa onde morávamos tinha duas divisórias, uma parte de aposento da família e
outra que correspondia à cozinha, espaço que meus avos preferiam como seu aposento.
Quando passei a morar com eles, antes de eu dormir, minha avó sempre me contava
historinhas de bichos como da cutia, do caranguejo, do inambu e dos perigos que apareciam ao
longo do tempo.
Durante o dia, quando meu avô não ia para o roçado colher folhas de patu, ele saia para
pescar e, muitas vezes, me levava junto. No momento da pescaria, a ordem era ficar quieto, sem
perguntas, sem fazer barulho, apenas seguir suas ordens. Depois da pescaria, já voltando para
19
casa, durante o percurso até chegar ao porto, meu avô contava as histórias sobre os lugares,
sobre os waimahsã que habitavam nos lagos, sobre os nomes das corredeiras, sobre os oãmahrã
– sujeitos que construíram o mundo terrestre – e sobre outros personagens que ajudaram a
organizar o mundo, futuro lugar de habitação dos waimahsã e dos humanos.
Os construtores e organizadores do mundo terrestre são chamados pelos especialistas de
oãmahrã, que significa seres com poderes especiais de transformar, de criar, de construir as
coisas. Eles são seres capazes de transitar entre os patamares do cosmo usando estratégias de
transformação,enquanto os waimahsã, os humanos e os animais são considerados obras dos
oãmahrã, assim como a “trindade” conceitual de Kihti ukũse, bahsese e bahsamori.
Na maioria das vezes que meu avô contava histórias para mim, eram apenas partes
introdutórias, resumidas e simples para que eu pudesse minimamente entender o sentido
daqueles Kihti ukũse. Ele também falava sobre o significado dos sonhos e sobre os significados
do canto dos pássaros e contava histórias sobre os peixes e sobre as transformações dos bichos.
Meu avô, por ser um renomado yai do Alto Rio Negro, especialmente na região do Rio
Tiquié, era bastante requisitado pelos moradores da região para atender os doentes. Exercia seu
ofício com muita dedicação e zelo. Um dia, falando sobre a sua formação, contou o que seu
formador lhe dissera no dia de sua conclusão – essa fala do meu avô nunca saiu da minha
cabeça:
Meu avô levava essa recomendação a sério, exercia seu ofício de yai com muito respeito
e dedicação, e, acima de tudo, gostava do que fazia. Convivendo com ele, eu pude acompanhá-
lo no exercício do seu ofício. Muitas vezes, cheguei a viajar com ele, acompanhado da minha
avó.
Lembro-me de um dia que os vizinhos de uma comunidade foram buscá-lo de
madrugada. Quando eles chegaram em casa chamando pelo nome do meu avô, toda a família
acordou. Eram quatro pessoas bem fortes, diziam que estavam ali para buscá-lo para atender
uma pessoa que estava bastante doente na sua comunidade. Atendendo ao chamado, sem muitas
palavras, meu avô pediu para minha avó arrumar as redes para a viagem. Eu fui junto com eles.
Os homens nos acomodaram no meio da canoa, e, como eram fortes, começaram a remar
rio acima sem parar, pois diziam que a pessoa estava muito mal e, caso demorassem, estava
20
fadada à morte. Como era noite, eu e minha avó nos acomodamos de modo que podíamos nos
deitar na canoa.
Após quase três horas remando, quase ao amanhecer, chegamos à comunidade. Mal
aportamos, meu avô saiu pulando da canoa e foi direto para a casa do doente. Eu e minha avó
o seguimos, enquanto nossa pouca bagagem foi conduzida pelos homens.
Ao longo da viagem, meu avô foi fazendo bahsese com cigarro e, quando chegou na
casa, adentrou logo no cômodo do doente. Sem muita cerimônia, acendeu o cigarro e soprou
sobre o doente a fumaça do tabaco. Depois, fez bahsese novamente e soprou a fumaça na sua
cabeça e nas orelhas. Feito este primeiro procedimento, em seguida deu atenção às pessoas que
estavam ao redor. Conversou com elas e, sabendo da gravidade da doença, pediu uma bacia
com água. Fez bahsese sobre a água, depois, pegando-a com uma cuia grande, aspergiu por
várias vezes sobre a pessoa doente. Essa sessão era para diagnosticar a doatise ou duhtitise,
chamada pelos yepamahsã de ahko sihtase.
Nesse momento, o dia estava amanhecendo. Feito o diagnóstico, fez mais bahsese, dessa
vez com água, e dizia que era heriporã bahsese (reorganização e fortalecimento da força vital)
do paciente. Em seguida, fez mais bahsese com tabaco, dizendo que era para abrandar a dor.
Depois, respirou profundamente e disse: “ela vai resistir, mas precisará intensificar os bahsese”.
O passo seguinte foi conversar com mais calma com os cuidadores do doente, e com os
kumuã que tinham lhe atendido antes. Somente depois de todos os procedimentos e conversa
sobre o estado do paciente é que as anfitriãs pediram para acomodar nossas redes em um dos
compartimentos da casa. Foi quando, então, eu dormi, mas meus avós não. Ficamos quase um
mês na comunidade, até a pessoa se recuperar. Meu avô ganhou muitos presentes: carne de
caça, peixe moqueado, banana e até uma canoa. Voltamos cheios de coisas para casa. Esse
período de convivência com meus avós foram momentos preciosos na minha vida.
Como não bastasse o esforço dos meus avós para minha formação tradicional, por outro
lado, havia também um investimento muito forte por parte da Igreja. Em todas as comunidades
existia uma “casa de rezas”, ou melhor, uma capela, marca da presença da Igreja Católica. O
dia de domingo era dedicado exclusivamente a rezar, cantar e ouvir o sermão do catequista.
Todos os domingos, antes do culto dominical, as crianças eram reunidas pelos auxiliares do
catequista para ouvir as histórias do menino Jesus, as histórias de Nossa Senhora, as histórias
de São José, de São Domingos Sávio e para aprender os dez mandamentos e tantas outras coisas
da igreja. Quando era o dia de comemoração de algum Santo, contava-se a história de sua vida,
sobre seu sacrifício, suas obras, sua santidade.
21
5
Poose são as conhecidas festas de dabucuri. Ao longo do ano, os Tukano realizavam quatro grandes poose
(dabucuri): na estação de Ayã com poose de frutas, na estação doYaicompoose de peixes, na estação deDiayoá
com o poose de carne de caça e, por fim, na estação da Yãmia, com a presença de insetos e larvas. (Maia, 2016).
23
ir, meu pai dedicou um bom período para pescar e armazenar peixes moqueados para ofertar
aos seus cunhados. Também dedicou seu tempo para esculpir bancos para serem levados e
doados aos seus cunhados especialistas.
No dia marcado, viajamos. Depois de três dias remando rio acima, chegamos à
comunidade dos irmãos de minha mãe. Todos já esperavam nossa chegada, mas a estrela da
viagem era minha mãe. Os anfitriões esperavam ansiosamente sua chegada, pois ela era a irmã
maior de todos daquele grupo de irmãos.
Lembro-me que nossa chegada foi uma verdadeira festa. Depois de acomodados no
aposento especificamente preparado para nós, meus pais começaram a distribuir os presentes e
dividir os peixes moqueados.
Os “bancos tukano” e os peixes moqueados, do ponto de vista dos outros grupos,
representavam o estilo específico de vida dos yepamahsã. Assim, presentear com o banco e
distribuir peixes foi como estender os bens mais preciosos da vida dos yepamahsã aos parentes
afins, os cunhados.
Ficamos entre meus tios e avós maternos por cerca de quinze dias. Durante esses dias,
eu sempre vi meu pai acompanhar os seus cunhados kumuã, seja para ir ao roçado para apanhar
folhas de patu seja para torrar, pilar e pulverizar o produto. Ao anoitecer, participava da roda
de conversa dos kumuã, seus cunhados, e ficava comendo o pó de patu até altas horas da noite.
Às vezes eu ficava perto do meu pai, até adormecer. Nessas horas eu ouvia os kumuã
contarem os Kihti ukũse, bahsese e bahsamori, só que a linguagem era de outro nível, não era
uma linguagem do dia a dia, ainda que fossem os mesmos Kihti ukũse que meus avós me
contavam. O diferencial é que eles conectavam os Kihti ukũse com os bahsese e os bahsamori.
Passados aqueles dias de convivência intensa, minha mãe comunicou aos seus parentes
o dia do nosso retorno. Com o aviso, todos os anfitriões se mobilizaram para promover uma
grande festa de poose. Dividindo-se em pequenos grupos, partiram para a caça, uns foram
esculpir canoa e outros foram coletar buriti.
Antes da partida de todos, o kumu fez bahsese com cigarro, todos fumaram, depois cada
grupo seguiu seu rumo. Meu pai explicou que antes de grandes excursões de caça ou de pesca
os especialistas entram em contato com os waimahsã por meio do bahsese, para comunicar a
atividade de caça ou de pesca.
A ação de bahsese, além de comunicar a entrada das pessoas para caçar ou pescar
naqueles lugares, conforme explicou meu pai, era também para oferecer objetos como tabaco,
ipadu, caxiri e artefatos de valor como troca. Essa era a forma de agradecer aos responsáveis
waimahsã pela gentileza em dispor daqueles recursos que estavam sob sua responsabilidade.
24
Segundo meu pai, Ovídio Barreto, essa troca garantia uma relação equilibrada, assim
como garantia que os responsáveis pelos animais nunca escondessem a caça ou os peixes. Caso
não houvesse a troca, os waimahsã poderiam lançar ataque, provocando a infestação de doenças
para atingir o maior número de morte de pessoas ou provocar conflitos interpessoais ou ainda
provocar acidentes fatais. Faziam tudo isso para se vingar e como forma de exigir a troca.
Enquanto os homens foram caçar, esculpir canoas e coletar buriti, minha mãe, junto com
as mulheres anfitriãs, fez muito caxiri (cerveja) e os kumuã dedicaram-se ao preparo do pó de
patu, do tabaco e do bahsese de apaziguamento.
O bahsese de apaziguamento, segundo os kumuã, consistia em fazer as pessoas
esquecerem dos possíveis usos de behsu (armas) durante os confrontos e afastar o próprio risco
de confrontos físicos durante a festa. Diziam que era também para proteger as pessoas dos
ataques dos waimahsã e de sua invasão, pois eles costumavam participar da festa de poose sem
serem convidados, para provocar os humanos.
Antes da festa de poose todos se pintaram, inclusive as crianças. A pintura corporal tinha
o mesmo objetivo, isto é, proteger o corpo contra o ataque dos waimahsã e dos confrontos
interpessoais, além da estética corporal. Também, todos fumaram o cigarro de apaziguamento,
sem exceção.
Aquele poose durou dois dias, com começo, meio e fim. Minha mãe me contava o
sentido de cada etapa da festa, como a sessão de usetise (o momento da arte de discurso), a
sessão de oferta das frutas, a sessão de cantar e dançar kahpiwaya, as sessões de murõohose
(circulação de cigarro feito bahsese), a sessão de tomar kahpi, a sessão de tocar os instrumentos
de miriã, a sessão de tocar cariçú e a sessão de encerramento. Entendi, a partir de toda aquela
explicação, que a festa de poose seguia uma lógica própria.
Após os dias de festa de poose, houve um período de descanso dos que participaram
diretamente da festa. Eles tiveram que cumprir um período de dieta. Segundo minha mãe, a
dieta era para cuidar do corpo que teria sido contaminado pelo kahpi e pelos instrumentos de
miriã. Somente depois que passou o período de resguardo é que voltamos para nossa
comunidade.
No momento da partida, minha mãe ganhou de presente carne de caça em grande
quantidade. Meu pai ganhou muito patu e duas canoas pequenas para a pesca e uma grande para
as longas viagens. Além de tudo isso, voltamos com muita polpa de buriti. Quando chegamos
em casa, meus pais distribuíram a carne de caça e a polpa para as famílias da comunidade. Esta
era uma atitude esperada pelas pessoas de quem voltasse de uma visita aos seus afins (sogros e
cunhados).
25
Depois, meu avô, durante os momentos que eu o acompanhava, me contou que nas
sessões de usetise as pessoas falavam da viagem da embarcação pamuri-pirõ-yukusu, das
histórias dos locais de sua parada, dos primeiros poose e dos primeiros momentos de vida social
dos Pamurimahsã. Ele me ensinava a cantar o kahpiwaya e falava das origens dos instrumentos
de miriã e dos seus perigos. Contava sobre todo o sentido do poose, e eu, com aquela idade,
não conseguia acompanhar o raciocínio do meu avô.
Vivi sob essa atmosfera até mais ou menos os sete anos de idade, quando comecei a
frequentar a escola localizada na comunidade, que naquela época era chamada simplesmente
de “escolinha” São Domingos Sávio. A partir desse momento, começou a mudar tudo na minha
vida. Quando passei a frequentar a escolinha, minha mãe retomou minha educação em lugar do
meu avô. Eu passei a dormir no aposento onde meus pais e meus irmãos dormiam. A primeira
coisa que me aconteceu foi o afastamento da relação intensa com meus avós, e passei a conviver
mais com meus pais.
Com a mudança, as orientações morais se voltaram para a escola e para a catequese.
Minha mãe, além de ser muito católica, tinha sido empregada doméstica das freiras, portanto,
havia se tornado uma mulher muito rígida. Cobrava meu desempenho máximo na escolinha,
cobrava as tarefas de casa recomendadas pelo professor, a frequência na catequese e a oração
da noite.
Diante de tanta pressão da minha mãe, eu me dedicava ao máximo, tanto para participar
das atividades da catequese quanto das aulas da escolinha, de modo que eu nunca fui reprovado
em nenhuma série escolar.
Minha mãe tinha horários bem definidos para nós, seus filhos. Pela manhã, era o tempo
dedicado às aulas. Depois de ela retornar do roçado, era o momento de ajudá-la. Como na
família não tinha irmãs, nós tínhamos a obrigação de ajudar nos afazeres domésticos como
limpar a casa, lavar as panelas, carregar a água, ir ao roçado para carregar as aturás com
mandiocas e descascar a mandioca. Até ralávamos e espremíamos a massa de mandioca.
Também ajudávamos a torrar farinha e a carregar lenha. Isso, muitas vezes, nós fazíamos contra
a vontade do meu pai, mas meu avô dizia que ele fazia bahsese para afastar os perigos.
Todos os pais aconselhavam os meninos anão se ocuparem com o trabalho considerado
exclusivamente da mulher, sobretudo na extração de produtos de mandioca, pois diziam que o
menino poderia ser afetado por uma série de “doenças”, uma delas seria kisumuã – doença de
26
avolumação do umbigo do menino, com secreção de muito odor, e com risco de estourar de
tanto avolumar.
Minha trajetória de vida mudou radicalmente quando passei a estudar no sistema de
internato, o que cada vez mais me afastava dos meus avós, passando a me dedicar quase que
exclusivamente aos estudos, às orações e ao aprendizado da vida de Jesus Cristo, de Nossa
Senhora e de São João Bosco, mais conhecido como Dom Bosco.
No internato existia horários bem definidos e o dia era preenchido com atividades como
missa da manhã, café, aulas, recreio e trabalho no roçado. À noite, o tempo era ocupado com
estudo até às vinte e duas horas e depois encerrava-se com uma oração da noite.
Foi também um período de muita pressão. Todos os internos eram proibidos de falar sua
língua materna. O padre ameaçava colocar uma placa com a frase “sou burro” no pescoço da
gente, se descobrisse que alguém estivesse se comunicando em sua língua materna.
Com 16 anos, tendo concluído a oitava série, mudei-me para Manaus, sem nem mesmo
ter saído da minha comunidade uma única vez. Chegar numa cidade grande foi um trauma.
Encontrei um mundo completamente diferente daquele de onde saí. Tinha medo de tudo, medo
de sair de casa, medo de pegar ônibus, medo de entrar na sala de aula, posto que as pessoas
eram completamente estranhas para mim.
Fiz meus estudos de ensino médio na Escola Técnica de Mineração Professor Gilberto
Mestrinho em três anos, com bolsa integral recebida de uma empresa de mineração que tinha
convênio com a organização indígena da nossa região, naquela época, chamada de União das
Comunidades Indígenas do Rio Tiquié - UCIRT.
Não saberia descrever as dificuldades linguísticas e toda a discriminação que eu passei
nesse período, só sei que eu escapei do desespero e do risco de ficar doido porque meu pai fez
um cigarro muito bom para minha proteção antes de eu sair da comunidade. Conforme sua
orientação, eu fumei assim que cheguei na casa em que ia morar em Manaus. Ele também fez
proteção à base do carajiru para eu passar no corpo toda vez que eu saísse para a rua. Hoje,
tenho certeza de que isso me salvou. O mundo, os lugares e as pessoas estranhas são muito
perigosos, dizia meu pai.
Depois de concluído o Ensino Médio, voltei para minha comunidade, onde atuei como
professor durante três anos, na mesma escola onde eu estudei no sistema de internato.
Mais tarde, fui para o seminário Salesiano, onde passei seis anos, cursei Filosofia
Seminarística por três anos, passei um ano no noviciado e fiz voto temporário de castidade,
pobreza e obediência.
27
pedido do agente indígena de saúde da comunidade, minha sobrinha foi conduzida para o Polo
Base da região para continuar o tratamento. Lá, ela foi atendida por uma enfermeira que estava
em seu período de menarca, procedimento não recomendado tradicionalmente.
Na nossa concepção, uma pessoa que sofreu picada de cobra venenosa não pode ter
contato algum com uma mulher menstruada ou grávida. Nesses estados, o corpo da mulher
exala cheio forte de sangue, o que pode contaminar o corpo da pessoa atacada, potencializando
o poder do veneno da cobra. Foi o que aconteceu com minha sobrinha. A dor e o inchaço do pé
imediatamente se intensificaram. Conforme os relatos, a menina desmaiou de tanta dor. Os dias
seguintes foram de intenso tratamento, tanto pela biomedicina quanto com os bahsese, mas sem
sucesso. Com o agravamento do quadro de saúde da menina, a equipe do polo base decidiu
encaminhá-la para a sede do município de São Gabriel da Cachoeira. Quando ela deu entrada
no hospital, os médicos, vendo a gravidade, decidiram transferi-la, imediatamente, para a
capital, Manaus, com o acompanhamento de seu pai.
Em Manaus, os médicos consideraram a situação da menina bastante grave. Viram que
o necrosamento do pé avançava, ainda que eles fizessem “cirurgia vascular”. Após dois dias de
tratamento, a menina ouviu comentários dos médicos dentro da sala de enfermagem que seu pé
seria amputado. Isso causou desespero a ela, bem como a seu pai, quando soube dos
comentários dos médicos e enfermeiros por ela.
Nessa época, eu estava para concluir o curso de Filosofia e, ao mesmo tempo, cursando
Direito. Sabendo da intenção dos médicos e assistindo à desolação da filha, não de dor, mas de
desespero, seu pai, que é meu irmão, entrou em contato comigo. Ao saber da notícia, também
eu entrei em desespero.
Fui, imediatamente, ao encontro deles no hospital. Encontrei minha sobrinha em prantos
e seu pai desesperado. Ele relatava os fatos e falava da pressão e ameaça que a assistente social
e a equipe médica estavam fazendo para que ele consentisse a amputação do pé de sua filha,
dizendo que, caso isso não acontecesse, ela morreria dentro de três dias.
Meu irmão buscava forças para convencer os médicos de que aquilo não era necessário
naquele momento e sugeria realizar um tratamento à base do bahsese e do uso de plantas
medicinais junto com biomedicina. Mas os médicos foram irredutíveis com a proposta.
Somando à vontade do meu irmão, eu fui consultar os nossos especialistas kumuã - um
deles era o meu próprio pai e outros dois tios paternos que moram em Manaus. Todos eles me
garantiram que não era necessário amputar o pé da menina, mas era preciso recorrer ao
tratamento com bahsese e com plantas medicinais, que eles mesmos garantiam fazer, sem
excluir o tratamento da biomedicina.
29
Com a garantia dada pelos nossos especialistas, partimos para dialogar com
os médicos do hospital. Nossa proposta foi imediatamente rejeitada, e a
decisão pela amputação do pé de minha sobrinha foi mantida. Instalou-se aí
um grande conflito entre nós e os médicos. Fomos acusados, dentre outras
coisas, de obstruir o trabalho médico. Meu irmão foi ameaçado de ser
denunciado ao Conselho Tutelar pela assistente social do hospital e pela Casa
de Assistência Social ao Índio - CASAI. Corríamos contra o tempo para adiar
a data de amputação, pois estávamos decididos a lutar para que o tratamento
com bahsese e plantas medicinais fosse realizado juntamente com os
procedimentos da medicina. Passamos a mobilizar o Ministério Público
Federal, e o fato passou a repercutir na mídia. Exigimos outra reunião com a
equipe médica. Nesse meio tempo, meu irmão levava remédio à base de planta
medicinal e bahsese escondidos dos médicos para a menina no hospital.
Diante da grande repercussão nos meios de comunicação de massa, a equipe
médica do hospital aceitou realizar mais uma reunião conosco. Achávamos,
com isso, que estava garantido o tratamento conjunto, mas não foi o que
aconteceu. Na sala de reunião, num lado sentou-se a equipe médica, e, no
outro, sentamos nós e nossos especialistas. O chefe da equipe médica, sem
muita conversa, de modo raivoso e arrogante, dirigiu-se a meu pai
perguntando: por que o senhor acha que não deve amputar o pé de sua neta?
Meu pai, sem falar bem o português, começou a responder, dizendo que do
ponto de vista dele, como kumu, o pé de sua neta não estava necrosado, pois a
cor roxa do pé era uma reação do sangue com o veneno da cobra. O médico,
visivelmente irritado, interrompeu a fala de meu pai, e esmurrando na mesa
disse – “eu estudei oito anos para ter autoridade para decidir o que é que
melhor para um paciente, enquanto o senhor (com muito respeito), não
frequentou um dia sequer a medicina”. Dizendo isso se retirou, levando
consigo toda a equipe (BARRETO, 2017, p. 590).
foi descartada. Passados três meses de tratamento, ela teve alta, surpreendendo a previsão
inicial, que havia sido de seis meses. Seguiu sendo acompanhada em domicílio pela equipe de
saúde do hospital. Hoje, está bem, apresentando apenas leves sequelas, como a diminuição dos
movimentos do pé.
O fato ora descrito é um exemplo de outros vários casos similares no Brasil. E esse
acontecimento nos inspirou a iniciar uma jornada de articulações para a fundação do Centro de
Medicina Indígena Bahserikowi, que é pioneiro no Brasil. Assim, o “mito de origem” do Centro
ocorre em um contexto de negação dos conhecimentos e práticas terapêuticas indígenas.
Esse fato foi o ponto de partida, mas, antes da fundação do Centro tive que estudar a
Antropologia. Minha história de encontro com a Antropologia foi descrita na minha dissertação
de Mestrado (Barreto, 2013). Mas, o importante, aqui, é destacar o processo de amadurecimento
da ideia de criação de um Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, que foi gestado durante
oitos anos.
Eu já estava ciente de que algo deveria ser feito para desconstruir o imaginário criado
ao longo de muito tempo sobre a figura do “pajé”, bem como as (pré)concepções sobre os
conhecimentos indígenas, haja vista o que aconteceu com a história do acidente ofídico com
minha sobrinha e a luta que travamos para ter o direito de fazer um tratamento em conjunto
com a biomedicina.
Que outros “conceitos” indígenas/yepamahsã eu estava pensando, ou mesmo
propagando naquele momento? Eu buscava caminhos para evidenciar esses conceitos nativos.
Relutei a seguir o caminho da Antropologia, mas, apesar de não desejá-la, foi justamente
esta resistência que acabou me levando a ela. No meu mestrado, propus realizar uma pesquisa
sobre a ciência, tomando um laboratório como meu campo. Com o apoio do Dr. Prof. Geraldo
Mendes dos Santos, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA) e
irmão do meu atual orientador, consegui acessar o Laboratório de Ictiologia deste Instituto. Meu
objetivo era fazer uma “leitura tukano” do modo de produzir conhecimento científico – neste
caso, com os peixes. O efeito da minha pesquisa foi inverso. Isto é, notei que não possuía um
cabedal de conhecimento tukano suficiente para uma análise teórica indígena daquilo que eu
estava observando. Aliado a isso, notei também que não havia (ou eu não tinha conhecimento
de) um conjunto de categorias ou conceitos tukano sistematizados, que me permitisse tal análise
crítica ou “cruzada”, como vinha propondo. Assim, foi necessário voltar para meu “mundo”
para minimamente sistematizar os conceitos yepamahsã (Conf. Barreto, 2013).
31
6
Em meu trabalho de mestrado, defini waimahsã como “humanos invisíveis” que habitam os domínios da terra, da
floresta, do ar e da água; que possuem capacidade de metamorfose e de camuflagem, assumindo (vestindo a roupa)
a forma de animais e de peixes e adquirindo suas características e habilidades físicas; como a fonte de
conhecimento, aqueles com os quais os especialistas tukano (yai, kumu e baya) devem se comunicar e aprender,
acessando com eles seus conhecimentos. Waimahsã são também seres que habitam em todos os espaços cósmicos,
que são donos dos lugares e responsáveis pelos animais, pelos vegetais, pelos minerais e pela temperatura do
mundo terrestre. Eles [waimahsã] só podem ser vistos por um especialista, isto é, yai ou kumu. Esses seres são,
por fim, a própria extensão humana, devendo sua existência e reprodução ao fenômeno do devir, isto é, à
continuidade da vida após a morte, sendo assim a origem e o destino dos humanos, seu início e seu fim. A categoria
de wai-mahsã, assim grafada com hifem, foi abundante e literalmente traduzida como “gente-peixe” (uma vez que
wai: peixe; mahsã: gente), o que levou ao entendimento direto de que peixe é gente para os Tukano. Como discuti
em meu trabalho, peixe não possui atributos antropocêntricos, isto é, não tem status de gente ou de pessoas. Para
os Tukano, os peixes nunca tiveram, nem mesmo em sua origem mítica, condição humana. Pelo contrário, sua
gênese está quase sempre relacionada ao que é descartado: restos de madeira, objetos e ornamentos abandonados
pelos waimahsã, as partes descartadas e podres do corpo humano etc.
33
Acredito que ficou lá na graduação o ensaio das minhas crises intelectuais, o desejo de
explorar os conhecimentos indígenas, como costumo dizer: pensar o pensamento indígena.
O encontro com a Antropologia, no ano de 2010, através do meu orientador, e no curso
de Mestrado em Antropologia Social, foi fundamental para isso, “pensar o pensamento”. Mas
isso não foi e continua não sendo algo fácil. Muita gente pensa que o simples fato de ser
indígena já nos confere a condição de “pensar diferente”, de saber expressar a diferença de
mundo das concepções que temos em relação à “tradição científica ocidental”. No fundo, o que
se passa é o contrário: quanto mais avançamos nas conquistas da Ciência, mais científicos
ficamos, mais distância tomamos de nossos mundos indígenas, de nossas verdades, de
concepções teóricas e práticas indígenas. Isso nos dificulta identificar e elaborar nossos próprios
conceitos, ou, com menos ambição, nossa singular maneira de ver e pensar o mundo sob
“nossas” lentes.
Em síntese, em meu trabalho de Mestrado, dediquei-me ao exercício de reflexividade,
dialogando entre três polos: um representado pelo meu pai, outro pelo meu orientador e o
terceiro representado pelo lugar de pesquisa (Laboratório de Ictiologia/INPA). Dessa forma,
consegui produzir um trabalho que abordou, basicamente, três assuntos: o primeiro, o equívoco
do termo waimahsã; o segundo, a noção de organização de espaços do mundo terrestre; e o
terceiro, a classificação de grupos de peixes pelos yepamahsã.
No doutorado, decidi apostar num assunto completamente diferente do que fiz no meu
trabalho de Mestrado, isto é, numa investigação sobre a concepção de corpo a partir das práticas
de bahsese dos especialistas que atuam no Centro de Medicina Indígena Bahserikowi.
Devo admitir que a ideia de realizar uma pesquisa em hospitais públicos de Manaus,
retomando a ideia de fundo da proposta de pré-projeto de Mestrado – que era observar um lugar
de conhecimento e prática científica – me moveu por certo tempo. Mas, depois de certa
insistência, negações e uma resistência, acabei desistindo da ideia.
Para ser breve, eu explico: toda vez que eu planejava ir ao hospital para negociar minha
entrada na instituição, suscitava-me um “bloqueio psicológico”, um pressentimento de rejeição,
de agonia e de apatia. Com isso, eu acabava “enrolando” ou ia contra minha vontade para as
tentativas de negociação com os responsáveis e sempre recebia, como resposta, uma resistência
ou negativa. Em casa, por várias vezes, eu desabafei com meu pai sobre essa situação.
Sabiamente, meu pai me disse: “quando o coração não quer, não adianta forçar”. Em outros
termos, meu pai falava que, para nós indígenas, tais pressentimentos eram aviso de que algo de
ruim poderia acontecer e me recomendava a pensar melhor sobre o desejo de fazer minha
pesquisa nos hospitais.
34
Passei dois meses tentando superar essa fase, até decidir mudar o caminho e o ambiente
de minha investigação de doutorado. Conversei com meu orientador e com os especialistas do
Bahserikowi sobre a situação. Os especialistas indígenas entenderem rapidamente minha
justificativa e tomada de decisão. Meu orientador também entendeu e me motivou a sair logo
para outra empreitada. Tive apoio dos dois lados.
O próximo passo foi negociar com os kumuã do Centro de Medicina Indígena
Bahserikowi. Ainda que eles estivessem me apoiando sem restrições, preferi seguir o protocolo
de apresentação do meu projeto de pesquisa a eles e a toda equipe de colaboradores,
considerando que eles seriam meus principais interlocutores a partir daquele momento. Como
falante de língua Tukano, expliquei cada etapa do meu projeto e como pretendia interagir e
conviver com eles e entre eles. O mais importante foi deixar claro para os especialistas o que
pretendia escrever na minha tese.
Os kumuã entenderam bem minhas explicações e logo quiseram começar a contar os
conhecimentos, de modo que eu tive, naquele momento, que “frear” suas vontades imediatas.
Isso me deu muita segurança e vi que eu estava com muita vantagem, para além de eu ser falante
da língua materna.
A partir desse cenário bastante favorável e num ambiente aparentemente bastante
“familiar”, comecei minha investigação. Minha intimidade com as pessoas do Bahserikowi
exigiu-me redobrar a vigilância, colocando-me sempre como investigador diante dos
colaboradores e especialistas kumuã. Muitas vezes, caí na tentação de me comportar como
colaborador, mas me recolocava sempre na posição de investigador ao participar das conversas
dos colaboradores e das rodas de conversas como os especialistas.
A espontaneidade dos especialistas, dos colaboradores e das pessoas que iam ao Centro
de Medicina foi meu ponto forte, mas exigiu-me uma atenção redobrada na medida em que,
além de conversas, brincadeiras e risos, eu tinha que estar atento para capturar os momentos em
que eles tocavam nos assuntos e nas informações de interesse de minha tese. Era necessário
estar vigilante para pegar os dados nesses momentos.
Preferi me desprover de instrumentos de pesquisa como gravador, máquina fotográfica,
caderno de campo, questionários prontos ou pranchetas; essa foi a opção que fiz, por concluir
que tais instrumentos intimidavam ou causavam timidez às pessoas. Tomei essa decisão a partir
da minha própria experiência. Renunciar desses instrumentos requeria boa memória para
guardas as informações preciosas e, logo, de modo solitário, transpor as partes filtradas para
registros.
35
mundo externo que tive que enfrentar às duras penas para calcar cada passo. As palavras dos
kumuã revelavam, aos poucos, um universo particular, vivido ou a viver.
Ao comentarem os fatos, os kumuã diziam que chegavam muito doentes no
Bahserikowi, sofrendo de consequências pelo descuido com a proteção contra ataques de
waimahsã, pelo descuido com a alimentação, pela falta de proteção do corpo contra as
intempéries nos momentos mais vulneráveis da vida.
Os kumuã tinham seu método e uma lógica própria de contar Kihti ukũse e de fazer o
bahsese. Aqui, transcrevo um texto narrado pelo kumu Batista (Tukano) com o intuito de
mostrar a lógica de contar os Kihti ukũse pelos kumuã para que o leitor possa entender
minimante o que estou falando.
Antes, nesse mundo, não existia fogo. Tinha uma turma, uma etnia dessana,
que eles já ouviram dos terceiros, que para cá, no baixo Rio Negro, já existia
fogo com uma senhora. A única pessoa que tinha fogo era ela. Agora, esse
local se encontra aqui no Brasil (São Gabriel da Cachoeira – Cucuí). Para nós,
lá é um local sagrado, ninguém pode mexer, ninguém pode fazer barulho.
Quem não tiver proteção, aí se adoece também. Essas dessanas eram três
pessoas: irmão maior, do meio e o menor. Eles tiveram o objetivo de tomar o
fogo dela. Aí inventaram de fazer caçaria pra cá, no Morro de Seis Lagos e
aqui no Yamakurunu, em português, a Serra dos Padres. Durante os dias que
eles estavam caçando, foram lá visitar ela numa roça, quando ela estava
trabalhando, fazendo limpeza, fazendo fogo. E aí perguntaram: oiii, nossa avó,
tudo bem? – Tudo! E vocês, o que é que estão fazendo? – Nós estamos fazendo
caçaria para nós nos alimentar. Então quero que vocês matem pelo menos um
zogue-zogue (tipo de macaco) para eu poder assar também e comer. Eles já
inventaram esses lagos que estão agora, até no mundo atual que existe, que os
brancos denominam de Seis Lagos. Sugeriram que o irmão menor se
transformasse em zogue-zogue. Pegaram uma espécie de folhas secas, capim
seco, tipo de algodão do mato. Eles embrulharam juntamente com esse aí para
poder pegar fogo. Aí entregaram para avó delas. Ela gostou, levou para casa,
fez fogo e começou assar. Naquele momento, ele pegou o fogo. Ele correu,
onde esses estavam esperando, nesses seis lagos, os irmãos deles. Por isso que
tem vários tipos de lagos, as cores vermelho, azul, cristalina, marrom, preto e
outros. Então, por isso que os grandes conhecedores, os benzedores, eles têm
esse conhecimento espiritualmente para poder sarar o corpo onde é queimado,
ele esfria com esse aí. Antes de tudo, o que que ela fez, o pehkabuhkio. Foi
avisar para o marido dela que estava aqui no Seis Lagos.Roubaram meu fogo,
e agora, o que que eu vou fazer?! Você tem que ir lá resgatar. Tem no local,
na ilha de açaí, eles não tinham mais como atravessar o rio. Ficaram lá
parados. O jacaré, o marido da dona do fogo, foi lá também. Ele disse: opa! O
que é que vocês estão fazendo? Nós não temos canoa para atravessar, e agora?!
Ele respondeu – não, eu tenho. Só que a canoa é pequena. Não vou levar de
uma vez todos vocês, não. Eu tenho que levar um por um. Primeiro atravessou
o irmão maior. Depois o do meio atravessou. E por último, o irmão dele que
estava com fogo, embarcou também. Aí, com intenção de tomar o fogo, ele se
emborcou bem no meio do rio. Pegou o fogo e engoliu e caiu. Sumiu. Aí
rezaram, concentraram entre eles. Aí inventaram o tempo enchente. Eles que
criaram também esse tipo de rã. Criaram por motivo de que o jacaré gosta de
37
comer rã. Aí, esses Ʉmukorimahsã pegavam as rãs, jogavam bem no meio.
Aí, naquele momento, esses dessanas, Ʉmukorimahsã, pegaram ele, e
tentaram procurar no corpo dele, por onde que ficava o fogo, mas não
conseguiram. Aí inventaram, ou criaram esse tipo de japim. Antes de fazer
isso, o jacaré era liso. Aí mandaram procuraram no corpo do jacaré o fogo que
tinha engolido. Aí começaram a bicar. Só que o jacaré tinha escondido o fogo
bem aqui no focinho dele, perto do nariz. Vendo isso, essa situação tão difícil,
eles inventaram o japu, maior. Convidaram ele. Ele começou também bicar,
bicar, bicar, bicar, bicar... Até que, por fim, ele acertou onde estava o fogo,
escondido no focinho do jacaré. Quando ele acertou, parece que ele se
queimou, e gritou piõ, piõ, piõ. Foi embora voando. Então, por isso que esse
fogo, pelo mundo, está espalhado. (Batista (Tukano), 2010).
Essa é uma pequena amostra de como o Kihti ukũse é um modelo próprio dos povos
indígenas do Alto Rio Negro de explicarem sobre as paisagens, as qualidades dos bichos, sobre
a organização dos espaços, dentre tantas outras explicações sobre as coisas do mundo, sobre os
seres, sobre os grupos sociais e sobre as unidades sociais.
As conversas com os kumuã eram verdadeiros momentos de aulas, de ensinamento de
fórmulas de bahsese sobre vários tipos de afecções e sobre fórmulas de bahsese para a
comunicação com os waimahsã.
Além dos momentos públicos, houve também os momentos mais reservados, sobretudo
durante os momentos de tomar cerveja juntos. Durante esses momentos, os kumuã contavam-
me muitas fórmulas de bahsese. Mas, um dia, um dos kumu me dirigiu palavras desoladoras.
Disse que eu era muito ruim para aprender e para memorizar aqueles Kihti ukũse, bahsesee
bahsamori, que minha cabeça estava mais voltada para aprender coisas dos “brancos”.
Essa fala veio como um incentivo para concluir meus estudos, para depois voltar a me
dedicar ao aprendizado de bahsese com eles. Para isso, primeiro eu teria que passar pela
“descontaminação” do meu corpo. Segundo eles, meu corpo está contaminado pelas coisas dos
brancos, tanto biológica quanto mentalmente. O corpo como modo de pensar e ser. Tudo isso,
segundo eles, atrapalha meu aprendizado de bahsese.
Os kumuã têm toda razão. Mas uma coisa eu aprendi: entender que as fórmulas de
bahsese carregam consigo conceitos propriamente nativos. Foi a partir dessa sacada que
comecei a levar a sério o exercício de reflexividade, tomando os Kihti ukũse e as fórmulas de
bahsese como matéria prima de minhas análises antropológicas, ou, talvez, filosóficas.
Os bahsese, por exemplo, falam de substâncias curativas contidas nos vegetais. Para
tanto, os especialistas lançam mão das taxonomias dos vegetais. Falam também das qualidades
dos bichos, das qualidades dos fenômenos naturais e lançam mão dessas qualidades para
abrandar a dor, para proteger o corpo, ou para transformá-lo.
38
Aprendi que as de fórmulas de bahsese são descrições das qualidades das coisas, suas
taxonomias. É uma linguagem de ação: colocar, potencializar, equalizar, arrancar, matar e
transformar os bichos. Esse foi o ponto de partida para fazer um bom recorte de tema para esta
tese, considerando o complexo sistema de conhecimentos Pamurimahsã.
O Kihti ukũse sobre a origem do mundo, o surgimento dos humanos e os conteúdos de
fórmulas de bahsese de heriporã bahsese e ba´ase bahse ekase são as bases da “minha
reflexividade” nesse trabalho. Com isso, quero dizer que existem muitos conjuntos de fórmulas
de bahsese (Cf. Barreto et al, 2018).
Como disse, o contato com alguns autores e obras acadêmicas também me serviu de
motivação para o exercício da reflexividade. Bachelard (2008), por exemplo, quando postula
que “Os poetas e os pintores são fenomenólogos natos”, me entusiasmou bastante. Assim como
os poetas e pintores, percebi que os especialistas indígenas são fenomenólogos natos, estão
atentos às mudanças do saber humano e do mundo exterior. Investigam e descrevem os fatos
enquanto experiência.
A transmissão da “trindade” conceitual de Kihti ukũse, bahsese e bahsamori às novas
gerações é feita pelos especialistas como numa explosão de imagem, não existe passado e
futuro, existe o presente. A construção de ideias é feita de palavras com sentido de tempo
presente. Acreditei que perseguir essa linguagem expressa na forma de Kihti ukũse, de bahsese
e de bahsamori pelos especialistas seria um caminho possível para “revelar” as teorias
propriamente nativas.
Dessa maneira, escolhi o Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, como meu lugar
de estudo, como espaço de convivência com os interlocutores kumuã, que são detentores de
Kihti ukũse, bahsese e bahsamori, para extrair daí os conceitos propriamente nativos.
A certa altura alguém pode perguntar, afinal, qual é a participação do orientador nesse
processo? Considero importante esse debate como parte da metodologia do trabalho
desenvolvido por nós, indígenas, ou pela antropologia. A relação entre orientador e orientando
muitas vezes é decisiva para desenvolver uma boa ideia e um bom trabalho.
Desde o meu mestrado, minha relação com o meu orientador não se limitou apenas ao
ambiente acadêmico. Ou seja, nós nos encontramos, conversamos e trocamos ideias sobre o
trabalho antropológico em diversos lugares e momentos. O contato direto com o orientador fez
muita diferença, pois uma conversa franca e direta sempre motiva o aprofundamento das ideias,
o que faz trazer à tona as “teorias nativas”.
No processo de diálogo com meu orientador, percebi que existem fronteiras para cada
um dos lados, fronteiras linguísticas e cosmológicas. A experiência ao longo do tempo de vida
39
acadêmica me mostrou isso. Do meu lado, por exemplo, o pouco domínio da Língua Portuguesa
formal e das teorias antropológicas de modo geral. Por outro lado, por parte dele, o pouco
domínio da minha língua e das “teorias yepamahsã”. O mais importante dessa relação, no
entanto, foi de ambos estarem dispostos a se abrirem ao “novo”, de estarem interessados no
diálogo e no compromisso da descoberta e na produção de uma “antropologia indígena”.
Nessa perspectiva, a relação entre orientador e orientando não é um exercício fácil,
requer dedicação, abertura, interesse, tempo para pensar e corrigir, ouvir, ruminar e escrever. O
ponto, enfim, é esse: a paciência e a vontade de pensar e aprender juntos. Sob essa ótica, meu
orientador esteve sempre disponível, atento, paciente e disposto a enfrentar os desafios da
produção de uma “antropologia do nativo”, isto é, feita por um indígena – além do embate com
uma escrita que, na maioria das vezes, não consegue revelar de maneira clara e elegante o que
pensamos ou queremos dizer.
O entusiasmo, tanto do orientando quanto do orientador, é outro ponto fundamental. O
orientador que está sempre estimulando o aluno indígena a pensar a partir de suas próprias
categorias, sem deixar de lado as categorias propriamente antropológicas, ganha sua confiança
e sua cumplicidade e promove bastante a possibilidade de extrair daí a diferença entre o trabalho
antropológico feito pelos não indígenas e aquele realizado pelos próprios indígenas.
O orientador que não assume uma posição de aprendiz com seu orientando indígena
dificilmente fará o aluno mostrar sua própria epistemologia, suas categorias e os conceitos
propriamente nativos. Sem esse esforço, de ambos os lados, o projeto pode ser em vão.
Outra experiência não menos importante para a construção da tese foi a orientação
coletiva, que consistiu no orientador reunir todos os seus orientandos indígenas do Alto Rio
Negro, de modo sistemático, para a apresentação de ideias e etapas de trabalhos. Após a
apresentação de cada um, os orientandos podiam tecer seus comentários, apresentando críticas
e sugestões ao colega.
A dinâmica de orientação coletiva fez parte da construção de ideais e de textos, assim
como orientou a escolha dos textos lidos para fundamentação teórica. A orientação coletiva foi
fundamental para construção da minha tese. Foram momentos de expor as hipóteses se receber
sugestões e recomendações de leituras. Com as trocas de ideias com os colegas, fui refinando
minhas hipóteses e criando a estrutura da tese.
O orientador, ao ter contato com os projetos de pesquisa de todos os orientandos,
propiciava um processo de reflexão sobre o tema coletivamente, conduzindo para o universo
antropológico. A orientação coletiva, portanto, propiciou momentos que amenizaram o
processo solitário de escrita vivenciado muitas vezes pelos orientandos.
40
5. A construção da Tese
6. Organização da Tese
vista dos especialistas indígenas do Alto Rio Negro. Apresento como o Yepaoãku foi forjado
pelo Ʉmukoñeku (avô do mundo) a partir dos elementos que constituem o mundo terrestre,
definidos como boreyuse kahtiro (“luz/vida”), yuku kahtiro (“floresta/vida”), dita kahtiro
(“terra/vida”), ahko kahtiro (“água/vida”), waikurã kahtiro (“animais/vida”), ome kahtiro
(“ar/vida”) e mahsã kahtiro (“humanos/vida”).
Mahsã kahtiro, categoria que qualifica pessoas, gentes, humanos é um tópico dedicado
à apresentação de injeção de heriporã bahseke wame ao corpo pelo processo de heriporã
bahsese, nominação de pessoa, lançando mão de uma lista de wame (nomes) do grupo social a
qual se pertence. Doravante o wame será referiro como nome de benzimento. O pano de fundo
do trabalho é mostrar a teia de relações que o heriporã bahseke wame conecta ao corpo e como
forma a “força vital” da pessoa.
É a partir da noção de elementos que constituem o corpo que os especialistas lançam
mão das fórmulas de bahsese de proteção, das substâncias curativas contidas nos vegetais, nos
animais, nos minerais e nos fenômenos naturais, para produzir o cuidado do corpo e das pessoas.
No Capítulo II, trato de Temas: Doatise, Duhtitise e Bahsese: afecções e os cuidados do
corpo. Nele, faço a apresentação da noção de categorias de afecções, ataques e cuidados do
corpo. A noção de doatise e duhtitise são categorias que servem como protocolos de diagnóstico
adotados pelos especialisas indígenas. O protocolo de diagnóstico é fundamental, na medida
em que possibilita aos especialistas lançar mão das fórmulas “certas” de bahsese para abrandar
ou curar as afecções, assim como para equalizar o desequilíbrio dos elementos constitutivos do
corpo ea organização das dimensões conectivas do heriporã bahseke wame para o equilíbrio da
pessoa.
No Capítulo III, faço um balanço dos diferentes modos de transformação do corpo,
tomando os seres oãmahrã, waimahsã, humanos e animais. Para tanto, alguns Kihti ukũse,
algumas fórmulas de bahsese e os discurso dos especialistas são tomados como dados de
análise. Trato dos quatro modos de transformação do corpo:a qualificação do corpo pelo
bahsese, a transformação do corpo pelo sutiro, a transformação do corpo após a morte em
animal e vegetale a transformação de seres animais em outros animais sem recurso de bahsese
e de sutiro.
O Capítulo IV - Uma etnografia das práticas dos especialistas indígenas, como último
capítulo, tem como objetivo apresentar uma etnografia feita no Centro de Medicina Indígena
Bahserikowi, para mostrar a articulação de bahsese sobre o corpo na prática para abrandar os
desconfortos e na construção do corpo pelo uso de bahsese. É uma etnografia feita no Centro
44
de Medicina Indígena Bahserikowi, uma vez que é ali que apareceram explicitamente todos os
aspectos que trato em termos de corpo e de pessoa nessa Tese.
Por outro lado, com o esforço produzido como Tese, pretendo mostrar que, apesar de
todas as transformações sociais vivenciadas pelos Pamurimahsã e Ʉmukorimahsã do Rio
Tiquié, as práticas de bahsese continuam sendo considerados fundamentais para a construção
da qualidade de vida dentro e fora das comunidades.
45
CAPÍTULO I
O termo Kahtise pode ter diferentes sentidos, dependendo do cotexto em que for
evocado e de estar ou não acompanhado de complemento. Por exemplo, a expressão kahtise
nikã é usada no sentido de que a carne de caça ou de peixe está crua, não foi cozida ou assada
ao ponto de consumo. Outra expressão é kahtise nirowe, uma expressão para dizer que as coisas
têm sua própria vida como luz, floresta, terra, água, animal, ar e humano.
Uma expressão usada pelos kumuã quando me falaram sobre os elementos imateriais
que constituem o corpo foi manhsã kahtise. A expressão era para dizer que as formas de luz,
floresta, terra, água, animais, ar eram os elementos constitutivos do corpo humano. Este é o
sentido adotado nesse trabalho, que o corpo é sintese de todos os elementos.
Os Kihti ukũse, os bahsese e os bahsamori são também chamados de mahsã kahtise,
pois são considerados conhecimentos e práticas inprescindíveis para construção de pessoa e
para o cuidado da pessoa. Os Kihti ukũse, os bahsese e os bahsamori, portanto, são práticas
fundamentais para garantir a existência da pessoa e a qualidade de vida, razão pela qual são
denominados de mahsã kahtise.
Quando se diz: mari kahtise nirowe, significa aquilo que é parte de nós, aquilo que
pertence a nós, aquilo que nos constitui, aquilo que é indispensável, aquilo que faz parte do
nosso corpo.
Todas essas forças ou elementos do corpo são chamados de kahtise, essenciais para o
bom funcionamento e para o equilíbrio da pessoa. Seu desequilíbrio pode gerar distúrbios ou
até mesmo levar a pessoa à morte. Por essa razão, é muito importante o cuidado do corpo para
o bem-estar e seu cuidado é feito equalizando os elementos imateriais que compõem o corpo.
Para prevenção, proteção, abrandamento das dores e cura é feito bahsese potencializando os
elementos imateriais que constituem o corpo.
Entre os seis kahtise constitutivos do corpo que serão abordados nesse tópico, o mahsã
kahtiro (humano/vida), conforme veremos, é uma dimensão metafísica que qualifica
humano/pessoa/gente como agente com capacidade de manejar e manipular outros elementos,
em que suas qualidades são tomadas como instrumentos de ataque, de defesa e como sutiro7
7
O tema Sutiro foi tratado na minha Dissertação (Barreto, 2013), introduzindo a ideia de uso das qualidades dos
peixes pelos waimahsã, futuros humanos que fizeram a viagem com uma embarcação especial vindos pelo leito
do rio Opekõ dihtará (Rio de Janeiro) até Dia pehtawi (cachoeiras de Ipanoré, no Alto Rio Negro). O tema
sutiroserá tratado nesta tese em um capítulo específico.
47
para realizar certas atividades. Essa capacidade é que o diferencia dos outros seis tipos de
kahtise, isto é, sua presença é fundamental para diferenciar um corpo.
A compreensão do que seja os tipos de kahtise que constituem o corpo é o ponto central
de análise nesse capítulo, tomando como fonte de entendimento os kuhti ukuse e os bahsese.
Dessa maneira iniciaremos analisando um Kihti ukũse contado pelo kumu Durvalino Moura
Fernades sobre a formação do primeiro ser antropomórfico chamando de Yapa oãku, assim
traduzido.
8
É uma palavra da língua Dessana em termos de bahsese para se referir ao ponto luminoso, que também é chamado
de pehkame, isto é, fogo representativo de um tipo de kahtise.
48
junção surgiu o primeiro ser, mahsu, era o Yepa Oãku. Este, futuramente fez
surgir outros oãmahrã (organizadores do cosmos) e os waimahsã e os mahsã.
Estes últimos povoam até hoje o mundo terrestre. (kumu Durvalino, 2017)
Em resumo, existem sete tipos de kahtise que constituem o mundo terrestre – boreyuse
kahtiro, yuku kahtiro, dita kahtiro, ahko kahtiro, ome kahtiro, waikurã kahtiro e mahsã kahtiro.
Estes último refere-se exclusivamente à categoria de pessoas.
Mahsã kahtiro é uma “substância” que está diretamente relacionada ao heriporã
bahseke wame, injetada pelos especialistas, por meio do heriporã bahsese, sobre o corpo, logo
depois do nascimento da criança. O heriporã bahseke wame é também chamado de omerõ9,
uma força do corpo capaz de invocar os elementos protetivos, curativos e as qualidades de
outros seres.
A seguir, passamos a apresentar minimamente o universo de cada kahtiro, e sua
importância para a articulação de bahsese de prevenção, de proteção, de defesa, de ataque, de
abrandamento das dores e de cura das doenças.
Essa categoria está relacionada ao elemento luz como uma das essência e potência que
constitui o corpo. Refere-se tanto aquela oriunda do fogo, quanto aquela emitida pelo sol/lua,
pelas estrelas, pelos raios, pelas lâmpadas, pelas nuvens, ou pelos reflexos. Cada uma dessas
fontes de luz produzida tem sua intensidade e sua tonalidade próprias. Dominar a qualidade da
luz, suas intensidades e tonalidades,é fundamental para os especialistas indígenas, pois é a partir
delas que eles lançam mão dos bahsese para a proteção do corpo, como, por exemplo para
minizar o impacto da claridade nos olhos da criança na hora do nascimento.
A luz pode causar sérios danos a uma criança, atingindo sua visão e o seu corpo. O
primeiro contato da criança com o mundo exterior é considerado pelos especialistas como o
momento mais arriscado da vida. Todo cuidado é pouco, pois o corpo pode sofrer graves
consequências ao entrar em contato com a pressão atmosférica, com a intensidade da luz, dos
sons, das cores, dos brilhos, da água, do calor e dos ataques de waimahsã. Assim, para prevenir
9
“Omerõ, como conceito, designa o poder do pensame nto, da intuição e do propósito do especialista Tukano, a
potência que habita e circula em seu corpo, que assim o conecta ao movimento do universo e de seus criadores.
Essa potência é injetada na criança no ato de sua nominação, tornando-a plena de vida e membro da comunidade
cósmica. Omerõé força que emana da “porta da boca” do especialista na sua ação sobre as coisas e sobre o mundo
e na sua comunicação com as pessoas humanas e não humanas”. (Barreto, 2018).
49
Yuku traduzido ao pé da letra significa “floresta”, mas os especialista usam o termo yuku
kahtiro (“vegetal/vida”) para se referir a potência “vegetal” que constitui o corpo. Isto é, ao
conjunto de vidas vegetais existentes na floresta, que são, por sua vez, detentoras de qualidadese
curativas, protetivas, veneno e agencialidades. É yuku kahtiro no sentido de que as qualidades
vegetais são elementos constitutivos do corpo. Assim, o cheiro, o amargor, o travor, a doçura,
a acidez, a espessura, a textura, a plasticidade, o tamanho e a dureza das plantas e de seus frutos
são qualidades que podem ser acionadas e potencializadas “metaquimicamente” pelos
especialistas, no ato do bahsese, para prevenir, proteger e curar as doenças, como também para
atacar provocando desconfortos e doenças.
Ao mesmo tempo em que as qualidades dos vegetais são fontes importantes para a
elaboração do bahsese, seu consumo direto pelas pessoas também apresenta perigo, pois as
frutas são contaminadas pelos bichos que os alimentam e pelos bichos que fazem a fruteira
como sua moradia. Dessa maneira, as frutas para a primeira alimentação da criança devem
necessariamente passar pelo processo de bahsese de descontaminação.
Dentro de um conjunto maior de Ba’ase bahse ekase, existe aquele que é de limpeza das
propriedades nocivas das frutas, a descontaminação de fezes e da saliva dos bichos que delas
vivem, neutralizando suas ações nocivas e proporcionando, ao mesmo tempo, condições
benéficas para aqueles que vão consumí-las. Dominar as propriedades das plantas e sua
“taxonomia”, que constituem o domínio de Yuku kahtiro, é condição sine qua non para os
especialistas.
Para expor melhor essa questão da importaâcia dos vegetais para a articulação de
bahsese, sobretudo para a cura, vale a pena fazer um adendo. Certo dia, o kumu Durvalino, por
ser bom contador de piadas e bem humorado, contou um fato que acontecera com sua familia,
na sua comunidade, ainda quando ele era jovem.
Um dia, seu pai teria feito uma viagem longa e, durante sua ausência, Durvalino
contraira uma diarreia muito forte. Sua mãe tentava lhe medicar com tudo aquilo que ela sabia
de remédios, o que estava ao seu alcance, sem ter resultado satisfatório. Vendo a situação de
Durvalino se agravar, a mãe resolveu lançar mão de bahsese como último recurso. Para isso,
tomou o sumo de casca de caju, considerando suas qualidades de travoso, e começou a articular
bahsese, entretanto, ela não tinha domínio pleno da taxonomia dos vegetais que detêm essa
substância de travoso, conhecimento necessário para invocar tais substâncias sobre o sumo de
caju para pontencializá-lo como remédio para diarreia.
51
Reconhecendo seu limite, convocou seus filhos menores para saírem no entorno da casa
e testarem com a boca cada vegetal que encontrassem para descobrirem tal qualidade a fim de
que ela pudesse citá-las no bahsese. Assim as crianças fizeram e, conforme elas iam informando
sobre cada planta experimentada, a mãe de Durvalino ia versando sobre o sumo de caju as
substâncias travosas daquele vegetal para a linguagem de bahsese. O esforço deu resultado e
Durvalino ficou curado da diarreia.
O corpo, conforme já mencionado, é constituído pelas qualidades de yuku kahtiro como
o cheiro, o amargo, o travoso, o doce e outras características vegetais. Para proteger o corpo
das agressões diversas, bem como para combatê-las, são exatamente essas qualidades que são
acionadas pelos especialistas na prática do bahsese.
A idéia de que o corpo humano é constituído de propriedades vegetais não é de
exclusividade dos Pamurimahsã, ou seja, como eu pude ler na filosofia Jamamadi, por exemplo,
segundo Karen Shiratori (2019: 178): “...a condição humana adviria das plantas, ou seja, a
vegetalidade é a condição original comum a humanos, animais e vegetais”.
Essa ideia é bastante patente na concepção dos Pamurimahsã, mas a diferença está na
concepção de que a vegetalidade é um dos elementos que constituem o corpo e não o único
elemento constituinte ou de origem do humano. As qualidades vegetais gravitam no corpo e
podem ser potencializadas via bahsese.
A potência da vegetalidade do corpo também dá origem a outros vegetais. Vejamos dois
exemplos, um da origem do vegetal especial para confecção de instrumentos musicais de miriã
(jurupari), que surgiu do corpo do Bisio, e outro da origem de plantas cultiváveis do roçado,
que surgiu do corpo de Bahsebo oãku.
Bisio era o responsável por formar novos especialistas, por ser um exímio conhecedor
de bahsamori, portanto, detentor da musicalidade, das danças, das técnicas de acesso aos
domínios de conhecimentos e das regras nessessárias para se tornar especialista como yai, kumu
e baya.
O próprio corpo de Bisio era a musicalidade, isto é, era o próprio bahsamori de
kahpiwaya (músicas). Dotado dessa natureza, ele vivia viajando no espaço cósmico, de casa em
casa (bahsakawiseri), como na casa do Doê-wi’i (“casa de traíra”), na casa Siripituhti (“caverna
de andorinha”), na casa do Osôtuhti (“caverna de morcego”), sendo mestre de cerimônias,
conduzindo as festas de poose, ensinando a cantar, tocar e dançar para todos (Maia, 2016).
O Bisio era bastante requisitado pelos seus pares para formar os jovens para serem yai,
kumu e baya. Um dia, aconteceu que os jovens, que estavam no período de formação, pelo
descuido dos seus pais, transgrediram uma regra vital, como contou o kumu Durvalino:
52
Mais tarde, o Bisio morreu queimado como vingança dos pais dos jovens pelo fato de
ter engolido seus filhos. Entretanto, segundo Higino Tenório, Tuyuca, o Bisio já teria planejado
sua morte sendo queimado. Sabendo que seu corpo era o próprio bahsamori, o Bisio via, como
a única maneira de repassar tais conhecimentos para seus pares, dispor de seus próprios ossos
como instrumentos musicais. Mas seu corpo teria que passar pelo processo de queimação para
dar origem a uma palmeira que produziria um som de miriã.
Assim o fez, dos seus restos mortais, isto é, dos seus ossos, nasceu uma palmeira
especial de pequeno porte, chamada buhpuño (paxiubinha). Desta palmeira, os Pamurimahsã
passaram a confeccionar os instrumentos musicais de miriã, como se estivessem se apropriando
do próprio corpo de Bisio, fonte da musicalidade.
Outro exemplo é a origem das plantas cultiváveis do roçado, sobretudo, a planta de
mandioca (maniwa). Os derivados da mandioca são importantíssimos e fazem parte da cadeia
alimentar e das bebidas fermentadas dos povos indígenas do Rio Negro. Segundo contam os
especialistas, a maniwa surgiu do corpo de Bahsebo oãku. Aconteceu que:
[...] após o conflito com seu filho, o detentor das maniwas, Yupuri Bahsebo,
decidiu sair do Alto Rio Negro e viajar rio abaixo. No percurso, encontrou a
família (pai e filhas) de Wariro, que morava numa serra na atual cidade de São
Gabriel da Cachoeira. Wariro, que não conhecia a técnica de fazer roçado, não
possuía mandioca e muito menos dominava o processo de extração de seus
produtos, ordenou que as filhas seduzissem Yupuri Bahsebo. Foi isso que
aconteceu. Conquistado pelas belas mulheres, o herói passou a morar na casa
de Wariro e a ensinar as técnicas de roçado, de plantio da maniva e de outras
plantas do roçado. (BARRETO, et al, 2018, p. 34).
Esse Kihti ukũse não se encerra aqui. Uma ilustração importante é a explicacão da
queima do próprio corpo de Bahsebo oãku para dar origem à plantas cultiváveis. Isto é, Bahsebo
oãku, após a derrubada do roçado, durante o preparo para a queimada, transformou-se no bastão
53
yagu carregado de todas as potências das plantas cultiváveis e ficou no centro do roçado durante
a queima.
A potência das plantas que o yagu carregava estava representada pelos bahsa busa
(adornos de festas e instrumentos musicais) do oãku, como suas plumagens, seus colares, seu
bastão de danças, seus adereços corporais, suas flautas de osso de onça, seu cariçú, seu
yapuratu, seus tambores, entre outros adereços importantes para a vida social dos povos
indígenas do Alto Rio Negro. Dessa maneira, o próprio corpo do Bahsebo oãku era a origem
das plantas.
Quando cessou o fogo, as sementes eclodiram, provocando um grande estrondo e, em
seguida, ouviu-se os gritos de crianças, as vozes de adultos e músicas. Curiosas, as duas filhas
do Wariro, namoradas de Bahsebo oãku, foram ver o roçado recém-queimado, transgredindo a
recomendacão do marido de não voltar ao roçado ainda que ouvissem os barulhos da queimada
e as vozes de pessoas. Com a transgressão, acabaram interrompendo o desenvolvimento natural
das plantas e, como consequência, foram obrigadas a plantarem roçados a cada ano para terem
alimento.
Essa é outra essência que constitui o corpo como uma potência. Refere-se a todo o
conjunto de tipos de solo ou terra: rocha, pedra, barro, areia, argila, em todas as suas cores
variantes: preta, vermelha, branca, amarela. O corpo é constituido também de essencia da terra.
As qualidades das pedras são acionadas via bahsese para a proteção, resistência do corpo. Suas
belezas, seu brilho e suas cores são qualidades acionadas para destaque de beleza e encanto. As
qualidades de fertilidade da terra são acionadas para fazer mulher engravidar.
Dita kahtiro é também conhecida como “mãe terra”, pela sua fertilidade, sua
maternidade, sua fecundidade e sua generosidade. Generosa porque gera todos os seres, todas
as coisas nascem da terra, ela fornece a nutrição e a proteção da vida.
Além da generosidade, a terra é tida como uma mãe (dita kahtiro) por ser um espaço ou
lugar de retorno da pessoa como “matéria” após a morte. A terra é a mãe que recebe e que
guarda. De igual modo, o heriporã bahseke wame, como dimensão metafísica também volta
para a dihta kahtiro sob nova condição de pessoa após a morte.
A pessoa como corpo está sujeita ao “desgaste” e aos ataques, dizem os kumuã. Ao
tratarem da morte natural, é comum os especialistas do Alto Rio Negro dizerem que o corpo
cansou do tempo, que ele deve descansar. No caso de morte precoce, seja de uma criança ou de
54
um jovem, dizem que este mundo não era para essa pessoa viver. Em tukano, dizem: kahtiro
pehatirowepã kure.
Após a morte, o heriporã bahseke wame, como omerõ e dimensão metafísica do corpo,
volta também ao domínio da terra, mas vai para a “casa” chamada de amowi10 (“casa serra”),
no caso dos Yepamahsã, que fica na região do médio Rio Tiquie, afluente do Alto Rio Negro.
A finitude do corpo biológico é compreendida como o retorno ao outro kahtiro, onde
continuará seu pertencimento em um dos seis principais tipos de kahtise, isto é, nodihta kahtiro.
É chamado de ahpe kahtiri mohko, “novo território de vida pós-morte”.
Christine Hugh-Jones (1988:113-134) mostra que, para os Barasana, os nomes são a única
substância da pessoa que poderá assegurar a sua continuidade para além da morte, porque a
substância da alma se herda no nome, enquanto o corpo físico putrifica.
Diferentemente da noção de putrificação, os Yepamahsã têm a clara noção de que o
findar do corpo é uma passagem para outro tipo de kahtiro. A morte, por um lado, encerra o
ciclo de vida do corpo e, por outro, aponta para a direção de outra dimensão, morrer é se
transformar, é não morrer. O corpo volta para dita kahtiro. O heriporã bahseke wame vai para
outro bahsakawi, do domínio dos waimahsã.
Na prática cotidiana dos povos do Alto Rio Negro, as qualidades de terra - preta,
amarela, branca e vermelha - e os bichos com qualidade de cavar a terra são acionados na
articulação de bahsese, para arar e fertilizara terra do roçado recém-queimado. Feito isso, dá-
se início à plantação de mandioca e de outras plantas cultiváveis no terreno preparado.
Outra importante articulação de bahsese é do tipo dita bahsese, feita antes da construção
de nova residência. Esta medida é tomada para que em nenhum momento o corpo sinta-se
ameaçado pela terra, mas, sim, que a sinta como parte extensiva de seu corpo. Como resultado
da ação deste bahsese, a nova morada passa a ser um espaço de aconchego e de sentimento de
bem estar para o grupo familiar.
10
Este tema será desenvolvido mais adiante no tópico Bahsekewame.
55
kahtiro, waikurã kahtiro, dita kahtiro, ou seja, a água como elemento essencial para a
existência de todos os demais “tipos de vida”.
Ao fazer bahsese de água, o kumu evoca as qualidades de todos os tipos de água
contidas nos animais, na terra, no ar e nos vegetais.
Os especialistas Pamurimahsã tem uma noção refinada sobre os tipos de água: ahko
buhtise (água branca), ahko soãse (água vermelha), ahko ñise (água preta) e ahko yasase (água
verde). Ao falar sobre o elemento água no contexto do bahsese, o kumu Ovídio Barreto fez o
seguinte comentário:
Após o parto, a mãe e o bebê tomam água depois que foi feito o bahsese.
Assim a criança não sofre de doenças causadas pela água, pois, do contrário,
quando não faz isso, a criança, ao mamar, acaba contraindo doenças da água
e, quando faz a necessidade fisiológica, expele massa parecida com bagaço de
caxiri. Assim que funciona. (kumu Ovídio Barreto, 2017).
O líquido que constitui o corpo e nele circula é chamado de Opekõ e karãko kahtise, que
podem ser entendidos como líquido importante para a manutenção do corpo e da vida humana.
No contexto da linguagem do bahsese e no discurso dos especialistas, esses dois termos estão
muito presentes. Por exemplo, nos seguintes termos: Opekõ dihtará (Rio de Janeiro) – lago de
berço de vida humana; Opekõ dia (Rio Negro) – rio de navegação de futuros humanos.
Há outros: opekõ wahatopa e karãko wahatopa, referem-se aos artefatos de uso da
pessoa; karãko doto, opeko doto, referem-se à capacidade de manutenção e de geração de vida;
opeko sopo weta, karãko sopo weta são termos fundamentais usados para “transformar os
alimentos em fontes nutritivas”; opeko sopo wai e karãko sopo wai, linguagem de bahsese da
fórmula de wai bahse ekase, transformando peixes em fontes nutritivas. Assim, as palavras
opekõ e karãko na linguagem do bahsese são palavras que transformam todas as coisas para o
bem estar, realiza a proteinização dos alimentos e a fortificação do corpo.
No conjunto de fórmulas de Ba’ase bahse ekase (limpeza de alimentos), na conclusão
das fórmulas canônicas, estão as palavras opekõ e karãko como agentes de transformação dos
alimentos em substâncias saudáveis ao corpo, livres de perigos de contaminação, e portadores
de nutrição e de força.
Outro ponto importante, segundo os especialistas, é que a água é um elemento presente
em todos os organismos vivos, por essa razão também é chamada de ahko kahtiro.
A água compõe e move o corpo juntamente com os outros elementos. O kumu Durvalino
fala que a maior parte do corpo é constituída de água, que se dissolve com a morte da pessoa.
56
Assim, a água é provedora de vida e protetora das estruturas vitais dos kahtise – yuku kahtiro,
dita kahtiro, ahko kahtiro, waiku rãkahtiro, ome kahtiro, mahsã kahtiro. Por esses e outros
fatores, ela é de extrema importância para todos os tipos de kahtise.
No caso de mahsã kahtiro, segundo os kumuã, a água está presente na forma de suor, de
lágrimas, de urina, de saliva, de líquido de lubrificação dos olhos, etc. E tem o papel
fundamental na regulagem da temperatura do corpo. Assim, o ahko kahtiro é um conceito que
abrange o universo da água - a água do corpo, o domínio aquático, a chuva, o sereno - com
todas as suas tonalidades de cor.
[....]. Depois pega os tipos maniuara (formiga) buhpowarã. Ela faz a mesma
coisa. Para pegar essas maniuaras, as pessoas usam as talas de bacaba, de
tucum, bukurãsida e ñokõke. É com isso que eles pegam as maniuara. Limpa
os animais que contém nas talas e neutraliza seu veneno. Transforma em
karãko soporiño, opekõ soporiño. Limpa o lodo impregnado no arumã e joga
fora, bem longe. Feito isso, limpa também os piolhos que contém na maniuara,
que são piolhos brancos, vermelhos e pretos, mata arrancando seus dentes,
neutraliza seus cheiros, neutraliza seu potencial de provocar coceira/tosse e
limpa os animais. Chama maniuara de karãko sopo mehkã, opekõ sopo mehkã
e transforma em alimento bom para o pai, para a mãe e para o filho. Neutraliza
o cheiro dos animais, elimina o potencial de provocar coceira/tosse, limpa
tudo. Feito isso, diz: estes animais que comem as maniuara, como o tamanduá,
também não sofrem de coceira/tosse. Das qualidades de sua boca, de sua
resistência, das suas condições de vida em absorver a maniuara como alimento
saudável, faz incorporar. Transforma isso em alimento bom. Faz isso para não
contrair doenças como coceira e tosse crônicas na garganta (Tradução livre,
kumu Ovídio Barreto, 2017).
Outra trama que deu origem aos grupos de peixes foi a de dois jovens de uma
aldeia. O chefe da aldeia, vendo aproximar-se um período de fartura de peixes,
convocou dois jovens irmãos para fabricarem os cocares que seriam usados
durante uma festa a ser oferecida por ele. Para isso, convidou os irmãos mais
dedicados da aldeia para tal fim. Os jovens foram recomendados a uma dieta
restrita, jejuar e se abster de práticas sexuais. Depois de muito tempo de
abstinência, tendo saído para urinar, o irmão menor sentiu o cheiro de peixe
moqueado, vindo da direção de uma praia. Caminhou nessa direção e se
deparou com um grupo de belas mulheres, que o convidaram para o banquete.
O rapaz, faminto, devorou boa porção daqueles peixes, quebrando assim as
regras de abstinência e, como consequência, seu corpo foi se avolumando mais
e mais. Certo dia, durante uma pescaria, sentiu seu corpo desintegrar-se e suas
partes acabaram sendo levadas pelas águas e delas surgiram muitos tipos de
peixes, a exemplo do yuku boteá (aracu-madeira). A cada parte de seu corpo
que se desgarrava, ele amaldiçoava os peixes, impregnando-os de substâncias
prejudiciais a saúde humana. Por essa razão, o peixe, além de portador de
substâncias malignas, também é veículo de discórdia social, devendo ser
submetido aos procedimentos de bahsese, necessários para torná-lo adequado
para alimentação dos humanos. (BARRETO, 2013, p. 79).
58
Esse elemento corresponde ao ar que respiramos e sua potência que constitui o corpo.
O termo inclui todos os tipos de ar, ventos e correntes do dia e da noite, seus tipos e qualidades:
ventos fortes e fracos, ar quente e ar frio, vento úmido e vento seco. Todos estes tipos também
compõem e circulam pelo corpo humano. Isto é, o ar na sua essência.
A categoria ome kahtiro é acionada pelo especialista por meio de bahsese no momento
de nascimento da criança, antes do primeiro contato do corpo com o ar através da respiração e
com o mundo exterior. O objetivo consiste em acionar a estrutura pulmonar da criança para
funcionar a partir da propria respiração. Segundo o kumu Ovídio Barreto, o bahsese é como
“ligar motor” para a criança começar a respirar pelo seu próprio esforço. Em palavras especiais,
esta respiração é chamada de opekõ kahtirida e karãkõ kahtirida da pessoa, que significa
respiração de vida.
59
Os especialistas orientam que o contato do corpo com o ar também tem seus perigos,
sua carga e seu cheiro penetrando no corpo humano podem fazer mal. Por exemplo, uma
corrente de ar ou a fumaça carregada de cheiro de assado de carne, de peixe ou de fruta,
circulando pelo corpo, pode afetar a pessoa, comprometendo sua capacidade de aprendizagem
e de memorizacão.
Os momentos mais arriscados são: os primeiros meses de vida da criança, o período de
resguardo do cônjuge pós-parto, o momento de formação de especialista, o ciclo da primeira
menstruação e os momentos após uso de kahpi e, após o uso de instrumentos de miriã (jurupari),
durante as cerimônias de poose (dabucuri). Nessas ocasiões, segundo o kumu Manoel Lima,
necessariamente a pessoa devem se submeter ao bahsese.
Os seis tipos de kahtise tratados até aqui (boreyuse kahtiro, yuku kahtiro, dita kahtiro,
ahko kahtiro, waikurã kahtiro, ome kahtiro) são conjuntos de elementos que constituem o
mundo terrestre. Segundo os kumuã, todos os elementos estão presentes no corpo humano.
Assim, podemos entender que o todo é o corpo humano.
É uma dimenão que diz respeito à condião e a potência humana, uma dimensão metafísica
que está ligada ao herioporã bahsese wame, nome da pessoa injetada pelos especialistas através
da fórmula de heriporã bahsese.
Numa leitura mais minuciosa, percebe-se que a noção de mahsã kahtiro é que qualifica
os seres como sujeito ou pessoa, conforme me contou o kumu dessana Durvalino Fernandes:
Todos somos animais, porque o nosso corpo é waikurã kahtiro. Mas nós
somos dotados de heriporã bahseke wame, diferentemente daqueles que são
waikurã (animais). O heriporã bahseke wame que nos liga com outras coisas
que forma nossa força vital. Os brancos não têm heriporã bahseke wame, neles
precisa ser injetado o heriporã bahseke wame. (kumu Durvalino, 2019).
pessoa, dado sem processo de heriporã bahsese, que é uma fórmula longa e de muito sentido.
Os especialistas do Rio Negro dizem que a força e o poder do bahsese emana do
heriporãbahseke wame. Isto é, uma força e um poder de sopro transformador.
Assim, o heriporã bahsese é um processo de injeção do nome, e heriporã bahseke wame
é o elemento que liga o corpo aos outros ingredientes de qualidade de pessoa, conforme veremos
nesse tópico.
A injeção de nome é feito pelo sopro de um especialista por meio de um processo longo
de bahsese. Por longas horas em concentracão, o especialista escolhe o heriporã bahseke wame
mais apropriado para aquela criança, retirando-o da lista de wame (nomes) do grupo social ao
qual a criança pertence, e atribui-lhe um nome.
Lembro-me bem do dia em que o kumu Durvalino Fernandes me disse: “um corpo sem
heriporã bahseke wame não é um corpo completo, pois não carrega consigo a força de bahsese,
de invocar elementos protetivos e substâncias curativas do corpo, não tem poder de bahsese,
não tem ligação com os oãmahrã, não tem conexão com o território, não tem ligação com o
grupo social e não tem ligação com a cosmologia do grupo social”.
Segundo os especialsitas, a conexão do corpo com todas essas dimensões é importante
porque a junção ou conexão de tudo isso é que forma a força vital da pessoa. Dessa maneira,
falar de heriporã bahsese é falar da injeção de mahsã kahtiro. Por essa razão, essa categoria
ocupa um lugar especial nesse primeiro capítulo.
Os povos indígenas do Rio Negro consideraram que o heriporã bahseke wame é a própria
força do oãku (com aquele nome) injetado no corpo da pessoa, tanto para o homem, como para
a mulher. Os especialistas não hesitam em afirmar que o heriporã bahseke wame é força e poder
de invocar ou evocar as coisas, “poder que está na porta da boca do kumu”, como bem enfatizou
o professor Brasilino Barreto, indígena do grupo Yepamahsã, durante uma roda de conversa.
Uma verdadeira manipulação “metaquimica” e “metafísica” das coisas pelas palavras. Palavras
que constroem, palavras que destroem, palavras que transformam, palavras que organizam ou
desorganização. Daí a importância da oralidade para os povos indígenas.
Os personagens Buhpo, Yepa oãku e Yepalio, como oãmahrã, são as próprias forças
transformadoras de bahsese. Por essa razão, são chamados de bahseriko mahsã (“seres
antropomórficos de cura”).
Os oãmahrã como Muhipu oãku, Desubari oãku, Bahsebo oãku, Buhtuyari oãku, Wãrãri
oãku, Wisugo, Yugo são também chamados de bahseriko mahsã, antropomórficos de cura e por
terem sidos os “fundadores” de bahsese. Os Yepamahsã têm uma lista de wame (nomes)
masculinos, como por exemplo Doetihro, Yepa Suriã, A’kɨtoh, Buú, Ʉremiri, Yupuri, Hãusiro,
61
Wehsemí, Kɨmarõ, Doe, Ñahori, Yepa Soégł, Seribih rémirĩ; e uma lista de wame femininos:
Duhigo, Yepário, Yúsio, Yuú pahko, Piro duhigo, Dëhpoti, Diatho, Ñigõ.
Os Yepamahsã replicam essa lista, nomeando seus membros por meio de heriporã
bahsese, injetando no corpo o heriporã bahseke wame, isto é, o wame da pessoa. Essa injeção
tem duas implicações diretas. Primeiro, o nome refere-se à posicão social que cada pessoa
passará a ocupar, exercendo um papel especializado de bahsese e bahsamori.
Esse assunto foi tratado de modo bastante profundo e com muita propriedade por Maia e
Andrello (2019), em um trabalho no qual apresentam ao leitor a ligação direta do nome da
pessoa com a cosmologia, com o territótio, com a organização social do grupo Yepamahsã e
com seu sentido conforme como vemos no seguinte trecho:
Futuramente, meus avós migraram para região do Alto Rio Tiquié, território geográfico
ao qual eu pertenço atualmente. Meu nome me dá o direito de “reinvidicar” essas
casas/territórios e faz essas casas/territórios serem minhas referências cosmológicas de
62
existência. Tudo isso é arrolado no proceso de heriporã bahsese, como parte de construção de
pessoa.
Segundo, heriporã bahsese diz respeito à força e poder de bahsese. Meu avô dizia que
para ser um yai, não bastava apenas dominar as técnicas terapêuticas, as fórmulas de bahsese e
as plantas medicinais. O mais importante era cuidar do próprio corpo continuamente - com uma
rigorosa dieta e com práticas de limpeza corporal - e manter a comunicação com os waimahsã,
com a utilização do kahpi, através dos sonhos.
Ele dizia que essas práticas de cuidado não só garantiam qualidade de vida, mas
transformavam o corpo em um instrumento curador, fonte de abrandamento de dor e de
doenças. Um corpo que cura outro corpo.
Outra informação importante é que o heriporã bahseke wame, aparentemente, associa-
se a um nome animal. Segundo os kumuã, o jogo está em lançar mão das qualidades do animal
como beleza, leveza, habilidade, força, inteligência, sagacidade, astúcia, para ser potencializado
no corpo da pessoa nominada.
Por exemplo, alguém chamado de Doetiro ou simplemente Doe, cuja tradução ao pé da
letra seria peixe traíra. Na lógica indígena, o nome, em primeiro lugar, está relacionado à injeção
no corpo das qualidades do Doetiro, que foi o líder da embarcação (“Canoa da
Transformação”). Segundo os especialistas, Doetiro foi comadante e líder da embarcação que
transportou no leito do rio os futuros humanos de Opekõ Dihtara (Rio de Janeiro) até à Dia-
petawi (Cachoeira de Ipanoré) do alto Rio Uaupés. Uma embarcação especial, que também é
conhecida como “canoa da transformação”, “canoa da fermentação” ou simplesmente “cobra-
canoa”, como destaca Barreto (2013).
Em contato direto com o Yepa Oãku, Doetiro recebia orientações para conduzir a
embarcação e para comandara tripulação. Era comunicativo, habilidoso, sagaz, possuía uma
habilidade incrível de aprender os kihti ukũse, bahsese e bahsamori.
O nome Doetiro, ou Doe, é dado preferencialmente às crianças de unidade social de
irmãos maiores ou para os filhos primogênitos. Dar o nome de Doetiro à criança é uma maneira
de dotá-ladas qualidades de liderança, da habilidade de “diplomacia”, da força e da eficácia de
bahsese de Doetiro.
A prática de heriporã bahsese para as mulheres também não foge a essa importância e
preocupação. O sentido de heriporã bahseke wame para a mulher é o mesmo: Yepalio, por
exemplo, é uma referência à mulher que participou da construção do mundo terrestre e dos
humanos junto com Yepa oãku. Ela era visionária, líder, comunicativa e “diplomática”.
63
Yugo e Yepa Suriã foram irmãs menores da Yepalio. Cada uma delas também participou
na organização do cosmo, teve poder e força para realizar certas tarefas. Da mesma forma como
os demais oãmahrã produziram muitos kihti ukũse e bahsese.
Dar o nome de Yepálio, significa injetar no corpo da criança as qualidades desta heroína,
isto é, transferir as capacidades de uma pessoa comunicativa, líder, destemida, protagonista,
trabalhadora, “diplomática”, yuhugo (mulher que acompanha os cantos durante a dança de
kahpiwaya nas festas de poose). Tudo isso, na linguagem de bahsese, é chamado de karãko
kumurõ, opekõ kumurõ da mulher. Por essa razão, a mulher, quando adulta, deverá ser
comunicativa com as pessoas, é líder, é yuhugo e oradora durante o poose, função fundamental
nos grupos sociais do Alto Rio Negro.
Fazendo uma breve comparação, também entre os Yanomami, a noção de pessoa pauta-
se numa extensão de seu criador Omama, um ser não criado e uma potência que deu origem à
“floresta e os rios, o céu e o sol, a noite, a lua e as estrelas” (Kopenawa, 2015, p. 70) e que
depois fez os Yanomami como sua extensão de vida, dotando-lhes de costumes específicos.
O nome adotado por cada homem yanomami, que a princípio é segredo, é a presença da
potência Omama, isto é, a força criadora e mantenedora de tudo que existe. Os xapiri, por sua
vez, são pessoas que vivem nos domínios da floresta, água e céu, mas que estão conectadas
numa estrutura cosmológica e cosmopolítica. São os xapiri que dão o nome aos Yanomami, e
os inserem na estrutura cosmopolítica, de modo que um Yanomami possa dizer: “Sou filho da
gente à qual Omama deu a existência no primeiro tempo” (Kopenawa, op. cit, p. 73).
grupo social, delimitar um lugar social e político, um lugar de fala, um território e a indicação
exogâmica, isto é, quais são seus grupos preferenciais e possíveis de troca matrimonial.
Os Yepamahsã e os Ʉtapirõporã consideram-se como grupos sociais que participaram
diretamente da viagem dos Pamuri-pirõ-yukusu (embarcação especial), que numa tradução
direta seria: canoa de cobra que transportou os futuros humanos no leito do rio. Enquanto que
os Ʉmukorimahsã (Dessano) se consideram como grupo que não participou diretamente da
“viagem da transformação”.
Os kumuã contam que os futuros Ʉmurimahsã subiram pela corrente de ar ao patamar
superior novamente no momento que a embarcação aportou no opekõ dihtara. De lá,
acompanharam toda a viagem, retornando à embarcação especial no momento em que aportou
na Dia petawi (cachoeira de ipanoré), na hora da passagem da condição de waimahsã para a
condição humana.Isto é, no mesmo momento do desembarque da tripulação daqueles que
fizeram a viagem pelas águas, os Ʉmurimahsã se fizeram presentes descendo pela corrente de
ar da “casa do céu”, e participaram da passagem da condição de waimahsã para acondição
humana.
A característica comum entre esses grupos sociais é que cada um se organiza a partir
das categorias de irmão maior e de irmão menor e possui uma lista de nomes específicos para
cada unidade social.
Nenhuma pessoa nascida fora do grupo social pode ser nominada com algum wame
contido na lista do povo, exceto os “brancos”11, autorizados por representantes daquele grupo
social. Isso acontece geralmente para possibilitar a esta pessoa o acesso e o benefício da arte do
bahsese ao longo de toda a sua vida.
Essa noção consiste na compreensão de que o corpo não se restringe ao aspecto
biológico. Antes, pelo contrário, envolve aspectos cosmopolíticos que conectam o indivíduo a
uma teia de relações com outros seres, com os waimahsã, com os animais, com os especialistas,
com seus parentes e com outras pessoas.
O heriporã bahseke wame, que representa a força, poder do oãku protagonista, a história
de surgimento do grupo social, à organizacão social, ao seu território de origem, aos seus
artefatos específicos, à lingua do grupo e ao retorno à bahsakawi (casa) após a morte sinaliza
a especificidade dos grupos sociais.
11
No Capítulo IV será tratada a importância de dar o nome aos não indígenas, e de conectá-losàsteias de relações
peloo processo de heriporã bahsese.
65
Todas essas categorias ligadas ao corpo via heriporãbahseke wame são dimensões
estruturantes e vitais de cada grupo social. É aquilo que identifica e diferencia um grupo de
outros grupos e é atualizado no heriporã bahsese e na arte do discurso, durante as grandes festas
de poose e em outras ocasiões especiais. Os especialistas denominam a “arte do discurso”
durante o poose de murõpu ukuse, mahsã kurari kahtise murõpu.
Os kumuã falam que o processo de heriporã bahsese, no seu primeiro momento, é uma
viagem de apresentação, “metafisicamente”, à criança o percurso e os lugares de paradas da
embarcação pamuri-pirõ-yukusu para seu conhecimento e identificação. Segundo o kumu
Manuel Lima, esse momento é como se fosse apresentado à criança o caminho que os
representantes dos grupos sociais percorreram até deixar a embarcação.
Portanto, o heriporã bahsese é também uma atualização da viagem da embarcação
pamuri-pirõ-yukusu para o conhecimento da criança, possibilitando, a partir disso, que ela faça
parte daquela história e se reconheça como membro do povo e de um grupo social específico.
Os fatos da viagem, como as paradas da embarcação, os ensimamentos de Kihti ukũse,
de bahsese e de bahsamori contados na forma de kihti ukũse é acionado para a formulação de
bahsese.
De forma mais concreta, a história da viagem dos Pamurimahsã é atualizada nas festas
de poose, durante as sessões do discurso e das danças de kahpiwaya (cantos/danças), pois o
conteúdo destes é a própria história da viagem da pamuri-pirõ-yukusu, mais especificamente
dos fatos acontecidos em cada uma de suas paradas, lugares estes conhecidos como “casas”.
Em cada parada aconteceu um ensinamento, por parte de Yepa oãku, sobre determinado
conhecimento, tanto que no destino final, os futuros humanos já estavam dotados de todos os
Kihti ukũse, dos bahsese e do bahsamori como o conjunto de conhecimentos práticos mais
preciosos para o povo, bem como dos “bens materias”, como os instrumentos de dança, os
equipamentos de caça e pesca, de construção das casas e tantos outros.
Cantar e dançar o kahpiwaya é atualizar continuamente a viagem de pamuri-pirõ-
yukusu. A viagem representa também o processo de construção do corpo, no sentido de
aquisição de conhecimento-prático em cada momento e etapas. Ou seja, na medida em que o
conjunto dos Kihti ukũse, dos bahsese e dos bahsamori foi ensinado pelo Yepaoãku em cada
parada da embarcação, podemos entender que esse processo de transmissão de conhecimentos-
prático nada mais é que um processo de aprendizagem de Kihti ukũse, de bahsese e de
bahsamori.
Por outro lado, o heriporã bahsese é um ato contínuo, que começa na hora do
nascimento da criança e é atualizado e fortalecido durante sua introdução na vida adulta, tanto
66
para o homem quanto para a mulher (na primeira menstruação) e em outras ocasiões, conforme
veremos ao longo desse trabalho.
A inserção na vida adulta, segundo o kumu Ovídio Barreto, é o início de uma vida mais
complexa, que estabelece a autonomia da pessoa. Assim, a pessoa deve estar preparada para
enfrentar os novos desafios, por isso é importante fazer a reorganização de heriporã bahsese.
Dessa maneira, o heriporã bahsese é um processo mais real de conexão da pessoa com
o fenômeno da viagem dos Pamurimahsã, conexão ao grupo e organização social, conexão com
território cosmologico e geográfico, conexão com a casa, artefatos/utensilos e um veículo de
inserção da pessoa na estrutura cosmológica e de interação com os waimahsã habitantes do
domínio aquático, da terra/floresta e do espaço aéreo. O heriporã bahsese é um processo de
construção de pertencimento, de construção da pessoa com história, de suas referências
cosmológicas territoriais e organização social.
O equilíbrio da pessoa e do seu grupo é entendido a partir da teia de relações
estabelecidas, seja entre os grupos sociais e os waimahsã, seja entre grupos e pessoas
individualmente. Segundo os kumuã, se tudo estiver conectado numa rede de comunicação e
interação, o grupo estará em equilíbrio, e a pessoa também.
O heriporã bahseke wame como patrimônio coletivo do grupo social está entrelaçado e
entranhado numa noção de pertencimento de grupo, conectado com as realidades materiais,
imateriais, com a histórias e com os Kihti ukũse, com as práticas sociais e com a arte do discurso
nos encontros e nas festas de poose. Como cada grupo social possui um estoque de heriporã
bahseke wame específico que o identifica, e por ele é injetado a seus membros o conjunto dos
kihti ukũse , bahsese e bahsamori próprios do grupo, nominar a pessoa é a garantia da
perpetuação daquele grupo social.
A lista de heriporã bahseke wame do grupo social é também indicador da regra de
exogamia e das regras sociais. Os especialistas consideram que pertencer a um grupo social e
se identificar como membro daquele grupo pelo heriporã bahseke wame é fundamental, pois
isso é uma das dimensões que constitui a força vital, um “esteio” de equilíbrio da pessoa.
O bahseke wame como marcador de diferença faz os Pamurimahsã comporem um
sistema sócio-político amplo e flexível, aberto para uma rede de intercâmbios, sobretudo na
formaç ão de novas alianças conjugais.
A caracteristica central desse modelo é a articulação entre semelhança e diferença, daí a
importância de pertencimento a um grupo social por meio de heriporãbahseke wame. Enfim,
quem se identifica com heriporã bahseke wame dos Yepamahsã, seja homem ou mulher, será
considerado um Yepamahsu (membro do grupo étnico Yepamahsã/Tukano).
67
Dentro da estrutura do grupo social e da unidade social, cada pessoa, através do seu
bahseke wame tem uma função social, sobretudo quando se trata de papeis especializados como
yai, kumu e baya. O exercício dos papeis especializados se dá de modo complementar, onde a
efetiva participação de cada um forma uma sociedade ideal, tal como a organização social
idealizada pelos oãmahrã.
Para além das implicações do wame na construção de pessoa e na qualificação do corpo
que exponho nessa tese, existem outras dimesões imbricadas ao nome. Ou seja, há uma boa
literatura produzida sobre onomástica rionegrina. Um destes autores é Stephen Hugh-Jones
(2002), que dedicou suas pesquisas ao sistema de nominação entre os Barasana do rio
Piraparaná. Ele estudou o sistema onomástico desse grupo, relacionando os nomes aos
componentes do corpo, como o sangue e os ossos, como elementos fundamentais que
acompanham os processos de desenvolvimento da pessoa tukano.
O ponto central de seu trabalho parece ser a similaridade entre as patrilinhagens tukano e
os grupos de perfil matrilinear dos Jê e dos Bororo. Fazendo uma comparação entre os sistemas
de nominação Tukano, Jê e Bororo, tomando Viveiros de Castro (Ano do livro que ele toma
como referência) como seu principal interlocutor, na medida em que este autor argumenta que
os sistemas de nominação são um continuum entre os pólos “exonímico” e “endonímico” entre
os povos ameríndios, Hugh-Jones conclui que o sistema de nominação tukano combina
endonímia e elementos de exonímia, o que os distingue dos Jê e dos Bororo (Hugh-Jones,
2002).
Geraldo Andrello (2004) dedicou uma parte de sua tese ao tema da nominação entre os
povos indígenas do alto Rio Negro.Segundo ele, “é a saga mítica de seus ancestrais que dá
origem aos nomes tradicionais”. Nesse trabalho, o autor apresenta a importância da etinonímia
na hierarquia tukano. Segundo este autor, revelar a história de certos lugares - os Kihti ukũse de
ocupação e dispersão, as lembranças de genealogias, entre outros elementos - é pensar na
etnonímia e na hierarquia, tornando a problemática das transformações mais inteligível.
O que se pode compreender dessa obra é que os nomes podem ser a chave para se
entender a origem dos grupos sociais, a hierarquia e a dinâmica de parentesco do Rio Negro.
Nas palavras do autor:
Enfim, o esforço aqui consiste em mostrar, nesse primeiro momento, que o heriporã
bahseke wame é um patrimônio coletivo, é a força e o poder do Kihti ukũse, bahsese e
bahsamori, considerados como murõpu ukuse do grupo social. É uma maneira mais concreta
de pertencimento a um grupo social, um marco diferenciador para a abertura à exogamia e à
circulação de conhecimentos e de práticas diversas.
O objetivo deste tópico é mostrar que o pertencimento da pessoa a uma unidade social
se dá também pelo heriporã bahseke wame. Para desenvolver esse assunto, os nomes do grupo
social Yepamahsã serão nosso ponto de referência para mostrar como os Pamurimahsã e os
Umokomahsã se organizam, por meio do sistema onomástico em unidade social.
Na lista de nomes, há heriporã bahseke wame restritos para nominação de irmãos
maiores e há aqueles voltados para irmãos menores da unidade social. Cada nome da lista está
relacionado a uma função social e isso acaba por refletir nas práticas sociais da vida cotidiana
dos membros daquela unidade. Por exemplo, nas tarefas em que cada membro deverá exercer
seu papel durante as festas de poose, o Baya tem papel especializado de conduzir as danças de
kahpiwa e o Kumu tem papel de efetuar bahsese de proteção e de apaziguamento. Outros têm
papel de preparar o kahpi. Outros têm papel de cuidar e fazer circular ipadu e cigarro. Outros
têm papel especializado de servir kahpi.
Nesse contexto de exercício de papeis especializados, os elementos como o tabaco, o
ipadu, o banco, os instrumentos musicais, os adornos, os artefatos de pesca e caça são
considerados como partes constitutivas do corpo do especialista, o que é traduzido como ku
murõpu kahtise. Para a mulher, se diz ko murõpu kahtise, referindo-se ao conjunto formado por
seu heriporã bahseke wame, seu banco, seu roçado e os seus instrumentos de trabalho agrícola
e de produção de alimentos.
O trabalho do antropólogo inglês Stephen Hugh-Jones (ano) sobre a onomástica tukano,
ainda que esteja focado na discussão de similaridades entre as patrilinhagens tukano e os grupos
de perfil "matrilinear" entre os Jê e os Bororo, pode ser um bom caminho para entender essa
postulação, pois a nominação da pessoa tukano ancora-se numa consideração de que cada nome
(Doé, Buú, Akuto, Yupuri, etc.) está diretamente relacionada ao papel social que ele
desempenha, bem como ao exercício do seu “ofício especializado” como baya, kumu ou yai.
69
Seguindo essa lógica, numa sociedade ideal Yepamahsã, os irmãos maiores geralmente
são mais “diplomatas” e os irmãos menores são especialistas em bahsese e bahsamori, que
conduzem as práticas sociais cotidianas. Isto não significa que os irmãos maiores não saibam
bahsese e bahsamori, mas o papel especializado cabe aos irmãos menores sob supervisão do
líder da unidade social.
Os especialistas são indivíduos que possuem um grande conhecimento e domínio dos
kihti ukũse , dos bahsese e do bahsamori e se mobilizam para manter e aumentar seu poder de
conhecimento em contato com pessoas e com especialistas de outros grupos sociais, mais
comumente por ocasião dos poose, momentos de festa e de cerimônias diversas que reúnem
pessoas de diferentes grupos sociais.O trabalho do antropólogo indígena yepamahsu, Gabriel
Sodré Maia (ano da publicação) apresenta um capítulo sobre o tema de poose. Trazendo
bastante detalhes, o autor descreve os tipos e momentos de poose, como também apresenta as
introduções de kahpiwa (peças musicais dançadas) para cada tipo de poose. Em relação ao
exercício de papeis especializados, o autor destaca:
Como cada heriporã bahseke wame está relacionado a uma função especializada, o yaí,
o kumu e o baya exercem seus ofícios numa ação de complementariedade, de modo que o
primeiro é especialista em diagnosticar as doenças e outros tipos de afecções e receitar as
fórmulas de bahsese, além de transitar nos patamares do cosmo nos sonhos e manter a
intercomunicação constante com os waimahsã que povoam os diferentes espaços. O segundo é
especialista embahsese, o kumu. O terceiro é especialista em práticas sociais, sobretudo na
condução das festas depoose, o baya.
Essa característica toma impôrtancia entre os grupos sociais e entre as unidades sociais
para circulação de kihti ukũse, de bahsese e de bahsamori, ainda que cada grupo social tenha
suas referências particulares de Kihti ukũse - a arte do discurso, uma língua, os cantos de
kapiwaya, um território, etc. As diferenças de grupos sociais são fundamentais para abertura de
diálogo e para trocas de experiências entre os especialistas.
70
O estoque de nomes para o heriporã bahsese é “um repertório fixo e fechado que é
transmitido pela linha patrilinear e é considerado patrimônio exclusivo de um sib” (Hugh-Jones
1988, p. 133). O nome, como patrimônio coletivo, protege o grupo e a unidade social. Protege
também a pessoa, na medida em que heriporãbahseke wame é a própria ligação com os
oãmahrã, que são considerados bahseriko mahsã.
Assim disse meu pai, o kumu Ovídio Barreto:
Os não indígenas dão nomes de santos a seus filhos como medida para obter
proteção, segurança ou mesmo para obter uma graça. Também dão o nome de
pessoas famosas para lembrar dos seus feitos ou para serem conhecidos,
protegidos por eles e mesmo para desenvolver suas qualidades. Dão o wame
dos pais como continuidade da familia tradicional, benfeitora, renomada. São
muitos os sentidos de dar o nome à pessoa. (kumu Ovídio Barreto, 2017).
O heriporã bahseke wame conecta a pessoa numa teia de relações intergrupais, dentro ou
fora dos grupos sociais exogâmicos e na dimensão cosmopolítica. Assim, a pessoa fica
protegida e dotada de qualidades para o exercício de uma função especializada.
A noção de território para os povos indígenas do Alto Rio Negro perpassa por vários
níveis de concepções, não se restringindo apenas ao território geográfico de caráter político-
jurídico.
A primeira noção de território é a própria compreensão de ocupação dos waimahsã e
dos mahsã (humanos) do mundo terrestre, chamado de Ʉmuko pati. A segunda noção diz
respeito aos espaços e aos locais percorridos pela embarcação pamuri-pirõ-yukusu em sua
trajetória conduzindo os futuros humanos ao longo dos rios Amazonas e Negro, denominados
de pamumuhãnukãke dita. A terceira noção é de buanukãke dita, que diz respeito aos espaços
onde cada unidade social passou a ocupar após a passagem da condição de waimahsã para a
condição de humano. A quarta concepção de território é o espaço pós-morte, denominado de
mahsã werikãrã. Essas noções são de suma importância, pois fazem parte da concepção do
cuidado do corpo na medida em que são arroladas no processo de heriporã bahsese.
Pensar em “território”, portanto, é identificar como os povos indígenas concebem e se
relacionam (cosmo) politicamente com todos os seres que povoam os espaços, especialmente
os waimahsã,
71
Ao “calibrar” o corpo dos futuros humanos, segundo o kumu Ovídio Barreto, Yepa oãku
fez o novo território ser uma realidade benéfica e parte da extensão dos corpos dos
Pamurimahsã. Em tukano, diz-se: “añuri pati, bahuari mahsã pati, añuri dita, opekõ dita pati,
karokõ dita pati”. Essas palavras fazem parte da fórmula de bahsese feita à criança no momento
do seu nascimento. Assim, o pamumuhãnukãke dita se torna añuri pati (lugar bom de viver),
bahuari mahsã pati (lugar de habitação de mahsã), añuri dita (lugar de terra boa), opekõ dita
pati (“lugar de leite”), karokõ dita pati (“lugar de mel”) para a criança viver e crescer.
Assim, as paradas da embarcação são territórios “demarcados” e patrimônio dos
Pamurimahsã. Segundo os especialistas, em cada parada/casa foi construído um grande
bahsakawi e neles os futuros humanos permaneceram por muito tempo, até embarcarem
novamente para continuar a viagem.
Dessa maneira, todas as paradas são descritas como lugares de muita fartura de frutas
silvestres, terra de boa qualidade para cultivo, inscrições nas pedras, etc. Assim:
São muitos os pamumuhãnukãke dita dos Pamurimahsã, cada um com sua importância,
dos quais os especialistas kumuã lançam mão para elaborar o heriporã bahsese, bem como para
os discursos cerimoniais.
Para ilustrar essa noção de pertencimento ao território a partir da viagem da pamuri-pirõ-
yukusu, como o pratimônio mais importante para os Pamurimahsã, passamos a descrever alguns
pamumuhãnukãke dita ou também chamados de pamuri wiseri como opeko dihtara, dia
mairáwi, dia barawi, diawi, dia mererawi e dia petapewi, situadas ao longo do Rio Amazonas,
do Rio Negro e do Rio Uapés, tomando-as como amostras em função da proposta do tópico, o
que não significa que as histórias de outras “casas” sejam menos importantes para o heriporã
bahsese ou para o discurso cerimonial.
Opeko dihtara é descrita pelos kumuã como uma cidade constituída por várias
bahsakawiseri de waimahsã (casas de waimahsã) e formada por grandes colunas de utãboh
bohtari (colunas de pedras) e siõpuri bohatarié (colunas de minerais resistentes), que sustentam
o teto do céu, representadas por serras de pedras que existem no lugar. Na linguagem de
heriporã bahsese, essas colunas são chamadas de opekõ bohtari e karãko bohtari e estão
associadas diretamente à estrutura do corpo humano, aos seus componentes e a sua sustentação.
Para além dessa concepção, o lugar é considerado muito importante por se tratar do
primeiro contato com o “novo” mundo pelos Pamurimahsã, ainda na condição de waimahsã,
encontrando uma realidade totalmente diferente daquela que estavam acostumados
anteriormente, no mundo primordial superior (Barreto, 2013).
O primeiro indicativo de pertencimento da pessoa ao território pamumuhãnukãke dihta
ou pamuri wiseri é marcado por essa concepção, uma ligação da pessoa aos lugares de paradas
da viagem do pamuri-pirõ-yukusu, dados que são arrolados por meio de heriporã bahsese.
O opeko dihtará é considerado o primeiro pamuri-mahsã-wi (casa de primeiro contato
com o mundo terrestre pelos futuros humanos). As serras são consideradas casas onde até hoje
75
habitam os waimahsã, que são “parentes” direto dos Pamurimahsã. Acessando essas casas e
dialogando com seus donos moradores é que os especialistas indígenas atualizam os kihti ukũse,
os bahsese e os bahsamori. O território é constituído de casas de marcos importantes para os
Pamurimahsã.
Tudo isso faz com que outros grupos indígenas do Alto Rio Negro, que passaram por
diferentes vias de passagem da condição de waimahsã para humanos, como os Ʉmukorimahsã,
referenciem estes territórios como de exclusividade dos Pumurimahsã, como um “patrimônio”
que pertence a grupos específicos, herdeiros e donos desse patrimônio.
Outro lugar importante é Mairiwi, localizado no entorno da atual cidade de Belém, no
estado do Pará. Seu território é descrito pelos especialistas como um lugar de muitas plantas
silvestres frutíferas, como cacau, banana nativa e de fartura de todos os tipos de peixes e
animais.
Segundo os especialistas, isso explica a ação do Yepa oãku, que ao desembarcar nesse
lugar, fê-lo ser um lugar de fartura para os Pamurimahsã se alimentarem e se estabelecerem
socialmente, partilhando e desenvolvendo atividades que aprendiam sob a sua orientação.
O mais importante é que nesse lugar/casa, Yepa oãku começou o ensinamento aos
Pamurimahsã sobre os kihti ukũse, sobre os bahsese e sobre os bahsamori. Primeiro, ensinou a
construção do bahsakawi, sua arquitetura e seus respectivos bahsese. Segundo Barreto (2013),
Yepa oãku também ensinou a introdução de algumas partes de bahsamori para as práticas de
poose, mas, naquele momento, ainda não a pôs em prática.
Os kumuã explicam que os ensinamentos do Yepaoãku foram feitos passo a passo, razão
pela qual cada “parada” tem sua importância, porque os futuros humanos ainda estavam sob a
condição de aprendizes.
Dia barawi é outro bahsakawi muito importante, é uma das casas localizadas na região
onde se situa a atual cidade de Manaus. O lugar é descrito pelos especialistas como de muitas
palmeiras e de águas dominadas por cardumes de piranha, um lugar de paisagens de grandes
diacoeri (várzeas), de terra firme com animais e com muitas plantas úteis, um lugar de muitas
praias e lagos, de fartura de peixes e muitas cobras grandes, chamadas wai-toatu, guardiões de
animais aquáticos.
O Rio Uaupes é conhecido como Opekõ dia por estar relacionado diretamente com as
condições que permitiram a embarcação prosseguir e pelas condições favoráveis para a
realização final do projeto de Yepa oãku. Segundo os especialistas, nesse território, Dia barawi,
os Pamurimahsã permaneceram por longo período. Além de treinamento de práticas de poose,
76
Outra noção de território dos Pamurimahsã diz respeito à ocupação de território após a
formação de grupos sociais, denominado de buakukãke ditá. Em línguagem de bahsese,diz-se
kukarãko dita, ku opekõ dita, ou ko karãko dita, ko opekõ dita, fazendo referência direta à
ligação da pessoa ao território.
Para expor essa ideia, vamos nos enveredar nos caminhos de dispersão da unidade social
Yupuri-huremiri-sararó após o período de formação de grupo social Yepamahsã no dia petawi
(Cachoeira de Ipanoré).
Os Yepamahsã tem como referência territorial o Dia petawi, a Cachoeira de Ipanoré e
seu entorno. Mas foi no rio Nūrunha que passaram a se organizar em unidades sociais, passando
a viver sob o sistema organizativo de irmão maior e irmão menor. Foi nesse espaço territorial
que desenvolveram seus primeiros trabalhos com roçado, construíram suas primeiras
bahsakawiseri, realizaram suas primeiras festas de poose e estabeleceram seus modelos de
relação com os waimahsã, que passaram a habitar naquelas casas como cachoeiras, serras e
lagos. Transformaram o território como um lugar de vida social embrionária, familiar, pessoal
e de relação cosmopolítica e construíram o território como parte e extensão do corpo.
Por essas razões, os Yepamahsã consideram que a Cachoeira de Ipanoré, e seu entorno,
é seu berço de formação humana. É seu território na medida em que essa noção faz parte do
murõpu ukusee e murõpu kahtise, lugar entranhado de histórias e referência de heriporã
bahsese.
Os Yepamahsã, depois que aumentaram sua população, e por conflitos internos entre
irmãos maiores e irmãos menores, se espalharam para outros lugares que hoje ocupam, isto é,
“Os povos indígenas por sua vez, se espalharam por toda a região do noroeste amazônico,
ocupando todo o Alto Rio Negro e seus principais afluentes, a exemplo dos rios Tiquié, Papuri
e Uaupés” (Barreto, 2013).
Muitas unidades sociais Yepamahsã movimentaram-se para outros lugares, como ao
longo das margens do rio Kuhsá (Rio Tiquié), afluente do rio Opekõ dia (Rio VUaupés), que
antes era território de domínio de outros grupos indígenas que tinham as cachoeiras e as
corredeiras do rio como seus pamuriwiseri (casas de paradas da embarcação e repositórios de
kihti ukũse, de bahsese e de bahsamori).
A explicação da dispersão dos grupos sociais que ali viviam, segundo os relatos dos mais
velhos, é que se espalharam por outros territórios devido às “guerras” constantes com outros
grupos e por incursões de caça a escravos por colonizadores. Por tudo isso, acabaram por
78
abandonar seus territórios, passando a ocupar outros mais longníquos, inclusive em direção à
Colômbia, à Venezuela e ao Peru.
Os Yepamahsã da unidade social Yupuri-huremiri-sararo passaram a ocupar uma parte
do território do alto Rio Kuhsa (Rio Tiquié), mais especificamente a região de Huremiripá
(corredeira de rouxinol), que em português foi chamada de comunidade São Domingos Sávio.
Outras unidades sociais foram para outros territórios do mesmo rio, como o Rio Papuri e para
os territórios pertencentes à Colômbia.
O território ocupado por cada unidadeé tido como seu lugar de domínio e, assim,
reconhecido pelos demais grupos sociais. Por exemplo, o território que a unidade social Yupuri-
huremiri-sararo ocupa atualmente é reconhecido pelos demais grupos como um território de
seu domínio específico e nenhum outro grupo pode usufruir dos recursos naturais daquele
território sem o consentimento dos membros do grupo reconhecido como dominante no
território.
Esse modelo é adotado pelos diferentes grupos do Alto Rio Negro, mesmo que muitos
de seus membros estejam vivendo fora do território:
O território ocupado por uma unidade social é distribuído entre os familiares para usufruto
dos recursos naturais e para o controle de entrada dos “invasores”. Tudo o que existe no
território é tido como parte integrante da unidade e ninguém pode ousar desfazer ou “invadir”,
sob o risco de instaurar um conflito. Assim, ao fazer heriporã bahsese, o especialista arrola o
território pertencente à unidade social como extensão da pessoa, como lugar de fazer seu
roçado, seu território de caça, de pesca, de relações interpessoais e de interlocução com os
waimahsã, habitantes dos espaços aquáticos e da terra/floresta daquele território.
Dessa maneira, o grupo sicoal e o corpo são conectados diretamente com o território de
pertencimento e de ocupação. Caso algum membro do grupo se desvincule dessa conexão com
o território, a pessoa fica sujeita aos riscos de desorganização de sua vida social, territorial e ao
desiquilíbrio de sua força vital. O pertencimento ao território é fundamental para o equilíbrio
social, emocional e afetivo de uma pessoa.
79
Para evitar este desequilíbrio, o heriporã bahsese é feito sempre quando uma pessoa deixa
o seu território de origem e passa a ocupar um outro e, quando este se estabelece em um novo
lugar, obrigatoriamente deve fazer bahsese para que este novo lugar passe a fazer ser parte de
extensão..
Essa ação é necesssária para que a pessoa mantenha sua força vital e não perca seu
equilíbrio “emocional”, traduzido na insegurança, no estranhamento, na perturbação, na
insônia, nos desgostos, na ansiedade, na saudade; nos estados da pessoa que podem
comprometer a sua estabilidade “psicológica”. O território é uma identificação do grupo, da
unidade e da pessoa, da sua vida, da sua história e da sua autonomia:
Devido a essa importância, essa dimensão passa a ser incluída no rol das dimensões de
força vital da pessoa, como os espaços de usufruto dos recursos alimentícios (animais de caça,
peixes, terreno para o roçado e de construção de novas casas etc), sempre sob a licença dos
responsáveis dos espacos, os waimahsã.
O antropólogo indígena Dagoberto Azevedo (2016), na sua investigação sobre o espaço
terra/floresta entre os Yepamahsã, descreve com muita densidade a noção de organização dos
espaços inclusivos da terra/floresta e como isto é articulado com o bahsese de wetidarese, na
medida em que esta organização implica na noção organizativa das casas de waimahsã.
Demonstra, assim, que os bahsese versados pelos kumuã partem da noção de organização de
espaços para ordenar os seres, os vegetais e os animais. Dessa maneira, a subdivisão de espaços
menores está relacionada à formulação de bahsese protetivos e de limpeza de alimentos,
relacionando-os com a concepção de vida equilibrada e conectada com tudo.
Essa organização permite aos especialistas interagirem e se comunicarem com os
waimahsã dos lugares, classificando-os e ordenando-os nos seus devidos lugares, para sua
circulação, evitando seus ataques às pessoas.
Isto significa que não basta ocupar o território, é preciso, antes de tudo, negociar,
ordenar o novo espaço, conhecer os waimahsã habitantes dos lugares/ambientes para poder
interagir, comunicar e conviver de modo equilibrado. A tradução do termo bahsese com a
80
palavra cristã “benzimento” não dá conta de expressar o sentido epistemológico do termo, como
é compreendido pelos Yepamahsã.
comida apimentada, por terem relações sexuais depois do consumo de kahpi ou depois de ter
participado das festa de poose com toques de instrumentos de miriã, entre outras. Nesse sentido,
transformar-se em bicho é perder a condição de pessoa, é perder o heriporã bahseke wame.
Cada grupo social tem suas bahsakawiseri (casas) para onde vão as pessoas mortas do
grupo e o destino do heriporã bahseke wame é o bahsakawi dos waimahsã.
Melissa Oliveira aponta que:
A ida para esta “nova casa” não pode ser entendida como submundo, mas como um lugar
de retorno, com os quais os especialistas continuarão mantendo sua comunicacão, interação e
aprendizagem. Dessa maneira, os mortos, sobretudo aqueles que foram especialistas, podem
aparecer para pessoa da familia nas sessões de kahpi, durante o período de formação e também
nos sonhos, para repassar os kuhti-ukuse, os bahsese e o bahsamori sob seu domínio.
A morte encerra um ciclo de vida das pessoas, mas aponta para uma outra direção, para
uma outra forma de vida e de comunicação com os humanos. Todos os elementos constitutivos
do corpo voltam-se para as condições de boreyuse kahtiro (“luz/vida”), yuku kahtiro
(“floresta/vida”), dita kahtiro (“terra/vida”), ahko kahtiro (“água/vida”), waikurã kahtiro
(“animais/vida”), ome kahtiro (“ar/vida”).
O heriporã bahseke wame também se associa ao bahsakawi, à casa. Não é a toa que os
estudos etnográficos sobre os ameríndios relacionam a casa como lugar de expressão de divisão
social de mahsã kura. Ao tratar desse assunto de divisão social da “maloca”, Cristiane Lasmar
cita Stephe Hugh-Jones e descreve:
Jorge Pozzobon vai além dessa descrição de divisão social da “maloca”, ao incluir a
articulação de bahsese, que ele chama de “reza”:
Na amazônia oriental, por exemplo, essa noção é bastante difundida e ela também faz
parte do discurso de kihti ukũse , ou melhor, a projeção do corpo com a casa faz parte de murõpu
ukuse durante as festas de poose. A casa, segundo os kumuã yepamahsã, é uma parte
constitutiva da força vital da pessoa.
Seu Manoel Lima explica que, dos oito esteios, os seis primeiros esteios centrais
dobahsakawi (três em cada lado, que geralmente são grandes troncos de madeira) estão
associados à força vital do homem. Sua estrutura corresponde a estrutura óssea do corpo do
homem. Sua harmonia e equilíbrio de “temperatura” (quente, frio, ao ponto) corresponde à de
sensação de bem estar da pessoa, ou das pessoas em casa. A casa é constituída de todas as
condições favoráveis de equilíbrio da pessoa e é um espaço de sua fortaleza.
Assim como os esteios sustentam toda a estrutura da casa, numa analogia direta, são
também os esteios que “sustentam” a estrutura do corpo. As atividades realizadas dentro da
bahsakawi, sobretudo, o poose, como uma prática social mais importante, acontecem no centro
da casa.
Os quatros primeiros esteios centrais da bahsakawi são arrolados no processo de
heriporã bahsese para o homem. São evocados como partes estruturantes do corpo masculino,
tornando-se sustentáculos do corpo da pessoa e uma dimensão de força vital, que em língua
yepamahsã se diz: mahsã kahtise bohtari. Ao articular o heriporã bahsese, se diz: Doétiro
kahtise bohtari, ou Yúpuri kahtise bohtari, ou Ahkëto kahtise bohtari, Buú kahtise bohtari,
Këmarõ kahtise bohtari, Ëremiri kahtise bohtari, Suegë kahtise bohtari, Séribhi kahtise bohtari,
Yepásuri kahtise bohtari, Wehsemi kahtise bohtari, assim sucessivamente.
83
Segundo os kumuã, os esteios são chamados de mahsã katise bohtari, numa referência
que os quatros esteios são apoios do especialista. Neles que são pendurados os ardonos e
instrumentos musicais para as danças durante o poose, artefatos considerados como partes do
corpo do especialista. Também os esteios são pintados com grafismo, chamados de kahpihori.
Grafimos que representam os Kihti ukũse, os bahsese e os bahsamori. Segundo Ovídio Barreto,
durante a sessão de kahpi, os grafismos se movimentam e são portas de entradas para o mundo
de conhecimento. Dessa forma, os esteios são como se fossem a extensão do corpo do
especialista.
Nessa mesma lógica, o kumu Manoel Lima diz que, durante a seção de kahpi, as pinturas
dos esteios giram e conduzem para o domínio de bahsamori. E continua dizendo: “quando a
gente está numa grande festa de poose, o bahsakawi, sobretudo durante a sessão de kahpi, se
movimenta, a casa fica viva, a pessoa tem a sensação de que não é mais a pessoa que está em
ação, mas sim a própria casa que está lhe conduzindo às danças e aos ritmos”. Assim, o
bahsakawi é um organismo vivo, e suas pinturas funcionam como um “aplicativo” para se
acessar ao “mundo” de bahsamori durante a sess ão de kaphi.
Os esteios da casa, no processo de heriporã bahsese, são evocados como partes da
estrutura do corpo, sendo transformados como apoios, suportes, segurança, aparatos e
protetores da pessoa.
Os dois últimos esteios (um de cada lado) da basakawi são estruturas da força vital
feminina. Representam a vida e a força da mulher. Ao fazer heriporã bahsese, o especialista
faz dos esteios partes do corpo da mulher, sua projeção, seu apoio, sua firmeza, sua segurança,
seus suportes vitais. Todas as atividades de produção de derivados de mandioca para o consumo
são feitas naquele espaço específico. Todos os utensílios para fabrico de derivados de mandioca
e artefatos são guardados naquele espaço e representam a extenção do corpo da mulher. Assim
como os quatro esteios estão para os homens, os dois últimos esteios estão para a mulher.
Assim, os esteios se tornam partes da força vital da mulher e o espaço se torna um lugar
fundamental para sua segurança e desenvolvimento do seu trabalho. O especialistas, ao fazerem
heriporã bahsese, dizem: Yepálio kahtise bohtari, ou Duhigo kahtise bohtari, ou Yúsio kahtise
bohtari, Yuúpahko kahtise bohtari, Piro duhigo kahtise bohtari, Dëhpoti kahtise bohtari,
Diatho kahtise bohtari, Ñigõ kahtise bohtari, assim sucessivamente. A viga que forma a
cumeeira, os kumuã a comparam com a coluna vertebral da pessoa. A analogia consiste na
concepção de que, assim como a coluna vertebral interliga a cabeça, os membros e os pés, do
mesmo modo, a cumeeira sustenta o corpo da bashsakawi. A partir dela, todas as outras partes
84
se conectam, formando um espaço limitado, seguro, acochegante, lugar provedor de bem estar
e bom para se viver.
Os caibros, por sua vez, são comparados com as costelas da pessoa. Manoel Lima diz
que, assim como as costelas protegem os órgãos vitais do corpo, da mesma forma os caibros
protegem os habitantes do bahsakawi. Dessa forma, ao fazer heriporã bahsese, o especialista
toma as qualidades e funções dos caibros e faz disso a segurança da pessoa.
A divisão de espaço dentro do bahsakawi é organizada de acordo com o marcador irmão
maior e irmão menor e a disposição diferenciada dos homens e das mulheres é pensada a partir
das tarefas específicas.
A noção de bahsakawi como extensão da pessoa começa desde a construção da casa,
que, para além de material como madeira, cipó e palha, consiste na conexão com o processo de
heriporã bahsese.
Primeiro, existe um protocolo a seguir para a construção de bahsakawi, que é, antes de
tudo, começar com wiseri bahsese. Conforme aponta o indígena e escritor Gabriel Gentil:
Vocês que são estudantes, as coisas que devem estar ligadas nos seus corpos
são os livros, os cadernos, as canetas, os lápis, as borrachas. Isso que dá
sentido para a vida do estudante. Sem esse material ligado ao seu corpo, um
estudante não terá vontade de estudar, de ler e de escrever, pois verá isso como
algo que está fora dele e não como partes constitutivas do seu corpo, como sua
riqueza. (kumu Manoel Lima, 2017).
Uma reclamação dos kumuã sobre o contexto atual é que as novas gerações estão cada
vez mais desvirtuando a importância de heriporã bahseke wame, na medida em que vão
atribuindo nomes fora do contexto e do significado cosmológico dos grupos sociais. Assim, o
modelo de nominação de Santos Católicos tem rompido a teia de conexão cosmopolítica,
histórica do grupo social e territorial das pessoas no Alto Rio Negro.
87
Essa maneira de dar nome às pessoas implica do ponto de vista dos especialistas, na
desorganização social, na perda dos conhecimentos de kihti ukũse, de bahsese e de bahsamori
do grupo social ou da unidade social, na formação de novos especialistas, entre tantas outras
implicações.
Segundo o kumu Manoel Lima, o heriporã bahseke wame dos grupos sociais perdeu
lugar com a imposição cultural e com o contato com as pessoas de fora das comunidades.
Sem o heriporã bahseke wame do grupo social, os jovens de hoje não sabem mais
diferenciar-se entre si, ninguém sabe quem é quem, assim vão se casando com pessoas do
mesmo grupo. Isso desorganiza todos os mahsãkurari (grupos sociais e unidades sociais) do
Alto Rio Negro.
O raciocínio do kumu Ovídio Barreto vai à mesma direção daquele defendido por
Manoel Lima, de entender que o heriporã bahseke wame é um marcador da exogamia e da
organização interna das unidades sociais, assim como é o marcador mais importante entre os
grupos sociais do Alto Rio Negro.
Dessa maneira, Mahsã kahtiro como fruto do processo de heriporã bahsese, injeção de
heriporã bahseke wame é uma ligadura da pessoa com as dimensões: origem do grupo
(Pamurimahsã, Ʉmurimahsã), à unidade social, ao Ʉmuko pati Heriporã ao território, ao
pamumuhãnukãke dita, ao buanukãke ditá, ao “territorio pós morte”, ao Bahsakawi, aos
artefatos.
Essas dimensões interligadas formam um “feixe amarrado (wame)”, como dimensões
que constituem a força vital da pessoa. O seu equilíbrio e o seu desiquilíbrio, segundo os
especialistas, implicam diretamente na qualidade de vida da pessoa, sobretudo no equilíbrio e
no desiquilíbrio “psico-somático” da pessoa.
A nominação de pessoas fora da lógica indígena implica na desorganização social, na
desorganização das “instituições”, na desconexão cosmológica da pessoa, na perda de kihti
ukũse, de bahsese e de bahsamori, na carência de formação de novos especialistas, entre tantas
outras implicações diretas.
88
CAPÍTULO II
A gente não adivinha a doença, não fazemos milagres para curar, não falamos
com os espíritos para descobrir as doenças, mas a gente conhece as doenças,
a gente sabe quais são as doenças que podem afetar as pessoas em cada
período do ano. Aí a gente faz bahsese ou usa plantas medicinais para curar
as pessoas. (kumu Manoel Lima, 2013).
A fala do kumu Manoel Lima é o ponto de partida para se mergulhar no universo das
explicações sobre doatise e duhtitise, dos cuidados e dos ataques à pessoa e de como investigar
o “protocolo” dos kumuã no exercício do seu ofício.
A literatura etnológica rionegrina muito já descreveu sobre os especialistas indígenas e
seus papeis especializados, seja pela denominação de pajés, de curandeiros, de xamãs, de
mediadores cósmicos, de manejadores do cosmo, de líder religioso ou de outras nomenclaturas.
As produções pouco especializadas sobre o assunto entendem quase sempre a prática de
tais especialidades sob a perspectiva religiosa, que acaba por produzir certo imaginário sobre
os papéis especializados dos povos indígenas.
Os especialistas do Alto Rio Negro são sujeitos que passaram por uma rigorosa
formação sistemática e por um treinamento, sob orientação de um especialista formador.
Conectados aos domínios dos waimahsã, adquiriram, diretamente destes conhecimentos sobre
Kihti ukũse, sobre bahsese e sobre bahsamori.
Eles são pessoas com força de articular qualidades sensíveis curativas contidos nos tipos
de vegetais, de animais e de minerais para abrandar a dor e curar as doenças, de modo a
transformar determinados elementos (água, tabaco, enzima vegetal, entre outros) portadores de
agentes curativos e protetivos.
Possui ainda habilidade de “manipular” os fenômenos naturais como raios e trovoadas
e de usar as qualidades de animais e minerais para determinadas finalidades. Como detentores
de poder, versando a linguagem de bahsese, acionam as qualidades dos elementos para resolver
problemas cotidianos, como a cura de doenças, desconforto, afecções e a reorganização do
desiquilíbrio da pessoa e do cosmos.
Para manter o equilíbrio da pessoa sob seus cuidados, lançam mão de bahsese para
equalizar os elementos constituintes do corpo e reorganizam as dimensões que constituem a
força vital da pessoa.
Para manter o equilíbrio do cosmo, estabelecem interlocução com os waimahsã,
habitantes de diferentes espaços do mundo aquático, terra/floresta e aéreo. Todo esforço dos
especialistas resulta no controle das doenças e desconfortos, no equilíbrio do mundo terrestre,
das relações cosmopolíticas e interpessoais.
90
Nesse sentido, kihti ukũse, bahsese e bahsamori são aprendidos diretamente com os
waimahsã nas suas casas durante a viagem dos especialistas humanos. Nessa comunicação, os
waímahsã também alertam aos humanos sobre grandes desastres ou acidentes que podem vir a
acontecer para que possam proteger-se com bahsese.
A continuidade da formação de um especialista inclui ainda o controle do desejo sexual,
a obediência às prescrições alimentares, o cuidado com o preparo da comida e ainda momentos
de isolamento social, exclusão das atividades de caça, de pesca e demais afazeres cotidianos.
Tendo passado todas as etapas, o jovem se torna especialista em um dos ofícios de yai,
kumu/bya.
91
1. Os cuidados do corpo
Os povos indígenas do Alto Rio Negro dão atenção especial aos cuidados do corpo,
principalmente via bahsese e uso de plantas medicinais para evitar a ação dos agentes de doatise
ou duhtitise e os ataques que causam o desequilíbrio da pessoa.
O cuidado com o corpo começa desde a concepção da criança. O período de gravidez
constitui uma fase de intensa atenção dos pais. Estes devem se submeter às regras alimentares,
à restrição de circulação pela floresta e pelos rios, evitar trabalhos considerados pesados, etc.
O objetivo central da conduta dos pais nesse período é evitar o desequilíbrio do seu
próprio corpo e garantir o desenvolvimento integral da criança no útero da mãe. Além do
cuidado dos pais, há também o acompanhamento do especialista, para garantir um parto sem
complicações.
Após o parto, o cuidado do corpo continua. Além da proteção contra os ataques dos
waimahsã, dois tipos de bahsese são fundamentais para os pais depois do parto: heriporã
bahsese e ba’ase bahse ekase. O primeiro corresponde à reorganização e equalização do corpo,
tanto dos elementos constitutivos do corpo, quanto da reconexão com as dimensões de forças
vitais. Os kumuã falam que o corpo sofre desiquilíbrio com a dor parto, sobretudo a mulher,
mas o homem também fica afetado.
Nesse período, o cônjuge também se submete ao ba’ase bahse ekase. Os especialistas
explicam que o corpo perde toda proteção das doenças e dos ataques dos waimahsã durante o
parto. Assim, alimentar sem submeter-se a ba’ase bahse ekase é um perigo depois do parto.
A prática desses dois bahsese incide em vários momentos da vida da pessoa, seja após
o parto, depois do poose com uso de kahpi, depois da dança de kahpiwaya, depois do uso de
instrumentos de miriã, depois da cura da pessoa de doenças graves, depois da primeira
menstruação, depois de um acidente, depois de cortes profundas, entre outros momentos.
Assim, o heriporã bahsese e ba’ase bahse ekase constituem os mais fundamentais dos
cuidados da pessoa, feito logo no começo da vida e durante o processo de vivência. A vida
saudável e o equilíbrio de uma pessoa adulta parece ser fundamentalmente resultado dessas
duas ações de bahsese.
Como a proposta deste tópico é apresentar os cuidados do corpo, tomo como ponto de
partida o bahsese de Ba’ase bahse ekase, considerado o primeiro momento mais importante de
cuidado e de tomada de independência do corpo da criança em relação ao corpo da mãe,
sobretudo em termos de alimentação.
92
A prática de ba’ase bahse ekase é feita pela primeira vez antes da criança começar a se
alimentar de carne, peixes, frutas, beijú, farinha, batata, isto é, depois da fase de aleitamento.
É uma prática obrigatória. Os alimentos são perigosos e podem causar uma série de doatise ao
corpo. Se, por ventura, a criança comer um alimento sem a devida ação do ba’ahsebahse ekase,
ela poderá ser acometida por diarréia, debilitação física, infestação de feridas e coceiras no
corpo, o que pode levá-la à morte.
No caso de adultos, alguns casos de doenças por consequência alimentar são chamados
de Baábokasé (Barreto, et al, 2018), sobretudo durante os momentos de maior vulnerabilidade
de vida, como no período de resguardo pós-parto, de resguardo durante a menstruação, depois
do uso de plumas nas cerimônias de poose, após o uso de kahpi, depois do contato com os
instrumentos musicais de miriã, durante a formação de especialista (yai, kumu, baya) e durante
a confecção de adornos. Em todos estes momentos, as pessoas devem ser submetidas ao ba’ahse
bahse ekase, também chamado de bia bahse ekase.
Baábokase é o desiquilíbrio do corpo com descuido na submissão de prática ba´ase
bahse ekase após o parto, depois do poose, com uso de kahpi, depois de uso de instrumentos de
miriã, depois da primeira menstruação.
Uma das recomendações mais relevantes é a moderação no consumo de alimentos
gordurosos, de determinados tipos de peixes, de carnes de caça e de frutas. Outra recomendação
importante é a restrição do consumo deassados. (Barreto, et al, ano).
Para os especialitas indígenas do Alto Rio Negro, limpar os alimentos, com água ou
com outros produtos, não é suficiente, é necessário fazer bahsese para torná-los livres da ação
93
(metafísica) dos agentes capazes de causar malefícios ao corpo. Caso contrário, os animais que
consomem ou visitam estes alimentos podem continuar aí presentes e assim agir sobre o corpo
humano, que se manifestará como doenças.
Na parte externa do corpo, as ações desses animais, segundo meu pai, o kumu Ovídio
Barreto, se manifestam como feridas, coceiras, queda de cabelo, amarelão, entre outros
sintomas. Nas partes internas, podem surgir males como “úlcera”, infecções e vários outros
problemas em órgãos como fígado, estômago e intestino.
Em resumo, na concepção dos especialistas, os alimentos são contaminados pelos
animais que, por sua vez, vão agir no corpo da pessoa que deles faz uso, devorando seu corpo
da mesma maneira como faziam com seus alimentos.
A moderação no consumo de peixe e de carne de animais de caça que possuem uhse
buhrã (termo que pode corresponder à gordura), tanto na fase de desenvolvimento da criança,
quanto na vida adulta, é necessária para evitar os baábokasé.
Segundo os kumuã, o uhse (gordura) pode dificultar o bom funcionamento do corpo, de
todos os seus órgãos internos. As consequências da quebra dessa regra são as mais variáveis,
como doenças equivalentes as “infecções internas”, estado de preguiça, sonolência, avolumação
do corpo, salivação excessiva, diarreia, entre outros.
Os mesmos problemas podem ser causadospelo consumo de frutas oleosas, tanto
aquelas do roçado quanto as silvestres, a exemplo do açaí, do patauá, do buriti, do umari, do
inajá, do ucuqui, cunuri e uacu, pois podem afetar o bom funcionamento dos órgãos internos
do corpo.
As frutas são bastante temidas pelos kumuã devido ao seu grande portencial de causar
doenças. Afirmam os kumuã que os animais que comem a fruta durante o seu processo de
amadurecimento, ou dos bichos que fazem a fruteira como sua morada, continuam a atacar
sobre o corpo. Essa noção é assim resumida por Ovídio Barreto: “os bicos estão comendo o
corpo, assim como comem as frutas, é por isso que surgem as doenças no corpo, na cabeça e
dentro da barriga. Podem causar doenças no útero, no fígado, na garganta, produzindo feridas,
coceiras e outras doenças”.
O consumo de alimentos assados e demasiadamente fritos também é considerado de alto
risco, uma vez que eles carregam o calor recebido. A concepção dos kumuã é considerar que
quando se come um alimento nesse estado é necessário pagar o fogo e que se faça o
abrandamento de sua temperatura por meio do bahsese.
O calor impregnado no alimento pode produzir um efeito de fermentação no corpo da
pessoa, aumentando assim sua temperatura.
94
Wai bahsekase
Õhpekõ sopo karãko sopo tari kharã,
Nare weri ñemeta uhpiri yabure, na
buhkurãre weri ñemeta uhpiri yabure, te
aburi wehtare wehta koewi nare wara
numirõtawi, uañekuwi wara numirota,
ñañrkuwi, nare barã – diatimia, yaiwa, ku
diatimi ahko sõari makhu, ahko buhtiri
makhu, ahko ñiri makhu, naye diro
mera whta sãpeowi, base seehkawi,
namarika bawihsi wetima na yaiwa
nisama, sõagu, buhtigu, ñigu, dorogu,
naye diro mera wehta sãpeo diro uhpu
weopeo dihowi, noõ namaikã bawihsi
wetima naye wamusamari yaseonukõ,
95
Tradução livre
Continuidade da fórmula:
Te kãrakõ sopo wiseri kharã ahpuã,
Õpekõ sopo wiseri kharã, na buhkurãre
Weri ñemetawi, uhpiri yaburewi, naye
Koewirõ marãwe wirowi, moãstiro
Yowe dihosami, kãrãko sopo wai, õhpekõ sopo wai,
Noõ nare amabari mahsã Kerã
Ba’awisi wetima, te nayeñemekari
Niãthemera base seehkawi, naye diro
Mera uhpu amesuo peo dihowi. (ISA, 2011, p. 96.).
Waikurã bahsekase
Nã waikhurãre baasama arã. A paku
Deyu, a pikõ yoa, wehse a, oho puri
96
Yukuduhka bahsekase
As festas de poose são grandes eventos sociais em que participam todos os membros da
comunidade, com tarefas a cumprir antes, durante e depois das cerimônias. Dependendo da
oferta que se propõe fazer aos anfitriões, envolve grupos que vão à coleta, à caça ou à pesca, e
também o preparo de caxiri, de tabaco e de ipadu, assim como “as ações preventivas e protetoras
de bahsese mediadas pelos especialistas, antes e depois dos eventos.” (Barreto, 2018, et al).
97
das festas de poose, das rodas de conversas de mulheres adultas. Além do cuidado do corpo via
bahsese, as mulheres também protegem seu corpo por meio de outras técnicas, como aponta
Pereira:
Ao pai fica proibido de fazer trabalho que exija esforço físico, tais como:
carregar peso, cavar minhoca para pescar, cortar a sororoca, bananeira entre
outros. Qualquer esforço físico do pai prejudica o bebê, podendo levá-lo à
morte, porque se subentende que o corpo do bebê é ligado tanto na mãe como
no pai, e há preocupação com seu bem-estar. Caso o pai, por exemplo, cave
minhoca no período de resguardo, o phoniangan passa a expelir a língua
constantemente, o que o deixa num total desconforto e pode levá-lo a morte.
(PEREIRA, 2013, p. 55).
considero uma anormalidade pelos povos indígenas do Alto Rio Negro. Gerar duas crianças ao
mesmo tempo significa um “pecado capital” para os povos indígenas do alto Rio Negro. Os
pais são julgados pelo descuido que tiveram com a alimentação, seja no consumo de frutas, de
caça ou de peixes. Por isso, ao saber da gravidez, o cônjuge deve se submeter-se ao bahsese
para que o filho não seja afetado por essa característica das frutas geminadas.
Quando isso acontecia, o fato era associado ao duhise. Ou seja, duhise:
Uma das indicações para evitar o duhise é: “Não comer essas frutas geminadas (duas
frutas) – banana (hóo suruake), cará (yamu suruake), umari (suruake) – pois terás filhos
gêmeos”. (Idem, p. 116).
Outro risco é, se uma mulher, durante o período de gravidez, consumir algum alimento
sem adotar os devidos cuidados, pode ocorrer grande possibilidade de gerar uma criança com
características semelhantes aos animais que a pessoa consumiu, como a cor de sua pele, sua
orelha, os dedos, a cabeça, os pés, etc. Isto também é entendido como duhise. O protocolo mais
importante para evitar todos esses desagrados é submeter-se ao bahsese de ba’ase bahse ekase.
Como foi apresentado anteriormente, o cuidado do corpo após o nascimento começa
com o heriporã bahsese da criança, e o segundo momento é o ba’ase bahse ekase. Entre essas
práticas mais relevantes existem outras de cuidado do corpo pela mãe.
Para o aleitamento, a mãe deve cuidar do corpo para produzir leite que não contamine o
corpo da criança. O primeiro cuidado é a restrição alimentar: evitar comida assada, quente,
gordurosa, evitar relação sexual por um período, pois o contato do corpo da criança com o corpo
da mãe pode causar problemas que podem comprometê-la. Assim, o bebê, nos meses iniciais
de sua vida, precisa de muita atenção dos pais, além de ser acalentado, banhado, alimentado.
Segundo Pereira (op. cit.):
recolhidos para serem aplicadas pelos pais ou avós da criança. Como, por
exemplo, as folhas da planta “irapoquinha” são retiradas e com elas bate-se
nas perninhas e dá banho no bebê, esse procedimento estimula que os bebês
apressem a dar os primeiros passos (ande rápido). (PEREIRA, 2013, p. 56-
57).
Quando passa da fase de aleitamento para a fase de alimentação sólida, o regime de dieta
ainda fica sob os cuidados dos pais. Os alimentos gordurosos, peixes grandes e carne de caça
de grande porte são evitados para garantir o desenvolvimento do corpo da criança com
equilíbrio. De igual modo, o assado e a comida quente são reprováveis para esta fase de início
na alimentação. Há gradual inserção de variados tipos de alimentos até a fase em que aos poucos
a pessoa começa a participar indiretamente das atividades públicas.
O cuidado do corpo, além da dieta, que inclui também os novos membros da unidade
social, é acompanhado com a prática de banho matinal, limpeza do estômago e ingestão de
sumo de pimenta via nasal. Tradicionalmente, essa fase culminava na inserção à vida adulta,
ou na primeira menarca da moça, fase que é interpretada como a maturação sexual dos jovens.
Nessa fase da vida, é dada atenção especial pelos pais e pelos especialistas aos novos
membros, por considerar que são estes cuidados do corpo que possibilitam desenvolver as
habilidades de aprendizagem para a formação de novos especialistas. A noção de idade entre
seis a quinze anos é considerada uma fase importante para o processo de formação de
especialista. Nessa linha de raciocínio, Pereira (2013) também registra:
Os kírtí são diversos e bastante narrados quando somos crianças. São usados
para compreendermos as relações entre nossos contextos, o das matas e todo
nosso ambiente. São criados em variados espaços, como nas pescarias, nas
caçadas, coletas de formigas, fibras, retiradas de barros para confeccionar
cerâmicas etc. São contadas e recontadas quando estamos na faixa de cinco a
dez anos. Através dos kírtí rimos e recebemos diversos conselhos que são a
base de quem somos quando adultos/velhos. (PEREIRA, 2013, p. 76).
Primeiro, os especialistas consideram que o corpo dos jovens, nessa fase de crescimento,
ainda não sente o desejo de namorar e ter relações sexuais, deixando essa curiosidade de lado e
dedicando-se à aprendizagem dos Kihti ukũse, bahsese e bahsamori e outros conjuntos de
conhecimentos importantes para a vida social.
As experiências vividas nesse período são fundamentais para a inserção na vida adulta,
no caso dos meninos, à formação em uma das especialidades – yai, kumu ou baya, e no caso
das meninas, a preocupação é igual, ou seja, garantir desenvolvimento integral para assumir
a vida adulta.
103
Nesse período, a relação sexual é considerada de alto risco pelos especialistas, pois pode
comprometer a futura formação de um especialista. O contato com o sexo oposto pode
comprometer a habilidade de aprendizagem de Kihti ukũse, bahsese e bahsamori.
O cuidado do corpo e a qualidade da alimentação resultam na habilidade de
aprendizagem, seu domínio e suas práticas. Assim, há uma insistência de dedicação especial do
cuidado do corpo nessa fase.
Além das fórmulas canônicas de ba’ase bahse ekase, o contato cada vez mais com o
universo fora das comunidades ou aldeias faz com que os especialistas também incluam no
ba’ase bahse ekase novos hábitos alimentares como arroz, macarrão, feijão, café, leite, bolacha,
carne bovina, frango, sardinha enlatada, conserva, e tantos outros alimentos que antes não
faziam parte da cadeia alimentar dos povos indígenas do Alto Rio Negro.
A argumentação de Rodrigues (2019) faz muito sentido quando passamos a considerar
as preocupações dos especialistas, na medida em que:
Dor de cabeça, nós não tínhamos, o cara imagina, tenta acalmar a pessoa,
muita gente usa a vida de Jesus Cristo, foi colocado a Coroa de espinho, o
benzedor tira essa coroa e tira essa dor. Se você pega um golpe de terçado, o
benzedor, pra nós não tinha terçado, ele procura esfriar todos os materiais de
metal, porque essa dor é fogo, ele tem que apagar todo material de ferro, cobre,
tudo que foi feito de fogo. De bala é a mesma coisa, o cara tem que usar do
branco. O benzedor acompanha o mundo. (João Pedro (2015), apud
Rodrigues, 2019, p. 187).
Além de uma conceituação bem definida sobre o corpo humano como resultado de
junção de tipos de kahtise (vidas) e sua potência, os especialistas indígenas ainda tem uma
noção bem clara dos ataques sobre o corpo por agentes externos.
Isso funciona como um manual para diagnosticar os desconfortos, doenças,
consequentemente, para lançar mão de fórmulas de bahsese para cada caso, seguido de
orientação de tempo de tratamento, dieta e abstenções.
Conforme os especialistas indígenas, no transcorrer da construção do mundo terrestre,
os oãmahrã protagonizaram inúmeros acontecimentos que deram origem a diversas coisas e
seres, desde a organização do cosmo, as paisagens, até o surgimento de humanos.
Uma parte de tais conjuntos de kihti ukũse são as referências das quais os especialistas
extraem explicações sobre os desconfortos e doenças, ao mesmo tempo, extraem delas as
fórmulas de cura e cuidados da pessoa via bahsese.
Algumas passagens de kihti ukũse que aparecem como “modelação” do corpo humano,
além de dar forma (aparência), estão diretemente relacionadas como causa de dores no corpo e
seus respectivos bahsese. Daí a impôrtancia de ter bastante claro as ações projetadas sobre o
corpo humano pelos oãmahrã.
No primeiro momento, o corpo humano, enquanto resultado de kahtise (tipos de vidas),
representado por Yepa oãku, oferece a ideia de um “corpo bruto”, sem muitas formas e funções
105
para viver sob a nova realidade do mundo terrestre. Desse modo, a ação dos oãmahrã sobre o
corpo foi dar forma, para viver no novo mundo terrestre recém construido.
O fato de oãmahrã não terem o corpo definido, isso não quer dizer que não possuíam
formas de sociabilidade, intencionalidade, desejo, vontade, ação e protagonismo. Segundo meu
pai, o kumu Ovídio Barreto, os oãmahrã estavam sob outras formas e outra realidade. Tinham
todas as condições de viverem como “semi-deuses”, eram Gente do Universo (Ʉmukori
bahsoka). Não havia ainda diformismo sexual. Eram duas irmãs e dois irmãos” (Andrello,
2012). Não ficavam presos ao mundo recém-construído, eles transitavam entre os três mundos,
ou seja, o mundo primordial superior, o mundo primordial inferior e o mundo terrestre.
As ações dos oãmahrã, dando formato de corpo masculino e corpo feminino, tiveram
suas consequências e riscos, como dizem os kumuã, existem as doenças dos homens e as
doenças das mulheres.
Dessa maneira, nosso ponto de partida nesse tópico do capítulo é a análise de kihti ukũse
para dar uma visão geral sobre a noção de doatise do corpo. Os fragmentos de kihti ukũse
descritos a seguir estão dentro de outros Kihti ukũse mais estruturantes, maiores e mais
complexas.
menos importantes, como as origens das afecções, o cuidado com o sopro das trompetes, as
etiquetas comportamentais e os cuidados do corpo para o uso dos instrumentos.
O objetivo nesse tópico é extrair desse kihti ukũse a complexa explicação sobre a
aparência dos braços masculino e feminino, como resultado de uma modelação do corpo. Essa
kihti ukũse é bastante longa, com muitos detalhes, mas aqui será tomada apenas uma parte
introdutória, apresentando um recorte das partes que interessam a este trabalho.
Antes, é bom deixar claro que essa kihti ukũse é contada de diferentes modos por cada
narrador de um grupo social ou às vezes de uma unidade social a qual o narrador pertence.
Entretanto, o objetivo é o mesmo, isto é, ensinar. Assim, o interesse de dominar diversas versões
pelos especialistas não está no “juízo” de detalhes e de coerência, mas nas informações de
bahsese que se pode extrair a partir das versões de cada grupo.
As variações, portanto, são riquezas que fazem parte da construção de conhecimento
prático do ponto de vista dos especialistas.Nesse tópico, o fragmento ora apresentado é a versão
do kumu Ovídio Barreto, do povo Yepamahsã (Tukano).
Muitas dores e a sensação de dormência dos braços são explicadas a partir dessa chave
pelos especialistas. De acordo com a concepção dos Pamurimahsã e Ʉmukorimahsã, o trompete
é ser vivo, dessa maneira quando algo é introduzido na cavidade ele pressiona o braço, como
107
uma cobra faz com sua presa. Essa ação é que produz as dores e dormência nos braços das
mulheres.
Outra noção que causa as dores é o movimento produzido para a confecção dos
instrumentos. O movimento se refere à ação produzido para retirar a parte da “massa” da
paxiuba, utilizando uma vara com ganchos. Seu movimento de colocar a vara para a retirada da
massa é transportado para explicar as causas das dores. O papel do kumu é justamente desfazer
o movimento para abrandar a dor.
Não desistindo do objetivo, as mulheres passaram a pedir orientação a todos os seres
que passavam no porto. Tendo aprendido a tocar, com a ajuda do pássaro jacundá, após a
negação de todos os outros seres, as mulheres passaram a ocupar o espaço masculino,
promovendo poose e utilizando os instrumentos miriã. Elas passaram a promover os poose em
qualquer período e de qualquer jeito. Conforme o kumu Ovídio, as mulheres faziam poose até
de folhas entre elas. Isso acabou gerando o desiquilíbrio das relações cosmopolíticas e
interpessoais.
A relação cosmopolítica ficou comprometida devido à desorganização que causavam as
práticas de poose. Os waimahsã, responsáveis dos lugares e das coisas começaram a ficar
raivosos por práticas de poose fora das épocas e com sua banalização. Também houve
desiquilíbrio dos períodos de constelação, consequentemente, levando ao desiquilíbrio de
bioindicadores e aos surgimentos de muitas doenças.
O desiquilíbrio dos períodos de constelação e surgimento de doenças até então
desconhecidas, fez com que os especialistas se acusassem entre si de uhsero pehtise
(feitiçarias), fato que colocou à beira de grandes conflitos.
O desequilíbrio causado pela realização descontrolada de poose fez desencadear uma
série de conflitos entre todos os oãmahrã, causando o desiquilíbrio dos fenômenos naturais e
dos “bioindicadores” de tempo. Com o desiquilíbrio da natureza, surgiram vários fatos
anormais, como a febre (malária), ataques de cobras venenosas, ataques de cobras grandes,
mortes súbitas, acidentes fatais, entre outros fatos.
Dessa maneira, os homens viram a necessidade de retomar os instrumentos para seu
domínio. Durante o tempo que os instrumentos ficaram sob poose das mulheres, ocupando os
espaços dos homens, de promoção de poose, de circulação de conhecimentos, de cantar
kapiwaya, de tomar kahpi, os homens passaram a ocupar o espaço feminino, realizando as
tarefas domésticas propriamente de mulheres. Passaram a se dedicar aos cuidados dos roçados,
ralar mandioca, fazer beiju e fazer caxiri, cuidar da quinhapira e cuidar da casa.
108
No tempo de vivência na casa, Buhtuyari oãku teve relação sexual com a avó Amó sem
o seu consentimento. Entretanto, o orgão genital da Amó era infestado de animais peçonhentos.
Como vingança, Amó fez os animais atacarem o violador, que viu seu pênis triplicar, o que o
obrigou a carregá-lo sobre os ombros, passando a viver sob vaias e fofocas dos seres que os
circundavam. Sentia-se humilhado, impotente e deslocado do convívio social. Para os
especialistas, muitas doenças podem sugir pelas relações sexuais. Assim, antes da vida
conjugal, os casais se submetem primeiro ao bahsese para mitigar os riscos.
Buhtuyari oãku andou por muito tempo vagando pela mata à procura de remédio, mas
sem sucesso. Cada dia que passava, ficava mais triste e sentia muita dor. A avó Amó, por mais
que soubesse do remédio, recusava-se em atender seu pedido de cura.
Certo dia, durante uma pescaria no igarapé, encontrou os peixes acarizinhos presos por
uma barreira. Vendo os peixes, começou a jogar a isca, mas estes não caíam na sua armadilha.
Ficou por algumas horas jogando iscas, sem sucesso. Num dado momento, viu duas pessoas
pequenininhas se aproximarem pela suas costas, que eram acarizinhos na forma de “pessoas”.
Os três passaram a conversar, mas os visitantes riam quase sem parar ao ver o estado fisíco de
Buhtuyari oãku. Entretanto, durante as conversas, ambas as partes foram descobrindo a história
de um e de outro.
Depois de uma longa conversa, firmaram um acordo, os seres peixinhos decidiram curar
de Buhtuyari oãkuã, usando plantas medicinais. Mas, antes, Buhtuyari oãku teria que desarmar
a barreira para livrá-los. Feito o acordo, os seres acarazinhos sumiram pela mata. O herói
cumpriu o acordo, e ficou aguardando gente acarazinho aparecer. Quando ele estava por
desistir, eles apareceram. Conversaram novamente com Buhtuyari oãku no tom de
agracedimento, em contrapartida ouviram a cobrança do herói. Mas eles carregavam uma
porção de remédio escondida.
No momento exato, gente acará pediu ao “paciente” para tirar o pênis do ombro, ficar
sentado e atento. Antes de passar o remédio, orientaram ao “paciente” segurar com as mãos o
orgão sexual anormal no tamanho exato em que ele pretendia tê-lo. Levando a sério a
recomendação, Buhtuyari oãku segurou cobrindo uma parte na medida do alcance da palma da
mão. Em seguida, gente acará pingou o remédio sobre o pênis. A reação foi de retração súbita,
parando no ponto que estava coberto pela mão. Todos caíram na risada, e o “paciente” estava
curado.
Os kumuã extraem desse Kihti ukũse as explicações sobre alguns doahtise que afetam
essa parte do corpo do homem. Uma delas é doença chamada de wahsomehã (doença similar a
gonorréia).
110
Os pequenos “tumores”, as coceiras e as feridas que surgem nessa parte são explicadas
a partir dessa chave da narrativa. Outra situação é o risco do vício e do descontrole de apetite
sexual. Segundo os kumuã, os jovens recém-casados devem se submeter ao bahsese para manter
o equilíbrio do desejo sexual.
O controle e a abstinência sexual são partes necessárias para produção do corpo capaz
de estar aberto à aprendizagem de kihti ukũse, bahsese e bahsamori e à capacidade de
memorização.
Daí a exigência aos jovens e neo-casados de passarem pelo processo de bahsese, para
evitar os transtornos que o apetite sexual pode causar ao corpo. Suas consequências surgem
como vihcise do rapaz, preguiça, sonolência, incapacidade de memorização, azar na caça e na
pesca, entre outros, causando o desiquilíbrio do corpo.
Sobre algumas doenças que afetam o orgão sexual feminino, os kumuã extraem a
explicação a partir de um Kihti ukũse que conta sobre uma das história do Desubari oãku.
Extraído de um Kihti ukũse maior, a seguir ilustramos um recorte sobre a modelação do
corpo de misimahsõ (mulher-cipó) por Desubari oãku, com quem casou futuramente.
Aconteceu que o Desubari oãku, mesmo sendo um ser com poderes especiais, levava
uma vida de “solteirão” com idade avançada, de modo que seus pares debochavam dele,
cobrando que se casasse. Cansado de ouvir os comentários, o herói decidiu procurar uma
mulher, mas não encontrava nenhuma à disposição. Com isso na cabeça, tocava seus afazeres
cotidianos, de caçar, de pescar, cuidar do roçado, tecer cestarias, entre outras atividades.
Visto que não encontrava mulher entre seus pares, o oãku, então, decidiu lançar mão de
bahsese para tal intento. Andou um bom tempo fazendo bahsese sem sucesso, mas tinha certeza
de que em algum momento daria certo e não desistiu da ideia de construir uma vida conjugal.
No tempo remoto, segundo os kumuã, para encontrar uma esposa, os rapazes, muitas
vezes, se submetiam ao bahsese, com intuito de transformar-seem uma pessoa bonita aos olhos
da pretendente, além do porte corporal, ou mesmo usar planta medicinal de sedução.
O casamento que envolvia o “rapto” da mulher era precedido de bahsese, além de
conversas prévias entre os genitores. Conforme os especialistas, depois do rapto, para
permanência da jovem para o convívio conjugal, também se fazia bahsese. A fórmula de
bahsese se chama bahsese yaka õse.
111
Certo dia, no momento em que trabalhava extraindo talas de arumã à beira do rio, onde
era seu porto de banho, Desubari oãku foi incomodado pela ferrada de um mosquito carapanã
nas suas costas. Por várias vezes tentou atingi-lo sem sucesso. Depois, presentiu que aquilo era
mais que uma ferrada de inseto, pois não era tão parecido com uma ferrada de carapanã. Logo
que este escapava de sua investida para matá-lo, ouvia um discretíssimo sorriso de mulher vindo
da mata a dentro. Com o sinal, Desubari oãku ficou mais atento na ferrada em seu corpo.
A partir daí, toda vez que o carapanã o ferrava e ele tentava matá-lo, olhava para trás,
para se certificar se havia alguém lhe provocando, mas não via ninguém por perto. Após várias
investidas, o herói decidiu ver através deeõrõ (um tipo de espelho), em vez de tentar matar e
olhar para trás. Nisso, viu uma mulher muito bonita por trás dele, mas quando virava para olhar
não via ninguém, a não ser um som baixíssimo de sorriso de mulher sumindo pela mata.
Lançando mão de bahsese, inferiu que aquele som poderia vir de um de cipó pendurado na
árvore dentro da mata.
Como estratégia para descobrir, Desubari oãkuse apropriou-se das qualidades do bicho
carapanã e passou a ferrar os vegetais. Após algum tempo de investida, deparou-se com uma
moita de cipó pendurada numa árvore. Aproximando-se, passou a testar, ferrando um por um.
Uns eram cheios de nós, outros de curvas, outros eram grandes demais; mas no centro da moita,
Desubari oãku encontrou um cipó bem viçoso, sem nó, sem curvas e diferente de todos os
outros. Entusiasmado com as qualidades do cipó, colocou em ação o seu teste, e este reagiu
tremendo discretamente. Em seguida, livrando-se das qualidades de carapanã, retirou o cipó da
árvore com bastante cuidado, separando-o da moita, levou e deixou próximo de sua casa à
escondida.
Em certo momento, enquanto trabalhava extraindo talas de arumã, sentiu alguém
apalpar com a mão no seu ombro. Quando virou, viu uma linda mulher sorrindo-lhe,
imediatamente levantou e a abraçou. Ficou muito feliz com o seu feito e levou-a para sua casa.
Apesar da beleza, Misimahsõ não possuia o órgão genital, e o herói teve que modelar o
corpo da mulher. Para isso, Desubari oãku, auxiliado pelo seu irmão menor, teve a ideia de
realizar uma pescaria utilizando a armadilha feita de fibra de tucum, chamado puçá, que é um
instrumento portátil. Arquitetada a técnica de pesca, os dois irmãos partiram para lançar a
armadilha na foz dos igarapés, levando consigo Misimahsõ como convidada especial. O
objetivo dos oãmahrã não era a pescaria em si, mas criar um canal de nascimento de criança no
corpo da mulher, chamado de nihisohpe, por meio de perfuração com o choque do peixe.
No primeiro lance, Misimahsõ foi atingida por um peixe waisõsorõ, que pulou para se
livrar da armadilha e chocou-se com ela, perfurando-a entre as coxas. Esse incidente deu origem
112
ao órgão sexual feminino. Vendo a mulher sendo atingida, os oãmahrã passaram a cuidar dela,
tendo certeza de que tinham alcançado seu objetivo. Fizeram bahsese para evitar hemorragia e
abrandar a dor, usando uma bucha de sabão vegetal. A bucha tranformou-se nos pelos pubianos
da mulher.
A perfuração no corpo deu origem a uma série de desconfortos referentes ao corpo da
mulher, sobretudo ao órgão genital. Dessa maneira, para os especialsitas, esse fragmento de
kihti ukũse é a base de formulação de bahsese para o novo casal; bahsese para primeiro parto
da mulher e para a reorganização do descontrole menstrual.
O kihti ukũse sobre o roubo de miriã também é outro modelo de explicação sobre as
doenças do orgão genital feminino. Aconteceu que, durante o ataque para a retomada dos
instrumentos que estavam sob a poose das mulheres, uma delas, sabendo a razão do ataque,
conseguiu esconder o instrumento no interior do seu canal genital, introduzindo-o à força, o que
acabou por causar ferimento, dando origem ao sagramento e à hemorragia. O fato deu origem
a diversos tipos de doenças referentes a essa parte do corpo feminino – hemorragia menstrual,
coceiras, feridas, tipos de tumores que aparecem nessa parte do corpo. Dessa referência, os
kumuã extraem os bahsese para cuidar desses casos.
A relação sexual é entendida pelos kumuã como ato de introdução de instrumento sólido,
capaz de provocar lesões no canal feninino, chamado de nihisohpe (porta de saída da
criança).Como qualquer instrumento sólido, o orgão sexual masculino é sujeito à contaminação,
sobretudo com as qualidades do vegetal para confecção de instrumento de miriã, como a
substância de provocar coceiras na pele e no canal.
Os bichos que fazem o vegetal como seu habitat, também entram no rol da
contaminação. Os especialistas dizem que as formigas, além de fazer seu habitat, ao se
alimentarem dos seus musgos (entre outras coisas), contaminam com sua saliva o vegetal.
Fazer bahsese é limpar as substância que provocam coceiras, neutralizar a ação dos
bichos, e invocar substâncias curativas para prevenir ou para curar os tumores, as lesões e as
coceiras.
As doenças dos seios são de grande preocupação dos especialistas. Foi em meio a essa
preocupação que um dia o kumu Manoel Lima contou o Kihti ukũse que explica a origem das
doenças dos seios da mulher, conforme segue abaixo.
113
Aconteceu que uma mulher de um determinado grupo exogâmico ficara viúva quando
ainda tinha um filho pequeno. Enquanto ela levava a vida, entre o roçado e o namoro, a criança
vivia suja entre a areia do entorno do fogo da casa. Por muito tempo, a criança viveu sob essa
condição, até que um dia os Diapatuamahsã (gente-patos), que estavam em viagem para visitar
Amo buhkuo, na cabeceira do rio, pararam no lugar para uma visita de cortesia à mãe da criança,
sabendo que ela estava viúva.
Encontraram na casa somente a criança sujinha à beira do fogo. Ficaram revoltados com
a mãe, diziam que a criança não merecia estar sob estas condições, suja, com fome e
abandonada. Perguntaram por onde andava sua mãe e deram conta de que ela estava no roçado
ou namorando.
Com pena, os Diapatuamahsã decidiram cuidar da criança, levaram-na ao rio, deram
banho com bucha de sabão vegetal, e a criança ficou bem limpa e cheirosa. Depois, passaram a
brincar com ela de arco e flecha e, em seguida, sabendo que sua mãe logo retornaria, passaram
a colocar adereços no seu corpo, como se fosse participar de uma grande festa de poose com os
adultos.
A criança ficou linda com os adereços. Depois armaram a criança de arco e flecha,
incentivando-a a se vingar de sua mãe. Nas pontas das flechas, passaram vários tipos de veneno,
entre eles o veneno da pimenta. Feito isso, foram ao encontro de sua mãe. Ao ver a criança
toda bonita se aproximar da casa, a mãe saiu alegre: “meu filho, como você está bonito!”
Abraçando, o carregou. Nesse momento, a criança deferiu o golpe de flecha nos seus seios.
Imediatamente, ela caiu desmaiada de tanta dor. A vingança estava feita. Mas, gente-patos
fizeram bahsese de neutralizacão do veneno e ela se recuperou.
Os kumuã contam que nos dias atuais, doatiseque atingem os seios podem se originar
de várias maneiras, isto é, com a mordida ou o toque brusco da criança, por uma batida
inesperada, ou por qualquer outro incidente.
Para os kumuã essa história é a base para se articular o bahsese de intervenção para os
problemas dos seios. O processo de bahsese consiste na invocacão de substâncias vegetais que
combatem a ação do veneno, na extração das pontas das flechas nele impregnadas, na limpeza
do veneno das flechas e na invocação de substâncias curativas contidas nos vegetais.
Assim, os desconfortos dos seios, na concepção pamurimahsã e ʉmukorimahsã, é
compreendido na chave de flechada. Qualquer movimento, seja de toque brusco, um murro e
batida da criança que atinge os seiosé entendido como “flechada”.
114
Muitas são as Kihti ukũse que explicam a origem dos “tumores” no corpo. Uma delas é
aquela que conta a história dos oãmahrã Desubari oãku e Yukadiro mahsã (gente urubu). A
história é longa, com conteúdo de dados morais e indicativos de fórmulas de bahsese, mas aqui
será reproduzido apenas um recorte que explica a proposta desse tópico.
Desubarioãku casou-se com Yuka diro mahsõ (mulher urubu). Seres urubu moravam no
espaço aéreo, no lugar chamado “casa das estrelas”, mas continuamente vinham para o patamar
terrestre para alimentar-se dos restos mortais de animais. Um dia, Desubari oãku, enquanto
construía sua armadilha de pesca no pátio da casa, viu, a uma longa distância, um grande
número de urubus sobrevoando sobre um local que ele conhecia bem. Desconfiado, no dia
seguinte foi ver o local e encontrou uma linda jovem enterrada, mas com o rosto descobeto, era
Yuka diro mahsõ. Livrando-a da cova, Desubari oãku cuidou dela e um tempo depois casou-se
com ela.
Os urubus foram contra a vida conjugal dos dois, e fizeram de tudo para separar o casal.
Um dia, eles conseguiram levar Yuka diro mahsõ para seu domínio. Sabendo de suas intenções,
Desubari oãku viajou para a casa de Yuka diro mahsã, transformado/travestido em Peogu
(Hupda) para ludibriar os parentes da mulher, pois era uma estratégia para disfarçar seu
verdadeiro corpo, dado que os Yuaka diro mahsã não gostavam dele.
Quando ele chegou na casa dos Yuka diro mahsã, ninguém o reconheceu, achavam que
se tratava de fato de um Peogu procurando serviço para trocar arfetafos que precisava com seu
trabalho.
O visitante chegou no momento em que os Yuka diro mahsã se preparavam para viajar
até a Cachoeira do Veado para uma pescaria de piabas. Isso era o que eles diziam, mas na
verdade, iam atrás das larvas que devoravam o corpo de um bicho morto que estava no entorno
da cachoeira.
Com a notícia, antes da partida, espertamente Desubari oãku pegou uma porção de
barro, fez uma bolinha, fabricou uma abelha ferrão. Em seguida, discretamente, lançou a abelha
na direção da mulher acertando na parte lombar do corpo. O ferrão da abelha deu origem a um
tipo de tumor que geralmente surge nessa parte do corpo.
Os especialistas dizem que ele é bastante dorido, e requer cuidados especiais, como o
acompanhamento intenso do especialista, abstinência sexual e uma orientação no consumo de
alimentos.
115
Os parentes gente urubu, quando perceberam isso, e vendo Yuka diro mahsõ sofrer de
dor, consentiram que ela ficasse em casa sob cuidados do Peogu, porque não poderiam cancelar
a viagem para não perder a temporada de larvas.
Depois que eles partiram, Desubari oãku cuidou da mulher, fez bahsese para abrandar
a dordo tumor. Após várias sessões de bahsese por vários dias, a mulher ficou curada do tumor.
Até esse momento, a mulher não sabia que o Peogu era seu próprio esposo disfarçado.
Para se livrar da aparência de Peogu, em um certo momento, o visitantedisse à mulher que ia
tomar banho. No meio do caminho para o rio, parou e retirou sua roupa de disfarce e jogou para
a mata.
Quando ele voltou do banho, a mulher viu que era seu próprio esposo, ficou surpresa,
mas feliz. A partir daquele momento, começaram a aventura de volta para a casa do Desubari
oãku.
Como já foi dito anteriormente, os bahsese são fórmulas “metaquímicas” manipuláveis,
Aquele que sabe os bahsese, pode manejar ou manipular as fórmulas.
As dores nas costas encontram uma das explicações no Kihti ukũse que contam dos fatos
vividos entre Buhtuyari oãku e Bossepirõ. A trama contém muitas informações, é carregada de
regras morais, de etiquetas comportamentais, de origem das coisas, origens das malícias da
mulher e dicas de bahsese. Nesse tópico, será apresentado um fragmento que se refere à origem
das dores nas costas.
O herói Buhtuyari oãku estava casado há algum tempo e acreditava na fidelidade
conjugal da mulher. Enquanto ele dedicava-se ao roçado, ou a colher folhas de ipadu, sua esposa
dedicava seu tempo ao banho no rio, com a intenção de namorar com Bossépirõmahsu (gente-
cobra). Toda vez que chegava na beira do rio, a mulher colocava a cuia grande virada para a
lâmina da água e batia sobre o objeto produzindo um som de convite ao amante, que morava
no lago, logo abaixo do porto.
Ouvindo o som, seu namorado vinha ao seu encontro, tirava a roupa de cobra e mantinha
relação sexual com ela. Um dia, avisado pelo pássaro Kaiaro, Buhtuyari oãku soubeda
artimanha de sua esposa e, durante sua colheita de folhas de ipadu no roçado, resolveu matar o
concorrente.
116
Entre nós, povos indígenas, os animais participam da interpretação dos fatos cotidianos.
Entretanto, segundo os especialistas, para interpretar é necessário o domínio da linguagem dos
animais para distinguir entre uma manifestação normal e uma manifestação de toque de aviso,
ou de alerta.
É bom ressaltar que somente certos animais são tidos como portadores de sinais ou
presságios, tais como cobra cega, pássaro kairo, pássaro dihtiro.
Fingindo ir ao roçado, Buhtuyari oãku ficou de tocaia no porto. Como de praxe, a mulher
procedeu com o rito de sempre. No momento em que eles mantinham relação sexual, numa
posição em que ele ficava por cima dela, Buhtuyari oãku deferiu o ataque com a zarabatana,
cujo dardo envenenado acertou o homem bem na parte inferior da espinha dorçal, perfurando
seu corpo e atingindo também a parte do genital da mulher. Deferiu por duas vezes, matando
seu rival.
A referência da explicação sobre as origens das dores nas costas pelos especialistas
perpassa por esse kihti ukũse. As dores são consequências do veneno utilizado no ponto agudo
do dardo. Para abrandar, é necessário neutralizar o poder do veneno via bahsese e ortiga,um
tipo de gel natural. A mulher também sofreu as consequências: como foi atingida, ficou com
sequelas, que deu origem a um tipo de tumor em suas partes íntimas.
A chave de leitura sobre as origens das afecões nessa parte da tese não é muito diferente
das autoras que estudaram essa temática entre os grupos do Alto Rio Negro, como Dominique
Buchillet que se dedicou à pesquisa entre os Dessana, e Luiza Garnelo, que realizou pesquisas
entre os Baniwa.
Na obra intitulada “Los Poderes del Hablar”, Dominique Buchillet destaca que:
está ligada à sua cosmologia, sendo que o sistema de cura repousa no xamanismo, uso de plantas
medicinais, como também nos medicamentos industrializados.
Os eventos de doenças, segundo a autora, podem ser ordenados em três grupos:
Assim, as autoras mostram que as bases de entendimento sobre as doenças entre os dois
grupos assentam-se nos Kihti ukũse, o que significa dizer que a natureza e o cosmos participam
da interpretação das afecções entre os povos indígenas, nesse caso, Dessana e Baniwa.
Como disse antes, o desenvolvimento e objetivo do tópico não diferem destes trabalhos
desenvolvidos pelas autoras e demais pesquisadores antropólogos que se debruçaram sobre o
118
assunto. A diferença está em apontar que este é o protoloco dos especialistas para diagnosticar
as doenças para lançar mão de bahsese e remédios a base de plantas medicimais.
Os especialistas, como principais mediadores dessa relação, estão atentos e sabem que
os waimahsã são capazes de deferir todo tipo de ataques sobre os humanos, utilizando qualquer
elemento ao seu alcance, chamados de behsu. Para sua defesa e ataque, os waimahsã podem
utilizar qualquer elemento, bem como os animais à sua disposição.
Os behsu dos waimahsã do espaço aéreo, por exemplo, podem ser o vento, a corrente
de temperatura, a chuva, raios e trovões (Barreto et al, 2018). Potencializando tais elementos
para além da força de sua destruição, os waimahsã podem deferir ataques sobre o corpo usando
tais meios.
Os behsu dos waimahsã do espaço terra/floresta também podem ser qualquer elemento
vegetal. Para a vingança, os waimahsã deste domínio podem utilizar os vegetais e as qualidades
dos animais, bem como também podem utilizá-los para sua defesa. Os behsu dos waimahsã do
espaço aquático podem ser a própria água, suas cores, ondas e banzeiros, ou seja, “os waimahsã
que habitam o espaço ahkopati usam principalmente os peixes, cobras (sucuri, coral) e a própria
119
Essa temática sobre os fluidos corporais e seus sentidos para os povos indígenas não é
novidade na etnologia, muitos pesquisadores, por exemplo, se dedicaram acerca da ligação do
“sangue” com a noção de pessoa. Dentre eles podemos citar, com base no trabalho de Belaunde
(2006), C. Hugh-Jones, 1979; Albert, 1985; Brown, 1985; Crocker, 1985; Lima, 1995; Reichel-
120
Dolmatoff, 1997; Karadimas, 1997; Goulard, 1998; Surrallés, 1999; Guzmán, 1997; Conklin,
2001; Gonçalves, 2001; Belaunde, 2001; Rodgers, 2002; Garnelo, 2003; Colpron, 2004).
Dessa maneira, o ponto acrescentado aqui é mais uma contribuição dessa complexa
concepção acerca do fluido menstrual e do parto pelos povos indígenas do Alto Rio Negro.
A obrigação de pais, mães e avós é orientar as moças, ou mesmos as mulheres casadas,
que o período de menstruação, o tempo da gravidez e a hora do parto são as ocasiões mais
perigosas de suas vidas, mas também da vida dos seus cônjuges. Isto acontece por causa da
emanação sanguínea da mulher. Todo cuidado deve ser tomado para preservar a integridade da
mulher. Em caso de gravidez e parto, inclui-se também a criança e o esposo.
As orientações vão desde restrições de atividades que exigem esforço, à alimentação e
à circulação nos ambientes fora do espaço de reclusão, como sair de casa para ir ao roçado sem
a devida proteção. Tudo isso é para poupar a mulher menstruada, a mulher grávida e a
parturiente dos ataques dos seres invisíveis, os waimahsã. Por isso, o comportamento exigido
nesse período é o confinamento, sob o cuidado permanente de um especialista.
Os perigos e os riscos do sangramento da mulher nessas ocasiões específicas, e seu
poder de “transformar” as coisas são apresentados por Belaunde com muita propriedade e
detalhes, como podemos notar no trecho abaixo:
pode comprometer o corpo, deixando-o sem proteção. O moastise também pode comprometer
as habilidades pessoais como a pontaria na caça ou na pesca, além do risco de serem
transformados em “panemas”. Daí a importância de cada pessoa, periodicamente, se submeter
ao bahsese para evitar os riscos nos contatos com as pessoas.
Além dessa concepção muito presente e determinante para as etiquetas
comportamentais, os especialistas costumam dizer que os waimahsã morrem de raiva, de inveja
e de desejo de poose das mulheres quando elas estão menstruadas, grávidas ou quando estão
em processo de parto. Esse desejo dos waimahsã tem sua explicação.
Primeiro, os rionegrinos são unânimes em assegurar que, no período de menstruação e
de parto, o sangue expelido cai como gotas sobre as “coisas” dos waimahsã, em suas cuias de
ipadu, nos seus assentos (bancos), nas suas redes, nas suas armadilhas de caça e pesca, nos seus
alimentos como o beijú, quinhapira.
Mas o principal motivo da implicância dos waimahsã é que eles guardam rancor, raiva
e inveja por causada transformação de um grupo de waimahsã para a condição humana –
processo este que se deu ao longo da “viagem de transformação da Cobra Canoa”.
Segundo a cosmologia pamurimahsã, um grupo de waimahsã foi escolhido pelo
demiurgo Yepaoãku para se transformarem em humanos, e os demais foram distribuídos para
habitarem nos ambientes aquático, terra/floresta e aéreo, conforme tratei com mais detalhes em
trabalho anterior (Barreto, 2013).
Todos os waimahsã gostariam de ter participado dessa transformação, mas como foram
preteridos, esse desejo se transformou em tristeza, em revolta, inveja e raiva dos humanos. Essa
indignação permanece até nos dias de hoje.
Dessa maneira, o desejo de vingança dos waimahsã sempre permaneceu com eles e,em
toda oportunidade que existe, eles aparecem para se vingar da não concretização do seu desejo,
de terem sido excluídos e abandonados.
Um dos momentos de maior provocação e atiçamento dessa fúria tem a ver com a
emanação sanguínea da mulher, que consequentemente tem a ver com a provocação sexual.
Nesses momentos, eles são atiçados, sexualmente, pelo sangue e seu “cheiro”, “aroma” da
mulher que sai do seu órgão genital. Eles podem concretizar isso na forma de “roubo” da força
vital da mulher, na forma de ataques, provocando doenças. O cheiro do sangue menstrual e do
parto atiça os waimahsã e coloca a mulher numa situação vulnerável ao “abuso sexual”. Caso
eles consigam realizar o ato sexual com a mulher, a consequência poderá ser, por exemplo, uma
gravidez anômala. Outro desejo dos waimahsã é o rapto mesmo da mulher ao seu domínio para
com ela casar. Do ponto de vista dos waimahsã, uma mulher menstruada fica muito cheirosa,
122
bonita e atraente. Nesse caso, se algum deles conseguir raptá-la, do ponto de vista dos humanos,
esta mulher estará morta, perderá sua condição humana. Caso não consiga atingir um desses
objetivos, os waimahsã podem ainda atacar uma mulher com qualquer objeto que estiver ao seu
alcance. Isso se manifesta na forma de desiquilíbrio da pessoa, dores no corpo e palidez.
Na concepção dos Pamurimahsã, o fluxo menstrual ou do parto é um chamariz, ou uma
forma de provocação sexual aos waimahsã. É o momento em que eles ficam atraídos
sexualmente, não apenas para o ato sexual em si com a mulher, mas a fim de realizar um desejo
profundo que é a vingança contra os humanos.
Dessa maneira, o fluído sanguíneo apresenta-se como provocação para os waimahsã,
condição esta que, se não for mediada pelo especialista, pode provocar conflitos
cosmopolíticos. Por essa razão é que acontece a proibição de circulação e de distanciamento
dos espaços controlados pelos especialistas e a comunidade como um todo.
A vingança dos waimahsã é feita principalmente pelo desejo sexual, pela “via sexual”
digamos assim, desejo este provado pela emanação do sangue durante a menstruação e o parto.
Se algum waimahsã consegue concluir o “ato sexual”, ele se instala próximo dela. Na vida real,
a mulher passa a sonhar tendo relações sexuais todas as noites com os waimahsã, sendo esposa
de waimahsã. O sonho com esses fatos acaba por causar o desequilíbrio da mulher na vida real,
colocando-a numa condição dúbia e frágil. O ato sexual é um gesto de profunda intimidade, a
efetivação de uma troca de substâncias, entrar no interior de uma pessoa. É o momento de
continuar a vida ou roubar a vida através do sexo. Uma atração que coloca em jogo a vida e a
morte.
Para evitar as complicações, as mulheres devem submeter-se à prevenção contra o
ataque e roubo de seu mahsã kahtiro(sua “alma”) com a submissão ao bahsese e o uso de plantas
medicinais. Caso contrário, a mulher pode gerar um filho deficiente, físicoou mental, além das
complicações durante o parto.
O mais importante bahsese é o wetidareró, que consiste na arte de comunicação do
especialista com os waimahsã (Barreto, 2013), formulado com o objetivo de evitar sua reação
e ataque. Os elementos utilizados como veículo de comunicação nesses casos são o cigarro e/ou
o urucum.
Outra maneira de se proteger e neutralizar o cheiro bom do sangue da menstruação e do
parto, – caso não haja um especialista para fazer bahsese de proteção - é usar o alho ou a cebola
para afugentar os waimahsã. Segundo os kumuã, os wamahsãtêm pavor do alho e da cebola
uma vez que suas substâncias irritam seus olhos, podendo cegá-los.
123
Outra referência explicativa sobre as o rigens das doenças do corpo é dada através da
chave Ʉmuko purise, o conjunto dos fenômenos naturais, como os raios de sol, as chuvas, os
relâmpagos, as trovoadas etc., que, além de serem usados como behsu dos waimahsã, podem
por si só, pode causar doenças à pessoa.
A exposição ao sol, por exemplo, pode causar dor de cabeça, náuseas e provocar
manchas na pele. Os raios e trovoadas fortes são os mais temidos pelos indígenas, por duas
razões: primeiro, porque a pessoa ao ser atingida pode morrer, ou ficar com graves sequelas.
Segundo, porque, conforme contam os especialistas, uma trovoada forte, ao atingir a terra, o
raio provoca “explosão” dos camutis de doenças, causando possibilidade de surtos. Dessa
maneira, após raios e trovoadas fortes, os especialistas entram em ação para mitigar os perigos
que podem ser causados.
A chuva, a escuridão da noite, o sereno, as correntes de vento são tidos como fontes
causadoras de doenças, sendo necessário o cuidado do corpo com bahsese. Segundo meu pai,
Ovídio Barreto, existem muitos desconfortos corporais causados pelos fatores naturais como
corrente de calor, de ar, relâmpagos, trovoadas, escuridão, garoa, entre outros.
Outras doenças são provocadas por agressões interpessoais, conhecidas em geral por
Useró Behtise:
Os especialistas sabem distinguir bem as doenças provocadas pelo agressor, seja pelas
informações extraídas nos Kihti ukũse ou pela experiência ao longo de sua trajetoria de
atendimento. A vítima pode ser tratada com bahsese e plantas medicinais.
Outro modo de ataque interpessoal é chamado de Heriporã ñese. As relações entre os
especialistas são marcadas por muitas disputas. Considerar-se um especialista é inserir-se no
universo de prestígio e também de disputa. Para manter o prestígio, é necessário dominiar
também as artes de defesa contra os ataques de outros especialsitas.
A disputa se dá mais intensivamente no plano cosmopolítico. Os especialistas falam que
o mundo cósmico é pequeno, e no plano cosmopolítico todos se conhecem, se interagem e se
comunicam. Todas as “casas” que são mencionadas nos Kihti ukũse existem, e são acessíveis.
Viajando pelo cosmos, os especialistas interagem entre si, acessam os bahsese e os bahsamori,
e as informações. Agem como espiões cósmicos, e guardam seus segredos.
Eles são atacados pelos outros especialistas e, em revanche, contra atacam, vivem em
estado de conflitos constantes entre si. Põem seus conhecimentos de bahsese em ação, de
ataques e defesas. Quando alguém em disputa morre no plano cósmico, nesse plano, o seu corpo
também morre. Nesse caso, a morte do especialista é classificada de heriporã ñese, morte
súbita.
Com bastante reserva, os kumuã contam que a pessoa fica presa dentro de uma estrutura
de casa de pedra que existe no plano do cosmos, em casas escuras e sem saída. Para se livrar
delas, a pessoa deve saber usar o sutiro de animal, capaz de escapar pelas pequeníssimas frestas
que por ventura existam nessas casas de pedra.
Outra possiblidade é pedir socorro a um aliado, ou acionar as fórmulas de bahsese para
explodir a estrutura da casa. Caso contrário, seu heriporãbahseke wame ficará preso nesse
plano, o que será manifestado como uma morte no plano da terra.
Segundo os especialistas, quando se escapa do ataque, e descobre o agressor, por meio
de espionagem, a vingança é certa. Com a mesma prática de heriporã ñese, a vítima pode
revidar, com mais força de bahsese para aprisionar o sujeito numa casa de pedra com estrutura
mais complexa, ou outro lugar de prisão desconhecido por este.
125
os casos de envenenamento entre os povos indígenas do Rio Uaupés são raríssimos, fato que
pode ser deduzido como consequência de pouco domínio de plantas venenosas.
Mas, nos tempos passados, segundo os especialistas, a prática do envenenamento, ainda
que não fosse frequente, ocorria durante as festas de poose. Alguns casos se davam por morte
súbita, não sendo sequer possível socorrer a vítima. Outros casos eram mais de processo de
adoecimento, muitas vezes difícil de ser diagnosticado pelos especialistas, levando o afetado a
um grande tempo de sofrimento e até mesmo a não ser salvo pelos especialistas, seja pelos
kumuã ou pelos especialistas de plantas que servem como antídotos daquelas venenosas.
4. Breve comentário
CAPITULO III
Aqui ocorre uma transformação do corpo pela qualificação das substâncias e fenômenos
a partir de vários elementos que o compõe, com o propósito de autodefesa. Os corpos dos Diroá,
por exemplo, se compuseram de substâncias e elementos protetivos capazes de repelir qualquer
investida sobre eles. Continuemos, ainda conforme Rezende:
Segundo Rezende, dessa mesma fórmula de bahsese, o yai ou o kumu/baya lançam mão
para efetuar o cuidado sobre a pessoa para ela enfrentar situações de conflito, ou para protegê-
la das afecções.
129
especialistas, porém, detêm o domínio dessas fórmulas de bahsese. Aliás, segundo o kumu
Ovídio Barreto, atualmente no alto Rio Negro não existe nenhum especialista que domina essa
fórmula, pois os kumuã que sabiam fazer uhpi-murõrõ já morreram todos.
Para lembrar da força e poder de provocar o instinto predador pelo uhpi-murõrõ, o kumu
Durvalino Fernandes me contou uma história de ataque dos indígenas sobre os garimpeiros
armados que pretendiam invadir o garimpo tukano, conhecido como Serra do Traíra, na década
de 1990.
Disse, ele, que os indígenas fizeram o ataque sob efeito de uhpi-murõrõ. Falou também
que, antes da partida, o kumu fez um cigarro de uhpmurõrõ, soprou sobre as pessoas e pediu
para todos fumarem. Sob seu efeito, o grupo partiu como predadores ferozes sobre os
garimpeiros, com o propósito de matar os inimigos.
Segundo ele, os indígenas, sob o efeito do uhpi-murõrõ, mataram mais de vinte
garimpeiros.Contou ainda que, no retorno da equipe, o especialista fez novamente bahsese com
cigarro neutralizando o efeito de uhpi-pmurõrõ. Soprou sobre eles e depois pediu para cada um
fumar, foi o momento em que todos voltaram ao seu estado normal.
Continuou, Durvalino, dizendo que os participantes contavam que nenhum deles se
lembrava do que havia acontecido. Não lembravam do caminho percorrido, da distância, a
forma de ataque e nem dos mortos. Ao concluir a história, reforçou que eles partiram para o
ataque como animais predadores.
Outra fórmula de bahsese bastante presente entre os especialistas é a de mamasuose, o
preparo do corpo com o objetivo da atração. Para facilitar a compreensão, aqui passo a relatar
o que eu presencei durante meu convívio com os kumuã em suas práticas de bahsese no Centro
de Medicina Indígena, onde realizei minha “etnografia”. Ali pude observarvários casos em que
as pessoas pediam ajuda para okumu para reatar o namoro, o casamento e mesmo para
conquistar alguém para o namoro ou para efetivar um casamento.
O jogo, nesses casos, era articular bahsese para qualificar a pessoa com a estética das
coisas e dos animais que se destacam pela sua beleza.
Segundo o kumu Ovídio Barreto, ao fazer esse tipo de bahsese, ele lançava mão das
qualidades dos pássaros mais belos, de seus cantos, suas cores e “injetava” tais qualidades
sobre a pessoa. De igual modo, as qualidades dos minerais, como sua beleza, sua cor e seu
brilho também eram potencializados sobre a pessoa. Isso fazia com que a pessoa se tornasse
bonita e atraente. Segundo os especialistas, isso transforma a pessoa metafisicamente em um
belo pássaro, uma pessoa bonita e valorada, com qualidades que outras pessoas gostam e
desejam.
131
O mesmo mecanismo é acionado para as pessoas que buscam amenizar suas relações de
conflitos, de inimizades e de invejas. Certo dia, eu e meu pai, Ovídio Barreto, caminhávamos
pela praça movimentada do Teatro Amazonas, na cidade de Manaus. Era tempo de Natal. Eu e
meu pai fomos apreciar os encantos do clima natalino na praça. Ali se tocava, assim como nos
outros ambientes, as músicas natalinas, também via-se as pessoas circulando. Muitas luzes de
várias cores dominavam os espaços da praça, e tudo aquilo transmitia uma sensação de alegria,
harmonia, paz e imprimia um sentimento harmonioso. Muita gente circulava na praça e todos
pareciam estar felizes, se abraçavam e sorriam uns para os outros, as crianças gritavam e
corriam de um lado para o outro.
Eu e meu pai apreciávamos aquele climade Natal. No centro da praça, havia uma grande
árvore enfeitada, ela estava adornada com luzes pisca-pisca, pacotes mentirinhas de presente,
bolas coloridas, desenhos de sinos e imagens de Papai Noel em seu trenó. Essa árvore, por si
só, expressava a beleza, o encanto, a paz, a calmaria de espírito, a amizade, a solidariedadee
essas qualidades pareciam afetar os sentimentos das pessoas. Desse modo, as pessoas se
aproximavam da árvore para tirar fotos, abraçadas com os amigos, familiares, colegas e algumas
sozinhas, mas sempre com um sorriso estampado no rosto.
Meu pai e eu também ficamos envolvidos naquele clima e com aquilo tudo que acontecia
ali, mas para apreciar melhor a árvore, tomamos certa distância e um ângulo em que
pudéssemos ter uma visão melhor. Tomado a posição, eu passei a conversar com meu pai a
respeito do clima natalino e daqueles símbolos todos, músicas, do Papai Noel, das luzes, de
tudo que estava ali propiciando aquele ambiente de paz e de sacralidade. De repente, percebi
que meu fazia uma “leitura” daquilo tudo a partir de sua lógica, quando ele me disse:
Eu gostei dessa árvore de Natal. É muita bonita, traz muita emoção, alegria e
leveza de espirito. Ninguém aproxima dela com expressão de raiva, inveja,
apatia e tristeza. Todos aproximam sorrindo, tiram fotos abraçados com os
amigos, com maridos, esposas e filhos estampados de sorrisos. Ninguém tem
raiva e inveja dessa árvore. A partir desse momento, ao fazer bahsese para as
pessoas que buscam prevenir da inveja, dos desafetos... vou lançar mão dessas
qualidades de árvore de natal, com seu brilho, suas cores, as músicas e
completar com o que já faço pela parte indígena. (Ovídio Barreto, 2017)
O emprego de características dos animais, dos vegetais, dos minerais e de outras coisas
sobre a pessoa é uma estratégia de suma importância para os especialistas rionegrinos. No
entanto, repito, exige-se do especialista o domínio do conhecimento sobre esses seres e coisas,
bem como de todo um sistema de classificação, exigidos para a a prática de bahsese. Caso
132
contrário, o especialista terá dificuldade de compor as fórmulas eficazes, arriscando seu oficio
e sua reputação pública.
O heriporã bahsese é também uma forma de transformação do corpo pela qualificação
via bahsese, injetando as qualidades e habilidades dos animais. Em vários momentos, no
Bahserikowi, ouvi comentários dos kumuã sobre a qualificação do corpo pelo heriporã bahsese.
Certo dia, o kumu Durvalino Fernandes me disse:
Veja só, quando se diz que uma pessoa é huremiri (rouxinol), não é o pássaro
em si que está sendo referido. Está se falando da similaridade do baya com a
beleza e qualidade de cantos do pássaro. São qualidades que o especialista está
invocando para a pessoa quando dá o nome de huremiri (rouxinol). Está se
dizendo que a pessoa será opekõ mahsu, karãko mahsu, será bom baya, bom
orador, bom bahsegu. São as qualidades que o pássaro representa. (kumu
Durvalino, 2017).
O emprego de qualidades dos animais, dos vegetais, dos minerais e de outras coisas
injetandas sobre a pessoa é uma estratégia de suma importância para os especialistas
rionegrinos.
Para mostrar a importância do heriporã bahsese como arte de qualificaro corpo a partir
dos elementos constituintes do corpo, lanço mão da fala de um especialista de Pari-Cachoeira,
no Rio Tiquié, que diz:
A transformação da pessoa via bahsese não significa dizer que seu corpo será
transformado num animal, mas que ele será portador de certas qualidades úteis para enfrentar
133
determinadas situações, seja para fortalecer o corpo, para aperfeiçoar habilidades do corpo,
entre outras vantagens.
Outra fórmula de bahsese carregada de significado de injeção de qualidades de animais
na pessoa é a de Ba’ase bahse ekase, um processo de “limpeza” de alimentos utilizados pelas
pessoas e grupos rionegrinos. Sem esse processo, o corpo fica vulnerável às afecções. Segundo
Azevedo (2018), Ba’ase bahse ekase
Narepeotanukõniwĩma, namarikãnareamabarãmarikãnoõwisinukahea,
noõwakisãnukareawetimanamarikãniwĩta. Kʉdiatiminisaminiwĩta,
butirã, soãra, ñirã. Kʉyeñemekaripe, kʉyeupikoripe, kʉyekahtisewatopa,
kʉyekahtiseoãuhpuripeeewaradikayusãpeoburowĩma.
134
os animais que se alimentam de tais peixes não ficam doentes, não sofrem de
coceiras, feridas, são imunes a essas doenças. Como a ariranha, dos tipos
branco, vermelho e preto... Suas qualidades da boca, seus dentes, seu estilo de
vida, sua resistência... transformam, potencializando o corpo da pessoa. (...)
As lontras, dos tipos branco, vermelho e preto, que se alimentam desses
peixes, não ficam doentes. Pela sua característica de vida e suas veias,
transforma, qualificando o corpo da pessoa.
Tudo isso é feito articulando o bahsese que qualifica a pessoa, acionando as qualidades
dos órgãos do sistema alimentar dos animais, para que a pessoa fique resistente contra uma
possível contaminação.
Nestes casos, as qualidades, tanto dos animais quanto dos vegetais, minerais, ou
fenômenos são utilizadas para qualificar o corpo. Como foi apresentado, esse modo faz a pessoa
adquirir a capacidade do travoso, do predador, de adquirir potências diversas de beleza, de
força, de ser transformada em belo, de modo a ser atraente como pássaro.
Os povos indígenas do Alto Rio Negro aplicam o mesmo sentido em relação à pintura
corporal, ou seja, a fabricação do corpo está intimamente ligada à produção de cuidado sobre
ele, tema recorrente na etnologia indígena das terras baixas da América do Sul (Belaunde, 2016;
Morgan, 1996; Overing, 1999; Seeger et al 1979; Viegas, 2003, entre muitos autores).
Vale salientar que esse modo de transformar o corpo, pela sua qualificação, não significa
que a pessoa assuma ou adote a perspectiva do “outro”, seja este um animal, vegetal ou mineral.
Nesse regime, o corpo é tratado como um produto de transformação qualitativa, fabricado via
bahsese e pela pintura corporal.
Outro é o modo de transformação pelo sutiro. Segundo os especialistas, o corpo como
síntese de todos os tipos de substâncias de kahtise (vidas) é aberto a outras possibilidades de
transformações de seres e elementos do “mundo natural”.
Estava-se iniciando a nova fase de criação. Então com o seu assopro da fumaça
do Cigarro, incorporou na fumaça e assim embrenhou-se dentro do Sãrîro
formado pela própria fumaça do Cigarro e da Coca e através dessa fumaça,
como fumaça, pousou na água, onde se encontrava o Barco da transformação,
que haveria de navegar, levando todos os habitantes da Terra durante a grande
viagem no litoral e nos rios adentro. Nesse momento estava começando a se
formar e a existir as propriedades do grande barco, como também iniciando a
grande viagem do Barco da Transformação. Chegando, viu e admirou muito
o grande barco. Era em toda sua plenitude uma obra prima. Lindo! Lindo!
Como ele havia caído na água como fumaça do cigarro e juntamente com o
cigarro, transformou-se, saiu pela terra e viu-a como era. (KUMUÃ, 2006,
apud ATHIAS, 2006, p. 17).
136
Segundo os kumuã, Yepa oãku, como ser dotado de poderes especiais, podia se
transformar em qualquer coisa, lançando mão do sutiro. Nesse caso, tomando a fumaça de
tabaco, saiu de sua condição original para a condição de fumaça, e viajou pelos patamares do
cosmos para supervisionar sua obra. Segundo os especialistas, ainda, após a conclusão dessa
tarefa, Yepa oãku despiu-se do sutiro de fumaça.
A fumaça de tabaco tem duas vantagens: primeiro, como ar quente, ela é leve e se
espalha com muita facilidade, podendo alcançar os patamares do cosmo. Segundo, a fumaça de
tabaco é veículo de bahsese para o abrandamento das afecções e para a proteção da pessoa ou
da comunidade, sob a forma de uma “cortina”, chamada de wetiimisa.
Para os povos indígenas do Rio Negro, a fumaça do tabaco, como veículo de bahsese,
representa uma substância curativa, protetiva, bem como um veículo que transporta o
pensamento ao domínio do conhecimento. A fumaça do tabaco se torna um agente potente de
visão, e sua leveza e forma fluida, quase invisível, possibilitam aos especialistas transitarem
entre os patamares do cosmo pelo pensamento.
Entre muitos Kihti ukũse sobre o protagonismo doYepa oãku, um deles conta sobre o uso
de sutiro de abelha mamangava:
A escolha de sutiro de macaco-prego tem suas razões. Primeiro, pelas qualidades dos
macacos em geral, pela esperteza e habilidade desse animal. Segundo, o macaco-prego, sendo
relativamente pequeno, não precisa ser cortado em partes para ser comido, sendo assim
embrulhado inteiro nas folhas para ser devorado na forma de pupeka, isto é, defumado. Outra
vantagem, é que o macaco-prego possui ossos bastante flexíveis, permitindo dobrar as partes
do corpo com muita facilidade. Sendo um animal arborícola, ele é muito ágil para se deslocar
entre os galhos, além de muito esperto e “inteligente”. Essas qualidades foram fundamentais
para que ele roubasse o fogo de sua dona.
No momento de assar o alimento, na hora oportuna, o caçula dos Ʉmukorimahsã livrou-
se do embrulho, e sob espanto de pehkameñekõ, roubou-lhe o fogo e fugiu pela mata adentro.
Escapou da perseguição da dona do fogo, sumindo entre os galhos das árvores frondosas.
Alcançando certa distância, longe já do alcance da dona do fogo, livrou-se do sutiro de macaco-
prego, apossando-se definitivamente do fogo.
Outro fato bastante citado pelos especialistas é o uso de sutiro de mosquito carapanã
pelo herói Buhtuyar ioãku para descobrir a mulher que encontrava escondida sob o sutiro de
cipó (passagem mencionada no capítulo II, nesse trabalho).
Na sua condição natural, a aptidão do mosquito carapanã é aquela de sugar os líquidos
de alguns tipos de vegetais para sobreviver na floresta, além do gosto pelo sangue quente dos
animais. Essas qualidades foram fundamentais para que ele descobrisse o cipó como
esconderijo da mulher. Buhtuyari oãku, como (com “roupa” de) carapanã, passou a investir suas
ferradas nos vegetais até descobrir a mulher que estava escondida na floresta, na forma (com
“roupa”) de cipó. Depois da descoberta, livrou-se do sutiro de mosquito voltando à condição
antropomórfica. Retirou o cipó da moita, cortou uma parte e a escondeu. Depois de um tempo,
138
enquanto ele trabalhava, viu aparecer uma mulher às suas costas. A investida teve um final
feliz, pois Buhtuyari oãku casou-se com a mulher.
No entanto, entre todos os oãmahrã, os Diroá foram os campeões na arte de usar o
sutiro de animais. Os três Diróa são descritos nas narrativas míticas como seres
antropomórficos, de estatura pequena, tagarelas, brincalhões, sarcásticos, maliciosos,
inteligentes, de raciocínio rápido, estrategistas e espertos demais em comparação com outros
oãmahrã. São descritos também como exímios inventores de artefatos de ataques contra seus
desafetos e vingadores por excelência. Tinham facilidade de convencer outros oãmahrã para o
seu benefício, eram também sedutores de mulheres, apesar da estatura pequena, considerada
fora do padrão estético entre os oãmahrã.
Com as estratégias do uso de sutiro em suas aventuras, os Diroá tinham facilidade de
transitar pelos patamares do cosmo, entre os domínios terrestre, aquático, da terra/floresta e o
do espaço aéreo.
Seu avô adotivo, Yetoawõ, juntamente com sua esposa, se deram ao trabalho, em várias
ocasiões, de eliminá-los, devido a serem frenéticos e causarem uma série de constrangimentos
com os oãmahrã. Os Diroá surgiram de um pedaço de osso do herói Buhsari gõãmu (oãku de
bahsamori), em seguida transformaram-se em peixes, depois em ratos, e finalmente
transformaram-se em humanos, quer dizer, na forma humana.
Na “Coleção Narradores Indígenas do Rio Negro”, podemos encontrar várias passagens
que descrevem as diversas formas de uso de sutiro pelos Diroá, como, por exemplo, o trecho
abaixo:
Os Diroá ficaram de voltar para a sua casa mas eles se transformaram nos
passarinhos chamados weheriterõ e acompanharam a velha avó pousados na
beira do aturá que ela carregava nas costas. O caminho atravessava as roças
dos Koá-yeá. Vendo a velha passar com passarinhos bonitos pousados no seu
aturá, as moças perguntaram para a velha: - “Esses passarinhos são seus?’. A
velha respondeu conforme os Diroá queriam: -“São meus, minhas netas!”. As
moças se aproximaram, querendo tocá-los, mas os passarinhos voaram para o
cerrado. As moças foram logo atrás deles para pegá-los. Lá os pássaros se
transformaram em jovens bonitos e transaram com elas. (FOIRN, op. cit., p.
125-126).
e voltaram a acompanhar a avó. Outro kihti ukũse que narra explicitamente o recurso de uso de
sutiro pelos oãmahrã é a história de Buhtuyari oãku. Assim me contou o kumu Manoel Lima:
Entre muitos kihti ukũse sobre o sutiro usado pelos oãmahrã, os kumuã contam também
sobre a capacidade dos waimahsã de usarem sutiro de animais para realizar determinadas
tarefas. Os kumuã contam que os waimahã usam o sutiro de boto para sair de suas casas do
domínio aquático para participar das festas de poose entre os humanos. Os waimahsã, despindo-
se do sutiro de boto, participam das festas, tomam caxiri, cantam e dançam junto com os
humanos. Roubam as moças, enquanto todos estão sob efeito do caxiri e do kahpi, e as
engravidam. Em alguns casos, chegam a levá-las para seu domínio no fundo das águas.
Segundo o kumu Manoel Lima, é para evitar a participação dos waimahsã nas festas de
poose sem serem convidados e, consequentemente evitar o roubo das moças, que os
especialistas fazem cigarro de proteção antes das grandes festas de poose.
O sutiro de boto é também usado pelos waimahsã para longas viagens. Segundo os
kumuã, os waimahsã preferem o sutiro de boto devido a sua agilidade, velocidade, força para
vencer a correnteza, e pela preferência de peixes como alimento, qualidades ideais para as
longas viagens pelos rios.
Os especialistas contam que os waimahsã do Opekõ dihtara (Lago de Leite) costumam
visitar seus “parentes” na região do alto Rio Negro subindo pelos rios usando o sutiro de boto.
140
ronco forte, seu esturro, sua agilidade de ataque. O sutiro transforma a pessoa num animal
predador de dentes fortes e afiados.
A dieta do transformado é de onça. Como animal carnívoro passará a alimentar-se de
animais de pequeno e médio portes, e outros animais, como peixes e aves. O hábito desse
animal, conforme a informação, em situações de falta de caça, é de se aproximar de locais de
ocupação humana, passando a caçar os animais domésticos, ocasiões em que vê os humanos
como suas presas.
Nesse ponto, os sujeitos transformados em onças optam mais em se aproximar dos locais
de ocupação humana, com o objetivo de atacar os seus inimigos e devorá-los. Seus ataques
acontecem seletivamente.
Um dado importante, segundo o kumu Durvalino, é o heriporã bahseke wame do sujeito
(aquilo que o faz ser pessoa) que passa para o sutiro de onça e se junta com as demais onças na
floresta. Quando sente saudade da família, este livra-se da roupa e vai ao encontro de sua esposa,
ou de seus parentes nos seus roçados.
Passado o “período de onça”, aproximadamente seis meses, tempo limite para usar o
sutiro, o heriporã bahseke wame volta ao corpo humano. Enquanto isso, o sutiro de onça fica
guardado em algum lugar secreto, onde somente o dono tem acesso.
Os corpos dos que se transformam ficam em casa nas suas redes sob cuidado de uma
jovem que ainda não passou pela menarca. Ela os alimenta a base de manicuera e outros líquidos
especiais até o heriporã bahseke wame voltar ao corpo.
A recuperação do corpo se dá de forma gradual, e seu reestabelecimento total pode durar
até vinte dias aproximadamente.
Outro caso é o uso de sutiro de cobra-grande. É de reconhecimento público no Rio
Negro que a capacidade do especialista sakaka é transformar-se (vestir a “roupa” de) em cobra-
grande. Dizem que ele possui o sutiro desse animal guardado à sete chaves, em algum lugar
inacessivel às pessoas comuns.
O sutiro de cobra-grande é dado ao sakaka pelos waimahsã do domínio aquático, após
longo período de “preparação” do corpo e acesso aos seus domínios para negociar e especializar
o seu uso.
Os especialistas contam que, durante a noite, em época de lua cheia, o sakaka veste-se
com o sutiro de cobra-grande para viajar nas profundezas dos rios e lagos e acessar a casa dos
waimahsã do domínio aquático. Lá, encontrando-se com eles, conta tudo o que acontece no
mundo dos humanos, aprende as curas de males e dicas de plantas medicinais.
142
Os kumuã também contam que o sakaka usa o sutiro de cobra-grande para sua pescaria,
obtendo, assim, muito sucesso na pesca. No Alto Rio Negro, o sakaka é bastante temido, mas
seu ofício é pouco valorizado, uma vez que ele tem apenas a notoriedade pela sua capacidade
de usar o sutiro de cobra-grande e aventurar-se pelas casas dos waimahsã, com os quais aprende
as plantas medicinais.
O sutiro da cobra do tipo de sucuri é a roupa preferida, conforme as descrições dos
especialistas. Esse tipo de cobra vive tanto nos rios e lagos, quanto na terra/floresta. O humano
transformado em cobra se locomove nas águas de forma discreta e rápida. Come os animais que
rodeiam as águas, como rãs e pássaros. Alimenta-se também de grandes caças como pacas,
veados, peixes, queixadas, capivaras, antas, tartarugas, aves, cães, cutias até as onças. Ela tem
hábito de ficar à espreita de sua vítima. Geralmente, ela é grande e de hábitos noturna.
O sujeito/cobra toma a perspectiva do dono do sutiro, suas qualidades e seus hábitos de
cobra, sua dieta, suas moradas, suas agilidades, seu grafismo, seu tamanho e seu comportamento
em viver na “comunidade” de cobra.
Temos aqui exemplos onde a humanidade toma a perspectiva do animal e das coisas,
assunto este que evoca diretamente à noção de perspectivismo ameríndio, criativamente
desenvolvido por Viveiros de Castro (1996), sintetizado, a meu ver, nesta passagem:
Ao ouvir os kihti ukũse e as conversas dos kumuã durante meu período de convivência
com eles, pude extrair e organizar os modos de transformação do corpo dos seres oãmahrã e
humanos em animais e vegetais.
Alguns sujeitos oãmahrã, pela transformação de seus corpos, deram origem aos animais
e vegetais para serem úteis aos humanos. O personagem mítico Kamaweri, por exemplo, com
a desintegração do seu corpo, deu origem a diversos tipos de peixes, como se pode ver no trecho
abaixo:
144
Outra trama que deu origem aos grupos de peixes foi a de dois jovens de uma
aldeia. O chefe da aldeia, vendo aproximar-se um período de fartura de peixes,
convocou dois jovens irmãos para fabricarem os cocares que seriam usados
durante uma festa a ser oferecida por ele. Para isso, convidou os irmãos mais
dedicados da aldeia, para tal fim. Os jovens foram recomendados a uma dieta
restrita, jejuar e se abster de práticas sexuais. Depois de muito tempo de
abstinência, tendo saído para urinar, o irmão menor sentiu o cheiro de peixe
moqueado, vindo da direção de uma praia. Caminhou nessa direção e se
deparou com um grupo de belas mulheres, que o convidaram para o banquete.
O rapaz, faminto, devorou boa porção daqueles peixes, quebrando assim as
regras de abstinência, e como consequência, seu corpo foi se avolumando mais
e mais. Certo dia, durante uma pescaria, sentiu seu corpo desintegrar-se, e suas
partes acabaram sendo levadas pelas águas, e delas surgiram muitas tipos de
peixes, a exemplo do yukuboteá (aracu-madeira). A cada parte de seu corpo
que se desgarrava, ele amaldiçoava os peixes, impregnando-os de substâncias
prejudiciais a saúde humana. (BARRETO, 2013, p. 79).
Os kumuã falam de pessoas que se transformaram em animais, dos perigos que uma
transgressão de regra pode causar, de que o corpo pode ser enterrado e encerrar a vida, mas o
heriporã bahseke wame, como substância etérea, se transforma em bicho, não volta para a
bahsakawi do domínio do waimahsã, que seria o destino final esperado, em que o morto se
junta a seus entes queridos também falecidos.
Essa transformação é bastante temida, já que nunca mais a pessoa voltará a se encontrar
com as pessoas, e seu fim será um animal. Os bichos mais comuns citados como resultado da
transformação de heriporã bahseke wame foram acobra-grande e a cutia.
O kumu Ovídio Barreto contou-me que, na nossa comunidade, Ʉremiripa (São
Domingos Sávio), existe um lago onde vive uma cobra-grande preta, resultado da
transformação de pessoa nos tempos do seu bisavô. Segundo ele, o lago é temido por todos e
ninguém arrisca se aventurar por lá, uma vez que ela pode atacar a pessoa. Conta também que,
de vez enquando, essa cobra aparece nos roçados próximos ao lago, dando sinal de apego ao
seu trabalho de roçado. A recomendação é sempre não incomodá-la nem agredi-la, deixando a
cobra quieta até ela mesma se retirar, o que pode durar dias.
Outro bicho bastante comum, presente nos relatos de transformação de heriporã
bahseke wame, é a cutia. Os especialistas falam que a cutia, como resultado da transformação
de uma pessoa, é sempre maior que o padrão normal deste animal. Ela é “esperta” para roubar
a mandioca do roçado, difícil de ser caçada, conhece bem as armadilhas e sempre dá “risadas”
quando as pessoas vão pelo caminho do roçado, ou pela floresta.
Os animais resultados da transformação de heriporã bahseke wame são tidos como
“falsos animais”, sendo rejeitados como alimento, diferentemnte de animais considerados como
verdadeiros, isto é, aqueles animais forjados pelos demiurgos. As características desse falso
animal são a intensidade da cor de sua pelagem, o seu tamanho e o sabor e textura de sua
carne. Falam os especialistas que este animal verdadeiro é genuinamente “bonito”, saboroso e
relativamente pequeno. Eles dizem ainda que o heriporã bahseke wame que se transformou
fica vagando na terra/floresta como animal, ou no domínio aquático na forma de cobra-grande,
até morrer, ou ser devorado por outros animais, findando assim sua existência.
Segundo o professor e especialista kumu Anacleto Barreto, a transformação do corpo
exemplificado nesse tópico, acontece durante o eclipse da lua. O eclipse, segundo o especialista,
é a morte da lua. Ele conta que o sangue da lua cai sobre o mundo terrestre e o fertiliza. É no
primeiro momento de contato deste sangue com a terra, que o heriporã bahseke wame daqueles
sujeitos ou pessoas que transgrediram as regras durante sua vida se transformam em cutia,
cutiara, cobra, etc.
146
Ainda durante as cheias dos rios, acontece o fenômeno de migração dos yai
buhkurã (pequenas aves-onça) e ñkoãtero buhkurã (pequenos pássaros de cor
cinza) que se deslocam em grandes bandos por toda a região do alto Rio
Negro. Essas aves têm o hábito de voarem sobre a superfície das águas, e ao
tocarem suas asas na superfície o bando submerge, transformando-se em
verdadeiros cardumes de ahkõroa, isto é, o grupo de branquinha.
(BARRETO, 2013, p. 80)
As rãs, chamadas de omã, nas enchentes, surgem aos montes, que durante o
ano inteiro não se via. Só cantam durante esse período de piracema, depois
nunca mais vão cantar, não se vê também elas nas árvores, porque elas se
tornaram peixes. Tornaram-se os peixes de igapó, chamados de daguirú. Esses
peixes são rãs que, depois de desovarem na primeira enchente que deu
piracema, se transformaram em peixes e passaram a povoar os igapós.
(Justino Rezende, 2016).
O fenômeno da desova de omã, bem como sua concentração, só acontece uma vez por
ano. Ninguém sabe explicar como elas surgem e onde elas vivem antes do tempo de desova.
Mas, essas rãs não são as únicas comestíveis, existem outras, uma delas é a sepero. Esta tem
um hábito solitário, canta à noite e vive no tronco das árvores da beira do rio, mas é pouco
apreciada como alimento.
As rãs que se transformam em peixes não são encontradas cotidianamente como outros
tipos de rãs e sapos, elas surgem apenas no período de grandes cheias e em tempo de piracema.
São relativamente pequenas e de cor cinza.
Como qualquer rã, acredita-se que elas se alimentam de moscas, gafanhotos, aranhas,
larvas, etc. As rãs que se transformam em peixes têm hábito noturno e vivem nos grandes igapós
dos rios inundados durante a grande cheia. Só surgem em grande quantidade durante o tempo
148
de cheia, depois somem. São peixes lisos de pequeno porte de cor cinza, que são chamados em
tukano de piroãseroa.
Foram muitos os relatos dos kumuã sobre a transformação dos animais em outros
animais, a transformação de animais não comestíveis em comestíveis (e vice-versa), e de
vegetal a peixe. Para completar a lista, cito aqui mais um exemplo, o caso da transformação da
paca.
O kumu Manoel Lima me contou que a paca, roedor de hábito noturno, apesar de ser
uma caça de primeira qualidade para o consumo humano, é um bicho muito perigoso, pois em
alguns casos, sobretudo para se vingar de sua matança predatória, transformava-se em cobra
venenosa do tipo surucucu, uma cobra bastante temida pelas pelo seu veneno forte e fatal. Da
mesma forma, a cobra venenosa (sucurucu) transformava-se em paca.
Outro relato é a transformação da cutiara em peixe aracu. Segundo os kumuã, durante o
tempo de piracema, as cutiaras descem para o rio e se transformam em aracus. Como exímios
pescadores, os especialistas contam que a diferença entre o peixe aracu nativo e o transformado
da cutiara se percebe na constituição do seu “bucho”, de suas vísceras.
Dizem que, nas primeiras horas de transformação, as partes internas do peixe se
assemelham à estrutura da cutiara, seu fígado, as costelas, seu coração, indicando os sinais de
transformação. Com o passar do tempo, essas partes vão se adaptando à estrutura do peixe aracu
original.
A cutiara é um roedor de médio porte, que vive nas matas, no entorno dos roçados e nas
capoeiras, alimenta-se de frutos e sementes. Os peixes aracus se alimentam basicamente
também de pequenos frutos e sementes e de pequenos animais, como camarões, caramujos etc.
Quando perguntados por que e como os bichos se transformam, os especialistas só dizem
que os animais estão sempre em transformação, que é a própria dinâmica dos elementos que
constituem o mundo terrestre.
Entretanto, um dia o kumu Durvalino, contato kihti ukũse, disse que todos os tipos de
kahtise carregavam consigo uma potência de transformação. De transformar uma coisa em outra
coisa, um animal em outro animal, pois dentro de cada corpo de kahtise estavam presentes os
elementos como boreyuse kahtiro, yuku kahtiro, dita kahtiro, ahko kahtiro, ome kahtiro,
waikurã kahtiro como potências, menos o mahsã kahtiro, pois este dependia da “injeção” do
especialista no corpo.
Seu Anacleto Barreto e sua esposa Sandra Menezes contam que a transformação dos
animais exemplificados neste trabalho, e de outros corpos, ocorrem durante a época chamada
de turipoero, isto é, tempo de piracema, tempo de grande cheia do rio na região.
149
5. Comentários
A transformação dos seres não é algo apenas de um passado, do tempo das narrativas
míticas, do tempo primordial. Aqui, vimos exemplos de transformações dos seres em cada ciclo
de fecundação do mundo terrestre.
A capacidade de fecundidade da terra é que possibilita a constante transformação dos
corpos. O mundo terrestre se engravida do contato com o sangue da lua e faz seu parto, um
fenômeno conhecido, no caso dos peixes, como piracema, que ocorre durante a cheia dos rios.
Em outros termos, todos fazem piracema, as rãs, as formigas, os animais, as arvores frutíferas.
A água do tempo de piracema é o fluído do útero do mundo feminino terrestre.
Por outro lado, o corpo humano, em especial, é concebido pelos especialistas como um
micro cosmo, pois, é a síntese de todos os tipos de kahtise, como foi acenado no primeiro
capítulo.
Ele não é apenas um agrupamento de elementos e portador de padrões concretos de
costumes e hábitos, mas um conjunto de kahtise (vidas) extra genéticos; um corpo que se
transforma encerra um ciclo de kahtiro (vida) e começa outro ciclo de kahtiro. O corpo, então,
é a arena de expressão de uma filosofia ameríndia, e esses exemplos mostram um aspecto
importante dessa filosofia indígena do Alto Rio Negro, para a qual um corpo é uma agência
dinâmica e não algo acabado, encerrado em si, individualizado e biológico.
Mas não é qualquer corpo. Estamos falando do corpo humano agentivo e especial, que
pode ser água, onça, fumaça. Em outros termos, a noção dos indígenas sobre o corpo é algo não
acabado, é algo manipulável, transformável, sujeito a infinitas possibilidades.
Como já foi acenado, a transformação de um corpo é possível na medida em que ele é
constituído de seis elementos-vida como potência, os chamados kahtise, o que o coloca na
condição especial para o fenômeno da transformação. Como vimos, o corpo humano pode
alterar sua aparência, sua forma, seu tamanho e seu estado físico.
Pensar e teorizar sobre o corpo como objeto de trabalho a partir de seu sentido para os
povos indígenas do Alto Rio Negro traz à tona a necessidade de identificar como se dá a
construção do saber sobre o corpo e como este saber implica diretamente na prática de produção
de cuidado do corpo para ter boa qualidade de vida e cuidado nas relações com as coisas do seu
entorno.
Os especialistas indígenas consideram o mundo terrestre como organismo, onde os seus
elementos constitutivos se cruzam e se afetam mutuamente, formando novos corpos que se
encontram. Os especialistas falam da transformação criadora e definem o mundo como
organismo vivo, um sistema que tem como atributo essencial a autoprodução. Os seres se fazem
e refazem-se por meio das conexões que cada corpo estabelece com outros corpos.
151
CAPITULO IV
O presente capítulo tem como objetivo apresentar uma etnografaia das práticas de
bahsese no Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, uma vez que foi ali que apareceu
explícitamente tudo o que venho tratando sobre a noção de corpo conforme concebida pelos
Kumuã: os elementos constitutivos do corpo, as formas de doenças, desconfortos e afecções, as
maneiras de cuidados e as possibilidades de transformação do corpo em diferentes formas.
Este capítulo portanto, está diretamente conectado com os capítulos anteriores na
medida em que, acompanhando as práticas dos kumuã na articulação de bahsese para cuidar da
saúde das pessoas, pude compreender o conceito sobre o corpo e sua potência.
Não custa nada lembrar que nós, povos indígenas do noroeste amazônico temos os Kihti
ukũse, Bahsese e Bahsamori como fontes vitais de nossas existências, nossa filosofia. Esta
“trindade” conceitual (Barreto, et. Al, 2018), como sistema de conhecimento é denominado
pelos especialistas de Nirõkãhse kahtise. Segundo Oliveira (2016), Nirõkãhse está:
adquiriam tais conhecimentos (Barreto, 2013). Uma das consequências desses impactos foi a
extinção da categoria de especialista yai.
Os conhecimentos práticos dos povos indígenas do Rio Negro foram historicamente
estigmatizados como crenças e rituais religiosos numa comparação direta com o sistema
religioso ocidental, sendo os esquemas terapêuticos nativos classificados em geral como
curandeiros, relacionados ao mundo demoníaco.
Influenciados pelas traduções, seja pelos religiosos, viajantes ou mesmo pesquisadores,
os especialistas indígenas se auto intitulam pajés, curandeiros, rezadores, xamãs. Exercem seu
ofício à margem da política oficial de saúde. Em São Gabriel da Cachoeira, por exemplo, o
público que frequenta os hospitais é o mesmo público que procura os especialistas indígenas na
surdina da noite.
O Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, localizado na cidade de Manaus, é um
lugar especial de prática do bahsese, onde estão em ação as concepções indígenas de cuidado
do corpo.
O termo bahserikowi tem um significado muito profundo. Segundo meu pai, kumu
Ovídio Barreto, ele está relacionado à morada de bahseriko mahsã, isto é, aos oãmahrã, com
poderes especiais como Buhpo, Yepa oãku, Yepalio, e de todos aqueles que se encarregaram da
organização do cosmo. Assim, bahserikowi pode ser entendido como o lugar de fonte de
conhecimentos Kihti ukũse, bahsese e bahsamori, de proteção e da promoção de harmonia, o
lugar de inspiração de vida, lugar de cuidado das pessoas, de conexão cósmica, de relações e
articulações cosmopolíticas.
Como mediador entre o cosmo e o mundo terrestre, o especialista é portador da força e
poder de bahseriko mahsã. Seu corpo é a própria fonte de bahsese, como dizem os kumuã. Para
que o bahsese produza efeito desejado, além de verbalizar a fórmula correta, é necessário que
o especialista adote certas etiquetas. Uma delas é a auto proteção, para que os bahsese não o
ataquem ou retirem sua força, ou ainda que a doença do paciente se volte contra seu próprio
corpo.
Outras atitudes e precauções do especialista diz respeito à dieta, moderar sua
alimentação evitando comer alimentos gordurosos e, sobretudo assados, e praticar a abstenção
sexual, pois o cheiro provocado pela relação sexual pode contaminar e cortar o efeito do
bahsese.
A ineficácia do bahsese por razões da quebra dessas regras pode levar seu autor a ser
rotulado como péssimo kumu, aquele que faz bahsese mas que não produz eficácia. Segundo o
153
kumu tuyuka Manoel Lima, “o especialista que obedece a todas as regras é capaz de produzir
bahsese eficazes, tudo dá certo, tem prestígio de ser bom kumu, tem reconhecimento público”.
Os kumuã que atuam do Bahserikowi são pertencentes dos grupos sociais Yepamahsã,
Ʉtãpirõporã e Ʉmukorimahsã do noroeste amazônico. São reconhecidos pelo seu ofício por
esses e pelos demais grupos indígenas da região. Eles são os principais autores e articuladores
de bahsese analisados neste trabalho.
“Medicina indígena” é o termo escolhido neste trabalho, a despeito de críticas, na
tentativa de afastar-se dos jargões conceituais que prevalecem, que propõem expressar os
conhecimentos tradicionais na sua “arte de curar”.
Antes mesmo de decidir sobre a escolha do tema desta tese, isto é, sobre as concepções
de corpo, suas afecções e cuidados, muitos foram os acontecimentos que o precederam. Um
deles foi a experiência de tratamento conjunto entre os médicos do Hospital de Medicina
Tropical, localizado na cidade de Manaus, e meu pai, o kumu Ovídio Barreto, de um paciente
indígena durante trintas dias.
Durante os dias em que meu pai ia ao hospital, eu o acompanhava como tradutor entre
os médicos e ele. O fato foi que o jovem yanomami fora afetado pelo que a medicina chama de
“Fogo Selvagem”.
Do ponto de vista do kumu, o jovem tinha sofrido aquela doença pelo fato de ter
quebrado uma regra de resguardo pós parto de sua esposa. Desobedecendo a orientação, o
jovem teria ido caçar, matado uma anta e comido sem o consentimento dos especialistas que o
cuidavam.
O resultado foi a infestação e irritação da pele em todo seu corpo, que do ponto de vista
do kumu, era nada mais que a expressão cabal do ataque dos animais, hospedeiros da caça, que
estavam consumindo seu corpo. Assim, era necessário neutralizar a ação dos bichos articulando
o bahsese. Foi o que ele fez durante quinze dias, que resultou na recuperação do jovem
imprudente. Todo este processo do bahsese foi acompanhado pelos médicos dermatologistas
do Hospital.
A história é longa, e deixando de lado os comentários sobre o tratamento conjunto e os
resultados destes, o que gostaria de chamar atenção aqui é para o fato de que meu pai, todas as
vezes que ia ao Hospital, vendo as pessoas (indígenas e não indígenas) sentadas ou circulando
pelos corredores, com semblantes tristes, comentava comigo que muitas delas estavam sofrendo
154
pelo seu descuido com a alimentação, por causa do ataque dos waimahsã, e achava possível
abrandar o sofrimento delas com bahsese.
O kumu Ovídio Barreto, numa rápida visão sobre os pacientes que circulavam pelo
Hospital, imediatamente conseguia enquadrar as pessoas no seu campo de diagnóstico, isto é,
pela contaminação, pela alimentação, por ataque de waimahsã etc. Logo dizia que duhtitise era
consequência de ataque dos waimahsã por algumas razões do descuido do paciente. Talvez, em
algum momento vulnerável da vida, aquela pessoa não levou em conta as regras de betise, os
resguardos necessários, as etiquetas comportamentais, entre tantas outras regras fundamentais
para boa qualidade de vida.
Ele ia associando as doenças com o modo de vida das pessoas, como por exemplo, com
uma possível destruição às casas dos waimahsã, uma interferência ou a construção de uma
residência próximo a uma corredeira, cachoeira, igarapés, de uma serra ou uma lagoa. E, dizia,
em síntese, que as doenças eram consequências de ataques dos seres waimahsã como vingança
dessa má relação e da destruição dos ambientes/casas.
Explico melhor essa concepção. Os povos indígenas do alto Rio Negro consideram que
no interior da terra existem lugares onde são “guardados” imensos “camuti” de doenças, lugares
estes onde estão os behsu (as armas). Estão aí como “panelas de pressão”, prestes a explodir.
São os lugares que devem ser cuidados constantemente pelos kumuã, e quando estes são
destruídos acontece “explosão dos potes”, espalhando afecções mundo afora. Segundo o kumu
o que acontece é isso, quando os brancos (os não indígenas) destroem esses ambientes,
automaticamente, se espalham as doenças, e as pessoas vão parar no hospital.
Por isso, a experiência no Hospital foi o ponto de partida para eu pensar as práticas de
bahsese para além de sua articulação para o abrandamento de dores, doenças, afecções. Antes,
questionar: qual é a concepção dos kumuã sobre o corpo? Então, eu vi que fazia muito sentido
essa análise porque saia do entendimento restrito de indivíduo, de que a doença é uma coisa
biológica individual, e me permitia tomar distância e perceber com atenção o ponto de vista
indígena (Tukano) e demonstrar isso dentro de uma lógica onde essa discussão faz mais sentido
do que no Hospital.
Dentro da biomedicina, apesar do discurso de que a doença é um desiquilíbrio não só
biológico, mas também social, toda sua prática é voltada para o indivíduo, embora existam
várias leituras, na biomedicina, no sentido de que doatise e duhtitise são manifestações de
desiquilíbrio social, ambiental, relacional, entre outros.
As técnicas de diagnósticos de domínio do especialista kumu são perguntas direcionadas
para as pessoas relatarem as causas das afecções, suas origens, bem como das formas de
155
tratamento que a pessoa está sendo submetida naquele momento, o tratamento médico e outras
formas de medicação.
Uma parte importante, para além dos relatos das pessoas, é a habilidade do especialista
indígena perceber ou sentir determinados sinais que se manifestam no seu corpo ao ter contato
com os relatos, sobretudo quando for de usero pehtise (feitiçaria). Segundo meu pai, Ovídio
Barreto, o sinal principal nesse caso é o tremor da boca, o que significa que duhtitise tem origem
na agressão interpessoal.
Outro sinal bastante visível é a reação, pela respiração do kumu, ao ouvir o relato da
pessoa, mesmo ou depois que conclui o bahsese. A intensidade e a diminuição respiratória estão
associadas, respectivamente, à gravidade de doatise e duhtitise.
O kumu Ovídio Barreto conta com sua experiência obtida ao longo do exercício do seu
ofício, experiência que lhe rendeu ou rende o reconhecimento público com título de um bom
bahsegu. O Bahserikowi não conta com a presença do yai, uma das categorias mais importantes
dos especialistas do Rio Negro.
Além das técnicas adotadas pelo kumu, há outras técnicas mais sofisticadas de
diagnósticos que só o yaí domina, como a aspersão de água sobre a pessoa e a sucção do corpo
para “extrair” o agente causador da doença. O yai faz a leitura do sinal retirado e dá seu veredito
sobre a causa da doatise e duhtitise, recomendando ao kumu a fórmula de bahsese – ou, na falta
deste, ele mesmo o executa. Essas duas técnicas são tidas como as mais seguras para se
identificar as causas ou origens das afecções.
Os especialistas yai, kumu e baya têm a mesma base de formação (Barreto, 2013). Este
último, além de ser especialista em cantos e danças de kahpiwaya, é também kumu. Todos eles
detêm as técnicas de diagnóstico e um quadro bastante claro das causas dos desconfortos,
traduzidos como doenças, que podem ser resultados da relação de conflito cosmopolítico, de
distúrbios alimentares, dos fatores ambientais e das relações interpessoais.
As categorias das afecções apresentadas a seguir são fruto de um esforço de
sistematização das “concepções nativas”, extraídas de um sistema complexo de conhecimento
de domínio dos kumuã, sobretudo dos que atuam no Bahserikowi. Foram extraídas das
conversas informais, e muitas vezes “reveladas” pela própria vontade dos kumuã, que contavam
suas concepções e práticas de bahsese numa lógica de transmissão, isto é, para um indígena,
parente, que pode aprender e dar continuidade a esse tipo de conhecimento. Portanto, estas
revelações não são comumente feitas a um pesquisador qualquer – até porque são poucos os
que têm condições de alcançar tais sentidos.
156
Nessa relação de convívio, acabei por perceber que os especialistas, ainda que não
compartilhassem uma lógica tão didática, carregavam consigo aparatos sofisticados de
diagnósticos e de tratamento, que são possíveis de serem organizados, conforme apresentados
nos capítulos anteriores, lançando-se mão das técnicas da antropologia.
2. Os kumuã do Bahserikowi
Os especialistas que atuam no Bahserikowi são todos da região do Rio Negro, alto Rio
Uaupés, mais especificamente do rio Tiquié. Contam que para atingirem os níveis de
especialistas, eles passaram pelo investimento do cuidado do corpo, utilizando recursos
específicos como uso de sumo de plantas para limpeza estomacal, dieta e outras regras de
abstinências sob orientação de especialistas formadores.
Os kumuãse comparam com os “pequenos” oãmahrã, chamados de bahserikomahsã,
que possuem poderes de evocar ou invocar verbalmente e mentalmente as substâncias
preventivas, protetivas e curativas contidas nos vegetais, minerais e nos animais para cuidados
e transformação do corpo. A seguir, apresentamos o perfil de cada um dos kumuã que atuam no
Centro de Medicina Bahserikowi.
Manoel Lima é Kumu/Baya. Indígena Tuyuca, com 85 anos, pertence a etnia Tuyuca
Ʉtãpiropona. Nascido na comunidade Porto Colômbia, rio Tiquié, município de São Gabriel
da Cachoeira. Formou-se como kumu/baya aos 14 anos de idade. Desde os 15 anos de idade
começou a exercer o ofício de kumu. Segundo conta, começou atendendo o público indígena
do Alto Rio Tiquié. E, nos últimos 30 anos, atende o público de São Gabriel da Cachoeira, no
Alto Rio Negro. Fala com bastante entusiasmo sobre sua trajetória de vida, sobretudo sua
formação como especialista e seu exercício do ofício na cidade de São Gabriel da Cachoeira,
onde reside atualmente.
Conta que desde criança foi cuidado pelos velhos pajés, que haviam lhe preparado para
ser um especialista. Primeiro, eles lhe deram um nome para a especialidade de baya. Sua mãe
cuidou bem de sua alimentação, restringindo-lhe o consumo de alimentos quentes e assados
para não “queimar meu corpo”, em suas palavras, e submeteu-o à limpeza estomacal todas as
manhãs desde sua infância. Quando adolescente, passou pelo “ritual de iniciação” sob o cuidado
dos velhos, que consistiu numa grande festa com participação especial dos kumuã. Foi a partir
daí que começou a participar das rodas de conversa dos velhos, nas festas, e aprender kihti
ukũse, bahsese e bahsamori sob orientação dos velhos.
157
Manoel Lima, o “Madu”, como é mais conhecido pelos seus pares na região de São
Gabriel da Cachoeira, confessa que não vai ficar muito tempo no Bahserikowi, e logo outros
kumuã da sua geração estarão no seu lugar. Com esperança, destaca a possibilidade de que um
dia os jovens possam se interessar pela formação completa de epecialista.
O kumu Ovídio Lemos Barreto é meu pai, da etnia Yepamahsã. Tem 80 anos de idade,
nascido na comunidade São Domingos, no alto rio Tiquié, no Alto Rio Negro, município de
São Gabriel da Cachoeira (AM). Conta que se especializou aos 19 anos de idade, e desde os
20 começou a exercer o ofício de kumu. Iniciou atendendo o público de sua comunidade sob
supervisão do seu pai, que era especialista da categoria yai. Depois da morte do seu pai, assumiu
seu lugar e passou a atender o público fora de sua comunidade. É reconhecido pelo público de
sua região pelo seu ofício e por ser herdeiro de um prestigiado yai.
Mais recentemente, passou a atender o público em Manaus, indígena e não indígena. É
membro colaborador da equipe de pesquisa do Núcleo de Estudo da Amazônia Indígena (NEAI)
e participou da experiência chamada ANTROPOMED (Antropologia x Medicina), uma
iniciativa de tratamento conjunto de um paciente yanomamy no Hospital de Medicina Tropical,
em Manaus.
Foi o principal kumu que atendeu o caso da Luciane Barreto, vítima da picada de cobra
a quem os médicos em Manaus quiseram amputar a perna, com resistência dos parentes
indígenas; caso este que ganhou projeção nacional, ganhando depois uma proposição pioneira
de tratamento conjunto entre biomedicina e medicina indígena.
Esses dois fatos foram descritos no primeiro capítulo desta tese. Fora dessas
experiências, seu Ovídio conta que atende muitas pessoas na sua casa, indígenas e não
indígenas. Com orgulho fala que ficou bastante conhecido pelas pessoas do seu bairro na Praça
Catorze, na cidade de Manaus. Também é bastante conhecido na cidade de São Gabriel da
Cachoeira, além do público de sua própria região no Rio Tiquié.
158
José Maria Lima Barreto é meu irmão. Ele é kumu e também atua no Bahserikowi.
Nasceu na comunidade São Domingos, no alto rio Tiquié, alto Rio Negro, município de São
Gabriel da Cachoeira (AM) e tem, atualmente, 49 anos de idade. É o mais jovem de todos os
kumuã que atuaram no Centro de Medicina Indígena. Formou-se como especialista aos 30 anos
de idade, e desde os 31 exerce o ofício de kumu. É o segundo filho do kumu Ovídio Barreto.
Seguindo o caminho do seu avô e de seu pai, sem mesmo passar por formação clássica,
aprendeu kihti ukũse e bahsese.
José Maria conta que dominar bahsese é algo necessário e imprescindível para os povos
indígenas do alto Rio Negro, porque disso que eles vivem e sem isso a saúde dos povos não
existiria. Para dizer que isso é muito importante, José Maria conta fatos que aconteceram na
ausência do nosso pai na comunidade, momentos em que ele precisou dos serviços de outros
kumuã. No momento de cuidado e proteção para o parto de sua esposa, ele teve que buscar
especialistas que moravam longe de sua comunidade, pois sabia que sem se submeter ao
bahsese, ele, sua esposa e seu filho recém-nascido poderiam morrer. Assim, disse:
pela curiosidade, e aqueles que foram em busca do “pajé” como última alternativa de
tratamento.
Segundo o relato dos colaboradores do Bahserikowi, quando o Centro foi criado, este
surgiu como uma novidade aos olhos do público e dos formadores de opinião, sobretudo da
mídia televisiva e escrita. Vale lembrar, por exemplo, que no dia da inauguração do Centro,
teve presença maciça de repórteres dando cobertura ao vivo, o que levou a uma reação imediata
do público, que no dia seguinte apareceu em massa para matar a curiosidade e conhecer o
“pajé”. Nas palavras de um dos colaboradores:
Chegavam famílias inteiras para fazer consulta, mas na verdade era apenas um
membro da família que precisava, entretanto todos os membros faziam
questão de acompanhar. Estava claro que as pessoas chegavam aqui mais pela
curiosidade do que mesmo para se consultar. (Fundação do Bahserikowi,
informações de 2017 a 2019).
Primeiro, a expectativa da maioria das pessoas era encontrar o Centro nos moldes de
uma “maloca”, tal qual como elas conheciam por mídia ou imaginavam, ou ouviram falar sobre
os índios. Quando essas pessoas chegavam na casa onde fica o Centro, sofriam o primeiro
impacto, pois encontravam um espaço “normal”, quase sem nenhum elemento de sua
imaginação. Ficavam ainda mais intrigadas quando se encontravam com o pajé, pois diziam
que era diferente de uma pessoa que elas imaginavam encontrar, um senhor de cocar, colares,
seminu, e de maracá para fazer ritual de cura.
Pude ver as diferentes reações das pessoas durante alguns meses que fiquei nos
ambientes do Baserikowi, conversando com as pessoas que lá iam, como descrevo alguns casos
a seguir.
Certo dia, chegaram pessoa de uma família do Rio Grande do Sul dizendo que souberam
do espaço via internet e que queriam conhecer o pajé. Enquanto aguardavam para ser atendidas
pelo kumu, perguntavam à recepcionista como era o pajé, de onde ele era, qual era sua etnia, o
que ele fazia para curar as doenças, se falava português, há quanto tempo ele era pajé, quantas
pessoas já tinha curado, se ele usava cocar, se tinha cachimbo. Disseram que ficaram curiosas
ao saber que os índios em Manaus tinham criado um hospital, por isso queriam conhecer.
Ansiosas, entraram na sala e saíram rindo e comentando que pensavam encontrar um pajé todo
pintado, com cocar, mas encontraram um senhorzinho, vestido de roupa, sorridente e falando
português.
161
Outro caso interessante que presenciei foi de um rapaz, que perguntou se o Centro era
uma “casa do pajé”. Sendo confirmado, a primeira coisa que perguntou foi como era o pajé, se
ele usava cocar, se tocava tambor, se fazia ritual de cura, se baforava fumaça e o que ele usava
para curar as doenças. E continuou dizendo: “Vocês não têm flecha, não pintam o corpo? Vocês
são índios mesmo?” Com todas estas perguntas, o jovem visitante conseguiu “encher a
paciência” da colaboradora do Centro.
A elaboração cultural acerca dos povos indígenas se dá necessariamente a partir da ideia
de desenvolvimento, ou ainda da ideia de evolução propagadas pelas mídias ou mesmo pelos
livros didáticos. As pessoas afetadas por essas imagens sobre os indígenas os vêem como
exóticos, extraterrestre, que vivem nas matas, como aqueles que ainda não desenvolveram a
escrita, tecnologias e teorias.
Numa certa manhã, chegou ao Centro uma senhora, aparentando 40 anos de idade, deu
seu nome na recepção e logo disse que queria falar com o pajé. Como havia algumas pessoas
na sua frente, a atendente disse que era para ela esperar a sua vez de ser atendida. Aparentemente
insatisfeita, a senhora começou a indagar se o pajé era mesmo bom para “descobrir doenças”.
A senhora continuou insistindo com as perguntas, querendo saber quantas pessoas o pajé já
tinha curado, de onde ele era, onde morava etc. Chegada sua vez de ser atendida, ela entrou,
ficou diante do kumu e disse: “quero que senhor descubra que doença eu tenho”. Diante da
pergunta inusitada, o kumu Ovídio Barreto, sem muitas palavras disse: “não senhora, você que
vai me dizer o que sente, e quais são seus problemas”. A mulher continuou insistindo e, um
pouco mais agressiva, disse: “ele não é pajé? Então eu quero que ele descubra as doenças que
eu tenho”. Diante da negação do kumu e do clima tenso, a mulher foi embora resmungando e
decepcionada.
No outro momento, chegou uma senhora bem vestida, carregando um livro embaixo dos
braços. Nesse momento, não tinha nenhum visitante na sala esperando, e logo ela foi atendida
pela colaboradora. Quase que discretamente começou a conversar com a jovem colaboradora e
a primeira pergunta foi: “como o pajé faz para curar as pessoas?”
A jovem explicou-lhe sobre os procedimentos adotados pelo kumu para diagnóstico e
tratamento e ela continuou dizendo: “então ele é pajé curandeiro? Ele descobre mesmo a
doença? Ele cura mesmo? O que ele usa para curar os doentes? Ele reza, faz o que? As pessoas
acreditam nele?” Foram tantas perguntas que um dos jovens indígenas colaboradores do Centro
se encorajou e começou a explicar a ela que o Centro e o pajé não tinham nada a ver com aquilo
que ela estava pensando ou imaginava. Era um Centro que tratava os doentes com técnicas
indígenas e também o kumu, chamado de pajé pelos não indígenas, não podia ser comparado
162
com curandeiro e nem com um feiticeiro. Concluiu dizendo que o kumu passava por uma
formação assim como um médico, por isso dominava os processos de diagnósticos e tratamento
de doenças, mas com o modelo indígena e não de médico. Depois de ter ouvido isso, a visitante
disse que havia chegado até o CMI somente para conhecer, em seguida agradeceu a recepção e
retirou-se dizendo que era evangélica.
Segundo o colaborador, Ivan Barreto, as pessoas iam ao Centro mais pela curiosidade,
influenciadas pelos noticiários que assistiam na televisão. Ele diz que a fundação do
Bahserikowi foi uma novidade para todos, sobretudo, com o anúncio de tratamentos de doenças
pelo pajé.
seduhti (ataque dos waimahsã durante o período de maior vulnerabilidade da vida), Waimahsã
wiseri daramagu weõseduhti (ataque dos waimahsã pela “invasão” às suas casas). Para cada
caso, existe bahsese de prevenção contra o ataque e de fórmulas de tratamento.
Os casos de waimahsã weõse duhti. Seu Antônio aparentava ter cinquenta e poucos
anos. Quando entrou na sala e me viu próximo do kumu, e bastante curioso foi logo perguntando
o porquê de minha presença, ao que respondi que o kumu falava muito pouco o português, razão
pela qual eu estava ali para auxiliá-lo como tradutor.
Após concordar com minha presença, seu Antônio começou a expor seus problemas de
saúde. Sentia fortes dores de coluna há quase oito anos. Olhando fixamente ao kumu, disse que
passou a perceber que os remédios que tomava não faziam mais efeito, e cada vez mais sentia
dores mais intensas. Não conseguia dormir à noite, exceto depois que tomava calmantes. Muitas
vezes ficava acordado, rolando na cama. Contou ainda que já havia se submetido a vários
tratamentos e nunca melhorou completamente.
Diante do quadro apresentado por seu Antônio, o kumu passou a explicar-lhe que as
dores poderiam ser consequência de ataque dos waimahsã, certamente sofrido nos períodos de
pós-parto de sua esposa, mais especificamente durante o banho do seu Antônio logo após o
nascimento de seu filho(a). Com todo o esforço, o kumu explicava que durante esse período o
corpo dos pais da criança exala um cheiro forte e isso desperta o desejo dos waimahsã, desejosos
que são da “força vital” do recém-nascido e de seus pais.
Os waimahsã atacam a pessoa usando qualquer tipo de instrumento ao seu alcance. Um
deles é a própria água, com a qual defere seu ataque no momento do banho no rio. Aqui, ressalto
que o ataque dos waimahsã só ocorre nos ambientes de fora de casa. No caso de banho no
banheiro de casa, os waimahsã não atacam, devido que esses seres não estão presentes.
Outra forma é a provocação de queda repentina da pessoa, o que significa que os
waimahsã estariam laçando a corda (cipó) nos pés da pessoa e o puxando com força,
provocando queda.
A situação de incômodo do seu Antônio, para o kumu, estava muito clara, era fruto do
ataque de waimahsã, que viviam no domínio dos ambientes aquáticos ou dos espaços
terra/floresta. Seu Antônio ficou ouvindo a explicação do kumu e balançava a cabeça dando
sinal de compreensão.
Dona Ana é natural de São Gabriel da Cachoeira, mas dizia residir em Manaus há muito
tempo. Contou que sempre viajava à sua cidade de origem para visitar seus familiares. No
encontro com o kumu, relatou que sentia muitas dores no corpo. Contou que as dores nos ossos
começaram durante seu banho de pós-parto. Ao entrar na água, sentira um choque como que
164
alguém lhe atingisse com algum instrumento sólido nas pernas. Mesmo assim, tomou banho,
mas desconfiou que pudesse ter sido atacada pelos “encantados”. Quando saiu da água, sentiu
que as dores se intensificavam, atingindo seu corpo inteiro, somado com a sensação de muito
frio a ponto de ficar tremendo.
Foi ao médico, fez todos os exames solicitados, mas não obtivera sucesso. Segundo dona
Ana, “as máquinas não acusaram nada”. Ainda pela indicação do médico, comprou um gel e
uma pomada, e usava cotidianamente. Não tendo resolvido seu problema, buscou-se tratar
também com os kumuã, moradores de São Gabriel da Cachoeira. Sentiu um pouco de alívio das
dores, mas não foi curada. Dona Ana dizia saber que os “encantados” lhe atacara durante o
banho, pois estava num período de pós-parto, e lembrava das recomendações de sua mãe e avó
sobre os perigos dos seres encantados nesse período da vida.
Para o kumu não havia dúvida de que dona Ana tinha sofrido ataque dos waimahsã
durante seu banho pós-parto, que eles teriam usado as ondas da água como instrumento de
ataque ou de algum animal aquático para atingir suas pernas. Estava caracterizado que ela não
tinha recebido nenhuma proteção de bahsese especificamente para este momento do seu banho
– o que era necessário.
O kumu disse a dona Ana que ela poderia ter morrido naquela hora, se não tivesse
minimamente usado algum tipo de proteção, seja para esta finalidade ou para outras ocasiões
de perigos. Explicou ainda que as dores, com o passar dos dias, poderiam se agravar, deixando-
a numa situação de definhamento das pernas, com consequente paralisia.
Dito isto, o kumu pediu para uma colaboradora um copo com água para começar a fazer
o bahsese. Mas, antes, perguntou o nome completo da dona Ana, só depois começou a versar
as palavras e o sopro sob a água. Fez bahsese com água numa sequência de três vezes. Na
primeira e na segunda, quando terminava a formulação verbal, pedia à dona Ana para tomar um
gole, e na terceira vez, concluindo a sessão, pediu para que tomasse toda a água do copo.
Segundo o kumu, essa primeira sessão consistia na reorganização e reconexão de todas
as dimensões de sua força vital, para depois articular bahsese de abrandamento das dores.
Em seguida, fez bahsese com gel fabricado com óleo de peixe poraquê, usado como seu
“elemento agenciador”. Sob o gel, o kumu versou bahsese de abrandamento das dores. O
procedimento foi o mesmo, fez bahsese por três vezes seguidas, sendo que, na primeira e na
segunda, assim que terminava, pedia à paciente para que passasse o gel no corpo. Na terceira e
última vez, pediu à dona Ana que usasse o gel no corpo em casa antes de dormir.
Dona Denise chegou à sala do kumu conduzida por um colaborador. Sentou-se no banco
diante do kumu com semblante de tristeza. O kumu saudou-a, deu boas vindas e, em seguida,
165
perguntou de onde ela era. Ela se identificou como natural do município de Autazes, cidade da
região metropolitana de Manaus. Relatou seu problema de saúde dizendo que por algum tempo
sentia fortes dores nas juntas e algumas partes do corpo, que toda noite tomava os comprimidos
de remédios receitados pelo médico. Entretanto, sentia que não aliviava suas dores, como no
início do tratamento. Sentindo muitas dores, ela chegava a tomar doses excessivas do remédio,
além de usar de muito gel no corpo. Resumindo, disse que seu corpo estava ficando
comprometido, pois não conseguia ficar em pé e andar sem suporte, passando a depender de
ajuda de terceiros.
Após esses relatos, o kumu perguntou quanto tempo estava com o problema e se ela
lembrava como começou. Dona Denise respondeu que as dores começaram há muito tempo,
ainda quando era moça. Foi ao médico, fez consulta e este lhe recomendou usar um tipo de gel.
No começo, quando passava o produto no seu corpo sentia alívio das dores, mas com o passar
do tempo, as dores foram atingindo outras partes do corpo, os joelhos e os cotovelos dos braços.
Sob pedido do médico, fez vários exames e recebia receita de comprimidos e gel. No entanto,
ela começou a sentir que os remédios não produziam mais o efeito desejado, de modo que
passou a recorrer às outras alternativas, inclusive a auto medicação. Nesse tempo, soube da
notícia da fundação do Bahserikowi, razão pelo qual estava ali para fazer tratamento com o pajé
e por acreditar na terapia indígena.
Após a exposição da dona Denise dos seus problemas de saúde e de sua busca pela cura,
o kumu falou que as dores nos joelhos e as dores no corpo seriam consequência de ataque dos
waimahsã, sofridos durante períodos de maior vulnerabilidade ao longo de sua vida, sobretudo
durante a menstruação, períodos de gravidez e pós-parto. Contou que nesses momentos a
mulher não pode circular nos lugares como praias, cachoeiras, lagos, serras, floresta ou tomar
banho no rio sem a devida proteção. Explicou a ela que todos esses lugares eram casas de
waimahsã. Estes ficavam raivosos por causa da infestação, pelo sangue, na sua casa e nos seus
artefatos. Além disso, a mulher, nessas situações, fica na condição de muita sedução sexual, do
ponto de vista dos waimahsã, pelo cheiro que exala do seu corpo. Por tudo isso é que os
waimahsã partem para atacar a pessoa.
Ainda contou que na condição de gestante, a mulher também fica na condição de
moãstise, isto é, apresenta cheiro forte no corpo, o que faz atrair os waimahsã. O kumu também
pediu para explicar que, durante o período de gravidez e pós-parto, o esposo também fica sob
ameaça da ação dos waimahsã, também por ter o seu corpo cheirando forte. Assim, ambos
devem adotar certos cuidados para mitigar os ataques.
166
Explicou ainda que os waimahsã usam como seus instrumentos de ataque as “ondas” da
água, a temperatura da água, a brisa ou outros elementos. Na pessoa, seus ataques se manifestam
como dores nos joelhos, inchaço de pernas, tremedeira, sentimento de frio incontrolável, e se
não forem tomados os devidos cuidados, a pessoa pode morrer.
O kumu, pacientemente, explicou para dona Denise sua concepção sobre as doenças que
lhe afetava. Ela ficou atenta às explicações, e mesmo sem entender muito dizia saber que seus
problemas poderiam ser mesmo consequência do ataque dos “espíritos”. Comentava dizendo
que acreditava no pajé, que as doenças dos espíritos só o pajé podia curar e que a medicina não
curava.
Depois, o kumu pegou um copo com água, perguntou seu nome e começou a fazer
bahsese. Na primeira vez, deu para ela tomar um gole, retomando o copo com água, fez
novamente o bahsese, terminando, deu para ela tomar mais um gole. Finalizou a sessão, pedindo
a ela que tomasse toda a água. Em seguida, perguntou se ela tinha algum remédio, como o gel
de seu uso com ela. Ela não havia levado, mas, o kumu disse que ia fazer bahsese de
abrandamento das dores no corpo e dos joelhos com a água, de modo que ela pudesse passar no
seu corpo, mas recomendou que no seu retorno pudesse trazer os remédios de seu uso, que sob
estes ele ia fazer bahsese. Assim fez, recomendando que ela retornasse três vezes por semana
durante duas semanas.
Fiquei bastante curioso com as exposições do kumu em relação aos perigos de tomar
banho durante os períodos mais vulneráveis da vida, sobretudo da mulher. E fiz a ele a seguinte
pergunta: por que as mulheres não indígenas não sofrem ataque mortal dos waimahsã durante
esses períodos, ou seja, no período de menstruação, gravidez, pós-parto...? A primeira resposta
foi dada considerando o uso cotidiano da cebola e do alho na comida. Disse-me Ovídio que o
cheiro da cebola e do alho tomava conta da casa, do ambiente. Igualmente, o mesmo cheiro
tomava conta do corpo da mulher e do homem, de modo que eles exalavam este cheiro, servindo
como um escudo de proteção, afastando assim a presença dos waimahsã.
Em relação ao ataque específico às mulheres no seu período de menstruação e pós-parto,
o kumu foi enfático em dizer que as não indígenas tomam banham em casa, e não no rio como
os indígenas. Assim, sua casa ficava livre dos waimahsã por conta do cheiro do alho e da cebola,
odores estes que os waimahsã detestam e com isso não se aproximam das pessoas nem de suas
casas. De igual modo, eles também falaram sobre a maternidade, ou seja, as mulheres não
sofrem ataque dos waimahsã porque depois do parto elas tomam banho dentro de banheiros
(“fechados”).
167
Durante esse período de maior vulnerabilidade, circular nos lugares (ambientes) como
praias, cachoeiras, lagos e floresta é muito perigoso, segundo o kumu Ovídio. Andar por lugares
sem a devida proteção é expor a criança e sua mãe como presas fáceis dos waimahsã, que podem
ser atraídos pelo cheiro do corpo. As consequências podem ser graves, como por exemplo, o
“roubo” da força vital da criança. Quando isso acontece, a criança pode nascer com problema
“mental” ou com alguma deficiência física. No caso da mãe, as doenças podem surgir na forma
de fortes dores musculares, dores nas juntas do corpo, nos joelhos, inchaço nas pernas, náuseas,
tonteiras, podendo agravar e levar à “loucura”. O pai também corre os mesmos riscos.
Cada caso apresentado, do ponto de vista dos especialistas indígenas, estava associado
diretamente aos ataques de waimahsã, que são seres que habitam nos domínios dos espaços
aquáticos, da terra/floresta e nos espaços aéreos. Segundo os kumuã, o que mais ofende os
waimahsã é o cheiro e o fluído do corpo produzidos durante a menarca, a gravidez e o parto,
pois, contaminam suas coisas, seus objetos e espaços. Para essas ocasiões, as pessoas devem
submeter-se ao bahsese de proteção, um processo chamado wetidarese.
Essa relação cosmopolítica é uma das chaves para diagnosticar os desconfortos com as
características acima apresentadas. Presenciei vários casos em que os kumuã lançavam dessa
chave para explicar as origens das afecções das pessoas que iam se consultar e tratar com eles
no Centro de Medicina Indígena.
Outro ataque é waimahsã wiseri daramagu weõseduhti. O princípio básico da relação
cosmopolítica respeitado pelos povos indígenas do Alto Rio Negro é considerar que os espaços
aquáticos, terra/floresta e aéreo são habitados pelos waimahsã, conforme já foi postulado. A
partir dessa concepção, constroem-se redes de relações entre os humanos e os waimahsã.
Falando dos lugares de habitação do waimahsã e seus perigos, o kumu Ovídio Barreto
preferiu contar uma história que acontecera com ele, que quase ficou cego como consequência
de sua brincadeira de mau gosto, quando jogou uma casa de cupim numa lagoa que ficava no
centro da floresta durante uma caçada.
Certo dia, durante o período em que seu filho primogênito acabara de nascer, ele e seu
cunhado decidiram ir caçar nas redondezas da cachoeira do Caruru, um lugar bastante
conhecido pelos seus perigos. Andaram na floresta sem conseguir nenhuma caça e, num dado
momento, avistaram uma lagoa, aparentemente sem nenhum perigo. Ao aproximaram-se,
ficaram admirados, e Ovídio, um pouco raivoso, pegou a casa de cupim e atirou bem no meio
da lagoa. Feito isso, e sem dar conta do perigo, seguiram o caminho de volta para casa. Nesse
momento, Ovídio disse que começou a sentir algo estranho nos seus olhos, como se algo lhe
tivesse atingido. Mas, ele estava ciente de que em nenhum momento acontecera algo de
168
estranho durante a caçada. Chegaram em casa à tardinha, mas a coceira nos olhos agravava cada
vez mais. Suspeitou que fosse conjuntivite, e logo procurou se medicar e se submeter ao
bahsese, mas sem sucesso.
Além da coceira, começou a sentir também muita dor no corpo. Contou que passou a
noite inteira com muita dor e sem dormir. No outro dia, o desespero foi maior, tendo recorrido
a vários especialistas no bahsese. Na noite seguinte, de tão cansado, disse ter “desmaiado” e,
sob essa condição, viu que a lagoa era uma casa de waimahsã, um grande bahsakawi e tinha
muitas pessoas morando naquele lugar. Percebeu, então, que, quando jogou a casa de cupim na
água, ele havia agredido o dono daquele lugar. Nesse momento, entendeu que os waimahsã
tinham revidado aquela agressão na forma de ataque aos seus olhos.
Por fim, falou que acordou assustado e logo procurou contar tudo ao especialista. Este,
por sua vez, recomendou procurar outro especialista. Foi o que seus pares fizeram. No dia
seguinte, foram chamar um yai que morava numa outra comunidade distante. Assim que
chegou, este especialista logo diagnosticou que duhtitise era ataque de waimahsã. Fez
tratamento durante uma semana, conseguindo livrar Ovídio de uma iminente cegueira.
A partir dessa experiência pessoal, seu Ovídio recomenda que é sempre necessário
respeitar os lugares que não se conhece. Por mais que pareça insignificante, primeiro deve haver
a comunicação com os seres (waimahsã) responsáveis pelos lugares para garantir a segurança.
Como já foi comentado em vários momentos, alguns lugares ou ambientes que
constituem os espaços aquático, aéreo e terra/floresta, são considerados casas de waimahsã, que
são humanos que habitam e cuidam desses espaços. Qualquer investida dos humanos sem a
devida comunicação é tida como invasão aos seus domínios pelos waimahsã.
Os mecanismos de proteção adotados pelos waimahsã às suas moradas e seus entornos
são equivalentes aos mecanismos de proteção que os humanos adotam para proteger suas casas
e seus entornos, como a adoção de cachorros e proteção com bahsese. Os animais participam
como sinalizadores de invasores.
Durante o tempo em que acompanhei, como intérprete do kumu, percebi que outra chave
de diagnóstico das doenças é o chamado Ba´ase ba´abokase duhtituri. Na concepção indígena
(tukano), não basta os alimentos serem lavados com a água ou com outros produtos para
descontaminar, também é necessário submetê-los aos bahsese para matar os pequenos bichos e
suas contaminações.
169
Outra pessoa que chegou para se consultar com o kumu, e alegando problemas de
garganta, foi a dona Zelinda, de setenta e sete anos. Dona Zelinda relatou que sentia uma coceira
incomum na garganta e achava que isso fosse consequência de idade. Outro problema relatado
foi que sua pele começou a ficar seca, que não era comum, porque ela conhecia bem seu corpo.
Preocupada com a situação da garganta, foi fazer exame e descobriu que estava com nódulos
na tireoide. O médico lhe receitara remédios, mas ela queria fazer também tratamento com o
pajé porque acreditava na cura com benzimentos e plantas medicinais. Contou ainda que
conhecia algumas “rezadeiras” na cidade, com as quais de vez em quando ela recorria para se
tratar de certos problemas de saúde, e teria obtido bons resultados.
Depois de ouvir seus relatos, o kumu começou a explicar à dona Zelinda que a causa de
doenças na garganta, na maioria dos casos, era em razão do consumo de frutas.
Da mesma maneira que nos casos anteriores, o kumu fez o bahsese com água por três
vezes, concluindo assim a primeira sessão do tratamento. Na primeira e na segunda vez, pediu
à paciente para que tomasse um gole de água, e na terceira pediu para que tomasse o restante.
Orientou-a para que evitasse o consumo de frutas até o fim do tratamento.
Durante o intervalo, o kumu Ovídio me contou que os alimentos, quando expostos,
atraem vários tipos de bichinhos, e estes vão comendo os alimentos do seu modo, mas que nós
não conseguimos ver.
Outro caso foi da dona Francisca, uma senhora de oitenta e três anos. Contou ao kumu
que há cinco anos estava com problemas de coceira no corpo, e que também sentia muita tontura
e cansaço. Estava tomando remédio, e passava gel no corpo, mas que não sentia melhora na
coceira. A lógica de explicação e o protocolo de tratamento à dona Francisca foram os mesmos
que nos casos anteriores.
Em outros momentos de conversas que tive com os kumuã, me relataram que existem
vários tipos de doenças causadas pela alimentação. As frutas, por exemplo, podem causar
manchas na pele, coceiras, feridas, entre outros, além de problemas internos no corpo, como
doença na garganta, no estômago, no útero e intestinos, que são consequências do ataque dos
bichos das frutas.
Assim, quando se consome os alimentos sem eliminar estes bichos, (como fala no
conteúdo do bahsese: “arrancar, cortar suas línguas, triturar seus dentes, limpar e jogar bem
longe”), eles continuam comendo o corpo da pessoa. Os riscos são maiores durante os períodos
considerados mais sensíveis da vida, sobretudo durante menarcas, primeira semana de pós-
parto, após grandes festas de poose com uso de kahpi e miriã.
173
Outro caso semelhante foi o da Deusimar, uma jovem de vinte e oito anos. Entrou na
sala de atendimento bastante tímida e, ao ver o kumu, abriu um sorriu discreto. Percebendo sua
timidez, o kumu pediu para que a moça ficasse tranquila, que ele estava ali para lhe ajudar no
que ele pudesse. Depois do conforto do kumu, a jovem suspirou aliviada e começou a relatar
seu problema.
Contou que estava com feridas no corpo e muita irritação de pele, que teriam começado
há algum tempo atrás, mas que nesse ano teria se agravado. Tomava remédio, mas que não
surtia muito resultado. Submeteu também a outros tratamentos alternativos e automedicação,
sem sucesso.
O kumu, bastante atento, ouviu os relatos da jovem, e depois que ela concluiu, pediu
licença para fumar seu cigarro. Saiu da sala, demorou um pouco, e quando retornou à sala deu
um suspiro profundo e, sentando-se, pediu para que eu falasse para a jovem que seu corpo
estava sendo atacado por bichos, e que logo ela ficaria boa com bahsese. Em seguida, ele fez
bahsese por três vezes e recomendou que a paciente retornasse mais vezes.
Durante o intervalo de atendimento, meu pai, kumu Ovídio, me contou sobre a
importância do ba´ase bahse ekase, o cuidado com a criança, algo bastante sério e delicado.
Disse que as mulheres não indígenas não têm noção dos perigos dos alimentos durante os
períodos em que estão grávidas e, nos momentos de parto, pós-parto e da primeira alimentação
da criança com alimentos sólidos.
Ba´ase yabi ba´agu duhtitise (afecções provocadas pelo consumo de caça e peixe). Seu
Franciney, de trinta e três anos, chegou ao Centro de Medicina reclamando de dor no estômago,
vômito e diarreia. Ele entrou na sala do kumu, se apresentou e passou a relatar os problemas
que sentia. Contou que começou a sentir dor no estômago havia quatro meses. Junto com isso,
também iniciou a vomitar e a ter diarreia. Tomou vários remédios, mas seu efeito era apenas
por um período de tempo. Via que sua situação piorava a cada dia e quando comia peixe grande,
como surubim, pirarara, tambaqui e pirarucu, a diarreia aumentava.
Sem resultado com o tratamento médico, seu Franciney pensou em procurar tratamentos
alternativos, quando, então, soube do Centro de Medicina Indígena. Disse que acreditava no
pajé, pois ouvira os seus colegas comentarem que as doenças que os remédios não curavam só
poderiam ser doenças causadas pelos espíritos da floresta e das águas, onde somente os pajés
sabiam curar. Crente nessa possibilidade de que doatisse e duhtitise pudessem ser causadas
pelos espíritos, ele estava ali para se tratar.
Depois de sua exposição, o kumu emitiu seu diagnóstico, pedindo a mim que dissesse
ao Franciney que seus problemas de saúde poderiam ser consequências de seu descuido com a
175
Heriporã bahseke wame é o nome da pessoa dado pelo especialista por meio de heriporã
bahsese, que é o processo de nominação da pessoa. Pelo heriporã bahseke wame a pessoa é
conectada a uma rede de relações como ao círculo de parentes próximos, ao trabalho, à
organização social, ao território, aos pertences da pessoa, assunto tratado no capítulo 1.
Segundo os kumuã, o desiquilíbrio dessa rede de relações, pode desiquilibrar o corpo,
sobretudo na dimensão “psicossomática” da pessoa. O assunto é complexo, entretanto, com
muito esforço consegui organizar alguns fatos, que a seguir apresento
A saudade de alguém morto pode causar o desequilíbrio da pessoa e, consequentemente,
afetar sua qualidade de vida. Esta situação é chamada de heriporãduhari. Diz respeito à saudade
do ente querido falecido, mais especificamente, esposa, esposo, filhos, pai, mãe e irmãos
consanguíneos.
Os especialistas recomendam que as pessoas que perderam um parente ou um amigo se
submetam ao bahsese. Seja para aliviar a dor da saudade ou para encurtar o tempo de luto
emocional.
Seu Adalberto é um senhor de setenta e três anos, e chegou ao Centro de Medicina
reclamando de dores nas costas. Bastante otimista com o possível resultado do tratamento
indígena, contou ao kumu que seu problema era um caso que vinha sofrendo há muito tempo,
mas que já estava fazendo tratamento. Depois passou a contar sobre o falecimento de sua
esposa, vítima de câncer. Desde então, ele foi tomado pela tristeza e solidão. Dizia que ficou
numa situação que seu estado de ânimo acabou, a saudade tomou conta, assim como as
preocupações. Após alguns meses, surgiram mais problemas de saúde. Contava também que
muitas vezes chorava escondido de seus filhos, pois não queria causar-lhes preocupação. Com
tantos problemas, ele adoeceu, e passou a sentir mais dores nas costas, dor de cabeça, perdeu
peso, enfraqueceu, e vivia tomando calmantes e outros remédios contra as dores, mas nada
sentiu de melhora.
176
medicamento por conta própria. Notando que o kumu o ouvia atentamente, com sorriso discreto,
Mateus disse que acreditava que o pajé poderia lhe curar, que o desespero e ansiedade eram
doenças espirituais.
O kumu me pediu, na condição de tradutor, para explicar a Mateus que ele teria sofrido
o heriroporã bahtase com a batida do carro. Ou seja, houve uma desorganização de sua força
vital. O especialista pediu para dizer ainda que o susto repentino era algo muito perigoso, pois
a pessoa podia perder o equilíbrio emocional e a organização do pensamento para sempre. Dito
isto, o kumu fez heriporã bahsese para reorganizar o estado emocional do paciente.
Mahsãre kamotapese (“fechar os caminhos”) é outra forma de provocar desiquilíbrio da
pessoa. No sentido literal seria: o especialista “fechar” os caminhos de sucesso da pessoa.
Josefa é uma jovem de trinta e três anos, natural do estado do Maranhão. Relatou que
trabalhava há muito tempo numa empresa, mas nunca havia sido promovida, ou reconhecida
pela sua dedicação pelos seus superiores. Contou que se dedicava com muita responsabilidade
ao seu trabalho, e seu chefe nunca percebeu e a valorizou. Via seus colegas de trabalho,
contratados depois dela, serem promovidos dentro da empresa. Desanimada pela “cegueira” de
seus superiores, pensou em pedir demissão por várias vezes. Entretanto, mesmo decepcionada
com a situação, ainda acredita que seu chefe, num dado momento, abriria os olhos e lhe
promoveria para a função de trabalho que ela almejava.
A jovem dizia acreditar que alguém estaria atacando-lhe espiritualmente para seu
insucesso na vida profissional, achava que as pessoas estariam fechando todas as possibilidades
de seu sucesso.
O kumu ouviu atentamente a história da jovem sem lhe interromper, depois pediu para
perguntar se ela utilizava algum meio de proteção pessoal, e ouviu sua confirmação. Com a
confirmação, pediu para falar que às vezes o excesso de proteção sobre si mesmo, super-
proteção, poderia acabar por “fechar” as visibilidades da pessoa. A pessoa ficava invisível
diante dos outros, nunca era lembrada, nunca era convidada para nada, porque ficava dentro
dos artefatos de proteção, de modo a ficar escondida diante dos outros. A proteção excessiva
podia ofuscar a pessoa, e dificultar a busca de emprego, a busca de promoção de cargos no
trabalho, até mesmo nas relações de amizade.
Ouvindo os comentários do kumu, a jovem ficou em silêncio, mas, no final, ela admitiu
que algumas vezes já teria recorrido aos rezadores para pedir a proteção. Mas, dizia acreditar
mesmo no trabalho feito por alguém contra sua pessoa para não ser promovida na empresa em
que trabalhava.
179
O kumu, tendo dado seu diagnóstico, disse à jovem que ia fazer bahsese, primeiro para
fortalecer seu “espírito”, reorganizando sua força vital, e em seguida explicou que ia “abrir”
seu caminho. Para a sessão de bahsese, utilizou-se do perfume que ela usava, recomendando
que usasse todos os dias ao sair de casa.
Mahsare dohapese: agressão interpessoal por “feitiçaria” é outra forma de agressão
causando desiquilíbrio do corpo. Segundo os kumuã, existem várias formas de agredir as
pessoas, tanto fisicamente quanto com a utilização de usero behtise (feitiçaria), que são
fórmulas de bahsese de agressão, oposto ao bahsese como fórmulas “terapêuticas”. Como dito
anteriormente, nem todos os desconfortos podem ter origem pela agressão interpessoal, neste
caso, a experiência do especialista em diagnosticar é fundamental para evitar a injustiça de
acusar alguém inocente.
Durante minha convivência como intérprete na sala de atendimento do Centro de
Medicina, presencie o caso de uma senhora que pedia ao kumu que fizesse trabalho de agressão
contra um desafeto seu. O pedido foi veementemente negado pelo kumu. O kumu disse-lhe que
não era sua especialidade, que ele dominava apenas as fórmulas “terapêuticas” de bahsese de
cuidado do corpo e de seu desequilíbrio.
Um corpo desprotegido está sujeito ao ataque do sol, da chuva, dos raios, dos trovões,
do escuro, do chuvisco e do sereno da noite, chamado de “saliva das estrelas”; e, para evitar os
riscos, a pessoa deve submeter-se ao bahsese de proteção.
Certo dia, chegou ao Centro de Medicina Indígena uma senhora acompanhada de seu
esposo. Entrou na sala de atendimento, saudou o kumu e depois sentou-se com o olhar fixo no
kumu. Começou a relatar seus problemas de saúde, dizendo que estava com muita dor de cabeça
fazia um bom tempo. Tomava remédio desde que começou a sentir dor, e com o tempo, seus
joelhos também começaram a inchar, agravando sua situação de saúde.
O kumu, depois de ouvir os relatos, disse que era muhipu ahsise pose, consequência de
muita exposição ao sol. Primeiro, fez bahsese com a água, pediu para explicar que isso era
heriporã bahsese, reorganização de sua força vital. Depois, fez bahsese com o cigarro para
tratar da dor de cabeça. Soprou a fumaça bem no centro da cabeça, em seguida, soprou nos seus
ouvidos e sobre seus joelhos. Fez bahsese com cigarro por três vezes, repetindo o sopro da
fumaça sobre a dona Maria. Terminada essa parte, fez bahsese por três vezes para a dor e o
inchaço do joelho, usando uma pomada a base de peixe puraqué, pedindo para aplicar duas
180
vezes naquele momento, e a última antes de dormir. Concluindo o trabalho, recomendou para
ela retornar por mais duas vezes.
Em outro momento chegou uma jovem com problema de dor de cabeça. O kumu ouviu
atentamente o relato da jovem, ficou bastante pensativo. Depois pediu para dizer que a causa
da dor de cabeça, do ponto de vista dele, poderia ser o fato de ela ter sido atingida pela
intensidade de raios do sol em algum momento de seu período de menarca. Por isso, ele preferia
começar com essa “hipótese” e fazer bahsese para abrandar a dor. Se não tivesse reação de
abrandamento ao longo do período de tratamento, ele lançaria outras fórmulas de bahsese.
O procedimento adotado para o tratamento foi o mesmo procedimento adotado com a
dona Maria, isto é, o kumu fez bahsese com água e cigarro. Pediu para retornar por mais três
vezes.
Durante o tempo de nossas conversas, meu pai Ovídio me contou que existem muitos
desconfortos corporais causados pelos fatores naturais como corrente do calor, corrente de ar,
relâmpago, trovoadas intensas, escuridão, garoa, entre outros fenômenos. Segundo ele, para
evitar tais desconfortos é necessário que a pess oa se submeta ao bahsese de proteção (criação
de sombra sobre a pessoa) e à composição de elementos “repelentes” no corpo.
Compreender os perigos dos “fenômenos naturais” é fundamental para o especialista
indígena, pois isso pode causar uma série de desconfortos corporais. Por isso, é frequente a
recomendação para que a pessoa faça a proteção do corpo contra possíveis desconfortos
causados pelos fenômenos.
9. Alguns comentários
prática, não estabelece uma comunicação com os “espíritos”, conforme Vidille (2006) apresenta
em seu trabalho:
Em seus procedimentos de cura, pede ao doente que lhe descreva o mal e sua
localização corporal. Concentra-se, pronunciando frases ritualísticas em
língua tukâno. Diz estabelecer comunicação com “espíritos”, dos quais ouve
explicações a respeito da doença em questão, da causa e tratamento
necessários, repassando-as ao doente. Em alguns casos, complementa a
terapêutica com receitas de infusão de ervas colhidas no mato ou com a
defumação do corpo do doente. (VIDILLE, 2006, p. 54).
A experimentação e seu resultado satisfatório parece ser o motor de interesse dos kumuã.
Se isso é verdade, não obstante, o kumu Ovídio declarou: “eu faço bahsese nos “brancos”
levando em conta os que eles comem (arroz, feijão, frituras, verduras, pão, carne bovina, leite,
café, conserva, sardinha, etc.). Quando faço isso sempre dá certo”. Como dito anteriormente,
os não indígenas que frequentaram o Centro de Medicina Bahserikowi foram lá com o modelo
de tratamento utilizado pela biomedicina, o tratamento alternativo, ou de curandeirismo. E os
especialistas indígenas que os atenderam estavam munido de conceitos e experiências próprios,
a partir dos quais, ao diagnosticar as afecções, lançam mão das técnicas terapêuticas
propriamente nativas, como as fórmulas de bahsese e plantas medicinais.
O sistema preventivo aparece como principal, consistindo na prática de um conjunto de
bahsese feito antes das coisas aconteceram, como, por exemplo, antes do aparecimento de certas
constelações estelares no céu, antes de uma grande seca, antes de grandes festas de poose, antes
do nascimento de criança, antes da mulher conceber a criança, antes do tempo de verão, antes
do tempo de cheia, antes do roçado, antes da construção da casa (bahsakawi), antes do
“tinguijar” (uso de venenos vegetais na pescaria) no rio e no lago, antes da alimentação à base
de peixes capturados com o uso do timbó ou da caça morta com curare etc.
O sistema preventivo/protetivo pode, portanto, ser definido como as práticas de bahsese
que antecedem qualquer evento social ou natural para mitigar seus perigos. É o princípio básico
para amenizar as circunstâncias desagradáveis que, porventura, as relações sociais e
cosmopolíticas venham a provocar. Daí, os três pilares do sistema preventivo: o cuidado com
as relações interpessoais (com waimahsã e entre pessoas), a mitigação de intempéries naturais
e a prevenção da contaminação dos alimentos. Isso inclui bahsese de assepsia de alimento para
a primeira alimentação da criança, bahsese para o parto sem complicações, bahsese de útero
para uma boa gravidez, bahsese para uma criança saudável, bahsese contra inveja e maus
182
desejos, bahsese para realizar boas viagens, bahsese para afastar o fantasma do morto e proteção
da pessoa, proteção da família, proteção da casa, proteção da comunidade, proteção da criança.
O sistema de tratamento das doatise e duhtitise é outro conjunto de Bahsese. Aqui,
entende-se o sistema de tratamento, ou “prática médica” como um conjunto de procedimentos
e meios utilizados pelo especialista para diagnosticar e articular bahsese usando elementos
como água, resina, tabaco, gel, perfume, como agenciadores de abrandamento e veículos de
cura.
No Centro de Medicina Bahserikowi, de acordo com o contexto onde está localizado, se
vê mais a operação desse sistema por meio do bahsese e o uso de plantas medicinais. As pessoas
que buscam o Centro já chegam aí acometidas por alguma doença e se submetem a várias
sessões de bahsese e são acompanhadas pelos kumuã.
Em muitos casos, de acordo com a complexidade, a pessoa pode ser submetida a várias
seções de bahsese, sendo também submetidas às restrições alimentares e, às vezes, até de
abstenção sexual. Da mesma forma, o tempo de tratamento é recomendado de acordo com a
gravidade da doença, assim como é recomendado o regime de dieta e abstenções.
Outra forma de tratamento oferecido pelo Centro é por meio de uso de produtos a base
de plantas medicinais. Da mesma maneira como bahsese, existem entre as plantas medicinais
aquelas que servem para uso preventivo, para proteção, e para tratamento.
Os kumuã afirmam que a floresta é uma farmácia natural e infinita. Nela, existem
inúmeras plantas que somente as pessoas especializadas conhecem e fazem a manipulação
correta para transformá-las em remédio. Algumas plantas estão relacionadas aos corpos dos
oãmahrã, na forma como se explica a sua origem, e em que ocasião foram utilizadas por eles.
A manipulação das plantas inclui, além do domínio do conhecimento sobre as
combinações entre os diferentes tipos de plantas, cuidados e etiquetas específicos como dieta
alimentar e abstenção sexual, o isolamento social, o horário de coleta, o tempo adequado (lua
cheia, minguante). No caso da mulher, exige-se, ainda, que ela esteja fora do período de
menstruação.
É legitimo que as duas formas de tratamento, pelo bahsese e pelo uso das plantas
medicinais, sejam usadas ao mesmo tempo em determinadas ocasiões. Segundo os kumuã que
atuam no Centro de Medicina, uma não anula a outra, pelo contrário, se complementam. Aliás,
vale dizer que o produto a base de plantas medicinais serve como elemento agenciador do
bahsese, em que o kumu, no lugar de usar ingredientes como a água, utiliza esse produto e versa
sobre ele o bahsese, considerando que seu diagnóstico corresponde com a mesma doença que
183
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentre os componentes constitutivos do corpo está o mahsã kahtiro, traduzido nesta tese
como humano/vida, uma vez que ele é que confere a condição de humano a um corpo, e que
deve, necessarimente, para sua completude, estar associado a um nome. É o nome, por sua vez,
que conecta a pessoa à vida social, isto é, o nome injetado pelo especialista para conectar o
corpo a uma teia de relações cosmológicas, com o território, com o grupo e sua organização
social, com a família, a casa, as atividades de produção e osaparelhos de trabalho, instrumentos
musicais, objetos e artefatos de caça,pesca etc.
Os operadores de Kihti ukũse e bahsese são os especialistas yai, kumu ou baya. Como
dito em outras ocasiões, os especialistas são aqueles que passaram pelo processo de construção
de corpo pela limpeza estomacal, pela dieta, abstenção sexual, isolamento social para se
submeterem à uma formação específica e rígida. Uma exigência indispensável para acessar ao
conhecimento de Kihti ukũse, Bahsese e Bahsamori pertencente ao domínio dos waimahsã
usando elementos como wiõ (rapé) para formar em uma dessas especialidades.
O investimento no corpo é a base para ser um bom especialista. O corpo é construído e
investido para adquirir “poder” de manipular metaquimicamente os elementos protetivos e
substâncias curativas contidas nos tipos vegetais, animais, minerais, aéreo e luminosos.
Além da força de evocação, outra função do especialista é a de manter um bom e constante
diálogo com os seres waimahsã dos mais diferentes espaços do cosmos, a fim de mantê-lo em
equilíbrio geral.
O desequilíbrio do cosmos e do corpo como síntese do cosmos, como um microcosmos,
pode se manifestar sob formas de surtos de doenças, acidentes, conflitos sociais, deficiências
físicas e mentais, impacto de fenômenos naturais, escassez de recursos naturais, desequilíbrio
nos “bioindicadores”, entre outros.
Os especialistas como detentores e produtores de “teorias” constroem e reconstroem os
conhecimentos e os discursos a todo momento, põem em dinâmica os discursos, ritos e
cerimônias, atualizam suas fórmulas de bahsese de acordo com a ampliação de seus novos
contatos e hábitos. A atualização dos conhecimentos diante dos novos contextos não significa
abdicar dos conhecimentos clássicos adquiridos, antes pelo contrário, atualiza-se o corpus de
conhecimento a cada dia, aprimorando-o incluindo, inclusive, novos elementos nas fórmulas de
bahsese para produção do cuidado do corpo, como foi possível ver no capítulo IV desta tese
sobre a prática terapêutica no Centro de Medicina Indígena Bahserikowi.
O domínio conceitual sobre o corpo se apresenta como fator fundamental para o oficio
do especialista e na ampliação das fórmulas de bahsese para cuidado da saúde sem fugir de sua
estrutura fundamentada nas concepções próprias de produção de cuidado do corpo.
186
Para encerrar a conversa, como eu disse, isso aqui não é um fechamento de ideias, mas,
antes, um começo de levar a sério o debate acerca da “epistemologia rionegrina”, em que a
noção de corpo tem um lugar especial e potente. Certamente outros colegas virão, apresentarão
seus contrapontos e novas ideias. Essa dinâmica é necessária e urgente para se chegar um dia a
uma verdadeira Antropologia indígena.
188
BIBLIOGRAFIA
AZEVEDO, Marta Maria. Povos indígenas no Alto Rio Negro: padrões de nupcialidade e
concepções sobre reprodução. Trabalho apresentado no XIV Encontro Nacional de Estudos
Populacionais, ABEP, realizado em Caxambu – MG – Brasil, de 20 – 24 de setembro de 2004.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 242.
Disponível: https://ria.ufrn.br/123456789/1133. Acessado: 15/07/2019.
BARRETO, João Paulo Lima, 2013. Waimahsã – peixes e humanos. Dissertação de Mestrado
em Antropologia Social, Universidade Federal do Amazonas, Manaus-AM, 2013.
BUCHILLET, Dominique. Los poderes del hablar: terapia y agresión chamánica entre los
indios Desana del Vaupes brasileiro. In: BASSO, Ellen; SHERZER, Joel (orgs.). Las culturas
latinoamericanas através de su discurso. Quito: Abya-Yala, 1990, p. 319-354.
189
GARNELO, L.; BUCHILLET D. Taxonomias das doenças entre os índios Baniwa (arawak)
e desana (tukano oriental) do alto rio negro (Brasil). Horiz. Antropol 2006, p. 231-260.
LASMAR, Cristine. De volta ao Lago de Leite: gênero e transformação no Alto Rio Negro.
São Paulo: Editora UNESP: ISA; Rio de Janeiro: NUTI. 2005.
LOLLI. Pedro. Atravessando pessoas no noroeste amazônico. Mana vol.20 no.2 Rio de
Janeiro Aug. 2014.
OLIVEIRA, Melissa Santana de. Sobre casas, pessoas e conhecimentos: uma etnografia
entre os TukanoHausirõ e Ñahuriporã, do médio Rio Tiquié, Noroeste Amazônico.
Florianópolis, SC, 2016, p. 463.
PEREIRA, Rosilene Fonseca. Dissertação. Criando Gente no Alto Rio Negro: Um Olhar
Waíkhana. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal do
Amazonas, Manaus-AM, 2013.
POZZOBON, Jorge. "Vocês, brancos, não têm alma". Histórias de fronteiras. Belém,
MPEG/UFPA, 2002.
SEEGER, A.; DA MATTA, R., CASTRO, E. V. de. A construção da pessoa nas sociedades
indígenas brasileiras. In: OLIVEIRA FILHO, J.P. (Org.). Sociedades indígenas e indigenismo
no Brasil. Rio de Janeiro: Marco Zero; UFRJ, 1987.