Delinquência Juvenil Família e Escola

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Pedro Moura Ferreira* Análise Social, vol. XXXII (143), 1997 (4.º-5.

º), 913-924

«Delinquência juvenil», família e escola**

1. A família e a escola estão no centro da problemática em torno da


«delinquência juvenil». Esta centralidade da família e da escola nasce da
nossa convicção de que a delinquência é produto da incapacidade dessas
duas estruturas de socialização de levarem, em muitos casos, a bom termo
as responsabilidades e os deveres que socialmente lhes competem realizar.
A delinquência é vista como uma falta de controlo, uma demissão do mundo
adulto das suas responsabilidades em relação à geração mais nova. A falta
de acompanhamento e de supervisão ao longo do desenvolvimento infantil
e juvenil justifica o aparecimento de comportamentos que muito se afastam
daqueles que aos nossos olhos exprimem o conceito ideal de infância e de
juventude. O aparente fracasso das estruturas de socialização convencionais
e a eclosão de comportamentos desviantes justificam a intervenção de outras
instituições de controlo social no processo educativo dos adolescentes e
jovens. Mas será justo acusar a família e a escola de não cumprirem o seu
papel? Será justo dizer que a elas pertence a responsabilidade do problema
da «delinquência juvenil»? E, se essa acusação for realmente verdadeira, então
como justificar ou explicar a incapacidade ou o falhanço dessas instituições de
socialização?

2. Um ponto de partida será, talvez, o de começar por questionar o próprio


conceito de «delinquência juvenil». O conceito de delinquência e o modo como
o entendemos não estão desligados do nosso entendimento colectivo sobre a
infância e a juventude. Temos a tendência para considerar naturais e perma-
nentes as crenças existentes nas sociedades. Acreditamos, por exemplo, que as

* Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.


** O texto que agora se apresenta serviu de base a uma comunicação feita no âmbito do
seminário «Delinquência juvenil: causas e soluções», realizado a 6 de Fevereiro na Escola
Superior de Gestão, Hotelaria e Turismo da Universidade do Algarve. 913
Pedro Moura Ferreira

crianças nascem frágeis e inocentes; que o seu desenvolvimento deve ser


protegido e promovido pela família; que esse desenvolvimento deve ser edu-
cacionalmente orientado e que só ao fim de muitos anos de educação estão em
condições de se juntarem ao mundo adulto. E, quando este percurso é inter-
rompido, a delinquência emerge, particularmente quando a família, a escola e
a comunidade falham na sua função ou quando permitem que a pobreza, a
ignorância ou o abandono se intrometam no dever de educar adequadamente
as crianças. Sem questionar estas crenças, é difícil aceitar que as crianças nem
sempre foram percebidas como inocentes e frágeis e que a infracção nem
sempre tenha sido definida como delinquente.
O ponto de vista segundo o qual as crianças são diferentes dos adultos e
devem, por isso, ser tratadas de forma diferente é uma construção relativa-
mente recente1. Durante muitos séculos as crianças foram objecto de um
interesse bastante menor, normalmente tratadas com indiferença e, não raras
vezes, com crueldade. As crianças foram olhadas mais como versões peque-
nas e inadequadas dos adultos do que como seres com necessidades de
protecção especial. Foi só após a Europa ter começado a despertar da longa
hibernação intelectual e da estagnação social da Idade Média que uma filo-
sofia moral começou a questionar os costumes tradicionais de educar e de
tratar as crianças. Nos séculos seguintes, a tendência antiga para ignorar e
explorar as crianças foi substituída por uma preocupação intensa sobre o seu
«bem-estar». Os cuidados familiares substituíram o sistema de aprendizagem
e a infância passou a ser vista como um período transitório no qual a pro-
tecção, mais do que a indulgência em relação às actividades adultas, se
tornou a regra. Foi neste ambiente de mudança que emergiu o conceito
moderno de infância — um conceito que sublinha a ideia de que as crianças
são um valor em si mesmas e que devido à sua fragilidade e simplicidade
deviam ser objecto de protecção enquanto não fossem devidamente preparadas
para enfrentarem o mundo adulto.
Parte do processo de descoberta da infância e de criação da delinquência
implicou a construção gradual de um conjunto de regras e de normas sobre
a educação e o controlo das crianças2. Em primeiro lugar, surgiu um conjun-
to de regras informais que, antes de serem convertidas em leis, ajudaram a
criar uma imagem ideal de infância capaz de proporcionar orientações aos
pais na educação dos filhos. Embora esta imagem esteja actualmente a
mudar, as regras sociais que ajudaram a construir o seu carácter são ainda

1
V., por exemplo, Philippe Ariès, L´Enfant et la vie familiale sous l’ancien régime, Paris,
Seuil, 1973.
2
Lamar T. Empey e Mark C. Stafford, American Delinquency: Its Meaning and
914 Construction, Belmont, California, Wadsworth Publishing, 3.ª ed., 1990.
«Delinquência juvenil», família e escola

familiares à maior parte de nós. Segundo esta imagem ideal, as crianças


deveriam ser obedientes, trabalhadoras e diligentes no cumprimento dos seus
objectivos educacionais e outros: submissas às autoridades que as orientam
nesses objectivos, autocontroladas, modestas e mantidas afastadas dos peri-
gos do sexo, do álcool e de outros vícios adultos. É escusado dizer que
deveriam evitar a desonestidade e os crimes a que os adultos se entregam.
A moderna imagem de infância sublinharia, possivelmente, outros atributos
psicossociais, tais como a responsabilidade, a iniciativa e o autocontrolo,
mas conservaria, com poucas adaptações, os restantes atributos morais.
Muitos destes atributos são centrais para o significado da delinquência. Por
um lado, a partir deles é possível estabelecer uma separação entre comporta-
mentos adequados e indesejáveis e definir regras para moralizar o comporta-
mento das crianças e protegê-las da exploração e da corrupção do mundo
adulto. Por outro, é possível descrever o comportamento ideal da criança e
identificar as situações ou os comportamentos em relação aos quais se justi-
fica uma intervenção. A existência de regras permite estabelecer uma fronteira
entre a conformidade e a transgressão.
Como consequência do aparecimento de regras informais e da aceitação
generalizada de que a infância corresponde a um estado especial no ciclo de
vida, iniciou-se o processo de construção social da delinquência juvenil. Este
processo começou a manifestar-se através da tendência para se considerarem
com maior tolerância os crimes cometidos por «menores». Embora sujeitos
às mesmas leis dos adultos, as crianças e os jovens começaram a ser vistos
como não tendo a totalidade da responsabilidade criminal e, consequente-
mente, sujeitos a penas atenuadas ou a perdão.
A visão da delinquência como algo aplicável apenas a crianças ou a jovens
foi ganhando aceitação ao longo do tempo, mas foi só a partir do momento em
que a sociedade criou instituições directamente vocacionadas para tratar com a
delinquência que se deu a sua consagração institucional. Esta institucionalização
começou a partir da altura em que se tornou evidente a incapacidade ou a
desadequação dos controlos informais da família, da escola e da comunidade
para assegurarem a conformidade em relação às regras que se supunham dese-
jáveis para as crianças. Então regras formalmente legais foram escritas e criou-
-se o sistema de justiça juvenil para as aplicar. Completava-se, assim, o conceito
moderno de infância. Para além de consagrar a autonomia psicológica e social,
o conceito consagra ainda a existência de «direitos» próprios. Em contraste com
a indiferença com que a infância foi tratada durante séculos, a consciência social
do nosso tempo reconhece que qualquer criança tem direitos não apenas em
relação a necessidades básicas, como de acesso a uma vida decente — material,
moral e educacionalmente —, mas também em relação a direitos legais distintos
dos adultos. 915
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3. O conceito de «delinquência juvenil» surge como uma construção social


e institucional em torno da qual se reúnem definições e ideias sobre situações
e comportamentos que contrastam com o conceito ideal que temos da infância
e da juventude. A um determinado nível, a delinquência juvenil é definida a
partir das leis, das práticas e das crenças relativas ao comportamento das
crianças e dos jovens que governam as instituições responsáveis social e
legalmente pelo controlo e tratamento do comportamento considerado delin-
quente e de outros problemas juvenis. A um outro nível, a delinquência juvenil
é comportamento: o comportamento que os jovens estabelecem com a família,
os amigos e outros adultos nos espaços onde a delinquência emerge.
A gravidade dos comportamentos delinquentes é variável. Alguns compor-
tamentos são graves na medida em que desafiam valores institucionais e so-
ciais; outros são triviais, não constituindo ameaça para esses valores, mas são
considerados suficientemente ofensivos para a sensibilidade dos outros, po-
dendo por isso justificar a intervenção legal. Crimes são sempre delinquência
quando cometidos por menores, excepto quando o crime é cometido por al-
guém tão novo para poder ser considerado responsável por ele. Outros actos
apenas são ilegais quando cometidos por menores. Actos muito valorizados e
encorajados, como a liberdade de trabalhar, de casar, de mobilidade espacial
ou de consumo de álcool, são considerados ilegais abaixo de uma determinada
idade.
Num sentido amplo, a delinquência juvenil refere todo o tipo de infracção
criminal que ocorre durante a infância e a adolescência. Num sentido mais
restrito, a delinquência envolve o conjunto de respostas e de intervenções
institucionais e legais em relação a menores que cometem infracções criminais
ou que se encontram em situações ou exibem comportamentos potencialmente
delinquentes, nomeadamente nos casos em que existe grave negligência fami-
liar ou em que as crianças ou adolescentes revelam comportamentos desviantes
e desajustados da realidade psicossocial do grupo etário a que pertencem.
Embora estes comportamentos desviantes e desajustados possam não consti-
tuir, em rigor, infracções criminais, remetem, no entanto, para a mesma reali-
dade social que o conceito de «delinquência juvenil» procura descrever e
caracterizar.

4. O olhar da delinquência que aqui procuraremos esboçar privilegiará o


conceito amplo, chamando a atenção para o papel que as instituições familiar
e escolar desempenham na sua génese, controlo e prevenção. A compreensão
da delinquência durante a adolescência não pode ser entendida como uma
oposição inqualificável entre a infracção e a moral convencional ou legal.
Entre ambas existe uma relação complexa. Por vezes, as infracções podem
ser cometidas, não devido à crença de que esses actos são legais, mas por
916 causa da própria reputação perante os amigos ou devido a solidariedades
«Delinquência juvenil», família e escola

grupais. Se pretendemos compreender os adolescentes, devemos reconhecer


que eles balançam entre as exigências formais da lei e as prescrições mais
informais que resultam das pertenças e socializações grupais.
É igualmente um erro assumir que a maior parte dos delinquentes são
diferentes dos não-delinquentes. Primeiro, porque os inquéritos de delin-
quência auto-revelada alertam para a relativa generalização da delinquência
na população juvenil. Segundo, porque a adolescência ocupa um lugar sin-
gular entre a infância e a idade adulta, caracterizado por um estado que não
é de dependência absoluta nem de responsabilidade completa. Os adolescen-
tes distribuem-se por um contínuo entre a liberdade e o controlo. Num dos
extremos desse contínuo — a liberdade — estão os jovens que têm um
sentido de comando das suas vidas, uma capacidade de formularem progra-
mas ou projectos, um sentimento de exercerem domínio sobre a vida e o
futuro. Liberdade é aqui autocontrolo. No lado oposto, na extremidade do
pólo de controlo, situa-se um número relativamente pequeno de delinquentes
crónicos que não têm virtualmente autocontrolo sobre as suas vidas. Come-
tem actos delinquentes devido à ausência de controlos ou devido à adesão a
valores delinquentes. Este grupo representa uma pequena parte do universo
adolescente e juvenil. Para a maior parte, a delinquência é, quando muito,
uma experiência esporádica e transitória e nunca um modo de vida.

5. Tendo-se reservado o termo delinquência juvenil para referir os com-


portamentos ou as situações que implicam a existência de uma infracção,
convém começar por descrever a forma como ela hoje se distribui pela
população juvenil. Sublinhe-se desde já que a distribuição da delinquência
apresenta realidades diferentes consoante as fontes de referência: as oficiais
e as que resultam de inquéritos de vitimação ou de delinquência auto-reve-
lada3. As primeiras revelam-nos a população juvenil que entrou em contacto
com as instituições vocacionadas para a prevenção, controlo e repressão da
delinquência — como a polícia ou os tribunais — e as segundas referem-se
à população adolescente e juvenil em sentido geral. O grupo que entrou em
contacto com essas instituições representa um subconjunto muito reduzido
do universo juvenil. Esse grupo apresenta perfis sócio-económicos bem
definidos e, do ponto de vista comportamental, é, evidentemente, mais pro-
blemático. A incidência e a gravidade da delinquência são naturalmente supe-
riores à média da população juvenil. Apesar destas diferenças, é possível,

3
Para dados relativos a Portugal, cf. Pedro Moura Ferreira et al., Delinquência e
Criminalidade Recenseadas dos Jovens em Portugal (1980-1989), Lisboa, ICS, 1993, e Eliana
Gersão e Manuel Lisboa (1994), «The self-report delinquency study in Portugal», in Josine
Juger-Tas, Gert-Jan Terlouw e Malcolm W. Klein, Delinquent Behavior among Young People
in the Western World, Amsterdão, Holanda, Kugler Publications. 917
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mesmo assim, fazer algumas referências comuns. A primeira referência diz


respeito à idade. A tendência geral é para haver um decréscimo da delinquên-
cia após o início da maioridade e, consequentemente, com a aproximação da
idade adulta. Esta tendência não se observa no pequeno grupo com elevada
reincidência, que tende a prolongar a prática da delinquência. A segunda
referência é a respeito do sexo. Tanto as fontes oficiais como as de pesquisa
revelam que a delinquência é um fenómeno masculino, embora as diferenças
intersexuais sejam menos significativas no conjunto da população. Em relação
à origem social, as mesmas fontes voltam a divergir. As oficiais assinalam
uma presença quase exclusiva de jovens pertencentes às classes socialmente
mais desprotegidas, enquanto a delinquência medida em termos da população
juvenil revela uma influência menos acentuada da classe social. O mesmo
tende a passar-se relativamente ao contraste geográfico entre o urbano e o
rural. As diferenças são mais significativas nos dados oficiais, revelando uma
ligação mais forte da delinquência ao espaço urbano.

6. Feita esta breve descrição da distribuição da delinquência, podemos


passar à caracterização das principais explicações do fenómeno delinquente.
Estas explicações podem ser agrupadas em torno de duas imagens: a do delin-
quente subsocializado e a do delinquente socializado. A primeira é derivada
principalmente das teorias que sublinham a importância do controlo social.
A causa fundamental da delinquência reside na ausência relativa de laços fortes
entre o indivíduo e a ordem social. Esses laços implicam relações com os outros
e com as instituições convencionais, envolvimento com orientações e fins legíti-
mos e crença na legitimidade da ordem legal. A presença destes elementos
inibe o aparecimento da delinquência na medida em que assegura o controlo
externo e interno. Quanto menos sujeito a esse controlo, mais o indivíduo
propende para a delinquência.
A segunda imagem de delinquência descreve o delinquente socializado.
A delinquência, neste caso, explica-se através da aprendizagem de comporta-
mentos socialmente desviantes através da exposição às acções dos outros.
Em consequência da dinâmica de aprendizagem, essas acções são tomadas
pelo adolescente como modelos para as suas próprias acções. O comportamen-
to de imitação tende a tornar-se mais frequente quando gera consequências
positivas do que quando não tem consequências ou quando elas são negativas.
Devido ao reforço diferencial, as crianças aprendem a valorizar determinados
comportamentos em relação a outros. As definições sociais são assimiladas em
virtude das consequências proporcionadas pelo reforço dos comportamentos
que são consistentes com os valores, normas e atitudes das pessoas — família,
amigos, professores, etc. — com quem se relacionam. Deste modo, as crianças
918 podem definir favoravelmente comportamentos delinquentes em virtude da
«Delinquência juvenil», família e escola

exposição às acções de outros cujas definições desses comportamentos são


positivas. Esta exposição a definições delinquentes está mais difundida junto
de segmentos da população mais vulneráveis a sentimentos de frustração e
de injustiça relativa pelo facto de não terem acesso legítimo a objectivos e
oportunidades culturalmente determinados. A existência desses sentimentos
leva frequentemente à rejeição dos objectivos convencionais da sociedade e,
por vezes, ao envolvimento com meios ilegítimos de os obter.

7. Das duas imagens de delinquência depreende-se a existência de dois


factores fundamentais: por um lado, o papel dos controlos — internos e ex-
ternos — a que o adolescente está sujeito e, por outro lado, a exposição à
influência das acções dos outros, que, em determinados contextos, podem
constituir um meio gerador de definições e de condutas alternativas à confor-
midade. Estes dois factores dificilmente poderão ser vistos independentemente
um do outro. Em certo sentido, os controlos variam inversamente com as
influências culturais. Sendo a adolescência um tempo de mudança entre a
responsabilidade e a dependência, a redução dos constrangimentos é paralela
a novas aberturas em relação ao mundo. Mas, noutros casos, as influências
culturais podem afectar consideravelmente a natureza dos controlos sociais.
As práticas educacionais e de socialização dos diferentes grupos sociais afec-
tam o modo como a conformidade é reforçada4. A natureza e o conteúdo dos
controlos que as famílias incutem nos filhos assumem papel relevante na
inibição e na prevenção das manifestações delinquentes. Mas serão esses
controlos duradouros e eficazes quando se sabe que o enfraquecimento do
controlo familiar é proporcional à redução das funções educacionais da famí-
lia? Pondo a questão de uma forma mais geral, qual o papel da família e da
escola na génese dos comportamentos delinquentes?
O processo de maturação implica uma desvinculação progressiva dos
laços familiares baseados na infância. A diminuição da influência da família
é compensada pela procura de relações alternativas e pela redefinição do
lugar do adolescente no círculo mais amplo das relações com os outros. Se
a desvinculação emocional e social da família é uma etapa necessária ao
desenvolvimento juvenil, qual a consequência dessa desvinculação no com-
portamento do adolescente? De que modo a influência convencional da fa-
mília se faz sentir, apesar de a sua presença na vida dos jovens diminuir?
De acordo com a imagem do delinquente subsocializado, a família con-
vencional proporciona uma fonte de ligações básicas à ordem da sociedade

4
A propósito da relação entre delinquência e práticas de educação, v. Jean-Claude
Chamboredon, «La délinquance juvénile, essai de construction d’object», in Revue française
de sociologie, XII, 1971, pp. 335-377. 919
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e de envolvimento com as suas instituições e actividades5. A família actua


como um travão contra as influências desviantes, proporcionando ao jovem
uma fonte de motivações para se conformar com as normas e regras sociais.
O funcionamento adequado da família ajuda a inibir os impulsos desviantes,
limitando a probabilidade de os comportamentos delinquentes ocorrerem.
Neste sentido, o controlo social é uma variável explicativa da conformidade.
Quando a estrutura família se dissolve ou se altera, a família perde a capa-
cidade de supervisionar e controlar os comportamentos dos filhos, aumentando
a probabilidade da delinquência.
Segundo uma das mais explícitas e elaboradas teorias de controlo social6,
a relação entre pais e filhos é central para a compreensão da génese da
delinquência. A influência protectora da família em relação à delinquência
estrutura-se em torno de três dimensões: a supervisão familiar, a identificação
com os pais e a comunicação íntima. A maior sensibilidade em relação às
preocupações e às orientações dos pais aumenta a probabilidade de a criança
levar em consideração essas preocupações e orientações quando se debate
com a possibilidade de vir a cometer um acto delinquente. Os laços familiares
inibem ou controlam a delinquência, porque o adolescente não quer pôr em
causa as relações positivas que mantém com os pais. A ausência de relações
próximas e intensas na família cria condições que conduzem à delinquência
na medida em que minimiza a sensibilidade do adolescente às opiniões dos
pais, deixando-o mais liberto para poder responder às solicitações situacionais
e ao encorajamento dos amigos.
O modelo do delinquente socializado sublinha a influência dos aspectos
económicos e sociais da família sobre a natureza e o conteúdo dos controlos
familiares7. Uma possível via cultural pela qual a estratificação económica
pode influenciar a delinquência é através das práticas educacionais familiares.
As investigações que relacionam a estratificação social com a personalidade
revelam que os factores sócio-económicos têm importância fundamental para
as práticas familiares. Segundo essas investigações, os valores adquiridos em
situações de trabalho tendem a ser generalizados a situações não
ocupacionais, nomeadamente nas práticas disciplinares familiares. O princípio
da aprendizagem generalizada refere que as pessoas que ocupam empregos de
baixo estatuto económico tendem, nas práticas educativas, a valorizar a obe-
diência em relação à autoridade, na medida em que valores como a obediência
são recompensados nas situações de trabalho. Consequentemente, essas pessoas

5
James Snyder e Gerald R. Patterson, «Family interaction and delinquent behavior», in
Herbert C. Quay (ed.), Handbook of Juvenile Delinquency, Nova Iorque, John Willey & Sons,
1987, pp. 216-243.
6
Travis Hirshi, Causes of Delinquency, Berkeley, University of California Press, 1969.
7
Karen Heimer, «Socioeconomic status, subcultural definitions, and violent delinquency»,
920 in Social Forces, vol. 45, n.º 2, 1997, pp. 799-834.
«Delinquência juvenil», família e escola

enquanto pais tendem, mais do que os pais das classes economicamente


mais elevadas, a privilegiar o recurso coercivo a estratégias de disciplina
como a repreensão, as ameaças, a supressão de privilégios e os castigos físicos.
Por outro lado, os empregos de estatuto económico mais elevado tendem a
recompensar a iniciativa e o autocontrolo. Estes valores acabam por ser repro-
duzidos nas práticas educacionais das famílias com estatuto económico mais
elevado. Essas práticas educacionais recorrem mais frequentemente a estra-
tégias disciplinares indutivas, tais como o recurso sistemático ao raciocínio
moral.
As estratégias disciplinares das famílias têm implicações sobre o com-
portamento da criança. As pesquisas sugerem que as estratégias disciplinares
coercivas estão positivamente associadas ao comportamento desviante das
crianças. A relação é particularmente evidente no caso dos comportamentos
agressivos e violentos. As crianças agressivas tendem a provocar respostas
coercivas, que, por seu turno, aumentam a probabilidade de as crianças se
empenharem na agressão e na violência.
Outra relação entre o estatuto sócio-económico, família e delinquência
ocorre porque os pais de estatuto económico menos elevado tendem a exercer
menos supervisão sobre os filhos do que os pais das classes economicamente
mais elevadas. Em contraste com as teorias de controlo social, segundo as
quais a inadequada supervisão aumenta a delinquência porque deixa os ado-
lescentes libertos dos constrangimentos familiares, a presente perspectiva de-
fende que a monitorização fraca das famílias encoraja a delinquência porque
os pais não supervisionam suficientemente as relações dos filhos com os
amigos, de quem podem adquirir definições favoráveis à delinquência. Dada
a importância da aprendizagem grupal na reprodução subcultural, podemos
esperar que as associações com os amigos delinquentes são vitais para a
iniciação ao mundo da delinquência.
Outra via para a aquisição de definições favoráveis à delinquência resulta da
intensidade com que os comportamentos delinquentes são desaprovados em casa
ou na comunidade. Quando os pais desaprovam fortemente a prática de compor-
tamentos delinquentes, diminuem a probabilidade de os filhos integrarem defi-
nições favoráveis à aceitação desses comportamentos. Do mesmo modo, a
existência de grupos de amigos com práticas delinquentes aumenta a possibili-
dade de aquisição de definições favoráveis à delinquência. A família constitui,
assim, um contexto cultural de primeiro plano no qual o adolescente pode
adquirir e interiorizar as orientações e as definições no sentido da conformidade.
A força dessas orientações e definições é profundamente influenciada pelo modo
como os factores sócio-económicos moldam o tecido relacional que estrutura o
conteúdo e a natureza das práticas educativas através das quais se incutem e se
exercem os controlos sociais. 921
Pedro Moura Ferreira

8. Passando a considerar a outra instituição de socialização — a es-


cola —, importa começar pela constatação óbvia de que esta é o meio juvenil
por excelência. É o local privilegiado para a formação de grupos etariamente
homogéneos, partilhando representações e interesses comuns que constituem a
chamada subcultura juvenil. As associações grupais juvenis formam sociabi-
lidades alternativas em relação às que são proporcionadas pela família. Estas
sociabilidades estruturam-se a partir do espaço de lazer, que pode coexistir no
próprio espaço escolar, mas que se estende para além dele. A importância
do lazer na vida dos jovens — como espaço compensador ou mesmo alterna-
tivo à constituição e desenvolvimento da própria identidade — pode constituir
em si mesma uma desautorização das orientações escolares mais convencio-
nais e, por conseguinte, diminuir a influência e o controlo que a própria escola
pode exercer. Considerando que a escola oferece um contexto propício à co-
municação entre os membros de um grupo de idade e à utilização do tempo
livre para a promoção de interesses pessoais, em que medida esse mesmo
contexto pode contribuir para inibir ou, pelo contrário, promover a manifes-
tação da delinquência?
A relação entre a escola e a delinquência pode ser novamente analisada em
torno dos dois modelos de delinquência. A perspectiva do controlo sublinha
sobretudo os factores que promovem a conformidade8. Nesta linha, assinala,
em primeiro lugar, a força das ligações aos professores e à escola, bem como
o grau de empenho em relação aos objectivos educacionais, como dois elemen-
tos fundamentais para se garantir a conformidade. Este ponto de vista pode ser
ilustrado a partir de vários indicadores. Atitudes positivas em relação à escola
e aos professores, bem como a participação em actividades escolares,
correlacionam-se negativamente com as práticas delinquentes. Igualmente
verifica-se uma relação inversa entre o empenhamento na prossecução de
objectivos educacionais e o envolvimento em comportamentos delinquentes.
O tempo gasto nos trabalhos de casa e a percepção da relevância do currículo
académico estão também relacionados negativamente com a delinquência. Os
problemas disciplinares estão mais presentes nos alunos que não se ajustam à
escola e que raramente participam nas actividades escolares. Para a perspectiva
do controlo social, os níveis baixos de desempenho escolar e de competência
académica criam um afastamento em relação à escola, que precipita a rejeição
da autoridade escolar e faz aumentar as possibilidades do comportamento
delinquente. Essa rejeição da autoridade escolar parece constituir, como iremos
ver de seguida, quando abordarmos a perspectiva cultural, um elemento fun-
damental para a participação nos grupos de idade cujo estilo de vida, pelo

8
J. David Hawhins e Denise M. Lishner, «Schooling and delinquency», in Elmer H.
Johnson (ed.), Handbook on Crime and Delinquency Prevention, Nova Iorque, Greenwood
922 Press, 1987, pp. 179-222.
«Delinquência juvenil», família e escola

menos em termos escolares, se estrutura em torno de uma subcultura de rejei-


ção ou de oposição escolar.
Para o modelo do delinquente socializado, a relação entre escola e delin-
quência é sobretudo vista a partir das associações com os amigos delinquentes.
Todos os estudos revelam que essa associação é um dos preditores mais fortes
das práticas delinquentes. Então como explicar essas associações? Uma das
explicações passa por assinalar a presença de uma «subcultura de rejeição ou
de oposição escolar»9. Com efeito, a rejeição e a alienação em relação à escola
conduziam anteriormente a que muitos jovens optassem pelo seu abandono e
procurassem uma rápida integração na vasta força de trabalho pouco ou nada
qualificada. O alongamento da escolaridade obrigatória e a diminuição desses
postos de trabalho fecharam essa saída e fizeram com que muitos desses jovens
mergulhassem em subculturas cujas orientações não estão voltadas para os
aspectos convencionais da adolescência. A constituição dessas subculturas é
facilitada pela presença de problemas, tais como o insucesso escolar, o fraco
desempenho escolar ou a presença de sentimentos de frustração e de alienação
em relação ao quotidiano e aos enquadramentos escolares. A procura de res-
postas para esses problemas ou para as consequências que deles derivam fez
com que muitos jovens investissem em orientações e em actividades diferentes
das que são propostas pela cultura convencional da escola. A importância que
atribuem às práticas de lazer, às sociabilidades grupais e à exteriorização de
uma imagem e de um estilo comportamental «oposicional» é um aspecto carac-
terístico da «subcultura de rejeição escolar». Estas subculturas constituem
suportes colectivos ao desenvolvimento de identidades que não se estruturam em
torno do mundo convencional da adolescência, simbolizado pela conformidade
escolar. A manifestação das subculturas é mais vísivel quando existe uma
articulação com orientações pouco convencionais que determinados grupos
juvenis transportam dos seus meios familiares e sociais de origem. É através da
exposição à «subcultura de rejeição escolar» que as associações grupais podem
ser vistas como uma das vias mais importantes para a emergência da delinquên-
cia.

9. A influência da escola e da família na génese da delinquência pode ser


descrita através da passagem de uma socialização primária centrada na famí-
lia para uma socialização secundária baseada na escola e nas relações
grupais. A importância da família na socialização primária fica a dever-se à
intensidade com que reforça as orientações e as práticas que promovem a

9
Esta tese é avançada por Albert Cohen, Delinquent Boys, Nova Iorque, Free Press, 1955.
Uma versão mais recente do argumento segundo o qual a identidade delinquente se estrutura
a partir de um desenvolvimento grupal oposicional encontra-se em Nicholas Emler e Stephen
Reicher, Adolescence and Delinquency, Oxford, Blackwell Publishers, 1995. 923
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interiorização dos controlos e asseguram a conformidade. A supervisão e o


acompanhamento são igualmente importantes, mas este tipo de controlo exter-
no tende a escapar ao âmbito da acção familiar a partir do momento em que
começam a sentir-se os efeitos da socialização secundária. A partir desse
momento aumenta a exposição à influência que as relações e as acções dos
outros exercem sobre os comportamentos dos adolescentes e jovens. Esta
exposição é normalmente vista como uma razão para a emergência da delin-
quência. Com efeito, o contacto e a participação nas «subculturas de rejeição
escolar» podem anular ou neutralizar as orientações convencionais incutidas
durante o processo de socialização primária e favorecer o aparecimento de
comportamentos delinquentes. Embora esta situação ocorra com relativa fre-
quência, não é obrigatório que tal aconteça. A escola, desde que proporcione
identificações e integrações positivas, pode reforçar as orientações conven-
cionais, mesmo naqueles jovens cujas orientações familiares não foram no
sentido do reforço constante da conformidade. O papel que a escola pode
desempenhar encontra-se, de certo modo, facilitado pelo facto de a maior
parte dos jovens não se envolverem de uma forma séria em práticas delin-
quentes. A delinquência juvenil assume normalmente um carácter esporádico
e transitório. No decurso da adolescência a delinquência pode assumir até,
e um pouco contraditoriamente, um papel positivo. Por vezes, é a partir dela
que se clarificam os limites dos comportamentos, o significado situacional
dos valores e das normas e as consequências das sanções. Neste sentido, a
delinquência pode também contribuir para uma melhor compreensão dos
limites legais dos comportamentos e para o reforço da conformidade, sobre-
tudo durante uma fase da vida em que nada está definitivamente estabelecido
e pouca coisa há verdadeiramente irreversível.

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