A Psicologia Contra A Natureza
A Psicologia Contra A Natureza
A Psicologia Contra A Natureza
Niterói, 2013
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Edição de texto e revisão: Maria das Graças C. L. L. de Carvalho
Emendas: Armenio Zarro Jr. e omás Cavalcanti
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Supervisão grá ca: Káthia M. P. Macedo
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação - CIP
P974 A psicologia contra a natureza, re exões sobre os múltiplos da atualidade / Leonardo Pinto de
Almeida (organizador). – Niterói : Editora da UFF, 2012.
1,1Mb / ePUB : il. – (Biblioteca).
Inclui bibliogra a.
ISBN 978-85-228-0774-1
1. Psicologia e loso a. 2. Psicologia social – Filoso a. 3. Pensamento. I. Almeida, Leonardo Pinto de.
II. Título. III. Série.
CDD 150
Baudelaire e a modernidade
Introdução
A Paris moderna
Ética e estética: a felicidade no mal
Referências
Sobre os autores
Epígrafe
La vérité est de ce monde; elle y est produite grâce à de
multiples contraintes. Et elle y détient des e ets réglés
de pouvoir. Chaque société a son régime de vérité, sa
politique générale de la vérité.
Michel Foucault
A subjetividade naturalizada
São muitas as escolas que, ao longo da história da psicologia,
conceberam a subjetividade como uma instância naturalizada. Com efeito,
apesar das inúmeras críticas que esta concepção vem sofrendo ao longo dos
últimos anos, podemos a rmar que, mesmo nos dias atuais, ela ainda se
apresenta como dominante. Por uma subjetividade naturalizada,
entendemos certo modo de encarar o sujeito como se a ele correspondesse
uma determinada essência biológica ou psicológica tratando-se, portanto, de
um sujeito substancializado e constituído de antemão.
Aqui, a subjetividade é con gurada como uma realidade já dada, ora
portadora de uma interioridade, de uma estrutura, de uma mente ou de uma
consciência sobre as quais o saber psicológico se dirige. Este, por sua vez, é
encarregado de desvendar os processos psíquicos dos quais os sujeitos são –
de fato – detentores, visando à produção de conhecimento e à consequente
enunciação dos mecanismos, leis e pressupostos implicados em seu
funcionamento. Incluem-se aqui aqueles que creem na existência efetiva –
ainda que de maneira inextensa – de processos cognitivos, de mecanismos
conscientes ou inconscientes, de sentimentos, sensações, pensamentos etc.
Apesar das inúmeras diferenças entre estes autores, todos apresentam em
suas teorias uma racionalidade guiada pela busca de verdades
inquestionáveis sobre as subjetividades, o que implicaria na circunscrição de
modos padronizados de ser, pensar e experienciar.
Tomemos como exemplo a teoria de Wundt e seus estudos sobre a
experiência imediata. Segundo o autor, esta diz respeito ao aspecto subjetivo
das experiências, ou seja, às relações que o próprio sujeito possui com os
objetos experienciados. Em si, ela é considerada como complementar à
experiência mediata. Esta última remete aos objetos presentes na realidade
material analisados independentemente do sujeito que os experiencia.
Enquanto o conteúdo mediato aparece como objeto de estudo das ciências
da natureza, à psicologia caberia investigar os fenômenos presentes no
domínio da experiência imediata. Assim, não haveria uma distinção de
natureza entre o mundo externo e o mundo interior, mas apenas dois modos
diferentes de abordar o mesmo fenômeno. Neste sentido, a relação da
psicologia com as ciências da natureza é de complementaridade – e não de
oposição – na medida em que elas se preenchem por fornecer análises de
um mesmo dado, porém, de pontos de vista distintos (ARAÚJO, 2007).
De acordo com sua teoria, se a psicologia estuda os mesmos
fenômenos que as ciências naturais, seu método de investigação não pode se
distinguir do método delas. Por isto, Wundt lança mão do método
experimental para o estudo dos processos psíquicos, método este baseado
num rigoroso controle. Mediante tal estratégia, acreditava-se ser possível
descrever a estrutura e o funcionamento do sujeito de forma objetiva, de
modo que: 1) caberia ao observador a determinação de quando o processo é
induzido; 2) faz-se necessário o estado de atenção concentrada; 3) o
experimento tem de ser repetido por diversas vezes; 4) o controle
experimental deve ser baseado nas variações manipuladas dos estímulos. A
partir daí, a psicologia encontrava-se nas devidas condições de proceder a
uma série de análises da experiência subjetiva, com o intuito de enunciar os
dados elementares da consciência (SCHULTZ; SCHULTZ, 2001).
Quando dizemos que Wundt possuía uma concepção naturalizada
da subjetividade, é justamente por este afã de objetivizar o sujeito e,
também, pelo fato de ele considerar a consciência como uma organização
complexa composta por uma série de elementos, sejam eles sensações ou
sentimentos. Estes seriam agregados por um mecanismo de fusão que, a
partir da atividade volitiva, daria origem ao todo unitário da consciência
(ARAÚJO, 2007). Observa-se aqui, portanto, a consciência como um dado,
como um objeto a ser oferecido ao saber psicológico para que este
empreenda as análises necessárias para descobrir seus elementos básicos, tal
como ocorre no domínio da química.
Desta maneira, existia em sua teoria a pretensão de desvendar certa
estrutura elementar comum a todos os sujeitos, mesmo considerando que
estes podem se diferenciar em função dos processos volitivos próprios a
cada um. Aqui, a consciência e seus dados elementares apresentam-se como
objetivados, o que necessariamente fez com que seu sistema de pensamento
fosse confrontado com uma série de obstáculos de nível epistemológico. De
fato, não tardou para que o próprio Wundt percebesse as limitações de suas
tentativas de objetivar a subjetividade mediante o controle experimental.
Com efeito, mesmo em situações laboratoriais sucessivamente repetidas,
elementos iguais eram descritos de modos distintos pelo sujeito da
experiência. Ademais, sujeitos diferentes sempre relatavam de maneiras
igualmente diferentes os dados da experiência. Assim, surgiu, em sua teoria,
a necessidade de a subjetividade ser devidamente considerada, não podendo
mais ser eliminada mediante as sucessivas tentativas de objetivação. Foi
justamente por isto que ele se viu obrigado a criar outra modalidade de
psicologia – a psicologia dos povos – que seria complementar à psicologia
experimental, de modo a resgatar as variáveis subjetivas negadas por esta
última (GONÇALVEZ, 2009).
Os principais ecos da teoria de Wundt zeram-se sentir, de forma
ainda mais radical, no estruturalismo de Titchener. Este também pretendeu
estudar como se forma a nossa experiência mental. Para ele, a mente é uma
realidade distinta do mundo físico, sendo composta por características sui
generis: ela seria interna, subjetiva e inextensa, acessível apenas mediante a
observação introspectiva. O estudo da mente era também realizado pelo
método analítico, pois somente por meio da fragmentação nos seria
permitido veri car quais são os elementos que constituem um complexo e
de que forma eles se relacionam entre si. O procedimento analítico do
estruturalismo inspirava-se num modelo mecanicista do conhecimento
importado da física e da química que trata os objetos como máquinas cujas
partes se relacionam por associação (SCHULTZ; SCHULTZ, 2001).
Os processos de associação valorizados pelos estruturalistas diferem
do trabalho de fusão proposto por Wundt. Com efeito, ambos respondem à
questão de como os diversos elementos da consciência se agregam num todo
unitário. No entanto, o estruturalismo, ao destacar o mecanismo de
associação, considera o sujeito enquanto passivo na fundação dos complexos
psíquicos. Já Wundt, quando traz à tona o trabalho de fusão, se importa em
ressaltar a síntese criadora promovida pelo sujeito. Com ela, os complexos
psíquicos passam a apresentar determinadas características não
pertencentes a quaisquer dos elementos de base (ARAÚJO, 2007).
Desta maneira, percebemos que o estruturalismo – mesmo
considerando a mente como algo inextenso – ainda possui uma concepção
naturalizada da subjetividade. Isto se deve ao fato de Titchener encarar a
mente como algo interno, posto que somente acessível pelo método
introspectivo. De resto, o mesmo que foi ressaltado quanto à concepção de
subjetividade em Wundt, pode ser dito em respeito à visada estruturalista.
Com a ressalva de que esta última ainda é mais radical quanto à proposta de
objetivar o sujeito, justamente, por considerá-lo como passivo no trabalho
de organização dos complexos.
Com efeito, não tardou para que o estruturalismo viesse a sofrer
severas críticas, principalmente, pela psicologia da Gestalt, insatisfeita com a
orientação atomística da mente. Esta escola vai conceber a estrutura como
um dado imediatamente organizado, e não mais como um conjunto de
elementos dispersos que aprendemos gradualmente a associar. Enquanto no
estruturalismo os elementos são de nidos como alvo prévio à totalidade e
cuja existência é também independente dela, na psicologia da Gestalt não se
consideram os elementos mentais, pois o valor e a função das partes
dependem da totalidade. Justamente porque as características do todo
determinam as características das partes, não poderíamos jamais fragmentar
a Gestalt e descontextualizar suas partes. Assim, a análise titcheneriana do
psiquismo é, por esta escola, considerada como um procedimento
efetivamente condenável (GUILLAUME, 1966).
No entanto, apesar de empreender esta crítica à psicologia
estruturalista, a psicologia da Gestalt, a nosso ver, ainda se encontra
embasada dentro de uma concepção essencialista da subjetividade. Isto pode
ser depreendido a partir do valor por eles concedido à hipótese do
isomor smo psicofísico que, em última instância, preconiza uma estrutura
invariante aos fenômenos subjetivos. Ou seja, de acordo com o isomor smo
psicofísico, há uma espécie de identidade estrutural entre os fenômenos
siológicos e psicológicos (SCHULTZ; SCHULTZ, 2001), sendo o sistema
nervoso algo que se estrutura de maneira homogênea ao evento perceptivo.
Em se tratando, no modelo do isomor smo, de uma identidade estrutural
entre os domínios da experiência e o fenômeno psicológico, encontra-se
subentendido, na psicologia da Gestalt, uma visada essencialista da
subjetividade. Se, por um lado, eles não levam mais em consideração um
ponto de vista elementarista ou atomístico da mente, por outro, não
conseguem escapar a uma identidade estrutural comum a todas as
subjetividades. Nestes termos, encontra-se aqui, também, uma subjetividade
governada por uma invariante, detentora de uma estrutura padronizada e já
constituída, tal como observamos na teoria de Wundt e no estruturalismo de
Titchener.
A psicologia funcionalista também se construiu sobre uma
concepção naturalizada da subjetividade. O funcionalismo faz esforços para
pensar a realidade humana de nindo-a por sua natureza orgânica, razão
pela qual importará seus modelos da biologia e não mais da física e da
química. Para ele, um organismo é diferente de um mecanismo por possuir
propriedades que estão ausentes numa máquina, das quais se destaca a
capacidade de autorregulação, ou seja, a atividade do organismo de
modi car seu meio interno a m de compensar um desequilíbrio imposto
pelo ambiente. O ser vivo forma então um sistema capaz de manter uma
direção privilegiada fazendo frente às resistências impostas pelo meio
(CANGUILHEM, 1992).
Deste modo, o funcionalismo se contrapõe ao mecanicismo
proposto pela escola estruturalista na medida em que, aqui, o estudo da
mente e da consciência não se faz no sentido de decompô-las em seus
elementos básicos. Enfatizam-se, no funcionalismo, os processos e os efeitos
do trabalho da consciência, em vistas de realizar a nalidade de adaptação
do sujeito ao meio, proposta esta fortemente balizada por um cunho
darwinista. Com efeito, os modelos mecanicistas na psicologia vieram a
tratar o homem como uma máquina passiva cujo desempenho deve ser
otimizado. Já os modelos funcionalistas concebem o homem de um modo
mais ativo, por entenderem-no como um sistema que trabalha em prol da
sobrevivência.
Todavia, mesmo esta concepção mais ativa da subjetividade não está
isenta de críticas. Isto porque, ao estender o conceito de adaptação da
biologia para o campo social, o funcionalismo acaba propondo como
solução para todo problema humano uma transformação do indivíduo mais
do que uma alteração da própria estrutura social. Seguindo esta linha de
raciocínio, embora os funcionalistas concebam o homem de modo mais
dinâmico do que o faziam os mecanicistas, a atividade do homem é aqui
uma falsa atividade, pois serve, na verdade, à sua adequação às regras
sociais.
Assim, o conceito de adaptação subordina toda atividade humana a
um instrumento de ajustamento ao meio, transformando o homem em uma
simples ferramenta. Segundo Canguilhem (1973), não é mais o homem
quem julga o que é útil ou inútil, mas ele próprio torna-se uma ferramenta,
cujos comportamentos serão julgados como úteis ou inúteis pelo meio
social. Ainda de acordo com este autor, o psicólogo deve se perguntar sobre
as condições históricas a partir das quais seus serviços e técnicas se
tornaram aceitáveis. Ou seja, quando ele se apresenta como um especialista
capaz de avaliar os homens, estaria implícita uma convicção de
superioridade, como se ele fosse a boa consciência que dirige a ação
humana.
É, portanto, sobre este pano de fundo biologizante das teorias
funcionalistas que se desenvolve a concepção naturalizada da subjetividade
por eles proposta. Como ilustração, vejamos como James expõe as relações
entre os conceitos de hábito e de consciência. Para ele, o dinamismo próprio
às nalidades adaptativas conduziu à circunscrição do hábito como algo
que, de fato, diminui o cansaço do sujeito. Com efeito, o hábito tornaria os
movimentos mais simples e nos dispensaria de empregar uma parcela
considerável de atenção aos nossos atos e comportamentos. Em outros
termos, o autor expõe que se o organismo consegue relegar ao hábito uma
grande parte de suas atividades cotidianas, em contrapartida, conseguiria
reservar à consciência outras funções de igual ou maior importância. Neste
jogo, a consciência é concebida como um produto da evolução logenética
e, assim, se ela sobreviveu à seleção natural foi porque é dotada da utilidade
crucial de ajudar na promoção da adaptação do organismo ao meio. Desta
forma, a consciência é entendida como um órgão cuja nalidade é aumentar
nossas chances de sobrevivência, sendo ativada diante de situações de
impasse – que os hábitos não conseguem resolver – com o propósito de
selecionar a melhor possibilidade de ação para o sujeito (SCHULTZ;
SCHULTZ, 2001).
Portanto, é justamente por biologizar ao máximo o sujeito, chegando
ao ponto de considerar a consciência como um órgão, que a teoria de James
conduz a uma naturalização da subjetividade. Ademais, o destaque
concedido à nalidade adaptativa circunscreve uma subjetividade que
funciona conforme mecanismos, leis e pressupostos universalizantes. Trata-
se, em outros termos, da con guração de um modelo padronizado de agir e
de estar no mundo.
Claro está que esta concepção naturalizada da subjetividade
contrasta com aquela proposta pelo próprio James quando focaliza o caráter
uido do self. Aqui, podemos contemplar um esboço de uma concepção da
subjetividade como processo, tema da nossa próxima seção. Por agora, basta
adiantar que, quando James a rma que o self é caracterizado por uma
uidez, ele valoriza o aspecto processual e em constante mutação das
subjetividades. Ou seja, o self diria respeito apenas ao nome de uma posição,
sem limites preexistentes e que passa a ter uma existência e uma estrutura
somente quando vão se dando as suas relações e experiências com o meio
circundante (FERREIRA; GUTMAN, 2007).
Dando prosseguimento à análise dos autores que examinam a
subjetividade como uma instância naturalizada, passemos ao pensamento de
Piaget. Em sua teoria, é contemplado o mesmo princípio biologizante e
darwinista preconizado pela teoria de James. O suporte naturalizado da
subjetividade também aparece na medida em que, para Piaget, o sujeito
possui – de fato – determinadas estruturas cognitivas que devem ser
pensadas em sua função adaptativa. No entanto, ao contrário do
funcionalismo norte-americano, esta adaptação se realiza por meio de um
duplo movimento: a transformação dos esquemas a m de acomodarem os
novos dados provenientes do ambiente e a assimilação dos objetos à nossa
organização cognitiva prévia (COLL; MARTI, 2004).
Temos aí, portanto, não apenas a postulação da necessidade de o
sujeito transformar-se a m de se adequar a um objeto; vislumbra-se,
também, a possibilidade de uma alteração do objeto a m de se amoldar ao
sujeito. Assim, mediante este redimensionamento do conceito de adaptação,
o pensamento piagetiano pretende se desvencilhar de duas alternativas
limitadas que a tradição losó ca havia proposto a m de explicar o
conhecimento. De um lado, seria falsa a tese empirista de que a consciência
é uma tábula rasa porque supõe uma mente vazia, destituída de qualquer
ordem prévia. Por outro, o inatismo e o apriorismo falhariam, justamente,
por supor uma estrutura pré-formada, recusando qualquer papel importante
à experiência (PIAGET, 1970).
A concepção naturalizada da subjetividade proposta por Piaget
também é vislumbrada nas suas tentativas de fornecer uma gênese das
estruturas, tratando-as em termos de estágios universais do
desenvolvimento. Ou seja, tal como nos outros autores mencionados
anteriormente, existe, em sua teoria, a consideração de modelos
padronizados de ação e de pensamento para os sujeitos. Em linhas gerais, o
desenvolvimento cognitivo se inicia, de forma universal, no estágio
sensório-motor e termina com a aquisição das habilidades operacionais
formais que trazem consigo o raciocínio hipotético-dedutivo e o
pensamento proposicional e abstrato. Como etapas necessárias deste amplo
processo de desenvolvimento cognitivo, situam-se o período pré-
operacional e o operacional concreto caracterizado pelas ações descentradas
e reversíveis (COLL; MARTI, 2004). Com efeito, todos os sujeitos passariam
por tais etapas de desenvolvimento cognitivo com o propósito de chegar a
um mesmo m. Ademais, certa rigidez de Piaget em situar cada estágio do
desenvolvimento numa determinada faixa etária igualmente parece
conduzir à naturalização das subjetividades.
Em sua teoria, o motor do desenvolvimento é o processo de
equilibração: uma estrutura é, por ele, considerada em equilíbrio quando
consegue compensar as perturbações impostas pelo meio externo. Vemos aí
a clara a nidade entre a equilibração e a propriedade de autorregulação
característica dos seres vivos (FIGUEIREDO, 1991): o desenvolvimento se
processa rumo a níveis maiores de equilíbrio, em que o pensamento
consegue manter sua homeostase compensando os desequilíbrios impostos
pelo meio através de ações reversíveis. Neste contexto, a reversibilidade teria
dois sentidos: signi ca tanto a anulação de uma transformação pelo retorno
ao ponto de partida ou a compensação da transformação por meio de uma
outra que possa reparar os efeitos da primeira (FLAVELL, 1975).
Tal como foi destacado em referência ao pensamento de James, no
domínio próprio à psicanálise, uma concepção eminentemente naturalizada
da subjetividade se contrapõe a alguns elementos que conduzem a uma
visada processual da mesma. Nesta perspectiva, reconhece-se que a
principal contribuição de Freud (1995a) ao pensamento ocidental se deu a
partir de sua postulação do conceito de inconsciente. Com ele, ca
delimitada uma região no nosso aparelho psíquico na qual ocorrem
determinados processos dos quais não temos conhecimento. Circunscreve-
se, assim, a impossibilidade de se obter um conhecimento pleno sobre o
sujeito, por maiores que sejam os esforços terapêuticos de quem a ele se
dirige. Ou seja, o tratamento psicanalítico mais duradouro ou mesmo a
pretensão cienti cista mais abrangente estarão, desde o início, fadados ao
fracasso.
A concepção psicanalítica naturalizada da subjetividade encontra
seu espaço no pensamento freudiano quando o inconsciente é tratado de
forma substantivada, ainda que de maneira ideal. Teríamos aqui um sujeito,
de fato, dotado de desejos a serem realizados nos sonhos, chistes, atos falhos
e demais formações do inconsciente. Estes desejos, para serem satisfeitos,
travam uma luta incessante com as instâncias censoras que, por sua vez,
impõem ao material inconsciente certa dissimulação ou deformação para
que possam vir à tona de forma branda e aceitável.
Com efeito, toda esta teatralização do con ito psíquico conduz a um
ponto de vista substancializado da subjetividade, como se o sujeito fosse
portador de uma interioridade a ser revelada pelo procedimento analítico.
Ademais, ele também seria detentor de determinados processos conscientes
e inconscientes que se dinamizam nos incessantes con itos originados no
aparelho psíquico. Do mesmo modo, a postulação de um complexo de
Édipo universal (FREUD, 1995c) e de determinadas fases ou organizações
libidinais a serem necessariamente atravessadas pelo sujeito ao longo de sua
infância (FREUD, 1995b) também conduzem a uma con guração
naturalizada das subjetividades, padronizando-as em torno de tendências
comuns a todos.
Todavia, o desenvolvimento do pensamento freudiano trouxe
consigo algumas ferramentas que, se devidamente redimensionadas,
auxiliam tanto no propósito de desnaturalização da subjetividade quanto no
de concebê-la em nível processual. Nesta perspectiva, a partir da postulação
do conceito de Isso (FREUD, 1995d), o próprio conceito de inconsciente
passa a ser contemplado não mais de forma substantivada. Neste contexto, a
máxima “onde estava o isso, ali estará o eu” (FREUD, 1995e, p. 84) parece
remeter a um processo de subjetivação que se esboça a partir de algo da
ordem do indiferenciado – “isso” – e não mais dos con itos edipianos tidos
como universais. De acordo com esta visada, o sujeito não seria portador de
uma essência e, muito menos, constituído de antemão. Pelo contrário, ele
advém do puro caos pulsional e vai se organizando mediante sucessivos
processos de sínteses e ligações.3
Ainda no domínio da psicanálise, cabe destacar que, em seu retorno
à obra freudiana, Jacques Lacan buscou retirar a psicanálise de uma chave de
leitura naturalista. Aliando-se a referenciais classicamente refratários à
naturalização do sujeito, como a fenomenologia, o existencialismo e,
posteriormente, o estruturalismo (ZIZEK, 1999), Lacan ressaltou a
impossibilidade de tratar o sujeito no registro da pura objetividade. O
sujeito do inconsciente não seria uma realidade, passível de ser detectada
por uma observação qualquer. Por isso, não faria sentido tentar convencer
alguém, que fosse cético quanto à e cácia da psicanálise, de que o
inconsciente existe, pois não se pode fornecer deste uma prova
experimental. Quando o analista interpreta, a decifração do sentido só
produz efeitos de verdade no caso de o sujeito se dispor a ingressar no
dispositivo da transferência, assumindo que as falhas e as lacunas psíquicas
não ocorrem por acaso, que elas realizam um desejo, pelo qual o sujeito
aceitará responder. Ao defender que “o estatuto do inconsciente é ético, e
não ôntico” (LACAN, 1988, p. 37), Lacan situa a psicanálise, não como uma
disciplina preocupada com a comprovação do inconsciente como fenômeno
(ou seja, como algo pertencente ao registro ôntico), mas como uma ética em
que o sujeito se responsabiliza pelo desejo, por aquilo que ele queria mesmo
sem saber.
Assim como em determinadas passagens da obra freudiana,
podemos igualmente contemplar uma concepção eminentemente
desnaturalizada e processual da subjetividade na psicologia existencial-
humanista, na teoria de Vygotsky, na corrente contemporânea da psicologia
inspirada nos pensamentos de Foucault, Deleuze e Guattari e, ainda, na
corrente construtivista da psicologia social. Passemos, portanto, a uma
análise da concepção de subjetividade por eles valorizada.
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Considerações finais
O mal-estar na civilização não soluciona a questão colocada por
Arendt – “o que é a política?” –, tampouco resolve os preconceitos
tradicionais da política. Em última instância, nada resolve; conserva sempre
os paradoxos, mantendo o caráter inconcluso do laço social. Porém, ao se
negar a resolver os con itos, sustentando a ambivalência da política, seu
potencial de dupla face cria um dispositivo único na obra freudiana: a
suspensão destes preconceitos, neutralizando os seus efeitos. Tal suspensão
inviabiliza as certezas dos preconceitos, abrindo espaço para a suspeição,
dúvida e hesitação. Não é por acaso que O mal-estar na civilização evita
terminar, como nos trabalhos anteriores, com a certeza do progresso social,
a partir da subjugação de grupos sociais supostamente responsáveis pelo
mal-estar na cultura. Seu desfecho singular nos envia, antes, a uma dúvida
radical sobre o futuro, marcada pelo signo da espera – a espera de Eros.
Esta diferença, incluindo a própria possibilidade de espera das
últimas linhas, possui efeitos políticos atuais. Hoje, diante dos imperativos
de segurança no regime de urgência ao qual estamos submetidos
(AGAMBEN, 2002), propagando o medo do outro e a inevitabilidade do
terror, tentam nos convencer justamente da impossibilidade de se hesitar e
duvidar de tal quadro, diante da rapidez com que estas ideias são veiculadas
como evidências. Assim, não dividindo a humanidade em duas partes, entre
uma primeira classe de cidadãos – moralmente aptos ao paci smo (FREUD,
1969l) – e todas as outras pessoas – atrasadas devido às suas de ciências
morais –, Freud nos incita a resistir a tal quadro, nos oferecendo um novo
horizonte de futuro no discurso freudiano: uma espera de todos por um
devir incerto e inesperado, bem diferente de uma espera de poucos por um
porvir certo e esperado – que o restante da humanidade “faça já o seu
trabalho” e atinja “nosso nível de civilidade”. Não temos aqui, portanto, a
humanidade cindida em duas categorias de pessoas – aquelas que temem e
aquelas que devem ser temidas.
Se por um lado, no contexto de esgotamento das propostas políticas
e crise do neoliberalismo globalizado, surge um terreno propício na
contemporaneidade para a proliferação dos preconceitos da política, por
outro, colocando em suspensão e em suspeição tais preconceitos, O mal-
estar na civilização nos oferece toda a sua atualidade e força subversiva.
Diante da insistente certeza de que o outro é uma ameaça ao nosso futuro, o
texto de 1929 possibilita um tempo de hesitação e resistência a este discurso
pretensamente político. Tal discurso tenta nos persuadir da urgência de nos
protegermos contra o terror, reeditando uma já empoeirada forma de
coerção, cuja força niilista sempre retorna no vácuo de propostas
efetivamente políticas para nos deixar um vazio ainda maior: a
universalização do medo do campo sociopolítico, criando polarizações
reativas, como nós-outros, civilizados-primitivos, indivíduos racionais-
massas ignorantes. Assim, suspendendo tais supostas certezas, nos legando,
ao contrário, o tempo da dúvida e da espera, O mal-estar na civilização nos
convida a enfrentar uma também empoeirada questão que permanece
exigindo resposta: o que é a política?
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1 Psicólogo
do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Psicanalista, Doutor em Teoria Psicanalítica pela
UFRJ com estágio de doutorado sanduíche na Universidade de Paris VII.
2 Sobrea contradição desta premissa em relação àquela que determina que a ontogênese repete a
logênese, remeto a Mezan (1994).
3 Na tradução brasileira “massa” signi ca “grupo”. Cabe ressaltar que tal tradução minimiza o teor
crítico do texto, cuja escolha lexical (massa em vez de grupo) possui conotações evidentemente
políticas.
4 Pressupostoepistemológico que associa o sujeito mais propriamente ao pulsional (FREUD, 1969k), no
lugar da ênfase representacional do dualismo pulsional da primeira tópica, caracterizado pela
oposição entre a pulsão sexual e a pulsão de autoconservação, cujo pressuposto epistemológico é a
noção de avanço secular do recalcamento (FREUD, 1969a).
Parte II: Encruzilhadas e descarrilamentos
no seio da relação entre o trabalho e a
subjetividade
3 - O Corpo-si
Schwartz (2003), em vez da expressão subjetividade, preferiu cunhar
a noção provisória de corps-soi (corpo-si) para dar conta da complexa
dimensão coletiva do viver e trabalhar.
Em seu entendimento, para “executarmos” uma tarefa, ou seja, para
dar conta de toda a complexidade de uma situação de trabalho (envolvendo
os equívocos e limites de qualquer prescrição, as variabilidades e o acaso –
as in delidades do meio, na clássica expressão de Canguilhem, tão cara a
Schwartz) é necessário recorrermos às nossas próprias capacidades, aos
nossos próprios recursos e às nossas próprias escolhas para gerir a
prescrição e as in delidades do meio. O vivente humano faz então uso de
toda a inteireza de si enquanto vivente.
Schwartz acrescenta que toda situação concreta de trabalho é gerida
como um “uso de si” e não como mera execução. Por conseguinte, conforme
a cção taylorista, tentar reduzir a atividade de trabalho à mera execução da
tarefa prescrita é acreditar ingenuamente em uma certa perfeição da
prescrição.10 Ao contrário, para Schwartz, trabalhar é gerir e envolve sempre
uma “dramática do uso de si”, do corpo-si. Trabalhar é sempre um drama já
que envolve o trabalhador por inteiro (“corpo e alma”), é o espaço de tensões
problemáticas, de negociações de normas e de valores. A expressão “uso de
si” remete ao fato de que não há somente execução nesta dramática, mas um
uso. É a pessoa sendo convocada e mobilizada por inteiro (ou seja, o soi, o
si). O conceito de “uso de si” chama a atenção para a complexidade do
humano ao viver.
Seguindo os passos de Schwartz, assinalamos que drama não quer
dizer necessariamente tragédia. Quer dizer que “alguma coisa acontece”
(como diz a música de Caetano Veloso) e sempre acontece alguma coisa no
trabalho. Essa dramática é onipresente como obrigação de negociação, de
arbitragem. Escolhas são feitas de diversos modos, e elas não são sempre
conscientes, postas na mesa. Ao contrário, elas são feitas, frequentemente, de
forma quase inconsciente. Como Schwartz assinala, felizmente não somos
obrigados a nos perguntar sem cessar: “o que eu estou fazendo, como
escolho etc.” ou tentar decompor, desdobrar essas múltiplas arbitragens.
Tais arbitragens se situam no domínio do corpo-si. Como fez a
loso a clássica, poder-se-ia opô-lo à alma, o que seria muito embaraçoso,
alerta Schwartz, porque o corpo é atravessado de inteligência (Dejours, por
exemplo, assinala a presença da “inteligência do corpo”); mas muitas
escolhas são feitas, quase automaticamente. Em determinados momentos,
automatismos podem vir à consciência. Alguns podem, outros não. Por isso,
em vez de “subjetividade”, Yves Schwartz prefere falar de “corpo-si”.
Para ele existe um tipo de inteligência do corpo que passa pelo
muscular, pela postura, pelo neuro siológico, por todos os tipos de
circuitos, sendo muitos resultados de nossa própria história, de um
“adestramento” que pode ser cultural, mas que em seguida passa na
inconsciência do próprio corpo. Schwartz interroga que entidade (coletiva e
relativamente pertinente) é esta que escolhe? Ele assinala que tal entidade
não é nem inteiramente biológica, nem inteiramente consciente ou cultural.
E é por isso que Schwartz (2003) prefere a ideia de “corpo” ou de “corpo-si”
à ideia de subjetividade:
Onde se fala de subjetividade, eu falaria antes da noção de “corpo-si”.
Reconheço que existem muitos nomes esquisitos nisso tudo, mas é
preciso ver que todo conceito veicula com ele uma história, apostas,
valores, que a gente carrega sem se dar conta. E, por vezes, quando
queremos tomar um pouco de distância, é necessário produzir termos
nem sempre claros ou transparentes, mas que ao menos tenham a
vantagem de não veicular com eles um certo número de possíveis mal-
entendidos ou de evidências que criam obstáculos. (SCHWARTZ, 2003,
p. 198)
Sempre pensando tendencialmente (“em tendência”) Yves Schwartz
(2003) assevera que o “corpo” não é o “todo” da dramática, absolutamente.
Mas, ele ao menos mostra o conjunto do campo que é a matriz ou o
caldeirão (o cadinho) do que acontece na atividade. Isso começa no corpo,
aí incluído o corpo biológico. Este autor francês manifesta seu desconforto
com a noção de subjetividade. Ele diz que falar da subjetividade tem algo de
sedutor:
Temos a impressão de que falam de você, en m, na primeira pessoa.
Você é colocado diante de um espelho onde você se reconhece, porque
não é tão difícil de evocar sobretudo a dimensão da pena, da
di culdade de viver... “En m, falam de mim”. Esse espelho que lhe
entregam é conseqüentemente sedutor, porque ele parece dar substância
a alguma coisa que permanece para nós sempre obscura. E como em
tudo, há boas razões pelas quais ele é sedutor. Dizendo isso, eu não
quero de jeito nenhum contestar a dimensão subjetiva no trabalho! Eu
penso que, pessoalmente e com outros, esforcei-me bastante para
mostrar essa dimensão subjetiva no trabalho para não dar a impressão
de querer, em seguida, rejeitá-la. De certa maneira, eu partilho dessa
preocupação, mas penso que há derivações possíveis. (SCHWARTZ,
2003, p. 199)
Concluindo
Conforme vimos anteriormente, partindo da clássica descoberta da
Ergonomia da Atividade, diferenciando “trabalho prescrito” e “trabalho
real”, assim como sinalizando as regulações mobilizadas pelos operadores,
empreendidas para dar conta dos limites e dos equívocos da prescrição e da
presença de variabilidades e do acaso, encontramos a perspectiva ergológica
e uma série de abordagens clínicas do trabalho mobilizadas na ampliação do
conceito de atividade, retirando-o da camisa de força comportamentalista
(questão colocada por Vigostki, em psicologia, por exemplo). O caráter
sempre enigmático do trabalho, assinalado por Yves Schwartz, excedendo as
antecipações e formas de conhecimento já existentes, é apreendido por
Dejours enquanto real do trabalho, ao passo que Clot prefere assinalar o que
está em jogo como real da atividade.
A partir dos referenciais aqui indicados, entendemos que investigar
o trabalho sob o ponto de vista da atividade nos coloca desa os e também a
exigência de composição de diferentes instrumentos teórico-metodológicos.
Incorporar o ponto de vista da atividade de trabalho implica também
relacionar comportamentos observáveis dos trabalhadores e elementos que
não são observáveis – as decisões tomadas, o pensamento no trabalho,
percepções e interpretações realizadas sobre sua própria atividade, ações não
realizadas, modos operativos inventados e saber-fazer construídos, que são
acessados com a confrontação de diferentes olhares: o do(s) pesquisador(es)
e daquele(s) que realiza(m) a atividade.
Nesta perspectiva, entendemos que incorporar o possível e o
impossível, nas dramáticas do trabalhar, incorporando os protagonistas da
atividade numa comunidade de pesquisa, nos permite aproximarmo-nos do
caráter singular da atividade de trabalho, acessando toda uma riqueza aí
presente. Ressaltamos, por m, o caráter lúdico do humano. Entendemos
que essa dimensão se faz presente no trabalho e tem sido insu cientemente
explorada, colocando grandes limites para o desenvolvimento humano no
trabalho.
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àquilo que é determinado antes da realização do trabalho. Ora, só existe trabalho se existe um sujeito
que trabalha. As formas de gestão das estruturas organizacionais tayloristas acreditavam que apenas
seguir as normas, os procedimentos escritos, as prescrições seria su ciente para a realização a bom
termo do trabalho. A ergologia sustenta que a prescrição (como uma das “normas antecedentes”)
nunca é su ciente para dar conta da produção exigida. O trabalho real (o que é efetivamente
realizado) exige sempre uma mobilização cognitiva e afetiva do trabalhador (o “real do trabalho”). O
trabalho, por conseguinte, nunca é só mera execução (BORGES, 2006).
Objetivando facilitar a escrita e a leitura deste texto, serão utilizadas doravante as siglas PDT e PPT,
11
solução para con itos não resolvidos no nível da consciência. A psicanálise aponta para a existência
de forças mentais que se opõem umas às outras e que batalham entre si.
Vamos aqui, conforme Athayde, preferir usar o vocábulo sistemas, em vez de estratégias, para falar
14
deste conjunto mais amplo de defesas coletivas no trabalho. Dejours, em poucos momentos, utilizou
esta expressão sistemas (DEJOURS, 1987). Quase sempre, ele faz uso do vocábulo estratégias, no
interior das quais insere a modalidade ideologias defensivas. Athayde entende que deste modo Dejours
reitera o caráter ativo e estratégico, em última instância, das “ideologias”, recusando, assim como Cru,
a tendência desquali cante deste tipo de sistema defensivo por parte dos patrões, engenheiros e
técnicos de prevenção, operadores de uma tendência que Cru denomina “preventivista”. Entretanto,
revela-se aí, para Athayde, uma certa pobreza no desenvolvimento destes possíveis conceitos,
colaborando para que em uma leitura de menor fôlego de rigor, se misturem as modalidades
estratégicas stricto sensu e as ideológicas. Considerando a gravidade da ação das ideologias defensivas
e a riqueza potencial das estratégias, Athayde recusa seu uso, frequentemente rasteiro, e propõe um
cuidado maior na compreensão e uso destas noções, ainda insu cientemente consistentes e
provisórias teoricamente. Vamos aqui nesta direção.
15
Notas de conversas com o autor, 2008.
Os estudos de Damien Cru (1987) sobre o trabalho na construção civil foram decisivos para
16
psicanalítico. Suas concepções a respeito do espaço potencial são de grande valia para aqueles que se
propõem a pensar o trabalho, tendo o ponto de vista da atividade como operador transversal. O
espaço potencial permite ao ser humano a possibilidade de lidar com a realidade objetiva de modo
criativo, possibilitando assim um contato com o mundo externo amplo e saudável. Para Winnicott, o
brincar é uma atividade humana universal, própria da saúde, fundamento de todo o viver criativo,
assim como da arte e da cultura.
18
Notas de orientação de Milton Athayde, março de 2008.
Conforme Athayde (2008), na verdade esta formulação já é presente, sem o dizer, em tantas outras
19
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Editorial, 1998. vol. 1.
1 Professor
Associado do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Doutor em
Filoso a pela Universidade de Paris VIII. Professor Associado do Departamento de Psicologia da
Universidade Federal Fluminense.
2 ProfessorAdjunto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense/Escola de Ciências Humanas e
Sociais de Volta Redonda. Doutor em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP.
3 Por“relação clínica” entenda-se a relação terapeuta/paciente ou analista/analisando, quer se trate de
intervenção individual, no casal, na família ou em grupo.
4 Cf. GUATTARI, 1990, 1992.
5 Cf. PREU; EIRADO, 2008.
6 Sobre a instituição do potlatch conferir Georges Bataille (1975) e Marcel Mauss (1974).
7 Sobre a relação do agenciamento com atos de fala jurídicos conferir G. Deleuze e F. Guattari (1980,
1975).
Residências terapêuticas e a construção de
bons encontros e amizade na comunidade
Maria Inês Badaró Moreira1
Carlos Roberto de Castro-Silva2
(ELISA LUCINDA)
Apresentação
Este trabalho re ete um esforço de articulação entre as áreas de
saúde mental e psicologia comunitária na perspectiva de construção de
práticas em saúde pública voltadas para a promoção de autonomia e
cidadania. Neste sentido, por meio de uma pesquisa sobre o papel das
residências terapêuticas, como estratégia de construção de
práticas antimanicomiais, discutimos outros espaços de sociabilidade como
promotores de saúde mental, destacando aqueles extramuros institucionais,
os quais nos remetem à comunidade da qual, aliás, tais instituições, queiram
ou não, fazem parte.
Acreditamos que a qualidade destas relações entre instituição e
comunidade nos dá pistas preciosas sobre a saúde e seus determinantes. Esta
proposta se revela, ao mesmo tempo, desa adora e promissora, pois dirige
nosso olhar para a compreensão da qualidade das relações cotidianas entre
as pessoas, principalmente sobre a produção de subjetividade como produto
da articulação entre os aspectos sociais econômicos e culturais vigentes.
Desta forma, a comunidade passa a ser um conceito ou um balizador
de concretização de relações mais solidárias e cidadãs, e não um conceito
estanque que mira uma harmonia idealizada e desencarnada do contexto de
vida das pessoas. Neste sentido, a contribuição de Espinosa é fundamental,
na medida em que concebe os sujeitos a partir da qualidade das interações
entre si, ou melhor, da forma como se afeta e se é afetado nos encontros, que
podem ser promotores de alegria ou de tristeza, ainda de promoção de
potência de agir ou de padecimento.
Assim, este texto abre mais uma possibilidade de construção de bons
encontros entre duas áreas, dois pesquisadores, e entre várias pessoas que
consideram a comunidade como um lugar terapêutico, na medida em que
respeita as subjetividades e suas diversas manifestações.
Método
Pesquisa qualitativa com inspiração etnográ ca em que a descrição
dos fatos buscou acessar a complexidade e, ao mesmo tempo, a
singularidade dos fenômenos estudados (SATO; SOUZA, 2001). Também
representou uma pesquisa interventiva, na medida em que objeto de estudo
e pesquisador são elementos semelhantes, interagindo em um mesmo
campo de ações.
Priorizamos conversas informais com os moradores das residências
terapêuticas, com trabalhadores destas RTs e com vizinhos próximos das
casas. Estas conversas ocorram em espaços diferentes e nas mais diversas
situações. A escolha, por desviar-se de um modelo formal de entrevista,
deveu-se à percepção de que nas relações estabelecidas com as pessoas, em
momentos informais, as conversas seguem descontraídas e tornam-se de
imenso valor.
Ao nos decidirmos pela perspectiva etnográ ca, optamos também
por não separar as etapas deste estudo, a participação e a análise dos
acontecimentos, já que a entrada em campo se con gurou como um diálogo
contínuo entre a natureza do estudo, as hipóteses e aquilo que o campo
revelou (SATO; SOUZA, 2001).
Participaram desta pesquisa 40 moradores de cinco residências
terapêuticas, instaladas em três bairros de um município da Grande
Vitória/ES. Os bairros têm con gurações bastante diferentes, mas estão
geogra camente próximos, cerca de 2km de distância entre si, o que
permitiu várias incursões entre as RTs, inclusive com os moradores
transitando entre uma RT e outra. Também incluímos neste estudo
abordagens e conversas com as pessoas envolvidas nas atividades diárias das
casas, e relatos de vizinhos.
Considerações finais
Sob o lema “A Liberdade é Terapêutica”, Basaglia (1982) devolveu à
comunidade um de seus membros e consolidou o combate ao que foi
produzido no domínio manicomial, pois, tal como o cárcere, esta estrutura
representa um fantasma para a sociedade. Espaço de internamento:
isolamento que origina o medo público de também vir a ser afastado de sua
comunidade. A comunidade, além de produzir uma possibilidade para o
surgimento da amizade por meio de um espaço coletivo, também se
apresenta como lugar de exercício político por excelência, local de diálogo
entre iguais, uma atividade entre humanos.
Basaglia (1982) demonstrou que a desinstitucionalização advém,
fundamentalmente, da mudança da relação da sociedade com o fenômeno
da loucura. Então, a comunidade pode se transformar em um espaço para
isso, porque é local de encontros entre homens livres que vivenciam
situações de trocas. Os homens livres sentem-se respeitados na potência
para agir no coletivo a que pertencem e constroem relações de qualidade
com as pessoas, e na amizade desponta a força imanente de transformação
contínua do humano.
Assim, a loucura, por estar diluída e mesclada no cotidiano citadino,
encontra sua via de expressão nas possibilidades que os espaços dispõem,
mostrando a emergência de encontros possíveis. A mudança da relação com
a loucura pode despontar um processo de autocriação contínua para os
envolvidos nesses encontros, sejam eles loucos ou não. A comunidade deve
ser compreendida como espaço fundamental para a expansão do viver, para
produção de vida, de um novo sentido do ser, de trocas sociais, ao deixar
surgir uma coexistência dispersa entre homens livres que se encontram.
Talvez seja esse o sentido da desinstitucionalização, defendido por Franco
Basaglia. E assim, os bons encontros entre as pessoas e o exercício dialógico
entre indivíduos livres possibilitam o surgimento de uma relação intensa
que pode se con gurar como um bom encontro, potente para a construção
de uma relação de amizade estabelecida na comunidade.
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1 ProfessoraAdjunta da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP-Baixada Santista). Doutora em
Psicologia pela Universidade de Federal do Espírito Santo.
2 Professor
Adjunto da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP-Baixada Santista). Pós-doutor em
Ciências Sociais pela University of Western Ontário (Canadá). Doutor em Psicologia Social pela
Universidade de São Paulo.
A política da reforma psiquiátrica brasileira
Raul Atallah1
Introdução
Discutir os destinos da reforma psiquiátrica no Brasil ainda é, depois
de tantos anos, uma tarefa árdua e envolvente. Os fundamentos e os aspectos
teóricos do que chamamos de reforma psiquiátrica já foram exaustivamente
discutidos por diversos autores. Sabemos que diante das grandes críticas
institucionais dos anos 1960, os hospitais psiquiátricos passam a sofrer, em
todo o mundo, questionamentos que culminam em transformações
importantes nas instituições da psiquiatria.
Essas transformações culminaram, nos últimos anos, no que se
denomina processo de desinstitucionalização, ou seja, da retirada gradativa
de pacientes psiquiátricos do hospital. Essa tendência in uenciou a criação
de novas instituições relacionadas à saúde mental, onde o trabalho passaria a
ser feito no território.
Segundo aponta Paulo Amarante (1995), no Brasil, o processo de
desinstitucionalização foi possível graças à constituição de 1988, que
consolidou as bases da reforma sanitária e a criação do Sistema Único de
Saúde (SUS) que, com prerrogativas inéditas, possibilitou o surgimento dos
investimentos necessários para a criação dos serviços substitutivos ao
hospital psiquiátrico.
No Brasil, diversos dispositivos de atenção foram criados nos
últimos anos, atendendo a demanda por uma reforma na assistência em
saúde mental. O processo de desinstitucionalização no Brasil caminha para
consolidar serviços territorializados, voltados para a comunidade. A rede de
atenção, como vem sendo construída, funciona por dispositivos distribuídos
por zonas da cidade, onde existiriam o Centro de Atenção Psicossocial
(Caps) ou o Núcleo de Atenção Psicossocial (Naps), os prontos-socorros e
os postos de saúde mental, articulados com o Programa de Saúde da Família
e com centros de tratamento de álcool e drogas, e ainda Centros de Atenção
à Infância e Adolescência. Em seguida, a rede forma-se com os dispositivos
residenciais terapêuticos, o hospital geral, suas unidades de internação
psiquiátrica e ainda os manicômios tradicionais (PITTA, 2001).
Todo esse modelo é idealizado para construir uma rede de atenção
articulada entre si, sempre com o objetivo de substituir o modelo tradicional
da psiquiatria, ou pelo menos de evitá-lo ao máximo. Todos esses novos
dispositivos avançam lentamente pelo Brasil, e já provocam inúmeras
questões.
Para fugirmos do romantismo resistente de muitos modelos teóricos
da reforma psiquiátrica e para colocar em questão seu modo de
implementação e funcionamento, precisamos analisar mais de perto os
espaços construídos pelo processo de desinstitucionalização da loucura,
para identi carmos quais são as forças que movem esses serviços e a que
tipo de políticas estão sujeitos.
Para analisar criticamente as políticas atuais de reforma psiquiátrica
no Brasil, escolhemos um destes dispositivos – a residência terapêutica,
consequência direta do processo de desinstitucionalização. Essa nova
instituição possui interessantes particularidades. O sentido original era
propor uma organização totalmente diferenciada para o tratamento da
saúde mental, mas, de certa forma, na prática, pode simplesmente
reproduzir o modelo do hospital psiquiátrico.
O dispositivo residencial nasce como uma esperança de sucesso da
reforma psiquiátrica. É a pedra fundamental, o destino dos usuários dos
hospitais psiquiátricos que não possuem vínculos familiares, ou daqueles
que precisam ainda de cuidados que seriam impossíveis dentro da família. A
partir daí surgem inúmeros problemas estruturais, de ordem prática ou
conceitual.
Os dispositivos residenciais são fruto de uma tentativa de renovação,
mas não conseguiram se livrar das armadilhas criadas por um sistema de
saúde pública enfermo. A desorganização e o descaso acabaram se re etindo
nesse modelo, assim como aconteceu com os hospitais psiquiátricos.
Para além do romantismo dos textos sobre reforma psiquiátrica,
muito necessário para dar força aos pro ssionais iniciadores de todo o
processo árduo de transformação das instituições psiquiátricas, precisamos
repensar seriamente os dispositivos da reforma psiquiátrica, e expor bem os
problemas. Precisamos levantar as questões necessárias para iniciarmos uma
nova onda de transformação, para repensarmos o modelo adotado e as
forças que pressionam esse modelo ao estático, a um formato único, seguido
por diligências de um sistema único de saúde, que pode em última instância
estar universalizando a desassistência. Desorganização da gestão interna, de
nanciamento, de práticas clínicas repetitivas, de treinamento de
pro ssionais, sobrecarga de trabalho, salários reduzidos e o excessivo papel
das ONGs como gestoras desses serviços são alguns dos problemas que
podemos levantar, mediante análise dessas instituições.
Conclusão
A implementação dos dispositivos da reforma psiquiátrica e o
processo de desinstitucionalização dos usuários da saúde mental sempre
foram uma grande questão, que requer muita re exão sobre seus modos de
funcionar, suas práticas e objetivos políticos.
Neste pequeno trabalho, tentamos re etir sobre algumas questões
que foram percebidas no estudo destes serviços. Outras questões poderiam
ser levantadas, mas focalizamos as in uências de determinadas políticas
envolvidas na prática da reforma psiquiátrica e nos processos de
desinstitucionalização.
A diversidade de modelos de construção faz deles espaços de
criatividade, de reinvenção de novas formas de cuidado dentro da esfera da
saúde mental. O papel do Estado na reinvenção das práticas institucionais é
fundamental para promover dispositivos nos quais realmente sejam
possíveis novas formas de cuidado com a loucura, que não estejam a serviço
de estruturas sociais arraigadas. Por isso, a reinvenção deve ser feita com
cuidado, devem ser analisadas em sua multiplicidade as forças políticas
envolvidas nesses serviços, seja no âmbito das leis de saúde, seja na mudança
dos paradigmas de cuidado, seja nas práticas institucionais.
Essas instituições formadas com a reforma psiquiátrica não estão
livres dos fascismos que determinadas políticas de governo preconizam.
Toda a uidez necessária para sustentarmos o modelo do capitalismo atual
não deixa de incidir sobre esses serviços, o que pode obviamente ora
impedir, ora reorganizar e direcionar os processos de criação destes
dispositivos.
Foram colocadas como questão as políticas públicas nas quais se
inserem esses novos serviços, destacando a in uência das novas
con gurações institucionais e novos modelos de Estado na constituição do
dispositivo residencial terapêutico. Levantaram-se de forma breve, como
uma questão a ser discutida, as políticas envolvidas na constituição da
reforma psiquiátrica e nos processos de desinstitucionalização no Brasil,
envoltas no processo de desmantelamento ou não investimentos em
políticas públicas de qualidade. Mesmo quando há investimentos,
questionamos o modelo empresarial capitalista que invade os espaços
públicos, que em nome da e ciência e do combate à burocracia atemporal
inegável do Estado, produz exibilização da mão de obra e transforma o
cotidiano dos pro ssionais, seguindo a demanda de redução de custos. Todo
esse processo demonstra a fragilidade desses serviços diante das forças que
os constituem.
O desejo de mudança ainda permanece em todos os pro ssionais
envolvidos no processo de reforma psiquiátrica, o mesmo desejo de
mudança que permeou toda a história da psiquiatria até os dias atuais. Esse
desejo é alimentado pelos usuários desses serviços, bene ciários do processo
de reconstrução do cuidado em saúde mental.
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1 Psicólogo, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense.
2O termo neoliberalismo, como aponta Wacquant (2001) aparece pela primeira vez em 1947, com o
célebre encontro entre um grupo de intelectuais conservadores em Montpellier, na Suíça. O objetivo
desse encontro seria formar uma sociedade organizada que pudesse combater as políticas que
ameaçavam o avanço capitalista. Para eles, o que prejudicaria a circulação de capital seria a
intervenção maciça do Estado na economia. Na Europa, mais do que em outros países, como o Brasil,
políticas sociais foram desenvolvidas a partir do pós-guerra, culminando no que se convencionou
chamar de um modelo de Estado de Bem-Estar Social (Welfare State).
3 Todas as entrevistas utilizadas durante o trabalho com pro ssionais da área de saúde, vinculados aos
dispositivos residenciais terapêuticos, foram cedidas por Luiz Antonio Baptista, professor titular do
Departamento de Psicologia da UFF e do Programa de Pós-graduação em Educação da UFF. As
entrevistas referem-se a sua pesquisa: A Reforma Psiquiátrica e o cotidiano nos serviços residenciais: a
formação dos pro ssionais da área de saúde mental em análise, nanciada pelo CNPq.
4 Relato de um pro ssional de um dispositivo residencial terapêutico do Rio de Janeiro.
5 Relatos das primeiras experiências com moradias para ex-internos do hospital psiquiátrico.
Parte III: Psicologia e genealogia: colocando
identidades no fogo da problematização
Subjetividades queer
Conforme acreditamos ter indicado, pressupor a instabilidade das
normas de gênero permite afrouxar a relação entre a assunção do sexo e a
escolha do objeto sexual. Neste sentido, cabe perguntar o que acontece
quando as proibições primárias contra o incesto produzem deslocamentos e
substituições que não se ajustam aos modelos supostamente normais da
sexuação. Segundo Butler, na realidade, uma mulher pode encontrar o
resíduo fantasmático de seu pai em outra mulher ou substituir seu desejo
pela mãe por um homem, e nesse momento, se produz um certo
entrecruzamento de desejos heterossexuais e homossexuais. Se admitirmos a
suposição psicanalítica de que as proibições primárias não apenas produzem
desvios do desejo sexual, mas também consolidam um sentido psíquico de
“sexo” e de diferença sexual, precisamos nos dar conta de uma consequência
fundamental implícita neste ponto de vista. Daí parece decorrer que os
desvios coerentemente heterossexualizados requerem que as identi cações
se efetuem sobre a base de corpos similarmente sexuados, e que o desejo se
desvie por meio da divisão sexual para membros do sexo oposto. Mas, se um
homem pode identi car-se com sua mãe e desejar partindo dessa
identi cação, ele, de algum modo, já confundiu a descrição psíquica do
desenvolvimento de gênero estável. E se esse mesmo homem deseja outro
homem ou uma mulher, será que o seu desejo é homossexual, heterossexual
ou mesmo lésbico? E o que signi ca restringir qualquer indivíduo dado a
uma única identi cação? (BUTLER, 1993, p. 99).
Se tais fantasias podem saturar um lugar de desejo, não estamos em
posição de ou bem nos identi carmos com um sexo dado, ou bem desejar
alguém deste sexo; na realidade, de um modo mais geral, não estamos em
posição de considerar que a identi cação e o desejo sejam fenômenos
reciprocamente excludentes. Identi car-se não é opor-se ao desejo, a rma
Butler. A identi cação é ao mesmo tempo uma trajetória fantasmática, uma
resolução de desejo e uma assunção de lugar: trata-se da territorialização de
um objeto que possibilita a identidade mediante a temporária resolução do
desejo, o qual ainda permanece sendo um desejo, mesmo que sob a sua
forma repudiada.
A referência por parte da autora à identi cação múltipla não
equivale a sugerir que todos se sintam compelidos a ser ou ter tal uidez
identi catória. A sexualidade é tão motivada pela fantasia de recuperar
objetos perdidos quanto pelo desejo de permanecer protegido da ameaça de
punição que tal recuperação poderia ocasionar. Também pode ocorrer que
se estabeleçam certas identi cações e a liações, certas conexões
complacentes ampli cadas, precisamente para instituir uma desidenti cação
com uma posição que pareça excessivamente saturada de dor e agressão,
posição que, em consequência, só poderia ser ocupada imaginando-se
conjuntamente a perda de uma identidade viável. As identi cações,
portanto, podem proteger contra certos desejos ou atuar como veículos para
o desejo; para facilitar certos desejos, talvez seja necessário proteger-se de
outros: a identi cação é o lugar no qual ocorrem, de modo ambivalente, a
proibição e a produção do desejo (PEIXOTO JÚNIOR, 2005).
Neste contexto a política queer torna-se emblemática, já que
condensa em si tanto uma degradação passada como uma a rmação
presente, demonstrando de forma radical a contingência das normas de
gênero. A ressigni cação da sexualidade gay e lésbica pela abjeção e contra a
abjeção pôde signi car uma proliferação e uma subversão do próprio
simbólico, estendendo e alterando a normatividade dos seus termos. Ao
introduzir as homossexualidades no terreno da simbolização, novas formas
de subjetivação, assim como novas formas de sociabilidade, tornaram-se
possíveis. Daí a necessidade de continuarmos a repensar os parâmetros a
partir dos quais abordamos o desejo, a sexualidade e as subjetividades no
mundo contemporâneo. Neste sentido, a subversão do desejo também é uma
abertura para novas possibilidades de existência até hoje consideradas
impensáveis por certos autores.
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1 Este capítulo representa uma versão revista de artigo publicado nos Cadernos Pagu (28/2007).
2 Professora
Adjunta do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
3 Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.
4 Em francês, Pacte Civil de Solidarité (Pacs). Pacto civil de solidariedade que pode ser concluído por
duas pessoas físicas, independentemente do seu sexo, para organizar sua vida comum.
5 Para um análise crítica destes pressupostos (ARÁN, 2006a).
Cérebro, cultura somática e neuroterritórios
emergentes
Rafaela Teixeira Zorzanelli1
O caso da neuroeducação
As diferentes formas pelas quais o conhecimento neurocientí co é
apropriado têm originado áreas de conhecimento híbridas, que são o
resultado de interfaces entre as neurociências e as ciências humanas, como é
o caso da neuroeducação. Nosso intuito é apresentar algumas das questões
que perpassam esse campo em emergência, já que elas re etem a
aproximação – não sem controvérsias – de campos de saber com métodos e
modos diferentes de olhar para seus objetos.
Um importante alicerce da neuroeducação se assenta na ideia de que
conhecer as bases neurobiológicas da aprendizagem pode levar ao seu
aprimoramento. Ou seja, os conhecimentos neurocientí cos seriam
utilizados como forma de aperfeiçoar métodos e corrigir limitações da
aquisição de conteúdos. Dessa premissa, se desdobram práticas de
neurodidática e neuropedagogia, para a proposição de melhores formas de o
cérebro aprender.
A implicação do cérebro em processos de aprendizagem é
considerada óbvia, de modo que ninguém duvidaria que conhecer melhor o
modo como as funções cerebrais superiores se processam oferece
possibilidades de aprimorar as maneiras de aprender. No entanto, essa
obviedade é problemática, porque ela nos faz aceitar com mais passividade
certas conclusões apressadas, que consideram o cérebro como único
elemento necessário para a aprendizagem. Ou ainda, como se a
aprendizagem fosse o processo realizado por um cérebro e não uma pessoa
que tem um cérebro situado em um contexto sócio-histórico, material,
social. Como a neuroeducação contempla posições bastante heterogêneas,
apresentaremos alguns dos debates que a recortam.
O artigo de Hartt (2008) publicado na revista Educação, cuja capa
anuncia o tema “Febre de cérebro”, detecta e assinala a invasão de
explicações neurocientí cas no campo da educação formal, enfatizando
tanto o que se pode ganhar com os conhecimentos sobre o funcionamento
cerebral quanto a necessidade de evitarmos os chamados neuromitos. Os
neuromitos são construídos, por exemplo, quando uma citação de um
estudo cientí co cuidadoso extrai um signi cado que ultrapassa aquilo que
se poderia inferir a partir dele, realizando transposições simpli cadoras ou
ampliando a capacidade de inferência do achado cientí co. São práticas
desse tipo que fazem com que as ideias neurocientí cas sejam
frequentemente incorporadas ao entendimento de outros campos por meio
de simpli cações grosseiras.
Um exemplo é o célebre “Efeito Mozart”. A ideia do Efeito Mozart
surgiu em 1993 na Universidade da Califórnia, com os pesquisadores Shaw,
Rauscher e Ky (1993, 1995), que estudaram os efeitos da audição de um
trecho da Sonata Para Dois Pianos em Ré Maior (K. 448), de Mozart, em
estudantes universitários. Veri cou-se que havia um melhoramento
temporário do raciocínio espaço-temporal, conforme medido pelo teste
Stanford-Binet de Quociente Intelectual (QI), que demonstrou um aumento
de 8-9 pontos sobre as pontuações dos sujeitos, quando haviam realizado o
teste após um período de silêncio ou de audição de uma ta relaxante. O
efeito Mozart dizia respeito à conclusão de que escutar música clássica na
tenra infância favorecia o desenvolvimento das capacidades intelectuais.
Mas, nenhum outro grupo de pesquisadores foi capaz de reproduzir os
resultados dessa pesquisa, o que fere um princípio básico da pesquisa
cientí ca. Autores como Steele, Bass e Crook (1999) a rmam ter seguido os
protocolos estabelecidos por Rauscher, Shaw e Ky (1995) sem conseguir
obter resultado semelhante. Antes mesmo de haver evidências mais sólidas
sobre seus resultados, os produtos baseados na promessa do Efeito Mozart
passaram a ser comercializados, havendo inclusive distribuição grátis de
gravações de músicas clássicas em estados americanos (RACINE; ILLES,
2006). A despeito de maiores evidências, o Efeito Mozart estimulou um
mercado paralelo à ciência.
Apesar de esse ser um exemplo emblemático das reiteradas
inferências cientí cas que aceitamos e descartamos, como em um mercado
de consumidores, cabe ressaltar que nem só de neuromitos vive a
neuroeducação. Um capítulo especial desse campo é aquele dedicado ao
auxílio das crianças com necessidade especiais, e é muito bem discutido por
Battro (2000). O caso do garoto Nico, acometido por uma forma grave de
epilepsia, é emblemático. Seu hemisfério direito foi removido, em um
esforço para controlar ataques epiléticos sofridos desde o nascimento. A
despeito dessa di culdade, o processo de escolarização do garoto durante o
tempo acompanhado por Battro foi surpreendente. Com um computador,
Nico conseguiu aprender a ler e escrever, e se juntou ao ritmo da turma.
A tese de Battro é de que a educação teve um papel fundamental na
compensação da perda de tecido cerebral. Nico tinha di culdades em fazer
movimentos nos com a mão esquerda e defeitos visuais, os quais ele
compensava com movimentos de olho e de cabeça. Além disso, apresentava
di culdades em desenhar e escrever à mão. A utilização de um computador
permitiu que ele adaptasse sua performance a suas di culdades. O
computador tornou-se uma prótese intelectual para o garoto, capaz de
construir uma interface entre seus processos cognitivos e o mundo. As
próteses intelectuais servem como instrumentos computacionais que criam
uma interface com as atividades cognitivas humanas, tais como falar,
escrever, ler e desenhar. Elas abrem novos caminhos cognitivos no cérebro,
permitindo a substituição funcional das áreas prejudicadas e auxiliando o
cérebro a realizar tarefas cognitivas anteriormente processadas por uma área
diferente do córtex. O desenvolvimento e compreensão dessas próteses é
também um dos caminhos do que se pode chamar de neuroeducação.
Ainda um outro viés que recorta esse campo é o do aprimoramento
cognitivo. O uso de psicofármacos que estimulam a cognição, a
concentração, o sono e o cansaço têm sido um solo de debates na Europa e
na América do Norte, alcançando espaço na arena pública entre os
periódicos semanais brasileiros, entre as instituições universitárias, jornais
populares e expoentes da pesquisa neurocientí ca. Sendo uma questão que
abarca o campo biomédico, mas cujos desdobramentos se estendem às
práticas sociais e concepções de saúde, o uso de substâncias
psicofarmacológicas fora do objetivo para o qual foram prescritos faz com
que o campo da saúde coletiva enfrente um debate ético cuja importância só
aumentará daqui em diante.
Prova disso é a presença cada vez mais frequente do tema na mídia
impressa brasileira, como o atesta o artigo de Laurence (2009) no jornal
Folha de São Paulo, repercutindo o tema do uso de drogas
psicofarmacológicas para “turbinar o cérebro”, bem como as matérias de
capa das revistas Superinteressante e Scienti c American Brasil – ambas, em
novembro de 2009, sobre as “Pílulas da Inteligência”. A substância mais
debatida é o metilfenidato (ritalina), usada para tratar casos de transtorno
de dé cit de atenção e hiperatividade. Além dela, o donapezil, usado para
tratar a demência, e o moda nil, para narcolepsia, têm recebido atenção dos
pesquisadores interessados no tema do doping cerebral. Esse assunto está em
foco principalmente depois de duas manifestações a favor da liberação do
uso de medicamentos para aprimoramento da performance cognitiva
(HARRIS et al., 2008; HARRIS; QUIGLEY, 2008). Os autores advogavam a
regulamentação e eventual liberação do uso dessas drogas em pessoas
saudáveis, compreendendo que esse é um caminho natural do processo de
educação formal.
O uso social dessas drogas traz à cena questões que não são simples
de serem respondidas, como sua regulamentação ou não em determinados
ambientes de trabalho, escolas e universidades ou em casos como os de
vestibulandos, motoristas, policiais, médicos, pilotos e outros pro ssionais
que trabalham em situação de privação de sono. Sem dúvida, a situação
brasileira merece um detalhamento particular, já que as condições de
regulação de medicamentos são diferenciadas em relação aos países
europeus e norte-americanos.
O fato é que a utilização do manancial psicofarmacológico para ns
de aprimoramento cognitivo é um campo em crescente debate na sociedade
atual. A decorrência mais direta desse processo é que ele contribui para uma
percepção social do corpo referenciada não somente na possibilidade de
promover a saúde, mas de aprimorar a perfomance mental e cognitiva. Esses
novos desempenhos corpóreos, como o denominou Costa (2004),
construídos à luz dos novos limites engendrados para o corpo e para a
subjetividade, modi cam as concepções vigentes de normalidade e
patologia. Esses debates e dilemas, em linhas contrastantes e divergentes,
têm composto o campo da neuroeducação até o momento.
O caso da neuropsicanálise
Outro campo emergente da interface entre as neurociências e as
ciências humanas é a neuropsicanálise. Para a Sociedade Internacional de
Neuropsicanálise, as neurociências são um campo de reconciliação entre as
perspectivas psicanalíticas e neurocientí cas da mente, baseado no
pressuposto de que essas duas disciplinas girariam em torno dos mesmos
objetivos: o de tornar o funcionamento mental inteligível, e o de
compreender sua função e a de seus elementos constituintes.
Dois nomes se destacam no campo da neuropsicanálise. Um deles é
o neurocientista Eric Kandel, premiado juntamente com Arvid Carlsson e
Paul Greengard, com o Nobel de Fisiologia ou Medicina em 2000, por
descobertas que envolvem a transmissão e estocagem molecular das
memórias. O outro é Mark Solms, psicanalista que estuda mecanismos dos
sonhos, emoção e motivação. A pretensão sustentada pelas propostas
neuropsicanalíticas, grosso modo, é de um diálogo entre as pressuposições
freudianas – cuja fundamentação empírica e adequação aos parâmetros da
ciência positivista é considerada incipiente pelos neurocientistas – e os
resultados das pesquisas das ciências do cérebro que, supostamente, podem
oferecer o solo experimental e o substrato biológico que teria faltado à teoria
freudiana.
Cabe notar que a neuropsicanálise surge em um contexto de declínio
na força da psicanálise, que sofre lentos e contínuos abalos na segunda
metade do século XX. Alguns elementos foram propulsores do declínio da
aceitação social da psicanálise como fonte de respostas aos comportamentos
humanos, entre eles, o desenvolvimento de drogas psicofarmacológicas de
considerável e cácia, como a clorpromazina (substância antipsicótica), os
benzodiazepínicos (utilizados como ansiolíticos), e os antidepressivos ISRS
(inibidores seletivos da recaptação da serotonina). Em 1974, as primeiras
pesquisas em ratos são realizadas com a uoxetina (KRAMER, 1994). Daí
em diante, os efeitos relativamente rápidos dos medicamentos
antidepressivos seriam comparados ao tratamento psicanalítico e, muitas
vezes, considerados mais vantajosos em relação a esse último.
Um fato que também demonstra os abalos sofridos no poder de
persuasão da teoria psicanalítica é a terceira edição do Manual diagnóstico e
estatístico de transtornos mentais (Diagnostic and Statistical Manual of
Mental Disorders – DSM). Desde a sua primeira publicação, em 1952, esse
sistema de classi cação já foi submetido a quatro edições e cinco revisões. O
DSM III, em 1980, promove uma mudança de paradigma no conhecimento
psiquiátrico, ao apresentar um modelo que se propõe descritivo e ateórico,
tornando possível na psiquiatria o mesmo processo de abstração que
permite à medicina classi car e tratar as doenças como entidades universais
e transcendentes ao organismo dos pacientes. O surgimento do DSM-III é
um marco da transformação na clínica psiquiátrica, antes in uenciada pela
psicanálise e, desde então, cada vez mais alinhada ao modelo biomédico.
A ascensão das tecnologias de imageamento funcional do cérebro,
permitindo acesso a funções mentais superiores, também impactaram a
plausibilidade das explicações psicodinâmicas. A ressonância magnética
funcional, por exemplo, trouxe vantagens para o estudo da siopalotogia dos
fenômenos mentais (memória, pensamento, cognição), tornando possível a
caracterização de alguns correlatos neurofuncionais de sintomas e
patologias. É nesse terreno que, diante dos avanços das neurociências e dos
abalos sofridos pela psicanálise, tem lugar o campo da neuropsicanálise.
Kandel (1999) propõe alguns princípios para esse campo: 1) todos os
processos mentais, do mais simples ao mais complexo, derivariam de
operações no cérebro – ou seja, não haveria processo mental imaterial; 2) os
genes e suas combinações seriam importantes determinantes dos padrões de
interconexão entre os neurônios no cérebro e seu funcionamento, embora
genes alterados não expliquem por si mesmos as variações das doenças
mentais; 3) alterações na expressão do gene induzidas pela aprendizagem
dariam origem a mudanças nos padrões das conexões neuronais, que
contribuiriam não apenas para a base biológica da individualidade, mas pela
manutenção de anormalidades de comportamento induzidas por
contingências sociais; 4) a psicoterapia produziria mudanças no
comportamento pelo aprendizado e alterações na expressão gênica,
conduzindo a mudanças nas interconexões entre células nervosas e o
cérebro.
Inspirados por esse rol de proposições, alguns estudos passam a
articular a psicanálise freudiana às neurociências. Esse campo de
investigação envolve, por exemplo, como assinala Ribeiro (2007), o estudo
da repressão de memórias indesejadas, pioneiramente descrita por Freud;
pesquisas com o sonho, objeto primordial da psicanálise freudiana;
investigações de modelos animais de psicose que revelam notável
semelhança entre os padrões de atividade neural da vigília e do sono REM
(rapid eyes movement), corroborando a ideia de que o delírio psicótico
resulta da di culdade de discernir o sonho da realidade; a presença de
reminiscências da vigília dentro do sonho (restos diurnos) extensamente
observados em humanos e roedores durante ambas as fases do sono.
Ora, se para muitos autores a tradução neurobiológica de conceitos
clássicos da psicanálise é uma forma de lhe outorgar legitimidade cientí ca,
para alguns, esse intento é epistemologicamente fadado ao fracasso, pois as
inovações freudianas teriam rompido os vínculos com a matriz neurológica,
instituindo um novo paradigma para a abordagem da mente humana. Como
informam Forbes e Ribas (2004), a visão simplista da neuropsicanálise
consiste em achar que, se Freud tivesse um PET-scanner, teria continuado
um projeto neurológico e não psicanalítico. Mas nenhum instrumento
tecnológico pode investigar lapsos e con itos cuja dinâmica ocorreria no
nível dos sentidos construídos pelo indivíduo para suas experiências, e não
apenas na materialidade de processos biológicos.
Por isso, as propostas da neuropsicanálise geram inúmeras reações
entre os psicanalistas, sobretudo baseadas na ideia de que Freud radicaliza,
ao longo de sua obra, o abandono das explicações somáticas em direção ao
campo do psiquismo. Mesmo imerso em um vocabulário sicalista e um rol
de problemas médicos, Freud dá passos importantes em direção a uma
autonomia do psíquico. Um exemplo disso é quando o autor a rma que as
afasias observadas em doentes podiam não se diferenciar das de pessoas
saudáveis em condições de cansaço ou sob efeitos emocionais intensos.
Freud sustenta a impossibilidade de uma teoria exclusivamente centrada na
localização cerebral, em vez de explicar as afasias a partir de uma relação
mecânica entre o clinicamente observado e o anatômico (FREUD, 1891).
Posteriormente, o autor realiza uma diferenciação entre os sintomas
das paralisias medulares (bulbares) e das paralisias cerebrais ou em massa. A
paralisia histérica estaria mais próxima da cerebral, mas não seria
totalmente idêntica a ela. A ideia principal defendida nesse texto é de que a
lesão nas paralisias histéricas é completamente independente da anatomia
do sistema nervoso, pois a histeria se comporta como se a anatomia não
existisse, ou como se dela não tivesse conhecimento. Na paralisia histérica
do braço, a lesão não estaria no braço, mas na ideia de braço ou na abolição
da acessibilidade associativa da concepção de braço. O órgão paralisado ou a
função abolida estariam envolvidos numa associação inconsciente (FREUD,
1996a).
Com A interpretação dos sonhos, Freud (1996b) operaria uma
ruptura mais declarada com as concepções orgânicas da mente, esboçando
com vigor uma primeira teoria do aparelho psíquico, que dá ao sonho um
papel fundamental no acesso ao inconsciente. É no caminho desde os
primeiros textos neurológicos até a Interpretação que se pode observar um
progressivo abandono do modelo neurológico de solucionar os problemas
clínicos, bem como a colocação do tema do desejo, do con ito e do
inconsciente no seio daquele saber em formação. Quando Freud publica a
Interpretação constrói com isso um novo paradigma de abordagem da mente
e, portanto, a função de reunir psicanálise e neurociências, ou reagrupá-las
sob um mesmo vocabulário, é considerada um equívoco, pois desconsidera
essa ruptura com a biologia (FORBES; RIBAS, 2004). Esse é um dos
argumentos que sustentam uma divergência radical entre psicanalistas e
neuropsicanalistas.
Além disso, a premissa de que a psicanálise precisa ser redescrita à
luz dos conhecimentos cientí cos só faz sentido se se considera que o
trabalho de Freud é incipiente do ponto de vista metodológico, não se
adaptando aos parâmetros de produção de conhecimento da ciência. Essa é
a posição de Solms (1998) que sustenta que a psicanálise, por suas fraquezas
metodológicas, está condenada a um ciclo fechado de especulação e não
veri cação. Essa asserção implicaria desconsiderar que o método de Freud
toma a clínica psicanalítica como o local privilegiado de acesso aos dados, já
que, para o autor, o método clínico era adequado para a exploração do
sofrimento psíquico, pressupondo a singularidade do sujeito e a
contemporaneidade entre pesquisa e tratamento. A observação do doente
em sofrimento se opõe à observação anatomopatológica, hegemônica na
constituição da medicina moderna e historicamente comprometida com o
empírico e o descritivo, como assinalam Forbes e Ribas (2004). Assim, a
ideia de que conceitos freudianos como id, ego e superego poderiam ser
localizados no cérebro é considerada absurda para muitos psicanalistas, pois
o modelo freudiano diz respeito ao aparato mental e não ao cerebral. Como
se pode observar, a formação de campos de saber que intentam equalizar as
ciências da vida às ciências humanas é um terreno de controvérsias mais do
que de certezas.
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1O autor agradece ao CNPq pelo apoio nanceiro concedido à pesquisa “Visualizando o eu: nexos
entre neurociências, biotecnologias e meios de comunicação”, realizada na escola de comunicação da
UFRJ.
2 ProfessorVisitante do Instituto de Psicologia da UFRJ e Professor do Curso de Psicologia da
Faculdade SEFLU. Pós-doutor em Teoria da Comunicação pela ECO/UFRJ. Doutor em
Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
3 “Freud situa-se na mesma corrente, reivindicando explicitamente um dualismo losó co.
Entendamos, nesse postulado, o estabelecimento de um ‘aparelho psíquico’ como construção teórica
irredutível ao corpo, submetida às in uências biológicas, mas essencialmente observável nas
estruturas da linguagem.” (KRISTEVA, 2002, p. 10-11).
4A distinção que faço aqui entre modernidade e atualidade está ligada à diferença estabelecida por
Deleuze (1992) entre sociedades disciplinares e sociedades de controle. Essas diferenças, retomadas e
aprofundadas por autores como Ehrenberg (1998) e Rose (2007), abordam o problema do poder e do
sujeito. Enquanto na era moderna vigoravam modos disciplinares de poder, onde se cuidava do
indivíduo ao mesmo tempo que se moldava sua conduta a padrões bem de nidos, o controle atual
não funciona mais pela tutela, mas pela incitação à autonomia e ao autodesenvolvimento. No entanto,
como esses processos não são condicionados por moldes xos, o sujeito encontra-se em um perpétuo
esforço para conseguir ser bom trabalhador, aluno ou estar em boa saúde. Em outros termos, estamos
sempre endividados dentro desses mecanismos de controle.
5 Foucault (2001, p. 186) frisa as diferentes matrizes históricas que concernem às ciências da natureza e
às ciências do homem: “o que esse inquérito político-jurídico, administrativo e criminal, religioso e
leigo foi para as ciências da natureza, a análise disciplinar foi para as ciências do homem. Essas
ciências com que nossa humanidade se encanta há mais de um século têm sua matriz técnica na
minúcia tateante e maldosa das disciplinas e de suas investigações.”
6 Pedo lia e drogadição são exemplos de condutas desabonadas na sociedade contemporânea. Na
primeira, é a autonomia precária do outro que proíbe a obtenção de prazer, na segunda, o
comprometimento da autonomia do próprio indivíduo. Sobre a relação entre autonomia e
classi cação psiquiátrica, conferir Ehrenberg (1998).
7A capa apresenta essa manchete, enquanto a reportagem interna vem intitulada como “Genética não é
espelho”.
Parte IV: O espaço político aberto pela
literatura
1. Introdução
A literatura é uma forma de atualização do ser da linguagem muito
particular. Ela não estaria a serviço da utilidade. Ela não é experimentada
como uma linguagem que tem seu m fora de sua experiência. Ela não
existe para nos dar informações precisas sobre a vida à nossa volta. Ela não
materializa regras e funcionalidades da linguagem padronizada. Se
pudéssemos falar algo sobre a característica principal da literatura,
a rmaríamos que ela vem à luz não para con rmar nossos ideais nem para
dizer o que devemos ou não fazer de nossas vidas, mas para elaborar uma
experiência intensa que possibilita o questionamento do mundo e de nós
mesmos. Daí, a possibilidade de ela produzir mudanças subjetivas no sujeito
que mergulha em seu campo experiencial.
Quando pensamos na experiência literária, devido a esta
característica, em que observamos ser ela uma atividade que tem seu m
nela mesma, nos encontramos com um modo de ser da linguagem muito
diferente de seu uso cotidiano. Quando tomamos um jornal para lermos, ele
nos interpela enquanto sujeito e nos demanda resposta, já que reproduz
palavras de ordem que circundam em nossa sociedade. Ele requer nossa
opinião, nossas convicções enquanto cidadãos. Assim sendo, quando lemos
sobre um crime nos perguntamos sobre a condição do crime. Somos
convocados pela moral vigente a darmos nossa opinião ou tomarmos
partido daquele fato capturado pelo jornalista. As informações alimentam as
palavras de ordem da sociedade e sua moral. Elas fabricam convicções e as
atrelam ao sujeito contemporâneo tão afeito a estas croni cações
linguageiras.
No entanto, a leitura literária coloca em questão estas convicções que
circundam nossa vida no dia a dia. A experiência literária não nos interpela
enquanto pessoa, mas sim enquanto processo, enquanto elemento de um
espaço em que ressoam componentes subjetivos e textuais na produção da
subjetividade e do sentido. Quando nos deparamos com os crimes
hediondos de Raskolnikov, não somos convocados a execrá-lo como
criminoso, mas a pensarmos e até a entendermos os motivos de seu crime.
Este livro de Dostoiewski (1982), intitulado Crime e Castigo, produz junto
ao leitor um encontro singular. Este acontecimento produz um
questionamento profundo dos limites que o atravessam enquanto sujeito:
seus hábitos e suas convicções.
Esta diferença ocorre porque no jornal e nas obras de informação em
geral o sentido dado e o sentimento estão, muitas vezes, apartados ou não
são produzidos concomitantemente por causa da falta do processo de
identi cação com os sujeitos da informação. Já a literatura abre um espaço
de experimentação em que o sentimento e o sentido andam de mãos dadas.
Quando somos convocados por um sentimento ou uma emoção produzida
pela apresentação de um personagem, este sentimento é o próprio modo de
ser do sentido manifestado.
O espaço literário seria assim um espaço de experimentação e de
produção de singularidades. Um espaço que possibilita uma experiência
desviante em relação às normas e às regras de nossa sociedade, uma
experiência de resistência às repetições de comportamentos e de
pensamentos produzidos pela dinâmica do mundo contemporâneo, regido
por aquilo que Blanchot (1969) chamou muito propriamente de linguagem
de poder.
Atualmente, vemos como a normatização de nossa sociedade é
resultado dos inúmeros dispositivos de poder que nos cercam. Eles tomam o
indivíduo moderno e o enquadram segundo a dinâmica hegemônica
reinante.
A sociedade, por intermédio de sua maquinaria, produz
comportamentos mecanizados e repetitivos os quais podemos nomear de
hábitos e pensamentos recorrentes que seguem as políticas de massa que
chamaremos aqui de convicções. Muitos dos sofrimentos que assolam o
homem moderno surgem destas repetições. Os homens e suas repetições
comportamentais e mentais, esta seria uma das molas principais que movem
a re exão psicológica principalmente associada à problemática clínica. A
clínica seria uma tentativa de criar um espaço de experimentação desviante
que coloca as forças repetitivas de nossos hábitos e comportamentos em
questão.
Pois bem, já que nosso olhar se sustém em uma preocupação
psicológica e nosso objeto de estudo é a experiência literária, mas
propriamente a experiência leitora, observaremos, ao longo do presente
artigo, como a experiência literária pode caracterizar uma experiência
desviante e um foco de resistência às repetições dos hábitos e das convicções
sociais, comportamentais, mentais e culturais, impostas pela cultura de
massa em uma associação com uma certa crítica especializada que tentam
normatizar a experiência, calando o espaço de ressonância aberto pela
literatura.
Mas como a leitura poderia ser fruto de um encontro e produzir um
campo de experimentação ao mesmo tempo? Esta experiência, por ser um
foco de resistência, apontaria para um modo particular de política? Quais
seriam as consequências disto para a produção de subjetividade?
Este texto tem como objetivo trazer à luz uma re exão acerca de
uma política da subjetividade ligada ao espaço de ressonância aberto pela
experiência literária.
Para estabelecermos um modo de compreensão acerca da relação
entre a experiência literária, o espaço de ressonância, a subjetividade e a
política, partiremos do espaço aberto pela literatura, pensando as relações
entre a linguagem, a leitura e a resistência aos padrões mentais,
comportamentais, linguísticos e sociais, facilitadas pela experiência literária.
2. Experiência literária
Na tese de doutorado intitulada Escrita e Leitura: a produção de
subjetividade na experiência literária (2007), analisamos a relação entre a
produção de subjetividade e a experiência literária, examinando a dinâmica
dos papéis do autor, do escritor, do leitor e do crítico para apresentarmos
um entendimento acerca da experiência literária e dos mecanismos de
captura que a a igem em nome da cultura e da crítica. Observamos o caráter
normatizador da interpretação e de certa postura da crítica especializada
que cala a potencialidade experiencial da literatura.
O caráter ambivalente e paradoxal da linguagem atravessou
completamente nossa discussão. Tal caráter indica que a linguagem
comporta, ao mesmo tempo, formas de automatismos, de hábitos
linguageiros e de ordem, assim como de criações, de liberdades e de
rebeldia. Esta característica re ete a própria condição humana e, por
conseguinte, engloba a literatura e suas formas de captura e apreensão.
Vimos que estes vetores de transgressão e de limitação produzem
personagens diferentes na trama literária, estando o autor e o crítico a
serviço da linguagem do poder que captura a literatura, e o escritor e o leitor
seriam estes que acolhem a obra, constituindo-se e desaparecendo em seu
encontro com o fora nas experiências totais do escrever e do ler. Assim,
sublinhamos que o escritor e o leitor são produtos do encontro com a obra,
enquanto o autor e o crítico existem em função do trabalho de controle e
domínio sobre a criação.
Desse modo, observamos que na linguagem existem vetores de
criação e de aprisionamento. A literatura, o desaparecimento do escritor, a
evanescência do leitor, o desmoronamento da linguagem cotidiana, o
desmantelamento da obra, a morte do autor e as experiências totais do ler e
do escrever, estariam associados a este potencial transgressivo e criativo dos
vetores que atravessam a linguagem, enquanto a mitologia autoral, a
essencialização da obra, a explicação, a compreensão, a interpretação, a
informação, os conceitos críticos, os processos de uni cação e de
sistematização da literatura seriam fruto dos vetores de captura da
linguagem.
Neste momento, gostaríamos de pensar a experiência literária sob
outro ponto, explorando uma dimensão deixada de lado na tese de
doutorado: a dimensão política e ética da experiência literária, mais
precisamente no âmbito da leitura.
Para isso, nos valeremos das re exões sobre política e ética de
Deleuze e de Foucault, para construirmos a imagem da literatura como foco
de resistência às rami cações de poder que atravessam o homem moderno
hodiernamente. E também examinaremos, com estes autores, junto ao
pensamento blanchotiano, o papel da literatura no processo de mudança
subjetiva derivado do encontro do leitor com o texto literário, já que este
último possibilita o questionamento de si e do mundo que nos circunda.
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ou do estilo.
11
A constituição da obra como produto vinculado a moedas culturais de troca que inserem o livro
literário no conjunto nobre dos tesouros culturais, atrelando-o às mitologizações da obra e da autoria.
Espaço e subjetividade na experiência da
modernidade: considerações a partir da novela
Le Horla de Guy de Maupassant
Elizabeth Pacheco1
Eduardo Passos2
A novela Le Horla
Guy de Maupassant é um autor francês, da segunda metade do
século XIX (1850 -1893), que se inicia na escrita literária aos 18 anos sob a
in uência de Flaubert. Em 1880, à publicação do conto Boule de Suif,
acontecimento-marco de sua vida e da vida literária daquele século, se
conjugam outros dois acontecimentos, no entanto terríveis: a morte de seu
amigo Flaubert, em 8 maio, e sua entrada no mundo dos tocados pela sí lis.
A literatura e a doença desde então o habitariam e, em sua carta de 1882 a
uma amiga, ele chega a dizer “tenho frio mais ainda pela solidão da vida que
pela solidão da casa. Eu sinto esse imenso desconcerto de todos os seres, o
peso do vazio” (MAUPASSANT, 1984, p. 208).
Sem ter deixado em nenhum momento de escrever inúmeros contos
e alguns romances, viu seu estado sendo agravado por perturbações que
atingiram progressivamente seus olhos, a ponto de ter a luz como
insuportável e no quarto totalmente escuro o único alívio durante muitos
dias. Em dez anos, sua situação havia se tornado tão grave que ele chega a
escrever em carta: “pensar torna-se um tormento abominável quando o
cérebro não é senão uma chaga. Tenho tantas feridas na cabeça que minhas
idéias não podem se mover sem que me dêem desejos de gritar”
(MAUPASSANT, 1984, p. 209).
Tendo tentado suicídio dois anos antes de sua morte, Maupassant foi
internado na clínica do Dr. Blanche, onde faleceu em consequência de uma
sí lis de progressão neurotrópica.
Maupassant, tal como Ka a, é um autor que soube fazer de seus
afetos íntimos, de suas mazelas pessoais, a dobra (DELEUZE, 1991) em arte.
Sua literatura não é espelho de sua vida, mas o excedente de vida que pulsa
para além de qualquer organismo, seja ele doente ou são. A dor: como
dobrá-la e dela fazer valor de vida? A respeito dessa dobra clínica que a arte
é capaz de operar, Blanchot (1997, p. 26) faz longo comentário em seu artigo
sobre a escrita de Ka a:
Do lado da dor existe a impossibilidade de tudo, de viver, de ser, pensar;
do lado da escrita, possibilidade de tudo, de palavras harmoniosas,
desenvolvimentos exatos, imagens felizes. Ka a escreve: nunca pude
compreender que seja possível a alguém que queira escrever objetivar a
dor na dor. [...]. A literatura objetiva a dor constituindo-a em objeto. Ela
não a expressa, ela a faz existir de outro modo [...]. Tal objeto não é
necessariamente uma imitação das transformações que a dor nos faz
vivenciar, ele se constitui para apresentar a dor, não para representá-la.
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Introdução
Falar em Modernidade, hoje, é algo que já soa antigo. As indicações
de ultrapassamento ou radicalização desta, marcados pela insígnia do pós-
moderno e suas variações fazem, hoje, este efeito de oximoro no qual o
termo “moderno”, de nido no Michaelis como “dos tempos mais próximos
de nós; recente”, “dos nossos dias; atual, hodierno, presente”, “que está em
moda”, “que existe há pouco tempo” (MICHAELIS..., 2007) soe exatamente
como o que o mesmo dicionário indica como seu antônimo, “antigo”. Como
veremos, tal efeito não é apenas jogo de palavras, gura de retórica. Esta
equivocação é própria da modernidade, no que ela não se contenta em ser
atual, no que ela deve negar-se em sua forma atual, qualquer que seja, para
produzir o novo, de novo.
Outra di culdade que enfrentamos no assunto é saber quando tal
jogo começa. Interessante o que Koyré, lósofo que encontrava no tema da
modernidade um dos seus principais assuntos, pergunta em artigo sobre o
tema: “o termo ‘moderno’ tem algum sentido? Somos sempre modernos, em
qualquer época, quando pensamos mais ou menos como nossos
contemporâneos e de modo um pouco diferente dos nossos mestres”
(KOYRÉ, 1991a, p. 15).
Koyré pensava sua modernidade a partir do aparecimento da ciência
galileana, que para ele produz um corte na história. Se esse corte parte do
campo da produção de conhecimento, sacode todos os aspectos da vida. A
partir da ciência a vida ganha um novo tempo, que se conta não mais pela
alternância do dia e da noite ou das estações do ano, mas divide o dia em
horas, minutos, segundos, se encarrega de que este tempo passe
uniformemente, de que todos o sigam (KOYRÉ, 1991b). Mas, sobretudo, a
ciência oferece uma nova forma de ver e de pensar o mundo. Um universo
in nito, contingente, e cujas formas são apreensíveis pela via da matemática,
em contraposição ao cosmos fechado e hierarquizado, tal como pensado na
Antiguidade (KOYRÉ, 2006).
Cai, sobretudo, com a ciência, a ideia de que o mundo se organiza
segundo uma hierarquia, que vai do mundo corrompido que habitamos,
como ponto mais baixo, à forma perfeita da lua, aos pontos imateriais das
estrelas, ao ser como causa e m, eterno e imutável, sempre no mesmo lugar.
A queda da hierarquia do mundo produz, após certo tempo, a queda
da hierarquia social. A colônia corta o cordão com a metrópole, o povo
corta a cabeça do rei, todo o Absolutismo treme, todo absoluto treme. A
organização social parece abrir-se ao mesmo in nito que se abria na própria
concepção de mundo. Não sem, no entanto, certa formação de compromisso
com o que se estava deixando para trás. Se podemos, sem muito esforço,
chegar à conclusão de que é a divindade, como cume das hierarquias, que
não tem mais lugar no mundo moderno, é preciso apontar que a revolução
cientí ca não produzirá uma revolução social sem que se promova a
divindade do Homem, doravante tido como ser dotado de razão e liberdade,
tal qual o lho que assume o papel do pai nas empresas da família, por
motivos de morte ou impedimento deste. As revoluções liberais são marcas
maiores da passagem de uma sociedade antiga a uma moderna, em que o
corte maior da ciência, tal como sublinhamos em Koyré, atravessa a camada
social até os pescoços nobres, abrindo uma nova ordem que começa com a
a rmação de que os homens são livres e iguais, a nalidade da política
sendo a de conservar os direitos naturais e imprescritíveis destes homens
(DECLARAÇÃO..., 1789).
O rolar de cabeças, mais ou menos simbólicas, continua pelos
tempos, não sem certos freios, mas até hoje. Atividade fundamental da
modernidade, a crítica e a derrubada da autoridade são motores
fundamentais para o esplendor de mudança e de diversidade que os tempos
modernos põem em cena. “A modernidade – diz Kumar – não é apenas o
produto de uma revolução [...] mas é em si basicamente revolucionária, uma
revolução permanente de idéias e instituições” (KUMAR, 1997, p. 92).
Não se estranha então que o Homem quase divino que indicamos
como formação de compromisso com o mundo antigo destine-se também,
ideia e instituição que é, a ser ele próprio o alvo da faca crítica da
modernidade. A emulação de nobreza na declaração de seus direitos, ao
mesmo tempo divinos e naturais, demora pouco para mostrar suas origens
humildes e mundanas. No mesmo passo da revolução, um nobre execrado
escreve novelas bestiais a m de rebaixar o homem ao nível do resto das
produções da natureza (SADE, 1999). Não tardaria para que Darwin zesse
o mesmo esforço, com um pouco mais de pudor.
Eis, então, outro efeito de oximoro da modernidade. Ao mesmo
tempo que é preciso reconhecer a mudança e a diversidade, a in nita
possibilidade do novo, é preciso também reconhecer a massi cação, tanto de
gente como de produção, a igualdade uniforme e banalizante que afeta
pessoas e coisas. Viver na cidade moderna é estar, ao mesmo tempo,
condenado ao convívio com os demais, concentrados que estão sobre um
mesmo pequeno espaço, e sujeito a uma extrema solidão, pois a
proximidade espacial não coincide, como dantes, com a proximidade
simbólica. A multidão urbana é feita de solitários.
Viver na cidade moderna, ainda, é conviver com o lixo. A poluição
das fábricas e dos veículos, os restos industriais, os restos do consumo, a
urina, a merda, o mau cheiro. Lixos e restos feitos de coisas, mas também de
pessoas. A cidade moderna e seu substrato econômico e simbólico são
terreno fértil para o surgimento de tipos e personagens inéditos, para o
surgimento de toda uma estética cuja beleza é banal, suja e maligna. Temos,
assim, o aparecimento dos tipos trazidos nos poemas e ensaios de
Baudelaire. O âneur, o dândi, a prostituta, o trapeiro... . A vida parisiense
parece uma grande galeria, onde o que há para fazer é olhar vitrines, ser
olhado, se vender, recolher os restos deixados pelos outros. Tudo o que passa
à vista é interessante. E há também certo desinteresse generalizado, certa
indiferença pelo mundo e pelo outro.
O berço de Baudelaire é uma Paris já moderna. Os tipos
baudelairianos são já os burgueses e os proletários, a elite e a massa de uma
cidade já vivendo sob a fumaça das indústrias, homens já vendendo sua
força de trabalho e homens já se revoltando com isso. Baudelaire se interessa
especialmente por aqueles tipos vadios, fora do jogo do capital industrial,
senão por estarem dele excluídos, por serem dele subproduto, resto, lixo. Os
tipos baudelairianos são aqueles que, de certa forma, relatam o lixo
industrial transeunte nas ruas de Paris. É do lixo humano que lá se encontra
que brotam suas ores do mal.
A Paris moderna
Encontramos um belo retrato da Paris de Baudelaire em um ensaio
seu chamado “O pintor da vida moderna” (1997), no qual escreve sobre
Constantin Guys, desenhista e pintor, amigo seu, que, segundo ele, consegue
retratar efetivamente o que há de moderno, a essência do moderno.
Baudelaire apresenta-o como um autodidata que começou a pintar já velho,
obcecado pelas imagens que lhe povoavam a cabeça. Pintava como um
bárbaro, como uma criança, mas pouco a pouco se ensinou os truques do
ofício, jamais perdendo, no entanto, a simplicidade de seus primeiros
desenhos. Não se trata de um artista, no sentido estrito daquele que domina
uma arte e sua técnica, mas que vive apartado do mundo, encerrado em seu
próprio ateliê. O próprio Guys rejeita a insígnia. Baudelaire prefere entendê-
lo como homem do mundo, no sentido amplo: “homem do mundo inteiro,
homem que compreende o mundo e as razões misteriosas e legítimas de
todos os seus costumes” (BAUDELAIRE, 1997, p. 16).
O campo de seus interesses é ilimitado. Retratos de mulheres, cenas
cotidianas, mas também a guerra e as pompas militares. Interessa-lhe tudo o
que o impressione, que atice sua curiosidade, que lhe cause espanto. Isso
passa por seu método: pintor da cena movente, do burburinho urbano, não
lhe serve o modelo a posar. Sua arte é mnemônica, pinta não um modelo ou
uma cena, mas a impressão que deixaram em sua memória. Quer passar ao
papel, não a riqueza dos seus detalhes físicos, mas a profusão de impressões
que a memória fornece quando se evoca tal ou qual lembrança do modelo
ou da cena. Sua arte é o resultado deste duelo entre “a vontade de tudo ver” e
a “faculdade da memória”; entre o interesse ilimitado e a memória caótica,
assaltada por uma turba de detalhes. O trivial, o detalhe sem importância
tomam a cena e reclamam a mesma atenção que o tema principal.
“A modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade
da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável” (BAUDELAIRE, 1997,
p. 25). Guys pinta o efêmero, o movimentante, o movente, ou mesmo o
próprio movimento. Isso é o que parece ser próprio da modernidade, em
Baudelaire. Ela é constante movimento, mudança, transitoriedade,
revolução.
Seus tipos nascem e habitam nesse movimento constante. O âneur,
observador que anda pelas ruas, só pode surgir aí, numa cidade em
constante movimentação. E a poesia de Baudelaire se vale desse movimento.
Diz ele que sua arte, assim como a de Guys, é como uma estranha esgrima:
O sol
(BAUDELAIRE, 1983, p. 7)
Assim Baudelaire abre suas Flores do Mal. Deixa claro aqui o de que
se trata. O gosto pelo repugnante, a beleza do lixo, as ores que são dadas
não para agradar, mas para ferir.
A modernidade inaugura uma nova estética. Lacan, em seu “Kant
com Sade”, aponta que é Sade quem inaugura o tema da felicidade no mal
(LACAN, 1998, p. 776). Seu elogio ao crime, sua república do gozo, sua
loso a da alcova se escrevem sob os ares revolucionários, sob o começo de
um sonho de liberdade com razão. A partir de Lacan, vemos o laço entre a
moralidade extrema de um Kant e a obscenidade maligna de um Sade. É a
mesma coisa, parece dizer Lacan: “É Sade, a moralidade” (LACAN, 1985, p.
117).
Em sua provocação “Franceses, mais um esforço, se quereis ser
republicanos [...]” (SADE, 1999, p. 125-181) a partir da qual Lacan constrói
um imperativo categórico sadeano, cujo texto seria: “tenho o direito de
gozar do seu corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei esse direito,
sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê
gosto de nele saciar, pode me dizer quem queira” (LACAN, 1998, p. 780), o
autor mostra a face crua e maligna da modernidade que não mais seja a
igreja do Homem – ou seja, da modernidade levada a cabo.
Seu pedido de esforço nada mais é do que um pedido se seriedade.
Pois, se levamos a sério a proposta da revolução, aquela que se quer apoiada
na cienti cidade, na “naturalidade”, não há por que colocar leis severas,
penas de morte, catalogação de crimes. Segundo Sade, está tudo apoiado
ainda na quimera da religião, primeira coisa a ser abolida na instauração da
república.
Assim é que tomamos o pensamento de Sade do seguinte ponto:
“Vamos aqui sem dúvida humilhar o orgulho do homem rebaixando-o ao
nível de todas as outras produções da natureza” (SADE, 1999, p. 160). Logo
depois continua: “O que é o homem, e qual a diferença entre ele e as plantas,
entre ele e os outros animais da natureza? Certamente nenhuma” (SADE,
1999, p. 161). Trata-se de fazer do Homem, ao contrário dessa espécie de
bastião da antiguidade, apenas mais um caso do universo.
Em Sade, isso se encaminha para a proposição de um Estado
absolutamente mínimo. “Oferecendo aqui o nada [...], a indiferença de uma
in nidade de ações que nossos ancestrais, reduzidos por uma falsa religião,
viam como criminosas, reduzo nosso trabalho a bem pouco” (SADE, 1999,
p. 170). Na verdade, apenas a tarefa de que nenhuma quimera, nenhuma
falsa religião voltem a reinar de novo.
Em Sade, a indiferença que isolamos na modernidade baudelairiana
não é liberdade, mas lei, o que leva a coisa aos seus limites extremos. Aos
republicanos que, ao declararem-se livres e iguais, tinham em mente uma
sociedade na qual o crime não tivesse lugar, na qual a lei, tomando a forma
justa da razão, servisse para evitar as arbitrariedades absolutistas, Sade
contrapõe seu reino criminoso, no qual ser livre e igual não é iluminação da
grandeza moral kantiana, essa espécie de absolutismo abstrato, cujo rei
todos seguem de boa vontade. A liberdade, para Sade, é a de gozar de
qualquer corpo; a igualdade, a de que qualquer um pode gozar do meu.
Trata-se, aí, do absolutismo da natureza sadeana, absolutismo da vontade
(ou do desejo, ou do tesão, ou da pulsão). Fato é que, por uma via ou por
outra, acabam-se as diferenças entre o plebeu e o nobre. Kant, lho de
artesãos que nunca deixou Koningsberg, inaugura uma moral de plebeu,
cuja nobreza, no entanto, deve ser vazia; Sade apresenta uma moral de
nobre, cujo plebeu é qualquer um. Articula a passagem de um a outro o
problema do gozo, como o demonstra Lacan (1998).
Não seria essa liberdade assustadora o objeto dos atuais pânicos?
Pois na la da guilhotina, Sade coloca não só o Rei, mas também o Homem,
a Igreja, o próprio Eu: se Lacan tem razão na sua construção do imperativo
categórico sadeano, o “pode me dizer quem queira” que termina a
formulação aponta para que não haja nenhum tipo de privilégio, nenhum
tipo de exceção, nenhuma hierarquia: nada que segure a crença narcísica no
eu, posto aí no lugar de objeto de gozo do Outro. A depender de onde se
esteja – no lugar de sujeito ou de objeto –, ou bem se sabe gozar, quase-
todo-poderoso, ou bem se está sendo gozado, radicalmente despossuído. Na
segunda forma, falta o chão, os músculos não obedecem, se é tomado por
uma sensação de morte iminente etc.
É interessante notar Freud (1969d), em “Psicologia das massas e
análise do eu”, colocar o fenômeno do pânico justamente ligado à queda do
líder:
A ocasião típica da irrupção de pânico assemelha-se muito à que é
representada na paródia de Nestroy, da peça de Hebbel, sobre Judite e
Holofernes. Um soldado brada: ‘O general perdeu a cabeça!’ e,
imediatamente, todos os assírios empreendem a fuga. A perda do líder,
num sentido ou noutro, o nascimento de suspeitas sobre ele, trazem a
irrupção do pânico, embora os perigos continuem os mesmos (FREUD,
1969d, p. 124).
Referências
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SADE, Marquês de. A loso a na alcova. São Paulo: Iluminuras, 1999.
Bruno Farah
Psicanalista, Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ com estágio
de doutorado sanduíche na Universidade de Paris VII. Há 14 anos compõe a
equipe de saúde do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.
Eduardo Passos
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