Elias e Bourdieu

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ELIAS E BOURDIEU: PARA UMA SOCIOLOGIA HISTÓRICA OU SERIA UMA

HISTÓRIA SOCIOLÓGICA?

Resumo: Notas para uma comparação entre Pierre Bourdieu e Norbert Elias, problematizando aspectos da obra dos
sociólogos capazes de serem aplicados ao trabalho empírico do historiador. Nesse sentido, defende-se aqui uma
perspectiva sócio-histórica, realizada a partir de alguns aspectos comuns entre Bourdieu e Elias, como a tentativa de
superar dicotomias sociológicas (sociedade X indivíduos, objetivismo X subjetivismo), fundamentais para a
construção de uma sociologia-histórica.

1.      Introdução

E
m An invitation to reflexive sociology, Pierre Bourdieu afirmou que toda sociologia é histórica e toda
história sociológica (Bourdieu & Wacquant, 1992: 108-120) De outro lado, Norbert Elias propôs um
rompimento radical entre as fronteiras nas ciências sociais, sendo injustamente acusado de “não ser
verdadeiramente historiador, sociólogo ou antropólogo” (Neiburg & Waizbort, 2007: 10). Na verdade,
para Elias, “tratava-se justamente de não reconhecer os limites (e as limitações) do fundamentalismo
disciplinar que resulta da divisão do trabalho acadêmico” (Idem: 12). Neste sentido, penso que é possível relacionar a
obra destes dois pensadores articulando seus conceitos, como o de habitus, ou figuração (Elias) / campo (Bourdieu),
objetivando romper com uma perspectiva dicotômica, capaz de separar indivíduo e sociedade. Emerge, além, uma
saída plausível para o rompimento entre objetividade e subjetividade, possibilitando ao sociólogo-historiador novas
ferramentas conceituais, que se articulam praticamente ao trabalho empírico a ser empreendido. Neste sentido,
teoria e empiria mesclam-se, tanto em Bourdieu quanto em Elias, na medida em que, para ambos, qualquer teoria
que não seja passível de articulação com o movimento empírico é sem-valor, entendida como teoria-teórica, cujo fim
começa e termina em si mesma. (Bourdieu, 1990: 60-62).

O historiador Jacques Revel, – muito preocupado em relacionar sociologia e história,- problematizou a


questão de que Bourdieu pouco se aventurou no campo da pesquisa histórica propriamente dita. (2006: 109)
Conquanto, por diversas vezes, Bourdieu afirmou que para se fazer uma sociologia propriamente histórica
necessitaria de uma espécie de história que ainda não existia (Bourdieu, 1990: 58- 90) e por raras vezes chegou a
elaborar uma pesquisa verdadeiramente histórica. De acordo com Revel, foi com La Noblesse d’État’ que Bourdieu
iniciou uma empreitada epistemológica na construção de “sua” história, sendo, no entanto, não muito bem recebido
pelos historiadores. Sobre isso, verifiquemos este trecho do Coisas Ditas, quando Bourdieu crítica a historiografia de
um modo geral:

“A História que eu precisaria para o meu trabalho não existe.” O trabalho histórico que deveria permitir a compreensão

da gênese das estruturas tal como elas podem ser observadas em um dado momento nesse ou naquele campo é muito

difícil de ser realizado, porque não nos podemos nos contentar nem com vagas generalizações fundamentadas em alguns

documentos extraídos de modo errático nem com pacientes compilações estatísticas que em geral deixam brancos no que

se refere ao essencial (...) uma sociologia plenamente acabada deveria englobar uma história das estruturas que são num

dado momento o resultado de todo um processo histórico. (Idem: 58, grifo nosso).

A bem da verdade, Bourdieu não se aventuraria, ao longo de sua vida, pelos campos da historiografia, ao
contrário de Norbert Elias, que dedicou vasta parte de sua vida à análise das fontes e de textos de época. Projeto de
Bourdieu aparece quase por completo na obra de Elias, que se aventurou em uma empreitada inédita, realizando
uma forma de história que até pouco tempo era entendida como marginal e de pouca importância: a dos costumes. A
questão da relação entre o indivíduo e a sociedade já apareciam no centro de suas reflexões. Nos seus primeiros
trabalhos, A sociedade da corte (1933) e O processo civilizador (1939), a questão da relação entre o indivíduo e a
sociedade já apareciam no centro de suas reflexões. De um lado, a relação do Rei com a sua corte; destruindo
interpretações míticas acerca do absolutismo por outro, a tentativa de articulação entre as ações individuais e um
grande processo civilizador, que escapa ao controle dos homens.

Alguns anos depois, na França, Pierre Bourdieu discutia noções como habitus, campo e capital,
problematizando em novos termos a relação do debate sociologia/história, sociedade/ indivíduo e objetividade/
subjetividade. O conceito de habitus, entendido como uma “natureza incorporada” é o que melhor permite superar os
termos em que se colocavam os debates, de outro, pensar em termos de campo (figuração) nos permite a criação de
um pensamento histórico-sociológico verdadeiramenterelacional. Nos anos 1970, a história procurava caminhos
teóricos, que a ajudassem na busca para o rompimento com a tradição funcionalista dominante. Os Annales, sob a
Direção de Braudel, haviam apagado os homens dos livros da história na França. Além disso, a fraqueza teórica
aparecia como uma outra marca distintiva da Escola francesa. Com os números, Pierre Chaunu (1966) chegara a uma
conclusão absurda. Costumava dizer que a única revolução do século XVIII era a Industrial, na Inglaterra. Os
assassinatos de Robespierre perdiam-se diante da objetividade numérica da expansão industrial inglesa. Era
necessário efetuar a passagem: de uma forma de história baseada em uma espécie de estrutura estruturada (opus
operatum), a uma sociologia-histórica, com base em uma estrutura estruturada estruturante, (o habitus). Um tipo
novo de abordagem histórica, que parecia adequar-se aos anseios dos historiadores do início dos anos 1970. Dirá
Revel:

“Certo número de historiadores estavam precisamente em busca de fontes críticas (...) as sugestões que alguns

encontraram nas maneiras de agir que Bourdieu colocava em prática. Os historiadores do social ficavam bloqueados ao

deparar com os limites que supostamente os demarcavam: onde se começa (ou se deixa) de ser um burguês, um operário

ou um intelectual? (...) Bourdieu recusava esse essencialismo (...) ele propunha que se pensasse em termos de processo e
configuração  sociais, a crítica a determinada história social que procurava, sobretudo, identificar sistemas sociais

estáveis. A partir de então não é de admirar que encontramos Pierre Bourdieu entre os pesquisadores cuja

importância estávamos descobrindo, como Edward Palmer Thompson e Norbert Elias, sempre atentos à construção

das posições e atribuições sociais.” (2005: 110).

A tentativa de se pensar as sociedades humanas como configurações sociais, mas que são transformadas a
todo o tempo pelos homens, é tema comum aos autores. Afirmação inconteste de que todos os indivíduos são seres
sociais; no entanto, nunca é demais lembrar de que toda a sociedade é composta por indivíduos. Romper os limites
teóricos (e as limitações empíricas) da distinção entre sociedade e indivíduo é o tema central do artigo,focando na
análise da obra de Norbert Elias e a de Pierre Bourdieu, discutindo, em especial, os conceitos de habitus e campo
(Bourdieu) e Elias (figuração) Pressupostos fundamentais são a recusa do caráter feiticista da teoria e a
indissociabilidade entre a sociologia e a história (sociologia-histórica).

2.      Elias: a sociologia-histórica em destaque

Da relação entre os aspectos sociais e individuais é um problema que atravessa a obra do Elias. Na teoria dos
processos de civilização, a articulação entre os níveis sociais e individuais é de fundamental importância na carreira
de Elias. Desde a escrita, em 1933, da Introdução d’A sociedade da corte, até um de seus últimos artigos, A mudança
da balança da relação nós-eu (1987), o tema da relação entre a sociedade e o individuo atravessou a obra de Elias
como um fio que liga toda a sua trajetória. Desdobrar-se-ia em uma série de questões que comporiam um
emaranhado; uma espécie de “rede”, que norteariam as reflexões sociológicas de Elias.

O trabalho Mozart: uma sociologia de um gênio (1995), publicado postumamente, em 1991, Norbert Elias


preocupa-se em analisar uma espécie de habitus do jovem músico. Trata-se de uma proposta teórica capaz de
historicizar a figura do gênio, com base na análise da trajetória individual (social) de Mozart, considerado um músico
magnífico. O contexto social aparece em conexão à vida e à obra do trabalho de Mozart; a figuração estava em
mutação. De uma sociedade “da corte” a uma sociedade “burguesa”, no campo artístico, era a passagem da arte do
artesão à arte do artista.

Da experiência individual de um microcosmo, ou seja, a relação de disputa com a irmã e com o pai, viagens
pela Europa e sucesso prematuro, convívio em pé de igualdade com detentores do capital simbólico e financeiro, a
nobreza, aliado ao macrocosmo, i.e., o momento de efervescência duma Europa em ebulição. Neste sentido, a partir
de sua experiência individual Mozart tentará transformar as regras do campo artístico reinantes à época da
Sociedade da Corte. A lógica da produção artística estava ligada à submissão de determinados artistas a múltiplas
cortes, ou seja, a produção era feita sob encomenda do Rei, ou de um nobre “mecenas”, uma arte do artesão. O
caráter de sacralidade, que envolve a obra de arte no contexto moderno, inexistia. O músico, ou o pintor, nada mais
eram do que peças em uma figuração muito específica: a de corte. Por meio de suas experiências individuais
supracitadas, tentará reagir de uma forma específica às estruturas que regiam à lógica do Campo artístico, exigindo
uma maior autonomia sem, no entanto, obter o sucesso esperado. As condições históricas para o desenvolvimento do
artista autônomo ainda não estavam plenamente consolidadas, sendo apenas possíveis na próxima geração, com
Ludwig Beethoven. Mozart, mesmo com toda a sua genialidade dita inata, morreu conhecendo o desprezo e fracasso
social, financeiro e amoroso.

A proposição de Elias é a de que a genialidade é construída a partir da experiência individual/ social. O


projeto de Elias é extremamente ambicioso, já que objetiva explicar sócio-historicamente o que aos olhos do senso
comum paira sem explicação: o gênio. Aparentemente, as qualidades artisticas são inatas (de origem divina, ou
biológica, a depender da crença), sem relação com os contextos históricos em que a arte é produzida; resulta,
portanto, da capacidade de gênios distantes da figuração em que habitavam. Constrói-se, assim, uma tentativa de
demonstrar como as experiências individuais de Mozart são absolutamente indissociáveis ao problema da figuração
de uma sociedade de corte. Não fosse a experiência individual jamais teria reagido à ordem social; ao passo que não
fosse o estágio em que se encontrara a figuração de corte teria alcançado o sucesso e a fama de Beethoven. De
qualquer forma, a experiência de Mozart ilustra o fato de que as estruturas (figurações) constroem cotidianamente os
indivíduos, no entanto, apenas os indivíduos são capazes de transformar, cotidianamente, as figurações (estruturas).
Da relação entre o macrocosmo e o microcosmo, no jogar com as escalas, constata-se quão inútil é a distinção entre
os níveis sociológicos (individuais/ sociais). A pesquisa de Elias contribui, certamente, para romper com os limites de
uma ação que se oporia a estrutura.

Os estabelecidos e os outsiders, publicado em 1959, na Inglaterra, aparece como um dos melhores trabalhos
na obra de Elias. Discute as relações de dominação simbólica, distantes do tipo clássico de dominação que se faz com
base na relação entre capital/ trabalho. Um universo de fatores, não necessariamente econômico, corrobora para a
dominação de determinado grupo sobre outro. Ostatus, entendido como um capital simbólico, configurar-se-ia aqui
como chave no entendimento da relação de dominação. Acrescem-se os processos de estigmatização dos grupos
sociais que vêm de “fora”, i.e., os outsiders (estrangeiros), despercebidos das redes e tradições locais do grupo “de
dentro”, os estabelecidos. Na pequena cidade de Winston Parva, a estigmatização que os estabelecidos reproduziam
dos outsiders transformava, em um movimento dialético, a auto-imagem dos outsiders em geral, naturalizando as
condições sociais dos grupos em conflito.

Na conclusão do livro supracitado, ressurge o problema da relação individuo/ sociedade (ação/ estrutura): “É
fácil perceber que os pressupostos teóricos que implicam a existência de indivíduos ou atos individuais sem a
sociedade são tão fictícios quanto outros que implicam a existência das sociedades sem os indivíduos. (Elias, 2001;
182)” Daí, a importância para Norbert Elias ao conceito de figuração, afinal “Dizer que os indivíduos existem em
configurações significa dizer que o ponto de partida de toda investigação sociológica é uma pluralidade de indivíduos,
os quais, de um modo ou de outro, são interdependentes.” (Idem; pg. 184) Para Elias, a polaridade em que
supostamente consiste a relação entre indivíduo e sociedade é absolutamente fictícia; fruto da elaboração de uma
teoria-teórica distante do campo de pesquisa. Contrapõem-se, de um lado, as teorias atomísticas, que isolam os
indivíduos ao extremo, entendendo os sujeitos como “coisas” isoladas; de outro, teorias objetivistas, que pressupõe a
uniformização dos sujeitos, valorizando a estrutura. Para Elias, trata-se de perceber a dinâmica própria das
configurações do social. Os indivíduos existem nas figurações, ou seja, em um determinado contexto específico. Por
outro lado, os indivíduos criam esta figuração, transformando-a a partir do cotidiano. (Elias, 2001; 165-197).
3.      Bourdieu: Da regra às estratégias

De acordo com Pierre Bourdieu, o ofício do sociólogo consiste basicamente na destruição dos mitos, na
capacidade de desnaturalizar o mitológico, historizando-os como práticas correntes do mundo social. Dessa forma, o
desvelamento das relações de poder que se ocultam é efetuado, destarte a sociologia vai se tornando, portanto, um
verdadeiro esporte de combate. Algo capaz de transformar o mundo social. Isso implica o fato de que, em seu ofício, o
sociólogo deveria atentar para a vigilância epistemológica, em suma, criticando, assim, “o fetichismo metodológico
condenado a vestir uma construção prévia de objetos e de reduzir as lentes da ciência a um olho míope” (Bourdieu,
2000: 61), ou seja, os que tomam a teoria como a realidade nua e crua, esquecendo-se das variações históricas que a
engendram. Constata-se a possibilidade de, com a produção do conhecimento, transformar as formas em que a
sociedade se estabelece, ou seja, novas formas de mudar o mundo e o espaço social. A abordagem sócio-histórica
proposta por Pierre Bourdieu, na supracitada entrevista, desempenharia, assim, um papel fundamental na
organização do mundo social. Para Bourdieu, “Só a sociologia é capaz de desvendar mecanismos deva, cada vez mais,
escolher entre colocar seus instrumentos racionais de conhecimento a serviço de uma dominação cada vez mais
racional, ou analisar a dominação principalmente a contribuição de que o conhecimento racional pode dar a
dominação.” (Bourdieu & Wacquant: 1992; 54; tradução livre).

Nessa parte do artigo, tentaremos expor como Bourdieu empreendeu uma vigorosa composição conceitual
para a posterior comparação com Elias. A tentativa de superar os limites do paradigma estruturalista é o objeto
central das nossas reflexões. Para tanto, recorrerei à discussão acerca da gênese do conceito de habitus que se
encontrava, precisamente, na tentativa de rompimento radical com o estruturalismo. A experiência de pesquisa etno-
metodológica na Argélia com a sociedade Cabila foi, precisamente, o que permitiu o surgimento desses conceitos. Da
África, os interesses filosóficos de Bourdieu começaram a se tornar cada vez mais antropológicos, posteriormente,
sociológicos e históricos.
Como não se pode apartar um autor de seu contexto, relembremos, de passagem, o momento intelectual em
que o sociólogo Bourdieu começara a trabalhar. Destaca-se que o paradigma estruturalista dominava o pensamento
acadêmico francês e era sentido por todos os campos do conhecimento - da História, com Fernand Braudel, passando
pelo marxismo, com Louis Althusser, chegando à antropologia, com Lévi-Strauss. Grosso modo, os estruturalistas
possuem em comum o fato de que entendem a ação humana na sociedade como apenas um mero suporte, capaz de
agüentar as estruturas a-históricas e imanentes. Em O poder simbólico, B u: “eu desejava reagir contra o
estruturalismo e a sua estranha filosofia da ação, que implícita na noção levi-straussiana de inconsciente se exprimia
com toda a clareza entre os altusserianos com o seu agente reduzido ao papel de suporte – Trager- da estrutura.”
(Bourdieu, 2005: 61).

O paradigma objetivista, defendido pelo estruturalismo, por um lado, havia avançado em muitos aspectos,
como ressalva Bourdieu, na medida em que rompera com o paradigma subjetivista, espécie de “filosofia do sujeito”. A
grande questão imposta pelo debate acadêmico reside em saber como incorporar à ação do sujeito, sem negar a
presença de estruturas “objetivas” que incidem sobre a ação humana em suas variáveis. Da dicotomia entre objetivo e
subjetivo, estava implícita a separação entre o indivíduo e a sociedade. Num pólo, a sociologia operava com as
estruturas, no outro, apenas os indivíduos faziam a história. A crítica deveria se fazer na tentativa de construir uma
nova sociologia-histórica a partir da compreensão de indivíduo e sociedade como indissociáveis.

Nesse contexto, Bourdieu formulará a noção de habitus. Um pequeno texto de Loïc Wacquant esclarece
muito bem a trajetória epistemológica do conceito nas ciências sociais. Segundo ele, foi utilizada amplamente na
sociologia. Surge, em um primeiro momento, enquanto “hexis”, um conceito derivado de Aristóteles, e recuperado
pela filosofia tomística. Erwin Panofsky retomaria, ao analisar a arquitetura gótica medieval, o conceito,
transformando finalmente em habitus. Desde então, ele foi recuperado por muitos pensadores. Max Weber
problematizou uma espécie de habitus protestante; Norbert Elias pensou em um habitus alemão nacional; Thorstein
Veblen meditou sobre o “habitus mental” predatório dos industriais. (Wacquant, 2007: 2).

Nesse sentido, a partir da supracitada experiência de etnografia da tribo Cabila, Bourdieu se viu literalmente
forçado a romper com o estruturalismo. Ao tentar aplicar o método estruturalista, observou a fraqueza empírica do
método teoricamente perfeito: o opus operatum (estrutura estruturada) funcionalista, não tinha utilidade como
um modus operandi (estrutura estruturante). Encontrou graças à natureza da pesquisa empírica uma saída para o
seu dilema teórico. Frustrado na tentativa vã de aplicar o método de Lévi-Strauss, haveria de efetuar uma passagem
da regra às estratégias, como o disse em entrevista coletada à coleção Coisas ditas (1990). Nesse sentido, com rigor
metodológico, observou as “regras que regiam o matrimônio naquela sociedade”, constatou, portanto, que a “norma”
era o casamento com a prima paralela. Coube constatar empiricamente que tal norma só ocorreria em 1 % dos casos.
A maior parte dos casamentos naquela sociedade ocorrida relacionado a outras razões e motivos, associado à
estratégias ligadas aos indivíduos que agiam conscientemente naquela sociedade, dialogando com as estruturas e
com as regras em função de interesses específicos. Neste momento preciso, Bourdieu rompe com o estruturalismo,
passando da tentativa de verificação das regras às análises das estratégias em movimento. “A noção de estratégia é o
instrumento de ruptura com o ponto de vista objetivista e com a ação sem agente, que o estruturalismo supõe.”
(Bourdieu, 1990: 56) A passagem da regra às estratégias nas ciências sociais é um momento extremamente
importante para o historiador, já que é precisamente aí que se permite transitar entre os níveis macro e micro-
históricos. Se as teorias holísticas teimavam em discutir a norma, a história como processo discute, sobretudo, as
estratégias. Essa noção de estratégia está umbilicalmente relacionada ao conceito de habitus, na medida em que as
próprias estratégias utilizadas se definem pelo próprio habitus individual.
Como medita Bourdieu, “noções como a de habitus, de senso prático, de estratégia, estão ligadas ao esforço
para sair do objetivismo estruturalista sem cair no subjetivismo” (Bourdieu, 1990: 39) Agimos em função
do habitus, que orienta nossas ações, entretanto, seguindo as estratégias internas próprias à determinada sociedade,
os homens são capazes de subverter as normas vigentes de uma configuração social. que são as “exterioridades
interiorizadas”, i. e, as estruturas de uma sociedade elaboradas de acordo com as práticas individuais. Para se
compreender um habitus de um indivíduo, é preciso analisar sua trajetória individual, ao mesmo tempo em que a
história do ambiente em que vivia. É propriamente este “senso de jogo” capaz de orientar o homem em suas
estratégias individuais no interior de estruturas, em que se define o habitus como uma estrutura estruturada que se
faz estruturante. Este é o grande mérito do “habitus”, pois, na medida em que ele se propõe em tratar da teoria como
um modus operandi, que organiza praticamente a prática científica acerta na tentativa de negação do feiticismo que
os teóricos da ciência social possuem para com ela. (Bourdieu, 2000; 60) Como bem definiu Wacquant: A prova do
pudim teórico do habitus deve consistir em comê-lo empiricamente. (2007: 7).

4.      Aproximações e afastamento entre Elias e Bourdieu

Separamos uma passagem em que a obra de Elias é comentada por Pierre Bourdieu. Nela, uma louvação
à Sociedade da corte, quando compara a lógica da figuração à idéia de um campo.

Sinto-me mais próximo do Elias, mas por outras razões. Não tenho em mente o Elias das grandes tendências históricas
do processo de civilização, etc., mas antes aquele que, como em Sociedade da Corte, capta as tendências ocultas,
mecanismos invisíveis, baseado na existência de relações objetivas entre indivíduos ou instituições. A corte, tal como
Elias a descreve, é um belíssimo exemplo do que chamo de um campo, em que, como num campo gravitacional, os
diferentes agentes são arrastados por forças insuperáveis, inevitáveis, necessárias para manter a hierarquia e os
afastamentos. (1995: 48).

Este trecho ilustra bem, como se aproxima a idéia de campo da lógica de corte proposta por Elias. Prova de
que as problemáticas centrais são bastante próximas, diferenciando-se apenas nos rumos que tomam as pesquisas
desenvolvidas em relação aos autores. Como procuramos demonstrar, a indissociabilidade da relação indivíduo /
sociedade é um tema comum a ambos os autores, portanto, comparando a obra de sociólogos renomados configurou-
se como um exercício crítico para a reflexão da pesquisa histórica. Nesse sentido, ao se operar com conceitos, como o
de figuração, abordagens que incorram em uma conclusão do tipo: “ali jaz o indivíduo, ali jaz a sociedade” são
rechaçadas. (Elias, 2005: 25) O conceito de figuração demonstra existir uma rede de interdependência entre os seres
humanos destinando-se justamente a combater a teoria de que os seres humanos são átomos isolados nas
sociedades, soma-se a isso o fato de que as figurações estão sempre em constante mudança num fluxo contínuo, em
função do resultado da ação humana sobre elas, e das relações das figurações entre si, na medida em que, todo o ser
humano pertence a mais de uma figuração, a exceção para casos extremos. Ele pode, por este motivo, ser utilizado
pelo historiador que visa compreender a relação entre indivíduo e sociedade, de modo a compreender que aspectos
individuais representam tensões sociais, e que aspectos sociais representam tensões individuais, na medida em que o
homem - na visão de Elias - não se apresenta como um átomo isolado. Os conceitos de Elias podem muito bem ser
utilizados como instrumentos de pesquisa empírica para qualquer situação, na medida em que o modo de se pensar
“relacional” permite um maior manejo do historiador, ao adequar idéias datadas a épocas históricas. A figuração de
corte, admirada por Bourdieu, é um perfeito exemplo daquilo que pretendeu chamar de campo. A noção de campo,
como um campo gravitacional, possui estrutura e lógica próprias. Criam-se mecanismos de poder, incapazes de
serem percebidos ao olho nu (illusio), que só se podem desvelar através da análise empírica. Precisamente, o objetivo
do campo é compreender a constituição de um espaço com uma autonomia relativa do resto da sociedade, com uma
lógica particular, mas que se relaciona de uma forma homóloga em relação aos outros campos. Campo, portanto, é
uma ferramenta de pesquisa capaz de superar os limites entre a análise externa e interna das estruturas que escapam
à ação dos homens. Como no projeto de Elias, em A sociedade de corte, a noção de campo objetiva “compreender a
forma específica de que se revestem, em cada campo, os mecanismos e os conceitos mais gerais (capital,
investimento, ganho), evitando assim todas as espécies de reducionismo, que nada mais conhece além do interesse
material” (Bourdieu, 2000; pg. 69).

Associado à noção de habitus permitiu a superação dos limites que distanciavam o homem de seu meio, ou
ignoravam a ação humana em seu meio. Por sua vez, a noção de campo, se atrelada à figuração, nos ajuda a romper
com as distâncias entre as lógicas internas e externas de análise. Fato de que a obra dos autores aproxima-se no
sentido de que buscam a dessacralização da teoria: para ambos, a pesquisa, a análise dos dados dever-se-ia congregar
a teoria perfeitamente. Nesse tipo de abordagem, a separação entre os pólos sociológicos (individuo e sociedade) se
mostra ineficaz, afinal, na pesquisa empírica será verdadeiramente impossível separar o homem de seu tempo. O
exemplo de Elias, tantas vezes citado por Bourdieu, é do nobre Saint-Simon. Ao dar uma sacola com dinheiro a seu
filho para compras, instruiu a gastar o máximo que pudesse. Orgulhoso, seu filho, havia chegado em casa com muitas
sobras e economias. Fato absurdo para um nobre como Saint-Simon, da sociedade de corte, que não teve escolha a
não ser queimar o restante. Naquela sociedade de corte, uma lógica racional propugnava que o status era definido
não pela capacidade de poupar, mas sim, pela capacidade de gastar. Convertia-se, assim, um capital-simbólico em
econômico, e de volta. (Elias apud Bourdieu, 1996: 13-28). O habitus cortesão, interiorizado por Saint-Simon,
dificulta ao extremo a separação teórica entre os pólos sociológicos. A solução desenvolvida por Elias e Bourdieu para
a construção de uma sociologia-histórica, configura-se para o início do século como a saída viável para agregar
homens e sociedade. Destarte, os homens se parecem mais com sua própria época do que com seus pais, assim como
essa própria época não parece com nada mais além dos homens que a criaram nas suas relações diárias.

5.      Na encruzilhada: a história entre o indivíduo e a sociedade

Como tentei demonstrar, o grande mérito dos sociólogos abordados, foi o de elaborar uma teoria,
efetivamente prática; uma espécie de arcabouço teórico, capaz de servir como instrumento ao trabalho do
historiador. O que tentei mostrar, nesse sentido, foi o fato de que a crítica as formas de dicotomia sociológicas, como
a do individuo e da sociedade, a capacidade de articular sociologia-história, tomando-as como indissociáveis, se deu
no sentido de tentar explodir a idéia de que a sociologia é essencialmente teórica, e a história praticamente empírica.
A afirmação de Bourdieu, mas que poderia ser de Elias, é absolutamente emblemática “todo o meu empreendimento
científico se inspira na convicção de que não podemos capturar a lógica mais profunda do mundo social a não ser
submergido na particularidade histórica de uma realidade empírica”, (1996: 23). A proposta teórica dos autores deve,
por fim, ser elucidada praticamente. Portanto, neste momento, será preciso tentar responder a seguinte questão: em
que a tentativa de Elias e de Bourdieu de superar a dicotomia indivíduo e sociedade contribui para o trabalho do
historiador?

Mais uma vez, n’A sociedade da corte (2001) discute a relação entre sociologia e história. No seu balanço de
época, a sociologia trataria das “sociedades’’, a história, por sua vez, ocupar-se-ia dos indivíduos. O modelo de
história vigente na Alemanha era o de Ranke; uma história predominantemente política centrada nos grandes nomes
da diplomacia e do governo. Então, a historiografia preocupava-se exclusivamente com as ações individuais: o Rei,
soberano político do absolutismo, concentrava para si todo o poder. A compreensão de uma sociedade de corte,
portanto, dever-se-ia fazer com o estudo da personalidade real. A sociologia da época, influenciada por Karl Marx e
Émile Durkhéim, sobretudo, tratava das estruturas dos acontecimentos que escapavam à vontade dos homens.
Marginaliza as biografias, determinava a ação individual em nome de uma estrutura e dos grandes processos
macrossociais. A proposição de Elias surge na criação de um novo modelo de sociologia-histórica, capaz de englobar
as duas disciplinas, rearticulando o debate em torno do coletivo e do individual. Contribuição de vital importância
para Elias é a idéia de que o próprio Rei era prisioneiro de uma figuração (Sociedade de corte) específica. Prisioneiro
dos costumes, da etiqueta, das redes de interdependência que se agrupavam ao seu redor. A ação real aglutinava-se,
portanto, a uma figuração específica que era a sociedade da corte: espécie de campo, com regras próprias e uma
autonomia relativa. Ressurge com força total, a questão do individuo e da sociedade, como pano de fundo, para a
construção de uma sociologia-histórica. (Idem; 28-59).

Na França, contemporaneamente ao projeto de Elias, Marc Bloch apontou também para a importância da
interdisciplinaridade entre história e sociologia. A idéia de uma História-total começa a nascer na famosa Revista dos
Annales, fundada em 1929. Na visão de Bloch, a história-total deveria ser a sociologia seria apenas mais um satélite
que giraria em torno da disciplina mais antiga do mundo. Definida por Lucien Febvre, a história dos Annales,
história-total, retirava “a armadura política, jurídica e constitucional de outrora [referência a Escola Metódica] (...).
“Tratava-se de uma história de toda a sua vida, toda a sua civilização, material e moral” (Febvre, 1970; 69) Pierre
Bourdieu escreveu em outros tempos. Na verdade, a história social triunfava na França. Uma história de tipo serial,
da geração de Fernand Braudel, em que os números pareciam vencer as pessoas, como no caso do historiador Pierre
Chaunu supracitado. O estruturalismo transposto à história parecia inverter a fórmula de Elias: a história restringia-
se às estruturas sociais. Na “longa duração” de Braudel, a proposição era a construção de uma história que não se
deteria nos “pormenores; nas ações individuais”. (Braudel, s/d; 7-29) O clima entre história e sociologia resultaria
numa confrontação instável. Para reagir a este tipo de saber histórico, Bourdieu recorreu, como vimos, a noção de
habitus e campo. O esboço de uma teoria da razão prática começa a se desenhar na distante Argélia. Tratava-se de
escapar dos riscos do modelo funcionalista hegemônico para a construção de um instrumento teórico em choque com
a pesquisa; instável, capaz de se modelar a diferentes contextos de sociologia-histórica, capaz de romper com um
modelo de história serial, que focava na estrutura (na sociedade).

Por muito tempo, a história operou com a dicotomia individuo/ sociedade. No contexto em que vigorava o
paradigma da Escola Metódica, o individuo ocupava um papel extremamente fundamental. Livres de qualquer
relação com um contexto social, generais e Reis governavam a vida de milhões de homens: a biografia era um tema
absolutamente recorrente. Um tipo de biografia, contudo, que focava no individuo como um ser estritamente
individual, apartado da sociedade em que vivia. Uma história feita pelos grandes indivíduos caracterizou a chamada
“Escola metódica” francesa. Este caráter conservador da disciplina histórica levou Elias a constatação de que era “a
disciplina dos indivíduos” (Elias, 2001; 29-32). Por outro lado, no tempo de Bourdieu, o paradigma historiográfico
vigente era o de Braudel e das análises macrossociais. A história-total dos Annales, que passava da história
econômica à história “das mentalidades”, preocupava-se com as continuidades, com os sistemas estáveis, com as
estruturas imóveis. Execravam-se, assim, as formas de história política e da análise das trajetórias sociais: a
construção da história social se daria apenas a partir de uma perspectiva macrossocial.

Atualmente, a história tem procurado explodir esta dicotomia. Os indivíduos, graças, em parte, às análises de
Bourdieu e Elias, passaram a se configurar como seres verdadeiramente sociais. O que Elias fazia tão bem, com a
proposta de articulação entre os níveis microssociológicos e o nível macrossociológico passou a se constituir como
chave para as análises que os historiadores vêm construindo. A idéia de uma figuração (habitus) serve, portanto, de
base para a análise das trajetórias sociais de indivíduos em múltiplos tempos. Parte-se, assim, para a busca de
um novo olhar do social, que não se pode atingir de outro modo que não seja o trânsito entre as esferas macro/
micro-histórica: a idéia de jogar com as escalas se torna chave aos historiadores do social. Temas como a biografia
são recolocados no debate historiográfico. Outrora, o objetivo único da biografia e da análise das trajetórias tinha
como fim em si mesmo a tentativa de reconstrução da vida dos grandes nomes do passado. Precisamente, a análise
das trajetórias de vida é capaz de nos fornecer uma nova visão do social, que é apenas possível de ser atingido na
articulação entre as esferas micro/ macrossocial. Durante a análise de um indivíduo, somos capazes de perceber
como em si exala todo o nível social.
Das correntes históricas com preocupações próximas as de Bourdieu e Elias, encontra-se a micro-história, de
Carlo Ginzburg, Giovanni Lévi e Edoardo Grendi. Em recente publicação Henrique Espada Lima Filho (2005),
mostrou como a micro-história se voltava, em geral, contra um tipo de abordagem que distinguia entre individuo e
sociedade. Por possuir uma consistente base empírica, que se articula a um forte conjunto de referências teóricas, a
micro-história é uma corrente historiografia que tem de necessariamente de discutir a relação entre micro/ macro.
Voltando-se, muitas vezes, contra os mesmos adversários de Elias e Bourdieu, (o estruturalismo, em especial),
preocupavam-se em construir um tipo de abordagem histórica que valorizasse as estratégias dos indivíduos, em uma
espécie de política do cotidiano. Conclui-se afirmando que os conceitos como o de habitus e figuração,fornecem o
instrumento crítico necessária ao historiador para navegar de livre trânsito entre as esferas macro/ micro para a
construção de uma necessária sociologia-histórica. Em tempos de “linguistic turn”,em que a teoria é marginalizada,
historiadores e sociólogos encontram em Bourdieu e Elias um porto seguro para a viagem do indivíduo à sociedade, e
de volta.

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