Paulo Henriques Britto

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Paulo Henriques Britto

ENTREVISTA

curitiba
2019
Copyright desta edição Coordenação da coleção
© 2019 Medusa Andréia Guerini
Dirce Waltrick do Amarante
Edição Sérgio Medeiros
Ricardo Corona Walter Carlos Costa
Eliana Borges

Projeto gráfico
Eliana Borges Comitê editorial
Caetano Galindo (UFPR)
Revisão Fábio de Souza Andrade (USP)
Nylcéa T. de Siqueira Pedra Gonzalo Aguilar (UBA)
Henryk Siewierski (UnB)
ISBN 978-85-64029-73-6 Karine Simoni (UFSC)
Kathrin Rosenfield (UFRGS)
Impresso no Brasil / 1a. Edição Luana Ferreira de Freitas (UFC)
Foi feito o depósito legal Malcolm McNee (Smith College)
Marco Lucchesi (UFRJ e ABL)
Editora Medusa Myriam Ávila (UFMG) Organização
www.editoramedusa.com.br Odile Cisneros (Universidade de Alberta)
[email protected] Susana Kampff Lages (UFF) Caetano W. Galindo
facebook.com/EditoraMedusa
Walter Carlos Costa

Dados internacionais de catalogação na publicação


Bibliotecário responsável: Bruno José Leonardi – CRB-9/1617

Paulo Henriques Britto: entrevista / organizado por Caetano W.

Galindo e Walter Carlos Costa. - Curitiba, PR : Medusa, 2019.

168 p. ; 19,5 x 13,5 cm. (Coleção palavra de tradutor)

Inclui bibliografia

ISBN 978-85-64029-73-6

1. 418.02

coleção palavra de tradutor


Sumário

9 APRESENTAÇÃO

15 ENTREVISTA

63 CRONOLOGIA

101 AMOSTRAS DE TRADUÇÃO

119 DEPOIMENTO

125 TEXTOS TEÓRICOS

164 APÊNDICE
9

APRESENTAÇÃO

Paulo Henriques Britto é quase certamente o


maior poeta brasileiro em atividade. Seus sete livros de
poesia compõem uma obra fundamental, reconhecida
como tal pela crítica, pela academia e pelos leitores.
Mas este livro não trata do poeta.
Apesar de ter um segundo volume de contos no
prelo, Britto até aqui publicou um único livro de ficção,
Paraísos artificiais (2004), que prontamente lhe valeu um
prêmio Jabuti. Ele é, além disso, um dos maiores for-
madores de tradutores do país, trabalhando há quase
quarenta anos no curso de tradução da PUC-Rio e, em
nível de pós-graduação, lecionando, pesquisando e ori-
entando na área há mais de quinze anos. Mas este livro
não é sobre o prosador, e trata apenas tangencialmente
do educador.
Diante de um currículo como esse, no entanto,
seria talvez de se esperar que a atividade de Paulo
Henriques Britto como tradutor fosse da esfera do
diletantismo, ou algo estritamente articulado à sua
produção acadêmica, fruto de projetos de pesquisa
pontuais. No entanto, os mais de cem livros traduzidos
por ele desde os anos setenta o transformam numa figura
pouco frequente no panorama tradutório brasileiro:
um criador que é também pesquisador; um professor
que é também tradutor em ritmo editorial acelerado.
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Não é arriscado afirmar que em toda a história das que, décadas depois, seriam transformados em contos.
letras brasileiras, poucas pessoas terão deixado uma A partir daí, e antes de ingressar na universidade, no
contribuição tão vigorosa quanto a de Paulo Fernando Brasil, ele começa a trabalhar como professor de língua
Henriques Britto: poeta, contista, crítico, educador… inglesa e tradutor.
tradutor. Na PUC-Rio, ele se forma em Letras e defende
Este volume tem a tarefa agradabilíssima de seu mestrado em 1982. Mas desde 1978 já era profes-
apresentar, dentre todas as suas áreas de atuação, sor do curso de Letras, onde pôde dar aulas não ape-
exatamente a sua carreira como tradutor, e de oferecer o nas de linguística (sua área de interesse original), mas
registro de uma trajetória que ajudou a formar gerações também de literatura, tradução e, posteriormente, de
de profissionais, leitores e escritores. Este volume é criação literária. A partir de 2002, começa sua atuação
nosso agradecimento pessoal à presença de Paulo na Pós-Graduação.
Henriques Britto em nossa vida e em nossa carreira, e Sua poesia é parte da paisagem cultural brasileira
é nossa pequena tentativa de fazer com que os leitores desde 1982, quando é publicado seu primeiro livro,
possam ter algo da clareza que temos nós, ao avaliar a Liturgia da matéria. Nos anos seguintes, se seguiram
dimensão de sua atuação ao longo de décadas. Mínima lírica (1989), Trovar claro (1997, vencedor
do Prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Fundação
* Biblioteca Nacional), Macau (2003, que recebeu o
Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira e o
Paulo é carioca, de 1951, filho de pai acriano e Prêmio Alceu Amoroso Lima), Tarde (2007, recebedor
mãe carioca. A profissão do pai, engenheiro de teleco- do Prêmio Alphonsus de Guimaraens), Formas do
municações, levou a família a uma estada de dois anos nada (2012, Prêmio Bravo! Bradesco Prime) e Nenhum
em Washington, entre 1962 e 1964. Com isso, ele apren- mistério (2018).
deu inglês em imersão total, atingindo um refinado bi- Suas obras ainda incluem estudos monográficos
linguismo que, em breve, ajudaria a definir seus rumos sobre as canções de Sérgio Sampaio (2009), a poesia
profissionais. de Claudia Roquette-Pinto (2010) e o ensaio A tradução
Sua segunda passagem pelos Estados Unidos literária (2012, Prêmio Literário Fundação Biblioteca
começou em 1972, quando foi para a Califórnia para Nacional, categoria Ensaio Literário). Sua produção tem
estudar cinema. O curso, no entanto, foi abandona- também reconhecimento fora do Brasil. Seu livro Macau
do, deixando como principais frutos ideias e esboços foi publicado em Portugal (2010) e duas antologias
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poéticas suas foram editadas no exterior: nos Estados pastiche ensandecido de inglês setecentista de Mason
Unidos, The clean shirt of it: poems of Paulo Henriques & Dixon. E se imitar anacronicamente a língua do
Britto, com seleção, tradução e introdução de Idra passado já podia parecer desafio suficiente, ele traduziu
Novey (2007); e na Suécia, En liten sol i flickan, com o clássico As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift,
seleção, tradução e posfácio de Marcia Sá Cavalcante decidindo empregar recursos estilísticos da época e um
Schuback e Magnus William-Olsson (2014). vocabulário que estivesse registrado no português do
período.
* Traduziu John Updike.
Traduziu V. S. Naipaul.
O breve resumo acima deixa de fora aqueles Traduziu Charles Dickens.
mais de cem livros traduzidos. E se o tradutor é um Traduziu a linguagem espiralada de Henry
“imitador”, que imita tão devidamente que chega a James.
convencer que é rito o mito que deveras fita, Paulo tem Traduziu a deslumbrante prosa de Don DeLillo.
uma trajetória com extensão e variedade para garantir Se esse tradutor é um imitador, já vestiu cara-
que já tenha passado por todo tipo de identidade, puças de quase três séculos de idade, e outras tecidas
estilo e projeto. ainda ontem. Já teve que produzir prosa alta e “baixa”,
Ele já traduziu a complexa teoria literária de trágica e cômica (sua tradução de Enderby por den-
Luiz Costa Lima para o inglês. Traduziu não apenas tro, de Anthony Burgess, é hilária), objetiva e lírica, e
poesia, mas a pretensa leveza de Elizabeth Bishop, a poesia metrificada, rimada, branca, livre, em prosa. Se
densidade absurda de Wallace Stevens e o extremo o tradutor é quem conhece mais a fundo a caixa de fer-
virtuosismo de Byron. Traduziu não apenas prosa, mas a ramentas do idioma, Paulo Henriques Britto mostrou
oralidade idiossincrática de Richard Price e o vernáculo que pode passear pelas possibilidades da nossa língua
americano de Philip Roth, o experimento radical de como poucos.
William Faulkner; não apenas Thomas Pynchon, um dos Paulo refletiu sobre tudo isso. Sua experiência
mais sofisticados prosadores americanos das últimas com Vida vadia (Lush Life), de Richard Price, rendeu fi-
décadas, mas um recorte da obra de Pynchon que vai nas reflexões sobre a representação da oralidade do
do emaranhado de cultura pop e inapreensibilidade português brasileiro na literatura. Sua lida com sucessi-
metafísica de O Arco-íris da Gravidade à dimensão vas versões da tradução de um poema breve de Emily
trágica e continental de Contra o Dia, passando pelo Dickinson gerou uma rica discussão sobre a tradução
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de poesia em seu A tradução literária.


Paulo se alimentou da melhor literatura produzida
em inglês e em português (e também em outras
línguas, que leu, ora, em tradução) e, lendo sempre
como tradutor, formou-se também como produtor de
versões outras dessa literatura. Paulo produziu parte da
melhor literatura de que dispomos em português, não
apenas através de sua incontornável, soberba poesia,
mas também graças ao enriquecimento da literatura
brasileira pela entrada de todos esses textos que ele
pôde traduzir, e pelo alargamento das possibilidades
da língua literária brasileira que ele, como poucos,
produziu durante o processo de tradução.
ENTREVISTA
*

A cultura brasileira precisa de Paulo Henriques


Britto. A cultura brasileira quase não merece Paulo Hen-
riques Britto.
Nós, leitores, agradecemos e ainda esperamos
o que ele vai produzir no futuro. Porque virá mais. Mais
poesia. Mais contos. E, definitivamente, mais traduções.
Nós, organizadores, agora, saímos da frente,
para que você possa conhecer um pouco melhor essa
figura a quem, mesmo talvez sem saber, você já deve
tanto.
17

UM TRADUTOR

1. Paulo Henriques Britto é, em primeiro lugar, poe-


ta, professor ou tradutor?

Boa pergunta. Ainda guardo alguns vestígios


da minha formação existencialista — vá lá a expressão
pretensiosa, que dá a entender que tenho uma
bagagem filosófica sólida, o que está longe de ser
verdade — mas enfim, por conta das minhas leituras
apressadas de Sartre, sempre desconfio dessas
questões em torno da essência de uma pessoa. Não sei
se sou fundamentalmente, ou essencialmente, ou em
primeiro lugar, isto ou aquilo. Sempre quis ser escritor,
mas na verdade meu sonho era ser romancista. Aliás,
o que eu queria ser de verdade era músico, mas por
volta dos 16 anos — quando já estava estudando piano
há uns dois anos — eu já tinha perfeita consciência da
minha completa falta de talento musical. Do mesmo
modo, comecei a me concentrar na poesia porque
todas as minhas tentativas de escrever romances
naufragaram, gerando no máximo contos. Tanto o
trabalho de professor quanto o de tradutor foram coisas
em que entrei sem muito plano, basicamente porque
precisava ganhar algum dinheiro. Eu estaria faltando
com a verdade se negasse que tenho pretensões de
que meus poemas sejam lidos ainda por algum tempo;
mas as traduções eu sei que só vão durar uma geração,
18 19

no máximo; toda tradução é provisória. E o trabalho de coordenado pela Themira Brito, uma paraibana que,
professor é como o da faxineira: quando você termina como fiquei sabendo muito recentemente, faleceu há
o serviço, você vê que já tem que recomeçar tudo pouco tempo, tendo voltado a seu estado há décadas.
de novo. Cada nova leva de alunos é um recomeço, A Themira era uma pessoa da maior competência, e foi
e o nosso trabalho se repete com um novo grupo de com ela que dei meus primeiros passos no mundo da
pessoas, partindo do zero. Resumindo, não tenho a tradução e revisão de textos. De todos os meses que
menor ideia de como responder essa pergunta. trabalhei na Imago, só concluí um trabalho que chegou
a ser editado, um texto curto do Freud que saiu naquela
2. Como a tradução entrou na tua vida? edição das obras completas da Imago como sendo
tradução minha e da Themira. Pouco depois disso,
Eu nunca tive um projeto de me tornar tradutor. comecei a fazer alguns livros de divulgação científica
Na adolescência, de vez em quando eu traduzia para uma outra editora aqui do Rio, a Ao Livro Técnico,
uma letra de música para mostrar a alguém que não que já não existe. Cheguei a fazer uns três livrinhos,
soubesse inglês. Depois, na Califórnia, traduzi para um sobre peixes, outro sobre filhotes de animais, um
o inglês algumas letras de canções e poemas para sobre astronomia; os títulos eram sempre O mundo
mostrar aos meus amigos de lá. De volta ao Brasil, maravilhoso de... Também fiz um livro sobre linguística,
comecei a trabalhar como professor de inglês, e um para a Zahar, em colaboração com colegas da PUC —
amigo meu me chamou para uma editora aqui do Rio eu já havia começado a trabalhar na PUC. Mas foi com
que estava precisando de tradutores. Na verdade, a Nova Fronteira que comecei o trabalho de tradução
eles queriam era um serviço de revisão de traduções literária, com um romance de Patrick White, um escritor
já feitas. Foi meu primeiro trabalho profissional nessa australiano.
área. A editora era a Imago, e os textos a serem revistos
eram traduções das obras completas de Freud feitas 3. O que foi te capacitando para essa atividade?
a partir não do original, mas da tradução inglesa. As
traduções estavam inutilizáveis, e cabia a mim — um A prática da leitura e da escrita, uma prática
garoto de 21 anos sem nenhuma experiência prévia de constante, que começou por volta dos seis anos de
tradução e sem nenhum conhecimento de alemão, mas idade, quando aprendi a ler. Escrever é sempre uma
com algumas leituras de Freud — transformar aqueles maneira de praticar a tradução, do mesmo modo como
textos em alguma coisa aproveitável. Meu trabalho era traduzir é uma maneira de aprender a escrever. Outra
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coisa importante, é claro, foi eu me tornar bilíngue por computadores e da internet. Não é apenas que tenha
volta dos 11, 12 anos de idade. Alguns dos meninos ficado muito mais fácil redigir no computador do que era
brasileiros que conheci em Washington, quando fui no tempo da máquina de escrever; há que considerar
morar lá no início dos anos 60, viviam numa espécie de também a questão da pesquisa. O levantamento de
interlíngua, misturando elementos do português e do um termo, ou de vários termos, que antes era uma
inglês. Foi uma coisa que sempre evitei; até por causa operação que envolvia consultas a dicionários, idas a
do exemplo dado por esses garotos, sempre fiz questão bibliotecas, telefonemas para peritos que me haviam
de separar bem uma língua da outra. Quando estava sido indicados por conhecidos de conhecidos, tudo isso
no colégio, eu falava inglês e pensava em inglês; se foi substituído por uma brevíssima consulta ao Google.
encontrava com meu irmão na hora do recreio, nós dois Ou seja: algo que levaria dias para resolver agora se
só conversávamos em inglês. Mas quando chegava em resolve numa questão de segundos. Mas há uma outra
casa, aí eu trocava de língua, e voltava a ser um falante do diferença muito grande entre ser tradutor 40 anos
português. Essa separação clara se reafirmou quando, atrás e ser tradutor agora, que tem a ver com a atitude
dez anos depois, fui estudar cinema na Califórnia. das editoras. Quando comecei a atuar, o trabalho do
O inglês era a língua com eu qual eu funcionava na tradutor era tão desvalorizado sob todos os aspectos
faculdade, ou mesmo na casa dos amigos; o português que ele não tinha sequer o direito de definir a forma final
era a língua da intimidade, quando eu estava pensando do texto. Você fazia a tradução, entregava o calhamaço
e escrevendo sozinho, na minha casa. à editora e daí em diante perdia todo e qualquer
controle sobre o seu trabalho. O revisor corrigia uma
4. Como vêm mudando o perfil e a rotina do tradutor série de falhas, sem dúvida, mas também “corrigia”
literário? coisas que estavam perfeitamente corretas, soluções
que haviam custado horas de pesquisa, e as substituía
Bom, comparar com os tradutores de gerações por falsos cognatos ou outras alternativas dessas que
anteriores fica difícil, já que não tive nenhuma relação parecem corretas à primeira vista mas que na verdade
muito próxima com tradutores bem mais velhos do que são equivocadas. Com a internet ficou muito mais fácil
eu, e os depoimentos de tradutores não são abundantes. você entregar o texto para a editora e depois recebê-lo
O que posso fazer é comparar o meu trabalho no tempo de volta, já revisado, para que você tenha oportunidade
em que eu comecei, nos anos 70, com o que faço de aprovar ou recusar, uma por uma, todas as emendas
agora. A diferença principal, é claro, é o advento dos propostas pelo revisor. Isso faz uma diferença brutal.
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É tão fundamental que o texto traduzido passe pelas rascunho, naturalmente escrevendo direto com a
mãos de um revisor consciencioso, que vai perceber máquina de escrever, já que nenhum tradutor tinha
um monte de problemas que o autor do texto não tempo de fazer um rascunho que depois seria passado
percebeu (e digo “autor do texto” porque isso se aplica a limpo. Depois, na etapa do cotejo com o original,
não apenas ao texto traduzido mas também ao texto usava-se liquid paper ou lápis para riscar umas
original), quanto que o texto revisado seja submetido passagens e acrescentar outras. Quando se pulava uma
ao crivo final de quem de direito: o tradutor (ou autor frase longa ou um parágrafo inteiro, o jeito era pegar
do original). uma outra folha de papel, datilografar o novo conteúdo
Outra diferença é a existência de cursos de e fisicamente cortar e colar aquele pedaço de papel na
tradução de nível universitário, como o curso da PUC- folha original, usando fita durex. Isso significa que no
Rio, onde trabalho desde 1978, mas que já tinha sido final do trabalho você tinha 200 ou 300 folhas de papel
criado dez anos antes. Costumo dizer aos meus alunos de tamanhos variados, por causa dessas tiras de papel
que aqueles erros mais cabeludos que todo tradutor que tinham que ser acrescentadas aqui e ali. De vez em
principiante comete hoje só são vistos pelo professor quando eu dedicava um dia à tarefa de pesquisar termos.
e pelos colegas; já os meus primeiros erros causados Eram idas à Biblioteca Nacional, à biblioteca do IBEU, à
pela inexperiência, se não foram detectados pelo re- biblioteca do Jardim Botânico... por vezes eu ia à casa
visor, foram parar no livro impresso. Depois de três ou de um professor ou especialista, com um caderninho
quatro anos de faculdade, o aluno de tradução já tem onde estavam anotadas as dúvidas. Lembro do famoso
uma experiência considerável, e está muito mais prepa- Mr. Payne, um inglês que veio para o Brasil nos anos
rado para enfrentar o mercado de trabalho do que eu 40 e foi ficando por aqui; quando comecei a trabalhar
estava quando, aos 21 ou 22 anos de idade, comecei a na PUC ele era professor de inglês e literatura inglesa
traduzir. no Departamento de Letras, mas em pouco tempo se
aposentou por questões de saúde e idade. Bem, eu
estava traduzindo um romance em inglês passado no
5. Mais pontualmente, como era uma sessão de tempo da Segunda Guerra, e não tinha como descobrir
tradução típica do teu trabalho nos anos 80 e uma o significado de uma série de expressões idiomáticas,
de hoje. referências a produtos, instituições, lugares, enfim,
todo o tipo de coisa que você não encontrava na
Nos anos 80, a primeira etapa era fazer um Encyclopædia Britannica. Lembro que um dia fui à casa
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do Mr. Payne, que já estava aposentado, munido do Hoje o computador substitui a máquina de es-
meu caderninho, para perguntar coisas como: O que crever, o xerox, o correio, boa parte dos dicionários que
significa tal-e-tal? Resposta: Uma marca de cigarros bem ainda tenho nas estantes, as idas a bibliotecas e consul-
baratos da época. O que é tal-e-tal sigla? Uma agência tas a experts — sim, porque agora quando preciso con-
governamental que oferecia tais-e-tais serviços ao sultar alguém basta mandar uma mensagem por e-mail
público durante a guerra. Quem era Fulano? Um locutor ou WhatsApp. Utilizo recursos como reconhecimento
de rádio da BBC. E assim por diante. Uma vez traduzido de fala — no momento, estou ditando estas respostas
o texto, eu levava em sacos de supermercado as 200 ou para um aplicativo que faz parte do Google Chrome, o
300 ou 400 laudas datilografadas até uma xerox, copiava Speech Notes — e também o Google Translator, que
todo aquele material, levava a cópia para minha casa, serve para fazer um primeiro rascunho grosseiro quan-
saía com os originais e ia até o correio, onde a tradução do traduzo textos de não-ficção. Tenho que me obri-
era despachada para São Paulo — sempre morei no Rio gar a me levantar da cadeira uma vez a cada meia hora,
e quase sempre trabalhei para editoras em São Paulo. mesmo que seja só para andar de um lado para o outro
Quando a papelada chegava lá, alguém da editora me no apartamento, porque nem mesmo para pegar di-
telefonava acusando o recebimento da tradução, e eu cionários preciso levantar. O tempo de preparação de
não precisava mais guardar o xerox, que virava papel uma tradução caiu drasticamente, mas — como sempre
rascunho, para fazer lista de compras e coisas assim. Eu ocorre no capitalismo — isso não implicou uma renda
vivia comprando dicionários e enciclopédias de todos maior, porque o valor do trabalho do tradutor foi cor-
os tipos — dicionários de gíria, de termos técnicos, rigido de modo a levar em conta que ele leva muito
glossários referentes a ecologia e bolsa de valores... menos tempo agora para fazer um livro.
Se saía uma revista com um artigo com muitos termos
sobre um assunto que eu desconhecia, eu guardava o 6. Como se deu, na tua carreira toda (e como se dá
artigo, pensando que ele poderia ser útil algum dia. hoje), o convívio entre a lida de tradutor e o “em-
Antes de começar a traduzir o meu primeiro romance, prego”?
de Patrick White, passado na Austrália, me instalei na
biblioteca do IBEU com meu caderninho e li todo o Durante muitos anos, entre o início dos anos 70
longuíssimo verbete da Britannica sobre a Austrália, e os anos 90, meu salário de professor correspondia a
aprendendo coisas básicas sobre o país e sua história, pouco menos da metade da minha renda; o resto vinha
fazendo anotações. de traduções literárias para editoras, e de traduções e
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versões para o inglês de textos acadêmicos, técnicos próprios são escritores. Naquele livrinho sobre tradução
etc. Era um regime de trabalho brutal. Mais de uma vez, literária do Clifford Landers ele deixa isso bem claro. No
aproveitei um fim de semana prolongado ou o Carna- Brasil, é até possível, se você tiver uma capacidade de
val ou a Semana Santa para assumir um trabalho ex- trabalho insana e não tiver uma família para sustentar.
tenso de versão para o inglês, passando três ou quatro
dias trabalhando de manhã à noite. Só parei com isso 8. Por que se dedicar à tradução literária, se outras
quando, por volta dos 40 e poucos anos, logo depois áreas são financeiramente mais interessantes?
de entregar um desses trabalhos, numa Quarta-feira
de Cinzas, fui parar no hospital, vítima de estresse. Mas Essa é simples: porque dá muito prazer. Tradu-
tive que abandonar essas traduções e versões freelance zir dá um prazer muito próximo ao de escrever; tradu-
quando passei a integrar o quadro de professores de zir um romance é uma experiência com muitos pontos
Pós-graduação no Departamento de Letras da PUC: em contato com a de escrever um romance; no caso da
com as orientações de mestrandos e doutorandos e poesia, a proximidade é ainda maior. Mas imagino que
as participações em bancas, o tempo tornou-se mais as pessoas que têm prazer em redigir manuais devem
restrito ainda, e em matéria de tradução fiquei fazen- sentir um enorme prazer em traduzir manuais. (Parece
do só a literária, num ritmo bem mais lento, mais para que Kafka gostava de redigir relatórios técnicos na área
não perder meu vínculo com esse trabalho, que para de segurança no trabalho, que era a especialidade dele;
mim é uma fonte enorme de prazer. Então posso dizer nunca li nenhum, mas dizem que a qualidade desses
que, em resumo, entre o início dos anos 70 e agora o textos dele é elevada.)
trabalho de professor foi ganhando espaço na minha
agenda. Se algum dia eu me aposentar na PUC, e se a 9. Só porque é algo que você menciona com fre-
saúde aguentar, imagino que vou voltar a traduzir mais. quência: qual a relação entre música e tradução, na
tua vida e na tua práxis?
7. É possível viver de tradução literária nos países de
língua inglesa? E no Brasil? Entre música e tradução não vejo nenhuma
relação, em sentido estrito; mas é verdade que costumo
Acho que não. Pelo menos os tradutores amer- trabalhar ouvindo música — não só traduzir como
icanos que eu conheço têm sempre um vínculo empre- também ler, corrigir trabalhos de alunos, preparar aulas,
gatício com uma universidade, ou uma editora, ou eles escrever etc. Mas tem que ser música instrumental, de
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preferência peças que eu já conheço mais ou menos lançado no estrangeiro. E uma vez traduzi uma peça de
bem. Músicas cantadas em idiomas que eu entendo, teatro que foi montada aqui no Rio. Mas o meu barato
ainda que mais ou menos, ou músicas com uma estrutura foi sempre tradução de ficção e de poesia. Gostaria
particularmente complexa — essas eu ouço caminhando de ter feito mais traduções de poesia, que é a que me
na rua, ou andando na esteira na academia, ou então na dá mais prazer. Tem também alguns autores e livros
minha sala, antes de dormir, numa sessão de audição específicos que sempre tive vontade de traduzir: Henry
concentrada. Quer dizer, a música que ouço quando Green e James Merrill, para citar apenas um romancista
trabalho tem que ser do tipo que não exige atenção e um poeta.
concentrada, que pode atuar como um pano de fundo
para a concentração em outra coisa, e também para 11. No mundo editorial, real, a tradução é trabalho
se sobrepor a outros sons, menos agradáveis e com de equipe?
o potencial de distrair a atenção, como a televisão do
vizinho ou uma conversa telefônica no quarto ao lado. Na verdade, tradução é sempre um trabalho de
equipe, quer dizer, embora o tradutor trabalhe sozinho
na frente do computador, antes dele veio a pessoa que
TRADUZINDO escreveu o texto original, é claro, e depois dele virão o
revisor, o preparador etc. Agora, quem assina o texto
10. Que tipo de trabalhos você já realizou como traduzido é o tradutor, e por mais vitais que sejam a
tradutor? participação do revisor e a do preparador, o autor da
tradução é o tradutor, e por isso nenhuma mudança
O que eu mais faço é a tradução de livro, deve ser feita no texto dele sem que ele seja consul-
mesmo, mas já fiz outros tipos de trabalho. Nos anos tado antes. Isso é fundamental. Mas sei que em mui-
80 e 90, uma das minhas principais fontes de renda tas editoras, principalmente quando o tradutor ainda é
era fazer versões para o inglês de textos acadêmicos principiante, decisões finais são tomadas sem que ele
e institucionais. A própria Companhia das Letras uma seja nem mesmo comunicado do que está sendo feito.
vez me pediu para traduzir para o inglês alguns poemas Isso me parece um erro.
infantis, que foram veiculados num CD-ROM. Também
fiz algumas versões para legendagem em DVD. Traduzi 12. Como se dá a tua relação com os outros profis-
umas letras do Gilberto Gil para um disco dele que seria sionais responsáveis pelo texto final na editora?
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pessoas me mandavam cartas — nesse tempo as


Meu método de trabalho atual com a Companhia pessoas ainda escreviam cartas — de todos os cantos
das Letras é o que me parece ideal: eu mando a do Brasil, apontando cochilos na tradução e na revisão,
tradução para eles, o revisor me devolve o texto todo que a gente corrigia na reimpressão seguinte.
corrigido e anotado, e eu tenho que aprovar cada uma Nessa época um grande amigo meu, o contis-
das mudanças, o que acontece com a grande maioria ta Antonio Carlos Viana, convidou a mim e a Santuza
delas. Mas quando aparece uma alteração com a qual Naves, minha mulher, para darmos conferências na
eu não concordo, eu justifico o motivo pelo qual prefiro Universidade Federal de Sergipe, onde ele trabalha-
a minha solução original, ou uma terceira solução que va. Uma entrevistadora da televisão de lá resolveu me
estou propondo agora. Quando acho que a solução que entrevistar ao vivo, para eu falar do meu trabalho de
adotei corre o risco de ser rejeitada pelo revisor, faço tradutor. Antes de começar a entrevista, ela me pediu
um comentário à margem explicando a ele por que que umas informações básicas, e eu disse que era tradutor
escrevi o que escrevi: um erro de gramática proposital, literário, trabalhava mais com poesia e ficção, coisas que
para indicar que o personagem que está falando tem não vendiam muito mas que me pareciam importantes,
pouca instrução, por exemplo. autores clássicos etc. e tal, e comentei en passant que o
único livro que havia virado best-seller de todos que eu
13. Qual foi a tua tradução melhor recebida e qual tinha traduzido era Rumo à Estação Finlândia, um suces-
foi a mais vendida? so editorial que ninguém esperava. Bem, a câmara foi
ligada, e a primeira pergunta que a entrevistadora me
Sem dúvida alguma, Rumo à Estação Finlândia, fez foi mais ou menos esta: num país onde tantos escri-
de Edmund Wilson, um best-seller, até hoje não entendi tores nacionais não conseguiam ser editados, como eu
muito bem por que vendeu tanto. Cheguei a dizer ao Luiz me sentia na condição de tradutor de best-seller?
Schwarcz que talvez não fosse uma boa ideia publicar
esse livro, uma história do socialismo, no momento em 14. Engraçado é que o próprio sucesso desse livro,
que o chamado socialismo real estava desmoronando naquele momento, já sinalizava uma mudança no
na Europa. Felizmente o Luiz não ouviu meu conselho; mercado editorial. Em que medida você diria que a
traduzi o livro, que aliás é ótimo, e foi o primeiro grande tua carreira como tradutor se beneficiou desse lance
sucesso de vendas da Companhia das Letras. Saíram de “sorte” que foi o surgimento e a ascensão dessa
não sei quantas reimpressões em pouquíssimo tempo; editora?
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projetos, como a edição revista e ampliada da minha


Certamente, a entrada em cena da Companhia antologia de Wallace Stevens, que tinha sido publicada
das Letras foi importante. Ela começou a traduzir au- trinta anos antes.
tores como Pynchon, Foster Wallace, que nunca ven-
dem muito, mas que têm um certo público, ainda que 16. Nesse convívio com a Companhia das Letras você
reduzido, e que dão prestígio à editora. Foi esse tam- chegou a emplacar sugestões de títulos ou autores?
bém o efeito do surgimento da CosacNaify, mais adi-
ante. Quanto à relação com as editoras, creio que foi a Sim, a ideia de traduzir Stevens foi minha, e a
partir da segunda metade dos anos 80, mais ou menos, editora topou. Também as cartas de Elizabeth Bishop
que elas começaram a perceber que um livro mal tra- eu propus traduzir, mas a Companhia já estava com-
duzido é um mau negócio, que uma tradução ruim prando os direitos quando dei a ideia. Mas de modo
pode impedir as vendas de um título, e que portanto geral eles me oferecem um ou dois livros para eu es-
pagar melhor o tradutor, e lhe dar mais controle sobre colher. Aconteceu também de uma vez eu começar a
o produto final, eram estratégias que a médio prazo iam traduzir um livro e achar que ele era bem fraco; avisei
resultar em maiores lucros para elas. a editora. Alguém lá deu uma olhada no livro e concor-
dou comigo, e a tradução não foi concluída.
15. E como começou essa relação?
17. E as traduções feitas para outras editoras?
Eu estava traduzindo regularmente para a
Brasiliense quando um rapaz que trabalhava lá, o Luiz Já falei na Brasiliense e também na Nova Fron-
Schwarcz, decidiu abrir sua própria editora. Ele me cha- teira, para a qual eu fiz uns três livros (mas só mesmo o
mou e topei acompanhá-lo na aventura. E até hoje é a de White foi publicado; os outros, ao que parece, desa-
editora para a qual eu traduzo habitualmente. Para a pareceram em alguma gaveta em que havia um buraco
Companhia, já fiz um pouco de tudo — ensaio, poe- negro). Anos depois, foi também a Nova Fronteira que
sia — mas principalmente ficção, contos e romances. se interessou por publicar um poema longo de Byron
Sou o tradutor mais antigo da casa. Como hoje tradu- em que eu vinha trabalhando há seis anos nas horas
zo relativamente pouco, porque o trabalho na PUC me vagas, Beppo — naquele tempo eu tinha horas vagas.
ocupa muito, eles só me passam trabalhos com prazos Nos anos 80 e 90 fiz também alguns livros para a L&PM.
bem folgados. E eles embarcam em alguns dos meus Para outras editoras fiz um ou dois livros apenas, quase
34 35

nada de importante. A exceção foi a única vez que tra- coração está no bolso, antologia de poemas de Frank
balhei para a finada CosacNaify; fiz O som e a fúria de O’Hara. O livro foi organizado e posfaciado por Be-
Faulkner, que recentemente, com a extinção da editora, atriz Bastos e a tradução é assinada por ela e por
foi reeditado pela Companhia das Letras. você. Você poderia dizer como foi essa tradução em
colaboração?
18. E você já realizou outras funções além da de
tradutor? Foi uma experiência ótima. A Beatriz tinha sido
minha orientanda, e a pesquisa dela envolvia O’Hara,
Sim, naquele meu primeiro trabalho a que me de modo que ela já havia traduzido alguns poemas
referi acima, na Imago, como revisor. Também fiz a re- dele, e durante o trabalho de orientação dei várias
visão da tradução do Ulysses de Joyce a cargo do Cae- sugestões que foram incorporadas à versão final. Além
tano Galindo, mas isso não deu trabalho nenhum: o disso, eu também já tinha vertido alguns poemas do
texto já estava em ponto de bala; só fiz pegar três ou O’Hara; uns tinham sido publicados na falecida revista
quatro cochilos e dar uma ou duas sugestões. Inimigo Rumor, há um bom tempo, e outros estavam
engavetados, um deles sem que eu tivesse terminado
19. Eu estava lá! Não foi bem assim. a tradução. A iniciativa foi toda da Beatriz: foi ela que
entrou em contato com a Luna Parque e com a edito-
Não, o seu texto já estava pronto; insisto que só ra americana que detinha os direitos autorais; depois
fiz mexer umas pouquíssimas coisas. revisamos nossas traduções e fechamos o livro. Frank
O’Hara é um poeta muito bom, e nunca tinha saído
20. Você incorporou alguma vez sugestões de nenhuma antologia dele aqui no Brasil.
leitores às suas traduções?
22. Você é um tradutor premiado, e também já par-
Sim, no caso de Estação Finlândia, relatado aci- ticipou de comitês de prêmios literários. Você acha
ma, em que os leitores me escreviam corrigindo cochi- que os prêmios cumprem adequadamente a função
los meus e do revisor. Mas desde então isso não voltou de chamar atenção para a tradução literária?
a acontecer, que eu me lembre.
Na verdade, só ganhei um prêmio como
21. Em 2017 foi publicada, pela Luna Parque, Meu tradutor… Sim, talvez eles chamem a atenção para
36 37

um público muito restrito, de pessoas que têm um difícil quanto achar um criacionista num congresso de
envolvimento com a leitura que é profissional, ou ao paleontologia.
menos visceral. Não creio ser possível interessar o
common reader na tradução. Por mais que esperneiem 23. Há um viés quanto ao tipo de tradução escolhida
os teóricos da área de estudos da tradução, para quem pelos júris desses prêmios? Um trabalho monumen-
não é da área — ou seja, algo assim como 99,9% da tal, como a tua tradução de Contra o Dia, não parece
humanidade — a função do tradutor, como já afirmei, é ter sido considerado “premiável”…
fazer um pastiche do original — e idealmente deve ser
um pastiche tão bem feito que o leitor tenha a nítida O fato é que Pynchon, aqui no Brasil, não
impressão de estar lendo aquele texto original, que tem um público numeroso — não estou pensando
para ele é inacessível. Então, a rigor, no momento da em números absolutos, é claro; penso em números
tradução, o tradutor não deve chamar a atenção para relativos: só uma porção pequeníssima do público de
si próprio. Agora, principalmente no caso de obras literatura propriamente dita, conhece e lê Pynchon. E
complexas, ou muito afastadas da realidade do leitor esse público de literatura, é claro, já é reduzidíssimo.
em termos de tempo ou espaço, ou de ambos, nada Pynchon não é muito lido, e ainda não é considerado um
impede que o tradutor capriche nos paratextos; este clássico. Quer dizer: não só as pessoas não leem como
é o seu lugar de aparecer. Nas minhas traduções de nem sequer compram o livro só para ter na estante.
poesia, sempre faço introduções, posfácios, notas;
depois escrevo artigos acadêmicos abordando os 24. Há algum projeto pessoal no teu horizonte (além
problemas e soluções. Nesses lugares, faço questão de de The Ring and the Book!)?
não ser invisível. Mas no texto traduzido, em si, tenho
a obrigação ética de tentar ser o mais transparente Projetos puramente oníricos eu tenho vários,
possível. Sei que essa posição que defendo é (ou ao além desse livro do Browning que você mencionou:
menos já foi) atacada por nove entre dez estudiosos da a tradução completa do Don Juan de Byron; um
tradução; mas sei também que nenhum dos estudiosos longo poema de James Merrill, The Changing Light
que criticam as metas de transparência e fidelidade já at Sandover; os imensos diários de Samuel Pepys...
traduziu mais de cem obras literárias. Achar um tradutor Tenho uns outros projetos até viáveis, para — quem
com grande produção prática que assine embaixo das sabe? — depois que eu me aposentar como professor:
teses de Lawrence Venuti e Rosemary Arrojo é tão meu romance predileto de Henry Green, Party Going;
38 39

vários romances e contos de Henry James que ainda que só poderiam ter surgido na cabeça de pessoas
não existem no Brasil; toda a sequência dos sonetos que não são tradutores práticos como nós. O que
sagrados de John Donne (já traduzi 4 e tenho uns 2 ou motivou os poucos trabalhos teóricos que escrevi por
3 começados, de um total de 14)… volta da virada do século foi o intuito de combater
essas propostas que, ao criticar a visão tradicional,
essencialista e representacionalista da linguagem,
PENSANDO A TRADUÇÃO faziam afirmações inteiramente absurdas — mas
combatê-las sem defender as posições tradicionais que
25. Como você vê a disciplina dos estudos da elas criticavam, e que tinham mais era que ser criticadas,
tradução? Qual o uso que você faz, eventualmente, mesmo. A lógica por trás de muitas das posições
da disciplina nas tuas aulas e na tua atividade apocalípticas defendidas por estudiosos da tradução
tradutória? me parecia inaceitável. Por exemplo, afirmava-se que
o tradutor não devia ter a transparência ou a fidelidade
Por algum tempo tive um certo interesse pelas ao original como meta do seu trabalho, porque era
questões de teoria da tradução, apesar de não ter impossível ter acesso completo ao original em si; como
uma cabeça muito boa para coisas teóricas; sempre a tradução sempre seria marcada por características
gostei mais do trabalho prático. Mesmo quando estudo pessoais do tradutor, nem havia sentido em tentar. Se
poesia, o que mais me interessa é o que há de mais a tradução nunca vai ser totalmente fiel ao original, sob
concreto: ritmo, distribuição de acentos e fonemas, todos os aspectos, a meta de fidelidade não deve ser
uso de metáfora e metonímia etc. Na tradução, gosto perseguida. Me lembro que num artigo meu eu citava o
de me debruçar sobre coisas bem pé na terra: como comentário do antropólogo Clifford Geertz em relação
reproduzir o efeito de oralidade nos diálogos em obras a posições como essa: “é o mesmo que dizer que, como
ficcionais; como recriar em português os esquemas é impossível um ambiente perfeitamente asséptico,
métricos do inglês; essas coisas. Então o que mais me é válido fazer uma cirurgia no esgoto”. Imagine uma
interessa é usar a teoria para contribuir para o trabalho reunião de engenheiros de aviação: já que é impossível
prático de tradução literária, e para a formação de reduzir a zero a taxa de acidentes de avião, vamos
tradutores literários. Mas houve um momento em que parar de tentar tornar os aviões mais seguros. Imagine
vi a proliferação, no campo dos estudos da tradução, uma aplicação desse princípio à política: nunca vai se
de propostas inteiramente desvinculadas da realidade, atingir a igualdade absoluta na distribuição de renda;
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como essa meta não pode ser integralmente realizada, fantasia nutrido nos encontros acadêmicos, um mundo
ela deve ser abandonada, e devemos deixar que a em que a diferença entre “original” (sempre entre
concentração de renda aumente cada vez mais. aspas) e tradução era vista como um mero preconceito
Enfim, eu entendia perfeitamente as críticas ideológico, semelhante àquele que subordina as
às posições tradicionalistas do sentido: a ideia da es- mulheres aos homens e o terceiro mundo ao primeiro. E
tabilidade absoluta do sentido; a idolatria ao original espero ter convencido ao menos uns poucos tradutores
perfeito e imutável; as afirmações ingênuas de alguns práticos de que há acadêmicos da área de estudos da
tradutores, do tipo: se Shakespeare fosse brasileiro tradução que não caíram na tentação de abrir mão do
ele teria escrito o Hamlet exatamente como na minha senso de realidade.
tradução. Eu aceitava essas críticas, mas rejeitava as
propostas alternativas mais extremadas. Para usar uma 26. Umberto Eco define a tradução literária como
metáfora muito gasta, eu achava necessário jogar fora a quase a mesma coisa que o original; você afirmou
água suja, mas questionava a proposta de jogar fora o mais de uma vez que o papel do tradutor é criar um
bebê junto com ela. Em resumo, minha posição era de texto que permita que o leitor, depois de ler, afirme,
que o fato de sabermos que uma coisa é uma ficção não sem mentir, ter lido o original. A tradução é a mesma
a torna inútil. Conceitos como estabilidade do original, coisa?
fidelidade e transparência e tantos outros são ficções
úteis desse tipo: há momentos em que é importante ter Não, a tradução certamente não é a mesma
consciência de que são apenas ficções, mas há ocasiões coisa que o original — e, no entanto, uma boa tradução
— por exemplo, quando se está traduzindo um texto — tem que permitir ser lida como se fosse o original. O
em que elas não são apenas úteis: são imprescindíveis. paradoxo é apenas aparente, porque sob esse aspecto
Aos poucos, as posições apocalípticas foram a tradução se assemelha a muitas outras atividades
perdendo a posição de quase hegemonia que chegaram da vida cotidiana. O exemplo mais óbvio é o que Jiří
por um tempo a ter no mundo universitário, e aí não me Levý apresenta em seu famoso livro sobre a tradução
senti mais pressionado a dizer nada sobre o assunto: literária: se eu estou assistindo a uma representação
o que eu tinha a dizer já estava mais do que dito e teatral, por um lado eu sei que aquele homem no
redito. Espero que os meus artigos tenham ajudado um palco é um ator que vi recentemente num restaurante
pouco a convencer a nova geração de estudiosos da em Copacabana, mas ao mesmo tempo, e num outro
tradução a abandonar aquele maravilhoso mundo de plano, ele é Constantino, o personagem de Tchékhov
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que se suicida nos bastidores ao final do último ato. em que vivem todos (inclusive os teóricos da tradução,
Ou seja: ele é e não é um russo que se suicida. Por um quando não estão participando de congressos
lado, eu aprecio o desempenho de um ator brasileiro acadêmicos), o ator vai sair da peça vivinho da silva, e
que conheço bem, mas por outro lado eu me emociono o texto que estou lendo não foi escrito por Tchekhov;
quando compreendo que Constantino vai acabar se mas num nível secundário, que nos permite fruir obras
suicidando. Do mesmo modo, quando eu leio uma ficcionais e mesmo nos emocionar com elas, e também
tradução brasileira de A gaivota, eu sei que estou lendo ler obras escritas em idiomas que não conhecemos, o
um texto em português, e ao mesmo tempo sei que personagem vai morrer, e o texto que estou lendo foi
estou lendo uma obra de Tchekhov. A vida humana só é escrito por Tchekhov.
possível através dessa espécie de faz de conta, mais um O que significa dizer que A gaivota em portu-
exemplo de ficção útil. Então, quando Derrida critica guês que estou lendo é, nesse sentido secundário, uma
Searle dizendo que não há nenhum sentido em dizer obra escrita por Tchekhov? Significa que, para a maior
que uma ordem de execução dada por um tirano numa parte dos fins a que se destinam as obras literárias, e no
peça de Shakespeare constitui um uso secundário de contexto para o qual ela foi produzida, a tradução fun-
um ato de fala real, como uma ordem de execução dada ciona como o original, e pode ser considerada “a mes-
pelo rei da Arábia Saudita ou pelo ditador da Coreia do ma coisa” que ele. Ou seja: para o leitor que lê o texto
Norte, Derrida está participando do delicioso radical traduzido, para o diretor e os atores que o encenam no
chic das afirmações apocalípticas que impressionam Brasil, para a plateia que assiste à encenação da peça, A
leitores jovens e sensíveis; se Derrida vivesse em Riyad gaivota é uma obra de Tchekhov. Mas para alguns usos
ou Pyongyang, ele dificilmente faria uma observação que não são os usos básicos desse texto — por exem-
como essa. No mundo real, sabemos perfeitamente plo, para a análise da utilização do aspecto perfectivo
manter na cabeça duas realidades aparentemente do russo em Tchekhov, ou para o estudo comparativo
paradoxais: Constantino vai se matar e o ator que o de diversas traduções das obras de Tchekhov, é claro
interpreta vai sair do teatro para jantar num restaurante; que a tradução não é o original. E por que é que digo
o texto que estou lendo foi escrito por Tchekhov e o que esses usos não constituem os usos básicos do tex-
texto que estou lendo foi escrito por um tradutor to? Porque tenho certeza absoluta de que Tchekhov
brasileiro. E, pace Derrida e a escola apocalíptica dos escreveu sua peça para ser fruída por espectadores e
estudos da tradução, um dos níveis é secundário em leitores, e não com o fim de fornecer material para uma
relação ao outro, sim: no nível primário da realidade, tese de doutorado sobre os aspectos verbais do russo
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em obras literárias. não era descabida; aliás, omissões sempre ocorrem; é


impossível recriar tudo que a gente vê num poema, para
Resumindo: ao assistir a uma montagem brasileira de não falar naquilo que a gente nem chega a perceber.
A gaivota, preciso recorrer a pelo menos dois níveis Mas a meu ver numa crítica desse tipo também vale a
de faz de conta, ou duas ficções úteis: que o texto em pena discutir a questão das prioridades: se algumas das
português que estou ouvindo foi escrito por um escritor características não recriadas eram fundamentais, ou ao
russo, e que os atores brasileiros que estão no palco menos mais importantes do que algumas das que foram
são as personagens que eles interpretam. O mundo de fato trabalhadas na tradução. Essa, a meu ver, é a
só funciona quando recorremos a inúmeras ficções discussão importante: saber se as opções do tradutor
úteis: é o que fazemos quando nos orientamos com são defensáveis, se ele optou por recriar algo secundário
base na direção onde o sol nasce, embora saibamos e deixou de lado elementos mais importantes.
que o sol não nasce, e sim é a Terra que gira em torno
dele; quando calculamos a trajetória de uma bala com 28. Essa é sempre uma questão complexa, não é?
base na mecânica de Newton, embora saibamos que
ela descreve o comportamento dos corpos apenas Pois é. Há casos em que o revisor só enten-
de modo aproximado; quando consideramos uma deria a minha escolha se refizesse todo o trabalho
empresa como uma pessoa jurídica, dotada de direitos de tradução, se lesse todo o texto original com uma
e deveres, embora saibamos que essa “pessoa” não cabeça de tradutor. Então o que eu faço é explicar, num
existe. comentário marginal, o porquê das minhas escolhas
mais contraintuitivas.
27. Como você avalia a análise das tuas próprias
traduções que têm sido feitas em trabalhos acadêmi- 29. E você acha que há hoje uma consciência do
cos? leitor em relação à “presença” e à importância da
tradução literária e dos tradutores?
Foram relativamente poucas as que já vi.
Houve uma sobre minha tradução de “The Shampoo” Como comentei numa resposta anterior, não há
de Elizabeth Bishop, em que algumas das minhas como interessar o common reader na tradução. Para
soluções eram criticadas por deixarem de lado certas esse leitor, a função da tradução é lhe dar acesso a
características formais e semânticas do original. A crítica obras escritas num idioma que ele não lê. O tradutor
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é apenas um intermediário: se ele faz seu trabalho da aviação resolverem se tornar menos transparentes
direitinho, o leitor nem percebe que ele existe; se atrasando de propósito a decolagem, ou virando sopa
não faz, o leitor reclama. Alguns teóricos de tradução na cabeça de um passageiro, eu é que não vou aprovar
acham esse estado de coisas um absurdo, que precisa essa reivindicação deles. O mesmo raciocínio pode ser
ser modificado pela pressão da classe dos tradutores. estendido a várias outras profissões. Já o trabalho dos
Bom, eu acho muitas coisas absurdas — pessoas terem atores, jogadores de futebol e músicos não é invisível:
que trabalhar da hora que acordam até a hora que se esses profissionais executam seu trabalho diante
deitam para não passar necessidade; as mulheres terem dos olhos do público; são performers, ao contrário
que trabalhar mais do que os homens, em casa e no dos tradutores, dos profissionais da aviação civil, dos
emprego, para ganhar menos; e por aí vai. Todas essas técnicos de manutenção de equipamentos de UTI
coisas absurdas, a meu ver, são muito, muito mais sérias e tudo o mais. Realmente, nunca perdi uma noite de
que a situação dos tradutores, e me incomodam bem sono por causa da minha invisibilidade como tradutor,
mais do que o fato de que o common reader acha que e creio que há causas políticas muito mais importantes
traduzir um romance complexo é uma tarefa mecânica, que essa.
que só exige um bom dicionário bilíngue (e a expressão
“um bom dicionário bilíngue”, nós sabemos muito bem, 30. Em resumo, o que faz um tradutor literário?
é um oximoro do tipo “um proletário rico”) e que em
breve vai ser realizada a contento por computadores, Eu diria que a melhor maneira de compreender
dispensando por completo a intervenção humana. o trabalho de tradução literária é encará-lo como uma
E tem mais: não é só o trabalho do tradutor que é forma de escrita, uma atividade literária. Em outras pa-
invisível. Quando viajo, raramente paro para pensar lavras, o tradutor literário é um tipo de escritor, um escri-
no trabalho invisível de centenas de pessoas mais ou tor que se dedica a uma forma específica de atividade
menos qualificadas que me permitem entrar num avião literária, que é reescrever obras de outros autores numa
no Rio e sair dele algumas horas depois na Argentina ou língua diferente da língua do autor. Em última análise, é
em Portugal — a menos, é claro, que a viagem atrase um trabalho de pastiche literário, o pastiche mais sofis-
horas, o avião não sirva comida alguma etc. Ou seja: ticado que existe. Então o que se exige de um tradutor
em relação ao trabalho dos profissionais da aviação literário é mais ou menos a mesma coisa que se exige
me comporto exatamente como o common reader em de um escritor. Por exemplo, o tradutor de poesia tem
relação ao meu trabalho de tradutor. E se os empregados que dominar as formas poéticas do seu idioma da mes-
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ma maneira como o poeta deve dominar os recursos da eu não aguentar, pegar um lápis e começar a emendar
língua dele. No caso da poesia isso fica particularmente o texto, muito embora eu saiba perfeitamente que
claro, mas o mesmo raciocínio se aplica à prosa. O essas correções nunca vão sair daquele meu exemplar
tradutor literário precisa de todas as qualidades do es- anotado.
critor, talvez com exceção da imaginação: ele não pre-
cisa inventar enredos nem criar personagens, porque a 32. Você não tem a sensação de que a lida constante
matéria-prima do trabalho dele é justamente um texto com a tradução também te ensina a ler melhor as
criado num outro idioma, com todos esses elementos já estruturas dos textos, prosa e poesia?
prontos.
Sem dúvida, o trabalho de tradução nos
torna leitores melhores, e também, é claro, escritores
NÃO APENAS TRADUTOR melhores. A prosa que eu escrevo, tanto ensaística
quanto ficcional, foi muitíssimo influenciada pelos
31. Como a tua experiência de tradutor tem impacto incontáveis textos que li e traduzi ao longo da vida.
em você como leitor de texto literário traduzido? Agora, infelizmente a gente não pode ler tudo que lê
com o mesmo grau de atenção com que a gente traduz.
É uma espécie de deformação profissional: Não haveria tempo para ler um centésimo do que a
toda vez que eu leio um livro não muito bem traduzido, gente quer ler e precisa ler.
principalmente (mas não exclusivamente) quando
foi traduzido do inglês, minha língua de trabalho, 33. Como a tua carreira de poeta, contista e ensaís-
tenho que me policiar para não ficar o tempo todo ta conviveu com (e se alimentou da) tua tradução
tentando mexer na tradução, tentando reconstruir, literária?
com base no texto em português, o que teria sido o
texto original. Quando a tradução é mediana e o livro Acho que eu aprendi a escrever basicamente
é bom, a uma certa altura acabo deixando isso de lado traduzindo, tanto prosa quanto poesia. Então boa
e me entregando ao prazer da leitura. Mas quando a parte do que eu faço hoje quando escrevo as minhas
tradução tem muitos problemas, fico tão incomodado coisas é o que aprendi traduzindo os autores que mais
que às vezes termino desistindo de ler o livro, porque me marcaram. Posso dar uns exemplos concretos,
não consigo parar de corrigir o texto. Já houve casos de principalmente em poesia. Sempre fui fascinado pela
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fusão entre forma poética fixa, ou mais ou menos fixa, etc. Depois vêm os autores franceses, com muito menos
e linguagem coloquial. Meu trabalho de tradução de projeção internacional — falo de ficcionistas e não de
Beppo de Byron reforçou muito esse meu interesse, filósofos, é claro; os outros idiomas europeus todos
e voltei a trabalhar com esse tipo de verso, só que — o alemão, o italiano, para não falar no tcheco e no
dessa vez com uma linguagem contemporânea, e não albanês — têm pouquíssima expressão internacional. O
oitocentista como no caso do Byron, quando traduzi caso de Knausgård, um autor norueguês, é a exceção
Elizabeth Bishop. Nas raras vezes em que uso o verso que prova a regra.
livre, é sempre um verso que tem um metro fantasma por
trás, para usar a terminologia de T. S. Eliot, mas aprendi 35. E qual o teu cânone pessoal de literaturas es-
a trabalhar com esse tipo de verso principalmente trangeiras?
traduzindo Wallace Stevens.
Uma pergunta como essa pede uma resposta
34. Você traduz apenas do inglês, e se define como quilométrica. Vou tentar ser breve. Em matéria de poesia,
funcionalmente bilíngue. A suposta dependência do os primeiros poetas que li foram de língua inglesa, e
mercado editorial brasileiro para com as literaturas deles três ainda fazem parte do meu cânone pessoal:
anglófonas é um problema? Shakespeare, Whitman e Dickinson. A esses acrescentei
mais tarde os grandes modernistas, sobretudo Wallace
Não é um problema brasileiro: é universal. E Stevens — um dos três ou quatro autores que mais
tampouco é um problema de hoje; no século XIX, a amo, entre lusófonos e estrangeiros — Eliot e Williams.
grande maioria das traduções no Brasil e no resto do Mais tarde descobri os românticos ingleses, e os que
mundo era de obras francesas. Sempre há uma cultura me marcaram mais foram Blake, Byron e Keats. Em
hegemônica que fica com a parte do leão. Desde seguida, descobri Robert Browning, Bishop, Merrill
a Segunda Guerra, principalmente, só existe, em e Yeats. Acho que esses são os principais, embora eu
termos globais, o que foi escrito em inglês, ou o que ainda pudesse citar muitos outros. Dos franceses os
foi traduzido para o inglês e teve impacto no mundo únicos que li bem foram Villon, Baudelaire e Rimbaud;
anglófono. O francês hoje está em terceiro lugar — o dos alemães, Rilke e Heine. Dos russos, os que mais
espanhol é que vem depois do inglês, ainda que bem li foram Púchkin e Maiakóvski. Dos hispânicos, José
longe dele; depois dos grandes nomes das literaturas Hernández (Martín Fierro), García Lorca e Parra; dos
anglófonas vêm García Márquez, Borges, Cortázar, Paz italianos, Dante, que leio desde menino, e Leopardi,
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que descobri tardiamente. E tenho uma imensa paixão por terra no caso de Kafka, o que também acontece
pelo grego Kaváfis. Acho que de poesia em língua com alguns outros poucos, como Mário de Andrade,
estrangeira esses são os que li mais e que ainda hoje Emily Dickinson e Montaigne. É impossível mergulhar
releio. em Montaigne e não sentir vontade de ter uma longa
Prosadores, eu teria que citar mais ainda. Do in- conversa com ele, regada a vinho tinto.
glês, os primeiros que li muito na infância foram Haw-
thorne, Dickens e James Thurber, mas não deixaram 36. E como é ler os grandes escritores estrangeiros
marcas muito profundas. Foi na juventude que descobri em inglês e em português?
alguns que estão entre meus prediletos até hoje: Mel-
ville, Henry James, Joyce, Beckett. Depois, Henry Green. Quando você lê uma tradução, você aceita o faz
Dos que traduzi, creio que os que mais me marcaram de conta de que está lendo o original. Então quando
foram Faulkner, Naipaul, Roth e Pynchon. Do francês, mergulho num romance russo em inglês ou em portu-
minha grande paixão é Proust, mas também amo Ra- guês eu entro na ficção útil de que estou lendo russo.
belais, Balzac, Flaubert, Céline. Do espanhol, Borges e É claro que essa ficção por vezes é perturbada pela
Cortázar, principalmente Cortázar, um dos meus dez ou ocorrência de uma nota de rodapé ou uma eventual
doze escritores prediletíssimos. Os grandes russos — passagem em que a mão do tradutor pesou demais,
Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov — que escritor magnífico como aquela clássica situação em que você vê, por uma
é Tchekhov! E tenho um caso de amor com o polonês fração de segundo, um relógio no pulso de um solda-
Gombrowicz, que começou na adolescência e que só do grego na guerra do Peloponeso, num filme B. Mas
fez crescer quando, recentemente, li os magníficos quando a tradução é boa essa perturbação é uma coisa
diários dele. Dos alemães, Thomas Mann, Musil, e dois pontual apenas.
imensos prosadores, mesmo que considerados apenas
como escritores: Freud e Wittgenstein. Mas meu escri- 37. Na historiografia literária brasileira, não falta a
tor predileto é Kafka. Estou constantemente relendo os literatura estrangeira?
romances, as novelas, os contos, as cartas, os diários, e
devorando todas as biografias dele que não param de É o que argumentam os que defendem a teoria
sair. Em relação a Kafka minha admiração não é só pelo dos polissistemas, como Itamar Even-Zohar: a literatura
escritor, mas também pela pessoa que ele foi; aquela estrangeira em tradução faz parte do sistema literário
distinção que sempre tento fazer entre autor e obra cai ao qual ela pertence. As traduções de Thomas Mann
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feitas por Herbert Caro, o Baudelaire de Guilherme de inglês ou português. As traduções foram fundamentais
Almeida e o de Ivan Junqueira — essas obras fazem para a minha formação.
parte da literatura brasileira, assim como “O Corvo” de
Edgar Allan Poe traduzido (em prosa!) por Baudelaire e 39. Como você considera as traduções para o portu-
Mallarmé fazem parte do simbolismo francês, e a King guês em comparação com as traduções para o inglês
James Bible é um componente importante do cânone de ficção, teatro, poesia, teoria e crítica? No caso
literário anglófono. Even-Zohar tem toda a razão. brasileiro, as traduções de poesia têm mais quali-
dade?

38. Na tua formação, qual foi o peso da leitura do Depende da época. Eu diria que, de modo
texto traduzido? O teu conhecimento de literatura geral, as traduções brasileiras mais antigas tendem a ser
russa e alemã, por exemplo, foi feito em que língua? de qualidade duvidosa, e muitas vezes são traduções
indiretas — claro que há exceções, como o Herbert Caro
Ah, li muita tradução, sim. Dostoiévski eu li e o Proust da Editora Globo; mas muita coisa era de má
basicamente na edição da Nova Fronteira, que ao que qualidade, como constatei ao ler primeiro traduções
parece foi traduzida do francês. Tolstói li um pouco brasileiras e depois reler as mesmas obras em traduções
em inglês, um pouco em português; Tchekhov idem. para o inglês. Nas últimas décadas, porém, o nível geral
Kafka li alguma coisa primeiro na tradução do Torrieri das traduções brasileiras melhorou muitíssimo. Quanto
Guimarães, edições não muito confiáveis; depois li todo à poesia, principalmente por influência de Haroldo e
ele em inglês; e depois reli boa parte em português, Augusto de Campos, a tradução brasileira atingiu um
via Modesto Carone. Meu Thomas Mann é quase todo nível muito elevado.
do Herbert Caro. Ievguêni Oniéguin de Puchkin li em
três traduções, duas para o inglês e uma brasileira. 40. Como você vê a tradução direta para o portu-
Gombrowicz li em português, inglês e espanhol. guês de línguas como japonês, mandarim, árabe,
Romance francês, todo em traduções brasileiras, menos turco, persa, em comparação com traduções para
Proust, que li em inglês (eu morava na Califórnia na outras línguas?
época). O mesmo quanto à poesia: li no idioma original
— além da inglesa — só a francesa, a espanhola e a As literaturas orientais são muito pouco
Divina Comédia; todo o resto foi em tradução, em traduzidas aqui; elas constituem uma lacuna enorme —
56 57

elas e as literaturas greco-latinas, se bem que de uns


anos para cá têm surgido ótimas traduções de obras O arco-íris da gravidade.
clássicas, como, por exemplo as de Guilherme Gontijo
Flores. Mas as orientais ainda estão mal representadas. 44. A tradução literária te proporcionou conhecer
coisa nova?
41. Como você vê a tradução literária no Brasil com-
parada com a tradução literária em Portugal? Muita coisa. Esse é um dos melhores aspectos
do trabalho de tradução — você está sempre desco-
Não acompanho as traduções feitas em Portugal, brindo escritores e obras diferentes. Pynchon era um
mas de vez em quando vejo o que sai por lá de poetas autor que há anos eu pretendia ler, mas foi o convite
de língua inglesa, e de modo geral acho problemático. irrecusável de traduzir O arco-íris que me levou a final-
Não quero generalizar com base no pouco que já vi, mente enfrentar esse escritor extraordinário. Também
mas a impressão que tenho é que muitos tradutores Naipaul eu vim a conhecer traduzindo. E muitos outros.
portugueses ainda seguem o modelo francês de
tradução de poesia, tão criticado pelo Meschonnic: 45. Há projetos de que você se arrependa de ter par-
uma tradução muito centrada no plano semântico, que ticipado?
não se esforça muito por trabalhar o plano da forma.
Não. Por pior que seja o livro — e olha que eu
42. Você lê textos traduzidos do português e do in- traduzi algumas coisas muito ruins! — você sempre
glês para outras línguas? Você lê textos traduzidos aprende alguma coisa. Nos anos oitenta, fui por uns
de línguas que você conhece para o português? tempos responsável por revisar o trabalho de nossos
alunos de tradução na PUC que trabalhavam como es-
De modo geral, não, a menos que seja poe- tagiários para uma editora aqui do Rio. A maior parte
sia. Por exemplo, tem saído muita coisa de Fernando do tempo, esses alunos recebiam para traduzir livros de
Pessoa em inglês, e esporadicamente consulto essa autoajuda, romances baratos, coisas que eu jamais leria
produção. Mas meu interesse maior é por tradução de por opção. E foi uma experiência interessante. Desco-
poesia para o português. bri que há, no meio dessa literatura de consumo, uns
poucos autores que sabem escrever, em meio a muitos
43. Qual foi a tradução que te deu mais trabalho? que não têm a menor ideia do que seja construir uma
58 59

narrativa. E ler pela primeira vez na vida um punhado escritores foram muito prestativos: John Updike e
de livros de autoajuda me proporcionou alguns insights principalmente Pynchon, que me manda respostas
sobre a condição humana. O que mais me intrigou foi detalhadas a longas listas de dúvidas cada vez que
toda uma linhagem de livros de autores norte-america- traduzo um livro dele. Outros, como Roth e Naipaul, não
nos que contam sempre a mesma história: eu era um me ajudaram em nada; e uma vez a agente de Nadine
loser, aí descobri Jesus e fiquei podre de rico. Essa mis- Gordimer deixou bem claro que fazia questão de não
tura maluca de religiosidade com culto ao dinheiro, que me ajudar.
eu já sabia que existia mas que era algo em que nunca
havia parado para pensar, me levou a desenvolver re- 48. Como assim? Ela não lida com tradutores em
flexões desencantadas sobre a estupidez humana que geral?
fizeram parte do meu processo de amadurecimento in-
telectual e emocional. Jamais vou entender a reação dessa agente.
Em resumo, ela deu a entender que (a) a autora era in-
46. Não há também algo similar ao que acontece falível, tudo que ela escrevia estava certo, e (b) ela era
quando você estuda uma peça musical de que não uma pessoa importante demais para se ocupar de cois-
gostava? as menores como erros no texto de um romance. Bom,
que ela havia cochilado em alguns lugares estava claro
Sem dúvida. Só de se dedicar por algum tempo — todo mundo cochila; para dar um exemplo apenas,
a estudar uma peça musical, ou a traduzir um texto, ou onde ela claramente estava falando do perimeter de
a analisar um poeta, a gente acaba entendendo melhor um terreno ela escreveu parameter. E eu sabia que para
o compositor ou autor em questão, e talvez até gostan- um escritor um erro num texto não é uma coisa sem
do um pouco mais dele, ou detestando-o um pouco importância. Então resolvi nem responder a mensagem
menos, na pior das hipóteses. da agente e simplesmente fazer as correções que eu
achava necessárias.
47. E os autores? Como se dá a relação com os au-
tores vivos que você traduz? Alguma relação mais 49. Algum autor que você deixou de admirar depois
duradoura surgiu dessas trocas? dessas trocas?

Não, nenhuma relação duradoura. Alguns É preciso separar bem a admiração que uma
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pessoa nos inspira como ser humano e a que ela nos traduzi vários livros — John Updike, Philip Roth, Henry
inspira como artista. Uma coisa não tem nada a ver com James, entre outros — eu queria dar um destaque
a outra. Todas as combinações possíveis existem: ótima especial para o recém-falecido V. S. Naipaul. Dois dos
pessoa e ótimo artista, pessoa abominável e ótimo ar- livros dele estão entre as melhores coisas que já traduzi:
tista, ótima pessoa e péssimo artista etc. Faço questão Uma casa para o senhor Biswas e O enigma da chegada.
de não misturar as coisas. Não vou deixar de ler Nai- Agora, isso de qual o livro pelo qual que eu gostaria de
paul — nem de traduzi-lo, se eu voltar a ser convida- ser mais conhecido, não é fácil dizer.
do — por ser ele uma pessoa horrorosa sob diversos
aspectos. Por outro lado, só por ter salvo os inéditos de 51. Se você tivesse que escolher três trechos de
Kafka Max Brod mora no meu coração, embora, pelo livros como “amostra” de resultados tradutórios que
que ouço dizer, os livros dele não sejam grande coisa. te deixaram especialmente feliz, quais seriam eles?
E por quais motivos?
50. Quais foram os projetos que te deram mais feli-
cidade? Por quais você gostaria de ser lembrado? E Talvez eu escolhesse poemas de Stevens ou
por quais você acha que, de fato, é lembrado? Byron ou Bishop, ou um parágrafo de O arco-íris da
gravidade de Pynchon, passagens que apresentem
De modo geral, o trabalho que me dá mais alguma dificuldade para as quais eu encontrei uma
prazer é a tradução de poesia, e entre as traduções que solução satisfatória. Do Stevens, minha tradução de
me deram mais prazer certamente estão as de Stevens, “Sea surface full of clouds”, por exemplo; de Bishop,
Byron e Bishop. Mas alguns livros de ficção foram muito talvez “The moose” ou “One art”; e há três ou quatro
prazerosos — e também dificílimos, tanto quanto oitavas no Beppo de Byron em que consegui saídas
poesia. Os mais difíceis de todos, sem dúvida alguma, bem engenhosas para as arapucas do poema. Em O
foram os livros de Thomas Pynchon, principalmente O arco-íris da gravidade, penso no episódio de Pökler,
arco-íris da gravidade, mas também Mason & Dixon, ou nos parágrafos iniciais do livro, ou na cena da
todo escrito num pastiche de inglês do século XVIII, confraternização entre soldados do general Wivern e
o que me obrigou a aprender a imitar o português do mulheres alemãs quando a guerra termina. Pensando
século XVIII e me preparou para a tradução das Viagens bem, podia ser também alguma cena de The turn of the
de Gulliver, algum tempo depois — outro trabalho que screw de Henry James, em particular uma das aparições
me deu grande satisfação. Entre os autores de quem eu dos fantasmas. Há nessas passagens estruturas
62 63

sintáticas de grande complexidade e muito impacto Cronologia


sobre o leitor, e acho que consegui captar pelo menos
uma parte do efeito do original. Mas talvez eu não seja a
1951 – 12 de dezembro: nasce no Rio de Janeiro Paulo
pessoa indicada para julgar coisas desse tipo. A pessoa Fernando Henriques Britto, filho de Wilson da Silveira Britto e
que faz uma coisa não costuma ser a mais bem situada Leda Marques Henriques Britto.
para avaliá-la. 1962 – Muda-se com a família para Washington, DC, nos
Estados Unidos, onde permanece por dois anos e inicia os
52. O que devemos esperar da produção de Paulo estudos secundários.
1972 – Volta aos Estados Unidos, onde por dois anos estuda
Henriques Britto (como autor e como tradutor) nos
cinema em Los Angeles e São Francisco.
próximos anos? 1974 – De volta ao Brasil, consegue a certificação de professor
de inglês para o nível secundário da educação.
Tirando o livro de contos em que venho tra- ____ – Começa a trabalhar como tradutor.
balhando nos últimos anos, eu realmente não sei. Tenho 1978 – Forma-se em Letras (Português-Inglês), pela PUC-RJ.
alguns vagos projetos, alguns dos quais mencionei em ____ – Começa a dar aulas na mesma PUC-RJ.
1982 – Mestrado em Linguística (“Conectivos oracionais do
outra resposta; mas são apenas projetos vagos, mes- português: uma proposta de análise semântica”), na PUC-RJ.
mo. Mas se, ao me aposentar da PUC, eu ainda tiver ____ – Poesia: Liturgia da Matéria.
condições de trabalhar, pretendo traduzir muita poesia. 1984 – Começa a trabalhar com versões para o inglês.
1986 – União com a professora e pesquisadora Santuza
53. Como você avalia a tua carreira? Cambraia Neves, já mãe de dois filhos.
____ – Passa a colaborar com a editora Companhia das Letras.
1989 – Poesia: Mínima Lírica.
Me lembro daquele poema do Williams sobre 1997 – Poesia: Trovar Claro (prêmio Alphonsus de Guimaraens).
um pássaro achatado no asfalto; depois de evocar a 2002 – Recebe, por unanimidade, o título de Notório Saber
vida do bicho o poeta dá voz ao pássaro, que fecha o pela PUC-RJ.
poema com os versos: “This was I, / a sparrow. / I did my 2003 – Poesia: Macau (prêmios Portugal Telecom e Alceu
best; / farewell”. É isso aí, não é? Se bem que eu ainda Amoroso Lima).
2004 – Contos: Paraísos Artificiais (prêmio Jabuti).
pretendo traduzir mais algumas coisas antes de virar as- 2007 – Poesia: Tarde (prêmio Alphonsus de Guimaraens).
falto. ____ – Poesia: The clean shirt of it: poems of Paulo Henriques
Britto (EUA).
2009 – Livro: Eu quero é botar meu bloco na rua, de Sérgio
64 65

Sampaio. e a abrangência que tem devido ao rigor e à organização do


2010 – Livro: Claudia Roquette-Pinto. próprio tradutor, que nos forneceu listagens detalhadas de
2012 – Poesia: Formas do Nada (prêmio Bravo! e Bradesco sua produção.
Prime).
____ – 04 de maio: morte de sua esposa. Do inglês
____ – Livro: A tradução literária (prêmio Fundação Biblioteca
Nacional). 1974
2014 – Nasce seu primeiro neto, Antônio. Broom, Donald. O mundo maravilhoso das aves. Rio de
____ – Poesia: En liten sol i flickan (Suécia). Janeiro: Ao Livro Técnico.
2018 – Poesia: Nenhum Mistério. Freud, Sigmund. “História do movimento psicanalítico”.
2019 – Contos: O Castiçal Florentino. Segundo a versão inglesa de J. Strachey. Em colaboração com
Themira O. Britto. In Vol. XIV das Obras Completas de Freud.
Rio de Janeiro: Imago. (Também in Freud/Pavlov, Vol. XXXIX
Traduções de Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural).
Kilpatrick, Cathy. O mundo maravilhoso dos filhotes. Rio de
Talvez o procedimento mais simples à nossa Janeiro: Ao Livro Técnico.
disposição fosse listar somente os livros traduzidos por Britto 1976
do inglês para o português. No entanto, acabamos optando Ginsberg, Allen. “A tia Rose”. Suplemento da Tribuna, Tribuna
por uma estratégia diferente, listando também os textos da Imprensa, 20-1 de novembro.
menores que ele já traduziu, o que acaba dando uma imagem Parks, Van Dyke. “Vaivém das viúvas”. Idem.
mais completa da atuação de um dos maiores tradutores 1978
que o Brasil já produziu, mostrando o tipo de trabalho que Ridpath, Ian. O mundo maravilhoso dos astros. Rio de Janeiro:
em alguns momentos foi seu único sustento profissional e, Ao Livro Técnico.
também, a flexibilidade de sua atividade e a dimensão de 1981
seu repertório. A essa lista ainda se soma uma outra, menor, Bach, Emmon. Teoria sintática. Em colaboração com Marilda
de trabalhos mais difíceis de tipificar (encartes de discos, por W. Averbug. Rio de Janeiro: Zahar.
exemplo) e, ainda, o elenco dos textos e livros traduzidos do Chomsky, Noam. Regras e representações. Em colaboração
português para o inglês. com Marilda W. Averbug e Regina Bustamante. Rio de Janeiro:
Como se não bastasse isso tudo, coube ainda colocar Zahar.
os textos e poemas que Britto traduziu também do latim para 1984
o português. Ferlinghetti, Lawrence. Vida sem fim: as minhas melhores
Com isso, fica aqui um verdadeiro recorte da poesias. Em colaboração com Nelson Ascher, Paulo Leminski
atividade singular de um profissional exemplar. Recorte, e Marcos A. P. Ribeiro. São Paulo, Brasiliense.
aliás, que precisamos confessar que só pôde ter a extensão Kerouac, Jack. Os subterrâneos. São Paulo, Brasiliense.
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Augusto, Sérgio et al. Cancioneiro Vinicius de Moraes. Rio de Mas mesmo depois de tomada essa decisão resta ainda
Janeiro: Jobim Music / Instituto Antonio Carlos Jobim (edição o fato de que, junto a textos claramente sobre tradução,
bilíngue). Em colaboração com Renato Rezende. encontramos em sua produção todo um elenco de reflexões
2008 sobre versificação, que sublinha sua atuação como pensador
Fuks, Betty Bernardo. Freud and the invention of Jewishness. da poesia ao lado de sua atuação como tradutor de poesia.
Nova York, Agincourt Press. Assim, a produção registrada aqui inclui esses textos (ensaios
2010 e resenhas), que permitem conhecer melhor a visão de Britto
Mello, Frederico Pernambucano de. “The aesthetics of the sobre a produção e a reprodução de poemas.
cangaço as an expression of Brazilian irredentism”. In Estrelas Não incluímos sua produção acadêmica de juventude, dedicada
de couro: a estética do cangaço. São Paulo: Escrituras Editora. à linguística formal, mas deixamos um texto que tem interesse
2016 terminológico para a área de engenharia!
Solot, Steve (org.). The expanding Brazilian film, television Outra escolha talvez sui generis foi a de listarmos seus textos
and digital industry / Cinema, televisão e mídia digital no publicados na imprensa, além de prefácios, posfácios e orelhas.
Brasil: uma indústria em expansão. Rio de Janeiro: LATC. Em Acreditamos que, assim, seu lugar de tradutor como intelectual
colaboração com Júlio Naves Ribeiro e Carolyn Brissett. público e sua participação na discussão cultural mais ampla do
2018 país, ficam apresentadas de maneira mais completa.
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AMOSTRAS DE TRADUÇÃO
102 103

Wallace Stevens
In O imperador do sorvete e outros poemas
(Companhia das Letras, 2017)

PALACE OF THE BABIES PALÁCIO DOS BEBÊS

The disbeliever walked the moonlit place, O incréu caminhava à luz da lua,
Outside of gates of hammered serafin, Passando por portões de serafim,
Observing the moon-blotches on the walls. Vendo as manchas de luar sobre os muros.

The yellow rocked across the still façades, O amarelo dançava nas fachadas
Or else sat spinning on the pinnacles, Silentes, rodopiava nos pináculos,
While he imagined humming sounds and sleep. E ele pensava em sono e acalantos.

The walker in the moonlight walked alone, O andarilho ao luar ia sozinho;


And each blank window of the building balked Cada janela nua lhe sustava
His loneliness and what was in his mind: A solidão e o que ele tinha em mente:

If in a shimmering room the babies came, Se, por sonhos de asa tenra atraídos,
Drawn close by dreams of fledgling wing, Vinham os bebês a um salão translúcido
It was because night nursed them in its fold. Era porque os acalentava a noite.

Night nursed not him in whose dark mind Mas não a ele, o de mente escura
The clambering wings of birds of black revolved, Onde aves de asas negras debatiam-se,
Making harsh torment of the solitude. Tornando-lhe em tormento a solidão.

The walker in the moonlight walked alone, O andarilho ao luar ia sozinho,


And in his heart his disbelief lay cold. O coração frio de incredulidade,
His broad-brimmed hat came close upon his eyes. O chapéu enterrado até os olhos.
104 105

Elizabeth Bishop
In Poemas Escolhidos (Companhia das Letras, 2012)

ONE ART UMA ARTE

The art of losing isn’t hard to master; A arte de perder não é nenhum mistério;
so many things seem filled with the intent tantas coisas contêm em si o acidente
to he lost that their loss is no disaster. de perdê-las, que perder não é nada sério.

Lose something every day. Accept the fluster Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
of lost door keys, the hour badly spent. a chave perdida, a hora gasta bestamente.
The art of losing isn’t hard to master. A arte de perder não é nenhum mistério.

Then practice losing farther, losing faster: Depois perca mais rápido, com mais critério:
places, and names, and where it was you meant lugares, nomes, a escala subsequente
to travel. None of these will bring disaster. da viagem não feita. Nada disso é sério.

I lost my mother’s watch. And look! my last, or Perdi o relógio de mamãe. Ah! e nem quero
next-to-last, of three loved houses went. lembrar a perda de três casas excelentes.
The art of losing isn’t hard to master. A arte de perder não é nenhum mistério.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster, Perdi duas cidades lindas. E um império
some realms I owned, two rivers, a continent. que era meu, dois rios, e mais um continente.
I miss them, but it wasn’t a disaster. Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

— Even losing you (the joking voice, a gesture — Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo
I love) I shan’t have lied. It’s evident que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
the art of losing’s not too hard to master que a arte de perder não chega a ser mistério
though it may look like (Write it!) like disaster. por muito que pareça (Escreve!) muito sério.
106 107

Emily Dickinson

686

185 Dizem que “O Tempo consola” —


Mas não — na realidade,
“Faith” is a fine invention A vera dor, como um Tendão,
When Gentlemen can see— Se fortalece, com a idade —
But Microscopes are prudent
In an Emergency. O Tempo testa a Tristeza —
Porém não a remedia —
Se cura o Mal, prova apenas
185 Que Mal deveras não havia —

Quando se enxerga a contento,


A “Fé” é uma grande invenção — 1233
Mas numa Emergência, é prudente
Ter um Microscópio à mão. Had I not seen the Sun
I could have borne the shade
But Light a newer Wilderness
686 My Wilderness has made—

They say that “Time assuages” —


Time never did assuage — 1233
An actual suffering strengthens
As Sinews do, with age — Não tivesse eu visto o Sol
Sofrível a sombra seria
Time is a Test of Trouble — Mas a Luz tornou meu Deserto
But not a Remedy — Terra ainda mais baldia —
If such it prove, it prove too
There was no Malady —
108 109

William Faulkner tão terrível e o pai disse Isso é triste também as pessoas
In O som e a fúria (Companhia das Letras, 2017) não conseguem fazer nada tão terrível não conseguem
fazer nada muito terrível não conseguem nem lembrar
amanhã do que parecia terrível hoje e eu disse: A gente
Um pardal atravessou o raio de sol numa linha pode se esquivar de tudo e ele disse: Mas pode mesmo?
enviesada, pousou no parapeito da janela e inclinou E vou olhar para baixo e ver meus ossos murmurantes e
a cabeça para mim. O olho era redondo e reluzente. a água funda como vento, como um telhado de vento, e
Primeiro ele me olhava com um olho, e zás! virava o muito tempo depois não dá para distinguir nem mesmo
outro, a garganta latejando mais rápido que qualquer os ossos sobre a areia deserta e inviolável. Até o Dia
pulso. Começou a dar a hora cheia. O pardal parou de em que Ele dirá Erguei-vos só o ferro de passar subiria
trocar de olhos e ficou me observando fixamente com à superfície. Não é quando você se dá conta de que
um olho só, até que o carrilhão parou de bater, como se nada pode ajudar você — nem religião, nem orgulho,
também ele estivesse prestando atenção nas batidas. nem nada — é quando você se dá conta de que não
Então bateu asas e desapareceu. precisa de ajuda nenhuma. Dalton Ames. Dalton Ames.
Demorou algum tempo até a última batida Dalton Ames. Se eu pudesse ser a mãe dele deitada
parar de vibrar. Ela permaneceu no ar, mais sentida corpo aberto levantado rindo, segurando o pai dele
que ouvida, por um bom tempo. Como todos os sinos com minha mão impedindo, vendo, vendo-o morrer
que já bateram até hoje batendo nos raios de luz que antes de viver. Ela estava parada na porta de repente.
morriam aos poucos e Jesus e São Francisco falando Fui até a cômoda e peguei o relógio, ainda com
sobre a irmã dele. Porque se fosse só para o inferno; o mostrador virado para baixo. Quebrei o cristal na qui-
se fosse só isso. Acabou. Se as coisas simplesmente na do móvel e aparei os cacos na mão e coloquei-os no
acabassem sozinhas. Ninguém mais lá, só ela e eu. Se cinzeiro e arranquei os ponteiros e os pus no cinzeiro
tivéssemos feito alguma coisa tão terrível que todos também. O tique-taque não parou. Virei o mostrador
tivessem fugido do inferno, menos nós. Cometi incesto para cima, o mostrador vazio, as engrenagens atrás
eu disse pai fui eu não foi o Dalton Ames. E quando ele dele continuando a rodar e estalar sem se dar conta.
pôs Dalton Ames. Dalton Ames. Dalton Ames. Quando Jesus caminhou na Galileia e Washington jamais contou
ele pôs a pistola na minha mão eu não. Foi por isso que uma mentira. O pai trouxe um berloque para Jason da
eu não. Ele estaria lá e ela e eu. Dalton Ames. Dalton Feira de Saint Louis: uma espécie de luneta minúscula
Ames. Dalton Ames. Se tivéssemos feito alguma coisa pela qual a gente olhava com um olho só e via um ar-
110 111

ranha-céu, uma roda-gigante que parecia uma aranha, Thomas Pynchon


as cataratas de Niágara numa cabeça de alfinete. Havia In Mason e Dixon (Companhia das Letras, 2004)
uma mancha vermelha no mostrador. Quando o vi, meu
polegar começou a arder. Larguei o relógio e entrei no
quarto de Shreve e peguei o iodo e passei no corte.
Tirei o resto de vidro de dentro do relógio com uma
toalha.
Neste Advento de 1786, estando a Guerra encer-
rada e a Nação a fragmentar-se por conta de Querelas,
feridas do Corpo e do Espírito, grandes e pequenas,
continuam a doer, nem todas elas comemoradas,—
muitas delas nem sequer relatadas. Toda a Filadélfia
está coberta de neve, dum Rio ao outro, e de tal sorte
as margens opostas desses Rios se ocultam sob cortinas
de neblina gelada que é bem como se a Cidade fosse
uma Ilha num Oceano. Lagos e Riachos congelaram-se,
e as Árvores cintilam até o mais pequeno Graveto,—
Nervuras de Luz concentrada. Martelos e Serrotes jazem
abandonados, pilhas de tijolos cobrem-se de neve, ban-
dos pintalgados de Pardais urbanos entram e saem dos
Abrigos que porventura encontram,— o Céu noturno,
onde as Nuvens foram pelo Vento reduzidas a Riscos de
Giz, estende-se por sobre os distritos ao norte, Spring
Garden e Germantown, com uma lua recém-nata tão
pálida quanto os Montes de Neve,— fumaça ascende
das Chaminés, Viajores de Trenó recolhem-se às casas,
as Tabernas enchem-se,— Café fresco consome-se por
toda parte, levado dum Cômodo a outro, enquanto o
Madeira, o tradicional Combustível das Reuniões nes-
112 113

sas Paragens, hoje é vertido como um Elixir de antanho Tenebræ instalou-se e retomou seu Bordado,
sobre a Panela fervente da Política,— pois os Tempos uma peça cujo tamanho e complexidade já se discutem
são tão impossíveis de avaliar, neste Advento, quanto a na Casa, ainda que a própria Bordadeira não se pro-
Distância duma Estrela. nuncie,— ao menos, quanto a esse Tópico. Anuncia-
Tornou-se um hábito vespertino dos Gêmeos e dos pelo Telégrafo Nasal, eis que entram os Gêmeos,
da sua Irmã, e de quaisquer Amigos velhos ou jovens trazendo a velha Cafeteira de Peltre, a bufar Vapor, e
que cá estejam, reunir-se para ouvir mais uma Narrativa uma grande Cesta dedicada aos Apetites Sacarívoros,
de seu Tio tão viajado, o Revdo Wicks Cherrycoke, que cheia até a borda de Sonhos recém-fritos, passados no
chegou em outubro para o enterro dum velho amigo,— Açúcar, e Castanhas cristalizadas, Pães Doces, Bolinhos,
tarde demais para a Cerimônia, afinal,— e desde então Roscas, Pastéis. “Mas o que vejo? Meninos, vocês me
está hospedado na Casa de sua irmã Elizabeth, casada leram o pensamento.”
há muitos anos com o sr. J. Wade LeSpark, respeitado “O Café é para o senhor, Tio,—” “— da última
Comerciante com ativa participação nos Assuntos da Vez o senhor falou dormindo”, explicam os dous,
Cidade, e em seu lar Sultão suficiente para dar a en- colocando os Doces bem perto de onde estão, os outros
tender ao Revdo, ainda que não com todas as letras, ocupantes da sala que se sirvam como melhor puderem.
que enquanto ele conseguir manter as crianças distraí- Como não se sabia bem qual dos dous havia nascido
das, ser-lhe-á permitido permanecer,— porém, diante antes, os Gêmeos haviam sido batizados Pitt e Pliny
de quaisquer excessos de Arroubos Juvenis na hora im- (Plínio), para que um ou o outro pudesse denominar-
própria, num piscar d’olhos ele irá para a Rua, onde o se “o Velho” ou “o Jovem”, ou para comprazer-se a si
aguardam o Cepo e a Lâmina do Inverno. próprio, ou para apoquentar o Irmão.
Assim foi que ouviram histórias tais como a da “Por que não nos conta nenhuma História da
Fuga da Terra dos Hotentotes, o Rubi Maldito de Mogok, América?” Pitt pega com a ponta da língua Migalhas
os Naufrágios nas Índias Orientais e Ocidentais,— uma de Pudim de seu melhor jabô.
Teia de Aventuras e Curiosidades digna do próprio “Que tenha Índios, e também Franceses”,
Heródoto, histórias escolhidas, insinua o Revdo, por acrescenta Pliny, que ao menor gesto esparge farelos
serem elas moralmente instrutivas, sendo outras de Biscoito aos quatro ventos.
evitadas por inadequadas a ouvidos de Jovens. Não “Ou Francesas, melhor ainda”, murmura Pitt.
sendo os Jovens consultados a esse respeito, como “Ser devoto é difícil para nós dous, o senhor
aliás sói acontecer. sabe”, lembra Pliny.
114 115

RESENHA É esse o poema que nos apresenta Paulo Vizioli,


recém-falecido tradutor paulista que nos deixou versões
de muitas obras poéticas importantes da literatura de
UMA FORMA HUMILDE expressão inglesa. Como sempre, Vizioli busca em
sua tradução uma aproximação formal escrupulosa
com o original. Mas esse método, que logrou bons
“A balada do cárcere de Reading” foi a única resultados em outras traduções suas, como a de “The
obra que Oscar Wilde escreveu e publicou na fase final rape of the lock” de Pope, não funciona tão bem aqui.
de sua vida, entre a prisão em 1895 e a morte prematura Se, no caso de Pope – poeta neoclássico que trabalha
no exílio, em 1900 (De profundis, seu último escrito com pentâmetros (versos de cinco pés) jâmbicos (pés
em prosa, é póstumo). É também seu único poema com duas sílabas cada, sendo a segunda acentuada)
com caráter de denúncia, cujo vigor, apesar de alguns rigorosamente metrificados e rimados – a tradução
excessos melodramáticos, destoa da frouxidão que em alexandrinos foi um sucesso, no caso da balada de
tende a marcar a poesia deste autor, hoje respeitado Wilde a solução encontrada por Vizioli é problemática.
acima de tudo por seu teatro e sua prosa crítica e Vejamos por quê.
ficcional. Boa parte da força do poema deriva da forma Na “Balada do cárcere de Reading” também
escolhida por Wilde: a balada. predominam os pés jâmbicos, de duas sílabas. A
A balada inglesa é uma forma poética popular alternância de versos de quatro pés com versos de três,
muito usada em narrativas. Nela alternam-se versos de pois, significa, em tese, que os versos longos teriam oito
quatro pés (isto é, quatro acentos fortes) e versos de sílabas e os curtos, seis. Mas, como já vimos, na balada
três, com rima somente entre os versos pares (os de a contagem de sílabas é o de menos; o que realmente
três pés). A contagem de sílabas é irregular, e pode ha- importa é a sucessão quatro acentos–três acentos, um
ver pequenos desvios ocasionais até na contagem de ritmo que, para o ouvido de um falante do inglês, está
pés, desde que predomine a oposição quatro-três. Nas associado a versos populares ou infantis, a todo um
baladas escritas por poetas eruditos – como a obra-pri- corpus poético que se caracteriza pela narratividade
ma do gênero, “The rime of the ancient mariner” de e a simplicidade. Em sua tradução, Vizioli usa estrofes
Coleridge – a presença de irregularidades na forma é em que se alternam versos de doze sílabas e versos
um efeito calculado, uma espécie de selo de autentici- de seis. (Justifica-se a escolha de versos mais longos:
dade. como as palavras inglesas são mais curtas, o que se
116 117

pode dizer em oito sílabas inglesas dificilmente cabe uma tradução alternativa de um poema longo como
em oito sílabas portuguesas). E Vizioli é rigidamente fiel “A balada do cárcere de Reading”; mas não é difícil
a outras características formais do original; chega até pensar em soluções possíveis. Nosso idioma possui
a reproduzir as rimas internas que por vezes ocorrem formas poéticas que, mesmo não sendo formalmente
entre o segundo e o quarto acento dos versos de equivalentes à balada inglesa, a ela correspondem
quatro pés: “Right ín we wént, with sóul intént” (os em termos funcionais. É o caso da redondilha maior –
acentos indicam as sílabas fortes) é traduzido como o verso popular de sete sílabas, de contagem pouco
“Reentramos com calma, remoendo n’alma”. Porém a rigorosa e rimas pobres ou toantes, que João Cabral
estrofe por ele adotada – dodecassílabos entremeados dignificou em tantos poemas seus. Uma outra opção
com hexassílabos – não é uma forma tradicional da seria o verso de nove sílabas de ritmo ternário, com efeito
poesia lusófona, muito menos da nossa poesia popular. hipnótico, que Gonçalves Dias usa em várias seções de
E o efeito geral de seus versos pesados, metrificados seu “I-Juca-Pirama”, obra que por si só vale por toda
com mais rigor do que o próprio original, não podia uma tradição de poesia narrativa. Podemos imaginar
estar mais distante do sabor popular conotado pela como ficariam em língua portuguesa, adotando-se
balada. tais opções, os versos acima citados (“They thínk a
Além disso, a imposição de permanecer sempre múrderer’s heárt would táint / Each símple séed they
colado ao original leva o tradutor a fazer enjambements sów”). Em redondilha maior: “Julgam que o coração /
e inversões que afastam seu texto ainda mais do tom de um assassino enterrado / Tem poder de corromper
de simplicidade buscado por Wilde. Assim, dois versos / O grão que ali for plantado.” Ou, na forma de
singelos e diretos como “They thínk a múrderer’s heárt “I-Juca-Pirama”: “Coração de assassino, eles pensam,
would táint / Each símple séed they sów” são transfor- / Contamina a semente plantada.” Uma tal solução
mados numa passagem de tortuosidade parnasiana: certamente obrigaria o tradutor a tomar liberdades
“Julgam que o coração de um assassino os grãos / ousadas; por exemplo, minha versão em redondilha
Plantados mancha e estanca.” desdobra dois versos do original em quatro. Porém,
Que solução teria sido melhor? O que fazer se ainda que menos fiel à letra do original, uma tradução
a balada – ao contrário do soneto ou da oitava-rima, assim estaria mais próxima do seu espírito. Pois a escolha
que existem nas mais diferentes línguas europeias – é da forma da balada tem um significado especial aqui:
uma forma inglesa que não tem correspondente exato para Wilde, homem requintado e orgulhoso, a prisão
em português? Este não seria o lugar para propor representou uma humilhação profunda, o fim de sua
118

carreira literária, seu casamento e sua reputação social;


ele terminará convertendo-se ao catolicismo no leito de
morte. Sem dúvida é significativo que, para tematizar
essa experiência terrível, em seu último poema, ele
resolva adotar a mais despretensiosa, a mais humilde
das formas poéticas da língua inglesa. É justamente isso
que se perde nesta tradução de resto cuidadosa; e não
é pouca coisa.

Jornal de Resenhas, no 60, Folha de São Paulo, 11 de março de 2000.

DEPOIMENTO
120 121

Quando conheci Antonio Carlos Viana, eu tinha cias na fala de personagens; sabia também que ele me
dezessete anos, ele vinte e quatro. Sergipano há pou- diria exatamente o que pensava dos meus escritos.
co tempo no Rio, Antonio lecionava português numa Em 1981 Antonio publicou seu segundo livro, Em
escola particular da Tijuca, onde eu cursava a segunda pleno castigo. Sua prosa estava ainda mais depurada e
série do colegial. Seu método de ensino era nos fazer seca; a temática fantástica estava atenuada, e o foco era
ler literatura: foi com ele que descobri Graciliano Ramos nas personagens que se tornariam fundamentais em seu
e Clarice Lispector. Convivemos na mesma cidade por trabalho: de um lado, crianças e adolescentes tentando
menos de um ano, mas nos tornamos amigos para o res- entender as forças misteriosas que impelem seus corpos;
to da vida. Logo ele se mudou para Teresópolis, e pou- de outro, pessoas mais velhas, principalmente mulheres,
co depois publicou seu primeiro livro de contos, Brincar solitárias, isoladas ou marginalizadas, se esforçando
de manja. Nessa obra de estreia já se percebiam alguns para sobreviver com um mínimo de dignidade. A voz do
elementos que estariam presentes ao longo de toda a narrador, em primeira ou em terceira pessoa, mantinha
sua trajetória: as contingências do corpo no sexo e na um equilíbrio delicado entre a objetividade absoluta e
morte, a ignorância e vulnerabilidade da infância. Havia a empatia, entre a crueldade e um humor sutilíssimo.
também um toque de fantasia que refletia as suas leitu- Em 1986, fiquei quarenta dias hospedado na Cité
ras da época: José J. Veiga, García Márquez e Cortázar. Universitaire em Paris, onde Antonio estava morando
Após alguns anos em Teresópolis, Antonio foi estudar no com a mulher e o filho, trabalhando numa tese de
Rio Grande do Sul; eu fui para a Califórnia, e nossa am- doutorado sobre a poesia de João Cabral. Nessa minha
izade passou a depender do serviço de correios, depois estada tínhamos longas conversas sobre tudo, inclusive
substituído pela internet. Cabral. Lembro-me da crítica severa que ele fez a alguns
Embora tivesse viajado para estudar cinema, eu dos poemas do meu primeiro livro, publicado alguns
dedicava a maior parte do meu tempo no estrangeiro a anos antes. Embora não tivesse usado o termo, estava
escrever contos — em inglês, já que pensava seriamente claro que, para Antonio, neles eu cometera o pior dos
em não voltar mais para o Brasil, então vivendo os piores pecados literários: o sentimentalismo. Se Cabral já era
anos da ditadura. Menos de dois anos depois, porém, meu superego poético, a crítica de Antonio reforçou-o
já estava de volta no Rio, trabalhando como professor ainda mais neste papel.
de inglês e reescrevendo em português o que eu havia De Paris, Antonio voltou para Aracaju, onde
produzido na Califórnia. Antonio tornou-se então meu moraria o resto da vida, trabalhando na universidade,
consultor literário mais importante: eu lhe enviava versão traduzindo e escrevendo. Continuava a ler e criticar meus
após versão de meus contos. Sabia que ele tinha ouvido contos, e também me mandava os que ele ia escrevendo,
absoluto para clichês, impropriedades verbais, incoerên- num ritmo para mim inimaginável: seu terceiro livro saiu
122 123

em 1993. Nessa década, estivemos juntos duas vezes, apenas quatorze linhas. Cinco anos depois, Antonio
em eventos acadêmicos em Aracaju para os quais ele lançou Cine privê, retribuindo a dedicatória que eu lhe
convidou a mim e minha mulher, Santuza Cambraia havia feito. Embora a infância continuasse presente, suas
Naves. Numa dessas idas a Sergipe, encontramos narrativas agora tematizavam cada vez mais a velhice,
Antonio em pé de guerra com boa parte da comunidade como indicam alguns dos títulos: “O terceiro velho da
literária local. Uma proposta de lei estadual obrigaria as noite”, “A velhice chega de mansinho” e “Minha avó
escolas a apresentar aos alunos a “literatura sergipana” Inocência”.
antes da literatura brasileira; Antonio argumentava que Em 2013, eu e Antonio fomos à Alemanha
não existia “literatura sergipana”, e sim autores de participar da Feira de Frankfurt, e pela primeira vez
literatura brasileira que haviam nascido em Sergipe, o em muitos anos — fora um rápido encontro anterior
que não era a mesma coisa. O provincianismo era uma em Parati — pudemos conversar. Aliás, o que mais fiz
das poucas coisas que o tiravam do sério. nessa viagem foi conversar com Antonio, no quarto do
Embora já tivesse conquistado vários prêmios hotel, tomando o vinho que comprávamos na loja de
literários, até então Antonio era publicado por editoras conveniência do posto de gasolina. Depois passamos
pequenas, que não proporcionavam a seus livros uma mais de um ano sem nos vermos, eu lhe mandando
distribuição decente. Quando, em 1999, a Companhia versões sucessivas dos contos que estava aprontando
das Letras me pediu para fazer uma seleção dos seus três para um segundo livro, ele de início resmungando que
livros, aceitei a incumbência com entusiasmo, sabendo não escrevia mais nada, por não ter mais o que dizer.
que desta vez Antonio teria um público maior. O meio Resolvi incentivá-lo a retomar umas histórias que havia
do mundo e outros contos incluía também uns poucos abandonado, e com minha insistência ele acabou
textos ainda não reunidos em livro, como “Nadinha”, tomando gosto e terminando um número de textos
uma pequena obra-prima de concisão radical. Em 2004, suficientes para um novo livro. Um dos contos, que daria
finalmente publiquei meu primeiro livro de contos, título ao volume — Jeito de matar lagartas — era um
dos quais apenas dois não remontavam aos anos 70; dos melhores que ele já havia escrito; em outro, “Um
dediquei-o a Santuza e a Antonio, meus leitores de traidor”, Antonio retomava o tema da solidão na velhice
primeira hora. No mesmo ano, Antonio lançou Aberto com um humor irresistível.
está o inferno, que abria com “Ana Frágua”, quatro Depois de um período de um ou dois meses sem
páginas em que um dos temas prediletos do autor, nos escrevermos, no final de 2014 recebi um e-mail de
a perda da inocência infantil, é abordado com um uma conhecida minha e de Antonio dizendo que ele
extraordinário misto de crueza e delicadeza. Os contos estava morrendo de câncer. A notícia me deixou atônito,
estavam ainda mais curtos; um deles, “Inveja”, tinha porque ele nunca havia me falado de doença. Liguei
124

então para seus familiares, e soube que o mal estava


avançado, com pouca esperança de cura, mas que se
estava tentando um tratamento de risco. Comprei uma
passagem para Aracaju para janeiro, quando eu já estaria
de férias na universidade, sem ter certeza de que ainda
o encontraria com vida. Nesse ínterim, a Companhia das
Letras me pediu uma orelha para o novo livro de Antonio
em caráter de urgência; eles fariam tudo para que o livro
saísse enquanto ele ainda estava vivo.
Em janeiro de 2015, encontrei Antonio ainda
muito debilitado, recuperando-se de um tratamento
brutal, mas que funcionou por algum tempo. Passamos
alguns dias conversando, como em Frankfurt; mas a liter-
atura não era mais nosso tema principal. Só então fiquei
TEXTOS TEÓRICOS
sabendo das idas e vindas da doença, dos tratamentos
mais e menos acertados, coisas a respeito das quais,
movido por sei lá que sentimento de pudor, ele nunca
me dissera nada. Pouco depois de voltar ao Rio, recebi
meu exemplar autografado do novo livro, e nossa cor-
respondência retomou o ritmo de sempre. Dois meses
atrás mandei-lhe o rascunho de um conto novo, sobre
cuja viabilidade eu tinha (e ainda tenho) sérias dúvidas.
Ele me respondeu dizendo que não poderia ler no mo-
mento, por estar se recuperando de uma nova cirurgia.
Pouco mais de um mês depois, sucumbiu a uma anemia
causada pelo câncer. Depois fiquei sabendo que Anto-
nio, perfeccionista como sempre, antes de ir para o hos-
pital pela última vez apagou do disco rígido de seu com-
putador os rascunhos dos contos que não tivera tempo
de terminar.
“Um diálogo vital entre o poeta e Antonio Carlos Viana”.
Folha de São Paulo, Ilustríssima, 20 de novembro de 2016.
127

A DIFÍCIL VIDA FÁCIL DO TRADUTOR

Segundo dizem, o ofício de tradutor é a segun-


da mais antiga profissão que há. Se isto é verdade ou
não, respondam os historiadores; mas a comparação
implícita entre prostituição e tradução contida neste co-
mentário levanta algumas considerações interessantes.
De fato, tratam-se de duas ocupações que, além de te-
rem em comum a extrema antiguidade, são concebidas
pelo senso comum de modo análogo.
Tanto o trabalho da prostituta quanto o do
tradutor são normalmente encarados como males
necessários, atividades que sempre surgem onde
quer que se desenvolva uma sociedade humana
mais complexa, mas que decorrem de imperfeições
humanas. Num mundo utópico em que vigorasse
uma atitude mais racional e saudável em relação à
sexualidade, a prostituta não teria razão de ser; assim,
também, numa sociedade em que triunfasse a razão
acima dos nacionalismos e etnocentrismos estreitos,
todos falariam um único idioma — certamente, aliás,
uma língua racional, sem regras absurdas e exceções
inexplicáveis — e não haveria necessidade de se traduzir
coisa alguma. Sem dúvida, por trás desta visão de um
mundo desbabelizado está uma série de concepções
linguísticas tão ingênuas quanto os pressupostos da
visão de uma civilização sexualmente saudável; mas é
justamente de concepções ingênuas que se faz o senso
128 129

comum. como tradutor de best-seller).


Além disso, para o senso comum o ofício do Há ainda um outro paralelo entre prostituição
tradutor é, por sua própria natureza, um trabalho algo e tradução, tal como são vistas pelo senso comum: a
degradante, tanto quanto o da meretriz: pois assim suposta facilidade destas atividades. Quem não tem
como o ato de prostituir-se é um aviltamento do amor, competência para arranjar um emprego respeitável
o ato de traduzir é uma versão diminuída, trivializada, vende o próprio corpo, o último recurso dos incultos
do ato de escrever. Mas não é só isso: ao verter uma e despreparados; do mesmo modo, a tradução é vista
obra literária de um idioma para outro, o tradutor é como um bico, um trabalho a que se entrega aquele
acusado de cometer ao menos três traições. A primeira que não sabe fazer nada em particular. Pois traduzir
seria em relação à obra em si, por apresentá-la ao leitor parece coisa bem fácil: bastam algumas tinturas de um
incauto numa versão descaracterizada, fatalmente idioma estrangeiro, papel e lápis, mais alguns dicionári-
eivada de erros, e — por mais cuidadoso que seja o os, talvez. (Ou nem isso: quando, numa reunião social,
tradutor — despida justamente daqueles elementos comentei que meu principal instrumento de trabalho
imponderáveis, intrínsecos ao gênio do idioma original, era o dicionário, que eu usava muitos dicionários a toda
que não resistem à violência do empreendimento hora, um de meus interlocutores espantou-se: se eu já
tradutório. A segunda traição diria respeito ao idioma era um tradutor tão calejado, que necessidade ainda
para o qual a obra é vertida, já que, ao transportar um tinha de consultar dicionários? A esta altura, eu certa-
texto alienígena para o idioma nacional, o tradutor está mente já deveria saber de cor todas as palavras rele-
corrompendo sua própria língua, nela introduzindo vantes).
estrangeirismos e maneirismos próprios do idioma Esses preconceitos referentes ao trabalho do
original. Por fim, o tradutor está também prejudicando tradutor são reforçados por um grande número de
o desenvolvimento de sua literatura nacional, afirmações, desde os chavões óbvios, como traduttore,
implantando nela modelos exóticos que certamente traditori e tradução é como mulher, ou é bela ou é
serão copiados pelos escritores locais, desvirtuando a fiel, até observações menos conhecidas, como esta,
pureza de nossa literatura; e — pior ainda — lançando do poeta americano Robert Frost: Poesia é o que se
no mercado um produto estrangeiro que vai competir perde na tradução. Atentemos especificamente para
com o produto genuinamente nacional. (Recentemente, a comparação entre as traduções e as mulheres, que
uma entrevistadora de televisão de uma cidade do parece remeter à comparação entre prostituição e
nordeste, ao saber que eu havia traduzido Rumo à tradução que estamos examinando. Claramente,
Estação Finlândia, de Edmund Wilson, perguntou-me, o senso comum, com seu chauvinismo notório,
num tom de indignação moral, como eu me sentia encara o tradutor e a mulher com o mesmo misto de
130 131

condescendência e desprezo. direito de criticar o criticável; tampouco faço vista grossa


Tudo isso seria de interesse apenas anedótico, ao fato de que, de modo geral, o nível das traduções
no máximo antropológico, não fosse o fato de que o publicadas é insatisfatório. O crítico tem todo o direito,
senso comum costuma impregnar todas as atividades e mesmo a obrigação, de apontar defeitos; e os
humanas, mesmo as que se pretendem mais científicas tradutores deveriam apresentar sempre um trabalho de
e objetivas. E se até a medicina, o mais pragmático qualidade (para o qual muito contribuiria uma atitude
dos saberes, se deixa impregnar pelos preconceitos diferente por parte das editoras — por exemplo, se
mais primários — pensemos na medicina do terceiro elas cumprissem a lei que destina uma percentagem do
Reich — o que dizer da crítica, esta atividade cujas preço de capa do livro ao tradutor; nada como pagar
pretensões de objetividade e cientificidade são tão melhor uma pessoa para fazê-la trabalhar melhor).
suspeitas? Talvez a crítica livresca, erudita, ainda possa Reconheço, também, que por sua própria natureza o
se arrogar um certo distanciamento científico; mas a trabalho do tradutor, como o da cerzideira, tem como
crítica das resenhas publicadas nos jornais e revistas, meta uma certa invisibilidade: o texto idealmente bem
que comenta e recomenda as mais recentes fornadas traduzido, pode-se argumentar, deveria dar a impressão
de livros, quase sempre redigida a toque de caixa, sob de ter sido redigido originariamente no idioma em que
pressões de tempo e espaço, com frequência incorre o lemos. É compreensível, pois, que o leitor tenda a só
nos preconceitos que se manifestam em lugares- perceber o trabalho do tradutor quando ele se torna
comuns como os que vimos acima. Na prática, isso um empecilho à leitura. Mas do crítico devemos exigir
vai se refletir numa atitude em relação à tradução que mais. Ele tem obrigação de saber o quanto é difícil, na
pode ser resumida mais ou menos assim: a tradução da verdade, o ofício de tradutor; de não repetir, ainda que
obra resenhada só deve ser mencionada no que tem de inconscientemente, os preconceitos do leitor ingênuo.
deficiente. É uma atitude muito diferente da que tem Infelizmente, não é o que se dá na realidade; o que vemos
o crítico em relação ao trabalho do autor. Ao resenhar é o mais completo desinteresse pela tradução. Nenhum
o livro, ele aponta tanto aspectos positivos quanto jornalista fala das atividades das prostitutas para elogiá-
negativos, e muitas vezes ocupa boa parte de seu las; é só quando é encarada como um problema social
espaço tecendo considerações elogiosas sobre autor que a prostituição merece menção em letra de forma.
e obra. Por que o tratamento dado à tradução é tão Pede-se aos prostíbulos que funcionem com eficiência
diferente? no seu lugar devido, sem perturbar a ordem e os bons
A resposta é óbvia: porque o crítico também costumes; o máximo que se pode fazer por eles é fazer
não leva a sério o trabalho do tradutor. de conta que não os vê. Assim, também, o trabalho do
Não estou, absolutamente, negando ao crítico o tradutor, por melhor que seja, é coisa que não vale a
132 133

pena mencionar; o tradutor não pode aspirar a nenhuma apropriada para reivindicar junto à crítica dos jornais
recompensa maior do que ver seu nome mencionado e revistas um tratamento mais justo. É salutar que os
apenas no cabeçalho da resenha, entre o nome do autor resenhistas mostrem o que há de insatisfatório no
e o da editora. Mas o menor deslize por ele cometido trabalho do tradutor; mas não é querer demais cobrar
será inevitavelmente mencionado; pois a tradução, dos críticos uma avaliação da tradução como parte da
sendo uma atividade tão trivial, tão fácil, simples verter rotina normal de seu trabalho, ao invés das infames
mecânico de um conteúdo de um idioma a outro, listas de “pérolas”, quase sempre colocadas no último
tem obrigação de ser perfeita. O artista, o cientista, parágrafo, depois que os aspectos mais importantes
aquele que pratica um mister difícil e ambicioso, que do livro já foram discutidos, ou — no caso da tradução
luta com seus próprios demônios para criar o Belo, boa — do silêncio puro e simples. Como nossas
ou se dedica à árdua tarefa de descobrir a Verdade — companheiras de marginalização, não almejamos a
esse tem o direito de errar; mas do tradutor, como do glória: tudo que queremos é o reconhecimento de que,
acrobata ou do prestidigitador, o mínimo que se pode no mundo imperfeito em que vivemos, nosso trabalho
exigir é a perfeição. Qualquer cochilo é imperdoável, existe, é necessário, é difícil, é até mesmo respeitável,
e um desempenho perfeito não merece aplauso. O e que às vezes somos capazes de realizá-lo com
malabarista que não deixa cair nenhuma bola não faz competência.
mais que sua obrigação. Apenas o tradutor de poesia
tem o prazer de ser brindado ocasionalmente com uma
palavra elogiosa, já que a dificuldade de seu trabalho 34 Letras, no 3, março de 1989, pp. 111-15.
é inegável; porém muitas vezes tem-se a impressão de
que isto ocorre justamente porque, sendo a tradução
poética a que é necessariamente mais insatisfatória,
é neste caso que o crítico mais oportunidades terá
de apontar defeitos, após reconhecer, com infinita
condescendência, que, apesar dos pesares, até que o
resultado final não foi de todo mau.
Recentemente a profissão de tradutor foi
reconhecida no Brasil, e nós, tradutores, passamos a
ser oficialmente considerados profissionais liberais. É
uma conquista importante — as prostitutas ainda não
conseguiram tanto. Exatamente por isso, a hora parece
134 135

PADRÃO E DESVIO NO PENTÂMETRO JÂMBICO INGLÊS: 1. Padrão e variação no pentâmetro jâmbico inglês
UM PROBLEMA PARA A TRADUÇÃO O pentâmetro jâmbico, o mais importante
metro da poesia inglesa, é utilizado em algumas das
principais formas poéticas do idioma, como o blank
verse do teatro isabelino e das epopeias de Milton,
RESUMO: Ao longo da história da poesia inglesa, à medi- o heroic couplet do século XVIII e o soneto praticado
da que o pentâmetro jâmbico se afirmou como um padrão por Shakespeare e tantos outros poetas. Desde que os
importante, também se cristalizaram alguns desvios per-
missíveis do metro, utilizados pelos poetas com fins expres-
primeiros prosodistas começaram a analisar os metros
sivos. O tradutor deve levar em conta tanto o padrão quan- do idioma, ficou claro que em qualquer composição
to o repertório de desvios, a fim de identificá-los e procurar em pentâmetro jâmbico é de se esperar que haja um
correspondências nos padrões métricos do português mais certo número de pés que não se conformam ao padrão
utilizados para traduzir o pentâmetro jâmbico. Examinam-se
estrito. A ocorrência de tais desvios se deve menos à
as possibilidades das formas-padrão do decassílabo portu-
guês e dos desvios em relação a elas. A título de exemplo, dificuldade de manter uma regularidade rigorosa — na
comparam-se duas traduções de um soneto de Shakespeare. verdade, é relativamente fácil compor em inglês uma
longa sequência de pentâmetros jâmbicos perfeitos
PALABRAS-CHAVE: tradução de poesia, versificação, — do que da monotonia causada por um ritmo
pentâmetro jâmbico, decassílabo
excessivamente uniforme. Assim, um pé jâmbico ( - /
ABSTRACT: Throughout the history of English poetry, even ) pode ser substituído por um anapesto ( - - / ) — é
as the iambic pentameter asserted itself as a major meter, a chamada “substituição anapéstica”, que aumenta
a number of permissible deviations from its norm also be- o número de sílabas do verso; porém a pressão do
came crystallized, as they came to be used by poets for ex-
contrato métrico faz com que as duas sílabas átonas
pressive purposes. Translators should take into account both
the standard pattern and the repertoire of deviations, so as do pé levem apenas um pouco mais de tempo para ser
to identify them and look for equivalent forms among those pronunciadas do que uma única sílaba átona quando é
Portuguese meters that are most commonly used to trans- precedida e seguida por uma tônica. Também é possível
late the iambic pentameter. This paper analyzes the standard que em lugar do jambo apareça um troqueu, pé em que
forms of the Portuguese decasyllable and deviations from it.
As an example, two alternative translations of a sonnet by
as posições relativas da tônica e da átona são invertidas
Shakespeare are compared. ( / - ): é a chamada “inversão trocaica”. São igualmente
comuns as substituições de pé jâmbico por espondeu
KEYWORDS: poetry translation, versification, iambic pentam- (duas sílabas fortes, / / ) ou pirríquio (duas fracas, - - ).
eter, decasyllable
Um pentâmetro jâmbico em que ocorram
substituições e inversões terá características rítmicas
136 137

diferentes de um verso perfeitamente jâmbico. A Love ’s not Time’s fool, though rosy lips and cheeks / / | / / || - / | - / | - /
10 Within his bending sickle’s compass come; --|-/|-/|-/|-/
justaposição de tempos fracos — seja pela introdução
Love alters not with his brief hours and weeks, //|-/|--|//|-/
de um anapesto, seja pela ocorrência de um pirríquio
But bears it out even to the edge of doom. -/|-/|/--|-/|-/
— terá o efeito de acelerar o ritmo do verso, já que a If this be error, and upon me prov’d, - / | - / | - || - | - \ | - /
leitura das sílabas átonas é ligeiramente mais rápida I never writ, nor no man ever lov’d. - / | - / || - / | / / | - /
que a das acentuadas. Do mesmo modo, acidentes
como a justaposição de tempos fortes, causada por uma Na escansão, sombreamos todos os pés que
inversão trocaica ou pela presença de um espondeu, não se conformam ao padrão jâmbico ( - /, - \ ou \ /).
ou a introdução de uma ou mais pausas, diminuirão Como se vê, o poema começa com um verso muito
a velocidade de enunciação. Tais alterações no ritmo irregular: só o terceiro pé é jâmbico, e os dois primeiros
podem ter implicações semânticas, como observam representam inversões trocaicas. No segundo verso, os
os prosodistas. A aceleração causada pelo acúmulo de dois primeiros pés são jâmbicos, mas a partir do terceiro
tempos fracos poderá denotar — dependendo, é claro, pé o ritmo mais uma vez é embaralhado. É só no v. 3
do sentido das palavras em questão — rapidez, leveza, que temos uma afirmação do metro jâmbico (apenas
frivolidade, nervosismo etc. Já a diminuição do ritmo, o segundo pé, pirríquio, não é jâmbico), e já passamos
além de dar ênfase às palavras em que incidem os da metade do soneto quando, no v. 8, temos o primeiro
tempos fortes justapostos, implicará, conforme o caso, pentâmetro jâmbico perfeito. Parece claro que a extrema
lentidão, gravidade, nobreza, indignação etc. Seja como irregularidade do metro no início do poema, juntamente
for, uma coisa é clara: a ocorrência de um desvio do com o violento enjambement entre os vv. 1 e 2, ressaltam
padrão jâmbico terá quase sempre o efeito de chamar a o tom de veemência e paixão do eu lírico. Tem-se
atenção para a passagem desviante, tanto mais quanto a impressão de que a voz do poeta só se aquieta um
mais forte e mais prolongado for esse desvio. pouco à medida que se acumulam as metáforas com que
Exemplifiquemos o que foi dito com o soneto ele afirma sua posição.
116 de Shakespeare.
2. Padrão e desvio no decassílabo português
Let me not to the marriage of true minds /-|/-|-/|--|//
Nos metros portugueses mais utilizados para se
Admit impediments. Love is not love - / | - / | - - || / - | / /
traduzir o pentâmetro jâmbico, que recursos podemos
Which alters when it alteration finds, -/|--|-\|-/|-/
Or bends with the remover to remove: -/|--|-/|--|-/
encontrar para realizar efeitos análogos aos associados
5 O, no! it is an ever-fixèd mark, / / || - - | - / | - / | - /
aos desvios do padrão jâmbico? Para responder a essa
That looks on tempests and is never shaken; -/|-/|--|-/|-/|- pergunta, precisamos realizar uma investigação dos
It is the star to every wandering bark, --|-/|-/|-/|--/ metros portugueses relevantes. Devido a limitações de
Whose worth’s unknown, although his height be taken. - / | - / || - \ | - / | - / | -
138 139

espaço, examinaremos aqui apenas a forma portuguesa do português, acrescenta muitos pormenores ao estudo
que é normalmente considerada a que melhor de Cavalcanti Proença, mas tampouco avança na questão
corresponde ao pentâmetro jâmbico: o decassílabo. das implicações semânticas dos desvios em relação aos
Ao contrário do que ocorre no inglês, em nosso padrões métricos. É essa a questão que me proponho a
idioma muito pouco foi feito no sentido de arrolar os examinar aqui.
desvios mais comuns dos padrões métricos e associar Tradicionalmente, considera-se que há dois
a eles efeitos de sentido. Os prosodistas tradicionais grandes padrões na poesia lusófona dos últimos séculos
que examinamos — Castilho (1858) e Bilac & Pereira — o heroico e o sáfico. O heroico se caracterizaria pela
(1949 [1905]) — não tocam no problema. Said Ali (1999 presença de um acento forte na sexta sílaba, enquanto o
[1948]) distingue no decassílabo três grandes formas sáfico seria marcado pela antecipação deste acento para
— provençal, ibérico e italiano — e apresenta uma a quarta sílaba, o que levaria à ocorrência de um terceiro
análise detalhada das possibilidades rítmicas das duas acento obrigatório na oitava. Porém sabemos que essa
últimas, mas nada diz sobre as implicações semânticas classificação está longe de abranger todos os casos. Para
dos desvios desses padrões. Cavalcanti Proença (1955) os fins do presente estudo, destacaremos pelo menos
avança ainda mais na classificação das variantes do dois outros padrões básicos. Diferenciaremos o heroico
decassílabo, ressaltando a distinção entre heroico e sáfico propriamente dito — marcado não apenas pelo acen-
e destacando o martelo-agalopado, tão importante na to na sexta como também por um ritmo jâmbico, com
poesia brasileira. Além disso, apresenta uma análise acentos nas sílabas pares — do martelo-agalopado, em
precisa do soneto “Oficina irritada” de Drummond, que a primeira metade do verso é de corte ternário (dois
enfatizando o que há de arcaizante no ritmo desse anapestos). Por fim, consideraremos caso à parte o ver-
poema e destacando os versos “seco, abafado, difícil so perfeitamente jâmbico, em que todas as sílabas pares
de ler” e “Esse meu verso antipático e impuro”. É pena, são acentuadas, pois nele se neutraliza a oposição hero-
porém, que esse analista tão arguto das formas poéticas ico-sáfico na medida em que, se a sexta sílaba é acentu-
portuguesas não tenha aproveitado a oportunidade para ada, também o são a quarta e a oitava. Tal como a sub-
observar que o sentido desses dois versos constitui um stituição jâmbica e a inversão trocaica são utilizadas pelo
comentário referente à sua forma, pois a pauta acentual poeta anglófono para quebrar a monotonia do jambo,
de ambos — 1-4-7-10 — lhes impõe um ritmo datílico ( / - o poeta lusófono pode combinar os quatro tipos de de-
- / - - / - - / ) que rompe com o ritmo predominantemente cassílabos delineados acima para obter maior variedade
jâmbico do decassílabo. É esse ritmo inusitado que torna rítmica. E a ocorrência de tais variações pode ter impli-
esses versos difíceis de ler e impuros. Chociay (1974), no cações importantes no plano do sentido. Examinemos
estudo mais exaustivo que conheço das formas métricas um soneto de Fernando Pessoa / Álvaro de Campos:
140 141

AH, UM SONETO... é, um pé que consiste em três sílabas átonas seguidas


de uma tônica ( - - - / ) — que evoca o início dos dois
Meu coração é um almirante louco ---/---/-/- S 4-8-10 primeiros versos sáficos da estrofe anterior. Porém os
que abandonou a profissão do mar ---/---/-/ S 4-8-10
e que a vai relembrando pouco a pouco
vv. 3 e 4 da segunda afirmam o ritmo heroico, fazendo
--/--/-/-/- M 3-6-8-10
em casa a passear, a passear... H
com que o sáfico inicial seja esquecido, do mesmo
-/---/---/ 2-6-10
modo como o veículo da metáfora — o almirante louco
5 No movimento (eu mesmo me desloco - - - / || - / - - - / - H 4-6-10 — leva ao esquecimento de seu teor — o coração. O
nesta cadeira, só de o imaginar) - - - / - || / - - - / H 4-6-10 primeiro terceto volta a introduzir a incerteza métrica
o mar abandonado fica em foco -/---/-/-/- H 2-6-8-10 com dois martelos-agalopados, seguidos de um
nos músculos cansados de parar. -/---/---/ H 2-6-10 heroico. O terceto final começa com dois versos muito
irregulares: o primeiro é quase impossível de escandir,
Há saudades nas pernas e nos braços. M
--/--/---/- 3-6-10 e o segundo tem acentos tanto na sexta sílaba quanto
10 Há saudades no cérebro por fora. --/--/---/- M 3-6-10 na quarta e oitava, neutralizando a oposição heroico-
Há grandes raivas feitas de cansaços. -/-/-/---/- H 2-4-6-10
sáfico. Ora, esses versos metricamente indefinidos, que
Mas — esta é boa! — era do coração I
se aproximam da fala coloquial, surgem no ponto exato
- || / - / || / - - \ - / 2-4-5-(8)-10
que eu falava... e onde diabo estou eu agora - - / || / - / - / - / - I 3-4-6-8-10
em que a voz lírica se dá conta de que se esqueceu de
com almirante em vez de sensação?... ---/-/---/ H 4-6-10 que estava na verdade falando do coração e acabou se
perdendo na imagem do almirante. Assim, a negação
O primeiro verso é um sáfico perfeito, e o do esquema métrico vem no momento em que, no
segundo, ao reforçar esse padrão, estabelece um plano semântico, se acusa o ridículo do jogo metafórico.
contrato métrico de caráter sáfico. Porém o terceiro E o verso final, heroico, começa com um peônio quarto
verso é um martelo-agalopado, com a característica que mais uma vez evoca o início do poema. Ou seja:
divisão entre dois pés ternários (anapésticos) na primeira evoca-se o ritmo inicial ( - - - / ) ao mesmo tempo em
parte e dois binários (jâmbicos) na segunda, e o quarto que se retoma o teor da metáfora introduzida no início
é um heroico. Assim, a primeira estrofe começa com o do poema (coração).
metro sáfico, passa pelo martelo-agalopado e termina
com o heroico, o que gera uma sensação de estranheza 3. Um estudo de caso
e instabilidade que vem reforçar a estranheza da Até que ponto os tradutores se valem do recurso
metáfora (coração = almirante louco aposentado). A do desvio da norma métrica ao traduzirem poemas em
segunda estrofe começa com dois heroicos, se bem que tais desvios são usados criativamente? Examinemos
que cada um deles inicia com um peônio quarto — isto um caso concreto: duas traduções brasileiras em
142 143

decassílabos do soneto 116 de Shakespeare, que vimos aparecem na ordem canônica; é só no segundo que a
acima. Comecemos com a de Ivo Barroso: sintaxe é mais tortuosa. No nível do metro propriamente
dito, destaque-se que o primeiro verso é martelo-
agalopado, introduzindo um ritmo ternário que depois
Que eu não veja empecilhos na sincera - - / - - / - - - / - M 3-6-10
não vai reaparecer, e o contrato métrico — sáfico, aqui
União de duas almas. Não amor - / - / - / - || / - / J 2-4-6-8-10
É o que encontrando alterações se altera / - - / - - - / - / - S 1-4-8-10
— só se afirma a partir da metade do poema, tal como
Ou diminui se o atinge o desamor. - - - / - / - - - / H 4-6-10 no original. É menos ousado que a violência rítmica
5 Oh, não! amor é ponto assaz constante / || / || - / - / - / - / J- 1-2-4-6-8-10 do início do poema em inglês, mas não deixa de ser
Que ileso os bravos temporais defronta. - / - / - - - / - / - S 2-4-8-10 uma solução métrica que de algum modo reproduz a
É a estrela guia do baixel errante, -/-/---/-/- S 2-4-8-10 estrutura do original.
De brilho certo, mas valor sem conta. - / - / - || - - / - / - S 2-4-8-10 Grifemos, no texto de Shakespeare e na tradução
O Amor não é jogral do Tempo, embora - / - / - / - / - / - J 2-4-6-8-10 de Ivo Barroso, as inversões sintáticas mais marcadas.
10 Em seu declínio os lábios nos entorte. - - - / - / - - - / - H 4-6-10 Veja-se como — exceção feita, é bem verdade, ao cru-
O Amor não muda com o dia e a hora, - / - / - - - / - / - S 2-4-8-10
cial primeiro verso — o tradutor conseguiu manter uma
Mas persevera ao limiar da Morte. ---/---/-/- S 4-8-10
boa correspondência com o original:
E, se se prova que num erro estou, - || - - / - - - / - / S 4-8-10
Nunca fiz versos nem jamais se amou. / - \ / - || - - / - / S 1-(3)-4-8-10 Let me not to the marriage of true minds
Admit impediments. Love is not love
Which alters when it alteration finds,
Or bends with the remover to remove:
Dos quatorze versos dessa tradução, oito são
O, no! it is an ever-fixèd mark,
sáficos, dois heróicos, um martelo-agalopado e três
That looks on tempests and is never shaken;
perfeitamente jâmbicos. As irregularidades métricas It is the star to every wandering bark,
são apenas três, no início dos versos 3, 5 e 14; mas Whose worth’s unknown, although his height be taken.
é possível reduzi-las a duas se não se der ênfase à Love ’s not Time’s fool, though rosy lips and cheeks
primeira sílaba de 3, uma leitura aceitável. A veemência Within his bending sickle’s compass come;
da voz lírica parece estar sinalizada pela reprodução Love alters not with his brief hours and weeks,
do enjambement entre os vv. 1 e 2, pelo acréscimo de But bears it out even to the edge of doom.
outro enjambement violento entre os vv. 2 e 3 e também If this be error, and upon me prov’d,
I never writ, nor no man ever lov’d.
por uma sintaxe marcada por inversões — se bem que
justamente no primeiro verso, caracterizado por uma
WS
forte inversão sintática no original, os termos sintáticos
144 145

União de duas almas. Não amor Se a tradução de Barroso tem ritmo sáfico, na
É o que encontrando alterações se altera
de Wanderley predomina o heroico: há um único verso
Ou diminui se o atinge o desamor.
sáfico, um martelo-agalopado e três jambos neutros.
Oh, não! amor é ponto assaz constante
Que ileso os bravos temporais defronta.
O ritmo é ainda mais regular aqui: o contrato métrico
É a estrela guia do baixel errante,
se define logo nos primeiros versos, ao contrário do
De brilho certo, mas valor sem conta. que ocorre em Shakespeare e na tradução de Barroso;
O Amor não é jogral do Tempo, embora só no início dos vv. 5 e 14 temos quebras no metro, e
Em seu declínio os lábios nos entorte. embora haja também enjambements entre os vv. 1–2
O Amor não muda com o dia e a hora, e 2–3 (além de outro nos vv. 10–11), o primeiro é bem
Mas persevera ao limiar da Morte. mais suave do que o que aparece no mesmo lugar na
E, se se prova que num erro estou, tradução de Barroso. Por outro lado, Wanderley — ao
Nunca fiz versos nem jamais se amou.
contrário de Barroso — inclui uma inversão sintática no
primeiro verso, tal como no original, e outra no v. 9. Não
IB
obstante, principalmente por efeito da regularidade
Passemos à tradução de Jorge Wanderley: métrica, sua versão tem um tom bem menos veemente
que o original; estamos mais diante de um debate in-
telectual do que de uma explosão passional. Coerente
Ao casamento de almas verdadeiras - - - / - / - - - / - H 4-6-10
com suas opções métricas, Wanderley elimina o pon-
Não haja oposição. Não é amor - / - - - / || - / - / H 2-6-8-10
O que muda à mudança mais ligeira - - / - - / - / - / - M 3-6-8-10
to-de-exclamação do v. 5. Nesta ponderação equilibra-
Ou, desertando, cede ao desertor. - || - - / - || / - - - / H 4-6-10
da das qualidades do amor, não há lugar para arroubos
5 Oh, não, que amor é marca muito firme / || / || - / - / - / - / - J 1-2-4-6-8-10 exclamativos.
E nem a tempestade o desbarata; - / - - - / - - - / - H 2-6-10 Comparemos o original e o texto de Wanderley
É estrela para a nau, que o rumo afirme, - / - - - / || - / - / - H 2-6-8-10 assinalando as principais inversões sintáticas:
Valor ignoto — mas na altura, exata. - / - / - || - - / - / - S 2-4-8-10
Não é do Tempo mera extravagância, - / - / - / - - - / - H 2-4-6-10 Let me not to the marriage of true minds
10 Amor, embora a foice roube o riso - / || - / - / - / - / - J 2-4-6-8-10 Admit impediments. Love is not love
À face e ao lábio rosa; na constância, - / - / - / - || - - / - H 2-4-6-10 Which alters when it alteration finds,
Resiste até o Dia do Juízo. - / - / - / - - - / - H 2-4-6-10 Or bends with the remover to remove:
Se há erro nisto e assim me for provado, - / - / - / - / - / - J 2-4-6-8-10 O, no! it is an ever-fixèd mark,
Nunca escrevi, ninguém terá amado. / - - / || - / - / - / - H 1-4-6-8-10 That looks on tempests and is never shaken;
It is the star to every wandering bark,
Whose worth’s unknown, although his height be taken.
146 147

Love ’s not Time’s fool, though rosy lips and cheeks do caráter absoluto do amor, na versão de Barroso a
Within his bending sickle’s compass come;
veemência do tom é suavizada, e na de Wanderley a
Love alters not with his brief hours and weeks,
atenuação do envolvimento emocional é ainda mais
But bears it out even to the edge of doom.
If this be error, and upon me prov’d,
perceptível. Creio que essa atenuação não se deve à
I never writ, nor no man ever lov’d.
imperícia dos tradutores, ambos mestres de seu ofício;
a meu ver, trata-se de uma tendência, observada em
WS muitas traduções, no sentido de normalizar, aparar
Ao casamento de almas verdadeiras arestas e aproximar-se de uma norma linguística ou
Não haja oposição. Não é amor estilística, mesmo nos casos em que as irregularidades
O que muda à mudança mais ligeira do texto são na verdade funcionais. Todo tradutor
Ou, desertando, cede ao desertor. literário terá sentido essa tendência em seu próprio
Oh, não, que amor é marca muito firme trabalho; e nem sempre conseguimos resistir a ela.
E nem a tempestade o desbarata;
É estrela para a nau, que o rumo afirme, Referências
Valor ignoto — mas na altura, exata.
ALI, Manuel Said. “Classificação dos versos”, “Contagem das sílabas”, “Rit-
Não é do Tempo mera extravagância, mo”, “Sílabas fortes e sílabas fracas” e “Cesura”. In Versificação portuguesa.
Amor, embora a foice roube o riso São Paulo, EDUSP, 1999 [1948].
À face e ao lábio rosa; na constância, BILAC, Olavo, & GUIMARAENS PASSOS. Tratado de metrificação. Rio de
Janeiro, Francisco Alves, 1949 [1905].
Resiste até o Dia do Juízo.
CASTILHO, Antonio Feliciano de. Tratado de metrificação portugueza. Lis-
Se há erro nisto e assim me for provado, boa, Casa dos Editores, 1858.
Nunca escrevi, ninguém terá amado. CAVALCANTI PROENÇA, Manoel. “Introdução”, “Célula métrica”, “Acento
tônico”e “Cesura”. In Ritmo e poesia. Rio de Janeiro, Organização Simões,
1955.
JW
CHOCIAY, Rogério. “Receita e realização dos versos”, “Andamento dos ver-
sos” e “Tipologia dos versos”. In Teoria do verso. São Paulo, McGraw-Hill
É importante salientar que nas análises acima do Brasil, 1974.
não se fez justiça às duas traduções, aliás excelentes, FUSSELL, Paul. Poetic meter and poetic form. Ed. revista. Nova York, Mc-
na medida em que foram deixados de lado muitos Graw-Hill, 1979.
SHAKESPEARE, William. Sonetos. Trad. e notas de Jorge Wanderley. Rio de
aspectos importantes. A discussão se concentrou num Janeiro, Civilização Brasileira, 1991.
único ponto: a relativa suavidade rítmica das traduções __________. 42 sonetos. Trad. de Ivo Barroso. [4ª ed..] Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 2005.
em comparação com o original, cuja métrica é muito
irregular, principalmente nos versos iniciais. Por esse
motivo, se em Shakespeare temos uma defesa passional
148 149

PARA UMA AVALIAÇÃO MAIS OBJETIVA DAS ir para o português um determinado verso inglês com
TRADUÇÕES DE POESIA* uma pauta acentual que podemos representar como se
segue (onde “-” representa uma sílaba átona e “/ ” uma
sílaba com acento primário, e “|” é o separador de pés):
A avaliação de uma tradução de poesia é uma
tarefa complexa e delicada. Temos consciência de que - / | - / | -/ | - - | / /
o texto poético trabalha com a linguagem em todos os
seus níveis — semânticos, sintáticos, fonéticos, rítmicos, Temos aqui um verso em pentâmetro jâmbico com
entre outros. Idealmente, o poema deve articular todos duas irregularidades: o quarto pé é pirríquio e o quinto
esses níveis, ou pelo menos vários deles, no sentido é espondaico. Numa primeira acepção da expressão
de chegar a um determinado conjunto harmônico de “corresponder”, um verso português correspondente
efeitos poéticos. A tarefa do tradutor de poesia será, a esse verso inglês teria de ser precisamente um
pois, a de recriar, utilizando os recursos da língua-me- decassílabo com acento na 2a, 4a, 6a, 9a e 10a sílabas.1
ta, os efeitos de sentido e forma do original — ou, ao Esta seria a acepção mais “forte” da expressão “o verso
menos, uma boa parte deles. Meu objetivo no presente A corresponde ao verso B”, porque se daria no nível mais
trabalho é esboçar uma metodologia para a avaliação próximo da realidade fônica do verso. Se enfraquecermos
da tradução poética, examinando de modo sistemático um pouco a acepção de “corresponder”, diríamos que
os diferentes níveis da linguagem envolvidos no poe- qualquer decassílabo de ritmo predominantemente
ma. Para isso, torna-se necessário definir de modo mais jâmbico no português corresponde a qualquer
preciso o que queremos dizer quando afirmamos que decassílabo predominantemente jâmbico no inglês.
um determinado elemento de um poema traduzido Saltando para um nível ainda mais alto de generalidade,
corresponde a um determinado elemento de um poe- qualquer decassílabo do português corresponderia a
ma original. qualquer pentâmetro do inglês. Mas podemos ter uma
Podemos entender o conceito de “corre- correspondência ainda mais fraca: se considerarmos
spondência” em diversos níveis de exatidão. Vejamos que o pentâmetro é um metro relativamente longo no
um exemplo métrico. Digamos que eu queira traduz- inglês — em oposição ao trímetro, por exemplo — e
que o decassílabo e o alexandrino no português são
* Agradeço as críticas e sugestões dos professores Márcia A. P. Martins e Victor Hugo Adler Pereira.
Há aqui uma simplificação, pois ao pressupormos que um pé jâmbico do inglês corresponde a duas sílabas em
metros relativamente longos — em comparação com
português brasileiro não levamos em conta as diferenças entre os sistemas métricos dos dois idiomas, em particular os hexassílabos e heptassílabos — poderíamos dizer
os papéis desempenhados em cada um pela sílaba e pelo acento. Tampouco consideramos o fato importante de
que determinados metros do inglês podem corresponder funcionalmente a metros portugueses formalmente que um alexandrino em português corresponde a um
diferentes. V., por exemplo, Britto (2000), onde defendo que o metro da balada inglesa — usado na poesia narrativa
popular — tem como melhor equivalente em português a redondilha maior do cordel nordestino. pentâmetro inglês, na medida em que ambos são
150 151

“versos longos”. Podemos esquematizar o que foi dito exata entre a configuração acentual do original e a da
até agora assim: tradução, de modo que mesmo a passagem para o se-
  gundo nível de generalidade poderá ser considerada
- / | - / | - / | - - | / / - / - / - / - - / / uma perda muito grande. Por outro lado, num poema
pentâmetro jâmbico decassílabo jâmbico em verso livre uma correspondência em sentido mais
pentâmetro decassílabo
fraco poderá ser perfeitamente aceitável.
verso longo verso longo
Podemos aplicar o mesmo esquema aos outros
elementos da forma, e também do conteúdo semân-
Na primeira linha, temos o caso do sentido tico do poema. É o que veremos na análise de minha
mais forte de “correspondência”: a um determinado tradução do poema “The shampoo”, de Elizabeth Bish-
padrão de acentuação no inglês fazemos corresponder op. Comecemos com o texto original:2
uma idêntica configuração de sílabas tônicas e átonas
no português. No segundo, temos versos que seguem
o mesmo ritmo geral, mas sem a exigência de que as
THE SHAMPOO
inversões que ocorrem no inglês correspondam ponto
a ponto às irregularidades da tradução. No terceiro
The still explosions on the rocks,
nível, limitamo-nos a fazer corresponder o número de the lichens, grow
sílabas; no quarto, trabalhamos apenas com a noção by spreading, gray, concentric shocks.
mais vaga de “verso longo” em oposição a “verso They have arranged
curto”. Podemos agora entender de modo mais preciso to meet the rings around the moon, although
a noção de perda na tradução poética: quanto mais within our memories they have not changed.
fraca a acepção de correspondência — ou seja, quanto
mais alto o nível de generalidade em que ela se dá — And since the heavens will attend
maior a perda. No exemplo acima, haverá mais perda as long on us,
you’ve been, dear friend,
se eu traduzir o verso original por um alexandrino do
precipitate and pragmatical;
que se eu traduzi-lo por um decassílabo qualquer, por
and look what happens. For Time is
exemplo. nothing if not amenable.
Na avaliação do grau de perda, porém, o nível
de generalidade não é o único fator a ser levado em
conta. No caso de uma tradução de letra de música,
Extraído de Bishop (1991).
a prosódia musical pede uma correspondência quase
2
152 153

Examinemos a tabela. À esquerda, temos o


The shooting stars in your black hair
poema em si, com os acentos primários (/) e secundários
in bright formation
(\) assinalados. Na primeira coluna à direita do texto,
are flocking where,
so straight, so soon?
temos o esquema de rimas. Na segunda coluna,
— Come, let me wash it in this big tin basin,
representamos na linha superior, em itálico, o número
battered and shiny like the moon. de acentos (identificado, para os fins deste trabalho,
com o número de pés); e, na inferior, em redondo, o
Examinemos a forma de “The shampoo”. número de sílabas do verso. Na terceira assinalamos se
O poema tem três estrofes de seis versos. Há uma o verso é longo (L) ou curto (C). As duas últimas colunas
estrutura rímica bem definida: rimam os versos 1 e 3, da tabela resumem elementos ainda não mencionados:
2 e 5, 4 e 6 em cada estrofe. A fórmula da rima é, pois, na penúltima temos as repetições de fonemas que não
abacbc, dedfef e ghgihi. Na maioria dos casos a rima se incluem na pauta da rima — no caso, aliterações. Por
é perfeita, mas temos também algumas rimas apenas fim, na última coluna teríamos que listar os elementos
aproximadas, como as que vemos na segunda estrofe semânticos do texto, para depois compará-los com
entre os versos 2 e 5 (us – is) e 4 e 6 (pragmatical – os da tradução; porém não haveria espaço na página.
amenable), e também na terceira estrofe, entre os versos Assim, por questões de espaço, vamos nos limitar
2 e 5 (formation – basin). A estrutura rítmica é menos neste trabalho a examinar mais detidamente apenas
regular que a das rimas, porém não chega a ser de todo os elementos formais do poema. A título de ilustração,
livre. Nas três estrofes temos versos mais longos e versos examinaremos sob o aspecto semântico os três
mais curtos. Os longos têm de 4 a 5 pés; sendo o ritmo primeiros versos da primeira estrofe e uma passagem
predominante o jâmbico, isto quer dizer que os versos da segunda.
longos oscilam de 8 a 10 sílabas. Já os versos curtos Na tradução do poema, deveremos tentar
têm sempre dois pés, o que equivale a quatro sílabas. preservar aqueles elementos que apresentam maior
A distribuição de versos curtos e longos é variável; as regularidade no original, já que eles serão possivel-
únicas constantes são a presença de versos longos nas mente os mais conspícuos na língua original. Assim, o
posições 1, 5 e 6 de cada estrofe; os versos que ocupam esquema de rimas — o elemento poético mais regular
a segunda, terceira e quarta posições podem ser longos — deverá ser recriado na tradução. Como a métrica não
ou curtos. Podemos resumir as estruturas das estrofes, é rigorosa, pode não ser necessário reproduzir com per-
onde L representa “verso longo” e C, “verso curto”, na feição a configuração acentual dos versos, mas parece
fórmula LCLCLL, LCCLLL e LCCCLL. Todos esses dados importante conservar a oposição entre versos longos
são resumidos na primeira tabela do apêndice. e versos curtos. Quanto às aliterações, elas parecem
154 155

ser mais significativas na primeira estrofe; na segunda E como o céu há de nos dar guarida
enquanto isso não se der,
o recurso é pouco utilizado, e ele volta a ganhar im-
você há de convir, amiga,
portância nos dois últimos versos da terceira estrofe.
que se precipitou;
Por fim, na última coluna ressaltamos um único efeito e eis no que dá. Porque o Tempo é,
poético trabalhado no nível do léxico, destacando uma mais que tudo, contemporizador.
passagem da segunda estrofe em que Bishop se vale
de um recurso muito explorado na poesia de língua in- No teu cabelo negro brilham estrelas
glesa: o contraste entre o vocabulário germânico, tipi- cadentes, arredias.
camente formado por palavras curtas, monossilábicas Para onde irão elas
ou dissilábicas, de significado concreto e conhecidas tão cedo, resolutas?
por qualquer falante, e o vocabulário de origem latina, — Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nesta bacia
amassada e brilhante como a lua.
constituído por termos polissilábicos, abstratos e mais
“difíceis”. Após três versos onde predominam as pa- Examinemos em primeiro lugar os elementos
lavras germânicas, as palavras latinas “precipitate and da forma, esquematizados na segunda tabela.4
pragmatical” se destacam: duras, cheias de oclusivas, Comecemos com os mais regulares dentre eles. Com
semanticamente muito abstratas, totalmente prosaicas; relação à rima, foi possível reproduzir o esquema
o efeito de humor deste verso é enfatizado pela rima do original, porém com um número bem maior de
forçada com amenable no final da estrofe. Claramente, rimas imperfeitas: em inglês, dos nove pares rimados
esta passagem constitui um efeito calculado pela poe- apenas três não rimam perfeitamente (rimas e, f e h);
ta, que seria importante reproduzir no português. no português, pelo contrário, temos apenas dois pares
Examinemos agora a tradução do poema:3 de rimas perfeitas (a e c). Tentemos medir o grau de
O BANHO DE XAMPU
perda que ocorreu na tradução das rimas. O que seria o
sentido mais forte de “corresponder” no caso da rima?
Os líquens — silenciosas explosões Digamos que seria ter em português o mesmo esquema
nas pedras — crescem e engordam, de rimas, correspondendo a cada rima exata no original
concêntricas, cinzentas concussões. uma rima exata na tradução, a cada rima imperfeita
Têm um encontro marcado uma rima imperfeita, e assim por diante.5 Neste nível,
com os halos ao redor da lua, embora
4
Quanto à atribuição de acentos primários e secundários na poesia em português brasileiro, sigo em
até o momento nada tenha mudado. linhas gerais a orientação de Cavalcanti Proença (1955).
5
A rigor, o sentido mais forte imaginável de “correspondência” seria a utilização no português dos
mesmos sons ocorridos no inglês: assim, a rima a, [cks], teria que reaparecer na posição a em portu-
guês. Mas como a fonologia do português não é a mesma que a do inglês, essa primeira possibili-
3
Extraída de Bishop (2001).
dade é descartada de saída.
156 157

minha tradução não apresenta correspondência com hexassílabo em vez do tetrassílabo. Temos um único
o original. Portanto, subamos para o nível seguinte de verso com mais de 10 sílabas — um hendecassílabo —
generalidade: apenas o esquema geral é observado; ou como penúltimo verso da última estrofe, lugar onde
seja, o esquema abacbc, dedfef e ghgihi do original. no original aparece também um verso de 11 sílabas.
Aqui, no segundo nível de generalidade, a tradução Consegui reproduzir com exatidão a alternância
corresponde de modo bastante fiel ao original. de versos longos e curtos na primeira e na terceira
Podemos imaginar uma tradução em que só se tentasse estrofes: LCLCLL e LCCCLL, respectivamente. Apenas
reproduzir as rimas a e c, ou mesmo só a c; teríamos na segunda estrofe a correspondência não foi exata: em
então perdas progressivamente maiores, culminando vez do esquema LCCLLL do original temos na tradução
com uma tradução em versos não rimados. LLLCLL. Temos, pois, uma correspondência razoável no
Podemos resumir essas observações no quadro quarto nível, considerado o nível mais baixo relevante
abaixo, em que a minha tradução corresponde ao se- para este poema em particular. O diagrama da página
gundo nível. 147 resume os diferentes níveis em que se poderia
abcab’c (a, c: rimas consoantes; abcab’c (a, c: rimas consoantes; trabalhar o primeiro verso da última estrofe. Podemos
b: rima toante) b: rima toante) repeti-lo aqui:
abcabc abcabc - / | - / | - / | - - | / / - / - / - / - - / /
a(b)ca(b)c abcadc pentâmetro jâmbico decassílabo jâmbico
(ab)c(ab)c abcdec pentâmetro decassílabo
(abcabc) abcdef verso longo verso longo
Quanto à métrica, já observamos que o original Passemos à terceira coluna do esquema. Aqui
não obedece um padrão estrito, motivo pelo qual não não houve nenhuma intenção consciente de reproduzir
se tentou a correspondência nos três primeiros níveis as aliterações, já que no português a aliteração é
— a saber, correspondência exata da configuração recurso muito menos comum do que no inglês; neste
acentual, correspondência do padrão rítmico geral, quesito seria, portanto, difícil estabelecer níveis de
e correspondência no número de sílabas. Aqui correspondência. Eis um caso em que o tipo de análise
considerou-se suficiente uma correspondência de aqui proposta encontra dificuldades: o caso em que
quarto nível, que reproduzisse a distribuição de versos o recurso poético usado na língua-fonte inexiste —
longos e versos curtos. Foram utilizados o octossílabo ou existe em grau ou em modo muito diferente —
e o decassílabo como versos longos, mas — como no na língua-meta. Também dificulta o cotejo o fato de
português as palavras tendem a ser mais longas do a aliteração não ser empregada de modo regular e
que no inglês — empregou-se como verso curto o
158 159

sistemático no original. De qualquer modo, constatei nível imediatamente superior, vejamos se o conteúdo
que encontramos na tradução um acúmulo de sibilantes lexical do original está ao menos aproximadamente
nos três primeiros versos da primeira estrofe, tal como reconstruído na tradução, dando importância maior
no original, e, nos últimos versos, algumas aliterações aos elementos mais centrais — substantivos e verbos
em [b], [s] e [l] que de algum modo correspondem às — depois examinando os adjetivos e advérbios, e
aliterações em [b], [S], [l] do original. Este resultado, é analisando por fim a estrutura sintática, a ordenação
bom ressaltar, foi fruto do acaso ou do inconsciente. dos itens lexicais etc. Nos três versos em questão, os
Igualmente fortuita foi a concentração de assonâncias elementos centrais seriam os nomes explosions, rocks,
em [e] na última estrofe, particularmente no primeiro lichens, shocks e os verbos grow e spreading. Em
verso, que não corresponde a nenhum efeito análogo português, teríamos “explosões”, “pedras”, “líquens”,
no original. (Podemos encarar estas assonâncias como “concussões”, “crescem e engordam”. A taxa de
uma espécie de compensação para as perdas ocorridas correspondência é bastante alta; apenas a tradução do
nos outros níveis: um efeito criado em português verbo spread se afasta da literalidade. Com relação aos
para compensar o que não foi possível recriar a partir adjetivos, teríamos still, gray e concentric traduzidos
do original). Não tentaremos, pois, estabelecer uma como “silenciosas”, “cinzentas” e “concêntricas”, uma
distinção de níveis aqui. correspondência bem próxima à literalidade. Quanto à
Neste trabalho não examinaremos de modo sintaxe, verificamos que a estrutura do original sofreu
mais aprofundado os elementos sintáticos, semânti- uma mudança: se no original The still explosions on the
cos e lexicais. Por considerações de espaço, como já rocks é o sujeito e the lichens é aposto, no português
dissemos, vamos apenas esboçar a discussão dos três houve uma inversão dessas posições. Por outro lado,
primeiros versos, e em seguida analisaremos o uso de a estrutura geral — sujeito, aposto, predicado — foi
termos de origem latina na segunda estrofe, menciona- mantida. Há também uma diferença entre começar
do acima. Comecemos com os três versos iniciais: o poema com as “explosões” e depois identificá-las
como “líquens” e — como está na tradução — primeiro
The still explosions on the rocks, Os líquens — silenciosas explosões mencionar os “líquens” para depois vê-los como
the lichens, grow nas pedras — crescem e engordam, “explosões”. Também a sintaxe de grow by spreading
by spreading gray, concentric shocks. concêntricas, cinzentas concussões.
foi alterada para “crescem e engordam”. Quanto
à pontuação, duas das vírgulas foram substituídas
O nível primeiro de correspondência seria, por travessões. Podemos dizer, pois, que quanto ao
evidentemente, uma tradução literal, o que raramente aspecto semântico, nos três primeiros versos o grau de
é possível em tradução poética. Passando para o correspondência é razoavelmente elevado.
160 161

Por fim, vejamos a tradução do recurso versos). Temos aqui, talvez, a perda mais séria ocorrida
semântico do original mais difícil de reproduzir em toda a tradução do poema, na medida em que o nível
no português: o acúmulo de palavras de origem de generalidade em que foi feita a correspondência é
latina, mais longas, de uso menos comum e pouco muito alto. Podemos contabilizar também como perda
eufônicas, na segunda estrofe. Aqui, mais uma vez, o fato de um efeito conspícuo — a presença de palavras
seria impossível estabelecer uma correspondência latinas muito pouco eufônicas — ser substituído por
de primeiro nível, pois o português é uma língua de algo bem mais sutil — efeitos de eco que talvez só sejam
vocabulário predominantemente latino, em que não percebidos por leitores atentos. Podemos esquematizar
podemos contrastar palavras não-latinas com termos essa discussão na tabela abaixo:
latinos. Saltando para o nível imediatamente superior,
efeito lexical:
teríamos não mais o contraste germânico-latino, e sim _________
termos germânicos vs. termos latinos
o que é implicado por ele: o contraste entre vocabulário efeito lexical: efeito lexical:
cotidiano e palavras restritas a um contexto mais formal. vocabulário cotidiano vs. vocabulário item do português coloquial vs.
Seria esse, talvez, o nível mais baixo de generalidade mais rebuscado item do português formal
possível na tradução do inglês para o português; o efeito lexical:
efeito lexical:
português nos oferece grandes possibilidades de contraste entre dois subconjuntos do
contraste entre dois subconjuntos
contraste entre palavras restritas à fala coloquial e do léxico léxico
outras que só aparecem em contextos formais. No efeito lexical efeito lexical: jogo de palavras
entanto, não consegui encontrar uma solução neste
nível de generalidade. O nível seguinte seria talvez Tentemos resumir o que foi visto aqui.
contrastar um subconjunto qualquer do léxico com um Ao avaliar uma tradução, temos que, em pri-
outro subconjunto diferente. Mas também não foi neste meiro lugar, determinar quais os elementos formais e
nível que encontrei uma solução. A tradução proposta semânticos do original. Ao comparar cada um deles
para esta passagem se situa num nível ainda mais geral, com sua contraparte na tradução, precisamos utilizar os
o que considera apenas a categoria genérica do recurso conceitos antitéticos de “correspondência” e “perda”;
utilizado: a classe de recursos que atuam no nível lexical quanto maior a correspondência entre um elemento
e não no fonético ou no sintático. Foi neste nível, bem do original e sua contraparte na tradução, menor terá
geral, que tentei compensar o recurso não reproduzido sido a perda. Definimos esses conceitos a partir de uma
com a utilização de dois discretos jogos de palavras: os visão de níveis de correspondência: quanto maior a cor-
efeitos de eco entre “dar”, “der” e “dá” (1o, 2o e 5o respondência ponto a ponto entre os componentes de
versos), e entre “tempo” e “contemporizador” (5o e 6o um dado elemento do original e os componentes de
163

sua contraparte na tradução, menor terá sido a perda.


Porém, antes que possamos avaliar o grau de perda, é
preciso levar em conta alguns fatores adicionais:
(1) Até que ponto o item em questão é relevante
no original? No caso analisado, vimos que a estrutura
métrica do original apresenta regularidades, mas não
chega a ser rigorosa. Concluímos que a contagem estri-
ta de pés ou sílabas não seria relevante aqui, e que seria
suficiente trabalhar com os elementos “verso longo” e
“verso curto”.
(2) Até que ponto é possível o grau máximo de
correspondência? Quando não houver na língua-meta
elementos correspondentes aos itens trabalhados
no original, a exigência de correspondência terá que
ser afrouxada. Foi o que se deu aqui com o contraste
estabelecido no original entre vocabulário latino e
vocabulário germânico.
(3) Até que ponto uma correspondência exata
seria de fato desejável? Pode haver casos em que seja
necessário utilizar uma correspondência funcional e
não formal. Este ponto, que me parece muito impor-
tante, não foi discutido aqui. Para um exemplo, remeto
o leitor à referência bibliográfica da nota 1 do presente
Referências
trabalho.
O método proposto é um esboço, em que muitos BISHOP, Elizabeth (1991). The complete poems: 1927-1979. Nova York, Far-
detalhes ainda precisam ser elaborados. Mas creio que rar, Straus and Giroux.
__________. (2001). O iceberg imaginário e outros poemas. Seleção, tradução
temos aqui um caminho promissor no sentido de chegar e estudo crítico de Paulo Henriques Britto. São Paulo, Companhia das Letras.
a uma avaliação menos subjetivista das traduções BRITTO, Paulo H. (2000). “Uma forma humilde”. Jornal de Resenhas, no 60,
Folha de São Paulo, 11 de março.
poéticas, que trabalhe com dados mais objetivos e CAVALCANTI PROENÇA, Manoel. (1955) Ritmo e poesia. Rio de Janeiro, Or-
permita quantificar os juízos de valor expressos através ganização Simões.
de conceitos como “correspondência” e “perda”.
164 165

/ \ / /
APÊNDICE Os líquens — silenciosas explosões a 4
10 L S, s, z
/ / \ / 4
a L / / / 3
The still explosions on the rocks, 8 s , Z, z
nas pedras — crescem e engordam, b 6 C S, k, s, g
/ / 2
b C / \ / \ / 5
the lichens, grow 4 z, g, r
concêntricas, cinzentas concussões. a 10 L k, s, S,
/ / / / 4
a L / / / 3
by spreading gray, concentric shocks. 8 s, g, k, r
Têm um encontro marcado c 6 C t, k, d
/ / 2
c C / / / / 4
They have arranged 4 r
com os halos ao redor da lua, embora b 10 L k, l, d
/ / / / / 5
b L 5
to meet the rings around the moon, although 10 m, r, ð
/ / / / / c 10 L t, m, n, d
/ / \ / / 5
c L até o momento nada tenha mudado.
within our memories they have not changed. 10 ð, m, r
5
d 10 L k, d
/ / \ / 4
d L \ / \ / / 4
And since the heavens will attend 8
E como o céu há de nos dar guarida e 8 L k, d dar
/ / 2
e C \ / / / 3
as long on us, 4
enquanto isso não se der, d 8 L k der
/ / 2
d C / / / 3
you’ve been, dear friend, 4
você há de convir, amiga, f 6 C k, p, t
/ \ / \ 4
f L \ / / 4
precipitate and pragmatical; 9 p, t precipitate,
pragmatical que se precipitou; e 8 L k, d, p, t
/ / / 3
e L / / / / 4
and look what happens. For Time is 8 t
e eis no que dá. Porque o Tempo é, f 10 L k, t, d, dá tempo
/ / / \ 4
f L amenable / / \ /
nothing if not amenable. 8 n
mais que tudo, contemporizador. 5 contemporizador
g 10 L e
/ / / / 4
g L / / / / / 3
The shooting stars in your black hair 8 b
No teu cabelo negro brilham estrelas h 6 C e
/ / 2
h C / \ / 3
in bright formation 5 b, f
cadentes, arredias. g 6 C
/ / 2
g C / / / 3
are flocking where, 4 f
Para onde irão elas i 6 C e
/ / 2
i C \ / / 5
so straight, so soon? 4 s
tão cedo, resolutas? h 11 L e, v, l, b, s
/ \ / / / / 6
h L / \ / / / 4
— Come, let me wash it in this big tin basin, 11 l, S, b
— Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nesta bacia i 10 L s, b, ly, l
/ / \ / 4
battered and shiny like the moon. i 8 L b, S, l
/ / \ /
amassada e brilhante como a lua.
i
Usaremos os seguintes símbolos: - para representar o tempo fraco, / o acento
primário, \ o acento secundário e || a pausa.
Que ele chama de “verso de onze sílabas”, por não aceitar a galicização da prosódia
ii

poética portuguesa promovida por Castilho.


Paulo Henriques Britto Entrevista foi composto nas
fontes Avenir e Copperplate, impresso sobre os pa-
péis Supremo 250 gramas e Avena 80 gramas, com ti-
ragem de 500 exemplares para a Editora Medusa, em
Curitiba, Paraná, Brasil, na primavera de 2019.

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