Apostila Projeto Brincar Materiais Inclusivos 17 MB
Apostila Projeto Brincar Materiais Inclusivos 17 MB
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CADERNO
VOLUME 1
BRINCAR VOLUME 1
Propostas de reflexão sobre brincadeiras e práticas
inclusivas para professores de Educação Infantil
1ª edição
São Paulo
2017
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Agência Brasileira do ISBN - Bibliotecária Priscila Pena Machado CRB-7/6971
ISBN 978-85-907064-1-0
CDD 372.416
Caros educadores,
É com imensa alegria e satisfação que apre- parceria com os setores públicos, privados
sentamos o Caderno de Educação Infantil, e a sociedade civil organizada (organizações
elaborado numa parceria entre a Fundação não governamentais – ONGs) para, conjun-
Volkswagen e a Revista Nova Escola. tamente, implementar projetos que influen-
Este material foi produzido por especia- ciem políticas públicas e que sejam sustentá-
listas e reúne uma ampla abordagem das te- veis a longo prazo.
máticas que devem ser trabalhadas em sala O projeto Brincar acontece da mesma
de aula, como parte do material de formação forma, em parceria com a Mais Diferenças e
do projeto Brincar, que oferece formação com as secretarias municipais ou estaduais
continuada a educadores das redes públicas de Educação das localidades onde é realizado.
de ensino e que acreditam na Educação In- Acreditamos e investimos nos educado-
fantil inclusiva como chave para transfor- res porque trabalhamos para garantir um
mar o mundo. direito que a todos pertence: o de aprender.
O processo educacional é uma fase da vida
que reflete diretamente no comportamento Boa leitura!
futuro de cada indivíduo. É nessa fase que as
pessoas aprendem a lidar com as dificuldades,
obstáculos, limitações e diferenças.
A escola deve se abrir para a diversidade,
acolhê-la, respeitá-la e, acima de tudo, valori-
zá-la como elemento fundamental na consti-
tuição de uma sociedade democrática e justa.
Estamos sempre inovando e buscando
novas formas de contribuir com a educação.
Desde 1979, investimos em projetos de edu-
cação e desenvolvimento social, promoven-
do e realizando ações que contribuam para
a melhoria da qualidade da educação públi-
ca em nosso país e que fomentem o desen-
volvimento social de comunidades de baixa Keli Smaniotti
renda. Nossas atividades são realizadas em Diretora de Administração e Relações Institucionais
SUMÁRIO
6 Brincar é para todos: um
tema em oito abordagens
Tizuko Morchida Kishimoto
20
Infância e diferença
na escola
Maria Teresa Eglér Mantoan
30
Música da Cultura Infantil:
significado e importância
40
Lydia Hortélio
A organização do espaço e
suas relações com o brincar
Maria da Graça Souza Horn
50
Brincar e imaginar: para todo
mundo e para a vida inteira
Maria Walburga dos Santos
e Cleonice M. Tomazzetti
62
Brincar e as tecnologias
na Educação Infantil
Maria do Carmo Kobayashi
e Wagner Antonio Junior
74
A cultura, a brincadeira
e as culturas infantis
Maria Carmen Silveira Barbosa
e Sandra Simonis Richter
88 Formação do brincante
para uma pedagogia lúdica
Mônica Appezzato Pinnaza e Meire Festa
102
Uma cidade que respeita
as diferenças
Maria Salete de Moura Torres
e Daniele Vanessa Klosinski
Brincar é para
todos: um tema em
oito abordagens
Aspectos diferentes da discussão, cada qual em um
artigo, entram na roda para revelar a importância
do brincar na Educação Infantil e para a inclusão.
Especialistas convidados reforçam a necessidade de
escuta das crianças e de formação específica para
enriquecer a teoria e transformar a prática.
6 Fundação Volkswagen
A brincadeira e as intera-
ções são dois eixos que marcam a Educação
Infantil e abrem caminhos para viabilizar a
integração de todas as crianças nas escolas,
dando visibilidade e voz também às da Edu-
cação Especial.
dificultam ou facilitam a produção da cul-
tura lúdica.
A cultura é peculiar às atividades huma-
nas e o brincar, enquanto cultura, é atividade
da criança, uma forma de expressão gerada,
processada e formatada em um tempo par-
Com intenção de colaborar na forma- ticular, conforme menciona Mouritzen, em
ção dos profissionais de Educação Infantil, seu livro Child Culture – Play Culture. Embora
esta publicação destina-se a divulgar o foco crianças e adultos brinquem, aqui se destaca
do brincar como parte das ações de inclu- o brincar na Educação Infantil como direito
são escolar. Neste projeto, em que atuei de todas as crianças, independentemente do
como curadora de oito artigos escritos por sexo, da cor, raça, família, das diferenças e
especialistas, ressaltei concepções que de- diversidades individuais e de contextos fami-
talho ao longo deste texto introdutório. liares, econômicos, sociais e culturais. Esse di-
Entre as principais discussões estão o sig- reito, para ser plenamente exercido, necessita
nificado do brincar para todas as crianças da atenção dos adultos para sua viabilidade.
e o impacto das culturas institucionais, que A pluralidade de concepções veiculadas nos
Caderno Brincar 7
BRINCAR É PARA TODOS: UM TEMA EM OITO ABORDAGENS
contextos educativos construídos pela equi- situações, significa produzir cultura com
pe escolar nem sempre garante esse direito, crianças, na qual os adultos e elas, juntos, fa-
o que nos leva a indagar: “Quais significações zem uso de materiais e produzem artefatos,
sobre a infância e o lúdico prevalecem nas mas aqui nem sempre está presente o lúdico.
escolas de Educação Infantil?”. Crianças da Quando professores/as oferecem materiais
Educação Especial incluídas nas salas têm para produzir objetos ou atividades com jo-
direito à diferença na igualdade dos direitos, gos, com regras postas apenas por adultos, a
como salienta Mantoan em artigo inserido ação lúdica é cerceada. Para alguns, tais ati-
nesta publicação (página 20)? vidades podem ser “jogos”, para outros, es-
Tais questionamentos decorrem das rela- pecialmente para as crianças, elas reduzem-
ções estabelecidas pelas escolas de Educação -se à reprodução das regras definidas pelos
Infantil entre o lúdico e as culturas da infân- adultos, afastando-se do lúdico. Tais signifi-
cia, o que requer a clareza sobre o significado cados requerem o detalhamento do brincar.
de tais relações. Para uns, cultura da infân-
cia significa dar voz às crianças para brin- O significado do brincar na
car. Para outros, representa a produção de Educação Infantil
dramatizações, livros, música, jogos e brin- O brincar para crianças pré-escolares pro-
quedos feitos por adultos destinados aos pe- dutoras de cultura, especialmente aquela
quenos. Mas, nesse último caso, embora re- chamada de cultura de pares, na acepção
levante para a Educação, não se contempla a de William Corsaro, é ponto de partida e de
ação protagonizada pela criança. Em outras chegada. Nessas relações entre os pares sur-
ge a cultura lúdica, que significa imaginar,
expressar, ter o direito ao encantamento, à
exploração, a ser criança, fazer amizades e
também aprender enquanto se brinca.
Dúvidas sobre o binômio brincar/apren-
O brincar na Educação der trazem a indagação: “Aprende-se brincan-
do?” As respostas variam: aprende-se quando
Infantil é um direito se ensina novos jogos e regras diferentes, em
brincadeiras com outros, com música, movi-
de todas as crianças, mentos veiculados pela tradição da infância,
uso de novas tecnologias e meios de comuni-
independentemente do sexo, cação, jogos de regras, brincadeiras imaginá-
rias, de construção, assim como na expressão
da cor, raça, família, das das 100 linguagens, como diria o italiano Loris
Malaguzzi, criador da abordagem pedagógica
diferenças e diversidades de Reggio-Emília. O modelo do ensino-apren-
dizagem, típico do contexto escolar, não é su-
individuais e de contextos ficiente ao brincar pela hegemonia do adulto
e ausência da escuta da criança. Se o desejo é
familiares, econômicos, que os pequenos brinquem, é preciso um am-
biente educativo típico da educação informal,
sociais e culturais. Esse com pouco controle do adulto, que garanta o
protagonismo deles. No entanto, relacionar
direito, para ser plenamente brincar e aprender requer outras reflexões.
O brincar e o aprender têm a mesma raiz.
exercido, necessita da A intenção do sujeito que aprende/brinca
mobiliza a decisão da criança e gera seu pro-
atenção dos adultos tagonismo. É possível potencializar tanto o
aprender como o brincar por meio de con-
para sua viabilidade. textos culturais planejados, construídos com
8 Fundação Volkswagen
espaços, materiais e interações que enrique- terceira via em que o brincar e o aprender,
cem e permitem escolhas e o protagonismo embora distintos, partilham de um elemen-
da criança, além de profissionais bem forma- to comum se dá pelo protagonismo infantil.
dos. Em síntese, o segredo do brincar está na Não se brinca sem tomar decisão e sem pro-
decisão da criança, como diz Brougère, no tagonismo. Da mesma forma, não se aprende
interesse da criança, como aponta Dewey, quando a criança não quer, quando ela não se
na sua ação, como sustenta Piaget, e na situ- envolve. Psicólogos como Piaget, Vygotsky,
ação imaginária, como assegura Vygotsky. Bruner, Leavers, sociólogos como Brougère e
Também se pergunta: “Ou isto ou aquilo? Corsaro e filósofos como Dewey e Wittgens-
Ou o brincar ou o aprender?”, como ques- tein têm, entre tantos conceitos, um ponto
tiona Cecília Meirelles. As crianças querem de concordância: a criança brinca e aprende
o brincar e as escolas o aprender. Buscar a quando quer e se interessa.
Caderno Brincar 9
BRINCAR É PARA TODOS: UM TEMA EM OITO ABORDAGENS
Mas como criar esse ambiente para que Dewey, para os quais do brincar emergem
o envolvimento e o protagonismo da criança interesses e necessidades das crianças que
possam emergir? Essa é tarefa de adultos que podem ser ampliados por meio da investi-
se desnudam da intenção pedagógica desti- gação e de processos reflexivos. Na mesma
nada apenas à aprendizagem de conteúdos direção, Vygotsky propõe que a brincadeira,
escolares esperados e buscam a formação de como ato de decisão da criança para expres-
seres criativos que sabem escolher, criar cul- sar uma situação imaginária, se transforme
tura, que valorizam o imaginário, o protago- na atividade principal da fase pré-escolar.
nismo infantil e a liberdade para se expres- Quando mediada, ela alavanca a aprendiza-
sar. O brincar, como linguagem expressiva, gem e o desenvolvimento infantil. Ações lúdi-
é também mola propulsora para aprendiza- cas, típicas das culturas da infância, surgem
gens significativas. A oposição entre o brin- relacionadas com a aquisição das diferentes
car e o aprender se anula quando há clareza linguagens no processo da emergência do
de que é pelo brincar que se chega a outros letramento, como prática social. É nesse sen-
conhecimentos. tido que as Diretrizes Curriculares Nacionais
Esse é o ponto de partida do filósofo John de Educação Infantil (DCNEI), de 2010, conce-
Dewey e de sua filha, a psicóloga Evelyn bem o brincar como linguagem da criança,
iniciada por ela, como voz da criança porta-
dora de múltiplas linguagens.
Tais linguagens podem ser propiciadas
quando se dispõe de ambientes educativos
com brincadeiras similares às da família e da
comunidade, visando ao fluxo contínuo de
experiências e ao encorajamento da criança
na incorporação de atividades de letramento
da casa para a escola e vice-versa. Pesquisa-
dores americanos que estudam a linguagem
na Educação Infantil como Kathleen Roscos,
professora do Departamento de Educação
e Psicologia Escolar da Universidade John
Carroll, e James Christie, da Universidade do
Estado do Arizona, indicam forte presença
do brincar quando há cenários ou espaços
físicos tematizados que ajudam a criança a
desenvolver habilidades, estratégias, lingua-
gem oral e escrita. Diante de um ambiente
em que liberdade e orientação coexistam, a
criança aprende a tomar decisões alavancan-
do sua própria aprendizagem. Outra contri-
buição do lúdico na linguagem infantil surge
de estudos de Katherine Nelson e Susan Sei-
dman, professoras americanas da Universi-
dade da Cidade de Nova York, que estudam o
mundo social na mente infantil e mostram
como guias mentais complexos construídos
pelas crianças na brincadeira de faz de con-
ta levam à ampliação de narrativas. Os guias
simples têm único roteiro, como ir e voltar
da escola, acompanhados por narrativa cur-
ta. Quando um guia é sempre o mesmo, sem
diferenciação, algo simples que se imita e
10 Fundação Volkswagen
se repete da mesma forma, o brincar pro-
duz prazer, que, embora importante, não é
Muitos perguntam:
suficiente para a educação de crianças pré-
-escolares com potencialidade para avançar
"Aprende-se brincando?"
em suas expressões lúdicas.
Os guias complexos contemplam si-
Para uns, aprende-se
tuações com vários personagens e ações,
produzem diálogos mais ricos e longos,
quando se ensina novos
prolongam-se por vários dias, semanas, com
simbolismos variados criados com uso de
jogos e regras diferentes.
diferentes objetos e que têm impacto na am-
pliação do conhecimento e fazem a diferença
Mas também brincando
na vida da criança do período pré-escolar.
Essa abordagem pode ser ampliada com
com outros, em contextos
o uso da cultura popular, que, por meio de
seus vários objetos, como pôsteres, caixas
de educação informal, em
de lanche, computadores e jogos, acessórios,
livros, pintura no corpo, mobiliário, cartas,
brincadeiras com música,
rádio, alimentos e bebidas, artefatos para
role-play, ritmos, piadas, raps, brinquedos,
uso de tecnologias e meios
música, telefones móveis, roupas, sapatos,
lojas, televisão, vídeos, entre outros, favo-
de comunicação.
recem também a emergência do letramento.
Essa orientação já era apontada pelo peda-
gogo brasileiro Paulo Freire que enfatizava
a relação entre cultura popular, letramento
e escolarização. Em sua cultura popular, a
criança, menino ou menina, aprecia brinca-
deiras com super-heróis e princesas, espa-
das, Pokémon, Xuxa, bonecas, que propiciam
muitas aprendizagens. Os jogos de compu-
tadores, super-heróis e programas Disney,
preferidos pelas crianças, são pouco valo-
rizados pelos adultos, que os consideram de
baixo valor educativo.
Mas a desconstrução dessa visão do adul-
to já se nota em algumas experiências que
afloram nas práticas de professoras de al-
gumas escolas de Educação Infantil em São
Paulo, que, após processos formativos, escu-
tam os pequenos e aceitam o envolvimento
constante deles com brincadeiras de super-
-heróis e princesas e investem na sua amplia-
ção. Partindo dos personagens preferidos
dos meninos, como Homem-Aranha e Super-
-Homem, as crianças investigam heróis da
infância dos familiares (pais, mães, avós) até
chegar aos da mitologia grega, como Aquiles,
dos pés ligeiros, e Poseidon, deus do mar,
portando tridente e acompanhado pelos
golfinhos. Atena, deusa da guerra e da sabe-
Caderno Brincar 11
BRINCAR É PARA TODOS: UM TEMA EM OITO ABORDAGENS
doria, com seu arco e flecha, Artemis, deusa As professoras descobrem, nesse proces-
da caça, e Pégaso, representado pelo cavalo so, que interesses sobre super-heróis e prin-
alado, símbolo da imortalidade, entre outros, cesas se integram aos temas previstos pelo
que encantam meninos e meninas. projeto pedagógico como identidade do eu
As crianças surpreendem pela rápida e do outro, ampliação de diferentes lingua-
compreensão da identidade de cada perso- gens verbais e não verbais, sustentabilidade,
nagem – com seus poderes e adereços – du- acolhimento dos pais, tendo clareza de que a
rante as brincadeiras e a criação de novos educação que parte do brincar e da experiên-
cenários. Nesse processo, planejado com cia da criança leva aos conteúdos propostos
apoio delas, de professoras e familiares, pela escola. Desse modo, meninos e meni-
nota-se a desconstrução de gênero, de me- nas ampliam seus códigos culturais, dando
ninas assumindo personagens dos heróis; maior complexidade à cultura de pares, pela
envolvimento de todos na produção de ce- expressão de novos personagens, com iden-
nários e artefatos; multiplicidade de lingua- tidades que se manifestam na linguagem
gens que expressam saberes nos desenhos e oral, nos gestos, nos enredos e na criação de
nas histórias criadas; domínio do vocabulá- novas versões de histórias dos heróis, dos
rio; culturas corporais com gestualidades monstros e das princesas.
partilhadas pelos novos códigos culturais
assumidos entre crianças; uso de materiais O valor da diversidade e do
que se reciclam na produção de adereços e protagonismo
fantasias; busca da estética nas produções e O direito à diferença se aplica também ao
ética nas ações cotidianas e o prolongamen- brincar, pois cada criança expressa a cultura
to por meses desse processo lúdico e inves- lúdica de forma pessoal. É a singularidade de
tigativo, que dá riqueza e complexidade à cada ser humano que deve ser privilegiada
educação dessas crianças. no ato lúdico. O eixo que move esta publi-
12 Fundação Volkswagen
cação é não enquadrá-las como iguais, mas Em Infância e diferença na escola (página
garantir a expressão livre da identidade de 20), Maria Teresa Eglér Mantoan explicita a
cada criança e valorizar seu protagonismo direção adotada nesta obra e esclarece que a
em pedagogias participativas. No entanto, a palavra diferença utilizada na área da Edu-
cultura peculiar produzida pelas atividades cação Especial pode ampliar a exclusão. A
humanas depende da importância dada ao autora discute o conceito de diferença exem-
brincar. Ela fica visível na análise de currí- plificando como a produção da identidade e
culos e práticas em países com culturas di- da diferença permeia as práticas de inclusão.
versas. Na Educação Infantil japonesa e de Ela ressalta que a singularidade que marca
países nórdicos, privilegiam-se os espaços, a construção da identidade distancia-se da
os materiais e os tempos destinados à edu- categorização do ser humano em oposições
cação informal como potencializadores do como sadio/doente e normal/especial. A pa-
brincar. Culturas mais conteudistas valori- lavra diferença cria armadilhas na esfera da
zam a direção, a orientação e o letramento inclusão, pois especificando e enfatizando
sistemático buscando o enquadramento, a tais diferenças corre-se o risco de excluir.
classificação, a seriação, em atividades di- A oferta de brinquedos considerados por
rigidas e, em muitas situações, iguais, com adultos como adequados apenas para quem é
pouco espaço para o protagonismo infantil. cego ou tem baixa visão, por exemplo, deixa
Esse é o caso dos contextos franceses, chine- de dar oportunidade às crianças de partici-
ses e de várias partes do Brasil. Embora em parem em outras brincadeiras partilhadas
nosso país as DCNEI apontem a brincadeira pelos colegas do grupo.
e as interações como eixo da prática pedagó- Maria Teresa propõe a diferença como
gica na Educação Infantil, além de valorizar contrário do diverso. Ela não é repetição do
a inclusão das crianças da Educação Especial mesmo, está sempre se diferenciando, pois
garantindo-lhes todos os direitos, nem sem- cada criança é singular, é única. A infância
pre os pressupostos curriculares alinham-se
à prática.
Assim como diferentes países adotam
concepções sobre o brincar e educar que são
próprias da cultura, a diversidade de concep-
ções prevalece entre os profissionais da Edu-
cação Infantil no Brasil e isso é visível tam-
bém na cidade de São Paulo, que dispunha O brincar e o aprender têm
de 2.575 unidades de Educação Infantil em
maio de 2016. Essa rede de grandes dimen- a mesma raiz. É possível
sões, espalhada em 13 Diretorias Regionais
de Educação, abriga uma população escolar potencializar tanto um
com perfis culturais e representatividade
geográfica de todo país. Isso provoca impac- como o outro por meio
tos na forma de pensar, agir e brincar. Essa
diversidade no plano dos usuários (crianças de contextos culturais
e familiares) e de seus formadores (professo-
res, gestores e outros) exige o apoio de todos planejados, construídos
na garantia do lúdico.
O desafio, nesta publicação, é a busca de com espaços adequados,
aproximações e pontos de chegada. Deseja-
-se unir o brincar, a infância e a educação materiais e interações que
respeitando direitos à diferença e à igual-
dade. Diante de tais ponderações, apresento enriquecem e permitem
uma síntese de cada artigo que você lerá nas
páginas seguintes. as escolhas das crianças.
Caderno Brincar 13
BRINCAR É PARA TODOS: UM TEMA EM OITO ABORDAGENS
14 Fundação Volkswagen
gente em muitas localidades. De certa forma, (materiais, mobiliário e construções), visto
boa parcela não percebe a especificidade da como terceiro educador para além da família
educação das crianças pequenas, que requer e dos professores. Por tais razões, o espaço fí-
cenários diversos para o florescimento das sico deixa de ser mero espaço para tornar-se
brincadeiras. ambiente educativo, um lugar para criação e
Para garantir a construção desses ce- reconstrução das culturas da infância. E ele
nários e para que eles se transformem em só se torna possível se for planejado, com
lugares de convivência e de produção de apoio das políticas públicas, dos familiares e
culturas infantis, a autora discute o papel da da comunidade para se tornar um lugar que
cultura material, dos objetos, da arquitetura marca a experiência infantil, dialoga com
do edifício, dos lugares criados pelo adulto crianças, traz recordações, segurança ou in-
para propiciar a expressão lúdica. Dewey, no quietações, além de sensações.
início do século 20, já notava a importância O artigo Brincar e imaginar: para todo
do ambiente na educação das crianças. Ló- mundo e para a vida inteira (página 50), escri-
ris Malaguzzi reforçou o valor do ambiente to por Maria Walburga dos Santos e Cleonice
Caderno Brincar 15
BRINCAR É PARA TODOS: UM TEMA EM OITO ABORDAGENS
16 Fundação Volkswagen
mostrar como a tecnologia dos brinquedos
é antiga. Os autores percorrem a história
O direito à diferença se aplica
do brinquedo sustentada pelo historiador
Michel Manson, para o qual as mudanças
também ao brincar, pois cada
ocorrem no plano material e nos conteúdos
veiculados, mas reconhece que as regras do
ser humano expressa a cultura
jogo continuam as mesmas do passado. Gil-
les Brougère usa o termo “ciranda dos jogos”
lúdica de forma pessoal.
evidenciando a permanência e a circulação
dos jogos em formatos e materiais diversos
O eixo que move esta
ao longo da história trazendo conteúdos que
se alteram. Há permanência apenas da essên-
publicação defende garantir a
cia do jogo, ou seja, regras criadas pelos brin-
cantes, crianças ou adultos.
expressão livre da identidade
As tecnologias da informação e da co-
municação do século atual trazem para
de cada uma das crianças e
o cotidiano outros objetos como tablets e
smartphones, que acolhem a diversidade do
valorizar seu protagonismo
conteúdo lúdico acumulado e fazem circular
a tradição das brincadeiras infantis em no-
em pedagogias participativas.
vos formatos, dando sequência à ciranda dos
jogos. A história mostra que, na emergência
de novas tecnologias como o rádio, a televi-
são e os brinquedos eletrônicos, continuam
surgindo inquietações sobre a perda do espa-
ço para a infância entre pais e especialmente
nas escolas de Educação Infantil. Stephen
Kline, na obra Out of Garden alerta para o
perigo de ignorar os conteúdos da cultura de
massa e das tecnologias, que são os recursos
que a criança utiliza para partilhar códigos
culturais de seu tempo.
Na discussão sobre A cultura, a brinca-
deira e as culturas infantis (página 74), con-
duzida no artigo de Maria Carmen Silveira
Barbosa e Sandra Simonis Richter, as autoras
colocam uma questão inicial: “A brincadeira
ocupa espaço na cultura dos adultos ou se
insere na das crianças?”. As autoras discor-
rem sobre o contexto em que predominava a
hegemonia da “grande cultura”, ou “alta cul-
tura”, centrada na visão do adulto. Ao longo
do século 20, outros elementos foram acres-
centados à discussão, gerando a pluralidade
cultural. Nela se inserem os novos estudos
sobre a infância produzidos por especialis-
tas de vários campos do conhecimento, entre
os quais o sociólogo português Sarmento,
que esclarece que o lúdico depende do prota-
gonismo da criança e da escuta de seus pon-
tos de vista.
Caderno Brincar 17
BRINCAR É PARA TODOS: UM TEMA EM OITO ABORDAGENS
18 Fundação Volkswagen
Para falar de Uma cidade que respeita as va, que inclui o brincar e as interações e dá
diferenças (página 102), Maria Salete de Mou- rumos ao trabalho pedagógico.
ra Torres e Daniele Vanessa Klosinski des- O brincar é visto como fundamental em
crevem a realidade que implantou políticas qualquer fase da infância e também para a
públicas relacionadas à inclusão de crianças criança da Educação Especial. Depoimentos
da Educação Especial nas salas da Educação de profissionais da rede municipal indicam
Infantil, na cidade de Erechim, no RS. Partin- que o brincar leva à afirmação do eu, ao res-
do do princípio de Todos na Escola – Respei- peito pelo outro, que é um fazer pedagógico
to às Diferenças, a cidade abraçou o desafio importante para o desenvolvimento da crian-
de criar uma “cidade que respeita a diferen- ça, que promove interações e experiências
ça”. Com uma rede pequena de 15 escolas, oito significativas para todos que têm acesso ao
de Educação Infantil e sete de Ensino Funda- lúdico. Assim como Erechim assumiu a tarefa
mental, o município estruturou a inclusão. O de tornar realidade a política de inclusão no
sucesso da experiência de Erechim segue as ensino público, a mensagem do artigo é mos-
orientações da Política Nacional de Educação trar a viabilidade desse processo para garan-
Especial na perspectiva da Educação Inclusi- tir o direito ao brincar a todas as crianças.
Caderno Brincar 19
20 Fundação Volkswagen
Infância e
diferença
na escola
A inclusão é uma ideia poderosa e desafiadora,
assumida por quem tem o compromisso de
disseminar, em um mundo habituado a modelos
e diferenciações excludentes, a garantia do direito
à diferença, na igualdade de direitos.
MARIA TERESA
EGLÉR MANTOAN
é Pedagoga, doutora em Educação,
professora do Programa de
Pós-graduação em Educação
da Faculdade de Educação da
Universidade de Campinas
(Unicamp) e Coordenadora do
Laboratório de Estudos e Pesquisas
em Ensino e Diferença – Leped/
Unicamp
Caderno Brincar 21
INFÂNCIA E DIFERENÇA NA ESCOLA
22 Fundação Volkswagen
Ocorre que as peculiaridades definem a das crianças! Os manuais, as escalas de de-
pessoa e estão sujeitas a diferenciações con- senvolvimento, as teorias que fundamentam
tínuas. Estamos convencidos e habituados às as práticas educativas estão por toda parte.
formas de representação da diferença, que Os brinquedos escalonados por idade, a in-
são resultantes de comparações e de contras- finidade dos jogos pedagógicos são alguns
tes externos: mais alto do que a maioria; me- itens desse mercado promissor que se criou
nos inteligente que os demais; o mais politiza- em torno do universo infantil. Os filmes, os
do do grupo... Para Nicholas Burbules, autor teatrinhos, as bonecas, os robôs, os jogos ele-
de um capítulo do livro Currículo na Tempo- trônicos, as revistinhas especializadas cons-
ralidade – Incertezas e Desafios, em que se pro- tituem nichos de mercado bem explorados.
põe a apresentar uma gramática da diferença, Móveis, animaizinhos de estimação, salões
essas representações constituem formas de de festa para os aniversários, animadores e
pensar a diferença, como diferença entre. programas de televisão, estilistas, os monito-
Ao se apoiarem no sentido da diferença res de hotéis, acampamentos de férias, cen-
entre, nossas políticas públicas educacionais tros de lazer, as escolinhas de arte, ludotecas
confirmam, em muitos momentos, o projeto estão em alta. Não faltam “marqueteiros”
igualitarista e universalista da Modernida- para tirar proveito do que as crianças são ca-
de, baseado na identidade idealizada e fixa pazes de promover, vender e consumir.
do aluno, do cidadão modelar. Embora já te- Agrupam-se em torno da criança profes-
nhamos avançado muito, desconstruir o sen- sores especializados, psicólogos, médicos,
tido da diferença entre em nossos cenários promotores da infância e seus juizados, tes-
sociais é ainda uma gigantesca tarefa. tes, leis, estatutos, organizações do terceiro
setor, projetos governamentais de saúde,
A infância padronizada educação, serviço social, estudos, teses, pes-
A criança tomou o seu lugar na história e
esse lugar foi alcançado pelo avanço que ti-
vemos no reconhecimento e valorização de
seus direitos na vida familiar, social, cultu-
ral, nas instituições em geral. Ela se tornou
alvo de estudos, objeto de trabalhos que bus- Temos de ter muito cuidado
cam conhecê-la cada vez mais e melhor, seja
pelos que teimam entendê-la nas suas dife- com a armadilha da inclusão:
renças ou pelos que a encaixam facilmente
em um perfil universal e predefinido. conceber e tratar as pessoas
Não é preciso fazer grandes voltas para
constatar o que existe em nosso entorno e que igualmente esconde suas
é determinado especificamente para as crian-
ças, com a boa intenção de torná-las capazes especificidades, porém,
de viver “em conformidade” com as exigên-
cias do seu mundo familiar, social e cultural. enfatizar as suas diferenças
Quanto se conhece e se prediz, hoje, so-
bre os bebês, os primeiros tempos de vida pode excluí-las do mesmo modo!
Caderno Brincar 23
INFÂNCIA E DIFERENÇA NA ESCOLA
nos tratados psicológicos, em seu livro Direitos das Pessoas com Defici-
ência: Garantia de Igualdade na Diversidade
pedagógicos e nos autores que um teste, por mais disfarçado que seja,
pode ser percebido pela criança e, se ela não
24 Fundação Volkswagen
as crianças são a novidade, a contradição. E Quando se abstrai a diferença para se che-
que precisam ser estranhas ao que conhece- gar a um sujeito universal, a inclusão perde
mos, para que possam ser reconhecidas, per- o seu sentido. Mais um motivo para se fir-
cebidas como uma renovação, uma recriação mar a necessidade de repensar e de romper
do que somos, uma possibilidade de nos res- com o modelo educacional elitista de nossas
significarmos ilimitadamente como sujeitos e escolas, desde as etapas iniciais de ensino, e
como grupo, como advertiu a filósofa Hanna de reconhecer a igualdade de aprender como
Arendt em um dos capítulos de seu livro Entre ponto de partida e as diferenças no aprendi-
o Passado e o Futuro. zado como processo e ponto de chegada.
Como os demais movimentos organiza- Para assegurarmos o direito à educação de
dos por grupos historicamente excluídos um aluno, em qualquer nível de ensino, sem
da escola e da cidadania plena, a inclusão quaisquer exclusões, cabe-nos repensar nos-
escolar se opõe ao que Hanna Arendt chama sas propostas e práticas educacionais. O pri-
de abstrata nudez, em seu livro A Condição meiro passo nessa direção é considerar o aluno
Humana, quando critica a ideia de homem como tal, em suas potencialidades, interesses,
abstrato, vazio, que é próprio das formas mo- e esquecer o ensino que se baseia em um mo-
dernas da igualdade. delo oco, impessoal, padronizado de aprendiz.
Caderno Brincar 25
INFÂNCIA E DIFERENÇA NA ESCOLA
O direito à diferença na
igualdade de direitos
A educação brasileira, na Constituição de
1988, tem como princípio a observância do
direito incondicional e indisponível de to-
dos os alunos à educação e a Convenção In-
ternacional dos Direitos das Pessoas com
Deficiência de 2007, assimilada ao nosso Or-
denamento Jurídico pelo Decreto Legislati-
vo nº 186/2008, corrobora esse direito.
A garantia do acesso e permanência de
todos à escola comum é absolutamente ne-
cessária, mas insuficiente para que a educa-
ção inclusiva se efetive em nossas redes de
ensino. O direito à diferença é determinante
para que sejam cumpridas as exigências des-
sa educação, propiciando a participação dos
alunos no processo escolar geral, na medida
das capacidades de cada um.
Um imperativo da inclusão escolar é
prover a todos os alunos uma educação reve-
ladora de suas diferenças. Combinar igual-
dade e diferenças no processo escolar — da
Educação Infantil ao Ensino Superior — é
uma situação que nos faz andar no fio da na-
valha. No entanto, é condição sem a qual não
se consegue qualificar para melhor os pro-
cessos e práticas pedagógicas para todos os
alunos, como propõe a inclusão.
O sociólogo português Boaventura Santos
defende, em seu livro A Construção Multicul-
tural da Igualdade e da Diferença, que temos o
direito à igualdade, quando as diferenças nos
inferiorizam, e o direito à diferença, quando
a igualdade nos descaracteriza. Essa máxima
reafirma que a diferença não pode ser negada,
desvalorizada, embora implique o conflito, o
dissenso e a imprevisibilidade, a precarieda-
de e a impossibilidade do cálculo e das defini-
ções precisas sobre as pessoas.
Quando nos referimos à igualdade de
direitos à educação, estamos falando de di-
reitos iguais e não de alunos igualados e re-
duzidos a uma identidade que lhes é atribu-
ída: os bons e maus alunos, os repetentes, os
bem-sucedidos, normais, especiais. Quando
defendemos o direito à diferença, estamos
tratando da diferença entre os alunos, que,
mesmo passíveis de serem agrupados por
uma semelhança qualquer, continuam dife-
26 Fundação Volkswagen
rentes entre si, dado que a diferença tem o celebra, não aceita, não nivela, mas questio-
seu sentido adiado, infinitamente. na a diferença! Rejeita o pluralismo entendi-
do como uma incorporação da diferença pela
Diferenciar para incluir mera aceitação, tolerância do outro, sem con-
ou para excluir flitos, sem confronto.
Uma escola para todos cria descontinuidades É possível diferenciar para incluir quan-
na gênese histórica da educação pública bra- do o estudante ou beneficiário de uma ação
sileira, problematizando o seu projeto edu- afirmativa qualquer estiver no gozo do direi-
cativo hegemônico, eurocêntrico e excluden- to de escolha ou não dessa diferenciação. Um
te. Vozes dissonantes têm se pronunciado, exemplo desse direito é o aluno poder optar
problematizando um jogo de poder perver- pelo lugar que ocupará em uma sala de aula,
so, multifacetado e pulverizado nas institui- quando usa cadeira de rodas, sem ser obriga-
ções e nas relações sociais. Apesar de contro- do a se sujeitar à imposição de sentar-se sem-
vérsias, resistências, obstáculos, tais vozes pre à frente de todos, em um lugar especial,
resistem, clamando por um compromisso definido por outrem. Tal opção resguarda o
ético-estético-político, solidário, emancipa- seu direito à igualdade – estudar e comparti-
dor e justo. lhar conhecimentos com os colegas de turma e
A diferença entre, referida anteriormen- o direito à diferença – aquele em que se sente
te, está subjacente à maioria aos entraves melhor para participar das aulas e aprender,
às mudanças propostas pela inclusão. Ve- além, se for o caso, do uso de equipamentos,
lada ou de forma explícita, ao fazermos tecnologias de apoio, recursos outros que lhe
comparações, fixamos padrões desejáveis, sejam necessários. O mesmo pode acontecer
definimos classes e subclasses com base em quando um aluno cego tem à sua escolha um
atributos que não dão conta das pessoas por texto em braile, digitalizado ou disponível em
completo, excluindo-as por fugirem à média audiolivro.
e/ou à norma estabelecida. As pessoas sem- Deslizes que possam ocorrer no entendi-
pre excedem aos atributos que podemos lis- mento dos processos de diferenciação criam
tar para defini-las. problemas e caminhos equivocados para os
O poder que está por detrás dessas com-
parações promove diferenciações para ex-
cluir pessoas e populações, limitando seus
direitos de participação social, de decisão,
de opinar. A diferenciação para incluir,
como saída para enfrentarmos as ciladas
da inclusão, está se impondo aos poucos e Quando se abstrai a
cada vez mais se destacando e promovendo
a inclusão total. Tal processo de diferencia- diferença para se chegar
ção implica a quebra de barreiras físicas,
atitudinais, comunicacionais, que impedem a um sujeito universal,
algumas pessoas em certas situações e cir-
cunstâncias de conviverem, cooperarem, a inclusão perde o seu
estarem com todos, participando, comparti-
lhando com os demais da vida social, esco- sentido. Mais um motivo
lar, familiar, laboral, como sujeitos de direi-
to e de deveres comuns a todos. para se firmar a necessidade
Ao diferenciarmos para incluir, estamos
reconhecendo o sentido multiplicativo e ili- de repensar e de romper
mitado da diferença, que vaza e não permite
contenções, porque está se diferenciando com o modelo educacional
sempre, em cada sujeito. Essa forma de dife-
renciação é fluida e bem-vinda, porque não elitista de nossas escolas.
Caderno Brincar 27
INFÂNCIA E DIFERENÇA NA ESCOLA
28 Fundação Volkswagen
pedagogia que não cai nas armadilhas da Referências
diferença, propomos que a incumbência de ARENDT, Hanna. Entre o Passado e o Futuro.
“customizar” o ensino seja do aluno e não do Trad. Mauro W. B de Almeida. São Paulo:
professor. Diante de um conteúdo que pode Editora Perspectiva , 1997.
explorar, sem o controle externo da verdade, ARENDT, Hanna. A Condição Humana. Trad.
o aluno compreenderá o novo nas “suas me- Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Editora
didas” e confortavelmente transitará pelos Forense Universitária, 10ª edição, 2001.
caminhos que traçou para aprender. BURBULES, Nicholas. Uma gramática da dife-
Quanto à educação dos pequenos, a inclu- rença: algumas formas de repensar a dife-
são traz consequências desejáveis e urgentes rença e a diversidade como tópicos educa-
para este mundo ainda fortemente domina- cionais. In GARCIA, R, L. & MOREIRA, A. F.
do pelo preconceito e discriminação. Ao pro- B. (orgs.). Currículo na Contemporaneidade –
piciar, desde os primeiros tempos escolares, Incertezas e Desafios. São Paulo: Cortez, 2008.
o encontro e o convívio entre todos os cole- DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Trad.
gas, indistintamente, a formação das futuras Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Ja-
gerações ganhará muito. Viver experiências neiro: Graal, 2ª edição, 2006,
de vida colaborativa, participativa e com- FÁVERO, Eugênia Augusta Gonzaga. Direitos
partilhada têm nos faltado nestes tempos das Pessoas com Deficiência: Garantia de
de intolerância e violência. Uma sociedade Igualdade na Diversidade. Rio de Janeiro:
inclusiva está a caminho. Os avanços nessa WVA Editora, 2004.
direção são evidentes e resultantes de con- GUATTARI, Félix; DELEUZE, Gilles. Rhizo-
quistas que os tornam irreversíveis. Nosso me. Paris: Minuit, 1976.
compromisso como educadores do século 21 SANTOS, Boaventura de Souza. A Construção
reveste-se da responsabilidade de concreti- Multicultural da Igualdade e da Diferença.
zar uma pedagogia que responda aos anseios Coimbra: Centro de Estudos Sociais. Ofici-
e necessidades deste novo tempo. na do CES nº 135, janeiro de 1999.
Caderno Brincar 29
30 Fundação Volkswagen
Música da
Cultura Infantil:
significado
e importância
É uma música no corpo, próxima ao outro, com o
outro. Sua prática promove um convívio alegre,
diferenciado, e, ao observar regras e princípios de
cada brinquedo, as crianças têm a oportunidade de
fazer o "exercício de ser criança" e o espaço ideal de
iniciação na cidadania: plena, por índole e direito,
sensível, inteligente e desafiadora.
LYDIA HORTÉLIO
é formada em Música (Piano, Educação Musical e
Etnomusicologia), em estudos no Brasil, Alemanha,
Portugal e Suíça. Pesquisou e documentou a Cultura
da Criança, a Música da Cultura Infantil e as
manifestações musicais da zona rural de Serrinha,
no sertão da Bahia. Participou de cursos, palestras,
oficinas e exposições no Brasil e no exterior e de
projetos de Educação e cursos de formação de
professores. Fundou, em Salvador, a Casa das Cinco
Pedrinhas, instituição de pesquisa e difusão da
Cultura da Criança e da Música.
Caderno Brincar 31
MÚSICA DA CULTURA INFANTIL, SIGNIFICADO E IMPORTÂNCIA
32 Fundação Volkswagen
corporal diferenciada, versões e variantes Os brinquedos de nossas crianças têm
surpreendentes, praticados intensamente suas origens nas vertentes principais da
pelas crianças de hoje. As fábulas, os contos cultura brasileira, e apresentam traços da
e as histórias maravilhosas também fazem cultura indígena, cultura ibérica e cultu-
parte do universo infantil, cujos relatos se ra africana, tanto na atmosfera como nos
configuram como verdadeiros rituais que temas, aspectos e elementos estruturais.
se revestem de música, desde o “tom” parti- Além dessas fontes primeiras, constata-
cular da contação, onde não faltam as “falas” mos ainda marcas evidentes de outras cul-
dos animais e de muitos outros personagens, turas que fazem parte da história do nosso
apresentados com sugestivas parlendas, povo. Nas variantes de muitos brinquedos
cantilenas e cantigas, próprias desse gênero observamos, inclusive, características de
especial da Música da Cultura Infantil. Final- diversas regiões e estados do Brasil, e no
mente, surgem na adolescência as rodas de tom particular ou no perfil de algumas me-
verso, como verdadeiros ritos de passagem, lodias, as marcas da zona rural e urbana e
onde forma, estruturação, conteúdo poéti- dos diferentes segmentos sociais.
co, atmosfera particular e movimentação, É importante apontar ainda a variedade
mesmo guardando dimensões da infância, de estilos destes brinquedos que se configu-
apontam para a nova etapa a ser vivida. To- ram como brinquedos cantados, brinquedos
dos esses brinquedos, fatos culturais de va- ritmados, diferenciando-se ainda como brin-
riada ação dinâmica e diferentes qualidades quedos rítmico-melódicos e brinquedos me-
de movimento, nascem das necessidades de lódico-ritmados, segundo o maior ou menor
crescimento do ser-humano-ainda-novo, e se teor de melodia ou ritmo na estruturação
configuram como gêneros da Música da Cul- musical, e que tem consequências para a de-
tura Infantil, correspondendo às respectivas finição do caráter e configuração da lingua-
fases do desenvolvimento da criança. gem de movimento de cada brinquedo.
Caderno Brincar 33
MÚSICA DA CULTURA INFANTIL, SIGNIFICADO E IMPORTÂNCIA
34 Fundação Volkswagen
e inteireza, que a criança revela seu poder e corpo inteiro, a experiência da afetividade e
sua graça, sua alegria! da beleza, tantas promessas de crescimento,
Se queremos contribuir para a renova- liberdade, alegria! Já outros afirmaram, às
ção do mundo, verdadeiramente, precisamos crianças estaremos devendo sempre o que
favorecer o convívio das crianças entre elas de melhor sabemos, mais fundo sentimos e
mesmas. Brincar é preciso! E para que isso mais alto queremos.
aconteça em plenitude, precisamos levantar
a bandeira: Criança / Natureza / Cultura In- Para reconquistar o sonho
fantil. Só então veremos brilho nos olhos dos Finalmente, gostaríamos de afirmar a Mú-
nossos meninos e o mundo novo florescer! sica da Cultura Infantil como fundamento
A Música da Cultura Infantil é um fato de toda a Educação: uma Educação criadora,
cultural de grande densidade e beleza. Ela que considera o homem em sua inteireza, na
representa, em todas as culturas do mundo, interligação, a mente voltada para a maravi-
a expressão primeira da alma de um povo, lha do Universo, a contemplação e a busca, a
e carrega em seu cerne o poder de um de- escuta do movimento dentro...
senvolvimento infinito. Assim sendo, fica Queremos afirmar ainda: é no exercício
evidente a necessidade de atentarmos para das dimensões da cultura da criança que po-
seu cultivo desde muito cedo, levando nos- demos construir um mundo mais feliz, tecido
sas crianças a praticar, desde pequeninas, as na unidade, e que já fez parte mais essencial
mais variadas formas de sua cultura: a voz da aspiração humana. No momento, vemos
cantada, a voz recitada, a voz representada, esse ideal ameaçado, sobrevivendo quase
viver uma roda, ter mão na mão, cantar um somente em comunidades longínquas, perto
refrão e tirar um versinho, perceber o valor das nuvens... Mas o reino dos céus é na terra,
da palavra, o balanço da cantiga, o “tom” par- para todos!
ticular de cada melodia, diferentes formas Abandonamos o sonho inadvertidamen-
e fraseados, o gosto pelo ritmo, o movimen- te e é preciso reconquistá-lo. Deixamos de
to, a ação e a representação, a expressão de cantar cantigas de ninar e brincar com nos-
Caderno Brincar 35
MÚSICA DA CULTURA INFANTIL, SIGNIFICADO E IMPORTÂNCIA
36 Fundação Volkswagen
1) Ô, Bela Alice...
Música Tradicional da Infância
A Música da Cultura
no Sertão da Bahia no Começo do Século XX
Infantil é um fato cultural
2) Céu, Terra, 51! Cada Vez Sai um...
Brinquedos dos Meninos de Serrinha, Hoje!
de grande densidade e
Os CDs acima citados diferem entre si sig-
beleza. Ela representa,
nificativamente, tanto nas formas e tipos de
brinquedos, como no conteúdo e "tom" parti-
em todas as culturas
cular, e aportam, claramente, dois períodos
da história de Serrinha, revelados por meio
do mundo, a expressão
dos brinquedos de suas crianças. Esse proje-
to de levantamento da Cultura da Criança em
primeira da alma de um
Serrinha pretende publicar todo o material
levantado e realizar um programa de ações
povo, e carrega em seu
dirigidas às crianças do lugar, com base nos
resultados dessas investigações.
cerne o poder de um
Estando nessa busca há muito tempo,
posso afirmar sem receio: sob o manto do es-
desenvolvimento infinito.
quecimento e dos modismos vigentes, subjaz
entre nós um grande tesouro à espera de ar-
queólogos da infância, caçadores do futuro...
Naturalmente, é preciso ter encantamento tuição da alma nacional. Uma história antiga
por criança, gostar de brincar e estar iniciado e, por isso mesmo, provavelmente, o sucesso
na Cultura da Criança, na Música da Cultura das investidas ulteriores. E em meio à disso-
Infantil, para saber procurar, e persistir. nância geral se encontram nossas crianças!
Desejamos, ardentemente, que pesqui- Urge refletir:
sas semelhantes sejam empreendidas Brasil Onde é o nosso território?
afora, para que, muito em breve, possamos O que significa para nós termos nascido
conhecer ampla e detalhadamente a criança no Brasil?
brasileira, sua natureza, sua índole, seu mo- O que nos faz diferentes?
vimento, seus talentos, seus sonhos, sua cul- Qual é a nossa graça, a nossa fé?
tura e, assim, chegarmos a saber o Brasil por Que aspiração temos, nós brasileiros?
meio de seu patrimônio primeiro. Acredita- Em que consiste o nosso valor?
mos no valor dessa busca. Ela nos levará a Quais são os versos que queremos cantar
compreender nossa história, a grande diver- na RODA DAS CRIANÇAS DO MUNDO?
sidade cultural deste país imenso e mestiço,
sua natureza, sua aspiração, suas dimensões É preciso despertar para uma consciência
imateriais, seus sonhos, pedras fundamen- de Brasil e nos empenharmos, de todo o cora-
tais da nação que queremos. ção, nesta busca admirável.
Vivemos um tempo de muitos estímulos, Como já foi assinalado, ainda está por ser
mas, certamente também, de muitíssimas so- feito um mapeamento, uma pesquisa ampla
licitações desencontradas. É preciso recuar e consequente da Música da Cultura Infan-
um pouco para refletir. Entre outras coisas, til em nosso país. Que se sintam convocados
sobre o sentido de origem e pertencimento. todos aqueles que têm fé na criança e amam
Temos sido avassalados, ao longo dos tem- o Brasil. Serão muitos! Precisamos de todos.
pos, por intromissões inaceitáveis, por um Teremos que dar o melhor de nós. Muitas
assédio maciço de valores estranhos à nossa alegrias nos esperam e, em breve, veremos
cultura. Até os rincões mais longínquos do chegar à frente as nossas crianças, e o Brasil
país se estende o processo perverso de desti- surgir do sonho de seus filhos maiores!
Caderno Brincar 37
MÚSICA DA CULTURA INFANTIL, SIGNIFICADO E IMPORTÂNCIA
E, nessa tarefa de busca da nossa alma an- 3. Fui à Bahia buscar meu chapéu
cestral, é a Música da Cultura Infantil, justa- 4. Gato-Preto-Maranhão
mente, o instrumento mais precioso. Por meio 5. Pai Francisco entrou na roda
de sua prática, estaremos restabelecendo o laço 6. Senhora, Dona Sancha
afetivo com a língua, a língua-mãe, não aquela 7. Você gosta de mim, ô
da rede televisiva ou dos livros de escola, mas a
que está nas cantigas de ninar e nos brinquedos Brinquedos ritmados
de nossas crianças, tão carregados dos encan- 1. Chicotinho queimado
tos e mistérios da infância do nosso povo, dos 2. Escravos de Jó
múltiplos arquétipos de nossa cultura. E com a 3. Ôi, Jerimum já ramou, já botou
língua-mãe musical, a canção popular, que soa 4. Olha o Camaleão
nesses brinquedos com o viço, a graça e doçura 5. Ordem, seu lugar
de nossas crianças, e em toda a cultura popular, 6. Siriri, capê
viva, variada, mestiça, onipresente, no corpo e 7. Ta-ta-ra-ra-ta-chim
na voz dos nossos brincantes, cantadores e po-
etas. Ao cultivar as palavras da origem, estare- Brinquedos da Cultura
mos restabelecendo o laço afetivo com a língua. Infantil contemporânea
O poeta Fernando Pessoa é quem diz: “A língua 1. Ai, ona, ona ê
é a pátria!” E estaremos favorecendo também, 2. Ana Maria ficou de catapora
certamente, uma disposição fundamental para 3. Andoleta
a beleza, o imaginário, o sonho... 4. Lenha, la-enha
De resto, nunca foi tão necessário cantar! 5. Maria Madalena foi ao sítio de Belém
E, num país ele mesmo menino, é preciso que 6. Quando eu era neném
venhamos compreender o verdadeiro signi- 7. 1, 2, 3, chinelinho
ficado e o valor da infância e manifestar as
dimensões da Cultura da Criança. Histórias cantadas/brincadas
Finalizando, gostaria de relembrar al- 1. Aninha e o Príncipe
guns brinquedos de nossa infância: 2. Os Brinquinhos de ouro
3. As Cabritinhas e o Jacaré
Cantigas de ninar 4. A Gaita do Cágado
1. Amigo Besouro 5. A história da Coca
2. Balança a rede 6. A linda Rosa juvenil
3. Bão-ba-la-lão 7. Onde está a Margarida?
4. Boi de currá
5. Dan-dan, squidin-dan Rodas de verso
6. Sururu, Menino mandu 1. Gavião tava sentado
7. Xô, xô Pavão 2. Marinheiro chora, tin do lê lê
3. Meu limão, meu limoeiro
Brincos 4. Morava na areia, sereia
1. Baladum, baladum, baladum 5. Ó que noite tão bonita
2. Dandá pá ganhá vintém 6. Ô, Rosa Espera
3. Dedo mindinho 7. Passa pra lá, passa pra cá, ô jundiá
4. Macaco pisa o milho
5. Meu periquitinho verde
E agora, vamos brincar?
6. Pelelei, liquitão
7. Serra, serra, serrador
Mão na mão,
Brinquedos cantados todos na roda,
1. Abre a roda, tin do lê lê a cada um o seu verso,
2. De onde vem aquela menina? e um só coração...
38 Fundação Volkswagen
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RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
Caderno Brincar 39
40 Fundação Volkswagen
A organização
do espaço e suas
relações com
o brincar
Qualquer educador pode vestir o chapéu de arquiteto
quando tem a responsabilidade de criar um ambiente
favorável para a aprendizagem, com acesso a materiais e
brinquedos. Na Educação Infantil, o espaço se converte
em parceiro pedagógico, é nele que se multiplicam ou
se subtraem oportunidades para acolher o convívio, a
imaginação e o ser criança.
Caderno Brincar 41
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO E SUAS RELAÇÕES COM O BRINCAR
E
(Aquino, 2010)
ssa citação nos remete à triste realidade lugar escondido, antes de dar a mão para
das escolas brasileiras, incluídas nesse con- fazerem a roda. A roda movimenta toda a
texto a Educação Infantil. O olhar que per- turma numa mesma atividade. No final da
cebe as diferenças, que focaliza os enredos brincadeira as crianças andam aos pulinhos
lúdicos construídos pelas crianças, muitas com a mão na cintura, imitando o que faz a
vezes está distante de uma prática pedagógi- coordenadora. Algumas ficam encabuladas e
ca que se pauta no prestar a atenção ao que não participam dos pulinhos mesmo quando
se evidencia nas relações infantis nos con- convidadas. Esta foi a única brincadeira cole-
textos da escola. Ilustrando essa afirmação, tiva observada em três dias!
convido os leitores a imaginar a cena descri-
ta por Ivany Ávila e Maria Luiza Xavier, no A realidade vivida por essas crianças
livro Plano de Atenção à Infância: aponta para algumas reflexões importantes.
A primeira diz respeito à ausência de brin-
Após o café da manhã, as crianças vol- quedos. Isso traz consequências imediatas
tam para sua sala e são atendidas pela coor- como o choro delas por não terem com que
denadora da creche. Procuram brinquedos interagir ou a disputa pelo pouco que é ofe-
dentro de um saco plástico. Os brinquedos recido. O fato da menina esconder o único
são poucos e quebrados: um caminhão de pote que tinha tampa sugere que ele era um
plástico sem rodas; um índio de borracha; objeto mais interessante, que permitia fazer
um palhacinho de pano, objetos de plástico algo mais, como tapar e destapar. E, também,
que deviam fazer parte de jogos que já não escondê-lo era a garantia de ter a oportuni-
existem. Os preferidos são os potes de mar- dade de voltar a brincar com o pote, evitando
garina. Disputam os potes. Querem os potes que outras crianças o fizessem. Outro desta-
com a tampa. Choram, fazem queixas. A co- que refere-se às crianças serem “intimadas”
ordenadora chama as crianças para fazerem a formar uma roda e imitar o gesto do adulto.
uma roda. Nem todos participam, a princí- Por se constituir numa atividade descontex-
pio. Algumas não querem largar o pote de tualizada, leva as crianças a se negarem a
margarina. Uma menina larga o pote num fazer essa imitação, a qual não está pautada
42 Fundação Volkswagen
nos postulados de Vygotsky quando afirma namos angústias e, assimilando emoções,
que a imitação não é mera cópia de um mode- compreendemos o meio onde estamos. Com
lo, mas uma reconstrução individual daquilo base nesse entendimento podemos afirmar
que é observado nos outros. que a experiência lúdica exerce importan-
Todas as crianças brincam, independen- te papel na construção da subjetividade.
temente de suas condições econômicas, so- Quando adultos, essas vivências carregam
ciais, étnicas e culturais. Essa afirmação me um senso de historicidade ao permitirem
remete a uma cena observada num bairro o reencontro com a própria infância, o que
bastante movimentado da cidade de Porto possibilita viver o sentimento de não estar-
Alegre, que certamente a ilustra. Em uma mos sós no mundo.
esquina, uma mulher comandava o esta-
cionamento de carros. Próximo a ela esta- A importância do brincar
vam três crianças de 4 a 6 anos, talvez seus A brincadeira provê uma situação de transi-
filhos, brincando num terreno baldio que ção entre a ação das crianças com objetos con-
ainda guardava resquícios de uma demoli- cretos e suas ações com significados. Portanto,
ção. Alheias ao intenso movimento, e sem a cercar as crianças de objetos, tanto no quadro
presença próxima da mãe, elas haviam mon- familiar como no das coletividades infantis
tado uma “casinha”. A mesa era um caixote, (creches e pré-escolas), é inscrever o objeto,
as cadeiras, pedras grandes, as panelas e os de um modo essencial, no processo de socia-
pratos eram potes e vidros recolhidos dos lização e também dirigir, em grande parte, a
escombros, a comida era feita com folhas dos socialização para uma relação com o objeto. A
arbustos que resistiram ao “desmanche”. O contribuição de muitos autores sobre essa te-
protagonismo dos pequenos impressionava mática nos auxilia na compreensão de sua im-
pelo enredo rico de uma cena familiar e pelo portância bem como subsidia teoricamente
envolvimento naquela ação. nosso olhar acerca do brincar infantil. O psi-
Além de desfrutar o prazer de simples- canalista Donald Woods Winnicott na obra O
mente brincar, sabemos que, por meio des- Brincar e a Realidade, afirma que o brincar é
se ato, controlamos nossos impulsos, domi- um fator tão importante no desenvolvimento
Caderno Brincar 43
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO E SUAS RELAÇÕES COM O BRINCAR
44 Fundação Volkswagen
as ações envolvidas no ato de brincar sejam e vivências do cotidiano da Educação Infan-
qualificadas e relevantes deve ser criterioso til. Portanto, é de vital importância organi-
e levar em consideração vários fatores. zar espaços ludicamente desafiadores, per-
Na obra Só Brincar? O Papel do Brincar mitindo às crianças o tempo necessário às
na Educação Infantil, Janet Moyles afirma interações. Elas experimentarão os desafios
que para brincar de modo efetivo as crianças que estão colocados por meio da distribui-
precisam de: ção dos materiais nos espaços da instituição,
• Companheiros de brincadeiras, espaços pois não estamos aqui nos referindo somen-
ou áreas, materiais e que o brincar seja te à sala de referência das crianças, mas aos
valorizado pelas pessoas que as cercam. pátios, aos corredores, às salas de atividades
• Oportunidades para brincar entre pares, múltiplas.
em pequenos grupos, sozinhas, perto de O papel do educador nesse processo é
outras pessoas, com adultos. fundamental, na medida em que observa e
• Tempo para explorar, por meio da lingua- cria espaços instigantes, acolhedores e pro-
gem, aquilo que fizeram e como podem pícios para aprender brincando e brincar
descrever a experiência. para aprender. Com base nessa ideia, pode-
• Tempo para continuar o que iniciaram. mos entender que a parceria dos espaços
• Experiências para ampliar e aprofundar tem implicações diretas sobre o brincar. Por-
aquilo que já sabem e aquilo que já podem tanto, quando organizarmos esses espaços, é
fazer. preciso considerar que:
• Estímulo e encorajamento para aprender • As crianças aprendem por meio do brin-
mais. car, constituindo-se este como a princi-
• Oportunidades lúdicas planejadas e es- pal forma de aprendizagem na primeira
pontâneas. infância.
Quando nos referimos a esses fatores, • O brincar espontâneo é visto não somen-
certamente estamos pensando em situações te como importante mas também como
um componente essencial do desenvolvi-
mento social e intelectual da criança e de
seu desenvolvimento criativo e pessoal.
• As crianças precisam não apenas de tem-
po e espaço para brincar e praticar ha-
bilidades, elas precisam também de edu-
cadores que as ajudem a aprender essas
habilidades.
Via de regra, a escola brasileira tornou-se
impessoal e indiferente às particularidades
dos indivíduos. Segundo Antônio Vinão Fra-
go, na obra Currículo, Espaço e Subjetividade,
todo educador tem de ser arquiteto. De fato,
ele sempre será responsável pelo espaço es-
colar, tanto se ele decidir modificá-lo, quanto
se o deixar tal qual está dado. O espaço não é
neutro, sempre educa. Resulta daí o interes-
se pela análise conjunta de ambos os aspec-
tos – o espaço e a Educação –, a fim de se con-
siderar suas implicações recíprocas.
Levando em consideração que o brincar
é a ação mais inerente à infância, as Diretri-
zes Curriculares Nacionais para Educação
Infantil têm como eixos articuladores o brin-
car e o interagir. Certamente isso tem rela-
Caderno Brincar 45
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO E SUAS RELAÇÕES COM O BRINCAR
ção direta e intrínseca com a organização Os autores Gilles Brougère e Anne Lise
dos espaços, pois ela poderá ser um convite Ulmann afirmam que aprender no cotidiano
ao brincar das crianças com outras crianças, é construir com a ajuda de encontros, ativi-
das crianças com objetos e materiais e das dades, observações, dificuldades e sucessos
crianças com os adultos educadores. um repertório de práticas ao longo da vida,
Que características deverá ter essa orga- em razão de novos encontros, atividades,
nização? migrações e viagens, inovações geradas pela
Inicialmente apontamos para a necessi- sociedade e seus objetos.
dade de uma infraestrutura e de formas de
funcionamento da instituição que garan- O espaço da Educação Infantil
tam ao espaço físico constituir-se como um Nessa perspectiva no contexto das institui-
ambiente que permita um bem-estar pro- ções de Educação Infantil, o espaço conver-
movido pela estética, pela boa conservação te-se em um parceiro pedagógico. As ações
dos materiais, pela higiene, pela segurança desenvolvidas pela criança serão descentra-
e, principalmente, pela possibilidade de as lizadas da figura do adulto e norteadas pe-
crianças brincarem e interagirem. los desafios dos materiais, dos brinquedos
Nesse aspecto, é importante ressaltar e do modo como os organizamos. Essa orga-
que os espaços destinados às crianças de nização deverá privilegiar basicamente dois
diferentes faixas etárias não podem ser aspectos: o acesso autônomo das crianças a
considerados como uma sala de aula na esses materiais e as diferentes linguagens
perspectiva tradicional, mas, sim, como um que estarão sendo privilegiadas e construí-
lugar de referência. Isso implica pensar que das nas interações com eles. Ao elegê-los es-
nesse local a proposta não seja organizá-lo taremos também considerando o tempo que
e gerenciá-lo para que “aulas” aconteçam, as crianças necessitam para realizar suas
mas, sim, para que experiências educativas ações, já que os ritmos diferem de criança
possam ser vividas. para criança. Nessa medida não estaremos
priorizando tarefas que sejam realizadas
de modo semelhante por todas as crianças e
com a mesma intensidade e duração. O tem-
po concedido visa oportunizar às crianças
um livre investimento nas atividades e inte-
rações que lhes causam prazer.
No contexto das instituições A organização proposta divide o espaço
em áreas circunscritas, cuja característica
de Educação Infantil, o principal é seu fechamento em pelo menos
três lados. Pode-se delimitar essas áreas
espaço converte-se em um usando mesas, cadeiras, tapetes, estantes e
outros móveis. As cortinas também são úteis
parceiro pedagógico. As ações para delimitar um ou dois lados, possibili-
tando à criança ver facilmente a educadora.
desenvolvidas pela criança Nesse processo que dinamiza as intera-
ções é importante considerar que, por parte
serão descentralizadas da do espaço, as coisas estão postas em termos
mais objetivos; por parte do ambiente, de
figura do adulto e norteadas maneira mais subjetiva. Nesse entendimen-
to, não se considera somente o meio físico ou
pelos desafios dos materiais, material mas também as interações que se
produzem nele. É um todo indissociável de
dos brinquedos e do modo objetos, odores, formas, cores, sons e pessoas
que habitam e se relacionam em uma estrutu-
como os organizamos. ra física determinada. Essa estrutura contém
46 Fundação Volkswagen
tudo e, ao mesmo tempo, é contida por esses
elementos que pulsam dentro dela como se
tivessem vida. O ambiente nunca é neutro,
ao contrário, transmite-nos sensações, evoca
recordações, passa-nos segurança ou inquie-
tação, mas nunca nos deixa indiferentes.
Aldo Fortunati, em sua obra A Abordagem
de San Miniato para a Educação de Crianças,
nos diz que as condições espaço-temporais em
que as experiências das crianças acontecem
são essenciais para a realização de seus propó-
sitos e têm implicações diretas nas intenções
planejadas pelos adultos. Nesse sentido, o pla-
nejamento deverá prever um ambiente orga-
nizado para que as crianças tenham oportuni-
dades e possibilidades, as quais orientem suas
experiências e incentivem interpretações no-
vas e diferentes daquelas que originalmente o
espaço se propõe a realizar.
Novamente é preciso dar um destaque ao
tempo, o qual com frequência é desconsiderado
pela maioria dos educadores. Em muitos mo-
mentos da rotina organizada por eles, deixam
de lado a atenção ao tempo que as crianças ne-
cessitam para a realização das experiências.
Esse tempo deverá sempre ser flexibilizado,
acolhendo os diferentes ritmos das crianças,
para que as explorações possam se tornar cada
vez mais ricas.
Sabemos que o conhecimento do desempe-
nho social do grupo e o planejamento agregam-
-se ao cuidado com a organização do espaço,
dos materiais e dos tempos. No papel de educa-
dores, uma atitude adequada é a de pensar no
que fazer e no que propor até provocar todas
as possibilidades, para dar continuidade aos
processos de brincadeiras das crianças.
Salas de referência
Os espaços são socialmente construídos, fru-
to das relações entre adultos e crianças, por-
tanto pode-se sugerir a construção deles nas
salas de referência da instituição. Eles pode-
rão ser: das artes, da construção, da leitura e
escrita, da casa, da música e do movimento,
dos livros, da dramatização e dos brinque-
dos. Para cada uma dessas áreas são indica-
dos materiais específicos, assim como sua lo-
calização. Por exemplo, é recomendado que
a área da casa contemple vários ambientes
para o faz de conta (quarto, sala, cozinha,
Caderno Brincar 47
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO E SUAS RELAÇÕES COM O BRINCAR
canto da beleza, armário de fantasias, gara- rolos, papéis de diferentes texturas formas e
gem etc.) e esteja equipada com objetos que tamanhos, lápis para colorir, barro, tesoura,
possam suscitar enredos de cozinhar, comer, cola, elementos naturais como pedras, con-
dormir, cuidar das bonecas, ir às compras, chas, pedaços de madeira etc. Devem-se prever
às festas, levar o bebê ao médico. Ao contrá- pontos de água para lavagem de pincéis, piso
rio dos ambientes definidos da área da casa, a fácil de limpar, aventais para uso da crianças,
área da construção ou blocos requer espaços diferentes superfícies de trabalho, tais como
vazios para a edificação de estruturas que mesas, cavaletes e parede, locais para secagem
crescem, são destruídas ou se transformam, e exposição das produções, como varal e mural.
e equipados de objetos como blocos grandes, Toda essa organização inclui pensar cui-
veículos, animais, papelão, tecidos etc. Estas dadosamente na seleção e na disponibiliza-
áreas certamente promovem trocas e intera- ção dos diferentes brinquedos e materiais
ções e, portanto, deverão estar localizadas nesses espaços. Na obra Brinquedo e Cultura,
próximas umas da outras. Gilles Brougère afirma que a imitação lúdi-
A área de livros requer um espaço acon- ca do real, longe de ser somente um destaque
chegante e confortável para acomodar a leitu- desse real, passa também pelo estímulo que
ra, o reconto ou a escuta e o manuseio de livros é o brinquedo. Por exemplo, as brincadeiras
e revistas e a criação de histórias. Tapetes, al- de maternagem diversificam-se conforme os
mofadas, poltronas ou sofá, uma diversidade acessórios propostos, assim, se colocarmos
de tipos de livros, assim como fantoches e re- uma banheira, o bebê poderá ser banhado.
cursos para escrever são sugeridos. A área de Essa seleção, classificação e disponibili-
artes reúne todos os tipos de materiais que dão zação dos brinquedos e materiais exige do
suporte às atividades de desenho, pintura, mo- professor um minucioso trabalho de obser-
delagem e colagem, tais como tintas, pincéis, vação, de coleta e de pesquisa sobre o que e
48 Fundação Volkswagen
onde colocá-los. É preciso observar alguns referência. Na realidade, todas as dependên-
critérios tais como: cias internas e externas das instituições de
• Atender as especificidades das diferentes Educação Infantil educam e podem propiciar
faixas etárias (nem todos os brinquedos ricas e diversificadas oportunidades para o
são adequados a todas as idades). brincar. Basta um olhar atento do educador
• Garantir um número suficiente de brin- para aprimorá-las e torná-las ainda mais
quedos e materiais (a quantidade de objetos adequadas às vontades de movimento e ação,
e de materiais deverá oferecer a possibi- à curiosidade, às interações com adultos e
lidade de uma interação individual e tam- objetos, ao convívio em grupos e ao fruir da
bém a promoção de brincadeiras em grupo. sempre fértil imaginação infantil.
• Selecionar brinquedos e materiais que
respondam a ação das crianças de múlti- Referências
plas formas (o material é mais atraente e ÁVILA, Ivany; XAVIER, Maria Luiza. Plano
adequado quanto mais transformações so- de atenção à infância. Porto Alegre: Me-
frer frente à atuação da criança sobre ele). diação, 1998.
• Dotar os espaços de faz de conta com ob- BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria
jetos que suscitem e ampliem os enredos de Educação Básica. Brinquedos e Brinca-
imaginados pelas crianças (quando colo- deiras nas Creches/Ministério da Educa-
camos uma maleta de médico no canto da ção. Brasília: MEC/SEB 2012.
casa, certamente “alguém” precisará de BROUGÈRE, Gilles. Brinquedo e Cultura. São
cuidados médicos). Paulo: Cortez, 2004.
Se considerarmos alguns princípios BROUGÈRE, Gilles; ULMANN, Anne Lise.
para reger a organização dos espaços inter- Aprender pela Vida Cotidiana. Campinas:
nos tais como criar ordem e flexibilidade no Autores Associados, 2012.
ambiente físico, proporcionar conforto e se- FORTUNA, Tânia Ramos. Sala de aula é lugar
gurança a crianças e adultos e oportunizar de brincar? In: XAVIER, Maria Luiza Me-
a interação com as diferentes linguagens da rino; DALLA ZEN, Maria Isabel H. Plane-
criança – esses também são válidos para a jamento em destaque: análises menos con-
organização dos espaços externos, especial- vencionais. Porto Alegre: Mediação, 2000.
mente o pátio. Nele as crianças não precisam FORTUNATI, Aldo. A Abordagem de San Mi-
apenas correr, subir no escorregador ou no niato para a Educação de Crianças. San
balanço. Podem desejar estar sob uma som- Miniato, Itália: Ediziones Ets, 2014.
bra, brincar na casinha, deitar em uma rede HORN, Maria da Graça Souza. Sabores, Sons,
e o entorno organizado deve oportunizar Cores e Aromas. A Construção do Espaço
tais ações. na Educação Infantil. Porto Alegre: Art-
É igualmente importante considerar a am- med, 2004.
plitude e a organização em diferentes áreas, KOHL, Marta de Oliveira. Vygotsky: Aprendi-
como as de repouso/movimento; segurança/ zado e Desenvolvimento. São Paulo: Scipio-
aventura; imitação/criação; ficção/ realidade, ne, 1993.
locais para privacidade e socialização, bem MOYLES, Janet R. Só Brincar? O Papel do
como áreas com diferentes materiais naturais Brincar na Educação Infantil. Porto Ale-
para o manuseio. Ao lado disso, é válido pen- gre: Artmed, 2002.
sar em espaços com uma variedade de pisos no VINÃO FRAGO, Antônio. Currículo, Espaço e
chão, locais de sombra e de sol. Essa diversida- Subjetividade: A Arquitetura como Progra-
de propiciará, tal como nos espaços internos, a ma. Tradução Alfredo Veiga-Neto. 2ª. edi-
construção da autonomia moral e intelectual ção. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
das crianças. VYGOTSKY, Lev Semenovitch. A Formação
Ao pensarmos em organizar espaços que Social da Mente. São Paulo: Martins Fon-
acolham e promovam o protagonismo infan- tes, 1984.
til, a cultura de pares e a “escola do fazer e do WINNICOTT, Donald Woods. O Brincar e a
brincar”, os limites não devem ser as salas de Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
Caderno Brincar 49
50 Fundação Volkswagen
Brincar e
imaginar:
para todo
mundo e para
a vida inteira
As brincadeiras alimentam a imaginação e vice-
-versa. Por isso, todas as crianças (e também
os adultos) precisam ter direito à diferença, ao
ócio criativo, ao tempo livre para a exploração,
à curiosidade e à investigação... esses elementos
nutrem potência criadora e incitam à
brincadeira delas e à arte.
Caderno Brincar 51
BRINCAR E IMAGINAR: PARA TODO MUNDO E PARA A VIDA INTEIRA
52 Fundação Volkswagen
A essa ideia-força acrescentamos a ques- e imaginar para todo mundo e para a vida
tão da inclusão para além das referências da inteira, observando nesse terceiro tempo al-
educação especial e das crianças com defici- gumas das infâncias que compõem o cenário
ência. Reforçamos o conteúdo apresentado diverso que habitamos, impresso por mar-
por Mantoan em seu artigo nesta mesma obra cas das diferenças, denotando a urgência da
sobre o direito à diferença na igualdade de di- Educação de fato inclusiva. Recorrendo às
reitos para todas as crianças (especialmente, vozes de crianças, de hoje e de ontem, escri-
mas não só!). Ela afirma que, inicialmente, a turamos imaginação e brincadeira.
inclusão escolar foi entendida de modo sumá-
rio como “inserção de alunos com deficiência, Primeiro tempo:
que frequentavam classes e escolas especiais, crianças e suas ideias
nas turmas das escolas comuns”. Mas mesmo Apontamentos de crianças a respeito de ima-
que isso ainda funcione assim como um senso ginação e de brincadeira fazem-nos adentrar
comum, “estamos chegando pouco a pouco à nos dois temas pela experiência de quem
compreensão de seu mote: garantir o direito vive as situações. Não apenas as crianças
à diferença na igualdade de direitos à educa- brincam ou imaginam, mas ouvir suas vo-
ção”. E por que trazemos essa ideia para falar- zes e registrá-las é um dos movimentos para
mos da criança brincante, de sua imaginação dimensionar seu percurso imaginativo que
e poder de criação? Porque esse direito à dife- tem total vazão no brincar. Isso por que as
rença é o que precisamos defender para todas crianças têm muitas linguagens e formas de
as crianças: elas têm direito ao ócio criativo da se expressar, como nos apontam as experiên-
infância, ao tempo livre para a exploração, à cias de Reggio Emilia, descritas em As Cem
curiosidade, e à investigação – todos funcio- Linguagens da Criança. Ao analisarmos essa
nando como alimento que nutre sua potência proposição, verificamos ainda que mesmo na
criadora e sua imaginação, e incita à brinca- infância já sem voz como categoria geral, his-
deira, à arte. tórica e social, ainda há aqueles com menos
A composição deste texto passa por três expressão ainda: as crianças invisíveis, co-
momentos: ideias de crianças (mesmo recu- bertas por uma camada oblíqua do que cha-
peradas quando adultas) a respeito de imagi- mam comumente de respeito ou tolerância.
nação e de brincadeira; brincar e imaginar – Crianças com deficiência, bebês, crianças ne-
incursões contextuais e conceituais; brincar gras, indígenas e tantas outras não raro fre-
Caderno Brincar 53
BRINCAR E IMAGINAR: PARA TODO MUNDO E PARA A VIDA INTEIRA
quentam o anonimato em uma categoria que da infância ao narrar suas próprias memó-
em si já é subalternizada. Nem sempre temos rias. Salientamos que memória e imaginação
registros atentos às crianças, esses porta-vo- ocupam categorias diferentes. A primeira
zes fidedignos dos processos em que estão relaciona-se com o ato de recuperar o pas-
imersos, de forma que precisamos localizar sado, reapresentando-o de acordo com as
no rol de produções existentes onde estão as lembranças e fragmentos de experiências de
crianças e sua imaginação. De início, recor- outrora que podem ser articuladas indivi-
remos à literatura: dual ou coletivamente, com possibilidade de
potencializar o presente e também dialogar
Eu não sabia ainda ler, mas já era bastan- com o passado, por vieses diferentes de regis-
te esnobe para exigir meus livros. (...) Peguei tros oficiais. Já a imaginação é conduzida pelo
dois volumezinhos, cheirei-os, apalpei-os, impulso da transformação, da renovação, da
abri-os negligentemente na “página certa”, reinvenção. É um ato que elabora o novo men-
fazendo-os estalar. Debalde: eu não tinha a talmente e interiormente e que, embora este-
sensação de possuí-los. Tentei sem maior êxi- ja no presente, pode potencializar o futuro.
to, tratá-los como bonecas, acalentá-los, beijá- Uma vez partilhada, a imaginação favorece o
-los, surrá-los. Quase em lágrimas, acabei por brincar e outras ações no coletivo. Muito pos-
depô-los sobre os joelhos de minha mãe. Ela sivelmente, como lembra Manoel de Barros,
levantou os olhos do trabalho: “O que queres as memórias podem ser inventadas. De novo
que te leia, querido? As Fadas?”. Perguntei entramos no campo da imaginação: mesmo
incrédulo: “As Fadas estão aí dentro?” (...) Ao que seja para reinventar o que já foi.
cabo de um instante compreendi, era o livro A leitura do excerto sartreano reforça
que falava (SARTRE, 1967). que o impulso para dar sentido à existência
começa na infância. E numa infância com
Jean-Paul Sartre, no livro As Palavras, imaginação. Na descrição anterior, os livros
aproxima-nos das surpresas e necessidades são objeto da vontade do menino ainda não
alfabetizado que tenta “possuí-los” com todos
os sentidos: tato, olfato, visão, quiçá paladar,
com base em várias iniciativas e sob muitas
perspectivas do campo de seu conhecimento,
para compreender o que de fato aquele obje-
dizer, com poesia em seu apossar deles. Há sempre nesse ato algo de im-
perioso, algo de infantil, uma recusa em levar
54 Fundação Volkswagen
Valendo-nos do encanto e da imaginação nação e realidade existem como dois lados
como pensamento vital, tal qual aponta Sar- de uma mesma moeda em que “toda obra da
tre, trazemos a fala de outra criança, essa as- imaginação constrói-se sempre de elementos
sentada no século XXI e de apenas 4 anos. Foi tomados da realidade e presentes na expe-
ouvida pelos professores e pesquisadores da riência anterior da pessoa”. Para autores e
infância Rodrigo Saballa de Carvalho e Paulo estudiosos da Teoria Histórico-Cultural, so-
Sérgio Fochi: mente os pensamentos religiosos e místicos
atribuem a origem das obras da fantasia a
Quando eu acordo, eu sempre fico bem forças estranhas ou sobrenaturais, enquanto
parado como está aparecendo na foto. Para- para Vygotsky (e outros) seria um milagre
do mesmo, que nem estátua. Fico pensando, se a imaginação surgisse do nada ou tivesse
pensando... Pensando na vida, na minha outras fontes para suas criações que não a
casa, nos meus brinquedos, nos meus amigos experiência anterior.
e na minha mãe. Não gosto de acordar rápi- Há mais uma ideia expressa por uma
do. Eu acordo sempre bem devagar e fico pen- criança que destacaremos aqui. Na verdade,
sando nas coisas importantes da minha vida. são imagens, fotografias realizadas por Malu,
Eu não gosto quando tem que acordar bem menina de 3 anos e cega desde o nascimento.
rápido. Às vezes, a profe fica brava porque eu Durante a realização de uma festa junina na
demoro muito para levantar. Na verdade, ela creche que frequenta, Malu foi instigada por
não entende que eu demoro porque fico pen- duas profissionais da instituição, à época ges-
sando um pouco (André – 4 anos de idade). toras, a fotografar o ambiente, mesmo sem o
recurso da visão. No relato das professoras,
O relato de André está no texto O muro primeiramente a criança aceitou o convite,
serve para separar os grandes dos pequenos: para em seguida pedir para “ver” a máquina e
narrativas para pensar uma pedagogia do co- só depois quis saber como funcionava. Acom-
tidiano na educação infantil, publicado em panhada por uma estagiária e uma cuidado-
2016, em dossiê intitulado Emenda Constitu- ra, porém sem a intervenção delas, a não ser
cional 59/2009: em Busca da Criança Perdida quando solicitado auxílio, a garota registrou
e remete, mais uma vez, à imaginação e à ação a imagem a seguir:
do pensamento. Mais do que revelar o que é
de fato importante para essa criança em seu
dia a dia, traz à vista toda sua humanidade e
relação com o mundo. Ela escolhe pensar no
lugar de obedecer ou reproduzir. Pensar e
destacar suas intenções e questões do dia a
dia. É o pensar que permite habitar um espa-
ço único, que “a profe” (a adulta) não compre-
ende. Pensar deixa o outro bravo: é o lugar
inacessível, onde “ninguém manda em mim”.
O que imagina André enquanto pensa? O que
pensa quando imagina? Que brincadeiras ex-
travasam, movimentam e vão constituindo a
imaginação, o pensamento de André?
Pensar e imaginar estão assim entrela-
çados em uma relação intrínseca a qual nos
leva a sua compreensão como uma função vi-
tal necessária e não como “um divertimento
ocioso da mente” como nos alerta Vygotsky
em seu texto de 1930 traduzido do russo por
Zoia Prestes e publicado no Brasil sob o títu-
lo Imaginação e Criação na Infância. Imagi- Depois de registrar o dedo, Malu disse: “Mas eu tô sentindo a foto”
Caderno Brincar 55
BRINCAR E IMAGINAR: PARA TODO MUNDO E PARA A VIDA INTEIRA
Uma de suas acompanhantes avisou que o nha sentidos, sendo inventado e reinventado
dedo estava em cima do visor da máquina, ao constantemente. O experimento é notado
que a menina respondeu: “Mas eu tô sentindo como reforço à vitalidade e caracteriza uma
a foto”. Com essa frase, a garota torna visível troca “ativa e alerta com o mundo”, como es-
e audível mais dois atributos da imaginação creve o filósofo e pedagogo americano John
e do brincar: qualquer pessoa pode imaginar Dewey em sua obra Arte como Experiência.
e brincar, e para brincar e imaginar o sentir Para o teórico do desenvolvimento cog-
deve estar presente. No caso de Malu, ver o nitivo Lev Vygotsky, a experiência anterior-
mundo com os dedos e sentir a foto desafia- -presente da pessoa, em sua riqueza e diver-
-nos porque já cristalizamos que o deficiente sidade, constitui o material de onde surgem
visual não enxerga. Isso porque considera- as condições para as crianças (adultas ou
mos como única linguagem possível para ver pequenas) construírem suas fantasias e sua
ou ler o mundo a decodificação feita com os imaginação, porque não se opõem à realida-
olhos. Para essa criança, ver está além: é um de, mas são combinadas de modos novos pela
conjunto de fatores que ela vai traçando e atividade do nosso cérebro. Mas também
dando significados com base em suas experi- esse autor afirma que a imaginação cumpre
ências sensoriais e na relação com os outros e uma função muito importante no comporta-
com o mundo. E sua singeleza ao explicar que mento e no desenvolvimento humano quan-
mais do que ver a imagem ela a estava sentin- do ela “transforma-se em meio de ampliação
do intensifica as relações entre infância, ima- da experiência de um indivíduo porque, ten-
ginação e o brincar na perspectiva que enlaça do por base a narração ou a descrição de ou-
várias linguagens: a voz, o corpo, o movimen- trem, ele pode imaginar o que não viu, o que
to, a poesia (das imagens e da fala de Malu), da não vivenciou diretamente em sua experiên-
arte. Estamos acostumados – como adultos cia pessoal”. Ou seja, a própria experiência
que somos – a escolher os meios e as técni- se apoia na imaginação, que passa a ser “uma
cas pelas quais as crianças podem expressar condição totalmente necessária para quase
seu universo interior, seu pensamento e sua toda a atividade mental humana”.
imaginação, seus sentimentos e percepções Brincar e imaginar conecta-se intima-
sobre o mundo, mas quando as crianças têm mente ao pensamento e ao conhecimento
a oportunidade de escolher os materiais e os e as crianças expressam esse elo (brincar-
meios, elas o fazem, e encontram o que é mais -imaginar-pensar-conhecer) com simplicida-
adequado para si, segundo relata a arte-edu- de, profundidade e, por que não dizer, com
cadora dinamarquesa Anna Maria Holm. poesia em seu dia a dia, quando escutadas e
A experiência de Malu foi descrita e ana- olhadas, a exemplo, mais uma vez, do regis-
lisada pelas professoras e pesquisadoras An- tro realizado por Carvalho e Fochi:
dreia Regina de Oliveira Camargo e Fernanda
Cristina de Souza, no Ensaio sobre Infância, Todos os dias eu e o Pedro espiamos na janela
Crianças e Educação Especial. Criar imagens o que está acontecendo lá fora. Acontece tanta
com base em suas sensações e não apenas da coisa. Passam as professoras, passam as filas
visão é possível porque a criança não reduz para o lanche, chegam os pais de todo mundo,
suas formas de apreender o mundo aos sen- a gente vê quem vai para a praça, os pequenos
tidos de que dispõe como a visão, a audição, passando, os passarinhos comendo grama e
a fala, ou o tato, mas por outras maneiras de as mães chegando. Na janela sempre tem um
sentir como a emoção, o afeto, o gesto, por montão de coisas acontecendo. A gente fica
exemplo. Imaginar seria parte do enxergar? sabendo de tudo que fica acontecendo. Na por-
O brincar permeia as ações e o cotidiano ta da sala também tem um vidro que dá para
das crianças, constituindo-se como lingua- ver quem passa na rua e o que está fazendo. A
gem por excelência da infância. É ato imagi- profe não gosta que ninguém fique nas janelas,
nário, cultural e repleto de significados, como para a gente não se atrasar na hora de fazer as
afirmam vários estudiosos dessa área. É pelo letras (Caio – 4 anos de idade).
brincar que o mundo é experimentado e ga-
56 Fundação Volkswagen
A janela como expressão de imaginação ção, é possível ser tudo ao mesmo tempo, ou
é recorrente nas produções humanas e apa- o tempo que durar a brincadeira, sem deixar
rece em obras como a pintura Moça à Janela, de ser eu mesmo, porque sou eu (o de todo dia)
de Salvador Dalí (1925), e no documentário que comporá os outros da fantasia com base
Janela da Alma, dirigido por João Jardim e no repertório histórico, social e cultural dos
Walter Carvalho (2001). Nesse caso, a jane- contextos que são conhecidos.
la e a imaginação de Caio apontam questões Por outro lado, nesse outro tempo do
que o preocupam ou motivam em seu per- brincar-imaginar, o envolvimento é indis-
curso de compreender e participar de tudo. pensável: a duração da brincadeira não se
Sua vida está para além das letras, pois tem aterá aos horários fixados pelas rotinas que
“um montão de coisas acontecendo”. Sua balizam os cotidianos da maioria das insti-
voz remete às questões da Filosofia e, prin- tuições de Educação Infantil, bem como o
cipalmente, do cotidiano de qualquer um de dia do brinquedo jamais será apenas a sexta-
nós, afinal, as crianças partilham do mesmo -feira: é todo dia, concebendo ainda que o
mundo com os adultos. Anne Marie Holm brinquedo não é apenas o industrializado,
no artigo em que relata os processos criati- pois qualquer objeto que dê suporte à brin-
vos que ocorrem em uma oficina de artes vi- cadeira, à exploração e ao experimento da
suais para crianças dinamarquesas afirma imaginação será um brinquedo.
que elas “não deveriam ser preparadas para É ainda de Rosa Monteiro o alerta que
um tipo determinado de vida; deveriam, educar uma criança supõe “limitar seu
sim, receber ilimitadas oportunidades de campo visual, apequenar o mundo e dar-lhe
crescimento. Aprendendo que uma tarefa uma forma determinada”, como acontece
pode ter várias soluções, adquirimos força e nos modelos de adequação sociais e cultu-
coragem”. Para ela, as crianças poderiam ser rais. Todavia, as crianças, e alguns adultos
mais desafiadas a pensar e a elaborar nar- também, suplantam esse apequenamento
rativas e a expressar de múltiplas formas
o que veem, ouvem ou sentem; aprender a
pesquisar, a ter confiança em si mesmas e a
ter coragem de se pôr a trabalhar em coisas
novas. Isso é a base da experiência que ali-
menta e é alimentada pela imaginação.
Caderno Brincar 57
BRINCAR E IMAGINAR: PARA TODO MUNDO E PARA A VIDA INTEIRA
58 Fundação Volkswagen
e da pedagogia infantis. Para ele, o trabalho formas de deixar fruir a energia criativa é
de criação desde a mais tenra idade contri- oferecer um ambiente cheio de possibilida-
bui para o desenvolvimento geral e o ama- des e de coisas para serem investigadas que,
durecimento da criança, pois os processos em sua desarrumação, permitem às crianças
criativos “se expressam melhor em suas brincarem e se jogarem rumo a esse desco-
brincadeiras”. Ele exemplifica com a criança nhecido – o que se choca com uma sala/escola
montando cavalinho em um cabo de vassou- muito arrumada. Holm defende que “a brin-
ra, ou com a menina que brinca com a boneca cadeira é livre na sua essência – o processo
imaginando-se a mãe para afirmar que estes de criação artística é livre em sua essência.
são exemplos da “mais autêntica e verdadei- Se um processo artístico é controlado, já não é
ra criação”. Para Vygotsky, as brincadeiras mais um processo artístico, correto?”.
sempre trazem referências imitativas das A criança brinca enquanto cria, e cria
experiências anteriores, mas estas nunca enquanto brinca, e esta é sua atividade prin-
se reproduzem na brincadeira exatamente cipal; por isso mesmo, podemos dizer que, do
como ocorreram na realidade. A brincadeira ponto de vista da criança, brincar é coisa sé-
da criança é, sim, “uma reelaboração das suas ria, é trabalho. Brincar é aprender tudo sobre
marcas vivenciais; é a construção de uma rea- o mundo: “Ao brincar, a criança experimenta
lidade nova que responde às suas aspirações o poder de explorar o mundo dos objetos, das
e anseios”. Afirma também que “assim como pessoas, da natureza e da cultura, para com-
na brincadeira, o ímpeto da criança para preendê-lo e expressá-lo por meio de varia-
criar é a imaginação em atividade”. Já para das linguagens”, observa Kishimoto. E como
Holm, esse ímpeto de “construir, instalar e a criança faz isso tudo? De maneira prazerosa
criar” ambientes a partir de elementos avul- porque dá a ela “o poder de tomar decisões, de
sos, diversos, é um talento natural da criança, expressar sentimentos e valores, conhecer a
observado com base nas interações e na liber- si, aos outros e ao mundo [...]”.
dade presente na oficina de arte. Segundo seu Quando as crianças são livres para brin-
registro, “a ideia delas [das crianças] era que, car, ela – a brincadeira – é uma ferramenta
após a construção, brincariam dentro da 'ins- para a expressão delas e para o seu desenvol-
talação'. Muito frequentemente acabam não o vimento delas. E para sua criação, imagina-
fazendo, porque é o processo em si, de criar o ção; para o poder experimentado de tomar
'lugar', que mais importa para elas”. decisões, expressar sentimentos e valores;
Brincar e criar, ações que têm em comum conhecer a si mesmas e aos outros. E isso se
a necessidade de liberdade, de experimen- relaciona à cultura da infância – a produção
tação, de investigação assim explicado por de modos específicos de ser e estar no mun-
Kishimoto: “O brincar é uma ação livre, que do; a voz e a vez das crianças, entre si, seus
surge a qualquer hora, iniciada e conduzida colegas e seus parceiros de geração, mas di-
pela criança; dá prazer, não exige como condi- versos em suas próprias culturas de origem.
ção um produto final”. Importa destacarmos
que a atividade que move, que impulsiona a Terceiro tempo: para todos e
criança a agir e a criar com o que está a sua para a vida inteira
disposição é a sua necessidade, sua busca pela Defender o brincar e imaginar para todo
exploração que quer conhecer, aprender. En- mundo e para a vida inteira é a premissa de
quanto cria, pensa, e ao pensar reelabora o onde partimos para pensar a infância e a edu-
que está dado transformando em outra coisa, cação inclusiva. Focamos as crianças, mas
ressignificando o vivido. Instala o novo, ocu- compreendemos a extensão das formas de
pa os vazios deixados pelos adultos que nada brincar e imaginar durante toda a existên-
veem naquilo, enquanto ela vê, sente, pensa cia da pessoa, em qualquer contexto. Por isso,
e imagina o novo. E materializa, transforma ainda pontuamos que a Educação e suas prá-
sua “energia criativa” em criações humanas, ticas precisam atentar às manifestações plu-
que nós adultos, pela experiência da arte, rais que coexistem num mesmo espaço educa-
transformamos em “algo cultural”. Uma das tivo e, principalmente em relação às crianças
Caderno Brincar 59
BRINCAR E IMAGINAR: PARA TODO MUNDO E PARA A VIDA INTEIRA
60 Fundação Volkswagen
Mariana, com 3 anos à época, sofreu aci- Afirmando Diferenças: Montando o Que-
dente com fogo, descrito pelas autoras, apoia- bra — Cabeça da Diversidade na Escola. São
das em parecer médico, como o caso mais gra- Paulo: Papirus, 2010, p. 73-85. 3ª edição.
ve de queimaduras em crianças em Portugal. CAMARGO, Andréia Regina de Oliveira;
Dentre as consequências que marcam todo SOUZA, Fernanda Cristina de Souza. En-
o seu corpo, a menina perdeu boa parte dos saio sobre a Infância, Crianças e Educação
membros superiores. O texto Da Participação Especial. Anais do 4º Seminário Interna-
Convencionada à Participação Efectiva: um Es- cional Educação Infantil e Pós-estrutura-
tudo de Caso Alicerçado na Escuta da Criança lismo. São Carlos, 2015.
em Contexto de Educação da Infância apresen- CARVALHO, Rodrigo Saballa; FOCHI, Pau-
ta e analisa a inserção de Mariana na institui- lo Sérgio. O Muro Serve para Separar os
ção educativa. As duas crianças brincando Grandes dos Pequenos: Narrativas para
com peças de encaixe enfatizam mais uma vez Pensar uma Pedagogia do Cotidiano na
o brincar como elemento de interação, imagi- Educação Infantil. Textura, v. 18 n.36, jan./
nação e coletividade. abr.2016
Em relação à imaginação e ao ser criança HOLM, Anna Marie. A Energia Criativa Natu-
em qualquer circunstância, ainda concorda- ral. Proposições, v. 15, n. 1 (43) – jan/abr, 2004.
mos com as pesquisadoras Sandra Richter e HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: O Jogo
Simone Berle ao inferirem que não é apenas como Elemento da Cultura. São Paulo:
considerar ou aceitar, mas fundamental- Perspectiva, 2000.
mente “confiar nas crianças e acolher seus KISHIMOTO, Tizuko Morchida. Brinque-
tempos de tentar, de explorar, de experimen- dos e Brincadeiras na Educação Infantil.
tar, de aprender, de reconhecer, de inventar, Anais. I Seminário. MONTEIRO, Rosa. A
de tatear o real, de bolinar o mundo”. Assim Louca da Casa. Rio de Janeiro: Ediouro Pu-
experimentamos e recuperamos a imagi- blicações, 2004. Tradução: Paulina Wacht
nação poética que se alia à investigação, ao e Ari Roitman.
fantástico, ao que ainda não conhecemos e RICHTER, Sandra Regina Simonis; BERLE,
queremos explorar e aprender. Simone. Pedagogia como Gesto Poético da
O tempo da velhice e da infância encon- Linguagem. Educação & Realidade. Porto
tram-se na memória e na imaginação. Mes- Alegre, v. 40, n. 4, out./dez, 2015.
tres griôs da África narram a ancestralidade RITSCHER, Penny. ¿Qué Haremos Cuando
com imaginação e rigor, incentivando novas Seamos Pequeños? Hacia una Intercultu-
gerações, as crianças, a continuarem o lega- ra entre los Adultos y los Niños. Barcelona:
do, recriando a existência. Imaginação tam- Ediciones Octaedro – Rosa Sensat, 2012 (2ª
bém tem um quê de magia, de imagem em edição).
movimento, em ação, em outras palavras, o SARTRE, Jean-Paul. As Palavras. São Paulo:
pensamento que ganha força e materializa- Difusão Europeia do Livro, 1967. Tradução
se, no caso das crianças, principalmente nas de J. Guinsburg.
brincadeiras. E é por isso que o brincar e o SARTRE, Jean-Paul. A Imaginação. São
lúdico podem ser concebidos como a grande Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1964.
linguagem que abre caminhos e, em qual- Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes.
quer contexto, podem significar e promover SOUZA, Solange J. S. Infância e Linguagem:
acolhimento e inclusão. Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. Campinas:
Papirus, 1994.
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WICZ, Anete; SILVÉRIO, Valter Roberto. dução de Zoia Prestes.
Caderno Brincar 61
62 Fundação Volkswagen
Brincar e as
tecnologias
na Educação
Infantil
Os brinquedos impulsionam o potencial lúdico das
crianças, capazes de transformar um objeto em outro
usando apenas a imaginação. Já os jogos de regras levam a
desenvolver habilidades, organizar o pensamento e a ação
e promovem a socialização. Com a tecnologia, brinquedos
e jogos ampliam habilidades e desafiam a Educação.
Caderno Brincar 63
BRINCAR E AS TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL
64 Fundação Volkswagen
Se as crianças têm direitos garantidos
para brincar, elas precisam de oportunida-
O potencial lúdico revela as
des para que isso ocorra. Pesquisadores como
o francês Michel Manson, professor na Uni-
possibilidades da ação do
versidade de Paris 13 – Villetaneuse, estudio-
so da história da criança e sua educação, na
brincar. Na ação lúdica, a
obra História do Brinquedo e dos Jogos. Brin-
car Através dos Tempos rompe com a ideia
criança transforma um objeto
de que o consumo de objetos para crianças é
um fenômeno contemporâneo. Mostrando o
em outro utilizando para isso
imaginário infantil no decorrer dos tempos,
Manson aponta que há muito pensadores
apenas sua imaginação.
e pedagogos, de formas contraditórias,
reprovam e enaltecem o oferecimento dos
brinquedos para as crianças, como Français
Rabelais (1494-1553). Rabelais escreveu Os
Horríveis e Apavorantes Feitos e Proezas do registra a ação do brincar e jogar. Posterior-
Mui Renomado Pantagruel, Rei dos Dipsodos, mente, pintores franceses como Jean Siméon
Filho do Grande Gigante Gargântua, publica- Chardin (1699-1779) e Jean-Baptiste Greuze
do em 1532, que apesar de dar uma coleção (1725-1805) trazem o olhar da modernidade
diversa de brinquedos para seu filho Gar- para a criança e seus objetos preferidos –
gântua, os considerava frívolos. Michel de brinquedos e jogos. Enquanto isso, educado-
Montaigne (1533-1592) recriminava os pais res e pedagogos debatiam sobre os usos des-
pelo oferecimento de tais objetos, descuidan- ses objetos para fins educativos.
do assim de sua educação. Não se pode deixar de mencionar a obra
Segundo Manson, a visão de Jan Amos do suíço Jean-Jacques Rousseau (1717-1778)
Comenius (1592-1670), um teólogo, educa- quando se fala da educação das crianças:
dor, cientista e escritor europeu, destoa do Emílio ou Da Educação foi o momento do
período em que viveu, pois tinha a criança nascimento do conceito de infância e mudou
como o bem mais precioso da humanidade. a pedagogia. O papel da educação, segundo
Comenius falou dos brinquedos como “mo- Rousseau, era de utilizar a atividade natural
delos inteligíveis” e suporte para a brinca- da criança – nesse sentido as brincadeiras,
deira. No final do século 17, o filósofo inglês suas explorações sensoriais, seus interes-
John Locke (1632-1704) admitia a importân- ses e necessidades – como a base da apren-
cia dos brinquedos para as crianças, mas dizagem. A entrada oficial dos brinquedos
ressaltava o papel dos preceptores quanto na educação escolar encontrou um campo
a sua melhor utilização. Chama-nos a aten- oportuno no ideário de Friedrich Froebel
ção, conforme conta Manson, o interesse (1782-1852), o pedagogo alemão que fundou
dos artistas europeus quanto à infância e os o primeiro jardim de infância. Entre as par-
objetos característicos desse período da vida tes mais conhecidas de sua filosofia e de seus
– os brinquedos. A obra Os Jogos Infantis, de escritos estão os “presentes” ou “dons”, um
Pieter Brueghel – O Velho, no Renascimento, conjunto de objetos em escala gradativa de
Caderno Brincar 65
BRINCAR E AS TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL
66 Fundação Volkswagen
OBJETO
AÇÃO
LÚDICA
CRIANÇA
Caderno Brincar 67
BRINCAR E AS TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Caderno Brincar 69
BRINCAR E AS TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL
70 Fundação Volkswagen
tes meios de comunicação no coletivo. Pierre
Lévy afirma que cabe apenas a nós explorar
As tecnologias são
as potencialidades mais positivas desse espa-
ço nos planos econômico, político, cultural e
o sinônimo da
humano. A cibercultura tem se destacado
por revelar humanos cada vez mais relacio-
presença humana
nados aos suportes e aparatos tecnológicos.
Na verdade, a relação homem-máquina não
no mundo e representam
é peculiar ao ciberespaço. É, por sua vez,
própria da natureza humana. Diante dessa
a construção da
realidade, podemos visualizar não apenas
mudanças nos meios de comunicação ou in-
racionalidade.
teração mas também na área da Educação. A
velocidade das mudanças nos remete a um
estado de constante renovação.
As tecnologias ampliam as capacidades
humanas, a comunicação entre as pessoas,
suas formas de adquirir, organizar, arma-
zenar, analisar, relacionar, integrar, aplicar
e transmitir informação, desenvolvendo
inúmeras habilidades no homem por meio
do ato de pensar, refletir, criar e inovar no
mundo digital. Para tanto, essas tecnologias, e precisam se apropriar dela para não serem
denominadas pela pesquisadora e especia- excluídos do processo ou para sobreviverem
lista em semiótica Lucia Santaella como fer- em um mundo que exige conhecimento sobre
ramentas ou artefatos, são projetadas como sua utilização. Já os nativos digitais são aque-
meio para realizar uma tarefa, funcionan- les que nasceram ou vão nascer nesta era digi-
do como prolongamentos ou extensões de tal. Assim, observamos que por meio dos su-
habilidades do homem, em sua maior parte portes digitais, as crianças jogam, conversam,
manuais ou sensórias. Estão incluídas nessa trocam conteúdos, compartilham fotos em re-
definição as máquinas, que podem ser com- des sociais, entre outras ações. Incluímos aqui
paradas ao corpo ou ao cérebro humano. Já os ambientes virtuais de aprendizagem, em
em 1966, John Cohen afirmou em seu livro que as crianças interagem com brincadeiras
Human Robots in Myth and Science que a pos- enquanto aprendem.
sibilidade de imitar a vida por meio de um Na mesma linha de raciocínio, o espe-
artefato vem intrigando a humanidade des- cialista em ensino à distância Chip Dono-
de tempos imemoriais. hue apresenta no artigo Technology in Early
Childhood Education: and Exchange Trend
Interface entre tecnologia e Report os usos inovativos e eficientes da
ludicidade computação para o desenvolvimento huma-
Atualmente, as tecnologias da informação no. Para ele, existe uma diferença no ritmo
e comunicação fazem parte do cotidiano de de aprendizagem das gerações mais jovens
muitas crianças e jovens que, ao mesmo tem- dependendo do tipo de suporte e conteúdo:
po que brincam, estabelecem relações intera- quanto mais tradicional for o instrumento,
tivas, característica essencial da “sociedade mais lenta será a aprendizagem; ao contrá-
em rede” descrita pelo sociólogo Manuel Cas- rio, quanto mais inovadores forem os meios
tells. Ele classifica, com base no nível de ambi- (e aqui inserimos as tecnologias), mais di-
ência com as tecnologias, duas categorias de nâmico será o processo de apropriação do
indivíduos: os imigrantes digitais e os nativos conhecimento. Há de se considerar que,
digitais. Os primeiros estão acompanhando, quanto mais moderno e tecnológico é o ar-
na história, o desenvolvimento da tecnologia tefato, mais rapidamente ele ficará obsoleto.
Caderno Brincar 71
BRINCAR E AS TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL
72 Fundação Volkswagen
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Caderno Brincar 73
A cultura,
a brincadeira
e as culturas
infantis
A cultura inventada pelos pequenos encontra lugar na dos
adultos? Como Corsaro, Sarmento e Brougère, três autores
estrangeiros, enriquecem a discussão sobre as brincadeiras,
os pensamentos e as experiências das crianças.
Caderno Brincar 75
A CULTURA, A BRINCADEIRA E AS CULTURAS INFANTIS
76 Fundação Volkswagen
de cultura” unitária e fechada impede que as
atividades criadoras presentes no cotidiano
Também a redefinição de
tornem-se socialmente significativas:
criança no último século faz
Coloca-se o peso da cultura sobre uma
categoria minoritária de criações e de práti-
grande diferença. A noção de
cas sociais, em detrimento de outras: campos
inteiros da experiência encontram-se, desse
criança como sujeito que apenas
modo, desprovidos de pontos de referência
que lhes permitiriam conferir uma significa-
adquire ou absorve o mundo foi
ção à suas condutas, às suas invenções, à sua
criatividade.
substituída pela de sujeito com
Assim, o autor justifica a importância de
ação social, com direitos e como
pluralizar o termo e defender a existência
de cultura(s), enfatizando que a cultura das
produtor de culturas.
pessoas é inventada no dia a dia, nas práti-
cas sociais, nas atividades banais e renovada
constantemente, sendo o resultado de uma
inteligência prática. A historiadora e filósofa
Luce Giard, no prefácio do livro A Cultura no
Plural, sintetiza a concepção de De Certau:
“A cultura não consiste em receber, mas em
realizar o ato pelo qual cada um marca aquilo mento diz que “nada é puramente natural
que os outros lhe dão para viver e para pen- no homem. Mesmo as funções humanas que
sar”, e complementa: correspondem a necessidades fisiológicas,
como a fome, o sono, o desejo sexual etc. são
[...] toda a cultura requer uma atividade, um informados pela cultura: as sociedades não
modo de apropriação, uma adoção e uma trans- dão exatamente as mesmas respostas a essas
formação pessoal, um intercâmbio instaurado necessidades”.
num grupo social. É exatamente esse tipo de “cul- Esse pequeno percurso sobre a ideia de
turação”, se assim podemos dizer, que concede a cultura abre espaço para compreender as
cada época sua fisionomia própria. culturas infantis. A transformação do termo
para cultura(s) dá oportunidade para todos
Para esses autores, portanto, a cultura serem sujeitos produtores de cultura – in-
não é apenas um “tesouro” a ser transmitido dependentemente de idade, sexo, etnia ou
por meio de um longo processo de acultura- classe social. Também a redefinição de crian-
ção, mas a enfatizam como “a manipulação ça no último século faz grande diferença. A
adequada e criativa desse patrimônio cultu- noção de criança como sujeito que apenas
ral que permite as inovações e as invenções”. adquire ou absorve o mundo foi substituída
O sociólogo francês Cuche ao afirmar que a pela de sujeito com ação social, com direitos
cultura remete a modos de vida e de pensa- e como produtor de culturas.
Caderno Brincar 77
A CULTURA, A BRINCADEIRA E AS CULTURAS INFANTIS
78 Fundação Volkswagen
“são públicas, construídas coletivamente e com outras, com a presença ou não dos adul-
performáticas”, isto é, estão relacionadas às tos, no interior de uma cultura heterogênea
culturas mais amplas. e abrangente. As crianças estão imersas em
Já a reprodução interpretativa é o concei- várias culturas e singularizam essas informa-
to utilizado por Corsaro para a abordagem ções culturais em seus pequenos grupos de
dinâmica de socialização das crianças, des- convívio e também individualmente. Elas têm
crito a seguir: competência para agir e, desde muito peque-
nas, aprendem por meio do convívio social.
O termo interpretativa captura os aspec- Apesar de seus estudos enfatizarem a realiza-
tos inovadores de participação na sociedade, ção de pesquisas etnográficas com grupos de
indicando o fato de que as crianças criam e crianças em espaço escolar, a análise de Cor-
participam de suas culturas de pares singu- saro procura interpretar o “microespaço” das
lares por meio da apropriação de informa- brincadeiras infantis não apenas a partir das
ções do mundo adulto de forma a atender aos relações interpessoais, mas tendo em vista as
seus interesses próprios enquanto crianças. políticas públicas e as práticas sobre a infância.
O termo reprodução significa que as crian-
ças não apenas internalizam a cultura, mas Manoel Jacinto Sarmento
contribuem ativamente para a produção e a O trabalho de investigação de Sarmento che-
mudança cultural. Significa também que as gou ao Brasil na década de 1990. O autor é um
crianças e suas infâncias são afetadas pelas importante sociólogo português que pesqui-
sociedades e culturas das quais são membros. sa as condições sociais de vida das crianças e
dos mundos sociais em que habitam. Sua obra
Para o autor, as culturas infantis são as é muito ampla e abriga estudos demográficos,
produzidas pelas crianças, nos seus fazeres da análise documental e trabalhos de orientação
vida cotidiana, sozinhas ou em interlocução etnográfica. Essa experiência de larga abran-
80 Fundação Volkswagen
cos relativamente padronizados, ainda que di-
nâmicos e heterogêneos, isto é, em culturas?”.
Seriam as culturas infantis
O autor aceita a ideia de cultura como sis-
temas simbólicos em elaboração e apresenta
específicas das crianças?
alguns possíveis eixos estruturadores das
culturas da infância: a interatividade entre as
Estão elas vinculadas aos
crianças e das crianças com os adultos permite
apropriar, reinventar, e reproduzir o mundo
mundos adultos? Há uma
que as rodeia e assim as culturas de infância
permanecem na história humana; a ludicidade
cultura universal presente
como modo de ser infantil que recria constan-
temente o mundo; a fantasia do real como a pos-
na vida de todas as crianças
sibilidade de as crianças entrarem e saírem, de
forma contínua, do universo da fantasia/reali-
ou as culturas infantis são
dade; e a reiteração, o desejo/necessidade de re-
alizar atividades de maneira repetida enrique-
locais, contextualizadas?
ce a vida das crianças e mantém a permanência
da infância na sociedade. Esses textos foram os
inspiradores de grande parte das investiga-
ções sobre a infância realizadas no Brasil. conteúdos preexistentes e apropriação ati-
va, produção de novas situações, modos de
Gilles Brougère comunicação verbal ou não verbal, partilha,
Desde que os primeiros estudos do filósofo ludicidade, regra, ritmo, materialidades e
francês Brougère foram publicados no Bra- substâncias imateriais.
sil, na década de 1990, chamou a atenção o fato Durante muito tempo, o pesquisador
de o autor reconhecer a importância cultural centrou suas investigações na brincadeira
do brinquedo e as relações dos brinquedos e infantil, realizando estudos históricos sobre
das brincadeiras com a socialização das crian- a brincadeira e sobre os artefatos culturais
ças. Em seu livro Brinquedo e Cultura, de 1997, denominados brinquedos. Contudo, cada
ele comenta sobre a impregnação cultural das vez seus estudos apresentam maior comple-
crianças dizendo: “Toda a socialização pres- xidade e, no livro Brinquedos e Companhia,
supõe apropriação da cultura, de uma cul- de 2003, discute a relação da cultura lúdica
tura compartilhada por toda a sociedade ou e a cultura infantil. Brougère aponta que,
parte dela”. As crianças se apropriam daquilo apesar dos produtos disponibilizados para
que está em jogo em uma brincadeira, e, nes- as crianças pela sociedade adulta, a cultura
sa atividade, elas manipulam, transformam lúdica é provocada, também, pela produção
e também negam os sentidos definidos pelos de significados revelados pelas crianças em
objetos e pelos discursos. “Trata-se de um pro- suas interações com a brincadeira.
cesso dinâmico de inserção cultural sendo, ao
mesmo tempo, imersão em conteúdos pree- [...] o interessante é justamente poder levar
xistentes e apropriação ativa.” em consideração os dois aspectos num proces-
Brougère fala das brincadeiras como a so complexo de produção de significados pela
denominação genérica que os adultos confe- criança. É fato que a brincadeira é controlada
rem às “múltiplas interações” das crianças. O pelos adultos por várias vias, mas há na inte-
autor inicialmente não tematiza as culturas ração lúdica, quer ela seja solitária ou coleti-
infantis, mas é interessante como seu uni- va, alguma coisa de irredutível às imposições
verso vocabular para analisar as brincadei- e suportes iniciais, que é uma reformulação
ras está pleno de referências aos elementos pela interpretação que a criança faz deles,
usados para descrever o conceito de cultu- uma abertura para a produção de significados
ra: comportamento não inato, constituído inassimiláveis nas condições de saída.
na relação entre os individuos, imersão em
Caderno Brincar 81
A CULTURA, A BRINCADEIRA E AS CULTURAS INFANTIS
82 Fundação Volkswagen
A brincadeira potencializa a do. Na brincadeira as crianças são coautoras
cultura infantil de suas aprendizagens.
Antes de brincar com objetos, o bebê brinca Na década de 1940, o sociólogo Flores-
consigo mesmo, com a mãe, o pai e com as ou- tan Fernandes já afirmava que os folguedos,
tras pessoas com as quais convive. Suas pri- transmitidos de geração a geração, promo-
meiras experiências são lúdicas pois realiza viam a iniciação das crianças no meio social,
explorações e experimentações plurisenso- integrando ambos os sexos, exercitando a
riais e motoras que nos mostram uma das livre escolha, e que a brincadeira coletiva
mais importantes características do brincar propiciava às primeiras amizades, introdu-
e das brincadeiras: o divertimento, a alegria, zindo a noção de posição social, afetando a
a liberdade do corpo em movimento. A brin- personalidade e o caráter das crianças. O
cadeira é a experiência inicial das crianças autor descobriu que nos agrupamentos, por
em sua interação com os outros e com o mun- meio de sua própria cultura, as crianças iam
do. É brincando que ela aprende a estabele- aprendendo a reduzir conflitos, criar solida-
cer relações, a expressar-se, a observar e re- riedades, cooperação e disciplina, exercendo
criar linguagens. a tolerância dos maiores com os menores,
Brincar, jogar e criar são ações conec- com as diferenças sociais, étnicas e de gêne-
tadas na pequena infância. A brincadeira é ro, experimentando elementos culturais que
uma experiência criativa que exige espaço e correspondem aos usos e costumes dos adul-
tempo, pois o modo como brinca e com quem tos, contribuindo para preservar e atualizar
ela brinca constitui sua forma de viver, de modos de sentir, pensar e agir do patrimônio
pensar, de relacionar-se. Na brincadeira, ela cultural. Para Fernandes, é uma verdadeira
aprende a compartilhar a vida com outras aprendizagem na qual o mestre da criança
crianças: rindo, gritando, chorando, fazendo são as próprias crianças.
barulho, dançando, modelando, falando, ra- A presença de uma cultura lúdica pree-
biscando, silenciando, manchando, cantan- xistente supõe a aprendizagem de repertó-
Caderno Brincar 83
A CULTURA, A BRINCADEIRA E AS CULTURAS INFANTIS
84 Fundação Volkswagen
tradições e sistemas de significações têm
que ser interpretados, ressignificados, rear-
A cada novo arranjo,
ranjados, recriados. Como vimos anterior-
mente, a cultura não é só o que as pessoas
as crianças começam “mais
pensam mas também o que fazem e suas re-
alizações são multiformes e polifônicas. Por
uma vez”, realizando aquilo
isso, é fundamental, no mundo contemporâ-
neo, promover contextos lúdicos para que
que especifica a brincadeira:
as culturas infantis possam se desenvolver.
Contextos que ofereçam e favoreçam opor-
o fazer sempre de novo entre
tunidades para cada criança e seu grupo de
pares explorarem diferentes materiais e
a busca da novidade
instrumentos por meio de suas brincadei-
ras, de espaços e tempos com a presença de
e a repetição. Da repetição
brinquedos, de objetos e materialidades que
possam ser transformados. Lugares para que
nasce a transformação.
as brincadeiras aconteçam, que as aventuras
se constituam.
As crianças ouvem música e cantam, pin-
tam, desenham, modelam, constroem objetos,
vocalizam poemas, parlendas e quadrinhas,
manuseiam livros e revistas, ouvem e con- a alteridade cultural dos mais fracos – ope-
tam histórias, dramatizam e encenam situa- rários, mulheres, crianças – somente exis-
ções ao brincar. Brincando com tintas, cores, te quando eles estão à distância dos mais
sons, palavras, pincéis, imagens, rolos, água, fortes escapando, assim, ao confronto e à
exploram não apenas o mundo material e dominação. Estar a sós ou entre pares pode
cultural à sua volta como também expressam ser fonte de autonomia (relativa) e de criati-
e compartilham sensações, sentimentos, fan- vidade cultural.
tasias, sonhos e ideias com seus amigos reais Em segundo lugar, considerar a afirma-
e imaginários. O brinquedo e a brincadeira tiva de Lévi-Strauss de que não se deve com-
como artefato e prática cultural precisam preender a cultura como “[...] um contínuo
de transmissão, feita pelas gerações mais ve- entre magia-religião-ciência, mas como sis-
lhas, sendo elas crianças maiores ou adultos, temas simultâneos e não sucessivos”. Quan-
mas somente transformam-se em culturas do as crianças, a sós ou em pequenos gru-
infantis ao serem realizadas e reinventadas pos, descobrem seus modos de organizar os
pelas crianças. As proibições das famílias, as saberes e os fazeres da vida, isto é, a expe-
interdições dos professores, os objetos e ma- riência, conferem e partilham significados,
teriais, os espaços na cidade, na escola, em imaginam e constroem mundos simbólicos,
casa afetam o modo como as crianças vivem elas estão elaborando narrativas. Esses en-
suas experiências lúdicas. Portanto, além de saios cotidianos, que fazem parte da experi-
oferta de recursos, torna-se muito importan- ência infantil contribuem na participação
te garantir o direito das crianças brincarem delas nas interações sociais. São as narrati-
livremente sem serem interrompidas ou sem- vas que as crianças aprendem a constitutir
pre conduzidas pelos adultos. com a brincadeira que fundam a capacidade
Para a manutenção e expansão das cul- de construção simbólica, técnica, da cultura
turas infantis é preciso, portanto, ter aten- e da ciência. A brincadeira experienciada
ção a dois aspectos. O primeiro é dar às na infância acompanha devires dos seres
crianças – sozinhas ou com seus pares –, o humanos ao longo da sua vida transforman-
tempo e o espaço necessários para que elas do-se naquilo que denominamos a invenção
possam criar suas produções culturais. Se- lúdica da vida, fonte de energia, alegria, mo-
gundo Cuche, a possibilidade de constituir vimento, pensamento.
Caderno Brincar 85
A CULTURA, A BRINCADEIRA E AS CULTURAS INFANTIS
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Caderno Brincar 87
Formação
do brincante
para uma
pedagogia lúdica
Entre as ações capazes de potencializar o brincar infantil
está a necessidade de ressignificar o papel do adulto
brincante e defensor do direito da Brincar
Caderno criança à brincadeira.
Por isso, vale discutir como o educador se coloca em relação
às brincadeiras nas creches e pré-escolas.
Caderno Brincar 89
FORMAÇÃO DO BRINCANTE PARA UMA PEDAGOGIA LÚDICA
90 Fundação Volkswagen
O exercício constante das instituições infantis,
que desenvolvem ações de rotina na direção do
domínio dos corpos e das mentes das crianças,
quer torná-las previsíveis e controláveis, numa
lógica de pensamento e de ação do adulto. Essa
lógica, ligada à produção e ao capital, considera o
que a criança alcançará no futuro.
Caderno Brincar 91
FORMAÇÃO DO BRINCANTE PARA UMA PEDAGOGIA LÚDICA
92 Fundação Volkswagen
construção de conhecimento pelo próprio em colaboração com seus pares e outros
indivíduo, considerando-o enquanto ser parceiros, e para que também criem culturas.
competente que participa do processo de Nessa direção, Oliveira-Formosinho aler-
aprendizagem com liberdade, agência, in- ta que, perante o quadro social que valoriza a
teligência e sensibilidade. pedagogia transmissiva, “as educadoras preci-
A mesma autora ressalta que na pedago- sam resistir, persistir, agir em favor de um cur-
gia-em-participação os tempos educativos rículo que integre o trabalho e o jogo, o brincar
integram cuidados e práticas pedagógicas, e o aprender e que deixe às crianças tempo
compreendendo as múltiplas experiências, a para o sonho, a imaginação e a transgressão...”.
cognição e a emoção, as linguagens plurais e Christine Pascal, diretora do Centro de
as diferentes culturas. Nessa forma de pensar Pesquisa para a Primeira Infância no Reino
a educação, consideram-se essenciais as expe- Unido, e Tony Bertram, editor do periódico
riências constituídas pelas crianças a partir European Early Childhood Education Rese-
de suas vivências sociais com seus pares e com arch Journal, dizem que o envolvimento da
os adultos. Ganham relevo as manifestações criança em atividades dos contextos educa-
infantis, suas representações e suas narrati- tivos pode ser considerado um indicador da
vas sobre as coisas do mundo. Nesse sentido, atividade mental infantil, gerador de estados
as brincadeiras são situações privilegiadas de de concentração, perseverança, motivação
aprendizagens significativas para as crianças. intrínseca, atenção e experiências intensas
Para Oliveira-Formosinho, a atual realida- de aprendizagens. Isso se refere também, e
de social, aliada ao desconhecimento da peda- de forma especial, às brincadeiras infantis.
gogia da infância, acaba por impor às crianças
um currículo baseado na ideia de acumulação
das aprendizagens, em que há sobreposição
de atividades sequenciadas e que suposta-
mente acelerem seu desenvolvimento e as
preparem para a continuidade dos estudos.
Nessa perspectiva, a pedagogia transmissiva
tem lugar privilegiado e a brincadeira assu- É fundamental compreender
me papel secundário e, por vezes, ela acaba
sendo vista como fator que impede ou adia e e assumir a urgência do
atrapalha o desenvolvimento infantil.
Nossa entrada em diferentes instituições brincar onde as crianças
que atendem a pequena infância, como pes-
quisadoras e/ou formadoras, nos aponta a sejam as protagonistas,
real necessidade de sempre buscar, com os
educadores, o estabelecimento de reflexões para que elas possam criar
sobre o real valor da brincadeira protagoni-
zada pela criança. Nota-se que muitas vezes variadas realidades, para que
a brincadeira aparece, na ação dos educado-
res, colocada a serviço de uma aprendiza- imaginem possibilidades de
gem futura, geralmente a alfabetização, ou é
criada de forma fictícia pelo adulto, servindo ação e aprendam no universo
para disfarçar uma atividade de ensino, com
objetivos instrucionais bem definidos. da cultura, em colaboração
É fundamental compreender e assumir,
em nossas instituições, a urgência do brincar com seus pares e outros
onde as crianças sejam as protagonistas, para
que elas possam criar variadas realidades, parceiros, e para que também
para que imaginem possibilidades de
ação e aprendam no universo da cultura, criem culturas.
Caderno Brincar 93
FORMAÇÃO DO BRINCANTE PARA UMA PEDAGOGIA LÚDICA
94 Fundação Volkswagen
experiências valiosas” das crianças, cons- nificativos desse adulto/educador. Eles geram
truindo práticas que expressem sua clareza não só o reconhecimento e o respeito aos sabe-
de intenções e “que resultem em experiências res, desejos e necessidades das crianças mas
verdadeiramente educativas e duradouras, também novas e reflexivas práticas educati-
sem prejuízo à livre iniciativa e à criatividade vas, relacionadas à brincadeira de todas e de
da criança”, provendo um contexto que favo- cada uma das crianças atendidas.
reça a construção pela criança de seus sabe- Mas essa escuta eficiente, capaz de afetar
res, a sua criação e a investigação ativa. nossas ações concretas com as crianças e os
contextos educativos, não é tarefa de fácil re-
Desafios nas instituições alização. O professor catalão David Altamir,
infantis estudioso de Reggio Emilia, conceitua a escu-
ta como atividade ativa e receptiva do adul-
Desafio 1 to, que pressupõe uma mentalidade aberta e
Escutar os pequenos uma disponibilidade para interpretar as ati-
Mostra-se imensa e desafiadora a tarefa de, tudes e as mensagens lançadas pelo outro e
observando a brincadeira infantil e as ações ao mesmo tempo a capacidade de absorvê-las
cotidianas das crianças, reconhecer e seguir e legitimá-las. Para o autor, se considerarmos
os indícios de uma ação iniciada por estas, as crianças como pessoas capazes de criar e
promotora de significados sobre si mesmas e construir significados e, portanto, cultura, o
o mundo. É na disponibilidade e no esforço de desafio é compreender os processos sutis e
realizar essa escuta da criança, consideran- complexos que utilizam para isso.
do-a como atividade principal do educador, e Sabe-se que a formação inicial dos educa-
imprescindível para a ação profissional, que dores, que na maioria dos casos esteve, e ainda
podem surgir processos de intervenção sig- está, pautada numa lógica transmissiva, colo-
Caderno Brincar 95
FORMAÇÃO DO BRINCANTE PARA UMA PEDAGOGIA LÚDICA
96 Fundação Volkswagen
de afetar os contextos nos quais atua, sendo tempo vividos são relacionais, isto é, a orga-
inclusive suscetível de provocar, nas crian- nização, a diversidade, a beleza e a riqueza
ças, outros motivos para conhecer, explorar, dos materiais e do tempo ganham significado
comunicar e agir num mundo de materiais, de através das interações que humanizam o es-
contextos concretos e de relações com outros paço de vida e aprendizagem”. A brincadeira
humanos e com a cultura, atuando de manei- não ocorre num vácuo temporal, material ou
ras diversas das até então vivenciadas por elas, de relações, e não há brincadeira “livre” nesse
construindo e ampliando seus conhecimentos, sentido, ela sempre está vinculada aos contex-
sobre si mesmas e sobre o mundo. tos onde tem lugar a experiência infantil.
No que se refere ao protagonismo da
Desafio 2 criança, Brougère afirma que a presença de
Reconhecer que o educador brinquedos no ambiente não é capaz de im-
afeta, de fato, a brincadeira por-se na brincadeira, sem que haja uma deci-
das crianças são primeira de quem brinca, de vir a intera-
O adulto/educador tem intervenção concre- gir com eles. A brincadeira, segundo o autor,
ta e efetiva na brincadeira da criança, mes- pode ainda acontecer mesmo sem qualquer
mo quando este não está fisicamente pre- tipo de apoio material.
sente, ou quando isso nem lhe é consciente. Apesar disso, Oliveira-Formosinho relem-
O espaço e os materiais disponibilizados ou bra que a escolha dos materiais oferecidos às
não para a criança brincar, a intervenção do crianças não pode nem deve ser aleatória, pois
adulto no momento da brincadeira ou ausên- embora este não seja o elemento central do
cia dela, o tempo destinado para a atividade, processo de simbolização, liga-se à capacida-
a “permissão” para a brincadeira acontecer, de imaginativa da criança à medida que pode
os papéis que “permite” que as crianças assu- enriquecer os contextos de sua emergência e
mam, o gerenciamento que faz das relações e continuidade, fomentando necessidades de
conflitos, entre outras ações, mesmo que não narração, interação, experimentação etc. A
intencionais, afetam diretamente a brinca- autora salienta a necessidade de refletir sobre
deira infantil. o entretecimento das linguagens do humano e
Júlia Oliveira-Formosinho afirma que de como elas se integram e potencializam, re-
na pedagogia-em-participação o “espaço e o forçando que “estamos diante de uma pedago-
gia da complexidade, não lhe podemos fugir
nem o queremos. Tomamos a decisão de des-
construir a pedagogia transmissiva baseada
num receituário uniforme pré-estabelecido”
e parece-nos que isso afeta diretamente a cria-
ção dos contextos educativos, as intervenções
que fazemos neles e os processos de mediação
que optamos implementar nas instituições
em que atuamos.
É evidente que a ação infantil, e em parti-
cular a brincadeira, na perspectiva da peda-
gogia-em-participação, não pode prescindir
de reflexões acerca da prática educativa, com
os educadores verificando se a brincadeira
protagonizada pela criança tem ou não lu-
gar e que importância assume nas institui-
ções, se o ambiente inter-relacional recebe
o devido interesse e mediação, se há ações
concretas na direção de criar ambientes
educativos que acolham, apoiem e desafiem
todas as crianças, independentemente de
Caderno Brincar 97
FORMAÇÃO DO BRINCANTE PARA UMA PEDAGOGIA LÚDICA
Desafio 3
Formar-se com o outro,
transformando a si mesmo
É imprescindível ressaltar que em nosso
país a formação inicial de professores para
a Educação Infantil ainda não se assenta nas
especificidades da etapa até 5 anos, e isso,
de muitas maneiras, desqualifica este edu-
cador a ver as crianças, a compreender suas
necessidades e interesses, a identificar cla-
ramente o papel do brincar para elas assim
como dificulta a compreensão da real im-
portância da mediação nessa ação infantil.
O processo de formação, entretanto, é com-
preendido como intransferível e ininter-
rupto, ou seja, não é atribuição exclusiva
dos cursos iniciais.
Segundo Altamir, o adulto/educador
deve abandonar, ou ao menos ressignificar
em larga medida, seu papel centralizador na
relação das crianças com o conhecimento, re-
conhecendo nessa tarefa a vulnerabilidade
de sua própria ação, junto com suas dúvidas,
erros e curiosidades. É papel dos educadores
realizar autênticos atos de conhecimento e
criação, colocando-se ao lado das crianças no
processo de conhecer, considerando-as tão
potentes quanto eles próprios, formando-se
com as crianças, com os demais adultos, e
com a cultura já constituída.
É necessário reconhecer a transitoriedade
dos saberes já construídos e principalmente a
precariedade das certezas, para assim buscar
constantemente formas de qualificar a ação
profissional, porém esse caminho não se mos-
tra fácil ou tranquilo.
Para o educador de infância, formar-se
como brincante e promotor do direito de
brincar das crianças é uma condição funda-
mental. Ele pode interpretar de modo dife-
98 Fundação Volkswagen
renciado suas vivências, tornando-se capaz
de transformá-las. Faz isso redimensionan-
É papel dos educadores
do os processos de aprendizagem ao consi-
derar o que desenvolve no local onde atua,
realizar autênticos atos
e também sobre as concepções que baseiam
suas práticas profissionais.
de conhecimento e criação,
Mas essa desejável transformação só se
torna possível quando há real intenção de
colocando-se ao lado das
aprender, quando há um movimento concreto
do aprendiz nessa direção, quando os indiví-
crianças no processo de
duos se colocam em interlocução com outros
parceiros e outros saberes que os capacitem a
conhecer, considerando-as
descentrar seus pontos de vista, questionan-
do suas verdades, suas certezas e suas práti-
tão potentes quanto eles
cas. Não existe mudança sem reflexão, como
também não existe transformação sem ação
próprios, formando-se com
voluntária, sem agência do sujeito.
Como bem aponta Oliveira-Formosinho,
as crianças, com os demais
nós nos formamos e transformamos em pro-
cessos reais de partilha. Se não há mudança
adultos, e com a cultura
no isolamento, também não há mudança
sem estranhamento. O que é cotidiano está
já constituída.
naturalizado aos nossos olhos e, o que nos é
natural, não requer alterações, tornando-se
quase uma verdade absoluta, inquestionável
de tão corriqueira. Precisamos olhar para os
nossos contextos educativos cotidianos com Em relação aos processos de transfor-
desconfiança, com olhar de pesquisadores de mação das práticas, embora seja importan-
nossas próprias práticas e das ações infantis, te o estudo das questões da educação sob a
buscando sempre formas cada vez mais ade- perspectiva da teoria, isso não é suficien-
quadas de fazer isso. te e não prepara necessariamente para a
Parece que hoje, infelizmente, a lógica ação. Faz-se necessário uma atuação escla-
transmissiva adquiriu esse status de natural recida e comprometida na educação, e essa
para a pedagogia, desde a pequena infância, sabedoria que remete à práxis só pode ser
e com ele trouxe a pouca valorização da brin- desenvolvida pela experiência. Vem daí a
cadeira infantil. Transformar essa realidade importância dos educadores participarem
é tarefa intransferível dos educadores. de processos formativos que os mobilizem,
Ora, se o mote “aprender a aprender” com base em suas aprendizagens experien-
serve para ilustrar o processo de conheci- ciais, criando oportunidade de reconstru-
mento almejado para as crianças, também ção e reinterpretação, particularmente nas
é válido para nós educadores. Temos que ações que afetam o brincar das crianças em
reaprender o que é ser professor da peque- ambientes coletivos.
na infância, construindo cada vez mais pro- Formar-se implica uma tarefa individu-
cedimentos, instrumentos e ações que nos al e também coletiva, num movimento que
levem a conhecer melhor as crianças e suas deve focalizar a práxis, compreendida pela
manifestações enquanto sujeitos produto- relação entre ações, valores e teorias, à luz de
res de cultura que são, e, nessa perspectiva, outros saberes. Para romper com a realidade
(re)criar formas de ação cada vez mais sig- da pedagogia transmissiva, que desvaloriza a
nificativas e valorosas para apoiar as crian- brincadeira infantil, trazendo para essa ação
ças nas relações que elas estabelecem com o infantil processos de intervenção pobres por
mundo e as descobertas que disso advém. parte dos educadores, é fundamental tecer
Caderno Brincar 99
FORMAÇÃO DO BRINCANTE PARA UMA PEDAGOGIA LÚDICA
olhos e não requer alterações, res pode ser capaz de criar melhores condi-
ções para que as crianças ajam no e sobre o
MARIA SALETE DE
MOURA TORRES ERECHIM
é pedagoga com especialização em
Atendimento Educacional Especializado
e mestrado em Psicopedagogia. Atua
como professora de Educação Especial
da Secretaria Estadual do Rio Grande do PORTO
Sul, coordenadora da Educação Inclusiva ALEGRE
da Secretaria Municipal de Educação
de Erechim e professora da Faculdade POPULAÇÃO
Anglicana de Erechim. 102.906 habitantes (estimativa IBGE, 2016)
ÍNDICE DE DESENVOLVIMENTO
DANIELE VANESSA
HUMANO (IDH)
KLOSINSKI
0,776 (2010) (Fonte: Atlas Brasil 2013
é especialista em coordenação, orientação
Programa das Nações Unidas para o
e supervisão escolar e coordena
Desenvolvimento)
a Divisão de Educação Infantil da
Secretaria Municipal de Educação de REDE MUNICIPAL
Erechim. Formou-se em Pedagogia pela 15 escolas de Educação Infantil
Universidade Regional Integrada do Alto
ATENDIMENTO
Uruguai e das Missões (URI) e cursou
4.096 crianças
mestrado em Educação na Universidade
(2.128 em creche e 1.968 na pré-escola)
Federal da Fronteira Sul (UFFS).
criam possibilidades de
AEE decide pelo atendimento coletivo. Não
vejo outra forma senão o brincar como um fa-
quebra no paradigma do
zer pedagógico, levando em conta sua impor-
tância no desenvolvimento da criança.
que atuam no AEE desenvolvem projeto com turno manhã e outro do turno tarde) e pro-
os pais ou responsáveis pelos alunos que fre- fessor de apoio ao processo ensino-aprendi-
quentam o atendimento para esclarecer so- zagem (professor do quadro-geral indicado
bre a importância do brincar, da estimulação pela direção da escola em parceria com a
motora, cognitiva e sensorial. Nas atividades mantenedora). A equipe é a facilitadora do
do projeto, elas procuram mostrar que toda a processo de inclusão e sucesso escolar de to-
criança é igual, somente algumas possuem es- dos os estudantes ereúne-se periodicamente
pecificidades devido à deficiência, transtorno para planejar estratégias e possíveis encami-
do espectro autista (TEA), transtorno global nhamentos, orientando o processo de ensino-
de desenvolvimento (TGD) ou alta habilidade/ -aprendizagem. A cada semestre é realizado
superdotação. Trabalhar pedagogicamente um levantamento diagnóstico de todos os que
na perspectiva da Educação Inclusiva é pen- apresentam dificuldades na aprendizagem,
sar a criança como sujeito aprendente, respei- ele facilita o acompanhamento e mapeamento
tando suas limitações e potencialidades. dos desafios educacionais da escola.
Na proposta de Educação Inclusiva, a A mantenedora, em sua proposta de Edu-
equipe de apoio ao processo ensino-aprendi- cação Inclusiva, realiza reuniões de estudo,
zagem é constituída nas escolas de Educação informativas e de socialização de experiên-
Infantil por: diretor (gestor), coordenador cias com os professores de apoio ao processo
pedagógico, professor de AEE, professor elei- ensino-aprendizagem mensalmente. Eles são
to pelos seus pares representando-os (um do mediadores da inclusão na escola, pois tra-
os adultos, a interação com diversos materiais Se for orientado pela Diretriz Curricular
e brinquedos, o enfrentamento de desafios Nacional para a Educação Infantil, o trabalho
que lhes são propostos, enfim este é o lugar pedagógico terá sempre como ponto de par-
onde tudo e todos se envolvem no processo de tida a brincadeira e levará em conta vivên-
construção de saberes e conhecimentos lúdi- cias, interações e experiências das crianças.
cos necessários à infância. No município de Erechim, a brincadeira é
tratada como assunto sério e é considerada o
Brincadeira levada a sério principal agente de aprendizagem, pois nela
O planejamento do professor é fundamental todos os sujeitos do processo são ativos e
nesse processo, visto que a Educação Infantil tornam-se brincantes, sejam eles crianças ou
apresenta especificidades que são característi- adultos. Nessa ótica, a coordenadora pedagó-
cas dessa faixa etária. O pesquisador Junquei- gica Franciane destaca a importância do pla-
ra Filho, em Linguagens Geradoras: Seleção e nejamento para pensar e elaborar propostas
Articulação de Conteúdos em Educação Infantil de trabalho na escola:
destaca que o professor não é tido como a úni-
ca fonte de seleção de conteúdos, nem o único É o planejamento que vai dar suporte e
sujeito a articular os conteúdos que compõem segurança ao professor em sala de aula e garan
a proposta pedagógica. Ao organizar o espaço tir a continuidade do processo de aprendiza-
educativo, o profissional deve levar em consi- gem para as crianças. Ele é organizado pela
deração diversos aspectos, oferecer um am- equipe diretiva, mas principalmente pela coor-
biente acolhedor, bem como uma seleção das denadora pedagógica, que se reúne com as pro-
atividades que levem em conta a concepção do fessoras para juntas discutirem e prepararem as
professor e da criança envolvida. atividades a serem desenvolvidas.
o)
VERSÃO VERTICAL
o COLORIDA POSITIVA
Fundação Volkswagen
CONSELHO DE CURADORES
VERTICAL P&B
CADERNO BRINCAR
Coordenadora do Projeto: Juliana Matteucci
Consultoria editorial, coordenação e edição: Maggi Krause
Consultoria acadêmica e coordenação: Tizuko Morchida
Projeto gráfico e diagramação: Victor Malta
Ilustrações: Estúdio Rebimboca
Fotos: Agência Ophélia
Revisão: Sidney Cherchiaro
Web designer: Vilmar Oliveira
Programação: Guilherme Schmidt