A Classificação Etnográfica Dos Povos de Angola
A Classificação Etnográfica Dos Povos de Angola
A Classificação Etnográfica Dos Povos de Angola
ª
parte)
Classification ethnography of the people of Angola (Part I)
Virgílio Coelho
p. 203-220
Resumo | Índice | Mapa | Notas da redacção | Notas do
autor | Texto | Bibliografia | Notas | Citação | Autor
Resumos
PortuguêsEnglish
O objectivo do presente artigo é efectuar um levantamento sobre a «classificação étnica» dos povos de
Angola durante o período colonial, recuperar e agrupar o máximo de informação escrita existente sobre o
assunto. Essa classificação, efectuada sobretudo durante o século XX — o que equivale dizer, durante o
início da histórica fase de implantação do colonialismo português em Angola, e posteriormente, na sua fase
de desenvolvimento —, foi efectuada em múltiplas fases ou períodos por diversos profissionais da
administração portuguesa, pelo prelado, sobretudo católico, e por alguns pesquisadores das ciências
sociais, apareceu, numa primeira fase, agregado aos objectivos da política colonial de dominação dos povos
«primitivos» e «selvagens» encontrados em Angola, e, numa segunda fase, reunidos que estavam os
elementos e dados essenciais que lhes permitiu agregar esses povos em «tribos» e/ou «grupos étnicos» e
conhecer as suas tendências e práticas, a de utilização da informação para melhor governar, utilizando uma
prática comum de subjugação dos povos, isto é, a de «dividir para melhor reinar». A produção do
presente artigo afigurou-se-nos igualmente necessário, pois, do ponto de vista histórico e até conceptual,
no período pós-independente, foi-se assistindo à produção de estudos baseados em informações pouco
consistentes acerca dessas mesmas classificações, completamente despidos de ordenamento e bases
históricas, que, em meu entender, acabam por toldar não apenas o espírito crítico pretendido e necessário
a qualquer estudo deste tipo, mas também, e sobretudo, a sua objectividade.
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Entradas no índice
Keywords :
«Ethnic Charter of Angola», ethnicity, ethnographic classification, ethnic, anthropological and
ethnographic studies, ethnic groups, tribes, «primitive», «savages», «indigenous»
Palavras chaves :
«Carta étnica de Angola», classificação étnica, classificação etnográfica, diversidade
étnica, estudos antropológicos e etnográficos, etnias, grupos
étnicos, tribos, «primitivos», «selvagens», «indígenas»
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Mapa
Introdução
Acerca dos inventários étnicos
Algumas notas a guisa de conclusão
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Notas da redacção
A ideia do presente levantamento e reflexão começou por ser pensada durante o seminário sobre
«Diversidade étnica e integração», orientado pelo Professor Doutor Víctor Kajibanga, no âmbito do
doutoramento em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da Universidade
Agostinho Neto (UAN).
Texto integral
PDFAssinalar este documento
Introdução
1Com a presente reflexão pretendo efectuar um levantamento o mais exaustivo possível
sobre a «classificação étnica» dos povos de Angola, que me levará inicialmente até aos anos
de 1962-1963, período em que foi elaborado o «Esboço da Carta Étnica de Angola», sob a
direcção do etnólogo Carlos Lopes Cardoso, do Departamento de Etnologia e Etnografia do
Instituto de Investigação Científica de Angola (IICA), um documento que praticamente se
tornou a síntese geral da cartografia dos povos de Angola, o qual, segundo Mesquitela Lima,
vinha sendo melhorado de ano para ano; e, por fim, aos levantamentos efectuados por José
Redinha (1960-1975), que, para este caso específico, trabalhou sempre de forma
independente. Até se ter chegado a esses documentos sínteses, eram já conhecidos outros
levantamentos, cujas informações começaram a ser recolhidas desde os fins do século XIX.
3Mas, curiosamente, vamos iniciar este artigo não com um antropólogo como seria de
desejar, mas com um historiador, René Pélissier. Este autor francês pode ser considerado
como um dos maiores especialistas da história da resistência dos povos de Angola, em fins
do século XIX e início do século XX, quando os portugueses, incentivados pelas conclusões
saídas da Conferência de Berlim, na qual os países imperiais decidiram dividir entre si os
territórios da África. Para não perder a parte que lhe julgava caber do espólio africano, os
portugueses decidiram ocupar através da força os territórios que entendiam ser seu de pleno
direito, pelos contactos seculares anteriormente estabelecidos, combatendo os povos
encontrados e procurando destruir as suas estruturas socioeconómicas e políticas. Deste
modo empreenderam acções sistemáticas contra os povos que intentaram fazer-lhes frente,
esforços de guerra esses que denominaram «campanhas de pacificação» dos povos
«indígenas», «selvagens», «primitivos» de Angola. Ora Pélissier foi justamente o historiador
que dedicou uma boa parte do seu tempo a documentar, analisar e a escrever sobre a
história da «resistência» desses povos, que estavam convictos do dever de não ceder aos
intentos portugueses, para não perderem as suas terras e a independência de que tanto
prezavam e haviam herdado dos seus antepassados.
4É por isso que para estudar e documentar esses povos que lutaram avidamente para não
perder a liberdade e as suas terras, René Pélissier utilizou esse recurso cartográfico e
informativo sobre os «grupos étnicos» de Angola, encontrados no «Esboço» referido,
produzido pelo IICA e apontando a data da sua produção como sendo 1964. Ao publicá-lo,
esse recurso documental passa assim a ser um dos documentos mais conhecidos acerca da
classificação étnica de Angola (cf. PÉLISSIER 1977: 15-16; 1978: 14-15; 1986, II: 337-
338).
6Nesse seu trabalho publicado em inglês nos Estados Unidos da América em fins do século
XIX, mais exactamente em 1894 (com tradução portuguesa datada de 1964: 75-79) Héli
Chatelain dá um grande contributo ao conhecimento sobre os povos que por essa época
viviam no vasto território que depois será a Angola colonial, indicando inclusive quais eram
os povos que ainda estavam independentes da administração colonial portuguesa e esse seu
inventário não deve ter passado despercebido do Secretário dos Negócios Indígenas e
Curador Geral da Província de Angola, José de Oliveira Ferreira Diniz, que na década de 1910
foi encarregado pelo governador geral Norton de Matos de efectuar estudos tendentes ao
«conhecimento dos usos e costumes dos indígenas como base primordial da orientação a
seguir na administração e política indígena», tarefa essa, entendida na ocasião como «um
dos ramos de serviço mais importantes da colónia» (DINIZ 1918: V).
8Note-se, entretanto, que tanto em Héli Chatelain quanto em Ferreira Diniz, a classificação
geral dos povos de Angola assenta ainda tanto na terminologia «povos de raça negra»,
quanto no de «raça amarela», os chamados «bosquímanos», especificamente. Quando avalia
os povos do sul de Angola, Chatelain propõe que as «[...] grandes tribos do distrito de
Moçâmedes, exceptuando as da costa, já mencionadas, são: os Ba-Ngambue (Gambos), Ba-
nianeka, Ba-londo, Ba-nkumbi, Hai, Jau, Ba-ximba e Ba-kubale. Para além do rio Cunene são
os Kua-mati, Handa, Nyemba, Fende e os Ba-kankala da raça amarela Bochimanes». Por sua
vez, ao tentar sintetizar os objectivos do seu estudo, Ferreira Diniz esclarece que o
«[...] estudo etnográfico das tríbus da província, distribuídas conforme o mapa aqui junto,
não pode deixar dúvidas sobre a existência das duas raças indígenas — a Negra e a
Boschjman — seja êle considerado, quer sob o ponto de vista dos caracteres étnicos, quer
sob o ponto de vista da linguagem, da habitação, do vestuário, da alimentação, dos meios
de existência, das faculdades intelectuais, quer enfim sob o ponto de vista da vida familiar
ou da organização social» (DINIZ 1918: 495). Como se pode observar destes dois autores a
sistemática conhecida por essa ocasião está ainda muito longe daquela que hoje tem sido
apontada.
9Em dois trabalhos produzidos e publicados em 1940, o diplomado pela Escola Superior
Colonial e Administrador de circunscrição José Ribeiro da Cruz, introduz uma nova
terminologia: os Bantu, tendo começado por esclarecer um facto inexistente nos dois autores
anteriormente citados: «Os povos que habitam Angola (exceptuando os Boximanes, que
fazem parte, ao sul da Colónia, da população da Província da Huíla), pertencem ao grande
grupo geográfico e linguístico Bantu» (1940a: 107) e ainda: «Os pequenos grupos dos ba-
cancala, ba-cuisso, ba-curocas, ba-cuandos e ba-cassequéres, são povos Boximenes que os
etnógrafos dizem ser os primitivos habitantes da África Equatorial e Austral» (1940b: 27).
Portanto, temos com este autor uma sistemática que assenta na existência de povos de
origem Bantu e povos Boximanes. Em relação aos primeiros explica que as «[...] 66 tribus
dos Bantu, que vivem em Angola, formam dez grupos lingüísticos, a saber: «Kikongo,
Kimbundo, Lunda-Kioko, Umbundu, Ganguela, Lunyaneka, Lunkhumbi, Xikuanyama,
Xindonga e Tyerero» (1940a: 108-112; 1940b: 23-27), devendo acrescentar-se os
«Boximanes», que são «[...] considerados os primitivos habitantes da África Equatorial e
Austral. Vagueiam em pequenos núcleos, no planalto da Huíla, margens do rio Cunene e do
Cubango. São de pequena estatura e a sua vida é miserável [...]» (1940a: 112), «e
repelente» (1940b: 27).
11Oito anos depois, em 1951, registamos a edição da obra Etnografia Angolana. Esboço para
um estudo etnográfico de Mário Milheiros, um outro funcionário administrativo, que na sua
introdução anota: «Podemos dividir as tribos de Angola, em sete grupos» (1951: 7) e para a
sua explicitação propõe uma forma de ajuntamento algo estranha, para não dizer,
desencontrada, em relação aos autores que o precederam. Observa-se isso sobretudo na
forma administrativa como sugere os chamados agrupamentos tribais, não correspondendo
assim a uma lógica que relacione língua, cultura, modalidade psíquica e território.
Paradoxalmente, regista-se um avanço quando se refere ao sétimo grupo e escreve: «A este
grupo pertencem as tribos de três sub-raças diferentes: boxímane, vátua e banta. Habitam
as regiões de Porto Alexandre, Moçamedes, Chela, Baixo Cunene, Baixo Cubango, Cuando e
Bundas e são: a) Sub-raça Boxímane (Khoisan ou boxímane-hotentote): !Cung — Missão da
Quihita, em Quipungo e Hoque; Quede — Baixo Cunene (Mupa e Omupanda); b) Sub-raça
Vátua: Ovacuepe — Porto Alexandre, Moçâmedes e Huíla; Ovacuisse — Rios Bero, Giraúl,
Bentiaba e entre o Deserto de Miçâmedes e a Serra da Chela; c) Sub-raça Banta, Ramo
Cuvale: Cuvale (Huíla e Moçâmedes); Chimba ou Himba (Gambos); Ova-Cuanhoca (Distrito
da Huíla), Ova-hacaona (Distrito da Huíla), Ova-txavícua (Distrito da Huíla), Ova-dombe
(Moçâmedes e Huíla), Ova-dimba (Distrito da Huíla); Ramo mestiço: Ba-cassequere
(Moçâmedes), Ba-cuancala (Luchazes, Bundas e Cuando), Camaxis (Rio Cuando)»
(MILHEIROS 1951: 11-12).
12Esta obra de Mário Milheiros, teve uma segunda edição efectuada já sob os aupícios do
Instituto de Investigação Científica de Angola (IICA) da qual foi investigador. No capítulo
sobre a «Tipologia etno-linguística», Mário Milheiros escreve: «Podemos dividir as etnias de
Angola, nos seguintes grupos etnolinguísticos: Quicongo, Quimbundo, Lunda-Quioco,
Umbundo, Ganguela, Lunhaneca, Luncumbi, Cuanhama, Xindonga e Herero» (1967: 10-11),
e, para meu espanto, paradoxalmente, não inclui os outros agrupamentos étnicos que já
havia indicado na 1.ª edição desta sua obra: os «Boximanes» e os «Vátua». O que, sem
sombra para dúvida, vai de encontro ao que escrevemos antes segundo a qual estamos
perante um autor cujo trabalho está pejado de confusão e dúvidas.
13Com efeito, podemos concluir que este trabalho de Mário Milheiros constitui um manancial
de confusões cuja leitura não aconselho a nenhum leigo na matéria; não obstante não citar a
sua fonte, tudo leva a crer que este autor tenha usufruído das informações dadas a estampa
num artigo denominado «Os Vatwa», publicado pelo Padre Carlos Estermann na
revista Mensário Administrativo (1951), justamente a instituição da administração colonial a
que Mário Milheiros estava ligado.
1 Afigura-se-nos conveniente esclarecer que Mensário Administrativo designava por um lado uma
editora (...)
14Ainda nesta década, em 1955, com o estudo do etnólogo José Redinha, intitulado «Os
povos de Angola e as suas culturas», vemos surgir as primeiras ideias sobre uma sistemática
mais alargada da organização geral dos povos em Angola (cf. REDINHA 1955: 1-65). Este
estudo, publicado pelo Museu de Angola, antecipou o seu esboço de Distribuição étnica de
Angola cuja redacção terminou em 1961, a que se lhe seguiu a impressão da 1.ª edição no
ano seguinte igualmente pelo Mensário Administrativo.1 De acordo com a sua classificação,
José Redinha explica que as «[...] actuais populações autóctones angolanas são constituídas
por Bantos, por alguns pré-Bantos e um número apreciável de não-Bantos. Os Bantos
angolanos pertencem à grande divisão dos Bantos Ocidentais, conquanto haja a assinalar, no
Sudoeste da Província, uma penetração relativamente extensa de Bantos Meridionais,
atingindo para norte os Umbundos, até aos Bienos e Bailundos». Adianta ainda que a
«composição étnica dos Bantos Ocidentais apresenta traços nigerianos e camaroneses na
sua zona noroeste, e fusões importantes de sangue etíope, e fortes marcas dos Camitas
Orientais nos Grupos do Sudoeste» (REDINHA [1962], 1975: 7). Em relação às populações
que denomina pré-Bantos, José Redinha considera que estes «apresentam importância muito
fraca, habitando desde longa data as margens do rio Curoca, e uma faixa territorial pouco
definida no deserto de Moçâmedes». Conclui afirmando que «formam, no seu conjunto,
reduzido e rarefeito, o grupo Vatwa». Finalmente, anota que «as populações não-Bantas são
constituídas pelos Bosquímanos ou Khoisan. Vivem em grupos avulsos, espécie de
acampamentos temporários, nos territórios dos Bantos, na zona sul da Província, sendo o
seu número da ordem dos cinco milhares de indivíduos» (REDINHA [1962], 1975: 7).
15Em termos gerais e sistemáticos, as etnias angolanas actuais, escreve José Redinha,
«dispostas segundo uma ordem cronológica das mais antigas para as mais recentes,
apresentam o quadro seguinte:
16Em nosso entender, esta parece ter sido a primeira forma actualizada de organização
apresentada sobre os povos de Angola. Tudo o que se vai seguir vai depender em grande
medida desta proposta de Redinha, não obstante os esforços do IICA, surgidos poucos anos
depois, não justifiquem esta nossa apreciação. Para melhor conhecimento do que pensamos,
vai ser necessário compulsar todo o arquivo administrativo que eventualmente exista sobre
esta questão específica e que julgamos muito importante para perceber o assunto.
«O Grupo Étnico Hotentote-Bosquímano tem sido repartido por dois agrupamentos principais:
Mucuancalas e Cassequeles, ou Bosquímanos amarelos;
Cazamas ou Vazamas, ou Bosquímanos Negros» (id., ibidem).
«O Grupo Étnico Vátua ou pré-Banto é formado por Cuissis e Cuepes — algumas vezes englobados
na designação Curocas, derivada do Rio Curoca, cujas margens habitam» (id. ibidem).
18Em relação ao Grupo Étnico Banto, Redinha chama a nossa atenção para o facto ser, «por
grande diferença, a etnia demograficamente mais importante, e que a sua distribuição
territorial abrange a totalidade da Província. Apresenta também em relação aos Koisan e aos
Vátua, um estágio cultural mais avançado. [...] Por motivo da grande extensão geográfica
que dominam, das influências de meios variados e de certas diferenças de expressão
antropológica que lhes correspondem, a etnologia, apoiando-se, aliás, em distinções
estabelecidas pelas suas próprias comunidades autóctones entre si, estabeleceu para os
Bantos Angolanos as sub-divisões étnicas seguintes:
20Os estudos levados a cabo por José Redinha acerca das classificações étnicas dos povos de
Angola, constituem, em relação aos materiais conhecidos anteriormente, um considerável
avanço. Eles têm alcance em todo o contexto espacial da província de Angola e Redinha, no
início desse seu estudo seminal, aponta claramente algumas das suas principais fontes, tais
como o «Missionário e Etnógrafo Carlos Estermann para o Sudoeste de Angola, os do
Coronel Hélio Esteves Felgas, para a Região Conguesa, os de Murray Childs para a área
umbunda, e as nossas próprias documentações sobre o Nordeste e Leste, recolhidas no
decurso da organização do Museu do Dundo» (REDINHA [1962] 1975: 5). Através dessa
informação José Redinha mostra assim uma cobertura de conhecimentos julgados mais
fiáveis porque partem de trabalhos de etnografia muito localizados e aprofundados sobre os
principais «grupos étnicos» na Província de Angola. Não identifica, contudo, as suas fontes
para os Kimbundu; observa-se, no entanto, que antes atribuiu-lhe sempre o designativo
Ambundo e agora chama-lhe unicamente os Kimbundu, o que nos parece constituir um
avanço digno de registo. Mas os esclarecimentos acerca dessa mudança estão por fazer.
21Contudo, apesar desses esforços, José Redinha não logra explicar também as razões da
designação do «Grupo Xindonga» para reunir o conjunto das populações que habitam ao sul
do então «Distrito do Cuando Cubango», na fronteira com o antigo Sudoeste Africano, hoje
Namíbia.
25Ora, como se sabe, Okavango é a designação do rio no contexto fora das fronteiras de
Angola, nomeadamente na Namíbia (que atravessa a Faixa de Caprivi) e no coração do
Botswana, onde vai desaguar. Trata-se, certamente, de uma forma de designar entre nós o
rio Kuvango, uma variante dialectal, que tem uma grande influência para as populações da
região sudeste do nosso país. Com efeito, na República da Namíbia, as populações que estão
a sul desse rio são geralmente classificadas como sendo «the Kavango tribes» e essa
classificação reagrupa populações do grupo San (!Xu e Mbarakwengo) e do grupo Bantu
(Mbukushu, Gciriku, Shambiu, Mbunza e Kwangali), estimados em cerca de 140 000 pessoas
(cf. MALAN 1999: 35-54).
26É um tipo de interrogação que também se pode fazer A. da Silva Rego e Eduardo dos
Santos, em relação a proposta sobre os «Agrupamentos étnicos» de Angola, que estes
autores publicaram em 1964 (2.ª edição), num Atlas Missionário Português. Nesse
levantamento, subdividido em «Bantos» e «Não Bantos», indicam nove grupos étnicos
Bantos: «Quicongo, Quimbundo, Lunda-Quioco, Umbundo, Ganguela, Nhaneca-Humbe,
Ambó, Herero e Cuangar» e «Não-Bantos» subdivididos em «Khoisan (Hotentote-
Bochimane)» e «Vátua» (1964: 55-56). A diferença dos demais levantamentos está no nono
sub-grupo Bantu, que aqui é classificado como «Cuangar». Contudo, não é indicado qualquer
fonte no texto para esta inserção. Nesta conformidade, parece-nos lógico poder inferir que
«Cuangar» seja apenas uma área dessa extensa região e, tal como já observamos no
parágrafo anterior, um dos povos que aí habita são os Kwangali. Por isso, não descortinamos
as razões que levaram estes autores a considerarem o total das populações que vivem nessa
região como sendo «Cuangar», constituindo por isso mais um imbróglio a ser esclarecido
acerca deste já amplo problema classificatório.
28Além do historiador francês René Pélissier, um outro autor que pode ser considerado como
um dos grandes difusores nas suas obras do «Esboço da carta étnica de Angola» do IICA é o
etnólogo João Vicente Martins, um experiente investigador que começou também por
trabalhar nas minas da Empresa de Diamantes de Angola (DIAMANG), e que mais tarde viria
a publicar alguns ensaios e uma tese de doutoramento sobre a cultura dos povos Ruund
(Lunda) e Cokwe do Nordeste de Angola. Apesar da informação cartográfica que utiliza ser
originário do IICA, ele o fez também a partir da informação veiculada pelo Museu Nacional de
Antropologia de Luanda, uma instituição museal surgida nos alvores da independência de
Angola e de que dele falaremos numa outra ocasião (cf. MARTINS 1993: 32 e seguinte, não
paginada; 2001: 140-141; 2008: 390-391).
30O Padre Carlos Estermann, um dos principais autores apontado pelo etnólogo José
Redinha como constituindo uma fonte insuspeita, num artigo de extraordinária magnitude,
mostra com grande clareza que o «problema da diferenciação étnica em Angola» constituia
na época uma preocupação e que, do ponto de vista metodológico, quem quisesse saber
«quantas tribos, ou pelo menos quantos grupos étnicos existem em Angola?» ou «Quais são
as suas designações étnicas?», teria que ter em conta pelo menos duas coisas: em primeiro
lugar, «o reconhecimento linguístico que abranja toda a área da província, não se vê como
possa merecer mais confiança do que o étnico»; em segundo lugar, «Nem sempre pode
empregar-se este critério para determinar o substracto étnico dum povo. Noutras palavras:
pode um grupo étnico falar um idioma que pertence propriamente a um agregado rácico
diferente. [...] Há, por exemplo, a viverem no meio dos Cuanhamas e à maneira deles
pequenos núcleos “kedes”, que já não sabem falar outra língua que a dos seus vizinhos. No
entanto racicamente diferem completamente deles. Não há pois que ver, em rigor científico,
quando nos queremos referir a etnias e proceder a estudos».
31Concluimos esta primeira parte anotando que com o presente artigo nos contentamos
unicamente em efectuar um breve levantamento acerca da classificação étnica dos povos de
Angola durante o período colonial. No entanto, é nossa intenção reflectir igualmente acerca
da sua utilização no período pós-independente de Angola, e que o faremos na segunda parte
do nosso levantamento, enquanto que, em definitivo, reservaremos à reflexão e crítica e
apontaremos o que pensamos especificamente sobre esta problemática num terceiro
trabalho.
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Bibliografia
ATLAS, 1962, Atlas Missionário Português. Prefácio de A. da Silva Rego. Lisboa, Missão para
o Estudo da Missionologia Africana; Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de
Investigações do Ultramar, 180p.
CARDOSO Carlos Lopes (dir.), 1962-1963, Carta étnica de Angola. Esboço. Luanda, Divisão
de Etnologia e Etnografia do Instituto de Investigação Científica de Angola (IICA)
[stencilado].
CHILDS Gladwyn Murray, 1949, Umbundu kinship & character. Being a description of the
social structure and individual development of the Ovimbundu of Angola, with observations
concerning the bearing on the enterprise of Christian Missions of certain phases of the life
and culture described. Londres, New York, Toronto, International African Institute and the
Witwatersrand University Press, 246p.
CRUZ José Ribeiro da, 1940b, Notas de Etnografia Angolana. Prefácio do autor. Lisboa,
Lisboa, Sociedade Industrial de Tipografia, Lda., 182p.
REDINHA José, 1955, «Os Povos de Angola e as suas culturas», in Colecção etnográfica.
Luanda, Museu de Angola [«Publicações do Museu de Angola»], pp. 1-66.
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Notas
1 Afigura-se-nos conveniente esclarecer que Mensário Administrativo designava por um lado uma
editora e por outro o título de uma revista. Neste caso específico, referimo-nos à revista onde,
pela primeira vez, foi publicado este texto de José Redinha.
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Referência eletrónica
Virgílio Coelho, « A classificação etnográfica dos povos de Angola (1.ª parte) », Mulemba [Online],
5 (9) | 2015, posto online no dia 28 novembro 2016, consultado o 12 junho 2018. URL :
http://journals.openedition.org/mulemba/473 ; DOI : 10.4000/mulemba.473
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Autor
Virgílio Coelho
[email protected]
[email protected]
Professor Auxiliar do Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da
Universidade Agostinho Neto (UAN) e Coordenador Adjunto do Centro Avançado de Estudos
Africanos (CAEA) da FCS e Assessor Principal do Ministério da Cultura.
Professor Auxiliar do Departamento de Antropologia (DA) da Faculdade de Ciências Sociais (FCS)
da Universidade Agostinho Neto (UAN), é antropológo, diplomado pela École Pratique des Hautes
Études (EPHE), Universidade de Paris ― Sorbonne (França), tendo apresentado a tese intitulada
La place des jumeaux dans le système religieux des Ndongo (Ambundu), Angola (523p.), onde
também efectuou estudos doutorais em Antropologia Social e Cultural, sob a direcção do Prof.
Doutor Michel Cartry. Concluiu o mestrado: Diplôme d’études approfondis (DEA), na especialidade
de «Anthropologie comparée des Religions d’Afrique, d’Orient et d’Extreme Orient», em 1988, sob
a direcção da Prof.ª Doutora Jacqueline Duvernay-Bolens, tendo submetido a tese Le culte des
«génies» ítùtà chez les Ndongo de la valée du Kwanza, Angola (176p.). É investigador (Assessor
Principal) do Ministério da Cultura, onde dirigiu algumas das suas instituições, dentre as quais o
Departamento de Folclore da Direcção Nacional de Arte (DINARTE) e a Delegação Provincial de
Luanda (DPL). De Janeiro de 2003 a Setembro de 2008, foi Vice-Ministro da Cultura para o
Património e a investigação científica, no âmbito do Governo de unidade e reconciliação nacional
(GURN). No âmbito do ensino, é docente no curso de Antropologia do Departamento de
Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da Universidade Agostinho Neto (UAN),
orientando formação nas cadeiras seguintes: Introdução à Antropologia; Etnologia Geral;
Semiótica e Semiologia; Tradições Orais, Mitos e Mitologias; Antropologia das Religiões;
Epistemologias Antropológicas e Teorias Antropológicas. As suas principais áreas de investigação
são a antropologia social e cultural (estudos de parentesco e de organização social), de
antropologia política (questões específicas sobre a problemática do Estado em África, nação, etnia
e etnicidade, tribo, identidade cultural e alteridades, etc.), de antropologia do simbólico,
antropologia histórica, antropologia e geografia linguística e de antropologia da literatura e artes
em Angola; e ainda, a antropologia das religiões em África (África central, oriental e austral,
particularmente em Angola). É membro correspondente da Academia das Ciências de Lisboa,
membro da Associação de Antropólogos e Sociólogos de Angola (AASA), onde desempenha as
funções de Secretário do Pelouro de Pesquisas e Conferências do seu Comité Executivo e vice-
presidente do Conselho Editorial e Secretário da Ngola – Revista de Estudos Sociais da AASA; na
sua qualidade de artista plástico, é membro fundador da União Nacional dos Artistas Plásticos
(UNAC), tendo dirigido a sua Mesa da Assembleia Geral no período de 2005 a 2009; e membro da
União dos Escritores Angolanos (UEA). Jornalista, desempenhou funções no suplemento dominical
Vida & Cultura (e posteriormente Vida Cultural) do Jornal de Angola e foi coordenador da secção
«Cultura» do jornal Angolense e, posteriormente, do jornal Semanário Angolense. É actualmente
Director das Edições Mulemba, editora da FCS da UAN e editor das seguintes revistas: Mulemba –
Revista Angolana de Ciências Sociais, órgão científico da FCS da UAN; Maka – Revista de
Literatura & Artes, da União dos Escritores Angolanos (UEA) e Ngola ― Revista de Estudos Sociais,
órgão da Associação de Sociólogos e Antropólogos de Angola (AASA), integrando os seus
conselhos científicos e editoriais. É igualmente membro dos Conselhos Científicos das revistas
seguintes: África – Revista do Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo (Brasil),
Cadernos de Estudos Africanos, revista do Centro de Estudos Africanos do ISCTE – Instituto
Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa (Lisboa, Portugal), e do Conselho Editorial da RAS
– Revista Angolana de Sociologia, da Sociedade Angolana de Sociologia (SAS). Em 2010 foi-lhe
outorgado o «Prémio Nacional de Cultura e Artes», na secção de Ciências Humanas e Sociais,
pelas obras «Em busca de Kábàsà!...» Estudos e reflexões sobre o «Reino» do Ndòngò.
Contribuições para a História de Angola e Os Túmúndòngò, os «génios» da natureza e o Kílàmbà.
Estudos sobre a sociedade e a cultura kímbùndù.
História Militar de Angola: uma obra colectiva pioneira que marca uma
época[Texto integral]
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época[Texto integral]
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Para uma leitura de Sair da grande noite. Ensaio sobre a África descolonizada de Achille
Mbembe [Texto integral]