A Psicologia Contra A Natureza

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 351

A psicologia contra a natureza

Leonardo Pinto de Almeida (organizador)

Niterói, 2013
Nossos livros estão disponíveis em
Impressos: http://www.editora.u .br
Digitais (PDF e ePUB): http://www.editoradau .com.br

Livraria Icaraí
Rua Miguel de Frias, 9, anexo, sobreloja, Icaraí, Niterói, RJ, 24220-900, Brasil
Tel.: +55 21 2629-5293 ou 2629-5294
[email protected] .br

Dúvidas e sugestões Editora da UFF


Tel./fax.: +55 21 2629-5287
[email protected] .br
Copyright © 2013 Leonardo Pinto de Almeida (organizador)
Direitos desta edição reservados à Editora da Universidade Federal Fluminense
Rua Miguel de Frias, 9, anexo, sobreloja, Icaraí, Niterói, RJ, 24220-900, Brasil
Tel.: +55 21 2629-5287 - Fax: +55 21 2629-5288 - http://www.editora.u .br - [email protected] .br

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.
Normalização: Fátima Corrêa
Edição de texto e revisão: Maria das Graças C. L. L. de Carvalho
Emendas: Armenio Zarro Jr. e omás Cavalcanti
Capa e editoração eletrônica digital (ebook): omás Cavalcanti
Supervisão grá ca: Káthia M. P. Macedo
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação - CIP
P974 A psicologia contra a natureza, re exões sobre os múltiplos da atualidade / Leonardo Pinto de
Almeida (organizador). – Niterói : Editora da UFF, 2012.
1,1Mb / ePUB : il. – (Biblioteca).

Inclui bibliogra a.
ISBN 978-85-228-0774-1

1. Psicologia e loso a. 2. Psicologia social – Filoso a. 3. Pensamento. I. Almeida, Leonardo Pinto de.
II. Título. III. Série.

CDD 150

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE


Reitor: Roberto de Souza Salles
Vice-Reitor: Sidney Luiz de Matos Mello
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Antonio Claudio Lucas da Nóbrega
Diretor da Editora da UFF: Mauro Romero Leal Passos
Chefe da Seção de Editoração e Produção: Ricardo Borges
Chefe da Seção de Distribuição: Luciene Pereira de Moraes
Chefe da Seção de Comunicação e Eventos: Ana Paula Campos
Comissão Editorial
Presidente: Mauro Romero Leal Passos
Ana Maria Martensen Roland Kale
Eurídice Figueiredo
Gizlene Neder
Heraldo Silva da Costa Mattos
Humberto Fernandes Machado
Luiz Sérgio de Oliveira
Marco Antonio Sloboda Cortez
Maria Lais Pereira da Silva
Renato de Souza Bravo
Rita Leal Paixão
Simoni Lahud Guedes
Tania de Vasconcellos
Sumário
Epígrafe
Dedicatória
Sumário
Prefácio
Introdução
Parte I: Quando a história e a política se reencontram
A subjetividade naturalizada e os processos de subjetivação:
questões epistemológicas e históricas
O poder disciplinar e a emergência da psicologia científica
A subjetividade naturalizada
A desnaturalização da subjetividade e os processos de subjetivação
Referências

Infância, desenvolvimento e escola: a ordem dos fatores altera o


produto subjetivo
Uma breve discussão historiográfica
Quando a infância passou a existir
A escola estatal, a nova escola e a psicologia do desenvolvimento
Referências

Um social que dispõe do poder de morte: Freud e os preconceitos


da política
Os preconceitos da política nas origens do discurso social freudiano
O campo sociopolítico como um indivíduo definido por subtração
Mais uma vez os poetas anunciam: a virada política de O mal-estar na civilização
Em defesa de Totem e tabu
Preconceitos da política versus ambivalência da ação humana
Considerações finais
Referências

Parte II: Encruzilhadas e descarrilamentos no seio da relação entre


o trabalho e a subjetividade
O trabalho sob o ponto de vista da atividade: suas dramáticas e seu
teatro
1 - O trabalho stricto sensu
2 - Atividade e atividade de trabalho
3 - O Corpo-si
4 - Atividade e zona de desenvolvimento proximal
5 - Algumas abordagens clínicas do trabalho
Concluindo
Referências

Pragmática e relação clínica


Referências

Residências terapêuticas e a construção de bons encontros e


amizade na comunidade
Apresentação
As novas perspectivas da política pública de saúde mental
Comunidade e a construção de subjetividades
A amizade e os bons encontros
Método
Serviços residenciais terapêuticos, bons encontros e amizade na comunidade
Considerações finais
Referências

A política da reforma psiquiátrica brasileira


Introdução
Capitalismo e reforma psiquiátrica
Modernidade, trabalho e reforma psiquiátrica
Profissionais de saúde mental nos dispositivos residenciais terapêuticos
Conclusão
Referências

Parte III: Psicologia e genealogia: colocando identidades no fogo da


problematização
Sobre gênero e subjetividade na obra de Judith Butler
A contingência das normas de gênero
A crítica ao simbólico estruturalista
Subjetividades queer
Referências

Cérebro, cultura somática e neuroterritórios emergentes


O caso da neuroeducação
O caso da neuropsicanálise
Reducionismos fisicalistas e reações a ele
Referências

O Eu somático: sobre os regimes contemporâneos de visibilidade do


corpo
I Olhar e controle sobre o corpo na modernidade
II A difusão das imagens corporais
III Olhar e controle sobre o corpo na contemporaneidade
Referências

Parte IV: O espaço político aberto pela literatura


Para uma ontologia política da leitura literária
1. Introdução
2. Experiência literária
3. O estado de minoridade e a Ausgang Moderna
4. A contemporaneidade e as tecnologias de poder
5. A literatura e a produção de subjetividade
Referências

Espaço e subjetividade na experiência da modernidade:


considerações a partir da novela Le Horla de Guy de Maupassant
A novela Le Horla
Identidade e alteridade: paradoxo da modernidade
A experiência do espaço na modernidade
Referências

Baudelaire e a modernidade
Introdução
A Paris moderna
Ética e estética: a felicidade no mal
Referências

Sobre os autores
Epígrafe
La vérité est de ce monde; elle y est produite grâce à de
multiples contraintes. Et elle y détient des e ets réglés
de pouvoir. Chaque société a son régime de vérité, sa
politique générale de la vérité.
Michel Foucault

Les origines sont rarement belles; les réalités et les


vérités se construisent peu à peu, par épigénèse, et ne
sont pas préformées dans un germe. Parler des racines
chrétiennes de l’Europe n’est pas une erreur, mais un
non-sense: rien n’est préformé dans l’histoire.
Paul Veyne

Bem, diz M. Teste, a essência é contra a vida.


Paul Valéry
Dedicatória
Em memória de nossa querida amiga Márcia Ramos
Arán que nos brindou no presente livro com algumas
de suas ideias para continuarmos pensando nela e
através dela.
Prefácio
Marcelo Santana Ferreira
Professor Adjunto de Departamento de Psicologia da UFF e
Professor de Pós-Graduação em Psicologia da UFF.

O livro que tenho em mãos me ocupou de muitas formas, por ter me


sido endereçado por um amigo, por conter textos de mestres e de parceiros
intelectuais, por ter me feito olhar com mais acuidade para a multiplicidade
de sentidos que se aninham nos confrontos da psicologia com a natureza e,
também, possivelmente, por ser difícil estar à altura da tarefa que os autores
se colocaram, ao escreverem os seus artigos. Por se tratar de tarefa tão cara,
ela me impôs uma vertigem, já que são distintas concepções de
conhecimento que são questionadas nos textos a seguir. Mas a
provisoriedade das concepções só rearranja o exercício proposto, uma vez
que, contra a impressão de que os objetos sejam invariantes, os textos
inquirem a infância, a subjetividade ocidental, as práticas em saúde mental e
a identidade do trabalho do psicólogo. Cada trabalho é um convite,
mesclado à própria legitimidade dos problemas propostos, expressão de
uma visada sobre questões que possuem diferentes temporalidades.
A urgência de se perguntar sobre a proveniência de determinados
objetos desloca a naturalidade com que se defende as práticas psicológicas e
os regimes de visibilidade instituídos pelas suas sucessivas percepções
históricas. Mas se destaca, aqui, a tensão produzida pela composição do
livro, que se movimenta entre temas oriundos de campos aparentemente
heterogêneos, mas que convergem em uma espécie de baile, pois sentimo-
nos convocados a entender o estatuto político da verdade, as políticas de
subjetivação em curso em diferentes lugares em que estamos presentes e a
fugacidade de diagnósticos que já emperraram o exercício re exivo no vasto
campo da psicologia. O baile para o qual somos convidados nos faz deslocar
os olhos, a sensibilidade e a referência ao mundo. O livro possui um
movimento, ambição de Leonardo Almeida ao convidar os interlocutores
aqui presentes, ao se debruçar sobre o material escrito e alojar-se no interior
do escrito, supondo passos, ranhuras, possibilidades, pontos de recomeço e
de complementação. Os autores nos incluem em seus movimentos e, se ora
nos vemos entre moradores de um bairro em São Paulo deparando-se com a
in nita novidade de vizinhos inusitados que os deslocam de suas
familiaridades, ora nos imiscuímos do devir de um conceito, nas armadilhas
de uma suposta abertura e na densidade de uma problematização que
encontra, aqui, um provisório pouso.
Além dos contextos expostos anteriormente, as discussões sobre a
experiência literária e a produção de subjetividade, a extensa defesa de uma
de nição da modernidade como atitude estética e ética e o diálogo com
questões prementes da psicologia torna o livro um diagnóstico provisório de
parte de nossas práticas e do endereçamento de algumas inquietações. Não é
um livro apressado, mas atento às múltiplas possibilidades de instauração do
pensamento, atrevendo-se a indicar a polissemia da natureza na relação com
as chamadas bioidentidades e os neuroterritórios, bem como no feliz
encontro com a de nição de modernidade em Baudelaire, experiência
ímpar de abrigo no transitório e no derrisório. Natureza, aqui, se refere a
muitos problemas e tensionamentos. Desde uma epistemologia dos sistemas
modernos em psicologia, atravessando o histórico de práticas em psicologia
e alcançando vertiginosas re exões sobre a literatura, saímos com a
convicção de que é tarefa urgente recusar aquilo que somos. A recusa das
identidades xas encontra no livro não um exemplo, mas um exercício. O
esforço dos autores, enviando-nos aos seus campos problemáticos, é
recompensado pela vibrante polifonia dos escritos. Os textos são exercícios,
pondo em análise as instituições que indicam os modos corretos de ler, a
forma hegemônica de se relacionar com um texto e a submissão dos nossos
hábitos mentais e comportamentais às palavras de ordem da informação e
da produção exasperante de artigos monológicos no mundo acadêmico. Os
textos do presente livro reviram certezas, nos reviram e revigoram as
pretensões de resguardar o pensamento da banalidade, indicando, de forma
contundente, um diagnóstico do que nos tornamos e a abertura em curso
naquilo que temos deixado de ser. Nenhum humanismo trans-histórico
sobrevive ao exercício agudo aqui proposto. Acabei de ler os textos do livro
agora há pouco, sobressaltado em muitos momentos. Não simplesmente
pela beleza do que é aqui exposto, mas pela relevância política e conceitual
da produção que se partilha. Penso que este livro requer um leitor atento,
não apressado e gentil na transição entre suas diferentes partes. Não sei se
fui esse tipo de leitor, mas aguardo, junto com os autores, os interlocutores
que puxem outros os narrativos, que acatem o convite aqui elaborado e que
não imponham aos textos um regime de inteligibilidade assentado em
convicções frágeis. Se bem que talvez não seja correto idealizar o
interlocutor. Deixemos que os textos encontrem seus destinos, pela força
que cada um tem e pela arquitetura curiosa que se produz pelo
entrelaçamento do material composto. Como um dos primeiros leitores, me
sinto impelido a a rmar que se trata de um livro ousado, pertinente, belo e
vibrante. Ao despojar-me da tarefa de escrever o prefácio, espero que a
alegria do encontro entre os autores tenha achado na minha própria alegria
um dos sentidos de sua composição: sei bem que este livro é muito bom e
reitero que os leitores encontrarão belos desassossegos em seus capítulos.
Introdução
Leonardo Pinto de Almeida1

Tomar da palavra para apresentar um livro feito entre amigos é uma


tarefa tão honrada quanto alegre. É com efusão que faço este singelo
prefácio que anuncia duplamente a amizade. Digo duplamente, pois esta
obra é fruto direto da amizade entre os pesquisadores e do amor que estes
nutrem pelo pensamento.
Este conjunto de textos foi organizado sob a luz das relações entre
psicologia, loso a e história, tendo como um dos seus os condutores o
questionamento da verdade e, por conseguinte, da natureza, a partir de uma
perspectiva política. Sua tessitura, ou melhor, a constituição de sua tablatura,
já que o pensamento não existe sem uma musicalidade muito própria ao
amor e ao acolhimento das ideias, surgiu dos questionamentos incisivos
sobre a história de nosso tempo e as relações com a subjetividade. Ideias que
povoam, indubitavelmente, as páginas que se seguem.
Nossa relação com a história é tão forte que muitas vezes não
pensamos sobre ela, devido ao mesmo paradoxo apontado por Santo
Agostinho sobre a questão do tempo. O homem é um ser temporal,
histórico. No entanto, através da loso a, podemos perceber o
esquecimento dessa característica humana demasiada humana. Entretanto,
com Nietzsche, com Heidegger, com os existencialistas, com os marxistas,
passamos a enxergar não mais por meio de uma miopia aguda, mas pela real
visão do homem histórico que somos.
Em psicologia não foi diferente, a nal de contas, a psicologia
moderna nasceu de uma ruptura com o pensar losofante quando Wundt
tomou a consciência como objeto cientí co, e do rompimento com as
questões históricas no repúdio estruturalista à Volkpsychologie de seu
fundador. Este esquecimento ontológico do ser temporal e histórico do
homem perdurou por longo tempo na história da psicologia por meio de
categorias essencializantes e naturalizantes. O mais interessante é que esse
esquecimento aponta também para a obliteração da política.
No entanto, vemos um movimento banhado de um pensar
losofante que questiona a ideia de natureza humana em toda sua
radicalidade, para fazer brotar a pulsação do histórico e o dissenso do
político no seio da experiência humana contemporânea.
Assim, gostaria de apresentar este livro, tal qual decidi organizá-lo,
sob a égide do histórico e do político, sustentada pelas genealogias do
contemporâneo e por suas críticas às naturezas construídas sob zonas
históricas congeladas pela Verdade ou pelas Verdades.
A função do organizador não é a de homogeneizar os pensamentos,
mas a de pôr em relação modos de pensar díspares, fazendo a evocação do
pano de fundo em que estas re exões habitam.
A questão política está longe do consenso, da homogeneização das
ideias. Ela habita o dissenso e o questionamento. A nal de contas, uma das
características que nos diferem dos animais é o uso da linguagem simbólica
em nossas relações com o intuito de negociar posições, conferir lugares
adequados aos nossos comportamentos no contexto social.
Deleuze,2 em um pequeno texto intitulado Instintos e Instituições,
aponta para esta diferenciação entre animais e homens, mas sublinhando a
importância das instituições para esta diferença. Os animais têm instintos
que direcionam suas ações, que intermedeiam suas relações com os outros
de sua espécie, estando sempre atrelados à herança logenética. O homem,
diferentemente dos animais, com sua entrada em sociedade, não tem
instintos. Mas, não satisfeito por assim não possuí-los, inventa algo para
tomar o lugar desta herança logénetica perdida, esquecida, que é a
instituição. A instituição, conceitualizada neste pequeno texto, é aquilo que
no humano faz a mediação das relações deste com outros homens, com as
coisas, com os outros animais, ou seja, com a vida. Neste ponto, o homem
vai do esquecimento do componente logénetico à invenção de um novo
instrumental que funciona para mediar suas relações.
Por exemplo, quando leciono na universidade, minha posição de
professor, meu título de doutorado, a disposição das cadeiras, a pauta com o
nome dos alunos, os espaços para controlar suas presenças e ausências, a
obrigação de avaliá-los ao m do semestre são instrumentos que
disponibilizam e direcionam a relação que se estabelece entre nós.
Normalmente, eu falo, eles escutam. Suspeita-se de que eu saiba e lhes
transmita um saber. Fácil e confortável tender aí à rigidez no uso de poder
que a cena evoca. No entanto, se saio com as mesmas pessoas para beber
algumas cervejas ou jantar, estas relações são mediadas por outros
instrumentos, como a disposição das mesas, os garçons, as garrafas de
bebida, os pratos dispostos à mesa. Estas são outras formas de instituição
que intermedeiam nossas relações.
Assim, podemos ver que a instituição toma o lugar do instintivo para
direcionar nossas relações, mas, diferentemente de uma herança logenética
impositiva, ela apresenta opções, saídas para a disposição comportamental
observável nas relações sociais.
Esse jogo de cintura nos leva à questão das negociações políticas
tomadas no cotidiano para que os homens possam se relacionar. O
problema está quando estes instrumentos de mediação humana produzem
zonas de Verdade, impedindo o questionamento político, devido à carapaça
revestida da ideia de obviedade que tomam hodiernamente. Nesse caso, o
óbvio é o grande inimigo do político. Sendo assim, as ideias de natureza, de
verdade e de obviedade remetem ao esvaziamento do político e à obliteração
do ser histórico que somos, porque impõem o silêncio. As zonas de Verdade
são zonas de silêncio, de consenso e do óbvio.
Este livro, ao tratar deste problema, se encontra como uma arena do
político, pois apresenta ideias desenvolvidas em várias searas que habitam as
relações entre a psicologia, a loso a e a história. Tomamos estes
questionamentos em diversos ancos, contrapondo a psicologia a toda ideia
de natureza e de essência, sendo que para isso tivemos como pano de fundo
a análise do contemporâneo com o objetivo de compreender o humano pelo
viés da processualidade, ou seja, da subjetividade.
Ao organizá-lo, fui compelido pelo agrupamento das questões
levantadas pelos pesquisadores a dividi-lo em quatro grandes grupos. O
primeiro tem em seu conjunto artigos que abordam questões históricas e
políticas de forma entrelaçada a problemas relativos à psicologia e à
psicanálise. Resolvi então chamar esta primeira parte de “Quando a história
e a política se reencontram”. O segundo grupo toma como re exão
recorrente às vicissitudes do trabalho na contemporaneidade, passando da
forma com que a psicologia aborda o trabalho atualmente à relação clínica e
ao trabalho em saúde mental. Para esta parte, resolvi dar o título de
“Encruzilhadas e descarrilamentos no seio da relação entre o trabalho e a
subjetividade”. O terceiro grupo trata da problematização das ideias relativas
às questões do gênero e do sujeito cerebral, a partir de uma análise dos
processos de naturalização das identidades circunscritas nestes campos. Esta
parte recebeu o nome de “Psicologia e genealogia: colocando identidades no
fogo da problematização”. Já o quarto grupo analisa as relações tecidas entre
a literatura, a política e a modernidade, sendo intitulada de “O espaço
político aberto pela literatura”.
Este preâmbulo visa dar uma ideia geral do livro. No entanto, é
necessário tomarmos cada uma de suas partes em suas singularidades,
dando um panorama de cada um dos artigos e sua relação com o conjunto
do livro.
Assim, a tecedura desta teia tenta capturar os múltiplos da atualidade
sob o viés de uma psicologia, preocupada com a política e a história, para
conceber suas visões do homem de nosso tempo.
Como a rmamos, a primeira parte do livro intitulada “Quando a
história e a política se reencontram” analisa questões concernentes à política
e à história no seio da psicologia e da psicanálise. Entre os artigos que
compõem esta parte estão: “A subjetividade naturalizada e os processos de
subjetivação: questões epistemológicas e históricas”, de Rosane Zétola
Lustoza e Ricardo Salztrager; “Infância, desenvolvimento e escola: a ordem
dos fatores altera o produto subjetivo”, de Arthur Arruda Leal Ferreira; e
“Um social que dispõe do poder de morte: Freud e os preconceitos da
política”, de Bruno Farah.
Em “A subjetividade naturalizada e os processos de subjetivação:
questões epistemológicas e históricas”, Rosane Zétola Lustoza e Ricardo
Salztrager fazem um belíssimo panorama da história da psicologia, partindo
da contraposição entre as ideias de natureza e de processualidade que
atravessaram as diversas formas de psicologia. No centro de sua
argumentação, está o fato de que o questionamento psicológico, desde seu
início em Wundt, Titchener e no Funcionalismo, buscava construções
cientí cas com o intuito de encontrar uma essência biológica e psíquica para
os comportamentos humanos. Na psicologia, a ideia de natureza remete à
busca de uma realidade já dada, baseada em verdades e modos
padronizados de ser. Rosane e Ricardo trabalham muito bem a distinção
entre o entendimento da subjetividade humana a partir da naturalização e
da processualidade, situando esta problemática no seio das principais teorias
psicológicas, como a de Wundt, de Titchener, da Gestalt, do Funcionalismo,
de Piaget, da Psicanálise, da Psicologia Sócio-histórica, da Psicologia
Existencial-Humanista, das teorias psicológicas in uenciadas pelos
pensamentos de Guattari, de Deleuze e de Foucault, entre outros. A questão
da processualidade em psicologia se contrapõe à natureza, na medida em
que considera o histórico em suas fabulações sobre a subjetividade, não
tentando rebater a existência humana por meio de categorias
universalizantes.
Em “Infância, desenvolvimento e escola: a ordem dos fatores altera o
produto subjetivo”, partindo de uma genealogia da infância baseada no
célebre livro de Phillipe Ariès, Arthur Arruda Leal Ferreira coloca em
questão a ilusão do objeto natural associado à infância, criticando os
modelos de fazer história da psicologia, fundados na ideia de essência. Ele
toma como foco de análise uma argumentação sobre a história da psicologia
do desenvolvimento e da infância, fundado no conceito de invenção,
acontecimento e ruptura para propor uma contraposição às narrativas
históricas associadas às noções de origem, continuidade, evolução e
essência.
Assim, Arthur tece uma re exão histórica das relações entre a
psicologia do desenvolvimento, a escola e a infância. Ao apontar a ilusão do
objeto natural, ele problematiza os relatos históricos, fundados na essência, e
a noção de que a escola seria o lugar natural de encaminhamento da criança.
Com este texto, podemos a rmar que não existem naturezas e essências, e
sim acontecimentos históricos, que, devido ao entrecruzamento de forças
em nome do poder, naturalizam objetos e ideias. É justamente por serem
invenções no tecido histórico que as ideias e objetos, naturalizados sob a
carapaça da obviedade e da verdade, podem ser questionados pela
suspensão genealógica.
No artigo “Um social que dispõe do poder de morte: Freud e os
preconceitos da política”, Bruno Farah examina o lugar da política na obra
freudiana, a partir de uma genealogia das mutações conceituais que giram
em torno dos problemas e preconceitos da política no seio do arcabouço
teórico do fundador da psicanálise. Essa análise parte de um
questionamento sobre os preconceitos da política, assinalados no livro O que
é política? de Hannah Arendt, indagando-se da seguinte forma: “será que tais
preconceitos habitam de forma uniforme a empreitada psicanalítica?”
Bruno enumera estes preconceitos para seguir o seu o ao longo da
obra freudiana: a associação da política à violência, a recorrente ênfase ao
imaginário meios- ns, uma concepção de política calcada na ideia de
dominação e o lamento pela perda das referências morais. Ele, então, se
debruça sobre as obras sociais de Freud, como Totem e tabu, Futuro de uma
ilusão, O mal-estar na civilização, indicando as recorrências desses quatro
preconceitos ao longo da obra e a importância do desenvolvimento
conceitual do narcisismo para a inviabilização desses preconceitos, como
podemos perceber no texto sobre o mal-estar.
Na parte “Encruzilhadas e descarrilamentos no seio da relação entre
o trabalho e a subjetividade”, foram agrupados os artigos que falam
propriamente do trabalho na contemporaneidade, sejam as concepções do
trabalho humano abordadas pelo manancial teórico da psicologia, seja a
clínica em sua dimensão relacional ipso facto, seja o trabalho do psicólogo
em suas manifestações tecidas na reforma psiquiátrica ou na comunidade.
Entre os artigos que compõem esta parte estão: “O trabalho sob o ponto de
vista da atividade: suas dramáticas e seu teatro”, de Adilson Bastos;
“Pragmática e relação clínica”, de André do Eirado e Roberto Preu;
“Residências terapêuticas e a construção de bons encontros e amizade na
comunidade”, de Maria Inês Badaró Moreira e Carlos Roberto de Castro-
Silva; e “A política da reforma psiquiátrica brasileira”, de Raul Atallah.
No texto “O trabalho sob o ponto de vista da atividade: suas
dramáticas e seu teatro”, Adilson Bastos nos convida a um passeio
panorâmico pelos caminhos conceituais e analíticos da obra do lósofo Yves
Schwartz, que marcam sua posição teórica chamada de ergologia. No
entanto, seu texto vai além de uma exposição da citada teoria; sua proposta é
a de analisar as vicissitudes do trabalho na contemporaneidade. Para isso, ele
situa sua discussão, a partir da apresentação da perspectiva ergológica e de
outras abordagens da clínica do trabalho, como a Ergonomia da Atividade, a
Psicodinâmica do Trabalho, a Clínica da Atividade e a Psicopatologia do
Trabalho, na tentativa de construir um modo de compreensão das relações
tecidas entre o trabalho, a subjetividade e a história, tomando como
operador analítico o conceito de atividade.
Em sua re exão, Adilson situa o trabalho em sua preocupação com a
vida e a história do trabalhador. A perspectiva, levantada por esse escrito,
examina o trabalho e sua relação com a processualidade, o corpo e a história
do trabalhador, fundamentando-se em uma análise que se contrapõe às
categorias universalizantes sustentadas pelas teorias comumente associadas
às preocupações do empregador.
Em “Pragmática e relação clínica”, André do Eirado e Roberto Preu
investigam as interfaces entre a loso a da linguagem em sua vertente
pragmática e os estudos teóricos e clínicos da psicologia. Valendo-se de um
manancial teórico calcado principalmente nas análises de Guattari, Austin,
Searle, Recanati e Ducrot, André e Roberto re etem sobre a natureza da
Relação Clínica (RC), avaliando-a como a condição real de toda clínica. Eles
a rmam que ela seria aquilo que é ativado pelo trabalho do clínico e aquilo
que seria reduzido pelas teorias clínicas ao tentarem controlar e delimitar
seus domínios sobre o que seria o processo terapêutico. Assim, as de nições
teóricas da RC são instrumentos de poder que visam capturá-la e, por
conseguinte, reduzi-la.
No artigo “Residências terapêuticas e a construção de bons
encontros e amizade na comunidade”, Maria Inês Badaró Moreira e Carlos
Roberto de Castro-Silva apontam, a partir das questões da amizade e dos
afetos em Espinosa, a possibilidade de a comunidade vir a ser um espaço
fundamental de bons encontros entre sujeitos livres. Esse texto retrata de
forma clara e concisa uma experiência tecida com moradores de cinco
residências terapêuticas, instaladas em um município da Grande Vitória/ES.
A partir dela, Maria Inês e Carlos Roberto re etem sobre as vicissitudes da
saúde mental no Brasil, sublinhando a importância de uma conexão entre
duas áreas da psicologia: a psicologia comunitária e a saúde mental. As
estratégias de construção de práticas antimanicomiais são examinadas pelo
catalisador analítico sustentado pelas residências terapêuticas. Os autores
destacam, seguindo as re exões levantadas por Espinosa, as mediações
afetivas no seio dos serviços residenciais ou residências terapêuticas, para
sustentar a ideia de que a comunidade pode ser um espaço transformador
em nossa sociedade e disparador de bons encontros.
Já o texto de Raul Atallah, “A política da reforma psiquiátrica
brasileira”, analisa criticamente o conceito de residências terapêuticas,
fazendo um exame genealógico de sua implementação, derivada da
desinstitucionalização da loucura e de seu funcionamento no mundo atual
do trabalho. Raul passeia por questões relativas ao trabalho em saúde mental
e ao trabalho em geral na modernidade atual. Seu exame poderia ser
considerado um estudo de caso do trabalho no contemporâneo, este tempo
de insegurança em que habitamos. Sua análise crítica do uso das residências
terapêuticas na saúde mental do Brasil assinala os sintomas recorrentes do
trabalho do tempo atual: insegurança no trabalho, baseado no provisório e
no descartável; precariedade na contratação de trabalhadores; a
desarticulação do engajamento político; a fragmentação; a competição
desenfreada; e a desintegração de redes sociais.
A partir das falas dos pro ssionais de residências terapêuticas, Raul
torna visíveis certos paradoxos do movimento de desinstitucionalização da
loucura. Ao mesmo tempo que este movimento visa libertar os loucos e
desnaturalizar os especialismos e os pro ssionalismos, a dinâmica da vida
tecida nestas residências aponta para os mesmos problemas do trabalho
atual, que aprisionam os trabalhadores contemporâneos, e para um uso da
desnaturalização do pro ssional em nome da redução de custos nos serviços
de saúde mental. Espera-se que os trabalhadores sejam exíveis e
disponíveis, sendo uma espécie de passe-partout, pois devem servir para
inúmeras atividades, já que sua especialidade se perdeu na neblina da
desnaturalização. Assim, este texto indica os paradoxos do trabalho
contemporâneo, partindo do foco sobre os pro ssionais de saúde mental.
Na parte “Psicologia e genealogia: colocando identidades no fogo da
problematização”, foram agrupados artigos que tratam de problematizações
e de genealogias de certas identidades contemporâneas, percorrendo o
campo da sexualidade e do conceito de gênero, e do fortalecimento da
neurociência e dos neuroterritórios sustentados pela concepção do sujeito
cerebral. Entre os artigos que compõem esta parte estão: “Sobre gênero e
subjetividade na obra de Judith Butler”, de Márcia Arán e Carlos Augusto
Peixoto Júnior; “Cérebro, cultura somática e neuroterritórios emergentes”, de
Rafaela Teixeira Zorzanelli; e “O Eu somático: sobre os regimes
contemporâneos de visibilidade do corpo”, de César Pessoa Pimentel.
No texto “Sobre gênero e subjetividade na obra de Judith Butler”,
Márcia Arán e Carlos Augusto Peixoto Júnior nos propõem uma re exão
sobre a sexualidade contemporânea por meio da obra de Judith Butler.
Contra o poder coercitivo, os referentes universalizantes e a pretensão à
universalidade, os autores abordam o tema da sexualidade, do desejo e da
subjetividade, através das relações tecidas entre o gênero, a identidade
sexuada e o poder.
Vislumbramos a importância da historicidade do sexual como
questão teórica, ética e política, pois o entendimento da subjetividade a
partir da história e da processualidade suscita a problematização dos
processos de naturalização ligados à sexualidade. Assim, Márcia e Carlos
Augusto fazem uma análise frutífera dos processos de construção da
identidade sexual, tendo como instrumental analítico uma genealogia do
gênero à luz da obra de Butler.
O texto de Rafaela Teixeira Zorzanelli faz uma análise crítica da ideia
de cérebro como organizador da identidade, se debruçando sobre algumas
correntes de pensamento que sustentam a equalização entre a condição de ter
um cérebro e a de ser uma pessoa. Assim, pautando-se na ideia de sujeito
cerebral, ela analisa as tendências atuais sobre os estudos que versam sobre o
cérebro para construir uma genealogia da identidade cerebral.
Rafaela tece uma re exão sobre dois neuroterritórios observáveis
hoje em dia na cultura somática de nossa sociedade, a saber, a
neuroeducação e a neuropsicanálise, mostrando o quão reducionista pode
ser a visão que atrela o cérebro à identidade.
César Pessoa Pimentel, em “O Eu somático: sobre os regimes
contemporâneos de visibilidade do corpo”, analisa também a cultura
somática de nossa sociedade, ligada ao avanço das teorias neurocientí cas,
mas dando ênfase às tecnologias de visibilidade e seu papel na naturalização
dos processos de construção da identidade cerebral. Ele parte de um exame
genealógico dos regimes de visibilidade do corpo associados às práticas
disciplinares encontradas comumente na sociedade de normalização para
assim avançar junto à emergência das tecnologias de imageamento cerebral
e sequenciamento da organização genética observáveis na
contemporaneidade.
Assim, o seu foco se atém na passagem dos regimes de visibilidade
modernos para os atuais, com o objetivo de fazer uma análise histórica da
identi cação entre subjetividade e biologia e sua relação com as tecnologias
de visualização do corpo. Nesse caso, o seu exame se debruça sobre as
diferenças nesses regimes, apontando para as novas formas de controle
suscitadas pelas tecnologias emergentes.
Na parte “O espaço político aberto pela literatura”, foram agrupados
textos que analisam as relações tecidas no mundo contemporâneo, entre a
subjetividade, a política e a experiência literária. Entre eles estão os artigos:
“Para uma ontologia política da leitura literária”, de Leonardo Pinto de
Almeida; “Espaço e subjetividade na experiência da modernidade:
considerações a partir da novela Le Horla de Guy de Maupassant”, de
Elizabeth Pacheco e Eduardo Passos; e “Baudelaire e a Modernidade”, de
Daniel Menezes Coelho.
O encontro com a obra literária suscita ao escritor e ao leitor uma
abertura de um campo de experiência bem particular, já que a linguagem
usada pela literatura foge às searas da utilidade e da funcionalidade. A
literatura é uma tentativa de compreensão de problemas relacionados à
existência. Os escritores em seu encontro com questões relativas à vida,
muitas vezes, são verdadeiros sintomatologistas do mundo em que vivemos.
Desse modo, a obra literária abre um campo de experiência intensa em que
a transformação subjetiva é possível, já que a pesquisa sobre os problemas
existenciais evidenciados por ela coloca em xeque as verdades que circulam
hodiernamente na sociedade, mostrando que os problemas da vida são
muito mais complexos do que as resoluções, tomadas pela reprodução dos
dualismos a que somos submetidos. Baseando-se nesse modo de
compreensão da literatura, os textos incorporados nesta parte visam analisar
a experiência literária na contemporaneidade e suas relações com a
subjetividade e a política.
O meu texto, intitulado “Para uma ontologia política da leitura
literária”, pretende analisar a experiência literária na contemporaneidade,
partindo da ideia de que ela se apresenta como uma experiência desviante e
um foco de resistência às repetições dos hábitos e das convicções sociais,
comportamentais, mentais e culturais. Assim, demonstro que a literatura
suscita uma espécie de resistência micropolítica e uma experiência intensa
que proporciona transformações no campo afetivo e cognitivo dos sujeitos
que a experimentam.
Em “Espaço e subjetividade na experiência da modernidade:
considerações a partir da novela Le Horla de Guy de Maupassant”, Elizabeth
Pacheco e Eduardo Passos pensam sobre as noções de espaço e subjetividade
na contemporaneidade, a partir de sua leitura de Le Horla de Maupassant,
sustentada pelas intuições de Michel Serres sobre a modernidade. Esta
leitura aponta para uma postura ético- losó ca, já que demonstra como o
homem moderno se encontra sem nenhuma garantia para sua existência
diante da morte de Deus.
Elizabeth e Eduardo, ao trabalharem com essa novela fantástica
escrita em 1887, examinam os regimes de constituição de espaço na
modernidade, a partir de três ancos: a noção de espaço associado aos
deslocamentos e uxos; o espaço intensivo da urbanidade e da arquitetura
rompendo com a ligação estrita entre espaço e geometria; e uma tomada
política sustentada pela crítica ao positivismo encontrada no conto de
Maupassant.
Esse artigo se debruça sobre a relação entre o espaço e a
subjetividade no contemporâneo, apontando para a mesma intuição
nietzscheana em que o autor alemão a rma que a morte de Deus coloca o
homem moderno perante um mar aberto ou, para usar a expressão usada
pelos autores, à turbulência das chamas. Eles assim mostram que a vida do
homem na modernidade implica escolhas, experimentação, pois, como diz
Blanchot, a morte de Deus é uma tarefa sem m.
Já o texto de Daniel Menezes Coelho parte da mesma concepção de
modernidade, na qual ocorre a tensão entre a tradição e o novo, para re etir
sobre a relação entre a obra baudelaireana e a modernidade, mas também
passando por uma re exão sobre a lei em Lacan e Sade para apontar a perda
de certezas e garantias para a vida do homem moderno, devido ao
esvaziamento da Palavra Divina.
Para Baudelaire, a modernidade é uma perpétua produção de
antiguidades, sendo uma revolução contínua. “Aparece novamente esse
paradoxo da modernidade, onde de ni-la é o mesmo que matá-la”.
Daniel ainda aproveita para deslizar sobre as guras que Baudelaire
utiliza em sua análise do moderno: o âneur, o dândi, para assinalar o papel
da banalização na constituição do herói moderno. A partir daí, ele observa o
mundo contemporâneo pelos olhos do poeta em uma conjunção profunda
entre este e o marquês de Sade para sublinhar os sintomas da atualidade,
mostrando que falta a nós, homens atuais, o exercício do olhar do poeta
para questionarmos aquilo que tomamos como o óbvio e a verdade na vida
em meio à batalha cotidiana.
Assim, podemos pensar que um dos objetivos da tecedura desse livro
é o de analisar as zonas de Verdade no contemporâneo, ligadas aos processos
de naturalização, com o intuito de sublinhar a plasticidade do capitalismo e
seu forte poder de absorção. A absorção capitalista das resistências e do
novo as toma como naturezas, identidades e moedas de troca
hodiernamente usadas em nome do conformismo e do enfraquecimento do
engajamento político atual. Moedas institucionalizadas e congeladas que
apontam para aquilo que Nietzsche chamou muito propriamente de cção
reguladora baseada em uma ideia de constância.
A modernidade em sua potente tensão entre o novo e o antigo sofre
o poder da absorção e da naturalização do novo para despotencializá-lo e
torná-lo inócuo. Nesse caso, a questão que está no cerne do problema da
Au lãrung em Kant ainda perdura nos dias de hoje. Por isso, em várias
dimensões podemos perceber certa falsidade no conceito do pós-moderno.
Pois, atualmente, o problema em achar uma Ausgang para a menoridade e o
esvaziamento da Palavra Divina perduram em outros desdobramentos não
existentes antes da Segunda Grande Guerra, mas elas reverberam
intensamente em nosso cotidiano. Assim, nos encontramos ainda em uma
sociedade na qual o niilismo passivo suscitado pela ciência está na ordem do
dia, como podemos ver, por exemplo, nos discursos associados ao avanço da
medicina, à escansão genética e ao sujeito cerebral.
Porém, na atualidade, vemos o forte movimento da plasticidade do
capitalismo e da mutação de seu poder, materializado no movimento que vai
da disciplina à noopolítica. Por isso, a única saída para o estado de
menoridade imposta pela plasticidade do capitalismo é a mesma, apontada
por Blanchot, ao a rmar ser a morte de Deus um enigma que não traz de
forma alguma a tranquilidade, mas sim a tarefa sem m de resistir e de, ao
resistir, recriar a vida, mesmo que seja em momentos ín mos de nossa
existência pessoal e coletiva.
Após este breve mapeamento das questões suscitadas pela leitura dos
textos que lhes apresento, gostaria de convidar você, leitor, a um passeio de
re exão sobre as naturezas inventadas e rei cadas na tecedura da atualidade.

1 ProfessorAdjunto do Departamento de Fundamentos das Ciências e Sociedade da Universidade


Federal Fluminense, Pesquisador da Cátedra UNESCO de Leitura PUC – Rio, realizou o pós-
doutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro/CNPq, Doutor em
Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro com estágio de doutorado
sanduíche no Centre de Recherche sur la Lecture Littéraire da Universidade de Reims Champagne-
Ardenne.
2 DELEUZE, G. Instintos e instituições. In: _______. A ilha deserta e outros textos. São Paulo:
Iluminuras, 2006. p. 29-32.
Parte I: Quando a história e a política se
reencontram

A subjetividade naturalizada e os processos de


subjetivação: questões epistemológicas e
históricas
Rosane Zétola Lustoza1
Ricardo Salztrager2

Existe certo consenso entre os historiadores da psicologia em situar


seu surgimento na segunda metade do século XIX, momento no qual uma
série de autores se empenharam para transpor para o domínio do
psicológico os mesmos procedimentos e métodos de investigação das
chamadas ciências da natureza. Nesta perspectiva, os psicólogos
acreditavam que a nova disciplina deveria se constituir à imagem e
semelhança da física, da química e da biologia, o que signi cava explicar seu
objeto pelo conceito de dependência funcional de um fenômeno em relação
a outros. Ou seja, assim como era possível a rmar que a dilatação de um
metal depende do seu aquecimento, deveria ser possível encontrar leis
análogas no campo da psicologia. Quando possível, o cientista ainda se
empenharia no trabalho de encontrar a fórmula matemática que rege esta
relação. O projeto naturalista partiu, então, de duas premissas: 1) a verdade
sobre o homem se esgota em seu ser natural; 2) como qualquer fato natural,
o homem está também submetido a leis, sejam elas deterministas ou
probabilistas (FOUCAULT, 1999).
Com efeito, esta tendência de naturalizar a subjetividade reinou no
saber psicológico durante décadas e, ainda hoje, se apresenta como uma
corrente bastante forte e que vem conquistando inúmeros adeptos. No
entanto, nos últimos anos, observamos que ela vem sendo insistentemente
problematizada por inúmeros autores provenientes das mais variadas escolas
da psicologia. Estes, apesar das diferenças em seus sistemas teóricos,
concordam em focalizar a subjetividade dentro de uma visada processual, na
qual o sujeito não é mais contemplado como uma entidade já dada, como se
fosse mera resultante de variáveis biológicas ou ambientais. De acordo com
esta acepção, prefere-se mesmo a nomenclatura “modos de subjetivação” ou
“processos de subjetivação”, justamente, por enfatizar seu caráter inacabado
e em permanente devir.
Neste contexto, a proposta deste capítulo é oferecer uma breve
análise da história do saber psicológico, visando contrapor as escolas que
encaram a subjetividade como algo naturalizado aos autores que as
vislumbram como um processo. Toda a discussão será balizada por questões
epistemológicas que há muito perseguem a psicologia, principalmente, no
que concerne à problemática da sua cienti cidade.

O poder disciplinar e a emergência da psicologia científica


De acordo com a perspectiva de Foucault (1998) apresentada em
Vigiar e punir, o nascimento da psicologia cientí ca estaria atrelado à
emergência de um conjunto de práticas disciplinares, novas técnicas de
gestão dos homens, que começam a encontrar seus espaços nos séculos
XVIII e XIX. Com efeito, estes séculos foram marcados por um progressivo
declínio do poder estritamente repressivo do Antigo Regime e pela
consequente ascensão do denominado poder disciplinar. Este, em vez de
consistir numa instância meramente proibitiva que pune de modo violento
as transgressões, focaliza antes de mais nada a prevenção destas infrações.
Neste contexto, a sociedade criou uma série de dispositivos
destinados, principalmente, a uma vigilância contínua dos indivíduos, com
a nalidade de evitar que eles viessem a cometer alguma violação à norma.
Em outros termos, com o surgimento do poder disciplinar, o indivíduo
passou a ser julgado não em função daquilo que realmente fez, mas daquilo
que poderá fazer. Tratava-se, portanto, de impedir quaisquer tentativas de
oposição no próprio momento em que ela se esboçava. Em vez de punir, as
práticas disciplinares trariam consigo a função de corrigir e reeducar os
desviantes, produzindo corpos dóceis, previsíveis e adestrados.
Daí a importância de con nar os indivíduos nas instituições de
sequestro (escolas, hospitais, prisões, fábricas etc.), onde eles seriam
submetidos a uma vigilância constante. A este olhar cabia observar e julgar o
comportamento em função da norma preestabelecida, punindo os pequenos
desvios a m de evitar maiores danos no futuro. Nesta perspectiva, o
modelo ideal das instituições disciplinares foi encontrado na gura do
panóptico, idealizado por Bentham. Trata-se, aqui, de um dispositivo
arquitetônico onde, no centro, uma torre de vigilância é cercada por um anel
periférico. Este último é dividido em celas com uma janela para a torre e
outra para o exterior, o que permitia que a claridade atravessasse a cela e,
assim, quem estivesse na torre poderia visualizar as pequenas silhuetas pelo
efeito da contraluz. Em contrapartida, os que se encontravam nas celas
estariam impossibilitados de ver o vigia.
Segundo a argumentação de Foucault (1998), para que as instituições
disciplinares tivessem suas e cácias garantidas bastaria, em cada cela,
trancar um escolar, um doente, um delinquente ou um operário, induzindo
neles a plena certeza de serem vigiados, por mais que não o fossem
efetivamente. Além do recurso à vigilância, o poder disciplinar também
funciona mediante um conjunto de sanções normalizadoras, com a norma
sendo estabelecida por um determinado programa ou regulamento a ser
cumprido pelos indivíduos. Os desvios, por sua vez, deveriam ser reduzidos
em referência às metas propostas pelo programa. Neste contexto, o exercício
do exame entra em cena enquanto dispositivo que permite, ao mesmo
tempo, a comparação entre os atos e comportamentos dos indivíduos, suas
diferenciações em relação ao conjunto, a hierarquização de suas capacidades
e a posterior exclusão ou correção do desviante. Assim, o exercício do exame
tem como resultado a produção de uma espécie de arquivo com uma série
de detalhes e minúcias a respeitos dos indivíduos. Nos hospitais, por
exemplo, era preciso reconhecer os doentes e acompanhar a evolução dos
seus sintomas. Já nas escolas, fazia-se necessário caracterizar e classi car as
aptidões dos alunos em diversos níveis com o propósito de lhes oferecer
uma melhor assistência.
Deste modo, é justamente no seio destas práticas disciplinares que
Foucault (1998) situa o surgimento da psicologia. Com efeito, a partir daí, o
homem passa a se apresentar como um objeto de estudo para um saber
encarregado de descrevê-lo, analisá-lo e treiná-lo, visando a sua
normatização. Foram, portanto, as práticas disciplinares emergentes nestes
séculos que promoveram a liberação do solo epistemológico propício às
ciências humanas e, em particular, à psicologia. Conforme a passagem a
seguir:
Todas as ciências, análises ou práticas com radical “psico” têm seu lugar
nessa troca histórica de processos de individualização. O momento em
que passamos de mecanismos histórico-rituais de formação das
individualidades a mecanismos cientí cos-disciplinares, em que o
normal tomou o lugar do ancestral e a medida o lugar do status,
substituindo assim as individualidades do homem memorável pela do
homem calculável, esse momento em que as ciências do homem se
tornaram possíveis é aquele em que foram postas em cena uma nova
tecnologia do poder e uma outra anatomia política do corpo.
(FOUCAULT, 1998, p. 161)

Assim, vemos que o saber psicológico entra em cena no seio das


práticas disciplinares para responder às seguintes perguntas: “Como prever a
evolução do sujeito?”, “Mediante quais estratégias ele será mais seguramente
corrigido ou normatizado?”. A psicologia emerge, então, como uma ciência
sobre o sujeito, possuindo o poder socialmente reconhecido de dizer quem
ele é, nomear suas condutas e demais características, classi cando-as como
adequadas ou não. Neste último caso, seria também função da psicologia
propor estratégias de intervenção visando à homogeneização do sujeito em
referência ao que se considera como uma média da população.
No entanto, no próprio momento em que a psicologia se constitui
como um saber sobre o sujeito, ela teve de se adequar aos padrões cientí cos
vigentes na época. Como estes impunham a necessidade de uma
objetividade do conhecimento, os mais diversos autores da psicologia
emergente não puderam deixar de colocar-se alguns problemas: como
construir um conhecimento efetivamente objetivo sobre o sujeito? Mediante
quais estratégias epistemológicas conseguimos objetivar aquilo que,
justamente, escapa às possibilidades de objetivação? A solução inicialmente
proposta – e até hoje bastante difundida entre algumas escolas da psicologia
– foi a de tentar produzir uma psicologia cientí ca a partir do empréstimo
dos conceitos e métodos oriundos das ciências naturais. Assim, ela poderia
alegar para si o estatuto de ciência mediante as relações de proximidade e
vizinhança com os saberes devidamente reconhecidos enquanto tais.
Todavia, esta solução sempre foi alvo de inúmeras críticas. Na
clássica conferência O que é a psicologia? Canguilhem (1973), por exemplo,
problematiza o afã dos psicólogos em suas tentativas de objetivar a
subjetividade dizendo que, por este viés, a psicologia sempre passou a
impressão de se con gurar como uma mistura de loso a sem rigor, ética
sem exigências e medicina sem controle. O próprio Foucault (1981), no
famoso capítulo dedicado às ciências humanas de As palavras e as coisas,
destaca que, apesar da di culdade de se escapar ao prestígio desfrutado
pelas ciências reconhecidas enquanto tais, seria um contrassenso buscar
alinhar todos os saberes sobre o homem a partir delas. De fato, a psicologia
pode, por exemplo, servir-se da matemática, fazendo um inventário de tudo
o que, no homem, é matematizável. No entanto, segundo sua argumentação,
não deve ser este o paradigma a ser valorizado para que se con ra à
psicologia a sua positividade singular.
De acordo com Figueiredo (1991), os psicólogos que agem desta
maneira estão condenados a sobreviver num completo desconforto e, até
mesmo, insegurança. Isto porque sempre correm o risco de suas teorias
serem anexadas às ciências naturais por um estudo epistemológico qualquer.
Assim, a psicologia carregaria consigo o destino inevitável de permanecer
hesitante, na eterna esperança de que um suposto avanço tecnológico
tornará viável a sua constituição enquanto ciência independente. Conforme
suas palavras: “a psicologia que nasce no bojo das tentativas de
fundamentação das outras ciências ca destinada a não encontrar jamais
seus próprios fundamentos e a nunca satisfazer os cânones de cienti cidade”
(FIGUEIREDO, 1991, p. 20). Trata-se de destacar que, se a psicologia
reconhece seu objeto de estudo – a subjetividade – ela não consegue se
a rmar como ciência. Em contrapartida, se ela opera no sentido de
desconhecer seu objeto, não consegue alcançar a sua legitimidade enquanto
uma disciplina original e independente.
Aqui, a referência ao behaviorismo é inevitável. O movimento
behaviorista pretendeu interditar uma investigação da subjetividade na
psicologia, pois a experiência mental ou consciente não é jamais acessível a
uma observação pública. Os relatos introspectivos não eram controláveis,
pois, como incidiam sobre a experiência privada, os outros pesquisadores
não tinham condições de con rmá-los e nem de negá-los. De fato, o
behaviorismo trouxe para o primeiro plano o estudo do comportamento –
tido como uma manifestação do domínio humano passível de observação –
e, visando à objetividade do conhecimento, passa a encarar o homem como
submetido às leis do cálculo e da veri cação em conformidade com a
proposta positivista (SCHULTZ; SCHULTZ, 2001). Todavia, vale lembrar
que não tardaram a surgir críticas a esta escola, críticas estas que
reivindicavam a necessidade de uma retomada do campo da subjetividade
para uma melhor abordagem dos processos comportamentais.
Nesta perspectiva, acreditamos que tais impasses epistemológicos
não devem ser resolvidos mediante uma retirada do campo da subjetividade
dos domínios da psicologia, tal como realizou o behaviorismo. Trata-se,
antes, de considerar tais impasses como consequência do pensamento de
determinados autores que insistem em encarar a subjetividade como uma
entidade naturalizada. Assim, faz-se necessário um exame dos principais
pressupostos teóricos oferecidos por tais autores, com a nalidade de
avançar na discussão epistemológica.

A subjetividade naturalizada
São muitas as escolas que, ao longo da história da psicologia,
conceberam a subjetividade como uma instância naturalizada. Com efeito,
apesar das inúmeras críticas que esta concepção vem sofrendo ao longo dos
últimos anos, podemos a rmar que, mesmo nos dias atuais, ela ainda se
apresenta como dominante. Por uma subjetividade naturalizada,
entendemos certo modo de encarar o sujeito como se a ele correspondesse
uma determinada essência biológica ou psicológica tratando-se, portanto, de
um sujeito substancializado e constituído de antemão.
Aqui, a subjetividade é con gurada como uma realidade já dada, ora
portadora de uma interioridade, de uma estrutura, de uma mente ou de uma
consciência sobre as quais o saber psicológico se dirige. Este, por sua vez, é
encarregado de desvendar os processos psíquicos dos quais os sujeitos são –
de fato – detentores, visando à produção de conhecimento e à consequente
enunciação dos mecanismos, leis e pressupostos implicados em seu
funcionamento. Incluem-se aqui aqueles que creem na existência efetiva –
ainda que de maneira inextensa – de processos cognitivos, de mecanismos
conscientes ou inconscientes, de sentimentos, sensações, pensamentos etc.
Apesar das inúmeras diferenças entre estes autores, todos apresentam em
suas teorias uma racionalidade guiada pela busca de verdades
inquestionáveis sobre as subjetividades, o que implicaria na circunscrição de
modos padronizados de ser, pensar e experienciar.
Tomemos como exemplo a teoria de Wundt e seus estudos sobre a
experiência imediata. Segundo o autor, esta diz respeito ao aspecto subjetivo
das experiências, ou seja, às relações que o próprio sujeito possui com os
objetos experienciados. Em si, ela é considerada como complementar à
experiência mediata. Esta última remete aos objetos presentes na realidade
material analisados independentemente do sujeito que os experiencia.
Enquanto o conteúdo mediato aparece como objeto de estudo das ciências
da natureza, à psicologia caberia investigar os fenômenos presentes no
domínio da experiência imediata. Assim, não haveria uma distinção de
natureza entre o mundo externo e o mundo interior, mas apenas dois modos
diferentes de abordar o mesmo fenômeno. Neste sentido, a relação da
psicologia com as ciências da natureza é de complementaridade – e não de
oposição – na medida em que elas se preenchem por fornecer análises de
um mesmo dado, porém, de pontos de vista distintos (ARAÚJO, 2007).
De acordo com sua teoria, se a psicologia estuda os mesmos
fenômenos que as ciências naturais, seu método de investigação não pode se
distinguir do método delas. Por isto, Wundt lança mão do método
experimental para o estudo dos processos psíquicos, método este baseado
num rigoroso controle. Mediante tal estratégia, acreditava-se ser possível
descrever a estrutura e o funcionamento do sujeito de forma objetiva, de
modo que: 1) caberia ao observador a determinação de quando o processo é
induzido; 2) faz-se necessário o estado de atenção concentrada; 3) o
experimento tem de ser repetido por diversas vezes; 4) o controle
experimental deve ser baseado nas variações manipuladas dos estímulos. A
partir daí, a psicologia encontrava-se nas devidas condições de proceder a
uma série de análises da experiência subjetiva, com o intuito de enunciar os
dados elementares da consciência (SCHULTZ; SCHULTZ, 2001).
Quando dizemos que Wundt possuía uma concepção naturalizada
da subjetividade, é justamente por este afã de objetivizar o sujeito e,
também, pelo fato de ele considerar a consciência como uma organização
complexa composta por uma série de elementos, sejam eles sensações ou
sentimentos. Estes seriam agregados por um mecanismo de fusão que, a
partir da atividade volitiva, daria origem ao todo unitário da consciência
(ARAÚJO, 2007). Observa-se aqui, portanto, a consciência como um dado,
como um objeto a ser oferecido ao saber psicológico para que este
empreenda as análises necessárias para descobrir seus elementos básicos, tal
como ocorre no domínio da química.
Desta maneira, existia em sua teoria a pretensão de desvendar certa
estrutura elementar comum a todos os sujeitos, mesmo considerando que
estes podem se diferenciar em função dos processos volitivos próprios a
cada um. Aqui, a consciência e seus dados elementares apresentam-se como
objetivados, o que necessariamente fez com que seu sistema de pensamento
fosse confrontado com uma série de obstáculos de nível epistemológico. De
fato, não tardou para que o próprio Wundt percebesse as limitações de suas
tentativas de objetivar a subjetividade mediante o controle experimental.
Com efeito, mesmo em situações laboratoriais sucessivamente repetidas,
elementos iguais eram descritos de modos distintos pelo sujeito da
experiência. Ademais, sujeitos diferentes sempre relatavam de maneiras
igualmente diferentes os dados da experiência. Assim, surgiu, em sua teoria,
a necessidade de a subjetividade ser devidamente considerada, não podendo
mais ser eliminada mediante as sucessivas tentativas de objetivação. Foi
justamente por isto que ele se viu obrigado a criar outra modalidade de
psicologia – a psicologia dos povos – que seria complementar à psicologia
experimental, de modo a resgatar as variáveis subjetivas negadas por esta
última (GONÇALVEZ, 2009).
Os principais ecos da teoria de Wundt zeram-se sentir, de forma
ainda mais radical, no estruturalismo de Titchener. Este também pretendeu
estudar como se forma a nossa experiência mental. Para ele, a mente é uma
realidade distinta do mundo físico, sendo composta por características sui
generis: ela seria interna, subjetiva e inextensa, acessível apenas mediante a
observação introspectiva. O estudo da mente era também realizado pelo
método analítico, pois somente por meio da fragmentação nos seria
permitido veri car quais são os elementos que constituem um complexo e
de que forma eles se relacionam entre si. O procedimento analítico do
estruturalismo inspirava-se num modelo mecanicista do conhecimento
importado da física e da química que trata os objetos como máquinas cujas
partes se relacionam por associação (SCHULTZ; SCHULTZ, 2001).
Os processos de associação valorizados pelos estruturalistas diferem
do trabalho de fusão proposto por Wundt. Com efeito, ambos respondem à
questão de como os diversos elementos da consciência se agregam num todo
unitário. No entanto, o estruturalismo, ao destacar o mecanismo de
associação, considera o sujeito enquanto passivo na fundação dos complexos
psíquicos. Já Wundt, quando traz à tona o trabalho de fusão, se importa em
ressaltar a síntese criadora promovida pelo sujeito. Com ela, os complexos
psíquicos passam a apresentar determinadas características não
pertencentes a quaisquer dos elementos de base (ARAÚJO, 2007).
Desta maneira, percebemos que o estruturalismo – mesmo
considerando a mente como algo inextenso – ainda possui uma concepção
naturalizada da subjetividade. Isto se deve ao fato de Titchener encarar a
mente como algo interno, posto que somente acessível pelo método
introspectivo. De resto, o mesmo que foi ressaltado quanto à concepção de
subjetividade em Wundt, pode ser dito em respeito à visada estruturalista.
Com a ressalva de que esta última ainda é mais radical quanto à proposta de
objetivar o sujeito, justamente, por considerá-lo como passivo no trabalho
de organização dos complexos.
Com efeito, não tardou para que o estruturalismo viesse a sofrer
severas críticas, principalmente, pela psicologia da Gestalt, insatisfeita com a
orientação atomística da mente. Esta escola vai conceber a estrutura como
um dado imediatamente organizado, e não mais como um conjunto de
elementos dispersos que aprendemos gradualmente a associar. Enquanto no
estruturalismo os elementos são de nidos como alvo prévio à totalidade e
cuja existência é também independente dela, na psicologia da Gestalt não se
consideram os elementos mentais, pois o valor e a função das partes
dependem da totalidade. Justamente porque as características do todo
determinam as características das partes, não poderíamos jamais fragmentar
a Gestalt e descontextualizar suas partes. Assim, a análise titcheneriana do
psiquismo é, por esta escola, considerada como um procedimento
efetivamente condenável (GUILLAUME, 1966).
No entanto, apesar de empreender esta crítica à psicologia
estruturalista, a psicologia da Gestalt, a nosso ver, ainda se encontra
embasada dentro de uma concepção essencialista da subjetividade. Isto pode
ser depreendido a partir do valor por eles concedido à hipótese do
isomor smo psicofísico que, em última instância, preconiza uma estrutura
invariante aos fenômenos subjetivos. Ou seja, de acordo com o isomor smo
psicofísico, há uma espécie de identidade estrutural entre os fenômenos
siológicos e psicológicos (SCHULTZ; SCHULTZ, 2001), sendo o sistema
nervoso algo que se estrutura de maneira homogênea ao evento perceptivo.
Em se tratando, no modelo do isomor smo, de uma identidade estrutural
entre os domínios da experiência e o fenômeno psicológico, encontra-se
subentendido, na psicologia da Gestalt, uma visada essencialista da
subjetividade. Se, por um lado, eles não levam mais em consideração um
ponto de vista elementarista ou atomístico da mente, por outro, não
conseguem escapar a uma identidade estrutural comum a todas as
subjetividades. Nestes termos, encontra-se aqui, também, uma subjetividade
governada por uma invariante, detentora de uma estrutura padronizada e já
constituída, tal como observamos na teoria de Wundt e no estruturalismo de
Titchener.
A psicologia funcionalista também se construiu sobre uma
concepção naturalizada da subjetividade. O funcionalismo faz esforços para
pensar a realidade humana de nindo-a por sua natureza orgânica, razão
pela qual importará seus modelos da biologia e não mais da física e da
química. Para ele, um organismo é diferente de um mecanismo por possuir
propriedades que estão ausentes numa máquina, das quais se destaca a
capacidade de autorregulação, ou seja, a atividade do organismo de
modi car seu meio interno a m de compensar um desequilíbrio imposto
pelo ambiente. O ser vivo forma então um sistema capaz de manter uma
direção privilegiada fazendo frente às resistências impostas pelo meio
(CANGUILHEM, 1992).
Deste modo, o funcionalismo se contrapõe ao mecanicismo
proposto pela escola estruturalista na medida em que, aqui, o estudo da
mente e da consciência não se faz no sentido de decompô-las em seus
elementos básicos. Enfatizam-se, no funcionalismo, os processos e os efeitos
do trabalho da consciência, em vistas de realizar a nalidade de adaptação
do sujeito ao meio, proposta esta fortemente balizada por um cunho
darwinista. Com efeito, os modelos mecanicistas na psicologia vieram a
tratar o homem como uma máquina passiva cujo desempenho deve ser
otimizado. Já os modelos funcionalistas concebem o homem de um modo
mais ativo, por entenderem-no como um sistema que trabalha em prol da
sobrevivência.
Todavia, mesmo esta concepção mais ativa da subjetividade não está
isenta de críticas. Isto porque, ao estender o conceito de adaptação da
biologia para o campo social, o funcionalismo acaba propondo como
solução para todo problema humano uma transformação do indivíduo mais
do que uma alteração da própria estrutura social. Seguindo esta linha de
raciocínio, embora os funcionalistas concebam o homem de modo mais
dinâmico do que o faziam os mecanicistas, a atividade do homem é aqui
uma falsa atividade, pois serve, na verdade, à sua adequação às regras
sociais.
Assim, o conceito de adaptação subordina toda atividade humana a
um instrumento de ajustamento ao meio, transformando o homem em uma
simples ferramenta. Segundo Canguilhem (1973), não é mais o homem
quem julga o que é útil ou inútil, mas ele próprio torna-se uma ferramenta,
cujos comportamentos serão julgados como úteis ou inúteis pelo meio
social. Ainda de acordo com este autor, o psicólogo deve se perguntar sobre
as condições históricas a partir das quais seus serviços e técnicas se
tornaram aceitáveis. Ou seja, quando ele se apresenta como um especialista
capaz de avaliar os homens, estaria implícita uma convicção de
superioridade, como se ele fosse a boa consciência que dirige a ação
humana.
É, portanto, sobre este pano de fundo biologizante das teorias
funcionalistas que se desenvolve a concepção naturalizada da subjetividade
por eles proposta. Como ilustração, vejamos como James expõe as relações
entre os conceitos de hábito e de consciência. Para ele, o dinamismo próprio
às nalidades adaptativas conduziu à circunscrição do hábito como algo
que, de fato, diminui o cansaço do sujeito. Com efeito, o hábito tornaria os
movimentos mais simples e nos dispensaria de empregar uma parcela
considerável de atenção aos nossos atos e comportamentos. Em outros
termos, o autor expõe que se o organismo consegue relegar ao hábito uma
grande parte de suas atividades cotidianas, em contrapartida, conseguiria
reservar à consciência outras funções de igual ou maior importância. Neste
jogo, a consciência é concebida como um produto da evolução logenética
e, assim, se ela sobreviveu à seleção natural foi porque é dotada da utilidade
crucial de ajudar na promoção da adaptação do organismo ao meio. Desta
forma, a consciência é entendida como um órgão cuja nalidade é aumentar
nossas chances de sobrevivência, sendo ativada diante de situações de
impasse – que os hábitos não conseguem resolver – com o propósito de
selecionar a melhor possibilidade de ação para o sujeito (SCHULTZ;
SCHULTZ, 2001).
Portanto, é justamente por biologizar ao máximo o sujeito, chegando
ao ponto de considerar a consciência como um órgão, que a teoria de James
conduz a uma naturalização da subjetividade. Ademais, o destaque
concedido à nalidade adaptativa circunscreve uma subjetividade que
funciona conforme mecanismos, leis e pressupostos universalizantes. Trata-
se, em outros termos, da con guração de um modelo padronizado de agir e
de estar no mundo.
Claro está que esta concepção naturalizada da subjetividade
contrasta com aquela proposta pelo próprio James quando focaliza o caráter
uido do self. Aqui, podemos contemplar um esboço de uma concepção da
subjetividade como processo, tema da nossa próxima seção. Por agora, basta
adiantar que, quando James a rma que o self é caracterizado por uma
uidez, ele valoriza o aspecto processual e em constante mutação das
subjetividades. Ou seja, o self diria respeito apenas ao nome de uma posição,
sem limites preexistentes e que passa a ter uma existência e uma estrutura
somente quando vão se dando as suas relações e experiências com o meio
circundante (FERREIRA; GUTMAN, 2007).
Dando prosseguimento à análise dos autores que examinam a
subjetividade como uma instância naturalizada, passemos ao pensamento de
Piaget. Em sua teoria, é contemplado o mesmo princípio biologizante e
darwinista preconizado pela teoria de James. O suporte naturalizado da
subjetividade também aparece na medida em que, para Piaget, o sujeito
possui – de fato – determinadas estruturas cognitivas que devem ser
pensadas em sua função adaptativa. No entanto, ao contrário do
funcionalismo norte-americano, esta adaptação se realiza por meio de um
duplo movimento: a transformação dos esquemas a m de acomodarem os
novos dados provenientes do ambiente e a assimilação dos objetos à nossa
organização cognitiva prévia (COLL; MARTI, 2004).
Temos aí, portanto, não apenas a postulação da necessidade de o
sujeito transformar-se a m de se adequar a um objeto; vislumbra-se,
também, a possibilidade de uma alteração do objeto a m de se amoldar ao
sujeito. Assim, mediante este redimensionamento do conceito de adaptação,
o pensamento piagetiano pretende se desvencilhar de duas alternativas
limitadas que a tradição losó ca havia proposto a m de explicar o
conhecimento. De um lado, seria falsa a tese empirista de que a consciência
é uma tábula rasa porque supõe uma mente vazia, destituída de qualquer
ordem prévia. Por outro, o inatismo e o apriorismo falhariam, justamente,
por supor uma estrutura pré-formada, recusando qualquer papel importante
à experiência (PIAGET, 1970).
A concepção naturalizada da subjetividade proposta por Piaget
também é vislumbrada nas suas tentativas de fornecer uma gênese das
estruturas, tratando-as em termos de estágios universais do
desenvolvimento. Ou seja, tal como nos outros autores mencionados
anteriormente, existe, em sua teoria, a consideração de modelos
padronizados de ação e de pensamento para os sujeitos. Em linhas gerais, o
desenvolvimento cognitivo se inicia, de forma universal, no estágio
sensório-motor e termina com a aquisição das habilidades operacionais
formais que trazem consigo o raciocínio hipotético-dedutivo e o
pensamento proposicional e abstrato. Como etapas necessárias deste amplo
processo de desenvolvimento cognitivo, situam-se o período pré-
operacional e o operacional concreto caracterizado pelas ações descentradas
e reversíveis (COLL; MARTI, 2004). Com efeito, todos os sujeitos passariam
por tais etapas de desenvolvimento cognitivo com o propósito de chegar a
um mesmo m. Ademais, certa rigidez de Piaget em situar cada estágio do
desenvolvimento numa determinada faixa etária igualmente parece
conduzir à naturalização das subjetividades.
Em sua teoria, o motor do desenvolvimento é o processo de
equilibração: uma estrutura é, por ele, considerada em equilíbrio quando
consegue compensar as perturbações impostas pelo meio externo. Vemos aí
a clara a nidade entre a equilibração e a propriedade de autorregulação
característica dos seres vivos (FIGUEIREDO, 1991): o desenvolvimento se
processa rumo a níveis maiores de equilíbrio, em que o pensamento
consegue manter sua homeostase compensando os desequilíbrios impostos
pelo meio através de ações reversíveis. Neste contexto, a reversibilidade teria
dois sentidos: signi ca tanto a anulação de uma transformação pelo retorno
ao ponto de partida ou a compensação da transformação por meio de uma
outra que possa reparar os efeitos da primeira (FLAVELL, 1975).
Tal como foi destacado em referência ao pensamento de James, no
domínio próprio à psicanálise, uma concepção eminentemente naturalizada
da subjetividade se contrapõe a alguns elementos que conduzem a uma
visada processual da mesma. Nesta perspectiva, reconhece-se que a
principal contribuição de Freud (1995a) ao pensamento ocidental se deu a
partir de sua postulação do conceito de inconsciente. Com ele, ca
delimitada uma região no nosso aparelho psíquico na qual ocorrem
determinados processos dos quais não temos conhecimento. Circunscreve-
se, assim, a impossibilidade de se obter um conhecimento pleno sobre o
sujeito, por maiores que sejam os esforços terapêuticos de quem a ele se
dirige. Ou seja, o tratamento psicanalítico mais duradouro ou mesmo a
pretensão cienti cista mais abrangente estarão, desde o início, fadados ao
fracasso.
A concepção psicanalítica naturalizada da subjetividade encontra
seu espaço no pensamento freudiano quando o inconsciente é tratado de
forma substantivada, ainda que de maneira ideal. Teríamos aqui um sujeito,
de fato, dotado de desejos a serem realizados nos sonhos, chistes, atos falhos
e demais formações do inconsciente. Estes desejos, para serem satisfeitos,
travam uma luta incessante com as instâncias censoras que, por sua vez,
impõem ao material inconsciente certa dissimulação ou deformação para
que possam vir à tona de forma branda e aceitável.
Com efeito, toda esta teatralização do con ito psíquico conduz a um
ponto de vista substancializado da subjetividade, como se o sujeito fosse
portador de uma interioridade a ser revelada pelo procedimento analítico.
Ademais, ele também seria detentor de determinados processos conscientes
e inconscientes que se dinamizam nos incessantes con itos originados no
aparelho psíquico. Do mesmo modo, a postulação de um complexo de
Édipo universal (FREUD, 1995c) e de determinadas fases ou organizações
libidinais a serem necessariamente atravessadas pelo sujeito ao longo de sua
infância (FREUD, 1995b) também conduzem a uma con guração
naturalizada das subjetividades, padronizando-as em torno de tendências
comuns a todos.
Todavia, o desenvolvimento do pensamento freudiano trouxe
consigo algumas ferramentas que, se devidamente redimensionadas,
auxiliam tanto no propósito de desnaturalização da subjetividade quanto no
de concebê-la em nível processual. Nesta perspectiva, a partir da postulação
do conceito de Isso (FREUD, 1995d), o próprio conceito de inconsciente
passa a ser contemplado não mais de forma substantivada. Neste contexto, a
máxima “onde estava o isso, ali estará o eu” (FREUD, 1995e, p. 84) parece
remeter a um processo de subjetivação que se esboça a partir de algo da
ordem do indiferenciado – “isso” – e não mais dos con itos edipianos tidos
como universais. De acordo com esta visada, o sujeito não seria portador de
uma essência e, muito menos, constituído de antemão. Pelo contrário, ele
advém do puro caos pulsional e vai se organizando mediante sucessivos
processos de sínteses e ligações.3
Ainda no domínio da psicanálise, cabe destacar que, em seu retorno
à obra freudiana, Jacques Lacan buscou retirar a psicanálise de uma chave de
leitura naturalista. Aliando-se a referenciais classicamente refratários à
naturalização do sujeito, como a fenomenologia, o existencialismo e,
posteriormente, o estruturalismo (ZIZEK, 1999), Lacan ressaltou a
impossibilidade de tratar o sujeito no registro da pura objetividade. O
sujeito do inconsciente não seria uma realidade, passível de ser detectada
por uma observação qualquer. Por isso, não faria sentido tentar convencer
alguém, que fosse cético quanto à e cácia da psicanálise, de que o
inconsciente existe, pois não se pode fornecer deste uma prova
experimental. Quando o analista interpreta, a decifração do sentido só
produz efeitos de verdade no caso de o sujeito se dispor a ingressar no
dispositivo da transferência, assumindo que as falhas e as lacunas psíquicas
não ocorrem por acaso, que elas realizam um desejo, pelo qual o sujeito
aceitará responder. Ao defender que “o estatuto do inconsciente é ético, e
não ôntico” (LACAN, 1988, p. 37), Lacan situa a psicanálise, não como uma
disciplina preocupada com a comprovação do inconsciente como fenômeno
(ou seja, como algo pertencente ao registro ôntico), mas como uma ética em
que o sujeito se responsabiliza pelo desejo, por aquilo que ele queria mesmo
sem saber.
Assim como em determinadas passagens da obra freudiana,
podemos igualmente contemplar uma concepção eminentemente
desnaturalizada e processual da subjetividade na psicologia existencial-
humanista, na teoria de Vygotsky, na corrente contemporânea da psicologia
inspirada nos pensamentos de Foucault, Deleuze e Guattari e, ainda, na
corrente construtivista da psicologia social. Passemos, portanto, a uma
análise da concepção de subjetividade por eles valorizada.

A desnaturalização da subjetividade e os processos de


subjetivação
Fica claro que a concepção naturalizada da subjetividade analisada
anteriormente é uma consequência direta do próprio solo epistemológico,
referido às práticas disciplinares, que possibilitou a emergência da psicologia
cientí ca (FOUCAULT, 1998). Conforme vimos, a psicologia é considerada
como um saber de caráter eminentemente contingencial e que só pôde se
constituir enquanto tal quando determinadas mudanças nas relações de
poder trouxeram consigo a necessidade de uma produção de conhecimento
sobre o homem. Assim, nada mais natural que ele fosse tomado pela nova
ciência de modo objetalizado, como uma entidade, um dado de estudo sobre
o qual a psicologia se debruçaria. Também a separação, promovida pelas
práticas cientí cas modernas entre os polos da objetividade e da
subjetividade auxiliou no processo de naturalização deste último. Nesta
perspectiva, foi justamente pela psicologia tratar como algo da ordem do
natural ou do substancial aquilo que não o é de forma alguma, que surgiram
os diversos impasses epistemológicos destacados nas sessões anteriores. Isto
levou alguns autores, como Greco, a diagnosticar um paradoxo irredutível
que afeta as psicologias naturalistas. Conforme suas palavras, “a infelicidade
do psicólogo” é que ele “nunca tem certeza de que faz ciência. Se a faz,
nunca está certo de que seja psicologia” (GRECO apud BERNARD, 1974, p.
20).
De acordo com os principais críticos da psicologia naturalista, não
haveria nada no domínio próprio à subjetividade que conduzisse a sua
concepção naturalizada. Pelo contrário, a subjetividade não corresponde a
algo da ordem de uma essência do ser humano, como se ele fosse, desde
sempre, portador de uma interioridade. Por este viés, a subjetividade possui
uma dimensão contingencial na medida em que é uma construção histórica,
sendo as grandes transformações socioculturais ocorridas na modernidade,
o que promoveu o advento deste conceito. Suas origens remontam a uma
série de práticas sociais que encontraram lugar na modernidade e que
conduziram à separação dos domínios do público e do privado,
circunscrevendo este último como um espaço de cultivo da interioridade
por parte dos homens.
Segundo Figueiredo (1992), o advento do capitalismo e da ideologia
liberal foi o principal responsável pela separação entre as esferas do público
e do privado. Com eles, todos os homens passaram a ser concebidos como
livres e iguais, sendo o Estado incumbido de garantir os direitos e deveres de
cada um, de modo a solucionar as diferenças entre eles a partir de um ideal
de fraternidade. De acordo com o pensamento de Locke, o maior encargo da
ordem pública era o de garantir os espaços de privacidade de modo que,
dada uma determinada divergência, esta deveria ser sempre solucionada em
favor da liberdade e da privacidade dos homens. Assim, foi justamente por
valorizar o cultivo da privacidade que a sociedade inglesa ofereceu aos seus
cidadãos um conjunto de espaços, tais como jardins propícios a passeios e
meditações, pubs e cafés bastante oportunos para as conversas íntimas, além
dos clubes masculinos favoráveis aos encontros sigilosos. Igualmente, na
Alemanha, o romantismo veio a exaltar os sentimentos e a sensibilidade,
estimando uma espécie de voz interior da qual somos detentores e que nos
ensinaria a combater os percalços da vida pública. É, pois, neste contexto,
que nasceram as ideias de interioridade e de privacidade tão centrais na
conceituação da subjetividade.
Este breve apanhado histórico nos ensina que a subjetividade não
corresponde, de forma alguma, a uma essência do ser humano, tal como
pretendeu a psicologia naturalista, posto que ela é fruto de transformações
socioculturais que encontraram seus espaços num determinado momento
da nossa história. Longe de se con gurar como uma experiência
universalisante, ela é, pelo contrário, contemplada enquanto produto de
práticas discursivas que nos conduziram – e ainda nos conduzem – a nos
reconhecer enquanto sujeitos. Seguindo esta linha de raciocínio, são muitos
os autores da psicologia que criticam a visada naturalista da subjetividade.
Salvo as devidas diferenças em suas teorias, o ponto em comum recai sobre
uma problematização da subjetividade tratada enquanto uma entidade
propriamente dita e regida por leis e processos psíquicos universais.
Segundo eles, o sujeito não corresponde a uma substância de ordem
qualquer, já constituída de antemão e para sempre imutável.
É justamente neste sentido que se mostra a preferência pela
nomenclatura “processos de subjetivação” pois, com ela, ca delimitado que
um determinado modo de subjetivação emerge como efeito ou produto, seja
de uma prática discursiva, de processos identi catórios ou das próprias
experiências culturalmente circunscritas. Um processo de subjetivação diz
respeito a um modo de existência sempre contingente e provisório, instante
ou momento que se cristaliza numa maneira de agir, pensar e signi car. No
entanto, tidos enquanto atualização de um processo maior, os modos de
subjetivação sempre apontam para a mudança, abrindo-se, portanto, para a
possibilidade de um novo devir.
É neste contexto de problematização de uma visada essencialista da
subjetividade que a psicologia existencial-humanista adquire sua
importância. De fato, ela promove uma inversão de valores no campo da
psicologia por valorizar o domínio eminentemente existencial do sujeito, em
vez de se focalizar no que poderia ser considerado como sua essência. Trata-
se, aqui, de autores que encontram seu ponto de apoio fundamental no
pensamento losó co de Sartre (1997), segundo o qual, na ordem
propriamente humana, a existência precede à essência. Ou seja, quando a
região ontológica do “ser-para-si” é trazida para o primeiro plano é,
justamente, para indicar que a ordem do sentido nunca é dada a priori. Pelo
contrário, primeiro faz-se necessário existir para, só depois, pensar sobre
aquilo que se fez e vivenciou, visando a atribuição de sentido às suas
experiências. Desta forma, o ser do sujeito não é, de modo algum, anterior à
sua existência, mas sempre vai se fazendo e se reformulando ao longo do
processo de existência.
Outra crítica à psicologia naturalista aparece quando o movimento
humanista-existencial denuncia certo paradoxo na concepção naturalizada
da subjetividade, a saber: como seria possível tratar como objeto da ciência
aquele que seria, na verdade, a condição que torna a ciência possível? De
fato, isto implicaria num erro lógico, pois não se deve submeter a condição
àquilo mesmo que ela condiciona. Se é graças à razão que a atividade
cientí ca moderna tornou-se possível, como seria possível sujeitar a razão
àquilo mesmo que lhe cabe fundamentar? A psicologia naturalista aparece,
então, como um apagamento daquilo que a subjetividade possui de original
e especí co: o fato de nós não estarmos apenas submersos nas
circunstâncias, mas de sermos capazes de fazer um recuo perante o mundo a
m de julgá-lo, pensá-lo, e de, por isso mesmo, transformá-lo (MAY, 1967).
Assim, valendo-se de referências losó cas como Descartes, Kant,
Husserl e do existencialismo – que salvaguardaram para o sujeito um
estatuto de exceção em relação ao restante da natureza – esta vertente da
psicologia visa desenvolver um estudo que preserve a singularidade do
sujeito. Tal singularidade residiria em três dimensões interligadas: o poder
de orientar-se segundo ns (a liberdade), a possibilidade de responder por
seus atos (a responsabilidade) e a capacidade de julgar (a verdade). Não se
trata aqui de negar que haja um denominador comum ligando o homem aos
outros animais, mas de impor limites ao naturalismo, circunscrevendo
aquilo que o homem tem de próprio (FOUCAULT, 1999).
Nesta perspectiva, vale lembrar que, para a escola humanista-
existencial, a liberdade não é concebida num sentido absoluto, como se o
homem pudesse ser e fazer tudo o que quisesse. Trata-se da liberdade de um
ser que é histórico e que, portanto, está situado em certas coordenadas
espaciais e temporais, circunstâncias com as quais deve lidar. Esta situação
histórica não exerce também o papel de uma causa, cuja presença determina
obrigatoriamente certos efeitos. Pelo contrário, ela é, antes de mais nada,
uma condição. Neste contexto, a diferença entre causa e condição é que a
causa determina, ao passo que a condição, não (MILLER, 1988). O sentido
de uma condição é a priori indeterminado, só podendo emergir a partir de
um ato livre do sujeito, que concede valor ao que lhe acontece.
Apesar de defenderem a liberdade humana, teóricos ligados
sobretudo à psicologia humanista, como Carl Rogers e Abraham Maslow,
postulam a existência de uma tendência à autorrealização ou à
autoatualização, uma espécie de impulso inato que o homem teria para o
progresso e para o aperfeiçoamento de seus potenciais. O problema com a
suposição de tal tendência é que ela é difícil de ser conciliada com a
a rmação da liberdade humana, levando a importantes paradoxos. Se a
liberdade pode ser de nida como o poder de nos darmos nossos próprios
ns, não seria muito coerente dizer que é livre um indivíduo que se
encaminha para um m pré-determinado (mesmo que essa nalidade
represente o que é melhor para ele).
Ao tentar justi car por que os indivíduos terminam não realizando
plenamente seus potenciais, acabando por decair na existência inautêntica,
tais autores também são levados a impasses. Eles precisam reintroduzir algo
que inicialmente tinham banido: precisamente o papel determinante do
ambiente. Rogers, por exemplo, chegará a admitir que uma criança educada
num meio privador, em que os adultos não a estimam de modo
incondicional, tem grandes chances de vir a ser um adulto que não se
autorrealiza. Ou seja, parece tratar-se aqui de uma liberdade que pode ser
colocada em suspenso em algumas situações; a rmação estranha ao próprio
conceito de liberdade.
Dando prosseguimento à nossa argumentação, devemos destacar
que a ênfase no social enquanto constituinte de um modo de subjetivação
conduziu o pensamento de Vygotsky a uma desnaturalização da
subjetividade e à sua visada processual. Entre os principais pontos de sua
teoria, devemos mencionar a crítica severa à concepção do psiquismo como
uma entidade individual e interna. Com isto, ele se afasta do ponto de vista
naturalista da subjetividade que, como vimos, preconiza que o sujeito é, de
fato, detentor de certos processos mentais.
Para Vygotsky (1989), todo funcionamento psíquico tem sua origem
nas interações que o sujeito mantém com os outros. Ou seja, os grupos
socioculturais dos quais ele faz parte possuem modos organizados de
ordenação da realidade, em que todos os seus elementos estariam
carregados de signi cado. Trata-se, aqui, de formas de pensamento, de
percepção e de organização da realidade fornecidas pela cultura a ser
dotadas de um sentido singular por parte do sujeito. Neste contexto, a
transição do domínio social para o plano subjetivo se faz por meio dos
trabalhos de interiorização e de apropriação. Estes não resultariam numa
cópia ou mera transferência do sentido socialmente aceito para o campo
subjetivo. Pelo contrário, os mecanismos de interiorização e de apropriação
implicam mudanças eminentemente qualitativas, de modo a ser a rmado
que o sujeito reconstrói aquilo que recebe da cultura a partir das suas
vivências anteriores.
É aqui que entram em cena as categorias de sentido e de signi cância
tão fortemente valorizadas por Vygotsky. Conforme as palavras de Rey
(2004):
O sentido aparece assim como uma fonte essencial do processo de
subjetivação e é ele que de ne o que o sujeito experimenta
psicologicamente. [...] O sentido articula de forma especí ca o mundo
psicológico historicamente con gurado do sujeito com a experiência de
um evento atual. Nesta acepção, o sentido acontece em um elemento
central de integração dialética entre o histórico e o atual na
con guração da psique. (REY, 2004, p. 49-50)

De acordo com essa passagem, percebemos que a representação do


psiquismo, como um sistema de sentidos que encontra sua gênese nos
encontros singulares do sujeito com uma experiência cultural, parece
conduzir a uma desnaturalização da subjetividade. Ou seja, se o sentido
aparece como a unidade constitutiva da subjetividade, esta não merece mais
ser contemplada enquanto uma instância, substância ou entidade qualquer.
Ademais, se são valorizadas as diversas e constantes atividades sobre o social
como propiciadoras de um determinado modo de subjetivação, este também
passa a ser encarado em nível processual. Em outros termos, trata-se de
a rmar a possibilidade da emergência de diferentes processos de
subjetivação nos mais variados espaços nos quais eles são produzidos ao
longo da história de vida subjetiva (REY, 2004).
Assim, na teoria vygotskiana, a subjetividade possui uma dimensão
eminentemente histórica. Com efeito, a existência dos múltiplos sentidos
que o sujeito fornece às suas experiências – sentidos estes que variam e se
transformam – impede a formulação de uma concepção estrutural ou
essencialista do sujeito. Pelo contrário, este deve ser contemplado enquanto
processo, sendo a história subjetiva a própria história de organização e das
sucessivas reorganizações dos sentidos produzidos em seus encontros com
os outros. Com isto, ca delimitada a di culdade de pensarmos a
subjetividade a partir de seus a prioris, como se ao sujeito correspondesse
uma forma de organização fechada e imune a possíveis transformações e
rearranjos. Cai também por terra toda e qualquer pretensão universalizante,
con gurada a partir de formas padronizadas de ser e de estar no mundo.
Por m, vale também destacar a desnaturalização da subjetividade
com a sua consequente concepção processual que é depreendida do trabalho
de uma série de psicólogos contemporâneos que encontram seus principais
apoios nos pensamentos de Foucault, Deleuze e Guattari. O ponto de
partida comum a estes trabalhos em psicologia clínica, social e institucional,
entre outros, é a constatação de que a análise foucaultiana acerca da
emergência da psicologia no contexto das práticas disciplinares tem como
consequência uma desnaturalização da subjetividade, ao contrário do que
preconizavam os autores mencionados na seção anterior. Ou seja, a
subjetividade aparentemente naturalizada sobre a qual se volta o saber
psicológico não corresponderia a uma entidade. Pelo contrário, ela diria
respeito a um produto ou construção do próprio modo de intervenção da
psicologia que se faz no contexto clínico ou das instituições sociais.
Com efeito, segundo a argumentação de Foucault (1998), a partir do
estabelecimento de algumas sanções normalizadoras e das técnicas de
exame proeminentes nas práticas disciplinares, uma determinada
subjetividade é constituída pela psicologia. Neste sentido, os trabalhos de
comparação, de diferenciação, de hierarquização e de exclusão dos sujeitos
próprios ao contexto disciplinar, ao mesmo tempo que obrigam à
homogeneidade, também individualizariam os homens. Com isto, os
diagnosticados como desviantes seriam tomados como objetos de avaliação,
entidades a serem estudadas e analisadas pelo saber psicológico. Trata-se
aqui dos alunos-problema, dos trabalhadores desajustados, dos doentes
mentais, dos adolescentes rebeldes, entre tantas outras categorias bastante
conhecidas no campo da psicologia.
Ainda com base na argumentação foucaultiana, são muitas as
questões que devem ser levantadas: a psicologia, ao diagnosticar, classi car e
hierarquizar as subjetividades desta forma, estaria descobrindo uma verdade
sobre o sujeito ou, pelo contrário, estaria ela própria produzindo estas
verdades subjetivas? Em qual medida a subjetividade corresponde a uma
entidade naturalizada e em qual medida não é o próprio saber psicológico
que a naturaliza pelos conhecidos mecanismos de objetivação? Em suma, o
sujeito psicológico possui uma essência, uma natureza que lhe é intrínseca
ou é, ele mesmo, produzido pelo discurso que sobre ele se volta?
De fato, toda a teorização de Foucault caminha no sentido de
reconhecer que a subjetividade é fruto de uma rede de agenciamento de
discursos. Neste aspecto, as práticas psicológicas naturalizantes devem ser
fortemente criticadas na medida em que elas operam a m de naturalizar
aquilo que, na verdade, corresponde a uma construção discursiva. Desse
modo, todas as verdades e certezas produzidas pela psicologia sobre as
subjetividades devem ser necessariamente repensadas, relativizadas e
desestabilizadas. O mesmo deve ocorrer com os princípios invariantes e
mais as categorias universais, posto que, por este viés, não haveria um
sujeito já dado ou preexistente sobre o qual a psicologia se dirige.
Assim, tida enquanto uma construção discursiva, a subjetividade é
concebida em nível processual. Com efeito, o sujeito se transforma a partir
dos mais variados discursos com os quais se defronta ao longo de sua
existência. Abre-se, portanto, espaço para a circunscrição de uma
subjetividade em devir, em processo de constante mudança e que, desta
maneira, empreende singularizações diversas. Mais do que uma essência
própria ao sujeito, valoriza-se sua história, bem como os discursos e
acontecimentos que o fazem se con gurar de um determinado modo e não
de outro, deixando sempre em aberto a possibilidade de não se ser mais
aquilo que se é neste instante.
Neste contexto, Deleuze (1990) a rma que enquanto o termo
“sujeito” se refere a uma entidade já dada – conforme já mencionamos –, a
utilização da nomenclatura “processos de subjetivação” vem questionar os
dispositivos e agenciamentos que respondem pelas condições de emergência
de um modo de subjetivação. Assim, quando o sujeito é contemplado em
nível processual, trata-se, mais do que objetivá-lo, de tentar remeter-se ao
próprio plano de agenciamentos no qual ocorre a construção de si: as
próprias práticas discursivas, os dispositivos maquínicos, as mais variadas
instituições, além dos processos identi catórios (GUATTARI, 1992). Vale
lembrar que a relação do sujeito com estes dispositivos pode ser analisada
por um duplo aspecto: por um lado, o sujeito pode estabelecer uma relação
alienante com aquilo que recebe, tornando-se modelado e serializado; por
outro, é vislumbrado o espaço para o estabelecimento de um processo de
criação e de expressão, de modo a tornar viável a abertura para o novo
(DELEUZE, 1992).
Alguns psicólogos sociais se inspiram nas obras de uma série de
autores considerados como pós-modernos, fundando um campo de estudos
novo denominado construcionismo. Conforme esse movimento, a pós-
modernidade impõe desa os às disciplinas que investigam o sujeito,
exigindo o ultrapassamento das concepções modernas, consideradas agora
como muito restritas. Na pós-modernidade teria ocorrido uma dissolução
do que Lyotard chama de “as grandes metanarrativas” (LYOTARD, 2000),
fornecidas pela autoridade e pela tradição, que permitiam ao sujeito uma
chave de leitura uni cada permitindo decifrar os acontecimentos do mundo.
Os grandes códigos simbólicos de outrora, amparados em instituições
sólidas como a Igreja, a família, a pátria etc., teriam sofrido um processo de
corrosão que os leva a sofrer a concorrência direta de uma pluralidade de
discursos. Tais discursos seriam não só diferentes como muitas vezes
também antagônicos, colocando em xeque as tradicionais concepções sobre
a nossa identidade.
Nesse cenário pós-moderno, Hall (2006) localiza o declínio de duas
concepções da identidade. A primeira, de origem losó ca, considerava-a
algo xo, estável e imutável, que permanecia a mesma ao longo da vida e da
história dos sujeitos, sendo qualquer variação tomada como um acidente
que não contraria a essência. A segunda, de origem sociológica, a rmava
uma identidade cuja gênese é social e histórica, sendo formada na interação
do sujeito com os outros. O sujeito aqui possuiria uma con guração estável,
que não chega a se constituir como uma essência – já que pode modi car-se
– mas que oferece uma regularidade, ainda que provisória. Nas palavras de
Hall, na visão sociológica sobre a identidade “o sujeito ainda tem um núcleo
ou uma essência interior que é o ‘eu real’, mas este é formado e modi cado
num diálogo contínuo com os mundos culturais exteriores e as identidades
que esses mundos oferecem” (HALL, 2006, p. 11). A regularidade é o que
torna possível esperarmos alguma predizibilidade ou coerência das condutas
dos sujeitos.
Serão precisamente esses dois conceitos de identidade que se verão
abalados na pós-modernidade, exigindo por isso mesmo novos aportes
teóricos e metodológicos para o estudo do sujeito. Não haveria mais uma
continuidade, uma coerência ou estabilidade, nem mesmo transitória,
permitindo circunscrever um eu unitário. Sob a pressão de discursos, não só
diferentes como muitas vezes antagônicos, o sujeito se veria lançado num
uxo incessante. Conforme a passagem a seguir:
Dentro de nós há identidades contraditórias, de tal modo que nossas
identi cações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que
temos uma identidade uni cada desde o nascimento até a morte é
apenas porque construímos uma cômoda história sobre nós mesmos ou
uma confortadora “narrativa do eu”. (HALL, 2006, p. 13)

Além de estar em sintonia com essa temática da morte do sujeito


declarada pela pós-modernidade, o construcionismo exibe também
a nidades com a virada linguística experimentada por grande parte das
ciências sociais a partir do estruturalismo e do pós-estruturalismo, o que
preconiza a importância do discurso como produtor de efeitos de sentido. A
linguagem não teria mais uma função representativa, já que não lhe caberia
descrever a realidade ou representar as coisas de modo adequado. A
linguagem não é um veículo neutro e transparente, portadora de
signi cações que lhe preexistem. A linguagem constrói e constitui o mundo,
ela tem um caráter fundacional, sendo, por isso mesmo, elevada ao status de
estrutura organizadora da realidade.
Tomando emprestado um conceito de Austin, diríamos que a função
da linguagem é sobretudo performativa (AUSTIN, 1975), produzindo os
indivíduos, fabricando-os para que venham a ser de determinada maneira,
transformando-os em algo que antes não eram, empurrando-os numa certa
direção. Por exemplo, ao se falar do lugar da mulher na nossa sociedade,
deve-se enfatizar não um papel estático prévio que ela está predestinada a
ocupar (BERNARDES; HOENISCH, 2003, p. 113), mas sim o modo como o
discurso fabrica o ser-mulher, construindo uma cção a que as mulheres
passam a dar crédito.
Para os construcionistas, o discurso é produtor de signi cações,
engendrando pontos de vista sobre o mundo que constituem
simultaneamente a posição do sujeito no mundo. A cultura “recruta os
indivíduos a ocuparem determinadas posições, a se identi carem com
determinados discursos, tomando-os como verdades, sujeitando-se a
determinadas signi cações que os tornam o que se é” (BERNARDES;
HOENISCH, 2003, p. 113). O sujeito é interpelado por certo discurso, sendo
convocado a assumir uma determinada perspectiva como sendo a sua. Esse
conceito de interpelação é tributário de Althusser (1996) e diz respeito a
uma operação em que o indivíduo é recrutado por certa ideologia,
consequentemente submetendo-se às suas regras e ingressando em seu
regime de funcionamento.
Há inegáveis diferenças entre o construcionismo e a psicologia
histórico-cultural. Para o construcionismo, o sentido emerge dos contextos,
das conversações ou dos jogos de linguagem; já numa perspectiva sócio-
histórica haveria algo que não é inteiramente construído nas narrativas e
práticas discursivas aqui-e-agora e que também participa do sentido. Esse “a
mais” resultaria de uma contribuição do sujeito, que por essa razão teria
salvaguardada sua capacidade generativa (REY, 2003). Isso que o sujeito
acrescenta de “seu” diria respeito ao seu passado, à história de todas as
outras interações que estabeleceu com outras pessoas. Amparando-se em
Vygotsky, Rey se opõe ao construcionismo, a rmando que “não são os jogos
de linguagem que determinam o sentido, mas sim o que aparece em nossa
consciência, procedente do domínio do psicológico com o uso de uma
palavra.” (REY, 2003, p. 129). Esses fatores psicológicos resultariam de
outros espaços de experiência pelos quais o sujeito circulou ao longo de sua
história, do conjunto de relações com os outros que ele estabeleceu ao longo
da vida.
Embora seja importante reconhecer as diferenças entre estas
correntes, buscou-se aqui destacar um plano comum a ambas, ressaltando-
se sua visão crítica em relação à naturalização do sujeito e sua pertinência à
concepção processual da subjetividade. Claro está que todas as vertentes
processuais demandam a fundação de uma nova epistemologia para a
psicologia, posto que os estudos tradicionais acerca da sua cienti cidade
sempre se basearam na possibilidade ou não de se objetivar o sujeito. Como,
aqui, o sujeito não se con gura como um dado a priori, mas como algo
produzido por práticas discursivas, sociais e culturais, os próprios alicerces
das pesquisas epistemológicas tradicionais encontram-se problematizados.
Neste contexto, coloca-se a indagação de, em vez de objetivar o sujeito,
privilegiar-se, nos estudos epistemológicos, a história e experiências deste,
bem como o seu encontro com práticas que o zeram ser desta e não
daquela maneira. Tudo isto indica que o debate está longe de ser concluído,
sendo justamente este o fator que justi ca as inúmeras pesquisas no âmbito
universitário na atualidade.

Referências
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de estado. In: ZIZEK, S.
et al. (Org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. p.
105-152. Original publicado em 1970.
ARAÚJO, S. F. Wilhelm Wundt e o estudo da experiência imediata. In:
JACÓ-VILELA, A.; FERREIRA, A.; PORTUGAL, F. (Org.). História da
psicologia: rumos e percursos. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2007. p. 93-102.
AUSTIN, J. L. How to do things with words. Oxford: Oxford University Press,
1975.
BERNARD, M. A psicologia. In: CHATÊLET, F. et al. (Org.). A loso a das
ciências sociais. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1974. p. 17-98.
BERNARDES, A. G.; HOENISCH, J. C. D. Subjetividade e identidades:
possibilidades de interlocução da Psicologia Social com os estudos culturais.
In: GUARESCHI, N. M. DE F.; BRUSCHI, M. E. (Ed.). Psicologia social nos
estudos culturais: perspectivas e desa os para uma nova psicologia social.
Petrópolis: Vozes, 2003.
CANGUILHEM, G. O que é a psicologia? Tempo Brasileiro, n. 30-31, 1973.
_______. Machine et organisme. In: CANGUILHEM, G. Connaissance de la
vie. Paris: Vrin, 1992. p. 121-127. Original publicado em 1946.
COLL, C.; MARTI, E. Aprendizagem e desenvolvimento: a concepção
genético-cognitiva da aprendizagem. In: COLL, C. et al. (Org.).
Desenvolvimento psicológico e educação. Porto Alegre: Artmed, 2004. vol. 2,
p. 45-68.
DELEUZE, G. Foucault. Lisboa: Veja, 1990.
_______. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
ERTHAL, T. C. S. A abordagem existencial-humanista na psicoterapia.
Jornal Brasileiro de Psiquiatria, v. 35, n. 2, p. 83-90, mar./abr. 1986.
FERREIRA, A.; GUTMAN, G. O funcionalismo em seus primórdios: a
psicologia a serviço da adaptação. In: JACÓ-VILELA, A.; FERREIRA, A.;
PORTUGAL, F. (Org.). História da psicologia: rumos e percursos. Rio de
Janeiro: Nau Ed., 2007. p. 121-140.
FIGUEIREDO, L. C. Matrizes do pensamento psicológico. Petrópolis: Vozes,
1991.
_______. A invenção do psicológico: quatro séculos de subjetivação. São
Paulo: Escuta, 1992.
FLAVELL, J. H. A psicologia do desenvolvimento de Jean Piaget. São Paulo:
Pioneira, 1975.
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: M. Fontes, 1981.
Original publicado em 1966.
_______. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1998. Original publicado em
1975.
_______. A psicologia de 1850 a 1950. In: _______. Problematização do
sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p.
122-139. (Ditos e escritos, 1). Original publicado em 1957.
FREUD, S. A interpretação de sonhos. In: _______. Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1995a. vol. 4-5, p. 1-659. Original publicado em 1900.
_______. Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: _______. Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, 1995b. vol. 7, p. 129-249. Original publicado em 1905.
_______. Totem e tabu. In: _______. Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1995c. vol.
13, p. 17-191. Original publicado em 1913.
_______. O eu e o isso. In: _______. Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1995d. vol.
19, p. 23-87. Original publicado em 1923.
_______. A dissecção da personalidade psíquica. _______. Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1995e. vol. 22, p. 63-84. Original publicado em 1933.
GONÇALVEZ, M. A psicologia como ciência do sujeito e da subjetividade: a
historicidade como noção básica. In: BOCK, A. (Org.). Psicologia sócio-
histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. São Paulo: Cortez, 2009. p.
37-51.
GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro:
Editora 34, 1992.
GUILLAUME, P. Psicologia da forma. São Paulo: Companhia Editorial
Nacional, 1966.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,
2006.
LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: J.
Zahar, 1988. Original publicado em 1964.
_______. A coisa freudiana. In: _______. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar,
1998. p. 402-436. Original publicado em 1955.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: J.
Olympio, 2000.
MAY, R. (1967). Orígenes y signi cado del movimiento existencial en
Psicologia. In: _______; ANGEL, E.; ELLENBERGER, H. F. (Ed.).
Existencia: nueva dimensión en psiquiatría e psicología. Madri: Editorial
Gredos, 1967. p. 19-57.
MILLER, J. A. Cause et consentement. Seminário Inédito, lição de 15 de
junho de 1988.
PIAGET, J. O nascimento da inteligência na criança. Rio de Janeiro: J. Zahar,
1970.
REY, F. G. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. São
Paulo: omson, 2003.
_______. O social na psicologia e a psicologia social: a emergência do sujeito.
Petrópolis: Vozes, 2004.
SARTRE, J. P. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica.
Petrópolis: Vozes, 1997.
SCHULTZ, D.; SCHULTZ, S. E. História da psicologia moderna. São Paulo:
Cultrix, 2001.
VYGOTSKY, L. Pensamento e linguagem. São Paulo: M. Fontes, 1989.
ZIZEK, S. Suversions du sujet: psychanalyse, philosophie, politique. Rennes:
Presses Universitaires de Rennes, 1999.

1 ProfessoraAdjunta do Departamento de Psicologia e Psicanálise da Universidade Estadual de


Londrina. Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2 Professor Adjunto do Departamento de Fundamentos das Ciências e Sociedade da Universidade
Federal Fluminense, Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro com
estágio de doutorado sanduíche na Universidade de Paris VII.
3 Ao longo da história do pensamento psicanalítico, foi bastante comentado um erro de tradução da
frase original em alemão wo Es war, soll Ich werden que, de acordo com Lacan (1998) seria mais bem
traduzido por “onde Isso estava, Eu deve advir”, sem os artigos de nidos que precedem os termos
“Isso” e “Eu”. Neste contexto, são vários os apontamentos que levam à concepção de que Freud não
estava se referindo a elementos topográ cos como “o Isso” e “o Eu”, mas sim, à emergência de
diferentes modos de ser do sujeito a partir de uma ordem indeterminada denominada “Isso”.
Infância, desenvolvimento e escola: a ordem
dos fatores altera o produto subjetivo
Arthur Arruda Leal Ferreira1

Uma breve discussão historiográfica


Quando tentamos estabelecer uma história de certas áreas do
conhecimento, tais como a psicologia do desenvolvimento e a psicologia
escolar, somos tentados a adotar certo tipo de narrativa evolucionista. Nesta,
supõe-se um desvelamento lento e contínuo de uma essência própria e até
então ignorada da infância, seguida da constituição de um saber legítimo, a
psicologia (com suas especialidades: psicologia da infância e psicologia do
desenvolvimento) e o seu encaminhamento até o seu lugar natural, a escola
(coroada pelo saber necessário que é a psicologia escolar). Se problemas,
con itos e obstáculos se impõem nesta história, estes são desvios
contingentes de uma marcha necessária e progressiva na direção da verdade.
Calçada na existência de um objeto natural e universal que funciona como
lastro desta história: a infância. Este objeto permaneceria o mesmo ao longo
do tempo histórico (variando apenas no tempo evolutivo das espécies); o
que variaria seriam apenas os discursos e as práticas sociais a serem
resgatados pelas certezas do saber cientí co. Não haveria outra forma de se
fazer esta história? Que outros tipos de relatos históricos poderíamos tentar
estabelecer?
Em que pese a importação deste modelo histórico do campo das
ciências naturais, o sentido deste tipo de relato é, em geral, o de legitimar os
saberes e as instituições atualmente existentes. Os historiadores, contudo,
operam o discurso histórico com outras nalidades e conceitos. A busca de
compreensão do presente, sem rei cá-lo (LE GOFF, 1993), ou mesmo o seu
estranhamento (FOUCAULT, 1995, p. 256) são outras nalidades possíveis.
De igual modo, conceitos que nos parecem óbvios como evolução,
continuidade ou mesmo objeto natural são alvos de problematizações por
parte de muitas correntes históricas, como a atual História das Ciências (de
Gaston Bachelard, Georges Canguilhem e omas Kuhn), a Nova História
(de Lucien Febvre, Marc Bloch, Ferdinand Braudel, Georges Duby e Jacques
Le Go ) e as arqueologias e genealogias foucaultianas.
No contexto destas correntes, a história parte sempre do presente, de
um problema contemporâneo que lança os historiadores num jogo
interpretativo para com os atores do passado, atores estes entendidos como
potencialmente portadores de formas de vida distintas das nossas atuais
(postura esta que aproximaria os historiadores dos antropólogos). Ao
contrário dos testemunhos diretos, os historiadores contariam apenas com
indícios e registros que serviriam, não como provas últimas, mas
“monumentos” a serem interpretados. Estas histórias nada mais teriam de
universal; dadas as diversas questões passíveis de serem lançadas, inúmeros
são os objetos possíveis de serem historiados (sexualidade, loucura, morte,
medo, vida cotidiana e até mesmo a infância). Cada qual com seu ritmo, sua
temporalidade e seus períodos, no diálogo interdisciplinar com os mais
diversos saberes (demogra a, medicina, geogra a etc.). Tais histórias não
teriam mais os sinais da continuidade e da evolução; no lugar destas noções
impõem-se as de acontecimento e ruptura. A importância desta para
Foucault (1972, p. 10) é tal que ela se con guraria como o próprio a priori
do discurso histórico. Essa marca de radical diferença entre o presente e o
passado chega até o ponto de se problematizar a própria existência constante
dos objetos históricos. Estes não teriam uma origem atemporal, mas seriam
provenientes de uma irrupção, gestada por uma multiplicidade de condições
aleatórias (FOUCAULT, 1981). Esta condição forneceria aos objetos
históricos uma forma de existência marcada pela raridade (VEYNE, 1980):
assim como eles vieram a se con gurar, podem vir a se dissolver “como um
rosto de areia à beira do mar” (FOUCAULT, 1966, p. 502).2
Como seria uma história dos saberes sobre a infância dentro deste
novo quadrante histórico? Pensar numa história da psicologia do
desenvolvimento renovada é antes de tudo romper com os relatos heroicos
em que se suporiam o desvelamento de uma essência original e até então
ignorada da infância e seu encaminhamento até seu lugar natural, a escola.
Isto porque não contaríamos mais o lastro do objeto natural, a infância e seu
suposto desvelamento progressivo nos saberes e instituições atuais. Apenas a
diferença radical entre o presente e o passado, dado na emergência de um
objeto raro: a infância e seus modos de subjetivação. No caso, isto nos
conduziria a uma tese cuja equação histórica a ser evocada aqui é inversa: da
invenção da escola, produz-se uma psicologia do desenvolvimento que cria
uma certa experiência subjetiva: a infância. Nosso guia-mestre nessa história
será Philippe Ariès em sua clássica História Social da Criança e da Família
(1979). Mas igualmente será utilizada a genealogia do poder foucaultiana,
notadamente no que tange à história da governamentalidade ocidental
(FOUCAULT, 2006, 2007).

Quando a infância passou a existir


Esta história da infância começa no seu grau zero, na sua ausência,
tal como ocorre na baixa Idade Média. Pode-se observar não apenas a sua
ausência nas representações pictóricas, como também qualquer esforço de
segregar o seu mundo da vida dos adultos, seja na vida sexual (esta não
consistia em algo a ser oculto dos infantes), no espaço da casa (não havia o
“quarto das crianças” como espaço preservado), no dormitório (a maior
parte das vezes elas dormiam com os adultos), na literatura (as fábulas não
eram propriamente infantis bem como se podia alfabetizar com clássicos,
como os diálogos platônicos), na pedagogia (as escolas livres não
segregavam alunos por turmas de idades, nem favoreciam o esquema de
internato ou castigos), no trabalho (era muito comum a alternativa
pedagógica de se mandar um jovem realizar seu aprendizado, servindo em
casas alheias; daí a origem do termo garçon), nas guerras (os exércitos não
possuíam limite de idade, característica presente até o século passado, e
ainda presente em certas milícias guerrilheiras). Ainda que muitas destas
características ram a nossa sensibilidade atual, elas são marcas de muitos
grupos ainda existentes (mesmo os meninos de rua, como uma rede social
no interior da nossa) e provas da possibilidade de um mundo sem infância,
sem escola e sem psicologia.
Para Ariès (1979) a infância começa a se segregar como personagem
e sentimento (a “paparicação”) a partir do século XVII, graças a um duplo
acontecimento: 1) a diminuição da mortalidade infantil e a possibilidade de
apego, restrita até então, devido às altas taxas de mortalidade na Idade
Média; 2) o surgimento dos padres reformadores, portadores de uma nova
moral baseada na necessidade de preservação da inocência e racionalidade
supostas nesta fase da vida. Mas, para além das hipóteses levantadas por
Ariès, devemos destacar o surgimento de novas relações de poder3 e de
modos de governo, conforme sugere Foucault.
No caso, destaca-se o surgimento de uma nova tecnologia de poder,
o biopoder, devotado à gerência de indivíduos e populações. Ele seria
composto de duas vertentes: a disciplina (ou anátomo-política) e a
biopolítica. A primeira, surgida no século XVII em algumas instituições
fechadas como escolas, casernas e hospitais, atuaria individualizando e
singularizando corpos por meio de técnicas de exame. A segunda, surgida
em meados do século XVIII, atuaria numa escala maior, singularizando
grandes populações por meio de modos de registro coletivos, como a
estatística. Estas novas formas de poder superam as limitações de uma
forma de poder mais antigo, o soberano, calcado no uso da lei, e operando
de forma intensiva desde o século XIII com o surgimento dos Estados
modernos. O poder soberano apresentaria, contudo, alguns inconvenientes:
mostra-se descontínuo (a punição é apenas esporádica e de caráter
exemplar), com malhas largas (por onde operaram o contrabando e a
pirataria), oneroso (por exemplo, freando o uxo econômico mediante
impostos) e rígido (na interpretação cabal da lei).
Paralelo a estas transformações no modo de poder, instala-se uma
mutação nos modos de governo estatal. A partir do século XVI,
recuperando certas formas pastorais do cristianismo primitivo, os Estados
modernos, pela primeira vez, estabelecem a população como seu alvo (não
mais a guerra ou o comércio). Tal mudança, registrável em Manuais de
Governo como os de Guillaume de la Perrière ou de Palazzo, aponta para
uma nova Racionalidade (a Razão de Estado, devotada à re exão sobre a
natureza e as funções do Estado) e um novo conjunto de dispositivos (o
Estado de Polícia apto a gerir a segurança, a moral, a religiosidade, a
circulação de bens etc.), devotados a aumentar a força interna dos Estados
pelo cuidado com a população. De um modo ou de outro, trata-se de uma
con guração ao mesmo tempo biopolítica e disciplinar do Estado.
Como estas transformações conspiram para o surgimento da
infância? Por meio de diversos dispositivos de várias con gurações. No
plano disciplinar (anátomo-político), o esforço dos padres moralistas,
destacado por Ariès, conduz ao surgimento da escola em forma de
internato, enquanto quarentena destinada à preservação da poluição
suscitada pelo convívio com o mundo adulto. Supondo a inversa razão entre
idade por um lado, e inocência e racionalidade moral por outro, instituem-
se classes diferenciadas por idade, instalando-se o castigo como correção de
qualquer desvio da pureza infantil, agora intensamente examinada. Inicia-se
neste período o rme laço entre instituições religiosas e pedagogia, visando
à assepsia moral, vínculo ainda muito presente aqui no Brasil (tal como
revela o enorme número de escolas de base confessional ainda presentes).
Paralelamente a este movimento, num plano biopolítico, a família
começa a se nuclearizar, se diferenciar de uma massa social uniforme. Ela se
transforma de uma instituição condutora de linhagens de parentesco para o
espaço de gestação de sentimentos ternos entre seus membros; nasce o que
Ariès designa por “família sentimento”. Isto não se deve apenas a um
processo interno à família, proporcionado pelo aumento na taxa de
natalidade como supõe o autor, mas também a um investimento ativo do
próprio Estado de polícia e de grupamentos médicos. É deste modo que a
vida interna da família passa a ser medicalizada e examinada, contando com
um novo conjunto de instruções para os pais. Um bom exemplo destas
transformações é a campanha antimasturbação, tomada ao longo do século
XVIII como epidemia apta a gerar os mais diversos males (FOUCAULT,
2001, aula de 5 de março de 1975). Estas transformações biopolíticas se
re etem na própria con guração arquitetônica das casas. De um espaço
anódino na alta Idade Média, em que os cômodos não eram diferenciados e
os móveis realmente móveis, deslocando-se conforme a atividade dos
usuários, a casa começa a ganhar compartimentos bem determinados. De
igual modo, a mescla indistinta de vida privada (lazer – trabalho – ensino)
operadas na casa medieval, começa igualmente a se segregar, restando
somente a primeira função em seu interior. Neste momento, surgem, em
conjunto, uma primeira experiência de infância (ligada ao sentimento de
paparicação e concebida como racional e inocente), a família burguesa
(marcada pelo sentimento e não mais apenas um local de transmissão de
linhagem), a casa (compartimentada em espaços a m de velar a vida
privada), e a escola (como espaço de quarentena moral para preservar a
inocência infantil). Mas ainda não há qualquer sinal de psicologia da
criança. Que acontecimentos conspiram para este surgimento?

A escola estatal, a nova escola e a psicologia do


desenvolvimento
Novos acontecimentos pontuam o século XIX: por um lado, com o
advento da revolução industrial, o ajustamento a novas demandas impõe
paulatinamente um ensino de cunho mais técnico que moral; por outro
lado, os Estados-Nações tomam paulatinamente a educação como uma de
suas funções policiais: sob o ideal de igualdade e de cidadania, o ensino laico
se instaura como tarefa estatal. Mas a radicalização do Estado de polícia com
a estatização do ensino não é o acontecimento-chave na transformação da
experiência da infância e, consequentemente, no surgimento de uma
psicologia da criança; é preciso uma transformação nas próprias tecnologias
de governo.
No século XVIII, alguns pensadores siocratas e liberais, ao
demarcar o território da economia em seu sentido atual, estabeleceram que
o Estado deveria atuar sobre o mercado por meio de um regime de
liberdade. Isto se deve ao fato de que eles acreditavam que os fenômenos de
mercado obedeceriam a uma ordem natural e a leis próprias em seu uxo
livre. Daí a sugestão de uma intervenção mínima por parte dos governos.
Aqui se iniciaria um deslocamento básico dos novos modos de governo
liberais em relação aos dispositivos disciplinares do Estado de polícia. Rose
(1998) sugere que o surgimento dos modos de gestão liberais coloca o
domínio da população sob novos cuidados do governo, que precisa agora
descobrir meios de administrá-la respeitando os seus códigos naturais de
funcionamento. Portanto, seria absolutamente necessário o conhecimento
de seus padrões de ação, de suas regularidades, a m de conduzir os
indivíduos entendidos agora como sujeitos responsáveis. É nesse contexto
que a psicologia, em um sentido geral, encontra as condições de seu
desenvolvimento: como um saber legitimado na promessa de cienti cidade
e na condução livre da conduta alheia. Para Rose, a história dos saberes psi
está liga à história do governo de uma dupla maneira: 1) mediante as
técnicas de inscrição que permitiram que as subjetividades se tornassem
permeáveis às técnicas de governo; e 2) mediante a constituição de políticas
múltiplas que pretendem conduzir a conduta dos indivíduos, não só pela
disciplina, mas principalmente pela liberdade e pela atividade dos
indivíduos.
Contudo, no nosso caso especí co, como estas novas formas de
governo conduzem a uma nova experiência de infância, a uma nova forma
de con gurar a Escola e ao surgimento da psicologia do desenvolvimento?
Mudanças sutis em relação à imagem da infância e às metas do ensino são, a
partir daí, engendradas: a pureza, como essência original da criança e alvo
da educação, desaparece do horizonte. Desponta uma nova infância
preconizada por Jean-Jacques Rousseau; sem o racionalismo moral suposto
pelos reformadores, mas marcada pelo primitivismo e por uma evolução a
se concluir na idade adulta (incluindo o pensamento de diversos autores
como Darwin). Evolução natural, mas que supõe a constante correção de
seu trajeto na direção do adulto cidadão e trabalhador. Contudo, a
psicologia não ocupa de início este campo de saber natural; ainda que ela já
exista, em meados do século XIX ela se interessa apenas pelo problema da
experiência, detendo-se em tempos de reação e classi cação de sensações; a
infância não lhe diz respeito. Também, os sujeitos para se submeterem aos
experimentos psicológicos precisam de “treinamento” a m de controlar os
processos superiores e discernir as sensações, evitando o erro do estímulo; é
que esta investigação jamais poderá se dirigir aos animais, aos doentes
mentais e especialmente às crianças.
Para entender a abertura da psicologia para a questão da infância no
século XX, é necessário se retomar a sua dupla articulação aos modos de
governo liberais destacados por Rose (1998). Para entendermos como ela
fornece técnicas de inscrição da subjetividade, é necessário resgatar
solicitações bem palpáveis dirigidas aos psicólogos da época. É deste modo
que o Ministério da Educação francês, na primeira década do século XX,
demanda a Alfred Binet um teste, que ordene as turmas conforme as suas
capacidades intelectuais, e não mais quanto às suas idades, a m de
distinguir os alunos normais dos possuidores de retardo. Tratam-se agora de
habilidades discerníveis e calculáveis segundo uma expectativa média em
relação a uma idade e não mais à pureza infantil como critério de
classi cação. Quociente intelectual, idade lógica e não mais cronológica. É
deste modo que Foucault (1994) sustenta que a psicologia do
desenvolvimento nasce da tentativa de corrigir seus retardos.
No entanto, a constituição do teste de QI como técnica de inscrição
não é um fenômeno isolado. A psicologia se vê capturada nesta nova
imagem da infância em desenvolvimento: o evolucionismo solapa o império
do homem adulto normal e civilizado. James Mark Baldwin nos Estados
Unidos, o próprio Binet, na França, Eduard Claparède na Suíça, Karl Gross
na Alemanha, são alguns exemplos de autores que abrem as portas da
psicologia à infância. E aqui atingimos o segundo modo de articulação da
psicologia às formas de gestão liberais: o governo pela liberdade na
superação das formas disciplinares. O sinal mais evidente disto é a
correlação entre a psicologia e os novos modos de formulação pedagógica:
não é de modo algum gratuito que alguns defensores da Escola Nova fossem
igualmente psicólogos funcionalistas (que tomam o modelo darwinista de
adaptação do organismo ao meio como paradigma da psicologia), como
John Dewey e o próprio Eduard Claparède. Ao contrário dos modos
disciplinares tradicionais da gestão, busca-se estudar na psicologia e
promover na escola a adaptação da criança a seu meio, observando-se seus
interesses e instigando sua inteligência pela proposição de situações-
problema. Em outras palavras, buscam o governo pela liberdade e pelas leis
naturais e não mais pela disciplina, embasada no controle e no cerceamento.

A psicologia como um mapa da nova experiência da infância

Desta breve história podem-se extrair duas coisas: 1) A educação


escolar não é efeito, mas um dos modos de articulação que produzem a
existência da infância; 2) As modi cações na educação escolar e nos modos
de governo trazem mudanças na própria essência da infância e demandam
uma psicologia que promova esta nova articulação entre escola e infância.
Mediante a psicologia da infância, forma-se a rede educação pública –
governamentalidade liberal – evolucionismo (em geral darwinista) –
psicologia. De um modo bem claro a psicologia pôde assim articular
práticas sociais (oriundas da escola), formas de governo liberais, conceitos
cientí cos (evolução, adaptação e função) e novas con gurações da infância,
permitindo naturalizar e sedimentar o que foi gerado no conjunto das
práticas históricas.
Um bom guia para se estudar as con gurações singulares desta rede,
ao longo do século XX, é o livro de Rose Governing the souls (1999, capítulos
11 a 15), no qual, por meios diversos, o autor aponta para o trânsito de
modos mais e mais liberais de gestão da infância em detrimento das formas
disciplinares tradicionais. Contudo, o objetivo desta parte nal do texto é
seguir uma outra linha: tomar as posições do próprio microcosmos da
psicologia do desenvolvimento como um mapa sobre este modo de gestão
da liberdade proporcionado pelos saberes psi. É desta forma que, se os
psicólogos humanistas, como Carl Rogers, em coro com os construtivistas
piagetianos irão defender e preservar a autonomia e a autenticidade da
infância, os behavioristas, descrentes de qualquer liberdade essencial, apenas
poderão sugerir mais e melhores controles: mais bem planejados e
produtivos. Mas essa separação das psicologias da criança em dois polos
irreconciliáveis não pode ser feita de maneira tão simples ou ingênua. Isso
porque, o que vemos é que aquelas mesmas psicologias que privilegiam a
autonomia da infância acabam por remetê-la a uma essência natural passível
de ser perturbada por in exões do meio; outras, ainda que entendam a
infância como determinada, atuam de modo a favorecer seu autocontrole ou
autonomia. É assim que a psicologia humanista enxerga na infância uma
tendência natural à autorrealização, passível de ser perturbada por
constrangimentos sociais; o behaviorismo, que nos descreve a criança como
determinada pelas contingências de reforço, procura, em sua prática (a
terapia comportamental), desfazer certos condicionamentos indesejáveis,
diminuindo, assim, a carga de determinação, promovendo um maior
autocontrole e, consequentemente, uma maior autonomia. Assim, apesar das
oposições teóricas, as psicologias parecem apontar sempre para um modo
de gestão em que, por meio do manejo ou recuperação de determinações
naturais, trabalha-se sempre para um melhor uso da liberdade, sem
qualquer modo de constrangimento.
E aqui vale um exame mais detido das determinações naturais que
povoam o campo da psicologia do desenvolvimento: aqui, graças à captura
darwinista da psicologia do desenvolvimento em suas origens, os conceitos
biologizantes imperam. Notadamente, trata-se da discussão entre um
biologismo rígido (inatista), como o de Konrad Lorenz, Noam Chomsky e
Jerry Fodor; um exível, dado na maleabilidade do operante, como o de
Buhrrus Skinner; e uma tentativa híbrida, como o estruturalismo genético
de Jean Piaget.4 Mesmo com a tendência de dissipação da fronteira na
questão inato-adquirido como na suposição skinneriana de contingências de
sobrevivência, e do mecanismo inato de aprendizagem de Lorenz, ainda
persistem certos purismos, como os sancionados por Fodor e Chomsky, que
encastelados em seu inatismo tendem a considerar mesmo Piaget um
empirista radical, ao supor como logicamente impossível a evolução de
estados intelectualmente menos acabados aos mais acabados.5
Apesar de todas as divergências no interior do biologismo, conceitos
como programa inato, organização, adaptação, equilíbrio, condicionamento
são trazidos do coração da biologia para a psicologia, servindo como lastro
para os conceitos, práticas e instituições psicológicas; naturalizando saberes
e intervenções; dando um tom de certeza cientí ca a práticas sociais
calçadas pela psicologia; amparando nosso bom uso da nossa liberdade.
Poderíamos por m nos perguntar se todas as abordagens psicológicas no
que tange ao desenvolvimento e à escola encarnariam este afã naturalizante.
Neste caso, uma das poucas vozes dissonantes quanto ao naturalismo
predominante neste campo psicológico seria o construtivismo social da
escola russa de Lev Vygotsky e Alexander Luria, que tomam o
desenvolvimento como impulsionado por fatores sociais como a linguagem.
Seriam este fatores que determinariam as possibilidades de desenvolvimento
e o papel crucial da escola, tal como expresso no conceito de zona proximal
de desenvolvimento.6 O desenvolvimento não seria mais explicado a partir de
conceitos como programa inato, algoritmos (cognitivismo), invariantes
funcionais, equilibração (construtivismo piagetiano) e condicionamento
(behaviorismo). O crescimento atual desta orientação (apesar de sua
constituição nos anos 1930) poderia ser uma frente ao naturalismo
galopante da psicologia, insinuando o caráter histórico da nossa infância,
como visto neste texto. Contudo, restaria nos perguntarmos se um certo
naturalismo próprio da dialética marxista não se faz presente, apagando os
aspectos contingentes da história. Ainda se faz necessária uma abordagem
mais radical quanto à produção deste modo de subjetivação, ao mesmo
tempo raro (porque histórico) e maciço (porque tendente à hegemonia na
nossa contemporaneidade), que é a infância. A questão a saber é se a
psicologia é apenas refém destes modos de subjetivação naturalizantes
ungidos pelas formas liberais de governo ou se nela podem se produzir
novas leituras e modos de produção da infância. Mais do que uma mera
pergunta, isto se coloca como desa o para o campo.

Referências
ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
FERREIRA, A. Para além da história das ciências: as novas histórias em
diálogo com a história da psicologia. In: JACÓ-VILELA, A. M.; CEREZZO,
A. C.; RODRIGUES, H. B. C. (Org.). ENCONTRO CLIO-PSYCHÉ –
SUBJETIVIDADE E HISTÓRIA. 5., 2006. Anais... Juiz de Fora: Clio Edições
Eletrônicas, 2006. p. 9-22. Disponível em: <www2.uerj.br/~cliopsyche/site>.
FOUCAULT, M. La recherche scienti que et la psychologie. In: DEFERT, D.;
EWALD, F. (Org.). Dits et ecrits. Paris: Gallimard, 1994. p. 137-158.
_______. As palavras e as coisas. Lisboa: Portugália, 1966.
_______. Arqueologia do saber. Petrópolis: Vozes, 1972. (livro originalmente
publicado em 1969).
_______. Nietzsche, a genealogia e a história. IN: MACHADO, R. (Org.).
Microfísica de poder. 2. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981. p. 15-37.
(artigo publicado em 1971).
_______. Sobre a genealogia da ética: uma revisão do trabalho. In:
DREYFUSS, H.; RABINOW, P. (Org.). Michel Foucault na trajetória
losó ca. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 253-278. (Entrevista
concedida em 1984).
_______. Os anormais. São Paulo: M. Fontes, 2001. (Curso pronunciado no
Collège de France entre 1974-1975).
_______. Seguridad, territorio, población. Buenos Aires: Fondo de Cultura
Económica, 2006. (Curso pronunciado no Collège de France entre 1977-
1978).
_______. Nacimiento de la biopolítica. Buenos Aires: Fondo de Cultura
Económica, 2007. (Curso pronunciado no Collège de France entre 1978-
1979).
LE GOFF, J. A história nova. São Paulo: M. Fontes, 1993.
PIAGET, J. Biologia e conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1973.
PIATELLI-PALMARINI, M. Teorias da linguagem, teorias da aprendizagem.
São Paulo: Cultrix, 1985.
ROSE, N. Inventing our selves. Cambridge: Cambridge University Press,
1998.
_______. Governing the souls. 2. ed. Londres: Free Association Books, 1999.
SANCOVSCHI, B. Zona de desenvolvimento proximal (Glossário). In:
FERREIRA, A. (Org.). A pluralidade do campo psicológico: principais
abordagens e objetos de estudos. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2010.
VEYNE, P. Foucault revoluciona a história. In: _______. Como se escreve a
história? 4. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. p. 237-285.

1 ProfessorAdjunto do Instituto de Psicologia da UFRJ e dos Programas de Pós-graduação em Saúde


Coletiva (IESC) e Ecologia Social (EICOS). Pós-doutor em História da Psicologia pela UNED
(Espanha). Doutor em Psicologia Clínica pela PUC de São Paulo.
2 Estasobservações sobre a nova história encontram-se desdobradas no artigo Para além da história das
ciências: as novas histórias em diálogo com a história da psicologia (FERREIRA, 2005).
3 Foucault nos momentos iniciais da sua genealogia propõe a existência de uma multiplicidade de
poderes que se espalham por todas as direções ao modo de uma rede sináptica, situadas nas relações
entre os corpos (ou suas ações), podendo ser aglutinadas ou não por um Estado, agindo não apenas
pela repressão, mas principalmente produzindo saberes, desejos e estados corporais, gerando
resistências e contrapoderes.
4 Piaget curiosamente chega a desenvolver uma nova biologia congruente a seu construtivismo,
notadamente mediante a tese da fenocópia. Segundo esta tese, distante do neodarwinismo e do
lamarkismo, as mutações genéticas não se dão ao acaso (como supõem os primeiros) nem re etem as
alterações do meio (como imaginam os segundos). Elas se produzem como reequilibrações genéticas
ativadas por modi cações no meio interno do organismo, que por sua vez são causadas por alterações
no meio ambiente. Conferir Biologia e Conhecimento (PIAGET, 1973).
5 Conferiro debate realizado no colóquio Royaumont sobre Teorias da Linguagem, Teorias da
Aprendizagem, organizado por Piatelli-Palmarini (1985).
6 Segundo Sanchovski (2010, p. 281): “O conceito de ZDP surge para dar conta da relação entre
educação e desenvolvimento ou, em termos mais especí cos entre aprendizagem e desenvolvimento.
Para Vigotski existem dois tipos de desenvolvimento: desenvolvimento real que diz respeito às
atividades que a criança realiza sozinha (funções adquiridas) e desenvolvimento proximal que se
refere às atividades que só são realizadas com o auxílio do outro. A ZDP é a região que surge a partir
da diferença entre o desenvolvimento real e proximal. Trata-se de uma região, um campo que aparece
no presente, a partir do auxílio do outro e aponta para o futuro”.
Um social que dispõe do poder de morte: Freud
e os preconceitos da política
Bruno Farah1

Para Freud, os poetas estavam à frente das descobertas psicanalíticas.


Alguns anos antes de escrever um dos seus trabalhos sociais mais relevantes
– Totem e tabu (1913) – Freud cunhava a noção de avanço secular do
recalcamento (1900), antecipando certo viés desenvolvimentista que seria
reservado a este texto. Poucas vezes discutida em sua obra, tal noção
baseava-se na mudança das modalidades de parricídio nas duas principais
tragédias da cultura ocidental, mudança que justi caria futuramente a
evolução do estado da horda primitiva ao “estado cientí co” da moral
civilizada. Freud considerava as diferenças de tais tragédias – em Édipo Rei,
de Sófocles, o assassinato sendo de fato realizado em ato e, em Hamlet, de
Shakespeare, cometido apenas em fantasia – um indício da evolução moral
da sociedade. Com efeito, Totem e tabu conta que o alto sacerdote de Júpiter,
na antiga Roma, não podia cavalgar e nem tocar num cavalo, nem ver um
exército em armas, nem usar um anel que não fosse quebrado. Os antigos
eram obrigados a observar um número extraordinário de tabus para viver
em sociedade. Para Freud, isso indicava uma necessidade maior de dominar
a pulsão; era sinal de um desenvolvimento moral primitivo. Os modernos,
com seus regulamentos mais simples, seriam mais civilizados. O
constrangimento presente em tal cção – de que as pulsões agressivas
seriam atenuadas pelo progresso da sociedade, cção revista por Freud
(1969k) posteriormente – revela certo embaraço diante da questão da
violência, tema central à discussão social freudiana.
Na base do discurso social psicanalítico, reside um dos principais
preconceitos da política: a associação do campo sociopolítico à violência
(ARENDT, 1995). Em sua discussão social, encontra-se um social que
dispõe do poder de morte; a castração exercida pelo pai primevo interditava
aos lhos o acesso às mulheres (FREUD, 1969c). Desejando encontrar um
início sexual, Freud encontra um início mortal: o social – o campo do outro
e das interações humanas – recebe uma coloração sombria, sobre ele
pairando uma constante ameaça. Talvez seja esta a razão da falta de
consenso no campo psicanalítico sobre a existência de uma abordagem
realmente política em Freud. Ora, onde vigoram os preconceitos da política,
não há espaço para um pensamento de fato político. A incidência de tais
preconceitos em sua obra obscurece a elucidação do teor político da
psicanálise.
Tal falta de consenso é vista exemplarmente no contraste das análises
de dois críticos eminentes da psicanálise, Gay (2001) e Bakhtin (2004). Para
o primeiro, Freud possuiria um pensamento político, e o campo
psicanalítico não teria ainda se debruçado na complexidade desta trama. Ele
provoca os psicanalistas, sugerindo um “projeto político oculto” em O mal-
estar na civilização (1929). O ponto de vista de Bakhtin é radicalmente
oposto: Freud não teria um pensamento político. Em vez disso, Freud
ertaria com um discurso losó co, com ênfase iluminista. O autor russo
classi ca Freud como um pensador racionalista que combateria a violência
do corpo social pelo reforço da razão. Ele acusa a psicanálise de endossar a
hierarquia tradicional que opunha indivíduo – concebido como razão
soberana – e sociedade – associada às massas violentas. Ser herdeiro do
iluminismo acarreta manter certo conservadorismo em relação à dimensão
sociopolítica e reeditar as hierarquias platônicas no cerne da modernidade.
Parece, portanto, que o comprometimento de Freud com certos preconceitos
da política conduz parte da crítica a posicionamentos igualmente
preconceituosos em relação à psicanálise: encontrar nela certa solidariedade
com o racionalismo moderno – o avesso da subversão freudiana em relação
às pretensões de domínio do ego e da razão.
Desmontar tal argumento será relevante para o encaminhamento da
nossa discussão. Segundo esta perspectiva, o sujeito freudiano não seria um
sujeito social. Haveria antes a primazia de um discurso moralizante, uma
dimensão essencialista anterior e acima da sociedade. Reivindica-se a
autonomia do campo sociopolítico no processo de subjetivação e na
produção do conhecimento. Ora, poder-se-ia concordar com Bakhtin: como
conceber a autonomia do campo político na produção da subjetividade se,
para Freud, ele é associado à violência? Pensá-lo como violento não acarreta
o ônus de subordiná-lo a uma esfera moral mais elevada, transcendental – a
razão individual –, legitimada a dominá-lo? Sendo el a este raciocínio,
haveria ainda em Freud uma hierarquia tradicional entre um princípio geral,
regulador, e um princípio particular. O primeiro estaria vinculado a uma
essência moral do indivíduo, apta a ordenar o princípio particular. Por sua
vez, este seria o campo sociopolítico das trocas humanas, tendente ao
engano, ao desvio e à violência. A esfera sociopolítica viria, portanto, em
segundo plano, subordinada à moral, e esta teria a injunção de impedir os
desvios da política do caminho previsto para a sua regulação.
Ocorre que a reivindicação de Bakhtin já se encontra presente na
psicanálise. A clínica freudiana sempre ressaltou a autonomia da dimensão
social – do campo do outro – no processo de subjetivação: sem o outro nada
de sujeito psicanalítico. Sua obra se edi ca no auge da crise do paradigma
progressista da modernidade – numa crítica frontal ao imaginário
iluminista. Ela é fruto desta crise e a epistemologia psicanalítica testemunha
o questionamento inegável deste paradigma: a crítica paradigmática
enunciada por Bakhtin já havia sido incorporada à psicanálise na revisão
epistemológica realizada a partir da formulação do conceito de narcisismo
(FREUD, 1969d). Tal conceito é o ponto de ancoragem na psicanálise, tanto
do redimensionamento epistemológico da metapsicologia freudiana como –
veremos – da crítica política do imaginário moderno. Cabe a pergunta: será
que o comprometimento de Freud com tais preconceitos políticos se dá de
forma tão uniforme e sem ambivalências no decorrer da sua obra?
Bakhtin publica O freudismo em 1927, antes de Freud escrever O
mal-estar na civilização. Ora, Freud nunca teve um interesse objetivo pela
política. Não é ele, em momentos pontuais do seu percurso, como quer
Bakhtin – desconsiderando O mal-estar – ou Gay – analisando apenas este
trabalho – que atestaria o teor político de sua obra. Nosso ponto de vista é
outro: são as mudanças e transformações dos conceitos psicanalíticos – e
somente elas – que nos contam uma história política. Somente a partir de
uma análise genealógica do jogo de forças atuante na trama dos seus
conceitos, pode-se circunscrever uma questão que poderíamos chamar de
arendtiana: “o que é a política em Freud?”.
Dizendo isso de outra forma: se nos debruçarmos pontualmente na
obra freudiana, reproduziremos a falta de consenso da crítica psicanalítica
sobre um pensamento político presente ou não em Freud. Porém, se nos
voltarmos aos textos sociais psicanalíticos a partir de uma análise
genealógica – não nos perguntando por que eles são deste modo, mas como
eles são tão distintos e quais foram as condições de possibilidade de tais
diferenças – teremos chances de produzir novas respostas. Será esta a nossa
tarefa aqui: investigar não apenas estes dois trabalhos fundamentais, mas
sobretudo o caminho – e os silêncios – que os separa. Quais os jogos de
forças presentes na época da produção de Totem e Tabu capazes de impedir
– ou recalcar – a possibilidade de um discurso político, aproximando Freud
de um imaginário losó co que ele tanto rechaçava? O que transcorre neste
percurso para O mal-estar na civilização enunciar tal discurso, inexistente
no primeiro texto?
Neste trabalho articularemos as duas perspectivas discutidas
anteriormente – a crítica paradigmática e a psicanalítica. No nível
paradigmático, só se pode conceber a autonomia do princípio particular na
produção do sentido – a autonomia do campo sociopolítico – quando se
rompe com os preconceitos tradicionais da política (ARENDT, 1995),
sobretudo aqueles que o associam à violência e a práticas de dominação e
subjugação. Já no nível epistemológico da trama psicanalítica, tal autonomia
só se efetiva na discussão social freudiana a partir da incorporação dos
descentramentos característicos da psicanálise, mais especi camente dos
conceitos de narcisismo e pulsão de morte. É o momento em que o ego
perde as ilusões de domínio do corpo pulsional e social, e o outro passa a ser
de fato imprescindível no agenciamento dos destinos da força pulsional.
Assim, à medida que – no nível epistemológico – os descentramentos do
sujeito são incorporados plenamente ao discurso social freudiano, os
preconceitos da política – no nível paradigmático – parecem perder terreno
para a subversão realizada pela psicanálise.
Encaminharemos a discussão deste artigo do seguinte modo: na
perspectiva política/paradigmática, apoiando-nos em Arendt (1995),
indicaremos os quatro preconceitos tradicionais que ainda assombram o
pensamento político até os dias de hoje, e como eles mantêm a hierarquia
iluminista indivíduo-sociedade. Na perspectiva da epistemologia
psicanalítica, veremos como tais preconceitos se imiscuem nas origens da
discussão social de Freud desde Totem e tabu (1913), e enfatizaremos a
relevância deste texto para toda a problemática política da psicanálise.
Analisaremos também os destinos destes preconceitos e da hierarquia
iluminista em outros textos sociais de Freud: Psicologia das massas e análise
do ego (1921), O futuro de uma ilusão (1927) e O mal-estar na civilização
(1929).
A nossa hipótese é a de que o conceito de narcisismo (1914) impõe
não apenas consequências epistemológicas como também políticas para o
pensamento freudiano. Ele fomenta a revisão das hierarquias tradicionais da
primeira tópica e também dos preconceitos políticos a elas vinculados, que
alimentam Totem e tabu e os outros textos “sociais” de Freud. O nosso
objetivo é mostrar que, dentre todos estes textos, somente O mal-estar na
civilização incorpora plenamente os descentramentos psicanalíticos relativos
à visão tradicional de sujeito, sendo o único que rejeita os preconceitos da
política, constituindo o discurso político por excelência da psicanálise
(BIRMAN, 2000).

Os preconceitos da política nas origens do discurso social


freudiano
No famoso ensaio Qu´est-ce que la politique?, Arendt (1995) a rma
nunca termos encontrado uma resposta satisfatória a esta pergunta. Para se
formular tal resposta, é preciso, sobretudo, nos livrarmos de quatro
preconceitos que, segundo a autora, assombram o pensamento político
desde Platão. Todos estes preconceitos estão presentes em Freud. A
genealogia da sua problematização política nos conduz a cada um,
possibilitando compreender quais deles Freud conseguiu combater, com os
quais ele ainda se manteve comprometido e quais as consequências para a
psicanálise de tais combates e comprometimentos. Tal percurso genealógico
também nos permite uma re exão extremamente atual, visto que estes
preconceitos permanecem sendo uma ameaça ao pensamento político. São
eles: a associação da política à violência, a recorrente ênfase ao imaginário
meios- ns, uma concepção de política calcada na ideia de dominação e o
lamento pela perda das referências morais.
Sem dúvida, o primeiro preconceito é o mais facilmente visível em
Freud. Além de a associação do campo sociopolítico à violência residir no
cerne da discussão cultural psicanalítica, Totem e tabu estabelece uma
curiosa analogia, indicando a relevância da preocupação com a violência no
pensamento político freudiano. Tal analogia teria como base uma oposição
entre o campo individual e o social, conferindo o ambiente epistemológico
propício para a incidência nos textos freudianos dos preconceitos políticos
descritos por Arendt. Esta estranha oposição nos remete à discordância
entre Freud e Jung cujo percurso será preciso elucidar para chegarmos à
referida analogia proposta por Freud.
De fato, o texto fundador do discurso sociopolítico da psicanálise
nasce num campo minado. A guerra contra Jung foi um dos fatores que
motivou Freud a escrever Totem e tabu (1913). O lugar especial deste livro
no empreendimento psicanalítico é destacado logo de saída, no primeiro
parágrafo do seu prefácio: ele representa a primeira tentativa de aplicar o
ponto de vista da psicanálise a alguns problemas não solucionados da
psicologia social. Freud explicita o objetivo de realizar um contraste
metodológico com as premissas de Jung, a rmando a dimensão individual
da libido sobre a esfera social. Se seu ex-colaborador visava resolver os
problemas da psicologia individual a partir do material proveniente da
perspectiva mitológica e social, para Freud, a “psicologia individual” deveria
explicar a gênese do social. A libido, especi camente o Complexo de Édipo
– o que caracterizava o sujeito freudiano em 1913 – traria as respostas sobre
o advento do campo sociopolítico. “Os começos da religião [...] e da
sociedade convergem para o Complexo de Édipo” (FREUD, 1969c, p. 185).
Sob este pano de fundo belicoso, com o objetivo de explicar as origens da
sociedade, Totem e tabu estabelece um viés desenvolvimentista,
caracterizado por uma oposição entre o campo individual e o campo social,
na contramão da própria noção de sujeito freudiano, indissociável da sua
relação com o outro.
Vimos que, para Freud, nas origens do campo sociopolítico reina a
onipotência narcísica. A preocupação central do seu discurso social é
compreender como se efetiva a passagem do egoísmo para o altruísmo,
como se torna possível a vida em comum. Perseguindo esta questão, tendo
sempre como referência e ponto de partida a psicologia individual, Freud
propõe uma analogia entre o desenvolvimento infantil e o desenvolvimento
da sociedade. Nas origens da sociedade, a fase animista – caracterizada pela
onipotência do pensamento – corresponderia, na perspectiva individual, à
fase narcísica, etapa marcada pela onipotência do desejo (FREUD, 1969c). A
infância da sociedade corresponderia, portanto, à infância do sujeito
freudiano. Tal analogia possui dois aspectos relevantes para
compreendermos a articulação das origens do campo sociopolítico à
violência e aos outros preconceitos sugeridos por Arendt.
O primeiro aspecto é o seu teor desenvolvimentista. Sua
consequência direta é a premissa da superação da violência. Mesmo que
Freud enfatize reiteradamente a impossibilidade de erradicar a violência em
Totem e tabu, este mesmo trabalho não deixa de apontar um caminho
progressista. A etapa animista daria lugar à etapa religiosa, que
corresponderia, na dimensão individual, à escolha de objeto cuja
característica seria a transferência de parte do narcisismo infantil para os
pais, semelhante à transferência de poderes para Deus na perspectiva social.
À fase religiosa sucederia, por m, a cientí ca. A etapa cientí ca seria aquela
na qual o sujeito renuncia ao princípio do prazer e volta-se para objetos
externos. As conquistas da última fase são destacadas: “a visão cientí ca do
universo não dá lugar à onipotência; os homens reconhecem sua pequenez;
submetem-se resignadamente à morte e às outras necessidades da natureza”
(FREUD, 1969c, p. 111). Freud sugere, portanto, que a etapa cientí ca seria
contemporânea à hegemonia do princípio de realidade que, por seu turno,
traria certa regulação da violência narcísica. Um viés progressista, portanto,
marca o discurso sociopolítico de Totem e tabu. Vale lembrar: estamos em
1913, antes da proposição do conceito de pulsão de morte.
O segundo aspecto relevante desta correspondência informa
justamente como se daria tal abrandamento da violência narcísica. Freud
estabelece uma hierarquia entre o campo individual e o campo social. “As
etapas do desenvolvimento libidinal é que são primeiras” (MEZAN, 1994, p.
322) e as etapas da sociedade correspondem a elas, e não o contrário. Freud
dirá que os homens primitivos possuem um pensamento ainda fortemente
sexualizado, mas não que a sexualidade infantil é animista: a evolução da
violência primitiva das origens da sociedade seguiria as fases do
desenvolvimento libidinal. Tal como se ocupasse o lugar do modelo
platônico, seria o sujeito, internalizando a lei de Édipo, quem daria a direção
do desenvolvimento da sociedade.2 Tal hierarquia produz nos demais textos
culturais – como discutiremos detalhadamente – um contraste bem
demarcado: o campo individual corresponderia ao lugar da lei e da ordem,
enquanto o campo sociopolítico representaria uma constante ameaça de
desvio das conquistas morais individuais. Como a rmamos, estes dois
aspectos – a hierarquia entre indivíduo e sociedade e o teor
desenvolvimentista da correspondência forjada por Freud – fomentam a
associação da psicanálise aos preconceitos tradicionais da política,
sugerindo a violência do corpo sociopolítico, a subjugação de tal violência,
um caminho para a sua superação e um lugar de referência moral – o campo
individual. Vejamos nalmente esta associação de perto.
Quanto ao primeiro preconceito, a articulação do campo
sociopolítico à violência traz o perigo da própria rejeição do pensamento
político (ARENDT, 1995). Ela nos leva a um beco sem saída: cada vez mais
sujeitos à violência a partir das grandes guerras e querendo naturalmente
acabar com qualquer possibilidade de sermos exterminados da face da terra,
ao desejarmos liquidar com tamanha ameaça, acabamos almejando,
também, liquidar com a política. É o que Arendt (1995) constata após o
advento da bomba atômica: o desejo recorrente de se erguer uma instância
racional e soberana, que permita regular os con itos políticos, de fora e
acima dos embates mundanos. Associado à violência, o mundo passa a ser
visto como uma constante ameaça, e os impasses políticos con ados a
autoridades morais transcendentais que teriam a tarefa de ordenar tais
con itos.
O perigo de conceber o campo sociopolítico como uma ameaça,
assim como o perigo de pôr m a ela, habita o cerne da analogia forjada em
Totem e tabu. Freud recorre a abordagens desenvolvimentistas que idealizam
o m da política, em vez de combater seus preconceitos. Quando Freud
projeta um “estado cientí co” no horizonte da sociedade, ele está mais
próximo de acenar com uma espécie de equilíbrio entre os interesses
individuais e sociais – uma vez que a onipotência narcísica não teria mais
lugar – do que questionar a associação do campo sociopolítico à violência
ou à perspectiva da dominação. Assim, a direção progressista inerente à
correspondência do desenvolvimento das etapas da sociedade ao
desenvolvimento das fases da libido explica não somente as origens da
violência da arena sociopolítica, mas sugere, também, a sua superação. Ora,
se a política caracteriza-se como um jogo de forças permanente
(FOUCAULT, 2002; ARENDT, 1995), projetar um momento em que a
violência narcísica não teria mais lugar, harmonizando os desejos
individuais às necessidades sociais, seria o mesmo que desejar o m da
política.
Os segundo e terceiro preconceitos estão interligados. A concepção
da política como um meio relativo a um m integra o cerne do imaginário
de dominação e subjugação. O campo político precisa ser subjugado a uma
moral mais elevada justamente devido ao seu suposto caráter violento,
passando a ser concebido de forma subordinada, como um meio para
atingir um m mais nobre. O m é sempre moral, geralmente uma
“verdade” existente para além da política à qual os sujeitos precisam se
subordinar: a harmonia civilizatória, a “paz romana” ou o “paci smo”
(FREUD, 1969l), como o próprio Freud destacou em momentos cruciais da
incidência deste preconceito em sua obra. Em Totem e tabu (1913), o
imaginário de dominação da violência do campo sociopolítico torna-se
evidente na projeção de uma etapa cientí ca a partir da qual, en m, a
onipotência narcísica teria sido “submetida às necessidades da natureza”
(FREUD, 1969c, p. 111).
O último preconceito pode ser visto na maior parte das discussões
atuais sobre a crise da contemporaneidade. Diante do colapso do ideal
progressista e da autoridade tradicional, escuta-se hoje um lamento pela
perda das referências morais. O preconceito arraigado a este lamento é
supor que a perda das referências tradicionais é, em si mesma, negativa para
a política. Ora, tal perda “só é catastró ca para o mundo moral se julgarmos
que os homens não seriam, de modo algum, aptos a julgar os fatos por eles
mesmos [...] e que não se poderia esperar deles nada a mais que a aplicação
de regras conhecidas” (ARENDT, 1995, p. 56). Tal minimização da
capacidade de julgamento dos homens em benefício de uma moral
norteadora – transcendental – ca evidente nos momentos em que Freud
condiciona o enfraquecimento da moral individual à violência social, como,
por exemplo, – veremos – em Psicologia das massas e análise do ego
(FREUD, 1969f).
Nada mais distante da subversão freudiana às formas tradicionais de
se pensar o sujeito e sua relação irreconciliável com a ordem social.
Recolocamos, então, a pergunta presente na introdução deste trabalho: será
que tais preconceitos habitam de forma uniforme a empreitada
psicanalítica? Por enquanto, cabe enfatizar que Totem e tabu traz consigo o
“pacote completo” dos preconceitos da política. O relevante para a discussão
do pensamento político em Freud é destacar que, residindo nas origens do
discurso cultural da psicanálise, todos os textos sociais se relacionam com
este “pacote de preconceitos”. A autoridade epistemológica de Totem e tabu
leva a maioria deles a aceitar incondicionalmente todas as suas premissas;
não abrem e tampouco examinam o que está dentro deste “pacote”.
Contudo, como já ressaltamos, defendemos aqui que somente O mal-estar
na civilização possibilita uma in exão neste quadro tradicional, dando lugar
a uma problematização política impar em Freud. Vejamos primeiramente a
incidência destes preconceitos no discurso sociopolítico da psicanálise nos
anos 1920 para elucidarmos a solidariedade epistemológica com Totem e
tabu referida anteriormente; analisaremos, em seguida, a mudança de rumo
que justi ca a singularidade referida a O mal-estar na civilização.
O campo sociopolítico como um indivíduo definido por
subtração
Como o editor de Freud (1969f, p. 90) destaca, Psicologia das massas
e análise do ego “quase não se comunica” com o texto que o precede, Além do
princípio do prazer (1920). Se, por um lado, tenta dar um passo à frente na
investigação da estrutura anatômica da mente, anunciada neste texto (1920)
e a ser elaborada em O ego e o id (1923), toda a explicação da psicologia das
massas permanece tendo como referência o funcionamento da psicologia
individual. Deste modo, mantém-se pouco vinculado aos avanços teóricos
da segunda tópica, possuindo, antes, mais aspectos em comum com o
imaginário de Totem e tabu (1913).
Em Psicologia das massas (1921) a associação do campo sociopolítico
às massas violentas ganha destaque. Para Freud, “a massa é um indivíduo
de nido por subtração: é irritável, impulsiva, sugestionável, exaltada,
rebaixada moralmente, megalomaníaca” (COSTA, 1989, p. 68),
prolongando-se, desta forma, “uma tradição que opunha indivíduo e
sociedade, sobretudo a sociedade entendida como grupos sociais que
tendiam à perturbação da ordem” (COSTA, p. 69). Entendendo o corpo
social nesses termos, torna-se clara a hierarquia indivíduo-sociedade
presente desde Totem e tabu, não havendo dúvidas sobre o caráter
conservador da abordagem política neste momento do pensamento
freudiano. Freud destaca: “Quando faz parte de um grupo,3 o indivíduo
desce vários degraus na escada da civilização: isolado pode ser um homem
culto; numa multidão, é um bárbaro, guiado pelo instinto” (FREUD, 1969f,
p. 100). Saltam aos olhos as metáforas platônicas de profundidade: em
sociedade, a razão individual é rebaixada “vários degraus”. É evidente aqui o
contraste entre o indivíduo, guiado pela razão, e a sociedade, levada pelos
seus instintos onipotentes. “Quando indivíduos se reúnem em grupo, todas
as suas inibições individuais caem e todos os instintos cruéis, brutais e
destrutivos [...] são despertados” (FREUD, 1969f, p. 102). Assim, haveria
uma redução da capacidade intelectual quando o indivíduo se funde a um
grupo. O campo sociopolítico pode contagiar o indivíduo, desviando-o das
suas conquistas morais. Como bem destacou Garcia-Roza (1986), Freud
conseguiu se livrar do cartesianismo, mas não do platonismo.
Psicologia das massas chega a sugerir a possibilidade de um antes e
um depois da inserção do indivíduo no grupo social. Para Freud, a questão
era saber como o grupo poderia adquirir os mesmos aspectos “que eram
característicos do indivíduo e nele se extinguiram pela formação do grupo,
pois o indivíduo, fora do grupo, possuía sua própria continuidade, sua
autoconsiência, suas tradições e mantinha-se apartado dos seus rivais”
(FREUD, 1969f, p. 112, grifo nosso). Deste modo, a hierarquia presente
desde Totem e tabu é, mais uma vez, enfatizada: o campo individual, campo
da razão e da moral, como é sugerido no trabalho de 1921, permanece como
padrão de referência para o campo sociopolítico. Sem esta referência
transcendental, o sujeito se perde tragado pela força das massas.
Psicologia das massas não nos oferece uma virada epistemológica
nem política. Todos os preconceitos tradicionais da política diagnosticados
por Arendt se imiscuem aqui: o apelo à recuperação da referência moral – a
razão individual, transcendental e acima das vicissitudes sócio-históricas –
sem a qual o sujeito não teria capacidade de produzir suas escolhas éticas; a
associação da esfera sociopolítica à violência; a tentativa de dominar o
campo sociopolítico, subjugando seus perigos à tutela da razão e
concebendo-o, assim, como um meio para atingir um m mais elevado.
Seis anos depois, o quadro político e epistemológico dos textos
sociais psicanalíticos não sofreu mudanças signi cativas. O teor
desenvolvimentista e a presença dos preconceitos da política são igualmente
marcantes em outro trabalho da década de 1920, O futuro de uma ilusão
(1927). Mas, em relação a este texto, atrevemo-nos a discordar do editor de
Freud. Não concordamos que O mal-estar na civilização (1929) é o sucessor
direto de O futuro de uma ilusão. Há quem sugira uma trilogia formada por
O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e Por que a guerra? (1933)
(REY-FLAUD, 2002). Ora, o discurso político deste conjunto de textos
tardios não rompe com o caráter conservador da discussão cultural anterior.
Conforme nosso ponto de vista, o único aspecto em comum entre O mal-
estar na civilização e estes dois textos é a preocupação com a violência que
perpassa a relação sujeito-civilização. Porém, o que caracteriza esta relação –
seu teor politicamente conservador – não se con rma no texto de 1929. Os
preconceitos tradicionais da política parecem, mais do que nunca,
concentrados em O futuro de uma ilusão, estabelecendo uma espécie de
diagnóstico diferencial em relação a O mal-estar na civilização. Nossa análise
é oposta à de Strachey: numa perspectiva política, O mal-estar na civilização
promove um corte e uma descontinuidade epistemológica em relação ao seu
sucessor (FARAH; HERZOG; MOGRABI, 2006). Discutiremos
oportunamente tal descontinuidade.
A aposta da superação da religião pela educação con rma o viés
reformista de O futuro de uma ilusão. Mais uma vez, a associação entre os
religiosos, as crianças e os homens primitivos é onipresente neste trabalho.
Temos aqui, novamente, por um lado, a reedição do Pai Primevo – as massas
violentas, ignorantes e perigosas, antagonista central do discurso cultural
psicanalítico – e, por outro, a razão iluminista. A ideologia progressista e um
tom utópico, jamais tão estridente em Freud (ENRIQUEZ, 1999), dominam
a sociedade e a conclusão da discussão. Voltando a equiparar a religião à
infância da civilização, Freud conclui não haver dúvidas de “que o
infantilismo está destinado a ser superado. Os homens não podem
permanecer crianças para sempre; têm de sair para a ‘vida hostil’. Podemos
chamar isso de ‘educação para a realidade”’ (FREUD, 1969i, p. 64). Nestes
termos, não vemos aqui qualquer solidariedade com O mal-estar na
civilização, mas a manutenção da circularidade da hipótese de Totem e tabu.
Tal circularidade obriga trabalhos solidários a Totem e tabu (1913) –
como O futuro de uma ilusão – a reforçar suas mesmas conclusões. Mas por
que a rmamos este teor circular? Se o nível de idealização a que estão
sujeitas as ilusões religiosas permite antever uma relação “perigosa” entre o
sujeito e o objeto idealizado (FREUD, 1969i), não deveria ser atribuída
somente aos religiosos uma ameaça privilegiada contra a civilização. Para
Freud, qualquer relação idealizada oferece perigos diante das miragens
imaginárias do ego ideal, inclusive a simples paixão amorosa entre quaisquer
pessoas. O destaque à idealização religiosa poderia ser justi cado por sua
própria posição no esquema evolutivo de Totem e tabu (1913), o que lhe
reservaria, naturalmente, maior poder de sedução sobre as massas
ignorantes. Contudo, isso é uma falácia. Presa à circularidade dos seus
argumentos, a própria hipótese evolucionista de Totem e tabu – que
posiciona a onipotência “mágico-religiosa” na origem da civilização –
justi caria a urgência em combater a religião com mais veemência. Ora, a
hipótese defendida não pode abonar o argumento do perigo dos religiosos;
o argumento é que tem a injunção de con rmar a hipótese. Uma vez
estabelecida a primazia da ilusão religiosa diante de todas as ilusões, a
resposta não pode deixar de con rmá-la, induzindo ao combate, e, com isso,
elidir a questão.
Por outro lado, se existe alguma relação íntima entre O futuro de
uma ilusão e O mal-estar na civilização, ela não se apoia em nenhuma
sucessão ou continuidade, mas, antes, numa oposição, manifesta de forma
singular no trabalho de 1927. Corroendo a oposição indivíduo-sociedade,
manifesta-se, ao mesmo tempo, outra que lhe é contrária – a oposição entre
o viés reformista do discurso sociopolítico de Freud e a crítica a esta
perspectiva: o opositor imaginário de Freud, intervindo inúmeras vezes na
discussão, materializa o espírito crítico capaz de minar o próprio viés
evolucionista do texto. A luta contra o opositor criado por ele mesmo parece
uma forma de personi car o fantasma teórico que ameaça as suas premissas
desenvolvimentistas, numa espécie de tentativa vã de dominar aquilo que se
impõe como irredutível a qualquer garantia progressista. Antecipando a
crítica contundente de O mal-estar na civilização (1929), o mal-estar
provocado por seu opositor acaba por apontar o desmoronamento da sua
abordagem racionalista, deixando implícita a dúvida de Freud quanto a tal
perspectiva.
A intervenção decisiva do arguidor de Freud incide diretamente na
associação do campo sociopolítico às massas violentas. Em termos
metapsicológicos, o ponto da discórdia reside no conceito fundamental
recuperado neste trabalho – o desamparo infantil. O problema é
epistemológico: o conceito traz a presença inapelável do infantil no sujeito,
enquanto O futuro de uma ilusão advoga pela superação do “infantilismo
religioso” da sociedade. O opositor vai direto ao ponto – estranha que a
sociedade “crie essas idéias religiosas”, “as coloca à disposição dos seus
participantes” (FREUD, 1969i, p. 33). Por mais que Freud se defenda, logo se
apresentam contradições incontornáveis ao seu antigo argumento: a ideia de
desamparo leva Freud a a rmar que a religião é uma criação humana, uma
cção contra a permanência do desamparo.
De fato, neste ponto, O futuro de uma ilusão parece entrar em
colapso. Freud a rma que no momento em que o sujeito descobre que
permanecerá “criança para sempre” (FREUD, 1969i, p. 36), que sempre
precisará recorrer a poderes superiores para protegê-lo, “empresta a esses
poderes as características pertencentes à gura do pai; cria para si próprio os
deuses a quem teme [...] e a quem, não obstante, con a sua própria
proteção” (FREUD, 1969i, grifo nosso). Portanto, a partir da perspectiva do
desamparo, a religião – sobretudo a sua violência em potencial – não seria
creditada ao “perigo das massas”; seria uma produção individual. Contudo,
tal argumento sucumbe em meio ao apelo reformista deste trabalho – apelo
estridente (ENRIQUEZ, 1999), como se quisesse calar seu opositor.
A questão do desamparo humano e a permanência do infantil no
adulto só serão levadas às últimas consequências em O mal-estar na
civilização. Em O futuro de uma ilusão, o conceito de desamparo ainda não
encontra um ambiente epistemológico su cientemente bom para ampará-lo.
O que permanece onipresente são os preconceitos da política, sobretudo a
aposta na superação do primitivismo das massas religiosas e o consequente
imaginário de dominação do campo sociopolítico em benefício da
“educação para a realidade”. Finalmente, vejamos a mudança epistemológica
produzida em O mal-estar na civilização capaz de subverter a abordagem
tradicional dos preconceitos da política.

Mais uma vez os poetas anunciam: a virada política de O


mal-estar na civilização
Um pouco antes de escrever O mal-estar na civilização, no mesmo
ano em que Bakhtin publica O freudismo, Dostoievski é acrescentado ao
esquema do avanço secular do recalcamento (FREUD, 1969j). É a segunda
vez que tal noção surge na obra freudiana, 25 anos após a sua primeira
aparição em A Interpretação dos Sonhos (1900). Para Freud, o lugar do autor
russo na literatura era equiparável ao de Shakespeare: “Os Irmãos
Karamazovi são o mais grandioso romance jamais escrito”. “Três obras
primas de todos os tempos” tratam do mesmo tema, “o parricídio” (FREUD,
1969j, p. 205, 217). Mais uma vez, Freud con rmaria, os Poetas anunciam
mudanças cruciais na discussão cultural psicanalítica.
Tal como em uma tela cubista, mantendo os mesmos componentes
do “esboço” já existente em 1900 – Édipo Rei e Hamlet – a nova perspectiva
inserida a partir de Os irmãos Karamazovi estabelece, simultaneamente,
uma outra possibilidade de interpretação, sobreposta à anterior. Se o
progresso secular do recalcamento se sustenta pelo fato de, em Hamlet, o
parricídio ter sido realizado indiretamente, no romance de Dostoievski o
assassinato também é cometido, com efeito, por um outro. Diferente de
Hamlet, “este outro, contudo, está para o assassinado, na mesma relação lial
que o herói” (FREUD, 1969j, p. 218). No caso deste outro, o motivo da
rivalidade é abertamente assumido; trata-se do irmão do herói. A análise de
Dostoievski, reforçada por Freud, aponta para a falta de sentido de se
perguntar qual dos dois irmãos é o culpado. “Trata-se de uma faca de dois
gumes” (FREUD, 1969j, p. 218) – Dostoievski ironiza a questão de saber
quem é o assassino.
O perspectivismo da análise freudiana não reforça apenas o
perspectivismo da análise do autor; incide silenciosamente, como ameaça,
no seu próprio esquema teórico do avanço secular do recalcamento. Pois, se
um irmão fantasia e o outro comete o crime, como então sustentar os
componentes deterministas e objetivos do esquema linear anterior de Édipo
Rei e Hamlet, de 1900? Infere-se que Os irmãos Karamazovi, a um só tempo,
no presente, emparelham fantasia e realização em ato: com a nova
perspectiva de 1927, Freud introduz um tempo de simultaneidade e não de
continuidade do progresso, tampouco de superação, tal como sugere o
avanço secular do recalcamento. Édipo Rei torna-se, então,
“contemporâneo” a Hamlet: agora marcadas pela simultaneidade, nenhuma
das duas possibilidades, ato e fantasia, é necessariamente anterior à outra, ou
índice de maior desenvolvimento moral. O progresso da e cácia do
recalcamento não se daria naturalmente, como Freud supunha, com a
evolução da sociedade.
A ênfase à simultaneidade e à conservação abre O mal-estar na
civilização. A metáfora da cidade de Roma antiga convivendo lado a lado
com a Roma moderna anuncia o colapso das apostas de superação da
arrogância narcísica. De fato, a metáfora de Roma retorna às primeiras
páginas de O mal-estar na civilização (1929), não mais sob o signo do
desenvolvimento, endossando rituais capazes de conter a violência pulsional
em benefício de um suposto progresso civilizatório, mas sob a ótica da
simultaneidade: a cidade de Roma antiga é copresente a Roma moderna –
nada na arquitetura psíquica é destruído ou superado. A superação
gradativa da violência narcísica é totalmente inviabilizada neste trabalho: a
onipotência do ego primitivo permanece no adulto. Não estamos mais no
terreno das certezas e do progresso, mas das dúvidas, da conservação, da
simultaneidade e da ambivalência: será que Eros conseguirá vencer o seu
não menos imortal adversário, ânatos? – assim Freud termina o texto,
sem nenhuma resposta conclusiva.
O mal-estar na civilização implica uma distinção em relação a Totem
e tabu com ressonâncias decisivas nos posicionamentos políticos de cada
trabalho: a sexualidade narcísica é envolta em um automatismo de repetição
diferente do automatismo da libido objetal (COSTA, 1989). Se a
correspondência entre os processos de desenvolvimento da libido e da
sociedade, estabelecida a partir de Totem e tabu (1913), apoiava sua hipótese
na tentativa de originar o social do sexual, é preciso considerar que a
sexualidade neste texto restringia-se à libido objetal. Com suas fases de
desenvolvimento, a perspectiva da libido objetal possibilitava conceber um
viés progressista do laço social, embora bastante questionável. Com a
descoberta do narcisismo (1914) e da pulsão de morte (1920), a sexualidade
freudiana se complexi ca, associando-se, também, à conservação e à morte.
Empenhado em evitar o desprazer a todo o custo, o ego narcísico luta para
se conservar tal como é diante da carência primordial, restringindo-se
apenas ao convívio com o idêntico e já conhecido. O que há de novo no
texto de 1929 é uma ambivalência fundamental: “no mesmo ego narcísico,
por onde passa a solução da vida para o sujeito, se insinua a possibilidade de
morte do social” (COSTA, 1989, p. 92). A questão da ambivalência –
veremos – destaca-se de forma singular neste trabalho.
O automatismo conservador da sexualidade narcísica impõe
consequências clínicas e, ao mesmo tempo, epistemológicas e políticas. A
radicalização do descentramento do sujeito freudiano e a nova ênfase
mortalista da teoria psicanalítica implicam uma descontinuidade entre
Totem e tabu e O mal-estar na civilização, inviabilizando o sentido
desenvolvimentista rmado na hipótese hierárquica do primeiro texto. Em
vez de o social originar-se do sexual, o social será enfatizado como peça
central no processo de subjetivação. A partir do m da hegemonia do
Princípio do Prazer e da assunção do Princípio do Nirvana (FREUD,
1969h), o outro se torna imprescindível para a formação subjetiva. É ele
quem investe erotismo e passa a exercer o limite à tendência da pulsão à
descarga absoluta. Em termos epistemológicos, somente a partir dos
descentramentos provocados pelo narcisismo e pela pulsão de morte e da
primazia do Princípio de Nirvana, pode-se a rmar, de fato, o que sempre se
constatou, empiricamente, na clínica psicanalítica: que os processos de
subjetivação e socialização são indissociáveis, inviabilizando qualquer
hierarquia entre indivíduo e sociedade.
Mas, por que o aspecto conservador do narcisismo seria um
balizador fundamental do redimensionamento de O mal-estar na
civilização? A questão crucial do narcisismo – como se efetiva a passagem
do egoísmo para o altruísmo – não é, desde Totem e tabu, o motor do
discurso sociopolítico freudiano? A violência narcísica não está presente de
tal maneira na origem da discussão social psicanalítica a ponto de Freud se
comprometer com preconceitos políticos e com um viés desenvolvimentista,
cujo horizonte seria justamente o combate da onipotência narcísica? Sim e
não. O narcisismo já era questão para Freud, mas caracterizado como fase
do desenvolvimento libidinal e não ainda como conceito psicanalítico. O
conceito de narcisismo, como uma característica normal e insuperável do
humano, só advém em Para introduzir o narcisismo (1914). Constituindo
ainda uma fase da libido (1913), mantém-se um terreno epistemológico
profícuo para os preconceitos tradicionais da política e o ideal de harmonia
civilizatória: este é o cenário de todos os textos sociais de Freud, exceto O
mal-estar na civilização.
Já é tempo de o campo psicanalítico ser rigoroso com o conceito de
narcisismo (1914) nos textos culturais psicanalíticos, da mesma forma que é
criterioso com as transformações por ele acarretadas na metapsicologia
freudiana. A passagem da noção para o conceito de narcisismo traz
consequências epistemológicas – para a revisão das hierarquias tradicionais
da primeira tópica freudiana – e políticas – para a revisão dos preconceitos
políticos associados a estas hierarquias. O conceito de narcisismo impõe o
desmantelamento de tais preconceitos – dos quatro, apontados por Arendt
–, um após o outro. Vejamos isso mais de perto.
Em primeiro lugar, o narcisismo como característica normal do
humano:
Rompe-se com o vínculo direto entre a violência – onipotência
narcísica – e o campo sociopolítico. A violência não é mais localizada
exclusivamente nas massas desorganizadas e impulsivas. Ela não se restringe
a grupos particulares, supostamente mais atrasados em termos morais. Passa
a ser geral, uma questão de todos.
Em segundo lugar, o narcisismo como característica normal e
insuperável:
A associação direta do campo sociopolítico com práticas de
dominação perde seu caráter coercitivo: a violência do corpo social não será
superada, tampouco subjugada à razão e à educação. O conceito de
narcisismo implica o m das ilusões iluministas de domínio da razão
transcendental duplamente, visto que o próprio ego racional também é
objeto de investimento libidinal.
Em terceiro lugar, o narcisismo implicando o envolvimento do ego
no con ito pulsional, demarcando seu lugar de engano:
Não há mais sentido em lamentar a perda da referência moral que
orientaria as escolhas éticas dos sujeitos. Com o narcisismo concebido como
uma característica geral do humano e não apenas remetido ao princípio
particular – ao campo sociopolítico –, a moral egoica também passa a ser
atravessada pela sexualidade, perdendo seu estatuto de referência imparcial,
apta a orientar as escolhas éticas dos sujeitos. Assim, o lugar do engano e do
desvio não se associa mais privilegiadamente ao corpo político; o ego
também é o lugar do equívoco.
E, por último, o narcisismo inviabilizando as ilusões de domínio
pulsional:
O ideal de dominação e regulação das relações sociais torna-se
inviável, visto que tanto o corpo pulsional como o social caracterizam-se
pelo excesso, por um resto “indestrutível” da pulsão (FREUD, 1969k, p.
136). Abre-se espaço para a autonomia do princípio particular – do campo
sociopolítico – em relação ao campo da razão e da moral. A esfera
sociopolítica deixa de ser apenas um meio para alcançar um m mais nobre,
subordinada a um ideal moral mais elevado, e torna-se parte ativa da
produção do real.
A relevância política de O mal-estar na civilização (1929) parece
incontestável ao representar o único texto cultural de Freud que incorpora
os descentramentos característicos do sujeito psicanalítico à discussão
social. Apresenta-nos o sujeito no sentido forte do conceito psicanalítico,
duplamente desamparado: diante de um resto de “natureza indomada” nas
suas pulsões, remetendo-o constantemente ao seu desamparo em face do
excesso pulsional; e diante do próprio futuro da modernidade, desamparada
do seu ideal progressista. Todos os outros textos sociais analisados aqui
ainda trabalham com a noção de narcisismo como fase do desenvolvimento
libidinal (FREUD, 1969c, 1969f, 1969i). Neles há o mesmo horizonte
progressista: a possibilidade de atingir o estado cientí co da civilização
(1913), de superar a violência das massas (1921) e de subjugar o perigo do
infantilismo religioso às diretrizes da razão e da educação (1927). Em todos
eles há o mesmo compromisso com o “pacote de preconceitos tradicionais
da política”, atuante na psicanálise desde Totem e tabu.
Esta é a razão da opção por uma análise genealógica para elucidar a
implicação política da obra de Freud. Solidariedades epistemológicas nada
têm a ver com a ordem cronológica do desenvolvimento dos conceitos
freudianos: Psicologia das massas e análise do ego (1921) e O futuro de uma
ilusão (1927), embora temporalmente mais próximos de O mal-estar na
civilização, estão teoricamente mais vinculados a Totem e tabu. Em última
instância, numa perspectiva epistemológica e política, conforme a análise
aqui realizada (ARENDT, 1995), os textos de 1921 e 1927 devem ser
considerados trabalhos tardios da primeira tópica freudiana.

Em defesa de Totem e tabu


Entre os três trabalhos sociais cuja epistemologia vincula-se mais à
primeira tópica freudiana, como acabamos de sugerir, Totem e tabu é, sem
dúvida, o mais nuançado e complexo. Ele merece mais algumas
considerações antes de concluirmos.
Em Totem e tabu (1913), para sustentar a hipótese bélica do seu
prefácio, rompendo com antigas parcerias, sobretudo com Jung, Freud
realiza novas alianças epistemológicas, todavia, mais problemáticas do que
as anteriores. A mais complicada consolida-se no terceiro capítulo do livro,
“Animismo, Magia e Onipotência de pensamentos” (FREUD, 1969c, p. 97), o
ponto alto da ascendência da libido individual sobre o campo social. A
correspondência estabelecida por Freud entre as fases do desenvolvimento
libidinal e o desenvolvimento das concepções humanas sobre o mundo
baseia-se no esquema evolucionista dos “três estados” de Comte (EBB,
2004). O comprometimento com a ideologia reformista do positivismo é a
consequência direta desta estranha aproximação. A recorrência ao esquema
comteano constitui, segundo Mezan, “um corte na economia do texto, corte
de enormes conseqüências” (MEZAN, 1994, p. 331).
Tal corte pode ser mais bem circunscrito como um enfraquecimento
da hipótese hierárquica freudiana, da tentativa de subjugar o campo social
ao individual. Cabe destacar que Freud introduz o esquema comteano
a rmando que, neste momento, é preciso recorrer às “autoridades no
assunto” (FREUD, 1969c, p. 99). Ora, como, por um lado, Freud neutraliza a
ênfase social de Jung, e, por outro, autoriza o esquema de Comte,
considerado o pai da sociologia moderna? Tal transferência de autoridade –
no momento em que Freud desejava ser a única autoridade no assunto
“origens da sociedade” – revela a fragilidade da oposição indivíduo-
sociedade na psicanálise.
O enfraquecimento da sua hipótese não se restringe a este ponto. A
própria correspondência por ele estabelecida possui um problema de base
crucial para a epistemologia psicanalítica. De acordo com Costa (1989),
desde Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna (1908), o objetivo
crucial do campo social seria o do recalque da sexualidade. Segundo esta
perspectiva, Freud toma o social como um dado, que existe em sua
heterogeneidade diante do sexual, pois, só deste modo, poderia opor-se a ele
e reprimi-lo: a concepção de social é “o princípio que ele quer encontrar
para justi car a existência do con ito psíquico de natureza sexual” (COSTA,
1989, p. 64). Tem o mesmo estatuto teórico que seu princípio de realidade
dando limite ao princípio do prazer. O que importa a Freud é, sobretudo,
dar coerência à sua teoria da neurose que justi que o recalque das
representações insuportáveis ao ego. Em suma: o ego precisa ter princípios
diferentes dos sexuais, e eles são encontrados na moral sexual civilizada.
No entanto, se o argumento parece simplista em Moral sexual
civilizada, ele se complica em Totem e tabu a partir da aproximação com
Comte: o que pensar de uma sociedade que, seus estágios correspondendo
às fases libidinais – ou seja, os elementos sociais originando-se
invariavelmente de um elemento erótico –, torna-se homogênea ao sujeito?
Como ela, a partir do ego identi cado às suas exigências, poderia subsidiar
o recalque das pulsões sexuais irreconciliáveis, se tem origem no mesmo
princípio – a libido – que o sujeito sexual? Sexual recalcando sexual? Onde
está a necessidade de algo heterogêneo ao sexual para o ego em Totem e tabu
(FREUD, 1969c)?
Não corremos grande risco em a rmar que, em face da transferência
de autoridade para o esquema comteano, a própria novidade do sujeito
psicanalítico – heterogêneo e irredutível, sem dúvida, às exigências morais
da sociedade – perde terreno em benefício de certa uniformização entre os
interesses individuais e sociais. Para explicar as origens do social, Freud põe
em risco o sujeito psicanalítico. Se o ego precisa ter princípios diferentes dos
sexuais, e eles são encontrados “fora”, na moral sexual civilizada, quando
Freud corresponde a origem do social ao sexual, ele não estaria se
enredando no mesmo impasse que o levaria à reformulação da sua teoria
pulsional, em Introdução do narcisismo (1914)? Tal impasse não seria
exatamente este – o ego também ser libidinal à medida que seus princípios
provêm do social (que “adviria do sexual” a partir da correspondência com
Comte)?
Freud tenta dar uma resposta a Jung, que desejava retirar a
sexualidade do lugar de princípio diferenciado e exclusivo em relação à
formação subjetiva. Todavia, a partir da sua aliança com Comte, acaba mais
preso à questão posta por seu in el colaborador: quando indivíduo e
sociedade tornam-se homogêneos – lhos de uma mesma deusa, a libido, –
é antecipada a questão dilacerante à metapsicologia freudiana posta em
Introdução do narcisismo: o que fazer quando as pulsões do ego e as pulsões
sexuais são regidas por um mesmo princípio, perdendo-se a oposição
fundamental ao con ito pulsional? Totem e tabu pode ser visto como um
“estudo preparatório que antecedeu à reviravolta da Introdução do
narcisismo” (COSTA, 1989, p. 65). Se o impasse epistemológico da
psicanálise que a conduzirá à “virada metapsicológica dos anos 20” surge no
texto sobre o narcisismo (1914), podemos depreender que ele já se encontra
implícito, por outro viés, em Totem e tabu. É sempre oportuno lembrar que,
tanto em 1913 como em 1914, a trama genealógica de tal impasse é tecida
sob o mesmo fogo cruzado – a guerra contra Jung.
Essa digressão teve como nalidade destacar a riqueza do texto
fundador do discurso cultural da psicanálise. Se Totem e tabu anuncia a
inviabilidade da oposição pulsão sexual/pulsão do ego, depreende-se a
impossibilidade da manutenção da hierarquia indivíduo/sociedade, como
quer Bakhtin. O fato de Freud se livrar de Jung não signi ca a vitória da
guerra. Parafraseando Totem e tabu, poderíamos dizer que o “ lho morto”
tornou-se ainda mais forte a partir da nova aliança travada por Freud.
A complexidade deste texto inaugural salta aos olhos: é preciso
reconhecer que, em estado latente, Totem e tabu já evoca um discurso
político, neutralizando os preconceitos da política. O trabalho que se
dedicaria a introduzir as descobertas iniciais psicanalíticas na dimensão
social já traz, implicitamente, o colapso da primeira tópica. Contudo, tal
ambivalência é, em parte, suprimida e o que surge em suas linhas é uma
noção de narcisismo frágil, como etapa do desenvolvimento libidinal. Seu
discurso manifesto consolida vínculos com o positivismo de Comte (EBB,
2004), gerando o ônus de aproximar Freud de um imaginário iluminista-
positivista. O viés progressista inerente a este cenário epistemológico
fomenta uma série de prejuízos políticos, legados, como exigência de
trabalho, aos demais trabalhos sociais psicanalíticos.

Preconceitos da política versus ambivalência da ação


humana
Assim como os conceitos, os preconceitos também precisam de um
terreno epistemológico su cientemente bom para ampará-los. O mal-estar
na civilização (1929) não apresenta este terreno epistemológico. Há uma
questão losó ca inegável atravessando este trabalho: os preconceitos da
política visam combater a ambivalência do campo sociopolítico – a
ambivalência da ação humana – e, por sua vez, a ambivalência combate os
preconceitos da política. O ambiente epistemológico pouco favorável aos
preconceitos da política em O mal-estar na civilização é o da ambivalência
afetiva originária, pressuposto teórico que caracteriza o novo dualismo
pulsional da segunda tópica.4 A ambivalência é capaz deste combate por
meio do seu potencial de dupla face, levando ambiguidade aos conceitos – e
preconceito não pode ter dupla face. A dupla face de Roma que abre a
discussão de 1929 fornece a medida do terreno viscoso e ambivalente deste
trabalho fundamental, culminando na ambivalência da luta nal entre as
duas pulsões originárias, Eros e ânatos, sem mais nenhuma certeza do
porvir.
De fato, aqui, a ambivalência perpassa as instâncias psíquicas de
forma mais palpável do que nos outros trabalhos culturais de Freud e de
modo bastante diferente das fronteiras demarcadas características das
instâncias psíquicas da primeira tópica – Consciente, Pré-consciente e
Inconsciente (FREUD, 1969a). O mesmo ego narcísico acena com a
possibilidade da vida para o sujeito e – como já apontamos (COSTA, 1989)
– de morte do social; o superego apresenta-se em O mal-estar como o
herdeiro do Complexo de Édipo, representante da lei e da regulação do
desejo e, ao mesmo tempo, como uma instância cruel, imperativo de gozo,
visto ser também perpassado pela pulsão de morte; e o id é o próprio
caldeirão das pulsões, sede da ambivalência afetiva originária, pressuposto
epistemológico consolidado neste texto (FREUD, 1969k). Ao lado disso, a
ambivalência atravessa todos os exemplos de progresso técnico da
modernidade elencados neste trabalho, sobretudo no terceiro capítulo.
Todos possuem um vetor que lhes é contrário – mesmo a locomotiva,
símbolo maior do aperfeiçoamento civilizatório e da integração entre
indivíduo e sociedade. Por esta via, aos benefícios do progresso associa-se a
mesma carga de malefícios. Se não fossem as locomotivas para “abolir as
distâncias” (FREUD, 1969k, p. 107), não se precisaria de um telefone para,
com a ição, ouvir a voz de um lho que partiu para a guerra, a rma Freud.
Inundado pela ambivalência, o ideal progressista não é mais capaz de abolir
as distâncias entre os interesses individuais e os coletivos, tampouco
erradicar o mal-estar na cultura.
Poder-se-ia a rmar que Freud nunca se livrou do preconceito que
associa o campo sociopolítico à violência. De fato, vimos que na origem da
discussão cultural de Freud há um social que dispõe do poder de morte
(FREUD, 1969c). Contudo, o campo sociopolítico torna-se, também, mais
ambivalente em 1929. A ênfase é colocada num social que dispõe, ao mesmo
tempo, do poder de vida, a partir do acréscimo de erotismo oferecido pelo
outro materno. Desta forma, em O mal-estar na civilização, o campo
sociopolítico não é apenas apresentado como sinônimo de violência. É o
único texto social freudiano no qual a sociedade não é diretamente
associada às massas desorganizadas. Com efeito, Freud não tem a
preocupação com nenhum grupo particular, responsável pelos descaminhos
da política. Pela primeira vez, o campo sociopolítico não é descrito como
um indivíduo subtraído da sua razão e da sua moral (COSTA, 1989). Não se
associando exclusivamente à subtração, mas igualmente ao acréscimo, o
campo do outro e das trocas humanas é solicitado, também, como o que
acrescenta erotismo, vital ao processo de subjetivação. Vale lembrar que tal
ambivalência só ganha o devido lugar na epistemologia psicanalítica, nos
textos sociais, a partir da incorporação do princípio de Nirvana à discussão
cultural freudiana (1929), fato não realizado plenamente, como analisamos
em O futuro de uma ilusão (1927), trabalho posterior à postulação de tal
princípio.

Considerações finais
O mal-estar na civilização não soluciona a questão colocada por
Arendt – “o que é a política?” –, tampouco resolve os preconceitos
tradicionais da política. Em última instância, nada resolve; conserva sempre
os paradoxos, mantendo o caráter inconcluso do laço social. Porém, ao se
negar a resolver os con itos, sustentando a ambivalência da política, seu
potencial de dupla face cria um dispositivo único na obra freudiana: a
suspensão destes preconceitos, neutralizando os seus efeitos. Tal suspensão
inviabiliza as certezas dos preconceitos, abrindo espaço para a suspeição,
dúvida e hesitação. Não é por acaso que O mal-estar na civilização evita
terminar, como nos trabalhos anteriores, com a certeza do progresso social,
a partir da subjugação de grupos sociais supostamente responsáveis pelo
mal-estar na cultura. Seu desfecho singular nos envia, antes, a uma dúvida
radical sobre o futuro, marcada pelo signo da espera – a espera de Eros.
Esta diferença, incluindo a própria possibilidade de espera das
últimas linhas, possui efeitos políticos atuais. Hoje, diante dos imperativos
de segurança no regime de urgência ao qual estamos submetidos
(AGAMBEN, 2002), propagando o medo do outro e a inevitabilidade do
terror, tentam nos convencer justamente da impossibilidade de se hesitar e
duvidar de tal quadro, diante da rapidez com que estas ideias são veiculadas
como evidências. Assim, não dividindo a humanidade em duas partes, entre
uma primeira classe de cidadãos – moralmente aptos ao paci smo (FREUD,
1969l) – e todas as outras pessoas – atrasadas devido às suas de ciências
morais –, Freud nos incita a resistir a tal quadro, nos oferecendo um novo
horizonte de futuro no discurso freudiano: uma espera de todos por um
devir incerto e inesperado, bem diferente de uma espera de poucos por um
porvir certo e esperado – que o restante da humanidade “faça já o seu
trabalho” e atinja “nosso nível de civilidade”. Não temos aqui, portanto, a
humanidade cindida em duas categorias de pessoas – aquelas que temem e
aquelas que devem ser temidas.
Se por um lado, no contexto de esgotamento das propostas políticas
e crise do neoliberalismo globalizado, surge um terreno propício na
contemporaneidade para a proliferação dos preconceitos da política, por
outro, colocando em suspensão e em suspeição tais preconceitos, O mal-
estar na civilização nos oferece toda a sua atualidade e força subversiva.
Diante da insistente certeza de que o outro é uma ameaça ao nosso futuro, o
texto de 1929 possibilita um tempo de hesitação e resistência a este discurso
pretensamente político. Tal discurso tenta nos persuadir da urgência de nos
protegermos contra o terror, reeditando uma já empoeirada forma de
coerção, cuja força niilista sempre retorna no vácuo de propostas
efetivamente políticas para nos deixar um vazio ainda maior: a
universalização do medo do campo sociopolítico, criando polarizações
reativas, como nós-outros, civilizados-primitivos, indivíduos racionais-
massas ignorantes. Assim, suspendendo tais supostas certezas, nos legando,
ao contrário, o tempo da dúvida e da espera, O mal-estar na civilização nos
convida a enfrentar uma também empoeirada questão que permanece
exigindo resposta: o que é a política?

Referências
AGAMBEN, G. Moyens sans ns: notes sur la politique. Paris: Payot &
Rivages, 2002.
ARENDT, H. Qu’est-ce que la politique? Paris: Éditons du Seuil, 1995.
BAKHTIN, M. O freudismo. São Paulo: Perspectiva, 2004.
BIRMAN, J. A psicanálise e a crítica da modernidade. In: HERZOG, R.
(Org.). A psicanálise e o pensamento moderno. Rio de Janeiro: Contra Capa,
2000. p. 109-130.
COSTA, J. F. Psicanálise e contexto cultural. São Paulo: Escuta, 1989.
EBB, D. Entretien avec Octave Mannoni. Figures de la psychanalyse, Paris, v.
1, n. 9, p. 16-22, 2004.
ENRIQUEZ, E. Da horda ao estado. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999.
FARAH, B.; HERZOG, R.; MOGRABI, D. Da superação à simultaneidade:
crise e política no pensamento freudiano. In: BASTOS, A. (Org.).
Psicanalisar hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006.
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: M. Fontes, 2002.
FREUD, S. A interpretação dos sonhos. In: _______. Edição standard das
obras psicanalíticas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1969a. vol. 4-5. (1900)
_______. Moral sexual civilizada e doença moderna dos nervos. In:
_______. Edição standard das obras psicanalíticas completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969b. vol. 8. (1908)
_______. Totem e tabu. In: _______. Edição standard das obras
psicanalíticas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969c. vol.
13. (1913)
_______. Para introduzir o narcisismo. In: _______. Edição standard das
obras psicanalíticas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1969d. vol. 13. (1914)
_______. Além do princípio do prazer. In: _______. Edição standard das
obras psicanalíticas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1969e. vol. 18. (1920)
_______. Psicologia das massas e análise do ego. In: _______. Edição
standard das obras psicanalíticas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1969f. vol. 18. (1921)
_______. O ego e o id. In: _______. Edição standard das obras psicanalíticas
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969g. vol. 19. (1923)
_______. O problema econômico do masoquismo. In: _______. Edição
standard das obras psicanalíticas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1969h. vol. 19. (1924)
_______. O futuro de uma ilusão. In: _______. Edição standard das obras
psicanalíticas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969i. vol.
21. (1927)
_______. Dostoievsky e o parricídio. In: _______. Edição standard das obras
psicanalíticas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969j. vol
21. (1927)
_______. O mal-estar na civilização. In: _______. Edição standard das obras
psicanalíticas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969k. vol.
21. (1929)
_______. Por que a guerra? In: _______. Edição standard das obras
psicanalíticas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969l. vol.
22. (1933)
GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1986.
GAY, P. Guerras do prazer. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. (A
experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud, v. 5).
MEZAN, R. Freud, pensador da cultura. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.
REY-FLAUD, H. (2002). Os fundamentos metapsicológicos de O mal-estar
na cultura. In: LE RIDER, J. et al. (Org.). Em torno de O mal-estar na cultura,
de Freud. São Paulo: Escuta, 2002. p. 5-68.

1 Psicólogo
do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Psicanalista, Doutor em Teoria Psicanalítica pela
UFRJ com estágio de doutorado sanduíche na Universidade de Paris VII.
2 Sobrea contradição desta premissa em relação àquela que determina que a ontogênese repete a
logênese, remeto a Mezan (1994).
3 Na tradução brasileira “massa” signi ca “grupo”. Cabe ressaltar que tal tradução minimiza o teor
crítico do texto, cuja escolha lexical (massa em vez de grupo) possui conotações evidentemente
políticas.
4 Pressupostoepistemológico que associa o sujeito mais propriamente ao pulsional (FREUD, 1969k), no
lugar da ênfase representacional do dualismo pulsional da primeira tópica, caracterizado pela
oposição entre a pulsão sexual e a pulsão de autoconservação, cujo pressuposto epistemológico é a
noção de avanço secular do recalcamento (FREUD, 1969a).
Parte II: Encruzilhadas e descarrilamentos
no seio da relação entre o trabalho e a
subjetividade

O trabalho sob o ponto de vista da atividade:


suas dramáticas e seu teatro1
Adilson Bastos2

Isso acontece com tudo! Acontece com as palavras


como acontece com a própria música. Acontece, por
exemplo, você está tocando violão, procurando alguma
coisa. De repente, há quase uma inteligência tátil, a
mão vai ou você erra, erra o traste e de repente faz um
acorde que não era o que você estava procurando. Aí
você diz: poxa! Que interessante esse acorde errado.
Em cima do erro, muitas vezes você faz, você cria
música. Pode criar também uma letra de música, uma
palavra que aparece meio de forma gratuita, você não
esperava... “Por que apareceu essa palavra na minha
frente, aqui? Mas já que apareceu, vamos aproveitar.”

Então existe, é claro, a coisa do jogo de dados, do


imprevisível na criação. Por isso que, às vezes, é tão
difícil falar sobre o seu trabalho, trabalho literário, seja
o que for. Porque muitas vezes você já está inventando
um pouco em cima disso, em cima do que aconteceu de
forma quase inexplicável.
Volto a dizer: não é inexplicável tudo. Não, você está
trabalhando, está trabalhando e tal, mas no meio do
trabalho aparecem coisas, aparecem imagens que você
não estava buscando. E essas imagens geralmente são
bem vindas porque num primeiro momento são erros,
são ilusões que você aos poucos vai dizendo “não,
espera aí, isso faz sentido”. Aí você vai burilando,
burilando, burilando...

(Chico Buarque de Holanda)3

Neste capítulo iremos mobilizar alguns conceitos que, orientados


pela perspectiva ergológica de Yves Schwartz, nos auxiliem em seu conjunto,
como ferramentas, na concepção do trabalho sob o ponto de vista da
atividade.

1 - O trabalho stricto sensu


Yves Schwartz,4 abordando a di culdade para de nirmos a palavra
trabalho, manifesta a sua opção por tratá-lo como algo ou5 (podemos
encontrar uma discussão acerca deste conceito em toda a sua obra). Mais
adiante, Schwartz assinala não acreditar numa noção absoluta para de nir o
trabalho, preferindo falar sempre em tendência (SCHWARTZ, 2002). Desse
modo, todos os conceitos da ergologia nos parecerão sempre um pouco
vagos; não se trata, entretanto, de incompetência, mas de uma forma de
operar conceitualmente. Nesta perspectiva, os conceitos guardarão sempre
um espaço de abertura, estarão sempre em permanente construção e debate,
coerentes com o próprio movimento da vida, de “in ltração do histórico”,
como prefere Schwartz. Caso contrário, este caráter sempre enigmático do
trabalho, da atividade humana, da vida, estará sendo mutilado.
Entendemos, então, o trabalho como um conceito que é encravado
em nossa história. Yves Schwartz assinala que todo o debate que temos no
contemporâneo oscila entre o que ele chama de trabalho stricto sensu e uma
noção antropológica mais ampla do trabalho. Trabalho stricto sensu remete
àquela modalidade que conhecemos como emprego formal, remunerado etc.
Mas existem muitas outras modalidades de trabalho, para além da forma
emprego, por isso também se destaca esta dimensão antropológica. O
trabalho é um conceito que remete a uma experiência universal do humano
e que é irredutível à forma emprego.
Para Schwartz (2002), falar de contrato de trabalho é falar do
trabalho stricto sensu. No contrato o sujeito coloca a sua atividade de
trabalho subordinada a outrem. As sociedades mercantis, ao emergirem,
estabeleceram o processo de compra-venda da atividade humana de
trabalho, sendo o contrato o ponto que revela esta contradição. Schwartz
assinala que nas sociedades mercantis de direito existe uma subordinação
jurídica da atividade de trabalho.

2 - Atividade e atividade de trabalho


O conceito de atividade – acionado a partir de toda uma linhagem
histórica da loso a, passando por Marx, con gurando-se enquanto
conceito cientí co da psicologia histórico-cultural a partir das
experimentações desenvolvidas na Rússia6 – é central na perspectiva
ergológica.
Compreendemos a atividade de trabalho como a maneira pela qual
os humanos se envolvem no cumprimento dos objetivos do trabalho, em um
lugar e tempo determinados, utilizando-se dos meios colocados à sua
disposição. Para lidar com o acaso e as variabilidades (e os equívocos e
limites da prescrição) que se apresentam no curso de sua atividade, o
trabalhador (em seu coletivo de trabalho), a cada momento, envolve seu
corpo por inteiro, sua biologia, sua inteligência, sua afetividade, seu
psiquismo, sua história de vida e de relações com outros humanos e com a
natureza.
A atividade de trabalho é uma estratégia de adaptação à situação real
de trabalho, objeto da prescrição. O hiato entre o prescrito e o real é a
manifestação concreta da contradição sempre presente no ato de trabalho,
entre aquilo que é pedido e aquilo que a situação pede. Analisar as
estratégias (regulação, antecipação etc.) utilizadas pelo operador para gerir
esta distância é o que propõe, por exemplo, a chamada Análise Ergonômica
da Atividade (GUÉRIN et al., 2001).
Quanto à tarefa, ela não é o trabalho, mas sim o que é prescrito pela
empresa (em qualquer empreendimento) ao operador. Em uma situação de
trabalho, não há como se ater somente ao prescrito, àquilo que é
determinado antes da realização do próprio trabalho. O trabalho
efetivamente realizado nunca é só uma prescrição e uma el execução, pois
coloca em jogo sempre a vida e a atividade humana para dele dar conta. Este
conceito é decisivo já que resgata o entendimento da complexidade humana.
Por conseguinte, falar “do ponto de vista da atividade” signi ca
colocar a atividade como o centro de qualquer debate sobre o trabalho.
A atividade de trabalho é, então, o operador central que organiza,
estrutura e uni ca os componentes de uma situação de trabalho. As
dimensões técnicas, econômicas e sociais do trabalho só existem
efetivamente em função da atividade que motricialmente as põe em ação e
as organiza.
Pensar o trabalho sob o ponto de vista da atividade é não categorizar
antecipadamente as mudanças que se encontram em curso, evitando o
equívoco de diagramar antes mesmo que as atividades aconteçam ou
existam. Pensar o trabalho sob o ponto de vista da atividade impede a
tentação de compreender o que vai acontecer antes da própria intervenção
dos sujeitos na atividade. O ponto de vista da atividade não categoriza e nos
alerta a não utilizar um modelo único de análise.
Segundo Guérin et al. (2001), em primeira análise a atividade aponta
para aquilo que se opõe à inércia. Trata-se do conjunto de fenômenos
(físicos, biológicos e psicológicos) que caracterizam o ser vivo cumprindo
atos. Esses atos resultam de um movimento do conjunto do homem (corpo,
pensamento, desejos etc.) adaptado a esse objetivo, e no caso do trabalho,
esse objetivo é socialmente determinado. Sem atividade humana não há
trabalho, ressalta o autor. Desse modo, a atividade humana é diferente da
atividade de trabalho. O que caracteriza o trabalho não é a atividade em si,
mas a sua nalidade, o seu endereçamento. Assim, a atividade de trabalho é
uma das dimensões da atividade humana com uma nalidade social. Guérin
et al. assinala ainda que a dimensão pessoal do trabalho se expressa nas
estratégias utilizadas pelos operadores para realizar sua tarefa.
A dimensão pessoal se expressa nas estratégias utilizadas pelos
trabalhadores para realizar a sua tarefa. Todo trabalho também tem um
caráter socioeconômico. Ele resulta da inserção numa organização social e
econômica da produção. Segundo Guérin et al., a análise do trabalho não
pode deixar de levar em conta esta dimensão, pois é ela que transforma a
atividade humana em atividade de trabalho. Segundo ele, reduzir a atividade
de trabalho à atividade pessoal não permite captar as reais características da
situação de trabalho a ser transformada. Todo trabalho tem uma dimensão
ao mesmo tempo pessoal e socioeconômica. As di culdades que são
encontradas pelos trabalhadores nas situações de trabalho residem na
articulação entre esses dois termos e é, exatamente, na situação de trabalho
em que se dá essa articulação.
O resultado da atividade de um trabalhador é sempre singular.
Qualquer que seja o objeto resultante da atividade de trabalho, pelo trabalho
humano que nele é investido, traz sempre o traço pessoal, mesmo ín mo,
daquele que o realizou. Assim, a matéria-prima do trabalho não é para o
operador uma página em branco; habitualmente ele lê, sente, percebe o
traço da atividade de seus companheiros de trabalho no objeto que recebe, e
deixa nele a marca de seu próprio trabalho. Nesse sentido, Guérin (2001)
assinala que o resultado da atividade é sempre uma obra pessoal, sinal de
habilidade, “personalidade”, daquele que a produziu. A importância dessa
dimensão, segundo ele, é considerável para o indivíduo: o signi cado de sua
atividade, ao concretizar-se no resultado, impregna de sentido a sua relação
com o mundo, fator determinante da construção/produção de sua
subjetividade. Para trabalhar é necessário estruturar seu espaço sensorial e
motor, é necessário pegar o “jeito” da ferramenta, acostumar com o ruído da
máquina etc.
Estudando saúde e trabalho em call center, Resende (2007) buscou
compreender a atividade de trabalho desenvolvida em operação de
telemarketing em uma central de atendimento de grande porte. O autor, em
sua pesquisa, percebeu saberes e estratégias que ajudam as operadoras a
enfrentar adversidades. Utilizando a técnica da “instrução ao sósia”, Resende
reuniu um rico material para análise. Em um determinado momento da
conversa sobre seu trabalho, uma operadora disse que se ela chegar ao
trabalho “em cima da hora”, apenas com dez minutos para logar,7 ela não se
“loga” a mesma pessoa, se “loga” cansada e parece que foi tudo corrido e
diferente. Conforme apontou Guérin et al. (2001), para trabalhar é
necessário um tempo para estruturar seu espaço sensorial e motor, ou seja, é
preciso se “logar”, se conectar para dar sentido à atividade.
Em investigação por nós realizada (BASTOS, 2008), também
pudemos captar tal processo de “se logar”. Uma das integrantes de nosso
grupo de pesquisa demonstrou todo o procedimento por ela efetuado para
iniciar suas atividades: trata-se da utilização da expressão “bom dia”,
exaustivamente utilizada por ela quando chega ao seu local de trabalho.
Entendemos que o “bom dia” auxilia na estruturação de seu espaço sensorial
e motor. Com isso, ela vai se conectando, se logando, podendo, assim, dar
início à realização de sua tarefa.
Podemos também dizer que o conceito de atividade não pertence
exclusivamente ao patrimônio de nenhuma disciplina especí ca. Yves
Schwartz (2003) assinala que o conceito de atividade é refratário a todas as
disciplinas, não pertencendo a nenhuma delas.
Mas ao mesmo tempo convoca a todas para as (re)integrar, sendo
este o paradoxo da “pro ssionalidade ergológica”, na medida em que ela
assume estas características da atividade (daí possamos falar em
ergonomista ergológico, ergolinguista, ergopsicólogo etc., desde que cada
pro ssional, de uma dada disciplina, assuma esta perspectiva em sua
prática).
Segundo Schwartz (2003), o conceito de atividade é motricial, ele é o
motor de um regime de produção transdisciplinar.8 Ele assinala que, no
início de sua trajetória para a construção da ergologia, ocorreu uma
intuição, um mal-estar, provocado e acentuado pelos discursos sobre as
“mutações” do trabalho. Este mal-estar é o que sentimos por não
suportarmos estes discursos de que “não tem jeito”, de que está tudo
dominado. Ele assinala, também, que este sentimento de mal-estar só
poderia ser superado pela construção de uma outra relação entre o
patrimônio acadêmico e este patrimônio ou que exige o trabalho. O
conceito de atividade apareceu como intuição inicial, na busca de melhor
explorar os processos sociais em duplo sentido – entre os saberes
disponíveis em re-trabalho e os protagonistas das situações concretas de
atividade.
Schwartz, em entrevista a nós concedida na Université de Provence,
em dezembro de 2006, assevera que a atividade não é um conceito
considerado importante no patrimônio losó co, tendo sido muito pouco
explorado na história da loso a, recoberto por conceitos considerados
mais nobres pela loso a clássica, como ação, práxis, produção, techné.
Entretanto, trata-se de um conceito caro à ergonomia da atividade e à
ergologia, sendo, portanto, imprescindível colocá-lo em debate, sem perder
de vista, entretanto, que não se trata de um conceito acabado, mas sim em
permanente construção.
Para Schwartz, na história da loso a, é em Kant que se pode fazer
um paralelo com o conceito de atividade (Tätigkeit), tal como hoje é
utilizado pela ergologia. Aquele lósofo fala da “arte escondida no interior
da alma humana”. Apesar de não explicitar ou de nir o conceito de
atividade, Tätigkeit apresenta as três características da atividade da forma
como a ergologia o entende (transgressão, mediação e contradição), o que
faz desse conceito um operador transversal.
Por transgressão, entende-se que a atividade é um conceito que não
pode ser situado em um campo especí co de saber, pois vai sempre
transgredi-los. É um conceito que não pertence a nenhuma disciplina e que
se recusa à segmentação. O conceito de atividade não tem, portanto, um
detentor.
A característica de mediação, por sua vez, explicita o conceito de
atividade como uma dinâmica permanente entre esses campos que são
normalmente separados e que permite a circulação entre global/local,
macro/micro. Schwartz assinala que um “meio” (no sentido que tem o
vocábulo milieu, em francês) de trabalho inclui todas as dimensões globais
de nossa vida coletiva (macro) e, ao mesmo tempo, ele é local no sentido de
explicitar pro ssões, demandar competências (micro). E quem faz essa
mediação é sempre a atividade humana.
A atividade é também plena de contradições e supõe sempre a gestão
dessas contradições entre histórias singulares e relações sociais complexas,
no hiato entre trabalho prescrito e trabalho real, entre normas antecedentes
e (re)normatizações. Todo esse balanço, todo esse ir-e-vir aparentemente
“invisível” da atividade humana nos convoca a transformar o ponto de vista
com o qual se pretende compreender como o trabalho acontece
efetivamente.
A referência à atividade quer remeter à esfera das múltiplas
microgestões inteligentes da situação, às tomadas de referências
sintéticas, ao tratamento das variabilidades, à hierarquização dos gestos
e dos atos, às construções de trocas com a vizinhança humana, num
vaivém constante entre os horizontes mais próximos e os horizontes
mais afastados do ato de trabalho estudado. (SCHWARTZ, 2000, p.
420)

Conforme já assinalamos, a tradição histórica do conceito de


atividade começa com Kant: Tätigkeit como algo próximo à transgressão,
que permite à consciência conhecer algo. Depois, Marx reelabora o conceito:
processo de trabalho, considerando objeto, meio e atividade de trabalho.
Schwartz (2000) pontua que o conceito de atividade desaparece nos pós-
marxistas, sendo retomado mais adiante com a psicologia soviética
(Vygotski, Leontiev etc.). Yves Schwartz (2003) denomina esta tradição
como “tradição das faculdades”. Há ainda, segundo ele, uma outra tradição,
denominada de “tradição do ‘fazer industrioso’”. Por meio desta expressão,
encontramos uma segunda fonte losó ca do conceito atual de atividade,
aquela que passa por Platão, Bergson, Leroi-Gourhan, Canguilhem, entre
outros.
Schwartz se pergunta também que estranha cooperação entre o
corpo e o espírito, o saber e o fazer, a rotina e a renormalização, torna
possível a competência industriosa. A ergologia vem, segundo ele, desta
herança histórica. Desse modo, este conceito aparece também como
resultado destes processos, incorporados ao seu patrimônio. Resultado que
se torna, por sua vez, ponto de partida de um novo ciclo em espiral,
enriquecendo/renovando o conhecimento acerca das atividades humanas,
desenvolvendo novas potencialidades transformadoras do meio humano.
A atividade aparece, então, como debate de normas. Yves Schwartz
valoriza a perspectiva ergológica como uma promessa de reforço recíproco
entre o impossível (a padronização dos meios de vida e trabalho) e o invivível
(que seria viver em um regime estreito de heteronomia). A atividade é
confrontação, sempre problemática, entre valores mercantis e valores não
mercantis. Ou seja, Schwartz aponta para o ressurgimento do conceito de
atividade, dentro de uma herança losó ca formal, como um conceito
inteiramente dialético, que poderia sinteticamente ser expresso sob a
fórmula: “o impossível é também o invivível” (SCHWARTZ, 2000, p. 512).
Impossível, aqui, se refere à tentativa frustrada de padronização das
condições da atividade humana, com o objetivo de antecipá-la totalmente,
como supunham as convicções tayloristas. Na medida em que tal
empreitada é impossível, ela também é invivível do ponto de vista da
atividade, porque os hiatos existentes em relação às normas antecedentes
serão tratados pelas “dramáticas de uso de si”, o que implica um re-trabalho
parcial, não somente das antecipações operatórias, mas também dos valores
que estão em jogo em cada situação.
A atividade de trabalho e a experiência se caracterizam por sua
complexidade e por seu caráter enigmático (SCHWARTZ, 1998; CLOT,
1999). Entendemos que o trabalho enquanto experiência humana é um
fenômeno enigmático, complexo, multideterminado, que exige o
engajamento de diversas disciplinas cientí cas pertinentes, assim como os
protagonistas do trabalho, os sujeitos que experimentam o trabalho em
análise.9
Outras disciplinas, assim como diversas abordagens de uma mesma
disciplina (como a psicologia), podem ser convocadas; é o caso da
ergonomia da atividade que, ao analisar o trabalho segundo a ótica da
atividade (buscando negociar as exigências de produtividade e saúde), tem
contribuído para a compreensão dessa realidade complexa. Ao sair do
laboratório e se aproximar do trabalho humano em situações reais, a
ergonomia da atividade descobriu a distância entre tarefa e atividade e
demonstrou cienti camente que o trabalho efetuado não corresponde
jamais ao trabalho esperado, pré-escrito, orientado por objetivos
determinados. Ao realizar a tarefa, a pessoa se encontra diante de várias
fontes de variabilidades internas e externas: panes, disfuncionamentos,
di culdades de previsão, fadiga, diferenças de ritmo, efeitos da idade, afetos,
experiência. Este é o campo privilegiado da atividade, conceito herdado e
desenvolvido sob in uência dos materiais de Vigotski, que veremos ao longo
deste artigo.

3 - O Corpo-si
Schwartz (2003), em vez da expressão subjetividade, preferiu cunhar
a noção provisória de corps-soi (corpo-si) para dar conta da complexa
dimensão coletiva do viver e trabalhar.
Em seu entendimento, para “executarmos” uma tarefa, ou seja, para
dar conta de toda a complexidade de uma situação de trabalho (envolvendo
os equívocos e limites de qualquer prescrição, as variabilidades e o acaso –
as in delidades do meio, na clássica expressão de Canguilhem, tão cara a
Schwartz) é necessário recorrermos às nossas próprias capacidades, aos
nossos próprios recursos e às nossas próprias escolhas para gerir a
prescrição e as in delidades do meio. O vivente humano faz então uso de
toda a inteireza de si enquanto vivente.
Schwartz acrescenta que toda situação concreta de trabalho é gerida
como um “uso de si” e não como mera execução. Por conseguinte, conforme
a cção taylorista, tentar reduzir a atividade de trabalho à mera execução da
tarefa prescrita é acreditar ingenuamente em uma certa perfeição da
prescrição.10 Ao contrário, para Schwartz, trabalhar é gerir e envolve sempre
uma “dramática do uso de si”, do corpo-si. Trabalhar é sempre um drama já
que envolve o trabalhador por inteiro (“corpo e alma”), é o espaço de tensões
problemáticas, de negociações de normas e de valores. A expressão “uso de
si” remete ao fato de que não há somente execução nesta dramática, mas um
uso. É a pessoa sendo convocada e mobilizada por inteiro (ou seja, o soi, o
si). O conceito de “uso de si” chama a atenção para a complexidade do
humano ao viver.
Seguindo os passos de Schwartz, assinalamos que drama não quer
dizer necessariamente tragédia. Quer dizer que “alguma coisa acontece”
(como diz a música de Caetano Veloso) e sempre acontece alguma coisa no
trabalho. Essa dramática é onipresente como obrigação de negociação, de
arbitragem. Escolhas são feitas de diversos modos, e elas não são sempre
conscientes, postas na mesa. Ao contrário, elas são feitas, frequentemente, de
forma quase inconsciente. Como Schwartz assinala, felizmente não somos
obrigados a nos perguntar sem cessar: “o que eu estou fazendo, como
escolho etc.” ou tentar decompor, desdobrar essas múltiplas arbitragens.
Tais arbitragens se situam no domínio do corpo-si. Como fez a
loso a clássica, poder-se-ia opô-lo à alma, o que seria muito embaraçoso,
alerta Schwartz, porque o corpo é atravessado de inteligência (Dejours, por
exemplo, assinala a presença da “inteligência do corpo”); mas muitas
escolhas são feitas, quase automaticamente. Em determinados momentos,
automatismos podem vir à consciência. Alguns podem, outros não. Por isso,
em vez de “subjetividade”, Yves Schwartz prefere falar de “corpo-si”.
Para ele existe um tipo de inteligência do corpo que passa pelo
muscular, pela postura, pelo neuro siológico, por todos os tipos de
circuitos, sendo muitos resultados de nossa própria história, de um
“adestramento” que pode ser cultural, mas que em seguida passa na
inconsciência do próprio corpo. Schwartz interroga que entidade (coletiva e
relativamente pertinente) é esta que escolhe? Ele assinala que tal entidade
não é nem inteiramente biológica, nem inteiramente consciente ou cultural.
E é por isso que Schwartz (2003) prefere a ideia de “corpo” ou de “corpo-si”
à ideia de subjetividade:
Onde se fala de subjetividade, eu falaria antes da noção de “corpo-si”.
Reconheço que existem muitos nomes esquisitos nisso tudo, mas é
preciso ver que todo conceito veicula com ele uma história, apostas,
valores, que a gente carrega sem se dar conta. E, por vezes, quando
queremos tomar um pouco de distância, é necessário produzir termos
nem sempre claros ou transparentes, mas que ao menos tenham a
vantagem de não veicular com eles um certo número de possíveis mal-
entendidos ou de evidências que criam obstáculos. (SCHWARTZ, 2003,
p. 198)
Sempre pensando tendencialmente (“em tendência”) Yves Schwartz
(2003) assevera que o “corpo” não é o “todo” da dramática, absolutamente.
Mas, ele ao menos mostra o conjunto do campo que é a matriz ou o
caldeirão (o cadinho) do que acontece na atividade. Isso começa no corpo,
aí incluído o corpo biológico. Este autor francês manifesta seu desconforto
com a noção de subjetividade. Ele diz que falar da subjetividade tem algo de
sedutor:
Temos a impressão de que falam de você, en m, na primeira pessoa.
Você é colocado diante de um espelho onde você se reconhece, porque
não é tão difícil de evocar sobretudo a dimensão da pena, da
di culdade de viver... “En m, falam de mim”. Esse espelho que lhe
entregam é conseqüentemente sedutor, porque ele parece dar substância
a alguma coisa que permanece para nós sempre obscura. E como em
tudo, há boas razões pelas quais ele é sedutor. Dizendo isso, eu não
quero de jeito nenhum contestar a dimensão subjetiva no trabalho! Eu
penso que, pessoalmente e com outros, esforcei-me bastante para
mostrar essa dimensão subjetiva no trabalho para não dar a impressão
de querer, em seguida, rejeitá-la. De certa maneira, eu partilho dessa
preocupação, mas penso que há derivações possíveis. (SCHWARTZ,
2003, p. 199)

Esse espelho que lhe entregam é nalmente um espelho que o


transforma em objeto, conclui Schwartz. Segundo ele, dizer isto é talvez um
pouco uma provocação, mas o espelho o transforma em objeto e a pessoa
que vai lhe oferecer esse espelho o possui de uma certa maneira (um espelho
é circunscrito por uma moldura!), descortinando os segredos de sua vida, de
sua ação e de sua paixão. En m, Schwartz (2000) diz que assumir uma
preocupação ergológica passa notadamente por um face a face com uma
entidade enigmática que ele chama pela expressão, “na falta de outra
melhor”, o “corpo-si”. Schwartz demonstra o tempo todo que o termo não o
satisfaz, mas não encontrou ainda outro melhor. Segundo ele, esta entidade
assim de nida como “corpo-si” previne do perigo de todas as modelizações
dos comportamentos humanos a partir de chaves conceituais monovalentes,
estabelecidas sob a xação das condições “nos limites”, repartindo e
legitimando campos de especialidades disciplinares e institucionais, sem
dispositivos de interpelação por interlocutores viventes, escapando por
natureza, enquanto que viventes, ao menos parcialmente, a estes
esquadrinhamentos conceituais.
Schwartz (2000) a rma que o termo “sujeito” não convém nem para
a generalização do fenômeno da “vontade de técnica” no ser vivo, nem para
as características de sistematicidade e de normatividade, próprios aos
fenômenos técnicos. Para Schwartz não é o sujeito a verdadeira entidade
pertinente do debate entre normas antecedentes e (re) normatização do
meio. Ele tende, então, para o termo “corpo-si”. Para ele, nenhuma situação
técnica pode evitar ao homem “fazer uso” deste “corpo-si, à sua própria
maneira, por todos os tipos de variabilidades, inventividades, singularidades
de execução. Isso não requer, portanto, um “sujeito”, mas uma entidade
enigmática, na articulação do biológico, do neuro siológico, do psíquico e
do histórico-social. Ou seja, o “corpo-si”.
Schwartz aponta para a articulação de dois “inconscientes” de
natureza diferente: o inconsciente “de fato”, tendencial, de nossas regulações
neurais, de nossa instrumentação do corpo, que não coloca obstáculo, por
princípio, às formas diversas de elucidação. E o inconsciente de tipo
psicanalítico, que remete à especi cidade propriamente humana da
aprendizagem de si por meio das leis, dos interditos e dos símbolos, em que
o corpo é investido por (e objeto do) desejo, em que os signi cantes do
cotidiano são apanhados em (e por) histórias que sem nós sabermos, aí
singularizam radicamente o uso. Yves Schwartz conclui que não seríamos
capazes de dizer como se opera esta articulação. As dramáticas de uso de si,
com suas trajetórias eventualmente patógenas, não podem ser
compreendidas independentemente destes nós que se formam pelas
estruturas inconscientes relativamente estáveis propostas pela psicanálise.

4 - Atividade e zona de desenvolvimento proximal


A perspectiva que trazemos para análise, denominada ergológica,
propõe lidar com a vida, o trabalho, a partir do ponto de vista da atividade
concreta de quem trabalha. Ela coloca em operação e desenvolve a distinção
apontada pela ergonomia entre trabalho prescrito e trabalho real. Trabalhar
é a atividade de seres humanos situados no tempo e no espaço e que se dá
no movimento da vida. O trabalho concreto envolve sempre atividades
complexas e que possuem um caráter inesgotável, dinâmico e enigmático.
Atividade de trabalho é a maneira pela qual os humanos se envolvem no
cumprimento dos objetivos do trabalho, em um lugar e tempo
determinados, utilizando-se dos meios colocados à sua disposição. Para
lidar com a tarefa, seus limites inerentes e equívocos, as variabilidades e o
acaso que se apresentam, o trabalhador se engaja por inteiro, a cada
momento, com seu corpo-si (seu corpo biológico, sua inteligência, sua
afetividade, seu psiquismo, sua história de vida e de relações com outros
humanos).
Assim, ressaltamos, o conceito-chave na perspectiva ergológica é o
conceito de atividade. A ergologia propõe uma compreensão da vida guiada
pela ótica da atividade humana. Para ela, o fértil uso do conceito de
atividade opera uma heurística transgressão às disciplinas fechadas, pois tal
conceito atravessa os campos das outras disciplinas, suas fronteiras são
permeáveis. O conceito de atividade é um conceito de mediação, um ir-e-vir
dinâmico entre os diferentes campos. Um tipo de dialética, a ser melhor
esclarecida (não se trata da dialética hegeliana), é então convocada: local e
global, micro e macro. A ergologia convoca diferentes disciplinas e
abordagens para o debate, na medida em que estejam inseridas as disciplinas
e abordagens na atividade, que é um lugar de contradição permanente.
Considera incontornável agregar neste debate outros saberes, não
acadêmicos, de outra linhagem – os saberes da prática, da experiência.
Nouroudine (2001) assinala que no trabalho há um caráter complexo
e dinâmico, que se apresenta de forma que é, segundo ele, composta e
complicada. Composta por apresentar múltiplas dimensões atreladas:
dimensões econômicas, jurídicas, sociais etc. O trabalho, por outro lado, é
complicado, difícil de compreender, e se apresenta como um tripé: valores,
saberes e atividades. É difícil falar da atividade do trabalho, acrescenta
Nouroudine, pois as falas são sempre provisórias enquanto a atividade é
sempre ativa, atuante e inédita. Os ergonomistas, em suas práticas de
pesquisa-intervenção, já se haviam deparado com a situação em que, ao ser
convocado para falar sobre seu trabalho, o trabalhador normalmente fala
sobre a tarefa: ou seja, o resultado antecipado, que é xado dentro de
condições determinadas e não sobre a maneira como ele a realiza. Por
conseguinte, somente podemos compreender a linguagem de um
trabalhador, se compreendermos a atividade deste trabalhador. Atividade e
linguagem são dimensões que não podem ser apartadas nesta perspectiva.
A ergonomia da atividade toma como referência – e amplia – os
materiais da psicologia soviética. Para alguns psicólogos russos, era
necessária, na época (início do século XX), a construção de uma ponte que
ligasse a psicologia “natural”, mais objetiva, quantitativa, à psicologia
“mental”, mais subjetiva. Estamos nos referindo aos trabalhos de Vigotski e
colaboradores.
Um dos pontos-chave no trabalho de Vigotski (1999) é o que trata da
aquisição de conhecimentos pela interação do sujeito com o meio. Este autor
buscava pensar uma outra psicologia que tentasse ultrapassar as tendências
psicológicas predominantes no início do século XX – a psicologia enquanto
uma ciência dos fenômenos naturais ou como uma ciência da mente –
propondo um modelo no qual o homem pudesse ser abordado como
participante de um processo histórico, ou seja, uma psicologia sócio-
histórica.
Vigotski assinalava que as estruturas biológicas forneciam o suporte
necessário para que as estruturas psicológicas se formassem e se
constituíssem, uma vez que elas são frutos da atividade cerebral. Este
pensador russo entendia que o desenvolvimento humano estaria ligado à
plasticidade de seu sistema nervoso, ou seja, à sua capacidade de adaptação
em diferentes ambientes. Portanto, o desenvolvimento humano, em
Vigotski, está associado à história da espécie, à história do indivíduo e, como
esta última, este desenvolvimento é engendrado no interior da sua cultura.
Esse referencial sócio-histórico propõe uma outra maneira de
entender a relação entre sujeito e objeto no processo de construção do
conhecimento. No contexto dessa teoria, a atividade humana assume o
signi cado de mundo objetivo motivada por um desejo, o que resulta em
alguma transformação do mundo e do sujeito que a realiza.
Um dos princípios desta abordagem é o de que as relações humanas
com o mundo não são diretas, mas sim mediadas. Por mediação, Vigotski
(1999) entende um processo de transformação ativa, um processo de
intervenção de um elemento intermediário numa relação como resposta à
situação estimuladora. Vigotski de niu duas espécies de elementos
mediadores, conhecidos também como sistemas simbólicos: os
instrumentos e os signos. Os instrumentos são elementos colocados entre o
trabalhador e o objeto de seu trabalho, a m de ampliar as possibilidades de
transformação da natureza. Os signos, por sua vez, são vistos como meios
auxiliares no controle das ações psicológicas. Eles agem como instrumentos
da atividade psicológica de maneira análoga ao papel de um instrumento no
trabalho.
Outro conceito forjado nessa teoria da atividade é o de
internalização. O sujeito do conhecimento não é apenas passivo, regulado
por forças externas que o moldam, e nem somente ativo, regulado por forças
internas, mas sim interativo. Isso implica dizer que os conhecimentos, os
papéis e as funções sociais são internalizados na troca consigo e com outros
sujeitos, permitindo a construção do conhecimento e da própria
consciência.
Para Vigotski (1999), o aprendizado precede o desenvolvimento, ou
seja, a interação entre sujeitos e a interiorização das formas culturalmente
estabelecidas de funcionamento psicológico fornecem a matéria-prima para
o desenvolvimento do indivíduo. Desse modo, a gênese do desenvolvimento
do ser ocorre “de fora para dentro” ou, ainda, “do social para o individual”,
também chamada de sociogênese. Nesse contexto, ele engendrou o conceito
de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), que se de ne (em uma de suas
acepções) como sendo a distância entre o desenvolvimento atual
determinado pela resolução independente de problemas e tarefas, ou “nível
de desenvolvimento real”, e um nível mais elevado, conhecido como “nível
de desenvolvimento potencial”, determinado pela resolução de problemas
sob a orientação de adultos ou em colaboração com pares mais capazes. Por
conseguinte, nesta acepção, a ZDP refere-se à trajetória que o sujeito traça
para desenvolver funções que estão em estado embrionário, ou seja, em
processo de amadurecimento, e que se tornarão funções consolidadas.
Vigotski faz ainda a rmações que podemos utilizar considerando a
experiência-trabalho: a cada instante, todo aquele que trabalha apresenta
uma soma de possibilidades, todo um patrimônio, dos quais apenas uma
pequena quantidade se materializa como trabalho realizado. Esta “escolha”,
entretanto, nunca é de nitiva, precisa ser renovada, sempre de forma
diferente, pois precisa ser pertinente à situação atual de trabalho. O possível
e o impossível compõem então o que se denomina atividade de trabalho.

5 - Algumas abordagens clínicas do trabalho


Segundo Clot (2001), as abordagens clínicas do trabalho não visam à
criação de “nichos clínicos” no organograma da empresa moderna. Este
autor assinala que as transformações na organização do trabalho são
justamente o objeto da abordagem clínica do trabalho. Clot é seguidor da
tradição em ergonomia de Alain Wisner e também da psicopatologia do
trabalho de Le Guillant e Billard. A herança recebida a partir dos materiais
desses autores permite-nos a formulação da seguinte regra de ofício:
compreender para transformar.
Duas correntes principais se apresentam no campo da clínica do
trabalho. Uma, cujos aliados teóricos são do campo da psicanálise, foi
construída na metamorfose da psicopatologia do trabalho em
psicodinâmica do trabalho. A outra, mais recente, de tradição da ergonomia
francófona, aborda o problema da subjetividade no trabalho con gurando o
que denomina uma Clínica da Atividade. Seus aliados são da corrente
histórico-cultural em psicologia e em linguística dialógica, entre Vigotski e
Bakhtin.

5.1 - A psicodinâmica do trabalho


Trazendo contribuições efetivas para melhor compreender a “face
oculta do trabalho” (DEJOURS, 2004), seu caráter enigmático, a
psicodinâmica do trabalho (PDT)11 colabora nas investigações acerca da
invisível e enigmática maneira de os humanos se envolverem no
cumprimento dos objetivos do trabalho.
Inicialmente, Dejours e seu grupo de pesquisas de então (AOCIP),12
(ATHAYDE, 1996) tinham, como objeto de estudo, investigações em torno
de uma psicopatologia do trabalho (PPT). A partir do nal da década de
1980, ter-se-ia operado como que um corte epistemológico (que já vinham
engendrando há uma década): Dejours (2004) e seu grupo (reunidos no
Laboratório de Psicologia do Trabalho do CNAM/Paris) começam a
repensar seu objeto de estudo, indo de uma “análise do sofrimento psíquico
resultante do confronto dos homens com a organização do trabalho” para
uma “análise psicodinâmica dos processos intersubjetivos mobilizados pelas
situações de trabalho” (DEJOURS, 2004, p. 49). Esta alteração é marcada por
uma mudança na concepção e denominação do campo, de PPT para PDT, e
tem sido decisiva – entre outras no campo da psicologia do trabalho – para a
compreensão das possibilidades do trabalho como estruturante psíquico e
dos possíveis encaminhamentos do sofrimento em direção ao prazer e à
saúde.
Athayde (1996) assinala que Christophe Dejours, Damien Cru,
Phillipe Davezies e outros, ao encaminharem a vertente AOCIP da PPT, no
nal dos anos 1970, entendiam naquele momento que a organização do
trabalho era um dado monolítico, preexistente ao encontro dos humanos
com seu trabalho. Essa visão da organização do trabalho como um conjunto
de pressões massivas, monolíticas, inabaláveis, inexoráveis foi
gradativamente sendo modi cada com o desenvolvimento das suas práticas
de pesquisa-intervenção e seu encaminhamento em direção à PDT. Segundo
Athayde, tal perspectiva levou esta abordagem liderada pelo psiquiatra
francês a compreender a organização real do trabalho como uma relação
que se produz no encontro homem-trabalho, envolvendo uma negociação,
em algum nível.
A análise psicodinâmica das relações intersubjetivas que são
mobilizadas nas situações de trabalho nos auxilia na compreensão de algo
decisivo: os homens não se colocam de maneira passiva ante os
constrangimentos da organização do trabalho, pelo contrário, eles são
capazes de detectar, interpretar e reagir, se proteger, em grande parte, de
eventuais efeitos nocivos sobre sua economia psicossomática, sua saúde
mental. Não se trata apenas de mecanismos de defesa,13 conforme assinalado
por Freud (1997), e sim de sistemas de defesa engendrados
fundamentalmente por ação dos coletivos de trabalho, que fazem com que a
“normalidade” (Dejours busca dar nobreza a este amplo campo da
normalidade, dado que para ele a saúde é um valor, horizonte na vida) seja
preponderante em relação à “loucura”. Mesmo em condições precarizadas e
em formas de organização do trabalho deterioradas, os homens, de uma
maneira geral, permanecem “sujeitos” de seu trabalho (o sujeito, no sentido
psicanalítico, aí se mantém), capazes de compreender sua situação, de reagir
e de se defender. Ou seja, apesar da nocividade eventualmente presente, a
maioria dos trabalhadores não mergulham no reino das patologias e não se
tornam “doentes mentais do trabalho” (DEJOURS; ABDOUCHELI; JAYET,
1994).
As práticas de pesquisa-intervenção em psicodinâmica do trabalho
realizadas na França, com grupos de trabalhadores de diversas pro ssões,
em diferentes empresas e situações, apontaram que esses trabalhadores não
se mostravam inteiramente passivos diante das pressões organizacionais,
mas capazes de se proteger. Apesar do sofrimento – ou para além dele –
buscavam exercer um certo grau de liberdade que possibilitava a construção
de sistemas defensivos.
A perspectiva da ergonomia em relação ao hiato irredutível entre a
tarefa (prescrita) e a atividade (real) do trabalho, mesmo nas tarefas
consideradas de fácil execução, operou no deslocamento da ênfase entre
organização formal e informal do trabalho, para uma perspectiva técnica.
Veri cou-se que, além das contradições entre a organização do trabalho
prescrito e real, a organização do trabalho por si só é plena de contradições.
A organização real do trabalho depende de atividades de detecção e
interpretação da situação de trabalho e suas consequentes divergências e
con itos entre os trabalhadores. Os diferentes modos operatórios,
reguladores e/ou reformuladores, daí emergentes, con gurando-se em
outras formas de saber-fazer, levaram a PDT a identi car dimensões –
geralmente pouco valorizadas do trabalho – e a propor uma nova de nição:
“trabalho é a atividade manifestada por homens e mulheres para realizar o
que ainda não está prescrito pela organização do trabalho” (DEJOURS,
2004, p. 65).
Nesta heurística, o trabalho, passando a ser considerado como
desvio, como criação do novo e do inédito, mobiliza a participação de certa
inventividade, de uma criatividade, uma forma especí ca de inteligência que
Dejours chamou de “inteligência da prática” (ou astuciosa, do corpo), um
processo motricial que envolve aspectos psíquicos e coletivos.
Vimos que ao mostrar, clara e consistentemente, a defasagem entre
trabalho prescrito e trabalho real, a ergonomia da atividade contribuiu
decisivamente para novas percepções sobre o trabalho. Exemplo deste
legado é a PDT, que explorou bastante o que ocorre nesta defasagem,
demonstrando a inteligência que é mobilizada no trabalho para dar conta de
tal defasagem. A PDT revoluciona ao demonstrar que é o trabalho que
produz a inteligência e não o contrário.

5.1.1 - Os sistemas14 defensivos e os coletivos de trabalho


No curso de suas práticas de pesquisa-intervenção, a partir da
segunda metade dos anos 1980, a PDT percebeu que o trabalho também
poderia ser fonte e meio de prazer, de realização, de construção, de criação.
O conceito de sofrimento passa por uma reformulação, visto como uma
afecção básica, inerente ao humano, e que pode descambar em adoecimento
ou, por outro lado, tomar o rumo do prazer. A PDT leva em conta como
critério de análise os aspectos relativos à organização e às condições de
trabalho, mas vai apontar para a possibilidade de conquistar-se prazer,
mesmo em ambientes nocivos, e de haver adoecimento em situações com
pouca nocividade. Essa possível geração de prazer no trabalho rea rma a
ideia de que uma organização do trabalho estabelecida de forma rígida –
como nas organizações de tipo tayloristas, que oferecem pouca ou nenhuma
margem de criatividade – pode produzir sofrimento. Este impasse pode
levar o trabalhador a mobilizar sistemas defensivos psicológicos individuais
e/ou coletivos para assegurar seu equilíbrio psíquico.
Diante de uma situação de trabalho que os faz sofrer, os trabalhadores
não cam passivos ou neutros. Na di culdade ou impossibilidade de
lidar com a rigidez de certas pressões organizacionais, utilizam-se ou
põem em ação artifícios complexos para minimizar a percepção dessas
pressões que geram sofrimento e assim poderem continuar a trabalhar.
Lutam contra o sofrimento, utilizando sistemas defensivos construídos,
organizados e geridos coletivamente pelos trabalhadores. Essas defesas
coletivas modi cam, transformam a percepção da realidade que os faz
sofrer. (BORGES, 2006, p. 27)
Segundo Dejours (1994), os sistemas defensivos, ao funcionarem
como regras defensivas, supõem um consenso, ou acordo compartilhado.
Esse acordo normativo é que permite a esses sistemas se sustentarem e se
transmitirem. A negação da percepção da realidade (riscos, perigos, danos à
saúde, pressões de um modo geral) é operada, segundo Dejours, de forma
coletiva. Assim, constrói-se uma nova realidade que é validada pelo coletivo,
demonstrando que os sistemas coletivos de defesa têm um papel
fundamental na estruturação, na coesão e na estabilização dos coletivos de
trabalho.
As pesquisas de Damien Cru e Dejours na construção civil
demonstraram que, para se defender contra o medo, os trabalhadores
elaboravam procedimentos que consistiam em inverter simbolicamente a
relação com o risco, inventando rituais coletivos de trotes e zombarias,
desa ando declaradamente o medo. Movimentos contra aquilo que lembra a
fonte do medo, como recusa à utilização de equipamentos de segurança,
indisciplina com relação aos procedimentos de segurança, “jogos” de
exibição de coragem e destreza em cima das vigas, no alto das construções,
são alguns exemplos desses procedimentos que visam enfatizar a força, a
invulnerabilidade, a virilidade. Quem se recusa a participar não é aceito no
grupo, é classi cado como medroso, repreendido e excluído do convívio
grupal. O grupo não pode aceitar aquele que questiona a negação do perigo,
necessária para o enfrentamento das condições de trabalho em um canteiro
de obras (DEJOURS, 1997).
O sistema defensivo que se con gura na modalidade denominada
“ideologia defensiva” só funciona porque é coletivamente elaborado, nutrido
e preservado (daí seu caráter ativo e estratégico, em última instância). É
evidente que os sistemas defensivos coletivos criam uma percepção irrealista
da realidade, ainda mais no caso das ideologias defensivas, mas não se trata
de delírios, na medida em que essa nova realidade é validada coletivamente
(DEJOURS, 1987). A diferença fundamental que Dejours assinala entre um
mecanismo individual e um sistema coletivo de defesa é que este não se
sustenta a não ser que seja por consenso. Dejours (1987) chama de
“estratégia” exatamente para sublinhar que as contribuições individuais a
estas defesas são coordenadas e uni cadas pelas regras, as “regras
defensivas”. Essas regras supõem um acordo normativo e param de
funcionar quando os sujeitos não desejam mais fazê-las funcionar de
comum acordo. Eventuais fracassos dos sistemas defensivos podem levar o
trabalhador a recorrer a frágeis e perigosas defesas individuais, como o
alcoolismo, a violência ou a loucura, saídas normalmente condenadas pelo
grupo social, embora sejam encaminhamentos socialmente produzidos.
Athayde (2008) alerta para o grave risco dos sistemas de defesa
coletivos quando se transformam em ideologia defensiva e alimentam uma
resistência à mudança do que pode estar sendo a fonte da nocividade. No
momento em que os trabalhadores conseguem construir essas defesas,
precisando delas para se manter a qualquer custo trabalhando, passam a
hesitar em questioná-las, pois são elas que estão garantindo a continuidade
do seu trabalho. Desse modo, o objetivo da ação em PDT é colaborar para
detectar a presença de fontes de sofrimento patogênico pela detecção de
sistemas defensivos e buscar fazer a transformação dos sistemas ideológicos
em estratégicos e não apenas desquali car e/ou eliminar os primeiros.
Quanto à chamada “clínica das defesas” (os próprios autores da PDT
a consideram até hoje a descoberta empírica mais importante e original),
Athayde entende que temos aí um terreno ainda pouco desenvolvido, no
qual os principais autores derrapam e os usuários e comentadores dessa
proposição marcam passo ou reforçam os passos para trás (informação
verbal).15 Segundo sua leitura da PDT, a concepção de defesa implica
também em sofrimento (afecção que faz parte da normalidade – no plano
da saúde vivida, resultado precário da luta incessantemente conduzida
contra o adoecimento – desde que suportada), ou seja, temos aqui, para
Athayde (2008), dois conceitos indissociáveis. Chamam de sofrimento – nem
emoção nem angústia – a um afeto, um vivido individual experimentado
sempre no presente pelo que passaram a denominar “corpo próprio”. A
psicodinâmica do trabalho é ontologicamente primeira, ela é anterior ao
trabalho humano. Logo, não é o trabalho que causa o sofrimento.
Sofrimento gera ansiedades; uma das mais frequentes se con gura no medo
e só é possível trabalhar se o superar.
Esse sofrimento, então, pode tomar um destino patogênico ou um
rumo criador, neste caso, por meio do trabalho, transformando-se em
prazer, e em experiência estruturante da economia psicossomática,
reforçando a perspectiva da saúde. Temos aqui explanado um campo
dinâmico de forças, de tensão e luta, no trabalho, muitas vezes implicando
em cooperação (defensiva) e regras defensivas. Athayde assinala a
importância desses dois conceitos, em sua dinâmica, lembrando que
coletivo de trabalho é ao mesmo tempo coletivo de regras e coletivo de
defesa.
Athayde alerta ainda (como assinalamos em nota anterior) para o
uso generalizado da expressão “estratégias”, tendendo para o termo que
Dejours (1987) chegou a utilizar: “sistemas defensivos”. No entender de
Athayde, Freud apontou para o funcionamento de mecanismos defensivos. Já
a PDT exploraria o que aparece nos mundos do trabalho (ponto cego da
psicanálise, até aqui): sistemas defensivos, sempre coletivamente
construídos/organizados pelos trabalhadores (daí, para enfatizar as
diferenças: sistemas coletivos de defesa), portando as marcas inerentes a cada
situação de trabalho. Ele assinala também que, graças à cooperação
defensiva, asseguram-se as condições sociais de uma transformação da
subjetividade que permita “anestesiar” o sofrimento, conjugando o esforço
de todos. Seriam, pois, constitutivas de inconsciência social: elas não
modi cam o risco objetivo, já que sua percepção é transformada. Trata-se,
portanto, de um domínio – antes de mais nada – simbólico dos riscos que se
corre, os sistemas defensivos centrando-se na construção de um universo
simbólico comum (sua consistência vem de ser organizada por quem neles
crê, interessados em reduzir a força da percepção de realidades suscetíveis
de gerar sofrimento), baseando sua coerência de seu negativo, do que não se
deve dizer, uma semiologia do negativo, conclui Athayde. As defesas contra
o sofrimento têm sempre efeitos cognitivos. Elas orientam o curso do
pensamento, até mesmo criando obstáculos, ocultando uma parte
substancial da realidade – que não é posta em debate. Athayde aponta para a
presença de diferentes modalidades defensivas organizadas. A PDT já
de niu duas modalidades gerais: estratégias defensivas e ideologias
defensivas.
Athayde (2008) assinala para a diferença qualitativa entre a estratégia
e a ideologia defensiva. A presença desta modalidade defensiva pode até
mesmo levar a uma greve; mas no caso de seu sucesso, caso a gerência
chegue a negociar a possibilidade de mudanças, os trabalhadores não
conseguem ser propositivos. Na defesa de tipo estratégico, caso esteja em
curso essa ordem de mobilização, a capacidade compreensiva, afetiva,
cognitiva e social da situação poderá certamente dar o salto qualitativo para
apontar o que deve ser mudado.
Damien Cru16 é, para Athayde (2008), gura destacada nas
importantes descobertas que levaram à geração da PDT. Ele assinala que
Cru era pro ssional de prevenção no setor da construção civil e sempre
combateu a perspectiva “preventivista”. Esta tende a ignorar os mundos do
trabalho, sendo prescritivista, cando na intenção de “conscientização” dos
trabalhadores, esses “rudes a serem civilizados”. Essa perspectiva acaba, por
ignorância e/ou cegueira ideológica, desquali cando as defesas elaboradas
pelos trabalhadores, por exemplo, no limitado uso dos equipamentos de
segurança individuais (EPI’s), instrumentos na verdade muito frágeis e com
frequência mal construídos ou de fabricação duvidosa, deixando de lado o
fato concreto de que os empresários não cumprem as regras de uso de
equipamentos de proteção coletivas (EPC’s), estas sim muito poderosas.
Sob in uência da clínica e da antropologia psicanalítica, a PDT ca
no front, chamando a atenção de que qualquer defesa assinala, mesmo que
em um nível medíocre, um caráter ativo dos trabalhadores. Os pro ssionais
de saúde têm de partir deste elemento ativo de defesa e transformar a forma
ideologizada em estratégia stricto sensu. Esta seria a meta de um pro ssional
de prevenção, pontua enfaticamente Athayde.

5.1.2 - A inteligência da prática e a ressonância simbólica


Dejours (1993) assinala o quanto é comum os especialistas
predominantes nos mundos do trabalho considerarem o “fator humano” a
partir de um olhar negativo: as palavras usadas são: erro humano, falha
humana, negligência, incompetência etc. Ou seja, nesta concepção o
“humano” é sempre um fator causador de problema.
Este pensamento a rma que é preciso, sempre que possível, tentar se
desembaraçar dos humanos, os causadores de problemas. É também
este pensamento que guia, muitas vezes, as práticas dos pro ssionais de
RH que seguem no sentido contrário ao da Ergonomia, de “adaptar” o
trabalhador às necessidades do trabalho e “corrigir” as falhas advindas
do “fator humano”. (BORGES, 2006, p. 21)

Segundo Dejours (1993), as pesquisas de outra linhagem realizadas


sobre o chamado fator humano demonstraram que os trabalhadores
engendram procedimentos que evitam a ocorrência de acidentes e otimizam
o processo produtivo. Assim, os próprios trabalhadores criam, elaboram e
difundem aos seus pares os procedimentos que não foram objeto de ensino
anterior, durante sua formação.
Ora, não temos dúvida de que há um investimento intelectual em
qualquer atividade, inclusive naquelas ditas manuais, braçais. Dejours
(1993) procura cartografar que recursos psíquicos estão em jogo neste
investimento intelectual, e que ele denomina de “inteligência da prática”.
Segundo ele, há uma assunção do corpo, e principalmente da percepção, na
execução da tarefa. Dejours acrescenta que é importante esta dimensão
corpórea da inteligência da prática ser considerada, na medida em que ela
implica um funcionamento que se distingue fundamentalmente do
raciocínio lógico. Dejours (1993) assinala:
É a desestabilização do corpo total, em sua relação com a situação, que
desencadeia, inicia e acompanha o exercício desta inteligência prática.
Por isso, esta inteligência é fundamentalmente uma inteligência do
corpo. (DEJOURS, 1993, p. 286)

A formação dessa inteligência passa pela relação prolongada e


persistente do corpo com a tarefa, passa por uma série de procedimentos de
familiarização com a matéria, de intimidade com as ferramentas e os objetos
técnicos. Para desenvolver habilidade com uma máquina ou com uma
ferramenta, é necessário “senti-la”, é preciso colocar-se em “simbiose” com
ela, como se fosse a extensão do próprio corpo. É “tornar-se” a máquina,
“fazer corpo” com ela. Para isso, se estabelece um diálogo com a máquina a
partir de suas vibrações, seus ruídos, seus cheiros. O saudoso piloto de
Fórmula 1, Ayrton Senna, dizia que nas corridas, quando se aproximava das
curvas, ele ajustava o cinto de segurança com mais força que o normal. Ele
dizia que assim, com esse procedimento, sentia seu corpo mais preso ao
carro, sentia-se “meio carro”, estabelecendo assim uma relação “simbiótica”
com o equipamento e constituindo um “composto” vencedor de corridas e
de campeonatos.
Mas não é fácil falar dessa inteligência, que mesmo enraizada no
corpo nem sempre é percebida conscientemente:
Nonaka e Takeushi relatam a experiência de uma empresa japonesa no
desenvolvimento de uma máquina caseira de fazer pão. Vários
protótipos foram desenvolvidos sem sucesso até que uma analista da
empresa resolveu fazer um treinamento em serviço com o padeiro-
chefe da padaria que tinha a tradição de fazer o melhor pão da cidade.
Após anotar o passo-a-passo explicitado pelo padeiro sobre sua
maneira de misturar a massa, a analista cou vários dias observando e
imitando seus gestos. Descobriu, então, que havia um gesto que ele não
havia descrito no “manual”, uma forma de “torcer” a massa que o
padeiro não havia explicado porque ele próprio não se dava conta de
que o fazia. Ou de que ele era importante para que a mistura casse
num padrão de excelência. Este é um caso que aponta para a
inteligência do corpo. Ruídos, olhares, cheiros, vibrações são sentidos
em primeiro lugar no corpo, convocando-o a buscar explicações ou
soluções. (BORGES, 2006, p. 23)

Dejours (1993) aponta ainda para outra característica da inteligência


da prática, como a que atribui mais importância aos resultados da ação do
que ao caminho percorrido; segundo ele, reina a trapaça, a esperteza e a
astúcia. A justi cativa, a explicação e a elucidação do ato só ocorrem
posteriormente. Neste sentido a experiência é primeira. A experiência
antecede o saber. O que predomina, então, é a astúcia e o ardil. A
inteligência da prática é, então, segundo este autor, uma inteligência
ardilosa. A inteligência da prática se faz presente em todas as tarefas e
atividades de trabalho, não cabendo aqui diferenciação entre trabalho
manual e trabalho intelectual.
Uma terceira característica da inteligência da prática (ou ardilosa)
apontada por Dejours (1993) é o fato de ela ser distribuída entre todos os
homens. Segundo o autor, ela é ativa e se manifesta em todos os sujeitos,
desde que eles estejam em boas condições gerais, ou que, de qualquer modo,
gozem de boa saúde. O corpo alimenta e desencadeia a inteligência, ele
coloca o sujeito em estado de alerta. O estado do corpo é um componente
do poder da inteligência. Um corpo por demais fatigado, muito doente ou
esgotado, enfraquece a inteligência ardilosa e a criatividade. É isso, segundo
ele, que confere à inteligência ardilosa um caráter “pulsional”. E é também o
que faz com que a maioria das pessoas saudáveis experimentem uma
verdadeira necessidade de exercer sua inteligência. A contrapartida desta
propriedade é que a subutilização desse potencial de criatividade é uma das
principais fontes de sofrimento, de desestabilização da economia
psicossomática, e mesmo de descompensação e doença. Ela, portanto, é
pulsional, e sua subutilização é patogênica.
Dejours (1993) procura mapear o campo de atuação do sofrimento
no trabalho a partir de interessantes contribuições de uma determinada
linhagem psicanalítica. Seguindo a tradição das investigações psicanalíticas,
Dejours busca, nas pesquisas infantis, pistas que o auxiliem numa melhor
compreensão do trabalho e de sua psicodinâmica. Segundo este autor, os
obstáculos com que a criança se defronta em seu desenvolvimento
psicoafetivo ocuparão mais tarde um lugar central na relação psíquica do
adulto com o trabalho; este papel pode ser positivo, a rmativo e não reativo.
A criança é sensível ao sofrimento dos pais e, para metabolizar, então, seu
sofrimento, seria preciso que a criança falasse com os pais acerca deste
sofrer. Dejours assinala que a criança aprende a contornar este terreno
movediço, mas, dentro dela, cristaliza-se então uma zona de fragilidade
psíquica; aí se situa a fonte inesgotável do sofrimento singular de cada
sujeito. Neste ponto, temos uma concepção de sofrimento que orienta as
análises posteriores de Dejours.
Com o advento da linguagem e das pesquisas infantis, a criança
permanece preocupada em compreender o que se passa ao seu redor e o
enigma permanece. Tal enigma origina uma curiosidade que não se satisfaz:
desejo de saber, desejo de compreender, desejo de entender. A psicanálise
atribui a esta dinâmica psíquica o nome de pulsão epistemofílica (desejo de
saber). A criança, na medida em que vai crescendo, vai construindo teorias
infantis que se sucedem sem sofrer substituição e que vão se acumulando, de
forma que ocupam lugares no psiquismo adulto.
Segundo Dejours (1993), o trabalho é uma oportunidade que surge
para transpor o cenário original do sofrimento. Este autor aponta para uma
montagem psíquica chamada “teatro do trabalho”. Imaginariamente, a
criança monta um teatro para encenar seu desejo de compreender, tentando
transformar seu sofrimento em peça de teatro. O trabalho, para Dejours,
funcionaria como uma segunda oportunidade de encenação. Se no teatro do
jogo a criança contracena com os pais, no teatro do trabalho, o então adulto
contracena com seus companheiros. Assinala Dejours (1993) que “se o
objetivo no teatro do jogo era o jogo, no teatro do trabalho o objetivo passa
a ser ação no campo da produção, das relações sociais, e mesmo da política”
(DEJOURS, 1993, p. 292).
O teatro do trabalho funciona como suporte, como oportunidade de
representar novamente uma situação próxima do cenário inicial do
sofrimento. Mas seriam necessárias analogias de estrutura ou de forma entre
o teatro infantil e o teatro do trabalho; não sendo isso possível, uma
ambiguidade se cria. Mas, segundo o autor, é esta ambiguidade que solicita
imaginação e criatividade. É esta ambiguidade que mobiliza o patrimônio
deste adulto. A esta ambiguidade, Dejours (1993, p. 293) chamou de
“ressonância simbólica”, e quando ela existe entre o teatro do trabalho e o
teatro do sofrimento psíquico, “o sujeito aborda a situação concreta sem ter
de deixar sua história, seu passado e sua memória no vestiário”. Assim, ele se
aproveita da situação de trabalho para reatualizar sua pulsão epistemofílica.
O trabalho surge como uma nova chance de prosseguimento de seus
questionamentos psíquicos, permitindo, via ressonância simbólica, uma
articulação entre a organização e as relações sociais do trabalho e a história
do sujeito. A ressonância simbólica permite que o trabalho se bene cie desta
mobilização de processos psíquicos.
Se o trabalhador tiver escolhido uma atividade de acordo com o seu
desejo e a sua história, produzir criativamente soluções para os enigmas que
o trabalho lhe coloca cotidianamente e obtiver o reconhecimento dos pares,
isto produzirá uma ressonância simbólica entre o que Dejours chama de
teatro psíquico e teatro do trabalho.
Na atividade de concepção, o trabalhador atualiza o prazer da
atividade lúdica, ou seja, o jogo no sentido winnicottiano. Num sentido mais
geral, o trabalho seria uma das cenas possíveis do jogo no qual, se há espaço
para a concepção, há também para o jogo. Na infância, o jogo permite o
desenvolvimento da criatividade, imaginação, pensamento e, segundo
Winnicott (1975), é condição essencial para o desenvolvimento saudável da
criança.17
A inteligência da prática é transgressora, posto que ela pressupõe a
quebra das rotinas e/ou das normas previamente estabelecidas.
Normalmente, isso tende a provocar em quem as transgride, um receio de
ser punido ao tornar públicas suas invenções, fazendo com que o recurso ao
segredo seja muito comum. Todavia, o recurso ao segredo pode levar o
trabalhador ao isolamento pessoal e à solidão por ter de assumir sozinho a
responsabilidade pelo desrespeito às normas. Além de ter de lidar com os
riscos que podem advir de tal transgressão, a inteligência da prática coloca
os trabalhadores em uma situação de ambivalência. Demonstrando como
lidar com tal ambivalência, Borges (2006), explorando Dejours, apresenta
algumas condições especiais de mobilização:
a) a existência de uma organização de trabalho prescrita: para que possa
haver a subversão acionada por este tipo de inteligência é preciso que
haja a prescrição. Não há subversão sem regras que possam ser
subvertidas. Encontra-se aqui uma visão não desquali cadora da
prescrição; b) dar visibilidade ao que se faz, pois subverter a
organização prescrita do trabalho, condição indispensável para a
execução do trabalho, signi ca assumir riscos. A visibilidade é
fundamental para que o trabalhador possa assumir e compartilhar os
riscos na medida em que optar pela solidão e pelo segredo produz
descon ança e medo; c) é preciso que o trabalho seja reconhecido,
validado socialmente pela dinâmica do reconhecimento que inclui o
julgamento da utilidade e o julgamento da estética. (BORGES, 2006, p.
26)

A validação social e o julgamento da utilidade técnica, social ou


econômica são realizados pela hierarquia, pelos colaterais, pelos
subordinados e pelos clientes. Trata-se de atos simbólicos que implicam
reconhecimento da legitimidade das escolhas feitas, do mérito do
trabalhador e da qualidade nal do trabalho. O julgamento estético ou da
beleza será realizado pelo coletivo de trabalho, aqueles que conhecem as
regras e podem fazer interpelações sobre sua estética e originalidade. A PDT
assinala que é a partir desse julgamento que um trabalhador pode se sentir
pertencendo a um determinado coletivo, sendo que tal sentimento de
pertença é também gerador de prazer. Prazer no trabalho é também a
principal contribuição que essa inteligência criadora representa para a
organização.
A PDT assinala também, por outro lado, que o constrangimento do
exercício da inteligência da prática – nas formas de organização de trabalho
taylorizadas ou burocratizadas, por exemplo, – se con gura como uma das
causas mais poderosas de sofrimento no trabalho.

5.2 - A Clínica da Atividade


Na Clínica da Atividade – que tem como principais autores o
psicólogo Yves Clot e o linguista Daniel Faïta – busca-se tirar partido do
duplo patrimônio da ergonomia da atividade e da psicopatologia do
trabalho, que são originalidades francesas (na verdade, francofônica, no caso
da ergonomia da atividade, dada a importância da produção gerada na
Bélgica, em seus começos). Athayde assinala que a seu ver se trata de uma
abordagem fecundada em uma perspectiva ergológica (informação verbal).18
Faïta foi, juntamente com Schwartz, um dos criadores do dispositivo que
este último denominou “Dispositivo Dinâmico de 3 Pólos”. Clot teve Yves
Schwartz como orientador de sua tese de doutorado, tendo por longo tempo
trabalhado junto ao que posteriormente se tornou o Departamento de
Ergologia, na Université de Provence. Athayde assinala também que Clot
denominava inicialmente esta abordagem de Clínica da Atividade e dos
Meios de Trabalho, explicitando a in uência de Canguilhem em sua
abordagem. Para Clot (2001), as relações entre atividade e subjetividade
estão privilegiadas na análise. O trabalho é visto não somente como trabalho
psíquico, mas como uma atividade concreta e irredutível:
Melhor dizendo, a atividade é, para nós, o continente escondido da
subjetividade no trabalho. É precisamente neste campo que se observa,
do modo mais claro possível, o que nos convém nomear aqui a
desrealização das organizações o ciais do trabalho contemporâneo. Este
é o ponto de partida de toda clínica da atividade. (CLOT, 2001, p. 4,
grifo do autor)
Clot (2001) acrescenta que o real em situação de trabalho,
necessariamente semeado de armadilhas, é um continente abandonado
pelos quadros gerenciais, cada vez mais chamados a focalizar as demandas
relativas à gestão. A prescrição da subjetividade – sinônimo de engajamento
de si e de disponibilidade para a empresa ou para o serviço – se faz mais
frequentemente hoje, abandonando as preocupações da organização da
atividade aos assalariados da “linha de ponta”, diretamente envolvidos com
um real do qual eles podem di cilmente se subtrair.
Para este autor, uma das maiores dissociações do trabalho atual está
em que trabalhar é ter frequentemente que fazer face a uma injunção:
assumir responsabilidades sem ter responsabilidade efetiva na de nição do
trabalho – “responsabilidades sem responsabilidade”. Uma disponibilidade
psíquica cada vez maior é necessária aos trabalhadores para agir nos meios
pro ssionais, que demandam que os trabalhadores coloquem cada vez mais
de si no trabalho. Este fato tem consequência: a disponibilidade exigida
pressupõe, em troca, e mesmo exige, um desenvolvimento de recursos
coletivos com vistas à ação.
A organização do trabalho deveria colocar seus recursos à disposição
dos trabalhadores, mas se furta a esta missão. Ou seja, ela os priva dos meios
de exercer as responsabilidades que eles assumem apesar de tudo. Por outro
lado, existe uma perturbação em relação ao sentido, aos valores do trabalho
e à de nição de sua qualidade no momento em que se força a entrada destes
valores no modelo excessivamente estreito da e cácia a curto prazo. A rma
Clot (2001):
O trabalho deserta da sua função psicológica para os sujeitos quando o
ofício se perde – ou não é mais buscado –, quando ele se confunde com
a execução de procedimentos, não importando se são úteis. A
possibilidade coletiva de elaborar os objetivos e os recursos da ação
pro ssional tornou-se uma condição fundamental do trabalho
contemporâneo. Esta exigência não é contornável a não ser a um custo
social e subjetivo incalculável. Simultaneamente oferecidas e recusadas,
as responsabilidades usam os sujeitos. Paradoxalmente a organização
do trabalho, privando os assalariados dos apoios necessários, contraria
a ação, ou mesmo impede de trabalhar. (CLOT, 2001, p. 5)

A estratégica abordagem conceitual que a Clínica da Atividade


propõe para dar conta das questões do trabalhar não é a mesma da
Psicodinâmica do Trabalho. Ela se aproveita da formulação da PDT para
produzir-se, enquanto diferença, uma abordagem singular de clínica do
trabalho. Por exemplo, para Clot (2001), o conceito de sofrimento deve
apontar para uma atividade contrariada, para um desenvolvimento
impedido, para uma amputação do poder de agir. Trata-se, para este autor,
de uma atividade envenenada ou intoxicada. Segundo ele, a organização do
trabalho, de numerosos setores de serviços e da indústria, tendem, hoje em
dia, a “diminuir” aqueles que trabalham. Estes últimos estão estreitados,
como que encolhidos pela atividade realizada. Certamente, esta atividade
realizada já é outra coisa totalmente diferente da tarefa o cialmente
prescrita, da qual a estrita execução simplesmente não permitiria atender
aos objetivos xados. Mas Clot pretende ir além dos ensinamentos da
ergonomia da atividade. Aqui Athayde (2008) assinala em Clot uma postura
menos ergológica, dado que este não pretende ir além, mas contribuir para o
desenvolvimento da ergonomia – ou de qualquer disciplina, abordagem ou
saber.
A Clínica da Atividade retoma a herança da Psicopatologia do
Trabalho por tentar ultrapassar a de nição clássica do fenômeno
psicológico. Para além de uma concepção amorfa da atividade de trabalho
(como percebe em sua leitura da Ergonomia da Atividade), Clot propõe
incluir neste conceito os con itos do real: “A atividade não é somente aquilo
que se faz”.
En m, seguindo de perto Vigotski, a atividade possui um volume
que transborda a atividade realizada.
Em matéria de atividade, o realizado não possui o monopólio do real. A
fadiga, o desgaste violento, o estresse se compreende tanto por aquilo
que os trabalhadores não podem fazer, quanto por aquilo que eles
fazem. As atividades suspensas, contrariadas ou impedidas, e mesmo as
contra-atividades, devem ser admitidas na análise assim como as
atividades improvisadas ou antecipadas. A atividade removida, oculta
ou paralisada não está ausente da vida do trabalho. A inatividade
imposta – ou aquela que o trabalhador se impõe – pesa com todo o seu
peso na atividade concreta. Pretender deixar estas coisas de lado em
análise do trabalho signi ca extrair arti cialmente daqueles que
trabalham os con itos vitais dos quais eles buscam “se livrar” no real. O
conceito de atividade deve então, incorporar o possível ou o impossível
a m de preservar nossas possibilidades de compreender o
desenvolvimento e a sua entrada em sofrimento. (CLOT, 2001, p. 6)

Segundo Clot (2001), o mais interessante neste enfoque é que ele é


útil para dar conta das dissociações atuais do trabalho e renova a melhor
crítica do taylorismo formulada nos anos 1930. Escolhendo o movimento
que pede o mínimo de intervenção por parte do homem, o taylorismo o
priva de sua iniciativa. O esforço não é somente aquele que esse homem faz
para seguir a cadência. É igualmente aquele esforço que ele deve aceitar
fazer para refrear a sua própria atividade. Assim, exige-se dele um sacrifício
que o condena a uma imobilidade que gera uma tensão contínua. É esta
tensão que não pode ser gasta em movimentos, que quebra a máquina
humana. A calibragem do gesto, ao mesmo tempo prescrita e interditada, é
uma amputação do movimento. É ela que custa mais ao trabalhador. Clot
assinala que, nos anos 1960, Le Guillant utilizou a dialética da amputação do
poder de agir para dar conta da psicopatologia social própria do mal-estar
dos jovens. A clínica do trabalho proposta por Clot e Faïta busca delegar
para as controvérsias pro ssionais nos coletivos de trabalho, o cuidado de
restaurar os recursos da ação. Estes métodos (ou técnicas, como considera
Athayde) – entre os quais a autoconfrontação cruzada operará na
abordagem da Clínica da Atividade, desenvolvendo as técnicas criadas pela
psicologia ergonômica francófona e pelo Modelo Operário Italiano de luta
pela saúde (ODDONE; RE; BRIANTI, 1981) – são concebidos como
recursos para os próprios coletivos de trabalho. O dispositivo de análise não
visa senão assessorá-los, ajudando num enquadramento dialógico (seguindo
os passos de Bakhtin), permitindo ao trabalho voltar a ser uma ocasião de
ampliar seu raio de ação, a fonte de uma regeneração da atividade conjunta.
Estudando detalhadamente aquilo que os trabalhadores fazem,
aquilo que eles dizem do que fazem, mas também aquilo que eles fazem do
que eles dizem, Clot, Faïta e suas respectivas equipes desembocam num
reconhecimento singular: o das possibilidades insuspeitadas pelos próprios
trabalhadores. E isso graças à restauração dos “debates de escolas” sobre as
maneiras de trabalhar e de dizer que dão uma história possível aos dilemas
do real.
A pesquisa, para Clot, não sofre com isso. Seu objeto também se
transforma. Em vez da formulação predominante da regra de ouro do ofício
dos analistas do trabalho – compreender para transformar – o autor prefere
outra formulação: transformar para compreender.19 É o que permite
entender as relações entre o real e o realizado. Compreender em que
condições a experiência vivida pode ser (ou vir a ser) um meio de viver
outras experiências.
Ao trabalhar o conceito de atividade, Yves Clot (1999) chama a
atenção para a “repetição sem repetição” ou seja, é a repetição além da
repetição que é produtora de desenvolvimento. Em outras palavras, trata-se
de fazer a mesma coisa para fazer outra coisa. Do contrário, há um
subdesenvolvimento que necrosa o trabalho e a saúde. Temos ambientes
pro ssionais que solicitam do sujeito uma repetição para além da repetição
(desenvolvimento); já outros meios requerem a repetição idêntica
(operações repetitivas = subdesenvolvimento = ruim para a saúde). No
teatro, por exemplo, repete-se a mesma coisa em contextos diferentes. A
atividade é reendereçada todo dia para públicos diferentes. Repetir a
atividade, no sentido teatral, é variar sobre o mesmo tema; previne-se a
necrose e mantém-se a saúde. Para Clot, é nesse sentido que o trabalho é um
teatro. A Clínica da Atividade consiste, então, em fazer variar, em contextos
diversos, a mesma coisa, que deixa de assim o ser porque é endereçada
diferentemente. Há subdesenvolvimento quando há operações repetitivas
(ex: telemarketing, script linguageiro, tentativa de fazer linguagem sem
pensamento). Clot assinala que a improvisação precisa de muito
treinamento. Para improvisar é preciso saber muito.

Concluindo
Conforme vimos anteriormente, partindo da clássica descoberta da
Ergonomia da Atividade, diferenciando “trabalho prescrito” e “trabalho
real”, assim como sinalizando as regulações mobilizadas pelos operadores,
empreendidas para dar conta dos limites e dos equívocos da prescrição e da
presença de variabilidades e do acaso, encontramos a perspectiva ergológica
e uma série de abordagens clínicas do trabalho mobilizadas na ampliação do
conceito de atividade, retirando-o da camisa de força comportamentalista
(questão colocada por Vigostki, em psicologia, por exemplo). O caráter
sempre enigmático do trabalho, assinalado por Yves Schwartz, excedendo as
antecipações e formas de conhecimento já existentes, é apreendido por
Dejours enquanto real do trabalho, ao passo que Clot prefere assinalar o que
está em jogo como real da atividade.
A partir dos referenciais aqui indicados, entendemos que investigar
o trabalho sob o ponto de vista da atividade nos coloca desa os e também a
exigência de composição de diferentes instrumentos teórico-metodológicos.
Incorporar o ponto de vista da atividade de trabalho implica também
relacionar comportamentos observáveis dos trabalhadores e elementos que
não são observáveis – as decisões tomadas, o pensamento no trabalho,
percepções e interpretações realizadas sobre sua própria atividade, ações não
realizadas, modos operativos inventados e saber-fazer construídos, que são
acessados com a confrontação de diferentes olhares: o do(s) pesquisador(es)
e daquele(s) que realiza(m) a atividade.
Nesta perspectiva, entendemos que incorporar o possível e o
impossível, nas dramáticas do trabalhar, incorporando os protagonistas da
atividade numa comunidade de pesquisa, nos permite aproximarmo-nos do
caráter singular da atividade de trabalho, acessando toda uma riqueza aí
presente. Ressaltamos, por m, o caráter lúdico do humano. Entendemos
que essa dimensão se faz presente no trabalho e tem sido insu cientemente
explorada, colocando grandes limites para o desenvolvimento humano no
trabalho.

Referências
ATHAYDE, M. Coletivos de trabalho e modernização: questões para a
Engenharia de Produção. 1996. Tese (Doutorado em Engenharia de
Produção) – Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa
de Engenharia (COPPE), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 1996.
_______. Notas da atividade de orientação de Milton Athayde. Rio de
Janeiro: UERJ, 2008.
BASTOS, A. O lúdico no trabalho: o ponto de vista da atividade como
operador de análise do lúdico no trabalho dos “menores” em um programa
adolescente trabalhador. 2008. Tese (Doutorado em Psicologia Social) –
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
BORGES, M. O RH está nu: tramas e urdiduras por uma gestão coletiva do
trabalho. 2006. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
CLOT, Y. Clínica do trabalho, clínica do real. Le journal des psychologues, n.
185, mar. 2001. (Tradução para ns didáticos: Kátia Santorum e Suyanna
Linhales Barker).
_______. La fonction psychologique du travail. Paris: PUF, 1999.
CRU, D. Saberes de prudência nas pro ssões da construção civil: nova
contribuição da Psicologia do Trabalho à análise da prevenção de acidentes
na construção civil. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v.
15, n. 59, p. 30-34, 1987.
DEJOURS, C. Inteligência operária e organização do trabalho: a propósito
do modelo japonês de produção. In: HIRATA, H. (Org.). Sobre o “Modelo”
japonês. São Paulo: Edusp, 1993. p. 281-309.
_______. O fator humano. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997.
_______. Saberes de prudência nas pro ssões da construção civil. Revista
Brasileira de Saúde Ocupacional, n. 59, p. 30-34, jul./ago. 1987.
_______. Subjetividade, trabalho e ação. Revista Produção, v. 14, n. 3, p. 27-
34, set./dez. 2004.
_______; ABDOUCHELI, E; JAYET, C. Psicodinâmica do trabalho:
contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e
trabalho. São Paulo: Atlas, 1994.
FREUD, S. Além do princípio de prazer. In: _______. Obras completas. Rio
de Janeiro: Imago, 1997. vol. 18.
GUÉRIN, F. et al. Compreender o trabalho para transformá-lo. São Paulo:
Edgard Blücher, 2001.
NOUROUDINE, A. Techniques et cultures: comment s’approprie-t-on des
technologies transférées? Toulouse: Octarès éd., 2001.
ODDONE, I.; RE, A.; BRIANTI, G. Redécouvrir l’expérience ouvrière. Paris:
Messidor, 1981.
OLIVEIRA, M. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento, um processo
sócio-histórico. São Paulo: Scipione, 1995.
RESENDE, Marcelo. Trabalho em Call Center: estudo exploratório sobre a
mobilização das teleatendentes para compatibilizar saúde com a
produtividade e qualidade requeridas. 2007. Dissertação (Mestrado em
Saúde Pública) – Escola Nacional de Saúde Pública, FIOCRUZ, Rio de
Janeiro, 2007.
SCHWARTZ, Y. Os ingredientes da competência: um exercício necessário
para uma questão insolúvel. Educação e Sociedade, Campinas, v. 19, n. 65,
1998.
_______. Le paradigme ergologique ou un métier de philosophe. Toulouse:
Octarés, 2000.
_______. Intervenir dans la vie des autres. In: COLLOQUE EDF: “Le
nucléaire et l’homme”, Paris 9-10/10/2002. Paru dans les actes du colloque,
2002.
_______. Le travail et l’ergologie. In: SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, L. Travail
et ergologie: entretiens sur l’activité humaine. Toulouse: Octarès Editions,
2003.
VIGOTSKI, L. Pensamento e linguagem. São Paulo: M. Fontes, 1999.
WINNICOTT, D. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

1 Este capítulo é parte revisada da tese de doutorado do autor.


2 Professor TI do curso de Psicologia do Centro Universitário de Barra Mansa-RJ. Doutor em
Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro com estágio de doutorado sanduíche
na Universidade de Provence.
3 Chico Buarque – DVD “Uma Palavra” – RJ: RWR Comunicações, 2006.
4 Yves
Schwartz é lósofo, membro do Instituto Universitário da França (IUF) e diretor cientí co do
Departamento de Ergologia da Université de Provence.
5 Flou é um termo da língua francesa, que na língua portuguesa é utilizado nas artes plásticas,
signi cando algo que é esbatido, esfumado, pouco nítido ou de contornos uidos.
6 Principalmente por intermédio dos trabalhos de Vigotski e Bakhtin. Formado em direito pela
Universidade de Moscou, Lev Vigotski, durante o seu período acadêmico, estudou também literatura
e história. Vigotski é o grande fundador da escola soviética de psicologia, principal corrente que, hoje,
dá origem ao socioconstrutivismo. Apesar da vida breve (morreu de tuberculose), foi autor de uma
obra muito caudalosa, junto com seus colaboradores Alexander Luria e Alexei Leontiev, e re ete o
desejo de reescrever a psicologia, com base no materialismo marxista, e construir uma teoria da
educação adequada à nova realidade social emergida da revolução russa. Desenvolveram um novo
tipo de psicologia, relacionando os processos psicológicos com aspectos culturais, históricos e
instrumentais, com ênfase no papel fundamental da linguagem. Bakhtin, por sua vez, estudou loso a
e letras na Universidade de São Petersburgo. Ele conheceu os principais expoentes do formalismo
russo e publicou Freudismo (1927), O método formal nos estudos literários (1928) e Marxismo e
Filoso a da Linguagem (1929). Os seus estudos só foram conhecidos no Ocidente a partir da década
de 1980. Seu trabalho é considerado in uente na área de teoria literária, crítica literária,
sociolinguística, análise do discurso e semiótica. Bakhtin é um lósofo da linguagem e sua linguística
é considerada uma “trans-linguística” porque ela ultrapassa a visão de língua como sistema. Para
Bakhtin, não se pode entender a língua isoladamente, mas qualquer análise linguística deve incluir
fatores extralinguísticos como contexto de fala, a relação do falante com o ouvinte, momento histórico
etc.
7 Logar é um termo corrente em informática. Trata-se de uma operação ou processo inicial de uma
sessão de conexão, em que geralmente o usuário se identi ca, por exemplo, fornecendo nome e senha
para autenticação pelo sistema computacional.
8 Importante ressaltar que a transdisciplinaridade não trata de manter e eternizar os saberes ou
disciplinas, preservando sua pretensa natureza e unidade. Também não é um dispositivo no qual
coabitam múltiplos olhares ou ocorrem trocas de olhares – multidisciplinaridade ou
interdisciplinaridade. Com a transdisciplinaridade, colocamos em questão a própria noção de
disciplina como código instituído e a-histórico. Propõe-se entrar em contato com cada disciplina e
trazer para o campo de análise sua história, seu caráter transitório e parcial, os recortes que imprime
nas práticas e como produz seu próprio objeto de estudo. Problematiza-se o “entre”, as fronteiras entre
as disciplinas, o interstício entre sujeito e objeto; entre teoria e prática; ciência e loso a, a ponto de
estas fronteiras tornarem-se instáveis, levando à produção de uma discursividade híbrida, bem
diferente da forma hierarquizada e estanque das disciplinas instituídas.
9É necessária à psicologia a ousadia de não se restringir a uma única opção teórico-metodológica e o
desenvolvimento de uma humildade epistemológica que possa suportar o fato de que as ciências não
dão conta inteiramente do objeto de análise.
Na perspectiva da ergologia - que tem Yves Schwartz como destaque - é impossível que não exista
10

atividade. Em uma situação de trabalho, não há como se ater unicamente ao que é prescrito, ou seja,
àquilo que é determinado antes da realização do trabalho. Ora, só existe trabalho se existe um sujeito
que trabalha. As formas de gestão das estruturas organizacionais tayloristas acreditavam que apenas
seguir as normas, os procedimentos escritos, as prescrições seria su ciente para a realização a bom
termo do trabalho. A ergologia sustenta que a prescrição (como uma das “normas antecedentes”)
nunca é su ciente para dar conta da produção exigida. O trabalho real (o que é efetivamente
realizado) exige sempre uma mobilização cognitiva e afetiva do trabalhador (o “real do trabalho”). O
trabalho, por conseguinte, nunca é só mera execução (BORGES, 2006).
Objetivando facilitar a escrita e a leitura deste texto, serão utilizadas doravante as siglas PDT e PPT,
11

conforme usado por Athayde (1996).


12
“Associação pela abertura do campo de investigação em Psicopatologia do Trabalho”.
Mecanismos de defesa são processos inconscientes, lançados pelo Ego, que permitem encontrar uma
13

solução para con itos não resolvidos no nível da consciência. A psicanálise aponta para a existência
de forças mentais que se opõem umas às outras e que batalham entre si.
Vamos aqui, conforme Athayde, preferir usar o vocábulo sistemas, em vez de estratégias, para falar
14

deste conjunto mais amplo de defesas coletivas no trabalho. Dejours, em poucos momentos, utilizou
esta expressão sistemas (DEJOURS, 1987). Quase sempre, ele faz uso do vocábulo estratégias, no
interior das quais insere a modalidade ideologias defensivas. Athayde entende que deste modo Dejours
reitera o caráter ativo e estratégico, em última instância, das “ideologias”, recusando, assim como Cru,
a tendência desquali cante deste tipo de sistema defensivo por parte dos patrões, engenheiros e
técnicos de prevenção, operadores de uma tendência que Cru denomina “preventivista”. Entretanto,
revela-se aí, para Athayde, uma certa pobreza no desenvolvimento destes possíveis conceitos,
colaborando para que em uma leitura de menor fôlego de rigor, se misturem as modalidades
estratégicas stricto sensu e as ideológicas. Considerando a gravidade da ação das ideologias defensivas
e a riqueza potencial das estratégias, Athayde recusa seu uso, frequentemente rasteiro, e propõe um
cuidado maior na compreensão e uso destas noções, ainda insu cientemente consistentes e
provisórias teoricamente. Vamos aqui nesta direção.
15
Notas de conversas com o autor, 2008.
Os estudos de Damien Cru (1987) sobre o trabalho na construção civil foram decisivos para
16

demonstrar a existência e a particularidade dos sistemas defensivos que, estabelecidos coletivamente,


permitem lidar com o medo e a angústia no trabalho pelo realce a tudo que esteja no registro da
coragem, da força física e da virilidade. Os sistemas defensivos coletivos pressupõem a construção de
regras e, portanto, supõem um acordo normativo, um consenso, estando, assim, na dependência
direta das condições externas de sua criação e manutenção e tendo um papel essencial na estruturação
dos coletivos de trabalho, na sua coesão e estabilização e, portanto, na sua consecução.
Consideramos Winnicott como o mais importante e original pensador do brincar dentro do campo
17

psicanalítico. Suas concepções a respeito do espaço potencial são de grande valia para aqueles que se
propõem a pensar o trabalho, tendo o ponto de vista da atividade como operador transversal. O
espaço potencial permite ao ser humano a possibilidade de lidar com a realidade objetiva de modo
criativo, possibilitando assim um contato com o mundo externo amplo e saudável. Para Winnicott, o
brincar é uma atividade humana universal, própria da saúde, fundamento de todo o viver criativo,
assim como da arte e da cultura.
18
Notas de orientação de Milton Athayde, março de 2008.
Conforme Athayde (2008), na verdade esta formulação já é presente, sem o dizer, em tantas outras
19

abordagens como na ergonomia, na PDT etc., ou explicitamente formuladas em Marx, no Movimento


Institucionalista e na Esquizoanálise.
Pragmática e relação clínica
André do Eirado1
Roberto Preu2

Durante a segunda metade da década de 1990 e início da década de


2000 empreendemos, no Departamento de Psicologia da Universidade
Federal Fluminense, uma série de pesquisas que tinham como objetivo
investigar a interface entre a vertente pragmática da loso a da linguagem e
os estudos desenvolvidos no campo teórico e clínico da psicologia. Estas
pesquisas, em função de razões exteriores ao trabalho que realizávamos,
foram interrompidas sem que tivéssemos tido a possibiildade de tornar
público, de um modo que para nós fosse satisfatório, o que ali havia sido
produzido. Há algum tempo, nos reencontramos e pudemos revisar o que
havia restado da produção daquele tempo. Veri camos que, em nossa
atividade como professores, em sala de aula, estas discussões ainda
comparecem de alguma forma. Diante disto, decidimos, na medida do
possível, retormar o material que produzimos e publicar de maneira mais
formal o que ainda nos mobiliza.
No ano passado, tivemos a oportunidade de publicar um texto
(PREU; EIRADO, 2008) em que revemos algumas das discussões que
havíamos empreendido naquele tempo, que tangenciam a importância das
reverberações dos estudos da loso a da linguagem no campo que se de ne
contemporaneamente como loso a da diferença. Mais especi camente,
sobre a loso a empreendida por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Aqui, nos
encontramos mais uma vez diante da preciosa possibilidade de tornar
público o que ainda nos interpela daquelas discussões.
Aqui nosso objetivo se volta para o campo próprio da Relação
Clínica, abordando o modo como o tema da pragmática da comunicação
humana incide sobre este campo, permitindo-nos alguns desdobramentos e
provocando ainda algumas questões. A abordagem que ora propomos é
de nida pela posição que ocupamos. Posição que não é a daqueles que
praticam a clínica – nas diversas instâncias em que esta prática pode se
manifestar – mas daqueles que militam, em sala de aula, na fomação de
pro ssionais que estão atuando ou que virão a atuar nesta área e que
tornam, para nós, estas questões sempre atuais. A formação de pro ssionais
clínicos comporta certas di culdades que são inerentes à própria prática da
clínica, como também, e até sobretudo, à própria instituição Clínica.
Algumas interrogações de base norteiam nossas considerações
acerca do debate consagrado aos paradigmas da clínica psi: será possível
estudar e de nir as clínicas psi sem passar por uma teoria da subjetividade
em geral? Será possível estudar as diferentes abordagens da clínica de forma
sistemática, apreendendo-as de um ponto de vista pragmático generalizado?
Como comparar as diversas práticas clínicas, sem incorrer em julgamentos
de verdade e de validade?
Nossa perspectiva pode ser considerada como uma tentativa de
encontrar meios conceituais para uma classi cação e uma análise crítica das
práticas clínicas. Tentaremos indicar alguns rumos para desenvolver o
estudo, pois a resposta completa às perguntas acima ultrapassa o escopo
desse texto.
Essa classi cação e análise crítica serão construídas a partir do
estudo da natureza da relação clínica3 (RC) que cada vertente da clínica visa
instaurar e que quali ca, segundo nossa hipótese, sua intervenção (o ato
clínico), ou seja, a mudança que cada uma delas almeja operar por meio do
tipo ou da concepção de subjetividade que lhes concerne. Assim, em vez de
partir de uma de nição do que seria realmente o psiquismo, a subjetividade
psicológica em geral, para daí comparar as diferentes vertentes da clínica,
tentaremos partir da RC e tomar sobre ela dois pontos de vista distintos. Um
deles se caracterizará apenas por registrar o enquadramento que cada clínica
dá a essa relação; o outro consistirá em se interrogar sobre a natureza da RC
a partir do ponto de vista de uma pragmática geral das relações.
Tentaremos focalizar essas questões pela formulação de dois
problemas, ambos concernentes às relações que a Clínica tem, ou pode ter,
com o que Guattari denomina de “dimensões singulares da subjetivação”
(GUATTARI, 1988, p. 50). Os processos de subjetivação comportam dois
aspectos distintos e que dizem respeito aos elementos concretos e
heterogêneos que participam de sua criação: os modos de existência
idiossincráticos ou territórios existenciais característicos de cada tipo de
subjetividade e a abertura das subjetividades para sistemas de valor ou
universos de referência incorporais (GUATTARI, 1992, p. 14; GUATTARI;
STENGERS; CASTEL, 1988, p. 50).
O primeiro problema tem a ver com os paradigmas da Clínica
(psicanalítico, sistêmico, comportamental, cognitivo, construtivista,
construcionista social etc.), na medida em que eles não são exteriores e
indiferentes às grandes mutações subjetivas coletivas; ao contrário, são
dependentes delas como de “mitos fundadores” (GUATTARI; STENGERS;
CASTEL, 1988, p. 59), mas acabam por se constituir como referenciais que
tentam sobrecodi car as dimensões singulares da subjetivação, reduzindo-
as, cada uma, à sua própria concepção de uma subjetividade geral. Cada
paradigma tentará de nir mais ou menos a priori o tipo de RC que deverá
ser instaurada – por exemplo, na psicanálise tem de haver instauração da
relação transferencial e o manejo desta por parte do analista (FREUD,
1969); na sistêmica deve-se tentar instaurar a relação terapeuta/paciente em
um metanível, no qual ela consiga car relativamente independente das
relações que o paciente tem com seu ambiente familiar (WITTEZAELE;
GARCIA, 1998); já na terapia cognitiva, visa-se instaurar uma relação de
aliança cooperativa entre terapeuta e paciente, caracterizada no início por
uma certa diretividade em que o terapeuta identi ca problemas, ensina
técnicas e constrói tarefas domésticas, mas aos poucos tende a passar as
rédeas do processo para o paciente (BECK, 1997); por m, para não alongar
muito nossos exemplos, na terapia estratégica de Jay Haley, deve-se instaurar
uma relação totalmente complementar na qual o terapeuta é o mais diretivo
possível, fazendo uso inclusive de sugestão hipnótica e de injunções
paradoxais com o m de produzir mudanças no comportamento do
paciente (HALEY, 1988, 1998). Desse modo, cada paradigma tentará reduzir
à sua maneira a RC tentando encaixá-la em seus mecanismos de
sobrecodi cação dos processos de subjetivação, circunscrevendo-a à
orientação clínica usada pelo clínico. Mas não dá para impedir que as
mutações subjetivas coletivas, as “dimensões míticas, constitutivas da
subjetividade coletiva” se imiscuam na RC (GUATTARI, 1988, p. 60). O que
fazem, então, as clínicas para reintroduzi-las em seus aparatos teórico-
práticos?
O segundo problema pode ser descrito como o do efeito, sempre
extemporâneo e imprevisível, dos processos de subjetivação sobre a RC,
como, por exemplo, elementos de estilo provindos do terapeuta e/ou do
paciente. Tais elementos são, no dizer de Guattari, “instrumentos analíticos
fundamentais” (GUATTARI, 1988, p. 60), mas têm sido refratários à
formação clínica porque não são traduzíveis nem em termos da linguagem
teórica, nem em termos das disposições técnicas codi cáveis. Tem-se muitas
vezes considerado o trabalho clínico como artesanal, saber de ofício que
implicaria um certo conhecimento tácito não exprimível corretamente em
termos discursivos (FIGUEIREDO, 1995). A mesma questão que se colocou
para o primeiro problema retorna aqui: como as clínicas lidam com esses
efeitos da subjetivação?
É preciso, como diria Guattari, criar uma certa disponibilidade para
a análise do próprio processo analítico, para uma atividade de
metamodelização. A esquizoanálise, como disciplina de metamodelização,
antes de se constituir como uma teoria sobre a subjetividade e sobre seus
males, doenças ou desvios – o que deixaria às outras teorias o lugar do erro e
da ilusão – constitui-se como uma teoria da produção de subjetividade, dos
múltiplos e heterogêneos processos de subjetivação,4 uma teoria que não
considera as outras do ponto de vista da verdade ou da validade, mas como
coprodutoras do real que lhes concerne. Na verdade, a esquizoanálise não
foi concebida por G. Deleuze e F. Guattari para ser uma especialidade em
meio a outras no campo PSI; sua vocação é a de tornar-se uma disciplina de
“deciframento das pragmáticas de modelização em diversos domínios”
(GUATTARI, [19--]); ela não se aplica diretamente sobre o que se poderia
chamar de sujeitos ou pacientes das outras práticas clínicas; ela visa, antes,
intervir nas próprias práticas clínicas ou mesmo na Clínica, só considerando
sujeitos e pacientes enquanto eles também são coprodutores das práticas que
incidem sobre eles, assim como da subjetividade que os condena.
Inspirados nessas indicações de G. Deleuze e F. Guattari sobre a
esquizoanálise, e levando em consideração que esses autores muitas vezes
identi cam esquizoanálise e pragmática, propomos construir um
instrumento de metamodelização sob a forma de uma teoria pragmática
geral das relações de onde se possa ler os processos de subjetivação atrelados
às práticas clínicas.
É preciso, então, centrar os esforços de re exão sobre a natureza da
RC, quer dizer, estudá-la sob a ótica de uma pragmática geral das relações,
antes de vê-la através do prisma que cada clínica nos impõe. A RC é a
condição do real de toda clínica, é por seu intermédio que cada clínico pode
“atuar” sobre seu paciente. É também ela que as clínicas querem reduzir e
controlar para poder ter “domínio” sobre o processo terapêutico.
Para além do que cada paradigma clínico possa codi car dela, a RC
deve poder ser pensada como via para os processos de subjetivação, “lugar”
onde se processa a subjetivação. Toda clínica visa à mudança, e essa
mudança pode ser concebida de várias maneiras – mudança de
comportamento, mudança de ponto de vista subjetivo, tomada de
consciência, mudança de humor etc. –, mas de qualquer maneira que se
conceba a mudança, as estratégias para obtê-la nunca decorrem logicamente
de qualquer teoria clínica da subjetividade, pois o que advém da experiência
e da prática da RC não é redutível ao saber teórico sobre a subjetividade.
Toda teoria é de natureza essencialmente semântica e, portanto, é incapaz de
induzir efeitos pragmáticos diretos sobre a relação. É preciso, como viram os
terapeutas de Palo Alto (WITTEZAELE; GARCIA, 1998), que se volte a
re exão para a relação terapeuta/paciente, e que se de na o ato clínico
também em função do que se espera dela. O mero fato de informar ao
paciente o seu diagnóstico, as coisas que ele precisaria fazer para mudar e
tudo o mais que se poderia contar-lhe literalmente, não serve para modi car
em nada o estado desse paciente. De fato, como seria possível para a
experiência clínica operar mudanças de ordem subjetiva nos pacientes se
essa mudança não estivesse essencialmente vinculada à RC? De que
natureza, então, deve ser a RC para que possa servir de veículo de mudanças
subjetivas? Os processos de subjetivação supõem agenciamentos – coletivos
de enunciação e maquínicos de desejo – e não subjetividades e/ou aparelhos
psíquicos dados a priori.
Entendemos a pragmática, no domínio dos estudos da subjetividade,
como o estudo mais geral possível dos processos de criação (ou instauração)
e transformação de relações existenciais coletivas. Inspiramo-nos em
diversas fontes teóricas: nos estudos de loso a da linguagem com Austin
(1997), Searle (1997) Recanati (1979, 1981),5 bem como na linguística de
Oswald Ducrot (1972, 1984), na leitura que G. Deleuze e F. Guattari zeram
do ilocutório de Austin a partir da obra de Ducrot e, por m, nos estudos da
escola de Palo Alto sobre a pragmática da comunicação humana
(WATZLAWICK; BEAVIN; JACKSON, 1998).
A pragmática nos estudos de loso a da linguagem antes de Austin
concerne às variáveis de enunciação, que são factuais e não interferem no
sentido semântico do enunciado. Separava-se o sentido semântico do
sentido pragmático, sendo o primeiro, de direito, o sentido do enunciado,
enquanto o segundo, um sentido que lhe foi acrescentado pelo fato de sua
enunciação. A semântica de ne o sentido de um enunciado a partir de seu
conteúdo representativo, de tal forma que o sentido deve estar estreitamente
ligado às condições de verdade/falsidade dos enunciados. A pragmática
estudaria simplesmente a utilização dos enunciados pelos sujeitos falantes. A
diferença entre o sentido pragmático e o semântico era que o primeiro é
para alguém de fato em uma dada situação, enquanto o segundo deve valer
para todos em qualquer situação. Só haveria regra para a determinação do
sentido semântico, o sentido pragmático dependeria do que o enunciado
evoca em cada um dos interlocutores em uma dada situação de enunciação.
Ora, justamente o que interessa a quem estuda a subjetividade são as
regras inerentes à enunciação, é a relação que o ato de fala instaura entre os
interlocutores. É preciso, então, estudar a pragmática fora do domínio das
variáveis puramente factuais (psicológicas ou outras). Com Austin nós
encontramos uma via, e com a escola de Palo Alto outra.
Austin distingue três tipos de ato na enunciação. O primeiro, que ele
denomina locutório, é a ação mesma da fala, ou seja, aquilo que a distingue
da mera produção de ruídos. O segundo, o perlocutório, comporta tudo
aquilo que se faz por meio da fala (by saying), por exemplo, confortar
alguém, magoar alguém, irritar alguém, convencer alguém etc. O terceiro, o
ilocutório, é o que mais nos interessa. Ele se de ne como aquilo que se faz
na fala (in saying), ou simplesmente o que se faz falando e que não é
redutível ao simples ato de falar – por exemplo, perguntar, apostar, ameaçar,
prometer, declarar, a rmar, ordenar etc.
Ao realizar uma enunciação, o locutor produz um ato ilocutório no
qual são determinados, para ele e para seu interlocutor, papéis
complementares relativos ao ato produzido. Esses atos são governados por
regras que modi cam o status da relação entre os interlocutores. Por
exemplo, a rmar alguma coisa não é somente transmitir a outro um certo
conteúdo de informação, mas também, e sobretudo, comprometer-se com a
verdade do que foi dito. A crença no conteúdo do enunciado não é tida
como um mero estado psíquico que se ligou acidentalmente à enunciação;
ela é, ao contrário, um requisito da própria a rmação.
Aqui nós encontramos dois dos axiomas da interação
comunicacional estudada na escola de Palo Alto: toda comunicação envolve
um certo compromisso, e toda comunicação comporta dois níveis distintos,
um pelo qual algum conteúdo de informação é relatado e outro que de ne o
tipo de relação no qual a informação é transmitida. Assim, um mesmo
conteúdo, por exemplo “fechar a porta”, pode ser transmitido como uma
ordem, como um pedido, como um conselho etc. É interessante que o
primeiro nível seja chamado de relato, enquanto o segundo seja chamado de
ordem. Aparece aqui, justamente, a reedição do ilocutório, pois como se
verá logo a seguir, a relação fundada por um ato ilocutório exclui o livre
arbítrio daqueles que estão interagindo.
Ducrot vai de nir o ilocutório como uma espécie de ato jurídico.
Diferentemente de uma ação instrumental, na qual a transformação visada
aparece em decorrência da série causal – seja ela lógica, psicológica,
biológica ou física – colocada em jogo pelos meios ou atividades de que se
lançou mão para obtê-la, o ato jurídico ocasiona a transformação requerida
imediatamente, sem que nada venha a se interpor entre os dois. A relação
instaurada pelo ato ilocutório é de natureza diferente da de todos os tipos de
relação causal (não se reduz também a uma troca de informação, pois a
informação supõe um código e uma cognição decodi cadora como
mediadores entre ela e seu efeito), por isso, Ducrot a quali ca de jurídica.
Mas, qual tipo de relação jurídica ou ato jurídico atende aos requisitos de ser
ao mesmo tempo uma regra de direito e só existir no fato de sua efetuação?
Não é no contrato legal, rmado livremente entre duas partes, que Ducrot
vai buscar seu exemplo, mas na instituição do potlatch,6 pois “‘a obrigação de
retribuir é o todo do potlatch’. [...] não há intermediário entre o convite e a
criação de um dever para os convidados. [...] O especí co desta instituição
[...] seria, assim, a de dar aos indivíduos a possibilidade (exorbitante
segundo as normas de um pensamento liberal) de imporem-se deveres uns
aos outros.” (DUCROT, 1984, p. 88).
O que se passa no ilocutório é perfeitamente generalizável para todo
o corpo da sociedade, ao menos no que diz respeito às suas relações de
direito, ou seja, de ordem moral, política, jurídica, institucional etc. É
justamente o que G. Deleuze e F. Guattari (1980, p. 102) concluem: os atos
ilocutórios se de nem “pelo conjunto das transformações incorporais em
curso numa dada sociedade”, transformações essas que “se atribuem aos
corpos dessa sociedade”. Assim, com o ilocutório não se trata obviamente da
instauração de relações entre (entre sistemas, entre indivíduos, entre sujeitos
etc.), posto que aquilo que está sendo relacionado é, ao menos em sua
natureza incorporal, efeito da própria relação. Mais ainda, não importa que
um tal ilocutório esteja se dando entre dois indivíduos quaisquer, a
transformação que ele acarreta vale imediatamente para todos aqueles que
formam sociedade com eles. É o que G. Deleuze e F. Guattari chamam de
agenciamentos coletivos de enunciação,7 cujas variáveis são transformações
incorporais.
Agora, se se considera que estas regras do ilocutório valem para
todas as relações, deve-se considerar que elas tratam somente do lado, por
assim dizer, impessoal. Vemos, então, que as relações existenciais coletivas
não podem ser pensadas na exclusão das variáveis corporais (sensoriais,
afetivas, desejantes...) que também fazem parte de toda relação. Sobretudo,
se se considera a RC, trata-se antes de tudo de saber como produzir
mudanças existenciais, ou seja, trata-se de saber como passar dessas regras
imanentes à concretude de uma experiência viva. É preciso, então, conceber
uma outra forma de fundar relações e mudanças?
Segundo Deleuze (1974), a revolução mais importante do estoicismo
é a a rmação da cisão da relação causal: as causas se remetam às causas e
constituem um processo próprio de transformação dos corpos (mediação,
lentidão, dependência...); por outro lado, os efeitos se conjugam entre si e se
transformam segundo regras próprias (imediação, velocidade absoluta,
obrigação...). Essas duas maneiras de entender a mudança correspondem
justamente aos dois níveis que, segundo Guattari, participam e se misturam
em todos os processos de subjetivação, a saber: a construção de territórios
existenciais concerne às transformações corporais (atribuindo-se ao termo
corpo um sentido tão vasto quanto seja preciso para se falar de um corpo
lógico ou de um corpo moral) (DELEUZE; GUATTARI, 1980), enquanto a
abertura a universos incorporais implicam transformações incorporais.
Pensamos que todas as relações existenciais coletivas, entre elas a
RC, comportam esses dois níveis de transformação, ou seja, as relações se
fundam pela conjugação das transformações incorporais e das
transformações corporais.
Voltemos, então, aos estudos da escola de Palo Alto. A interação
comunicacional é descrita como contendo os níveis de conteúdo e de
relação. O nível de conteúdo é basicamente constituído de comunicação
digital, no qual o vínculo entre signo e referente é de natureza apenas
convencional. O nível de relação é formado pelo que eles chamam de
comunicação analógica, em que praticamente não há diferença entre signo e
referente, pois o signo é um ato-comportamento que produz seu referente,
ao mesmo tempo que seu sentido, simplesmente porque ele de ne a
natureza da relação que ele instaura. A parte analógica da comunicação,
então, instaura e formata a relação. Um exemplo pode ser esclarecedor: “[...]
quando eu abro a geladeira e o gato vem roçar nas minhas pernas, miando,
isso não signi ca ‘eu quero leite’ – como um ser humano expressaria – mas
invoca uma relação especí ca, ‘Seja mãe para mim’ [...]” (WATZLAWICK;
BEAVIN; JACKSON, 1998, p. 58). Ora, essa instauração de relação é ao
mesmo tempo impessoal (“ser mãe para alguém”, “ser amigo para alguém”,
“ser devedor de alguém” etc.) e pessoal (“você é minha mãe”, “você é meu
amigo”, “você é aquele que está me cobrando” etc.). Se não fosse assim, como
poderia a relação se constituir como uma regra e ao mesmo tempo
constituir o bojo de uma experiência vivida?
De fato, como já foi dito, todo agenciamento comporta dois lados;
ele é coletivo de enunciação e maquínico de desejo, mas isso não quer dizer
que o agenciamento por si mesmo possa ser dividido nesses dois lados. Na
verdade, ele se distingue sem se dividir.
O esquema a seguir traduz o cruzamento do pensamento de G.
Deleuze e F. Guattari com as doutrinas da escola de Palo Alto, para o caso da
relação clínica:

Mas como deixar o conteúdo relatado de fora da própria relação?


Essa é, talvez, a questão mais importante que deixamos em aberto para ser
desenvolvida.

Referências
AUSTIN, J. L. How to do things with words. Cambridge: Harvard University
Press, 1997.
BATAILLE, G. A parte maldita. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
BECK, J. S. Terapia cognitiva: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed, 1997.
DELEUZE, G. A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974.
_______; GUATTARI, F. Ka a: por uma literatura menor. Rio de Janeiro:
Imago, 1975.
_______; _______. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980.
DUCROT, O. Princípios de semântica lingüística. São Paulo: Cultrix, 1972.
_______. Actos lingüísticos. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Portugal:
Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984. vol. 2.
FIGUEIREDO, L. C. M. Revisitando as psicologias. Petrópolis: Vozes/Educ,
1995.
FREUD, S. A dinâmica da transferência. In: _______. Edição standard das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
vol. 12.
GUATTARI, F. Les schizoanalyses. [S. l. : s. n. ], [19--]. Mimeografado.
_______. Caosmose. São Paulo: Ed. 34, 1992.
_______. Des subjectivités, pour le meilleur et pour le pire. Chimères, n. 8,
Été 1990.
_______; STENGERS, I.; CASTEL, R. Transmissão de saber e de técnicas e
novas formações de poderes. In: ELKAÏM, M. (Org.). Formações e práticas
em terapia familiar. Porto Alegre: Artmed, 1988.
HALEY, J. A terapia estratégica. In: ELKAÏM, M. (Org.). Formações e
práticas em terapia familiar. Porto Alegre: Artmed, 1988.
_______. Aprendendo e ensinando terapia. Porto Alegre: Artmed, 1998.
MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: EDUSP, 1974.
PREU, R. O. ; EIRADO, A. A pragmática como o condutor a uma loso ia
da diferença. In: ARRUDA, Arthur; BEZERRA, Benilton; TEDESCO, Silvia.
(Org.). Pragamtismos, pragmáticas e produção de subjetividades. Rio de
Janeiro: Garamond, 2008. vol. 1, p. 385-406.
RECANATI, F. La transparence et l’énonciation. Paris: Minuit, 1979.
_______. Les énoncés performatifs. Paris: Minuit, 1981.
SEARLE, J. R. Speech acts. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
WATZLAWICK, P.; BEAVIN, J. H.; JACKSON, D. D. Pragmática da
comunicação humana. São Paulo: Cultrix, 1998.
WITTEZAELE, J. J.; GARCIA, T. A abordagem clínica de Palo Alto. In:
ELKAÏM, M. (Org.). Panorama das terapias familiares. São Paulo: Summus
Editorial, 1998. vol. 1.

1 Professor
Associado do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Doutor em
Filoso a pela Universidade de Paris VIII. Professor Associado do Departamento de Psicologia da
Universidade Federal Fluminense.
2 ProfessorAdjunto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense/Escola de Ciências Humanas e
Sociais de Volta Redonda. Doutor em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP.
3 Por“relação clínica” entenda-se a relação terapeuta/paciente ou analista/analisando, quer se trate de
intervenção individual, no casal, na família ou em grupo.
4 Cf. GUATTARI, 1990, 1992.
5 Cf. PREU; EIRADO, 2008.
6 Sobre a instituição do potlatch conferir Georges Bataille (1975) e Marcel Mauss (1974).
7 Sobre a relação do agenciamento com atos de fala jurídicos conferir G. Deleuze e F. Guattari (1980,
1975).
Residências terapêuticas e a construção de
bons encontros e amizade na comunidade
Maria Inês Badaró Moreira1
Carlos Roberto de Castro-Silva2

É da vocação da vida, a beleza


e a nós cabe não diminuí-la, não roê-la
com nossos minúsculos gestos ratos
nossos fatos apinhados de pequenezas,
cabe a nós enchê-la, cheio que é o seu princípio
Todo vazio é grávido desse benevolente risco
Todo presente é guarnecido do estado potencial de
futuro
[...]
A vida não tem ensaio
mas tem novas chances
Viva a burilação eterna, a possibilidade:
o esmeril dos dissabores!
Abaixo o estéril arrependimento
a duração inútil dos rancores
Um brinde ao que está sempre nas nossas mãos:
a vida inédita pela frente
e a virgindade dos dias que virão!

(ELISA LUCINDA)

Apresentação
Este trabalho re ete um esforço de articulação entre as áreas de
saúde mental e psicologia comunitária na perspectiva de construção de
práticas em saúde pública voltadas para a promoção de autonomia e
cidadania. Neste sentido, por meio de uma pesquisa sobre o papel das
residências terapêuticas, como estratégia de construção de
práticas antimanicomiais, discutimos outros espaços de sociabilidade como
promotores de saúde mental, destacando aqueles extramuros institucionais,
os quais nos remetem à comunidade da qual, aliás, tais instituições, queiram
ou não, fazem parte.
Acreditamos que a qualidade destas relações entre instituição e
comunidade nos dá pistas preciosas sobre a saúde e seus determinantes. Esta
proposta se revela, ao mesmo tempo, desa adora e promissora, pois dirige
nosso olhar para a compreensão da qualidade das relações cotidianas entre
as pessoas, principalmente sobre a produção de subjetividade como produto
da articulação entre os aspectos sociais econômicos e culturais vigentes.
Desta forma, a comunidade passa a ser um conceito ou um balizador
de concretização de relações mais solidárias e cidadãs, e não um conceito
estanque que mira uma harmonia idealizada e desencarnada do contexto de
vida das pessoas. Neste sentido, a contribuição de Espinosa é fundamental,
na medida em que concebe os sujeitos a partir da qualidade das interações
entre si, ou melhor, da forma como se afeta e se é afetado nos encontros, que
podem ser promotores de alegria ou de tristeza, ainda de promoção de
potência de agir ou de padecimento.
Assim, este texto abre mais uma possibilidade de construção de bons
encontros entre duas áreas, dois pesquisadores, e entre várias pessoas que
consideram a comunidade como um lugar terapêutico, na medida em que
respeita as subjetividades e suas diversas manifestações.

As novas perspectivas da política pública de saúde mental


A política pública para a saúde mental vem-se transformando
intensamente desde a década de 1970 no Brasil. Desde a con guração do
Sistema Único de Saúde (SUS) são notáveis as ações que têm sido realizadas
no âmbito da saúde pública, para o redirecionamento da atenção ao sujeito
considerado como portador de sofrimento psíquico, regulamentadas pela
Lei antimanicomial nº 10.216 (BRASIL, 2001). De lá para cá,
testemunhamos visíveis e constantes avanços dos incentivos por parte do
Ministério da Saúde – MS para a reorganização dos serviços e equipamentos
de saúde no âmbito do SUS (BRASIL, 2004, 2005).
Do ponto de vista da estruturação dos serviços, o MS destacou uma
curva vertiginosa de criação de novos serviços, com o objetivo de substituir
o modelo hospitalocêntrico anterior, considerado segregador e iatrogênico.
Os serviços substitutivos se tornaram espaços responsáveis por uma região e
por integrar as demais ações de saúde, atendendo aos postulados de
acessibilidade e qualidade do sistema de saúde implantado. Em 1990, havia
12 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) em funcionamento; cinco anos
depois, eram 63; em 2000 havia 208; atualmente são mais de 1.000 CAPS
funcionando. A relação entre os serviços e a população, de fato, é um dos
principais indicadores da adequação da rede às demandas existentes. No
relatório de gestão 2006-2009, o MS apresenta uma rede com 1.394 CAPS,
presentes em todos os estados da Federação (BRASIL, 2009).
Além disso, nos últimos anos, há uma evidente preocupação com a
abertura de leitos psiquiátricos em hospitais gerais, assim como a integração
das ações em saúde mental nas Unidades Básicas de Saúde, com equipes
matriciais para dar suporte ao trabalho das equipes de Estratégia de Saúde
da Família (ESF), assim como a abertura de diversos centros de convivência.
E para aqueles que viveram longo período de internação em hospitais
psiquiátricos, houve a implantação de Serviços Residenciais Terapêuticos
(SRT) ou Residências Terapêuticas (RT), que são casas instaladas em bairros
urbanos para facilitar a reinserção na comunidade.
Na direção da integração das ações de saúde mental às demais ações
de saúde, a rede de atenção em saúde mental deve articular diversos
equipamentos e serviços de saúde, gerenciados pelos Centros de Atenção
Psicossocial – CAPS (BRASIL, 2004). Ao de nir este protocolo de atenção
em saúde, o MS insere a saúde mental nas demais ações territoriais de saúde.
Neste sentido, o CAPS seria o ponto de chegada do sujeito, articulado nas
diversas possibilidades de existir na comunidade a que pertence.
Para compreendermos a atual rede de ações em saúde, vale destacar
que, ao tecer uma rede, não há como distinguir a importância de um ponto
em detrimento de outro ponto, uma vez que todos estão articulados para a
con guração de um propósito maior, a rede em si e, neste caso, a rede de
atenção integral à saúde dos indivíduos. É notável o papel de cada ponto da
rede e a devida necessidade de articulação de uma rede de serviços em saúde
mental. O que percebemos é que, de modo geral, as redes se conectam em
pontos demarcados dos serviços, em que há uma amarração a priori. Aqui
propomos pensar não somente a rede de serviços de saúde e suas conexões,
como também a comunidade como espaço possível para a construção de
modos de existir humano, possibilitando a construção e a potencialização de
subjetividades diversas.

Comunidade e a construção de subjetividades


Para Lane (2003), um indivíduo é uma síntese do particular e do
universal e se constitui, necessariamente, na relação com o outro, com isso,
desenvolvendo seu psiquismo mediado pelas emoções, a linguagem e o
pensamento. A mediação das emoções se dá pelas relações travadas com
grupos a que este indivíduo pertence ao longo de seu desenvolvimento. Se
considerarmos que indivíduo e sociedade são inseparáveis, ao desejarmos
conhecer o homem, é necessário considerá-lo em seu contexto histórico,
inserido em um processo constante de subjetivação (LANE, 2002). A
subjetividade não é algo dado, pois vai sendo construída ao longo da vida,
ao longo dos encontros que se estabelecem no cotidiano. A subjetividade é
de nida essencialmente na cultura, nas relações, pelo meio de processos de
signi cação e de sentido subjetivo que se constitui historicamente. São
processos complexos, em que formas atuais de organização estão
comprometidas com o curso dos processos expressados e desenvolvidos:
processos que caracterizam a expressão do homem como sujeito concreto
em constante transformação (REY, 2002, p. 22-23).
A cidade modi ca a vida daqueles que nela vivem, transformando
cotidianamente suas relações, assim gerando enorme possibilidade de
situações vivenciadas entre as pessoas. Neste contexto, o campo da saúde
mental é permeado por con itos e contradições, evidenciados em
transformações importantes na vida das pessoas que vivenciam sofrimentos
psíquicos, seus familiares e, muitas vezes, a comunidade em que está
inserido. Na medida em que o processo de desinstitucionalização requer,
fundamentalmente, uma mudança da relação social com o fenômeno da
loucura, a comunidade pode ser compreendida também como um espaço
privilegiado para a produção de novos sentidos para a vida. A compreensão
dessa forma de (re) apropriar ou viver articulado a uma rede social é
fundamental, pois se trata de uma tentativa de entender como as pessoas
que vivenciam uma condição de sofrimento psíquico ressigni cam sua
forma de viver e existir em sua comunidade de origem, por meio da
“produção de vida, de sentido, de sociabilidade, a utilização dos espaços
coletivos de convivência dispersa” (ROTELLI, 1990, p. 30).
Todavia, as recon gurações e reconstruções de espaços de
sociabilidade que abarquem as pessoas que tiveram episódios ou foram
internadas devido à doença mental e que, como consequência, sofreram
desestruturações de suas famílias, exigem uma compreensão mais profunda
da situação. Neste sentido, consideramos pertinente repensarmos de que
comunidade falamos no que se refere ao acolhimento destas pessoas em suas
idiossincrasias e necessidades de cuidados.
Isso porque evocar a noção de comunidade hoje sugere uma utopia
ou algo distante das relações sociais que estabelecemos em nosso cotidiano.
Esta noção suscita algo nostálgico, como um paraíso perdido, ou seja, algo
que está fora de nosso alcance, mas insistimos em sua realização como a
esperança que alimenta nossas buscas, aliás, que nos constitui como seres
humanos.
Além disso, diz respeito a uma época em que a felicidade está
associada à inocência, a um não conhecimento consciente daquilo que é
compartilhado por todos; tacitamente compartilhado por todos. O conceito
de comunidade, conforme entendemos, foi cunhado por Ferdinand Tönnies
(1944), que concebe a comunidade como um entendimento compartilhado
por todos os seus membros. E esse entendimento supõe um acordo tácito,
que signi ca que não é preciso explicar. “O tipo de entendimento em que a
comunidade se baseia precede todos os acordos e desacordos. Tal
entendimento não é uma linha de chegada, mas o ponto de partida de toda
união. É um ‘sentimento recíproco e vinculante’” (BAUMAN, 2004, p. 15).
Em função disso, a comunidade não pode ser compreendida de
forma abstrata, por isso, ao problematizarmos esta noção, tratamos aqui de
seu sentido contextualizado historicamente, pois a fragilidade desta noção
idílica de comunidade nos revela mais a necessidade de compreendermos a
complexidade do conceito do que reforça a impossibilidade de uma
convivência mais aconchegante, solidária e cidadã. Um dos aspectos da
complexidade do tema nos traz uma contradição inerente às relações
humanas, ou seja, há nos humanos uma tensão constante entre a busca de
segurança e o anseio de liberdade. Tensão que tem um caráter bastante
particular com o Iluminismo e a Revolução Industrial, na medida em que
produzem uma subjetividade que, por um lado, é marcada por uma
racionalidade instrumental, pronta a dominar a natureza e controlar e
predizer a vida e, por outro, é determinada por uma engrenagem social
complexa marcada pelos ditames da economia do sistema capitalista
(BAUMAN, 2004; TOURAINE, 1997; ADORNO; HORKHEIMER, 1991).
Podemos compreender melhor alguns sentidos do conceito de
comunidade acompanhando a história do capitalismo, pois, por intermédio
deste, notamos o desenrolar de novas formas de sociabilidade necessárias à
produção nas fábricas dos centros urbanos. Isto signi ca que o estilo de vida
rural, baseado numa ordem natural das colheitas, foi substituído pelo ritmo
das máquinas. Criar condições para o desenvolvimento capitalista exigiu o
desenraizamento das pessoas daquele ambiente rural regido por outro
tempo.
Neste sentido, importa-nos re etir sobre o que pode o homem, em
articulação com uma comunidade marcada pelas consequências do
capitalismo avançado. Uma forma capitalista de viver que é precursora da
globalização e da exacerbação do individualismo e do espírito de
competividade. Ajudar-nos-ia pensar sobre o quê e como esta comunidade
comporta a loucura e que nível de tolerância há em uma comunidade para
conviver com a desrazão e a fragilidade que ela representa. Há duas
características importantes do comunitarismo da qual todos fogem o quanto
for possível. A primeira delas é a obrigação fraterna, que signi ca
compartilhar as vantagens com aqueles que não têm os mesmos talentos ou
importância, e a segunda característica é compreendida como um
autossacrifício, pois este obstaculiza a ascensão social e ofusca o suposto
mérito individual. Este sentimento de compartilhamento é execrado porque
sugere uma comunidade de fracos, ou seja, daqueles que não se encontram à
altura da competividade exigida pelo capitalismo contemporâneo. Além
disso, vivemos numa sociedade que valoriza o mérito individual, que para os
bem-sucedidos representa o desejo de dignidade e de honra.
Dentro deste contexto, há aqui uma dimensão a ser analisada que é
justamente o afastamento contínuo da loucura dos espaços sociais. Durante
mais de três séculos a loucura foi silenciada e desconectada de uma rede de
vivências construída nos encontros sociais; desta forma foi-se
desarticulando do convívio em comunidade e impedida de se inserir em seu
cotidiano. A invenção e organização dos espaços sociais da cidade excluíram
a convivência com o louco e a sua permanência nos espaços públicos. O
con namento do louco se deu mais enfaticamente com a organização dos
espaços sociais na Europa, no século XVII (FOUCAULT, 1984). No Brasil,
com a chegada da família real, no século XIX, a loucura passou a ser objeto
de intervenção especí ca ao iniciar a organização dos espaços sociais, com
medidas de controle social, restando ao louco os espaços de con namento e
a exclusão (AMARANTE, 1997). Ambos, movimentos de internação de
tudo o que parecia estranho ao modelo societal que se impunha, o que foi
considerado como associal. Este afastamento do louco da vida em sociedade
teve certo compromisso com a estruturação das cidades e dos espaços
públicos.
A possibilidade de habitar o mesmo espaço público inaugura ou, em
outras palavras, devolve uma coexistência possível com o diverso. Constrói-
se, assim, uma zona de aproximação entre pessoas que antes não tiveram a
possibilidade de coabitar o mesmo lugar: “A vizinhança obriga as pessoas a
se compararem e a se perguntarem sobre as suas diferenças, seja ela próxima
ou distante. Essa já é uma indagação de natureza política” (SANTOS, 2000,
p. 60). Se considerarmos a cidade como um conjunto de códigos a serem
dominados pelo cidadão, a comunidade seria um espaço afetivo de laços de
solidariedade construído pelos indivíduos a partir de registros de afetos
muito próprios.
Ao tomarmos as ruas e os espaços diversos de encontro diluídos pela
cidade, lançamo-nos a experiências coletivas, lugar de exercício político por
excelência, com grande possibilidade de um diálogo entre iguais. Nesta
atividade dialógica entre humanos é que a vida se estabelece como uma
política de relação. Nesta direção, os encontros fortuitos entre as pessoas e o
exercício dialógico entre indivíduos livres possibilitam o surgimento de uma
relação intensa que pode se con gurar como um bom encontro. Encontro
este capaz de gerar novas potências de vida.
A amizade e os bons encontros
Espinosa (2005) compreende o homem como um ser que se constitui
na relação. Essa constituição relacional se dá por meio dos encontros nos
quais o corpo humano é afetado de inúmeras maneiras pelas quais a sua
potência de agir é aumentada ou diminuída. Somos afetados
constantemente, e estas afecções do corpo devem ser entendidas como “[...]
aquelas nas quais a potência de agir de um corpo é aumentada ou
diminuída, favorecida ou entravada” (ESPINOSA, 2005, p. 276).
Nesta medida, a alegria que dois corpos experimentam gera um
afeto aumentativo de potência, que é um afeto alegre. Então, vivenciar as
relações de um corpo em outro só faculta alegria, só pode ser aumentativo
de potência. Portanto, os encontros entre indivíduos livres compartilhando a
alegria é de nido como um bom encontro. Assim, o homem pode ser
afetado de numerosas maneiras pelas quais sua potência de agir é
aumentada. Ou seja, o bom encontro é aquele que compõe o indivíduo em
suas relações cotidianas, por isso, provoca um aumento de potência da vida.
A partir do acolhimento e da amizade desenvolvidos em espaços de
convivência, bons encontros podem ocorrer, compreendidos como espaços
de troca e de potencialização da força de agir do sujeito, tornando as pessoas
capazes de ultrapassar as barreiras do individualismo e de vislumbrar na
esfera pública possibilidades de se atingir a felicidade (ESPINOSA apud
SAWAIA, 2001, 2006).
A realização de bons encontros é desencadeada pelos vínculos
afetivos que tomam forma por intermédio das amizades. A noção de
amizade, vista como um exercício político, ou seja, de experimentação de
novas formas de sociabilidade e comunidade (ARENDT, 2003; ORTEGA,
2000), ajuda-nos a entender o espaço público, diferentemente daquele do
espaço da intimidade da família. A amizade promove encontros que
instigam mudanças e o amigo, nessa linha de pensamento, não é um espelho
em que buscamos uma reprodução de nossa imagem.
Nietzsche (apud ORTEGA, 2000) foi o primeiro a romper com essa
tradição da noção da amizade em que a proximidade, igualdade e
concordância, colocavam o amigo no lugar daquele que adere de forma
incondicional, isto é, como aquele que incita e desa a à transformação.
Ressaltar os momentos de assimetria e não reciprocidade propicia um
espaço emocional em que é possível a heterogeneidade e a alteridade na
relação com o outro (ORTEGA, 2000). Não obstante, não estamos, com isso,
valorizando os dissensos e con itos, mas, principalmente, afastando-nos do
consenso. O cuidar do outro implica certo distanciamento, pois, quando ele
é possível, o afeto pode ajudar, caso contrário, sufoca.
Essa perspectiva da amizade nos ajuda a perceber os tipos de
relações que a rede de serviços de saúde mental pode promover, ou seja, os
tipos de relações que reforçam uma identi cação entre iguais, protegendo-se
de um inimigo comum e isolando-se ou promovendo o enfrentamento e a
emancipação. A amizade preservaria um campo de distinção em que o
sujeito mantém sua singularidade. É necessária a manutenção de certa
distância, de preservar certa solidão inerente à existência humana. Uma
intimidade excessiva leva a sentimentos de posse e de indiferenciação:
É preciso aprender a cultivar uma “boa distância” nas relações afetivas,
um excesso de proximidade e intimidade leva à confusão, e somente a
distância permite respeitar o outro e promover a sensibilidade e a
delicadeza necessárias para perceber sua alteridade e singularidade.
(ORTEGA, 2000, p. 82)

Derrida (apud ORTEGA, 2000) destaca a ideia de desconstrução no


campo da ética e da política, que permite uma abertura para o outro, para a
tolerância à diferença e ao con ito como formas de alimentar também a
singularidade e a alteridade. Esta noção contribui para um questionamento
dos limites entre o sujeito e o outro, revelando que este sujeito sempre é
contaminado nessa relação. Esse tipo de percepção rechaça uma
identi cação, entendida como a busca do igual, de um processo que leve à
simbiose (ENRIQUES, 1994, 1997; PAGÉS, 1976).
A possibilidade de se promover bons encontros tem a nalidade
última de fortalecimento dos sujeitos de direitos. Espinosa (2005) retrata a
paixão que leva os homens a se encontrarem, pois é por meio do outro que
eles se descobrem a si mesmos. O conceito de potência de ação de Espinosa
abarca a afetividade como elemento importante no processo de
emancipação do sujeito, sugerindo que, na relação intersubjetiva, os
aspectos ligados à necessidade, aos valores éticos, assim como a satisfação,
cam mais salientes.
Nesta linha, a obra espinosana faz uma denúncia contra tudo o que
nos separa da vida, como os valores transcendentes, que envenenam e
oprimem. De acordo com suas proposições, não existimos de forma isolada.
Somos seres de relação. A potência afetiva está na dimensão do encontro e
dos acontecimentos decorrentes dos encontros que temos. Nesta variação,
afeta-se e se é afetado. Um bom encontro compõe o sujeito, e os maus
encontros contribuem para a decomposição do humano. Cada afetação é
de nida a partir dos encontros que este sujeito tem no decorrer de sua vida,
e estas relações constituídas na vida estão pautadas na imanência do próprio
existir humano. Isso implica a possibilidade de criar e reinventar todo o
cotidiano destas relações, tendo os encontros como base para a variação da
potência de vida (MOREIRA, 2007).
Esta reinvenção cotidiana, a que os homens estão expostos,
pressupõe questões que contribuem para a rejeição de formas dadas de viver
e a alienação sobre sua própria condição humana. E na atualidade,
levantarmos este debate parece-nos fundamental. Há na comunidade uma
potência para o desenvolvimento e a construção de laços de solidariedade,
por meio dos encontros que são possíveis nestes espaços públicos. A
subjetividade está sendo constituída na comunidade, no espaço de
encontros entre os homens, encontros que disparam afetos tristes ou afetos
alegres. Nestes encontros entre humanos, dispara-se a experimentação da
vida e a exploração de suas possibilidades.
Neste ponto de vista, no que diz respeito às novas políticas de saúde
mental, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) devem ser
compreendidos aqui como um rearticulador das pessoas/usuários com a
comunidade. Espaço capaz de contribuir com a ressigni cação da
importância do indivíduo, usuário do serviço, para a comunidade, assim
como, também, contribuir para novos sentidos de vida em comunidade para
aquele usuário, portador de sofrimento psíquico. E os Serviços Residenciais
Terapêuticos (SRT) devem se con gurar como importantes disparadores de
situações de encontros entre seus moradores e a comunidade. Então, cabe a
estas casas se estruturarem como espaço primeiro de vida em comunidade,
um lugar acolhedor em que podem ser vivenciados os bons encontros.
Apostamos na potência de uma comunidade nesta direção, no sentido de
contribuir para essa reorganização de uma maneira de ser e viver que se
constitui nas trocas sociais. Então, que possibilidade de movimentação
destas forças na comunidade é possível a partir de uma rede articulada de
ações, serviços e equipamentos de saúde?
Neste artigo, destacamos mediações afetivas como constituintes de
uma subjetividade em eterno movimento, por meio de situações analíticas
do cotidiano de serviços residenciais terapêuticos (SRT) ou residências
terapêuticas (RT).

Método
Pesquisa qualitativa com inspiração etnográ ca em que a descrição
dos fatos buscou acessar a complexidade e, ao mesmo tempo, a
singularidade dos fenômenos estudados (SATO; SOUZA, 2001). Também
representou uma pesquisa interventiva, na medida em que objeto de estudo
e pesquisador são elementos semelhantes, interagindo em um mesmo
campo de ações.
Priorizamos conversas informais com os moradores das residências
terapêuticas, com trabalhadores destas RTs e com vizinhos próximos das
casas. Estas conversas ocorram em espaços diferentes e nas mais diversas
situações. A escolha, por desviar-se de um modelo formal de entrevista,
deveu-se à percepção de que nas relações estabelecidas com as pessoas, em
momentos informais, as conversas seguem descontraídas e tornam-se de
imenso valor.
Ao nos decidirmos pela perspectiva etnográ ca, optamos também
por não separar as etapas deste estudo, a participação e a análise dos
acontecimentos, já que a entrada em campo se con gurou como um diálogo
contínuo entre a natureza do estudo, as hipóteses e aquilo que o campo
revelou (SATO; SOUZA, 2001).
Participaram desta pesquisa 40 moradores de cinco residências
terapêuticas, instaladas em três bairros de um município da Grande
Vitória/ES. Os bairros têm con gurações bastante diferentes, mas estão
geogra camente próximos, cerca de 2km de distância entre si, o que
permitiu várias incursões entre as RTs, inclusive com os moradores
transitando entre uma RT e outra. Também incluímos neste estudo
abordagens e conversas com as pessoas envolvidas nas atividades diárias das
casas, e relatos de vizinhos.

Serviços residenciais terapêuticos, bons encontros e


amizade na comunidade
Os denominados SRT são casas implantadas fora dos limites de
qualquer unidade hospitalar (geral ou especializado), abrigando, no
máximo, oito pessoas, acomodadas na proporção de até três por dormitório
(BRASIL, 2000). Até junho de 2009, foram contabilizadas 533 casas com esta
nalidade (BRASIL, 2009). Esta modalidade de casa tem como meta central
o viver na cidade, em busca de conquistar o exercício cidadão. O estado do
Espírito Santo implantou, até o momento, cinco serviços desta modalidade,
e tem atualmente a proposta de se instalar casas su cientes para abrigar
todos os ainda internos-moradores do Hospital Psiquiátrico Estadual.
As duas primeiras casas foram inauguradas em outubro de 2004, e as
outras três residências foram inauguradas em fevereiro de 2006. Todas as
casas estão instaladas em bairros de classe média com boa estrutura de
saneamento, bom comércio local e espaços de convívio entre os moradores,
com praças e jardins. As instalações das casas são amplas, contando com
sala, quartos amplos, copa, cozinha e banheiros, com mobiliários novos.
Quatro casas possuem amplo quintal com varanda, espaço para jardim e
hortas. Os moradores destas RTs são assistidos pelo CAPS mais próximo e
estão vinculados às unidades básicas dos referidos bairros. Dois projetos de
estágio inserem alunos dos cursos de Psicologia para as atividades de
acompanhamento terapêutico para os moradores que demandam este tipo
de abordagem.
Durante quatro anos acompanhamos os moradores e moradoras
destas cinco residências terapêuticas, na região da Grande Vitória, no
Espírito Santo. Durante este período, objetivamos conhecer e analisar as
relações que foram construídas por pessoas, que viveram longas internações,
ao retomarem uma vida na cidade, ao passarem a viver em serviços
residenciais. Buscamos descortinar o cotidiano dos moradores, o mais
amplamente possível, pela inserção nas casas e conversas informais com os
moradores, pro ssionais e membros da comunidade. Em cada uma das
casas, vivem oito moradores e trabalham um pro ssional (cuidador) e uma
diarista em regime de plantão. Percorremos, juntamente com os moradores,
diversos espaços de circulação na cidade em que passaram a morar.
Inicialmente era comum encontrar os moradores agachados ou
sentados na garagem ou encontrá-los em seus quartos. Aos olhos de quem
chega, essa cena pode ser tomada apressadamente como uma falta de
relação com o lugar, di culdade de estar em casa e apropriar-se dos novos
espaços. Como se compreendêssemos que há uma maneira correta ou mais
adequada de estar na casa onde moram. Essa tímida maneira de explorar
novos espaços também se repetia na inibição dos moradores das RTs em
avançar em outros espaços mais amplos, ou seja, o entorno do bairro, com
expansão das atividades fora de suas casas.
Pudemos observar que cada uma das cinco casas apresentava
realidades muito distintas, quanto à apropriação dos espaços pelos seus
moradores. Em várias situações, estes passavam horas na varanda, entre um
cigarro e outro; noutras, deitados em seus quartos. Mas um processo lento e
gradual de descobertas e trocas com os vizinhos e com a comunidade tomou
conta do dia a dia dos moradores destas RTs.
Entre tantos desa os observados/vivenciados, destacou-se uma
insegurança, tanto por parte dos pro ssionais como dos moradores, perante
a necessidade permanente de criação, ensaios e riscos no enfrentamento
cotidiano de situações inéditas e inesperadas. A tutela se desvelou nas ações
e nos resquícios manicomiais que algumas vezes entraram sorrateiramente
pelas frestas da casa, na tentativa de fazer cessar a vida que pulsava no
cotidiano. Algumas posturas manicomiais se revestiam no medo e na
insegurança vivenciados pelos cuidadores no dia a dia com os moradores e
no cotidiano das casas. No pensamento espinosano, o medo, assim como a
esperança, é causado por qualquer incerteza do que acontecerá; ambos são
afetos tristes (ESPINOSA, 2005). Testemunhamos o jogo contínuo entre os
afetos tristes e os afetos alegres, que passou a ocupar a casa nos primeiros
meses e a acompanhou na instabilidade do cotidiano que é o viver.
O medo e a insegurança, muitas vezes apresentados tanto pelos
moradores das casas como também pelos pro ssionais, respondem a esta
nova situação em que ambos estão envolvidos em um novo modo de viver,
ainda desconhecido. O que, para muitos, pode representar uma “melhor
maneira de viver”, para os moradores destes SRTs foi também uma
interrupção de certa vida com a qual já estavam acostumados. Então, a casa
proporciona uma possibilidade de oferecer escolhas diferentes daquelas do
tempo vivido no hospital, já que aquilo que é vivenciado como
experimentação, como descoberta, conduz à alegria e esforça-se para
perseverar e continuar a existir (ESPINOSA, 2005).
Percebemos, então, que o jogo de experimentações cotidianas e a
possibilidade de participar de uma vida de outra maneira despontam novas
oportunidades de se perceber e ir se apossando de suas casas, como um
ensaio para a expansão da vida. Assim também foi aumentando o grau de
pertencimento à sociedade, distanciando-os de uma forma de se perceberem
como internos para existirem como moradores em uma comunidade.
Os espaços de trânsito e de convivência sociais, antes reduzidos a
longos corredores e pátios cercados por muros altos, foram ampliados. O
que antes era o corredor e os poucos contatos com pessoas que não
pertenciam ao corpo de pro ssionais do hospital foi sendo suprido por
novas relações com estes lugares e com as pessoas do bairro. Os encontros
possíveis entre duas paredes dos corredores e com as mesmas pessoas,
durante anos a o, agora foram lançados em espaços tão extensos e pessoas
tão diferentes. Os modos de se relacionar entre os moradores das RTs e sua
vizinhança também foram ampliados.
Não podemos desconsiderar que os moradores das RTs construíram
um mundo pessoal diretamente ligado ao modo de funcionamento do
hospital em que viveram por tantos anos. Para nós, pode-se tratar de
produção de liberdade, mas, para eles, inicialmente, ocorreu a desintegração
de um mundo construído por longo tempo. Vivia-se em um circuito
espacial nito, com escolhas e decisões sobre onde ir ou como circular
muito limitadas. Havia sempre um corredor que levava a algum lugar, em
uma vida intramuros na qual o mundo girava em horas contínuas. Ao passar
a viver no SRT, essas pessoas foram apresentadas à amplitude das ruas,
espaços abertos, uentes, sentidos como ilimitados à visão e também ao
corpo.
Logo que se mudaram para o bairro, um comportamento comum
entre internos de um hospital psiquiátrico era reincidente na comunidade: o
pedido de cigarro. O morador da RT se aproximava de todo passante que
encontrava com um pedido de um “cigarrinho” ou mesmo uma “guimba”.
Algumas vezes esta aproximação causava estranhamento ao passante, outras
vezes, ao se encontrarem, já havia um oferecimento de um cigarro ou um
sorriso. Com pequenos gestos, os vínculos de aproximação e vizinhança
foram se estabelecendo, pois quando estavam de posse de seu próprio maço
de cigarros, ou de seu “embrulhinho de fumo”, os moradores não
economizavam em sair oferecendo para outros moradores e vizinhos que
encontravam até que seus cigarros acabassem.
Nestes momentos de troca, os espaços amplos do bairro foram
permitindo que bons encontros ocorressem, e assim cabe aqui relatar o
nascimento de uma forte amizade entre as moradoras de uma RT e sua
vizinhança. Vamos nos ater a um relato detalhado deste fato, feito por uma
vizinha de uma das casas, pois ele representa, a nosso ver, a passagem de um
lugar de estrangeiro na comunidade para um lugar de vizinho, participante
desta comunidade:
Tudo começou assim... Em frente à casa do meu irmão alugaram uma
casa para funcionamento da primeira residência terapêutica. Tínhamos
residindo ali sete mulheres como falava meu irmão, “as doidinhas”. Este
meu irmão tinha um espaço que era alugado pra festas. Sempre que
aconteciam as festas, elas pediam as bolas de soprar que sobravam e os
bolos. Através destes pedidos começou uma relação de bate-papo,
aprenderam o nome de meu irmão, dos seus lhos e da esposa. Assim
acontecia: sempre que havia festa meu irmão fazia questão de mandar
para elas as bolas, bolos, balas, docinhos e refrigerantes.

O convívio com estas estrangeiras “doidinhas” foi permitindo o


surgimento de uma relação diferente em que os espaços de trocas foram
aumentando aos poucos.
Até que um dia, meu irmão me chamou e contou a história das novas
vizinhas; como eles se comunicavam e como elas eram gente boa e deu
a ideia de programarmos uma festa pra elas. Naquele dia, zemos o
planejamento e a organização de tudo, desde o contato com os
pro ssionais, até os estagiários. Então foi uma terça feira, meu irmão
doou bolo, o vizinho deu salgadinho e o vizinho dono da casa deu o
refrigerante, alguns estagiários levaram salgadinhos também.
Colocamos música, elas se divertiram muito dançando, sorrindo,
brincando. Este foi o meu primeiro contato direto com as “meninas”.

Ali, havia a realização de um encontro planejado pelos vizinhos e


pelo dono daquele local, demonstrando quão abertos estavam ao convívio.
Nessa festa o estranhamento de convívio com “as doidinhas” se transformou
em uma forma carinhosa de verem “as meninas”. E de doidinhas, as
moradoras foram passando a “meninas”. Estas mesmas “meninas” se
revelaram também como pessoas especiais no dia a dia dessa vizinha, em
que a amizade teve destaque para a vida de todas as pessoas envolvidas, não
somente para as moradoras da RT, como também para esta vizinha que se
viu diante de uma amizade expressa da forma mais afetiva possível, o que foi
chamado por ela de “sentimento verdadeiro”, na alegria pela conquista da
amiga.
[...] eu comprei uma casa numa rua de cima, quase em frente a casa “das
meninas”. Começamos a fazer reforma na casa, e elas foram até lá e
deram opinião. Sempre perguntavam coisas, mostravam interesse, onde
vai ser meu quarto e o do meu lho. Eu estava em contato constante
com elas, na rua ou na varanda da casa delas, neste período. Quando
terminamos, elas falaram: “Sua casa cou linda!”. [Falaram] com tanta
alegria demonstrando que estavam realmente alegres com minha
conquista. Era sentimento verdadeiro, sabe? Não ouvi isso de mais
ninguém, só delas.

Os novos vizinhos (moradores da RT) passaram a demonstrar


alegria com as conquistas dos demais de uma maneira tão genuína que
despertou afetos alegres e a sensação de que também eles podem oferecer o
cuidado nas relações que estabelecem. Assim, um simples corte de cabelo
pode passar a ser um evento em que se elogia e se dá opinião. Uma camisa
nova ou uma barba feita são motivos de elogio e estes novos vizinhos não
temem em apreciar. Em várias situações, os moradores sentiam-se felizes
com o interesse dos vizinhos por suas vidas que faziam desenrolar extensas
conversas. Há uma disposição para o encontro e para a aceitação do outro,
que é relatado de forma muito sensível, neste relato de uma estagiária que
realizava acompanhamento terapêutico com os moradores em uma das
casas:
É um depoimento muito pessoal que quero fazer: pela primeira vez na
minha vida, eu estou me sentindo aceita do jeito que sou. Sempre temos
que estar atentos em como os outros estão nos vendo, se queremos
agradar de alguma forma, mas lá [nas casas] é diferente... eu me sinto
feliz, pois sinto a alegria nos olhinhos deles ao nos ver chegar, só chegar.

Desponta, neste contexto, uma dimensão afetiva que pode se


estabelecer nos encontros entre pessoas. Neste caso, tanto os moradores das
RTs, quanto aqueles que com eles convivem passam a tomar para si uma
preocupação com o outro, que não seja uma preocupação moral. Uma
dimensão ética que se constrói nas relações de tal modo que evita o
abandono, o descaso e o desprezo pelo outro que é vivido como um bom
encontro e experimentado como expansão de vida, de alegria, capaz de
possibilitar novos sentidos para os envolvidos nos encontros.
Não há como comparar as casas na atualidade com o que já foram
um dia, ou com a forma de viver no espaço contido de um hospital, já que as
relações não se con guram mais como antes. Os resquícios manicomiais,
algumas vezes, insistem em invadir as portas e janelas das casas, mas, dentro
das capturas, existe sempre o espaço para as vivências de afetos advindos dos
bons encontros entre os cidadãos livres. A antiga moldura sofreu mudanças
profundas que criam continuamente novos espaços de potências positivas.
O isolamento, se, por um lado, inibiu a chance de a loucura
pulverizar-se nas relações com a comunidade, também retirou a chance de
um relacionamento da comunidade com a loucura. E a experimentação da
vida pelos afetos alegres foi usurpada daqueles que viveram longos períodos
de internação. Alguma coisa se modi ca ao longo desse período, insinuando
a possibilidade de uma relação produtiva e potencializadora para ambas as
partes. E a construção de uma relação de amizade desponta nos encontros
cotidianos vividos em espaço de comunidade.
Para Espinosa (2005, p. 279) ninguém pode, na verdade, determinar
o que pode o corpo, pois ninguém sabe o que pode um homem em seus
encontros. Certamente, ao se deparar com outros homens, o homem se
tornaria sua melhor forma possível. Este pensamento contribui para a
crença no homem e em sua capacidade de construir um modo de existir,
que é o melhor naquele momento existencial; contribui para
compreendermos a apropriação dos espaços sociais feita pelos moradores,
nas atuais condições que suas vidas se apresentam.

Considerações finais
Sob o lema “A Liberdade é Terapêutica”, Basaglia (1982) devolveu à
comunidade um de seus membros e consolidou o combate ao que foi
produzido no domínio manicomial, pois, tal como o cárcere, esta estrutura
representa um fantasma para a sociedade. Espaço de internamento:
isolamento que origina o medo público de também vir a ser afastado de sua
comunidade. A comunidade, além de produzir uma possibilidade para o
surgimento da amizade por meio de um espaço coletivo, também se
apresenta como lugar de exercício político por excelência, local de diálogo
entre iguais, uma atividade entre humanos.
Basaglia (1982) demonstrou que a desinstitucionalização advém,
fundamentalmente, da mudança da relação da sociedade com o fenômeno
da loucura. Então, a comunidade pode se transformar em um espaço para
isso, porque é local de encontros entre homens livres que vivenciam
situações de trocas. Os homens livres sentem-se respeitados na potência
para agir no coletivo a que pertencem e constroem relações de qualidade
com as pessoas, e na amizade desponta a força imanente de transformação
contínua do humano.
Assim, a loucura, por estar diluída e mesclada no cotidiano citadino,
encontra sua via de expressão nas possibilidades que os espaços dispõem,
mostrando a emergência de encontros possíveis. A mudança da relação com
a loucura pode despontar um processo de autocriação contínua para os
envolvidos nesses encontros, sejam eles loucos ou não. A comunidade deve
ser compreendida como espaço fundamental para a expansão do viver, para
produção de vida, de um novo sentido do ser, de trocas sociais, ao deixar
surgir uma coexistência dispersa entre homens livres que se encontram.
Talvez seja esse o sentido da desinstitucionalização, defendido por Franco
Basaglia. E assim, os bons encontros entre as pessoas e o exercício dialógico
entre indivíduos livres possibilitam o surgimento de uma relação intensa
que pode se con gurar como um bom encontro, potente para a construção
de uma relação de amizade estabelecida na comunidade.

Referências
ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de
Janeiro: J. Zahar, 1991. (Texto original publicado em 1944).
AMARANTE, P. (Org.). Loucos pela vida: a trajetória da reforma
psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP, 1997.
ARENDT, H. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2003.
BASAGLIA, F. Psiquiatria alternativa: contra o pessimismo da razão, o
otimismo da prática. São Paulo: Brasil Debates, 1982.
BAUMAN, Z. Comunidades. São Paulo: Zahar, 2004.
BRASIL. Portaria/GM nº 106 – De 11 de fevereiro de 2000. Institui os
Serviços Residenciais Terapêuticos.
_______. Congresso Nacional. Lei Federal nº 10.216 – De 06 de abril de
2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadores de
transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.
Diário O cial da União, Brasília, DF, 9 de abril de 2001.
_______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde.
Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Residências
terapêuticas: que são. Para que servem?, 2004.
_______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Coordenação
Geral de Saúde Mental. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no
Brasil. Documento apresentado à Conferencia Regional de Reforma dos
Serviços em Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. OPAS. Brasília, DF,
2005.
_______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde.
Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Coordenação de
Saúde Mental, Álcool e Drogas. Saúde Mental em Dados 6, ano IV, n. 6,
junho de 2009.
ENRIQUES, E. Psicossociologia: análise social e intervenção. Petrópolis:
Vozes, 1994.
_______. A organização em análise. Petrópolis: Vozes, 1997.
ESPINOSA, B. Ética e tratado político. São Paulo: Nova Cultural, 2005.
(Coleção Os pensadores).
FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
LANE, S. T. M. A dialética da subjetividade versus objetividade. In: REY, F.;
FURTADO, O. (Org.). Por uma epistemologia da subjetividade: um debate
entre a teoria sócio-histórica e a teoria das representações sociais. São Paulo:
Casa do Psicólogo, 2002. p. 11-18.
_______. Emoções e pensamento: uma dicotomia a ser superada. In: BOCK,
A. M. B. (Org.). A perspectiva sócio-histórica na formação em psicologia.
Petrópolis: Vozes, 2003. p. 100-112.
MOREIRA, M. I. B. Se esta casa fosse minha: habitar e viver na cidade a
partir de uma residência terapêutica. 2007. Tese (Doutorado em Psicologia)
- Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2007.
ORTEGA, F. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault. Rio
de Janeiro: Relume-Dumará, 2000.
PAGÉS, M. A vida afetiva dos grupos. São Paulo: Universidade de São Paulo,
1976.
REY, F.; FURTADO, O. (Org.). Por uma epistemologia da subjetividade: um
debate entre a teoria sócio-histórica e a teoria das representações sociais. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.
ROTELLI, F. (Org.). Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 1990.
SANTOS, M. Território e sociedade. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2000.
SATO, L.; SOUZA, M. Contribuindo para desvelar a complexidade do
cotidiano através da pesquisa etnográ ca em Psicologia. Psicologia USP, São
Paulo, v. 12, n. 2, p. 29-47, 2001.
SAWAIA, B. B. O. Sofrimento ético-político como categoria de análise da
dialética exclusão/inclusão. In: _______. (Org.). As artimanhas da exclusão:
análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 2001. p.
97-108.
_______. O sofrimento ético-político como categoria de análise da dialética
exclusão/inclusão. In: _______. As artimanhas da exclusão: uma análise
ético-psicossocial. 4. ed. São Paulo: Vozes, 2006.
TÖNNIES, F. Communauté et societè. Paris: Puf, 1944.
TOURAINE, A. Nascimento do sujeito. In: _______. Crítica da
modernidade. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 211-344.
1 ProfessoraAdjunta da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP-Baixada Santista). Doutora em
Psicologia pela Universidade de Federal do Espírito Santo.
2 Professor
Adjunto da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP-Baixada Santista). Pós-doutor em
Ciências Sociais pela University of Western Ontário (Canadá). Doutor em Psicologia Social pela
Universidade de São Paulo.
A política da reforma psiquiátrica brasileira
Raul Atallah1

Introdução
Discutir os destinos da reforma psiquiátrica no Brasil ainda é, depois
de tantos anos, uma tarefa árdua e envolvente. Os fundamentos e os aspectos
teóricos do que chamamos de reforma psiquiátrica já foram exaustivamente
discutidos por diversos autores. Sabemos que diante das grandes críticas
institucionais dos anos 1960, os hospitais psiquiátricos passam a sofrer, em
todo o mundo, questionamentos que culminam em transformações
importantes nas instituições da psiquiatria.
Essas transformações culminaram, nos últimos anos, no que se
denomina processo de desinstitucionalização, ou seja, da retirada gradativa
de pacientes psiquiátricos do hospital. Essa tendência in uenciou a criação
de novas instituições relacionadas à saúde mental, onde o trabalho passaria a
ser feito no território.
Segundo aponta Paulo Amarante (1995), no Brasil, o processo de
desinstitucionalização foi possível graças à constituição de 1988, que
consolidou as bases da reforma sanitária e a criação do Sistema Único de
Saúde (SUS) que, com prerrogativas inéditas, possibilitou o surgimento dos
investimentos necessários para a criação dos serviços substitutivos ao
hospital psiquiátrico.
No Brasil, diversos dispositivos de atenção foram criados nos
últimos anos, atendendo a demanda por uma reforma na assistência em
saúde mental. O processo de desinstitucionalização no Brasil caminha para
consolidar serviços territorializados, voltados para a comunidade. A rede de
atenção, como vem sendo construída, funciona por dispositivos distribuídos
por zonas da cidade, onde existiriam o Centro de Atenção Psicossocial
(Caps) ou o Núcleo de Atenção Psicossocial (Naps), os prontos-socorros e
os postos de saúde mental, articulados com o Programa de Saúde da Família
e com centros de tratamento de álcool e drogas, e ainda Centros de Atenção
à Infância e Adolescência. Em seguida, a rede forma-se com os dispositivos
residenciais terapêuticos, o hospital geral, suas unidades de internação
psiquiátrica e ainda os manicômios tradicionais (PITTA, 2001).
Todo esse modelo é idealizado para construir uma rede de atenção
articulada entre si, sempre com o objetivo de substituir o modelo tradicional
da psiquiatria, ou pelo menos de evitá-lo ao máximo. Todos esses novos
dispositivos avançam lentamente pelo Brasil, e já provocam inúmeras
questões.
Para fugirmos do romantismo resistente de muitos modelos teóricos
da reforma psiquiátrica e para colocar em questão seu modo de
implementação e funcionamento, precisamos analisar mais de perto os
espaços construídos pelo processo de desinstitucionalização da loucura,
para identi carmos quais são as forças que movem esses serviços e a que
tipo de políticas estão sujeitos.
Para analisar criticamente as políticas atuais de reforma psiquiátrica
no Brasil, escolhemos um destes dispositivos – a residência terapêutica,
consequência direta do processo de desinstitucionalização. Essa nova
instituição possui interessantes particularidades. O sentido original era
propor uma organização totalmente diferenciada para o tratamento da
saúde mental, mas, de certa forma, na prática, pode simplesmente
reproduzir o modelo do hospital psiquiátrico.
O dispositivo residencial nasce como uma esperança de sucesso da
reforma psiquiátrica. É a pedra fundamental, o destino dos usuários dos
hospitais psiquiátricos que não possuem vínculos familiares, ou daqueles
que precisam ainda de cuidados que seriam impossíveis dentro da família. A
partir daí surgem inúmeros problemas estruturais, de ordem prática ou
conceitual.
Os dispositivos residenciais são fruto de uma tentativa de renovação,
mas não conseguiram se livrar das armadilhas criadas por um sistema de
saúde pública enfermo. A desorganização e o descaso acabaram se re etindo
nesse modelo, assim como aconteceu com os hospitais psiquiátricos.
Para além do romantismo dos textos sobre reforma psiquiátrica,
muito necessário para dar força aos pro ssionais iniciadores de todo o
processo árduo de transformação das instituições psiquiátricas, precisamos
repensar seriamente os dispositivos da reforma psiquiátrica, e expor bem os
problemas. Precisamos levantar as questões necessárias para iniciarmos uma
nova onda de transformação, para repensarmos o modelo adotado e as
forças que pressionam esse modelo ao estático, a um formato único, seguido
por diligências de um sistema único de saúde, que pode em última instância
estar universalizando a desassistência. Desorganização da gestão interna, de
nanciamento, de práticas clínicas repetitivas, de treinamento de
pro ssionais, sobrecarga de trabalho, salários reduzidos e o excessivo papel
das ONGs como gestoras desses serviços são alguns dos problemas que
podemos levantar, mediante análise dessas instituições.

Capitalismo e reforma psiquiátrica


Os movimentos de incorporação de novas formas de gestão da
saúde, advindas com esse modelo, in uenciaram a gestão do nanciamento
dessas moradias. O remodelamento da assistência não só desconstruía um
modelo de atenção em psiquiatria, como também serviria para melhorar a
gestão dos recursos destinados à saúde mental. Os gastos elevados do
hospital psiquiátrico justi cariam o remodelamento da atenção para o
território.
A reforma psiquiátrica no Brasil surge com força no nal dos anos
1970, junto a todas as pressões por redemocratização do Estado.
Paradoxalmente, ao longo dos anos 1980 e inicio dos 1990, o Estado
brasileiro sofreu inúmeras mudanças nas políticas sociais, alinhando-se ao
modelo econômico do neoliberalismo2 (SOUZA, 1997).
No Brasil, a reorganização dos serviços inicia-se enfrentando o
sucateamento crônico das instituições de saúde. A redemocratização
brasileira e o m da ditadura militar criaram as condições necessárias para
um reinvestimento nas lutas de superação das instituições clássicas, no
sentido de liberação das mesmas amarras técnicas e políticas que as
atrelavam estruturalmente a modelos fascistas de assistência.
Nos últimos anos, todavia, os projetos de desinstitucionalização e de
reforma psiquiátrica buscam inserir-se em um conjunto de políticas pouco
favoráveis à estabilidade das práticas institucionais. O papel do Estado,
mesmo que presente, reinveste recursos, que outrora eram destinados ao
controle da máquina asilar, para programas sociais passageiros e precários,
muito presentes hoje em dia, e controlados pela iniciativa privada por meio
de organismos não governamentais.
As Ongs, ou o terceiro setor, tornaram-se fonte de inúmeras críticas
nos últimos anos. Inicialmente integrantes das críticas sociais independentes
e do processo de redemocratização do Estado brasileiro, tornaram-se um
problema quando passaram a ocupar-se do espaço reservado ao poder
público, trazendo a lógica das empresas privadas para dentro do poder
estatal.
O papel destas entidades ainda não é claro e talvez necessite de mais
estudos, para sabermos qual o real impacto da participação dessas
organizações em parceria com o poder público. Precisamos saber quais
interesses estão em jogo, quando serviços públicos de saúde são parceiros de
associações ou Ongs de execução ou contratação de pessoal.
A realocação de investimentos em saúde mental no formato com o
qual trabalha boa parte dos serviços torna a vida fora do hospital
psiquiátrico um problema maior a ser enfrentado, tanto para pro ssionais
como para usuários. Por uma fala de um pro ssional de um dispositivo
residencial terapêutico, podemos perceber os problemas a serem
enfrentados no cotidiano:
Se estamos vivendo um sucateamento geral das políticas de saúde e de
assistência social, é claro que na saúde mental isso terá efeito. Mas
estamos conseguindo alguns avanços [...]. O problema da desassistência
é um nó, não tem rede de assistência para ninguém [...] morar é hoje
em dia complicado pra qualquer um (informação verbal).3

O pro ssional aponta os entraves vividos pelo trabalhador de saúde


mental em seu cotidiano. Muitos sofrem, juntamente com seus usuários,
com o descaso e a falta de estrutura pública, que na maior parte das vezes
deixa a desejar em qualidade e dinamismo, o que acarreta o nó observado.
Como dar assistência em um Estado no qual a desassistência impera? Será
então que os programas de reforma da psiquiatria e os processos de
desinstitucionalização estão fadados ao descaso e à desassistência?
Para introduzirmos esse problema, devemos entender de onde surge
essa desassistência e a qual política ela pertence.
Sabemos por diversos autores, como Bauman (2001) e Sennet
(2002), que as experiências de reorganização dos espaços e das instituições
do mundo capitalista seguem padrões determinados, sempre presos a uma
lógica universalizante e atrelados ao discurso do capitalismo. Dentro do
universal da mudança, mudamos as instituições para delas reproduzirmos
um modelo dominante de organização social. Assim, não poderia ser
diferente nas organizações da reforma psiquiátrica, nas quais ainda reinarão
discursos e práticas institucionais dependentes do modelo hegemônico.
Desta forma, várias interferências podem incidir sobre um serviço
de saúde mental aos moldes da reforma psiquiátrica, vindos de planos
diversos da sociedade e que não dependem inteiramente do modelo de
assistência adotado. Mesmo que reorganizemos a assistência e promovamos
novas orientações técnicas imprescindíveis para a reforma psiquiátrica,
sempre teremos como entraves a falta de investimentos, os erros de gestão
dos recursos e as privatizações no setor de saúde pública.
O processo de desinstitucionalização da loucura tem por impasse a
falta de garantias do poder público de dar assistência social aos ex-internos
de hospitais psiquiátricos. Mesmo que seja a eles garantida uma moradia,
como as residências terapêuticas podem oferecer, existirá toda uma gama de
problemas maiores a serem enfrentados, como o desemprego, a falta de
acesso ao sistema de saúde, a falta de educação e acesso à cultura, a
violência, entre outros.
Morar, habitar a cidade, não tem sido fácil para ninguém. Vivemos
num sistema de exclusão social que se agrava constantemente. Cidades
in adas, inseguras e desorganizadas, capazes de gerar em seus habitantes
toda sorte de con itos, sejam objetivos ou subjetivos.
Assim, como aponta Sennet (2002), o grande universal de muitas
cidades capitalistas contemporâneas é a indiferença, sentida em todas as
esferas sociais e políticas. Mais do que isso, a suspeita em relação aos outros,
a intolerância em face das diferenças, o ressentimento com os estranhos e a
necessidade de bani-los ou isolá-los, e a ausência de coesão social formam
uma gama de forças coletivas que se dobram sobre as instituições de forma a
incidir diretamente sobre a vida de cada indivíduo dentro da cidade.
As cidades, cada vez mais impregnadas dos movimentos de
transformação capitalista atuais, fecham as portas a grupos sociais de
diversas maneiras. Se no nascimento da modernidade, a prevalência de
instituições fechadas e disciplinadas prevalecia para acolher as diferenças,
agora, mesmo tendo-se desmantelado algumas destas instituições, os
diferentes permanecem separados pela apatia ou pela rejeição.
Esse fato nos remete à fala de um pro ssional de um dispositivo
residencial terapêutico do Rio de Janeiro. Ao descrever as di culdades de se
encontrar uma casa fora do hospital psiquiátrico, para abrigar moradores de
uma grande instituição psiquiátrica, relata:
[...] porque nem tudo é maravilha. A gente tem notado que a cidade não
está preparada para recebê-los. Acho que o problema não é deles. Acho
que a cidade não está preparada para esse tipo de iniciativa. Quando se
criam portarias e as leis não se preocupam muito com isso [...] dizem
que tem que ter três, ou oito pacientes, dá diretrizes etc.. mas na hora de
implementar os serviços surgem outras di culdades: quem aluga a
casa? [...] quem vai ser o ador? [...] Então você vai descobrindo as
di culdades; os vizinhos se apavoram, a gente não consegue
proprietário que queira alugar. Última vez o condomínio se reuniu pra
vetar a entrada (dos ex-moradores do Hospital Psiquiátrico)
(informação verbal).4

As di culdades aqui descritas não são exclusivas dos ex-internos do


manicômio. As cidades transformadas pelo capitalismo atual produzem
novos tipos de medo. Segundo Bauman (1999), hoje em dia percebe-se que
os medos concentram-se em inimigos próximos. São os vizinhos os grandes
estranhos, evidenciando a separação como uma das estratégias de vida
urbana. Por isso, muitos são aqueles que se localizam entre os diferentes. A
cultura do medo então pode ser traduzida por outro tipo de
enclausuramento.
Como aponta Bauman, as transformações sociais contemporâneas
tiveram impacto nos modos de viver em sociedade. Os comportamentos se
modi cam, assim como a relação com o corpo individual e a vida coletiva.
O avanço do capitalismo em sua forma mais exível e volátil tem como
produto relações sociais efêmeras. Do ponto de vista econômico, percebe-se
que a volatidade dos produtos e serviços é cada vez maior. Coisas são
compradas e imediatamente descartadas para serem compradas novamente
num uxo frenético e esvaziado de satisfação. Por outro lado, a acumulação
capitalista crescente gera uma camada cada vez maior de ofertas de produtos
e, consequentemente, de sujeitos consumidores.
Surgem, então, sujeitos interessados no provisório, no descartável e
no instantâneo. Diante de tal velocidade e liberação de uxos contínuos,
aparecem também sujeitos frágeis e insatisfeitos, inábeis em lidar com a
frustração. A rmando não ser esta uma questão individual, ela poderá ser
entendida como um re exo de políticas sociais fundadoras de sujeitos,
subjetividades e modos de vida.
Aqui pode ser apontado também o problema da
desinstitucionalização da psiquiatria. No Brasil, diversos movimentos de
resistência ao manicômio, como modelo de tratamento, criaram associações
e movimentos sociais como a Luta Anti-Manicomial, que, apesar dos
problemas internos, conseguem dar voz a uma proposta de mudança. Mas
que mudança se propõe? Comumente investem na concepção de que devem
ser resgatados os direitos sociais dos pacientes psiquiatrizados, de devolver-
lhes a cidadania. Mas a cidadania e a inclusão social são conceitos também
voláteis e ideológicos o su ciente para serem mais uma retórica
massi cadora do que propriamente instrumentos conceituais capazes de
propor novas práticas sociais.
Devemos pensar, seguindo o raciocínio de Oliveira (1999): que
cidadania estamos reinvidicando? E qual modelo de Estado? Isso quer dizer,
por exemplo, que o processo de internamento dos loucos e sua
psiquiatrização, iniciada por Pinel e outros, propunha também um tipo de
resgate da cidadania, voltada para a tentativa de uniformizar e dar igualdade
de condições para todos os membros da sociedade. Era uma tentativa de
inclusão social? Talvez, mas o que devidamente ocorreu ao longo dos anos
foi a produção de um espaço de exclusão gigantesco. Da mesma maneira,
devemos re etir sobre as vicissitudes dos novos dispositivos da
desinstitucionalização.
Por exemplo, em um pequeno artigo intitulado “Saúde mental,
políticas públicas e neoliberalismo: a experiência de Cuba”, Barrientos
(1999) sustenta que a saúde mental vive um momento de desmantelamento
de suas estruturas. O manicômio ainda persiste como principal meio de
tratamento e nele próprio conseguimos identi car o aparecimento de uma
política privatizante e liberal.
Essa política, segundo o autor, sustenta uma desarticulação da
atenção comunitária e um retorno do modelo de assistência centrado na
biomedicina. Além disso, com a redução da presença do Estado dentro
destas políticas, a privatização pode produzir práticas em saúde mental que
não estejam diretamente preocupadas com a reinserção social, mas com a
promoção do lucro. Barrientos aponta, como problema, o fato de os projetos
alternativos ao manicômio seguirem um modelo em que não é valorizada a
construção de estabelecimentos mais livres, mas sim a criação de
dispositivos mais e cientes em seu funcionamento empregando-se menos
recursos nanceiros. Esse fato demonstraria a lógica empresarial de muitos
dos dispositivos de saúde mental da atualidade.
No Brasil, a presença do Estado na saúde pública sempre se deu de
forma claudicante. As reformas sanitárias (que foram acompanhadas pelas
primeiras experiências de reforma psiquiátrica), iniciadas na década de 1980
traziam em si muitas contradições entre discursos e modelos implantados
(SOUZA, 1997).
Se, por um lado, com a criação do SUS, as tendências do Estado
brasileiro seguiam um modelo que elevaria a prestação de serviços estatais,
por outro, algumas práticas dentro do próprio sistema começaram a seguir
uma tendência mais liberal.
Inegavelmente, esta é a contradição central do processo nacional de
reforma sanitária. Há, de fato, uma clara dominância do projeto neoliberal
no dia a dia da ação governamental, apesar da determinação legal, no caso
da saúde, de apontar em outro sentido. (SOUZA, 1997, p. 19)
O autor aponta a complexidade de pensar-se o campo da saúde no
modelo implantado no Brasil. Ele identi ca na complexidade da prestação
de serviços de saúde, uma gama de procedimentos e práticas que, mesmo
sob legislações que preconizam uma universalização dos serviços públicos,
recorrem a fórmulas privadas e liberais dentro da própria política nesses
espaços.
A saúde mental dentro deste campo recorreu inúmeras vezes a
instâncias privadas de atenção. A reforma psiquiátrica, como a conhecemos
no Brasil, também está atrelada a alguns pressupostos desse regime
organizacional da saúde pública. Os hospitais lantrópicos são recursos
ainda muito utilizados, e as clínicas particulares são muito presentes dentro
da dinâmica da saúde mental. Aparentemente, as reformas têm acontecido
nas instituições públicas, mas são pouco evidentes nas instâncias privadas.
Esse aspecto da atenção à saúde mental tem suas raízes em um conjunto de
políticas que determinaram os rumos das reformas sanitárias nos últimos
anos. Essas políticas, voltadas para a inserção da lógica privada no espaço
público, serviram à constituição de muitos dispositivos da
desinstitucionalização psiquiátrica.
Para entendermos melhor essa questão, discutiremos a dinâmica das
instituições modernas e como elas in uenciam nas práticas da reforma
psiquiátrica contemporânea. Quais são as consequências destas políticas
para o cotidiano dos serviços da reforma psiquiátrica?

Modernidade, trabalho e reforma psiquiátrica


As críticas ao modelo do hospital psiquiátrico sempre foram
possíveis em consonância com movimentos de mudança da sociedade. O
saber médico psiquiátrico e a instituição asilar sempre estiveram entre forças
sociais paradoxais. Suas mudanças de paradigmas institucionais
acompanharam as políticas do Estado ao qual pertenciam. Então, para
entendermos essas mudanças de maneira crítica, precisamos saber a que
forças pertence o processo de reforma da psiquiatria na contemporaneidade.
Como aponta Bauman (2001), uma característica da atualidade é sua
capacidade de diluir crenças e identidades. Desde o começo da
modernidade, os processos de ruptura com as instituições duras da
sociedade se zeram presentes. O projeto modernizador da sociedade tinha
como missão “derreter os sólidos”, ou seja, liquefazer as amarras que
prendiam a humanidade à tradição. Assim, funda-se o espírito moderno, o
emancipador das linhas duras da história. Para tanto, necessitaria dissolver o
que persistisse no tempo, para fazer uir o novo.
Se o espírito era moderno, ele o era na medida em que estava
determinado que a realidade deveria ser emancipada da mão morta da
própria história – e isso só poderia ser feito derretendo os sólidos (isto
é, por de nição, dissolvendo o que quer que persistisse no tempo e fosse
infenso à sua passagem ou imune a seu uxo). Essa intenção clamava,
por sua vez, pela profanação do sagrado: pelo repúdio e destronamento
do passado, e, antes e acima de tudo, da tradição – isto é, sedimento ou
resíduo do passado no presente; clamava pelo esmagamento da
armadura protetora forjada de crenças e lealdades que permitiam que
os sólidos resistissem à “liquefação”. (BAUMAN, 2001, p. 9)

A liberação, pregada pela modernidade, prometia arrebentar os


grilhões que impediam a sociedade de mudar de rumos. O espírito do
homem livre era sua promessa. Ao se libertar, poderia aperfeiçoar-se, crescer
e desenvolver a si e o mundo a sua volta. Mas a destruição dos sólidos
também criou outras amarras. Ao destituir as instituições velhas e pesadas
de seu lugar, a modernidade criou outras mais aperfeiçoadas. Rompendo
com os sólidos de cientes e calejados da pré-modernidade, criaram-se
sólidos menos visíveis e mais con áveis. Dentro dos projetos da
modernidade, xou-se a necessidade de romper com tudo que prejudicasse
a circulação do bem maior desta sociedade, o capital. Tudo aquilo que
impedisse seu uxo deveria ser desmanchado, fossem as lealdades
tradicionais ou os direitos costumeiros. Ou seja, tudo que atrapalhava os
movimentos e restringia as iniciativas individuais. Assim, caíram os deveres
para com a sociedade como um todo, fazendo surgir uma nova ética social,
agora pautada na derrubada das estruturas tradicionais e na liberação
individual.
Derreter os sólidos também signi cava pautar as instituições do
Estado por uma racionalidade econômica, liberando-as dos embaraços
éticos, políticos e culturais que impediam a livre circulação do capital.
Essa nova ordem deveria ser mais sólida que as ordens que substituía,
porque diferente delas, era imune a desa os por qualquer ação que não
fosse econômica. A maioria das alavancas políticas ou morais capazes
de mudar ou reformar a nova ordem foram quebradas ou feitas curtas
ou fracas demais, ou de alguma outra forma inadequadas para a tarefa.
(BAUMAN, 2001, p. 11)

A capacidade de se questionar a própria ordem estabelecida caria


enfraquecida por suas amarras rígidas e por sua capacidade de se modi car,
de investir nos processos de liberação e modi cação que atendem aos
interesses da própria ordem estabelecida. O paradoxo da liberdade aqui se
presenti ca. Ao mesmo tempo que se rompia com aquilo que impedia o
homem de libertar-se da tradição e das formas duras do existir, tornava-o
ainda mais rígido ao condená-lo à eterna mudança. O aprisionamento aqui é
de outra ordem.
Atualmente, vemos a modernidade, mais uida ainda, investindo na
individualização das relações e na privatização das questões sociais. Nesse
regime privatizante das relações, as responsabilidades pelos fracassos
recaem preferencialmente sobre os ombros dos indivíduos. Como produto
da atualidade, vemos aparecer uma desarticulação do engajamento mútuo, a
competição desenfreada e a desintegração das redes sociais. As liberdades
dos tempos atuais podem se misturar com um tipo de liberdade necessária
para o capital uir sem as barreiras que a vida social e as redes de
solidariedade mútua lhe imprimem. Então, de que liberação se está falando?
Da mesma maneira, no mundo do trabalho, os re exos desse
momento da organização social se tornam evidentes. A fase do capitalismo
atual concretizou a uidez e a exibilidade do mercado de trabalho,
transformando as relações na vida social das empresas. Como aponta
Sennett (2002), essa uidez do capitalismo transforma o caráter das pessoas
inseridas no regime de trabalho exível. As exigências do mundo do
trabalho cada vez mais aumentam, pressionando a competitividade e
separando, mais do que produzindo trabalho coletivo. O autor fala do
caráter como a capacidade de expressar a lealdade e o compromisso mútuo,
pela busca de metas em longo prazo, e pela capacidade de adiar satisfações
imediatas por um bem maior no futuro. Esse caráter rompe-se no mundo
exível e líquido. A corrosão do caráter na sociedade atual estaria
relacionada à incapacidade de xação em uma meta de vida. Com a
exibilização, a insegurança invade a vida social de tal forma que se perdem
as referências, perde-se sua história. Uma das consequências é o medo do
descontrole sobre suas vidas emocionais.
O pro ssional exível deve saber correr riscos, deve ter aptidões
variadas, capazes de mudar de acordo com o ambiente, ser inovador e
empreendedor. Para conseguir manter-se no mercado de trabalho, deve
possuir inúmeras qualidades. Assim, os poderes que organizam este
ambiente de trabalho são lateralizados. Não há no trabalho exível um
chefe, uma organização central. Mas há o medo do vizinho que o controla;
ou o próprio indivíduo que se controla para não perder sua posição ou o
emprego dentro de uma organização qualquer. Sennett (2002) aponta uma
mudança nas relações de trabalho e no per l dos pro ssionais. A fábrica
fordista, com sua rotina constante e sua especialização intensa da mão de
obra, dá agora lugar à empresa exível. Como empresa, poderia atacar as
burocracias e os hábitos, convidando o próprio sistema a revisões
constantes.
A empresa, para dar conta das revisões constantes de sua estrutura,
precisa ser enxuta, exível e dinâmica. Para tanto, necessita de constantes
reengenharias, que pode signi car menos empregos e mais competição. Na
empresa, o aumento da produtividade e da e cácia deveria seguir o
rompimento com a rotina, característica do sistema de dominação da mão
de obra das fábricas fordistas. Ao romper com a rotina e lançando-se para o
campo em constante construção, rompe-se também com um passado rígido
e xo, gerando nova rede de controles.
Sennett a rma que essa organização empresarial gera uma forma de
organização “desorganizada”. A empresa é caótica, os resultados de seus
empreendimentos, incertos. Mas é exatamente pelo caos que ela é capaz de
produzir outra característica do trabalhador exível e disponível: ser capaz
de tolerar essa fragmentação. A consequência disso é a produção de
empregados à deriva, vivendo em um estado de constante mudança, levando
muitos aos excessos, seja excesso de trabalho, de stress, de competição. Esse
pro ssional tem de estar em constante atualização, precisando ser capaz de
tolerar mudanças, de ser criativo e empreendedor.
A divisão do trabalho, promovida pelo capitalismo exível, encerra
os pro ssionais em um sistema no qual se perde a liação de classe e de
pertencimento a um grupo social especí co. Não possuindo uma
identidade, está sujeito à redução de salários e aumento de carga de
trabalho. É engajado e disponível, não por fazer de seu trabalho uma
realização pessoal, mas para poder manter-se xado num sistema em
constante mutação. Com o trabalho mais super cial e sem uma unidade
histórica que o amarre, transforma sua relação com o trabalho coletivo,
sendo super cial e adaptável, só o tornando engajado para sobreviver ao
mercado de trabalho. As consequências são claras: o trabalho exível
prescinde de um sujeito maleável, forçado a uma constante mudança de si,
para adaptar-se a transformações no regime das empresas.
Para Sennett (2002), essas transformações trouxeram a promessa de
romper-se com um tipo de trabalho massi cado – da divisão xa e
especializada – para uma forma de trabalho mais livre e independente, em
que o homem pudesse desenvolver suas potencialidades. Mas o que ocorreu
na verdade foi uma outra forma de alienação do trabalho, imperando agora
o trabalho precário e super cial, possibilitando colocar os pro ssionais em
um sistema que di culta a resistência. A redução de salários, a intensi cação
do trabalho e a perda de garantias não são tão questionadas quanto
deveriam. Esse fato se justi ca por uma forma de controle que se faz sobre si
mesmo. A responsabilidade pelos fracassos é pessoalizada, tirando do
pensamento coletivo toda sua força.
Da mesma maneira, o caráter do novo pro ssional está atrelado ao
momento presente e a impressões imediatas. O imediatismo e o progresso
pessoal são xados na autocon ança no momento presente, com desprezo
por sua história, por tudo o que o amarraria a uma identidade.
Bauman (2001) também comenta sobre a exibilidade do trabalho e
mostra como ela pode invadir a vida cotidiana, inclusive as relações
humanas e sua experiência em sociedade:
Vivemos num mundo da exibilidade universal, sob condições de
Unsicherheit aguda e sem perspectivas, que penetra todos os aspectos da
vida individual – tanto as fontes da sobrevivência quanto as parcerias
do amor e do interesse comum, os parâmetros da identidade
pro ssional a da cultural, os modos de apresentação do eu em público e
os padrões de saúde e aptidão, valores a serem perseguidos e o modo de
persegui-los. São poucos os portos seguros da fé, que se situam a
grandes intervalos, e a maior parte do tempo a fé utua sem âncora,
buscando em vão enseadas protegidas da tempestade. Todos
aprendemos às nossas próprias custas que mesmo os planos mais
cuidadosos e elaborados têm a desagradável tendência de frustrar-se e
produzir resultados muito distantes do esperado; que nossos ingentes
esforços de pôr ordem nas coisas freqüentemente resultam em mais
caos, desordem e confusão; e que nosso trabalho para eliminar o
acidente e a contingência é pouco mais que um jogo de azar.
(BAUMAN, 2001, p. 156)

A ancoragem no momento presente se faz pela velocidade das


mudanças imprimidas pelo progresso do capitalismo. Quanto mais veloz,
mais difícil o apego a uma história. A fase da modernidade contemporânea
faz então com que a velocidade do capital invista nas relações sociais e nas
instituições, sendo o trabalho modi cado em seus signi cados sociais. Se
em um primeiro momento da modernidade, das instituições pesadas, o
trabalho signi cava desenvolvimento pessoal e coletivo, prometendo
aumento da riqueza material e eliminação da miséria, agora não pode
oferecer segurança de um projeto de vida. As dominações e alienações do
passado substituem-se, também para Bauman, por outras mais e cazes.
Ser descartável, não possuir uma história, essa é a característica do
novo pro ssional. Ele é sobressalente, disponível, substituível, entrando
assim no regime da sociedade do consumo. Nesta é necessário o descarte
constante das mercadorias. Elas devem mudar para poder fazer circular o
capital. O trabalho passa, então, a ser mais um objeto da lógica do consumo,
fazendo dos próprios pro ssionais sujeitos necessitados de mudanças.
Esse efeito é o subproduto da necessidade de desmontar as
organizações de resistência. A falta de engajamento coletivo para se
proporem mudanças. A nova rigidez está apresentada em sua di culdade
em propor novos estilos de vida, de construir alternativas para as relações de
trabalho. Os novos estilos na competição, na perda de identidade, na
descon ança, perdidos na necessidade de abertura constante a novas
produções. Aqui o que circula, e com cada vez mais velocidade, é o capital,
mas não a capacidade de resistir às novas formas de controle da
subjetividade. Não é à toa que esses pro ssionais, descartáveis e sem uma
história, começam a queixar-se de desânimo com o trabalho. Mas o que toda
essa discussão tem de congruente com a reforma psiquiátrica?

Profissionais de saúde mental nos dispositivos residenciais


terapêuticos
No caso dos dispositivos da reforma psiquiátrica, muitos dos
serviços que funcionam nestes moldes requerem pro ssionais que foram
tirados de suas funções habituais, reinventando o modelo de trabalho e de
prática institucional. Por outro lado, testemunhamos na formação destes
serviços a necessidade de trabalhadores exíveis, criativos e disponíveis. A
exibilidade muitas vezes é confundida com exibilização, características do
mundo do trabalho atual.
Voltamos agora à constituição dos serviços da reforma psiquiátrica e
à nossa pergunta inicial: quais são as políticas envolvidas na montagem
destes serviços? E mais ainda, quais são as consequências para os
pro ssionais atuantes nessa área da exibilização dos serviços de
psiquiatria?
Por exemplo, temos de nos perguntar sobre os vínculos dos
pro ssionais contratados, se são feitas contratações por cooperativas ou
ONGs, ou outro tipo de contrato precário. As consequências desse tipo de
contrato não são claras e talvez, pouco estudadas. Para exempli car essa
questão, mostraremos algumas falas tiradas da pesquisa A Reforma
Psiquiátrica e o cotidiano nos serviços residenciais: a formação dos
pro ssionais da área de saúde mental em análise, do professor Luiz Antonio
Baptista (2005), da UFF, sobre os pro ssionais dos dispositivos residenciais
no Rio de Janeiro.
Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, relatos das primeiras
experiências com moradias para ex-internos do hospital psiquiátrico nos
mostra o cotidiano dos serviços e seus impasses. Quanto ao per l do
pro ssional de umas das residências, um integrante da equipe comenta:
De modo geral, não somente para as residências, mas também para
outros serviços da Reforma Psiquiátrica, em relação aos pro ssionais de
nível superior, não vi grandes problemas. Devido ao sucateamento do
serviço público, os pro ssionais habituaram-se a fazer várias coisas.
Aprenderam a não lidar com um lugar xo e rígido do assistente social,
do psicólogo. Com exceção dos médicos que ainda mantêm o lugar
delimitado pela farmacologia (informação verbal).5

Essa fala mostra a necessidade de o pro ssional de referência de uma


moradia ser aberto a um campo de experimentação, aberto a ocupar um
espaço diferente das identidades pro ssionais arraigadas na formação
acadêmica. A di culdade de os médicos inserirem-se nas propostas
alternativas estaria no fato de vincularem-se muito a sua identidade
pro ssional. Uma di culdade dos novos dispositivos é trabalhar com
pro ssionais que tenham abertura para realizar tarefas que não são de sua
pro ssão:
[...] vejo aqui que muitas pessoas são presas a suas categorias. Quando
têm que fazer algo que não é de sua categoria até fazem, mas acham
muito estranho, não vendo sentido naquilo. É como se houvesse uma
despersonalização, a pessoa deixasse de ser quem é por fazer uma coisa
que não lhe cabe.

A fala desse pro ssional aponta para a di culdade de se encontrar


pro ssionais dispostos a trabalhar invadindo outras áreas de atuação. Num
projeto de moradia, o pro ssional tem de se desvencilhar de posturas
instituídas por uma formação tradicional. Mas, então, que tipo de
pro ssional é esse que atua nesses serviços?
Outra fala nos remete à mesma questão:
Não é necessário ser especialista para lidar com gente. Então o que um
especialista vai fazer? Assumir uma o cina se tiver formação artística?
Trabalhar como acompanhante? Então que lugar tomar? É preciso ser
especialista para realizar um trabalho? Às vezes sim, mas o especialista
nunca será o único capaz de falar sobre o assunto.

Outro pro ssional comenta como foram escolhidos os cuidadores


que trabalham em turnos dentro dos dispositivos residenciais terapêuticos.
Tivemos a preocupação de procurar pessoas que fossem donas de casa.
Procurou-se ao máximo fugir de pessoas que fossem pro ssionais de
saúde, que não viessem trabalhar com aquele vício (institucional).

Mas será que essa falta de especialismo não justi ca também a


entrada de pessoal que custa menos aos projetos? Algumas moradias têm
contratado preferencialmente trabalhadores de nível elementar, ou com
nenhuma formação, certamente ganhando menos do que um formado. Que
uso está sendo feito da falta de especialismo? Essa é uma questão que precisa
ser levantada. Será que a formação realmente o “engessa”?
Um pro ssional de ne a organização de uma das moradias e lança
uma questão:
A residência é terapêutica, mas é a casa dessas pessoas, o morar delas,
então eu penso que o maior desa o é você não transformar isso num
serviço, é não levar o técnico pra dentro da casa. [...] (em um encontro
de pro ssionais) quei preocupada com a demanda do cuidador ter que
fazer cursos de aperfeiçoamento. Eu quei preocupada, porque esse
cuidador não pode ser um técnico.

Como aponta outro:


[...] nas casas nós trabalhamos com saber leigo, são pessoas da
comunidade. Elas cam meio turno nas casas. É uma estratégia de
trabalho. Se colocássemos pro ssionais de oito a cinco, turno completo,
seria excelente; eles (os moradores) iam adorar. Nós também teríamos
menos desgaste [...] a equipe central do projeto. Mas teríamos que dar
espaço para a demanda.

No relato é indicada ainda uma proposta clínica e terapêutica da


casa. Os pro ssionais engajados na construção do cotidiano das casas são
também aqueles responsáveis por mudanças no comportamento de seus
moradores. Muitos saberes estão envolvidos nessa questão. Há aqui uma
desvalorização do saber tradicional, saber esse que carregaria todas as
amarras do saber médico psiquiátrico, que seria desmantelado pelos
dispositivos da reforma psiquiátrica.
Está marcada uma estratégia de trabalho, que tem o ideal de
promover desvios no comportamento dos moradores. Então é uma clínica,
mesmo que com conceitos mais amplos. Mesmo assim, outro pro ssional
mostra uma preocupação:
Eu me preocupo muito, acho que um dos maiores impasses da
residência, é de transformarem o espaço numa casa psicoterápica; não é
isso. A equipe tem que estar acompanhando a vida dessas pessoas, no
território. Mas a casa é para eles morarem [...] o cuidador que é a mola
mestra do trabalho, é a pessoa que ca ali 24 horas, tem que estar
trabalhando, mas não com um saber técnico.

O dispositivo assim constituído possibilitou aos moradores, segundo


o relato, maior espaço e autonomia para desejar inclusive sair da residência.
O trabalhador de saúde mental aqui é visto como aquele responsável por ser
um catalisador dos movimentos de saída do manicômio. A resposta
terapêutica estaria inserida dentro da própria constituição da moradia.
Sendo assim, como um serviço pode ser constituído por cuidadores leigos e,
ao mesmo tempo, propor mudar a vida das pessoas que ali residem?
Os fragmentos mostram os desa os aos quais esses pro ssionais
estão sujeitos. Não é fácil constituir um dispositivo que consiga desfazer os
discursos e as práticas que sustentaram a instituição manicomial durante
anos. Uma das estratégias foi romper com os especialistas e seus
especialismos. Nos dispositivos da desinstitucionalização, passaram a ser
requeridos, como estratégia de luta contra o manicômio, pro ssionais que
não estivessem ligados ao saber da clínica tradicional. Ao se preferir
pro ssionais leigos, tinha-se em mente a promoção de uma prática mais
aberta ao campo de experimentação e menos fechada aos especialismos, ou
seja, fechada às identidades pro ssionais.
Nosso esforço, então, é conseguir remar contra essa maré.
Mostrando que não são forças naturais, impossíveis de serem quebradas,
podemos a rmar a possibilidade de vencer a maré, propondo não só outro
modelo de Estado, mas outros modelos de cuidado em saúde mental.
A saúde como um todo no Brasil sofreu nos últimos anos inúmeros
sucateamentos, e mesmo assim o país conseguiu aprovar leis importantes
que tendiam a uma distribuição mais justa dos serviços de saúde. Ao mesmo
tempo, as leis de nada funcionariam com a falta de investimentos. A falência
dos serviços públicos de saúde re etiu-se na constituição dos dispositivos
residenciais terapêuticos, mostrando os riscos de invasão da lógica
neoliberal na constituição dos serviços. As cuidadoras são responsáveis pela
arrumação da casa, pela administração dos medicamentos de cada morador,
ajudando a levá-lo ao posto de saúde quando necessário, entre outras
funções. Em relação ao per l destas pro ssionais é dito:
[...] a preocupação era que fosse uma pessoa que tivesse a noção de
casa; que fosse reproduzir lá uma casa e não uma instituição. Porque,
oito pessoas morando no mesmo apartamento pode não ser uma casa,
pode ser um mini hospício. Então a preocupação básica é que não se
reproduza um hospício, mas uma casa.
Em relação à posição dos trabalhadores de saúde dentro do
dispositivo residencial, uma fala aponta o pro ssional exível como aquele
que mais se adapta ao novo trabalho dentro das casas.
Acho que para trabalhar num serviço residencial terapêutico, onde as
pessoas moram 24 horas, 7 dias da semana, você não pode ter horário
[...] tem que estar disponível no momento da necessidade. Emergência
não tem horário, tanto pode ser à noite, como sábado e domingo.

O pro ssional exível, disposto a correr riscos, e capaz de se


autorrevolucionar não é exclusivo dos dispositivos residenciais. Os
movimentos de mudança constante e ruptura permanente, mesmo com o
ideal de trazer mais liberdade para criar, trazem junto de si um novo
aprisionamento: a falta de referências. Vejamos o que Sennett tem a dizer:
O sistema de poder que se esconde nas modernas formas de
exibilidade consiste em três elementos: reinvenção descontínua de
instituições; especialização exível de produção; e concentração de
poder sem centralização. Os fatos que se encaixam em cada uma dessas
categorias são conhecidos da maioria de nós, nenhum mistério; já
avaliar as consequências dele, é mais difícil. (SENNET, 2002, p. 54)

A especialização exível seria uma característica dos pro ssionais do


capitalismo atual, em que ocorre a adaptação às transformações constantes e
a abertura a novas experiências e iniciativas. Os trabalhadores, diante da fala
da coordenadora do dispositivo, precisam de características muito
particulares, mas que são desejadas pela maioria das empresas liberais do
mercado de trabalho: pro ssionais disponíveis e e cazes, com
disponibilidade bíblica para servir aos projetos e, principalmente, ganhando
pouco para isso. Outro cuidador a rma isso mais claramente:
A contribuição que a equipe dá é de colocar para essas pessoas que nós
estamos ali para o que der e vier. Não determinamos parâmetros ou
objetivos que os moradores devam alcançar. Se fulana tem família e tem
projetos, nós acompanhamos passo a passo tentando viabilizar os
projetos dela. Quando uma pessoa entra em internação existe um
projeto e alta pra ela, mas aqui não temos projetos de alta, mas são
criadas possibilidades. Por exemplo, a maioria não tinha documentos
(quando estava no hospital). Alguns tiveram que ir ao INSS, ao banco,
uma quis fazer um curso de informática. Nosso papel foi de
acompanhar, fazer um acompanhamento terapêutico, de acompanhar
passo a passo os projetos que elas fazem e que a gente de alguma forma
vai discutindo o que é viável e o que não é viável, dando apoio no
cotidiano delas (informação verbal).

São esperados pro ssionais exíveis e disponíveis, que sirvam ao


maior número possível de atividades, e sempre em número reduzido.
Devido ao tipo de contratação, através de ONGs, ele está exposto à
precariedade da contratação, o que não o garante durante muito tempo na
função exercida. Esse dinamismo não está longe do interesse de alguns
setores da saúde de privatizar as relações de trabalho. Atitudes típicas das
empresas do capitalismo atual. Sendo assim, podemos testemunhar a lógica
empresarial, ditada pelas políticas de saúde privatizantes, invadindo as
relações estabelecidas dentro destes serviços, não sem prejuízos para o
dispositivo em questão.
Em relação ao per l dos cuidadores, o mesmo pro ssional fala:
[...] nós entendemos o espaço como um campo de formação. O que
identi ca esse pro ssional que trabalha no território. Tem essa função
de cuidar, de acompanhar no território. Precisa ter muita
disponibilidade, precisa ter compromisso ético e ser adequado ao
desenho do trabalho. Nós deixamos nossos celulares ligados 24 hs por
dia. Esse é um recurso muito importante. Você vê claramente quando
recebe um pro ssional que diz: olha vou desligar meu celular à noite
porque eu não quero ser incomodado [...] e ele não está errado! Mas
deixamos claro que o trabalho tem um formato, que o celular ca ligado
para que não precisemos entupir de pro ssionais a casa. [...] Isso
acontece em qualquer lugar do mundo, o bip e o telefone são os
recursos do cuidado. Outro exemplo, o pro ssional chega e não tem
carro para o projeto. Então o que vamos fazer? Vamos ter que tentar
alternativas. Mas você vê diferenças quando alguém fala: – não vou usar
meu carro! (O pro ssional) nada mas faz do que colocar limites,
preservando seu espaço de trabalho. Mas se isso for acumulando, uma
hora vem a pergunta: – Mas o que te faz trabalhar aqui? O que te
identi ca com esse trabalho? A disponibilidade não é no sentido de
trabalhar muito sem ser competente, e não é um voluntariado.
Disponibilidade é uma questão ética, e uma técnica de trabalho. O
compromisso ético de tomar para si o compromisso com o cuidado.
O número reduzido de técnicos não é necessariamente, como
podemos perceber, o grande problema das equipes, mas é um problema sua
capacidade de manter pro ssionais com as características necessárias para o
trabalho. No manicômio, o número de técnicos também é reduzido, e todos
sabem que na maior parte das vezes dois enfermeiros são responsáveis por
uma média de cem a 150 pacientes. O problema são as exigências aqui
colocadas para esse pro ssional.
A perda da identidade foi de extrema importância para o processo
de desinstitucionalização e da construção dos dispositivos residenciais. Os
trabalhadores de saúde mental, estando abertos ao campo de
experimentação, criaram rupturas nos paradigmas da pro ssionalização
para instituição clássica. Isso foi de grande valia para se produzirem novas
instituições.
O problema surge quando colocamos em questão se a
desnaturalização do pro ssional, tão cara a esse modelo de assistência, pode
perpetuar ou reproduzir outras forças sociais. Ou seja, devemos nos
perguntar se a força criativa que possibilitou pôr em questão as identidades
pro ssionais e a rigidez de suas identidades xas não está sendo agora
utilizada para aumentar cargas de trabalho e gerar mais produtividade, a
serviço da lógica do capitalismo atual?
Se tomarmos como premissa que existe aqui a construção de um
espaço de trabalho exível, e isso é cada vez mais evidente, temos algumas
consequências a serem pensadas.
O número reduzido de pro ssionais atenderia a uma demanda de
vários setores da saúde em seus interesses de redução de custos sociais com
a saúde mental. Seguindo-se a lógica de redução de gastos sociais com a
saúde, as moradias mostraram-se menos onerosas para o Estado. Sua
arquitetura, portanto, pode estar transformando o movimento de
desinstitucionalização em uma prerrogativa para redução de custos com a
saúde, contaminando assim as práticas institucionais ali realizadas.
O processo de desinstitucionalização pode ser problematizado neste
ponto. Se por um lado, os artifícios criados pelas equipes garantem a
realização efetiva de um projeto de desmantelamento do manicômio,
também responde por um processo de incorporação da lógica do Estado
atual ao cotidiano dos serviços. A abertura criada pelos dispositivos
residenciais ao campo pro ssional corre o risco de imprimir uma sensação
constante de deriva. Essa deriva é produto de todos os fatores levantados até
agora no presente estudo. Podemos ainda perceber que a crítica à rigidez
técnica de alguns pro ssionais, em alguns casos, pode estar produzindo
fragilidade da identidade pro ssional, e essa reinvenção das práticas pode
signi car também a concordância com as necessidades do mundo do
trabalho contemporâneo e todas as suas exigências para o trabalhador.

Conclusão
A implementação dos dispositivos da reforma psiquiátrica e o
processo de desinstitucionalização dos usuários da saúde mental sempre
foram uma grande questão, que requer muita re exão sobre seus modos de
funcionar, suas práticas e objetivos políticos.
Neste pequeno trabalho, tentamos re etir sobre algumas questões
que foram percebidas no estudo destes serviços. Outras questões poderiam
ser levantadas, mas focalizamos as in uências de determinadas políticas
envolvidas na prática da reforma psiquiátrica e nos processos de
desinstitucionalização.
A diversidade de modelos de construção faz deles espaços de
criatividade, de reinvenção de novas formas de cuidado dentro da esfera da
saúde mental. O papel do Estado na reinvenção das práticas institucionais é
fundamental para promover dispositivos nos quais realmente sejam
possíveis novas formas de cuidado com a loucura, que não estejam a serviço
de estruturas sociais arraigadas. Por isso, a reinvenção deve ser feita com
cuidado, devem ser analisadas em sua multiplicidade as forças políticas
envolvidas nesses serviços, seja no âmbito das leis de saúde, seja na mudança
dos paradigmas de cuidado, seja nas práticas institucionais.
Essas instituições formadas com a reforma psiquiátrica não estão
livres dos fascismos que determinadas políticas de governo preconizam.
Toda a uidez necessária para sustentarmos o modelo do capitalismo atual
não deixa de incidir sobre esses serviços, o que pode obviamente ora
impedir, ora reorganizar e direcionar os processos de criação destes
dispositivos.
Foram colocadas como questão as políticas públicas nas quais se
inserem esses novos serviços, destacando a in uência das novas
con gurações institucionais e novos modelos de Estado na constituição do
dispositivo residencial terapêutico. Levantaram-se de forma breve, como
uma questão a ser discutida, as políticas envolvidas na constituição da
reforma psiquiátrica e nos processos de desinstitucionalização no Brasil,
envoltas no processo de desmantelamento ou não investimentos em
políticas públicas de qualidade. Mesmo quando há investimentos,
questionamos o modelo empresarial capitalista que invade os espaços
públicos, que em nome da e ciência e do combate à burocracia atemporal
inegável do Estado, produz exibilização da mão de obra e transforma o
cotidiano dos pro ssionais, seguindo a demanda de redução de custos. Todo
esse processo demonstra a fragilidade desses serviços diante das forças que
os constituem.
O desejo de mudança ainda permanece em todos os pro ssionais
envolvidos no processo de reforma psiquiátrica, o mesmo desejo de
mudança que permeou toda a história da psiquiatria até os dias atuais. Esse
desejo é alimentado pelos usuários desses serviços, bene ciários do processo
de reconstrução do cuidado em saúde mental.

Referências
AMARANTE, P. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no
Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1995.
BAPTISTA, L. Antonio. A reforma psiquiátrica e os dispositivos residenciais
no Rio de Janeiro: desa os contemporâneos para pro ssionais de saúde
mental. [S. l. : s. n.], 2005. Mimeografado.
BARRIENTOS, G. Saúde mental, políticas públicas e neoliberalismo: a
experiência de Cuba. In: FERNANDES, M.; SCARCELLI, I.; COSTA, E.
(Org.). Fim de século ainda manicômios? São Paulo: Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo, 1999.
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Tradução
Marcos Pechel. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999.
_______. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: J.
Zahar, 2001.
OLIVEIRA, F. À sombra do manifesto comunista. In: LÖWY, Michael et al.
Pós-neoliberalismo II: que Estado para que democracia? 2. ed. Rio de Janeiro:
Vozes, 1999.
PITTA, A. M. F. Tecendo uma teia de cuidados em saúde mental. In:
VENANCIO, Ana Teresa; CAVALCANTI, Maria Tavares (Org.). Saúde
mental: campo, saberes e discursos. Rio de Janeiro: IPUB-CUCA, 2001. p.
277-282.
SENNETT, R. A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no
novo capitalismo. 6. ed. Tradução Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Record,
2002.
SOUZA, G. W. A reforma da reforma: repensando a saúde. São Paulo:
Hucitec, 1997.
WACQUANT, L. As prisões da miséria. Tradução André Telles. Rio de
Janeiro: J. Zahar, 2001.
1 Psicólogo, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense.
2O termo neoliberalismo, como aponta Wacquant (2001) aparece pela primeira vez em 1947, com o
célebre encontro entre um grupo de intelectuais conservadores em Montpellier, na Suíça. O objetivo
desse encontro seria formar uma sociedade organizada que pudesse combater as políticas que
ameaçavam o avanço capitalista. Para eles, o que prejudicaria a circulação de capital seria a
intervenção maciça do Estado na economia. Na Europa, mais do que em outros países, como o Brasil,
políticas sociais foram desenvolvidas a partir do pós-guerra, culminando no que se convencionou
chamar de um modelo de Estado de Bem-Estar Social (Welfare State).
3 Todas as entrevistas utilizadas durante o trabalho com pro ssionais da área de saúde, vinculados aos
dispositivos residenciais terapêuticos, foram cedidas por Luiz Antonio Baptista, professor titular do
Departamento de Psicologia da UFF e do Programa de Pós-graduação em Educação da UFF. As
entrevistas referem-se a sua pesquisa: A Reforma Psiquiátrica e o cotidiano nos serviços residenciais: a
formação dos pro ssionais da área de saúde mental em análise, nanciada pelo CNPq.
4 Relato de um pro ssional de um dispositivo residencial terapêutico do Rio de Janeiro.
5 Relatos das primeiras experiências com moradias para ex-internos do hospital psiquiátrico.
Parte III: Psicologia e genealogia: colocando
identidades no fogo da problematização

Sobre gênero e subjetividade na obra de Judith


Butler1
Márcia Arán2
Carlos Augusto Peixoto Júnior3

Não é de hoje que Judith Butler vem trabalhando de forma rigorosa


temas como gênero, sexualidade, poder e subjetividade. Desde um de seus
primeiros livros, intitulado Sujeitos do desejo (BUTLER, 1999), a autora vem
levantando questões extremamente importantes neste campo. Se lá ela se
apropriava do pensamento francês contemporâneo para falar de certos
problemas a propósito das relações entre desejo e subjetividade, nos
trabalhos subsequentes sua abordagem crítica de temas como gênero,
identidade e diferença sexual foi se tornando cada vez mais incisiva. Com
isso, foram se radicalizando também as suas críticas a certa ortodoxia
psicanalítica, principalmente lacaniana, que, centrada na primazia do
simbólico, do Édipo e da castração, acabou por restringir cada vez mais a
abordagem dos processos de subjetivação a dicotomias opositivas binárias,
evidentemente fundadas no poder coercitivo dos referentes transcendentes
com sua pretensão de universalidade.
Neste trabalho, portanto, procuramos aproveitar algumas de suas
re exões sobre estes temas para avançar um pouco mais nas críticas a esta
tradição psicanalítica no que ela, insistindo em ignorar questões como a
multiplicidade da diferença, a singularidade e as contingências sócio-
históricas da subjetivação, acabou perdendo de grande parte do seu
potencial subversivo de questionamento. Assim, partindo de uma
problematização a respeito da normatividade própria às matrizes de gênero
que se impuseram desde a modernidade, procuramos em seguida formular
uma crítica à concepção de simbólico fundada no estruturalismo, buscando
alternativas de análise dos processos de subjetivação que contemplem
formas de existência nos domínios do desejo e da sexualidade, até então
consideradas impossíveis de serem abordadas.

A contingência das normas de gênero


No texto “Regulações de gênero”, Judith Butler (2006) considera que
vários trabalhos realizados no campo dos estudos feministas ou dos estudos
de gays e lésbicas partem do pressuposto de que o gênero é uma forma de
regulação social. Dispositivos especí cos de regulação – legais,
institucionais, militares, educacionais, sociais, psicológicos e psiquiátricos –
são evocados no intuito de re etir sobre a maneira pela qual tais regulações
são engendradas e impostas aos sujeitos. Em geral, tende-se a pensar que
existe uma separação entre o poder da regulação – entendido como uma
estrutura uni cada e autônoma – e o próprio gênero, como se o primeiro
agisse reprimindo e moldando os sujeitos sexuados, transformando-os em
masculinos ou femininos. No entanto, para a autora, o problema é mais
sutil. Não haveria uma regulação anterior ou autônoma em relação ao
gênero, pois, ao contrário, o sujeito gendrado só passa a existir na medida de
sua própria sujeição às regulações (BUTLER, 1997).
Uma concepção como essa deriva fundamentalmente da teoria do
poder formulada por Michel Foucault, na qual o poder não atua
simplesmente oprimindo ou dominando as subjetividades, mas opera de
forma imediata na sua construção. Assim, o caráter formativo ou produtivo
do poder estaria totalmente vinculado aos mecanismos de regulação e
disciplina que ele instaura e procura conservar (PEIXOTO JÚNIOR, 2004),
o que faz com que os discursos reguladores que formam o sujeito do gênero
sejam os mesmos responsáveis pela produção da sujeição.
Com efeito, ao propor uma analítica do poder, Foucault considera
que a partir da era moderna, o poder não pode mais ser tomado como um
fenômeno de dominação maciço e hegemônico de um indivíduo sobre os
outros, ou de um grupo sobre os outros, tal como se pode constatar no
modelo da Soberania. O poder problematizado como biopoder seria antes
algo que circula, que funciona em rede, fazendo com que o indivíduo não
seja o outro do poder, mas um dos seus primeiros efeitos. A principal forma
de exercício do poder que aparece na passagem do século XVIII para o
século XIX é a do regime disciplinar, o qual produz um discurso que não é o
da lei ou da regra jurídica, mas aquele das ciências humanas que se
constituirá enquanto norma (FOUCAULT, 1992). Esta normatividade opera
de forma imanente às práticas históricas e sociais, produzindo efeitos
duradouros de territorialização no campo subjetivo. Atuando como ideal
regulador, ela estabelece fronteiras entre determinadas práticas tidas como
inteligíveis, lícitas e reconhecíveis e outras consideradas ininteligíveis, ilícitas
e abjetas, as quais constituem o território dos anormais (FOUCAULT, 1999).
Porém, diferentemente de Foucault, Butler considera que as
regulações de gênero não são apenas mais um exemplo das formas de
regulamentação de um poder mais extenso, mas constituem uma
modalidade de regulação especí ca que tem efeitos constitutivos sobre a
subjetividade. As regras que governam a identidade inteligível são
parcialmente estruturadas a partir de uma matriz que estabelece a um só
tempo uma hierarquia entre masculino e feminino e uma
heterossexualidade compulsória. Nestes termos, o gênero não é nem a
expressão de uma essência interna, nem mesmo um simples artefato de uma
construção social. O sujeito gendrado seria antes o resultado de repetições
constitutivas que impõem efeitos substancializantes. Com base nestas
de nições, a autora chega a a rmar que o gênero é ele próprio uma norma
(BUTLER, 2006). “Sujeitado ao gênero, mas subjetivado pelo gênero, o ‘eu’
nem precede, nem segue o processo dessa ‘criação de um gênero’, mas
apenas emerge no âmbito e como a matriz das relações de gênero
propriamente ditas” (BUTLER, 1993, p. 7).
Um dos exemplos mais notáveis da naturalização dos processos de
construção da identidade decorrentes da repetição das normas constitutivas
seria a interpelação médica. Neste caso, por meio do procedimento da
ultrassonogra a, transforma-se o “bebê” antes mesmo de nascer em “ele” ou
“ela”, na medida em que se torna possível um enunciado performativo do
tipo: “é uma menina”! A partir de uma nomeação como essa, a menina é
“feminizada”, e com isso inserida nos domínios inteligíveis da linguagem e
do parentesco pela determinação de seu sexo. Entretanto, esta “feminização”
da menina não adquire uma signi cação estável e permanente. Ao contrário,
esta interpelação terá de ser reiterada através do tempo com o intuito de
reforçar este efeito naturalizante. Certamente seria estranho, diante da
imagem de um bebê numa ultrassonogra a, a rmar que “se trata de uma
lésbica”. Como este enunciado não faz parte de nossa inteligibilidade
cultural, ele serve antes de tudo para demonstrar de maneira muito precisa
como o ato de nomear é ao mesmo tempo a repetição de uma norma e o
estabelecimento de uma fronteira.
Dessa forma, a nomeação do sexo é um ato performativo de
dominação e coerção que institui uma realidade social mediante a
construção de uma percepção da corporeidade bastante especí ca. A partir
dessa perspectiva, pode-se entender que o gênero é uma “identidade
tenuamente construída através do tempo” por meio de uma repetição
incorporada por gestos, movimentos e estilos (BUTLER, 2003, p. 200).
Porém, se os atributos de gênero são performativos e não uma
identidade preexistente, a postulação de um “verdadeiro sexo” (FOUCAULT,
1994) ou de uma “verdade sobre o gênero” revela antes uma cção
reguladora. Além disso, se para que esta cção permaneça é necessário uma
repetição reiterativa, podemos pensar que a aproximação de um ideal de
gênero – masculino ou feminino – nunca é de fato completa, e que os
corpos nunca obedecem totalmente às normas pelas quais sua
materialização é fabricada. Neste sentido, é justamente pelo fato de a
instabilidade das normas de gênero estarem abertas à necessidade de
repetição deste que a lei reguladora pode ser reaproveitada numa repetição
diferencial. Assim, a rma Butler, “o gênero é o mecanismo pelo qual as
noções de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas, mas ele
poderia ser muito bem o dispositivo pelo qual estes termos são
desconstruídos e desnaturalizados” (BUTLER, 2006, p. 59). Esta tensão
paradoxal nos permite compreender que se o gênero é uma norma, ele
também pode ser fonte de resistência.
Mais uma vez, é com Foucault que podemos nos aproximar desta
hipótese formulada por Butler sobre a contingência das normas de gênero.
Em seu texto “Sujeito e poder” (FOUCAULT, 1995) ele procura desenvolver
e aprofundar como exatamente se constituem as relações de poder
implicadas na produção de subjetividades. O que se destaca de sua análise é
mais precisamente este aspecto: o de que na própria engrenagem do poder
estaria implicada uma força de resistência com um notável potencial de
transformação. Para o autor, no centro das relações de poder, agindo como
condição imanente de sua possibilidade, há uma “insubmissão” constitutiva
que permite uma inversão eventual das estratégias empregadas nesse
diagrama de forças. Poder e resistência constituem assim, reciprocamente,
“uma espécie de limite permanente de ponte de inversão possível”
(FOUCAULT, 1995, p. 248). Como se pode notar é justamente essa
coparticipação indissolúvel que impede a redução das múltiplas forças em
jogo nesse campo a um modelo de poder negativo no que diz respeito às
lutas libertárias. É importante rea rmar que, para Foucault, o poder tem um
caráter positivo e produtivo. Dessa forma, não seria fundamentalmente
contra o poder que nascem as possibilidades de resistência, seja ela singular
ou coletiva, mas contra certos efeitos de poder num espaço paradoxalmente
aberto na própria estratégia de sua constituição.
Se o gênero é uma norma, não podemos deixar de lembrar o que há
de frágil na sua incorporação pelas subjetividades. Há sempre uma
possibilidade de deslocamento que é inerente à repetição do binarismo
masculino-feminino. Não é à toa que, como a rma Butler, expressões tais
como “problemas de Gênero”, “gender blending”, “transgêneros” e “cross-
gender” já sugerem o ultrapassamento deste binarismo naturalizado
(BUTLER, 2006, p. 60).
Ainda assim, para formular uma nova concepção de subjetivação
que acompanhe esta reelaboração das normas de gênero, é importante
salientar a diferença entre uma interpretação estruturalista da subjetividade
– a qual pressupõe a permanência da hierarquia, do binarismo, da
heterossexualidade e da diferença sexual como condição da cultura – e uma
concepção histórica e contingente que permita pressupor a ultrapassagem
subversiva destas fronteiras normativas. Mesmo que se queira mantê-las
numa relação de tensão, é importante não perder de vista a importância de
uma leitura crítica mais apurada dos pontos de vista sobre gênero e desejo
fundados numa perspectiva estrutural.

A crítica ao simbólico estruturalista


No debate sobre política, sexualidade e novas formas de subjetivação
na cultura contemporânea, tem sido recorrente a utilização da categoria de
simbólico como estratégia política de sedimentação do campo social. No
âmbito da psicanálise, alguns teóricos de inspiração lacaniana, herdeiros do
estruturalismo de Claude Lévi-Strauss, sustentam que as normas de gênero
não seriam apenas construções histórico-sociais, e, neste sentido,
contingentes, mas “posições” ditas sexuadas que necessariamente ocupam
um lugar predeterminado pelo simbólico. Um excelente exemplo deste
embate político pode ser encontrado no debate ocorrido na França por
ocasião da aprovação do “Pacto Civil de Solidariedade”,4 em 1999, o qual
colocou na ordem do dia a necessidade de uma problematização das noções
de diferença sexual, parentesco e liação. Neste debate, não foram os
argumentos biológicos ou psicológicos, mesmo os mais comuns, que
serviram de base para a argumentação político-cientí ca contra o
casamento homossexual, e sim aqueles que falavam da necessidade de uma
“preservação simbólica” da sociedade e da cultura (ARÁN, 2005). Tal
argumentação fundava-se na hipótese de que mudanças na maneira de se
conceber a diferença entre os sexos nos levariam a uma suposta
“dessimbolização” cultural, provocada por uma política de “indiferenciação”,
resultante do “apagamento da inscrição da diferença sexual no simbólico”
(BORRILLO; FASSIN, 2001). Neste sentido, com o objetivo de preservar “o
simbólico”, a tríade heterossexualidade-casamento- liação foi de imediato
evocada como guardiã da sociabilidade, fazendo do casamento homossexual
algo impensável e, consequentemente, indesejável.
Uma das teses mais insistentemente defendidas nesta ocasião partia
da polêmica a rmação de Françoise Héritier, considerada uma das
principais seguidoras de Levi-Strauss, de que “nenhuma sociedade admite o
parentesco homossexual”, ou ainda, de que “pensar é antes de tudo
classi car, classi car é antes de tudo discriminar, e a discriminação
fundamental é baseada na diferença de sexos” (BORRILLO; FASSIN, 2001,
p. 106). Com efeito, em seu livro Masculin/féminin: la pensée de la di érence
(HÉRITIER, 1996), analisando as relações de parentesco, aliança, divisão
sexual do trabalho e as representações sobre fecundação em diversas
culturas, a autora a rma que a observação primeira da diferença entre os
sexos funda a estrutura do pensamento. Nestas condições, o corpo humano,
como lugar privilegiado de observação, principalmente na sua função
reprodutiva, daria suporte a uma oposição conceitual essencial: aquela que
opõe a identidade à diferença. Assim, Héritier considera que a própria
estrutura do pensamento é construída a partir de um sistema hierárquico
que se constitui por categorias binárias.
Seguindo esta mesma linha de raciocínio, certa interpretação do
pensamento psicanalítico, derivada da concepção estruturalista da
sociabilidade evocada neste debate, faz dos complexos de Édipo e de
castração uma matriz normativa para a sexualidade. Neste caso, o “primado
genital”, travestido de “simbólico”, torna-se o telos em relação ao qual a
homossexualidade só pode ser pensada como narcisismo ou perversão.
Porém, mais do que apenas re etir sobre as relações de parentesco, a
psicanálise lacaniana acabou por atribuir a esta concepção da sociabilidade
o estatuto de fundamento originário da linguagem e da própria
subjetividade. Recuperando a lei de interdição do incesto como fundamento
da cultura, Lacan foi levado a descrever o recalque primário como fundador
do sujeito do inconsciente. Com isso, o que caria do lado de fora, como
exterioridade inacessível, seria a Coisa materna, a qual só se faria presente
como nostalgia de um objeto para sempre perdido. A lei do pai, força
constitutiva do recalque originário, operador transcendente do processo de
subjetivação, faria do desejo humano uma incondicionalidade que tende a
a rmar-se a qualquer preço. Esta “passagem para a cultura” será elaborada
detalhadamente na formulação dos três tempos do Édipo estrutural, na qual
o autor procura demonstrar como a mesma lei responsável pela interdição
do incesto fará da diferença sexual a causa signi cante do desejo (ARÁN,
2005). Muitos psicanalistas argumentam que é impossível prescindir da
centralidade dos conceitos de castração e de simbólico para abordar os
processos de subjetivação, talvez pelo fato de que para muitos deles se
encontre aí a única possibilidade de pensar a alteridade.5 Mas seria
realmente esta a alternativa que nos resta ou ainda seria possível pensar de
maneira diferente em psicanálise?
Para melhor compreendermos esse tipo de aproximação entre
cultura, subjetividade e heterossexualidade, vale a pena recuperarmos de
forma sucinta a sua con guração básica em Freud e Lacan. Segundo o
vocabulário de Laplanche e Pontalis, o complexo de castração é:
[…] o complexo centrado na fantasia de castração, que vem trazer uma
resposta ao enigma da diferença de sexos (presença ou ausência de
pênis): esta diferença é atribuída a um corte do pênis da criança do sexo
feminino [...] A estrutura e os efeitos do complexo de castração são
diferentes no rapaz e na menina. O rapaz teme a castração como
realização de uma ameaça paterna em resposta às atividades sexuais, do
que lhe advém uma intensa angústia de castração. Na menina, a
ausência de pênis é sentida como dano sofrido que ela procura negar,
compensar ou reparar [...] O complexo de castração está em estreita
relação com o complexo de Édipo, e mais especialmente com a sua
função interditora e normativa. (LAPLANCHE; PONTALIS, 1983, p.
111)

Nesta breve passagem, podemos observar como esta tese está


fortemente relacionada à primazia do masculino. Com efeito, desde Freud a
teoria psicanalítica o cial oscila entre a tentativa de descrever a sexualidade
feminina a partir da dialética do ter ou não o pênis-falo – em que
necessariamente a mulher só pode ser concebida como um sujeito marcado
por sua inferioridade – e a suposição de que a mulher não existe (ARÁN,
2006a).
Porém, a angústia de castração também foi associada por Freud a um
conjunto de experiências traumatizantes de perda de um objeto investido de
forma narcísica: perda do pênis, seio, fezes ou mesmo da criança durante o
parto. Ainda assim, mesmo que estas experiências possam indicar outras
formas de separação, o complexo de castração está diretamente relacionado
à ideia de ameaça e punição, e só faz sentido quando associado ao caráter
nuclear do complexo de Édipo. Dessa forma, na “ameaça de castração” que
promove a proibição do incesto vem encarnar-se a função da “lei” enquanto
instituinte da ordem humana. Momento em que, ao abandonar o
investimento narcísico na mãe, a criança torna-se menino ou menina e
passa necessariamente a desejar o outro sexo. Para Butler, esta operação de
exclusão recíproca entre identi cação e desejo resultante da proibição seria
um dos principais efeitos de reiteração da norma sexual reforçada pela
psicanálise. A partir desta elaboração, a teoria lacaniana de ne a castração
como uma operação simbólica que determina a estrutura subjetiva. Segundo
Roland Chemama, para Lacan,
[...] a castração se faz sobre o falo enquanto objeto não real, mas
imaginário […] A criança, menino ou menina, quer ser o falo para
captar o desejo de sua mãe (é o primeiro tempo do Édipo). A interdição
do incesto (o segundo tempo) deve desalojar-lhe desta posição de ideal
do falo materno. Esta interdição provém do fato de que o pai simbólico,
ou seja, uma lei, deve ser assegurado pelo discurso da mãe. Mas ela não
visa somente à criança, ela visa igualmente à mãe e, por esta razão, ela é
compreendida pela criança como sendo também castrada. No terceiro
tempo intervém o pai real, aquele que tem o falo (mais exatamente,
aquele que a criança supõe que o tenha), aquele que, em todo caso o usa
e se faz preferir pela mãe. O menino que renunciou a ser o falo vai
poder se identi car com o pai e ele terá então “no bolso os títulos
necessários para se servir dele no futuro”. Quanto à menina, este
terceiro tempo lhe ensina para que lado ela deverá se voltar para ter o
falo […]. (CHEMAMA, 1993, p. 39-40)

Mais uma vez, podemos constatar como a diferença sexual na


psicanálise segue o modelo da dominação masculina caucionada na norma
heterossexual. Cabe salientar que mesmo que haja uma diferença
considerável entre as teorias formuladas por Freud e Lacan, nota-se que esta
forma de subjetivação, ou mesmo de sociabilidade que resulta de uma
castração estrutural, está totalmente adstrita a um dilema narcísico do
sujeito que acaba cedendo à lei do pai em função de uma ameaça à
integridade do seu eu. Não que não existam fantasias de castração, mas,
como a rma Michel Tort, estas fantasias são objeto de uma análise e não o
seu objetivo. Ou seja, uma coisa é o conjunto de representações, que para os
dois sexos gravita em torno da castração, outra coisa é fazer da castração a
natureza do processo de simbolização destas representações (TORT, 2005).
Isto quer dizer que a castração não pode servir sempre de modelo ou matriz
universal que deverá moldar todas as subjetividades. Existem outras formas
de simbolização, irredutíveis a essas pretensões totalizantes e totalitárias, as
quais também só podem ser concebidas a partir de um outro referencial
teórico.
Porém, o que importa destacar é que, para Lacan, o pai simbólico ou
o Nome-do-pai é considerado uma instância irredutível às metamorfoses do
social concernentes às guras paternas real e imaginária. Se o pai imaginário
pode vir a ser afetado de forma mais incisiva pelas contingências sócio-
historicas, sua função estrutural simbólica mostra-se praticamente imune a
elas. Estas formulações teóricas permitem que o autor chegue a derivar daí
uma diferença fundamental entre a heterossexualidade e a
homossexualidade. Referindo-se à homossexualidade masculina, Lacan
a rma que “no momento em que a intervenção proibidora do pai deveria se
identi car com o falo, o sujeito encontra na estrutura da mãe, ao contrário, o
suporte, o reforço que faz com que esta crise não ocorra” (LACAN, 1999, p.
215).
Vale ressaltar ainda que, segundo Elisabeth Roudinesco, Lacan, ao
contrário de Freud, faz da homossexualidade uma perversão em si: não uma
prática sexual perversa, mas a manifestação de um desejo perverso comum
aos dois sexos. Assim, de acordo com o pensamento lacaniano, o
homossexual seria uma espécie de perverso sublime da civilização obrigado
a endossar a identidade infame a ele atribuída pelo discurso normativo
(ROUDINESCO, 2003). Neste sentido, como notou Butler, para que a
norma heterossexual permaneça intacta como uma forma social distinta, ela
exige a produção da homossexualidade como desvio, tornando-a
culturalmente ininteligível (BUTLER, 2003, p. 116).
No entanto, não são poucos os trabalhos que demonstraram como o
modelo tradicional ao qual se recorre para pensar a diferença entre os sexos
na psicanálise é o modelo – historicamente construído nos séculos XVIII e
XIX – da hierarquia entre o masculino e o feminino e da exclusão da
homossexualidade (ARÁN, 2006a). Neste sentido, levar em conta a
historicidade do sexual não é apenas uma questão ética e política, mas,
sobretudo, uma questão teórica da maior importância. Se existe um
território sexual “fora” ou “excluído” do simbólico, em relação ao qual o
próprio simbólico se constitui, é fundamental reconhecer como as
contingências históricas e políticas podem promover neste mesmo território
deslocamentos subjetivos, ampliando as possibilidades existenciais.
Não é difícil perceber que a xidez da lei estruturalista estabelece as
posições consideradas legítimas, por meio da imposição de uma matriz
heterossexual. Todo o resto, então, torna-se incompreensível, caso não
corresponda a este esquema binário hierárquico, e permanece como um
excesso impossível de ser inscrito no âmbito simbólico. Os conceitos de
identi cação e sexuação na psicanálise estão de tal forma adstritos a uma lei
estabelecida a priori que acabam por xar e restringir as manifestações das
sexualidades a duas posições normativas: “masculino” e “feminino”. “Deve
haver uma ligação entre esse processo de ‘assunção’ de um sexo, a questão da
identi cação e os meios discursivos pelos quais o imperativo heterossexual
capacita certas identi cações de sexo e foraclui e/ou des-reconhece outras
identi cações” (BUTLER, 1993, p. 3).
Se compreendermos a lei como uma estrutura anterior e
transcendente às manifestações sociais, políticas e necessariamente
históricas, o simbólico será apresentado como uma força que não poderá ser
modi cada e subvertida sem a ameaça da psicose ou da perversão. Ao
contrário, se compreendermos a lei como algo que é vivido e
constantemente reiterado de forma imanente às relações de poder, as
possibilidades de modi cação e subversão, inclusive do simbólico, não
necessariamente signi carão uma ameaça à cultura e à civilização (ARÁN,
2006b; PEIXOTO JÚNIOR, 2004).
É preciso, portanto, um certo estremecimento destas fronteiras
excessivamente rígidas e xas da identi cação e do desejo para que outras
formas de construção do gênero possam habitar o mundo viável da
sexuação e sair do espectro da abjeção.
A partir do que foi dito antes, podemos perceber como o registro
simbólico tem se caracterizado como um limite às tentativas de
recon guração das relações sociais. E ainda por cima com o seguinte
agravante: na medida em que os lacanianos elevam as estruturas de
parentesco ao papel de operadores linguísticos fundamentais, certas
“posições” simbólicas são apresentadas como condição da própria
linguagem. Porém, de acordo com Butler, o que o estruturalismo apresenta
como “uma posição” na linguagem ou no parentesco não é a mesma coisa
que uma norma. Como vimos anteriormente, a norma e as relações de
poder, por serem produzidas socialmente, são sempre suscetíveis a
variações. Por isso Butler procura mostrar
[...] que a distinção entre a lei simbólica e a lei social não pode mais ser
mantida, que o próprio simbólico é a sedimentação de práticas sociais e
que as alterações radicais do parentesco demandam uma reformulação
dos pressupostos estruturalistas da psicanálise, já que nos levam a nos
deslocar a um pós-estruturalismo queer da psique. (BUTLER, 2006, p.
62)

Subjetividades queer
Conforme acreditamos ter indicado, pressupor a instabilidade das
normas de gênero permite afrouxar a relação entre a assunção do sexo e a
escolha do objeto sexual. Neste sentido, cabe perguntar o que acontece
quando as proibições primárias contra o incesto produzem deslocamentos e
substituições que não se ajustam aos modelos supostamente normais da
sexuação. Segundo Butler, na realidade, uma mulher pode encontrar o
resíduo fantasmático de seu pai em outra mulher ou substituir seu desejo
pela mãe por um homem, e nesse momento, se produz um certo
entrecruzamento de desejos heterossexuais e homossexuais. Se admitirmos a
suposição psicanalítica de que as proibições primárias não apenas produzem
desvios do desejo sexual, mas também consolidam um sentido psíquico de
“sexo” e de diferença sexual, precisamos nos dar conta de uma consequência
fundamental implícita neste ponto de vista. Daí parece decorrer que os
desvios coerentemente heterossexualizados requerem que as identi cações
se efetuem sobre a base de corpos similarmente sexuados, e que o desejo se
desvie por meio da divisão sexual para membros do sexo oposto. Mas, se um
homem pode identi car-se com sua mãe e desejar partindo dessa
identi cação, ele, de algum modo, já confundiu a descrição psíquica do
desenvolvimento de gênero estável. E se esse mesmo homem deseja outro
homem ou uma mulher, será que o seu desejo é homossexual, heterossexual
ou mesmo lésbico? E o que signi ca restringir qualquer indivíduo dado a
uma única identi cação? (BUTLER, 1993, p. 99).
Se tais fantasias podem saturar um lugar de desejo, não estamos em
posição de ou bem nos identi carmos com um sexo dado, ou bem desejar
alguém deste sexo; na realidade, de um modo mais geral, não estamos em
posição de considerar que a identi cação e o desejo sejam fenômenos
reciprocamente excludentes. Identi car-se não é opor-se ao desejo, a rma
Butler. A identi cação é ao mesmo tempo uma trajetória fantasmática, uma
resolução de desejo e uma assunção de lugar: trata-se da territorialização de
um objeto que possibilita a identidade mediante a temporária resolução do
desejo, o qual ainda permanece sendo um desejo, mesmo que sob a sua
forma repudiada.
A referência por parte da autora à identi cação múltipla não
equivale a sugerir que todos se sintam compelidos a ser ou ter tal uidez
identi catória. A sexualidade é tão motivada pela fantasia de recuperar
objetos perdidos quanto pelo desejo de permanecer protegido da ameaça de
punição que tal recuperação poderia ocasionar. Também pode ocorrer que
se estabeleçam certas identi cações e a liações, certas conexões
complacentes ampli cadas, precisamente para instituir uma desidenti cação
com uma posição que pareça excessivamente saturada de dor e agressão,
posição que, em consequência, só poderia ser ocupada imaginando-se
conjuntamente a perda de uma identidade viável. As identi cações,
portanto, podem proteger contra certos desejos ou atuar como veículos para
o desejo; para facilitar certos desejos, talvez seja necessário proteger-se de
outros: a identi cação é o lugar no qual ocorrem, de modo ambivalente, a
proibição e a produção do desejo (PEIXOTO JÚNIOR, 2005).
Neste contexto a política queer torna-se emblemática, já que
condensa em si tanto uma degradação passada como uma a rmação
presente, demonstrando de forma radical a contingência das normas de
gênero. A ressigni cação da sexualidade gay e lésbica pela abjeção e contra a
abjeção pôde signi car uma proliferação e uma subversão do próprio
simbólico, estendendo e alterando a normatividade dos seus termos. Ao
introduzir as homossexualidades no terreno da simbolização, novas formas
de subjetivação, assim como novas formas de sociabilidade, tornaram-se
possíveis. Daí a necessidade de continuarmos a repensar os parâmetros a
partir dos quais abordamos o desejo, a sexualidade e as subjetividades no
mundo contemporâneo. Neste sentido, a subversão do desejo também é uma
abertura para novas possibilidades de existência até hoje consideradas
impensáveis por certos autores.

Referências
ARÁN, Márcia. Sexualidade e política na cultura contemporânea: as uniões
homossexuais. In: LOYOLA, M. A. (Org.). Bioética, reprodução e gênero na
sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Abep; Brasília: LetrasLivres, 2005.
p. 211-229.
_______. O avesso do avesso: feminilidade e novas formas de subjetivação.
Rio de Janeiro: Garamond, 2006a.
_______. A transexualidade e a gramática normativa do sistema sexo-
gênero. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, v. 9, n. 1, p. 49-63, 2006b.
BORRILLO, Daniel; Fassin, Eric. Au-delà du PaCS: l’expertise familiale à
l’épreuve de l’homosexualité. Paris: PUF, 2001.
BUTLER, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. New
York: Routledge, 1993.
_______. e psychic life of power: theories in subjection. California:
Stanford University Press, 1997.
_______. Subjects of desire: Hegelian re ections on twentieth-century
France. New York: Columbia University Press, 1999.
_______. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
_______. Défaire le Genre. Paris: Éditions Amsterdam, 2006.
CHEMAMA, Roland. Dictionnaire de la psychanalyse. Paris: Larousse, 1993.
FOUCAULT, Michel. A microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992.
_______. Le vraie sexe. In: _______. Dits et écrits IV. Paris: Gallimard, 1994.
_______. Sujeito e poder. In: Dreyfus, Hubert; Rabinow, Paul (Org.). Michel
Foucault uma trajetória losó ca: para além do estruturalismo e da
hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249.
_______. Les anormaux, cours au Collège de France (1974-1975). Paris:
Gallimard, 1999.
HERITIER, Françoise. Masculin/Féminin: la pensée de la di érence. Paris:
Éditions Odile Jacob, 1996.
LACAN, Jacques. O seminário 5: as formações do inconsciente (1957-1958).
Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999.
LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean Baptiste. Vocabulário da psicanálise.
Rio de Janeiro: M. Fontes, 1983.
PEIXOTO JÚNIOR, Carlos Augusto. Sujeição e singularidade nos processos
de subjetivação. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, v. 7, n. 1, p. 23-38,
2004.
_______. Sexualidades em devir e subversão das identidades. Ethica:
cadernos acadêmicos, v. 12, n. 1/2, p. 131-155, 2005.
ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem. Rio de Janeiro: J. Zahar,
2003.
TORT, Michel. Fin du dogme paternel. Paris: Aubier Psychanalyse, 2005.

1 Este capítulo representa uma versão revista de artigo publicado nos Cadernos Pagu (28/2007).
2 Professora
Adjunta do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
3 Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.
4 Em francês, Pacte Civil de Solidarité (Pacs). Pacto civil de solidariedade que pode ser concluído por
duas pessoas físicas, independentemente do seu sexo, para organizar sua vida comum.
5 Para um análise crítica destes pressupostos (ARÁN, 2006a).
Cérebro, cultura somática e neuroterritórios
emergentes
Rafaela Teixeira Zorzanelli1

Se a relação entre a biologia do cérebro e suas manifestações mentais


estivesse totalmente esclarecida, não nos inquietaríamos tanto sobre seu
papel na formação das características comportamentais humanas. No
entanto, ela não está. Nenhum campo de pesquisa é inteiramente taxativo
sobre o desempenho das funções cerebrais e sua relação com as expressões
mentais. Esse é um campo de grandes dúvidas e caminhos ainda iniciais. É
também por isso, alvo de embates constantes.
No entanto, no campo da saúde, e especi camente da saúde mental,
chama a atenção o poder de persuasão de certas explicações relacionadas a
doenças e até mesmo comportamentos: sejam vírus, seja um mecanismo
imunológico de ciente, seja um padrão de ativação cerebral alterado, sejam
genes, essas explicações apontam para um substrato orgânico considerado
su ciente para gerá-los. Não é difícil encontrar uma matéria de divulgação
cientí ca sobre um suposto vírus da obesidade, um padrão de ativação
cerebral associado à depressão, uma alteração neuroquímica responsável
pelo transtorno de dé cit de atenção. Note-se que, mais do que condição
necessária, o agente é muitas vezes entendido como su ciente para
determinar o estado patológico, a despeito de outras variáveis que possam
intervir em sua formação. A redução da causa a um possível achado
siológico parece, no mínimo, uma solução insu ciente para a riqueza de
variáveis psicossociais que perpassam doenças e comportamentos humanos.
No que se refere especi camente ao lugar do cérebro como fonte de
explicações consideradas su cientes para doenças e comportamentos,
alguns pontos merecem destaque: o solo de cultura somática no qual ele
ganha espaço; o desenvolvimento do campo das tecnologias médicas e das
imagens cerebrais e seu poder de convencimento na esfera pública. Além
disso, um dos pontos que sustenta o desenvolvimento de uma concepção
dos indivíduos baseada exclusivamente em seus cérebros é que, desde a
década de 1980, as neurociências passam a incluir no seu rol de
preocupações comportamentos sociais e morais. Disso decorre que as
psicopatologias passaram, paulatinamente, a ser tratadas como
neuropatologias, trazendo a expectativa de ação sobre a máquina cerebral e
o aumento de sua capacidade de performance (EHRENBERG, 2004).
A literatura sociológica internacional e nacional tem demonstrado
que os processos de construção da subjetividade contemporâneos estão
passando, de diferentes maneiras, por um processo de somatização e
exteriorização (BRUNO, 2004a, 2004b; COSTA, 2004; EHRENBERG, 2004;
ORTEGA; VIDAL, 2007; ORTEGA, 2008; ROSE, 2003; VIDAL, 2005, 2009).
A noção de que somos indivíduos habitados por um espaço interno,
formados pela biogra a como fonte de individualidade e lugar de nossos
descontentamentos – tal como estabelecido na modernidade – está sofrendo
um processo de lenta modi cação, no qual passamos a de nir aspectos-
chave da subjetividade em termos corporais e biomédicos. Temos
decodi cado nossos medos e aspirações a partir de um vocabulário médico,
e temos estabelecido novas relações com o corpo, que incluem práticas de
reforma e aperfeiçoamento, pela utilização de manancial psicofarmacológico
e mecânico.
Esses processos de exteriorização são compreendidos em contraste
com o solo de intimização sobre o qual as sociedades modernas burguesas
se constituíram. Sennet (2001) sustenta que a privacidade só ganhou
contornos na Europa dos séculos XVIII e XIX, sob o jugo das modernas
sociedades industriais e do modo de vida urbano. Os sinais da queda do
Antigo Regime e da formação de uma nova cultura secular, urbana e
capitalista se desdobraram, entre outros quesitos, em um crescimento
desmedido do valor da vida privada, paralelo a um esvaziamento da vida
pública.
A tirania da intimidade, segundo o autor, é uma maneira de
enfrentar a realidade e de compreender as complexidades da sociedade em
termos psicológicos. Destaca-se nesse processo o papel da personalidade,
entidade supostamente escondida no interior de cada um, que poderia ser
disfarçada ou desviada pela aparência. O que Sennet aponta é o
esvaziamento da vida pública e o concomitante inchaço da vida privada.
Assim foram se consolidando as tiranias da intimidade que conjugavam
tanto uma atitude de indiferença e passividade aos assuntos públicos quanto
uma concentração nos espaços privados e nos con itos íntimos. É em
contraposição a essa vontade de privacidade que devemos contextualizar os
modos de subjetivação em emergência desde o nal do século XX.
A tendência à somatização e externalização da subjetividade inclui
tanto o campo da dita normalidade quanto o da patologia. No primeiro, está
o homem considerado saudável, que passa a desenvolver uma série de
preocupações físicas e estéticas, desde o controle de índices metabólicos até
a busca de padrões de beleza e longevidade (ORTEGA, 2008). Já no
território das patologias, aparecem novas modalidades de sofrimento físico e
mental, nas quais se destacam sintomas somáticos tais como as anorexias,
bulimias, adicções de todos os tipos (COSTA, 2004). Soma-se a esse leque de
entidades clínicas a ascensão de quadros de difícil decifração, constituídos
por ampla gama de sintomas físicos sem substrato anátomoclínico, tais
como a síndrome bromiálgica, a síndrome do cólon irritável, a síndrome
da fadiga crônica, entre outras.
Por último, mas não menos importante, as práticas de somatização e
exteriorização da subjetividade se fazem notar e são alimentadas pelo
registro das inovações comunicacionais, que muito contribuem para a
alteração dos modos de relação entre os homens, especialmente as que
tiveram lugar com o advento do computador pessoal e da internet. Com
elas, ocorreu uma série de mudanças nas maneiras pelas quais entramos em
contato uns com os outros: sites de relacionamento, blogs, weblogs levaram
a formas inéditas de exibição da vida pessoal em seus atos mais banais,
contribuindo para a construção do que cada um pensa de si mesmo a partir
dos efeitos que essa exibição gera (BRUNO, 2004a). No limite, a exibição
voluntária do corpo e da intimidade tornou-se uma prática de
autoconstituição, contraposta à necessidade de recolhimento e privacidade
tão marcante nas sociedades modernas burguesas.
Um dos desdobramentos dessas modalidades somatizantes de
subjetividade é que temos apelado cada vez mais intensamente a explicações
que enfatizam características biológicas dos comportamentos humanos e
dos transtornos mentais. Passamos a falar sobre nós e agir uns com os
outros a partir da pressuposição de que nossas características são
preponderantemente desenhadas pela biologia. Nosso humor, nossos
desejos, condutas e personalidades são pensados como uma con guração
siológica particular que pode ser modulada pela ação sobre a química
cerebral. Compreendemos nossas tristezas e agruras como desequilíbrios
químicos, tratáveis por drogas que restauram o equilíbrio perdido,
con gurando como resultado a formação do que Rose (2003) denomina de
eus neuroquímicos (neurochemical selves).
Conforme Ehrenberg (2004) nos lembra, o m do século XIX e o
início do século XX fundaram, a partir da clínica médica, uma separação
entre o sujeito da neurologia, cujo sintoma está em algum ponto de seu
sistema nervoso, à sua revelia, e o sujeito falante da psicopatologia, da
psiquiatria, e da psicanálise, cujo sintoma lhe é singular. Essa distinção tem
sido apagada em prol de explicações que equacionam o sujeito falante ao
sujeito somático, e, em casos mais especí cos, ao chamado “sujeito cerebral”.
As lesões cerebrais e dé cits neuroquímicos passam a ser considerados os
verdadeiros atores das patologias, e a experiência pessoal torna-se uma
derivação fosca, desencarnada e acessória de processos bioquímicos
moleculares.
Esse processo se arrasta, sobretudo, desde o século XIX, ao longo do
qual o cérebro foi ganhando o lugar de órgão da identidade (HAGNER,
1997). Sua transformação em órgão da alma traz como consequência que a
pesquisa das funções mentais, compreendidas a partir do funcionamento
cerebral, seja uma das pedras angulares da pesquisa neurocientí ca. O lugar
procurado no cérebro para compreender a mente pretende constituir a
dobradiça entre mente e corpo – ou o ponto em que, supostamente, os
processos psíquicos e físicos se transformam um no outro. Não é sem
motivo que as neurociências têm-se desenvolvido amplamente ao longo dos
dois últimos séculos.
Ao menos no Ocidente industrializado, desenvolve-se mais
acirradamente a partir da segunda metade do século XX, o que se
denominou sujeito cerebral (EHRENBERG, 2004; VIDAL, 2005; ORTEGA;
VIDAL, 2007). Essa gura antropológica em emergência indica uma série de
práticas, discursos, formas de pensar sobre si e o outro que tomam como
base a ideia de que o cérebro é o órgão necessário, exclusivamente, para
construir nossa identidade saudável ou doente. A consideração de que o
cérebro – e não a mente – é su ciente para determinar o que somos é o que
se aponta por meio do neologismo brainhood (ORTEGA; VIDAL, 2007;
VIDAL, 2009): a equalização entre a condição de ser um cérebro e a de ser
uma pessoa, ou a de nição das propriedades de um ser humano – doente ou
são – a partir de qualidades e atributos cerebrais. É dentro do contexto de
uma cultura somática cada vez mais acirrada que a brainhood se desenvolve.
Cabe notar que o chamado sujeito cerebral não existe como uma
entidade autônoma que tem efeitos sobre as coisas. São as manifestações
(teóricas, práticas e visuais) que permitem postulá-lo como uma visão de ser
humano que perpassa, por exemplo, os debates sobre a de nição de morte
cerebral, o uso dos scans cerebrais para o estabelecimento de correlatos
neurais de experiências, comportamentos e doenças; a emergência de
neuroterritórios de saber, que mesclam conhecimento cientí co às ciências
humanas, tal como abordaremos mais adiante.
Que o cérebro seja um órgão necessário para o desenvolvimento de
funções vitais e do exercício das capacidades humanas ninguém contestaria.
O que é digno de crítica é que particularidades do seu funcionamento sejam
consideradas su cientes para a formação de certas características do agir
humano: escolhas morais, patologias mentais, práticas sexuais, entre outros.
As tecnologias de imageamento cerebral também contribuem para
fomentar o poder de persuasão do cérebro pelo acesso à visualização de seu
funcionamento. Desde Vesálius, com seus primeiros desenhos em meados
do século XVI, até hoje, com as técnicas avançadas de imageamento, a
visualização tem sido um campo importante na história da medicina, dando
acesso ao interior corporal, permitindo especular sobre os mistérios da
visceralidade, e ampliando o raio de ação diagnóstica e terapêutica em
diversas áreas da medicina. No caso das pesquisas sobre o cérebro, as
imagens também têm tido importante destaque, principalmente em tempos
mais recentes, em que elas podem desvelar não só sua anatomia, mas as
funções por ele executadas. Seu poder persuasivo na formação do que as
pessoas pensam de seus próprios corpos é notável. Dumit (2003, 2004)
a rma que elas contribuem para a percepção de que o cérebro visto é a
própria pessoa. A apresentação de imagens de cérebros típicos de
esquizofrênicos, deprimidos ou “normais” produz a sensação de que há uma
diferença categórica entre tipos humanos que corresponderiam,
essencialmente, a seus cérebros. Mas há esquizofrênicos cujos cérebros se
assemelham aos de pessoas consideradas saudáveis e vice-versa. A imagem,
no entanto, rotula e, pretensamente, mostra a doença em si mesma, em três
dimensões. O risco embutido nessas práticas de visualização é que elas
sirvam para alçar um achado ainda em processo de investigação à condição
de causa su ciente da doença.
Mas a legitimidade do cérebro como ator social e como polo de
convergência de explicações socialmente disponíveis e legítimas sobre as
doenças não ocorreu em função exclusiva desses avanços. É porque nos
encontramos em um solo de cultura somática que ao cérebro se endereçam
perguntas sobre a essência das doenças. Os métodos de neuroimageamento,
sem dúvida, so sticaram o discurso da cerebralização da identidade, dando-
lhe estofo e propulsão, mas não foram a causa da ascensão do cérebro como
resposta considerada convincente para doenças e comportamentos.
O processo de cerebralização dos comportamentos tem
desdobramentos dentro e fora do campo neurocientí co, sendo condição de
emergência de projetos de articulação entre as neurociências e as ciências
humanas – que seriam impensáveis há pouco tempo – como a
neuropsicanálise, a neuroeducação, a neuroteologia, a neuroética. A seguir
abordaremos dois desses neuroterritórios de saber, com o objetivo de
apresentar algumas de suas características e de seus debates internos.

O caso da neuroeducação
As diferentes formas pelas quais o conhecimento neurocientí co é
apropriado têm originado áreas de conhecimento híbridas, que são o
resultado de interfaces entre as neurociências e as ciências humanas, como é
o caso da neuroeducação. Nosso intuito é apresentar algumas das questões
que perpassam esse campo em emergência, já que elas re etem a
aproximação – não sem controvérsias – de campos de saber com métodos e
modos diferentes de olhar para seus objetos.
Um importante alicerce da neuroeducação se assenta na ideia de que
conhecer as bases neurobiológicas da aprendizagem pode levar ao seu
aprimoramento. Ou seja, os conhecimentos neurocientí cos seriam
utilizados como forma de aperfeiçoar métodos e corrigir limitações da
aquisição de conteúdos. Dessa premissa, se desdobram práticas de
neurodidática e neuropedagogia, para a proposição de melhores formas de o
cérebro aprender.
A implicação do cérebro em processos de aprendizagem é
considerada óbvia, de modo que ninguém duvidaria que conhecer melhor o
modo como as funções cerebrais superiores se processam oferece
possibilidades de aprimorar as maneiras de aprender. No entanto, essa
obviedade é problemática, porque ela nos faz aceitar com mais passividade
certas conclusões apressadas, que consideram o cérebro como único
elemento necessário para a aprendizagem. Ou ainda, como se a
aprendizagem fosse o processo realizado por um cérebro e não uma pessoa
que tem um cérebro situado em um contexto sócio-histórico, material,
social. Como a neuroeducação contempla posições bastante heterogêneas,
apresentaremos alguns dos debates que a recortam.
O artigo de Hartt (2008) publicado na revista Educação, cuja capa
anuncia o tema “Febre de cérebro”, detecta e assinala a invasão de
explicações neurocientí cas no campo da educação formal, enfatizando
tanto o que se pode ganhar com os conhecimentos sobre o funcionamento
cerebral quanto a necessidade de evitarmos os chamados neuromitos. Os
neuromitos são construídos, por exemplo, quando uma citação de um
estudo cientí co cuidadoso extrai um signi cado que ultrapassa aquilo que
se poderia inferir a partir dele, realizando transposições simpli cadoras ou
ampliando a capacidade de inferência do achado cientí co. São práticas
desse tipo que fazem com que as ideias neurocientí cas sejam
frequentemente incorporadas ao entendimento de outros campos por meio
de simpli cações grosseiras.
Um exemplo é o célebre “Efeito Mozart”. A ideia do Efeito Mozart
surgiu em 1993 na Universidade da Califórnia, com os pesquisadores Shaw,
Rauscher e Ky (1993, 1995), que estudaram os efeitos da audição de um
trecho da Sonata Para Dois Pianos em Ré Maior (K. 448), de Mozart, em
estudantes universitários. Veri cou-se que havia um melhoramento
temporário do raciocínio espaço-temporal, conforme medido pelo teste
Stanford-Binet de Quociente Intelectual (QI), que demonstrou um aumento
de 8-9 pontos sobre as pontuações dos sujeitos, quando haviam realizado o
teste após um período de silêncio ou de audição de uma ta relaxante. O
efeito Mozart dizia respeito à conclusão de que escutar música clássica na
tenra infância favorecia o desenvolvimento das capacidades intelectuais.
Mas, nenhum outro grupo de pesquisadores foi capaz de reproduzir os
resultados dessa pesquisa, o que fere um princípio básico da pesquisa
cientí ca. Autores como Steele, Bass e Crook (1999) a rmam ter seguido os
protocolos estabelecidos por Rauscher, Shaw e Ky (1995) sem conseguir
obter resultado semelhante. Antes mesmo de haver evidências mais sólidas
sobre seus resultados, os produtos baseados na promessa do Efeito Mozart
passaram a ser comercializados, havendo inclusive distribuição grátis de
gravações de músicas clássicas em estados americanos (RACINE; ILLES,
2006). A despeito de maiores evidências, o Efeito Mozart estimulou um
mercado paralelo à ciência.
Apesar de esse ser um exemplo emblemático das reiteradas
inferências cientí cas que aceitamos e descartamos, como em um mercado
de consumidores, cabe ressaltar que nem só de neuromitos vive a
neuroeducação. Um capítulo especial desse campo é aquele dedicado ao
auxílio das crianças com necessidade especiais, e é muito bem discutido por
Battro (2000). O caso do garoto Nico, acometido por uma forma grave de
epilepsia, é emblemático. Seu hemisfério direito foi removido, em um
esforço para controlar ataques epiléticos sofridos desde o nascimento. A
despeito dessa di culdade, o processo de escolarização do garoto durante o
tempo acompanhado por Battro foi surpreendente. Com um computador,
Nico conseguiu aprender a ler e escrever, e se juntou ao ritmo da turma.
A tese de Battro é de que a educação teve um papel fundamental na
compensação da perda de tecido cerebral. Nico tinha di culdades em fazer
movimentos nos com a mão esquerda e defeitos visuais, os quais ele
compensava com movimentos de olho e de cabeça. Além disso, apresentava
di culdades em desenhar e escrever à mão. A utilização de um computador
permitiu que ele adaptasse sua performance a suas di culdades. O
computador tornou-se uma prótese intelectual para o garoto, capaz de
construir uma interface entre seus processos cognitivos e o mundo. As
próteses intelectuais servem como instrumentos computacionais que criam
uma interface com as atividades cognitivas humanas, tais como falar,
escrever, ler e desenhar. Elas abrem novos caminhos cognitivos no cérebro,
permitindo a substituição funcional das áreas prejudicadas e auxiliando o
cérebro a realizar tarefas cognitivas anteriormente processadas por uma área
diferente do córtex. O desenvolvimento e compreensão dessas próteses é
também um dos caminhos do que se pode chamar de neuroeducação.
Ainda um outro viés que recorta esse campo é o do aprimoramento
cognitivo. O uso de psicofármacos que estimulam a cognição, a
concentração, o sono e o cansaço têm sido um solo de debates na Europa e
na América do Norte, alcançando espaço na arena pública entre os
periódicos semanais brasileiros, entre as instituições universitárias, jornais
populares e expoentes da pesquisa neurocientí ca. Sendo uma questão que
abarca o campo biomédico, mas cujos desdobramentos se estendem às
práticas sociais e concepções de saúde, o uso de substâncias
psicofarmacológicas fora do objetivo para o qual foram prescritos faz com
que o campo da saúde coletiva enfrente um debate ético cuja importância só
aumentará daqui em diante.
Prova disso é a presença cada vez mais frequente do tema na mídia
impressa brasileira, como o atesta o artigo de Laurence (2009) no jornal
Folha de São Paulo, repercutindo o tema do uso de drogas
psicofarmacológicas para “turbinar o cérebro”, bem como as matérias de
capa das revistas Superinteressante e Scienti c American Brasil – ambas, em
novembro de 2009, sobre as “Pílulas da Inteligência”. A substância mais
debatida é o metilfenidato (ritalina), usada para tratar casos de transtorno
de dé cit de atenção e hiperatividade. Além dela, o donapezil, usado para
tratar a demência, e o moda nil, para narcolepsia, têm recebido atenção dos
pesquisadores interessados no tema do doping cerebral. Esse assunto está em
foco principalmente depois de duas manifestações a favor da liberação do
uso de medicamentos para aprimoramento da performance cognitiva
(HARRIS et al., 2008; HARRIS; QUIGLEY, 2008). Os autores advogavam a
regulamentação e eventual liberação do uso dessas drogas em pessoas
saudáveis, compreendendo que esse é um caminho natural do processo de
educação formal.
O uso social dessas drogas traz à cena questões que não são simples
de serem respondidas, como sua regulamentação ou não em determinados
ambientes de trabalho, escolas e universidades ou em casos como os de
vestibulandos, motoristas, policiais, médicos, pilotos e outros pro ssionais
que trabalham em situação de privação de sono. Sem dúvida, a situação
brasileira merece um detalhamento particular, já que as condições de
regulação de medicamentos são diferenciadas em relação aos países
europeus e norte-americanos.
O fato é que a utilização do manancial psicofarmacológico para ns
de aprimoramento cognitivo é um campo em crescente debate na sociedade
atual. A decorrência mais direta desse processo é que ele contribui para uma
percepção social do corpo referenciada não somente na possibilidade de
promover a saúde, mas de aprimorar a perfomance mental e cognitiva. Esses
novos desempenhos corpóreos, como o denominou Costa (2004),
construídos à luz dos novos limites engendrados para o corpo e para a
subjetividade, modi cam as concepções vigentes de normalidade e
patologia. Esses debates e dilemas, em linhas contrastantes e divergentes,
têm composto o campo da neuroeducação até o momento.
O caso da neuropsicanálise
Outro campo emergente da interface entre as neurociências e as
ciências humanas é a neuropsicanálise. Para a Sociedade Internacional de
Neuropsicanálise, as neurociências são um campo de reconciliação entre as
perspectivas psicanalíticas e neurocientí cas da mente, baseado no
pressuposto de que essas duas disciplinas girariam em torno dos mesmos
objetivos: o de tornar o funcionamento mental inteligível, e o de
compreender sua função e a de seus elementos constituintes.
Dois nomes se destacam no campo da neuropsicanálise. Um deles é
o neurocientista Eric Kandel, premiado juntamente com Arvid Carlsson e
Paul Greengard, com o Nobel de Fisiologia ou Medicina em 2000, por
descobertas que envolvem a transmissão e estocagem molecular das
memórias. O outro é Mark Solms, psicanalista que estuda mecanismos dos
sonhos, emoção e motivação. A pretensão sustentada pelas propostas
neuropsicanalíticas, grosso modo, é de um diálogo entre as pressuposições
freudianas – cuja fundamentação empírica e adequação aos parâmetros da
ciência positivista é considerada incipiente pelos neurocientistas – e os
resultados das pesquisas das ciências do cérebro que, supostamente, podem
oferecer o solo experimental e o substrato biológico que teria faltado à teoria
freudiana.
Cabe notar que a neuropsicanálise surge em um contexto de declínio
na força da psicanálise, que sofre lentos e contínuos abalos na segunda
metade do século XX. Alguns elementos foram propulsores do declínio da
aceitação social da psicanálise como fonte de respostas aos comportamentos
humanos, entre eles, o desenvolvimento de drogas psicofarmacológicas de
considerável e cácia, como a clorpromazina (substância antipsicótica), os
benzodiazepínicos (utilizados como ansiolíticos), e os antidepressivos ISRS
(inibidores seletivos da recaptação da serotonina). Em 1974, as primeiras
pesquisas em ratos são realizadas com a uoxetina (KRAMER, 1994). Daí
em diante, os efeitos relativamente rápidos dos medicamentos
antidepressivos seriam comparados ao tratamento psicanalítico e, muitas
vezes, considerados mais vantajosos em relação a esse último.
Um fato que também demonstra os abalos sofridos no poder de
persuasão da teoria psicanalítica é a terceira edição do Manual diagnóstico e
estatístico de transtornos mentais (Diagnostic and Statistical Manual of
Mental Disorders – DSM). Desde a sua primeira publicação, em 1952, esse
sistema de classi cação já foi submetido a quatro edições e cinco revisões. O
DSM III, em 1980, promove uma mudança de paradigma no conhecimento
psiquiátrico, ao apresentar um modelo que se propõe descritivo e ateórico,
tornando possível na psiquiatria o mesmo processo de abstração que
permite à medicina classi car e tratar as doenças como entidades universais
e transcendentes ao organismo dos pacientes. O surgimento do DSM-III é
um marco da transformação na clínica psiquiátrica, antes in uenciada pela
psicanálise e, desde então, cada vez mais alinhada ao modelo biomédico.
A ascensão das tecnologias de imageamento funcional do cérebro,
permitindo acesso a funções mentais superiores, também impactaram a
plausibilidade das explicações psicodinâmicas. A ressonância magnética
funcional, por exemplo, trouxe vantagens para o estudo da siopalotogia dos
fenômenos mentais (memória, pensamento, cognição), tornando possível a
caracterização de alguns correlatos neurofuncionais de sintomas e
patologias. É nesse terreno que, diante dos avanços das neurociências e dos
abalos sofridos pela psicanálise, tem lugar o campo da neuropsicanálise.
Kandel (1999) propõe alguns princípios para esse campo: 1) todos os
processos mentais, do mais simples ao mais complexo, derivariam de
operações no cérebro – ou seja, não haveria processo mental imaterial; 2) os
genes e suas combinações seriam importantes determinantes dos padrões de
interconexão entre os neurônios no cérebro e seu funcionamento, embora
genes alterados não expliquem por si mesmos as variações das doenças
mentais; 3) alterações na expressão do gene induzidas pela aprendizagem
dariam origem a mudanças nos padrões das conexões neuronais, que
contribuiriam não apenas para a base biológica da individualidade, mas pela
manutenção de anormalidades de comportamento induzidas por
contingências sociais; 4) a psicoterapia produziria mudanças no
comportamento pelo aprendizado e alterações na expressão gênica,
conduzindo a mudanças nas interconexões entre células nervosas e o
cérebro.
Inspirados por esse rol de proposições, alguns estudos passam a
articular a psicanálise freudiana às neurociências. Esse campo de
investigação envolve, por exemplo, como assinala Ribeiro (2007), o estudo
da repressão de memórias indesejadas, pioneiramente descrita por Freud;
pesquisas com o sonho, objeto primordial da psicanálise freudiana;
investigações de modelos animais de psicose que revelam notável
semelhança entre os padrões de atividade neural da vigília e do sono REM
(rapid eyes movement), corroborando a ideia de que o delírio psicótico
resulta da di culdade de discernir o sonho da realidade; a presença de
reminiscências da vigília dentro do sonho (restos diurnos) extensamente
observados em humanos e roedores durante ambas as fases do sono.
Ora, se para muitos autores a tradução neurobiológica de conceitos
clássicos da psicanálise é uma forma de lhe outorgar legitimidade cientí ca,
para alguns, esse intento é epistemologicamente fadado ao fracasso, pois as
inovações freudianas teriam rompido os vínculos com a matriz neurológica,
instituindo um novo paradigma para a abordagem da mente humana. Como
informam Forbes e Ribas (2004), a visão simplista da neuropsicanálise
consiste em achar que, se Freud tivesse um PET-scanner, teria continuado
um projeto neurológico e não psicanalítico. Mas nenhum instrumento
tecnológico pode investigar lapsos e con itos cuja dinâmica ocorreria no
nível dos sentidos construídos pelo indivíduo para suas experiências, e não
apenas na materialidade de processos biológicos.
Por isso, as propostas da neuropsicanálise geram inúmeras reações
entre os psicanalistas, sobretudo baseadas na ideia de que Freud radicaliza,
ao longo de sua obra, o abandono das explicações somáticas em direção ao
campo do psiquismo. Mesmo imerso em um vocabulário sicalista e um rol
de problemas médicos, Freud dá passos importantes em direção a uma
autonomia do psíquico. Um exemplo disso é quando o autor a rma que as
afasias observadas em doentes podiam não se diferenciar das de pessoas
saudáveis em condições de cansaço ou sob efeitos emocionais intensos.
Freud sustenta a impossibilidade de uma teoria exclusivamente centrada na
localização cerebral, em vez de explicar as afasias a partir de uma relação
mecânica entre o clinicamente observado e o anatômico (FREUD, 1891).
Posteriormente, o autor realiza uma diferenciação entre os sintomas
das paralisias medulares (bulbares) e das paralisias cerebrais ou em massa. A
paralisia histérica estaria mais próxima da cerebral, mas não seria
totalmente idêntica a ela. A ideia principal defendida nesse texto é de que a
lesão nas paralisias histéricas é completamente independente da anatomia
do sistema nervoso, pois a histeria se comporta como se a anatomia não
existisse, ou como se dela não tivesse conhecimento. Na paralisia histérica
do braço, a lesão não estaria no braço, mas na ideia de braço ou na abolição
da acessibilidade associativa da concepção de braço. O órgão paralisado ou a
função abolida estariam envolvidos numa associação inconsciente (FREUD,
1996a).
Com A interpretação dos sonhos, Freud (1996b) operaria uma
ruptura mais declarada com as concepções orgânicas da mente, esboçando
com vigor uma primeira teoria do aparelho psíquico, que dá ao sonho um
papel fundamental no acesso ao inconsciente. É no caminho desde os
primeiros textos neurológicos até a Interpretação que se pode observar um
progressivo abandono do modelo neurológico de solucionar os problemas
clínicos, bem como a colocação do tema do desejo, do con ito e do
inconsciente no seio daquele saber em formação. Quando Freud publica a
Interpretação constrói com isso um novo paradigma de abordagem da mente
e, portanto, a função de reunir psicanálise e neurociências, ou reagrupá-las
sob um mesmo vocabulário, é considerada um equívoco, pois desconsidera
essa ruptura com a biologia (FORBES; RIBAS, 2004). Esse é um dos
argumentos que sustentam uma divergência radical entre psicanalistas e
neuropsicanalistas.
Além disso, a premissa de que a psicanálise precisa ser redescrita à
luz dos conhecimentos cientí cos só faz sentido se se considera que o
trabalho de Freud é incipiente do ponto de vista metodológico, não se
adaptando aos parâmetros de produção de conhecimento da ciência. Essa é
a posição de Solms (1998) que sustenta que a psicanálise, por suas fraquezas
metodológicas, está condenada a um ciclo fechado de especulação e não
veri cação. Essa asserção implicaria desconsiderar que o método de Freud
toma a clínica psicanalítica como o local privilegiado de acesso aos dados, já
que, para o autor, o método clínico era adequado para a exploração do
sofrimento psíquico, pressupondo a singularidade do sujeito e a
contemporaneidade entre pesquisa e tratamento. A observação do doente
em sofrimento se opõe à observação anatomopatológica, hegemônica na
constituição da medicina moderna e historicamente comprometida com o
empírico e o descritivo, como assinalam Forbes e Ribas (2004). Assim, a
ideia de que conceitos freudianos como id, ego e superego poderiam ser
localizados no cérebro é considerada absurda para muitos psicanalistas, pois
o modelo freudiano diz respeito ao aparato mental e não ao cerebral. Como
se pode observar, a formação de campos de saber que intentam equalizar as
ciências da vida às ciências humanas é um terreno de controvérsias mais do
que de certezas.

Reducionismos fisicalistas e reações a ele


Retomando o contexto de nossa cultura sicalista e o destaque das
neurociências na sociedade contemporânea, cabe notar a ironia histórica
que vivenciamos: atravessamos um momento de tantas esperanças
reducionistas e, ao mesmo tempo, de grande criticismo em relação a esses
pressupostos. Estamos continuamente presumindo causas somáticas para os
comportamentos, ainda que estejamos, simultaneamente, mais re exivos,
críticos e relativistas em nossa abordagem das classi cações das doenças, e
das modalidades terapêuticas (ROSENBERG, 2006, p. 417).
Na atualidade não é possível que se descreva o homem sem levar em
conta as descobertas das neurociências, ignorando-se o fato de que a
atividade mental está ligada à matéria neuronal. Mas, tomar essas descrições
como uma premissa não deve conduzir a redução da mente à matéria. Trata-
se, ao contrário, de pressupor que todo o aparato neuronal é irredutível ao
produto da sensibilidade do corpo e da plasticidade do cérebro, da
construção neural feita por incorporações sucessivas de percepções e
interações com o ambiente. Essas incorporações, modi cando o cérebro sem
cessar, favoreceriam sua adaptação dinâmica ao meio, tornando-o uma
matéria viva, aberta ao mundo que o renova. Esses processos, no entanto,
não poderiam ser objetivados por meio do imageamento cientí co, nem
residiriam em um lugar preciso, ao qual poderíamos observar de maneira
localizada. Ainda que invisíveis, eles são parte ativa de nossos corpos,
formando o tecido de nossas histórias sociais e afetivas. Essa é uma ideia
pertinente quando se trata de demonstrar a insu ciência do argumento
sicalista – centrado no cérebro como agente exclusivo dos estados mentais
– no que tange à relação mente e cérebro.

Referências
BATTRO, A. Half a brain is enough: the story of Nico. Cambridge:
Cambridge University Press, 2000.
BRUNO, F. Máquinas de ver, modos de ser: visibilidade e subjetividade nas
novas tecnologias de informação e de comunicação. Revista FAMECOS:
Mídia, Cultura e Tecnologia, v. 24, p. 110-124, 2004a.
_______. A obscenidade do cotidiano e a cena comunicacional
contemporânea. Revista FAMECOS: Mídia, Cultura e Tecnologia, v. 25, p.
22-28, 2004b.
COSTA, J. F. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do
espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.
DUMIT, J. Is it me or my brain? Depression and scienti c facts. Journal of
Medical Humanities, v. 24, n. 1/2, p. 35-47, 2003.
_______. Picturing Personhood: brain scans and biomedical identity.
Princeton: Princeton University Press, 2004.
EHRENBERG, A. Le sujet cerebral. Esprit, p. 130-155, 2004.
FORBES, J. ; RIBAS, D. Complexo de cientista. Folha de São Paulo, São
Paulo, 11 jul. 2004. Caderno Mais!
FREUD, S. Zur Au assung der Aphasien. Leipzig und Wien: Franz
Deuticke, 1891.
_______. Algumas considerações para um estudo comparativo das
paralisias motoras orgânicas e histéricas. In: _______. Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1996a. vol. 1 (Trabalho original publicado em 1893).
_______. A interpretação dos sonhos. In: _______. Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1996b. vol. 4 (Trabalho original publicado em 1900).
HAGNER, M. Homo cerebralis: der Wandell vom seelenorgan zum gehirn.
Berlim: Insel Verlag GmbH & Co KG, 1997.
Harris, j. et al. Towards responsible use of cognitive-enhancing drugs by the
healthy. Nature, n. 456, p. 702-705, 2008.
HARRIS, J.; QUIGLEY, M. Humans have always tried to improve their
condition. Nature, n. 451, p. 521, 2008.
HARTT, V. Febre de cérebro. Revista Educação, São Paulo, n. 129, 2008.
KANDEL, E. R. Biology and the future of psychoanalysis: a new intellectual
framework for psychiatry revisited. American Journal of Psychiatry, v. 156, n.
4, p. 505-524, 1999.
KRAMER, P. Ouvindo o Prozac: uma abordagem profunda e esclarecedora
sobre a “pílula da felicidade”. Rio de Janeiro: Record, 1994.
LAURENCE, J. Cérebro turbinado. Folha de São Paulo, São Paulo, 21 jun.
2009. Caderno Ciência.
ORTEGA, F. J. G.; VIDAL, F. Mapping the cerebral subject in contemporary
culture. RECIIS. Electronic Journal of Communication. Information &
Innovation in Health, v. 1, n. 2, p. 255-259, 2007. Disponível em:
<www.reciis.cict. ocruz.br/index.php/reciis/.../92>. Acesso em: 10 abr. 2011.
_______. O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas e cultura
contemporânea. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
RACINE, E; ILLES, J. Neuroethical responsibilities. e Canadian Journal of
Neurological Sciences, v. 33, n. 3, p. 269-277, 2006.
RAUSCHER, F. H.; SHAW, G.; KY; K. N. Listening to Mozart enhances
spatial-temporal reasoning: towards a neurophysiological basis.
Neuroscience Letters, v. 185, p. 44-47, 1995.
RIBEIRO, S. Um século depois, a vez do “NeuroFreud”. O Estado de São
Paulo, São Paulo, 2 dez. 2007.
ROSE, N. Neurochemical Selves. Society, v. 41, n. 1, p. 46- 59, 2003.
ROSENBERG, C. Contested boundaries: psychiatry, disease and diagnosis.
Perspectives in Biology and Medicine, v. 49, n. 3, p. 407-424, 2006.
SENNET, R. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001.
SHAW, G.; RAUSCHER, F. H.; KY; K. N. Music and spatial task
performance. Nature, n. 365, p. 611, 1993.
SOLMS, M. Preliminaries for an integration of psychoanalysis and
neuroscience. e British Psycho-Analytical Society Bulletin, v. 34, n. 9, p. 23-
37, 1998.
Steele, K. M.; Bass, K. E.; Crook, M. D. e mystery of the Mozart e ect:
failure to replicate. Psychological Science, v. 10, n. 4, 1999.
VIDAL, F. Le sujet cérébral: une esquisse historique et conceptuelle.
Psychiatrie, Sciences Humaines, Neurosciences, v. 3, n. 11, p. 37-48, 2005.
_______. Brainhood, anthropological gure of modernity. History of the
Human Sciences, v. 22, n. 1, p. 5-36, 2009.

1 Psicóloga,
Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da UERJ com estágio
de doutorado sanduíche no Instituto Max Planck de História das Ciências de Berlim, Alemanha, Pós-
doutoranda do IMS/UERJ, com apoio CAPES/FAPERJ.
O Eu somático: sobre os regimes
contemporâneos de visibilidade do corpo1
César Pessoa Pimentel2

Alma, consciência, mente. Uma longa tradição associou essas


palavras com uma interioridade que di cilmente poderia ser igualada ao
mundo natural. Apesar de manter relações com o corpo, frequentemente se
ouviu falar que esse mundo interior não é extenso e físico como, por
exemplo, um cachimbo, uma mesa ou uma cadeira. Na concepção religiosa,
concerne ao tempo um dos modos de separar matéria e psiquismo: a alma,
ao contrário do corpo, não perece. Diante do declínio dos sistemas
religiosos, a era moderna se apodera desse problema, passando a apreciá-lo
segundo um crivo cientí co. Ao nal do século XVIII, o acento materialista
encontrado em autores como Diderot liga o que pensamos e o que sentimos
à diversa constelação de mecanismos siológicos (CASSIRER, 1992), o que
não impediu, entretanto, que formas de marcar fronteiras entre o domínio
físico e o mental fossem delineadas. No cotidiano burguês do século XIX, a
ideia de personalidade serviu estrategicamente, abrindo e mantendo canais
de comunicação entre esses domínios, mas também mostrando a
necessidade de sua separação (SENNETT, 1989). Considerava-se que a
aparência do indivíduo – as roupas que vestia, seu comportamento e mesmo
sua compleição física – mostrava, ainda que contra sua vontade, aquilo que
pensava e sentia. A ideia de que aparência e essência se comunicam não era
de forma alguma estranha às pesquisas cientí cas, como se pode notar nos
métodos de dedução da personalidade a partir da caligra a ou da forma do
crânio que oresceram durante o século XIX. A decifração do interior a
partir do exterior se estenderá a métodos ativos ainda nos dias atuais. Caso
da obra de Freud e de boa parte do edifício psicanalítico para os quais um
sintoma exteriorizado e, muitas vezes, inscrito no corpo, remete à
interpretação de um
sentido que jaz inconsciente. Desta forma, é possível associar a verdade do
indivíduo ao corpo sem que a biologia esgote sua compreensão.3
Hoje, talvez se presencie o m dessa longa tradição. Difícil saber
com certeza o que estamos nos tornando, mas uma breve inspeção de nosso
cotidiano nos permite suspeitar. Em uma banca de jornal, não é difícil
encontrar notícias como essas: “A genética da paixão” (ABREU DE LIMA,
2008), “O cérebro é o espírito” (GRAIEB, 2007), “A anatomia das emoções”
(BUCHALLA, 2004), “O cérebro esse perdulário” (SOUZA; ZAKAB, 2007),
“Quando o cérebro é o médico” (BUCHALLA; NEIRA, 2006). Mesmo
caricaturais, essas manchetes divulgadas em revistas de ampla circulação
permitem perceber a presença de um vetor in uente em nossa cultura, que
faz do corpo e de sua visualização objeto de enorme interesse. O uso de
so sticadas tecnologias para o imageamento cerebral e o sequenciamento da
organização genética fazem com que a alma, mente ou consciência recebam
tratamento no qual se estreitam os laços entre psiquismo e corpo. Elas nos
levam um passo adiante em relação à era moderna. O corpo não é mais
simplesmente o lugar onde o psiquismo se expressa, mas coincide
perfeitamente com aquilo que se denomina mental: pensamento,
sentimentos, desejos e crenças (EHRENBERG 2004a; COSTA, 2004). Essa
concepção não está distante de nosso cotidiano. Quando se torna comum,
por exemplo, associar a angústia do deprimido a baixos níveis de serotonina
ou modular humor e afeto por meio de medicações, partilhamos uma forma
somática de compreensão e modi cação de si.
Assim como inscrito na corporeidade, o eu abre-se ao olhar. Dois
campos fundamentais para sua inscrição, as neurociências e a biologia
molecular, devem muito às tecnologias de visualização. A partir de técnicas
como tomogra a funcional computadorizada (Petscan) é possível ver não
somente a anatomia cerebral, mas observar como o cérebro funciona
durante tarefas nas quais indivíduos se concentram, recordam ou desejam.
Já o mapeamento da constituição genética encerra o projeto de tornar visível
o corpo em nível molecular, amparando a psiquiatria com critérios
biológicos para os transtornos mentais e dando possibilidade para uma
prescrição farmacológica personalizada (ROSE, 2007).
Diante esse processo, as ciências humanas vêm-se posicionando
criticamente. Uma das formas de problematizá-lo se pauta na
fenomenologia (ORTEGA, 2008). Com esse aporte teórico, o
desenvolvimento das ciências biomédicas é entendido pela tensão
fundamental entre duas fontes sensoriais pelas quais nos relacionamos com
o mundo, a saber, a visão e o tato. A história da medicina é narrada como
progressivo avanço da percepção visual sobre outros sentidos, que, iniciado
nas lições anatômicas praticadas no Renascimento, segue até os dias de hoje
com tecnologias que permitem ver o interior do corpo sem abri-lo. Todo o
problema repousa no tipo de intercâmbio proporcionado pela visão.
Enquanto o conhecimento extraído do toque exige a proximidade entre
sujeito e objeto, a imagem visual pode ser obtida à distância. Quando
privilegiamos a visão, as relações com o outro tendem a se depreciar, na
medida em que o observamos como evento inscrito no mundo natural.
Aplicando-se esse princípio à medicina, chega-se à conclusão de que as
tecnologias de imageria convertem o corpo vivo em corpo abstrato por
fragmentarem sua estrutura e funcionamento. Desse modo, é o corpo da
lição anatômica, segmentado e privado de relações com o mundo exterior,
corpo estático do cadáver, que se torna modelo para compreensão da vida.
Outra abordagem crítica toma como inspiração as pesquisas de
Foucault. Não se fala da visão em geral, mas de regimes de visibilidade. Pode-
se dizer que essa noção não envolve uma faculdade sensorial responsável
pelo trânsito de informações entre o organismo e o meio, designando um
conjunto de práticas sociais que, contanto funcionem em locais diferentes e
segundo nalidades especí cas, têm por comum o investimento sobre o
corpo na tentativa de torná-lo previsível. São de particular interesse aquelas
que, iniciadas no século XVII, se consolidam ao nal do século posterior.
Nesse momento assiste-se à passagem de um regime de visibilidade em que
os membros da aristocracia têm feitos narrados e sionomia representada
pictoricamente para um investimento sobre os corpos de homens comuns.
Nesse sistema de práticas de visibilidade, visa-se com maior atenção o
desviante da norma, trata-se de alunos ou trabalhadores indisciplinados, de
criminosos agressivos ou de enfermos acometidos por doenças contagiosas.
Buscando controlar em detalhes, o olhar perscruta seus corpos e chega até a
alma. Mais do que castigar e causar dor, torna-se interessante corrigir o
indivíduo, modi cando o que pensa e graduando a força de seus desejos.
Insiste-se, portanto, sobre uma dimensão psicológica que passa a ser objeto
de estudo e intervenção das ciências humanas. Em outros termos, a crítica
que Foucault lança à visão se dirige ao domínio no qual controle sobre os
corpos e conhecimento cientí co da alma aparecem indistintos.
A partir desse último referencial, propomos uma análise histórica da
identi cação entre subjetividade e biologia para a qual concorrem as
tecnologias de visualização do corpo. Focando a passagem dos regimes de
visibilidade modernos para os atuais, argumentamos que tal identi cação,
que vem sendo chamada de individualidade somática (ROSE, 2007),
personalidade somática (COSTA, 2004), self objetivo (DUMIT, 2004) ou
bioidentidade (ORTEGA, 2008), não corresponde exatamente a uma
hipervalorização do corpo. O elemento fundamental em jogo consiste no
aparecimento de novas formas de controlá-lo. Por comparação histórica,
tentamos mostrar que a singularidade do presente repousa sobre o incentivo
à autonomia e abertura ao prazer. Enquanto a era moderna apreendia a
existência humana repartindo-a entre indivíduos normais e anormais,
veremos que, mais do que corrigir desvios, pretende-se hoje dar meios ao
indivíduo de regulagem de seu corpo.4 Por m, destacamos a divulgação de
imagens e informações sobre nossa constituição biológica como mecanismo
central do regime de visibilidade contemporâneo.

I Olhar e controle sobre o corpo na modernidade


No século XIX se iniciam investigações cientí cas com uma
característica bastante peculiar. Nas recém-chegadas ciências humanas, o
sujeito procura apreender a si mesmo, tomando-se como campo objetivo, de
modo semelhante ao que foi feito pelas ciências naturais em relação ao
mundo natural. Foi bastante explorado o fato de seus métodos importarem
recursos das ciências naturais, como se pode perceber na psicologia
oitocentista alemã, em seu acento experimental e apelo à matemática.
Historicamente, porém, o quadro é diferente. No que concerne à origem,
pode-se dizer que a matriz do saber sobre o homem está ligada à inclusão do
que vinha sendo sistematicamente excluído da investigação cientí ca.5
Enquanto a observação das regularidades do mundo físico foi sustentada
pela abstração das características particulares dos fenômenos, as
regularidades humanas tornaram-se acessíveis quando as variações
individuais foram transpostas para o terreno do conhecimento e da
intervenção.
Para notar o deslizamento em jogo, convém passar do campo das
ideias cientí cas para o das práticas sociais modernas. Nelas nos deparamos
com o que Foucault (2001) denominou panoptismo. Na segunda metade do
século XVIII, o jurista e lósofo Jeremy Bentham, em uma série de cartas,
descreve um projeto arquitetônico que faria transparente o comportamento
de um grande número de pessoas. Denominando-o panóptico, Bentham
busca induzir a sensação de estar sendo observado por meio de um uso
muito especí co do espaço e da luz. Com uma torre erguida no centro de
uma construção periférica, dividida em celas com janelas abertas tanto para
o exterior quanto para a torre central, a luz que provém do ambiente externo
atravessa o panóptico deixando os habitantes das celas visíveis a todo
instante. Curiosamente, não é a obscuridade típica das masmorras que dá o
tom sombrio a essa construção, mas sua abertura à luz. A visibilidade é a
chave desse mecanismo de poder.
Outro traço interessante dessa construção é a versatilidade. Aplica-se
a toda instituição na qual se deseje organizar e conhecer multiplicidades
humanas em escala aprimorada de detalhe. Dessa forma, não se deve
estranhar que no século XIX muitas escolas, fábricas, quartéis, prisões e
hospitais, ainda que guiados por nalidades diversas, ostentem estrutura
arquitetônica similar. A distribuição espacial, seguindo o modelo elaborado
por Bentham, favorecia o exame, a vigilância e a avaliação de grupos
numerosos. Simultaneamente pulverizado e minucioso, o regime de
visibilidade atingia o comportamento de cada elemento do grupo,
implicando sua individualização. Não importa quão fossem extensas as
classes de uma escola, as linhas de produção de uma fábrica, os leitos de um
hospital ou as celas de uma prisão, o engenho panóptico procurava liberar as
particularidades para um conhecimento e controle rigorosos.
Tendo servido de inspiração para as instituições modernas, a
visibilidade passa a ser orientada pela repartição entre normal e anormal.
Um aspecto intrigante da norma ressaltado por Canguilhem (1995) é que ela
não existe naturalmente, mas é produzida a partir do desvio. “Uma norma,
na experiência antropológica, não pode ser original. A regra só começa a ser
regra fazendo regra e essa função de correção surge da própria infração”
(CANGUILHEM, 1995, p. 213). Aparentemente abstrata, essa formulação
losó ca dá conta da economia do olhar na modernidade. Dentro das
instituições, a atenção mais intensa, contínua e re nada é dirigida aos
desviantes, sejam estes os adoentados mais severos, os alunos problemáticos,
os presos agressivos ou os trabalhadores indisciplinados. A visibilidade é,
portanto, desigual.
O conhecimento do desvio, contudo, não se limita ao
comportamento. Envolve também a alma. O aprisionamento na
modernidade assinala com clareza como o poder invade a dimensão íntima.
Quando observamos as formas de punição anteriores ao século XIX, não é
difícil se chocar com o grau de violência empregado. Espetáculos de dor
compunham obrigatoriamente a aplicação da pena sobre corpos submetidos
a esquartejamento, amputação ou marcados por ferro quente. Na aplicação
do sofrimento físico era depositada a esperança de inibição do crime.
Quando esse quadro muda, o rito punitivo é desvinculado das marcas físicas
e o castigo por excelência torna-se a detenção. Surge também um novo
objetivo: recuperar o indivíduo. Agora, já não se trata tanto de inibir o gesto
desviante exercendo violência física, mas de incutir padrões do que se deve
ou não fazer. Esse objetivo traz o psiquismo para o centro da cena. A gura
do desviante passa a agregar variáveis que ultrapassam o comportamento,
envolvendo a história passada e a constituição psicológica às quais se atribui
a causalidade do desvio. O desejo, os pensamentos e as crenças tornam-se
objetos interessantes para a avaliação e previsão do comportamento
criminoso.
A dimensão subjetiva é reforçada em muitas outras áreas nas quais a
repartição entre normalidade e anormalidade se apresenta. A psiquiatria,
por exemplo, desempenha importante papel no controle dos indivíduos. No
século XIX, ela introduz a ideia de alienação no lugar da desrazão, fazendo
da loucura um estado que pode ser tratado e curado. No registro da
desrazão, o louco era um ser destituído de humanidade, já no da alienação, é
um ser humano que foi privado de capacidade de escolha por motivos que
podem ser determinados e estudados. A ideia de instinto e de sexualidade
são focos de pesquisas. Diz-se que a loucura é patologia da liberdade, onde
os instintos dominam os estratos mais elevados do espírito. Daí uma busca
intensa por regular a vida sexual dos indivíduos levada por campanhas
públicas sobre os perigos da masturbação infantil, da frieza histérica e dos
comportamentos perversos (FOUCAULT, 2005). Tratava-se de normalizar o
desejo e isso envolvia a investigação dos conteúdos ideativos dos
transtornos, na medida em que sexualidade, ainda que possua fonte
biológica, se exprime em hábitos e pensamentos. Certamente foram feitos
muitos esforços para equipar a psiquiatria com os recursos da medicina
clínica, como, por exemplo, abrindo-se corpos de pacientes psiquiátricos
após a morte na busca de alterações na estrutura cerebral. Malsucedidos,
esses procedimentos acabaram cedendo perante a divisão entre neurologia e
psiquiatria (ROSE, 2007). Enquanto a primeira investiga alterações mentais
ligadas a modi cações anatômicas do cérebro – doenças da lesão –, a
segunda trata de doenças sem correlato anatômico – doenças da função
(EHRENBERG, 2004a).

II A difusão das imagens corporais


A princípio amparado pela arquitetura, o olhar, no decorrer do
século XIX, é munido de mecanismos que ampliam ou facilitam sua
penetração. No campo da medicina são criados instrumentos como o
estetoscópio, acessando as profundas camadas do corpo sem uso de incisão
cirúrgica. A segunda metade do século XIX origina aparatos de registro da
estrutura do organismo onde a profundidade do corpo é registrada em
superfícies, de forma semelhante à fotogra a. Uma de suas principais
expressões, os raios X, representam um avanço na facilidade em se observar
o interior do organismo (VIEIRA, 2003). Da segunda metade do século XX
em diante, proliferam tecnologias de visualização do corpo, tais como a
ultrassonogra a, a tomogra a computadorizada, a tomogra a de
ressonância magnética e a tomogra a por emissão de pósitrons. Um dos
aspectos intrigantes nesses aparatos de imageria é a possibilidade de se
visualizar o corpo não apenas em sua estrutura, mas em sua função,
substituindo a centralidade da autópsia para decifrar os mecanismos
subjacentes às patologias (DUMIT, 2004).
A tomogra a por emissão de pósitron, também conhecida como
Petscan, apresenta uma característica singular. Trata-se de um aparelho
capaz de produzir imagens do funcionamento metabólico de qualquer órgão
do corpo, mas, quando aplicado à investigação neurocientí ca, permite que
psiquismo e constituição biológica, pensamento e matéria sejam estudados
pelos mesmos princípios. Con gura a base tecnológica de um projeto
neurocientí co de compreensão das doenças mentais segundo noções
orgânicas. A tentativa, se bem sucedida, aproximará a psiquiatria e a
neurologia, transformando doenças de função em doenças de lesão. Além
disso, as Petscan impulsionam pesquisas sobre comportamento e fatores
psíquicos, versando sobre conduta amorosa, diversas espécies de compulsão
(droga, compras, sexo etc), sentimentos morais e até mesmo crenças
religiosas (EHRENBERG, 2004a).
O mapeamento do genoma caminha no mesmo sentido, obtendo
sobreposições entre subjetividade e constituição biológica. Em 2002, a
Associação Psiquiátrica Americana publicou um volume dedicado ao futuro
das classi cações dos transtornos mentais (ROSE, 2007). Embora
reconheçam que, até aquele momento, as neuroimagens e o conhecimento
genético tenham produzido raros resultados úteis para a classi cação e a
terapia psiquiátrica, os pesquisadores projetam que esse quadro será
rapidamente revertido. As pesquisas genéticas, frisam os autores,
remodelarão os critérios diagnósticos. Em vez de pautados no
comportamento visível dos pacientes, como é feito na classi cação
psiquiátrica preponderante nos Estados Unidos (DSM-IV), esses critérios
terão forte acento biológico. Acredita-se que desse modo serão revelados
diversos subtipos de depressão ainda não diagnosticados, impulsionando a
fabricação de remédios com base no per l genético do paciente. Há um
segundo aspecto interessante da visualização do genoma. Seu conhecimento
inspira um desdobramento das já conhecidas práticas médicas de prevenção,
dando origem à medicina preditiva (RUFFIÉ, 1992). O objeto dessa prática
não é a patologia expressa por sintomas, tampouco a doença em estágio
inicial, mas a interação entre fatores ambientais e propensões genéticas ao
adoecimento. Visando essas probabilidades, pretende-se ampliar o domínio
humano sobre o que era considerado destino, ou seja, a constituição
biológica. De certa forma, a intenção é fazer do corpo um produto talhado
por mãos humanas, no qual se exprime o estilo de vida e o autocontrole
individual (ORTEGA, 2008).
Esse processo de contínuo desvelamento do corpo altera o nexo
entre olhar e sofrimento. Na era moderna, o corpo do desviante atraía maior
atenção. O corpo enfermo, por exemplo, era inspecionado clinicamente,
sendo muitas vezes separado dos demais e internado em leitos hospitalares.
O corpo saudável, ao contrário, permanecia fora de foco. De certa forma,
havia uma lógica presidindo a aproximação e o distanciamento do médico:
quanto maior o sofrimento, mais detalhada a inspeção. A partir de 1856,
quando a anestesia é inventada, essa lógica deixa de funcionar do mesmo
modo. Desde então, torna-se possível acessar o interior do corpo de forma
indolor, procedimento cada vez mais favorecido por tecnologias que
permitem vê-lo sem a necessidade de secção. Paulatinamente liberto da
incisão cirúrgica, o olhar médico aborda o indivíduo prescindindo da
mediação do sofrimento.
Quando nos voltamos para o conjunto mais amplo das práticas
sociais, não é difícil notar que a desvalorização da dor extrapola a medicina.
O fenômeno aponta para uma mudança mais ampla nos valores culturais
(BIRMAN, 2006). Em oposição ao panoptismo moderno, no qual padrões
bem de nidos de normalidade são impostos, a segunda metade do século
XX vivenciou um abalo no qual as pressões da sociedade são viradas ao
avesso. Os constrangimentos ao desejo saem de cena. A visão da
homossexualidade é emblemática da passagem em jogo: em vez de desvio,
passamos a conceber o desejo pelo mesmo sexo como uma forma entre
tantas outras de relação com o outro. Se as formas de obtenção do prazer são
múltiplas, nenhuma delas deve ser imposta como padrão normativo.
Quando algumas são tratadas como problemas, não o são em si, mas pelos
efeitos que geram sobre a autonomia do próprio indivíduo ou a autonomia
do outro.6
Na medida em que prazer e autonomia aparecem como objetivos
proeminentes da atualidade, grandes esforços são enviados para que se
tornem alcançáveis. Uma importante estratégia aparece no domínio da
saúde mental, na qual a signi cação do sofrimento psíquico se amplia.
Enquanto, no passado, essa ideia esteve ligada a pacientes muito particulares
e ao hospital psiquiátrico, hoje uma lista de transtornos que podem afetar a
qualquer um se estende cada vez mais. Depressão, stress pós-traumático,
transtorno obsessivo-compulsivo, ataques de pânico, vícios proteiformes
(relacionados a drogas, alimentação, jogo, sexo, consumo etc.), ansiedade
generalizada, síndrome de fadiga crônica, condutas de risco, impulsos
violentos e suicidas e psicopatias são alguns dos distúrbios reconhecidos
pela psiquiatria nos últimos 30 anos (EHRENBERG, 2004a).
Na categoria de stress pós-traumático ca evidente o processo em
pauta. Se nela se apresentam vestígios da ideia de trauma, já não se trata
mais da visão psicanalítica que vincula a ansiedade às fantasias do indivíduo.
Para Freud e outros psicanalistas, a experiência de um acontecimento
intolerável é remontada à constituição psíquica, de forma que nenhum
evento pode ser considerado causa su ciente do trauma. A ideia de
causalidade é uma inovação da psiquiatria norte-americana, que a partir da
terceira versão de seu manual (DSM-III, lançado em 1980) abriga a noção
de transtorno pós-traumático. Nessa categoria, o traumatismo passa a ser
um efeito de um “encontro injusto entre um homem comum e um evento
fora do comum” (RECHTMAN, 2005, p. 184). Se o acontecimento é capaz
de provocar um transtorno mental, não existe nada de excepcional com o
indivíduo, este se torna um mero “portador”. Libera-se, assim, o vínculo
entre sofrimento psíquico e estigma social que marcou a psiquiatria
moderna. “O sofrimento era um elemento da psicose, hoje a psicose é um
elemento do sofrimento”, diz Ehrenberg (2004b, p. 145), sintetizando a
ruptura.
O fascínio pela visão do corpo pode ser melhor compreendido
diante dessas transformações. Em uma sociedade na qual o prazer é exigido,
as neurociências e a biologia molecular contribuem combatendo os
empecilhos que podem impedir ou adiar sua fruição. Pela compreensão
neuroquímica do cérebro, a dor psíquica é objetivada, ganhando o estatuto
de uma dor física (FRAZER, 2001). O conhecimento genético proporciona a
visão de um tipo de sofrimento que não está presente, a não ser no plano
virtual, como risco genético. Além de conhecer e localizar o sofrimento, a
ideia principal é que possamos modi cá-lo, evitando que o distúrbio
apareça ou adquira formas mais graves.

III Olhar e controle sobre o corpo na contemporaneidade


Outra questão importante concerne ao modo como funcionam os
regimes de visibilidade. Diante da crise da disciplina, o poder não atua mais,
como no século XIX, sob a forma de vigilância hierárquica. Disposta
segundo o modelo da torre panóptica, a autoridade aí envolvida impunha
padrões de conduta e constrangia o desejo a passar por determinados
caminhos. Diante de um indivíduo que toma o prazer como uma espécie de
direito, as formas de controle terão de ser exíveis. No lugar da vigilância
hierárquica e da imposição de padrões, uma estratégia mais condizente com
a valorização do prazer é a divulgação de informações. Os meios de
comunicação, em vez de forçarem a adaptação do indivíduo a normas,
opinam, mostram, sugerem o que deve ser feito (BAUMAN, 2001). Não que
deixem de atuar moralmente, mas isso é feito de outro modo, incitando o
sujeito a deliberar sobre si mesmo. Aderem a um novo regime de controle:
informar e responsabilizar em vez de vigiar e impor padrões (BRUNO, 1997;
VAZ et al., 2006).
Em relação às notícias sobre a saúde, a harmonização entre cuidado
com o corpo e prazer é um traço marcante. As condutas recomendadas,
ainda que partam da ideia de que o sofrimento está constantemente presente
no cotidiano, enfatizam os ganhos que podem ser obtidos pelo
conhecimento do corpo. Longevidade, boa forma física, otimização da
saúde, melhoria das capacidades cognitivas, autocontrole: uma ampla gama
de vantagens acompanha a descrição jornalística das pesquisas cientí cas.
Além de frisar os ganhos terapêuticos, as notícias muitas vezes prescrevem
medidas em conformidade ao prazer. Estrategicamente não propõem
grandes sacrifícios, gastos ou abstenções (VAZ et al., 2006). O mesmo
acontece em relação à autonomia: no lugar de impor medidas, faz parte da
tendência atual estimular a capacidade do indivíduo de decidir sobre si.
Na abordagem jornalística da depressão isso se apresenta com
constância (EHRENBERG, 1998). Nos anos 1960, o procedimento típico era
tratar o leitor como alguém que desconhece seu problema, sendo incapaz de
achar soluções. Ao jornalista cabia impor regras de vida que ajustavam a
escolha individual aos padrões coletivos. Ao nal da década, esse modo de
aconselhamento sofreu modi cações. A retórica jornalística muda sua
forma, “não se pode responder a questão ‘o que fazer?’, sem
simultaneamente perguntar: ‘quem sou eu’?” (EHRENBERG, 1998, p. 149).
O enfoque do sofrimento toma um rumo intimista, em que o indivíduo é
convidado a mergulhar em si mesmo na busca de soluções.
A proposta de olhar para si mesmo guarda uma característica
curiosa. Para que o indivíduo a efetue, são lançados dois recursos. Em
primeiro lugar, a mídia desculpabiliza: em vez de preguiçoso, o deprimido é
tratado como vítima de fatores psíquicos, orgânicos e ambientais que
comprometem seu autocontrole. Trata-se de uma condição que escapa a seu
livre-arbítrio. Em segundo, doam-se meios de entendimento do que
acontece em seu interior, de nindo-se uma espécie de “gramática da
intimidade”, pela qual sentimentos de incapacidade e a necessidade de
autoestima são como fotografados e expostos, permitindo que o leitor acesse
o seu mal-estar segundo termos compartilhados coletivamente. Mas a
intimidade a ser acessada não envolve mais o inconsciente, as paixões ou o
desejo. Trata-se antes de localizá-la organicamente. As emoções, a decisão e
o comportamento social vêm sendo crescentemente submetidas a roupagens
sicalistas, reportadas mais aos neurônios e neurotransmissores do que aos
con itos psicológicos (COSTA, 2004). Diz-se que o deprimido, antes que
marcado por uma experiência angustiante, sofre de “de ciência de
serotonina”.
As imagens cerebrais reforçam esse tipo de compreensão do
sofrimento. Uma aparição precoce dessas imagens na revista Vogue permite
que o notemos. Publicada no início da década de 1980, a reportagem
“Revolução tecnológica na medicina. Novas máquinas de ver. Olhe dentro
do seu corpo, isso pode salvar sua vida” vinha acompanhada por três guras
de cérebro, representadas como aparecem nas Petscan (DUMIT, 2004, p. 4).
Cada uma exibe legendas, onde se pode ler normal, esquizofrênico e
deprimido. Conhecimento de si mesmo e visão do cérebro são vinculados,
bem como personalidade e funcionamento orgânico. Como insiste a
manchete, vendo essas imagens estaríamos não somente em condições de
entender a causa do sofrimento, mas também de modi cá-la. Elas valorizam
uma postura ativa diante da doença: não esperar sua manifestação, mas
conhecê-la antes do surgimento de sintomas.
Igualmente persuasiva, a manchete da revista Veja, “Genética não é
destino” faz referência a “uma revolução extraordinária para a medicina”7
(CARELLI, 2009, p. 87). Combate aos cânceres, medicamentos construídos
segundo o per l genético, retardamento do envelhecimento e diagnóstico
precoce de diversas patologias são alguns dos benefícios enumerados.
Citada como maior descoberta do mapeamento do genoma, a in uência do
meio ambiente e do estilo de vida sobre a hereditariedade moveria todos
esses avanços. Com ela, abrem-se diversas possibilidades de interferir sobre
nossa natureza. E na mesma medida em que o peso da hereditariedade se
desfaz, aumentam as responsabilidades sobre o corpo: “o tipo de
alimentação, o nível de atividade física, o tabagismo, o uso de
medicamentos, as experiências emocionais” atuam sobre os genes de modo
a torná-los ativos ou não (CARELLI, 2009, p. 91). Impressiona como tal
responsabilidade se estende a patologias que não estão expressas. Um
exemplo dado na reportagem apresenta um empresário que, mesmo sem
consumir bebidas alcoólicas, frequenta um grupo de apoio por saber que
seu pai e seu avô apresentaram sérios problemas ligados ao alcoolismo.
A genética não é destino e a natureza não é mais imutável. Quando o
cérebro pode ser modi cado quimicamente e a genética abre-se à escolha
humana, o sentido da natureza também é modi cado. Pode-se dizer que, na
era moderna, um dos atributos do mundo natural era a constância ou a
imutabilidade, enquanto a cultura estava ligada às variações e à
maleabilidade (FRAZER, 2001). Hoje esses domínios não estão mais
afastados, pois o corpo é tratado como artefato potencialmente modelável
pelas mãos humanas. O indivíduo, que tem sua identidade de nida em um
plano tão aberto, se depara com um vasto conjunto de obrigações. Gerir sua
saúde, mesmo quando não há patologia, tratar de seu psiquismo como se
fosse uma dor física. Somos assim atrelados a uma dívida, talvez impagável,
da qual tentamos nos livrar absorvendo informações e imagens sobre o
corpo. Nesse sentido, suspeitamos que o aspecto problemático fundamental
da individualidade somática não resida no estreito laço entre psiquismo e
biologia, mas no fato de a natureza biológica ter-se tornado um plano aberto
às escolhas humanas, obrigando-nos a estar sempre atentos ao sofrimento.

Referências
ABREU DE LIMA, R. A genética da paixão. Veja, São Paulo, ed. 2061, p. 84-
89, 2008.
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001.
BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de
subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
BRUNO, F. Do sexual ao virtual. São Paulo: Unimarcos, 1997.
BUCHALLA, A. P. O cérebro devassado. Veja, São Paulo, ed. 1865, p. 124-
131, 2004.
_______; NEIRA, P. Quando o cérebro é o médico. Veja, São Paulo, ed.
1962, p. 54-58, 2006.
CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Tradução Maria ereza Redig
de C. Barrocas. Rio de Janeiro: Forense, 1995. (Original publicado em 1963).
CARELLI, G. Genética não é espelho. Veja, São Paulo, ed. 2109, p. 86-92,
2009.
CASSIRER, E. A loso a do iluminismo. Tradução Álvaro Cabral. Campinas:
Editora da Unicamp, 1992. (Original publicado em 1932).
COSTA, J. F. O vestígio e a aura. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.
DELEUZE, G. Post- scriptum sobre as sociedades de controle. In: _______.
Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. p. 219-226.
DUMIT, J. Picturing personhood: brain scans and biomedical identity. New
Jersey: Princeton University Press, 2004.
EHRENBERG, A. La fatigue d`être soi. Paris: Odilon Jacob, 1998.
_______. Le sujet cérebral. Esprit, p. 130-155, nov. 2004a.
_______. Les changements de la relation normal-patologique: à propos de la
sou rance psychique et de la santé mentale. Esprit, p-133-156, mai. 2004b.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2001.
_______. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal,
2005. vol. 1.
FRAZER, M. e nature of Prozac. History of the Human Sciences, v. 14, n. 3,
p. 56-84, 2001.
GRAIEB, C. O cérebro é o espírito. Veja, ed. 2027, p. 73-78, 2007.
KRISTEVA, J. As novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
ORTEGA, F. O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas e cultura
contemporânea. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
RECHTMAN, R. Du traumatisme à la victime: une construction
psychiatrique de l`intolerable. In: BOURDELAIS, Pierre; FASSIN, Didier
(Ed.). Les constructions de l`intolérable. Paris: La Découverte, 2005. p. 165-
196.
ROSE, N. e politics of life itself: biomedicine, power, and subjectivity in the
twenty- rst century. New Jersey: Princeton University Press, 2007.
RUFFIÉ, J. La naissance de la medicine préditive. Paris: Odilon Jacob, 1992.
SENNETT, R. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Rio de
Janeiro: Companhia das Letras, 1989.
SOUZA, O. ; ZAKAB, R. O cérebro esse perdulário. Veja, São Paulo, ed. 1993,
p. 76-80, 2007.
VAZ, P. et al. O poder do indivíduo frente ao sofrimento: representações das
doenças cardiovasculares na mídia. In: FREIRE FILHO, João; VAZ, Paulo
(Org.). Construções do tempo e do outro: representações e discursos
midiáticos sobre a alteridade. Rio de Janeiro: Mauad, 2006. p. 13-35.
VIEIRA, J. L. Anatomias do visível: cinema, corpo e a máquina da cção
cientí ca. In: NOVAES, A. (Org.). O homem máquina: a ciência manipula o
corpo. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2003.
1O autor agradece ao CNPq pelo apoio nanceiro concedido à pesquisa “Visualizando o eu: nexos
entre neurociências, biotecnologias e meios de comunicação”, realizada na escola de comunicação da
UFRJ.
2 ProfessorVisitante do Instituto de Psicologia da UFRJ e Professor do Curso de Psicologia da
Faculdade SEFLU. Pós-doutor em Teoria da Comunicação pela ECO/UFRJ. Doutor em
Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
3 “Freud situa-se na mesma corrente, reivindicando explicitamente um dualismo losó co.
Entendamos, nesse postulado, o estabelecimento de um ‘aparelho psíquico’ como construção teórica
irredutível ao corpo, submetida às in uências biológicas, mas essencialmente observável nas
estruturas da linguagem.” (KRISTEVA, 2002, p. 10-11).
4A distinção que faço aqui entre modernidade e atualidade está ligada à diferença estabelecida por
Deleuze (1992) entre sociedades disciplinares e sociedades de controle. Essas diferenças, retomadas e
aprofundadas por autores como Ehrenberg (1998) e Rose (2007), abordam o problema do poder e do
sujeito. Enquanto na era moderna vigoravam modos disciplinares de poder, onde se cuidava do
indivíduo ao mesmo tempo que se moldava sua conduta a padrões bem de nidos, o controle atual
não funciona mais pela tutela, mas pela incitação à autonomia e ao autodesenvolvimento. No entanto,
como esses processos não são condicionados por moldes xos, o sujeito encontra-se em um perpétuo
esforço para conseguir ser bom trabalhador, aluno ou estar em boa saúde. Em outros termos, estamos
sempre endividados dentro desses mecanismos de controle.
5 Foucault (2001, p. 186) frisa as diferentes matrizes históricas que concernem às ciências da natureza e
às ciências do homem: “o que esse inquérito político-jurídico, administrativo e criminal, religioso e
leigo foi para as ciências da natureza, a análise disciplinar foi para as ciências do homem. Essas
ciências com que nossa humanidade se encanta há mais de um século têm sua matriz técnica na
minúcia tateante e maldosa das disciplinas e de suas investigações.”
6 Pedo lia e drogadição são exemplos de condutas desabonadas na sociedade contemporânea. Na
primeira, é a autonomia precária do outro que proíbe a obtenção de prazer, na segunda, o
comprometimento da autonomia do próprio indivíduo. Sobre a relação entre autonomia e
classi cação psiquiátrica, conferir Ehrenberg (1998).
7A capa apresenta essa manchete, enquanto a reportagem interna vem intitulada como “Genética não é
espelho”.
Parte IV: O espaço político aberto pela
literatura

Para uma ontologia política da leitura literária


Leonardo Pinto de Almeida1

1. Introdução
A literatura é uma forma de atualização do ser da linguagem muito
particular. Ela não estaria a serviço da utilidade. Ela não é experimentada
como uma linguagem que tem seu m fora de sua experiência. Ela não
existe para nos dar informações precisas sobre a vida à nossa volta. Ela não
materializa regras e funcionalidades da linguagem padronizada. Se
pudéssemos falar algo sobre a característica principal da literatura,
a rmaríamos que ela vem à luz não para con rmar nossos ideais nem para
dizer o que devemos ou não fazer de nossas vidas, mas para elaborar uma
experiência intensa que possibilita o questionamento do mundo e de nós
mesmos. Daí, a possibilidade de ela produzir mudanças subjetivas no sujeito
que mergulha em seu campo experiencial.
Quando pensamos na experiência literária, devido a esta
característica, em que observamos ser ela uma atividade que tem seu m
nela mesma, nos encontramos com um modo de ser da linguagem muito
diferente de seu uso cotidiano. Quando tomamos um jornal para lermos, ele
nos interpela enquanto sujeito e nos demanda resposta, já que reproduz
palavras de ordem que circundam em nossa sociedade. Ele requer nossa
opinião, nossas convicções enquanto cidadãos. Assim sendo, quando lemos
sobre um crime nos perguntamos sobre a condição do crime. Somos
convocados pela moral vigente a darmos nossa opinião ou tomarmos
partido daquele fato capturado pelo jornalista. As informações alimentam as
palavras de ordem da sociedade e sua moral. Elas fabricam convicções e as
atrelam ao sujeito contemporâneo tão afeito a estas croni cações
linguageiras.
No entanto, a leitura literária coloca em questão estas convicções que
circundam nossa vida no dia a dia. A experiência literária não nos interpela
enquanto pessoa, mas sim enquanto processo, enquanto elemento de um
espaço em que ressoam componentes subjetivos e textuais na produção da
subjetividade e do sentido. Quando nos deparamos com os crimes
hediondos de Raskolnikov, não somos convocados a execrá-lo como
criminoso, mas a pensarmos e até a entendermos os motivos de seu crime.
Este livro de Dostoiewski (1982), intitulado Crime e Castigo, produz junto
ao leitor um encontro singular. Este acontecimento produz um
questionamento profundo dos limites que o atravessam enquanto sujeito:
seus hábitos e suas convicções.
Esta diferença ocorre porque no jornal e nas obras de informação em
geral o sentido dado e o sentimento estão, muitas vezes, apartados ou não
são produzidos concomitantemente por causa da falta do processo de
identi cação com os sujeitos da informação. Já a literatura abre um espaço
de experimentação em que o sentimento e o sentido andam de mãos dadas.
Quando somos convocados por um sentimento ou uma emoção produzida
pela apresentação de um personagem, este sentimento é o próprio modo de
ser do sentido manifestado.
O espaço literário seria assim um espaço de experimentação e de
produção de singularidades. Um espaço que possibilita uma experiência
desviante em relação às normas e às regras de nossa sociedade, uma
experiência de resistência às repetições de comportamentos e de
pensamentos produzidos pela dinâmica do mundo contemporâneo, regido
por aquilo que Blanchot (1969) chamou muito propriamente de linguagem
de poder.
Atualmente, vemos como a normatização de nossa sociedade é
resultado dos inúmeros dispositivos de poder que nos cercam. Eles tomam o
indivíduo moderno e o enquadram segundo a dinâmica hegemônica
reinante.
A sociedade, por intermédio de sua maquinaria, produz
comportamentos mecanizados e repetitivos os quais podemos nomear de
hábitos e pensamentos recorrentes que seguem as políticas de massa que
chamaremos aqui de convicções. Muitos dos sofrimentos que assolam o
homem moderno surgem destas repetições. Os homens e suas repetições
comportamentais e mentais, esta seria uma das molas principais que movem
a re exão psicológica principalmente associada à problemática clínica. A
clínica seria uma tentativa de criar um espaço de experimentação desviante
que coloca as forças repetitivas de nossos hábitos e comportamentos em
questão.
Pois bem, já que nosso olhar se sustém em uma preocupação
psicológica e nosso objeto de estudo é a experiência literária, mas
propriamente a experiência leitora, observaremos, ao longo do presente
artigo, como a experiência literária pode caracterizar uma experiência
desviante e um foco de resistência às repetições dos hábitos e das convicções
sociais, comportamentais, mentais e culturais, impostas pela cultura de
massa em uma associação com uma certa crítica especializada que tentam
normatizar a experiência, calando o espaço de ressonância aberto pela
literatura.
Mas como a leitura poderia ser fruto de um encontro e produzir um
campo de experimentação ao mesmo tempo? Esta experiência, por ser um
foco de resistência, apontaria para um modo particular de política? Quais
seriam as consequências disto para a produção de subjetividade?
Este texto tem como objetivo trazer à luz uma re exão acerca de
uma política da subjetividade ligada ao espaço de ressonância aberto pela
experiência literária.
Para estabelecermos um modo de compreensão acerca da relação
entre a experiência literária, o espaço de ressonância, a subjetividade e a
política, partiremos do espaço aberto pela literatura, pensando as relações
entre a linguagem, a leitura e a resistência aos padrões mentais,
comportamentais, linguísticos e sociais, facilitadas pela experiência literária.

2. Experiência literária
Na tese de doutorado intitulada Escrita e Leitura: a produção de
subjetividade na experiência literária (2007), analisamos a relação entre a
produção de subjetividade e a experiência literária, examinando a dinâmica
dos papéis do autor, do escritor, do leitor e do crítico para apresentarmos
um entendimento acerca da experiência literária e dos mecanismos de
captura que a a igem em nome da cultura e da crítica. Observamos o caráter
normatizador da interpretação e de certa postura da crítica especializada
que cala a potencialidade experiencial da literatura.
O caráter ambivalente e paradoxal da linguagem atravessou
completamente nossa discussão. Tal caráter indica que a linguagem
comporta, ao mesmo tempo, formas de automatismos, de hábitos
linguageiros e de ordem, assim como de criações, de liberdades e de
rebeldia. Esta característica re ete a própria condição humana e, por
conseguinte, engloba a literatura e suas formas de captura e apreensão.
Vimos que estes vetores de transgressão e de limitação produzem
personagens diferentes na trama literária, estando o autor e o crítico a
serviço da linguagem do poder que captura a literatura, e o escritor e o leitor
seriam estes que acolhem a obra, constituindo-se e desaparecendo em seu
encontro com o fora nas experiências totais do escrever e do ler. Assim,
sublinhamos que o escritor e o leitor são produtos do encontro com a obra,
enquanto o autor e o crítico existem em função do trabalho de controle e
domínio sobre a criação.
Desse modo, observamos que na linguagem existem vetores de
criação e de aprisionamento. A literatura, o desaparecimento do escritor, a
evanescência do leitor, o desmoronamento da linguagem cotidiana, o
desmantelamento da obra, a morte do autor e as experiências totais do ler e
do escrever, estariam associados a este potencial transgressivo e criativo dos
vetores que atravessam a linguagem, enquanto a mitologia autoral, a
essencialização da obra, a explicação, a compreensão, a interpretação, a
informação, os conceitos críticos, os processos de uni cação e de
sistematização da literatura seriam fruto dos vetores de captura da
linguagem.
Neste momento, gostaríamos de pensar a experiência literária sob
outro ponto, explorando uma dimensão deixada de lado na tese de
doutorado: a dimensão política e ética da experiência literária, mais
precisamente no âmbito da leitura.
Para isso, nos valeremos das re exões sobre política e ética de
Deleuze e de Foucault, para construirmos a imagem da literatura como foco
de resistência às rami cações de poder que atravessam o homem moderno
hodiernamente. E também examinaremos, com estes autores, junto ao
pensamento blanchotiano, o papel da literatura no processo de mudança
subjetiva derivado do encontro do leitor com o texto literário, já que este
último possibilita o questionamento de si e do mundo que nos circunda.

3. O estado de minoridade e a Ausgang Moderna


Em O que são as luzes, Foucault (2006), analisando um artigo
kantiano intitulado “Was ist Au lãrung?”, segue a re exão de Kant em sua
busca pela caracterização da Au lãrung.2 Será ela uma época a que certos
homens pertencem, um acontecimento do qual pudéssemos perceber sinais
ou a realização de algo importante?
Antes de tudo, a Au lãrung é, para Kant, uma Ausgang, uma saída.
Uma saída do estado de menoridade que se caracterizaria pela obediência
cega aos auspícios do poder. Assim, segundo Foucault, este texto kantiano
abre precedente para um uso importante da loso a: o de pensar o próprio
presente no qual estamos inseridos.3
Deste modo, a Au lãrung seria uma atitude, um modo de relação
com o estado de coisas concernente à atualidade. Ele se caracterizaria como
uma atitude que possibilitaria libertar o homem do estado da menoridade.
Uma atitude que produz uma mundança subjetiva em relação ao poder,
sendo uma saída deste estado aprisionado para uma condição de
maioridade que seria assim o uso legítimo da razão. Em Resposta à pergunta:
Que é “Esclarecimento”?, Kant (2005) caracteriza a Au lãrung “como uma
atitude que requer coragem e ousadia para se desvencilhar das correntes que
direcionam a vida do sujeito moderno.”
Esclarecimento (Au lãrung) é a saída do homem de sua menoridade,
da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer
uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é
o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na
falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem de servir-se
de si mesmo sem a direção de outro. Sapere aude! Tem coragem de
fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento
(Au lãrung). (KANT, 2005, p. 63-64)

A Au lãrung estaria intrinsecamente associada a uma atitude que


busca a liberdade e a maioridade. Uma tarefa de difícil feita, pois depende de
coragem e de ousadia no uso da razão.
Ao examinar este problema levantado por Kant, Foucault re ete
sobre a atitude moderna re etida pela obra de Baudelaire. Para ele, a
Au lãrung seria a própria atitude moderna entendida como ruptura com a
tradição e como emergência da novidade.
Neste ponto em que analisa as vicissitudes do homem moderno, ele
salienta que a atitude moderna é a tarefa de elaborar a si mesmo por meio da
prática da liberdade. Por este motivo, a modernidade para Foucault, neste
texto de 1984, seria uma relação especí ca com a atualidade e uma atitude
para com nós mesmos. Daí, o problema da Au lãrung apontar para uma
crítica sobre nós mesmos. Isto seria a ontologia histórica de nós mesmos,
sublinhada pelo autor francês, como uma recusa a toda tradição antiga ou
por vir, já que a atitude moderna se caracterizaria pela busca da maioridade
e da liberdade. No entanto, Foucault a rma que não chegamos à
maioridade4 ainda, pois as experiências a que nos submetemos são
atravessadas por forças estranhas à liberdade, mostrando, assim, que a
modernidade é realmente uma atitude.
Muitas coisas em nossa experiência nos convencem de que o
acontecimento histórico da Au lãrung não nos tornou maiores; e que
nós não o somos ainda. Entretanto, parece-me que se pode dar um
sentido a essa interrogação crítica sobre o presente e sobre nós mesmos
formulada por Kant ao re etir a Au lãrung [...] É preciso considerar a
ontologia crítica de nós mesmos não certamente como uma teoria, uma
doutrina, nem mesmo como um corpo permanente de saber que se
acumula; é preciso concebê-la como uma atitude, um ethos, uma via
losó ca em que a crítica do que somos é simultaneamente análise
histórica dos limites que nos são colocados e prova de sua
ultrapassagem possível. (FOUCAULT, 2006, p. 351)

Vemos neste trecho como a Au lãrung remete ao problema da


liberdade e, por consequência, de uma ética da experiência moderna. A
atitude, a ética, como via de questionamento sobre nós mesmos. Quais são
as rami cações da autoridade do poder que nos atravessam e nos
constituem? Esta poderia ser a questão crítica levantada pela atitude
moderna, sendo uma ética que evidencia as instituições, as verdades, que
constituem e que formam o sujeito contemporâneo. Atitude contínua de
questionamento de si: difícil tarefa que atravessa a postura moderna. A
liberdade não é dada com a emergência da modernidade, mas a
modernidade é o espaço no qual a liberdade pode ser exercida, tomada
como uma tarefa de sair da menoridade.
Aqui poderíamos aproximar esta atitude moderna, salientada por
Foucault, do enigma da morte de Deus5 em Blanchot. Em A parte do fogo,
Blanchot (1997) observa que a morte de Deus está longe de trazer um
apaziguamento e uma tranquilidade. A morte de Deus seria como um
enigma. Ela seria uma tarefa sem m, pois somos a todo momento assolados
pelos modos de obliteração da experiência que podemos chamar, junto a
Nietzsche (2001), de sombras de Deus.
Esta morte abre para a vida humana as possibilidades da liberdade:
liberdade e tarefa caminham aqui, conjuntamente. No entanto, vemos nas
sombras de Deus, justamente, que a vivência radical da liberdade é algo raro
nos dias de hoje. É como se houvesse uma luta entre a manifestação da
liberdade e os mecanismos de esquecimento desta radicalidade.
Assim sendo, podemos vislumbrar que o homem moderno é
atravessado por inúmeras rami cações do poder. A tarefa da liberdade é a
própria tarefa da Au lãrung: a de chegar ao estado de maioridade, ou
melhor, a de se desvencilhar das correntes destas rami cações do poder.
Desse modo, podemos nos indagar quais seriam as relações entre a
experiência literária e estas re exões acerca da problemática do poder. Ou,
ainda, em que a experiência literária poderia nos ajudar em uma re exão
acerca da dinâmica de poder e da resistência no mundo contemporâneo, e
qual seria o seu papel no surgimento do sujeito moderno?
Tanto Deleuze e Guattari quanto Foucault, Blanchot e Nietzsche
apontam o papel da experiência literária na resistência à ordem hegemônica.
A resistência é aquilo que muda o estado de coisas e a literatura possibilita
que o escritor e o leitor questionem o mundo que nos cerca e as verdades
que os constituem e os formam. Isto nos remete a um pensamento ético e
político acerca da experiência literária, pois ela proporciona o
questionamento incisivo das convicções, dos hábitos e dos comportamentos
estereotipados.

4. A contemporaneidade e as tecnologias de poder


Em Fragmentos do espólio, Nietzsche (2004) a rma: “a valorização da
autoridade cresce na proporção da diminuição das forças criativas”
(NIETZSCHE, 2004, p. 229). Este aforismo salienta uma característica
importante que atravessa as relações entre o homem e a sociedade: a de que
a sociedade seria atravessada tanto por vetores de criação quanto de
restrição, sendo possível observarmos uma tensão entre forças hegemônicas
e forças de resistência.
Esta tensão aponta para um problema similar à questão levantada
por Kant, o fato de que o homem, quando segue a autoridade e não a
questiona, é subjugado por forças hegemônicas repetitivas que solapam a
criação e o esclarecimento. No entanto, este aforismo nietzscheano nos leva
a re etir sobre a genealogia das verdades naturalizadas e instituídas e sua
relação com o poder.
Em Genealogia da Moral, Nietzsche (1998) apresenta seu método
genealógico em sua análise sobre a emergência da moral. A genealogia se
sustenta sobre o seguinte questionamento: qual é o valor dos valores? O que
estaria por trás das verdades, das regras instituídas pela moral cristã, pela
ciência, pela sociedade e assim por diante?
Podemos observar, por meio deste método, que a verdade se
caracteriza como o recrusdescimento, a naturalização, a rei cação de ideias
que tomaram corpo ao longo da história em nome de um determinado
poder.
A partir desta ideia, em Nietzsche, la généalogie, l’histoire (1994) e A
verdade e formas jurídicas (1996), Foucault a rma que sua preocupação está
ligada a um questionamento da natureza da verdade, e que tanto ele quanto
Nietzsche dão ênfase ao problema da relação entre a verdade e a formação
do sujeito.
Assim, partindo da genealogia nietzscheana, ele se indaga sobre os
componentes constitutivos deste método de investigação, a rmando que ele
se apoia sobre o conceito de Er ndung (invenção), contrapondo-o ao de
Ursprung (origem). O dilema entre as investigações calcadas na origem das
coisas e aquelas fundadas sobre suas possíveis invenções no tecido histórico
está na base do questionamento foucaultiano acerca dos acontecimentos.
O conceito de Ursprung remeteria a um modo de ver e compreender
a história como uma trama contínua. Mediante esta conceituação,
poderíamos indagar sobre – por exemplo – a origem das línguas e
chegarmos à hipótese de que a língua primeira, originária de todas as outras,
seria a indo-europeia. Um dos problemas deste modo de compreensão da
história estaria ligado à busca de um ser ou de um sentido extratemporal –
transcendente à própria história –, que explicaria com bases metafísicas o
seu tecido constitutivo.
Em contraposição a Ursprung, Foucault – junto ao pensamento
nietzscheano – instrumentou seu método investigativo da história
baseando-se em um entendimento dos acontecimentos como invenções de
forças que atravessam a vida. O conceito de Er ndung vem se atrelar ao
questionamento genealógico, apoiando-se na ideia de descontinuidade e
ruptura. A invenção indica que os eventos históricos vêm à luz por meio de
uma certa gama de atravessamentos de forças constitutivas da história. Com
este conceito, Foucault tenta proporcionar uma compreensão crítica da
história que se contrapõe aos componentes metafísicos desta disciplina, pois
não visa descobrir uma explicação extratemporal, abrigada da experiência.
Esta ideia se apoia no entendimento de que a invenção surge por
uma mesquinharia. A invenção nasce por entrechoques de pequenas e
mesquinhas relações de poder.
O historiador não deve temer as mesquinharias, pois foi de
mesquinharia em mesquinharia, de pequena em pequena coisa, que
nalmente as grandes coisas se formaram. À solenidade de origem, é
necessário opor, em bom método histórico, a pequenez meticulosa e
inconfessável dessas fabricações, dessas invenções. (FOUCAULT, 1996,
p. 16)

Estas forças que se entrechocam por mesquinharias apontam para o


intempestivo no seio desta visão sobre a história. As forças intempestivas são
aquelas que produzem a mudança no curso da história; elas criam o
acontecimento e são criadas por ele.6
Partindo disso, podemos nos indagar: em que este método consiste?
Quais seriam as consequências de uma visão da história fundada na
Ursprung e outra na Er ndung.
O método histórico fundado na Ursprung por apontar para uma
busca da origem acredita que os objetos, as ideias e os acontecimentos são
naturais, tendo uma gênese, uma evolução e um progresso em vista. Já o
método genealógico, ao se apoiar no conceito de Er ndung, passa a entender
que nada tem origem e que tudo é inventado pelo entrechoque de forças,
apontando para as ideias de ruptura e descontinuidade. Assim sendo, os
objetos, as ideias e os acontecimentos são inventados, ou melhor,
produzidos. Deste modo, o conhecimento e a verdade foram produzidos por
relações de poder, que intentam naturalizá-las, instituí-las como verdade.
Este método possibilita perguntarmos sobre estas incrustações
interpretativas do mundo. Não é à toa que Nietzsche (1992), em Além do
Bem e do Mal, salienta que “não existem fenômenos morais, apenas uma
interpretação moral dos fenômenos [...]” (NIETZSCHE, 1992, p. 73). Ou
seja, este método nos ajuda a ver como a moral se incrustou de tal forma
com interpretações que criou a ilusão de que estas interpretações morais são
os próprios fenômenos.
Utilizando-se deste método, Foucault produz uma re exão que se
indaga por uma história das verdades. Em História da Sexualidade 2 (1985),
mostra como pela união dos métodos arqueológico e genealógico, ele se
questionou, ao longo de sua obra, sobre as práticas médicas, sociais,
discursivas, epistêmicas, punitivas e de si, sempre permeando a
problematização das verdades instituídas pela dinâmica do poder.
Parece-me que seria melhor perceber agora de que maneira, um tanto
cegamente, e por meio de fragmentos sucessivos e diferentes, eu me
conduzi nessa empreitada de uma história da verdade: analisar, não os
comportamentos, nem as idéias, não as sociedades, nem suas
“ideologias”, mas as problematizações através das quais o ser se dá como
podendo e devendo ser pensado, e as práticas a partir das quais essas
problematizações se formam. A dimensão arqueológica da análise
permite analisar as próprias formas de problematização; a dimensão
genealógica, sua formação a partir das práticas e de suas modi cações.
(FOUCAULT, 1985, p. 15)

Por intermédio de sua pesquisa, Foucault pensou sobre as relações


entre as instituições e os modos de existência produzidos por elas, se
perguntando sobre as croni cações interpretativas que produziram a
verdade sobre o louco, o criminoso, a ciência, a crítica e seus modos de
existir correlatos. Estas croni cações são verdades que impõem regras de
condutas comportamentais, mentais, institucionais e sociais. Condutas
próximas daquilo que Kant chamou de menoridade.
A análise foucautiana acerca da dinâmica das sociedades
disciplinares e do biopoder nos ajudará em nossa análise subsequente do
papel político da leitura literária, como uma atitude que possibilitaria a saída
do estado da menoridade, ou seja, ela apontaria para uma forma de
resistência não somente às verdades instituídas pela sociedade, mas às
instituições e às regras que constituem o sujeito (suas convicções e seus
hábitos).
No seu curso no Collége de France de 1975-1976, intitulado Em
defesa da sociedade (1999b), Foucault explicita esta relação analisada até
então: o vínculo entre o poder, a verdade e o direito. Ou melhor, ele mostra
como a produção de verdade, mediante os mecanismos do poder intrínsecos
à sociedade contemporânea, atravessa o sujeito, moldando-o por meio de
vários artí cios.
Numa sociedade como a nossa – mas, a nal de contas, em qualquer
sociedade – múltiplas relações de poder perpassam, caracterizam,
constituem o corpo social; elas não podem dissociar-se, nem
estabelecer-se, nem funcionar sem uma produção, uma acumulação,
uma circulação, um funcionamento do discurso verdadeiro. Não há
exercício do poder sem uma certa economia dos discursos de verdade
que funcionam nesse poder, a partir e através dele. Somos submetidos
pelo poder à produção da verdade e só podemos exercer o poder
mediante a produção de verdade. (FOUCAULT, 1999b, p. 29)

Vemos, neste trecho, a forte ligação entre a produção de verdade e a


dinâmica do poder. É pela verdade que somos submetidos pelo poder e é
pelo poder que somos levados pelo vício da naturalização da verdade. Neste
ziguezague, o sujeito se constitui e é constituído pelas forças que o assolam,
sejam elas sociais, discursivas, institucionais, epistêmicas ou econômicas.
Ao se questionar sobre a naturalização das verdades no
contemporâneo e ao problematizar as práticas que as formaram, Foucault
(1999b) analisa neste curso as dinâmicas do poder na sociedade de
soberania, e nos séculos XVII e XVIII, com a emergência de mecanismos
disciplinares e de biopoder.
Ele a rma que a característica principal da sociedade de soberania é
a de que o soberano tem o poder sobre a vida e a morte de seus súditos, o
que ele indica ser o direito de “fazer morrer ou deixar viver” (FOUCAULT,
1999b, p. 289). O soberano teria o direito de resolver sobre quem morre e
quem vive.
No entanto, com o passar dos séculos, os mecanismos de poder se
complexi caram, segundo Foucault, e ocorreu o surgimento de um poder
que inverte de certa forma a máxima do soberano, já que ela visa fazer viver
ou deixar morrer. Esta seria uma dinâmica de poder que rege a vida da
espécie e não a morte do sujeito.
Entretanto, Foucault (1999b) indica que, antes da emergência deste
poder, no nal do século XVII e ao longo do século XVIII, se instalam
tecnologias de poder que intentam exercer um controle sobre o corpo
individual dos sujeitos e os problemas que colocam em xeque a dinâmica da
sociedade. Daí surgiram tecnologias disciplinares que tentam organizar,
racionalizar, vigiar, punir e disciplinar os corpos dos sujeitos.
É que, nos séculos XVII e XVIII, viram-se aparecer técnicas de poder
que eram essencialmente centradas no corpo, no corpo individual.
Eram todos aqueles procedimentos pelos quais se assegurava a
distribuição espacial dos corpos individuais [...] e a organização, em
torno desses corpos individuais, de todo um campo de visibilidade.
Eram também as técnicas pelas quais se incumbiam desses corpos,
tentavam aumentar-lhes a força útil, através do exercício, do
treinamento, etc. Eram igualmente técnicas de racionalização e de
economia estrita de um poder que devia se exercer, da maneira menos
onerosa possível, mediante todo um sistema de vigilância, de
hierarquias, de inspeções, de escriturações, de relatórios: toda essa
tecnologia, que podemos chamar de tecnologia disciplinar do trabalho.
(FOUCAULT, 1999b, p. 288)

Esta tecnologia disciplinar se caracteriza por práticas de verdade


ligadas à naturalização de ideias e de comportamentos que visam ao
funcionamento da sociedade. Estas práticas se locaram comumente em
instituições, sendo elas, médicas, escolares, carcerárias e assim por diante.
Elas institucionalizam verdades e regras de condutas para o melhor
funcionamento da dinâmica social. Seu intuito é exercer um controle sobre
os corpos dos indivíduos.
No entanto, Foucault (1999b) ainda salienta que, na segunda metade
do século XVIII, surge uma nova tecnologia de poder que não seria
disciplinar e que teria a intenção de atuar sobre a vida dos homens, sobre a
vida da espécie, do grupo social. Esta tecnologia chamada por ele de
biopoder7 tem a característica de regulamentar a massa de indivíduos. Ela se
caracterizaria por seu olhar cair sobre a população e os fenômenos em série
que ocorrem com uma população em uma determinada duração temporal.
Assim, ela se exerceria por meio de mecanismos diferentes dos disciplinares
que incidem sobre os corpos, já que seus mecanismos são de caráter
regulador. Assim sendo, o biopoder seria “[...] uma tecnologia que visa
portanto não o treinamento individual, mas, pelo equilíbrio global, algo
como uma homeóstase: a segurança do conjunto em relação aos seus
perigos internos.” (FOUCAULT, 1999b, p. 297).
O poder nas sociedades tem, como uma de suas funções, a
organização. Deste modo, o regime organizador da soberania, ao sofrer
acontecimentos derivados da explosão demográ ca e da industrialização,
deu origem ao surgimento de novos mecanismos de poder: um, disciplinar
que visava a vigilância e o treinamento dos corpos individuais, e outro,
regulamentador que incidia sobre os processos biossociológicos da
população.
As políticas públicas do século XVIII e XIX apontam para a
complexi cação destes mecanismos que se intrincam, se misturam, para
melhor organizar o funcionamento da sociedade. Foucault (1999b) indica
que a mistura destes dois mecanismos de poder atravessam a sociedade de
normalização. A norma seria o ponto de interseção entre as práticas
disciplinares e as de biopoder. “A sociedade de normalização é uma
sociedade em que se cruzam, conforme uma articulação ortogonal, a norma
da disciplina e a norma da regulamentação.” (FOUCAULT, 1999b, p. 303).
Seria justamente por causa desta união entre a disciplina e a regulamentação
que o autor a rmará a primazia dos controles sobre a vida, já que nesta
sociedade o poder permearia suas rami cações do corpo individual à massa
populacional.
Deleuze (1992c), em dois artigos publicados no livro Conversações
1972-1990: “Controle e devir” e “Post-scriptum sobre as sociedades de
controle”, analisa os problemas levantados por Foucault acerca das políticas
de organização das sociedades de soberania, disciplinar e de controle,
a rmando o surgimento de uma nova forma de sociedade com o m da
Segunda Guerra Mundial: a de controle. “Estamos entrando nas sociedades
de controle que funcionam não mais por con namento, mas por controle
contínuo e comunicação instantânea.” (DELEUZE, 1992b, p. 216).
Em “Post-scriptum sobre as sociedades de controle” (1992c), ele
a rma que as sociedades dos séculos XVIII e XIX seriam sociedades
disciplinares, pois a forma de organização prevalescente seria a das técnicas
de con namento, apresentada pelos estudos foucaultianos acerca dos
espaços fechados que geriam a vida em sociedade: a família, a caserna, a
fábrica, a escola, o hospital e a prisão.8
Deleuze aponta para uma crise destes modelos de con namento que
caracterizavam as sociedades disciplinares, indicando o surgimento de uma
nova forma de organização social: a sociedade de controle. Segundo ele, “o
controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e
ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, in nita e
descontínua.” (DELEUZE, 1992c, p. 224).
É como se as tecnologias de poder se extrapolassem com o
surgimento do controle, já que ele aponta para uma continuidade e um
poder ilimitado. As rami cações do poder se multiplicam e são
eminentemente descentralizadas. Ele indica para uma biopolítica so scada,
pois constrói novas políticas de regulamentação no seio de regimes
disciplinares como a prisão, a escola, os hospitais e as empresas. Assim
sendo, ela indica para uma crise das instituições, por causa de sua
característica descentrada e ilimitada.
No entanto, o controle não visa exclusivamente cindir seu poder
sobre os corpos ou sobre a regulamentação da população, mas sim ele
aponta para um controle mais virtual pois incide sobre o desejo, mediante o
consumo, a informação e a comunicação.
A parceria de Guattari e Deleuze construiu uma análise da dinâmica
da sociedade atual, regida por modos so sticados de controle e de criação.
Para eles, o desejo seria aquilo que coloca a máquina social em xeque, mas
por este mesmo motivo ela seria capturada e produzida pela sociedade, por
meio das construções midiáticas, por exemplo.
Em um livro intitulado Micropolítica, cartogra as do desejo, Guattari
e Rolnik (1986) mostra a dinâmica da sociedade atual. Ele a rma que o
mundo capitalístico é uma máquina de produção de subjetividades, tendo
uma natureza industrial. Essa maquinaria não só incide sobre os corpos
individuais e sociais, mas também sobre os seus desejos, visando igualar
tudo, ao produzir subjetividades serializadas e modelizadas. Estas forças de
modelização e de serialização de subjetividade têm por funções a construção
da hegemonia e da dominância. Este modo de ser da maquinaria, Guattari e
Rolnik (1986) chama de sistemas de produção de subjetividades
hegemônicas, já que são regidos pela padronização.9
Esse modo de produção se utiliza de sistemas de segregação, de
hierarquia inconsciente, de escalas de valor e de disciplinarização para
controlar a produção e serializar subjetividades. As relações de opressão e de
alienação o atravessam na busca da formação de subjetividades
hegemônicas.
Entretanto, há linhas de fuga, há modos de produção engendrados
na maquinaria capitalística que possibilitam a problematização da
hegemonia e da dominância vigentes. Esses são chamados processos de
singularização, regidos por relações de expressão e de criação.
O modo pelo qual os indivíduos vivem sua subjetividade oscila entre
dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo
se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de
expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos
componentes da subjetividade, produzindo um processo que eu
chamaria de singularização. (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 33)

Observam-se, então, relações de alienação e de opressão que


caracterizam o modo de produção de subjetividade hegemônica, e relações de
expressão e de criação que problematizam o primeiro, e representam os
processos de singularização.
Deleuze (1992b) a rma, em Controle e devir, que o seu interesse e o
de Guattari no livro Mil Platôs era de nir a sociedade por suas linhas de
fuga, suas minorias e suas máquinas de guerra. São elas que colocam a
sociedade em questão, possibilitando a criação, já que trazem o intempestivo
para o seio da batalha contra a hegemonia.
É necessário fazer uma ressalva em relação a esta dinâmica
observável no mundo capitalístico: Guattari e Rolnik (1986) não entendem a
produção de subjetividade, seguindo um modelo teórico calcado no
dualismo, no qual estariam, de um lado, as subjetividades hegemônicas e, de
outro, os processos de singularização. O que ocorre, na dinâmica
capitalística, são processos regidos por múltiplos atravessamentos, nos quais
se observam esses dois modos de produção de subjetividades mesclados,
misturados. Ora tendo predominância de um, ora de outro.
Essas linhas de fuga traçadas pelos processos de singularização
produzem revoluções no âmbito micropolítico, sendo chamadas, por
Guattari e Rolnik (1986), de revoluções moleculares. Elas são modos de
resistência contra o controle hegemônico.
A tentativa de controle social, através da produção de subjetividade em
escala planetária, se choca com fatores de resistência consideráveis,
processos de diferenciação permanente que eu chamaria de revolução
molecular. (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 45)

Em contraponto a isso, vemos que, na dinâmica hegemônica de


produção, há uma tentativa de eliminação dessas possíveis linhas de
problematização. Guattari a rma que “há sempre um arranjo que tenta
prever tudo o que possa ser da natureza de uma dissidência do pensamento
e do desejo.” (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 43). Entretanto, os processos
de singularização imprimem verdadeiras revoluções que colocam em xeque
esses componentes hegemônicos de produção, fazendo com que eles tenham
de contra-atacar, defendendo-se das resistências caracterizadas por essas
revoluções.
As revoluções moleculares são detectadas pelos sistemas
hegemônicos, como componentes nocivos ao corpo social, ao corpo da
maquinaria capitalística. Com isso, estes sistemas possuem duas maneiras de
lidar com as revoluções: (1) atitude normalizadora: ignorando-as ou
recuperando-as e integrando-as; e (2) atitude reconhecedora: tentativa de
articulação para transformar a situação.
Agenciamentos que podem construir seus próprios modos de
subjetivação provocam basicamente dois tipos de atitude:

– a atitude normalizadora, que se traduz de duas maneiras diferentes


mas complementares: ignorá-los sistematicamente, considerando-os
meros problemas secundários ou arcaísmos, ou recuperá-los e integrá-
los.

– a atitude reconhecedora, que considera tais processos em seu caráter


especí co e em seu traço comum, de modo a possibilitar sua
articulação. Só essa articulação é que vai permitir uma mudança efetiva
da situação. (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 59)

Estas revoluções moleculares se assemelham com aquilo que


Foucault chama de micropolítica. A natureza descentrada do poder faz com
que o sujeito trave microbatalhas contra o poder. No entanto, como as forças
de criação e de restrição são múltiplas, elas constituem uma dinâmica que
não seria arborescente, mas sim rizomorfa como Deleuze e Guattari (1995a)
a rmam no texto Introdução: Rizoma. Lidar com as rami cações do poder
que nos constitui de forma resistente, não sendo levados pela ilusão do
poder arborescente, ilusão que já aponta para uma dimensão hegemônica.
Assim, existem estados de coisas que formam, constituem e alienam
o sujeito contemporâneo. Esta forma de ver a relação entre a dinâmica do
poder, da subjetividade e da política mostra como a resistência é aquilo que
muda o estado das coisas. Ela seria um ato de coragem e de ousadia que
tenta criar novos modos de existir. Como podemos observar, ao longo das
obras de Foucault, de Deleuze e de Guattari, seus pensamentos apontam
para o caráter político, estético e ético da resistência à hegemonia. Político,
pois questiona os fascismos impostos pela institucionalização das verdades;
estético, porque tenta cavar novos modos de viver; e ético, pois coloca em
questão as verdades que nos atravessam, apontando a importância desta
tarefa contínua. Entretanto, estas três dimensões estão intrinsecamente
ligadas. Este pensamento aponta justamente para o uso da liberdade na
busca da maioridade, na busca de novos modos singulares de existência.
No entanto, poderíamos nos questionar: em que a leitura literária se
encaixaria nesta problematização dos modos de vida na atualidade? Como a
literatura apresentaria formas de resistência às verdades sociais e
internalizadas pelo sujeito contemporâneo? Assim, podemos adiantar que a
leitura literária será vista como uma forma desviante, uma forma de
resistência à hegemonia, que possibilita a mudança do estado de coisas.

5. A literatura e a produção de subjetividade


Em A Loucura e a sociedade, Foucault (1999a) salienta o forte poder
normatizador da sociedade capitalista. Ele sublinha que a literatura, na
entrada do século XX, sofreu uma perda do seu potencial transgressivo
intrínseco, devido ao poder de absorção do capitalismo. Este fenômeno foi
chamado por nós de pasteurização da transgressão (ALMEIDA, 2007).
Observemos como o aspecto institucional da cultura, certa espécie
de crítica literária e o mercado se aliam para promover a absorção das obras,
despotencializando seu caráter transgressivo e tornando-a mais palatável às
normas da sociedade. Este poder normatizador da cultura e de uma certa
crítica especializada tiram da experiência literária o que ela tem de
intempestivo, inserindo-a no tempo da história10 e no formato de produto.11
Esta absorção da literatura pelo poder, seja ela representada pela
mídia, pela cultura de massa em geral, pelo mercado, crítica especializada,
tenta fazer da literatura algo que ela não é: uma informação, uma linguagem
a serviço do poder.
Para Blanchot (1959), a literatura seria justamente o contrário: uma
linguagem sem poder. Ela, segundo o autor, não seria “a palavra útil,
instrumento e meio, linguagem de ação, do trabalho, da lógica e do saber”
(BLANCHOT, 1959, p. 276) ou, para a rmarmos com Deleuze, Foucault,
Guattari e Nietzsche, ela seria uma forma de resistência ao poder. No
entanto, como vimos, a resistência não é dada com o surgimento da
literatura, pois forças múltiplas de coação e de criação a atravessam,
inexoravelmente, e também a toda a sociedade.
Em nossa tese de doutorado, compreendemos a literatura como uma
forma de resistência aos destinos enregelados da linguagem, representados
pelo estereótipo, pela língua maior, pela naturalização da linguagem, pela
utilidade e pela funcionalidade que tanto caracteriza a linguagem do poder.
Esta forma de resistência aos interstícios das regras e das fórmulas
linguageiras indica que a literatura seria uma escrita que não serve à dinastia
da representação e da utilidade, já que ela seria um ato que tem seu m no
próprio escrever.
Esta caracterização nos ajudará a compreender como a leitura,
seguindo o potencial criativo da literatura, pode possibilitar um encontro
que cause a mudança do estado de coisas, sendo assim uma atividade
política de resistência e um acontecimento que produz singularidades, ao
colocar em xeque as convicções e os hábitos, não só linguageiros, mas
relacionados aos modos de existir. Na leitura literária, algo de desmedido
nos aparece, proporcionando uma experiência que torna possível a saída dos
impasses repetitivos que atravessam o sujeito contemporâneo
hodiernamente.
Podemos observar na experiência literária uma crítica ao uso
majoritário da língua. Deleuze (2003), em O que é o ato de criação?, a rma
que a informação se caracteriza por ser uma tarefa que faz circular as
palavras de ordem em nossa sociedade. Ela estaria do lado da comunicação
e da ordem. Já a arte seria uma contrainformação, pois ela se caracterizaria
por ser um ato de resistência à ordem.
Sobre a relação entre o controle e a comunicação, em Controle e
devir, Deleuze (1992b) a rma:
[...] talvez a fala, a comunicação, estejam apodrecidas. Estão
inteiramente penetradas pelo dinheiro: não por acidente, mas por
natureza. É preciso um desvio da fala. Criar foi sempre coisa distinta de
comunicar. O importante talvez venha a ser vacúolos de não
comunicação, interruptores, para escapar do controle. (DELEUZE,
1992b, p. 216)

Escapar ao controle: tarefa difícil em uma sociedade atravessada por


croni cações interpretativas da vida e do mundo que são vivenciadas como
a própria natureza do estado das coisas. Neste ponto da discusssão,
lembremos Kant e a questão da Au klãrung: sair da menoridade, que seria a
subjugação e a valorização da autoridade em detrimento das forças criativas,
é uma tarefa que requer ousadia e coragem e, talvez, muito mais do que isso,
pois somos assolados por vetores de coação por todos os lados. Neste trecho
da entrevista de Deleuze concedida a Toni Negri, vemos como criar é
colocar em questão as naturezas que nos aprisionam. Na sociedade de
controle, o dinheiro faz da comunicação um mecanismo de poder, pois ela é
o veículo das palavras de ordem. Comunicação, informação e dinheiro
regem a dinâmica hegemônica do mundo capitalista.
Ao analisar o problema relativo às palavras de ordem, Deleuze e
Guattari (1995b) mostram como a dinâmica do uso social da linguagem
estaria ligada diretamente ao uso destas palavras.
As palavras de ordem não remetem, então, somente aos comandos, mas
a todos os atos que estão ligados aos enunciados por uma “obrigação
social”. Não existe enunciado que não apresente esse vínculo, direta ou
indiretamente. Uma pergunta, uma promessa, são palavras de ordem. A
linguagem só pode ser de nida pelo conjunto das palavras de ordem.
[...]. (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 15)

A linguagem é o conjunto das palavras de ordem, apontando uma


rigidez de seu uso. Neste texto, vemos o problema dos usos majoritários e
minoritários da língua se delinear. O uso majoritário, o qual estaria
associado diretamente com estas palavras de ordem, com a rigidez da
linguagem cotidiana, com o estereótipo, implica na dominação, no poder e
no metro-padrão da linguagem. Já o uso minoritário implica um modo de
resistência à padronização e à rigidez da linguagem. “É por isso que
devemos distinguir: o majoritário como sistema homogêneo e constante, as
minorias como subsistemas, e o minoritário como devir potencial e criado,
criativo.” (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 52).
O modo de tratamento majoritário da linguagem estaria do lado do
padrão, da homogeneidade, da ordem, da constância, do poder; enquanto o
outro, o minoritário, seria uma via criativa que se posiciona diante do outro
uso da linguagem como uma resistência aos mecanismos de captura e
controle.
Em “A literatura e a vida”, texto contido em Crítica e Clínica, Deleuze
(1997) aproxima o delírio observado no ato da escrita literária e o minorar a
língua. Escrever literatura seria enlouquecer a linguagem fazendo com que
ela subverta os códigos majoritários de seu uso. Por isso, ele diz com Proust
que fazer literatura é escrever em uma língua estrangeira.
Minorar a língua, então, seria produzir uma forma de crítica à língua
materna, maior e dominante, cavando vias de escoamento com o intuito de
transgredir os limites impostos pela linguagem. Ao analisar este problema,
Deleuze a rma que “uma literatura de minoria não se de ne por uma língua
local que lhe seria própria, mas por um tratamento a que ela submete à
língua maior.” (DELEUZE, 1997, p. 66). Ou seja, o que caracterizaria a
literatura e sua forma de minorar a língua seria o modo como trata a língua
dominante.
A literatura então seria uma forma de resistência às palavras de
ordem que circulam no nosso cotidiano. Ela tende a subverter a língua
maior e, acrescentaríamos, a subverter a fala hegemônica.
Esta fala hegemônica é representada, como vimos, pelas palavras de
ordem, pelas convicções, pelos hábitos estereotipados, designando condutas,
modos de pensamento impostos, que visam impedir uma troca intensa que
fuja dos desígnios do poder, tão cara à experiência literária.
Ainda, em 20 de Novembro de 1923 – Postulados da Lingüística,
Deleuze e Guattari (1995b) a rmam que estas palavras de ordem circulam
na mídia por redundância.
Os jornais, as notícias, procedem por redundância, pelo fato de nos
dizerem o que é “necessário” pensar, reter, esperar, etc. A linguagem não
é informativa nem comunicativa, não é comunicação de informação,
mas – o que é bastante diferente – transmissão de palavras de ordem
[...]. (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 16-17)

Estas transmissões de palavras de ordem se dão por redundância,


devido ao fato de estarem a serviço do poder, impondo o que deve ser
pensado ou não, repetidamente e incansavelmente. A informação tem este
caráter repetitivo e estereotipado que aponta não só para uma rigidez
linguageira, como para a produção de convicções e de hábitos estereotipados
no sujeito contemporâneo.
Neste ponto da discussão, entremos no problema da leitura e sua
relação com a ressonância e as palavras de ordem. Como a rmamos ao
longo do presente artigo, a experiência de ler literatura é um espaço
privilegiado para pensarmos a produção de singularidades, já que ela não
implica nem respostas, nem verdades, nem mesmo a literatura interpela o
leitor como cidadão que deve ter uma opinião sobre determinado assunto.
Ela é um campo de relativismo em que deixa acontecer o próprio sentido em
seu seio.
Sobre este assunto, Kundera re ete em seus ensaios acerca do
romance. Em Les Testaments trahis, ele contrapõe a literatura ao
dogmatismo e à vontade de verdade e de sistematização, já que o romance é
“território onde o julgamento moral é suspenso”. (KUNDERA, 1993, p. 16).
Isto ocorre devido ao fato de que a literatura convida o leitor a uma
experiência de alteridade, pois ela apresenta verdades por vários pontos de
vista representados pelos personagens. Ela convida o leitor a experimentar
opiniões, convicções e hábitos diferentes dos seus.
A literatura convida à alteridade, à compreensão da in nidade de
ideias e de reações que os seres humanos podem ter ao se relacionarem com
um determinado problema existencial. É como se o leitor fosse convocado a
se tornar um outro em seu encontro com o texto. Ele é convidado a
continuar o pensamento por meio da ressonância leitora.
A literatura, de fato, sustenta uma posição adversa à vontade de
verdade e de controle. As verdades, os juízos e as convicções não são
instrumentos dogmáticos utilizados pela re exão literária em sua pesquisa
sobre a existência. Ela os usa somente para colocá-los em questão e convidar
o leitor a continuar o pensamento. Ela visa contaminar o leitor com a
interrogação, diferentemente dos textos informacionais e teóricos que
objetivam a resposta e não o questionamento. O que não quer dizer que não
possa haver criação nestes outros tipos de leitura.
Podemos observar, então, com Piegay-Gros (2002), que a experiência
da leitura literária é uma experiência intensa. Diferentemente de outras
formas de manifestações da linguagem, na experiência literária não existe a
dissociação entre o sentido e o sentimento, como ocorre com a informação.
Quando lemos Aparição de Maupassant (2000) e sentimos calafrios ao
percebermos a presença da mulher sobre a cama, a emoção aponta para o
próprio sentido do texto.
Neste caso, vemos que a experiência de ler literatura abre um espaço
de ressonância, que seria próprio da ação do ler, ou seja, ao ler literatura, o
leitor é atravessado por componentes subjetivos e textuais que ressoam em
um campo de batalha na produção do entendimento e do acolhimento da
obra. Daí, a possibilidade de mudanças subjetivas e seu caráter político.
No entanto, podemos ver como a leitura literária abre uma dimensão
de análise para unirmos o pensamento foucaultiano dos anos 1960 e 1970
em que ele analisa os problemas da linguagem e da literatura e a fase em que
ele pensa o cuidado de si e o biopoder. A literatura é uma forma de
resistência aos códigos linguísticos e à tradição, e, por meio da leitura, ela
possibilita um questionamento das rami cações do poder que nos
atravessam. Entretanto, como a sociedade, a literatura sofre restrições e
controles que apontam para formas de subjetivação. Então, com a leitura
literária, podemos observar formas de subjetivação, de normatização e de
controle, mediante as rami cações de poder, representadas pela cultura de
massa, pela crítica e pelo mercado, e também formas de singularização que
indicam uma política de questionamento dos microfascismos que nos
constituem, possibilitando o surgimento de novas formas de existir.
Com Foucault (2001), podemos ver que a literatura, entendida por
ele como uma escrita transgressiva, foi capturada por mecanismos de poder
complexi cados pela demanda das sociedades disciplinares e de
normalização. O autor transgressivo era encarcerado, pois a escrita passou a
ser um ato transgressivo como outro qualquer na entrada da modernidade:
modo disciplinar de coagir a criação. No entanto, com o passar dos séculos,
a autoria foi cada vez mais se atrelando aos mecanismos de controle da
interpretação. Assim sendo, os mecanismos de poder se complexi caram
nas sociedades de controle e ganharam o campo midiático. A cultura de
massa tende a absorver a experiência literária, modelizando a relação dos
leitores com a obra literária. Nisto podemos ver como existe uma
modelização e uma serialização dos desejos, do consumo, por intermédio de
uma biopolítica da leitura.
Quando Foucault (1999b) analisa o biopoder e sua relação com o
racismo, uma coisa nos chama a atenção: o ato de queimar livros na
modernidade e, principalmente, no século XX.
As sociedades usavam sempre seus mecanismos de poder para se
organizar e ordenar as pessoas em seu espaço, como vimos com Foucault e
Deleuze em suas análises sobre as sociedades de soberania, disciplinar, de
normalização e de controle. Chartier a rma que “o livro sempre visou
instaurar uma ordem” (CHARTIER, 1999, p. 8). Logo, como as sociedades, o
universo dos livros também sempre buscou uma ordem.
Pela história da leitura no mundo ocidental, vemos que sempre
houve modos de ordenação, sejam eles pelos orilégios medievais, pela
remissão à auctoritates, pelo comentário humanista ou pelo
acompanhamento eclesiástico das leituras da Sacra Scriptura em voz alta.
(CAVALLO; CHARTIER, 1998). Uma política de subjugação e de imposição
da interpretação se instaurou na ordem dos livros, tanto a partir de escolas
intepretativas, quanto pela queima de livros.
No entanto, a literatura, caracterizada por ser uma escrita moderna,
também sofreu destas imposições interpretativas feitas pela crítica
jornalística, pela crítica especializada, pelo mercado e pela cultura de massa
em geral, e pelas políticas de regulamentação que impunham queimas de
livros e censuras, ou, dito em poucas palavras, o silêncio.
Em História universal da destruição dos livros, Báez (2006) mostra
como no século XX a literatura e os livros em geral sofreram destruições e
censuras fundamentadas naquilo que Foucault chamou de racismo e sua
relação com o biopoder. Foucault a rma que “a função assassina do Estado
só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder,
pelo racismo.” (FOUCAULT, 1999b, p. 306). O biblioclaustro nazista, as
censuras aos livros comunistas nos Estados Unidos, o caso Salman Rushdie,
o con sco e a queima de livros nos países bálticos, na revolução cultural da
China, e na ditadura da Argentina, são apenas alguns exemplos de
destruição de livros fundamentada na política de extermínio de grupos que
questionavam a sociedade e o regime. O racismo moderno se baseia no
apagamento da diferença e a queima de livros representa na modernidade
esta falta de tolerância com o grupo que destoa da homogeneidade social.
Não é à toa que vemos regimes autoritários darem tanta importância
aos livros como inimigos da ordem, pois a experiência de ler possibilita a
transformação de nossas vidas, pensamentos e convicções. O livro literário,
com sua maleabilidade re exiva, pode causar um afrouxamento da rigidez
estereotipada do pensamento, proporcionando novos modos de pensar e de
existir, subvertendo o estado de coisas e provocando deste modo
microrrevoluções que podem se alastrar para toda a sociedade.
Quando a literatura é tomada pela conversão informacional, as
formas de apreensão do texto literário impõem uma regulamentação da
interpretação, incidindo sobre os desejos e construindo formas de
subjetivação estereotipadas, associadas à hegemonia. Versando sobre isso,
em Os intercessores, Deleuze (1992a) mostra como os jornalistas
aprisionaram a literatura em formas diferentes de sua natureza, tendo como
consequência uma crise da literatura.
Esquece-se que a literatura implica para todo mundo uma busca e um
esforço especiais, uma intenção criadora especí ca, que só pode ser
feita na própria literatura, sendo que ela não está de modo algum
encarregada de receber os resíduos diretos de atividades e de intenções
muito diferentes. É uma “secundarização” do livro que toma o aspecto
de uma promoção pelo mercado. (DELEUZE, 1992a, p. 163)

Assim sendo, a experiência literária é um ato de resistência à


homogeneidade, à hegemonia, aos padrões linguísticos e comportamentais.
Pensando nisso, Deleuze (1992b), em Controle e devir, a rma: “a arte é o que
resiste: ela resiste à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha” (DELEUZE,
1992b, p. 215). Esta resistência da literatura seria uma das manifestações das
formas de singularização, já que favorece a mudança do estado de coisas. Ela
se mostra uma atividade política, ética e estética, por ser um ato que torna
possível a saída do estado de menoridade.
Deste modo, vemos como podemos resistir às rami cações do poder
por outros meios. O leitor, ao mergulhar na leitura literária, é convidado a
questionar os próprios hábitos e convicções.
A questão da liberdade na leitura literária se assemelha à vida; ela
remete à seguinte a rmação: a liberdade é situada, conquistada, ela é fruto
de uma ação. Ao contrário do que costumamos pensar, a liberdade não
precede às suas manifestações. Ela passa a existir no próprio ato. Todavia, o
exercício da liberdade é algo raro, pois nós, homens, somos guiados na
maior parte de nossas vidas por automatismos que chamamos comumente
de hábitos. A liberdade se manifesta quando quebramos, mesmo que por
um momento ín mo, nossos padrões comportamentais e mentais.
A leitura literária é um espaço que possibilita o exercício da
liberdade, pois, diferentemente de outras manifestações da linguagem, ela
coloca em questão justamente nossos padrões sociais e linguísticos,
elaborando vias para sairmos do estado de menoridade, pois ela denuncia as
amarrações dos hábitos estereotipados e das convicções que nos constituem,
comportando o intempestivo em seu seio. A leitura literária seria, deste
modo, um acontecimento que transforma nossa rede afetiva e cognitiva.
Como vimos, a leitura literária é uma dimensão da literatura
privilegiada para obervarmos a dinâmica da subjetivação e da produção de
singularidades na sociedade contemporânea, pois a literatura é atravessada
por formas de resistência à língua maior e por forças de criação de novos
modos de existir que resistem aos comportamentos estereotipados pela
dinâmica hegemônica e pelas forças de regulamentação, de disciplina e de
controle que impõem a melhor leitura e o que devemos ou não pensar.

Referências
ALMEIDA, L. P. Escrita e leitura: a produção de subjetividade na
experiência literária. 2007. Tese (Doutorado em Psicologia) – Departamento
de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2007.
BAÉZ, F. História universal da destruição dos livros, das tábuas sumérias à
Guerra do Iraque. Tradução Léo Schlafman. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
BLANCHOT, M. Le livre à venir. [Paris]: Gallimard, 1959.
_______. L’entretien in ni. Paris: Gallimard, 1969.
_______. A parte do fogo. Tradução Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1997. (Trabalho originalmente publicado em 1949).
CAVALLO, G.; CHARTIER, R. (Org.). História da leitura no mundo
ocidental. São Paulo: Ática, 1998. vol. 1.
CHARTIER, R. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa
entre os séculos XIV e XVIII. Tradução M. D. Priori. Brasília: Editora UnB,
1999. (Trabalho originalmente publicado em 1994).
DELEUZE, G. Os intercessores. Tradução Pal Pélbart. In: _______.
Conversações (1972-1990). Rio de Janeiro: Editora 34, 1992a. p. 151-168.
_______. Controle e devir. Tradução Pal Pélbart. In: _______. Conversações
(1972-1990). Rio de Janeiro: Editora 34, 1992b. p. 209-218.
_______. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. Tradução Pal
Pélbart. In: _______. Conversações (1972-1990). Rio de Janeiro: Editora 34,
1992c. p. 219-226.
_______. Crítica e clínica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.
_______. Qu’est-ce que l’acte de création? In: _______. Deux régimes de fous:
textes et entretiens, 1975-1995. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003. p. 291-
302. (Trabalho originalmente publicado em 1987).
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Introdução: rizoma. Tradução Aurélio
Guerra Neto e Célia Pinto Costa. In: _______. Mil platôs: capitalismo e
esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995a. vol. 1, p. 11-38.
_______. 20 de novembro de 1923 – Postulados da Lingüística. Tradução
Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Claúdia Leão. In: _______. Mil platôs:
capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995b. vol. 2, p. 11-
59.
DOSTOIEWSKI, F. Crime e castigo. Tradução Natália Nunes. São Paulo:
Abril Cultural, 1982.
FOUCAULT, M. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de
Janeiro: Graal, 1985.
_______. Nietzsche, la généalogie, l’histoire. In: _______. Dits et écrits II
(1970-1975). Édition établie sous la direction de Daniel Defert et François
Ewald. Paris: Gallimard, 1994. p. 136-156. (Trabalho originalmente
publicado em 1971).
_______. A verdade e as formas jurídicas. Tradução Roberto Machado e
Eduardo Morais. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 1996. (Trabalho originalmente
publicado em 1973).
_______. A loucura e a sociedade. In: _______. Problematização do sujeito:
psicologia, psiquiatria e psicanálise. Tradução Vera Lúcia A. Ribeiro. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1999a. p. 235-242. (Ditos e escritos, 1).
(Trabalho originalmente publicado em 1970).
_______. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976).
Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: M. Fontes, 1999b.
_______. O que é um autor? Tradução de I. A. D. Barbosa. In: _______.
Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001. p. 264-298. (Ditos e escritos, 3). (Trabalho
originalmente publicado em 1969).
_______. O que são as luzes? In: _______. Arqueologia das ciências e história
dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p.
335-351. (Ditos e escritos, 2). (Trabalho originalmente publicado em 1984).
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica, cartogra as do desejo. Rio de
Janeiro: Vozes, 1986.
KANT, I. Resposta à pergunta: que é o esclarecimento? In: _______. Textos
seletos. Rio de Janeiro: Vozes, 2005. p. 63-71. (Trabalho originalmente
publicado em 1783).
KUNDERA, M. L’art du roman. Paris: Gallimard, 1986.
_______. Les testaments trahis. Paris: Gallimard, 1993.
_______. Le Rideau, essai en sept parties. Paris: Gallimard, 2005.
MAUPASSANT, G. Apparition. In: _______. Le Horla et autres récits
fantastiques. Paris: Librairie Générale Française, 2000. p. 89-97. (Trabalho
originalmente publicado em 1883).
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Tradução Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das letras, 1992.
_______. Genealogia da moral. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998. (Trabalho originalmente publicado em 1887).
_______. A gaia ciência. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001. (Trabalho originalmente publicado em 1887).
_______. Fragmentos do espólio. Tradução Flávio R. Kothe. Brasília: Editora
UnB, 2004.
PIEGAY-GROS, N. Le lecteur, textes choisis & présentés par Nathalie Piegay-
Gros. Paris: GF Flammarion, 2002.

1 ProfessorAdjunto do Departamento de Fundamentos das Ciências e Sociedade da Universidade


Federal Fluminense. Pós-doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro com estágio de
doutorado sanduíche no Centre de Recherche sur la Lecture Littéraire da Universidade de Reims
Champagne-Ardenne.
2 Expressão alemã que designa o Iluminismo, as Luzes e o Esclarecimento.
3 Serájustamente por isso que Foucault, neste texto, apontará sua preocupação com uma ontologia
histórica de nós mesmos.
4É curioso observarmos como, no texto kantiano, o ato de se desvencilhar da menoridade é uma tarefa
de grande esforço, pois no homem particular a menoridade é vivenciada como uma natureza. Este
fator é importante, pois ao analisarmos as rami cações do poder e das verdades instituídas e
internalizadas, veremos como será difícil a tarefa de criar novos modos de existir por essas
rami cações e verdades serem sentidas como a própria natureza do sujeito.
5 Em textos dos anos 1960 e início dos 1970, Foucault sublinha o papel importante da morte de Deus
para com o acontecimento da experiência moderna. No texto supracitado de 1984, surge uma sutil
mudança de enfoque, mas que já constava em germe nas suas re exões anteriores: o papel da atitude
na experiência moderna. Isto porque, com a morte de Deus, a liberdade e a maioridade não estariam
dadas, pois ainda persistiriam as sombras do Deus morto representadas pelos discursos instituídos
pelo niilismo passivo que atravessam nossas relações com o mundo.
6 Em Controle e devir, Deleuze (1992) aponta a diferença entre devir e história, estando a história do
lado das condições do evento e o devir daquilo que desvia da história para produzir o novo. “O devir
não é a história; a história designa somente o conjunto das condições, por mais recentes que sejam,
das quais desvia-se a m de ‘devir’, isto é para criar algo novo.” (DELEUZE, 1992, p. 211). As forças
intempestivas seriam forças a serviço do devir, da criação de desvio, seriam, assim, forças criativas.
7É importante sublinharmos que estes mecanismos de biopoder e disciplinares não se excluem,
convivendo mutuamente na sociedade.
8 Nestetexto, Deleuze (1992c) analisa a disciplina e sua relação com a sociedade para diferi-la da
sociedade de controle. Esta conceitualização da sociedade disciplinar entra, ora em con ito, ora em
sobreposição ao de sociedade de normalização, já que em alguns pontos do artigo, ele parece
considerar também o intrincamento entre disciplina e regulamentação. No entanto, o conceito de
sociedade de controle mostra uma sociedade atravessada em sua primazia por técnicas de biopoder.
9 Aqui podemos observar a similitude entre a menoridade sentida como a natureza do sujeito,
denunciada por Kant, e a serialização, a modelização e a hegemonia, por elas apontarem justamente
para uma croni cação de ideias e de comportamentos surgidos pela naturalização de verdades.
Interpretações críticas que amarram escritos literários pela história do autor, do gênero, da intenção
10

ou do estilo.
11
A constituição da obra como produto vinculado a moedas culturais de troca que inserem o livro
literário no conjunto nobre dos tesouros culturais, atrelando-o às mitologizações da obra e da autoria.
Espaço e subjetividade na experiência da
modernidade: considerações a partir da novela
Le Horla de Guy de Maupassant
Elizabeth Pacheco1
Eduardo Passos2

Tomamos neste artigo a clínica como um plano não substantivo, mas


processual, espaço de vivências que pertencem a um universo de partilha,
no qual as histórias narradas ressoam modos de subjetividade, e não
substantividades próprias a um sujeito particular e íntimo. Tal
posicionamento nos permite um alargamento do sentido de “caso”, de modo
que as narrativas de um sujeito transbordem também para um além e
aquém de uma fala íntima, incluindo toda uma paisagem existencial em sua
relação com os espaços da cidade tal como esses se recon guram na cena
moderna.
Para tal, podemos contar com a literatura como suporte de
ressonância para os conceitos próprios ao tema em questão, de modo a ter,
na composição da clínica com a arte, no cruzamento de uma abordagem
teórica com a prática vivida na clínica, as matérias de expressão de um
mundo de valores partilháveis. Neste texto se pretende um exercício
transdisciplinar realizado no limiar entre clínica e arte (PASSOS;
BENEVIDES DE BARROS, 2000). Trata-se de pensar nesse espaço do limite.
O tema do espaço será, portanto, nosso o condutor.
Trabalharemos com a novela Le Horla, de Guy de Maupassant,
escrita em 1887. São tantos os regimes de constituição de espaços que essa
novela entrecruza, que pensamos em tomá-la para articularmos
transversalmente a temática do nosso interesse aqui, seguindo tríplice
orientação:
1. Michel Serres, em sua apreciação crítica da novela Le Horla,
aponta para um outro sentido de espaço, urdido por linhas de uxo, por
percursos, por deslocamentos e passagens, capaz de apresentar os trânsitos,
as virtualidades e os destinos de uma vida em seu viver;
2. Espaços urbanos: uma abordagem que, ao deslocar o conceito de
espaço das margens da geometria para tomá-lo como espaço intensivo,
apresenta um amalgamado tal entre espaço e processo de subjetivação que
nos permite avaliar como também os afetos produzem arquitetura;
3. Articulação de política e produção de subjetividade, por
intermédio desse sumo da literatura fantástica, com que Maupassant nos
mostra uma aguda crítica ao positivismo do século XIX.

A novela Le Horla
Guy de Maupassant é um autor francês, da segunda metade do
século XIX (1850 -1893), que se inicia na escrita literária aos 18 anos sob a
in uência de Flaubert. Em 1880, à publicação do conto Boule de Suif,
acontecimento-marco de sua vida e da vida literária daquele século, se
conjugam outros dois acontecimentos, no entanto terríveis: a morte de seu
amigo Flaubert, em 8 maio, e sua entrada no mundo dos tocados pela sí lis.
A literatura e a doença desde então o habitariam e, em sua carta de 1882 a
uma amiga, ele chega a dizer “tenho frio mais ainda pela solidão da vida que
pela solidão da casa. Eu sinto esse imenso desconcerto de todos os seres, o
peso do vazio” (MAUPASSANT, 1984, p. 208).
Sem ter deixado em nenhum momento de escrever inúmeros contos
e alguns romances, viu seu estado sendo agravado por perturbações que
atingiram progressivamente seus olhos, a ponto de ter a luz como
insuportável e no quarto totalmente escuro o único alívio durante muitos
dias. Em dez anos, sua situação havia se tornado tão grave que ele chega a
escrever em carta: “pensar torna-se um tormento abominável quando o
cérebro não é senão uma chaga. Tenho tantas feridas na cabeça que minhas
idéias não podem se mover sem que me dêem desejos de gritar”
(MAUPASSANT, 1984, p. 209).
Tendo tentado suicídio dois anos antes de sua morte, Maupassant foi
internado na clínica do Dr. Blanche, onde faleceu em consequência de uma
sí lis de progressão neurotrópica.
Maupassant, tal como Ka a, é um autor que soube fazer de seus
afetos íntimos, de suas mazelas pessoais, a dobra (DELEUZE, 1991) em arte.
Sua literatura não é espelho de sua vida, mas o excedente de vida que pulsa
para além de qualquer organismo, seja ele doente ou são. A dor: como
dobrá-la e dela fazer valor de vida? A respeito dessa dobra clínica que a arte
é capaz de operar, Blanchot (1997, p. 26) faz longo comentário em seu artigo
sobre a escrita de Ka a:
Do lado da dor existe a impossibilidade de tudo, de viver, de ser, pensar;
do lado da escrita, possibilidade de tudo, de palavras harmoniosas,
desenvolvimentos exatos, imagens felizes. Ka a escreve: nunca pude
compreender que seja possível a alguém que queira escrever objetivar a
dor na dor. [...]. A literatura objetiva a dor constituindo-a em objeto. Ela
não a expressa, ela a faz existir de outro modo [...]. Tal objeto não é
necessariamente uma imitação das transformações que a dor nos faz
vivenciar, ele se constitui para apresentar a dor, não para representá-la.

Chamamos acontecimento clínico à contingência de forças que


irrompe numa vida abismando sua unidade, forçando-a a tornar-se outra
ou, por uma intuição criadora, a produzir essa outridade como arte ou
loso a. Nessa última possibilidade, o que passa a existir não se confunde
com nenhuma essência de um sujeito vivencial que supostamente seria seu
autor. Dessa crise surge a obra, como arte ou loso a, enquanto operação de
uma diferença, uma transmutação do vivido pessoal, do qual se pode extrair
o impessoal, o vívido, que singulariza toda experiência tornando-a,
paradoxalmente, aberta ao compartilhamento de qualquer um.
Não pretendemos uma apreciação clínica da obra enquanto
expressiva de questões próprias ao autor, o que nos levaria a perder, da obra,
sua força de apresentação, que se faz valer sempre como reveladora das
práticas de um momento histórico-mundial, e do autor, sua potência de
superação do que lhe é íntimo pelo que, por meio dele, se apresenta como
enunciação de um coletivo. Nesse sentido, se a palavra do senso comum
“fala da boca pra fora”, a palavra literária “fala pra boca do fora”.
Le Horla é uma novela da literatura fantástica, que se inaugura no
nal do século XVIII e que antecipa as teses acerca do inconsciente que a
obra de Freud posteriormente irá tematizar.
Como nos reporta Ítalo Calvino (2004), é no terreno especí co da
especulação losó ca entre os séculos XVIII e XIX que nasce o conto
fantástico, cujos melhores efeitos se encontram na oscilação de níveis de
realidades inconciliáveis. Alta intensidade dos efeitos e constante
indiscernibilidade, eis o caráter do fantástico.
Em seu texto, Calvino (2004, p. 11) comenta:
Assim como o conto losó co setecentista foi a expressão paradoxal da
razão iluminista, o conto fantástico nasceu na Alemanha como o sonho
de olhos abertos do idealismo alemão, com a intenção declarada de
representar a realidade do mundo interior e subjetivo da mente, da
imaginação, conferindo a ela uma dignidade equivalente ou maior do
que a do mundo da objetividade e dos sentidos.

Calvino nos apresenta o surgimento da narrativa fantástica, mas nos


interessa também marcar a diferença entre a forma conto e a forma novela.
Segundo Deleuze (1996, p. 63), tal diferença residiria no modo como um e
outro vão tensionar o acontecimento na trama narrativa, e não em
temporalidades distintas, pois ambos os gêneros operam no tempo presente.
Se o conto narra o presente vivo numa tensão que afeta o leitor, incitando-o
a uma expectativa de solução futura, levando-o a pensar “o que acontecerá”,
a novela lida com a tensão de um presente-passagem que dura na suspensão
de um acontecimento inapreensível, incognoscível, incitando o leitor a
querer saber o que terá acontecido a nal.
Na novela Le Horla, acompanhamos a árdua travessia do homem
psicológico, sujeito da razão, suposto dono de sua causalidade interna,
senhor de si e de sua morada, atravessado, melhor dizendo, pervadido, por
uma insidiosa presença que o afeta ao mesmo tempo com atração e repulsa;
uma estranha presença, inapreensível, que se insinua translúcida e opaca, da
qual ele só pode acessar os efeitos.
A novela se abre ao leitor de modo a causar nesse a impressão de
estar abrindo o diário alheio, numa página qualquer, datada aleatoriamente
em 8 de maio. Assim escolhe o autor narrar essa história do súbito
acontecimento da perda do sentido cotidiano da vida de um homem
burguês, acostumado a viver seus hábitos, levantar-se e abrir sua janela para
apreciar a paisagem à luz do dia e abrir seu diário para nele escrever.
Toda a narrativa se passa nos dias que transcorrem entre 8 de maio e
10 de setembro de 1887. Assim registrava o personagem suas impressões
íntimas, os efeitos que seu mundo próximo provocava sobre sua alma e seu
humor: conforto, reconhecimento, garantia de permanência, en m, afetos
oriundos de memória e hábito, os afetos da tradição.
Em seu diário, ele narra com altivez o seu cotidiano, rea rmando
com orgulho, a cada dia, seu conforto e sua segurança pessoal. Há uma
ausência de luta em seu relato como se as lembranças por ele evocadas
viessem como um reforço da felicidade de habitar. Para tal sujeito, todos os
males, inclusive as doenças, todos os envenenamentos do corpo e da alma
vêm do aberto, do vasto mundo, do alheio e do longínquo.
Sua imensa tranquilidade inicial é descrita como a graça de sentir-se
envolvido por seu jardim, pela casa onde vive desde que nasceu, por sua
cidade, da qual conhece todos os cantos e, até mesmo, por seu país.
Que o mundo está ao alcance de seus olhos, é o que nos indicam
suas descrições minuciosas do que o cerca, tanto no interior de seu quarto,
na sua intimidade, da mesa em que escreve até a cama onde se recolhe para
dormir, quanto na paisagem que daí ele vislumbra, abrindo sua janela nesta
manhã de 8 de maio:
[...] Amo minha terra, amo viver aqui, pois nela tenho minhas raízes,
profundas e delicadas raízes, que ligam um homem à terra onde
nasceram e morreram seus ancestrais, que o atrelam ao que se pensa e
ao que se come, aos hábitos assim como aos alimentos, ao modo de
falar local e até mesmo ao sotaque próprio à sua aldeia.
(MAUPASSANT, 1984, p. 19)

Da mesma janela, cuja paisagem tão habitual o assegurava


diariamente de que o mundo estava ao alcance de seus olhos, vem o anúncio
de novos mundos, distantes, desconhecidos até a América!... mais local, o
Brasil!... mais zoom, o Rio de Janeiro.
Que manhã agradável esta, de minha janela posso ver o grande e largo
rio Sena, dois veleiros ingleses e um soberbo veleiro brasileiro, todo
branco, admiravelmente reluzente. Eu o saudei, nem sei por que, tanto
esse navio me deu prazer em vê-lo. (MAUPASSANT, 1984, p. 20)

A partir desse acontecimento, o narrador da novela passa a viver


numa linha sem repouso entre a tradição e a aventura, habitando a tradição
de sua casa, situada em Rouen, ao mesmo tempo que vai sendo afetado pela
vastidão do mundo que a ele se insinua pela janela de seu quarto. Eis que o
tempo entrecruza futuro e passado, traindo o presente eterno de seu
cotidiano e tradição, atraindo-o para o que surpreende, o presente, o
instante, esse que, ín mo, porta em sua efemeridade o convite ao devir.
Suspensão do presente pelo instante, suspensão do futuro linear e
inevitável.
Durante quatro dias não há registro no diário e, nalmente, em 12
de maio, seus escritos se tornam uma indagação angustiada sobre algo que o
afeta de tristeza, lhe causando febre, e o fazendo sofrer, tal como podemos
ler na seguinte passagem:
Donde vêm essas in uências misteriosas que transformam em
desencorajamento nossa felicidade e nossa con ança? Será a forma das
nuvens, a cor do dia, as cores das coisas, tão variável que, passando
pelos meus olhos, perturbou meu pensamento? Quem sabe? Tudo isso,
nosso entorno, tudo isso que vemos sem olhar, tudo isso que evitamos
sem conhecer, tudo o que tocamos sem o apalpar, tudo isso que
encontramos sem o distinguir, tem sobre nós, sobre nossos órgãos, e
através destes, sobre nossas idéias, sobre nosso coração, ele mesmo,
efeitos rápidos, surpreendentes e inexplicáveis. Como é profundo, esse
mistério do invisível. (MAUPASSANT, 1984, p. 21)

Maupassant prossegue o diário, narrativa desse homem atormentado


e sem remédio, para quem não há conforto nem alívio. Seus maiores
tormentos são o sono e o leito. Dormir se torna cada vez mais difícil e
mesmo dormindo seu mal-estar persiste.
Após dois meses desde aquele 8 de maio, seu desassossego
intensi cava-se, e ele, refém desse hiato entre identidade e alteridade,
começara a suspeitar que perdera a razão. Até que, na noite de 4 de julho,
uma experiência radical lhe acontece: “Senti que alguém sobre mim, com
sua boca sobre a minha, bebia minha vida entre meus lábios, como uma
sanguessuga.” (MAUPASSANT, 1984, p. 26). Desde então seu tormento
começa a referir-se a esse estranho que o acompanha em sua própria casa,
em seu próprio leito, íntimo de todos os seus passos. Bebe sua água, seu
leite, embora só se deixe sentir por seus efeitos, invisível que é. Sua vida se
torna uma agonia sempre às voltas a testar essa insidiosa presença, o que o
induz a duvidar de sua própria percepção num desa o à visão, essa que
entre os sentidos é o mais assegurador das certezas, da veri cabilidade do
real.
Resolve então se ausentar numa viagem a Paris em 14 de julho, festa
da República, e, lá chegando, põe-se a passear pelas ruas. Sente que é idiota
estar feliz em uma data xa e por decreto do governo; sente o povo como
um rebanho de imbecis. Assim também avalia seus dirigentes, com a
diferença de que esses, em vez de obedecerem a homens, obedecem a
princípios, ideias reputadas como certas e imutáveis nesse mundo onde não
se pode mais estar certo de nada.
Sua solidão é imensa. Talvez seja ainda maior a solidão que
experimenta diante da descrença política do que aquela que experimenta ao
suspeitar de sua própria loucura. No entanto, ele compreende sua solidão
como o efeito da falta de bons encontros, e vê nessa vida ensimesmada um
motivo de insegurança e enfraquecimento. Uma ideia de privação, de uma
privação essencial, surgira no seio mesmo da abundância anteriormente
assegurada nas páginas iniciais de seu diário.
Resolve visitar uma prima distante com a qual assiste a uma sessão
de hipnotismo. Essa experiência acentua radicalmente o movimento de
descentramento que se vinha operando no espaço ordenado e confortável de
sua vida desde que ele deixou de se supor instalado na plenitude da razão.
Em seu diário, ele escreve, em 21 de maio:
Tudo depende do lugar e do meio. Acreditar no sobrenatural na ilha de
Grenouillère seria o cúmulo da loucura, mas no Monte Saint-Michel? E
na Índia? Estamos terrivelmente sujeitos à in uência do que nos rodeia.
(MAUPASSANT, 1984, p. 35)

Esse pensamento o alivia e lhe permite relativizar a suspeita de seu


enlouquecimento como um efeito próprio ao cérebro atemorizado diante
dos mistérios que não pode dominar. Diante dessa perda de con ança em si,
resolve apelar para as justi cativas cientí cas de que dispunha para entender
o pensamento como objeto:
Julgar-me-ia certamente louco, absolutamente louco se não estivesse
consciente, se não conhecesse perfeitamente o meu estado, se não o
sondasse, analisando-o com lucidez completa. Eu era, pois, em suma,
um alucinado consciente. Uma perturbação desconhecida se teria
veri cado no meu cérebro, uma dessas perturbações que os siólogos
procuram hoje observar e de nir; e essa perturbação ter-me-ia
determinado no espírito, na ordem e na lógica das idéias, um abismo
profundo [...]. Meu aparelho veri cador, meu senso de controle, se acha
adormecido. (MAUPASSANT, 1984, p. 38)

Tomado por essa experiência de distância íntima de si para si, voltou


à casa, mas essa ideia recorrente de que algo terrível estava por acontecer o
impedia de aí permanecer. Quis partir, mas não pôde:
Quando alguém é atingido por certas moléstias, todas as molas do ser
físico parecem quebradas, todas as energias arrasadas, todos os
músculos relaxados, os ossos moles como a carne e a carne líquida
como a água. Sinto isso no meu ser moral de modo estranho e
desolador [...]. Desejo apenas erguer-me a m de me acreditar senhor
de mim. Não posso! Eu não posso mais querer, mas alguém quer por
mim e eu obedeço [...] Haverá um Deus? Pois se há um, salve-me.
(MAUPASSANT, 1984, p. 39)

Como nos diz M. Gauchet, “a noção de inconsciente não envolve


apenas o reconhecimento da alteridade das forças que nos movem, mas
implica por outro lado na exigência insistente de uma restituição da
estranheza das operações do espírito” (GAUCHET, 1992, p. 178).
Ele pensa no assujeitamento de sua prima durante a experiência de
hipnose que acompanhou em Paris. Lembra-se dela, pervadida por um
querer estranho, qual outra alma parasita e dominadora. Todo o seu
tormento está ligado à sensação de estar possuído, parasitado por um outro.
Habitado por potência estrangeira. “Será que o mundo vai acabar? Mas esse
que me governa, quem é ele, este invisível, esse irreconhecível? Esse
perambulador, de uma raça sobrenatural?” (MAUPASSANT, 1984, p. 40).
Ao referir-se assustado a esse desconhecido, habitante de seu próprio
domicílio, como um perambulador, um vagabundo, o narrador acentua o
sentimento de exclusão do outro, do estranho. Mas não seria esse assim
chamado outro, um dos seus modos de experiência? Uma experiência de
intensi cação do plano das sensações, cujo entendimento não lhe fora ainda
possível alcançar? Não será o próprio narrador quem vai se tornando
alguém que divaga, vagueia já perdido das referências e incerto quanto a seu
pertencimento?
Maupassant (1984) nos descreve o desassossego de quem, por estar
tão acostumado à tranquilidade doméstica, vive a estrada como perdição.
Nesse ambiente, estando a comodidade refém dos afetos de reconhecimento,
tudo o que for diferente de minhas práticas será temido ou rechaçado.
Certa noite, tendo permanecido em casa, o narrador retoma seu
diário divagando sobre os possíveis habitantes desses outros mundos,
especulando, na retomada preguiça de seu lar, sobre o que pensarão esses
que habitam tais longínquos universos:
Que podem eles ver que nós não conhecemos? Um deles um dia ou
outro, atravessando o espaço, não aparecerá talvez em nossa terra para
conquistá-la tal como os Normandos outrora atravessaram o mar para
dominar povos mais fracos? (MAUPASSANT, 1984, p. 41).

Maupassant é francês. A França, como bem o diz Serres, é manto de


Arlequim, tecida por mistura de povos, dos quais fazem parte constituinte
os Vikings, piratas que se movem sem cessar por rotas não percorridas. São
os Normandos: “homens do norte”, nome dado aos saqueadores vindos da
Escandinávia no século IX pelo mar, organizados em bandos em pequenas
frotas de grandes navios. Ocuparam os principais rios do reino francês após
a morte de Carlos Magno e, no século X, com seu líder Rolland, tomaram as
terras desde então chamadas Normandia.
Sabemos que nos séculos XVI e XVII, os exploradores do espaço
novamente lançaram-se aos mares com suas caravelas ampliando a face
habitável da Terra. Maupassant está impregnado desse devir navegante que
ele experiencia no ato da escritura de uma novela em que se percorrem os
dias por meio de um diário. Bons ventos o levam para o mar.

Identidade e alteridade: paradoxo da modernidade


Maupassant apresenta nesta novela um dilema angustiante que
dilacera a pretensa unidade identitária do personagem narrador numa dupla
dimensão: ora diante de um estranhamento de ordem ético-política, no qual
o francês habitante da sua cidadezinha se vê ameaçado por uma potência
estrangeira, experimentando medo diante do risco de domínio político, de
ocupação territorial, de invasão de fronteira; ora diante da dúvida sobre o
domínio racional e consciente que garantia até então sua suposta condição
de indivíduo. A novela permite o questionamento das garantias identitárias
desse sujeito moderno, tanto na dimensão política do acirramento das
fronteiras nacionais, quanto na dimensão pessoal da passagem de sujeito
único a um eu dissociado assombrado por seu duplo.
Eis que em 19 de agosto, o narrador se depara com um artigo na
Revista do Mundo Cientí co onde se noticia uma doença, uma epidemia de
loucura, altamente contagiosa, que provém do Rio de Janeiro, tal como a
peste que atingiu os povos da Europa na Idade Média.
Segundo o artigo, tal epidemia já chegara a contagiar grande parte da
cidade de São Paulo. Ele então se lembra do veleiro brasileiro e supõe que
essa epidemia o atingira naquele momento. Tratava-se de uma epidemia que
fazia com que as pessoas abandonassem suas casas, desertassem de suas
cidades, possuídas e governadas por seres insidiosos, invisíveis, mas
tangíveis, que sugavam suas vidas durante seu sono e se nutriam de leite e
água. Ainda que não lhe seja possível acessar o regime de afetabilidade
desses seres, ele os nomeia Horla:
[...] Horla fará do homem sua coisa, seu servidor, pela única potência de
sua vontade. Se o animal se revolta e tenta matar aquele que tenta
dominá-lo, eu também assim o desejo, eu poderia, mas seria preciso
conhecê-lo, tocá-lo, vê-lo! Meus olhos não podem distinguir o
estranho. (MAUPASSANT, 1984, p. 44)

Nesse modelo narrativo, se apresenta o anseio da modernidade


“nascida de uma vontade observadora que lutava contra a credulidade e se
fundava num contrato entre a vista e o real” (CERTEAU, 2004, p. 288). O
narrador encontra-se no seio do paradoxo. Na dissonância entre cada
regime de sentido produz-se essa sensação, essa discrepância que a ele
comparece como disjunção, incompatibilidade de cada um dos sentidos.
Lembra-se das palavras do monge no Monte Saint-Michel acerca da
força do vento a despeito de sua invisibilidade e escreve em seu diário:
[...] minha vista é tão fraca, tão imperfeita, que não distingue sequer os
corpos sólidos, tão transparentes como o vidro! Se um vidro sem brilho
me barra o caminho, lanço-me sobre ele como o passarinho que entra
num quarto e quebra a cabeça contra a vidraça; que há, portanto de
surpreendente em não saber distinguir um corpo novo atravessado pela
luz? Um ser novo, por que não? Certamente deveria vir! Por que
seríamos nós os últimos? Somos apenas alguns, tão poucos neste
mundo, desde a ostra até o homem. Por que não haveria um a mais?
(MAUPASSANT, 1984, p. 45).

Nada poderia ainda prosseguir em linha reta na vida desse


atormentado homem que se vê no hiato entre identidade e alteridade,
alijado de todos os fundamentos. Num dos planos do pensamento, no plano
próprio à consciência, ele se dispõe a escrever se comprazendo em estocar
memórias e pensamentos em seu diário, um correlato de arquivo do “eu”,
mas num outro plano, ele experimenta puro estranhamento, puro ignorar, e
não há estoque de conhecimentos ou lembranças que possa dar conta dos
uxos de sensações que o pervadem.
Tudo se passa nos dias que transcorrem entre 8 de maio e 10 de
setembro, dias da travessia de um homem que já não pode mais viver através
de sua percepção, de sua razão ou de sua consciência. Seus órgãos já não lhe
servem para o encontro com o extraordinário. A experiência de
estranhamento o habita por inteiro, seu corpo e seu ambiente não lhe
permitem nenhum repouso. Dias da decadência de uma suposta primazia
da consciência, primazia da percepção. Tudo o que até então lhe havia
assegurado da beleza do mundo como paisagem apreciável de sua janela, de
seu ponto de vista, de sua própria perspectiva centralizadora, já não lhe
trazia nenhum reconhecimento, mas passara a produzir efeito de distância,
surpresa, certo encantamento e medo.
O narrador, incapacitado de dar razoabilidade a essa experiência de
possessão, não tendo meios de se apropriar da surpresa desse
acontecimento, sente-se pervadido e, em não podendo acolher o diferir de si
mesmo, atribui a essa experiência o caráter de uma outra presença, presença
de um outro, um outro radical. Desesperado, não sabendo mais como livrar-
se dessa estranha presença, resolve trancá-lo, vedá-lo dentro da casa num
premeditado incêndio ao qual assiste extasiado fora da casa, em meio ao
jardim, a céu aberto, à sombra de sua árvore.
Ao tentar eliminar as forças que o afetam a tal ponto, ele incendeia
sua casa e põe-se do lado de fora. Contudo, ao procurar garantir-se na
concretude de seu organismo separado do que lhe torna outro de si, ele,
paradoxalmente, saindo de casa e lá trancando o que lhe parecia um
tormento de fora, acaba por se ver isolado no fora da casa, trancado fora ou
preso na liberdade republicana da cidade.
Nenhum apelo retensivo, tão próprio ao cidadão pacato e satisfeito
que ele fora até então, poderia agora deter seu furor de movimento, seu
ímpeto de por-se a caminho. Sua vocação sedentária havia sido
irremediavelmente posta em xeque por esse estranho habitante do Fora,
Horla, agente que é força atrativa, insidiosa, que age sobre o corpo e
corrompe porque faz sentir, faz imaginar. Não podendo identi car esse
pervasor de fontes múltiplas, o narrador se sente estupefato diante daquele
que, paradoxalmente, é o recurso mais intensi cante da transformação: o
fogo. Mas para cintilar como o fogo animado pelo ar, pelo sopro, há que se
tornar cada vez mais sutil, menos enrijecido, menos denso.
O fogo o faz mergulhar na mais alta experiência de intensidade,
pervadindo seus limites identitários, enquanto o mundo das tarefas e das
rotinas diárias se queima incorporado aos gritos das criadas que
permaneceram na casa, elas, as que zelavam pela vida dos organismos –
homem, casa, pátria, cronos.

A experiência do espaço na modernidade


“O fogo vive chez soi via o Vento!”, M. Serres (1994, p. 84) sintetiza
nessa frase, de maneira minimal, o sentido dessa novela que anuncia o novo
Homem, aquele cuja proximidade a si, longe de ser um Dentro é,
paradoxalmente, a íntima possibilidade da relação com o Fora (hors) e o Aí
(là): Hors-là.
A propósito dessa novela, Serres vai discutir o contraste de sentido
entre ver e visitar, o que nos permite pensar a diferença entre
comportamento e experiência, problematizando o conceito de espaço e o
caráter disruptivo das sensações.
Mas que espaço interessa a Serres? Espaço como não lugar, nem
apoio, nem fundamento. Espaço intensivo, vetorial, compatível com um
método exploratório que cartografa trânsitos, deslocamentos por paisagens
de sentido, que percorre mais do que desvenda o mundo. Tal é o espaço
subjetivo, tendo em vista as concepções do psiquismo enquanto processo
metonímico, arte da mudança e dos deslocamentos ou... dos devires; e se “o
si mesmo (self) e o meio ambiente cultural produzem-se mutuamente num
criativo jogo de contatos [...] um devir corre ou desliza sempre para fora:
fora do sujeito já vivido, fora da cultura já instituída.” (LINS; LUZ, 1998, p.
218).
De outra maneira, um espaço concebido como sítio, espaço situado
que implica centro e periferia, será compatível com um método diferente,
investigatório, interpretativo, que opere por descoberta, pretendendo
desvendar signi cados ocultos num psiquismo concebido como caixa-preta.
O que atormenta e espanta esse homem outrora tranquilo em sua
mansão é resultado de sua recusa em aceitar sua própria fragilidade, essa
insu ciência do organismo. Ele resiste a mergulhar nas sensações, em que já
não se está no domínio da inteligência ou dos sentimentos, mas no plano do
sentido, no trânsito das intensidades de afetos-vetores.
Para viver isso há que se mudar de perspectiva, do locus identitário
para o modo passagem, modo posicional, que não é exatamente instalar-se
em um organismo, nem no mundo da casa, da personalidade ou de uma
nação; é bem mais um descentramento, uma experiência indicada por
movimentos preposicionais que con guram um estranho giro, um giro do
sensível, um giro sem si.
Passar, girar, rodar, de uma posição sempre em trânsito, em direção
a, vers, perante, entre, com, desde, para, per.
Como bem indica Blanchot (2001, p. 64):
Encontrar, buscar, girar, ir em volta, são palavras indicando
movimentos, mas sempre circulares como se o sentido da busca fosse
necessariamente um giro. Encontrar inscreve-se nesta grande “abóbada”
celeste que nos deu os primeiros modelos do movediço imóvel.
Encontrar é buscar em relação ao centro, que é o próprio inencontrável.

Dessa questão se apropria Serres propondo que, em vez de


substantivarmos o sujeito numa ontologia identitária que o designa uno-
interior-íntimo, se experimente pensá-lo a partir de preposições,
problematizando as variações espaçotemporais apresentadas pelas
preposições. “Por que o sujeito habitaria um interior? Não será uma
estranha decisão a de reduzir todo o espaço e seus acontecimentos a um
único lugar suposto interior? Qual interior? Onde”? (SERRES, 1994, p. 80).
Do paradigma identitário resultam as ideias de sujeito individuado,
situado em um ambiente que lhe é exterior e anterior, sobre o qual a
possibilidade maior é a de estabelecer relações entre termos substantivos,
sejam esses outros sujeitos ou objetos. Trata-se de uma ordenação do tempo
e do espaço que implica distinções de começo, meio e m, em que o passado
se torna a dimensão interior do espaço vivido pelo sujeito, e o futuro a
dimensão exterior, da ordem do porvir.
Um outro modo de operar o sentido de espaço surge como
circulação de afetos e perceptos que constituem um meio, o qual,
diferentemente de um ambiente, é tensão de forças conectivas que fazem
acontecer, pela porosidade constitutiva de um entre, não fronteiras, mas
interfaces, tornando indissociável interior de exterior, dentro e fora,
enquanto direções cambiáveis e não dimensões separadas.
Maupassant, com o jogo de palavras lieux et milieux, indica um
outro regime de espaço no qual tomamos um lugar não como lócus, um
meio não como ambiente e sim como espaço-trânsito de acontecimento: seja
da singularidade urbana de Paris ou do porto uvial de Rouen, seja do
jardim ou do interior da casa ou do íntimo espaço do quarto de dormir,
tornando vivo o que se costuma chamar “espírito” de um lugar.
Assim também o autor traz à cena o espaço psíquico como um lugar-
sem-lugar, nem interno, nem externo e que, tal como o vento, se constitui
por seus deslocamentos, por suas passagens, suas andanças, não sendo
patrimônio unicamente de pensamentos ou emoções ou comportamentos.
Maupassant (1984) nos incita a pensar que a intimidade não será
nunca experimentável a partir de um dentro e sim, inevitavelmente, a partir
de um fora. Na sua narrativa, uma outra espacialidade está sendo construída
a partir da suspensão do cotidiano do personagem, nos seus modos de
existir e de pensar. Nessa outra espacialidade, a memória do narrador já não
pode ser contida nos arquivos de um diário.
O narrador se sente perante enorme desa o: sua memória, sua
imaginação e sua inteligência se engendram no enfrentamento com o
ignorado, o jamais vivido ou pensado, o que não pode ser reconhecido nem
representado, e que podemos tomar como o plano que força o pensamento a
criar, o plano do Fora – o impensado do pensamento.
O espaço que interessa a Serres (1997, p. 225) é campo de vetores, de
echas que indicam o sentido. A semiótica é, portanto, em primeiro lugar,
uma topologia que, ao tomar como objeto os trânsitos, nada quer saber dos
latifúndios, mas sim dos uxos: uxos de mensagens, de cartas, de barcos,
de rios, de ventos, uxo de ideias, afetos e pensamento.
As preposições trazem ao discurso as relações, tanto indicando
investimento gestual, posicional (a, ante, após, até, com, contra, de, desde,
em, entre, para, per, perante, por, em, sob, sobre, trás) quanto indicando
mudança e, portanto, emergência de sentido.
Como diz Serres (1997, p. 227), “quando tudo se move, nada muda.
A mudança de sentido, por menor que seja, introduz o sentido”.
Uma casa, uma nave. Eis a primeira disposição de espaços dessa
novela. Viver: habitar ou navegar? Habitar o espaço xo da casa ou navegar
os espaços utuantes dos rios e oceanos? Através das janelas posso ver o
mundo que me circunda e avaliar suas distâncias, mas não posso tocá-lo. A
nave, por sua vez, me implica com o espaço que percorro, com ela atravesso
as distâncias.
Ver não é visitar. A casa remete ao solo, a identidades familiares e
nacionais, organiza por fronteiras o que me é próprio, vizinho ou alheio.
Diferentemente, o barco me torna a mim mesmo alheio, errante, e em vez de
demarcar fronteiras, segue seu curso, passando sem deixar rastros.
Na novela Le Horla, a tensão entre a tradição e o novo, entre o antigo
e o moderno se apresenta em seu epílogo como proposta ético- losó ca: o
homem moderno não é aquele que perdeu alguma coisa, mas o que se dá
conta de que a destinação humana funda-se num ser desabrigado. Um
homem jamais está em parte alguma, um homem é deslocamento,
passagem. O Tempo é seu habitat.
Como tal, ao m da novela, o narrador se encontra a céu aberto sem
nenhuma garantia. Seu diário narra a perplexidade intensi cada de uma
crise cujas indagações apontam a transversalidade entre loso a e arte: O
que está acontecendo comigo? O que está acontecendo? O que é este
mundo, esta época, este momento preciso em que vivemos? Tais questões
atravessam também o pensamento losó co.
Se Descartes (século XVII) se perguntava o que sou eu enquanto
sujeito único e Kant (século XVIII), quem somos nós, num momento
preciso da história, Foucault (século XX) inverte a questão propondo que o
interessante talvez não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos
(FOUCAULT, 1995, p. 239).
A novela narra a passagem crítica que abalou irreversivelmente todo
o modo de existir de seu personagem, o qual enfrenta a aventura dos efeitos
subjetivos provocados pela intensi cação do movimento das migrações no
mundo, no ocaso do século XIX, fator de desestabilização para o
individualismo burguês que se tornara domesticado pelas práticas de uma
habitação sedentária.
Do asseguramento de seus costumes, sua língua, seu território, sua
terra natal, o narrador passa a uma perda de con ança, uma angústia de
aprisionamento tanto na sua forma privada de vida, quanto nas liberdades
republicanas da cidade, Paris. Ele já não se basta como centro, já está
contagiado por uma epidemia de desterritorialização. Trata-se de seres que
circulam invisíveis e poderosos como o vento, desabrigando-se das casas e
parasitando outros. Seres que vêm da desconhecida América do Sul.
Ao nal da novela, o narrador assume inteiramente seu ímpeto
libertário, se entrega aos devires, incendiando sua casa, seus valores, sua
tradição.
Em O sujeito e o poder, cuja questão é a inerente intimidade entre a
liberdade e o poder, Foucault (1995, p. 235) analisa as lutas que questionam
o estatuto do indivíduo, mostrando como elas não têm “valor de serem
contra ou a favor do indivíduo, mas sim de batalharem contra o governo da
individualização. É uma forma de poder que faz dos indivíduos sujeitos”.
Na sua vertente coletiva, o homem está pervadido pelas forças do
socius que se inscrevem em seu corpo, seus pensamentos. Tais forças o
pervadem através de diferentes semióticas que se atravessam: toda uma
arquitetura, toda uma natureza, toda uma língua. O homem moderno
consiste nesta agonística entre o poder e a libertação, tal como seu corpo se
constitui num equilíbrio instável entre as formas e as forças.
A modernidade é a força de ímpeto para o novo nesse homem
moderno, esse que também deseja identidade e domicílio, esse que se
assegura por seu itinerário passado, sua tradição e quer garantir a si a
veri cabilidade do real. A modernidade o incita à produção de uma
subjetividade constituída a partir da incerteza, da itinerrância; o faz
capturado pelo instante, pelos signos de outros possíveis, de um outro
mundo com uma outra lógica e outros desejos. Poderia a modernidade ser
pensada enquanto linha de fuga do paradigma moderno?
Maupassant está apresentando o atravessamento temporal do
homem no m do século XIX. O autor dá espessura histórico-política à
dessubjetivação de um indivíduo nesse momento em que as populações
viajam, se movem, produzem o sentido de estrangeiro. O duplo
constrangimento então vivido é mostrado pelo personagem, tanto ao temer
o que possa vir do outro lado dos Pirineus (modo como Montaigne se
referia à relatividade da verdade, de modo que pudesse haver outra verdade,
outras verdades, do outro lado dos Pirineus), como também ao estranhar e
temer a si mesmo no contato com suas forças íntimas e paradoxalmente
desconhecidas.
Junto à constituição do Estado Republicano se esboçam insurreições
libertárias em todas as esferas da cultura, tal como o acontecimento
modernista, movimento que se engendra na virada do século XIX para o
XX, extraindo do Moderno sua própria modernidade.
Assim também Freud, com a psicanálise, com Grodeck, traz para a
cena da belle époque a outra dimensão das ações, domínio das forças,
indiferente à soberania de um Eu. Na novela, o personagem Horla se
apresenta como um duplo do homem, poderoso por agir sobre as ações
desse homem pretensamente livre até então.
A novela se apresenta como o enfrentamento das forças da mudança,
porque a modernidade é justamente um fazer jus ao presente numa atitude
limiar, num ethos, e essa atitude não busca fundamento, mas é fundação de
outras maneiras de existir. Daí a proposta ético-política da novela ao
tematizar a crise de orfandade psíquica que acomete o narrador, homem
identitário, para quem o maior sofrimento é o risco da morte prematura e
cuja vida se endereça ao progresso, à completude.
A esse desa o, Serres responde num incentivo:
Matar o velho homem que dorme no interior de suas categorias, seguir
o Horla: eis o viver, aprender, conhecer, inventar. Incendeie sua casa de
carne e de pedra, entre no mar, embarque nesta nave branca, sabendo
que muitas vezes será preciso mudar de embarcação, mudar de oceano,
de porto, de país (SERRES, 1994, p. 65).

Na novela Le Horla, temos o narrador com seu diário, pedaço de


memória, testemunho voluntário do vivido. O diário é sua garantia de que o
momento não passará, de que ele não perderá o controle dos
acontecimentos, por estar garantindo o espaço para seu registro. Mas tempo,
espaço e acontecimento: será possível xá-los?
Eis que, a partir do encontro com este ser Horla, ele interrompe seu
relato, suspende a escrita em seu diário. Não sabendo como diluir o impacto
dessa diferença, nem como excluí-la, pois não era possível pensar o Horla
como um outro antropomór co, restava senti-lo como um outro radical
que, no entanto, se tornara compatível. Como acessar seu regime de
afetabilidade?
Após essa tentativa malograda de dar contenção ao incontinente, o
personagem arrisca incendiar o outro e, para tal, incendeia todo o seu
espaço, num ato que o leva a apostar numa outra ordem, oriunda da
virtualidade do caos. Desapegando-se de uma vida de necessidades, opera a
inversão do natural, sob o domínio das forças desejantes e se entrega
perplexo e fascinado à fragilidade e à impermanência.
Maupassant aponta uma revolução paradigmática: incendiar os
valores, os fundamentos, os princípios, tudo o que está pairando acima de
qualquer experiência praticada e abrir-se ao tempo de seu próprio
acontecimento, implicado com o que lhe acontece.
Diferentemente do homem iluminista, para o qual o futuro é
promessa de cura, entendimento dos mistérios, progresso redentor pela
superação das crenças e a rmação da verdade cientí ca, para o homem da
modernidade, viver implica uma atitude experimental, sem certezas, uma
disposição perante um futuro inantecipável.
Assim também, ao nal de Le Horla, o narrador olha, não mais
através das vidraças, mas a céu aberto, não mais para uma paisagem imóvel,
mas para a turbulência das chamas, imagem da multiplicidade.
Cabe a Foucault (1981, p. 34) a palavra:
Pois esta identidade, bastante fraca, contudo, que nós tentamos
assegurar e reunir sob uma máscara, é apenas uma paródia; o plural a
habita, almas inumeráveis nela disputam; os sistemas se entrecruzam e
se dominam uns aos outros. Quando estudamos a história nos sentimos
felizes, ao contrário dos metafísicos, de abrigar em si não uma alma
imortal, mas muitas almas mortais. E em cada uma destas almas, a
história não descobrirá uma identidade esquecida, sempre pronta a
renascer, mas um sistema complexo de elementos múltiplos, distintos, e
que nenhum poder de síntese domina.

Referências
BLANCHOT, M. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
_______. A conversa in nita. São Paulo: Escuta, 2001.
CALVINO, I. Contos fantásticos do século XIX. São Paulo: Schwarcz, 2004.
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 2004.
DELEUZE, G. A dobra. São Paulo: Papirus, 1991.
_______. Mil platôs Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.
FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: MACHADO,
Roberto (Org.). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1981.
_______. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel
Foucault: uma trajetória losó ca. São Paulo: Forense Universitária, 1995.
_______. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 1996.
GAUCHET, M. L’inconscient cerebral. Paris: Éditions du Seuil, 1992.
LINS, M. I. ; LUZ, R. D. W. Winnicott: experiência clínica & experiência
estética. Rio de Janeiro: Revinter, 1998.
MAUPASSANT, G. Le Horla et autres nouvelles. Paris: Albin Michel, 1984.
PASSOS, E. ; BENEVIDES DE BARROS, R. A construção do plano da
clínica e o conceito de transdisciplinaridade. Psicologia: Teoria e Pesquisa,
vol. 16, n. 1, p. 71-79, jan./abr. 2000.
SERRES M. O nascimento da Física no texto de Lucrécio. São Paulo: UNESP,
l997.
_______. Atlas. Paris: Éditions Julliard, 1994.

1 Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Doutoranda em Psicologia Clínica da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
2 ProfessorAssociado do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Doutor em
Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Baudelaire e a modernidade
Daniel Menezes Coelho1

Introdução
Falar em Modernidade, hoje, é algo que já soa antigo. As indicações
de ultrapassamento ou radicalização desta, marcados pela insígnia do pós-
moderno e suas variações fazem, hoje, este efeito de oximoro no qual o
termo “moderno”, de nido no Michaelis como “dos tempos mais próximos
de nós; recente”, “dos nossos dias; atual, hodierno, presente”, “que está em
moda”, “que existe há pouco tempo” (MICHAELIS..., 2007) soe exatamente
como o que o mesmo dicionário indica como seu antônimo, “antigo”. Como
veremos, tal efeito não é apenas jogo de palavras, gura de retórica. Esta
equivocação é própria da modernidade, no que ela não se contenta em ser
atual, no que ela deve negar-se em sua forma atual, qualquer que seja, para
produzir o novo, de novo.
Outra di culdade que enfrentamos no assunto é saber quando tal
jogo começa. Interessante o que Koyré, lósofo que encontrava no tema da
modernidade um dos seus principais assuntos, pergunta em artigo sobre o
tema: “o termo ‘moderno’ tem algum sentido? Somos sempre modernos, em
qualquer época, quando pensamos mais ou menos como nossos
contemporâneos e de modo um pouco diferente dos nossos mestres”
(KOYRÉ, 1991a, p. 15).
Koyré pensava sua modernidade a partir do aparecimento da ciência
galileana, que para ele produz um corte na história. Se esse corte parte do
campo da produção de conhecimento, sacode todos os aspectos da vida. A
partir da ciência a vida ganha um novo tempo, que se conta não mais pela
alternância do dia e da noite ou das estações do ano, mas divide o dia em
horas, minutos, segundos, se encarrega de que este tempo passe
uniformemente, de que todos o sigam (KOYRÉ, 1991b). Mas, sobretudo, a
ciência oferece uma nova forma de ver e de pensar o mundo. Um universo
in nito, contingente, e cujas formas são apreensíveis pela via da matemática,
em contraposição ao cosmos fechado e hierarquizado, tal como pensado na
Antiguidade (KOYRÉ, 2006).
Cai, sobretudo, com a ciência, a ideia de que o mundo se organiza
segundo uma hierarquia, que vai do mundo corrompido que habitamos,
como ponto mais baixo, à forma perfeita da lua, aos pontos imateriais das
estrelas, ao ser como causa e m, eterno e imutável, sempre no mesmo lugar.
A queda da hierarquia do mundo produz, após certo tempo, a queda
da hierarquia social. A colônia corta o cordão com a metrópole, o povo
corta a cabeça do rei, todo o Absolutismo treme, todo absoluto treme. A
organização social parece abrir-se ao mesmo in nito que se abria na própria
concepção de mundo. Não sem, no entanto, certa formação de compromisso
com o que se estava deixando para trás. Se podemos, sem muito esforço,
chegar à conclusão de que é a divindade, como cume das hierarquias, que
não tem mais lugar no mundo moderno, é preciso apontar que a revolução
cientí ca não produzirá uma revolução social sem que se promova a
divindade do Homem, doravante tido como ser dotado de razão e liberdade,
tal qual o lho que assume o papel do pai nas empresas da família, por
motivos de morte ou impedimento deste. As revoluções liberais são marcas
maiores da passagem de uma sociedade antiga a uma moderna, em que o
corte maior da ciência, tal como sublinhamos em Koyré, atravessa a camada
social até os pescoços nobres, abrindo uma nova ordem que começa com a
a rmação de que os homens são livres e iguais, a nalidade da política
sendo a de conservar os direitos naturais e imprescritíveis destes homens
(DECLARAÇÃO..., 1789).
O rolar de cabeças, mais ou menos simbólicas, continua pelos
tempos, não sem certos freios, mas até hoje. Atividade fundamental da
modernidade, a crítica e a derrubada da autoridade são motores
fundamentais para o esplendor de mudança e de diversidade que os tempos
modernos põem em cena. “A modernidade – diz Kumar – não é apenas o
produto de uma revolução [...] mas é em si basicamente revolucionária, uma
revolução permanente de idéias e instituições” (KUMAR, 1997, p. 92).
Não se estranha então que o Homem quase divino que indicamos
como formação de compromisso com o mundo antigo destine-se também,
ideia e instituição que é, a ser ele próprio o alvo da faca crítica da
modernidade. A emulação de nobreza na declaração de seus direitos, ao
mesmo tempo divinos e naturais, demora pouco para mostrar suas origens
humildes e mundanas. No mesmo passo da revolução, um nobre execrado
escreve novelas bestiais a m de rebaixar o homem ao nível do resto das
produções da natureza (SADE, 1999). Não tardaria para que Darwin zesse
o mesmo esforço, com um pouco mais de pudor.
Eis, então, outro efeito de oximoro da modernidade. Ao mesmo
tempo que é preciso reconhecer a mudança e a diversidade, a in nita
possibilidade do novo, é preciso também reconhecer a massi cação, tanto de
gente como de produção, a igualdade uniforme e banalizante que afeta
pessoas e coisas. Viver na cidade moderna é estar, ao mesmo tempo,
condenado ao convívio com os demais, concentrados que estão sobre um
mesmo pequeno espaço, e sujeito a uma extrema solidão, pois a
proximidade espacial não coincide, como dantes, com a proximidade
simbólica. A multidão urbana é feita de solitários.
Viver na cidade moderna, ainda, é conviver com o lixo. A poluição
das fábricas e dos veículos, os restos industriais, os restos do consumo, a
urina, a merda, o mau cheiro. Lixos e restos feitos de coisas, mas também de
pessoas. A cidade moderna e seu substrato econômico e simbólico são
terreno fértil para o surgimento de tipos e personagens inéditos, para o
surgimento de toda uma estética cuja beleza é banal, suja e maligna. Temos,
assim, o aparecimento dos tipos trazidos nos poemas e ensaios de
Baudelaire. O âneur, o dândi, a prostituta, o trapeiro... . A vida parisiense
parece uma grande galeria, onde o que há para fazer é olhar vitrines, ser
olhado, se vender, recolher os restos deixados pelos outros. Tudo o que passa
à vista é interessante. E há também certo desinteresse generalizado, certa
indiferença pelo mundo e pelo outro.
O berço de Baudelaire é uma Paris já moderna. Os tipos
baudelairianos são já os burgueses e os proletários, a elite e a massa de uma
cidade já vivendo sob a fumaça das indústrias, homens já vendendo sua
força de trabalho e homens já se revoltando com isso. Baudelaire se interessa
especialmente por aqueles tipos vadios, fora do jogo do capital industrial,
senão por estarem dele excluídos, por serem dele subproduto, resto, lixo. Os
tipos baudelairianos são aqueles que, de certa forma, relatam o lixo
industrial transeunte nas ruas de Paris. É do lixo humano que lá se encontra
que brotam suas ores do mal.

A Paris moderna
Encontramos um belo retrato da Paris de Baudelaire em um ensaio
seu chamado “O pintor da vida moderna” (1997), no qual escreve sobre
Constantin Guys, desenhista e pintor, amigo seu, que, segundo ele, consegue
retratar efetivamente o que há de moderno, a essência do moderno.
Baudelaire apresenta-o como um autodidata que começou a pintar já velho,
obcecado pelas imagens que lhe povoavam a cabeça. Pintava como um
bárbaro, como uma criança, mas pouco a pouco se ensinou os truques do
ofício, jamais perdendo, no entanto, a simplicidade de seus primeiros
desenhos. Não se trata de um artista, no sentido estrito daquele que domina
uma arte e sua técnica, mas que vive apartado do mundo, encerrado em seu
próprio ateliê. O próprio Guys rejeita a insígnia. Baudelaire prefere entendê-
lo como homem do mundo, no sentido amplo: “homem do mundo inteiro,
homem que compreende o mundo e as razões misteriosas e legítimas de
todos os seus costumes” (BAUDELAIRE, 1997, p. 16).
O campo de seus interesses é ilimitado. Retratos de mulheres, cenas
cotidianas, mas também a guerra e as pompas militares. Interessa-lhe tudo o
que o impressione, que atice sua curiosidade, que lhe cause espanto. Isso
passa por seu método: pintor da cena movente, do burburinho urbano, não
lhe serve o modelo a posar. Sua arte é mnemônica, pinta não um modelo ou
uma cena, mas a impressão que deixaram em sua memória. Quer passar ao
papel, não a riqueza dos seus detalhes físicos, mas a profusão de impressões
que a memória fornece quando se evoca tal ou qual lembrança do modelo
ou da cena. Sua arte é o resultado deste duelo entre “a vontade de tudo ver” e
a “faculdade da memória”; entre o interesse ilimitado e a memória caótica,
assaltada por uma turba de detalhes. O trivial, o detalhe sem importância
tomam a cena e reclamam a mesma atenção que o tema principal.
“A modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade
da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável” (BAUDELAIRE, 1997,
p. 25). Guys pinta o efêmero, o movimentante, o movente, ou mesmo o
próprio movimento. Isso é o que parece ser próprio da modernidade, em
Baudelaire. Ela é constante movimento, mudança, transitoriedade,
revolução.
Seus tipos nascem e habitam nesse movimento constante. O âneur,
observador que anda pelas ruas, só pode surgir aí, numa cidade em
constante movimentação. E a poesia de Baudelaire se vale desse movimento.
Diz ele que sua arte, assim como a de Guys, é como uma estranha esgrima:
O sol

Ao longo do arrabalde em que, pelas mansardas,


Persianas fazem véu a luxúrias bastardas,
Quando o sol reverbera, imponente e inimigo,
Sobre a cidade e o campo e sobre o teto e trigo,
Eu ponho-me a treinar em minha estranha esgrima,
Farejando por tudo os acasos da rima,
Numa frase a tombar como diante de obstáculos,
Ou topando algum verso há muito nos meus cálculos.

(BAUDELAIRE, 1983, p. 154)

Poderia parecer que o próprio poeta é um âneur, mas isso não é


verdadeiro. Benjamin (1989) a rma que Baudelaire é por demais distraído
para a ânerie. Nesta, “o desejo de ver festeja seu triunfo” (BENJAMIN,
1989, p. 69), em busca do “prazer efêmero da circunstância”
(BAUDELAIRE, 1997, p. 24). Já Baudelaire tropeça em versos, perdido entre
pensamentos e preocupações. É a esse olhar desatento sobre a cidade de
Paris que se dirige sua “estranha esgrima”. Porém, não está de todo afastado
da ânerie. Esta tem a “consciência da fragilidade dessa existência. Ela faz da
necessidade uma virtude [...]” (BENJAMIN, 1989, p. 70). Esta virtude é
presente em qualquer herói baudelairiano. Diz ele, em carta à mãe: “Estou a
tal ponto habituado a sofrimentos físicos, sei tão bem contentar-me com
umas calças rotas, uma jaqueta que deixa passar o vento e com duas camisas
apenas, tenho tanta prática em encher os sapatos furados com palha ou
mesmo com papel, que só sinto os padecimentos morais.” (BAUDELAIRE
apud BENJAMIN, 1989, p. 71-72)
O herói baudelairiano, como ele próprio, é um despossuído.
Despossuído que aparece em meio à “multidão doentia, que traz a
poeira das fábricas, inspira partículas de algodão, que se deixa penetrar pelo
alvaiade, pelo mercúrio e todos os venenos usados na fabricação de obras
primas”. Multidão essa que melancolicamente “lança um olhar demorado e
carregado de tristeza à luz do Sol e às sombras dos grandes parques”,
imagem de fundo do herói, rotulada por Baudelaire, que escreve logo
abaixo: modernidade (BENJAMIN, 1989, p. 73).
O herói moderno é aquele que trans gura a paixão e o poder
decisório, em contraposição ao herói romântico, que glori ca a renúncia e a
entrega. Porém, o moderno é já incomparavelmente mais reticulado,
incomparavelmente mais rico em restrições. Herói que não recebe sua
insígnia de Deus ou do Destino, herói banal, cotidiano. Antes, o gladiador;
agora, o caixeiro-viajante de Balzac (“Que atleta! Que arena! E que armas!
Ele, o mundo e a sua lábia!”), ou o proletário que enche sua alma com a do
vinho (BENJAMIN, 1989, p. 73-74):
A alma do vinho

Acenderei o olhar de tua bem querida;


A teu lho darei os músculos e as cores,
Serei para este fraco atleta desta vida
Óleo a robustecer bíceps de lutadores

(BAUDELAIRE, 1983, p. 189)

A glória dos gladiadores é agora a do proletário.


O herói de Baudelaire é praticamente um suicida. “A modernidade
deve se manter sob o signo do suicídio, selo de uma vontade heróica, que
nada concede a um modelo de pensar hostil. Esse suicídio não é a renúncia,
mas sim paixão heróica. É a conquista da modernidade no âmbito das
paixões” (BENJAMIN, 1989, p. 74-75). Embora o assunto esteja muito
presente na poesia de Baudelaire, não me parece que o suicídio deva ser
tomado ao pé da letra. Ele se inscreve muito mais num suicídio simbólico,
abandono da vida regrada do burguês, ou do trabalho incessante do
proletário. O suicídio é bem representado, assim, no próprio herói
baudelairiano, sendo ele já previamente “suicidado”.
O herói moderno é próximo da gura do apache: “O apache é aquele
que renega as virtudes e as leis. Rescinde de uma vez por todas o contrato
social. Assim se crê separado do burguês por todo um mundo.”
(BENJAMIN, 1989, p. 78).
Baudelaire propõe como herói não o detetive de Poe, ou o grande
marginal de Balzac. Seu herói é um pequeno infrator, o vagabundo simples,
a prostituta da esquina. Não é o grande herói, ou o grande vilão, mas o
pequeno homem que decidiu não mais estar na lei. Ele não é grande ameaça,
ou grande salvação; é apenas lixo: “Os poetas encontram o lixo da sociedade
nas ruas e no próprio lixo o seu assunto heróico. Com isso, no tipo ilustre do
poeta aparece a cópia de um tipo vulgar.” (BENJAMIN, 1989, p. 78).
O herói moderno é nada mais que um vagabundo vulgar.
Interessante notar que não é apenas Baudelaire que o propõe. Em
meados do século XX aparece On the road, livro base do movimento
beatnick, no qual o autor relata suas aventuras numa espécie de ânerie coast
to coast, regada a vinho, drogas e jazz. É marcante ali o elogio reiterado do
vagabundo. O seu próprio herói é um grande vagabundo, um andarilho sem
rumo desde a infância. Em certa parte do texto, se lê: “Aleluia, sou um
vagabundo, um vagabundo novamente!” (KEROUAC, 1997, p. 208).
Nada mais compreensível: o signo maior da modernidade é o da
banalização. O divino, o transcendental, o absoluto, tais guras maiores, que
regraram a construção dos heróis até então, nada mais disso tem lugar num
mundo em que, da organização do Estado até os meios de produção, das
relações entre as pessoas à construção de conhecimento, tudo é banalidade,
tudo é substituível. O caráter de transitoriedade da modernidade, tão
marcada em Baudelaire, faz com que o destino comum das coisas seja o lixo.
Condenação sem choros ou lágrimas, no entanto. A banalidade é bela, e ca
cada vez mais bela na medida do avanço da modernidade. Em Baudelaire, o
lixo humano banal, o transeunte banal, mas ainda adornado poeticamente
com insígnias do herói antigo; em Duchamp, a própria arte banalizada, um
Matisse para cobrir a tábua de passar roupas, a Mona Lisa com bigodes; em
Warholl, a produção e o consumo da banalidade, desde as latas de sopa até
Marilyn Monroe.
Porém, levanta-se uma suspeita contra o herói de Baudelaire:
Lamentações de um Ícaro

Os amantes das rameiras são


Ágeis, felizes e devassos;
Quanto a mim, fraturei os braços
Por ter alçado além do chão

(BAUDELAIRE, 1983, p. 273)


Decadência diferente, portanto, da tragédia edipiana. Édipo apenas
cumpre seu destino; seu sofrimento e decadência fazem parte de sua ascese
ao mundo dos deuses. O Ícaro de Baudelaire não cumpre destino, apenas
quis ir longe demais. O que se pode dizer é que nestes versos, onde o poeta
denuncia a própria queda do herói que ele propõe ser, já está inscrita a
própria estrutura do herói moderno, que, “fadado à decadência, dispensa o
surgimento de qualquer poeta trágico para descrever a fatalidade dessa
queda. Mas assim que vê seus direitos conquistados, a modernidade expira”
(BENJAMIN, 1989, p. 79-80). O moderno, em Baudelaire, tem a vocação de
virar antigo, contraposto a um novo moderno. A beleza da modernidade
está em sua transitoriedade, em sua velocidade, no que ela é,
fundamentalmente, “[...] o que ca menos parecido consigo mesma”
(BENJAMIN, 1989, p. 88). Vemos, assim, o poeta escrever:
XXXIX

Estes versos te dou para que, se algum dia,


Feliz chegar meu nome às épocas futuras
E lá zer sonhar as humanas criaturas,
Nau que um esplêndido aquilão ampara e guia,
Tua memória, irmã das fábulas obscuras,
Canse o leitor com pertinaz monotonia

(BAUDELAIRE, 1983, p. 80)

Baudelaire se quer como antigo, pois tem a consciência de que a


modernidade é algo que não para, que produz antiguidades, arma seu
próprio m, aniquila seus próprios heróis, pois, nascendo da revolução, e
sendo revolução constante, tem a necessidade de repeti-la, a essa revolução,
cortando cabeças, produzindo sempre o antigo, para que se possa dizer
moderna.
O âneur, assim, é aquele que se interessa por tudo à sua volta,
admira com olhos talvez vidrados o movimento da massa, o uir de objetos,
a constante produção de lixo, da qual, aliás, nasce. Baudelaire admira-o por
isso. Parece ser esse o principal elogio a Guys, em seu ensaio sobre a
modernidade. Ele cita o próprio amigo, o qual tem o ponto de partida de sua
arte na curiosidade:
‘Todo homem’, dizia G. um dia, numa dessas conversas que ele ilumina
com um olhar intenso e um gesto evocativo, ‘todo homem que não é
atormentado por uma dessas tristezas de natureza demasiado concreta
que absorvem todas as faculdades, e que se entedia no seio da multidão,
é um imbecil! Um imbecil! E desprezo-o!’ (BAUDELAIRE, 1997, p. 21,
grifo do autor).

A ânerie, quase detetivesca – Benjamin (1989) chega a apontar que


essa seria a origem do detetive amador descrito por Poe – é um interesse
demasiado por tudo e por todos. Guys, segundo Baudelaire, ultrapassa esse
propósito, tem um objetivo mais geral do que o mero “prazer efêmero da
circunstância”. A modernidade é seu objeto, ele – assim como o próprio
Baudelaire – busca o sentido dessa palavra, busca “extrair o eterno do
transitório” (BAUDELAIRE, 1997, p. 24). Busca, en m, transformá-la em
antiguidade. Aparece novamente esse paradoxo da modernidade, em que
de ni-la é ao mesmo tempo matá-la.
Retomemos, neste ponto, a discussão atual em torno dos termos
moderno e pós-moderno. No que Baudelaire pode nos ajudar aqui, nos
parece que ele resolveria o problema já de saída. Isso porque a modernidade
é em si mesma pós. Ao se de nir o que seja ela, já é outra coisa, já é pós-
modernidade. A sina de seus heróis, assim como a sua própria, é
transformar-se em antiguidade. A suposta crise de fundamentos que hoje
vivemos não seria então a da própria modernidade, o próprio fundamento
da modernidade? Ela é assentada sobre uma crise. Nasce reiteradamente de
revoluções. A modernidade é crise perene, revolução perene. E algo de novo,
alguma crise nesse fundamento; isso não parece comparecer nos dias de
hoje.
Outra gura típica em Baudelaire é a do dândi. Espécie de avesso do
âneur, o dândi é um “Hércules sem emprego” (BAUDELAIRE, 1997, p. 52),
ser de ascendência nobre que porta o brilho de herói na decadência dos
tempos. Passa seu dia a fazer nada, veste-se elegantemente. Parece ser, ao
contrário do âneur que quer tudo ver, aquele que quer por todos ser visto.
Sua nobreza parece não ter mais espaço e, assim, não encontra onde mostrar
seu heroísmo. Aparece como gura apática, beleza decaída, porém
inafetável, resto de nobreza que guarda a pose blasé para exibi-la na
insinuação de uma potência que não tem mais lugar:
O tipo da beleza do dândi consiste sobretudo no ar frio que vem da
inabalável resolução de não se emocionar; é como fogo latente que se
deixa adivinhar, que poderia – mas não quer – se propagar.
(BAUDELAIRE, 1997, p. 53)

O dandismo é um sol poente; como o astro que se declina, é magní co,


sem calor e cheio de melancolia. (BAUDELAIRE, 1997, p. 51)

Devemos notar que um traço perpassa tanto o interesse generalizado


da ânerie quanto a chique apatia do dandismo, de igual maneira: a
indiferença. Para o apático dândi, pouco importa objetos e pessoas. Se, nisso,
ele se oferece para o olhar do outro, pouco importa também quem seja esse
outro. Ao mesmo passo que, sem objeto de nido, o interesse do âneur
passeia por todos os objetos disponíveis, pouco importando quais. De um
lado ou de outro, pelo interesse ou pelo desinteresse, tudo é indiferente – a
desmontagem das hierarquias passa então do mundo físico ao mundo social,
ao campo mesmo do gosto.
Se essa indiferença é até certo ponto mortífera, o que se evidencia no
que atualmente se designa pela insígnia de novas patologias, tais quais os
distúrbios bipolares (interesse e desinteresse generalizados e alternados), a
síndrome do pânico (fobias sem objeto especí co), as crianças hiperativas
(cujas atenções são dispersas e moventes), e mesmo as perversidades sociais
e as psico ou sociopatias (cujo desprezo pelo outro é a marca), ela é uma das
vias pela qual se pode abordar um tema recorrente na modernidade: a
“felicidade no mal” é uma ideia moderna. Tal indiferença, tomada não como
efeito achatador, dispersante e improdutivo, mas como abertura para
possibilidades, nos parece ser o que torna viável que Baudelaire possa
enxergar beleza e felicidade no que se colocava apenas como o mal. “O belo
não é senão uma promessa de felicidade” (BAUDELAIRE, 1997, p. 11). Ora,
se há uma beleza que Baudelaire não se cansa nunca de anotar é aquela que
se faz presente no lixo humano de Paris, ou seja, aquela que se faz presente
no mal.

Ética e estética: a felicidade no mal


Ao leitor

É o Diabo que nos move atrás dos cordéis!


O objeto repugnante é o que mais nos agrada;
E do inferno a descer sempre um degrau da escada,
Vamos à noite errar por sentinas cruéis.

(BAUDELAIRE, 1983, p. 7)

Assim Baudelaire abre suas Flores do Mal. Deixa claro aqui o de que
se trata. O gosto pelo repugnante, a beleza do lixo, as ores que são dadas
não para agradar, mas para ferir.
A modernidade inaugura uma nova estética. Lacan, em seu “Kant
com Sade”, aponta que é Sade quem inaugura o tema da felicidade no mal
(LACAN, 1998, p. 776). Seu elogio ao crime, sua república do gozo, sua
loso a da alcova se escrevem sob os ares revolucionários, sob o começo de
um sonho de liberdade com razão. A partir de Lacan, vemos o laço entre a
moralidade extrema de um Kant e a obscenidade maligna de um Sade. É a
mesma coisa, parece dizer Lacan: “É Sade, a moralidade” (LACAN, 1985, p.
117).
Em sua provocação “Franceses, mais um esforço, se quereis ser
republicanos [...]” (SADE, 1999, p. 125-181) a partir da qual Lacan constrói
um imperativo categórico sadeano, cujo texto seria: “tenho o direito de
gozar do seu corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei esse direito,
sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê
gosto de nele saciar, pode me dizer quem queira” (LACAN, 1998, p. 780), o
autor mostra a face crua e maligna da modernidade que não mais seja a
igreja do Homem – ou seja, da modernidade levada a cabo.
Seu pedido de esforço nada mais é do que um pedido se seriedade.
Pois, se levamos a sério a proposta da revolução, aquela que se quer apoiada
na cienti cidade, na “naturalidade”, não há por que colocar leis severas,
penas de morte, catalogação de crimes. Segundo Sade, está tudo apoiado
ainda na quimera da religião, primeira coisa a ser abolida na instauração da
república.
Assim é que tomamos o pensamento de Sade do seguinte ponto:
“Vamos aqui sem dúvida humilhar o orgulho do homem rebaixando-o ao
nível de todas as outras produções da natureza” (SADE, 1999, p. 160). Logo
depois continua: “O que é o homem, e qual a diferença entre ele e as plantas,
entre ele e os outros animais da natureza? Certamente nenhuma” (SADE,
1999, p. 161). Trata-se de fazer do Homem, ao contrário dessa espécie de
bastião da antiguidade, apenas mais um caso do universo.
Em Sade, isso se encaminha para a proposição de um Estado
absolutamente mínimo. “Oferecendo aqui o nada [...], a indiferença de uma
in nidade de ações que nossos ancestrais, reduzidos por uma falsa religião,
viam como criminosas, reduzo nosso trabalho a bem pouco” (SADE, 1999,
p. 170). Na verdade, apenas a tarefa de que nenhuma quimera, nenhuma
falsa religião voltem a reinar de novo.
Em Sade, a indiferença que isolamos na modernidade baudelairiana
não é liberdade, mas lei, o que leva a coisa aos seus limites extremos. Aos
republicanos que, ao declararem-se livres e iguais, tinham em mente uma
sociedade na qual o crime não tivesse lugar, na qual a lei, tomando a forma
justa da razão, servisse para evitar as arbitrariedades absolutistas, Sade
contrapõe seu reino criminoso, no qual ser livre e igual não é iluminação da
grandeza moral kantiana, essa espécie de absolutismo abstrato, cujo rei
todos seguem de boa vontade. A liberdade, para Sade, é a de gozar de
qualquer corpo; a igualdade, a de que qualquer um pode gozar do meu.
Trata-se, aí, do absolutismo da natureza sadeana, absolutismo da vontade
(ou do desejo, ou do tesão, ou da pulsão). Fato é que, por uma via ou por
outra, acabam-se as diferenças entre o plebeu e o nobre. Kant, lho de
artesãos que nunca deixou Koningsberg, inaugura uma moral de plebeu,
cuja nobreza, no entanto, deve ser vazia; Sade apresenta uma moral de
nobre, cujo plebeu é qualquer um. Articula a passagem de um a outro o
problema do gozo, como o demonstra Lacan (1998).
Não seria essa liberdade assustadora o objeto dos atuais pânicos?
Pois na la da guilhotina, Sade coloca não só o Rei, mas também o Homem,
a Igreja, o próprio Eu: se Lacan tem razão na sua construção do imperativo
categórico sadeano, o “pode me dizer quem queira” que termina a
formulação aponta para que não haja nenhum tipo de privilégio, nenhum
tipo de exceção, nenhuma hierarquia: nada que segure a crença narcísica no
eu, posto aí no lugar de objeto de gozo do Outro. A depender de onde se
esteja – no lugar de sujeito ou de objeto –, ou bem se sabe gozar, quase-
todo-poderoso, ou bem se está sendo gozado, radicalmente despossuído. Na
segunda forma, falta o chão, os músculos não obedecem, se é tomado por
uma sensação de morte iminente etc.
É interessante notar Freud (1969d), em “Psicologia das massas e
análise do eu”, colocar o fenômeno do pânico justamente ligado à queda do
líder:
A ocasião típica da irrupção de pânico assemelha-se muito à que é
representada na paródia de Nestroy, da peça de Hebbel, sobre Judite e
Holofernes. Um soldado brada: ‘O general perdeu a cabeça!’ e,
imediatamente, todos os assírios empreendem a fuga. A perda do líder,
num sentido ou noutro, o nascimento de suspeitas sobre ele, trazem a
irrupção do pânico, embora os perigos continuem os mesmos (FREUD,
1969d, p. 124).

É quanto a “uma perda de natureza mais ideal” (FREUD, 1969c, p.


277) também que Freud situará a melancolia. O laço do melancólico com o
objeto perdido é de base narcísica, o que torna possível que o melancólico
identi que-se ao objeto morto e denuncie em si próprio o fato de ele não ter
estado à altura de suas funções de ideal.
Tema frequente em Freud, podemos situá-lo ainda no tocante ao pai.
O famigerado mito de Totem e Tabu (FREUD, 1969b) coloca um dado para
além do reino inexpugnável da culpa, tantas vezes utilizada para defender
retornos à boa e velha ordem do pai. Pois o pai, nesse mito, ou bem está
morto, ou bem é só mais um irmão – no sentido de que não está à altura de
suas funções, como demonstra a revolta histérica contra o mestre.
Totem e Tabu é um mito sobre o desamparo da vida moderna. Nada
justi ca, nesse texto ou na psicanálise, a defesa da função paterna como
mediação simbólica, na pretensão de escapar às psicoses ou às perversões
que o declínio desta função supostamente imporia. Primeira razão, clínica,
de que se a força da função paterna fosse a chave para escapar às psicoses ou
às perversões, nunca se teria produzido um caso como o de Schreber
(FREUD, 1969a). Como é sabido, seu pai poderoso não serviu nem na
prevenção de sua homossexualidade perversa, nem que ela se expressasse
pelo último meio possível, o da psicose. Segunda razão, política e ética:
impossível não pensar, como bem denunciaram Deleuze e Guattari (2004),
que não se trate aí de simples defesa da neurose – ou, ainda, defesa
neurótica.
Nada, então, de defesa da instância, da função ou da própria gura
paterna, mas passagem de entendimento, de modo de pensar a autoridade e
a hierarquia: morre o chefe da horda, gura toda-poderosa; nasce a
paternidade, que embora gure, para a criança, o lugar de todo-poder, é
reconhecida a todo o momento como falhada, precária, o que abre a perene
possibilidade da crítica e da mudança, da transformação, do que, en m, na
modernidade, é seu âmago e motor.
Os efeitos nefastos do mundo moderno, a perda das certezas e das
garantias sob as quais muitos murmuram pesares, estão certamente aí, são
nossos lixos, restos humanos da cultura. No entanto, nenhum serviço
higiênico, aqui, surte muito efeito. Os milhões e bilhões investidos na
indústria psicofarmacêutica para bloquear a recaptação de
neurotransmissores, ou nos agentes da ordem pública para investigar redes
de pedo lia, são tentativas de varrer o lixão com vassouras, por mais caras
que tais vassouras possam ser. No máximo, matam certas plantas, tomadas
como daninhas por falta de poesia.

Referências
BAUDELAIRE, C. As ores do mal. São Paulo: Círculo do Livro, 1983.
_______. Sobre a modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São
Paulo: Brasiliense, 1989.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-Édipo. Lisboa: Assírio e Alvim, 2004.
DECLARAÇÃO dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789.
FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográ co de um caso
de paranoia. In: _______. Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969a. vol. 12, p. 15-
110. (1911).
_______. Totem e tabu. In: _______. Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969b. vol.
13, p. 13-198. (1913).
_______. Luto e melancolia. In: _______. Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969c.
vol. 14, p. 271-292. (1917).
_______. Psicologia de grupo e análise do ego. In: _______. Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1969d. vol. 18, p. 89-182. (1921).
KEROUAC, J. On the road. New York: Viking Penguin, 1997.
KOYRÉ, A. O pensamento moderno. In: _______. Estudos de história do
pensamento cientí co. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991a.
_______. Do mundo do mais ou menos ao universo da precisão. In:
_______. Estudos de história do pensamento losó co. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1991b.
_______. Do mundo fechado ao universo in nito. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2006.
KUMAR, K. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna. Rio de Janeiro: J.
Zahar, 1997.
LACAN, J. Kant com Sade. In: _______. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar,
1985.
_______. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995.
MICHAELIS: moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo:
Melhoramentos, 2007. Disponível em:
<http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php>. Acesso em:
16 abr. 2010.
SADE, Marquês de. A loso a na alcova. São Paulo: Iluminuras, 1999.

1 ProfessorAdjunto da Universidade Federal de Sergipe. Doutor em Teoria Psicanalítica pela


Universidade Federal do Rio de Janeiro com estágio de doutorado sanduíche na Universidade de Paris
X, Nanterre.
Sobre os autores
Adilson Dias Bastos

Psicólogo, Doutor em Psicologia Social pela Universidade do Estado


do Rio de Janeiro com estágio de doutorado sanduíche na Université de
Provence – França. Professor TI do curso de Psicologia do Centro
Universitário de Barra Mansa-RJ e Professor temporário no Departamento
de Psicologia do Polo Universitário de Volta Redonda da Universidade
Federal Fluminense.

André do Eirado Silva

Psicólogo, Doutor em loso a pela Université de Paris VIII.


Professor Associado do Departamento de Psicologia da Universidade
Federal Fluminense.

Arthur Arruda Leal Ferreira

Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP e Pós-doutor em História


da Psicologia pela UNED (Espanha). Professor Adjunto do Instituto de
Psicologia da UFRJ e dos Programas de Pós-graduação em Saúde Coletiva
(IESC) e Ecologia Social (EICOS). Pós-doutor em História da Psicologia
pela UNED (Espanha). Organizou os livros: História da Psicologia: Rumos e
Percursos (Nau Editora, 2007), A Pluralidade do Campo Psicológico (Editora
da UFRJ, 2010), Teoria Ator-Rede e a Psicologia (Nau, 2010), Pragmatismo,
Pragmática e produçâo de Subjetividades (Garamond, 2008) e Pragmatismo e
questões contemporâneas (Arquimedes, 2008).

Bruno Farah
Psicanalista, Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ com estágio
de doutorado sanduíche na Universidade de Paris VII. Há 14 anos compõe a
equipe de saúde do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.

Carlos Augusto Peixoto Junior

Psicólogo, Psicanalista, Doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de


Medicina Social da UERJ. Professor do Departamento de Psicologia e do
Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC – Rio. Autor de
Singularidade e subjetivação: ensaios sobre clínica e cultura (7Letras/PUC-
Rio, 2008), Metamorfoses entre o sexual e o social: uma leitura da teoria
psicanalítica sobre a perversão (Civilização Brasileira, 1999); organizador de
Formas de subjetivação (Contracapa, 2004).

Carlos Roberto de Castro e Silva

Psicólogo e lósofo. Realizou o pós-doutorado em Ciências Sociais


pela University of Western Ontario, Canadá. Doutor em Psicologia Social
pela Universidade de São Paulo. Publicou artigos em periódicos
especializados em psicologia e saúde coletiva relacionado à participação
social e subjetividade, organizações de base comunitária, promoção de
cidadania. Professor Adjunto da Universidade Federal de São Paulo
(UNIFESP-Baixada Santista), tutor da Residência Multipro ssional em
saúde e orientador do Mestrado Interdisciplinar em Saúde. Tem experiência
na área de Psicologia Institucional e Comunitária, atuando principalmente
na área de Saúde Coletiva, Movimentos Sociais e Prevenção de HIV/Aids.

César Pessoa Pimentel

Psicólogo, especialista em psicoterapia pela Santa Casa de


Misericórdia do Rio de Janeiro, doutor em psicossociologia pelo programa
EICOS da UFRJ. Realizou o pós-doutorado em teoria da comunicação na
Escola de Comunicação da UFRJ. Professor do Curso de Psicologia da
Sociedade Educacional Fluminense.

Daniel Menezes Coelho

Psicólogo, Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal


do Rio de Janeiro com estágio de doutorado sanduíche na Universidade de
Paris X. Professor Adjunto do Núcleo de Pós-Graduação em Psicologia
Social e do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe.

Eduardo Passos

Psicólogo, Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio


de Janeiro, Professor Associado do Departamento de Psicologia da
Universidade Federal Fluminense. Publicou em co-autoria com Virgínia
Kastrup e Silvia Tedesco o livro Políticas da Cognição (Sulina, 2008) e co-
organizou o livro Pistas do método da cartogra a: pesquisa-intervenção e
produção de subjetividade (Sulina, 2009)

Elizabeth Medeiros Pacheco

Psicóloga, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em


Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC
SP). Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense UFF.
Como bolsista CAPES, realizou de estágio de doutorado sanduíche no
Centre Edgar Morin, IIAC em Paris (2009-2010). Tem experiência na área
de Psicologia Clínica, pesquisando as inscrições corporais do socius e a
clínica como experimentação.

Leonardo Pinto de Almeida

Professor de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Doutor


em Psicologia pela PUC – Rio, com estágio de doutorado sanduíche no
Centre de Recherche sur la Lecture Littéraire da Universidade de Reims
Champagne-Ardenne. Realizou o pós-doutorado em Psicologia na PUC –
Rio. Autor do livro Escrita e Leitura – A Produção de Subjetividade na
Experiência Literária (Juruá, 2009) e Editor da Revista ECOS – Estudos
Contemporâneos da Subjetividade.

Márcia Ramos Arán

Psicóloga, Psicanalista. Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de


Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro com estágio
de doutorado sanduíche no Centre de Recherche Medecine, Sciences, Santé
et Societé. Professora Adjunta do Instituto de Medicina Social da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Autora do livro: O Avesso do
Avesso: a feminilidade e as novas formas de subjetivação (Garamond, 2006).

Maria Inês Badaró Moreira

Doutora em Psicologia pela Universidade de Federal do Espírito


Santo. Professora Adjunta da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP-
Baixada Santista). Co-organizou o livro Psicologia e Saúde: Desa os às
políticas públicas no Brasil (EDUFES, 2007). Autora do livro Loucura &
Cidade: potencializando novos territórios existenciais (GM Grá ca e Editora,
2008).

Rafaela Teixeira Zorzanelli

Psicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal


Fluminense. Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro com estágio de doutorado sanduíche no Instituto Max Planck
de História das Ciências de Berlim. Realizou o pós-doutorado no Instituto
de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro com apoio
CAPES/FAPERJ. Professora adjunta de Medicina Social da Pós-Graduação
em Saúde Coletiva da UERJ. Publicou Esboços não acabados e vacilantes:
despersonalização e experiência subjetiva na obra de Clarice Lispector
(Annablume, 2006), e Corpo em evidência: a ciência e a rede nição do
humano, em co-autoria com Francisco Ortega (Civilização Brasileira, 2010).

Raul Marcel Filgueiras Atallah

Psicólogo. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal


Fluminense. Trabalha desde 1999 com psicologia clínica-institucional, nas
áreas de saúde mental e prevenção da violência. Atualmente é facilitador de
grupos re exivos com homens autores de violência doméstica no ISER
(Instituto de Estudos da Religião – Rio de Janeiro) e é professor temporário
do curso de Psicologia do Polo Universitário de Campos dos Goytacazes da
Universidade Federal Fluminense.

Ricardo Salztrager

Psicanalista. Doutor em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal


do Rio de Janeiro com estágio de doutorado sanduíche na Universidade
Paris 7 – Denis Diderot. Professor Adjunto do Departamento de
Fundamentos das Ciências e Sociedade da Universidade Federal
Fluminense.

Roberto Preu

Psicólogo, Doutor pelo IPUSP. Professor Adjunto de Psicologia na


Universidade Federal Fluminense/Escola de Ciências Humanas e Sociais do
Polo Universitário de Volta Redonda.

Rosane Zétola Lustoza

Psicóloga, Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Professora


Adjunta da Universidade Estadual de Londrina. Coordena um projeto de
pesquisa sobre a psicopatologia lacaniana, a psiquiatria e a medicalização do
psíquico.
A Editora da UFF aderiu às iniciativas de conservação do meio ambiente,
adotando embalagens ecologicamente corretas, promovendo coleta seletiva
de seu lixo e, principalmente, incluindo em seus processos de trabalho
medidas de economia de recursos materiais e de energia. Por outro lado,
promove o replantio de árvores da Mata Atlântica em áreas degradadas,
visando à neutralização das emissões de carbono decorrentes da produção
de seus livros. Por conta dessas ações, iniciadas com o lançamento do
Recicle Ideias, em 2008, EdUFF tornou-se a primeira editora brasileira a
receber o selo Carbono Zero, conferido pela Oscip Prima – Mata Atlântica e
Sustentabilidade.
http://www.recicle-ideias.blogspot.com/

PRIMEIRA EDITORA NEUTRA EM CARBONO DO BRASIL


Título conferido pela OSCIP PRIMA após a implementação de um
Programa Socioambiental com vistas à ecoe ciência e ao plantio de árvores
referentes à neutralização das emissões dos GEE’s – Gases do Efeito Estufa.
http://www.prima.org.br

Você também pode gostar