Amizade e Família
Amizade e Família
Amizade e Família
Resumo
O artigo apresenta uma reflexão sobre amizade e família a partir * Dedico este texto aos
do filme Excêntrica família de Antônia e do pedido feito por um meus amigos e amigas, em
especial os participantes do
participante de uma ONG AIDS antes de seu falecimento. Utili- Grupo de Incentivo à Vida e
zando ferramentas conceituais de Michael Foucault e de autoras do Movimento Brasileiro de
e autores que dialogam com a obra do autor, o texto interpela o Luta contra AIDS.
Abstract
The paper presents a discussion on friendship and family based on
the movie Antonia’s Line and on the request made by a AIDS NGO
participant before his death. Using conceptual tools of Michael
Foucault and other authors who engage in conversations with
his work, the text questions the place of difference in families and
the centrality of family as reference of social context. The debate
about friendship refers to the political dimension of public space
and the possibility of inventing collective ways of living, leading
to new configurations of ethics and aesthetics of existence of
individuals and society.
Nas duas histórias dialogamos com a morte: Antonia morre. O meu amigo T. mor-
re. E as mortes deixam as perguntas a respeito do que eles fizeram com a vida. Nos
casos que aqui debatemos, as vidas são marcadas por uma estética da existência que
inclui a diferença, que acolhe e ampara a diferença, convive e lida com ela. São vidas
que, a meu ver, dançam por aquilo que Foucault nomeou como amizade.
Diz a narrativa cinematográfica: a vida quer viver. Contudo, como a vida quer viver?
Examinemos com um pouco mais de vagar estas duas vidas – a da ficção e a da
realidade.
T. e Antonia pensaram e prepararam sua morte. Ele, porque tinha AIDS e adoeceu.
Ela, porque envelheceu. E o filme parece querer nos convidar a pensar no tempo finito
1. Para uma reflexão a respeito da morte, podem da vida. Por isso, a morte também está presente
interessar: Ariès (2003); Bromberg, Kovács, Carva- neste texto. Não vou explorar o debate teórico a
lho, & Carvalho (1996); Elias (2001); Giacóia Junior
(2005); Kóvacs (1992); Kübler-Ross (1998). esse respeito1, mas sinalizo que, ao falar da vida
O dicionário oferece pistas de que a palavra “amizade” pode possuir muitos senti-
dos. A ideia de afeto entre duas pessoas está presente na amizade; entretanto, neste
texto, mais do que a definição do dicionário ou o sentido que atribuímos no senso
comum à amizade, estou interessada em estabelecer um diálogo com as reflexões
que a filosofia vem tecendo sobre o tema.
Ortega (2002, 2009)4, um dos estudiosos sobre o tema, sinaliza que a preocu-
pação sociológica e social-filosófica com a amizade é recente, data dos anos 1970.
Ainda segundo o autor, diferentes abordagens são tomadas: na perspectiva da lite-
ratura anglo-americana, a amizade é concebida com um problema moral e interpre-
tada numa perspectiva kantiana; e, na sociologia, com frequência, é um tema menor,
desqualificado. O autor indica ainda que a temática passou a ser objeto da filosofia
francesa:
Uma série de pensadores, entre eles Maurice Blanchot, Michael Foucault, Jacques Der-
rida, Giles Deleuze, Felix Guattari, Jean Luc Nancy, tem colocado a questão da amizade
e da comunidade no centro de sua filosofia, com frequência no contexto de uma ten-
tativa de recuperar o político para a comunidade, de re-pensar, re-construir, o político
e a democracia. Ou seja, a amizade seria deslocada da esfera privada, da intimidade,
para o mundo a sociabilidade, o público. (ORTEGA, 2009, p.57)
4. Ortega se dedicou ao tema a partir do diálogo com o É nesse sentido que, nas reflexões que aqui
pensamento de autores como Hanna Arendt, Derrida e,
principalmente, Michael Foucault. Escreveu uma trilogia desenvolvo, faço uso do conceito, considerando
sobre a amizade (Ortega, 1999, 2002, 2009). O diálogo que a amizade representa: “‘um exercício do polí-
com suas ideias influencia muito o olhar que norteia este
texto. tico’, um apelo a experimentar formas de sociabili-
Esta noção de modo de vida me parece importante. Não seria preciso introduzir uma di-
versificação outra que não aquela devida às classes sociais, às diferenças de profissão,
de níveis culturais, uma diversificação que seria também uma forma de relação e que
seria o “modo de vida”? [destaque no original] Um modo de vida pode ser partilhado
por indivíduos de idade, estatuto e atividade sociais diferentes. Pode dar lugar a rela-
ções intensas que não se pareçam com nenhuma daquelas que são institucionalizadas
e me parece que um modo de vida pode dar lugar a uma cultura e a uma ética. (p.70)
Dessa maneira, o que se enfoca não é o apego a formas de identidade com caracterís-
ticas em comum, mas sim um esforço para a compreensão e aceitação do outro como
diferença inquietante.... Não se deve buscar encontrar no amigo um reforço para sua
identidade, mas, pelo contrário, material para transformação e criação do Si. (Cardoso
Jr & Naldinho, 2009, p.51)
É importante, porém, não entender de modo binário o que aqui debato ao redor
do conceito de família (e de familiar), por exemplo, tomando a família como “vilã”
da sociedade, ou propondo a eliminação de todos os tipos de família. Uso aqui as
palavras de Ortega (2009) que tão bem expressam essa questão: “Não se trata de
negar a família como instituição, mas de combater o monopólio que ela exerce sobre
nosso imaginário emocional, de deixar de pensar as relações de amizade em imagens
familiares, para poder reinventar a amizade” (p.115).
Meu interesse, ao desenhar tais problematizações, caminha muito mais na di-
reção de refletir sobre como lidamos com as diferenças, como rompemos com um
esvaziamento do espaço público quando a homogeneização dos sujeitos domina a
esfera política. Somos subjetivados por modos de vida que ganham estatuto de nor-
malidade e, por vários motivos8, agarramos modos de existência conhecidos e não
adentramos novas possibilidades e invenções.
Neste processo de busca de novas possibilidades de existência, seria ingênuo
pensar que as ONG que compõem a luta contra AIDS não são normativas e não estão
institucionalizadas. Para desfazer-nos dessa ilusão, podemos pensar na briga por es-
paços de representações, projetos e identidades. E observaremos que nem sempre
vigora o que aqui denominamos de amizade.
Tampouco Antônia escapa de algumas capturas, ou seja, ela não fica totalmente
fora dos ditames de alguns padrões tidos como verdade ou como noções do senso
comum: por exemplo, Danielle busca um filho bio-
8. Talvez, sem juízo de valor, possamos indagar: medo? lógico9 e busca também um homem para procriar.
Acomodação? Falta de horizontes?
9. Não há problema no desejo de um filho biológico, No filme, vemos ainda que os intelectuais são so-
mas não observamos no filme a problematização sobre
litários, isolados, problemáticos, como a neta e
o domínio da dimensão biológica como constituinte da
maternidade. Dedo Torto.
E não somente o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini – que tão bem souberam
mobilizar e utilizar o desejo das massas –, mas o fascismo que está em nós todos, que
martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o
poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora. (Foucault, 2004 b, p.5)
Contudo, não estamos sem saída. Antônia e T. efetivamente mostram novas pos-
sibilidades. Um sopro, uma invenção, uma resistência. Há algo nessas histórias que
nem sempre nos propomos a parar para examinar com cuidado. Com frequência, fica-
mos presos ao conhecido. Não se trata de inventar novas formas de existência que se
tornariam universais e, portanto, novamente hegemônicas, nem se trata de deixar de
reconhecer as capturas que existem até mesmo nas novas possibilidades. Trata-se,
porém, de reconhecer que é possível viver de outro modo. E, principalmente, a expe-
riência de T. (que extrapola as telas de cinema) é que nos revela esse fato.
Em síntese, o que estou tentando dizer é que a escolha de T. convidou-me a pen-
sar: o que estamos inventando, afinal, nesta resistência coletiva à epidemia da AIDS?
Certamente apoio, exercício de direitos e um pouco mais de qualidade de vida para
as pessoas que vivem com HIV/AIDS. Mas seria somente isso?
Viver a história e, ao mesmo tempo, pensar-se é um exercício difícil. Talvez agora,
após 30 anos de epidemia, possamos examinar com um pouco mais de cuidado essas
ideias.
A resposta social à epidemia da AIDS pode ser pensada e analisada muito além
dos efeitos que tem diante da própria epidemia. Algumas experiências de convivên-
cia, cuidado e socialização dão pistas de que é possível visualizar novas possibilida-
des de vida.
Será que nas organizações sociais não estão sendo engendradas novas formas de
existência? Alguns respiros para a falta de oxigênio da hegemonia discriminatória?
Ao defendermos pessoas que estão condenadas ao limbo, à ausência de direitos, à
Considerações finais
As perguntas mobilizam movimentos, são molas propulsoras de voos em busca
de novos horizontes para as inquietudes que nos interpelam. Quais os lugares dos
conceitos de família e amizade na sociedade contemporânea? Como as concepções
hegemônicas desses conceitos nos subjetivam? E como nos subjetivam, como pes-
soas que têm famílias e amigos e também como profissionais da área da saúde, da
educação e da seguridade social?.
É a família o lugar social para cuidar do desamparo? O único lugar social seguro?
E quem dá suporte para a família, que tudo deveria suportar? Na família só cabe o
familiar?
Os estranhos, os excêntricos, são peças que não se encaixam nas famílias, nas
sociedades e nas amizades? Ou somente são possíveis quando nomeados, regu-
lados e devidamente classificados com diagnósticos, apelidos que nomeiam sua
estranheza?