Apostila Projeto Brincar Materiais Inclusivos 17 MB

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BRINCAR

CADERNO

VOLUME 1

Propostas de reflexão sobre brincadeiras e práticas


inclusivas para professores de Educação Infantil

O LUGAR DAS BRINCADEIRAS NA EDUCAÇÃO


Refletir sobre a atividade das crianças e dar espaço para a imaginação, PATROCÍNIO

a interação e a criatividade leva ao desenvolvimento e à aprendizagem

RESPEITO ÀS DIFERENÇAS • A IMPORTÂNCIA DA MÚSICA


CRIAÇÃO DE CULTURA INFANTIL • A FORMAÇÃO DO BRINCANTE
O DIREITO À IMAGINAÇÃO • ESPAÇOS QUE AJUDAM O BRINCAR
A PEDAGOGIA LÚDICA • O DESAFIO DA TECNOLOGIA
CADERNO

BRINCAR VOLUME 1
Propostas de reflexão sobre brincadeiras e práticas
inclusivas para professores de Educação Infantil

TIZUKO MORCHIDA KISHIMOTO


MARIA TERESA EGLÉR MANTOAN
LYDIA HORTÉLIO
MARIA DA GRAÇA SOUZA HORN
MARIA WALBURGA DOS SANTOS
CLEONICE M. TOMAZZETTI
MARIA DO CARMO KOBAYASHI
WAGNER ANTONIO JUNIOR
MARIA CARMEN SILVEIRA BARBOSA
SANDRA SIMONIS RICHTER
MÔNICA APPEZZATO PINNAZA
MEIRE FESTA
MARIA SALETE DE MOURA TORRES
DANIELE VANESSA KLOSINSKI
MAGGI KRAUSE

1ª edição

São Paulo
2017
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Agência Brasileira do ISBN - Bibliotecária Priscila Pena Machado CRB-7/6971

C122 Caderno brincar : volume 1 : propostas de reflexão sobre


brincadeiras e práticas inclusivas para professores de educação infantil
[recurso eletrônico] /[orgs. Juliana Matteucci e Tizuko Morchida
Kishimoto; ilustração Estúdio Rebimboca]. — São Paulo : Associação
Nova Escola, 2017. Dados eletrônicos (pdf). — (Caderno Brincar ; 1).

ISBN 978-85-907064-1-0

1. Educação infantil. 2. Atividades recreativas na sala de aula.


3. Brincadeiras. 4. Inclusão escolar. I. Matteucci, Juliana. II. Kishimoto,
Tizuko Morchida. III. Estúdio Rembimboca. IV. Título. V. Série.

CDD 372.416
Caros educadores,
É com imensa alegria e satisfação que apre- parceria com os setores públicos, privados
sentamos o Caderno de Educação Infantil, e a sociedade civil organizada (organizações
elaborado numa parceria entre a Fundação não governamentais – ONGs) para, conjun-
Volkswagen e a Revista Nova Escola. tamente, implementar projetos que influen-
Este material foi produzido por especia- ciem políticas públicas e que sejam sustentá-
listas e reúne uma ampla abordagem das te- veis a longo prazo.
máticas que devem ser trabalhadas em sala O projeto Brincar acontece da mesma
de aula, como parte do material de formação forma, em parceria com a Mais Diferenças e
do projeto Brincar, que oferece formação com as secretarias municipais ou estaduais
continuada a educadores das redes públicas de Educação das localidades onde é realizado.
de ensino e que acreditam na Educação In- Acreditamos e investimos nos educado-
fantil inclusiva como chave para transfor- res porque trabalhamos para garantir um
mar o mundo. direito que a todos pertence: o de aprender.
O processo educacional é uma fase da vida
que reflete diretamente no comportamento Boa leitura!
futuro de cada indivíduo. É nessa fase que as
pessoas aprendem a lidar com as dificuldades,
obstáculos, limitações e diferenças.
A escola deve se abrir para a diversidade,
acolhê-la, respeitá-la e, acima de tudo, valori-
zá-la como elemento fundamental na consti-
tuição de uma sociedade democrática e justa.
Estamos sempre inovando e buscando
novas formas de contribuir com a educação.
Desde 1979, investimos em projetos de edu-
cação e desenvolvimento social, promoven-
do e realizando ações que contribuam para
a melhoria da qualidade da educação públi-
ca em nosso país e que fomentem o desen-
volvimento social de comunidades de baixa Keli Smaniotti
renda. Nossas atividades são realizadas em Diretora de Administração e Relações Institucionais
SUMÁRIO
6 Brincar é para todos: um
tema em oito abordagens
Tizuko Morchida Kishimoto

20
Infância e diferença
na escola
Maria Teresa Eglér Mantoan

30
Música da Cultura Infantil:
significado e importância

40
Lydia Hortélio

A organização do espaço e
suas relações com o brincar
Maria da Graça Souza Horn
50
Brincar e imaginar: para todo
mundo e para a vida inteira
Maria Walburga dos Santos
e Cleonice M. Tomazzetti

62
Brincar e as tecnologias
na Educação Infantil
Maria do Carmo Kobayashi
e Wagner Antonio Junior

74
A cultura, a brincadeira
e as culturas infantis
Maria Carmen Silveira Barbosa
e Sandra Simonis Richter

88 Formação do brincante
para uma pedagogia lúdica
Mônica Appezzato Pinnaza e Meire Festa

102
Uma cidade que respeita
as diferenças
Maria Salete de Moura Torres
e Daniele Vanessa Klosinski
Brincar é para
todos: um tema em
oito abordagens
Aspectos diferentes da discussão, cada qual em um
artigo, entram na roda para revelar a importância
do brincar na Educação Infantil e para a inclusão.
Especialistas convidados reforçam a necessidade de
escuta das crianças e de formação específica para
enriquecer a teoria e transformar a prática.

TIZUKO MORCHIDA KISHIMOTO


é professora titular e pesquisadora sênior da
Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo. Atua na formação de professores de Educação
Infantil, investiga e publica livros e artigos sobre
o brincar, as pedagogias e as culturas da infância.
Coordena ações formativas com organizações
nacionais e internacionais.

6 Fundação Volkswagen
A brincadeira e as intera-
ções são dois eixos que marcam a Educação
Infantil e abrem caminhos para viabilizar a
integração de todas as crianças nas escolas,
dando visibilidade e voz também às da Edu-
cação Especial.
dificultam ou facilitam a produção da cul-
tura lúdica.
A cultura é peculiar às atividades huma-
nas e o brincar, enquanto cultura, é atividade
da criança, uma forma de expressão gerada,
processada e formatada em um tempo par-
Com intenção de colaborar na forma- ticular, conforme menciona Mouritzen, em
ção dos profissionais de Educação Infantil, seu livro Child Culture – Play Culture. Embora
esta publicação destina-se a divulgar o foco crianças e adultos brinquem, aqui se destaca
do brincar como parte das ações de inclu- o brincar na Educação Infantil como direito
são escolar. Neste projeto, em que atuei de todas as crianças, independentemente do
como curadora de oito artigos escritos por sexo, da cor, raça, família, das diferenças e
especialistas, ressaltei concepções que de- diversidades individuais e de contextos fami-
talho ao longo deste texto introdutório. liares, econômicos, sociais e culturais. Esse di-
Entre as principais discussões estão o sig- reito, para ser plenamente exercido, necessita
nificado do brincar para todas as crianças da atenção dos adultos para sua viabilidade.
e o impacto das culturas institucionais, que A pluralidade de concepções veiculadas nos

Caderno Brincar 7
BRINCAR É PARA TODOS: UM TEMA EM OITO ABORDAGENS

contextos educativos construídos pela equi- situações, significa produzir cultura com
pe escolar nem sempre garante esse direito, crianças, na qual os adultos e elas, juntos, fa-
o que nos leva a indagar: “Quais significações zem uso de materiais e produzem artefatos,
sobre a infância e o lúdico prevalecem nas mas aqui nem sempre está presente o lúdico.
escolas de Educação Infantil?”. Crianças da Quando professores/as oferecem materiais
Educação Especial incluídas nas salas têm para produzir objetos ou atividades com jo-
direito à diferença na igualdade dos direitos, gos, com regras postas apenas por adultos, a
como salienta Mantoan em artigo inserido ação lúdica é cerceada. Para alguns, tais ati-
nesta publicação (página 20)? vidades podem ser “jogos”, para outros, es-
Tais questionamentos decorrem das rela- pecialmente para as crianças, elas reduzem-
ções estabelecidas pelas escolas de Educação -se à reprodução das regras definidas pelos
Infantil entre o lúdico e as culturas da infân- adultos, afastando-se do lúdico. Tais signifi-
cia, o que requer a clareza sobre o significado cados requerem o detalhamento do brincar.
de tais relações. Para uns, cultura da infân-
cia significa dar voz às crianças para brin- O significado do brincar na
car. Para outros, representa a produção de Educação Infantil
dramatizações, livros, música, jogos e brin- O brincar para crianças pré-escolares pro-
quedos feitos por adultos destinados aos pe- dutoras de cultura, especialmente aquela
quenos. Mas, nesse último caso, embora re- chamada de cultura de pares, na acepção
levante para a Educação, não se contempla a de William Corsaro, é ponto de partida e de
ação protagonizada pela criança. Em outras chegada. Nessas relações entre os pares sur-
ge a cultura lúdica, que significa imaginar,
expressar, ter o direito ao encantamento, à
exploração, a ser criança, fazer amizades e
também aprender enquanto se brinca.
Dúvidas sobre o binômio brincar/apren-
O brincar na Educação der trazem a indagação: “Aprende-se brincan-
do?” As respostas variam: aprende-se quando
Infantil é um direito se ensina novos jogos e regras diferentes, em
brincadeiras com outros, com música, movi-
de todas as crianças, mentos veiculados pela tradição da infância,
uso de novas tecnologias e meios de comuni-
independentemente do sexo, cação, jogos de regras, brincadeiras imaginá-
rias, de construção, assim como na expressão
da cor, raça, família, das das 100 linguagens, como diria o italiano Loris
Malaguzzi, criador da abordagem pedagógica
diferenças e diversidades de Reggio-Emília. O modelo do ensino-apren-
dizagem, típico do contexto escolar, não é su-
individuais e de contextos ficiente ao brincar pela hegemonia do adulto
e ausência da escuta da criança. Se o desejo é
familiares, econômicos, que os pequenos brinquem, é preciso um am-
biente educativo típico da educação informal,
sociais e culturais. Esse com pouco controle do adulto, que garanta o
protagonismo deles. No entanto, relacionar
direito, para ser plenamente brincar e aprender requer outras reflexões.
O brincar e o aprender têm a mesma raiz.
exercido, necessita da A intenção do sujeito que aprende/brinca
mobiliza a decisão da criança e gera seu pro-
atenção dos adultos tagonismo. É possível potencializar tanto o
aprender como o brincar por meio de con-
para sua viabilidade. textos culturais planejados, construídos com

8 Fundação Volkswagen
espaços, materiais e interações que enrique- terceira via em que o brincar e o aprender,
cem e permitem escolhas e o protagonismo embora distintos, partilham de um elemen-
da criança, além de profissionais bem forma- to comum se dá pelo protagonismo infantil.
dos. Em síntese, o segredo do brincar está na Não se brinca sem tomar decisão e sem pro-
decisão da criança, como diz Brougère, no tagonismo. Da mesma forma, não se aprende
interesse da criança, como aponta Dewey, quando a criança não quer, quando ela não se
na sua ação, como sustenta Piaget, e na situ- envolve. Psicólogos como Piaget, Vygotsky,
ação imaginária, como assegura Vygotsky. Bruner, Leavers, sociólogos como Brougère e
Também se pergunta: “Ou isto ou aquilo? Corsaro e filósofos como Dewey e Wittgens-
Ou o brincar ou o aprender?”, como ques- tein têm, entre tantos conceitos, um ponto
tiona Cecília Meirelles. As crianças querem de concordância: a criança brinca e aprende
o brincar e as escolas o aprender. Buscar a quando quer e se interessa.

Caderno Brincar 9
BRINCAR É PARA TODOS: UM TEMA EM OITO ABORDAGENS

Mas como criar esse ambiente para que Dewey, para os quais do brincar emergem
o envolvimento e o protagonismo da criança interesses e necessidades das crianças que
possam emergir? Essa é tarefa de adultos que podem ser ampliados por meio da investi-
se desnudam da intenção pedagógica desti- gação e de processos reflexivos. Na mesma
nada apenas à aprendizagem de conteúdos direção, Vygotsky propõe que a brincadeira,
escolares esperados e buscam a formação de como ato de decisão da criança para expres-
seres criativos que sabem escolher, criar cul- sar uma situação imaginária, se transforme
tura, que valorizam o imaginário, o protago- na atividade principal da fase pré-escolar.
nismo infantil e a liberdade para se expres- Quando mediada, ela alavanca a aprendiza-
sar. O brincar, como linguagem expressiva, gem e o desenvolvimento infantil. Ações lúdi-
é também mola propulsora para aprendiza- cas, típicas das culturas da infância, surgem
gens significativas. A oposição entre o brin- relacionadas com a aquisição das diferentes
car e o aprender se anula quando há clareza linguagens no processo da emergência do
de que é pelo brincar que se chega a outros letramento, como prática social. É nesse sen-
conhecimentos. tido que as Diretrizes Curriculares Nacionais
Esse é o ponto de partida do filósofo John de Educação Infantil (DCNEI), de 2010, conce-
Dewey e de sua filha, a psicóloga Evelyn bem o brincar como linguagem da criança,
iniciada por ela, como voz da criança porta-
dora de múltiplas linguagens.
Tais linguagens podem ser propiciadas
quando se dispõe de ambientes educativos
com brincadeiras similares às da família e da
comunidade, visando ao fluxo contínuo de
experiências e ao encorajamento da criança
na incorporação de atividades de letramento
da casa para a escola e vice-versa. Pesquisa-
dores americanos que estudam a linguagem
na Educação Infantil como Kathleen Roscos,
professora do Departamento de Educação
e Psicologia Escolar da Universidade John
Carroll, e James Christie, da Universidade do
Estado do Arizona, indicam forte presença
do brincar quando há cenários ou espaços
físicos tematizados que ajudam a criança a
desenvolver habilidades, estratégias, lingua-
gem oral e escrita. Diante de um ambiente
em que liberdade e orientação coexistam, a
criança aprende a tomar decisões alavancan-
do sua própria aprendizagem. Outra contri-
buição do lúdico na linguagem infantil surge
de estudos de Katherine Nelson e Susan Sei-
dman, professoras americanas da Universi-
dade da Cidade de Nova York, que estudam o
mundo social na mente infantil e mostram
como guias mentais complexos construídos
pelas crianças na brincadeira de faz de con-
ta levam à ampliação de narrativas. Os guias
simples têm único roteiro, como ir e voltar
da escola, acompanhados por narrativa cur-
ta. Quando um guia é sempre o mesmo, sem
diferenciação, algo simples que se imita e

10 Fundação Volkswagen
se repete da mesma forma, o brincar pro-
duz prazer, que, embora importante, não é
Muitos perguntam:
suficiente para a educação de crianças pré-
-escolares com potencialidade para avançar
"Aprende-se brincando?"
em suas expressões lúdicas.
Os guias complexos contemplam si-
Para uns, aprende-se
tuações com vários personagens e ações,
produzem diálogos mais ricos e longos,
quando se ensina novos
prolongam-se por vários dias, semanas, com
simbolismos variados criados com uso de
jogos e regras diferentes.
diferentes objetos e que têm impacto na am-
pliação do conhecimento e fazem a diferença
Mas também brincando
na vida da criança do período pré-escolar.
Essa abordagem pode ser ampliada com
com outros, em contextos
o uso da cultura popular, que, por meio de
seus vários objetos, como pôsteres, caixas
de educação informal, em
de lanche, computadores e jogos, acessórios,
livros, pintura no corpo, mobiliário, cartas,
brincadeiras com música,
rádio, alimentos e bebidas, artefatos para
role-play, ritmos, piadas, raps, brinquedos,
uso de tecnologias e meios
música, telefones móveis, roupas, sapatos,
lojas, televisão, vídeos, entre outros, favo-
de comunicação.
recem também a emergência do letramento.
Essa orientação já era apontada pelo peda-
gogo brasileiro Paulo Freire que enfatizava
a relação entre cultura popular, letramento
e escolarização. Em sua cultura popular, a
criança, menino ou menina, aprecia brinca-
deiras com super-heróis e princesas, espa-
das, Pokémon, Xuxa, bonecas, que propiciam
muitas aprendizagens. Os jogos de compu-
tadores, super-heróis e programas Disney,
preferidos pelas crianças, são pouco valo-
rizados pelos adultos, que os consideram de
baixo valor educativo.
Mas a desconstrução dessa visão do adul-
to já se nota em algumas experiências que
afloram nas práticas de professoras de al-
gumas escolas de Educação Infantil em São
Paulo, que, após processos formativos, escu-
tam os pequenos e aceitam o envolvimento
constante deles com brincadeiras de super-
-heróis e princesas e investem na sua amplia-
ção. Partindo dos personagens preferidos
dos meninos, como Homem-Aranha e Super-
-Homem, as crianças investigam heróis da
infância dos familiares (pais, mães, avós) até
chegar aos da mitologia grega, como Aquiles,
dos pés ligeiros, e Poseidon, deus do mar,
portando tridente e acompanhado pelos
golfinhos. Atena, deusa da guerra e da sabe-

Caderno Brincar 11
BRINCAR É PARA TODOS: UM TEMA EM OITO ABORDAGENS

doria, com seu arco e flecha, Artemis, deusa As professoras descobrem, nesse proces-
da caça, e Pégaso, representado pelo cavalo so, que interesses sobre super-heróis e prin-
alado, símbolo da imortalidade, entre outros, cesas se integram aos temas previstos pelo
que encantam meninos e meninas. projeto pedagógico como identidade do eu
As crianças surpreendem pela rápida e do outro, ampliação de diferentes lingua-
compreensão da identidade de cada perso- gens verbais e não verbais, sustentabilidade,
nagem – com seus poderes e adereços – du- acolhimento dos pais, tendo clareza de que a
rante as brincadeiras e a criação de novos educação que parte do brincar e da experiên-
cenários. Nesse processo, planejado com cia da criança leva aos conteúdos propostos
apoio delas, de professoras e familiares, pela escola. Desse modo, meninos e meni-
nota-se a desconstrução de gênero, de me- nas ampliam seus códigos culturais, dando
ninas assumindo personagens dos heróis; maior complexidade à cultura de pares, pela
envolvimento de todos na produção de ce- expressão de novos personagens, com iden-
nários e artefatos; multiplicidade de lingua- tidades que se manifestam na linguagem
gens que expressam saberes nos desenhos e oral, nos gestos, nos enredos e na criação de
nas histórias criadas; domínio do vocabulá- novas versões de histórias dos heróis, dos
rio; culturas corporais com gestualidades monstros e das princesas.
partilhadas pelos novos códigos culturais
assumidos entre crianças; uso de materiais O valor da diversidade e do
que se reciclam na produção de adereços e protagonismo
fantasias; busca da estética nas produções e O direito à diferença se aplica também ao
ética nas ações cotidianas e o prolongamen- brincar, pois cada criança expressa a cultura
to por meses desse processo lúdico e inves- lúdica de forma pessoal. É a singularidade de
tigativo, que dá riqueza e complexidade à cada ser humano que deve ser privilegiada
educação dessas crianças. no ato lúdico. O eixo que move esta publi-

12 Fundação Volkswagen
cação é não enquadrá-las como iguais, mas Em Infância e diferença na escola (página
garantir a expressão livre da identidade de 20), Maria Teresa Eglér Mantoan explicita a
cada criança e valorizar seu protagonismo direção adotada nesta obra e esclarece que a
em pedagogias participativas. No entanto, a palavra diferença utilizada na área da Edu-
cultura peculiar produzida pelas atividades cação Especial pode ampliar a exclusão. A
humanas depende da importância dada ao autora discute o conceito de diferença exem-
brincar. Ela fica visível na análise de currí- plificando como a produção da identidade e
culos e práticas em países com culturas di- da diferença permeia as práticas de inclusão.
versas. Na Educação Infantil japonesa e de Ela ressalta que a singularidade que marca
países nórdicos, privilegiam-se os espaços, a construção da identidade distancia-se da
os materiais e os tempos destinados à edu- categorização do ser humano em oposições
cação informal como potencializadores do como sadio/doente e normal/especial. A pa-
brincar. Culturas mais conteudistas valori- lavra diferença cria armadilhas na esfera da
zam a direção, a orientação e o letramento inclusão, pois especificando e enfatizando
sistemático buscando o enquadramento, a tais diferenças corre-se o risco de excluir.
classificação, a seriação, em atividades di- A oferta de brinquedos considerados por
rigidas e, em muitas situações, iguais, com adultos como adequados apenas para quem é
pouco espaço para o protagonismo infantil. cego ou tem baixa visão, por exemplo, deixa
Esse é o caso dos contextos franceses, chine- de dar oportunidade às crianças de partici-
ses e de várias partes do Brasil. Embora em parem em outras brincadeiras partilhadas
nosso país as DCNEI apontem a brincadeira pelos colegas do grupo.
e as interações como eixo da prática pedagó- Maria Teresa propõe a diferença como
gica na Educação Infantil, além de valorizar contrário do diverso. Ela não é repetição do
a inclusão das crianças da Educação Especial mesmo, está sempre se diferenciando, pois
garantindo-lhes todos os direitos, nem sem- cada criança é singular, é única. A infância
pre os pressupostos curriculares alinham-se
à prática.
Assim como diferentes países adotam
concepções sobre o brincar e educar que são
próprias da cultura, a diversidade de concep-
ções prevalece entre os profissionais da Edu-
cação Infantil no Brasil e isso é visível tam-
bém na cidade de São Paulo, que dispunha O brincar e o aprender têm
de 2.575 unidades de Educação Infantil em
maio de 2016. Essa rede de grandes dimen- a mesma raiz. É possível
sões, espalhada em 13 Diretorias Regionais
de Educação, abriga uma população escolar potencializar tanto um
com perfis culturais e representatividade
geográfica de todo país. Isso provoca impac- como o outro por meio
tos na forma de pensar, agir e brincar. Essa
diversidade no plano dos usuários (crianças de contextos culturais
e familiares) e de seus formadores (professo-
res, gestores e outros) exige o apoio de todos planejados, construídos
na garantia do lúdico.
O desafio, nesta publicação, é a busca de com espaços adequados,
aproximações e pontos de chegada. Deseja-
-se unir o brincar, a infância e a educação materiais e interações que
respeitando direitos à diferença e à igual-
dade. Diante de tais ponderações, apresento enriquecem e permitem
uma síntese de cada artigo que você lerá nas
páginas seguintes. as escolhas das crianças.
Caderno Brincar 13
BRINCAR É PARA TODOS: UM TEMA EM OITO ABORDAGENS

As crianças querem o padronizada – a mesma que se nota em prá-


ticas como salas divididas em faixas etárias
brincar e as escolas o – pode se reproduzir em brincadeiras seg-
mentadas por gênero ou classificadas segun-
aprender. Buscar a terceira do tipologias de crianças. A autora esclarece
que propor direitos iguais é diferente de tor-
via em que ambos, embora nar iguais as crianças, por enquadrá-las em
identidades a elas atribuídas.
distintos, partilham de um O artigo denominado Música da Cultura
Infantil: seu significado e importância (página
elemento comum se dá pelo 30), de Lydia Hortélio, concebe a Música como
uma das modalidades da cultura infantil no
protagonismo infantil. vasto campo das manifestações da cultura da
criança. Apresenta a evolução da musicaliza-
Afinal, não se brinca sem ção desde os pequeninos até a adolescência,
evidenciando as origens da música brasileira
tomar decisão e não se na mistura das tradições indígena, ibérica e
africana. Lydia esclarece o significado da Mú-
aprende sem querer e sica na cultura da criança como fruto de expe-
riências, que fincam raízes potencializando a
sem se envolver. criatividade. Sua importância reside na possi-
bilidade de descobertas e expressão dos faze-
res das crianças entre si enquanto interagem.
Sua ação produz conhecimentos geradores de
sensibilidade, inteligência e vontade, caracte-
rísticas que as acompanham em todas as esfe-
ras da vida.
Um ponto que se destaca no texto é a in-
formação sobre o registro da voz da criança,
um aspecto pouco investigado pelos pesqui-
sadores da infância. Ao documentar a voz
das crianças expressa em suas brincadeiras,
em Serrinha, no sertão da Bahia, a autora
evidencia como elas criam uma cultura que
integra “música, palavra, movimento e o ou-
tro”, formando um todo que não se separa.
Lydia remete à memória dos brinquedos de
nossa infância desde as cantigas de rodas, os
brinquedos ritmados, as brincadeiras do re-
pertório atual, os brincos infantis cantados e
divulgados nos jardins de infância, as rodas
de versos, o encanto das histórias cantadas
que se transformam em brincadeiras e faz
um convite para a escuta das crianças.
O texto A organização do espaço e suas re-
lações com o brincar (página 40), de Maria da
Graça Souza Horn, evidencia o papel do adul-
to na organização do espaço para favorecer o
brincar. Na Educação Infantil, é importante
discutir a desconstrução de espaços físicos
“escolarizados”, já que essa é a realidade vi-

14 Fundação Volkswagen
gente em muitas localidades. De certa forma, (materiais, mobiliário e construções), visto
boa parcela não percebe a especificidade da como terceiro educador para além da família
educação das crianças pequenas, que requer e dos professores. Por tais razões, o espaço fí-
cenários diversos para o florescimento das sico deixa de ser mero espaço para tornar-se
brincadeiras. ambiente educativo, um lugar para criação e
Para garantir a construção desses ce- reconstrução das culturas da infância. E ele
nários e para que eles se transformem em só se torna possível se for planejado, com
lugares de convivência e de produção de apoio das políticas públicas, dos familiares e
culturas infantis, a autora discute o papel da da comunidade para se tornar um lugar que
cultura material, dos objetos, da arquitetura marca a experiência infantil, dialoga com
do edifício, dos lugares criados pelo adulto crianças, traz recordações, segurança ou in-
para propiciar a expressão lúdica. Dewey, no quietações, além de sensações.
início do século 20, já notava a importância O artigo Brincar e imaginar: para todo
do ambiente na educação das crianças. Ló- mundo e para a vida inteira (página 50), escri-
ris Malaguzzi reforçou o valor do ambiente to por Maria Walburga dos Santos e Cleonice

Caderno Brincar 15
BRINCAR É PARA TODOS: UM TEMA EM OITO ABORDAGENS

M. Tomazzetti, trata da imaginação, da capa- e inventiva, que têm potencialidade para a


cidade simbólica característica do ser huma- transformação progressiva do ser pensante.
no que está no cerne do ato lúdico, pois não A escuta das crianças esclarece como cada
se brinca sem pensar, sem imaginar. Nesse uma delas utiliza ferramentas mentais, mar-
texto, que valoriza a escuta da criança, o cada pela sua singularidade. Também prova
leitor se delicia com os relatos de pequenos que, além da fala e da escrita, é possível o uso
narradores que falam sobre o que eles pen- de diferentes linguagens para despertar e
sam ser imaginação e brincadeira. Um deles registrar sensibilidade, curiosidade, envol-
menciona que, ao acordar, gosta de ficar pen- vimento, satisfação e energia mental. Nesse
sando sem sair da cama. Tem a clareza de que processo, reitera-se a importância da visão
o pensar, no seu caso, requer a imobilidade da criança sobre seu pensamento, como tais
do corpo, para que a mente percorra o túnel circunstâncias podem ser discutidas e teori-
da imaginação. Outra narradora, cega, expe- zadas, e que brincar e imaginar são direitos
rimenta fotografar e comenta que “sente a de todos e válidos para a vida inteira.
imagem” pela sensibilidade no toque na má- Em Brincar e as tecnologias na Educação
quina acompanhada da imaginação. Ambos Infantil (página 62), Maria do Carmo Ko-
os relatos evidenciam não apenas a consciên- bayashi e Wagner Antonio Junior discutem
cia sobre o que se passa em suas mentes mas a legislação brasileira que dá suporte ao di-
também o fluir das capacidades imaginária reito do brincar e adentram na história para

16 Fundação Volkswagen
mostrar como a tecnologia dos brinquedos
é antiga. Os autores percorrem a história
O direito à diferença se aplica
do brinquedo sustentada pelo historiador
Michel Manson, para o qual as mudanças
também ao brincar, pois cada
ocorrem no plano material e nos conteúdos
veiculados, mas reconhece que as regras do
ser humano expressa a cultura
jogo continuam as mesmas do passado. Gil-
les Brougère usa o termo “ciranda dos jogos”
lúdica de forma pessoal.
evidenciando a permanência e a circulação
dos jogos em formatos e materiais diversos
O eixo que move esta
ao longo da história trazendo conteúdos que
se alteram. Há permanência apenas da essên-
publicação defende garantir a
cia do jogo, ou seja, regras criadas pelos brin-
cantes, crianças ou adultos.
expressão livre da identidade
As tecnologias da informação e da co-
municação do século atual trazem para
de cada uma das crianças e
o cotidiano outros objetos como tablets e
smartphones, que acolhem a diversidade do
valorizar seu protagonismo
conteúdo lúdico acumulado e fazem circular
a tradição das brincadeiras infantis em no-
em pedagogias participativas.
vos formatos, dando sequência à ciranda dos
jogos. A história mostra que, na emergência
de novas tecnologias como o rádio, a televi-
são e os brinquedos eletrônicos, continuam
surgindo inquietações sobre a perda do espa-
ço para a infância entre pais e especialmente
nas escolas de Educação Infantil. Stephen
Kline, na obra Out of Garden alerta para o
perigo de ignorar os conteúdos da cultura de
massa e das tecnologias, que são os recursos
que a criança utiliza para partilhar códigos
culturais de seu tempo.
Na discussão sobre A cultura, a brinca-
deira e as culturas infantis (página 74), con-
duzida no artigo de Maria Carmen Silveira
Barbosa e Sandra Simonis Richter, as autoras
colocam uma questão inicial: “A brincadeira
ocupa espaço na cultura dos adultos ou se
insere na das crianças?”. As autoras discor-
rem sobre o contexto em que predominava a
hegemonia da “grande cultura”, ou “alta cul-
tura”, centrada na visão do adulto. Ao longo
do século 20, outros elementos foram acres-
centados à discussão, gerando a pluralidade
cultural. Nela se inserem os novos estudos
sobre a infância produzidos por especialis-
tas de vários campos do conhecimento, entre
os quais o sociólogo português Sarmento,
que esclarece que o lúdico depende do prota-
gonismo da criança e da escuta de seus pon-
tos de vista.

Caderno Brincar 17
BRINCAR É PARA TODOS: UM TEMA EM OITO ABORDAGENS

É a singularidade de cada Ao longo do texto, as autoras mostram


que a visibilidade da cultura infantil integra-
ser humano que deve ser -se no amplo e tradicional espaço da cultura
do adulto, não configurando oposição. Vá-
privilegiada no ato lúdico. rios autores são mencionados para a dis-
cussão da temática, evitando polarizações
O brincar não pode ser e dando espaço para cada uma das culturas.
A valorização da infância e a escuta das
associado a classificações, crianças geram novos saberes que indicam
que, durante a brincadeira, os brincantes
categorizações, uma vez nutrem-se na cultura do adulto, recriando
a cultura infantil e lúdica, o que evidencia
que tais tipologias são o papel mediador dos códigos culturais, dos
objetos e das interações humanas como base
feitas por adultos e incluem que alimenta o lúdico.
A Formação do brincante para uma pe-
várias crianças dentro dagogia lúdica (página 88), tema aprofunda-
do por Mônica Appezzato Pinnaza e Meire
da mesma categoria. Festa, focaliza o papel da formação e da me-
diação do adulto na “pedagogia-em-parti-
cipação”, que leva o formador não somente
formar-se com o outro mas também a trans-
formar-se. As autoras discutem o significa-
do do brincar como atividade principal da
criança pré-escolar com base em teorizações
de Froebel, Bruner e Vygotsky, evidencian-
do o importante papel da brincadeira para
autoaprendizagem e desenvolvimento, além
de sustentar condições para situações de de-
safios e exploração que alavancam o lúdico.
Ao criticarem as práticas cotidianas das
escolas de Educação Infantil que margina-
lizam o brincar na adoção de modelos aca-
dêmicos de ensino, elas aspiram por uma
pedagogia-em-participação. Divergindo da
pedagogia tradicional, cujo foco é o domínio
acelerado de conhecimentos mínimos postos
pela escola, sem o protagonismo da criança,
a pedagogia-em-participação se faz com a
escuta do outro e a participação do outro,
gerando envolvimento e aprendizagens con-
tínuas na co-construção de conhecimentos, o
que favorece a cultura lúdica. O brincar vis-
to como algo “sério” traz desafios na adoção
da prática de escuta das crianças. É indispen-
sável observar os interesses delas para pros-
seguir na criação de um ambiente educativo
favorável ao lúdico. E isso ocorre somente
quando o educador passa por um processo
formativo que o faz ter consciência de que
ele também afeta a brincadeira.

18 Fundação Volkswagen
Para falar de Uma cidade que respeita as va, que inclui o brincar e as interações e dá
diferenças (página 102), Maria Salete de Mou- rumos ao trabalho pedagógico.
ra Torres e Daniele Vanessa Klosinski des- O brincar é visto como fundamental em
crevem a realidade que implantou políticas qualquer fase da infância e também para a
públicas relacionadas à inclusão de crianças criança da Educação Especial. Depoimentos
da Educação Especial nas salas da Educação de profissionais da rede municipal indicam
Infantil, na cidade de Erechim, no RS. Partin- que o brincar leva à afirmação do eu, ao res-
do do princípio de Todos na Escola – Respei- peito pelo outro, que é um fazer pedagógico
to às Diferenças, a cidade abraçou o desafio importante para o desenvolvimento da crian-
de criar uma “cidade que respeita a diferen- ça, que promove interações e experiências
ça”. Com uma rede pequena de 15 escolas, oito significativas para todos que têm acesso ao
de Educação Infantil e sete de Ensino Funda- lúdico. Assim como Erechim assumiu a tarefa
mental, o município estruturou a inclusão. O de tornar realidade a política de inclusão no
sucesso da experiência de Erechim segue as ensino público, a mensagem do artigo é mos-
orientações da Política Nacional de Educação trar a viabilidade desse processo para garan-
Especial na perspectiva da Educação Inclusi- tir o direito ao brincar a todas as crianças.

Caderno Brincar 19
20 Fundação Volkswagen
Infância e
diferença
na escola
A inclusão é uma ideia poderosa e desafiadora,
assumida por quem tem o compromisso de
disseminar, em um mundo habituado a modelos
e diferenciações excludentes, a garantia do direito
à diferença, na igualdade de direitos.

MARIA TERESA
EGLÉR MANTOAN
é Pedagoga, doutora em Educação,
professora do Programa de
Pós-graduação em Educação
da Faculdade de Educação da
Universidade de Campinas
(Unicamp) e Coordenadora do
Laboratório de Estudos e Pesquisas
em Ensino e Diferença – Leped/
Unicamp

Caderno Brincar 21
INFÂNCIA E DIFERENÇA NA ESCOLA

O sentido da diferença, que orienta a con-


cepção e as práticas de ensino inclusivo, ain-
da é pouco difundido no Brasil, e por razões
até certo ponto plausíveis. A diferença é co-
mumente confundida com o diverso, com o
diferente, que se contrapõem ao igual. Mas,
lósofo francês contemporâneo, em sua tese
de doutoramento Diferença e Repetição, nos
propõe para conceituar o ser. Para esse au-
tor, no qual este texto se apoia, somos, cada
um de nós, uma multiplicidade de seres em
contínua diferenciação.
ao contrário do diverso, a diferença não é A diferença tem sido uma referência pela
a repetição do mesmo. Está sempre se dife- qual alguns grupos discutem seus traços
renciando. Em outras palavras, somos seres com base em concepções de “comunidade”,
singulares, mutantes e escapamos de toda e enfatizando suas necessidades comuns. Já
qualquer possibilidade de nos encaixarmos identidade costuma ser compreendida como
em categorizações, classificações, qualidades algo fixo e imutável. Ao colocar em xeque
que possam nos representar e nos definir por sua estabilidade, a inclusão denuncia que as
meio de uma identidade predefinida e estável. identidades existentes são construídas, ar-
A inclusão é exigente em seus propósitos. tificiais. Dessa forma, a inclusão vai contra
Trata-se de uma ideia poderosa e desafiadora, todo modelo e padrão identitário.
assumida por quem tem o compromisso de Ambas, diferença e identidade, são ques-
disseminar, em um mundo povoado e habitu- tões de fundo da inclusão e de suas práticas.
ado a modelos e diferenciações excludentes, a Quando se discutem critérios que implicam
garantia do direito à diferença, na igualdade oposições binárias, como sadio/doente, rico/
de direitos. O tempo em que vivemos é adver- pobre e outras, desconhecem-se a natureza
so ao que pretendemos com a inclusão e regi- instável da identidade e a capacidade multi-
do por princípios que asseguram a alguns o plicativa da diferença. Nenhuma delas admi-
poder de ditar o que é melhor para todos. De te ser contida nas malhas das categorizações
fato, somos seres singulares, particulares, firmadas pelo poder social de criar maneiras
unívocos. Só existe um de nós e como nós. de identificar e de diferenciar estáticas e dis-
Sobreviver neste mundo nos faz recalcar as criminatórias.
diferenciações constantes e contínuas que As classificações confinam a diferença
sofremos. Desde a concepção, podemos nos em desvios de um modelo escolhido ou in-
livrar da condenação a uma existência limi- ventado. Por exemplo, os obesos em relação
tada e das representações que reduzem o que aos magros, os idosos aos jovens. As diferen-
realmente somos e conseguimos ser, quando ças definidas por agrupamentos constituí-
não nos enquadramos em moldes representa- dos pela semelhança de um ou mais atribu-
tivos, que nos definem, nos limitam. tos se desdobram em subclasses e tendem a
Há muito a fazer para que abracemos se tornar permanentes. Assim se descarta o
com força cada vez maior o ideal de uma caráter mutante da diferença e sua capaci-
sociedade inclusiva, que reconhece, ques- dade de escapar a toda convenção possível.
tiona e considera a diferença em si mesma Temos, contudo, de ter muito cuidado com a
e que não se submete às exigências das re- armadilha da inclusão: conceber e tratar as
presentações, das identidades formatadas. pessoas igualmente esconde suas especifici-
Todo ser é um devir, e essa é uma forma dades, porém, enfatizar as suas diferenças
totalmente nova que Gilles Deleuze, um fi- pode excluí-las do mesmo modo!

22 Fundação Volkswagen
Ocorre que as peculiaridades definem a das crianças! Os manuais, as escalas de de-
pessoa e estão sujeitas a diferenciações con- senvolvimento, as teorias que fundamentam
tínuas. Estamos convencidos e habituados às as práticas educativas estão por toda parte.
formas de representação da diferença, que Os brinquedos escalonados por idade, a in-
são resultantes de comparações e de contras- finidade dos jogos pedagógicos são alguns
tes externos: mais alto do que a maioria; me- itens desse mercado promissor que se criou
nos inteligente que os demais; o mais politiza- em torno do universo infantil. Os filmes, os
do do grupo... Para Nicholas Burbules, autor teatrinhos, as bonecas, os robôs, os jogos ele-
de um capítulo do livro Currículo na Tempo- trônicos, as revistinhas especializadas cons-
ralidade – Incertezas e Desafios, em que se pro- tituem nichos de mercado bem explorados.
põe a apresentar uma gramática da diferença, Móveis, animaizinhos de estimação, salões
essas representações constituem formas de de festa para os aniversários, animadores e
pensar a diferença, como diferença entre. programas de televisão, estilistas, os monito-
Ao se apoiarem no sentido da diferença res de hotéis, acampamentos de férias, cen-
entre, nossas políticas públicas educacionais tros de lazer, as escolinhas de arte, ludotecas
confirmam, em muitos momentos, o projeto estão em alta. Não faltam “marqueteiros”
igualitarista e universalista da Modernida- para tirar proveito do que as crianças são ca-
de, baseado na identidade idealizada e fixa pazes de promover, vender e consumir.
do aluno, do cidadão modelar. Embora já te- Agrupam-se em torno da criança profes-
nhamos avançado muito, desconstruir o sen- sores especializados, psicólogos, médicos,
tido da diferença entre em nossos cenários promotores da infância e seus juizados, tes-
sociais é ainda uma gigantesca tarefa. tes, leis, estatutos, organizações do terceiro
setor, projetos governamentais de saúde,
A infância padronizada educação, serviço social, estudos, teses, pes-
A criança tomou o seu lugar na história e
esse lugar foi alcançado pelo avanço que ti-
vemos no reconhecimento e valorização de
seus direitos na vida familiar, social, cultu-
ral, nas instituições em geral. Ela se tornou
alvo de estudos, objeto de trabalhos que bus- Temos de ter muito cuidado
cam conhecê-la cada vez mais e melhor, seja
pelos que teimam entendê-la nas suas dife- com a armadilha da inclusão:
renças ou pelos que a encaixam facilmente
em um perfil universal e predefinido. conceber e tratar as pessoas
Não é preciso fazer grandes voltas para
constatar o que existe em nosso entorno e que igualmente esconde suas
é determinado especificamente para as crian-
ças, com a boa intenção de torná-las capazes especificidades, porém,
de viver “em conformidade” com as exigên-
cias do seu mundo familiar, social e cultural. enfatizar as suas diferenças
Quanto se conhece e se prediz, hoje, so-
bre os bebês, os primeiros tempos de vida pode excluí-las do mesmo modo!
Caderno Brincar 23
INFÂNCIA E DIFERENÇA NA ESCOLA

Consideram-se diferenciadas justificativa é ainda mais desastrosa, falsa e


inadequada, pois se baseia na necessidade de

as escolas de Educação a escola conhecer melhor os alunos que irá


receber em suas salas de aula, ou melhor, de

Infantil que investem em selecioná-los, com base em uma concepção


de mérito e de formação de turmas escolares

práticas e buscam um ajuste que excluem, restringem alguns alunos por


não corresponderem às idealizações e per-

entre a criança descrita fis que estipulam. Em 2004, a procuradora


da República Eugênia Gonzaga deixou claro

nos tratados psicológicos, em seu livro Direitos das Pessoas com Defici-
ência: Garantia de Igualdade na Diversidade

pedagógicos e nos autores que um teste, por mais disfarçado que seja,
pode ser percebido pela criança e, se ela não

desenvolvimentistas da moda conseguir ser aprovada, ainda é pior. Sentir-


-se sem condições suficientes para fazer jus à

e aquela de carne e osso de escola já é um mau começo.

suas salas de aula. A infância indecifrável


Normalizar o aluno e regular a sua educa-
ção, desde a Educação Infantil, é consequên­
cia do pensar a infância como uma etapa da
vida que nós, professores e adultos, “mani-
pulamos” pelo que dela entendemos e siste-
quisas científicas, levantamentos de opinião, matizamos, seguindo as prédicas controla-
a publicidade... Todas essas “praças”, inclusi- doras da Modernidade.
ve a escola, têm a pretensão de deter um saber Félix Guattari e Gilles Deleuze, em 1976,
sobre a infância e fazem uso dele de diversas ao se referirem à produção subjetiva, ou me-
maneiras e para os mais impensáveis fins. lhor, aos modos de subjetivação que fixam
Consideram-se diferenciadas as escolas identidades, atribuindo-as a de fora, aler-
de educação infantil que investem em práti- taram sobre o fato de uma pessoa poder se
cas e buscam um ajuste entre a criança des- tornar tributária de verdades universais,
crita nos tratados psicológicos, pedagógicos naturalizadas, que as fazem perder a sua
e nos autores desenvolvimentistas da moda e singularidade e as aprisionam na represen-
aquela de carne e osso de suas salas de aula. tação pela qual é definida.
Procuram encaixá-la nas sequências evolu- O poder de subjetivação de pessoas in-
tivas da motricidade à simbolização e, nessa fluentes na vida da criança, como seus pais,
luta pelo domínio do conhecimento da infân- professores, pode nos desviar do que real-
cia, submetem seus alunos a modelos essen- mente essas crianças são e do que poderão
cialistas, que negam a singularidade desses ser. E, nesse sentido, todas as ações educa-
aprendizes. cionais podem ser determinadas e calcula-
Exames preliminares ainda são aplica- das por um possível conhecimento que vai
dos, em geral por escolas de educação in- ajustar e/ou produzir sujeitos idealizados e
fantil das redes particulares de ensino, para previamente concebidos/produzidos, cuja
selecionar os alunos por suas capacidades, realização final já está prevista no princípio
levando em consideração um quadro arbi- da vida escolar (e até mesmo antes de ela co-
trariamente concebido de qualidades e de meçar!), no que é o desejo dos pais, dos edu-
condições desejáveis para a admissão em cadores e do imaginário social.
suas turmas. Precisamos, portanto, estar atentos, quan-
Para fugir ao que é considerado cons- do se trata de questões relacionadas à Educa-
trangimento moral e psíquico à criança, a ção Infantil, para não negarmos o fato de que

24 Fundação Volkswagen
as crianças são a novidade, a contradição. E Quando se abstrai a diferença para se che-
que precisam ser estranhas ao que conhece- gar a um sujeito universal, a inclusão perde
mos, para que possam ser reconhecidas, per- o seu sentido. Mais um motivo para se fir-
cebidas como uma renovação, uma recriação mar a necessidade de repensar e de romper
do que somos, uma possibilidade de nos res- com o modelo educacional elitista de nossas
significarmos ilimitadamente como sujeitos e escolas, desde as etapas iniciais de ensino, e
como grupo, como advertiu a filósofa Hanna de reconhecer a igualdade de aprender como
Arendt em um dos capítulos de seu livro Entre ponto de partida e as diferenças no aprendi-
o Passado e o Futuro. zado como processo e ponto de chegada.
Como os demais movimentos organiza- Para assegurarmos o direito à educação de
dos por grupos historicamente excluídos um aluno, em qualquer nível de ensino, sem
da escola e da cidadania plena, a inclusão quaisquer exclusões, cabe-nos repensar nos-
escolar se opõe ao que Hanna Arendt chama sas propostas e práticas educacionais. O pri-
de abstrata nudez, em seu livro A Condição meiro passo nessa direção é considerar o aluno
Humana, quando critica a ideia de homem como tal, em suas potencialidades, interesses,
abstrato, vazio, que é próprio das formas mo- e esquecer o ensino que se baseia em um mo-
dernas da igualdade. delo oco, impessoal, padronizado de aprendiz.

Caderno Brincar 25
INFÂNCIA E DIFERENÇA NA ESCOLA

O direito à diferença na
igualdade de direitos
A educação brasileira, na Constituição de
1988, tem como princípio a observância do
direito incondicional e indisponível de to-
dos os alunos à educação e a Convenção In-
ternacional dos Direitos das Pessoas com
Deficiência de 2007, assimilada ao nosso Or-
denamento Jurídico pelo Decreto Legislati-
vo nº 186/2008, corrobora esse direito.
A garantia do acesso e permanência de
todos à escola comum é absolutamente ne-
cessária, mas insuficiente para que a educa-
ção inclusiva se efetive em nossas redes de
ensino. O direito à diferença é determinante
para que sejam cumpridas as exigências des-
sa educação, propiciando a participação dos
alunos no processo escolar geral, na medida
das capacidades de cada um.
Um imperativo da inclusão escolar é
prover a todos os alunos uma educação reve-
ladora de suas diferenças. Combinar igual-
dade e diferenças no processo escolar — da
Educação Infantil ao Ensino Superior — é
uma situação que nos faz andar no fio da na-
valha. No entanto, é condição sem a qual não
se consegue qualificar para melhor os pro-
cessos e práticas pedagógicas para todos os
alunos, como propõe a inclusão.
O sociólogo português Boaventura Santos
defende, em seu livro A Construção Multicul-
tural da Igualdade e da Diferença, que temos o
direito à igualdade, quando as diferenças nos
inferiorizam, e o direito à diferença, quando
a igualdade nos descaracteriza. Essa máxima
reafirma que a diferença não pode ser negada,
desvalorizada, embora implique o conflito, o
dissenso e a imprevisibilidade, a precarieda-
de e a impossibilidade do cálculo e das defini-
ções precisas sobre as pessoas.
Quando nos referimos à igualdade de
direitos à educação, estamos falando de di-
reitos iguais e não de alunos igualados e re-
duzidos a uma identidade que lhes é atribu-
ída: os bons e maus alunos, os repetentes, os
bem-sucedidos, normais, especiais. Quando
defendemos o direito à diferença, estamos
tratando da diferença entre os alunos, que,
mesmo passíveis de serem agrupados por
uma semelhança qualquer, continuam dife-

26 Fundação Volkswagen
rentes entre si, dado que a diferença tem o celebra, não aceita, não nivela, mas questio-
seu sentido adiado, infinitamente. na a diferença! Rejeita o pluralismo entendi-
do como uma incorporação da diferença pela
Diferenciar para incluir mera aceitação, tolerância do outro, sem con-
ou para excluir flitos, sem confronto.
Uma escola para todos cria descontinuidades É possível diferenciar para incluir quan-
na gênese histórica da educação pública bra- do o estudante ou beneficiário de uma ação
sileira, problematizando o seu projeto edu- afirmativa qualquer estiver no gozo do direi-
cativo hegemônico, eurocêntrico e excluden- to de escolha ou não dessa diferenciação. Um
te. Vozes dissonantes têm se pronunciado, exemplo desse direito é o aluno poder optar
problematizando um jogo de poder perver- pelo lugar que ocupará em uma sala de aula,
so, multifacetado e pulverizado nas institui- quando usa cadeira de rodas, sem ser obriga-
ções e nas relações sociais. Apesar de contro- do a se sujeitar à imposição de sentar-se sem-
vérsias, resistências, obstáculos, tais vozes pre à frente de todos, em um lugar especial,
resistem, clamando por um compromisso definido por outrem. Tal opção resguarda o
ético-estético-político, solidário, emancipa- seu direito à igualdade – estudar e comparti-
dor e justo. lhar conhecimentos com os colegas de turma e
A diferença entre, referida anteriormen- o direito à diferença – aquele em que se sente
te, está subjacente à maioria aos entraves melhor para participar das aulas e aprender,
às mudanças propostas pela inclusão. Ve- além, se for o caso, do uso de equipamentos,
lada ou de forma explícita, ao fazermos tecnologias de apoio, recursos outros que lhe
comparações, fixamos padrões desejáveis, sejam necessários. O mesmo pode acontecer
definimos classes e subclasses com base em quando um aluno cego tem à sua escolha um
atributos que não dão conta das pessoas por texto em braile, digitalizado ou disponível em
completo, excluindo-as por fugirem à média audiolivro.
e/ou à norma estabelecida. As pessoas sem- Deslizes que possam ocorrer no entendi-
pre excedem aos atributos que podemos lis- mento dos processos de diferenciação criam
tar para defini-las. problemas e caminhos equivocados para os
O poder que está por detrás dessas com-
parações promove diferenciações para ex-
cluir pessoas e populações, limitando seus
direitos de participação social, de decisão,
de opinar. A diferenciação para incluir,
como saída para enfrentarmos as ciladas
da inclusão, está se impondo aos poucos e Quando se abstrai a
cada vez mais se destacando e promovendo
a inclusão total. Tal processo de diferencia- diferença para se chegar
ção implica a quebra de barreiras físicas,
atitudinais, comunicacionais, que impedem a um sujeito universal,
algumas pessoas em certas situações e cir-
cunstâncias de conviverem, cooperarem, a inclusão perde o seu
estarem com todos, participando, comparti-
lhando com os demais da vida social, esco- sentido. Mais um motivo
lar, familiar, laboral, como sujeitos de direi-
to e de deveres comuns a todos. para se firmar a necessidade
Ao diferenciarmos para incluir, estamos
reconhecendo o sentido multiplicativo e ili- de repensar e de romper
mitado da diferença, que vaza e não permite
contenções, porque está se diferenciando com o modelo educacional
sempre, em cada sujeito. Essa forma de dife-
renciação é fluida e bem-vinda, porque não elitista de nossas escolas.
Caderno Brincar 27
INFÂNCIA E DIFERENÇA NA ESCOLA

Temos o direito à igualdade, Os aparatos pedagógicos que visam tornar


menor ou maior o grau de dificuldade do

quando as diferenças nos ensino nas salas de aula; associar exclu-


sivamente algumas atividades e níveis de

inferiorizam, e o direito à dificuldade/desempenho a certos alunos; e


realizar a escolarização de alguns, seguin-

diferença, quando a igualdade do uma programação à parte, currículos


adaptados, mesmo que estejam propondo

nos descaracteriza. que alguns alunos gozem do igual direito


de estar com todos os demais colegas nas
salas de aulas do ensino comum, são exclu-
dentes e, portanto, descumprem o direito à
diferença.
A inclusão introduz a cunha da diferen-
que buscam construir uma pedagogia ali- ça no ensino e na aprendizagem, trazendo
nhada aos preceitos inclusivos. Os processos para a sala de aula mudanças substanciais
de diferenciação precisam ser cuidadosa- que atingem o papel do professor, sugerindo
mente observados para que, na intenção de moderação em sua função explicativa e na
acertar, as escolas não acabem se perdendo e de sancionar acertos e erros, deixando espa-
caindo em ciladas difíceis de escapar. ço para que a criatividade e as descobertas
Muitos professores, e escolas, desco- se manifestem com base nas experiências e
nhecem esse direito e há alunos que são buscas do aluno. Desde a Educação Infantil, a
diferenciados desde a Educação Infantil por expressão livre de ideias, sentimentos e posi-
participarem de programas de reforço esco- cionamentos desloca o poder que identifica e
lar e outros, cujos estudos são realizados de reduz as diferenças a níveis de compreensão,
acordo com currículos, atividades, conteúdos desempenho e acompanhamento do ensino,
e avaliações adaptados e limitados, que pro- segundo normas que permitem distinguir a
fessores e especialistas lhes prescrevem, na verdade no que parece ser um erro.
ilusão de serem capazes de definir e controlar O exercício propiciado por um ensino que
o aprendizado e/ou para não se decepcionarem faculta a todo aluno exercer sua autonomia
diante do que ensinam. Há mesmo interven- intelectual e seu poder de decisão não se des-
ções que acontecem em sala de aula, durante as tina apenas aos mais velhos. Começa com os
atividades diárias por professores de educação mais novos, ao escolherem por si mesmos as
especial, professores de apoio e outros coadju- tarefas e o modo de desenvolvê-las, de acordo
vantes, que promovem uma docência compar- com suas capacidades, interesses, curiosida-
tilhada para alguns alunos. Elas diferenciam de, dúvidas. O trabalho colaborativo nas salas
os alunos, excluindo-os da turma, mesmo que de aula faz o saber circular horizontalmente,
temporariamente. sem hierarquia. Todos têm o que ensinar e
Alguns poderão entender que essas dife- aprender em um ambiente escolar caracteri-
renciações são para incluir, pois do contrá- zado pela diferença. Os conteúdos escolares
rio os alunos seriam relegados pela escola, disponibilizados para todos, com base em
por falta de atenção às suas necessidades. atividades variadas e de livre escolha, que
Ocorre que tais programas, por restringi- não são definidas para um grupo ou para um
rem conteúdos e atividades escolares, são aluno em especial, oferecem aos professores
considerados discriminatórios e excluden- indícios sobre as possibilidades e o potencial
tes. Na boa vontade de “customizar” o proces- de cada aluno e sobre o que desejam conhecer.
so educativo, de modo que se ajuste ao feitio Torna-os sujeitos ativos do conhecimento.
de cada um, a exclusão se manifesta, embora Há ainda muito a dizer sobre os modos
estejamos pretendendo o contrário. de ensinar que convém às práticas e propó-
A diferenciação para excluir é, ainda, a sitos inclusivos, da Educação Infantil ao En-
prática mais frequente nas nossas escolas. sino Superior. Em resposta ao que seria uma

28 Fundação Volkswagen
pedagogia que não cai nas armadilhas da Referências
diferença, propomos que a incumbência de ARENDT, Hanna. Entre o Passado e o Futuro.
“customizar” o ensino seja do aluno e não do Trad. Mauro W. B de Almeida. São Paulo:
professor. Diante de um conteúdo que pode Editora Perspectiva , 1997.
explorar, sem o controle externo da verdade, ARENDT, Hanna. A Condição Humana. Trad.
o aluno compreenderá o novo nas “suas me- Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Editora
didas” e confortavelmente transitará pelos Forense Universitária, 10ª edição, 2001.
caminhos que traçou para aprender. BURBULES, Nicholas. Uma gramática da dife-
Quanto à educação dos pequenos, a inclu- rença: algumas formas de repensar a dife-
são traz consequências desejáveis e urgentes rença e a diversidade como tópicos educa-
para este mundo ainda fortemente domina- cionais. In GARCIA, R, L. & MOREIRA, A. F.
do pelo preconceito e discriminação. Ao pro- B. (orgs.). Currículo na Contemporaneidade –
piciar, desde os primeiros tempos escolares, Incertezas e Desafios. São Paulo: Cortez, 2008.
o encontro e o convívio entre todos os cole- DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Trad.
gas, indistintamente, a formação das futuras Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Ja-
gerações ganhará muito. Viver experiências neiro: Graal, 2ª edição, 2006,
de vida colaborativa, participativa e com- FÁVERO, Eugênia Augusta Gonzaga. Direitos
partilhada têm nos faltado nestes tempos das Pessoas com Deficiência: Garantia de
de intolerância e violência. Uma sociedade Igualdade na Diversidade. Rio de Janeiro:
inclusiva está a caminho. Os avanços nessa WVA Editora, 2004.
direção são evidentes e resultantes de con- GUATTARI, Félix; DELEUZE, Gilles. Rhizo-
quistas que os tornam irreversíveis. Nosso me. Paris: Minuit, 1976.
compromisso como educadores do século 21 SANTOS, Boaventura de Souza. A Construção
reveste-se da responsabilidade de concreti- Multicultural da Igualdade e da Diferença.
zar uma pedagogia que responda aos anseios Coimbra: Centro de Estudos Sociais. Ofici-
e necessidades deste novo tempo. na do CES nº 135, janeiro de 1999.

Caderno Brincar 29
30 Fundação Volkswagen
Música da
Cultura Infantil:
significado
e importância
É uma música no corpo, próxima ao outro, com o
outro. Sua prática promove um convívio alegre,
diferenciado, e, ao observar regras e princípios de
cada brinquedo, as crianças têm a oportunidade de
fazer o "exercício de ser criança" e o espaço ideal de
iniciação na cidadania: plena, por índole e direito,
sensível, inteligente e desafiadora.

LYDIA HORTÉLIO
é formada em Música (Piano, Educação Musical e
Etnomusicologia), em estudos no Brasil, Alemanha,
Portugal e Suíça. Pesquisou e documentou a Cultura
da Criança, a Música da Cultura Infantil e as
manifestações musicais da zona rural de Serrinha,
no sertão da Bahia. Participou de cursos, palestras,
oficinas e exposições no Brasil e no exterior e de
projetos de Educação e cursos de formação de
professores. Fundou, em Salvador, a Casa das Cinco
Pedrinhas, instituição de pesquisa e difusão da
Cultura da Criança e da Música.

Caderno Brincar 31
MÚSICA DA CULTURA INFANTIL, SIGNIFICADO E IMPORTÂNCIA

E ntendendo-se Cultura Infantil como as


experiências, as descobertas, o fazer das
crianças entre elas mesmas, buscando a si e
ao outro em interação com o mundo, ou seja,
toda multiplicidade e riqueza dos brinque-
dos de criança, teremos que buscar a com-
O extenso repertório dos brinquedos de
criança se forma no livre exercício da infân-
cia, ou seja, no convívio natural e espontâneo
das crianças entre elas mesmas, e carrega em
seu bojo, necessariamente, os arquétipos da
cultura de origem, elementos da natureza do
preensão da Música da Cultura Infantil den- lugar, os traços do tempo histórico, tecidos
tro desse mesmo contexto, como parte que é na alegria e inventividade das crianças. E
de um mesmo corpo de conhecimento, de um são as experiências vividas por meio desses
conhecimento com o corpo, nele incluídas, brinquedos que formam o “território sagra-
naturalmente, a sensibilidade, a inteligência do da infância” — o lugar dentro, onde as ar-
e a vontade, como dimensões da vida na com- tes encontram substrato e fincam suas raízes,
plementaridade e inteireza. potencializando a manifestação criadora.
No vasto espectro de manifestações da
Cultura da Criança, ou seja, das práticas do A dinâmica do brinquedo
ser-humano-ainda-novo, há um bloco signi- A prática da Música da Cultura Infantil pro-
ficativo de brinquedos, onde música, pala- move o desenvolvimento do sentido de ori-
vra, movimento e o outro formam um todo gem e nutre o húmus da identidade cultural.
indivisível, um organismo, do qual nenhuma A força de afirmação de uma nação depende
parte pode ser subtraída sem vir a perder o do exercício de sua cultura, do conhecimen-
sentido, sua feição, funcionalidade e comple- to de sua história, da Educação de seu povo,
tude. O “Atirei o pau no gato...” não acontece, e pressupõe amplo e detalhado esforço no
simplesmente, se não nos damos as mãos, sentido da conscientização de cada indiví-
cantamos a cantiga girando na roda e, ao fi- duo como ser único, elemento de um povo
nal, abaixamos todos conjuntamente para e membro da família humana. Os brinque-
dizer “Miau!”, em feliz algazarra... dos com música são instrumentos valiosos
Fica claro, portanto, que a Música da Cul- nesse processo, exercendo uma ação viva,
tura Infantil é uma música para ser brincada. inteligente e alegre que pode nos conduzir
É brincando que as cantigas dos brinquedos à roda das crianças do mundo e ao encontro
tomam vida e, dito ao contrário, é a música de dos povos.
cada brinquedo cantado ou ritmado que move Estes brinquedos surgem na vida das
a ação específica de cada um desses fatos cultu- crianças desde muito cedo. Aos acalantos e
rais. E vamos constatar ainda que mesmo en- brincos da mais tenra infância, de iniciativa
tre brinquedos do mesmo gênero, as rodas de materna ou dos mais próximos, acrescen-
verso, por exemplo, não há duas iguais. Antes tam-se cada vez mais brinquedos movidos
encontramos variações incontáveis, geradas por parlendas, cantilenas e cantigas, onde os
pelos impulsos da cantiga que empresta a cada gestos iniciais da melódica infantil se insinu-
roda sua individualidade, caráter particular, am a par com o elemento rítmico da palavra.
atmosfera única e movimento próprio. A mú- E, aos poucos, vão chegando os brinquedos
sica determina a maneira de ser, o fraseado cantados, com toda multiplicidade e riqueza
plástico, a linguagem específica de movimento, de seu repertório, e os brinquedos ritmados,
a moviment-ação própria de cada brinquedo. de grande variedade rítmica e expressão

32 Fundação Volkswagen
corporal diferenciada, versões e variantes Os brinquedos de nossas crianças têm
surpreendentes, praticados intensamente suas origens nas vertentes principais da
pelas crianças de hoje. As fábulas, os contos cultura brasileira, e apresentam traços da
e as histórias maravilhosas também fazem cultura indígena, cultura ibérica e cultu-
parte do universo infantil, cujos relatos se ra africana, tanto na atmosfera como nos
configuram como verdadeiros rituais que temas, aspectos e elementos estruturais.
se revestem de música, desde o “tom” parti- Além dessas fontes primeiras, constata-
cular da contação, onde não faltam as “falas” mos ainda marcas evidentes de outras cul-
dos animais e de muitos outros personagens, turas que fazem parte da história do nosso
apresentados com sugestivas parlendas, povo. Nas variantes de muitos brinquedos
cantilenas e cantigas, próprias desse gênero observamos, inclusive, características de
especial da Música da Cultura Infantil. Final- diversas regiões e estados do Brasil, e no
mente, surgem na adolescência as rodas de tom particular ou no perfil de algumas me-
verso, como verdadeiros ritos de passagem, lodias, as marcas da zona rural e urbana e
onde forma, estruturação, conteúdo poéti- dos diferentes segmentos sociais.
co, atmosfera particular e movimentação, É importante apontar ainda a variedade
mesmo guardando dimensões da infância, de estilos destes brinquedos que se configu-
apontam para a nova etapa a ser vivida. To- ram como brinquedos cantados, brinquedos
dos esses brinquedos, fatos culturais de va- ritmados, diferenciando-se ainda como brin-
riada ação dinâmica e diferentes qualidades quedos rítmico-melódicos e brinquedos me-
de movimento, nascem das necessidades de lódico-ritmados, segundo o maior ou menor
crescimento do ser-humano-ainda-novo, e se teor de melodia ou ritmo na estruturação
configuram como gêneros da Música da Cul- musical, e que tem consequências para a de-
tura Infantil, correspondendo às respectivas finição do caráter e configuração da lingua-
fases do desenvolvimento da criança. gem de movimento de cada brinquedo.

Caderno Brincar 33
MÚSICA DA CULTURA INFANTIL, SIGNIFICADO E IMPORTÂNCIA

Gostaria de assinalar nesta oportunidade as cantigas apresentam âmbito mais extenso,


que estamos diante de uma tarefa eloquente: chegando a um hexacorde, à escala de sete sons
buscar avaliar a contribuição dos meninos do inteira, passando além da oitava superior ou
Brasil no processo de construção da cultura descendo abaixo da tônica, fazendo uso de for-
brasileira buscando compreender seu signi- mas poéticas como a redondilha maior e a re-
ficado e importância para o futuro do nosso dondilha menor, além de formas com estrofes
país e a construção da nação que sonhamos. de duas, três, quatro linhas ou mais, diferentes
O material sonoro dos brinquedos canta- número de sílabas ou não, e uma arquitetônica
dos estende-se desde brinquedos de uma nota mais ampla. Estamos, justamente, no reino do
só, com tênue esboço de cadência final, aos imprevisível e inesperado, da graça e inventi-
brinquedos com âmbito de uma terça, uma vidade das manifestações da infância!
quarta, um pentacorde, um hexacorde, e a es- Como vimos antes, a Música da Cultura
cala de sete sons inteira. Os brinquedos ritma- Infantil é uma música em movimento, aliada
dos se revestem das dimensões rítmicas da pa- à representação e a uma geometria no tempo,
lavra e das variações expressivas do discurso que se explicita por meio do desenho móvel de
poético-musical. As parlendas, cantilenas, len- suas formações: círculos/rodas que giram ou
ga-lengas e cantigas são expressões musicais não; linhas/filas, simples e duplas que se des-
que acompanham os brinquedos das crianças locam; o ponto/o centro, a criança do meio, o
e servem para mover ou sublinhar a ação dos personagem, que vai, vem, volta, espera, per-
brinquedos das crianças. As parlendas dão manece ou configura novo movimento...
ênfase à melódica da fala, fazendo uso de uma Não será demais voltar a afirmar, trata-se
voz entonada, de forte apelo rítmico-expressi- de uma música no corpo, com o outro, a pala-
vo; as cantilenas são pequenas inflexões meló- vra, o movimento, a ação, o devir... Sua prática
dicas com dois, três ou quatro sons, um penta- promove um convívio alegre, desafiador, e, na
corde, a escala pentatônica inteira ou apenas o observância das regras e princípios de cada
seu núcleo. Entre as cantilenas há uma forma brinquedo, as crianças encontram oportuni-
particular, as lenga-lengas, que se caracteri- dade de vivenciar múltiplos e variados con-
zam pela presença do elemento de repetição; teúdos expressivos, experimentar direitos e
deveres, em espaço ameno de iniciação à cida-
dania, por índole e direito, sensível, espontâ-
nea, natural, festiva, plena!
Vale dizer ainda, a Música da Cultura In-
Nas variantes de muitos fantil, com seu amplo e variado espectro de
manifestações, oferece-se como território
brinquedos observamos natural de vivência da música em todas as
suas dimensões, prescindindo das exigências
características de diversas formais de ensino/aprendizagem. E por suas
características elementares, ela se configura
regiões e estados do como o lugar ideal da iniciação, em corres-
pondência inequívoca com a natureza da
Brasil, e no tom particular criança e suas necessidades de crescimento.
Ouçamos Friedrich Schiller, o filósofo e
ou no perfil de algumas poeta alemão:

melodias, as marcas da “O homem só é inteiro quando brinca.

zona rural e urbana


E é somente quando brinca que ele existe
na completa acepção da palavra Homem.”

e dos diferentes Creio que estamos todos de acordo que é


no brincar que se define a condição humana.
segmentos sociais. E é brincando... ou seja, no gozo de liberdade

34 Fundação Volkswagen
e inteireza, que a criança revela seu poder e corpo inteiro, a experiência da afetividade e
sua graça, sua alegria! da beleza, tantas promessas de crescimento,
Se queremos contribuir para a renova- liberdade, alegria! Já outros afirmaram, às
ção do mundo, verdadeiramente, precisamos crianças estaremos devendo sempre o que
favorecer o convívio das crianças entre elas de melhor sabemos, mais fundo sentimos e
mesmas. Brincar é preciso! E para que isso mais alto queremos.
aconteça em plenitude, precisamos levantar
a bandeira: Criança / Natureza / Cultura In- Para reconquistar o sonho
fantil. Só então veremos brilho nos olhos dos Finalmente, gostaríamos de afirmar a Mú-
nossos meninos e o mundo novo florescer! sica da Cultura Infantil como fundamento
A Música da Cultura Infantil é um fato de toda a Educação: uma Educação criadora,
cultural de grande densidade e beleza. Ela que considera o homem em sua inteireza, na
representa, em todas as culturas do mundo, interligação, a mente voltada para a maravi-
a expressão primeira da alma de um povo, lha do Universo, a contemplação e a busca, a
e carrega em seu cerne o poder de um de- escuta do movimento dentro...
senvolvimento infinito. Assim sendo, fica Queremos afirmar ainda: é no exercício
evidente a necessidade de atentarmos para das dimensões da cultura da criança que po-
seu cultivo desde muito cedo, levando nos- demos construir um mundo mais feliz, tecido
sas crianças a praticar, desde pequeninas, as na unidade, e que já fez parte mais essencial
mais variadas formas de sua cultura: a voz da aspiração humana. No momento, vemos
cantada, a voz recitada, a voz representada, esse ideal ameaçado, sobrevivendo quase
viver uma roda, ter mão na mão, cantar um somente em comunidades longínquas, perto
refrão e tirar um versinho, perceber o valor das nuvens... Mas o reino dos céus é na terra,
da palavra, o balanço da cantiga, o “tom” par- para todos!
ticular de cada melodia, diferentes formas Abandonamos o sonho inadvertidamen-
e fraseados, o gosto pelo ritmo, o movimen- te e é preciso reconquistá-lo. Deixamos de
to, a ação e a representação, a expressão de cantar cantigas de ninar e brincar com nos-

Caderno Brincar 35
MÚSICA DA CULTURA INFANTIL, SIGNIFICADO E IMPORTÂNCIA

país de 8.500.000 km2, isto não deveria ser um


problema, antes uma predestinação!

Educação com sensibilidade


A música remete ao interno. Vemos com es-
perança a volta da música às escolas do nosso
país. Sua presença em nossos currículos re-
presenta a esperança de uma Educação com
sensibilidade, onde a Música da Cultura In-
fantil poderá exercer seu papel de varinha
de condão. Mas, para além da vontade de aco-
lher as lembranças da infância e retomar a
tradição, é preciso desenvolver uma consci-
ência mais profunda sobre o significado e a
importância desse patrimônio, e uma dispo-
sição incondicional de levar a florescer a cul-
tura da criança em nosso país.
A Música da Cultura Infantil entre nós ain-
da não foi contemplada com um levantamento
amplo e criterioso, seguido dos estudos neces-
sários, de modo a podermos contar com um
conhecimento elaborado, capaz de suprir as
demandas de um programa como o que aspira-
sas crianças, de favorecer os brinquedos com mos. Mas ainda estamos em tempo, com a certe-
música ao longo de toda a infância, desaten- za, inclusive, de que a Música da Cultura Infan-
tos que estivemos do que é ser criança e da til no Brasil é muito mais rica e diferenciada do
verdadeira essência da vida. A esta altura, que supomos ou atestam os discos à disposição
conhecemos, sobejamente, o malefício do no mercado, e que só raramente provam uma
descaminho. Urge desenvolver uma cultura noção convincente das dimensões estruturais
da roda. Guimarães Rosa é que diz: “A alegria e simbólicas do repertório explorado.
é o val da vida!”. Aqui devo me referir a uma pesquisa que
Temos nos surpreendido com a inquieta- venho realizando há algumas décadas no
ção de nossas crianças, com a disritmia nas município de Serrinha, sertão da Bahia, de
escolas, e culpamos nossos meninos pelo desa- onde venho, uma pesquisa que não é exaus-
cordo geral. A situação é mais complexa do que tiva, nem exceção entre os municípios brasi-
podemos examinar no âmbito dessa reflexão, leiros, na qual já foram registrados cerca de
mas precisamos aproveitar toda oportunidade 600 brinquedos com música:
para avançar. O bem-estar de nossas crianças
depende de nós: pais, educadores, autoridades O “tom” da Infância em Serrinha:
do governo e da Educação, cidadãos, todos nós 100 anos de Música Tradicional da Infância
responsáveis por nossas crianças. Elas estão em um Município do Sertão da Bahia
vivendo em espaços artificiais, sem possibili-
dades do real intercurso com seus pares, sem Esse material levantado encontra-se
respirar ar puro e experimentar as dimensões transcrito, classificado e organizado, inte-
da natureza, e com ela aprender harmonia e gralmente. Como metodologia de pesquisa,
beleza. Detectamos, a cada passo, a ausência dividimos o século XX em quatro partes, de
de ritmo e proporção, caráter, graça e equilí- 25 em 25 anos, buscando identificar, em cada
brio: as dimensões da música. Urge devolver quarto de século, os respectivos informan-
às nossas crianças o espaço sagrado natural tes, tanto na cidade como na zona rural. Ba-
a que têm direito – um tema que hoje ocupa a seados nesse material foram realizados dois
atenção de toda a humanidade civilizada. Num discos, em 2004 e 2016:

36 Fundação Volkswagen
1) Ô, Bela Alice...
Música Tradicional da Infância
A Música da Cultura
no Sertão da Bahia no Começo do Século XX
Infantil é um fato cultural
2) Céu, Terra, 51! Cada Vez Sai um...
Brinquedos dos Meninos de Serrinha, Hoje!
de grande densidade e
Os CDs acima citados diferem entre si sig-
beleza. Ela representa,
nificativamente, tanto nas formas e tipos de
brinquedos, como no conteúdo e "tom" parti-
em todas as culturas
cular, e aportam, claramente, dois períodos
da história de Serrinha, revelados por meio
do mundo, a expressão
dos brinquedos de suas crianças. Esse proje-
to de levantamento da Cultura da Criança em
primeira da alma de um
Serrinha pretende publicar todo o material
levantado e realizar um programa de ações
povo, e carrega em seu
dirigidas às crianças do lugar, com base nos
resultados dessas investigações.
cerne o poder de um
Estando nessa busca há muito tempo,
posso afirmar sem receio: sob o manto do es-
desenvolvimento infinito.
quecimento e dos modismos vigentes, subjaz
entre nós um grande tesouro à espera de ar-
queólogos da infância, caçadores do futuro...
Naturalmente, é preciso ter encantamento tuição da alma nacional. Uma história antiga
por criança, gostar de brincar e estar iniciado e, por isso mesmo, provavelmente, o sucesso
na Cultura da Criança, na Música da Cultura das investidas ulteriores. E em meio à disso-
Infantil, para saber procurar, e persistir. nância geral se encontram nossas crianças!
Desejamos, ardentemente, que pesqui- Urge refletir:
sas semelhantes sejam empreendidas Brasil Onde é o nosso território?
afora, para que, muito em breve, possamos O que significa para nós termos nascido
conhecer ampla e detalhadamente a criança no Brasil?
brasileira, sua natureza, sua índole, seu mo- O que nos faz diferentes?
vimento, seus talentos, seus sonhos, sua cul- Qual é a nossa graça, a nossa fé?
tura e, assim, chegarmos a saber o Brasil por Que aspiração temos, nós brasileiros?
meio de seu patrimônio primeiro. Acredita- Em que consiste o nosso valor?
mos no valor dessa busca. Ela nos levará a Quais são os versos que queremos cantar
compreender nossa história, a grande diver- na RODA DAS CRIANÇAS DO MUNDO?
sidade cultural deste país imenso e mestiço,
sua natureza, sua aspiração, suas dimensões É preciso despertar para uma consciência
imateriais, seus sonhos, pedras fundamen- de Brasil e nos empenharmos, de todo o cora-
tais da nação que queremos. ção, nesta busca admirável.
Vivemos um tempo de muitos estímulos, Como já foi assinalado, ainda está por ser
mas, certamente também, de muitíssimas so- feito um mapeamento, uma pesquisa ampla
licitações desencontradas. É preciso recuar e consequente da Música da Cultura Infan-
um pouco para refletir. Entre outras coisas, til em nosso país. Que se sintam convocados
sobre o sentido de origem e pertencimento. todos aqueles que têm fé na criança e amam
Temos sido avassalados, ao longo dos tem- o Brasil. Serão muitos! Precisamos de todos.
pos, por intromissões inaceitáveis, por um Teremos que dar o melhor de nós. Muitas
assédio maciço de valores estranhos à nossa alegrias nos esperam e, em breve, veremos
cultura. Até os rincões mais longínquos do chegar à frente as nossas crianças, e o Brasil
país se estende o processo perverso de desti- surgir do sonho de seus filhos maiores!

Caderno Brincar 37
MÚSICA DA CULTURA INFANTIL, SIGNIFICADO E IMPORTÂNCIA

E, nessa tarefa de busca da nossa alma an- 3. Fui à Bahia buscar meu chapéu
cestral, é a Música da Cultura Infantil, justa- 4. Gato-Preto-Maranhão
mente, o instrumento mais precioso. Por meio 5. Pai Francisco entrou na roda
de sua prática, estaremos restabelecendo o laço 6. Senhora, Dona Sancha
afetivo com a língua, a língua-mãe, não aquela 7. Você gosta de mim, ô
da rede televisiva ou dos livros de escola, mas a
que está nas cantigas de ninar e nos brinquedos Brinquedos ritmados
de nossas crianças, tão carregados dos encan- 1. Chicotinho queimado
tos e mistérios da infância do nosso povo, dos 2. Escravos de Jó
múltiplos arquétipos de nossa cultura. E com a 3. Ôi, Jerimum já ramou, já botou
língua-mãe musical, a canção popular, que soa 4. Olha o Camaleão
nesses brinquedos com o viço, a graça e doçura 5. Ordem, seu lugar
de nossas crianças, e em toda a cultura popular, 6. Siriri, capê
viva, variada, mestiça, onipresente, no corpo e 7. Ta-ta-ra-ra-ta-chim
na voz dos nossos brincantes, cantadores e po-
etas. Ao cultivar as palavras da origem, estare- Brinquedos da Cultura
mos restabelecendo o laço afetivo com a língua. Infantil contemporânea
O poeta Fernando Pessoa é quem diz: “A língua 1. Ai, ona, ona ê
é a pátria!” E estaremos favorecendo também, 2. Ana Maria ficou de catapora
certamente, uma disposição fundamental para 3. Andoleta
a beleza, o imaginário, o sonho... 4. Lenha, la-enha
De resto, nunca foi tão necessário cantar! 5. Maria Madalena foi ao sítio de Belém
E, num país ele mesmo menino, é preciso que 6. Quando eu era neném
venhamos compreender o verdadeiro signi- 7. 1, 2, 3, chinelinho
ficado e o valor da infância e manifestar as
dimensões da Cultura da Criança. Histórias cantadas/brincadas
Finalizando, gostaria de relembrar al- 1. Aninha e o Príncipe
guns brinquedos de nossa infância: 2. Os Brinquinhos de ouro
3. As Cabritinhas e o Jacaré
Cantigas de ninar 4. A Gaita do Cágado
1. Amigo Besouro 5. A história da Coca
2. Balança a rede 6. A linda Rosa juvenil
3. Bão-ba-la-lão 7. Onde está a Margarida?
4. Boi de currá
5. Dan-dan, squidin-dan Rodas de verso
6. Sururu, Menino mandu 1. Gavião tava sentado
7. Xô, xô Pavão 2. Marinheiro chora, tin do lê lê
3. Meu limão, meu limoeiro
Brincos 4. Morava na areia, sereia
1. Baladum, baladum, baladum 5. Ó que noite tão bonita
2. Dandá pá ganhá vintém 6. Ô, Rosa Espera
3. Dedo mindinho 7. Passa pra lá, passa pra cá, ô jundiá
4. Macaco pisa o milho
5. Meu periquitinho verde
E agora, vamos brincar?
6. Pelelei, liquitão
7. Serra, serra, serrador
Mão na mão,
Brinquedos cantados todos na roda,
1. Abre a roda, tin do lê lê a cada um o seu verso,
2. De onde vem aquela menina? e um só coração...

38 Fundação Volkswagen
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Bahia. Recife: Massangana, 2001 HORTÉLIO, Lydia. Abra a roda, tin do lê lê.
ALFASSA, Mira; AUROBINDO, Sri. On Edu- São Paulo/SP: Brincante, 2002. 1 CD.
cation. Pondicherry/India: Sri Aurobindo HORTÉLIO, Lydia. Ô, Bela Alice. Salvador:
Ashram, 1966. Casa das 5 Pedrinhas..., 2004. 1 CD.
AUROBINDO, Sri. The National Value of Art. HORTÉLIO, Lydia. Céu, terra, 51! Salvador:
Pondicherry: Sri Aurobindo Ashram, Casa das 5 Pedrinhas... , 2016. 1 CD.
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CASCUDO, Luis da Câmara. Contos Tradi- São Paulo: Eldorado, 1984.
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1986. nho ou Um, São Paulo, 2015.
CASCUDO, Luis da Câmara. História de Nossos
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RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.

Caderno Brincar 39
40 Fundação Volkswagen
A organização
do espaço e suas
relações com
o brincar
Qualquer educador pode vestir o chapéu de arquiteto
quando tem a responsabilidade de criar um ambiente
favorável para a aprendizagem, com acesso a materiais e
brinquedos. Na Educação Infantil, o espaço se converte
em parceiro pedagógico, é nele que se multiplicam ou
se subtraem oportunidades para acolher o convívio, a
imaginação e o ser criança.

MARIA DA GRAÇA SOUZA HORN


é pedagoga, dá aulas nos cursos de Especialização
em Educação Infantil da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS) e defendeu tese de
doutorado sobre a organização dos espaços na
Educação Infantil, assunto no qual é especialista.

Caderno Brincar 41
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO E SUAS RELAÇÕES COM O BRINCAR

“O respeito do educador no cuidado


com a formação do educando se
manifesta quando o duplo olhar
puder negar a indiferença da maioria
das relações que se estabelecem no
cotidiano dos indivíduos na escola.”

E
(Aquino, 2010)

ssa citação nos remete à triste realidade lugar escondido, antes de dar a mão para
das escolas brasileiras, incluídas nesse con- fazerem a roda. A roda movimenta toda a
texto a Educação Infantil. O olhar que per- turma numa mesma atividade. No final da
cebe as diferenças, que focaliza os enredos brincadeira as crianças andam aos pulinhos
lúdicos construídos pelas crianças, muitas com a mão na cintura, imitando o que faz a
vezes está distante de uma prática pedagógi- coordenadora. Algumas ficam encabuladas e
ca que se pauta no prestar a atenção ao que não participam dos pulinhos mesmo quando
se evidencia nas relações infantis nos con- convidadas. Esta foi a única brincadeira cole-
textos da escola. Ilustrando essa afirmação, tiva observada em três dias!
convido os leitores a imaginar a cena descri-
ta por Ivany Ávila e Maria Luiza Xavier, no A realidade vivida por essas crianças
livro Plano de Atenção à Infância: aponta para algumas reflexões importantes.
A primeira diz respeito à ausência de brin-
Após o café da manhã, as crianças vol- quedos. Isso traz consequências imediatas
tam para sua sala e são atendidas pela coor- como o choro delas por não terem com que
denadora da creche. Procuram brinquedos interagir ou a disputa pelo pouco que é ofe-
dentro de um saco plástico. Os brinquedos recido. O fato da menina esconder o único
são poucos e quebrados: um caminhão de pote que tinha tampa sugere que ele era um
plástico sem rodas; um índio de borracha; objeto mais interessante, que permitia fazer
um palhacinho de pano, objetos de plástico algo mais, como tapar e destapar. E, também,
que deviam fazer parte de jogos que já não escondê-lo era a garantia de ter a oportuni-
existem. Os preferidos são os potes de mar- dade de voltar a brincar com o pote, evitando
garina. Disputam os potes. Querem os potes que outras crianças o fizessem. Outro desta-
com a tampa. Choram, fazem queixas. A co- que refere-se às crianças serem “intimadas”
ordenadora chama as crianças para fazerem a formar uma roda e imitar o gesto do adulto.
uma roda. Nem todos participam, a princí- Por se constituir numa atividade descontex-
pio. Algumas não querem largar o pote de tualizada, leva as crianças a se negarem a
margarina. Uma menina larga o pote num fazer essa imitação, a qual não está pautada

42 Fundação Volkswagen
nos postulados de Vygotsky quando afirma namos angústias e, assimilando emoções,
que a imitação não é mera cópia de um mode- compreendemos o meio onde estamos. Com
lo, mas uma reconstrução individual daquilo base nesse entendimento podemos afirmar
que é observado nos outros. que a experiência lúdica exerce importan-
Todas as crianças brincam, independen- te papel na construção da subjetividade.
temente de suas condições econômicas, so- Quando adultos, essas vivências carregam
ciais, étnicas e culturais. Essa afirmação me um senso de historicidade ao permitirem
remete a uma cena observada num bairro o reencontro com a própria infância, o que
bastante movimentado da cidade de Porto possibilita viver o sentimento de não estar-
Alegre, que certamente a ilustra. Em uma mos sós no mundo.
esquina, uma mulher comandava o esta-
cionamento de carros. Próximo a ela esta- A importância do brincar
vam três crianças de 4 a 6 anos, talvez seus A brincadeira provê uma situação de transi-
filhos, brincando num terreno baldio que ção entre a ação das crianças com objetos con-
ainda guardava resquícios de uma demoli- cretos e suas ações com significados. Portanto,
ção. Alheias ao intenso movimento, e sem a cercar as crianças de objetos, tanto no quadro
presença próxima da mãe, elas haviam mon- familiar como no das coletividades infantis
tado uma “casinha”. A mesa era um caixote, (creches e pré-escolas), é inscrever o objeto,
as cadeiras, pedras grandes, as panelas e os de um modo essencial, no processo de socia-
pratos eram potes e vidros recolhidos dos lização e também dirigir, em grande parte, a
escombros, a comida era feita com folhas dos socialização para uma relação com o objeto. A
arbustos que resistiram ao “desmanche”. O contribuição de muitos autores sobre essa te-
protagonismo dos pequenos impressionava mática nos auxilia na compreensão de sua im-
pelo enredo rico de uma cena familiar e pelo portância bem como subsidia teoricamente
envolvimento naquela ação. nosso olhar acerca do brincar infantil. O psi-
Além de desfrutar o prazer de simples- canalista Donald Woods Winnicott na obra O
mente brincar, sabemos que, por meio des- Brincar e a Realidade, afirma que o brincar é
se ato, controlamos nossos impulsos, domi- um fator tão importante no desenvolvimento

Caderno Brincar 43
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO E SUAS RELAÇÕES COM O BRINCAR

humano como o comer, o andar e o falar. Ao criança e se explicita em momentos de prazer,


lado dele, na ótica da pedagogia, Vygotsky de imaginação. Segundo o Manual de Brin-
afirma que no brinquedo cria-se uma zona cadeiras, obra destinada aos profissionais da
de desenvolvimento proximal, permitindo a infância, publicado pela Coordenação de Edu-
criança viver papéis que não desempenha no cação Infantil do Ministério da Educação em
cotidiano. Ao se referir às situações do faz de 2012, brincar é repetir e recriar ações praze-
conta, esse autor afirma que a criança é leva- rosas, expressar situações imaginárias e cria-
da a agir imaginando e se colocando em um tivas, compartilhar brincadeiras com outras
outro patamar de experiências, permitindo a pessoas, expressar sua individualidade e sua
ela estabelecer relações e, consequentemente, identidade, explorar a natureza, os objetos,
construir novos conhecimentos. comunicar-se e participar da cultura lúdica
No contexto em que vivemos, em especial para compreender seu universo. Portanto, é
nas grandes cidades, o brincar já não faz parte tarefa das instituições de Educação Infantil
da rotina de muitas infâncias, que se aproxi- cumprir o papel que lhes cabe para possibili-
mam cada vez mais da adultez. Se, por um lado, tar às crianças a vivência lúdica em contextos
temos as crianças que desde cedo trabalham qualificados e adequados.
duro para sobreviver, de outro temos aquelas Como a escola se apresenta nesse cená-
com a agenda repleta de compromissos: aulas rio? O que é importante propiciar para nos-
de balé, inglês, judô, entre outras atividades. sas crianças? Que espaços de brincar são
A esse panorama se agregam fatores como a fundamentais para dar conta do vazio que
falta de espaços e a insegurança das ruas. Isso vai se ampliando no desenvolvimento infan-
acarreta às creches e pré-escolas uma grande til? Quais relações se deve fazer entre a orga-
responsabilidade: elas são lugares que devem nização dos espaços e a ludicidade?
possibilitar o brincar às crianças. Em primeiro lugar é essencial conside-
A priori é importante considerar que o rar que não basta disponibilizarmos brin-
brincar se constitui na principal atividade da quedos e materiais. O planejamento para que

44 Fundação Volkswagen
as ações envolvidas no ato de brincar sejam e vivências do cotidiano da Educação Infan-
qualificadas e relevantes deve ser criterioso til. Portanto, é de vital importância organi-
e levar em consideração vários fatores. zar espaços ludicamente desafiadores, per-
Na obra Só Brincar? O Papel do Brincar mitindo às crianças o tempo necessário às
na Educação Infantil, Janet Moyles afirma interações. Elas experimentarão os desafios
que para brincar de modo efetivo as crianças que estão colocados por meio da distribui-
precisam de: ção dos materiais nos espaços da instituição,
• Companheiros de brincadeiras, espaços pois não estamos aqui nos referindo somen-
ou áreas, materiais e que o brincar seja te à sala de referência das crianças, mas aos
valorizado pelas pessoas que as cercam. pátios, aos corredores, às salas de atividades
• Oportunidades para brincar entre pares, múltiplas.
em pequenos grupos, sozinhas, perto de O papel do educador nesse processo é
outras pessoas, com adultos. fundamental, na medida em que observa e
• Tempo para explorar, por meio da lingua- cria espaços instigantes, acolhedores e pro-
gem, aquilo que fizeram e como podem pícios para aprender brincando e brincar
descrever a experiência. para aprender. Com base nessa ideia, pode-
• Tempo para continuar o que iniciaram. mos entender que a parceria dos espaços
• Experiências para ampliar e aprofundar tem implicações diretas sobre o brincar. Por-
aquilo que já sabem e aquilo que já podem tanto, quando organizarmos esses espaços, é
fazer. preciso considerar que:
• Estímulo e encorajamento para aprender • As crianças aprendem por meio do brin-
mais. car, constituindo-se este como a princi-
• Oportunidades lúdicas planejadas e es- pal forma de aprendizagem na primeira
pontâneas. infância.
Quando nos referimos a esses fatores, • O brincar espontâneo é visto não somen-
certamente estamos pensando em situações te como importante mas também como
um componente essencial do desenvolvi-
mento social e intelectual da criança e de
seu desenvolvimento criativo e pessoal.
• As crianças precisam não apenas de tem-
po e espaço para brincar e praticar ha-
bilidades, elas precisam também de edu-
cadores que as ajudem a aprender essas
habilidades.
Via de regra, a escola brasileira tornou-se
impessoal e indiferente às particularidades
dos indivíduos. Segundo Antônio Vinão Fra-
go, na obra Currículo, Espaço e Subjetividade,
todo educador tem de ser arquiteto. De fato,
ele sempre será responsável pelo espaço es-
colar, tanto se ele decidir modificá-lo, quanto
se o deixar tal qual está dado. O espaço não é
neutro, sempre educa. Resulta daí o interes-
se pela análise conjunta de ambos os aspec-
tos – o espaço e a Educação –, a fim de se con-
siderar suas implicações recíprocas.
Levando em consideração que o brincar
é a ação mais inerente à infância, as Diretri-
zes Curriculares Nacionais para Educação
Infantil têm como eixos articuladores o brin-
car e o interagir. Certamente isso tem rela-

Caderno Brincar 45
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO E SUAS RELAÇÕES COM O BRINCAR

ção direta e intrínseca com a organização Os autores Gilles Brougère e Anne Lise
dos espaços, pois ela poderá ser um convite Ulmann afirmam que aprender no cotidiano
ao brincar das crianças com outras crianças, é construir com a ajuda de encontros, ativi-
das crianças com objetos e materiais e das dades, observações, dificuldades e sucessos
crianças com os adultos educadores. um repertório de práticas ao longo da vida,
Que características deverá ter essa orga- em razão de novos encontros, atividades,
nização? migrações e viagens, inovações geradas pela
Inicialmente apontamos para a necessi- sociedade e seus objetos.
dade de uma infraestrutura e de formas de
funcionamento da instituição que garan- O espaço da Educação Infantil
tam ao espaço físico constituir-se como um Nessa perspectiva no contexto das institui-
ambiente que permita um bem-estar pro- ções de Educação Infantil, o espaço conver-
movido pela estética, pela boa conservação te-se em um parceiro pedagógico. As ações
dos materiais, pela higiene, pela segurança desenvolvidas pela criança serão descentra-
e, principalmente, pela possibilidade de as lizadas da figura do adulto e norteadas pe-
crianças brincarem e interagirem. los desafios dos materiais, dos brinquedos
Nesse aspecto, é importante ressaltar e do modo como os organizamos. Essa orga-
que os espaços destinados às crianças de nização deverá privilegiar basicamente dois
diferentes faixas etárias não podem ser aspectos: o acesso autônomo das crianças a
considerados como uma sala de aula na esses materiais e as diferentes linguagens
perspectiva tradicional, mas, sim, como um que estarão sendo privilegiadas e construí-
lugar de referência. Isso implica pensar que das nas interações com eles. Ao elegê-los es-
nesse local a proposta não seja organizá-lo taremos também considerando o tempo que
e gerenciá-lo para que “aulas” aconteçam, as crianças necessitam para realizar suas
mas, sim, para que experiências educativas ações, já que os ritmos diferem de criança
possam ser vividas. para criança. Nessa medida não estaremos
priorizando tarefas que sejam realizadas
de modo semelhante por todas as crianças e
com a mesma intensidade e duração. O tem-
po concedido visa oportunizar às crianças
um livre investimento nas atividades e inte-
rações que lhes causam prazer.
No contexto das instituições A organização proposta divide o espaço
em áreas circunscritas, cuja característica
de Educação Infantil, o principal é seu fechamento em pelo menos
três lados. Pode-se delimitar essas áreas
espaço converte-se em um usando mesas, cadeiras, tapetes, estantes e
outros móveis. As cortinas também são úteis
parceiro pedagógico. As ações para delimitar um ou dois lados, possibili-
tando à criança ver facilmente a educadora.
desenvolvidas pela criança Nesse processo que dinamiza as intera-
ções é importante considerar que, por parte
serão descentralizadas da do espaço, as coisas estão postas em termos
mais objetivos; por parte do ambiente, de
figura do adulto e norteadas maneira mais subjetiva. Nesse entendimen-
to, não se considera somente o meio físico ou
pelos desafios dos materiais, material mas também as interações que se
produzem nele. É um todo indissociável de
dos brinquedos e do modo objetos, odores, formas, cores, sons e pessoas
que habitam e se relacionam em uma estrutu-
como os organizamos. ra física determinada. Essa estrutura contém

46 Fundação Volkswagen
tudo e, ao mesmo tempo, é contida por esses
elementos que pulsam dentro dela como se
tivessem vida. O ambiente nunca é neutro,
ao contrário, transmite-nos sensações, evoca
recordações, passa-nos segurança ou inquie-
tação, mas nunca nos deixa indiferentes.
Aldo Fortunati, em sua obra A Abordagem
de San Miniato para a Educação de Crianças,
nos diz que as condições espaço-temporais em
que as experiências das crianças acontecem
são essenciais para a realização de seus propó-
sitos e têm implicações diretas nas intenções
planejadas pelos adultos. Nesse sentido, o pla-
nejamento deverá prever um ambiente orga-
nizado para que as crianças tenham oportuni-
dades e possibilidades, as quais orien­tem suas
experiências e incentivem interpretações no-
vas e diferentes daquelas que originalmente o
espaço se propõe a realizar.
Novamente é preciso dar um destaque ao
tempo, o qual com frequência é desconsiderado
pela maioria dos educadores. Em muitos mo-
mentos da rotina organizada por eles, deixam
de lado a atenção ao tempo que as crianças ne-
cessitam para a realização das experiências.
Esse tempo deverá sempre ser flexibilizado,
acolhendo os diferentes ritmos das crianças,
para que as explorações possam se tornar cada
vez mais ricas.
Sabemos que o conhecimento do desempe-
nho social do grupo e o planejamento agregam-
-se ao cuidado com a organização do espaço,
dos materiais e dos tempos. No papel de educa-
dores, uma atitude adequada é a de pensar no
que fazer e no que propor até provocar todas
as possibilidades, para dar continuidade aos
processos de brincadeiras das crianças.

Salas de referência
Os espaços são socialmente construídos, fru-
to das relações entre adultos e crianças, por-
tanto pode-se sugerir a construção deles nas
salas de referência da instituição. Eles pode-
rão ser: das artes, da construção, da leitura e
escrita, da casa, da música e do movimento,
dos livros, da dramatização e dos brinque-
dos. Para cada uma dessas áreas são indica-
dos materiais específicos, assim como sua lo-
calização. Por exemplo, é recomendado que
a área da casa contemple vários ambientes
para o faz de conta (quarto, sala, cozinha,

Caderno Brincar 47
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO E SUAS RELAÇÕES COM O BRINCAR

canto da beleza, armário de fantasias, gara- rolos, papéis de diferentes texturas formas e
gem etc.) e esteja equipada com objetos que tamanhos, lápis para colorir, barro, tesoura,
possam suscitar enredos de cozinhar, comer, cola, elementos naturais como pedras, con-
dormir, cuidar das bonecas, ir às compras, chas, pedaços de madeira etc. Devem-se prever
às festas, levar o bebê ao médico. Ao contrá- pontos de água para lavagem de pincéis, piso
rio dos ambientes definidos da área da casa, a fácil de limpar, aventais para uso da crianças,
área da construção ou blocos requer espaços diferentes superfícies de trabalho, tais como
vazios para a edificação de estruturas que mesas, cavaletes e parede, locais para secagem
crescem, são destruídas ou se transformam, e exposição das produções, como varal e mural.
e equipados de objetos como blocos grandes, Toda essa organização inclui pensar cui-
veículos, animais, papelão, tecidos etc. Estas dadosamente na seleção e na disponibiliza-
áreas certamente promovem trocas e intera- ção dos diferentes brinquedos e materiais
ções e, portanto, deverão estar localizadas nesses espaços. Na obra Brinquedo e Cultura,
próximas umas da outras. Gilles Brougère afirma que a imitação lúdi-
A área de livros requer um espaço acon- ca do real, longe de ser somente um destaque
chegante e confortável para acomodar a leitu- desse real, passa também pelo estímulo que
ra, o reconto ou a escuta e o manuseio de livros é o brinquedo. Por exemplo, as brincadeiras
e revistas e a criação de histórias. Tapetes, al- de maternagem diversificam-se conforme os
mofadas, poltronas ou sofá, uma diversidade acessórios propostos, assim, se colocarmos
de tipos de livros, assim como fantoches e re- uma banheira, o bebê poderá ser banhado.
cursos para escrever são sugeridos. A área de Essa seleção, classificação e disponibili-
artes reúne todos os tipos de materiais que dão zação dos brinquedos e materiais exige do
suporte às atividades de desenho, pintura, mo- professor um minucioso trabalho de obser-
delagem e colagem, tais como tintas, pincéis, vação, de coleta e de pesquisa sobre o que e

48 Fundação Volkswagen
onde colocá-los. É preciso observar alguns referência. Na realidade, todas as dependên-
critérios tais como: cias internas e externas das instituições de
• Atender as especificidades das diferentes Educação Infantil educam e podem propiciar
faixas etárias (nem todos os brinquedos ricas e diversificadas oportunidades para o
são adequados a todas as idades). brincar. Basta um olhar atento do educador
• Garantir um número suficiente de brin- para aprimorá-las e torná-las ainda mais
quedos e materiais (a quantidade de objetos adequadas às vontades de movimento e ação,
e de materiais deverá oferecer a possibi- à curiosidade, às interações com adultos e
lidade de uma interação individual e tam- objetos, ao convívio em grupos e ao fruir da
bém a promoção de brincadeiras em grupo. sempre fértil imaginação infantil.
• Selecionar brinquedos e materiais que
respondam a ação das crianças de múlti- Referências
plas formas (o material é mais atraente e ÁVILA, Ivany; XAVIER, Maria Luiza. Plano
adequado quanto mais transformações so- de atenção à infância. Porto Alegre: Me-
frer frente à atuação da criança sobre ele). diação, 1998.
• Dotar os espaços de faz de conta com ob- BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria
jetos que suscitem e ampliem os enredos de Educação Básica. Brinquedos e Brinca-
imaginados pelas crianças (quando colo- deiras nas Creches/Ministério da Educa-
camos uma maleta de médico no canto da ção. Brasília: MEC/SEB 2012.
casa, certamente “alguém” precisará de BROUGÈRE, Gilles. Brinquedo e Cultura. São
cuidados médicos). Paulo: Cortez, 2004.
Se considerarmos alguns princípios BROUGÈRE, Gilles; ULMANN, Anne Lise.
para reger a organização dos espaços inter- Aprender pela Vida Cotidiana. Campinas:
nos tais como criar ordem e flexibilidade no Autores Associados, 2012.
ambiente físico, proporcionar conforto e se- FORTUNA, Tânia Ramos. Sala de aula é lugar
gurança a crianças e adultos e oportunizar de brincar? In: XAVIER, Maria Luiza Me-
a interação com as diferentes linguagens da rino; DALLA ZEN, Maria Isabel H. Plane-
criança – esses também são válidos para a jamento em destaque: análises menos con-
organização dos espaços externos, especial- vencionais. Porto Alegre: Mediação, 2000.
mente o pátio. Nele as crianças não precisam FORTUNATI, Aldo. A Abordagem de San Mi-
apenas correr, subir no escorregador ou no niato para a Educação de Crianças. San
balanço. Podem desejar estar sob uma som- Miniato, Itália: Ediziones Ets, 2014.
bra, brincar na casinha, deitar em uma rede HORN, Maria da Graça Souza. Sabores, Sons,
e o entorno organizado deve oportunizar Cores e Aromas. A Construção do Espaço
tais ações. na Educação Infantil. Porto Alegre: Art-
É igualmente importante considerar a am- med, 2004.
plitude e a organização em diferentes áreas, KOHL, Marta de Oliveira. Vygotsky: Aprendi-
como as de repouso/movimento; segurança/ zado e Desenvolvimento. São Paulo: Scipio-
aventura; imitação/criação; ficção/­ realidade, ne, 1993.
locais para privacidade e socialização, bem MOYLES, Janet R. Só Brincar? O Papel do
como áreas com diferentes materiais naturais Brincar na Educação Infantil. Porto Ale-
para o manuseio. Ao lado disso, é válido pen- gre: Artmed, 2002.
sar em espaços com uma variedade de pisos no VINÃO FRAGO, Antônio. Currículo, Espaço e
chão, locais de sombra e de sol. Essa diversida- Subjetividade: A Arquitetura como Progra-
de propiciará, tal como nos espaços internos, a ma. Tradução Alfredo Veiga-Neto. 2ª. edi-
construção da autonomia moral e intelectual ção. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
das crianças. VYGOTSKY, Lev Semenovitch. A Formação
Ao pensarmos em organizar espaços que Social da Mente. São Paulo: Martins Fon-
acolham e promovam o protagonismo infan- tes, 1984.
til, a cultura de pares e a “escola do fazer e do WINNICOTT, Donald Woods. O Brincar e a
brincar”, os limites não devem ser as salas de Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

Caderno Brincar 49
50 Fundação Volkswagen
Brincar e
imaginar:
para todo
mundo e para
a vida inteira
As brincadeiras alimentam a imaginação e vice-
-versa. Por isso, todas as crianças (e também
os adultos) precisam ter direito à diferença, ao
ócio criativo, ao tempo livre para a exploração,
à curiosidade e à investigação... esses elementos
nutrem potência criadora e incitam à
brincadeira delas e à arte.

CLEONICE M. MARIA WALBURGA


TOMAZZETTI DOS SANTOS
é pedagoga com mestrado e doutorado em cursou História e fez mestrado e doutorado
Educação e professora na Universidade em Educação na FEUSP. Desde 2011, é
Federal de Santa Maria e na Universidade docente da Universidade Federal de São
Federal de São Carlos. Atua na licenciatura Carlos, atuando no campus de Sorocaba
em Pedagogia como formadora de a partir de 2016, na área de Educação
professores, com ênfase para a temática Infantil e no Programa de Pós-Graduação
da infância e a etapa da Educação Infantil, em Educação (PPGED/UFSCar Sorocaba).
e como orientadora no Mestrado em Estuda as temáticas: infância, jogos
Educação (PPGE/UFSM e PPGEP/UFSCar) e brincadeiras, Educação Infantil e
e na formação continuada e em serviço comunidades quilombolas, além de realizar
com as redes públicas. formação de professores no campo.

Caderno Brincar 51
BRINCAR E IMAGINAR: PARA TODO MUNDO E PARA A VIDA INTEIRA

Tudo se passou em minha


cabeça; criança imaginária,
defendi-me pela imaginação.
(Jean-Paul Sartre)

O que fazemos quando somos pequenos?


Questão intrigante, título de livro da filósofa
americana Penny Ritscher, e que nos colo-
ca diante de um desafio cada vez mais atual
em nosso cotidiano, prisioneiro do relógio
e da produção: o de reconhecer a infância, a
seus vários exemplos, descreve o mesmo que
escritores, poetas e outros observadores da
infância e das crianças, como Mário Quinta-
na e sua Lili Inventa o Mundo ou Clarice Lis-
pector com seu Menino Bico de Pena, com a
constatação: não há limites para a invenção,
criança, em seu próprio tempo, o presente. sobretudo quando se trata de inventividade
A indagação inverte a lógica e descoloniza infantil. Essa potencialidade impulsiona no-
a pergunta apreciada, preconizada e cons- vos rumos e saberes, realiza o cotidiano para
tantemente alardeada aos pequenos: “O que além das rotinas e é o caminho conhecido
você vai ser quando crescer?”. A observação, para a transformação.
com olhar e escuta atentos ao cotidiano das Apostando na sabedoria e nos fazeres
crianças, revela que muito além do que lhes é das crianças, que se expressam em várias
proposto pelas pessoas adultas, elas extrapo- linguagens e, ao mesmo tempo, são produ-
lam o senso comum e subvertem o que estabe- toras de cultura e atores sociais e culturais,
lecemos como padrão, como relata a própria interagindo com o mundo que as circunda,
Penny, que há décadas pesquisa ambientes atribuindo-lhe vários significados, apresen-
educativos na Itália, ao observar a Educação tamos algumas reflexões em torno de duas
Infantil: “Os adultos preparam atividades ações que permeiam a atividade humana:
motoras na sala de jantar e no jardim. Em vez brincar e imaginar. Defendemos que a fan-
disso, as crianças inventam por toda parte, tasia e a imaginação, transmutadas no ato
até mesmo no banheiro”. O “até mesmo no de brincar ou outros exercícios prenhes de
banheiro” indica-nos que todo lugar é lugar, criatividade – como literatura, música, arte,
e toda hora é hora de criar, inventar, experi- a própria ciência e várias outras situações
mentar corpo, movimento, ideias... Em outro lúdicas –, corroboram, em geral, com as pos-
exemplo, a pesquisadora expõe: “Os adultos sibilidades reais do exercício da liberdade e
amontoam as mesas de um lado da sala para da não fragmentação do pensamento. Elas
ter mais espaço; as crianças escalam e pas- estabelecem uma relação íntima e profícua
sam por baixo, transformando as pernas das com o conhecimento, por vezes inventando e
mesas voltadas para baixo nos comandos de reinventando nossas estratégias de transitar
uma escavadeira”. O texto de Ritscher, com e habitar esse mundo.

52 Fundação Volkswagen
A essa ideia-força acrescentamos a ques- e imaginar para todo mundo e para a vida
tão da inclusão para além das referências da inteira, observando nesse terceiro tempo al-
educação especial e das crianças com defici- gumas das infâncias que compõem o cenário
ência. Reforçamos o conteúdo apresentado diverso que habitamos, impresso por mar-
por Mantoan em seu artigo nesta mesma obra cas das diferenças, denotando a urgência da
sobre o direito à diferença na igualdade de di- Educação de fato inclusiva. Recorrendo às
reitos para todas as crianças (especialmente, vozes de crianças, de hoje e de ontem, escri-
mas não só!). Ela afirma que, inicialmente, a turamos imaginação e brincadeira.
inclusão escolar foi entendida de modo sumá-
rio como “inserção de alunos com deficiência, Primeiro tempo:
que frequentavam classes e escolas especiais, crianças e suas ideias
nas turmas das escolas comuns”. Mas mesmo Apontamentos de crianças a respeito de ima-
que isso ainda funcione assim como um senso ginação e de brincadeira fazem-nos adentrar
comum, “estamos chegando pouco a pouco à nos dois temas pela experiência de quem
compreensão de seu mote: garantir o direito vive as situações. Não apenas as crianças
à diferença na igualdade de direitos à educa- brincam ou imaginam, mas ouvir suas vo-
ção”. E por que trazemos essa ideia para falar- zes e registrá-las é um dos movimentos para
mos da criança brincante, de sua imaginação dimensionar seu percurso imaginativo que
e poder de criação? Porque esse direito à dife- tem total vazão no brincar. Isso por que as
rença é o que precisamos defender para todas crianças têm muitas linguagens e formas de
as crianças: elas têm direito ao ócio criativo da se expressar, como nos apontam as experiên-
infância, ao tempo livre para a exploração, à cias de Reggio Emilia, descritas em As Cem
curiosidade, e à investigação – todos funcio- Linguagens da Criança. Ao analisarmos essa
nando como alimento que nutre sua potência proposição, verificamos ainda que mesmo na
criadora e sua imaginação, e incita à brinca- infância já sem voz como categoria geral, his-
deira, à arte. tórica e social, ainda há aqueles com menos
A composição deste texto passa por três expressão ainda: as crianças invisíveis, co-
momentos: ideias de crianças (mesmo recu- bertas por uma camada oblíqua do que cha-
peradas quando adultas) a respeito de imagi- mam comumente de respeito ou tolerância.
nação e de brincadeira; brincar e imaginar – Crianças com deficiência, bebês, crianças ne-
incursões contextuais e conceituais; brincar gras, indígenas e tantas outras não raro fre-

Caderno Brincar 53
BRINCAR E IMAGINAR: PARA TODO MUNDO E PARA A VIDA INTEIRA

quentam o anonimato em uma categoria que da infância ao narrar suas próprias memó-
em si já é subalternizada. Nem sempre temos rias. Salientamos que memória e imaginação
registros atentos às crianças, esses porta-vo- ocupam categorias diferentes. A primeira
zes fidedignos dos processos em que estão relaciona-se com o ato de recuperar o pas-
imersos, de forma que precisamos localizar sado, reapresentando-o de acordo com as
no rol de produções existentes onde estão as lembranças e fragmentos de experiências de
crianças e sua imaginação. De início, recor- outrora que podem ser articuladas indivi-
remos à literatura: dual ou coletivamente, com possibilidade de
potencializar o presente e também dialogar
Eu não sabia ainda ler, mas já era bastan- com o passado, por vieses diferentes de regis-
te esnobe para exigir meus livros. (...) Peguei tros oficiais. Já a imaginação é conduzida pelo
dois volumezinhos, cheirei-os, apalpei-os, impulso da transformação, da renovação, da
abri-os negligentemente na “página certa”, reinvenção. É um ato que elabora o novo men-
fazendo-os estalar. Debalde: eu não tinha a talmente e interiormente e que, embora este-
sensação de possuí-los. Tentei sem maior êxi- ja no presente, pode potencializar o futuro.
to, tratá-los como bonecas, acalentá-los, beijá- Uma vez partilhada, a imaginação favorece o
-los, surrá-los. Quase em lágrimas, acabei por brincar e outras ações no coletivo. Muito pos-
depô-los sobre os joelhos de minha mãe. Ela sivelmente, como lembra Manoel de Barros,
levantou os olhos do trabalho: “O que queres as memórias podem ser inventadas. De novo
que te leia, querido? As Fadas?”. Perguntei entramos no campo da imaginação: mesmo
incrédulo: “As Fadas estão aí dentro?” (...) Ao que seja para reinventar o que já foi.
cabo de um instante compreendi, era o livro A leitura do excerto sartreano reforça
que falava (SARTRE, 1967). que o impulso para dar sentido à existência
começa na infância. E numa infância com
Jean-Paul Sartre, no livro As Palavras, imaginação. Na descrição anterior, os livros
aproxima-nos das surpresas e necessidades são objeto da vontade do menino ainda não
alfabetizado que tenta “possuí-los” com todos
os sentidos: tato, olfato, visão, quiçá paladar,
com base em várias iniciativas e sob muitas
perspectivas do campo de seu conhecimento,
para compreender o que de fato aquele obje-

Brincar e imaginar conecta-se to poderia significar e comunicar. Com a aju-


da da pessoa adulta mais próxima, no caso a

intimamente ao pensamento mãe, mergulha mais fortemente na imagina-


ção: “As Fadas estão aí dentro?” é a expressão

e ao conhecimento e as que remete ao espanto e ao experimento fan-


tástico arquitetado por uma criança. Sartre

crianças expressam esse elo dedicará ainda um estudo completo à temáti-


ca, publicado no livro A Imaginação, escrito

(brincar-imaginar-pensar- em 1936, calcado na Filosofia e com referên-


cia à infância:

-conhecer) com simplicidade, O ato de imaginar... é um ato mágico. É

profundidade e, por que não uma encantação destinada a fazer o objeto


pensado, a coisa desejada, para podermos nos

dizer, com poesia em seu apossar deles. Há sempre nesse ato algo de im-
perioso, algo de infantil, uma recusa em levar

dia a dia, quando em conta a distância, as dificuldades. Assim,


através de ordens e preces, a criança, de seu

escutadas e olhadas. berço, age sobre o mundo. A essas ordens da


consciência, os objetos obedecem: aparecem.

54 Fundação Volkswagen
Valendo-nos do encanto e da imaginação nação e realidade existem como dois lados
como pensamento vital, tal qual aponta Sar- de uma mesma moeda em que “toda obra da
tre, trazemos a fala de outra criança, essa as- imaginação constrói-se sempre de elementos
sentada no século XXI e de apenas 4 anos. Foi tomados da realidade e presentes na expe-
ouvida pelos professores e pesquisadores da riência anterior da pessoa”. Para autores e
infância Rodrigo Saballa de Carvalho e Paulo estudiosos da Teoria Histórico-Cultural, so-
Sérgio Fochi: mente os pensamentos religiosos e místicos
atribuem a origem das obras da fantasia a
Quando eu acordo, eu sempre fico bem forças estranhas ou sobrenaturais, enquanto
parado como está aparecendo na foto. Para- para Vygotsky (e outros) seria um milagre
do mesmo, que nem estátua. Fico pensando, se a imaginação surgisse do nada ou tivesse
pensando... Pensando na vida, na minha outras fontes para suas criações que não a
casa, nos meus brinquedos, nos meus amigos experiência anterior.
e na minha mãe. Não gosto de acordar rápi- Há mais uma ideia expressa por uma
do. Eu acordo sempre bem devagar e fico pen- criança que destacaremos aqui. Na verdade,
sando nas coisas importantes da minha vida. são imagens, fotografias realizadas por Malu,
Eu não gosto quando tem que acordar bem menina de 3 anos e cega desde o nascimento.
rápido. Às vezes, a profe fica brava porque eu Durante a realização de uma festa junina na
demoro muito para levantar. Na verdade, ela creche que frequenta, Malu foi instigada por
não entende que eu demoro porque fico pen- duas profissionais da instituição, à época ges-
sando um pouco (André – 4 anos de idade). toras, a fotografar o ambiente, mesmo sem o
recurso da visão. No relato das professoras,
O relato de André está no texto O muro primeiramente a criança aceitou o convite,
serve para separar os grandes dos pequenos: para em seguida pedir para “ver” a máquina e
narrativas para pensar uma pedagogia do co- só depois quis saber como funcionava. Acom-
tidiano na educação infantil, publicado em panhada por uma estagiária e uma cuidado-
2016, em dossiê intitulado Emenda Constitu- ra, porém sem a intervenção delas, a não ser
cional 59/2009: em Busca da Criança Perdida quando solicitado auxílio, a garota registrou
e remete, mais uma vez, à imaginação e à ação a imagem a seguir:
do pensamento. Mais do que revelar o que é
de fato importante para essa criança em seu
dia a dia, traz à vista toda sua humanidade e
relação com o mundo. Ela escolhe pensar no
lugar de obedecer ou reproduzir. Pensar e
destacar suas intenções e questões do dia a
dia. É o pensar que permite habitar um espa-
ço único, que “a profe” (a adulta) não compre-
ende. Pensar deixa o outro bravo: é o lugar
inacessível, onde “ninguém manda em mim”.
O que imagina André enquanto pensa? O que
pensa quando imagina? Que brincadeiras ex-
travasam, movimentam e vão constituindo a
imaginação, o pensamento de André?
Pensar e imaginar estão assim entrela-
çados em uma relação intrínseca a qual nos
leva a sua compreensão como uma função vi-
tal necessária e não como “um divertimento
ocioso da mente” como nos alerta Vygotsky
em seu texto de 1930 traduzido do russo por
Zoia Prestes e publicado no Brasil sob o títu-
lo Imaginação e Criação na Infância. Imagi- Depois de registrar o dedo, Malu disse: “Mas eu tô sentindo a foto”

Caderno Brincar 55
BRINCAR E IMAGINAR: PARA TODO MUNDO E PARA A VIDA INTEIRA

Uma de suas acompanhantes avisou que o nha sentidos, sendo inventado e reinventado
dedo estava em cima do visor da máquina, ao constantemente. O experimento é notado
que a menina respondeu: “Mas eu tô sentindo como reforço à vitalidade e caracteriza uma
a foto”. Com essa frase, a garota torna visível troca “ativa e alerta com o mundo”, como es-
e audível mais dois atributos da imaginação creve o filósofo e pedagogo americano John
e do brincar: qualquer pessoa pode imaginar Dewey em sua obra Arte como Experiência.
e brincar, e para brincar e imaginar o sentir Para o teórico do desenvolvimento cog-
deve estar presente. No caso de Malu, ver o nitivo Lev Vygotsky, a experiência anterior-
mundo com os dedos e sentir a foto desafia- -presente da pessoa, em sua riqueza e diver-
-nos porque já cristalizamos que o deficiente sidade, constitui o material de onde surgem
visual não enxerga. Isso porque considera- as condições para as crianças (adultas ou
mos como única linguagem possível para ver pequenas) construírem suas fantasias e sua
ou ler o mundo a decodificação feita com os imaginação, porque não se opõem à realida-
olhos. Para essa criança, ver está além: é um de, mas são combinadas de modos novos pela
conjunto de fatores que ela vai traçando e atividade do nosso cérebro. Mas também
dando significados com base em suas experi- esse autor afirma que a imaginação cumpre
ências sensoriais e na relação com os outros e uma função muito importante no comporta-
com o mundo. E sua singeleza ao explicar que mento e no desenvolvimento humano quan-
mais do que ver a imagem ela a estava sentin- do ela “transforma-se em meio de ampliação
do intensifica as relações entre infância, ima- da experiência de um indivíduo porque, ten-
ginação e o brincar na perspectiva que enlaça do por base a narração ou a descrição de ou-
várias linguagens: a voz, o corpo, o movimen- trem, ele pode imaginar o que não viu, o que
to, a poesia (das imagens e da fala de Malu), da não vivenciou diretamente em sua experiên-
arte. Estamos acostumados – como adultos cia pessoal”. Ou seja, a própria experiência
que somos – a escolher os meios e as técni- se apoia na imaginação, que passa a ser “uma
cas pelas quais as crianças podem expressar condição totalmente necessária para quase
seu universo interior, seu pensamento e sua toda a atividade mental humana”.
imaginação, seus sentimentos e percepções Brincar e imaginar conecta-se intima-
sobre o mundo, mas quando as crianças têm mente ao pensamento e ao conhecimento
a oportunidade de escolher os materiais e os e as crianças expressam esse elo (brincar-
meios, elas o fazem, e encontram o que é mais -imaginar-pensar-conhecer) com simplicida-
adequado para si, segundo relata a arte-edu- de, profundidade e, por que não dizer, com
cadora dinamarquesa Anna Maria Holm. poesia em seu dia a dia, quando escutadas e
A experiência de Malu foi descrita e ana- olhadas, a exemplo, mais uma vez, do regis-
lisada pelas professoras e pesquisadoras An- tro realizado por Carvalho e Fochi:
dreia Regina de Oliveira Camargo e Fernanda
Cristina de Souza, no Ensaio sobre Infância, Todos os dias eu e o Pedro espiamos na janela
Crianças e Educação Especial. Criar imagens o que está acontecendo lá fora. Acontece tanta
com base em suas sensações e não apenas da coisa. Passam as professoras, passam as filas
visão é possível porque a criança não reduz para o lanche, chegam os pais de todo mundo,
suas formas de apreender o mundo aos sen- a gente vê quem vai para a praça, os pequenos
tidos de que dispõe como a visão, a audição, passando, os passarinhos comendo grama e
a fala, ou o tato, mas por outras maneiras de as mães chegando. Na janela sempre tem um
sentir como a emoção, o afeto, o gesto, por montão de coisas acontecendo. A gente fica
exemplo. Imaginar seria parte do enxergar? sabendo de tudo que fica acontecendo. Na por-
O brincar permeia as ações e o cotidiano ta da sala também tem um vidro que dá para
das crianças, constituindo-se como lingua- ver quem passa na rua e o que está fazendo. A
gem por excelência da infância. É ato imagi- profe não gosta que ninguém fique nas janelas,
nário, cultural e repleto de significados, como para a gente não se atrasar na hora de fazer as
afirmam vários estudiosos dessa área. É pelo letras (Caio – 4 anos de idade).
brincar que o mundo é experimentado e ga-

56 Fundação Volkswagen
A janela como expressão de imaginação ção, é possível ser tudo ao mesmo tempo, ou
é recorrente nas produções humanas e apa- o tempo que durar a brincadeira, sem deixar
rece em obras como a pintura Moça à Janela, de ser eu mesmo, porque sou eu (o de todo dia)
de Salvador Dalí (1925), e no documentário que comporá os outros da fantasia com base
Janela da Alma, dirigido por João Jardim e no repertório histórico, social e cultural dos
Walter Carvalho (2001). Nesse caso, a jane- contextos que são conhecidos.
la e a imaginação de Caio apontam questões Por outro lado, nesse outro tempo do
que o preocupam ou motivam em seu per- brincar-imaginar, o envolvimento é indis-
curso de compreender e participar de tudo. pensável: a duração da brincadeira não se
Sua vida está para além das letras, pois tem aterá aos horários fixados pelas rotinas que
“um montão de coisas acontecendo”. Sua balizam os cotidianos da maioria das insti-
voz remete às questões da Filosofia e, prin- tuições de Educação Infantil, bem como o
cipalmente, do cotidiano de qualquer um de dia do brinquedo jamais será apenas a sexta-
nós, afinal, as crianças partilham do mesmo -feira: é todo dia, concebendo ainda que o
mundo com os adultos. Anne Marie Holm brinquedo não é apenas o industrializado,
no artigo em que relata os processos criati- pois qualquer objeto que dê suporte à brin-
vos que ocorrem em uma oficina de artes vi- cadeira, à exploração e ao experimento da
suais para crianças dinamarquesas afirma imaginação será um brinquedo.
que elas “não deveriam ser preparadas para É ainda de Rosa Monteiro o alerta que
um tipo determinado de vida; deveriam, educar uma criança supõe “limitar seu
sim, receber ilimitadas oportunidades de campo visual, apequenar o mundo e dar-lhe
crescimento. Aprendendo que uma tarefa uma forma determinada”, como acontece
pode ter várias soluções, adquirimos força e nos modelos de adequação sociais e cultu-
coragem”. Para ela, as crianças poderiam ser rais. Todavia, as crianças, e alguns adultos
mais desafiadas a pensar e a elaborar nar- também, suplantam esse apequenamento
rativas e a expressar de múltiplas formas
o que veem, ouvem ou sentem; aprender a
pesquisar, a ter confiança em si mesmas e a
ter coragem de se pôr a trabalhar em coisas
novas. Isso é a base da experiência que ali-
menta e é alimentada pela imaginação.

Segundo tempo: brincar e


imaginar entre contextos e
conceitos
A escritora espanhola Rosa Monteiro compôs
a obra A Louca da Casa observando o proces-
so criativo do ponto de vista da produção lite-
rária. Em determinado ponto de sua narrati-
va, traz a imaginação como foco e a associa à
loucura e à infância: “Na infância, somos to-
dos loucos, quer dizer, todos somos possuídos
por uma imaginação não domesticada e vive-
mos numa região crepuscular da realidade
em que tudo é possível”. Esse “tudo é possível”
é o lugar que não tem medo e transita num
tempo deslocado de nossas rotinas pautadas
pelos ponteiros de relógios, tão bem exempli-
ficado na letra de Chico Buarque João e Maria,
trazendo o pretérito imperfeito: agora eu era
(rei, bedel, juiz, cowboy). Com essa conjuga-

Caderno Brincar 57
BRINCAR E IMAGINAR: PARA TODO MUNDO E PARA A VIDA INTEIRA

A criança brinca enquanto A doutora em Educação Solange Jobim


e Souza apresenta o pensamento de Walter
cria, e cria enquanto brinca, e Benjamin a respeito da infância, da brinca-
deira e do jogo, e nos mostra que o pensador
esta é sua atividade principal; alemão também recorre a suas lembranças
de infância ao formular sua teoria de que
por isso mesmo, podemos descobrir outros significados para os objetos
é a via para outra compreensão do mundo
dizer que, do ponto de vista da e uma das características que diferencia as
crianças dos adultos. Os lugares e objetos
criança, brincar é coisa séria, pouco frequentados pelos adultos – ou até
mesmo por eles desprezados – são seleciona-
é trabalho. Brincar é aprender dos pelas crianças exatamente porque lhes
permitem uma significação própria, distinta
tudo sobre o mundo. daquelas convenções assumidas pelos adul-
tos – assim a criança constrói sua própria
significação do mundo – e se diferencia.
No campo brasileiro, lembramos o traba-
lho sociológico de Florestan Fernandes As Tro-
cinhas do Bom Retiro como marco de um deslo-
camento de postura da produção adulta “sobre
as crianças” para “com as crianças”. São elas e
suas experiências em torno das brincadeiras,
do folclore, que vão pontuando invenções e
reinvenções cotidianas que darão crédito ao
com estratégias fincadas no imaginar e no que o autor chamou de Cultura Infantil.
brincar, que se tornam atos de resistência A brincadeira, mesmo antes dos 2 anos, é a
e que permitem vislumbrar e entender o fonte para a imaginação e é por ela alimenta-
mundo por vários outros prismas, em mo- da; mas “a criança não nasce sabendo brincar,
vimentos caleidoscópicos, retomando as ela precisa aprender, por meio das interações
ideias de criatividade, originalidade, inven- com outras crianças e com os adultos”, des-
tividade (e reinvenção) e, por que não dizer, taca Tizuko Kishimoto, professora doutora
de transformação, dando novo sentido ao em Educação. O faz de conta é a configuração
próprio ato de educar, que pode ser cada vez mais difundida dos modos de brincar e imagi-
mais significativo. nar que conhecemos a esse respeito. Vygotsky
O brincar e imaginar são temas clássicos concebia que a atividade humana com liberda-
e presentes em várias áreas do conhecimen- de surge da consciência e que é estreitamente
to e na ação humana, como exemplifica Homo vinculada à imaginação. Em texto de 1930,
Ludens: o Jogo como Elemento da Cultura, de Vygotsky enfatizava, ainda, que as ações hu-
Huizinga. No diálogo direto com a Educação, manas não se reduzem à reprodução de fatos
sobretudo a Educação Infantil, há uma vasti- ou impressões, mas que criam novas imagens
dão de estudos como os de Kishimoto, Corsa- ou ações; não estão pautadas simplesmente
ro, Brougère, Manson, Vygotsky, dentre mui- em reproduzir ou conservar a experiência
tos que abordaram e teorizaram a respeito anterior, mas também em “combinar e reela-
do brincar, perpassando pelo imaginar. São borar, de forma criadora, elementos da expe-
estudos de base sociológica, psicológica, an- riência anterior, erigindo novas situações e
tropológica, histórica e pedagógica que têm novo comportamento”.
impactado – mas também arejado – as pers- Essa forma de pensar a brincadeira co-
pectivas pelas quais temos caminhado, trans- nectada à ação criadora – imaginação e fan-
formado e aprendido a respeito do brincar e tasia – é expressa por Vygotsky como uma
a brincadeira das crianças. das questões mais importantes da psicologia

58 Fundação Volkswagen
e da pedagogia infantis. Para ele, o trabalho formas de deixar fruir a energia criativa é
de criação desde a mais tenra idade contri- oferecer um ambiente cheio de possibilida-
bui para o desenvolvimento geral e o ama- des e de coisas para serem investigadas que,
durecimento da criança, pois os processos em sua desarrumação, permitem às crianças
criativos “se expressam melhor em suas brincarem e se jogarem rumo a esse desco-
brincadeiras”. Ele exemplifica com a criança nhecido – o que se choca com uma sala/escola
montando cavalinho em um cabo de vassou- muito arrumada. Holm defende que “a brin-
ra, ou com a menina que brinca com a boneca cadeira é livre na sua essência – o processo
imaginando-se a mãe para afirmar que estes de criação artística é livre em sua essência.
são exemplos da “mais autêntica e verdadei- Se um processo artístico é controlado, já não é
ra criação”. Para Vygotsky, as brincadeiras mais um processo artístico, correto?”.
sempre trazem referências imitativas das A criança brinca enquanto cria, e cria
experiências anteriores, mas estas nunca enquanto brinca, e esta é sua atividade prin-
se reproduzem na brincadeira exatamente cipal; por isso mesmo, podemos dizer que, do
como ocorreram na realidade. A brincadeira ponto de vista da criança, brincar é coisa sé-
da criança é, sim, “uma reelaboração das suas ria, é trabalho. Brincar é aprender tudo sobre
marcas vivenciais; é a construção de uma rea- o mundo: “Ao brincar, a criança experimenta
lidade nova que responde às suas aspirações o poder de explorar o mundo dos objetos, das
e anseios”. Afirma também que “assim como pessoas, da natureza e da cultura, para com-
na brincadeira, o ímpeto da criança para preendê-lo e expressá-lo por meio de varia-
criar é a imaginação em atividade”. Já para das linguagens”, observa Kishimoto. E como
Holm, esse ímpeto de “construir, instalar e a criança faz isso tudo? De maneira prazerosa
criar” ambientes a partir de elementos avul- porque dá a ela “o poder de tomar decisões, de
sos, diversos, é um talento natural da criança, expressar sentimentos e valores, conhecer a
observado com base nas interações e na liber- si, aos outros e ao mundo [...]”.
dade presente na oficina de arte. Segundo seu Quando as crianças são livres para brin-
registro, “a ideia delas [das crianças] era que, car, ela – a brincadeira – é uma ferramenta
após a construção, brincariam dentro da 'ins- para a expressão delas e para o seu desenvol-
talação'. Muito frequentemente acabam não o vimento delas. E para sua criação, imagina-
fazendo, porque é o processo em si, de criar o ção; para o poder experimentado de tomar
'lugar', que mais importa para elas”. decisões, expressar sentimentos e valores;
Brincar e criar, ações que têm em comum conhecer a si mesmas e aos outros. E isso se
a necessidade de liberdade, de experimen- relaciona à cultura da infância – a produção
tação, de investigação assim explicado por de modos específicos de ser e estar no mun-
Kishimoto: “O brincar é uma ação livre, que do; a voz e a vez das crianças, entre si, seus
surge a qualquer hora, iniciada e conduzida colegas e seus parceiros de geração, mas di-
pela criança; dá prazer, não exige como condi- versos em suas próprias culturas de origem.
ção um produto final”. Importa destacarmos
que a atividade que move, que impulsiona a Terceiro tempo: para todos e
criança a agir e a criar com o que está a sua para a vida inteira
disposição é a sua necessidade, sua busca pela Defender o brincar e imaginar para todo
exploração que quer conhecer, aprender. En- mundo e para a vida inteira é a premissa de
quanto cria, pensa, e ao pensar reelabora o onde partimos para pensar a infância e a edu-
que está dado transformando em outra coisa, cação inclusiva. Focamos as crianças, mas
ressignificando o vivido. Instala o novo, ocu- compreendemos a extensão das formas de
pa os vazios deixados pelos adultos que nada brincar e imaginar durante toda a existên-
veem naquilo, enquanto ela vê, sente, pensa cia da pessoa, em qualquer contexto. Por isso,
e imagina o novo. E materializa, transforma ainda pontuamos que a Educação e suas prá-
sua “energia criativa” em criações humanas, ticas precisam atentar às manifestações plu-
que nós adultos, pela experiência da arte, rais que coexistem num mesmo espaço educa-
transformamos em “algo cultural”. Uma das tivo e, principalmente em relação às crianças

Caderno Brincar 59
BRINCAR E IMAGINAR: PARA TODO MUNDO E PARA A VIDA INTEIRA

pequenas, trazer como desafio as perspecti-


vas traçadas por Tizuko Kishimoto e Julia Oli-
veira-Formosinho no que concerne à partici-
pação e pertencimento, ou seja, exercício da
Pedagogia para Pertencer e Participar, bus-
cando Pedagogia(s) para a infância. Para tan-
to, é preciso conhecer e reconhecer as dife-
renças, combatendo estigmas e preconceitos.
Trazer a pauta da diferença colabora com a
construção de um cenário educativo que preza
pela diversidade, à medida que busca incluir; e
a igualdade, à medida que dialoga com os direi-
tos e as condições de todas as crianças. Portan-
to, é pela diferença que caminharemos para a
diversidade, a criatividade e o direito à igual-
dade. Crianças habitam corpos, espaços, cultu-
ras e condições diferentes, mas todas pensam,
e à sua maneira, brincam e imaginam. Conce-
ber educação e diferença traz para o campo pe-
dagógico de forma visível crianças indígenas,
negras, migrantes, quilombolas, com deficiên-
cia e muitas outras. Nesse caso, como apontam
Abramowicz e Levcovitz em seu texto Tal In-
fância. Qual Criança?, a professora é a pessoa
fortemente empenhada em “entender o que as
crianças falam, o que querem conhecer, o que
há de interessante em fazer e a deixar de fazer,
o que querem estudar, o que querem deixar pra
lá, em que desejam pensar, o que há de interes-
sante para visitar, que novas formas de brincar
podem ser elaboradas, que músicas e que dan-
ças podem ser inventadas”. Há um chamamen-
to, mais uma vez, à imaginação e à invenção.
Recorrendo à voz das crianças com base
em produções já publicadas, apresentamos
Mariana e José Pedro, pelo registro de sua pro-
fessora Filipa Freire de Andrade e da pesqui-
sadora Sara Barros de Araújo, em Portugal:

A Mariana pergunta ao Zé Pedro: “Que-


res vir para os jogos?”. “Quero”, respondeu ele.
“Queres brincar comigo com os legos gran-
des?”, voltou a perguntar a Mariana. “Sim”,
disse o Zé. “Vamos fazer uma casa”, sugeriu
a Mariana. E foram os dois. Ela tirou os sa-
patos e fez a sua casa com auxílio dos pés... O
Zé Pedro fez a sua ao lado, ajudando-se mu-
tuamente e dando sugestões um ao outro en-
quanto iam fazendo suas construções.

60 Fundação Volkswagen
Mariana, com 3 anos à época, sofreu aci- Afirmando Diferenças: Montando o Que-
dente com fogo, descrito pelas autoras, apoia- bra — Cabeça da Diversidade na Escola. São
das em parecer médico, como o caso mais gra- Paulo: Papirus, 2010, p. 73-85. 3ª edição.
ve de queimaduras em crianças em Portugal. CAMARGO, Andréia Regina de Oliveira;
Dentre as consequências que marcam todo SOUZA, Fernanda Cristina de Souza. En-
o seu corpo, a menina perdeu boa parte dos saio sobre a Infância, Crianças e Educação
membros superiores. O texto Da Participação Especial. Anais do 4º Seminário Interna-
Convencionada à Participação Efectiva: um Es- cional Educação Infantil e Pós-estrutura-
tudo de Caso Alicerçado na Escuta da Criança lismo. São Carlos, 2015.
em Contexto de Educação da Infância apresen- CARVALHO, Rodrigo Saballa; FOCHI, Pau-
ta e analisa a inserção de Mariana na institui- lo Sérgio. O Muro Serve para Separar os
ção educativa. As duas crianças brincando Grandes dos Pequenos: Narrativas para
com peças de encaixe enfatizam mais uma vez Pensar uma Pedagogia do Cotidiano na
o brincar como elemento de interação, imagi- Educação Infantil. Textura, v. 18 n.36, jan./
nação e coletividade. abr.2016
Em relação à imaginação e ao ser criança HOLM, Anna Marie. A Energia Criativa Natu-
em qualquer circunstância, ainda concorda- ral. Proposições, v. 15, n. 1 (43) – jan/abr, 2004.
mos com as pesquisadoras Sandra Richter e HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: O Jogo
Simone Berle ao inferirem que não é apenas como Elemento da Cultura. São Paulo:
considerar ou aceitar, mas fundamental- Perspectiva, 2000.
mente “confiar nas crianças e acolher seus KISHIMOTO, Tizuko Morchida. Brinque-
tempos de tentar, de explorar, de experimen- dos e Brincadeiras na Educação Infantil.
tar, de aprender, de reconhecer, de inventar, Anais. I Seminário. MONTEIRO, Rosa. A
de tatear o real, de bolinar o mundo”. Assim Louca da Casa. Rio de Janeiro: Ediouro Pu-
experimentamos e recuperamos a imagi- blicações, 2004. Tradução: Paulina Wacht
nação poética que se alia à investigação, ao e Ari Roitman.
fantástico, ao que ainda não conhecemos e RICHTER, Sandra Regina Simonis; BERLE,
queremos explorar e aprender. Simone. Pedagogia como Gesto Poético da
O tempo da velhice e da infância encon- Linguagem. Educação & Realidade. Porto
tram-se na memória e na imaginação. Mes- Alegre, v. 40, n. 4, out./dez, 2015.
tres griôs da África narram a ancestralidade RITSCHER, Penny. ¿Qué Haremos Cuando
com imaginação e rigor, incentivando novas Seamos Pequeños? Hacia una Intercultu-
gerações, as crianças, a continuarem o lega- ra entre los Adultos y los Niños. Barcelona:
do, recriando a existência. Imaginação tam- Ediciones Octaedro – Rosa Sensat, 2012 (2ª
bém tem um quê de magia, de imagem em edição).
movimento, em ação, em outras palavras, o SARTRE, Jean-Paul. As Palavras. São Paulo:
pensamento que ganha força e materializa- Difusão Europeia do Livro, 1967. Tradução
se, no caso das crianças, principalmente nas de J. Guinsburg.
brincadeiras. E é por isso que o brincar e o SARTRE, Jean-Paul. A Imaginação. São
lúdico podem ser concebidos como a grande Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1964.
linguagem que abre caminhos e, em qual- Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes.
quer contexto, podem significar e promover SOUZA, Solange J. S. Infância e Linguagem:
acolhimento e inclusão. Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. Campinas:
Papirus, 1994.
Referências VYGOTSKY, Lev. S. Imaginação e Criação na
ABRAMOWICZ, Anete; LEOCOVITZ, Diana. Infância. Ensaio Psicológico – Livro para
Tal Infância. Qual criança? In: ABRAMO- professores. São Paulo: Ática. 2004. Tra-
WICZ, Anete; SILVÉRIO, Valter Roberto. dução de Zoia Prestes.

Caderno Brincar 61
62 Fundação Volkswagen
Brincar e as
tecnologias
na Educação
Infantil
Os brinquedos impulsionam o potencial lúdico das
crianças, capazes de transformar um objeto em outro
usando apenas a imaginação. Já os jogos de regras levam a
desenvolver habilidades, organizar o pensamento e a ação
e promovem a socialização. Com a tecnologia, brinquedos
e jogos ampliam habilidades e desafiam a Educação.

MARIA DO CARMO WAGNER ANTONIO


KOBAYASHI JUNIOR
é pedagoga, tem mestrado e é pedagogo licenciado pela Faculdade
doutorado em Educação pela de Ciências da Unesp-Bauru e
Universidade Estadual Paulista mestre em Educação pela Faculdade
Júlio de Mesquita Filho (Unesp- de Educação da USP. Dirige uma
-Marília). Aprofundou seus estudos escola de ensino fundamental
no campo dos objetos lúdicos: jogos, da rede municipal de Bauru e o
brinquedos, literatura infantil e Departamento de Planejamento,
arte nos anos iniciais da Educação Projetos e Pesquisas Educacionais da
Básica. É docente do departamento Secretaria Municipal da Educação.
de Educação e do Programa de Pós- É docente na graduação e pós-
Graduação da Unesp-Bauru e líder graduação da Faculdade de Agudos
do Grupo de Estudos da Infância e membro do Grupo de Estudos
e Educação Infantil: Políticas e Contextos Integrados de Educação
Programas – CNPQ-Unesp.  Infantil – FEUSP.

Caderno Brincar 63
BRINCAR E AS TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

D esde o final do século passado, a Educação


Infantil passa por mudanças fomentadas por
vários fatores. Entre eles estão a inserção
cada vez maior da mulher no mercado de
trabalho, o reconhecimento da educação na
primeira infância como sendo um direito da
brincadeiras na Educação Inclusiva? A base
jurídica tem o objetivo de assegurar o brin-
car como um direito da criança. Crianças são
crianças, cada uma delas com suas habilida-
des e competências, suas características, gos-
tos e preferências. São essas particularidades
criança e reivindicações dos diferentes seg- que as fazem únicas e que trazem para o uni-
mentos da sociedade para o cuidar e o educar verso da escola o desafio do cotidiano. Porém,
nessa faixa etária. A criação das escolas para do verbo ao ato, ou seja, da lei que rege sobre
as crianças pequenas surgiu em resposta a o direito ao brincar, como se encontra no Es-
alterações na maneira de se pensar o que é tatuto da Criança e do Adolescente, instituído
ser criança e de se compreender a importân- em 1990, e, principalmente, nas DCNEI, há a
cia da infância para o ser humano, o que foi necessidade de que os professores e as equi-
materializado na legislação e, consequente- pes escolares conheçam e reconheçam o papel
mente, nos documentos nacionais. Podemos do brincar na vida da criança, e para tanto de-
citar a Constituição Nacional de 1988, que vem garantir tempos, espaços e materiais que
promulgou a educação de qualidade e garan- sejam suporte para a ação lúdica.
tida a todos os cidadãos brasileiros. A legis- A Secretaria de Educação Básica, por
lação específica para a Educação Infantil teve meio da Coordenação Geral de Educação In-
que esperar mais algumas décadas, com a Lei fantil, promoveu uma consultoria técnica
das Diretrizes de Base para a Educação, em especializada sobre diferentes eixos e expe-
1996, e posteriormente com os documentos riências dessa etapa de ensino em diversos
específicos para essa faixa etária, tais como municípios do país. O objetivo foi implan-
a Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009, tar as DCNEI e estimular um debate demo-
que fixou as Diretrizes Curriculares para à crático sobre a brincadeira e as interações,
Educação Infantil (DCNEI), em 2010. como eixo estruturante do currículo, que se
Mas qual a importância em se retroce- orienta pelo documento Brinquedos e Brin-
der às legislações educacionais até 2010 para cadeiras nas Creches: Manual de Orientação
discorrer sobre o brincar e as tecnologias na Pedagógica. A condição prévia para abraçar
Educação Infantil, em uma obra dedicada a esse eixo é, precisamente, a aceitação do
brincar como direito e que tenha como cen-
tro a própria criança: ela como um sujeito
que requer atenção, é competente, tem inte-
resses e necessidades. Entretanto, para que
a brincadeira ocorra, é necessário o plane-
Se as crianças têm direitos jamento de ambientes, de tempos, espaços
e objetos, sendo que um dos requisitos para
garantidos para brincar, elas isso é a parceria de adultos – professor e de-
mais componentes da equipe escolar –, que
precisam de oportunidades tenham se reconciliado com a criança que
foram e se vejam como parte importante na
para que isso ocorra. estruturação do brincar de alta qualidade.

64 Fundação Volkswagen
Se as crianças têm direitos garantidos
para brincar, elas precisam de oportunida-
O potencial lúdico revela as
des para que isso ocorra. Pesquisadores como
o francês Michel Manson, professor na Uni-
possibilidades da ação do
versidade de Paris 13 – Villetaneuse, estudio-
so da história da criança e sua educação, na
brincar. Na ação lúdica, a
obra História do Brinquedo e dos Jogos. Brin-
car Através dos Tempos rompe com a ideia
criança transforma um objeto
de que o consumo de objetos para crianças é
um fenômeno contemporâneo. Mostrando o
em outro utilizando para isso
imaginário infantil no decorrer dos tempos,
Manson aponta que há muito pensadores
apenas sua imaginação.
e pedagogos, de formas contraditórias,
reprovam e enaltecem o oferecimento dos
brinquedos para as crianças, como Français
Rabelais (1494-1553). Rabelais escreveu Os
Horríveis e Apavorantes Feitos e Proezas do registra a ação do brincar e jogar. Posterior-
Mui Renomado Pantagruel, Rei dos Dipsodos, mente, pintores franceses como Jean Siméon
Filho do Grande Gigante Gargântua, publica- Chardin (1699-1779) e Jean-Baptiste Greuze
do em 1532, que apesar de dar uma coleção (1725-1805) trazem o olhar da modernidade
diversa de brinquedos para seu filho Gar- para a criança e seus objetos preferidos –
gântua, os considerava frívolos. Michel de brinquedos e jogos. Enquanto isso, educado-
Montaigne (1533-1592) recriminava os pais res e pedagogos debatiam sobre os usos des-
pelo oferecimento de tais objetos, descuidan- ses objetos para fins educativos.
do assim de sua educação. Não se pode deixar de mencionar a obra
Segundo Manson, a visão de Jan Amos do suíço Jean-Jacques Rousseau (1717-1778)
Comenius (1592-1670), um teólogo, educa- quando se fala da educação das crianças:
dor, cientista e escritor europeu, destoa do Emílio ou Da Educação foi o momento do
período em que viveu, pois tinha a criança nascimento do conceito de infância e mudou
como o bem mais precioso da humanidade. a pedagogia. O papel da educação, segundo
Comenius falou dos brinquedos como “mo- Rousseau, era de utilizar a atividade natural
delos inteligíveis” e suporte para a brinca- da criança – nesse sentido as brincadeiras,
deira. No final do século 17, o filósofo inglês suas explorações sensoriais, seus interes-
John Locke (1632-1704) admitia a importân- ses e necessidades – como a base da apren-
cia dos brinquedos para as crianças, mas dizagem. A entrada oficial dos brinquedos
ressaltava o papel dos preceptores quanto na educação escolar encontrou um campo
a sua melhor utilização. Chama-nos a aten- oportuno no ideário de Friedrich Froebel
ção, conforme conta Manson, o interesse (1782-1852), o pedagogo alemão que fundou
dos artistas europeus quanto à infância e os o primeiro jardim de infância. Entre as par-
objetos característicos desse período da vida tes mais conhecidas de sua filosofia e de seus
– os brinquedos. A obra Os Jogos Infantis, de escritos estão os “presentes” ou “dons”, um
Pieter Brueghel – O Velho, no Renascimento, conjunto de objetos em escala gradativa de

Caderno Brincar 65
BRINCAR E AS TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Para a criança, a linguagem lúdica é a forma


privilegiada de entrar no mundo adulto, das
outras crianças e de si mesma. Nas ações
de brincar ela nos oportuniza a expressão
das suas ideias, dos seus sentimentos e medos.

complexidade para o desenvolvimento in- de análise do adulto para a seleção e oferta


fantil. Segundo Manson, os brinquedos en- desses artefatos para elas. Entretanto, para
traram nas salas de acolhimento após 1856, a criança, o objeto não se configura dessa
nas horas recreativas, passando a ser vistos forma. É preciso atentar para o conceito de
como utensílios pedagógicos. potencial lúdico, que é potencial no sentido
Os estudos sobre os brinquedos e os jo- de revelar possibilidades da ação do brin-
gos no século 20 são profusos e encontrados car, ou seja, da ação lúdica de cada criança,
em diferentes áreas do conhecimento como a considerando que ela transforma um objeto
psicologia, a sociologia, a antropologia, entre em outro, utilizando para isso apenas a sua
outras. Porém, como aponta o filósofo francês imaginação. Os jogos de construção ou cria-
Gilles Brougère, no final do século 19 assiste- tivos são exemplos apontados pelo designer
-se ao nascimento de uma psicologia da crian- e filósofo italiano Bruno Munari como sendo
ça que desenvolveu um método científico e, prefiguração para a resolução de problemas
paralelamente, surgem novos discursos so- de tridimensionalidade, pois para utilizá-los
bre os objetos da criança. Nesse século, com o é necessário planejamento, seleção e orga-
avanço da industrialização, como aponta o so- nização na montagem de estruturas. Nessas
ciólogo alemão Walter Benjamin, os brinque- ações, a criança intervém, participa, recorre
dos saem do controle das famílias, tornando- à criações da fantasia para resolver proble-
-se estranhos não só às crianças como também mas simples e, posteriormente, complexos.
aos seus pais. Atualmente, a influência da Por um lado, temos o potencial lúdico,
mídia na divulgação e na decisão da compra que se refere às ações do brincante. De outro
de brinquedos e jogos é incontestável. Nesse e em sintonia com ele, temos o objeto, que é
sentido, como a criança é um projeto para o o fator lúdico, ou seja, aquilo que contribui
futuro e se investe em sua escolarização, pe- para um determinado resultado. O objeto
sam como argumentos decisórios os atribu- (fator lúdico) pode ser motivo, razão, causa,
tos educativo, pedagógico e didático. condição, coeficiente, elemento, motor, fon-
É necessário enfatizar que os adjetivos te de desafio e de invenção de construção
que acabamos de citar atraem os adultos para a criança. O desafio está em agir sobre
– sejam eles pais ou professores – para os ele. Nesse processo de descobrir, inventar e
efeitos de tais objetos sobre os processos de criar ações sobre o objeto brinquedo a crian-
aprendizagem das crianças. Eles são formas ça aprende sobre si mesma e sobre o mundo.

66 Fundação Volkswagen
OBJETO

AÇÃO
LÚDICA

CRIANÇA

Potencial e fator lúdico: possibili-


dades da ação do brincar / motor
da ação lúdica.

Brinquedos, desenvolvimento do, sua ação lúdica é uma área privilegiada


e crescimento infantil de estudos a ser destacada, principalmente,
A infância é um tempo muito curto, entre- na Educação Infantil e na inclusão. Quan-
tanto são os anos mais importantes para a do nos referimos à ludicidade, falamos dos
formação de indivíduos seguros, autôno- objetos lúdicos como os brinquedos, jogos,
mos, felizes e conhecedores de seu papel na livros, histórias, músicas, danças, trava-lín-
sociedade onde vivem. Estudiosos como Jack guas, desenhos, entre outros que apoiam a
Shonkoff, que desenvolveu suas pesquisas na relação da criança com o ambiente, por meio
neurociência, biologia molecular, epigenéti- das linguagens simbólicas com base na suas
ca, ciências sociais e comportamentais, ad- experiências no mundo ao seu redor. Entre-
verte que as bases do desempenho escolar, tanto, para isso é preciso garantir tempos, es-
da saúde, da produtividade econômica e da paços e materiais que apoiem a ação lúdica.
cidadania responsável são formadas nos pri- A quem compete fazer isso? Ao adulto! Pais,
meiros anos de vida. Para a criança, a lingua- parentes, professores, políticos, ou seja, to-
gem lúdica é a forma privilegiada de entrar dos nós que somos responsáveis por educar
no mundo adulto, das outras crianças e de si e cuidar das crianças vamos possibilitar e
mesma. Nas ações de brincar ela nos opor- apoiar a ação lúdica em casa, na escola e nos
tuniza a expressão das suas ideias, dos seus diferentes lugares de convivência.
sentimentos e medos. Seja em seus estudos Os objetos educativos, brinquedos e jo-
ou sobre o que observa, ela quer conhecer e gos surgiram a partir do momento em que
cria suas próprias teorias para entender e os adultos – pais, familiares e professores
agir sobre o mundo. Os escritos de Vygotsky, – começaram a se preocupar com o futuro
Piaget e Oliveira mostram como o brinquedo das crianças. O brincar/jogar descompro-
se interpõe entre a criança e o mundo ao seu missado e verdadeiramente lúdico, no qual
redor. Entretanto, para selecionar os obje- a criança escolhia com o que iria interagir e
tos lúdicos, é necessário conhecer suas qua- por quanto tempo, vem perdendo seu espaço
lidades, provável indicação de faixa etária e, para as múltiplas atividades extraescolares a
principalmente, os interesses e as competên- que os pequenos são submetidos atualmente.
cias suscitados nos pequenos. Crianças precisam ter tempo para brincar/
Quando a criança brinca, ela nos revela jogar sem compromisso, pois essas ações
como vê o mundo ao seu redor, nesse senti- ocorrem com maior frequência e liberdade

Caderno Brincar 67
BRINCAR E AS TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

na infância, que passa muito depressa. Cien-


te dessas questões, então, pode-se falar dos
objetos lúdicos educativos: brinquedos ma-
teriais e imateriais, jogos de faz de conta, de
representação, de regras, e nessa categoria
várias são as possibilidades: de encaixe, de
questões, de adivinhar, jogos de escolha (uni
duni te salame mingúe um sorvete colore o es-
colhido foi você...)
Os jogos e os brinquedos, de forma geral,
são importantes instrumentos utilizados
pelos educadores nas atividades lúdicas da
Educação Infantil. Eles proporcionam ações
que potencializam o desenvolvimento das
habilidades físicas, cognitivas, afetivas, so-
ciais e morais da criança. Eles também pos-
sibilitam aos pequenos desenvolver concei-
tos mais elaborados, como as relações com
os outros, tais como a amizade e o respeito,
e consigo mesmos, como a imagem corporal,
a lateralidade, a orientação espacial e tempo-
ral. Isso irá ajudá-los no processo de inserção
no mundo e dos sucessivos e importantes
aprendizados.
Existe um diferencial entre o ato de brin-
car e jogar. Nas brincadeiras, a criança usa o
brinquedo para criar situações e histórias,
sem a necessidade de definir ou estabelecer
regras a priori. Porém, engana-se quem ima-
gina que a brincadeira não está subordinada
às regras. Ao observarmos essa ação, pode-
mos ouvir “assim não pode, irmão não pode
bater no outro...”. As crianças podem brincar
sozinhas ou coletivamente. Brincam porque
gostam e se divertem ao criar seu próprio

O contato social diante de


uma situação-problema faz
com que os participantes
cooperem uns com os outros
para alcançar um objetivo,
o de ganhar o jogo.
68 Fundação Volkswagen
mundo. As brincadeiras proporcionam a
oportunidade de expressar sentimentos, de-
As regras são importantes
sejos, fantasias e as experiências vividas.
Ao contrário das brincadeiras, o jogo
para a manutenção das
apresenta regras definidas e um dever a ser
cumprido, ou seja, um objetivo a ser perse-
convenções sociais e dos
guido. As crianças interagem com o objetivo
de competir e de ganhar. O jogo de regras,
valores humanos e, por isso,
por exemplo, pode ser cumprido individual
ou coletivamente, desde que as regras sejam
ajudam a construir seres
respeitadas. Esse tipo de jogo pode ser com-
binado com atividades lúdicas motoras ou
humanos mais éticos
intelectuais e pressupõe uma série de ope-
rações cognitivas de natureza lógica que a
e comprometidos com
criança deve organizar e coordenar. É conve-
niente ao jogador conhecer e compreender as
sua cultura.
regras antes de praticá-las. No momento do
jogo, ocorre uma série de relações cognitivas,
envolvendo ordem, encaixe, antecipação e
retroação. Também ocorrem relações sociais
entre os participantes: nessas horas é que se As regras são importantes para a manu-
aprende a esperar a vez de atuar, a não ante- tenção das convenções sociais e dos valores
cipar as ações até o momento adequado, a não humanos e, por isso, ajudam a construir seres
trapacear. No jogo, aprende-se de forma lúdi- humanos mais éticos e comprometidos com
ca algumas ações necessárias no dia a dia, que, sua cultura. O jogo de regras pode ser utili-
em geral, são pouco registradas se forem en- zado a partir do momento que a criança tem
sinadas por adultos fazendo uso de sermões e o domínio da linguagem. Ela organiza seu
ameaças. O contato social diante de uma situ- pensamento e permite trabalhar em grupos.
ação-problema faz com que os participantes Para obter os resultados desejados no jogo,
apliquem procedimentos cooperativos para a criança é capaz de planejar ações, executar
alcançar um objetivo, o de ganhar. e reavaliar caminhos. Ao desenvolver essas
O jogo de regras tem importância fun- capacidades, ela organiza, definitivamente,
damental para a socialização da criança. seu pensamento e sua ação. Com essas carac-
Por meio das regras estabelecidas no jogo, terísticas, a criança está apta a entender, aca-
a criança tem uma tarefa a cumprir. E, para tar e negociar ordens, cumprir determinadas
cumpri-la, deverá utilizar seus recursos cog- regras e executá-las. Os jogos de competição e
nitivos, lançar estratégias e se esforçar para cooperação devem ser a base do trabalho lúdi-
alcançar o objetivo. Esse exercício a obriga a co e educativo nessa faixa etária. A regra im-
respeitar as instruções do jogo e seus adver- posta no jogo servirá para garantir a posição
sários. Outra função importante do jogo é que de cada um no grupo e favorecer a discussão e
ele desperta a curiosidade e as habilidades interlocução dos indivíduos.
cognitivas. As regras inferem na capacidade
de tomar decisões, planejar ações, analisar os Os objetos tecnológicos:
erros e lidar com as perdas. Assim, provoca um longo caminho
conflitos internos para a busca de soluções. É Desde tempos remotos, os artefatos tecnológi-
desse movimento cognitivo que o pensamen- cos foram pensados, construídos e aperfeiço-
to sai enriquecido, reestruturado e pronto ados de modo paralelo à evolução do próprio
para lidar com novas situações. Todas essas homem. Desse modo, as tecnologias são o sinô-
ações ajudam a desenvolver a autonomia na nimo da presença humana no mundo e repre-
criança e favorecem seu avanço nas relações sentam a construção da racionalidade. Con-
sociais. forme Daniela Melaré Vieira Barros descreve

Caderno Brincar 69
BRINCAR E AS TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

em sua pesquisa de doutorado intitulada Tec- pós-modernidade, quando os dispositivos pas-


nologias da Inteligência: Gestão da Competên- sam a ser multissensoriais e cada vez mais in-
cia Pedagógica Virtual, desde tempos imemo- tegrados às pessoas.
riais o homem utilizou a técnica, considerada Entre o mundo pré-histórico e os modos
como a habilidade para determinadas ações, e contemporâneos da vida humana, a técnica
a tecnologia, expressa em um conjunto de co- e a ciência, juntas, proporcionaram ao ho-
nhecimentos e informações provenientes de mem a sistematização, a organização e a di-
fontes diversas, como descobertas científicas versificação padronizada do trabalho, cujo
e invenções obtidas mediante diferentes méto- objetivo sempre foi, além da sobrevivência,
dos e utilizadas na produção de bens e serviços a convivência e as relações políticas. As mo-
para garantir sua sobrevivência em condições dificações que aconteceram ao longo da his-
inóspitas. O fascínio pela técnica estimulou o tória, pela técnica, proporcionam reflexões
ser humano a criar extensões de si próprio, de sobre a capacidade que o ser humano tem
modo que hoje é possível perceber um indiví- de criar o princípio de algo que potenciali-
duo entrelaçado aos seus dispositivos tecno- za a sua própria inteligência. Tal princípio
lógicos. A expressão “meios de comunicação desenvolveu-se até o que é denominado hoje
como extensões do homem”, utilizada por Mar- como cibercultura, termo destacado pelo
shall McLuhan em 1974, não só demonstra a in- filósofo e entusiasta das tecnologias Pierre
tensidade da relação entre indivíduos e artefa- Lévy. Para ele, a cibercultura é uma possibili-
tos tecnológicos mas, sobretudo, provoca uma dade de se experimentar novos avanços, em
reflexão sobre a configuração dessa relação na novas mídias, das quais resultarão diferen-

70 Fundação Volkswagen
tes meios de comunicação no coletivo. Pierre
Lévy afirma que cabe apenas a nós explorar
As tecnologias são
as potencialidades mais positivas desse espa-
ço nos planos econômico, político, cultural e
o sinônimo da
humano. A cibercultura tem se destacado
por revelar humanos cada vez mais relacio-
presença humana
nados aos suportes e aparatos tecnológicos.
Na verdade, a relação homem-máquina não
no mundo e representam
é peculiar ao ciberespaço. É, por sua vez,
própria da natureza humana. Diante dessa
a construção da
realidade, podemos visualizar não apenas
mudanças nos meios de comunicação ou in-
racionalidade.
teração mas também na área da Educação. A
velocidade das mudanças nos remete a um
estado de constante renovação.
As tecnologias ampliam as capacidades
humanas, a comunicação entre as pessoas,
suas formas de adquirir, organizar, arma-
zenar, analisar, relacionar, integrar, aplicar
e transmitir informação, desenvolvendo
inúmeras habilidades no homem por meio
do ato de pensar, refletir, criar e inovar no
mundo digital. Para tanto, essas tecnologias, e precisam se apropriar dela para não serem
denominadas pela pesquisadora e especia- excluídos do processo ou para sobreviverem
lista em semiótica Lucia Santaella como fer- em um mundo que exige conhecimento sobre
ramentas ou artefatos, são projetadas como sua utilização. Já os nativos digitais são aque-
meio para realizar uma tarefa, funcionan- les que nasceram ou vão nascer nesta era digi-
do como prolongamentos ou extensões de tal. Assim, observamos que por meio dos su-
habilidades do homem, em sua maior parte portes digitais, as crianças jogam, conversam,
manuais ou sensórias. Estão incluídas nessa trocam conteúdos, compartilham fotos em re-
definição as máquinas, que podem ser com- des sociais, entre outras ações. Incluímos aqui
paradas ao corpo ou ao cérebro humano. Já os ambientes virtuais de aprendizagem, em
em 1966, John Cohen afirmou em seu livro que as crianças interagem com brincadeiras
Human Robots in Myth and Science que a pos- enquanto aprendem.
sibilidade de imitar a vida por meio de um Na mesma linha de raciocínio, o espe-
artefato vem intrigando a humanidade des- cialista em ensino à distância Chip Dono-
de tempos imemoriais. hue apresenta no artigo Technology in Early
Childhood Education: and Exchange Trend
Interface entre tecnologia e Report os usos inovativos e eficientes da
ludicidade computação para o desenvolvimento huma-
Atualmente, as tecnologias da informação no. Para ele, existe uma diferença no ritmo
e comunicação fazem parte do cotidiano de de aprendizagem das gerações mais jovens
muitas crianças e jovens que, ao mesmo tem- dependendo do tipo de suporte e conteúdo:
po que brincam, estabelecem relações intera- quanto mais tradicional for o instrumento,
tivas, característica essencial da “sociedade mais lenta será a aprendizagem; ao contrá-
em rede” descrita pelo sociólogo Manuel Cas- rio, quanto mais inovadores forem os meios
tells. Ele classifica, com base no nível de ambi- (e aqui inserimos as tecnologias), mais di-
ência com as tecnologias, duas categorias de nâmico será o processo de apropriação do
indivíduos: os imigrantes digitais e os nativos conhecimento. Há de se considerar que,
digitais. Os primeiros estão acompanhando, quanto mais moderno e tecnológico é o ar-
na história, o desenvolvimento da tecnologia tefato, mais rapidamente ele ficará obsoleto.

Caderno Brincar 71
BRINCAR E AS TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

cedo têm acesso a essas tecnologias, o que as


Atualmente, as tecnologias transforma em objetos de uso cotidiano. Elas
transpõem os usos de um equipamento para
da informação e comunicação outro, sem medo dos objetos tecnológicos, o
que as transforma em curiosos utilitários.
fazem parte do cotidiano Os adultos, ao contrário, utilizam tais obje-
tos sem repertórios de ação anteriores e com
de muitas crianças e jovens medo de possíveis equívocos.
Nessa linha, Jared Keengwe e Grace On-
que, ao mesmo tempo chwari, ambos da University of North Dakota,
apresentam discussões e exemplos levanta-
que brincam, estabelecem dos em um curso sobre integração tecnológi-
ca para professores da primeira infância. Eles
relações interativas, criticam a “crença” de que a tecnologia na es-
cola é a salvação para todos os problemas edu-
característica essencial cacionais. Pois a criança está tão acostumada
com tecnologia e recebe tantos incentivos so-
da “sociedade em rede”. bre seu uso que se transforma em um “cliente
exigente”, ou melhor, um usuário exigente e
conhecedor daquilo que maneja. Os pesqui-
sadores afirmam que as discussões no decor-
rer do curso proporcionaram planejamentos
para a implementação de ações com o uso das
tecnologias e que a maioria dos professores
participantes considerou, ao seu término,
que a tecnologia podia ser realmente implan-
O autor exemplifica no artigo os programas tada e que eles eram capazes de fazer isso.
para computador que são apresentados aos Em contrapartida, citam que os fatores
jovens em casa, pelos pais, ou pelos profes- dificultadores para os professores são a forte
sores nas escolas: enquanto para as gerações pressão de órgãos públicos e privados sobre
mais velhas esses recursos são “inovadores”, a implementação das tecnologias e de seus
para os jovens, trata-se de algo ultrapassado usos em sala de aula. Proporcionando, mui-
e desestimulante. tas vezes, um uso inadequado devido a essa
Brinquedos e jogos são objetos que in- pressão, ou apenas um uso para justificar
serem as crianças na sociedade onde elas sua existência. Fato que verificamos também
vivem, assim os objetos que marcam o co- na realidade educacional brasileira.
tidiano da vida estão diretamente relacio-
nados com as Tecnologias da Informação e Referências
da Comunicação (TIC). Se crianças tinham BARROS, Daniela Melaré Vieira. Tecnologias
como objetos de transporte cavalos, carru- da Inteligência: Gestão da Competência Pe-
agens e troles no período anterior ao meios dagógica Virtual. Tese (Doutorado em Edu-
de locomoção motorizados, tendo cavalinhos cação Escolar) – Universidade Estadual
de pau e troles em tamanhos reduzidos, hoje Paulista, Faculdade de Ciências e Letras,
participam e partilham do cotidianos com Campus de Araraquara, 2005.
smartphones, celulares, computadores pes- BRASIL. Constituição da República Federati-
soais, sendo esses os objetos que são miniatu- va do Brasil. 5 de outubro de 1988.
rizados e entregues para suas brincadeiras. BRASIL. Lei nº 9.394. Lei de Diretrizes e Bases da
Qual o efeito dessas mudanças relativas aos Educação (LDB). 26 de dezembro de 1996.
objetos lúdicos? Primeiro há de se destacar BRASIL. Ministério da Saúde. Estatuto da
as dificuldades dos adultos no próprio uso Criança e Adolescente/Ministério da Saú-
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72 Fundação Volkswagen
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Caderno Brincar 73
A cultura,
a brincadeira
e as culturas
infantis
A cultura inventada pelos pequenos encontra lugar na dos
adultos? Como Corsaro, Sarmento e Brougère, três autores
estrangeiros, enriquecem a discussão sobre as brincadeiras,
os pensamentos e as experiências das crianças.

MARIA CARMEN SILVEIRA BARBOSA


é professora associada da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Faced/Ppgedu, em Porto Alegre; e membro participante
dos grupos de pesquisa do CNPQ: Clique – Grupo de Estudos,
CIC – Crianças, Infância e Culturas (UFPEL); Lince – Linguagens,
Cultura e Educação (Unisc). .

SANDRA SIMONIS RICHTER


é professora e pesquisadora do Departamento de Educação e do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de
Santa Cruz do Sul-RS, líder do grupo de Estudos Poéticos:
Educação, Linguagem e Infância (Unisc) e pesquisadora do
Grupo Peabiru: Educação Ameríndia e Interculturalidade (UFRGS)
e do grupo Lince – Linguagens, Cultura e Educação (Unisc).

Caderno Brincar 75
A CULTURA, A BRINCADEIRA E AS CULTURAS INFANTIS

E m sua concepção inicial, é considerada


distante de nossas realizações cotidianas.
Apesar de ser uma palavra que usamos com
frequência, ela é uma noção antropológica
com grande dificuldade de ser definida. Nas
sociedades ocidentais, a definição de cultura
compreensão. A escola tomou seu lugar
como a responsável pela seleção e organiza-
ção de quais conhecimentos seriam compar-
tilhados com as novas gerações por meio de
um longo processo de aculturação.
Porém, essa concepção de “alta cultura”
tem sofrido grandes variações, expressando ou “grande cultura” foi problematizada ao
a pluralidade das realidades e a variedade de longo do século XX. Em primeiro lugar pelo
interpretações das teorias sociais. Segundo o seu caráter abstrato, isto é, de selecionar de-
sociólogo francês Philippe Corcuff, a cultura terminados valores, práticas, hábitos como
foi concebida como “um conjunto homogê- se os mesmos estivessem desencarnados das
neo e integrado de valores e normas que de- relações sociais, de classe, de gênero, raciais,
terminam os comportamentos dos grupos e políticas, religiosas etc. Assim, a ideia mono-
dos indivíduos”. Isto é, uma síntese de produ- lítica de cultura passou a ser questionada e
tos simbólicos (materiais, como a arquitetu- repensada como algo plural, constituído por
ra, e imateriais, como o folclore e a religião) pequenas culturas. Vários neologismos sur-
valorizados socialmente e conformados por giram dessa nova ótica: subculturas, cultura
alto nível de abstração. popular, cultura de massas, cultura jovem,
Durante muitos anos, a “grande cultura” ou cultura negra, cultura feminina, culturas in-
a “cultura dos adultos” ocupou esse lugar da fantis. Culturas de grupos diversos sempre
cultura universal. Por sua vez, a educação es- em relação e em contraposição à concepção
colar teve como papel central transmitir a “alta de uma cultura única e dominante.
cultura burguesa e ocidental” sem apontar que Essas diversas culturas não podem ser
realizava exclusões, silenciamentos e contra- compreendidas como autônomas ou inde-
dições. Além disso, reforçava que dominar, pendentes umas das outras ou da “grande
ou não, esse patrimônio colocava o indivíduo cultura”. É fundamental reconhecer que há
em diferentes posições na hierarquia social. relações entre elas. Como afirma o antropólo-
Essa concepção de cultura evidencia uma ideia go argentino Canclini, “[...] estudar a cultura
rígida de cultura que nega o corpo, as ações requer, então, converter-se em especialista
práticas, os costumes locais, as iniciativas dos das intersecções”, ou, ainda, como comenta
pequenos grupos, isto é, as microvariações de o filósofo indiano Bhabha, o terceiro espaço,
modos de vida que são pouco percebidas como pois as culturas mesclam-se, resistem, são
modos culturais de ser, fazer ou existir. incorporadas, recriadas. Bhabha destaca que
Nessa perspectiva, a relação das crian- somente quando compreendermos que “todas
ças pequenas com a cultura sempre foi vista as afirmações e sistemas culturais são cons-
como uma relação de passividade. Compre- truídos nesse espaço contraditório e ambiva-
endidos como sujeitos incapazes, os bebês e lente de enunciação”, que denomina Terceiro
as crianças pequenas precisavam aprender, Espaço, é que “as reivindicações hierárquicas
por meio de um processo de transmissão- de originalidade ou ‘pureza’ inerentes às cul-
-assimilação, apenas a cultura adulta dis- turas” tornam-se insustentáveis.
ponível. Grande parte das programações O historiador francês De Certau mostrou
curriculares foi concebida com base nessa que muitas vezes a concepção de uma “gran-

76 Fundação Volkswagen
de cultura” unitária e fechada impede que as
atividades criadoras presentes no cotidiano
Também a redefinição de
tornem-se socialmente significativas:
criança no último século faz
Coloca-se o peso da cultura sobre uma
categoria minoritária de criações e de práti-
grande diferença. A noção de
cas sociais, em detrimento de outras: campos
inteiros da experiência encontram-se, desse
criança como sujeito que apenas
modo, desprovidos de pontos de referência
que lhes permitiriam conferir uma significa-
adquire ou absorve o mundo foi
ção à suas condutas, às suas invenções, à sua
criatividade.
substituída pela de sujeito com
Assim, o autor justifica a importância de
ação social, com direitos e como
pluralizar o termo e defender a existência
de cultura(s), enfatizando que a cultura das
produtor de culturas.
pessoas é inventada no dia a dia, nas práti-
cas sociais, nas atividades banais e renovada
constantemente, sendo o resultado de uma
inteligência prática. A historiadora e filósofa
Luce Giard, no prefácio do livro A Cultura no
Plural, sintetiza a concepção de De Certau:
“A cultura não consiste em receber, mas em
realizar o ato pelo qual cada um marca aquilo mento diz que “nada é puramente natural
que os outros lhe dão para viver e para pen- no homem. Mesmo as funções humanas que
sar”, e complementa: correspondem a necessidades fisiológicas,
como a fome, o sono, o desejo sexual etc. são
[...] toda a cultura requer uma atividade, um informados pela cultura: as sociedades não
modo de apropriação, uma adoção e uma trans- dão exatamente as mesmas respostas a essas
formação pessoal, um intercâmbio instaurado necessidades”.
num grupo social. É exatamente esse tipo de “cul- Esse pequeno percurso sobre a ideia de
turação”, se assim podemos dizer, que concede a cultura abre espaço para compreender as
cada época sua fisionomia própria. culturas infantis. A transformação do termo
para cultura(s) dá oportunidade para todos
Para esses autores, portanto, a cultura serem sujeitos produtores de cultura – in-
não é apenas um “tesouro” a ser transmitido dependentemente de idade, sexo, etnia ou
por meio de um longo processo de acultura- classe social. Também a redefinição de crian-
ção, mas a enfatizam como “a manipulação ça no último século faz grande diferença. A
adequada e criativa desse patrimônio cultu- noção de criança como sujeito que apenas
ral que permite as inovações e as invenções”. adquire ou absorve o mundo foi substituída
O sociólogo francês Cuche ao afirmar que a pela de sujeito com ação social, com direitos
cultura remete a modos de vida e de pensa- e como produtor de culturas.

Caderno Brincar 77
A CULTURA, A BRINCADEIRA E AS CULTURAS INFANTIS

Assim, as crianças passaram a ser vistas Três modos de compreender


não apenas como seres determinados pelas as culturas infantis
culturas mas também como agentes criado- Atualmente, três autores com seus estudos
res delas. Para a antropóloga brasileira Cla- interdisciplinares têm se destacado na dis-
rice Cohn, as crianças são ativas na formula- cussão das culturas infantis em nosso país:
ção de sentidos para o mundo em que vivem: William Arnold Corsaro, Manoel Jacinto
Sarmento e Gilles Brougère – cada um deles
Elas elaboram sentidos para o mundo com suas específicas orientações teóricas,
e suas experiências compartilhando plena- problemas de pesquisa e metodologias.
mente de uma cultura. Esses sentidos têm
uma particularidade, e não se confundem William Arnold Corsaro
nem podem ser reduzidos àqueles elaborados As ideias de Corsaro, professor titular da Fa-
pelos adultos; as crianças têm autonomia culdade de Sociologia da Universidade de In-
cultural frente ao adulto. Essa autonomia diana, nos Estados Unidos, começaram a ser
deve ser reconhecida e também relativizada: divulgadas no Brasil no início do século atu-
digamos, portanto, que elas têm uma relativa al. Esse pesquisador, que realizou pesquisas
autonomia cultural. Os sentidos que elabo- transculturais sobre crianças na Itália, na No-
ram partem de um sistema simbólico com- ruega e nos Estados Unidos, defende dois im-
partilhado com os adultos. portantes conceitos para a compreensão das
culturas infantis: a cultura de pares e a repro-
Isso significa que as crianças fundam sua dução interpretativa.
pequena cultura com base nos modos como Inspirado em Piaget e Vygotsky, Corsaro
participam dos mundos naturais e simbó- começou suas pesquisas com crianças tendo
licos com os quais interagem. Assim, suas como princípio o fato de que as interações
relações na diversidade de meios sociais em sociais entre elas têm grande importância
que vivem são aspectos centrais para com- para seu desenvolvimento social. Porém,
preender as culturas infantis. As crianças in- ao participar de contextos de brincadeiras
ventam suas culturas no cotidiano: uma cul- com crianças pequenas nos pátios escolares,
tura dos pequenos, compartilhada com seus começou a perceber que estava “documen-
pares. Como todos os seres humanos, elas são tando a produção criativa das crianças e sua
capazes de criar, de atribuir e de compreen- participação em uma cultura de pares”. O au-
der significados. tor usa a expressão “grupo de pares” (parcei-
ros, companheiros) para referir a crianças,
de idade aproximada, que se reúnem diaria-
mente, em geral no mesmo lugar, e passam
algum tempo juntas conversando, compar-
Ao participar de contextos de tilhando objetos, movimentos, ritmos, brin-
cadeiras, dramatizações. Isto é, estabelecem
brincadeiras com crianças atividades recorrentes, ou, ainda, rituais ou
rotinas culturais que as possibilitam com-
pequenas nos pátios escolares, preender as variáveis do mundo adulto
como as relações de poder, as diferenças en-
Corsaro começou a perceber tre gênero, classe e papéis sociais etc. Segun-
do o autor, “ um conjunto estável de ativida-
que estava “documentando a des ou rotinas, artefatos, valores e interesses
que as crianças produzem e compartilham
produção criativa das crianças na interação com seus pares”. Essas culturas
“são públicas, construídas coletivamente e
e sua participação em uma performáticas”, isto é, estão relacionadas
às culturas mais amplas e compartilham na
cultura de pares”. interação com seus pares”. Essas culturas

78 Fundação Volkswagen
“são públicas, construídas coletivamente e com outras, com a presença ou não dos adul-
performáticas”, isto é, estão relacionadas às tos, no interior de uma cultura heterogênea
culturas mais amplas. e abrangente. As crianças estão imersas em
Já a reprodução interpretativa é o concei- várias culturas e singularizam essas informa-
to utilizado por Corsaro para a abordagem ções culturais em seus pequenos grupos de
dinâmica de socialização das crianças, des- convívio e também individualmente. Elas têm
crito a seguir: competência para agir e, desde muito peque-
nas, aprendem por meio do convívio social.
O termo interpretativa captura os aspec- Apesar de seus estudos enfatizarem a realiza-
tos inovadores de participação na sociedade, ção de pesquisas etnográficas com grupos de
indicando o fato de que as crianças criam e crianças em espaço escolar, a análise de Cor-
participam de suas culturas de pares singu- saro procura interpretar o “microespaço” das
lares por meio da apropriação de informa- brincadeiras infantis não apenas a partir das
ções do mundo adulto de forma a atender aos relações interpessoais, mas tendo em vista as
seus interesses próprios enquanto crianças. políticas públicas e as práticas sobre a infância.
O termo reprodução significa que as crian-
ças não apenas internalizam a cultura, mas Manoel Jacinto Sarmento
contribuem ativamente para a produção e a O trabalho de investigação de Sarmento che-
mudança cultural. Significa também que as gou ao Brasil na década de 1990. O autor é um
crianças e suas infâncias são afetadas pelas importante sociólogo português que pesqui-
sociedades e culturas das quais são membros. sa as condições sociais de vida das crianças e
dos mundos sociais em que habitam. Sua obra
Para o autor, as culturas infantis são as é muito ampla e abriga estudos demográficos,
produzidas pelas crianças, nos seus fazeres da análise documental e trabalhos de orientação
vida cotidiana, sozinhas ou em interlocução etnográfica. Essa experiência de larga abran-

Brincar é para todos 79


A CULTURA, A BRINCADEIRA E AS CULTURAS INFANTIS

gência nos brindou com conceitos importan-


tes para refletir sobre a infância como estru-
tura e a agência das crianças, em especial na
elaboração de suas culturas infantis.
Em um artigo de 1997, Sarmento e Pin-
to apontam que as crianças são capazes de
realizar interações e de dar sentido às suas
ações, como todos os seres humanos, em suas
diversidades. Além disso, são portadoras de
novidade, pois pertencem “à geração que dá
continuidade e faz renascer o mundo”.
Sarmento aponta a dificuldade que os
adultos, mesmo os cientistas sociais, têm para
escutar as vozes individuais e coletivas das
crianças e, também, a complexidade de com-
preender a epistemologia dessas culturas in-
fantis. Sarmento e Pinto, assim, perguntam:
Seriam as culturas infantis específicas das
crianças? Estão elas vinculadas aos mundos
adultos? Há uma cultura universal presente
na vida de todas as crianças ou as culturas
infantis são locais, contextualizadas? Após
levantarem questionamentos tão pertinen-
tes, os autores assumem um posicionamento:
“As culturas infantis não nascem no universo
simbólico exclusivo da infância, esse univer-
so não é fechado – pelo contrário, é, mais do
que qualquer outro, extremamente permeá-
vel” – nem lhes é alheia a reflexividade social
global. Sustentam também que, assim, como
outras, as culturas infantis também refletem
comportamentos da sociedade global em que
estão inseridas. Nesse mesmo texto, Sarmen-
to defende que é preciso escutar as crianças
para compreender os modos próprios que as
crianças têm de viver a infância, isto é, a sua
diferença em relação a alteridade dos adultos.
Posteriormente vai enfatizar a ideia de que:
“Ouvir a voz das crianças: esta expressão con-
densa todo um programa, simultaneamente
teórico, epistemológico e político”.
Em 2004, o texto As Culturas da Infância
nas Encruzilhadas da Segunda Modernidade
publica aspectos que se tornaram fundamen-
tais para a compreensão do tema das culturas
infantis na obra de Sarmento. A discussão se
inicia com as seguintes indagações: qualquer
tipo de significação atribuída por um ou mais
sujeitos é uma produção cultural ou produ-
ções culturais seriam apenas aquelas que “se
estruturam e consolidam em sistemas simbóli-

80 Fundação Volkswagen
cos relativamente padronizados, ainda que di-
nâmicos e heterogêneos, isto é, em culturas?”.
Seriam as culturas infantis
O autor aceita a ideia de cultura como sis-
temas simbólicos em elaboração e apresenta
específicas das crianças?
alguns possíveis eixos estruturadores das
culturas da infância: a interatividade entre as
Estão elas vinculadas aos
crianças e das crianças com os adultos permite
apropriar, reinventar, e reproduzir o mundo
mundos adultos? Há uma
que as rodeia e assim as culturas de infância
permanecem na história humana; a ludicidade
cultura universal presente
como modo de ser infantil que recria constan-
temente o mundo; a fantasia do real como a pos-
na vida de todas as crianças
sibilidade de as crianças entrarem e saírem, de
forma contínua, do universo da fantasia/reali-
ou as culturas infantis são
dade; e a reiteração, o desejo/necessidade de re-
alizar atividades de maneira repetida enrique-
locais, contextualizadas?
ce a vida das crianças e mantém a permanência
da infância na sociedade. Esses textos foram os
inspiradores de grande parte das investiga-
ções sobre a infância realizadas no Brasil. conteúdos preexistentes e apropriação ati-
va, produção de novas situações, modos de
Gilles Brougère comunicação verbal ou não verbal, partilha,
Desde que os primeiros estudos do filósofo ludicidade, regra, ritmo, materialidades e
francês Brougère foram publicados no Bra- substâncias imateriais.
sil, na década de 1990, chamou a atenção o fato Durante muito tempo, o pesquisador
de o autor reconhecer a importância cultural centrou suas investigações na brincadeira
do brinquedo e as relações dos brinquedos e infantil, realizando estudos históricos sobre
das brincadeiras com a socialização das crian- a brincadeira e sobre os artefatos culturais
ças. Em seu livro Brinquedo e Cultura, de 1997, denominados brinquedos. Contudo, cada
ele comenta sobre a impregnação cultural das vez seus estudos apresentam maior comple-
crianças dizendo: “Toda a socialização pres- xidade e, no livro Brinquedos e Companhia,
supõe apropriação da cultura, de uma cul- de 2003, discute a relação da cultura lúdica
tura compartilhada por toda a sociedade ou e a cultura infantil. Brougère aponta que,
parte dela”. As crianças se apropriam daquilo apesar dos produtos disponibilizados para
que está em jogo em uma brincadeira, e, nes- as crianças pela sociedade adulta, a cultura
sa atividade, elas manipulam, transformam lúdica é provocada, também, pela produção
e também negam os sentidos definidos pelos de significados revelados pelas crianças em
objetos e pelos discursos. “Trata-se de um pro- suas interações com a brincadeira.
cesso dinâmico de inserção cultural sendo, ao
mesmo tempo, imersão em conteúdos pree- [...] o interessante é justamente poder levar
xistentes e apropriação ativa.” em consideração os dois aspectos num proces-
Brougère fala das brincadeiras como a so complexo de produção de significados pela
denominação genérica que os adultos confe- criança. É fato que a brincadeira é controlada
rem às “múltiplas interações” das crianças. O pelos adultos por várias vias, mas há na inte-
autor inicialmente não tematiza as culturas ração lúdica, quer ela seja solitária ou coleti-
infantis, mas é interessante como seu uni- va, alguma coisa de irredutível às imposições
verso vocabular para analisar as brincadei- e suportes iniciais, que é uma reformulação
ras está pleno de referências aos elementos pela interpretação que a criança faz deles,
usados para descrever o conceito de cultu- uma abertura para a produção de significados
ra: comportamento não inato, constituído inassimiláveis nas condições de saída.
na relação entre os individuos, imersão em

Caderno Brincar 81
A CULTURA, A BRINCADEIRA E AS CULTURAS INFANTIS

As crianças aparecem como nah Arendt afirma que o nascimento é sempre


a possibilidade de renovação do mundo, ela evi-

participantes ativos da cultura, dencia que a presença de um recém-nascido


abre a possibilidade não apenas de uma vida

em todos os espaços sociais, nova mas também a de recriar o mundo.


Como afirmam os autores analisados,

engajadas para apreender não há uma cultura infantil com autonomia


frente às adultas: familiares, escolares, mi-

o mundo e ressignificá-lo, diáticas, religiosas. No mundo contemporâ-


neo, as culturas preservam-se, misturam-se e

introduzindo nele suas marcas. transformam-se. As culturas infantis também


seguem esse movimento de todas as outras e,
provavelmente, enquanto existirem crianças,
culturas serão transmitidas, afirmadas e trans-
formadas. Elas estariam vinculadas apenas
às culturas lúdicas, às brincadeiras, às intera-
Em 2012, no livro Aprender pela Vida Coti- ções entre os pares nos espaços do jogo? Não,
diana, organizado pelo autor e por Anne-Li- as culturas infantis não dependem apenas do
se Ulmann, a reflexão sobre a cultura infantil brincar, mas esse tem sido o espaço priorizado
amplia a sua dimensão, pois são discutidos os pelos investigadores para realizar suas pesqui-
diferentes âmbitos da vida – escola, recreio, sas. Contudo, se as crianças fossem observadas
família, mídia –, e o brinquedo e o jogo, ape- em outros contextos cotidianos, também seria
sar de presentes, não são a referência central possível ver sua ação transformadora da cultu-
para pensar na apropriação ativa da cultura ra em vários campos da vida.
pela criança. Em segundo lugar, porque no As culturas infantis são transmitidas e ree-
livro a cultura é concebida, principalmente, laboradas geracionalmente, isto é, elas perma-
tendo como referência as práticas locais, os necem na história, contaminam-se por meio do
saberes cotidianos, os saberes incorporados, contato com os diversos grupos sociais, étnicos,
ou, ainda, uma etnografia do minúsculo. As religiosos, de gênero etc. e são recriadas pelas
crianças aparecem como participantes ati- gerações mais novas. Elas estão relacionadas
vos da cultura, em todos os espaços sociais, aos contextos das crianças e têm como base
engajadas para apreender o mundo e ressig- elementos materiais presentes em suas vidas,
nificá-lo, introduzindo nele suas marcas. como os objetos da casa, brinquedos, livros, ma-
teriais, ferramentas e tecnologias que mediam
O protagonismo das crianças suas relações com o mundo, assim como os ele-
Os três autores analisados concordam que as mentos simbólicos que proveem das comuni-
crianças pequenas são atores sociais, que pos- dades, das famílias, da cultura de brincadeiras,
suem protagonismo e agência. Isso significa da mídia e da escola. As culturas infantis emer-
que são capazes de interagir com as pessoas e os gem, prioritariamente, no convívio dos peque-
mundos sociais que as rodeiam e assim estabe- nos em grupos de crianças, sejam de irmãos,
lecem interações e formulam modos de viver. amigos do bairro ou colegas de escola, com os
Essa capacidade de agir, participar ativamen- quais realizam atividades em comum. Nesses
te, falar, criar, significar e aprender é uma res- encontros, repetem suas brincadeiras, repeti-
posta das crianças aos contextos em que vivem. ções que sempre se diferenciam, pois os con-
Apesar de os três autores não terem mencio- textos transformam-se, e, assim, reiteram suas
nado os bebês em suas obras, em nossas inves- conquistas. As criações são permeadas por um
tigações temos encontrado situações em que modo imaginário de agir no mundo: as crianças
estes também têm essas capacidades. O ato de transitam, individualmente e em grupo, entre a
responder deixa marcas, transforma, cria no- fantasia e a realidade, pois possuem uma moda-
vos modos geracionais de ser e estar no mun- lidade lúdica, vinculada ao jogo, à brincadeira,
do, isto é, cria cultura(s). Quando a filósofa Han- à curiosidade, à alegria e à fantasia.

82 Fundação Volkswagen
A brincadeira potencializa a do. Na brincadeira as crianças são coautoras
cultura infantil de suas aprendizagens.
Antes de brincar com objetos, o bebê brinca Na década de 1940, o sociólogo Flores-
consigo mesmo, com a mãe, o pai e com as ou- tan Fernandes já afirmava que os folguedos,
tras pessoas com as quais convive. Suas pri- transmitidos de geração a geração, promo-
meiras experiências são lúdicas pois realiza viam a iniciação das crianças no meio social,
explorações e experimentações plurisenso- integrando ambos os sexos, exercitando a
riais e motoras que nos mostram uma das livre escolha, e que a brincadeira coletiva
mais importantes características do brincar propiciava às primeiras amizades, introdu-
e das brincadeiras: o divertimento, a alegria, zindo a noção de posição social, afetando a
a liberdade do corpo em movimento. A brin- personalidade e o caráter das crianças. O
cadeira é a experiência inicial das crianças autor descobriu que nos agrupamentos, por
em sua interação com os outros e com o mun- meio de sua própria cultura, as crianças iam
do. É brincando que ela aprende a estabele- aprendendo a reduzir conflitos, criar solida-
cer relações, a expressar-se, a observar e re- riedades, cooperação e disciplina, exercendo
criar linguagens. a tolerância dos maiores com os menores,
Brincar, jogar e criar são ações conec- com as diferenças sociais, étnicas e de gêne-
tadas na pequena infância. A brincadeira é ro, experimentando elementos culturais que
uma experiência criativa que exige espaço e correspondem aos usos e costumes dos adul-
tempo, pois o modo como brinca e com quem tos, contribuindo para preservar e atualizar
ela brinca constitui sua forma de viver, de modos de sentir, pensar e agir do patrimônio
pensar, de relacionar-se. Na brincadeira, ela cultural. Para Fernandes, é uma verdadeira
aprende a compartilhar a vida com outras aprendizagem na qual o mestre da criança
crianças: rindo, gritando, chorando, fazendo são as próprias crianças.
barulho, dançando, modelando, falando, ra- A presença de uma cultura lúdica pree-
biscando, silenciando, manchando, cantan- xistente supõe a aprendizagem de repertó-

Caderno Brincar 83
A CULTURA, A BRINCADEIRA E AS CULTURAS INFANTIS

rios e vocabulários que aparecem em brin- novidade e a repetição. Da repetição nasce a


cadeiras e jogos coletivos. Se os jogos são transformação.
tradicionais ou recentes, não interfere, mas A brincadeira é a grande manifestação
é necessário saber que essa cultura lúdica é da infância, produzida por aqueles que dela
um conjunto vivo, que se diversifica e se re- participam. Brincando as crianças apren-
constitui continuamente. E ela vai sendo re- dem a constituir as culturas infantis. É no
composta em função dos hábitos lúdicos e da percurso que se inicia pelas primeiras brin-
singularidade de cada um dos participantes. cadeiras de bebê e segue pela observação de
As brincadeiras ensinadas pelas crianças outras crianças, pela participação em dife-
mais velhas, pelos jovens e adultos tornam- rentes brincadeiras e jogos, pela manipula-
-se o repertório inicial de um grupo de crian- ção de objetos e brinquedos, pela exploração
ças. Porém, o modo como elas reproduzem as de elementos da natureza e de produções
brincadeiras é sempre renovado. O brincar é culturais, que se constitui – entre o real e a
o modo de ser das crianças e as brincadeiras imaginação – a cultura lúdica das crianças.
seu modo de aprender a cultura lúdica. É no Se toda a cultura é processo vivo de rela-
brincar, e talvez apenas no brincar, que elas ções, interações e transformações, isso signi-
exploram seu poder criador-inventivo, pois fica que a experiência lúdica não é transferí-
exercitam a liberdade de repetir e reiniciar vel e não pode ser simplesmente adquirida,
movimentos no mundo. A cada novo arran- fornecida por meio de modelos prévios. Tem
jo, as crianças começam “mais uma vez”, re- que ser vivida, interpretada, co-constituída,
alizando aquilo que especifica a brincadei- por cada grupo de crianças, e por cada crian-
ra: o fazer sempre de novo entre a busca da ça, em um contexto cultural dado, pois suas

84 Fundação Volkswagen
tradições e sistemas de significações têm
que ser interpretados, ressignificados, rear-
A cada novo arranjo,
ranjados, recriados. Como vimos anterior-
mente, a cultura não é só o que as pessoas
as crianças começam “mais
pensam mas também o que fazem e suas re-
alizações são multiformes e polifônicas. Por
uma vez”, realizando aquilo
isso, é fundamental, no mundo contemporâ-
neo, promover contextos lúdicos para que
que especifica a brincadeira:
as culturas infantis possam se desenvolver.
Contextos que ofereçam e favoreçam opor-
o fazer sempre de novo entre
tunidades para cada criança e seu grupo de
pares explorarem diferentes materiais e
a busca da novidade
instrumentos por meio de suas brincadei-
ras, de espaços e tempos com a presença de
e a repetição. Da repetição
brinquedos, de objetos e materialidades que
possam ser transformados. Lugares para que
nasce a transformação.
as brincadeiras aconteçam, que as aventuras
se constituam.
As crianças ouvem música e cantam, pin-
tam, desenham, modelam, constroem objetos,
vocalizam poemas, parlendas e quadrinhas,
manuseiam livros e revistas, ouvem e con- a alteridade cultural dos mais fracos – ope-
tam histórias, dramatizam e encenam situa- rários, mulheres, crianças – somente exis-
ções ao brincar. Brincando com tintas, cores, te quando eles estão à distância dos mais
sons, palavras, pincéis, imagens, rolos, água, fortes escapando, assim, ao confronto e à
exploram não apenas o mundo material e dominação. Estar a sós ou entre pares pode
cultural à sua volta como também expressam ser fonte de autonomia (relativa) e de criati-
e compartilham sensações, sentimentos, fan- vidade cultural.
tasias, sonhos e ideias com seus amigos reais Em segundo lugar, considerar a afirma-
e imaginários. O brinquedo e a brincadeira tiva de Lévi-Strauss de que não se deve com-
como artefato e prática cultural precisam preender a cultura como “[...] um contínuo
de transmissão, feita pelas gerações mais ve- entre magia-religião-ciência, mas como sis-
lhas, sendo elas crianças maiores ou adultos, temas simultâneos e não sucessivos”. Quan-
mas somente transformam-se em culturas do as crianças, a sós ou em pequenos gru-
infantis ao serem realizadas e reinventadas pos, descobrem seus modos de organizar os
pelas crianças. As proibições das famílias, as saberes e os fazeres da vida, isto é, a expe-
interdições dos professores, os objetos e ma- riência, conferem e partilham significados,
teriais, os espaços na cidade, na escola, em imaginam e constroem mundos simbólicos,
casa afetam o modo como as crianças vivem elas estão elaborando narrativas. Esses en-
suas experiências lúdicas. Portanto, além de saios cotidianos, que fazem parte da experi-
oferta de recursos, torna-se muito importan- ência infantil contribuem na participação
te garantir o direito das crianças brincarem delas nas interações sociais. São as narrati-
livremente sem serem interrompidas ou sem- vas que as crianças aprendem a constitutir
pre conduzidas pelos adultos. com a brincadeira que fundam a capacidade
Para a manutenção e expansão das cul- de construção simbólica, técnica, da cultura
turas infantis é preciso, portanto, ter aten- e da ciência. A brincadeira experienciada
ção a dois aspectos. O primeiro é dar às na infância acompanha devires dos seres
crianças – sozinhas ou com seus pares –, o humanos ao longo da sua vida transforman-
tempo e o espaço necessários para que elas do-se naquilo que denominamos a invenção
possam criar suas produções culturais. Se- lúdica da vida, fonte de energia, alegria, mo-
gundo Cuche, a possibilidade de constituir vimento, pensamento.

Caderno Brincar 85
A CULTURA, A BRINCADEIRA E AS CULTURAS INFANTIS

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Caderno Brincar 87
Formação
do brincante
para uma
pedagogia lúdica
Entre as ações capazes de potencializar o brincar infantil
está a necessidade de ressignificar o papel do adulto
brincante e defensor do direito da Brincar
Caderno criança à brincadeira.
Por isso, vale discutir como o educador se coloca em relação
às brincadeiras nas creches e pré-escolas.

MÔNICA APPEZZATO MEIRE


PINAZZA FESTA
é professora associada e corresponsável é pedagoga formada pela PUC/
pela coordenação do Grupo de Pesquisa SP, com mestrado em Educação
Contextos Integrados de Educação e doutoranda em Educação pela
Infantil da Faculdade de Educação Universidade de São Paulo. É
da Universidade de São Paulo (USP). pesquisadora do grupo Contextos
Pesquisadora em missões de trabalho Integrados de Educação Infantil
no Programa de Cooperação (USP) desde 2004. Atua há 32 anos
Internacional Capes/Grices na Educação Infantil e atualmente
(2005-2008) e coordenadora coordena os processos de
representante do Brasil junto à formação de professores do
European Early Childhood Education grupo de Contextos Integrados e
Research Association (EECERA). assessora redes públicas.

Caderno Brincar 89
FORMAÇÃO DO BRINCANTE PARA UMA PEDAGOGIA LÚDICA

O mundo da produção e do capital em que vive-


mos atribui valores distintos ao trabalho inte-
lectual e à brincadeira, com tendência a desva-
lorizá-la. Além disso, o valor excessivo dado
à intelectualização, com a justificativa de pre-
paração para a vida futura, não reconhece na
ches, notamos que a presença da brincadeira
é constante desde os primeiros tempos de
vida, mas ela acontece dentro de um contex-
to mais amplo, ou seja, na cultura da qual a
criança faz parte. A publicação enfatiza que
a brincadeira é aprendida pela criança e inte-
brincadeira as possibilidades de experiências gra seu conjunto de experiências na cultura:
de aprendizagem essenciais à infância. “Brincar é repetir e recriar ações prazero-
Hoje se discute qual a idade certa para a sas, expressar situações imaginárias, criati-
alfabetização, quais os estímulos que os bebês vas, compartilhar brincadeiras com outras
devem ou não receber para se desenvolverem pessoas, expressar sua individualidade e sua
com maior rapidez ou de forma mais adequa- identidade, explorar a natureza, os objetos,
da, e que aprendizagens são necessárias para comunicar-se e participar da cultura lúdica
o sucesso na escolarização. Também é ques- para compreender seu universo. Ainda que
tionado o papel do educador de bebês e crian- o brincar possa ser considerado um ato ine-
ças pequenas. Por outro lado, a literatura e as rente à criança, exige um repertório, um co-
especificações legais indicam a brincadeira nhecimento que ela precisa aprender”.
como direito de todas as crianças, indistinta- Se o brincar da criança ocorre sistemati-
mente, ou seja, em nenhum ambiente educati- camente nas instituições educativas e, ainda,
vo, esse direito pode ser negado. A brincadei- se essa ação é afetada pelos contextos em que
ra é considerada também como promotora de acontece, o educador precisa refletir sobre os
aprendizagens e desenvolvimento. efeitos de suas ações, ponderando de que ma-
Em material produzido pelo Ministério neira elas afetam a brincadeira das crianças.
da Educação e Cultura do Brasil (MEC), de- Como indicam as pesquisadoras Kishimo-
nominado Brinquedos e Brincadeiras nas Cre- to e Pinazza, na teoria do educador alemão

90 Fundação Volkswagen
O exercício constante das instituições infantis,
que desenvolvem ações de rotina na direção do
domínio dos corpos e das mentes das crianças,
quer torná-las previsíveis e controláveis, numa
lógica de pensamento e de ação do adulto. Essa
lógica, ligada à produção e ao capital, considera o
que a criança alcançará no futuro.

Friedrich Froebel, o criador dos jardins da Na direção da valorização da brincadeira,


infância, o brincar ocupa um espaço impor- podemos citar Vygotsky, que, utilizando o ter-
tante no desenvolvimento infantil, sendo con- mo brinquedo como sinônimo da ação de brin-
siderado, por ele, como uma representação da car, enfatiza que a brincadeira “fornece ampla
disposição interna humana, uma atividade estrutura básica para mudanças das necessida-
pura, séria e de profunda significação. des e da consciência. A ação na esfera imagina-
Na relação da criança com o mundo, o tiva, numa situação imaginária, a criação das
ato de brincar está presente até mesmo em intenções voluntárias e a formação dos planos
momentos que o adulto não entende como da vida real e motivações volitivas”. A brinca-
brincadeira, ou que tenham sido “permitidos” deira encerra todas essas possibilidades. Para
por ele. Brincar pressupõe criar uma situa- o autor, a atividade do brincar é condutora e
ção imaginária, que não pode ser controlada determinante do desenvolvimento da criança.
pelo adulto nem totalmente garantida pelo A pesquisadora Patrícia Dias Prado apon-
mesmo. Depende do próprio sujeito, que ima- ta que brincar é parte integrante da relação
gina e cria, permitindo a ele transpor o real, da criança com o mundo, “compondo uma di-
criando possibilidades. A ação de brincar tem versidade de formas de brincar, de conhecer o
prioridade sobre o objeto, já que a brincadei- mundo e de ser conhecida por ele, evidencian-
ra é, em si, uma mutação de sentido, em que o do um espaço de construção de brincadeiras,
faz de conta predomina sobre o real. transgressões, linguagens e significados –
A potência do brincar na (re)criação de espaço de estabelecimento de múltiplas rela-
significados é sinalizada por Bruner. Segundo ções, de construção e emersão de elementos
o psicólogo norte-americano, pela brincadei- da cultura infantil, de expressões e manifes-
ra a criança tem possibilidade de explorar o tações culturais das próprias crianças”.
universo dos significados, manifestar-se pela Infelizmente, na maioria de nossas insti-
linguagem, construindo narrativas próprias. tuições de atendimento à infância, embora a

Caderno Brincar 91
FORMAÇÃO DO BRINCANTE PARA UMA PEDAGOGIA LÚDICA

criança encontre “brechas” para a brincadeira Pedagogia transmissiva e


acontecer, quase sempre o espaço e o tempo pedagogia-em-participação
para elas é muito restrito, além de definido A pesquisadora portuguesa Júlia Oliveira-
pelo adulto: “vamos brincar [...] agora acabou, -Formosinho diz que a pedagogia envolve as
hora de sentar [...] peguem os blocos de montar ações, as teorias e as crenças dos educado-
[...] a professora vai colocar massinha nas me- res, numa relação recíproca e em constante
sas e podem brincar até a hora do lanche” etc. transformação. Para a autora, há dois modos
A organização das unidades educacionais, essenciais de se fazer pedagogia: pela trans-
que inclui as normas para regular os tempos, missão e pela participação. O primeiro tem
espaços, movimentos e ações das crianças, como eixo o conteúdo que se quer que o sujei-
mostra-se sempre ligada a um jeito específi- to aprenda e o segundo encontra-se centrado
co e ao modo como a sociedade pensa a infân- nos sujeitos que coconstroem seus conheci-
cia. Talvez venha daí o exercício constante das mentos, participando do processo de apren-
instituições infantis, que desenvolvem ações dizagem. Pensar essas duas lógicas parece
de rotina na direção do domínio dos corpos esclarecer muitas das práticas correntes da
e das mentes das crianças, querendo torná- Educação Infantil hoje, inclusive aquelas re-
-las previsíveis e controláveis, numa lógica de lacionadas à brincadeira.
pensamento e de ação do adulto. Essa lógica, Na pedagogia transmissiva os objeti-
ligada à produção e ao capital, considera o que vos do processo educativo estão em esco-
a criança alcançará no futuro em termos de larizar, acelerar, compensar deficiências,
sucesso ou fracasso no mercado de trabalho, transmitindo para as novas gerações um
do qual um dia objetiva-se que ela faça parte. conjunto de conhecimentos mínimos. Já
Tal perspectiva termina por afastar a brinca- nas pedagogias participativas, os objetivos
deira das ações consideradas primordiais no relacionam-se com o envolvimento nas ex-
currículo desenvolvido nessas instituições. periências contínuas de aprendizagem, na

92 Fundação Volkswagen
construção de conhecimento pelo próprio em colaboração com seus pares e outros
indivíduo, considerando-o enquanto ser parceiros, e para que também criem culturas.
competente que participa do processo de Nessa direção, Oliveira-Formosinho aler-
aprendizagem com liberdade, agência, in- ta que, perante o quadro social que valoriza a
teligência e sensibilidade. pedagogia transmissiva, “as educadoras preci-
A mesma autora ressalta que na pedago- sam resistir, persistir, agir em favor de um cur-
gia-em-participação os tempos educativos rículo que integre o trabalho e o jogo, o brincar
integram cuidados e práticas pedagógicas, e o aprender e que deixe às crianças tempo
compreendendo as múltiplas experiências, a para o sonho, a imaginação e a transgressão...”.
cognição e a emoção, as linguagens plurais e Christine Pascal, diretora do Centro de
as diferentes culturas. Nessa forma de pensar Pesquisa para a Primeira Infância no Reino
a educação, consideram-se essenciais as expe- Unido, e Tony Bertram, editor do periódico
riências constituídas pelas crianças a partir European Early Childhood Education Rese-
de suas vivências sociais com seus pares e com arch Journal, dizem que o envolvimento da
os adultos. Ganham relevo as manifestações criança em atividades dos contextos educa-
infantis, suas representações e suas narrati- tivos pode ser considerado um indicador da
vas sobre as coisas do mundo. Nesse sentido, atividade mental infantil, gerador de estados
as brincadeiras são situações privilegiadas de de concentração, perseverança, motivação
aprendizagens significativas para as crianças. intrínseca, atenção e experiências intensas
Para Oliveira-Formosinho, a atual realida- de aprendizagens. Isso se refere também, e
de social, aliada ao desconhecimento da peda- de forma especial, às brincadeiras infantis.
gogia da infância, acaba por impor às crianças
um currículo baseado na ideia de acumulação
das aprendizagens, em que há sobreposição
de atividades sequenciadas e que suposta-
mente acelerem seu desenvolvimento e as
preparem para a continuidade dos estudos.
Nessa perspectiva, a pedagogia transmissiva
tem lugar privilegiado e a brincadeira assu- É fundamental compreender
me papel secundário e, por vezes, ela acaba
sendo vista como fator que impede ou adia e e assumir a urgência do
atrapalha o desenvolvimento infantil.
Nossa entrada em diferentes instituições brincar onde as crianças
que atendem a pequena infância, como pes-
quisadoras e/ou formadoras, nos aponta a sejam as protagonistas,
real necessidade de sempre buscar, com os
educadores, o estabelecimento de reflexões para que elas possam criar
sobre o real valor da brincadeira protagoni-
zada pela criança. Nota-se que muitas vezes variadas realidades, para que
a brincadeira aparece, na ação dos educado-
res, colocada a serviço de uma aprendiza- imaginem possibilidades de
gem futura, geralmente a alfabetização, ou é
criada de forma fictícia pelo adulto, servindo ação e aprendam no universo
para disfarçar uma atividade de ensino, com
objetivos instrucionais bem definidos. da cultura, em colaboração
É fundamental compreender e assumir,
em nossas instituições, a urgência do brincar com seus pares e outros
onde as crianças sejam as protagonistas, para
que elas possam criar variadas realidades, parceiros, e para que também
para que imaginem possibilidades de
ação e aprendam no universo da cultura, criem culturas.
Caderno Brincar 93
FORMAÇÃO DO BRINCANTE PARA UMA PEDAGOGIA LÚDICA

Na relação entre brincadeira e aprendi- A brincadeira revela toda a riqueza e


zagem há muitos equívocos de interpretação potência dos sujeitos brincantes, colocando
por parte dos educadores. Vários estudiosos a agência deles em primeiro lugar, dando
fazem questão de alertar que nem toda ativi- crédito às suas possibilidades educativas. A
dade infantil que aparente ter, para os adultos, ação de brincar deve ser protagonista nos
um caráter lúdico pode ser conceituada como contextos educativos da primeira infância,
brincadeira que promova aprendizagens sig- mas é fundamental ressaltar que esses con-
nificativas e que gere desenvolvimento. textos nada têm de “neutros”, e que a brin-
O filósofo francês Brougère afirma que a cadeira, considerada enquanto resultado
brincadeira tem características específicas de relações interindividuais e, portanto, de
e imprescindíveis, e que para uma ação in- cultura, pressupõe também aprendizagem
fantil ser considerada brincadeira é neces- social. Ela não ocorre num oásis, imune às
sário que ela comporte: 1) a livre escolha da realidades que as crianças e os adultos de
criança; 2) a decisão de entrar na brincadei- uma dada cultura encontram disponíveis.
ra e também de definir seus acontecimen- Nessa direção, a pesquisadora gaúcha
tos; 3) um sistema de sucessivas decisões Maria Carmen Silveira Barbosa ressalta que
expresso por um conjunto de regras que é “a prática social das brincadeiras exige o en-
partilhável ou partilhado com os outros; 4) contro das linguagens. São as culturas da in-
apresentar um comportamento não literal, fância sendo produzidas pelas crianças, em
dissociado de suas consequências normais; interação com os adultos, que delas partici-
5) ter a presença da situação imaginária; 6) pam e são ativadas pelos processos vitais de
contar com pouca possibilidade de controle interações e transformações linguageiras.
do exterior, sendo marcado pelo aberto e o Esse raciocínio reaparece nas palavras de Ri-
incerto; e 7) ser um processo significativo chter e Barbosa quando as autoras afirmam
de exploração e ação que prevaleça sobre os que “as crianças, em suas culturas infantis,
resultados esperados. recompõem a cultura material e simbólica
de uma sociedade. Elas fazem sua releitura
do mundo: leem o mundo adicionando no-
vos elementos geracionais, recriando-o e
reinventando-o. O espaço privilegiado para
a interpretação e produção da cultura infan-
til são as brincadeiras, que ocorrem no con-
vívio e nas interações entre pares, meninos
e meninas, de idade aproximada e na vivên-
Vários estudiosos fazem cia de situações – reais e imaginárias – que
proporcionam o encontro entre as culturas
questão de alertar que nem adultas – familiares, midiáticas, políticas,
étnicas, de gênero, de religião – e as novas
toda atividade infantil culturas infantis”.
Afirmando a importância das ações da
que aparente ter, para os instituição para criar contextos adequados
a fim de apoiar a brincadeira da criança, e
adultos, um caráter lúdico considerando os princípios da pedagogia-em-
-participação, podemos recordar que o filó-
pode ser conceituada como sofo norte-americano John Dewey, há muito
tempo, já anunciava que a liberdade de ação
brincadeira que promova das crianças não se opõe à intencionalidade e
ao estabelecimento de propósitos educativos,
aprendizagens significativas e que “a escola e os educadores devem saber
como extrair dos ambientes físicos e sociais
e que gere desenvolvimento. tudo que possa contribuir para fortalecer

94 Fundação Volkswagen
experiências valiosas” das crianças, cons- nificativos desse adulto/educador. Eles geram
truindo práticas que expressem sua clareza não só o reconhecimento e o respeito aos sabe-
de intenções e “que resultem em experiências res, desejos e necessidades das crianças mas
verdadeiramente educativas e duradouras, também novas e reflexivas práticas educati-
sem prejuízo à livre iniciativa e à criatividade vas, relacionadas à brincadeira de todas e de
da criança”, provendo um contexto que favo- cada uma das crianças atendidas.
reça a construção pela criança de seus sabe- Mas essa escuta eficiente, capaz de afetar
res, a sua criação e a investigação ativa. nossas ações concretas com as crianças e os
contextos educativos, não é tarefa de fácil re-
Desafios nas instituições alização. O professor catalão David Altamir,
infantis estudioso de Reggio Emilia, conceitua a escu-
ta como atividade ativa e receptiva do adul-
Desafio 1 to, que pressupõe uma mentalidade aberta e
Escutar os pequenos uma disponibilidade para interpretar as ati-
Mostra-se imensa e desafiadora a tarefa de, tudes e as mensagens lançadas pelo outro e
observando a brincadeira infantil e as ações ao mesmo tempo a capacidade de absorvê-las
cotidianas das crianças, reconhecer e seguir e legitimá-las. Para o autor, se considerarmos
os indícios de uma ação iniciada por estas, as crianças como pessoas capazes de criar e
promotora de significados sobre si mesmas e construir significados e, portanto, cultura, o
o mundo. É na disponibilidade e no esforço de desafio é compreender os processos sutis e
realizar essa escuta da criança, consideran- complexos que utilizam para isso.
do-a como atividade principal do educador, e Sabe-se que a formação inicial dos educa-
imprescindível para a ação profissional, que dores, que na maioria dos casos esteve, e ainda
podem surgir processos de intervenção sig- está, pautada numa lógica transmissiva, colo-

Caderno Brincar 95
FORMAÇÃO DO BRINCANTE PARA UMA PEDAGOGIA LÚDICA

ca o adulto e o ensino no centro do processo


educativo, em detrimento da criança e de suas
experiências. Isso resulta na desconsideração
da necessidade desse adulto compreender as
sutilezas da ação infantil e valorizá-las.
Somos seres mais de ação e fala do que
de observação e escuta. Parte daí o preceito
muito comum de ensinar às crianças “jogos e
brincadeiras” com objetivos específicos como
aprender a ler, melhorar a coordenação moto-
ra ou a memória, em detrimento de apoiar a
ação autoiniciada e conduzida por elas, crian-
do possibilidades variadas de amplificação
das aprendizagens em que são protagonistas.
A professora Tizuko Kishimoto ressal-
ta que o papel do educador passa também
por brincar com as crianças, observando-
-as, aprendendo suas brincadeiras, compre-
endendo seus modos e formas de brincar,
agindo com o fornecimento de suportes ma-
teriais ou de contextos relacionais, mas de
modo a não interferir em seu protagonismo,
compreendendo que é do criador “brincan-
te” o total controle da ação.
Tudo indica que a escuta, no sentido am-
pliado do termo, é o exercício reflexivo mais
desafiador para o educador, porém essa dis-
ponibilidade de olhar para a ação infantil en-
quanto complexa e repleta de significados, alia-
do a estudos nessa direção, pode torná-lo capaz

96 Fundação Volkswagen
de afetar os contextos nos quais atua, sendo tempo vividos são relacionais, isto é, a orga-
inclusive suscetível de provocar, nas crian- nização, a diversidade, a beleza e a riqueza
ças, outros motivos para conhecer, explorar, dos materiais e do tempo ganham significado
comunicar e agir num mundo de materiais, de através das interações que humanizam o es-
contextos concretos e de relações com outros paço de vida e aprendizagem”. A brincadeira
humanos e com a cultura, atuando de manei- não ocorre num vácuo temporal, material ou
ras diversas das até então vivenciadas por elas, de relações, e não há brincadeira “livre” nesse
construindo e ampliando seus conhecimentos, sentido, ela sempre está vinculada aos contex-
sobre si mesmas e sobre o mundo. tos onde tem lugar a experiência infantil.
No que se refere ao protagonismo da
Desafio 2 criança, Brougère afirma que a presença de
Reconhecer que o educador brinquedos no ambiente não é capaz de im-
afeta, de fato, a brincadeira por-se na brincadeira, sem que haja uma deci-
das crianças são primeira de quem brinca, de vir a intera-
O adulto/educador tem intervenção concre- gir com eles. A brincadeira, segundo o autor,
ta e efetiva na brincadeira da criança, mes- pode ainda acontecer mesmo sem qualquer
mo quando este não está fisicamente pre- tipo de apoio material.
sente, ou quando isso nem lhe é consciente. Apesar disso, Oliveira-Formosinho relem-
O espaço e os materiais disponibilizados ou bra que a escolha dos materiais oferecidos às
não para a criança brincar, a intervenção do crianças não pode nem deve ser aleatória, pois
adulto no momento da brincadeira ou ausên- embora este não seja o elemento central do
cia dela, o tempo destinado para a atividade, processo de simbolização, liga-se à capacida-
a “permissão” para a brincadeira acontecer, de imaginativa da criança à medida que pode
os papéis que “permite” que as crianças assu- enriquecer os contextos de sua emergência e
mam, o gerenciamento que faz das relações e continuidade, fomentando necessidades de
conflitos, entre outras ações, mesmo que não narração, interação, experimentação etc. A
intencionais, afetam diretamente a brinca- autora salienta a necessidade de refletir sobre
deira infantil. o entretecimento das linguagens do humano e
Júlia Oliveira-Formosinho afirma que de como elas se integram e potencializam, re-
na pedagogia-em-participação o “espaço e o forçando que “estamos diante de uma pedago-
gia da complexidade, não lhe podemos fugir
nem o queremos. Tomamos a decisão de des-
construir a pedagogia transmissiva baseada
num receituário uniforme pré-estabelecido”
e parece-nos que isso afeta diretamente a cria-
ção dos contextos educativos, as intervenções
que fazemos neles e os processos de mediação
que optamos implementar nas instituições
em que atuamos.
É evidente que a ação infantil, e em parti-
cular a brincadeira, na perspectiva da peda-
gogia-em-participação, não pode prescindir
de reflexões acerca da prática educativa, com
os educadores verificando se a brincadeira
protagonizada pela criança tem ou não lu-
gar e que importância assume nas institui-
ções, se o ambiente inter-relacional recebe
o devido interesse e mediação, se há ações
concretas na direção de criar ambientes
educativos que acolham, apoiem e desafiem
todas as crianças, independentemente de

Caderno Brincar 97
FORMAÇÃO DO BRINCANTE PARA UMA PEDAGOGIA LÚDICA

suas diferenças. Também implica considerar


se os educadores são realmente capazes de,
olhando o transcurso da ação infantil, mover
sua perspectiva de análise do universo das
certezas, baseado na pedagogia transmissi-
va, para o caminho da observação, da escuta,
da participação e da transformação, a fim de
criar, para as crianças, novas e enriquecedo-
ras possibilidades de ações e brincadeiras.

Desafio 3
Formar-se com o outro,
transformando a si mesmo
É imprescindível ressaltar que em nosso
país a formação inicial de professores para
a Educação Infantil ainda não se assenta nas
especificidades da etapa até 5 anos, e isso,
de muitas maneiras, desqualifica este edu-
cador a ver as crianças, a compreender suas
necessidades e interesses, a identificar cla-
ramente o papel do brincar para elas assim
como dificulta a compreensão da real im-
portância da mediação nessa ação infantil.
O processo de formação, entretanto, é com-
preendido como intransferível e ininter-
rupto, ou seja, não é atribuição exclusiva
dos cursos iniciais.
Segundo Altamir, o adulto/educador
deve abandonar, ou ao menos ressignificar
em larga medida, seu papel centralizador na
relação das crianças com o conhecimento, re-
conhecendo nessa tarefa a vulnerabilidade
de sua própria ação, junto com suas dúvidas,
erros e curiosidades. É papel dos educadores
realizar autênticos atos de conhecimento e
criação, colocando-se ao lado das crianças no
processo de conhecer, considerando-as tão
potentes quanto eles próprios, formando-se
com as crianças, com os demais adultos, e
com a cultura já constituída.
É necessário reconhecer a transitoriedade
dos saberes já construídos e principalmente a
precariedade das certezas, para assim buscar
constantemente formas de qualificar a ação
profissional, porém esse caminho não se mos-
tra fácil ou tranquilo.
Para o educador de infância, formar-se
como brincante e promotor do direito de
brincar das crianças é uma condição funda-
mental. Ele pode interpretar de modo dife-

98 Fundação Volkswagen
renciado suas vivências, tornando-se capaz
de transformá-las. Faz isso redimensionan-
É papel dos educadores
do os processos de aprendizagem ao consi-
derar o que desenvolve no local onde atua,
realizar autênticos atos
e também sobre as concepções que baseiam
suas práticas profissionais.
de conhecimento e criação,
Mas essa desejável transformação só se
torna possível quando há real intenção de
colocando-se ao lado das
aprender, quando há um movimento concreto
do aprendiz nessa direção, quando os indiví-
crianças no processo de
duos se colocam em interlocução com outros
parceiros e outros saberes que os capacitem a
conhecer, considerando-as
descentrar seus pontos de vista, questionan-
do suas verdades, suas certezas e suas práti-
tão potentes quanto eles
cas. Não existe mudança sem reflexão, como
também não existe transformação sem ação
próprios, formando-se com
voluntária, sem agência do sujeito.
Como bem aponta Oliveira-Formosinho,
as crianças, com os demais
nós nos formamos e transformamos em pro-
cessos reais de partilha. Se não há mudança
adultos, e com a cultura
no isolamento, também não há mudança
sem estranhamento. O que é cotidiano está
já constituída.
naturalizado aos nossos olhos e, o que nos é
natural, não requer alterações, tornando-se
quase uma verdade absoluta, inquestionável
de tão corriqueira. Precisamos olhar para os
nossos contextos educativos cotidianos com Em relação aos processos de transfor-
desconfiança, com olhar de pesquisadores de mação das práticas, embora seja importan-
nossas próprias práticas e das ações infantis, te o estudo das questões da educação sob a
buscando sempre formas cada vez mais ade- perspectiva da teoria, isso não é suficien-
quadas de fazer isso. te e não prepara necessariamente para a
Parece que hoje, infelizmente, a lógica ação. Faz-se necessário uma atuação escla-
transmissiva adquiriu esse status de natural recida e comprometida na educação, e essa
para a pedagogia, desde a pequena infância, sabedoria que remete à práxis só pode ser
e com ele trouxe a pouca valorização da brin- desenvolvida pela experiência. Vem daí a
cadeira infantil. Transformar essa realidade importância dos educadores participarem
é tarefa intransferível dos educadores. de processos formativos que os mobilizem,
Ora, se o mote “aprender a aprender” com base em suas aprendizagens experien-
serve para ilustrar o processo de conheci- ciais, criando oportunidade de reconstru-
mento almejado para as crianças, também ção e reinterpretação, particularmente nas
é válido para nós educadores. Temos que ações que afetam o brincar das crianças em
reaprender o que é ser professor da peque- ambientes coletivos.
na infância, construindo cada vez mais pro- Formar-se implica uma tarefa individu-
cedimentos, instrumentos e ações que nos al e também coletiva, num movimento que
levem a conhecer melhor as crianças e suas deve focalizar a práxis, compreendida pela
manifestações enquanto sujeitos produto- relação entre ações, valores e teorias, à luz de
res de cultura que são, e, nessa perspectiva, outros saberes. Para romper com a realidade
(re)criar formas de ação cada vez mais sig- da pedagogia transmissiva, que desvaloriza a
nificativas e valorosas para apoiar as crian- brincadeira infantil, trazendo para essa ação
ças nas relações que elas estabelecem com o infantil processos de intervenção pobres por
mundo e as descobertas que disso advém. parte dos educadores, é fundamental tecer

Caderno Brincar 99
FORMAÇÃO DO BRINCANTE PARA UMA PEDAGOGIA LÚDICA

O que é cotidiano está na de inacabamento e inconclusão, o que tor-


na imprescindível o exercício reflexivo com

naturalizado aos nossos vistas à transformação. Esse exercício refle-


xivo e efetivo de transformação dos educado-

olhos e não requer alterações, res pode ser capaz de criar melhores condi-
ções para que as crianças ajam no e sobre o

tornando-se quase uma mundo, em que a brincadeira revela-se como


situação, por excelência, promotora de múl-

verdade absoluta. Precisamos tiplas expressões da linguagem, tornando-


-as, cada vez mais, autoras em seus processos

olhar para os nossos contextos de conhecer e ressignificar as coisas.

educativos com desconfiança, Referências


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outro, Altamir acrescenta ainda que é direi- Maria Alice A. Sampaio Doria. São Paulo:
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al e profissional. Artmed editora, 2003.
Vale ressaltar que rever as concepções DEMARTINI, Zeila de Brito Fabri; PRA-
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é tarefa intransferível de cada educador, tal ra da Infância: Metodologias Pesquisa com
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100 Fundação Volkswagen


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Caderno Brincar 101


102 Fundação Volkswagen
Uma cidade
que respeita
as diferenças
Em Erechim, no Rio Grande do Sul, a inclusão escolar
é prioridade nas escolas públicas. Garantida a todos, a
educação de qualidade coloca em foco a construção da
cultura lúdica, que tem seus desafios e suas conquistas,
como relatam as educadoras da rede municipal.

MARIA SALETE DE
MOURA TORRES ERECHIM
é pedagoga com especialização em
Atendimento Educacional Especializado
e mestrado em Psicopedagogia. Atua
como professora de Educação Especial
da Secretaria Estadual do Rio Grande do PORTO
Sul, coordenadora da Educação Inclusiva ALEGRE
da Secretaria Municipal de Educação
de Erechim e professora da Faculdade POPULAÇÃO
Anglicana de Erechim. 102.906 habitantes (estimativa IBGE, 2016)
ÍNDICE DE DESENVOLVIMENTO
DANIELE VANESSA
HUMANO (IDH)
KLOSINSKI
0,776 (2010) (Fonte: Atlas Brasil 2013
é especialista em coordenação, orientação
Programa das Nações Unidas para o
e supervisão escolar e coordena
Desenvolvimento)
a Divisão de Educação Infantil da
Secretaria Municipal de Educação de REDE MUNICIPAL
Erechim. Formou-se em Pedagogia pela 15 escolas de Educação Infantil
Universidade Regional Integrada do Alto
ATENDIMENTO
Uruguai e das Missões (URI) e cursou
4.096 crianças
mestrado em Educação na Universidade
(2.128 em creche e 1.968 na pré-escola)
Federal da Fronteira Sul (UFFS).

Caderno Brincar 103


UMA CIDADE QUE RESPEITA AS DIFERENÇAS

A proposta de Educação Inclusiva escolar em


Erechim vem se efetivando no dia a dia. Os de-
safios são grandes, mas a cada ano o município
colhe os frutos de um trabalho sério e compro-
metido com o respeito às diferenças. A Educa-
ção Infantil constitui-se como uma etapa com
-se ainda maior, levando em consideração as
especificidades de cada faixa etária.
Na sociedade atual, o contexto educa-
cional sofre ainda influencia do processo
histórico-social de exclusão das pessoas com
deficiência. Na contemporaneidade podemos
características próprias: se subdivide em cre- conferir avanços como Braile, Libras, tecno-
che, até 3 anos e 11 meses, e pré-escola, de 4 a 5 logias, comunicação alternativa e aumenta-
anos e 11 meses. A expansão da oferta de aten- tiva... porém ainda constatamos preconceito
dimento na Educação Infantil caracterizou-se em vários ambientes, por exemplo: falta de
como uma das responsabilidades dos gestores acessibilidade nas ruas e nos prédios, pouca
municipais e sua principal preocupação, pois é oferta no mercado de trabalho, discriminação
necessário que esse atendimento aconteça em e barreiras atitudinais em algumas escolas.
espaços próprios para a infância. Aspectos legais e pesquisas acadêmicas
O aumento da oferta trouxe uma questão orientam a sociedade a escrever uma nova his-
importante: a de incluir todas as crianças tória educacional, sem o reflexo do contexto
no processo educacional, principalmente as preconceituoso e da cultura da discriminação,
que apresentavam alguma deficiência, acre- tendo como diretriz o respeito às diferenças na
ditando que todo sujeito aprende. A proposta proposta da Educação Inclusiva, norteada pe-
de Educação Inclusiva na Educação Infantil los direitos humanos e equidade, direcionada
do município de Erechim respeita as indivi- para o direito a educação de todos.
dualidades dos sujeitos e o brincar como me- No município de Erechim, estado do Rio
diador nas aprendizagens das crianças. Grande do Sul, a Educação Inclusiva é reali-
Das 15 escolas que oferecem Educação In- dade. O trabalho pedagógico segue o princí-
fantil, sete dividem o local com instituições de pio Todos na Escola – Respeito às Diferenças,
Ensino Fundamental, na maioria em um úni- que objetiva incluir todos os estudantes no
co prédio, porém possuem espaços de aten- ensino regular/comum. Oferece a modalida-
dimento separados; as oito escolas restantes de da Educação Especial nos níveis da Educa-
funcionam em espaços exclusivos. Ao pensar- ção Infantil e Ensino Fundamental e na mo-
mos em propostas pedagógicas de trabalho dalidade da Educação de Jovens Adultos. A
nas instituições, torna-se necessário projetar partir de 2009, com o lançamento da Política
estruturas físicas de qualidade, que propor- Nacional de Educação Especial na perspecti-
cionem aprendizagem às crianças, espaços va da Educação Inclusiva e as legislações que
onde elas possam brincar. Como afirmam os normatizaram o documento, a mantenedora
estudos de Dourado, Oliveira e Santos em A (secretaria municipal de Educação) iniciou o
Qualidade da Educação: Conceitos e Defini- trabalho para atender a clientela que estava
ções, a gestão escolar deve apresentar grande fora da escola regular/comum.
discernimento sobre a garantia de padrões As escolas de Educação Infantil não aten-
mínimos de qualidade, o que inclui a igualda- diam crianças com deficiência, então começou
de de condições para o acesso, permanência e a implantação das Salas de Recursos Multifun-
desempenho escolar. No caso de escola para cionais com o objetivo de oferecer atendimen-
crianças pequenas, essa preocupação torna- to educacional especializado (AEE) no contra-

104 Fundação Volkswagen


turno escolar. O trabalho de Educação Especial O AEE na Educação Infantil realiza um
foi iniciado em 2009, com três professores que trabalho constante de estimulação precoce,
faziam itinerância nas escolas, enquanto as envolvendo a linguagem, a criatividade, a
salas estavam sendo montadas e atendiam 11 imaginação, o desenvolvimento motor, as
alunos. Atualmente, sete professoras ainda percepções, enfim, tendo como objetivo o de-
trabalham no sistema de itinerância e atendem senvolvimento integral da criança. Esta esti-
37 crianças com deficiência (auditiva, física, mulação se dá basicamente por meio do brin-
síndrome de Down, paralisia cerebral e trans- car. Brincando e interagindo com a criança o
torno do espectro autista) incluídas no ensino professor tem condições de perceber as reais
regular na Educação Infantil. Todas as escolas necessidades de acordo com a fase em que
possuem salas de recursos multifuncionais e ela se encontra. Nosso papel é saber quando
professor com formação em AEE. Os professo- e como interferir. É preciso se envolver com
res trabalham em duas escolas dando suporte prazer na brincadeira e não utilizá-la para
pedagógico na sala de recursos multifuncio- desenvolver isso ou aquilo na criança, mas,
nais e apoio no trabalho de inclusão escolar. sim, como prática que é própria na infância,
Anualmente, a mantenedora lança edital e assim o aprendizado acontece.
de matrículas para as escolas públicas munici-
pais e nele há um item que prioriza a matrícu-
la do público-alvo da modalidade de Educação
Especial. A Secretaria Municipal de Educação
de Erechim adota como referência o conceito
de Educação Especial utilizado na Política Na-
cional de Educação Especial na perspectiva da
Educação Inclusiva em seu Projeto Político- A sociedade deve escrever
-Pedagógico (PPP) e este direciona o trabalho
pedagógico das escolas. Acreditamos que o uma nova história
aprimoramento da qualidade do ensino re-
gular e a adição de princípios educacionais educacional, sem o reflexo
válidos para todos os estudantes resultarão
naturalmente na inclusão escolar. do contexto preconceituoso e
Influência positiva para da cultura da discriminação,
todos os pequenos
A inclusão de crianças com deficiência na tendo como diretriz o
Educação Infantil tem consequências positi-
vas, elas não são discriminadas pelos seus pa- respeito às diferenças em
res e desde cedo são estimuladas e vão avan-
çando no processo de aprendizagem. Para a uma Educação Inclusiva
professora Julhane Maria Kalles, que atua
atualmente no AEE na EMEI Ruther A. Muh- norteada pelos direitos
len com crianças com deficiência e transtor-
no do espectro autista: humanos e pela equidade.
Caderno Brincar 105
UMA CIDADE QUE RESPEITA AS DIFERENÇAS

Trabalhar na inclusão escolar de crian- O brincar no AEE é fundamental, assim


ças com deficiência, transtornos globais como em qualquer fase da infância. É sempre
do desenvolvimento e altas habilidades/ adaptado de acordo com cada deficiência,
superdotação é acreditar que o ser huma- mas atende o principal objetivo: divertir-
no aprende, é garantir condições de acesso, -se. A partir deste, exploramos o universo
permanência e sucesso escolar. Para Maria da criança, trabalhando os aspectos sociais,
Teresa Mantoan, nem todas as diferenças motores, cognitivos, as atividades de vida
necessariamente inferiorizam as pessoas. diária, respeitando as habilidades de cada
Há diferenças e há igualdades — nem tudo uma e ampliando-as. Também é realizada a
deve ser igual, assim como nem tudo deve confecção e a adaptação de jogos e brincadei-
ser diferente. ras para serem utilizados na sala de aula do
O AEE objetiva complementar ou suple- ensino comum.
mentar a formação, disponibilizando ser­
viços, recursos de acessibilidade e estraté- Quando se fala em escola inclusiva, se
gias que facilitem a plena participação no fala naquela que valoriza a multiplicidade do
processo de ensino-aprendizagem. Todas as ser humano e fortalece a aceitação das dife-
escolas públicas municipais ofertam o aten- renças individuais. É dentro dela que apren-
dimento e as professoras que nele atuam demos a conviver, contribuir e construir
participam de reuniões de estudo, promovi- juntos um mundo de oportunidades reais —
das pela mantenedora, para socializarem ex- não obrigatoriamente iguais — para todos. O
periências pedagógicas e leituras realizadas brincar é fundamental na infância de todas
mensalmente. Para a professora de AEE An- as crianças, para a professora de AEE Julha-
dréia Paula Ceron, que atua na EMEI Irmã ne Maria Kalles:
Consolata:
Acredito que para a criança com deficiên-
cia o brincar traz consigo a afirmação do eu
e o respeito pelo outro, melhorando as ques-
tões de socialização. Neste sentido, percebe-
-se que brincando socializam com o grupo e
conseguem se inserir nele. Isso eleva muito a
autoestima da criança e, por consequência,

As escolas com o AEE


melhora seu desempenho nas demais áreas.
Nessa perspectiva muitas vezes o professor do

criam possibilidades de
AEE decide pelo atendimento coletivo. Não
vejo outra forma senão o brincar como um fa-

quebra no paradigma do
zer pedagógico, levando em conta sua impor-
tância no desenvolvimento da criança.

preconceito e trabalham Planejar a inclusão e


eliminar barreiras
com a consciência de que as As escolas com o AEE criam possibilidades
de quebra no paradigma do preconceito e tra-
crianças com deficiência são balham com a consciência de que as crianças
com deficiência são responsabilidade de to-
responsabilidade de todos os dos os educadores e profissionais que atuam
na escola e o brincar é um dos facilitadores
que atuam na escola e o brincar no processo de inclusão escolar. O trabalho
pedagógico que objetiva a inclusão esco-
é um dos facilitadores no lar deve ser pensado e planejado por todos
os profissionais da escola e ainda ter como
processo de inclusão escolar. meta o desenvolvimento cognitivo de todos,

106 Fundação Volkswagen


respeitando os tempos, ritmos e estilos de integrando e proporcionando a participação
aprendizagem. Incluir não é somente ofere- de todos. Na escola inclusiva, por meio da in-
cer matrícula. Nessa perspectiva, para a pro- teração com o professor e os colegas, o aluno
fessora Andréia Paula Ceron: constrói o conhecimento de acordo com suas
potencialidades, expressando suas ideias li-
Criança que brinca é saudável, desen- vremente e participando de forma ativa das
volve-se de forma global. Através do brincar tarefas de ensino, se desenvolvendo como ci-
podemos criar e recriar hipóteses. Para as dadão, sendo respeitado nas suas diferenças.
crianças com deficiência, o brincar tem a Na Proposta de Educação Inclusiva do
mesma função social, cognitiva, emocional município também acontece a “bidocência”,
e motora que para qualquer outra criança. em que dois professores atuam nas turmas
Brincar é sonhar, amar, imaginar o lindo com crianças com limitações de autonomia
mundo da fantasia. Brincar é ser feliz, é ser na alimentação, locomoção e higiene. O tra-
criança, é aprender. balho objetiva lidar com toda a turma, res-
peitando as especificidades de quem tem de-
O AEE trabalha com adaptações de estra- ficiência. Periodicamente, os professores de
tégias, produção de jogos e adequação de ma- AEE orientam e acompanham as atividades
teriais e tem por intenção organizar e elabo- desses dois profissionais.
rar recursos pedagógicos que promovam a Incluir é diariamente buscar eliminar
acessibilidade e eliminar as barreiras que li- as barreiras atitudinais do preconceito e da
mitam a construção da aprendizagem plena, discriminação. Todos os anos, as professoras

Caderno Brincar 107


UMA CIDADE QUE RESPEITA AS DIFERENÇAS

que atuam no AEE desenvolvem projeto com turno manhã e outro do turno tarde) e pro-
os pais ou responsáveis pelos alunos que fre- fessor de apoio ao processo ensino-aprendi-
quentam o atendimento para esclarecer so- zagem (professor do quadro-geral indicado
bre a importância do brincar, da estimulação pela direção da escola em parceria com a
motora, cognitiva e sensorial. Nas atividades mantenedora). A equipe é a facilitadora do
do projeto, elas procuram mostrar que toda a processo de inclusão e sucesso escolar de to-
criança é igual, somente algumas possuem es- dos os estudantes ereúne-se periodicamente
pecificidades devido à deficiência, transtorno para planejar estratégias e possíveis encami-
do espectro autista (TEA), transtorno global nhamentos, orientando o processo de ensino-
de desenvolvimento (TGD) ou alta habilidade/ -aprendizagem. A cada semestre é realizado
superdotação. Trabalhar pedagogicamente um levantamento diagnóstico de todos os que
na perspectiva da Educação Inclusiva é pen- apresentam dificuldades na aprendizagem,
sar a criança como sujeito aprendente, respei- ele facilita o acompanhamento e mapeamento
tando suas limitações e potencialidades. dos desafios educacionais da escola.
Na proposta de Educação Inclusiva, a A mantenedora, em sua proposta de Edu-
equipe de apoio ao processo ensino-aprendi- cação Inclusiva, realiza reuniões de estudo,
zagem é constituída nas escolas de Educação informativas e de socialização de experiên-
Infantil por: diretor (gestor), coordenador cias com os professores de apoio ao processo
pedagógico, professor de AEE, professor elei- ensino-aprendizagem mensalmente. Eles são
to pelos seus pares representando-os (um do mediadores da inclusão na escola, pois tra-

108 Fundação Volkswagen


balham diretamente com os pais de crianças
com e sem deficiência, os escutam e quando
Na escola inclusiva, a por
necessário fazem os encaminhamentos, por
causa do trabalho intersetorial, para as secre-
meio da interação com o
tarias da Saúde e Ação Social/Cidadania.
professor e os colegas, o aluno
A vantagem de envolver os pais
O professor de apoio ao processo ensino-
constrói o conhecimento
-aprendizagem é responsável pela coordena-
ção da equipe juntamente com o diretor da es-
de acordo com suas
cola e pelo trabalho da relação família e escola.
Anualmente, ele elabora e desenvolve projeto
potencialidades, expressando
com os pais e/ou responsáveis de todos os alu-
nos, com o objetivo de enfatizar a importância
suas ideias livremente e
da participação deles no processo de aprendi-
zagem das crianças, e do esforço conjunto de
participando de forma ativa
família e escola para o sucesso escolar. Nesse
trabalho, cada professor leva em conta as ne-
das tarefas de ensino, se
cessidades da comunidade educativa. A pro-
fessora de apoio ao processo ensino-aprendi-
desenvolvendo como cidadão.
zagem Kely Daiane Machajewski e a equipe de
apoio da EMEI Lucas Vezzaro trabalham com
os pais de maneira alegre e lúdica:

No decorrer dos projetos, percebemos que


não só as crianças se divertiam e aprendiam
com as atividades mas também os adultos da escola. A cada encontro o número de par-
que acabam recordando a infância deles e aos ticipantes aumenta, um comenta com o outro
poucos “se permitindo brincar”. Muitos adul- quanto foi agradável o encontro na escola.
tos esquecem-se de brincar com seus filhos, Para o sucesso da inclusão escolar, precisa-
em função da correria diária e dos inúmeros mos oferecer aos pais momentos de sociali-
compromissos que assumem. Oportunizar es- zação de dúvidas, inquietudes, angústias e
tes momentos também é lembrá-los da necessi- alegrias. Assim a professora Kely destaca:
dade do brincar; que é saudável para todos. O
projeto foi construído com base nas atividades Muitos foram os motivos que nos levaram
que desenvolvemos com as crianças em sala a pensar em atividades que adultos e crianças
de aula e os pais, ao verem as crianças parti- pudessem participar juntos. Dentre eles desta-
cipando com alegria e entusiasmo de tudo o camos: a alegria das crianças ao verem seus
que foi proposto, têm mais segurança em re- familiares brincando com elas; a Educação In-
lação ao trabalho dos professores. As crianças fantil como lugar de acolher a todos; a seguran-
“sabiam brincar”, cantar, dramatizar, enfim, ça que as crianças mostram quando seus fami-
demonstravam que para elas aquilo era nor- liares as acompanham na escola. Elas passam
mal. Nosso trabalho foi reconhecido ainda muito tempo longe deles e por isso precisamos
mais. Recebemos elogios das famílias e neste oportunizar momentos afetivos e divertidos
ano (2016) iniciamos o projeto em junho, mas para todos. Ao brincar, as crianças internali-
em maio já estávamos sendo “cobradas” por zam conceitos, compreendem os diversos pa-
algumas famílias, pois queriam participar do péis sociais, entendem o funcionamento das
projeto que foi desenvolvido no ano anterior. regras, buscam estratégias para resolver suas
dificuldades momentâneas, exploram os am-
O projeto com os pais compromete-os com bientes, socializam suas experiências de vida
a aprendizagem dos filhos e com o trabalho e, aos poucos, constroem aprendizagens.

Caderno Brincar 109


UMA CIDADE QUE RESPEITA AS DIFERENÇAS

Trabalhar na perspectiva tes papéis, brincadeiras de rua, ou até mesmo


brincadeiras utilizando-se de “brinquedos”.

da inclusão implica romper No entanto, ainda prevalece em muitos lugares


brinquedos vistos como adornos, usos divulga-

barreiras humanas e dos pelas imagens das antigas instituições filan-


trópicas e religiosas, aparecendo em cima de ar-

arquitetônicas, criar novos mários, distante das crianças, como menciona


a pesquisadora Tizuko Morchida Kishimoto

conceitos, dar novos sentidos em Jogos Infantis. Por meio da brincadeira, a


criança aprende, compreende-se e compreen-

à convivência com o diferente. de o mundo que a cerca, posiciona-se diante


dos desafios e proposições, constrói estratégias

Trabalhar em conjunto com e resolve problemas, é sua forma de ser e estar


na sociedade. A escola que atende crianças em

os pais de crianças com e idade de Educação Infantil deve respeitar a


criança e seus conhecimentos, as suas experi-

sem deficiência é respeitar ências vividas, seu modo de viver e imaginar,


de fantasiar e conhecer. O professor em sua

as diferenças, ressignificar amplitude deve considerar esses aspectos no


momento de planejar suas ações, com vistas a

o olhar da escola, pensando envolver a criança nesse processo educativo,


considerando suas habilidades e limitações e

na transformação do proporcionando processos de significação.


O depoimento da coordenadora pedagó-

contexto escolar segundo gica Franciane Carla Marchetto da EMEID


João Aloísio Hoffmann expressa a impor-

as necessidades delas. tância do brincar nessa etapa, trazendo os


elementos presentes na proposta de trabalho
desenvolvida pelas instituições do municí-
pio de Erechim:

As primeiras experiências são as que


marcam mais profundamente a pessoa,
e quando positivas, tendem a reforçar, ao
Trabalhar com os pais/responsáveis de longo da vida, as atitudes de autoconfian-
crianças com e sem deficiência é respeitar as ça, cooperação, solidariedade e responsa-
diferenças, ressignificar, transformar o olhar bilidade. A criança aprende brincando. As
da escola, pensando não somente na adapta- brincadeiras fazem parte do cotidiano dela e
ção do estudante, e sim na transformação do desempenham papel importante em seu de-
contexto escolar segundo as necessidades senvolvimento. A partir das experiências que
dos mesmos; é trabalhar na perspectiva da vivencia ela vai construindo e reconstruindo
inclusão, rompendo barreiras humanas e ar- saberes, expressando suas fantasias, medos e
quitetônicas, criando novos conceitos, dando desejos, sentimentos e conhecimentos.
novos sentidos ao conviver com o diferente.
Historicamente, o brincar constitui uma Os espaços organizados pelas escolas
prática cultural da criança. Nas diferentes so- compõem o pano de fundo de todo o traba-
ciedades, desde muito pequenas as crianças lho com crianças pequenas. Ambientes aco-
brincam, algo que é próprio da cultura infantil, lhedores e desafiadores apresentam para a
sejam elas brincadeiras tradicionais, envoltas criança inúmeras possibilidades, inserindo-
de uma determinada cultura, brincadeiras de -a num contexto de atuação e participação,
faz de conta, nas quais interpretam diferen- sentindo-se parte daquele local não apenas

110 Fundação Volkswagen


como mero frequentador mas como protago-
nista de seu próprio desenvolvimento. Toda
a brincadeira acontece em um espaço que se
transforma em lugar quando apresenta as-
pectos motivadores. Ao pensar na proposta
pedagógica que priorize a infância, o brincar
e a criança, modificou-se a disposição e orga-
nização das Escolas Municipais de Educação
Infantil (EMEIs), proporcionando espaços
alternativos, que antes eram considerados
sem utilidade. Como exemplo: os parques
infantis foram construídos com materiais
recicláveis, como pneus, tubos de concreto,
canos, entre outros.
Perceber que o desenvolvimento das
crianças é o foco do trabalho faz com que se
transforme uma sala administrativa em um
lugar para brincar. Foi o que aconteceu em
uma das unidades do Programa Proinfância.
As professoras gestoras da EMEI Dra. Vera
Beatriz Sass transformaram o ambiente em
uma sala de jogos, muitos deles construídos
por quem trabalha na instituição, baseados
na realidade das crianças e da escola.
Pensar na criança faz com que as propos-
tas de modificação, ampliação e disponibili-
dade de espaços para brincar se tornem fun-
damentais ao processo de desenvolvimento
da aprendizagem. A brincadeira é a cultura
da criança, desde que nasce ela vai se desco-
brindo e se percebendo no ambiente. Inicial-
mente, o corpo da criança é o seu brinquedo
mais curioso e descobrir a si mesmo é sua
tarefa principal. Por isso ela coloca a mão na
boca, se diverte com barulhos proporciona-
dos pela boca e faz o exercício de pegar seus
dedos dos pés, entre outros. O trabalho das
escolas de Educação Infantil inicia-se com os
bebês e o professor tem o papel de promover
as diferentes possibilidades de interações e
experiências. Esses estímulos promovem o
desenvolvimento motor, cognitivo, afetivo e
social dos pequenos e perpassam toda a Edu-
cação Infantil.
Todo objeto tem a possibilidade de inte-
gração na brincadeira da criança, sua imagi-
nação vai sempre além daquilo que está posto,
aos olhos dela tudo pode ser criado, recriado,
imaginado e fantasiado. Na escola se ampliam
as possibilidades de exploração, por meio da
socialização com as diferentes crianças, com

Caderno Brincar 111


UMA CIDADE QUE RESPEITA AS DIFERENÇAS

os adultos, a interação com diversos materiais Se for orientado pela Diretriz Curricular
e brinquedos, o enfrentamento de desafios Nacional para a Educação Infantil, o trabalho
que lhes são propostos, enfim este é o lugar pedagógico terá sempre como ponto de par-
onde tudo e todos se envolvem no processo de tida a brincadeira e levará em conta vivên-
construção de saberes e conhecimentos lúdi- cias, interações e experiências das crianças.
cos necessários à infância. No município de Erechim, a brincadeira é
tratada como assunto sério e é considerada o
Brincadeira levada a sério principal agente de aprendizagem, pois nela
O planejamento do professor é fundamental todos os sujeitos do processo são ativos e
nesse processo, visto que a Educação Infantil tornam-se brincantes, sejam eles crianças ou
apresenta especificidades que são característi- adultos. Nessa ótica, a coordenadora pedagó-
cas dessa faixa etária. O pesquisador Junquei- gica Franciane destaca a importância do pla-
ra Filho, em Linguagens Geradoras: Seleção e nejamento para pensar e elaborar propostas
Articulação de Conteúdos em Educação Infantil de trabalho na escola:
destaca que o professor não é tido como a úni-
ca fonte de seleção de conteúdos, nem o único É o planejamento que vai dar suporte e
sujeito a articular os conteúdos que compõem segurança ao professor em sala de aula e garan­
a proposta pedagógica. Ao organizar o espaço tir a continuidade do processo de aprendiza­­­­-
educativo, o profissional deve levar em consi- gem para as crianças. Ele é organizado pela
deração diversos aspectos, oferecer um am- equipe diretiva, mas principalmente pela coor-
biente acolhedor, bem como uma seleção das denadora pedagógica, que se reúne com as pro-
atividades que levem em conta a concepção do fessoras para juntas discutirem e prepararem as
professor e da criança envolvida. atividades a serem desenvolvidas.

Destacamos que as escolas que ofertam


Educação Infantil no município possuem um
planejamento integrado, organizado mensal
ou quinzenalmente. Os professores contam
com a orientação do coordenador pedagógi-
co, que acompanha e faz sugestões durante
No trabalho pedagógico diário, as discussões. O papel da coordenadora é
fundamental, pois além de orientar, ela deve
vivenciamos uma crise de cuidar para que não se perca o foco de traba-
lho da instituição, que sempre será a criança
paradigmas que gera medos, com e sem deficiência, transtorno global do
desenvolvimento e altas habilidades/super-
inseguranças, incertezas e dotação e, por consequência, o brincar.
A secretaria municipal de Educação de-
insatisfações. Mas acreditamos senvolve formações periódicas nas escolas,
que considera essenciais e têm como pro-
que este seja o momento de posta atender as necessidades específicas de
cada uma. Para isso também há o Grupo de
ousar e de buscar alternativas Estudos da Educação Infantil (GEEI), que se
reúne em encontros mensais, o Fórum Regio-
para realizar as mudanças nal de Educação Infantil e o Fórum Regional
de Educação Inclusiva, no qual pesquisa-
necessárias que resultem dores de todo o Brasil compartilham seus
conhecimentos. A coordenadora Franciane
em escolas verdadeiramente ressalta sobre os momentos de formação
continuada que ocorrem em paradas especí-
inclusivas. ficas durante o ano letivo:

112 Fundação Volkswagen


Enquanto professores, estamos em um pro- Nesse processo de inclusão escolar, o brin-
cesso contínuo e inacabado de aprendizagem; car é o principal instrumento utilizado pelos
é necessário o aprender e reaprender constan- educadores. Na perspectiva de que a criança
tes. Quem se envolve e busca uma formação gosta de brincar, a escola deve agir para me-
apresenta um trabalho diferenciado, uma vez diar a construção da cultura do brincar nas
que reavalia e reflete sobre suas práticas aper- comunidades educativas. No Atendimento
feiçoando algumas e dispensando outras. Educacional Especializado, as professoras
trabalham a estimulação precoce e as habi-
Para que isso ocorra, acredita-se que as es- lidades de cada criança, de maneira lúdica e
colas necessitam ter a sua frente uma equipe alegre. Todo agente desse processo educativo
de direção e coordenação pedagógica consis- é incluído por meio da interação com o outro,
tente, com sensibilidade para com a criança com os objetos e os espaços que se encontram
e seu desenvolvimento, além de toda organi- a sua disposição. As crianças trazem consigo
zação burocrática da instituição. Essa equipe vivências e saberes que constituem os códigos
deve ter capacidade de mobilizar o professor culturais que dominam e utilizam no contex-
para que tenha a sensibilidade e o conhecimen- to escolar. As brincadeiras são a alma do coti-
to necessário sobre a sua importância enquan- diano na Educação Infantil e são promotoras
to profissional que desenvolve o trabalho com do conhecimento produzido pelas crianças.
crianças pequenas, as quais se encontram em Um dos pilares da proposta de Educação
permanente desenvolvimento e reconheci- Inclusiva são os projetos desenvolvidos com
mento de si mesmas e do mundo que as cerca. as famílias, que ensinam e resgatam o brin-
Sobre esses aspectos, a diretora Aliana En- car respeitando as individualidades de cada
dler Bonavigo, da EMEI Dra.Vera Beatriz Sass, criança. Os muitos responsáveis pela Edu-
salienta a importância da gestão e como ela cação no município de Erechim acreditam
deve ocorrer na escola de Educação Infantil: que incluir é possível, portanto a Educação
Infantil atua na perspectiva de que a comu-
A gestão democrática prevê que todos os nidade educativa constrói a cultura lúdica e
setores e a comunidade possam participar ati- o respeito às diferenças.
vamente das questões envolvendo o cotidiano
escolar. Por isso, é fundamental que o gestor Referências
oportunize momentos de reflexão, reuniões BRASIL. Política Nacional de Educação Espe-
periódicas, atividades que possam sensibili- cial na Perspectiva da Educação Inclusiva.
zar os educadores sobre sua prática diária em Disponível em: www.mec.gov.br.
sala de aula. Consequentemente percebemos ERECHIM. Proposta Político-Pedagógica da
na prática as mudanças significativas, atra- Secretaria Municipal de Educação de Ere-
vés do comprometimento dos educadores com chim/RS. SMEd.
atividades lúdicas, criativas e diferenciadas, FORMOSINHO, Júlia; KISHIMOTO, Tizuko
destacando a afetividade, pois, sem a mesma, Morchida; PINAZZA Mônica Appezzato.
não podemos conceber a Educação Infantil. Pedagogias da Infância. Dialogando com o
Passado. Construindo o Futuro. Porto Ale-
Em Erechim, inclusão é conviver e inte- gre: Artmed, 2007.
ragir com o outro, sem separação, em regi- JUNQUEIRA FILHO, Gabriel de Andrade.
me escolar único que respeita o diferente. Linguagens Geradoras: Seleção e Articu-
No trabalho pedagógico diário, vivenciamos lação de Conteúdos em Educação Infantil.
uma crise de paradigmas que gera medos, in- Porto Alegre: Mediação, 2006.
seguranças, incertezas e insatisfações, Mas KISHIMOTO, Tizuko Morchida. Jogos Infan-
acreditamos que este seja o momento de ou- tis: o Jogo, a Criança e a Educação. Petrópo-
sar e de buscar alternativas na coletividade lis: Vozes, 1993.
da escola que nos direcionem para realizar MANTOAN, Maria Teresa. Inclusão Escolar:
as mudanças necessárias e transformá-las O Que É? Por Quê? Como Fazer? São Paulo:
em escolas verdadeiramente inclusivas. Editora Moderna, 2003.

Caderno Brincar 113


VERTIC AL COLORIDA NEGATIVA

o)
VERSÃO VERTICAL
o COLORIDA POSITIVA

Fundação Volkswagen
CONSELHO DE CURADORES
VERTICAL P&B

Cons. Presidente: Nilton de Almeida Junior


Cons. Vice-Presidente: Osmair Antônio Herreria Garcia
Conselheiro: André Senador
Conselheiro: Antônio Megale
Conselheiro: Rafael Vieira Teixeira
VERTICAL GR AYSCALE

Conselheiro: Antônio Roberto Cortes


CONSELHO FISCAL
Cons. Presidente: Luis Fabiano Alves Penteado
Conselheiro: Osmar Carfi
Conselheiro: Claudio Herbert Naumann
DIRETORIA EXECUTIVA
Diretora Superintendente e de Assuntos Jurídicos: Daniela de Avilez Demôro
Diretor de Investimentos: Luiz Paulo Brasizza
Diretora de Administração e Relações Institucionais: Keli Moreno Smaniotti Moretto
Diretora de Finanças: Melissa Artioli Peixoto

Associação Nova Escola


CONSELHO ADMINISTRATIVO
Conselheira: Camila Pereira
Conselheiro: Denis Mizne
Conselheiro: Florian Bartunek
Conselheiro: Paulo Lemann
DIRETORIA EXECUTIVA
Diretora Executiva: Flavia Goulart
DIRETORIA EDITORIAL
Diretor editorial e de produtos: Leandro Beguoci
Editores executivos: Alice Vasconcellos (design), Ana Ligia Scachetti (digital) e Rodrigo Ratier (impresso)
Editor: Gustavo Heidrich
Editora de Comunidades e Crescimento: Elaine Iorio
Editores-assistentes: Raissa Pascoal e Wellington Soares
Repórteres: Karina Padial, Laís Semis, Paula Peres e Pedro Annunciato
Estagiários: Larissa Darc, Lucas Magalhães Freire e Nairim Bernardo
Designer: Patrick Cassimiro
Webmaster: Felipe Costa
Gerente de operações: Kendra Gianoni
Gerente financeira e administrativa: Kátia Gimenes
Coordenadora administrativa: Valquíria Martins Morais
Analista de marketing e novos negócios: Paloma Mello

CADERNO BRINCAR
Coordenadora do Projeto: Juliana Matteucci
Consultoria editorial, coordenação e edição: Maggi Krause
Consultoria acadêmica e coordenação: Tizuko Morchida
Projeto gráfico e diagramação: Victor Malta
Ilustrações: Estúdio Rebimboca
Fotos: Agência Ophélia
Revisão: Sidney Cherchiaro
Web designer: Vilmar Oliveira
Programação: Guilherme Schmidt

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