2006 - Giselle Rodrigues de Brito

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Universidade de Brasília

Instituto de Artes

DE ÁGUA E SAL

UMA ABORDAGEM DE PROCESSO CRIATIVO EM DANÇA

Giselle Rodrigues de Brito

Brasília – D.F.

2006
Universidade de Brasília
Instituto de Artes

DE ÁGUA E SAL:
UMA ABORDAGEM DE PROCESSO CRIATIVO EM DANÇA

Giselle Rodrigues de Brito

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação


do Departamento de Artes Visuais do Instituto de
Artes da Universidade de Brasília como parte dos
requisitos para a obtenção de grau de Mestre em
Processos Composicionais para Cena.

Orientador: Dr. Fernando A. Pinheiro Villar de


Queiroz

Brasília – D.F

2006
i

À Yara de Cunto, Luiz Mendonça

e elenco do BasiraH.
ii

AGRADECIMENTOS

À querida família, Fred e Dirce pelo amor e apoio incondicional nesse processo!

A Fernando Villar, pela orientação dessa dissertação, confiança no meu trabalho e


apoio nas horas de pânico!

A Alessandro Brandão, Rachel Cardoso, Lina Frazão, Lívia Bennet, Lívia Frazão,
Márcia Lusalva, Diego Pizarro, Alisson Araújo, Dorka Hepp, Micheline Santiago, elenco do
Basirah, a quem eu devo verdadeiramente a realização deste trabalho. Obrigada pela coragem
e entrega, e por me proporcionar, acima de tudo, crescimento pessoal cada vez mais profundo.
Amo vocês!

À preciosa colaboração de Lívia Marques através das aulas de Body Mind Centering,
Marília Márcia pela assistência psicológica e Janson Damasceno pelas aulas de balé para o
grupo Basirah.

Aos meus anjos da guarda Yara de Cunto, Luiz Mendonça, Márcia Duarte, Lenora
Lobo, por deixarem meus caminhos artísticos menos turvos!

A Susi Martinelli, pelas longas conversas pertinentes à dança!

A Kênia Dias, por compartilhar comigo esta experiência, enriquecendo e


engrandecendo esse processo, e pela amizade e apoio em dias de crise!

A Vera, pelos florais tão necessários na reta final! Obrigada!

Aos amigos, José Regino, Joana Abreu, Ana Carolina, Raquel Mendes, Marcelle
Lago, que me acompanharam nessa empreitada e me ajudaram com conversas e sugestões.

A Kuka pela revisão de parte de meu texto!

Ao professor Marcos Mota, pelas dicas bibliográficas.

Ao Departamento de Artes Cênicas do Instituto de Artes da Universidade de Brasília


pelo apoio ao projeto.
iii

SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS.............................................................................................................. ii

LISTA DAS FIGURAS ............................................................................................................. v

LISTA DE QUADROS ............................................................................................................ vi

RESUMO................................................................................................................................. vii

ABSTRACT….......................................................................................................................... ix

INTRODUÇÃO......................................................................................................................... 1

CAPÍTULO 1. QUAL A DANÇA DESSE CORPO?............................................................. 13

1.1. UM POUCO DE HISTÓRIA DA DANÇA .......................................................................... 13

1.2. QUAL O CORPO DESSA DANÇA?................................................................................. 36

CAPÍTULO 2. PENSANDO O CORPO ................................................................................ 43

2.1. MOVIMENTO AUTÊNTICO (MA)................................................................................ 43

2.2. BODY-MIND CENTERING (BMC - CENTRALIZAÇÃO CORPO-MENTE) ....................... 48

2.3. PERCEBENDO OS PADRÕES........................................................................................ 54

2.4. PRINCÍPIOS QUE REGEM AS TÉCNICAS ...................................................................... 58

CAPÍTULO 3. CONSTRUINDO UM PENSAMENTO QUE DANÇA................................ 63

3.1. DO PROCESSO CRIATIVO À CENA .............................................................................. 63

3.2. FOCOS DA PESQUISA. COMO UMA ONDA NO MAR ...................................................... 64

3.2.1 Primeira Etapa – Desenvolvimento do estado pré-expressivo .......................... 68

3.2.2 Segunda Etapa – O espaço entre. A escolha do tema do espetáculo ................. 76

3.2.3 Terceira Etapa – Laboratório cênico - o exercício do espetáculo ..................... 88

3.2.4 As repetições. E depois? ..................................................................................... 94

CONCLUSÃO........................................................................................................................101

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................107

ANEXO 1 - EXERCÍCIOS REALIZADOS NA PESQUISA...............................................112


iv

ANEXO 2 - RELATÓRIOS DO PROCESSO APRESENTADOS PELOS


PARTICIPANTES........................................................................................................118

ANEXO 3 – RELATO DA APLICAÇÃO DA PESQUISA NO PROCESSO DE


CRIAÇÃO DE LAMBE LAMBE DE KÊNIA DIAS....................................................175
v

LISTA DAS FIGURAS

Figura 1. Quadro sinótico da dança moderna........................................................................ 17

Figura 2 – Alessandro Brandão - Exercício do sistema dos órgãos ....................................... 51

Figura 3 - Márcia Lusalva - improviso da frase ‘Eu num quarto branco. É assim...’, realizado
após exercício da IA e AL ............................................................................................ 58

Figura 4 - Lívia Bennet – improviso solo livre após realização dos exercícios do MA e IA .. 62

Figura 5 - Grupo Basirah..................................................................................................... 63

Figura 6 - Diego Pizarro – exercício do espetáculo............................................................... 67

Figura 7 – Dorka Hepp –improviso solo livre sobre a frase .................................................. 71

Figura 8 - Rachel e Lina – exercício do espetáculo ............................................................... 79

Figura 9 – Exercício do espetáculo....................................................................................... 95

Figura 10 – Lina Frazão. Improviso da exposição ................................................................ 97


vi

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – As técnicas e seus princípios.............................................................................. 59

Quadro 2 –Procedimentos gerais realizados com o Basirah .................................................. 65

Quadro 3 – Aspectos conflitantes entre a 1ª e 2ª etapas do processo criativo......................... 85


vii

RESUMO

Esta pesquisa é um estudo sobre processo criativo em dança contemporânea com foco
na investigação e desenvolvimento de um estado pré-expressivo de criação e sua importância
para o processo criativo que resultou na montagem do espetáculo De Água e Sal, com a
companhia de dança Basirah. O espetáculo configurou-se como um laboratório cênico para o
exercício da interpretação, objetivando principalmente a preservação do estado pré-expressivo
no contexto de atuação.

A pesquisa inspirou-se inicialmente no método do Movimento Autêntico e nos estudos


do Body-Mind Centering como elementos acionadores do desenvolvimento do estado pré-
expressivo. Partindo destes, desenvolveu-se uma gama de exercícios destinados à
sensibilização e conscientização corporal do intérprete, bem como a desautomatização da
percepção. Os exercícios desenvolvidos tiveram como foco a interferência na racionalidade
do intérprete, tanto na construção do pensamento, como na construção e manifestação do
movimento corporal, estimulando nele a atenção para seus processos físicos e psicológicos
para o desenvolvimento de uma consciência ampliada da atuação cênica.

Este estudo direciona-se para o dançarino intérprete criador, buscando fazê-lo entender
mais claramente sua dança, na criação de um movimento, na compreensão de um sentimento
gerador de determinada expressão no corpo e na identificação dos bloqueios psicológicos ou
físicos que o empeçam no desenvolvimento criativo. Também baseia-se num modelo de
processo criativo com colaboração coletiva.

Sendo assim, no Capítulo 1 apresento uma breve perspectiva histórica da dança


moderna e pós-moderna ocidental utilizando-a como base para uma reflexão e leitura sobre
aspectos do atual momento da dança contemporânea, e os novos parâmetros que se revelam,
tanto relacionados a sua abordagem para a criação, como a sua apreciação estética.

No Capítulo 2 há um esclarecimento do que vem a ser a técnica do Movimento


Autentico e do estudo do Body-Mind Centering, que foram nosso ponto de partida, e como
essas técnicas foram utilizadas no processo, além do cruzamento que houve com outros
exercícios, propiciando a construção do que chamarei de princípios da pesquisa.

O Capítulo 3 é um relato das fases do processo criativo aplicado na companhia de


dança contemporânea Basirah, onde se deu a principal investigação e desenvolvimento da
viii

pesquisa como um todo e a definição das etapas do processo, com reflexões sobre cada uma
delas, até se chegar à criação do espetáculo De Água e Sal. Alguns exercícios desta pesquisa,
especialmente os desenvolvidos na primeira etapa, também foram aplicados no processo
criativo do espetáculo Lambe Lambe da dançarina e coreógrafa Kênia Dias. O relato dessa
aplicação encontra-se no Anexo 3.

Por fim, na Conclusão apresento uma reflexão dos resultados obtidos na pesquisa
fazendo uma ponte para diversos questionamentos que foram levantados a respeito desta
abordagem de processo criativo.
ix

ABSTRACT

This research is a study about the creative process in contemporary dance focusing on
the investigation and development of a pre-expressive state of creation and it´s importance to
the creative process. It resuted on the production of the dance performance De Água e Sal
with the dance company Basirah. The performance served as a stage laboratory for the
exercise of interpretation, aiming mainly at the preservation of a pre-expressive state in the
context of the acting.

The research has been initially inspired on the Authentic Movement method and on
the studies of Body Mind Centering as elements that start the development of the pre-
expressive state. From these elements, it was developed a set of exercises aimed at making the
performer`s body sensitive and aware, as well as taking the perception out of automation. The
developed exercises focused on the interference in the rationality of the performer, not only in
the construction of thought, but also in the construction and manifestation of the body
movement. It stimulates in the performer the atention to his/her physical and psychological
processes for the development of an expanded awareness of the stage acting.

This study is directed to the creative dance performer, aimed at making him/her
understand more clearly his/her dance in the context of the creation of a movement, the
understanding of a feeling that generates a certain body expression, and the identification of
the psychological or physical blocks which prevents the creative process.

In the first chapter I present a brief historical perspective of the modern and post
modern western dance. It is used as a basis for a reflection and reading about aspects of the
current moment of the comtemporary dance, and the new parameters that have been revealed.

In the second chapter, there is an explanation about what are the Authentic Movement
technic and the study of Body-Mind Centering, which were our starting point. It also states
how these techniques were used in the process, besides the mix that happened with other
exercises, enabling the construction of what I´m going to name research principles.

The third chapter is an account of the phases of the creative process applied with the
dance company Basirah, where there was the main investigation and development of the
research as a whole and the definitions of the phases of the process. Some reflections were
made about each one of these phases culminating in the performance De Água e de Sal . Some
x

exercises of this research, specially the ones developed at the first phase, were also applied at
the creative process of the performance Lambe Lambe of the dancer and choreographer Kênia
Dias. The account of this application is shown in the Annex 3.

Finally, in the conclusion I present a reflexion about the results obtained in the
research establishing a link to many questions that were raised concerning this approach of
the creative process.
1

INTRODUÇÃO

Ao longo de 17 anos trabalhei de forma intensa, numa atmosfera lúdica de


investigação e descoberta das potencialidades do corpo. Junto ao Endança1, se deu o início de
minha formação como intérprete e coreógrafa. Início importante para a compreensão do valor
do movimento pessoal, próprio e genuíno como forma de expressão capaz de fazer surgir uma
linguagem de movimento singular, despertando em mim uma visão mais holística do
desenvolvimento da expressividade corporal e, conseqüentemente, da criação artística.

Sem uma técnica específica ou sistematizada, tive uma preparação versátil do corpo
por meio de atividade física diversificada, e bastante intuitiva, que envolvia desde trabalhos
de estimulação sensorial a caminhadas em cachoeiras. Esse processo possibilitou, além de um
enriquecimento no vocabulário do movimento, a construção de um pensamento abrangente
em relação à formação de um dançarino, considerando o corpo em sua totalidade e capaz de
pensar por si, trazendo um potencial expressivo inerente a ser explorado e desenvolvido.

Com o Endança tive a oportunidade de conviver de perto com expoentes da dança


contemporânea na década de 1980 e 1990, participando de vários festivais nacionais e
internacionais, além de projetos de intercâmbios entre coreógrafos e dançarinos, onde se via
uma atmosfera de investigação e reflexão sobre a dança de forma muito latente e viva. Dentre
estes expoentes estavam Vera Mantero, Alan Platel, Meg Stuart, Jerome Bel, Lloyd Newson,
Rui Horta e outros.

Nesse período, assisti muitos espetáculos, alguns voltados mais para a plasticidade e
virtuosismo corporal, e outros, pelos quais me sentia mais atraída, que possuíam como suporte
as singularidades de seus intérpretes, e posicionamento mais questionador. Nesta trajetória
muitos questionamentos me acompanhavam. A todo instante me preocupava em encontrar o
sentido para a dança. Qual o significado da dança para mim? E que papel ela pode
desempenhar na sociedade? Em que o trabalho artístico de um dançarino poderia contribuir na
transformação do ser humano? Seria possível alcançar uma comunicação direta com público
despertando a reflexão de questões existenciais? E como fazê-lo, como tocar, como atingir?

1
Companhia brasiliense de dança criada em 1980, por Luiz Mendonça (diretor artístico e coreógrafo) e
Márcia Duarte (dançarina e coreógrafa), que se dedicou à experimentação e desenvolveu uma poética própria de
movimento, alcançando projeção nacional e internacional, tornando-se referência para o surgimento de novos
grupos no Distrito Federal.
2

O trabalho com o Endança voltou-se mais ao desenvolvimento das habilidades


corporais, no sentido de aguçar o aspecto sensório-motor e apurar o virtuosismo corporal para
a criação coreográfica. Com este enfoque corporal, permitiu-se o exercício da expressividade
e o enriquecimento do vocabulário do movimento. A criação partia da investigação pelo
movimento, o que gerou em mim a necessidade de buscar o sentido do movimento, como ele
se colocava em algum contexto, se é que ele o possuía. Com a dispersão do grupo e com o
intuito de prosseguir com a dança, crio em Brasília, no ano de 1997, em parceria com Yara de
Cunto, o Espaço Vivo da Dança.2 No mesmo ano uma das iniciativas desse projeto culminou
na formação do Núcleo de Dança Contemporânea Basirah, grupo independente onde
desenvolvo minha pesquisa de mestrado.

Em 1997/98, cursei o One year certificate in contemporary dance and choreography,


na London Contemporary Dance School at The Place, em Londres, onde o foco da formação
está no desenvolvimento técnico do dançarino. Nesse período ficou claro que a importância
dada ao virtuosismo físico estava longe de ser, para mim, a motivação maior para dançar. Na
ocasião tive a oportunidade de participar de um workshop com Lloyd Newson, precursor do
teatro físico na Inglaterra, e diretor e coreógrafo da companhia DV8. Este coreógrafo
desenvolve seus trabalhos extraindo o material criativo a partir das características
idiossincráticas, tanto físicas como psicológicas, reveladas em seus intérpretes. Seu trabalho
descortinou em mim, uma perspectiva de aprofundamento no estudo do intérprete e da sua
personalidade, de investigar a disposição do temperamento do indivíduo que o faz reagir de
maneira muito pessoal a estímulos diversos. Por fim, aplicar isto num processo criativo,
buscando a peculiaridade e a personalidade do movimento.

Desde então, comecei a perceber que meu interesse estava calcado muito mais no
universo psicológico do intérprete, em como ele pensa, sente, percebe, se relaciona, age,
compreende a si e se expressa, enfim, como permite manifestar em seu corpo aquilo que ele
realmente é. Com a criação do Basirah, alimentei a expectativa de experimentar processos
criativos com intérpretes autorais. Entretanto, em função dos integrantes do grupo serem
muito jovens e com pouca experiência profissional, além da minha pouca experiência em
direção, acabei por adotar um modelo onde o diretor/coreógrafo era o mentor das idéias e

2
Projeto de fomento à dança, onde se promoviam intercâmbios, seminários, workshops, apresentações de
espetáculos de dança, palestras, dentre outras atividades afins. Realizado por dois anos (1996/97) na Faculdade de
Teatro Dulcina de Moraes, em Brasília.
3

acumulava todas as funções. No entanto, essa forma de trabalhar limitou a possibilidade dos
intérpretes desenvolverem uma visão crítica em relação ao que estavam fazendo. No final das
contas, o intérprete apenas era usado como tradutor de idéias do coreógrafo, sem
necessariamente apresentar um posicionamento em relação a essas idéias. Conseqüentemente,
o trabalho sofreu um sufocamento criativo, pois todo o investimento no processo artístico
dependia exclusivamente do diretor e coreógrafo.

Esse modelo foi se modificando ao longo dos processos que fomos vivendo juntos, em
função do meu anseio de que o trabalho tomasse outros rumos, onde seus integrantes
estivessem investindo nele como parceiros e cúmplices, gerando troca de idéias num mesmo
nível, não tanto de diretor para dançarinos, mas de criador para intérpretes co-autores que
questionam juntos sobre o desenvolvimento do trabalho. Assim, ampliava-se a possibilidade
de valorização e participação mais efetiva do intérprete no processo criativo.

Meus questionamentos pessoais em relação ao fazer dança foram se disseminando no


grupo, tornando mais freqüentes e contundentes na vida de cada um. Para que faço dança? O
que posso comunicar com minha dança? O que dizer ao público? Por que estou aqui? Quero
estar aqui?

Outra influência que reforçou o desejo de trabalhar com intérpretes valorizando seus
aspectos pessoais foi o trabalho de criação com o coreógrafo estadunidense radicado em
Portugal, Howard Sonenklar.3 Sonenklar aborda a criação desnudando o intérprete,
confrontando-o consigo mesmo, levando em conta suas características particulares, físicas e
psíquicas, relacionando a expressão do movimento com a natureza psíquica de cada um,
expondo as limitações físicas motoras e criativas que deitam raízes em processos afetivos e
emocionais. A partir dessa confrontação ele parte para a criação. Com esse processo criativo
tive o primeiro contato com o método do Movimento Autêntico (MA) introduzido no Basirah
por Sonenklar.

Originalmente chamado de Movimento em Profundidade por sua fundadora Mary


Starks Whitehouse, o método foi desenvolvido no final da década de 1950 e início de 1960
com raízes na dança moderna, na psicologia junguiana, e na consciência corporal e

3
Na ocasião (2000) foi convidado pelo Basirah para montar o espetáculo SEBASTIÃO em parceria
comigo e Márcia Duarte.
4

improvisação. O termo Movimento Autêntico foi introduzido por Janet Adler, discípula de
Whitehouse e fundadora do Instituto Mary Starks Whitehouse, na Califórnia, em 1968. Soraia
Jorge4, aluna de Janet Adler e divulgadora desse método no Brasil, nos sintetiza uma clara
descrição sobre o que vêm a ser o MA:

O Movimento Autêntico explora a relação entre a pessoa que Move (Mover)


e a pessoa que Testemunha (Witness). Explora a relação de ver e ser visto.
No processo de ser visto pelo Outro, a pessoa começa a Se ver. Um terceiro
componente surge nessa relação – a Testemunha Interna (Internal Witness) –
ver o outro como ele é, me ver como sou. Com os olhos fechados, a pessoa
que move, escuta seu interior e descobre o movimento que surge de uma
motivação oculta.5

No Capítulo 2 estarei abordando essa técnica mais detalhadamente. Entretanto posso


adiantar que esta pesquisa inspirou-se inicialmente no método do Movimento Autêntico (MA)
e nos estudos do Body-Mind-Centering (BMC),6 utilizando-os como elementos acionadores
do processo de autoconhecimento do dançarino. O BMC é um estudo desenvolvido pela
norte-americana Bonnie Bainbridge Cohen e tem como foco o desenvolvimento da
consciência corporal profunda de cada sistema de nosso corpo, de modo a beneficiar nossa
expressividade.

Partindo desses métodos, desenvolveu-se uma gama de exercícios destinados a


provocarem, no intérprete, questionamentos em relação a si, as suas atitudes corporais e ao
seu comportamento pessoal. Outro ponto que estimulou o desenvolvimento dessa pesquisa foi
minha necessidade de entender o processo de desenvolvimento e formação do intérprete das
artes cênicas, estudo aqui direcionado ao intérprete da dança contemporânea. Como o
intérprete está pensando a respeito do que faz? Como ele constrói suas verdades artísticas?
Ele acredita em sua arte? Qual o nível de envolvimento do intérprete em relação ao que
realiza?

4
Soraia Jorge é formada pelo Authentic Movement Institute na Califórnia. Para mais informações sobre o
trabalho de Jorge acessar o site http//:www.movimentoautentico.com

5
JORGE, Soraia. A arte de ser movido. Disponível em <http//:www.movimentoautentico.com> Acesso
em 12/05/2005.
6
Como forma de simplificar a escrita, optei por abreviar a nomenclatura das técnicas e exercícios
utilizados no processo pelas seguintes siglas: MA – Movimento Autêntico; BMC – Body Mind Centering; MVA
– Mental Verbal e Ação; AL – Associação Livre; IA – Imaginação Ativa.
5

Os métodos do MA e do BMC me impressionaram pela capacidade de estimular o que


me pareceu ser o movimento espontâneo do intérprete, gerando uma expressão mais íntegra
do corpo, abrindo a possibilidade de re-significação do movimento dançado. Além disso,
esses métodos propiciam o autoconhecimento provocado pelas reflexões e incessantes
questionamentos do indivíduo em relação ao seu corpo, sua visão de mundo e ao seu
comportamento frente às coisas, afetando sobremaneira no que está sendo expresso pelo
corpo.

O Movimento Autêntico sinalizou, para mim, a possibilidade de exploração do


potencial expressivo do intérprete para a criação em dança, além de provocar neste intérprete
o desenvolvimento de um espírito questionador. Assim como o BMC esse método tem como
princípio primordial o estudo do indivíduo como um todo, considerando corpo físico e mente
como processos inseparáveis. Todas essas vivências me direcionaram a definição de um foco
de pesquisa calcado na reflexão sobre o indivíduo, e no interesse em estudar sobre os
caminhos da expressividade do corpo em processos criativos na dança. Estudar a
expressividade do corpo implica aqui investigar a expressão do movimento e o não-
movimento desse corpo, que se encontra afetado de estados emocionais e orgânicos na relação
com o meio para a manifestação da expressão. Considero que o movimento corporal não é só
ação motora visível, mas o estado de presença ativa do corpo,7 mesmo estando aparentemente
parado. De acordo com essa visão, a dança aqui se configurará não só como corpo em
movimento, mas como corpo em expressão, em estados de corpo que se manifestam
provenientes de vários estímulos como emoção, imagem, memória e sensação. Interessa-me
também, como este corpo expressivo dialoga com o tempo e o espaço em contextos definidos
de dança. O estado de corpo diz respeito à situação orgânica do corpo, de seus sistemas e de
sua emotividade em determinado momento de criação e atuação.

Esta pesquisa propõe realizar um processo criativo com foco no dançarino intérprete
criador, numa tentativa de conduzi-lo ao entendimento aprofundado de sua dança no momento
da criação de um movimento, na compreensão de um sentimento gerador de determinada
expressão no corpo e na identificação dos bloqueios psicológicos ou físicos que o empeçam
no desenvolvimento criativo, buscando dar-lhe mais confiança para adentrar nas próprias

7
Este termo e ou estado será apresentado mais detalhadamente no Capítulo 2 desta dissertação.
6

fragilidades. Também se baseia no modelo de processo criativo de colaboração coletiva, onde


o intérprete é considerado como co-autor da criação.

Para investigar sobre a expressividade do corpo considero importante buscar caminhos


de valorização e fortalecimento do intérprete, numa tentativa de encorajar sua autonomia no
criar e fazer arte. Nessa pesquisa procurei revelar ao intérprete suas potencialidades por meio
de técnicas voltadas para o desenvolvimento da consciência profunda do corpo, da noção das
funções orgânicas em conexão com o psíquico e sua influência na qualidade do movimento e
expressividade, além de tentar colocá-lo em contato com questionamentos sobre as atitudes e
relações que estabelece no seu universo artístico, e também pessoal. Suponho que, com essa
abordagem, talvez possamos chegar mais efetivamente ao sentido do movimento expressivo,
ao conteúdo que desencadeia a forma, em que a dança criada se justifique pela história do
corpo que a executa, e pela leitura que este corpo faz das coisas do mundo.

Esse direcionamento foi conduzido por três questões fundamentais. A primeira seria o
que a dança pode realmente dizer. A segunda, como fazer brotar o movimento preenchido de
sua história, de seu sentido de existência, sem abdicar de sua forma, das subjetividades, e de
sua elaboração estética para a dança. E a terceira questão suscitada indaga como estimular o
intérprete direcionando-o para a busca desse sentido da existência e trazê-lo para o
movimento, para seu corpo, sem dissociá-lo daquilo que ele é com o que ele expressa. A
dança é um universo criativo que pode e deve se alimentar da autonomia de seus intérpretes
mas, para tanto, o dançarino deve primeiramente conquistar essa autonomia, conscientizando-
se de si e dos caminhos que traça no processo criativo.

Seguindo essa premissa, a pesquisa deve enfatizar a provocação constante do


dançarino para a percepção e conscientização de seus processos físicos e psicológicos no
contexto artístico, visando a realização de um processo criativo calcado nos estados pré-
expressivos, e na elaboração de exercícios para estímulo desses estados. O desenvolvimento
do estado pré-expressivo apontado nesta pesquisa se refere ao investimento num estado de
abertura, presença e disponibilidade física, mental e espiritual da pessoa, que pode ser
estimulado pelo estudo e exploração aprofundada dos sistemas corporais e do comportamento
psicofísico, além da relação do corpo com o meio. No estado pré-expressivo busca-se aflorar
os conteúdos de sentimento, sensação e sentido que darão suporte para a materialização da
expressão corporal cênica. A pré-expressão nessa investigação é o lugar das sensações
latentes e expostas.
7

Os exercícios desenvolvidos tiveram como foco a interferência nos condicionamentos


do intérprete, tanto na construção do pensamento, como na construção e manifestação da
expressão corporal, estimulando nele a atenção para seus processos mentais e físicos para o
desenvolvimento de uma consciência ampliada da atuação cênica.

A realização dessa pesquisa é feita com o Núcleo de Dança Contemporânea Basirah.


A companhia conta com dez integrantes na faixa etária entre 22 e 30 anos. Desses integrantes,
estão desde de sua criação, em 1997, os dançarinos Alessandro Brandão, Lívia Frazão, Márcia
Lusalva, Rachel Cardoso, Lina Frazão e Dorka Hepp. Lívia Bennet ingressou na companhia
no ano 2000. A pesquisa conta também com a participação de mais três integrantes, Diego
Pizarro, Alisson Araújo e Micheline Diniz, que começaram a trabalhar com o Basirah no
início do processo desta pesquisa, que se deu em agosto de 2004.

Cada integrante possui formação e experiência artística diferente. Dorka Hepp iniciou-
se na dança com nove anos de idade. Estudou no Conservatório de Bruxelas e na Academie
Royale dês Beaux-Arts de la ville de Bruxelles, na Bélgica. Graduou-se em dança (1995),
pelo Curso de Qualificação de Bailarinos D.E.A., no Porto, Portugal. Dorka tem a dança
como principal foco de seu trabalho profissional, não se aventurando em outras linhas de
atuação na arte até o momento. Assim também é com Lina Frazão, graduada em dança, pela
Modern Theater Dans, da Theaterschool de Amsterdã, Holanda (2003), sua experiência
artística está voltada especificamente para a dança contemporânea. Participou como dançarina
em alguns trabalhos de coreógrafos estrangeiros, além de integrar por três anos a companhia
de dança Beton (1991-94), de Brasília, e o TRAN CHAN (1995), de Salvador.

Lívia Frazão, ainda que tenha se graduado como bacharel em Interpretação Teatral
pela Universidade de Brasília (2002), atua basicamente como dançarina contemporânea. Sua
formação em dança inclui aulas informais de balé clássico e técnicas de dança
contemporânea, além de workshops de curta duração com coreógrafos estrangeiros que
passaram por Brasília. Também fez parte da Companhia de dança Beton (1991-97), e
participou como convidada do espetáculo Alethea da Companhia Anti Status Quo de Brasília,
em 2002.

Márcia Lusalva graduou-se em Interpretação Teatral (2002) pela Universidade de


Brasília. Apesar de não atuar mais em peças teatrais sua formação de atriz tem forte influência
no trabalho que desenvolve como dançarina. Márcia se vale da formação teatral como suporte
8

para a investigação em dança. O contato de Márcia com a dança, iniciado em 1991, também
se deu por meio de cursos livres com coreógrafos de Brasília e alguns estrangeiros. O
desenvolvimento de sua experiência profissional de dança se realiza basicamente dentro da
Companhia Márcia Duarte8, de Brasília, e do Basirah.

Lívia Bennet, bacharel em Interpretação Teatral pela Faculdade de Teatro Dulcina de


Moraes em Brasília (2003), Micheline Diniz, graduada em Direito pela Uniceub de Brasília
(2002), e Rachel Cardoso, graduada em Psicologia também pela Uniceub (2003), iniciaram
suas experiências em dança com aulas informais realizadas em academias de dança de
Brasília, além de participarem eventualmente de workshops de curta duração com coreógrafos
estrangeiros. Rachel tem atuado somente como dançarina. Sua experiência profissional na
dança foi iniciada em 1994, com seu ingresso na Companhia Anti Status Quo, e em seguida
com o Basirah. Micheline atuou, por quase dez anos, como patinadora artística, e também foi
integrante do Anti Status Quo Cia de Dança por três anos. Bennet usufrui sua formação teatral
para também atuar como atriz e, às vezes, como assistente de direção em peças teatrais e circo
de Brasília.

Alisson e Diego, formados pela Universidade de Brasília respectivamente em


licenciatura em Educação Artística (2004) e graduação como bacharel em Interpretação
Teatral (2005), são os participantes da pesquisa com menos experiência em dança. Alisson
iniciou-se dentro do Núcleo de Formação do Basirah em 2002. Antes disso esteve envolvido
com o teatro nas funções de ator, cenotécnico e assistente de direção. Diego Pizarro teve seu
primeiro contato com a dança por meio de academias de dança de Anápolis (GO) em 1999,
participando informalmente de aulas técnicas de jazz e contemporâneo. Em 2002 também
ingressa no Núcleo de Formação do Basirah.

Alessandro Brandão é o intérprete participante desta pesquisa com mais experiências


em outras áreas artísticas. Além da graduação como bacharel em Interpretação Teatral pela
Universidade de Brasília (1998), possui formação em balé clássico pela Academia de dança
Clássica de Brasília Norma Lilia (1992-99) e estudou canto lírico no Conservatório de Gaia
(1994), em Portugal. Sua formação versátil lhe proporciona atuar constantemente em

8
Márcia Duarte desenvolveu dissertação de mestrado sobre o processo criativo do espetáculo OLHOS DE
TOURO, do qual Márcia Lusalva participou como intérprete e criadora. Mais informações sobre essa pesquisa
em PINHO, Márcia Duarte. Olhos de Touro: um caminho de criação. 2003. 111f. Dissertação de Mestrado em
Artes Cêncicas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2003.
9

espetáculos de balé clássico, peças teatrais, cinema e recitais, além de trabalhar como
coreógrafo, diretor e figurinista de teatro e dança. Com a heterogeneidade do perfil dos
participantes a pesquisa busca respeitar a experiência de cada um, fazendo da diversidade um
estímulo para a investigação.

A metodologia de abordagem utilizada para este estudo fundamentou-se no diálogo


entre teoria e prática numa contaminação positiva. A fusão da prática com a teoria foi se
dando ao longo de todo o processo da pesquisa, bem como na montagem do espetáculo De
Água e Sal. As fontes teóricas utilizadas foram multi e transdisciplinares, e juntamente com o
desenvolvimento dos trabalhos com o Basirah nutriram a compreensão do processo.

Importante lembrar que não tive a intenção, nesta pesquisa, de me aprofundar nos
estudos de cada fonte teórica apresentada. Meu interesse maior é fazer conexões da prática
realizada com as idéias, conceitos e pensamentos apresentados por filósofos, historiadores,
acadêmicos, críticos, artistas e diretores de teatro e dança que estejam discutindo temas afins
com essa pesquisa. Muitas vezes tomei como referência a teoria do teatro pela dificuldade de
encontrar na bibliografia de dança pesquisada, discussão e reflexão sobre a encenação e temas
como presença, dilatação corpórea e desenvolvimento do intérprete em cena, dentre outros. A
carência de material bibliográfico sobre dança contemporânea em Brasília, assim como a
pouca teoria existente sobre ela, foram fatores limitantes para o aprofundamento das reflexões
com referências na dança. Mas, também me senti atraída em buscar fontes teóricas do teatro,
por encontrar afinidades de princípios propostos nesta pesquisa com as reflexões e análises
apresentadas nessas fontes, principalmente pelo pensamento de Jerzy Grotowski, Renato
Ferracini e Peter Brook. Estes autores anunciam em suas teorias uma preocupação eminente
com os processos do intérprete, preocupação que também faz parte dessa pesquisa. No campo
da performance me vali de Renato Cohen, RoseLee Goldberg e de meu orientador Fernando
Pinheiro Villar, dentre outros, pois detecto algumas características da performance utilizadas
tanto na montagem e apresentação do espetáculo, bem como na forma de utilização de alguns
princípios definidos na pesquisa. Embora tenha me alimentado de fontes diversas, a pesquisa
partiu fundamentalmente do pensamento e metodologias desenvolvidas por Mary Starks
Whitehouse e Bonnie Bainbridge Cohen, inspirando-me em seus estudos, respectivamente o
Movimento Autêntico (MA) e o Body Mind Centering (BMC). Além desses autores citados
acima, busquei dialogar com a filosofia de Maurice Merleau Ponty, Hans-Georg Gadamer e
Luigi Pareyson, da psicologia de Carl Gustav Jung e Sigmund Freud, e me aventurei no
estudo de alguns conteúdos da neurociência, por meio de António Damásio.
10

Numa tentativa de trazer uma reflexão sobre o atual momento da dança


contemporânea e novos parâmetros que se revelam, apresento no Capítulo 1, um breve recorte
sobre o percurso histórico da dança moderna e pós-moderna, principalmente nos Estados
Unidos e Alemanha, por habitarem as correntes de dança que influenciaram, direta ou
indiretamente, a dança no ocidente. Certamente que esta pesquisa também sofre influências
dessas correntes de dança na medida que tenta dialogar com métodos de criação que se
relacionam com linhas de pensamento e processo criativo de coreógrafos como Mary Wigman
ou Kurt Jooss, dentre outros. Para contextualização histórica apresentada nesse capítulo, as
fontes bibliográficas utilizadas foram Paul Boucier, Sally Banes e Kátia Canton, dentre
outros. Este estudo não pretende esclarecer ou rotular o que é a dança contemporânea atual,
mesmo porque, talvez essa tentativa possa se frustrar com a variedade de conceitos e
definições que tentam abarcar a diversidade de estilos das criações coreográficas que se
intitulam ‘dança contemporânea’. O objetivo é levantar pontos de reflexão para situarmos a
linha de pensamento onde essa pesquisa se insere. Para esse recorte também busquei dialogar
com críticos, acadêmicos e artistas do campo da dança contemporânea. Recorri a artigos e
publicações mais recentes de estudos e reflexões realizados por Helena Katz, Christine
Greiner, Dani Lima e Jerôme Bel, dentre outros, almejando tocar em alguns pontos de
discussão suscitados no panorama da dança contemporânea, tais como a hibridização do corpo
dos intérpretes, a interdisciplinaridade de linguagens, a diversidade de estilos de dança ou a
subversão do passo de dança, etc. Esses temas são colocados em questão como possíveis
desencadeadores da cabotinagem performática. A cabotinagem, termo utilizado por Jacques
Copeau, é segundo ele:

uma doença que não é só endêmica para o teatro. É o mal (enfermidade) da


insinceridade, ou da falsidade. Ele que sofre desta enfermidade cessa de ser
autêntico, de ser humano. Ele é desacreditado e anti natural [...]. Eu não me
refiro somente àqueles denominados “estrelas”, destes fenômenos, destes
pobres monstros do qual deformidades são muito obvias para exigir uma
descrição. Me refiro a todos os atores, do mais sem importância deles e seus
gestos desprezíveis, da total mecanização da pessoa, e da absoluta
deficiência da inteligência profunda e da verdadeira espiritualidade. 9

9
HODGE, Alison. Twentieth century actor training. Londres and Nova York: Routledge, 2000, p55.
Minha tradução, assim como todos os trechos de obras em línguas estrangeiras nesta dissertação não traduzidas
para o português.
11

Copeau refere-se a uma ilusão do intérprete no momento da atuação, quando ele


acredita profundamente na sua verdade performática, e que sua intensidade e envolvimento
emotivo na atuação, ou mesmo a demonstração de refino técnico são suficientes para
transbordar sua presença física e estabelecer alguma relação com o público. Entretanto o que
esse público presencia é uma atuação vazia e sem sentido. Outro objetivo que esta pesquisa
busca é o enfraquecimento da cabotinagem performática.

No Capítulo 2 há um esclarecimento do que vem a ser a técnica do MA e do estudo do


BMC, que foram nosso ponto de partida, e como essas técnicas foram utilizadas no processo,
além do cruzamento que houve com outros exercícios, propiciando a construção do que
chamarei de princípios da pesquisa. O Capítulo 3 é um relato da aplicação da pesquisa na
companhia de dança contemporânea Basirah, onde se deu a principal investigação e
desenvolvimento da pesquisa como um todo e a definição das etapas do processo, com
reflexões sobre cada uma delas até se chegar à criação do espetáculo De Água e Sal. Esta
dissertação possui também três Anexos. O Anexo 1 traz uma listagem de exercícios que foram
criados a partir de variações dos procedimentos do MA e do BMC, além dos temas e
motivações utilizados para a realização de improvisações. O Anexo 2 apresenta os relatórios
descritos por cada participante sobre o processo da pesquisa, em dois momentos distintos. O
primeiro momento se deu ao final da primeira etapa da pesquisa em novembro de 2004. E o
segundo momento aconteceu após a elaboração e apresentação do espetáculo De Água e Sal
em outubro de 2005.

Alguns exercícios desta pesquisa, especialmente os desenvolvidos na primeira etapa,


também foram aplicados no processo criativo do espetáculo Lambe Lambe da dançarina
Kênia Dias. O relato dessa aplicação está sintetizado no Anexo 3.Minha parceria com Kênia
se deu a partir da pesquisa dela, onde pude contribuir aplicando os exercícios de minha
pesquisa como uma etapa pré-expressiva de seu processo criativo. Foi um procedimento
distinto do realizado com o Basirah, na medida em que Kênia já possuía uma temática bem
definida para criação de um espetáculo. Além disso, não era meu objetivo empenhar o papel
de direção na sua montagem, mas apenas estimular sua sensibilidade corporal e emotiva
(tópicos de minha pesquisa) para o que ela estava propondo. Os exercícios nesse contexto se
configuraram distintamente, pois assumiram um caráter mais de compreensão do material de
sua pesquisa de campo, e de um exercício de presença para a interpretação do material
selecionado no processo criativo.
12

Por fim, na Conclusão apresento uma reflexão sobre os resultados obtidos na pesquisa
fazendo uma ponte para diversos questionamentos que foram levantados a respeito do
processo criativo.
13

CAPÍTULO 1. QUAL A DANÇA DESSE CORPO?

É por meu corpo que compreendo o outro, assim


como é por meu corpo que percebo coisas.
Assim, ‘compreendido’ o sentido do gesto não
está atrás dele, ele se confunde com a estrutura
do mundo que o gesto desenha e que por minha
conta eu retomo, ele se expõe no próprio gesto.

Merleau-Ponty.10

Este capítulo propõe uma reflexão sobre aspectos do atual momento da dança
contemporânea, e os novos parâmetros que se revelam. Como o corpo dessa nova dança vem
sendo pensado e investigado? Qual a relação da dança contemporânea e o corpo contaminado
pela contemporaneidade?

Apresento aqui um recorte da história da dança moderna e pós-moderna no ocidente,


principalmente as escolas estadunidense e alemã, numa tentativa de entender os rumos
tomados pela dança contemporânea atual e as formas de relação do corpo com o movimento
que ela propõe. Pareceu-me importante buscar um diálogo com o passado, reconhecendo
influências de seus traços no desenvolvimento da dança contemporânea de agora, para quem
sabe, situar e compreender a presente pesquisa e o contexto onde ela se insere, possibilitando
a abertura para uma compreensão ampliada não só do corpo que dança em sua dimensão
anatômica e psicológica, mas também histórica e cultural.

1.1. UM POUCO DE HISTÓRIA DA DANÇA

Segundo os historiadores Paul Boucier e Sally Banes,11 considera-se que o surgimento


da dança moderna se deu no final do século XIX e início do século XX, principalmente nos
Estados Unidos e Alemanha, num contexto reativo ao balé clássico e seus códigos de
movimentação tradicional. Embora, já no século XVIII, o francês Jean-Geoges Noverre inicia
suas propostas de reformas das óperas-balés,12 impulsionando, de alguma forma, um

10
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura.
São Paulo: Martins Fontes, 1999, p253.
11
Para mais informações sobre história da dança moderna e pós-moderna ver BOUCIER, Paul. História
da dança no ocidente. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1ª edição brasileira, 1987 e
BANES, Sally. Terpsichore in sneakers: post-modern dance. Boston: Houghton Mifflin Company, 1980.
12
Segundo Boucier o gênero ópera-balé foi criado por André Campra, na França, em 1698, e consistiu em
valorizar a dança em detrimento a ópera. Antes disso os elementos tradicionais da ópera, as árias, recitativos,
coros, eram tratados com mais importância que o balé dentro do espetáculo, que só servia como divertimento nos
intervalos entre os atos. BOUCIER, Paul. Op.cit., p158.
14

pensamento mais moderno para a dança, com esforços para uma evolução em direção ao
“realismo de assuntos, da técnica e rumo à expressão da sensibilidade”. 13 Noverre adotou com
suas Lettres sur lê ballets et lês arts d’imitation (Cartas sobre o balé e as artes de imitação,
1760) uma doutrina de contestação, tanto no plano teórico quanto no das realizações,
reivindicando maior liberdade para a dança, propondo uma série de modificações das
estruturas clássicas tradicionais, dentre elas a formação do dançarino, que deveria ter uma
cultura geral vasta envolvendo poesia, história, pintura, música, anatomia e geometria, e
também, a formação dos professores e a forma como os coreógrafos criavam suas
composições coreográficas. Criticava a importância dada somente ao aspecto da habilidade
física e da técnica do bailarino, pois para ele, o bailarino deveria conhecer o próprio corpo no
sentido físico e espiritual.14 Após Noverre tivemos outros coreógrafos que tentaram levar
adiante suas idéias como Jean Dauberval e Salvatore Vigano. Outro simpatizante das idéias de
Noverre foi o coreógrafo Mikhail Fokine, que participou dos Balés Russos de Serge de
Diaghilev já no início do século XX, e é considerado o pai do balé moderno.15 Noverre impôs
suas idéias reformadoras causando polêmica em grande parte da Europa. Entretanto, seu
espírito contestador foi determinante para criação e fortalecimento do balé clássico como
gênero artístico completo e independente da ópera.

Contestar formalismos e rejeitar rigores foi um dos objetivos da dança moderna no


início do século XX, período do surgimento das chamadas Vanguardas Históricas. As
vanguardas artísticas na literatura, música, teatro, poesia, dança e pintura também buscavam
novas formas de manifestação da arte, resultando no aparecimento dos movimentos e ou
escolas Impressionista, Simbolista, Cubista, Futurista, Construtivista, Dadaísta,
Expressionista, Surrealista e ou Bauhaus, além da Ausdrucktanz e da Nova Objetividade.16
Esses movimentos artísticos desdobraram-se em manifestações, adaptados às práticas locais,
numa atividade ampla que acabou por desempenhar o papel primordial na cultura no século
XX. Tal cultura estabeleceu uma espécie de tensão com as formas de arte até então aceitas
como representantes da tradição. Artistas como Adolphe Appia, Loïe Fuller, Gordon Graig,

13
Idem, p150.
14
Idem, p172.
15
PORTINARI, Maribel. História da dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p113.
16
Mais detalhes sobre vanguardas artísticas ver GOLDBERG, RoseLee. Performance Art: from futurism
to the present. Londres: Thames and Hudson, 1988.
15

Isadora Duncan, Vsevolod Meyerhold, Antonin Artaud, dentre outros, acompanhando as


mudanças sociais, econômicas, políticas e filosóficas do mundo, passavam a desejar novas
expressões artísticas. Fernando Pinheiro Villar nos aponta que

Artistas das vanguardas da primeira e segunda metades do século


questionam então de forma radical o conservadorismo de suas linguagens e
de seus públicos no bojo de intensas transformações econômicas, sociais e
políticas. As fronteiras entre arte e vida se misturam.17

Na esfera da dança na primeira metade do século XX, o descontentamento com os


balés clássicos e as influências do período de transformações em todos os setores das artes,
trazidas principalmente pelos movimentos vanguardistas, além do impacto do avanço da
revolução industrial, foram alguns dos motivos que certamente estimularam a necessidade,
por parte dos coreógrafos, de ruptura com os modelos vigentes, que impunham uma visão
mecanicista do homem na sua relação com a vida. Coreógrafos precursores da dança moderna
como Isadora Duncan, Ruth Saint-Denis, Martha Graham, Doris Humphrey, Mary Wigman e
Kurt Jooss dentre muitos outros, proclamaram um caráter pessoal em suas obras, trazendo
formatos intimistas, conteúdos subjetivos e questões individuais para o estilo do movimento,
numa reação à abstração e ao vocabulário impessoal e codificado do balé. Além disso, havia o
desejo de assumir posições mais críticas em relação ao que se passava nas sociedades naquela
época com a Primeira Guerra Mundial, industrialização, advento do nazismo. Na década de
1930, esses fatos provocaram um deslocamento de artistas da Europa para os Estados Unidos,
que fundaram escolas como a Black Mountain College, na Carolina do Norte. A escola,
coordenada por Anni Albers, ex-professora da Bauhaus, era uma instituição experimental que
atraía artistas de várias áreas que defendiam o intercâmbio entre arte e ciência, difundindo
idéias artisticamente interdisciplinares, que reagiam aos territórios monodisciplinares ou
fixos.

Já antes da Black Mountain College, ‘reagir’ talvez fosse a palavra que melhor
traduzisse o sentimento da dança moderna no século XX. Inclusive, o surgimento de novos
estilos, teorias e técnicas de dança se deram, principalmente, num contexto reativo de
coreógrafos e dançarinos aos conteúdos aprendidos de seus mestres. Cada pequena

17
VILLAR, Fernando Pinheiro. Performances. In: CARREIRA, André Luiz Antunes; VILLAR, Fernando
Pinheiro; GRAMMONT, Guiomar; RAVETTI, Graciela; ROJO, Sara (Org). Mediações Performáticas Latino
Americanas. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2003, p73.
16

transformação de técnica ou estilo aprendido ocorria mais em função de uma revolta


construtiva em relação ao conteúdo assimilado, do que objetivando promover um
aprimoramento desse conteúdo. Esse fato transformou também a relação entre o coreógrafo e
o dançarino. O coreógrafo, que buscava um novo estatuto para dança do século XX, passou a
exigir mais de seus dançarinos, pois, “a tradição do novo” demandava que todo dançarino
deveria ser um coreógrafo em potencial. 18

Na dança moderna, a necessidade de se construir novos caminhos que servissem de


base para a liberdade expressiva do corpo fez com que, coreógrafos e dançarinos, buscassem
outras fontes referenciais de formação corporal, não diretamente vinculadas à dança. Duncan,
St-Denis, Ted Shaw, Graham, Humprey, Wigman e Jooss dentre outros, se valeram de outras
técnicas para suas criações coreográficas e, principalmente, para o desenvolvimento de um
pensamento de dança mais voltado para expressividade que se fundamentava na idéia de que,
“a intensidade do sentimento comanda a intensidade do gesto”.19 Além das influências das
idéias de François Delsarte, essa primeira geração da dança moderna também foi influenciada
pelos estudos e pensamentos do suíço Émile Jacques Dalcroze e do húngaro Rudolf von
Laban.

Para uma melhor visualização da linha de influências responsáveis pelo


desenvolvimento da dança moderna nos Estados Unidos e Alemanha, Paul Boucier nos
apresenta o seguinte quadro:

18
BANES, Sally. Terpsichore in sneakers: post-modern dance. Boston: Houghton Mifflin Company
Boston, 1980, p5.
19
BOUCIER, Paul. Op.cit., p244.
17

A ESC O LA AM ER IC ANA

Teórico: François Delsarte

Isadora Duncan

Saint-D enis-Shawn : Denischawnschool

Hum phrey-W eidm an Graham

Lim on Hawkins C unningham

Falco Taylor Tharp

Fora da Denischaw nschool: Horton

Ailey Lew itzk y

Post modern: De Groat-Childs-Dunn

A E SC O LA A LE M Ã

Teórico: Jaques-Dalcroze

Laban

W igm an

Jooss Nikolais

Louis Buirge Carlson

Figura 1. Quadro sinótico da dança moderna20

Os ensinamentos de Delsarte influenciaram a dança moderna dos Estados Unidos, que


herdou, para o desenvolvimento de suas técnicas, principalmente a valorização da

20
Idem, p308.
18

expressividade do movimento por meio do torso, “que todos os dançarinos modernos de todas
as tendências consideram a fonte e o motor do gesto”.21

Coreógrafos que tiveram contato com o método de Jacques Dalcroze se apropriaram


de suas idéias, principalmente, no sentido de trazer para o gesto a conexão com o sentimento
que o anima. Dalcroze, envolvido com a música, assim como Delsarte, começa a perceber a
importância de uma educação corporal para o aprendizado musical. Descobre uma “pedagogia
do gesto” ao criar um método de educação psicomotora com base na repetição, aumento da
complexidade e da sobreposição de ritmos, na decifração corporal e na sucessão do
movimento. Fundamenta-se no princípio de economia de forças musculares, objetivando a
eficiência do gesto. O aluno deveria praticar um solfejo corporal cada vez mais complexo,
buscando realizá-lo com máxima eficiência, com movimentos claros e econômicos. Com esse
método, Dalcroze buscava desenvolver no aluno um sentido musical, integrando
sensibilidade, inteligência e corpo. 22

É importante lembrar que não é foco desta pesquisa descrever pormenorizadamente


sobre a história de cada coreógrafo ou estudioso envolvido no processo de desenvolvimento
da dança moderna e pós-moderna. O fato de discorrer a seguir um pouco mais sobre alguns do
que sobre outros, não tem a intenção de dar a nenhum deles mais ou menos valor dentro da
história. Objetivo aqui, oferecer em linhas gerais um panorama do desenvolvimento da dança
que nos possa dar uma idéia sobre algumas linhas influenciadoras da dança contemporânea
atual e desta pesquisa.

De acordo com Banes, a atriz, escritora¸ empresária e dançarina estadunidense Loïe


Fuller (Marie Louise Fuller), foi quem abriu campo para o desenvolvimento da dança
moderna, apesar dos Estados Unidos não possuírem uma tradição de balé. Trabalhando em
Paris na década de 1890, Fuller trouxe algumas importantes contribuições para a dança como
a liberdade para o movimento, apresentações na forma de solo e, principalmente, a utilização
de jogos de luz associados a movimentos de tecidos e largos figurinos, que consistiu a base de
sua pesquisa dentro da dança.23 Suas coreografias, inspiradas em elementos da natureza como
flores, animais, fogo etc, se ocupavam em colocar o corpo como instrumento para criação de

21
BOUCIER, Paul. Op.cit, p245.
22
Idem, p292.
23
BANES, Sally. Op.cit.,, p1.
19

efeitos visuais, voltados principalmente para a plasticidade cênica criada com o colorido das
luzes sobre os figurinos em movimento. Normalmente trabalhava com bailarinos amadores
em suas criações.

Sem formação de bailarina, Fuller foi uma artista que conquistou sucesso na Europa e
Estados Unidos nos anos entre 1892 até 1927, principalmente pela descoberta da magia das
luzes utilizada no palco produzindo atmosferas fora do real.24 Embora, parte dos coreógrafos
dessa geração rejeitasse suas propostas, Fuller teve livre circulação e bom relacionamento
com as vanguardas artísticas. Inclusive foi grande influenciadora e inspiradora de artistas
contemporâneos como Appia, Graig, o poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti em seu balé
futurista, além das precursoras da dança moderna Duncan e St-Denis. Para Duncan, Fuller foi
a responsável pela criação das cores cambiantes e do uso de graciosas écharpes Liberty, além
das “primeiras inspirações bebidas na luz e nos efeitos policrômicos”.25 Com ela a dança
começa a explorar outras possibilidades de contextualização do movimento, introduzindo uma
nova estética visual, voltada principalmente para a plasticidade dos movimentos.26

Assim como Fuller, Isadora Duncan foi uma coreógrafa que tentou buscar na dança
algo completamente diferente do modelo clássico, se inspirando em motivos da natureza (ar,
fogo, água, árvores, etc), como referência para uma expressão mais natural do movimento.
Para Boucier, a contribuição de Duncan para a dança moderna foi “aparentemente efêmera”,27
pois não desenvolveu nenhuma técnica ou pensamento mais sólido sobre suas idéias. Segundo
ele, a maior herança deixada por Duncan foram suas atitudes em relação à liberdade de
expressão do ser humano. Entretanto, de acordo com Maribel Portinari, em seu livro História
da dança,28 o legado de Duncan foi da máxima importância, até mesmo no balé, através das
criações de Michel Fokine nos Balés Russos de Serge de Diaghilev:

Isadora ajudou a arejar o convencional,[....] Sua dança propunha, acima de


tudo, uma harmonia com a natureza. De um modo bem mais intuitivo do que
cultural, já que a sua formação era de uma autodidata, sempre assimilando o

24
BOUCIER, Paul. Op.cit, p253.
25
DUNCAN, Isadora. Minha vida. Trad. Gastão Crus. São Paulo: Círculo do Livro, sem ano, p85.
26
Para mais informações sobre Loïe Fuller ou textos dela e de outros artistas das Vanguardas Históricas
ver SÁNCHEZ, José A..La escena moderna: manifestos y textos sobre teatro de la época de vanguardias.
Madrid: Ediciones Akal, 1999b.
27
BOUCIER, Paul. Op.cit., p250.
28
PORTINARI, Maribel. História da dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
20

diferente, e não raro contraditórias influências. Tal como Dalcroze e


Delsarte, ela colocou no plexo solar a fonte essencial do movimento
dançante, no que seria seguida por outros pioneiros da escola moderna na
Europa e nos Estados Unidos. Imbuída da filosofia de Nietzsche, Isadora fez
da dança uma religião em perpétua busca de beleza e liberdade. Entre um
paganismo dionisíaco e dramas pessoais, ela teceu a sua própria lenda em
que a mulher e a artista disputam primazia de heroína.29

De acordo com Marvin Carlson “o aparecimento de Isadora Duncan em St.


Petersburg em 1904 teve um profundo efeito no teatro e na dança da Rússia, focalizando as
atenções sobre a performer individual e os movimentos naturais do corpo”.30 Duncan foi
admirada, por seu despojamento artístico, por renomados artistas da época dentre eles Igor
Stravinsky, Alexander Tairov, Diaghilev, Konstantin Stanislavsky, além de Gordon Graig,
com quem teve uma filha.

Ruth Saint-Denis, outra precursora da dança moderna, casa-se com o dançarino Ted
Shawn e montam em 1916 a Denishawnschool, onde se formaram Grahan e Humphrey. Na
Denishawnschool aplicam-se princípios dos ensinamentos de Delsarte. Esses princípios
referem-se à mobilização de todo o corpo para a expressão, dando ênfase principalmente ao
torso, utilização da contração e relaxamento da musculatura para obtenção da expressão e a
importância dada ao significado dos gestos e sentimentos.

Outro importante teórico do movimento, Rudolf von Laban foi criador do sistema
Labanotação e do Labanálise, em 1926. A Labanotação consiste num método de notação da
dança, partitura escrita com sinais gráficos que objetivavam registrar o movimento. A
Labanálise ou Análise Laban de Movimento, combina a labanotação com a análise do
movimento, registrando além da mecânica do movimento, seus aspectos qualitativos como
dinâmica e qualidades expressivas. O desenvolvimento de seu método estava ligado tanto à
prática corporal de atores e dançarinos, como também na observação do movimento dos
trabalhadores nas fábricas.31 Com Laban, alguns importantes coreógrafos se valeram de seus
ensinamentos, mesmo que fosse para caminhar no sentido oposto a eles. Ainda hoje, diversas
escolas de dança, principalmente na Europa, utilizam seu sistema como meio para a educação

29
Idem, p139.
30
CARLSON, Marvin. Performance: a critical introduction. Londres e Nova York: Routledge, 1996, p88.
31
DIAS, Kênia. Da rua à cena: trilhas de um processo criativo. 2005, 120 f. Dissertação (Mestrado em
Artes) Universidade de Brasília. Brasília, 2005, p127.
21

do movimento. Laban é considerado o precursor da dança-teatro alemã, que discípulos seus


como Wigman e Jooss difundiram.

Aluna de Laban e Dalcroze, Mary Wigman foi uma das fundadoras da Ausdrucktanz,
dança da expressão, na Alemanha. De acordo com Kátia Canton, a dança alemã, na busca de
liberdade para o vocabulário de dança sem referências nos códigos do balé clássico, usa o
movimento para expressar emoções profundas desejando alcançar leis universais de
expressão. Canton nos aponta que

A dança moderna na Alemanha se desenvolveu principalmente como uma


busca por essências que respondessem à grande ansiedade e inquietude
características do contexto histórico da Primeira Guerra Mundial e das então
recentes elaborações da psicanálise de Freud. A resposta a esses fatos foi um
movimento para dentro. Para os dançarinos, como para toda uma geração de
artistas expressionistas, a única verdade viria das emoções internas, já que a
realidade exterior não se mostrava confiável. 32

Seguindo essa realidade a Ausdrucktanz foi, nas palavras de Ciane Fernandes, “uma
rebelião contra o balé clássico, buscando uma expressão individual ligada a lutas e
necessidades humanas universais”. 33 A Ausdrucktanz foi classificada como uma dança
ideológica que buscava inspiração no estado primitivo da emoção, onde o movimento
expressivo se manifesta a partir de uma necessidade interna e do diálogo dessa necessidade
com o exterior. Segundo Soraia Maria Silva, a Ausdrucktanz desenvolveu uma técnica e um
método de ensino com princípios como devoção a uma experiência pessoal do ambiente,
libertação da dança da dependência da música e das narrativas, introdução da improvisação
como recurso no processo técnico de treinamento corporal e de composição coreográfica,
desenvolvimento dos aspectos expressivos do movimento chamado eucinética, desenvolvida
por Kurt Joos, desenvolvimento da corêutica, investigada por Laban, que consiste em
aprimorar a consciência do espaço ao bailarino e ao coreógrafo, além de outros princípios.34
Como veremos no Capítulo 2 Mary Starks Whitehouse, que foi aluna de Wigman, utiliza
alguns desses princípios para seu estudo do Movimento Autêntico.

32
CANTON, Kátia. E o príncipe dançou...: O conto de fadas, da tradição oral à dança contemporânea.
Trad. Cláudia Sant’Ana Martins. São Paulo: Ed. Ática, 1994, p155.
33
FERNANDES, Ciane. Pina Bausch e o Wuppertal Dança-Teatro: repetição e transformação. São
Paulo: Hucitec, 2000, p14.
34
Mais informações sobre Ausdrucktanz ver SILVA, Soraia Maria. O expressionismo e a dança. In:
GUINSBURG, Jacó. O expressionismo. São Paulo: Perspectiva, 2002, p339.
22

Wigman viveu em plena Primeira Guerra Mundial, o que influenciou fortemente sua
dança como nos coloca Boucier:

Sua visão trágica de uma existência efêmera é mostrada por um


expressionismo violento que é uma constante, aliás, da arte germânica desde
Grünewald, Holbein, Dürer até o movimento de Blaue Reiter, o cinema do
pós-guerra (o Metrópolis, de Fritz Lang, é de 1930), o teatro da mesma
década (o Hoppla vir Leben, 1927, de Toller, e o início de Brecht), a pintura
de Macke e de Nolde, com quem mantém relações íntimas.35

Wigman não compartilhava com Laban suas teorias cinéticas do movimento, as quais
achava aprisionadoras para o dançarino, mas sim o “sentido profundo da dança: a revelação
de tudo que jaz escondido no homem”. 36 Também não possuía muitas afinidades com a
pedagogia dalcrozeana. Profundamente envolvida com as questões de sua época como a
ascensão do nazismo, miséria, desespero e o desprezo pelo ser humano, Wigman criou um
tipo de dança que buscava personificar a própria emoção, explorando estados emocionais
primitivos, expressos em movimentos abstratos. Utilizou máscaras nos intérpretes,
acreditando que assim, eles se transformariam em ‘tipos e emoções universais, que
transcendiam os limites do mundo material’.37 Propunha retratar o destino trágico do ser
humano e da humanidade, sem submeter-se à leveza, mas sim ao poder da expressão. Boucier
nos fala que, Wigman, na busca pelo poder da expressão do movimento, adota uma forma de
ensinar que incentiva seus dançarinos a se conhecerem profundamente, pois,

É preciso se pôr à escuta de si mesmo, onde se pode ouvir a repercussão do


eco do mundo. Então os vislumbres de conhecimento que começam a brotar
exprimem-se por esboços de gestos que contribuem para a conscientização
das pulsões internas. Ao final de um longo caminho, o artista conseguirá, ao
mesmo tempo, conhecer suas forças criadoras e adquirir os meios corporais
para exprimi-las.38

A partir de Wigman imprime-se na dança o foco na expressividade do gesto, que dá


liberdade ao dançarino para explorar seu próprio vocabulário de movimento, atribuindo-lhe
total responsabilidade sobre a expressão. O cerne da cena é a expressividade do próprio corpo.
Wigman dá inicio ao desenvolvimento de um estilo de dança adotado por muitos coreógrafos

35
BOUCIER, Paul, Op.cit.,p296.
36
Idem, p297.
37
CANTON, Kátia. Op. cit., p155.
38
BOUCIER, Paul. Op.cit., p299.
23

de gerações posteriores como Carolyn Carlson, Kurt Joos, Susan Buirge e, indiretamente,
Pina Bausch.

Também aluno de Laban e Wigman, Kurt Jooss pertenceu à geração de artistas do


período denominado de Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade),39 na Alemanha. O principal
interesse de criação dessa geração estava voltado para o compromisso social, sem, contudo,
abandonarem o espírito que guiava os expressionistas.

Jooss discordava de seus mestres em muitos pontos. Não acreditava, por exemplo, que
qualquer um pudesse se tornar um dançarino, idéia defendida por Laban. Também discorda de
Wigman que pregava o não adestramento corporal em sistemas preestabelecidos. Criou,
então, um novo sistema de dança chamado Eukinetics, que era um método de interpretação
que valorizava a técnica corporal do dançarino, baseando-se em posturas e passos de balé.
Canton nos fala que

Jooss apoiava a procura expressionista de uma síntese da experiência


humana através da arte. Mas, para ele, essa síntese deveria vir da fusão
ordenada de elementos teatrais, da dança à representação, em uma única
atitude interpretativa.[...] Enquanto Laban pensava que seus coros de
movimento poderiam construir uma sociedade mais saudável, o coreógrafo
de pós-guerra retratava a hipocrisia e a feiúra de uma sociedade corrompida
pela guerra, pela morte e pela prostituição, testemunhando que o mundo não
seria um lugar melhor depois de tanto sofrimento. 40

Com formação em música, teatro e dança, Jooss trouxe para suas criações uma relação
íntima do teatro com a dança. A Mesa Verde (1932) é sua obra mais conhecida. Segundo
Portinari, as pesquisas sobre o movimento puro empreendidas por Jooss, fizeram sua arte
ganhar contorno humano e refletir os dramas e aspirações de um período, inovando o
panorama da dança. 41 Foi um importante influenciador de sua ex-aluna Pina Bausch, de quem
falaremos mais adiante.

39
Esse conceito foi trazido por Gustav F. Hartblaud em 1923 por ocasião da preparação de uma exposição
das obras dos artistas visuais Otto Dix e George Grosz, dentre outros que se interessavam pela arte figurativa e a
retratação da realidade social. Embora o movimento tenha envolvido todos os campos artísticos, o termo Nova
Objetividade está ligado, principalmente, às artes visuais. Kurt Jooss, o dramaturgo Ernest Toller e a intérprete
solo Valeska Gert participaram do movimento. CANTON, Kátia. E o príncipe dançou...: O conto de fadas, da
tradição oral à dança contemporânea. Trad. Cláudia Sant’Ana Martins. São Paulo: Ed. Ática, 1994, p155.
40
Idem, p156-7.
41
PORTINARI, Maribel. Op.cit., p145-6.
24

O desenvolvimento da dança moderna nos Estados Unidos e Alemanha tomou


direções distintas na forma de abordar seus temas. Vimos que na Alemanha as criações
estavam voltadas para a retratação, de fato, dos temas atuais, com ênfase na expressão e
teatralização, característica que se perpetuou e se fortaleceu até os dias de hoje,
principalmente pelas coreografias de Bausch. Nos Estados Unidos, apesar de trazerem uma
visão que pudesse fazer um paralelo com a atualidade, as concepções coreográficas se
inspiravam num passado imaginário. Foram protagonistas dessa linha de criação, Duncan,
com sua paixão pela Grécia clássica, e Graham, que em suas coreografias baseava-se nas
mitologias gregas trazendo uma abordagem diferenciada. Graham se valia dos mitos como
arquétipos de emoções universais, como a paixão, a culpa, a redenção, assim como marcas
simbólicas do ciclo da vida.

Apesar do desejo de ruptura com as técnicas formais da dança, observamos que, a


geração de coreógrafos da dança moderna, não se desapega totalmente dos princípios técnicos
do balé, que ainda exercem uma forte influência na construção das técnicas modernas de uma
forma geral.

Talvez seja importante lembrar que, mesmo produzindo no âmbito do balé clássico,
outro impulsionador de inovações no mundo da dança foi o russo Sergei de Diaghilev.
Empresário, produtor artístico e agitador cultural bastante envolvido com os movimentos das
vanguardas artísticas do começo do século XX, cria os Balés Russos em 1909. Desejando que
“a dança fosse o ponto de encontro de todas as artes”,42 Diaghilev reúne famosos coreógrafos
e dançarinos como Mikhail Fokine, Anna Pavlova, Leonide Massine, Serge Lifar, Tâmara
Karsavina, Vaslav Nijinski, dentre outros, e se associa a artistas dos movimentos futurista e
cubista como Jean Cocteau, Giacomo Balla, Erik Satie, Pablo Picasso, Alexandre Benoi
dentre outros,43 absorvendo para a dança a sensibilidade artística da época. Pregava grandes
modificações nas tradições do balé, referindo-se, principalmente, às concepções de cenários e
figurinos, propondo uma nova estética para a dança. Diaghilev foi um aglutinador de artistas
que pensavam à frente de seu tempo. Reuniu-os na maior parte de suas montagens, abrindo

42
BOUCIER, Paul. Op.cit., p226.
43
Mais informações sobre a participação de Diaghilev nos movimentos das vanguardas artísticas ver
GOLDBERG, RoseLee. Performance Art: from futurism to the present. Londres: Thames and Hudson, 1988,
p21, e BOUCIER, Paul. Op.cit, p228.
25

campo para a criação de balés com tendências modernas, principalmente com as coreografias
de Fokine e Nijinski, que começam então a ser influenciados por Isadora Duncan. 44

No Brasil, a dança moderna é trazida na década de 1930 pela gaúcha Frieda Ullman
(Chinita Ullman) e pela moscovita Nina Verchinina. Ullman foi aluna de Wigman, e funda a
primeira escola de dança de São Paulo, em 1932. Verchinina teve grandes influências de
Duncan e também abre uma escola no Rio de Janeiro em 1954. 45 Esse novo estilo de dança
no Brasil teve dificuldade em se solidificar em função de uma elite mais interessada em balés
importados, como acontece até hoje. Na mesma época Eros Volúsia, que traz a expressão
regional, e Felicitas Barreto, que incrementa sua dança com lendas brasileiras, “cercada de
índios e de negros”,46 também foram personalidades importantes, responsáveis pelo fomento
da dança moderna no Brasil. Ulman, Verchinina, Volúsia e Barreto deram impulso para o
surgimento de grupos e companhias independentes que se proliferaram a partir da década de
1940, resultando numa acelerada e diversa produção de estilos de dança.

Essa primeira fase da dança moderna aqui rapidamente esboçada, veio trazer, talvez, o
aspecto emocional ao passo de dança, numa tentativa de expor a insatisfação do homem
perante as situações da vida, seus conflitos e anseios. Ocorre um deslocamento do foco de
trabalho no corpo, que passa das extremidades (pernas e braços mais trabalhados no balé) para
o tronco e pélvis, além da quebra da verticalidade corporal, que dá mais mobilidade para
coluna, imprimindo na dança outros sentidos ao movimento. A quebra da verticalidade
também vem facilitar o uso dos movimentos no chão, introduzidos principalmente por Doris
Humphrey com sua técnica de queda e recuperação. Além disso, as expressões faciais são
mais exploradas, assumindo o rosto como parte da expressividade corporal, tornando a
interpretação mais teatral ao invés da neutralidade e frieza dos balés convencionais. A ligação
com a atmosfera etérea, característica dos balés é substituída pelo sentimento em relação à
terra, às raízes, que retratam mais objetivamente os conflitos do homem com sua realidade
viva. O conteúdo temático das coreografias vai se transformando, passando das histórias
românticas ao drama adulto da atualidade. Essa fase revelou uma face introspectiva e
psicológica da dança, com ênfase em argumentos pessoais, principalmente dos coreógrafos. A

44
Mais informações sobre Balés Russos ver PORTINARI, Maribel. Op.cit., pp107-30.
45
VICENZIA, Ida. Dança no Brasil. Rio de Janeiro: Funarte Fundação Nacional de Arte, 1997, p17.
46
Idem, p19.
26

teatralidade das concepções coreográficas se torna mais evidenciada. O empréstimo de


princípios cênicos de outras artes faz-se elemento indispensável dessa concepção de dança.

No período entre 1940 e 1950 a dança moderna perde sua força criativa em função do
conservadorismo cultural e da Segunda Guerra Mundial, dentre outros fatores, que
contribuíram para o enfraquecimento, e posteriormente ressurgimento, do espírito
revolucionário artístico e político. Dentro deste panorama surge o americano Merce
Cunningham, aluno e solista da companhia de Martha Graham, que vem propor uma ruptura
definitiva com a ‘dança emocional’ característica da época, e com a influência preponderante
do coreógrafo nas obras.

Cunningham inaugura nova fase na dança moderna, trazendo uma abordagem


diferente para o movimento e o uso do espaço-tempo em suas coreografias. Propõe não
construir encadeamentos lógicos, nem estruturas narrativas dramáticas, pois não se
interessava por conteúdos psicológicos. Une-se a outros artistas como os músicos John Cage,
considerado um pioneiro em performance experimental, David Tudor, Christian Wolff, os
artistas plásticos, Robert Rauschenberg, Jasper Johns e Andy Warhol, e cria uma dança do
47
acaso. Suas obras poderiam remeter qualquer significado, ou mesmo nenhum podendo
“evocar tanto o universo robotizado, uma viagem a um mundo interplanetário sem peso, num
tempo de valor variável, quanto um jogo puro e simples de movimentos gratuitos e que se
bastam”.48 Segundo indicação de Banes, Cunningham se apoiou nos seguintes princípios para
o desenvolvimento de seu trabalho:

1) qualquer movimento pode ser dança; 2) qualquer procedimento pode se


tornar um método de composição válido; 3) qualquer parte do corpo pode ser
usada; 4) música, figurino, cenário, luzes e dança possuem lógicas e
identidades próprias; 5)qualquer dançarino da companhia pode ser um
solista; 6) qualquer espaço físico pode ser usado para uma dança; 7)
qualquer coisa pode ser dança, desde que fundamentalmente seja sobre o
corpo humano e seus movimentos.49

47
Dance by chance, termo utilizado por Margery J. Turner em TURNER, Margery J. New dance:
approaches to nonliteral choreography. University of Pittsburgh Press, 1971, p10. Refere-se ao método do acaso
criado por Cunningham para determinação das seqüências e estruturas coreográficas a serem executadas. As
estruturas eram determinadas jogando-se moedas (como no jogo cara-coroa), ou retirando cartas aleatoriamente.
Cunningham acreditava que tomar ao acaso as possibilidades era uma forma de subverter hábitos e permitir
novas combinações. BANES, Sally. Op. cit., p7.
48
BOUCIER, Paul. Op. cit., p284.
49
BANES, Sally. Op. cit., p6.
27

Nessa nova concepção de dança, Cunningham anula o envolvimento e exteriorização


de emoções por parte do dançarino, pois para ele a expressividade do movimento é inerente
ao corpo. Não há necessidade de externalizar uma característica expressiva para se criar um
significado, já que este significado é intrínseco ao próprio movimento.

Com Cunningham há uma mudança radical na estrutura composicional da coreografia,


com descentralização do espaço, uso do tempo de forma mais flexível e casualidade musical
na relação com os movimentos. Como nos sinaliza José Gil, Cunningham valorizava o
movimento por si, sem referências exteriores, objetivando acabar com o

mimetismo dos gestos, das figuras e do espaço cênico que reproduzia ou


simbolizava o espaço exterior, e inclusivamente uma espécie de mimetismo
interior, uma vez que se considerava que o corpo traduzia as emoções de um
sujeito ou de um grupo.50

Com essa abordagem, Cunningham propunha uma dança de ‘formas esvaziadas’,51


dissociadas de qualquer sentido literal, e de qualquer conteúdo expressivo aparente. Como
coloca Soraia Silva:

A técnica desenvolvida por Cunningham tem como principal característica a


diversidade rítmica, a musicalidade interior de toda evidência nascida da
separação de dança e música, a coisificação pelo
espaço/tempo/movimento/objeto/acaso, e a concentração desses elementos
da cena de dança reflete-se no gesto/ação cunninghamianos. Sua obra é
fundada no conceito de indivíduos que se movem e se reúnem, sem
representarem, em cena, heróis, emoções, estados de ânimo, mas, sim,
apenas indivíduos.52

Quando Cunningham propõe a quebra da estrutura narrativa da dança e a


descontextualização, sem impor conteúdos necessariamente conectados à música e/ou a idéias
visuais e literárias, ele estimula uma série de alterações nas estruturas que envolvem o jogo
cênico, como, por exemplo, a interferência na apreciação estética do espectador em relação à
obra coreográfica. O espectador sai do papel de simples apreciador para compartilhar sua
interpretação com a criação. A própria obra parece reivindicar que o espectador a olhe
suscitando o poder do imaginário de forma mais atuante. Também a relação entre o corpo e o

50
GIL, José. Movimento Total: o corpo e a dança. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água
Editores, 2001, p32.
51
Idem, p31.
52
SILVA, Soraia Maria. Pós-modernismo na dança. In: GUINSBURG, Jacó, BARBOSA, Ana Mae (org).
O Pós-modernismo. São Paulo: Perspectiva, 2005, p437.
28

contexto cênico muda, já que o corpo não necessita se submeter a um contexto externo a ele, a
um conteúdo determinado. O corpo é o próprio contexto para o desenrolar cênico.

Essas novas possibilidades vão se infiltrando cada vez mais no universo da dança na
década seguinte. O advento da era digital na década de 1950 também influenciou na mudança
de comportamento, onde verificamos a passagem da condução normal dos fenômenos para a
quebra da regularidade dos fatos da vida, imprimindo a visão dos acontecimentos ao acaso,
fragmentado, com possibilidades de cortes e recombinações constantes, o que se transfere
para a forma de lidar com o movimento na dança.53 A visão de dança trazida por Cunninghan
somada às influências dos movimentos das Vanguardas Históricas que nutriram a nova
geração de coreógrafos marcam a passagem da dança moderna americana para a pós-
moderna, na década de 1960. As artes “continua(ra)m indo contra restrições das
possibilidades expressivas e rechaçando definições que se pretendiam definitivas”54 dentro da
música, das artes visuais, da poesia, do teatro ou dos novos gêneros como os Happenings,
influenciando tendências e estilos da dança pós-moderna.

De acordo com Villar, Sally Banes nos indica que o termo ‘dança pós-moderna’
começou a ser usado pela coreógrafa e dançarina Yvone Rainer na década de 1960, para
descrever seu trabalho.55 Esse termo diferenciou a primeira geração de coreógrafos da dança
moderna americana no início do século XX, da segunda geração, formada por Douglas Dunn,
David Gordon, Steve Paxton, Rainer, Trisha Brown e outros que vieram a partir da década de
1960. A primeira geração tinha como foco idéias narrativas, sentimentalismo artístico e
expressionismo, enquanto a segunda geração caracterizou-se pela preocupação com a
abstração, descontextualização, antiilusionismos e busca formalista.

Banes aponta que, juntamente com Cunningham, a Judson Church, igreja nova-
iorquina fundada em 1890, foi o principal berço de fomento das novas idéias responsáveis
pela passagem da dança moderna para a chamada ‘pós-moderna’ que surgia nos Estados
Unidos. Com a criação do grupo Judson Dance Theater na década 1960, ocorre uma grande
revolução na dança com eco em todo o ocidente. No Judson Dance Theater se reuniam artistas

53
Idem, p438.
54
VILLAR, Fernando Pinheiro. Performances. Op.cit., p73.
55
BANES, Sally apud VILLAR DE QUEIROZ, Fernando Antonio Pinheiro. Artistic Interdisciplinarity
and La Fura Dels Baús.1979-1989. 2001. 331f. Tese de Doutorado em Teatro e Performance, Queen Mary
College, Universidade de Londres, 2001, p95.
29

de vanguarda de variadas áreas para discutirem sobre os direitos humanos e liberdade de


expressão por meio da arte. Nessa época acentua-se uma sobreposição e espírito colaborativo
mais efervescente das linguagens, inclusive trazendo efetivamente para o contexto dança
princípios performáticos e interdisciplinares, já experimentado anteriormente por Cunninghan
em sua parceria com Cage. Dançarinos participam de performances, músicos participam de
espetáculos de dança e etc. Projeções de filmes, instalações, performances e dança eram
colocados no mesmo espaço cênico.

Artistas de outras áreas, fora do universo da dança, como Cage, Allan Kaprow, Robert
Whitman, Claes Oldenburg foram dos principais contribuidores para o enriquecimento e
desenvolvimento da dança pós-moderna americana. Trouxeram influências das idéias teatrais
de Antonin Artaud, Marcel Duchamp, filosofia Zen, além de uma ideologia de arte com
princípios da performance art,56 que sugeria uma relação mais imbricada entre arte e vida,
valorizando mais o processo de criação em detrimento ao produto final. 57

A performance art, nas palavras de RoseLee Goldberg era “como uma arma contra as
convenções da arte instituída” possibilitando uma forma de quebrar com as categorias
vigentes e indicar novos caminhos artísticos.58 Para Goldberg,

A história da performance art no século XX é a história de um meio


permissivo e aberto com finalidades variáveis, utilizado por artistas
impacientes com as limitações das formas de arte estabelecidas, e
determinados a encarar sua arte diretamente para o público. Por essa razão
sua base sempre é anárquica.59

Segundo Carlson as propostas da performance art podem se caracterizar


freqüentemente pelo uso de material anti-sistemas estabelecidos, provocativos, com
intervenções chamativas e por vezes agressivas, que se valem de todo tipo de mídia e
linguagem artísticas, além de possuir interesse por princípios de colagem, montagem,

56
Mais informações sobre performance art ver GOLDBERG, RoseLee. Op. cit., SCHIMMEL, Paul. Out
of action: between performance and the object, 1949-1979. Londres: Thames and Hudson, 1998, e CARLSON,
Marvin. Performance: a critical introduction. Londres e Nova York: Routledge, 1996
57
BANES, Sally. Op.cit., p10.
58
GOLDBERG, RoseLee. Op.cit., p7.
59
Idem, p9.
30

simultaneidade, justaposições inusuais e teorias do jogo, incluindo paródia, brincadeiras,


quebra de regras, etc.60

Como nos coloca Villar performance art ou performance é o termo que

consegue abranger uma prática artística interdisciplinar. Sem desconhecer a


herança das Vanguardas Históricas, performance art conteria action
paintings, John Cage, teatro instrumental, arte conceitual, minimalismo,
espacialismo, Happenings, action art, arte corporal, aktionism vienense, arte
feminista, art povera, parangolés de Oiticica, bichos de Ligia Cllark,
enviroments, vídeo arte, colaborações, decollage, assemblage, arte cinética,
o neodada do Gutai, endurance art, Flávio Império, Artur Barrio, Fluxus,
Ruptura ou Laurie Anderson entre tantos outros grupos e artistas.61

Instala-se na dança uma era de experimentalismos das estruturas do movimento


corporal, onde a preocupação típica dos coreógrafos estava voltada para questões formais
sobre a natureza e a função da dança como meio. Esses queriam negar o virtuosismo, a magia,
a transcendência, a imagem da estrela, do heróico, do estilo, características proclamadas pelos
coreógrafos modernistas, principalmente Graham, Humprey e José Limon. Os bailarinos do
Judson Dance Theater expressavam-se a partir de uma economia radical do movimento, sob o
lema ‘menos é mais’.62 Nesse novo ciclo que também permeia a década de 1970, “o aspecto
formalista da dança poderia ser uma razão suficiente para a coreografia”. 63 Coreógrafos como
Trisha Brown, Gordon, Rainer, Paxton, Simone Forti, Twyla Tharp, Meredith Monk, Lucinda
Childs, Karole Armitage, dentre outros, “concentraram-se sobre a dança em si como meio de
expressão”.64 O espírito libertário da década de 1960, que pregava o amor livre, o culto do
corpo, a celebração da paz, e até o uso de drogas para aguçar a inspiração e a percepção,
repercutiu na forma de se pensar a dança, e conseqüentemente na sua estética visual.

O movimento judsonista foi a base que sustentou, e, em alguns cantos, ainda sustenta,
as práticas e o pensamento da dança contemporânea no ocidente, como nos coloca Jill
Johnson (1965), citado por Silva;

Os principais rumos da dança, nas décadas seguintes, seriam em grande parte


o resultado do trabalho intrépido dos membros desse grupo, que projetou a

60
CARLSON, Marvin. Performance:a critical introduction. Londres e Nova York: Routledge, 1996, p80.
61
VILLAR, Fernando Pinheiro. Op.cit., p74.
62
CANTON, Kátia. Op.cit., p104.
63
Idem, p103.
64
Idem, p107.
31

dança moderna numa nova era de atividade ilegal devido a sua enorme
variedade e liberdade de estruturas e estilos; sua inserção política; sua
mobilidade, e por sua exposição de atitudes contemporâneas.65

A atmosfera de informalidade e flexibilidade colocada pela Judson Dance Theater e os


concertos que promovia, assim como o experimentalismo da performance art, estimularam o
surgimento de coreógrafos que não possuíam treinos em dança, bem como dançarinos que, na
figura de intérpretes que também criam, arriscavam a fazer suas próprias coreografias.
Acentua-se aqui o processo de desmistificação do corpo, onde a primazia da musculatura bem
torneada pelas técnicas de dança, dos gestos precisos e limpos, da formalidade estética,
começa dar espaço a um corpo mais flexível, que busca entender seus processos corporais,
experimentando suas singularidades por meio de outras técnicas, fazendo dessas uma fonte de
investigação criativa. Com essa perspectiva ocorre uma valorização do movimento cotidiano
dos dançarinos, onde o corpo demonstra-se casualmente engajado “com posturas do dia a dia
associadas a ações rotineiras”.66

Em parte significativa da dança pós-moderna a naturalidade do movimento estaria


associada a uma “verdade” do movimento, no sentido de não representá-lo para se obter um
efeito teatral, mas de apresentá-lo como realmente é, sem a necessidade do uso de recursos
ilusionistas, ou manipulação do tempo da ação. Paradoxalmente a essa idéia da naturalidade
do movimento, a era dos computadores e da linguagem digitalizada contribui para o
desenvolvimento de uma dança que acentua a perspectiva do homem-máquina com sua
linguagem fragmentada, que se vale das combinações e acaso associado à lógica
computadorizada. O apelo à naturalidade do movimento por parte dos coreógrafos pós-
modernos, principalmente os estadunidenses, não significou uma humanização do gesto, mas
sim uma abordagem do movimento mais aproximada de ações físicas rotineiras do homem
como o caminhar, o sentar, etc. O foco é a ação física abstrata, e a demonstração do
movimento com ênfase na sua mecânica, sem vínculo emotivo, objetivando também
despersonalizar e ‘despsicologizar’67 o intérprete que executava o movimento. Essa
perspectiva formalista não parece ter ocorrido na escola alemã, que se voltou cada vez mais
para uma abordagem psicológica das problemáticas do homem contemporâneo.

65
JOHNSON, J. apud SILVA, Soraia Maria. Op.cit, p441.
66
BANES, Sally. Op.cit., p17.
67
SILVA, Soraia Maria. Op.cit., p438.
32

As décadas de 1960 e 1970 foram marcadas pelo desenvolvimento de uma série de


elementos que se aderiram à construção de uma nova atitude de dança, que chegam aos
nossos dias, dentre eles o uso da repetição, do movimento minimalista, de técnicas de
colagem e da improvisação, para a composição coreográfica. A utilização de figurinos
despojados mais próximos de roupas cotidianas, a apresentação de uma estética com foco na
gestualidade do homem comum, às vezes extravagante para a época (vinculada ao movimento
hippie, e mais tarde aos punks), o uso de espaços não convencionais para realização das
apresentações e espetáculos multimídia, também foram características dessa nova dança.

Segundo Banes, também os coreógrafos se tornam mais críticos e formadores de


opinião, criando estratégias para expor questionamentos relativos ao universo da dança para o
público. Tornar aparente o que está envolvido no processo de construção de uma dança, era
um caminho para aproximar e educar o público para as novas propostas que surgiam. Assim,
o público era levado a “observar erros que ocorrem numa improvisação, testemunhar o
cansaço, o risco, o estranhamento, a dificuldade dos intérpretes, assistir o movimento sendo
aprendido e marcado, a construção e desconstrução dos sistemas”,68 através de discussões de
trabalhos em processo e apresentações de performances. Aqui observamos os trabalhos se
desenvolverem dentro de aspectos performáticos, pois, segundo Villar, “a performance
privilegiaria o aqui-agora do durante da apresentação, seja onde for, de uma ação desenrolada
e apresentada por seu autor-ator-diretor-encenador-produtor; o performador tenta ser o
próprio meio estético – ele ou ela se colocam como linguagem, processo e obra”.69

As idéias pós-modernistas, no Brasil, foram aplicadas com outros propósitos daqueles


que moveram os judsonista. Não houve uma união coletiva de vários artistas que
comungavam mesmas propostas e ideologias. Os coreógrafos, de uma forma geral, tiveram
como provocação para o desenvolvimento de suas propostas estéticas, a resistência política à
ditadura militar. Na década de 1970 a contestação, juntamente com temáticas do homem
brasileiro, assumiu freqüentemente a forma da dança e da expressão corporal. Despontaram
nessa época o Ballet Stagium, companhia de dança de São Paulo, dirigida por Décio Otero e

68
BANES, Sally. Op.cit., p16.
69
VILLAR, Fernando Pinheiro. Op.cit., p76.
33

Márika Gidali, e também os coreógrafos J. C. Violla, Ivaldo Bertazzo, Angel Vianna, Klaus
Vianna dentre muitos outros.70

Embora houvesse uma rejeição das narrativas expressionistas por parte da primeira
geração dos coreógrafos pós-modernos, ainda assim, existiram coreógrafos que continuaram
trabalhando com narrativa e emoções. Na Alemanha, o traço expressionista da dança moderna
prevaleceu, se fortalecendo com novo fôlego pelas mãos de Pina Bausch.

Bausch também sofreu influências do momento pós-modernista americano. Dançarina


solista da companhia de Kurt Jooss, Bausch combina suas experiências artísticas de dançarina
na Julliard School em Nova York (1961-1962) com idéias e utilização de estruturas de criação
coreográficas herdadas de sua convivência profissional com Jooss. Sua proposta cênica se
vale de muitos princípios do movimento judsonista como, interação com outras artes, técnica
de colagem, repetição, agregando-os a teorias e práticas teatrais de Bertolt Brecht. Fernandes
nos fala que Bausch

Incorpora e altera suas influências. Seus trabalhos incluem a interação entre


as diferentes formas de artes como nos Estados Unidos dos anos sessenta,
mas de forma crítica. Suas peças apresentam um caos grupal generalizado,
sob certa ordem, favorecendo processo sobre produto e provocando
experiências inesperadas em dançarinos e platéias.[...] Suas peças
apresentam a interação com as artes sem rejeitar a grandiosidade teatral.71

Bausch incorpora ao seu estilo tanto a gestualidade cotidiana, assumida como função
estética, quanto o movimento proveniente das técnicas de dança, principalmente o balé
clássico. Traz a expressão pessoal e psicológica para a dança por meio das experiências de
vida dos dançarinos, proposta oriunda de Wigman, além da abordagem de questões sociais e
políticas, que são características do estilo de Jooss. A dança teatro de Bausch é um exemplo
claro de desterritorialização e de questionamento das fronteiras artísticas preconizados pelos
movimentos das vanguardas artísticas dos século XX e que ainda hoje ecoam fortemente na
arte do século XXI. A interdisciplinaridade artística é considerada um aspecto fundamental

70
Mais informações sobre esses coreógrafos ver NAVAS, Cássia; DIAS, Linneu. Dança Moderna. São
Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. NAVAS, Cássia. Imagens da dança em São Paulo. São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado: Centro Cultural São Paulo, 1987. VIANNA, Klaus. A dança. São Paulo: Summus,
3ªed. 2005. DANÇAR 10 ANOS. Editores de texto Christine Greiner e Marcos Bragato. São Paulo: Editora
dançar 10 anos.[1992?]. KATZ, Helena. O Brasil descobre a dança descobre o Brasil. São Paulo: Dórea Books
and Art,1994. FREIRE, Ana Vitória. Angel Vianna: uma biografia da dança contemporânea. Rio de
Janeiro:Dublin, 2005. VICENZIA, Ida. A dança no Brasil. Rio de Janeiro: Funarte; São Paulo: Atração
Produções Limitadas, 1997.
71
FERNANDES, Op.cit., p18.
34

das criações de Bausch. Villar sintetiza interdisciplinas ou interlinguagens artísticas como


“outras disciplinas ou intermídias”, citando dança teatro, performance art, butoh, música
teatro e teatro performance, dentre outras resultantes do diálogo, fusão e mutação entre
distintas linguagens ou disciplinas artísticas:

meu entendimento de interdisciplinaridade não confere com o simples juntar


de disciplinas diferentes ou muito menos com o improdutivo de realidades
pseudo interdisciplinares, que não se tocam nem se trocam. Investigo
interdisciplinaridade artística para estudar, ensinar e praticar negociações e
intercâmbios entre diferentes linguagens ou disciplinas artísticas que
resultam em novos campos de ação, em outros territórios de mutação
artística e de possibilidades expressivas.72

Bausch é considerada um ícone da dança contemporânea desde a década de 1970, e


continua influenciando tendências e estilos. Traços de seu estilo podem ser percebidos em
coreógrafos como Jean Claude Gallotta, Susanne Linke e Marcelo Evelin dentre muitos
outros. Certamente que suas idéias também encontram espaços nesta pesquisa, na medida que
nos valemos também da transdisciplinaridade artística por acreditar ser um universo rico de
possibilidades, nos abrindo outros campos para experimentações e produtos artísticos.

Grande parte dos coreógrafos ocidentais, de alguma forma, sofreram influências das
idéias pós-modernistas do movimento judsonista e da escola alemã, e muitas dessas idéias
foram transformando e se fundindo no cenário.da dança contemporânea nas décadas de 1980
e 1990 até nossos dias. A diversidade parece denunciar uma tendência cada vez mais
acentuada na dança, assim como um desejo em aprimorar a fusão das fronteiras artísticas e
disciplinares, borrando conceitos e definições que possam ameaçar a liberdade das criações.
Como resultado dessa diversidade, a partir da década de 1980, podemos ver a utilização de
dança clássica com novas releituras e possibilidades de experimentação dentro da linguagem
contemporânea, a exemplo de William Forsythe e o Ballet de Frankfurt ou Édouard Lock e a
companhia canadense La La La Human Steps, e também a fusão acentuada da dança com o
teatro e o cinema em trabalhos de coreógrafos como Lloyd Newson e o DV8 na Inglaterra,
Wim Vanderkeybus e sua companhia Última Vez, além de Meg Stuart e Allan Platel na
Bélgica, Vera Mantero e João Fiadeiro em Portugal, Maguy Marin, Jerôme Bell, Xavier Le
Roy na França, só para citar alguns. Podemos presenciar também criações coreográficas se

72
VILLAR, Fernando Pinheiro. Interdisciplinaridades artísticas. In: SANTANA, Arão Paranaguá de;
SOUZA, Luiz Roberto; RIBEIRO, Tânia Cristina Costa (Coord.). Visões da ilha: apontamentos sobre teatro e
educação. São Luís, 2003, p118.
35

valendo de aspectos da performance com uso de improvisações e da mescla acentuada de


linguagens.

Reconhecemos que no Brasil houve, e há, influências constantes das danças


produzidas nos Estados Unidos e Europa. Parte dessa produção nacional são tingidas de
particularidades culturais, onde alguns estilos se voltaram para a criação de um repertório de
raízes brasileiras, como é o caso dos já citados Klaus e Angel Vianna e o Ballet Stagium, além
do grupo Corpo, Antônio Nóbrega, Graziela Rodrigues, grupo Alaya (DF) e mais
recentemente, na novíssima geração de coreógrafos temos Ângelo Madureira. Independente
desse compromisso com a brasilidade, existe uma outra vertente da dança contemporânea no
Brasil que se desenvolve, e também chega aos nossos dias. Apesar de estar permeada por
idéias estrangeiras, essa outra vertente traz no corpo e no pensamento a cultura de nosso povo,
acostumado com a diversidade, de corpos, de climas, de trejeitos, de comidas, de língua, que
soma a esses ingredientes culturais específicos, a possibilidade de utilização de elementos e
características da contemporaneidade, do aparato tecnológico, das linguagens midiáticas,
revelando singularidades e diferentes temas nas criações que põem em discussão a conjuntura
atual do homem. Esse foi o caso do Endança, Dois ao Absurdo e Eliana Carneiro, por
exemplo no Distrito Federal nas décadas de 1980 e 1990,73 e atualmente é o caso no Brasil da,
Quasar Cia. de Dança (GO), Lia Rodrigues (RJ), Cena 11 (SC), Cia. Nova Dança (SP),
Márcia Duarte (DF), Dudude Herman (MG), Dani Lima (RJ), Cristina Moura (RJ), Wagner
Schwartz (MG), Luiz Abreu (SP), Ana Teixeira (SP) e Cristian Duarte (SP) dentre vários
outros. Considero que o próprio Basirah se insere nesse perfil. Além disso, temos a inserção
da cultura de rua, a exemplo de Bruno Beltrão (RJ) com seu hip hop contemporâneo, bem
como o trânsito do movimento com as novas tecnologias e várias outras poéticas.

O interesse da dança contemporânea em se valer enfaticamente de outras linguagens


artísticas e de outras referências de técnicas corporais tem transformado seu foco de
investigação criativa, não se limitando apenas na elaboração do passo de dança como mote
principal da criação coreográfica. Como vimos, esse interesse pela interdisciplinaridade
artística, bem como a utilização de técnicas corporais não vinculadas à dança, são assuntos
conhecidos no histórico da dança do século XX. Observamos que, na atualidade, esses
fenômenos influenciam fortemente o desenvolvimento e o pensamento da dança

73
Para mais informações sobre a dança em Brasília, veja DE CUNTO, Yara e MARTINELLI, Susi, A
História que se Dança. Brasília: sem editora, 2005.
36

contemporânea. Na perspectiva da diversidade, da interdisciplinaridade, da mescla, da fusão,


do quase tudo em um só, reivindica-se outro corpo para uma outra dança que vem se
revelando. E que corpo será esse?

1.2. QUAL O CORPO DESSA DANÇA?

Nessa breve e rápida perspectiva histórica apresentada na seção anterior busquei


entender as conexões de nosso legado histórico da dança com a contemporaneidade, numa
tentativa de compreender um pouco mais a diversidade de estilos e possibilidades que se
revela no universo da dança contemporânea atual. Aliás, a efervescência desenfreada da
diversidade talvez seja uma das características principais da dança contemporânea. Essa
diversidade não se dá somente na mescla da dança com outras linguagens, mas reverbera
também na relação estética do corpo com a própria dança. A abertura para o uso de outras
técnicas na formação corporal do dançarino possibilita uma enorme variedade de corpos. Com
essa pluralidade de referências corporais, sem uma linha norteadora do processo constitutivo
da formação do dançarino, começa a se revelar na dança contemporânea o que a dançarina e
escritora Dena David, citada por Laurence Louppe,74 denominou de corpo híbrido, que
significa “aquele oriundo de formações diversas”. 75

Louppe nos aponta que, na perspectiva do corpo híbrido não existe uma filosofia do
corpo capaz de sustentar as referências e a própria história na construção do sujeito que dança.
E que muitas vezes, a multiplicidade de informações raramente oferece as ferramentas
necessárias à leitura da diversidade corporal alcançada pelo dançarino, já que, a filosofia do
corpo e a concepção do mover e do pensar o movimento está ligada ao tipo de formação
corporal do intérprete, como nos exemplifica Helena Katz:

Quem treina ginástica olímpica desde pequeno carrega esse traço inscrito
nos seus gestos. O mesmo para quem faz balé ou dança do ventre. A
informação técnica que negociar a do primeiro treinamento (desde que ele
tenha sido extenso e permanente), a princípio, não se livrará de seu traço.

74
Laurence Louppe é crítica de arte, professora de história da dança e autora de livro La Poétique de la
Danse Contemporaine, pela Editora Contredanse, Paris, 1997.
75
LOUPPE, Laurence. Corpos híbridos. In PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia (Org). Lições de Dança 2.
Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, 2000, p32.
37

Apenas o distanciamento temporal e a continuidade amenizarão esta


dominância.76

Já para Louppe a perda do traço da formação do dançarino tem sido um fator


perturbador para a dança, na medida que “a elaboração das zonas reconhecíveis da
experiência corporal, a construção do sujeito através de uma determinada prática corporal
torna-se quase impossível”. 77 Isso acarreta o que ela chama de perda das linhagens da dança,
de seu vínculo com referências da modernidade, quando se via princípios estéticos e
filosóficos dos criadores de técnicas e espetáculos de dança, como referenciais fundamentais
para a formação do dançarino. Seguindo a argumentação de Dani Lima, em seu estudo sobre
hibridismo cultural relacionado ao desenvolvimento da dança contemporânea, ela nos coloca
que;

Desta perda de linhagens e da dispersão das referências da modernidade da


dança, nasce um bailarino que não se forma mais através do aprendizado de
uma técnica de referência, mas da pulverização de saberes e da assimilação
de uma cultura coreográfica que varia segundo a moda do momento. 78

De acordo com Louppe, esse afastamento das referências da modernidade é


compensado pelo “emprego direto de figuras teatrais ou narrativas, de corpos escolhidos
puramente por sua aparência pitoresca, e, às vezes, por critérios morfológicos, caindo na
ideologia da pura aparição”.79 Segundo Lima, Louppe denomina esses corpos como
‘desaparelhados’, em que observamos uma economia no trabalho do corpo sobre ele mesmo,
ou ‘hiperaparelhados’, nos quais uma diversidade de informações se mistura, perdendo uma
linha única de inscrição corporal em favor da multiplicidade de citações que ultrapassam as
referências corporais propriamente ditas.80 O que verificamos na dança contemporânea se
confirma nas palavras de Louppe quando afirma que, “a hibridação é hoje, o destino do corpo
que dança, um resultado tanto das exigências da criação coreográfica, como da elaboração de
sua própria formação”.81

76
KATZ, Helena. Um, dois, três. A dança é o pensamento do corpo. Belo Horizonte: Helena Katz,2005,
p166. grifo meu.
77
LOUPPE, Laurence. Op.cit., p31.
78
LIMA, Dani. Corpos humanos não identificados:hibridismo cultural. In: PEREIRA, Roberto; SOTER,
Sílvia (Org). Lições de dança 4. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, 2003, p101.
79
LOUPPE, Laurence. Op.cit, p36.
80
LIMA, Dani. Op.cit., p103.
81
LOUPPE, Laurence. Op.cit, p31.
38

No século XX assistiu-se a uma grande mudança em diversos setores das sociedades,


no campo científico, econômico, tecnológico, etc, que certamente teve importância para o
desencadeamento do processo de transformações na relação do indivíduo com seu corpo,
observada ao longo desse período até os dias de hoje. 82 Lima coloca que por trás do fenômeno
da hibridação corporal observada por Louppe, também podemos destacar, dentro de uma série
de outros eventos ocorridos a partir no século XX, o questionamento da idéia de identidade,
que, certamente, afetou na imagem corporal própria que o sujeito possuía. Jacques Lacan, em
sua releitura das teorias de Freud, propõe a passagem da idéia de uma identidade unificada e
inata, vinculada ao conceito cartesiano, para uma identidade incompleta, e inacabada, que se
preenche na relação com o nosso exterior.83

Além dos pontos que citamos acima, que impulsionaram o surgimento do corpo
híbrido, podemos, também, associá-lo ao desenvolvimento das leis do mercado. No Brasil,
por exemplo, onde o apoio à manutenção de companhias é restrito a poucos, ser um dançarino
autônomo, sem vínculos, pode significar para ele maiores chances de trabalho com
coreógrafos diferentes, além de melhores oportunidades financeiras e de crescimento
profissional. Logo, esse dançarino também busca, para sua formação, informação
diversificada, acreditando que assim, ele conseguirá adaptar-se melhor ao mercado.

Mas não seria o corpo híbrido um dos fenômenos responsáveis pela cabotinagem
(falsidade) performática? Lembramos que o conceito de cabotinagem está ligado à falsidade
performática de um intérprete na sua atuação, uma falsidade que muitas vezes se dá
inconscientemente. O intérprete pode estar acreditando profundamente na sua verdade
performática, entretanto o que o público presencia é uma atuação vazia, sem sentido que
transborde sua presença física. O fato do intérprete se valer de tantas informações não o
levaria a uma confusão ou superficialidade naquilo que quer passar com sua dança?

Como reação ao surgimento do corpo híbrido, Louppe nos aponta o aparecimento de


duas correntes opostas de pensamento de dança. A primeira se apóia no pensamento de um
retorno às práticas e aos ensinamentos corporais sólidos, com caráter de continuidade, que
possa sustentar as referências na construção corporal do sujeito, delineando o retorno a uma

82
Mais informações sobre essa mudança ver GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Trad. Plínio
Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
83
LIMA, Dani. Op.cit., p81.
39

filosofia de corpo, como as práticas propostas pelos fundadores da dança moderna. A segunda
corrente

consiste em confiar nas promessas da incerteza e na vontade de aceitar a


história, ou antes esse lugar a-histórico onde o corpo não se inscreve, em
jogar com as feridas de um corpo que não se constitui à partir de uma
consciência contínua de si. Essa corrente espera alcançar, através da
pluralidade das tramas, os depósitos flutuantes retidos pelos filtros desse
corpo improvável. 84

Segundo Lima, em sua reflexão sobre as colocações de Louppe, a primeira corrente


estaria associada ao interesse de um ‘retorno ao corpo’, no sentido de “resgatar um corpo
original, orgânico e verdadeiro”,85 investindo-se em técnicas como yoga, artes marciais,
Alexander, Feldenkrais, e em práticas de improvisação. Podemos dizer que o Body Mind
Centering e o Movimento Autêntico se inserem nessa linha de pensamento. Lima nos propõe
articular esse retorno ao corpo, ou resgate de memória com o conceito de ‘tradição’, que ela
toma de Robins K. e Stuart Hall, em que a tradição está no sentido de “busca de recobrar a
sensação de unidade, de coesão e de pureza que foram perdidas na pós-modernidade”,86
aspectos também observados nesse movimento de retorno ao corpo na dança contemporânea,
mas que vêm no sentido de resgatar singularidades, de mostrar a verdade de cada um , e não
uma inexistente verdade unívoca e absoluta. Assim, para Lima, “conserva-se o conceito de
unidade, mas se aceita que ela seja resultado de experiências diversas”. 87 Já a segunda
corrente estaria mais calcada na “desconstrução das imagens de corpo” segundo Lima, com
algumas propostas dessa linha que

são explicitamente políticas e se propõem mais como performances do que


como espetáculo de dança no sentido tradicional, onde a ênfase na
legibilidade da mensagem ultrapassa as questões formais do corpo, a dança
passa a ser explicitamente discurso sobre o corpo; sobre suas representações
e comercializações. 88

O corpo é a própria representação de si no mundo moderno, que se calca no


fragmentário, no múltiplo, na descontinuidade, necessitando uma outra forma de expressão e
de corporeidade que se aproxime desses aspectos. A possibilidade e a liberdade de

84
LOUPPE, Laurence. Op.cit., p38.
85
LIMA, Dani. Op.cit., p104.
86
Idem, p105.
87
Idem, p106.
88
Idem, p108.
40

manifestação dessas duas vertentes juntas, separadas, mescladas, infiltradas é exatamente o


reflexo da permissividade da dança contemporânea, fazendo surgir o corpo múltiplo,
multifacetado, com muitas possibilidades, e ao mesmo tempo com nenhuma, encerrado em si
mesmo dentro desta mistura confusa e caótica que por seu próprio caos se reordena. Nessa
perspectiva, a dança contemporânea parece deixar para trás o conceito de ser um conjunto de
passos coreografados. E também o estatuto do movimento como lei da dança vem sendo
revisto. Esses fatos parecem provocar um alargamento do conceito de dança contemporânea.
Além do movimento corporal, como o meio que legitima a dança como um canal possível de
comunicação, a dança contemporânea tem investido no próprio corpo como centro de
discussão de si mesmo. Podemos exemplificar essa situação quando o encenador e coreógrafo
francês Jerôme Bel, nos fala do espetáculo do dançarino, ator e coreógrafo Xavier Le Roy:

É um corpo que não tem mais necessidade de fazer esforços físicos, mas
apenas de se colocar, de se tornar sensível, assim como um predador
emboscado na espera de sua presa: a infinita riqueza de suas percepções, de
suas relações com o mundo (seu entorno, os objetos, sua turma, os
espectadores) e de suas conseqüências, as produções de seu pensamento.[...]
o corpo do ator não é mais central [...]O Roy Xavier, sobretudo porque está
sozinho, graças a essa cena, subverteu a tradição do teatro cujo elemento
principal é o ator, convidando para acompanhá-lo em cena uma cadeira, um
gravador, uma mesa, o chão do palco, as paredes, o oxigênio, o rodapé e os
espectadores. 89

A coreografia pode se configurar na apresentação do próprio corpo do intérprete,


como mídia de si mesmo, pode trazer o corpo como objeto e imagem de discurso sobre suas
representações, ou mesmo por um conjunto de significações desse corpo no espaço cênico,
que não necessariamente sejam realizadas via o movimento dançado que se reconheça como
código de dança. O movimento, ou o passo coreográfico não é mais o que define a dança
contemporânea. Katz nos coloca que:

Antes, quando se elegia a técnica empregada no trabalho para servir de


critério de sua classificação, tudo parecia mais claro. Dança nas pontas?
Fácil, trata-se de balé clássico. Dança com o corpo pintado de branco
fazendo gestos bem lentos? Não há dúvida, trata-se de butô. Mas, se no lugar
do tipo de treinamento, for indispensável atentar para o modo como a
coreografia organizou as informações que vieram da técnica aprendida, tudo
se complica. Deixa de ser suficiente, para efeitos de classificação da dança,
se o corpo faz passos de balé ou rola pelo chão, se faz contrações ou

89
BEL, Jerôme. Que morram os artistas. In PEREIRA, Roberto; SOTER, Sílvia (Org). Lições de dança 4.
Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, 2003, p27. grifo do autor.
41

acrobacia. O que passa a ser necessário é conseguir identificar como e/ou


para que o corpo faz o que faz. 90

Denise Bernuzzi de Sant’Ana nos afirma que

talvez nossa época seja a mais dedicada em problematizar, adular, cultivar e


explorar comercialmente o corpo. [...] A moda do corpo, o ‘corporéisme’,
anunciado na França, nos anos 1970 é hoje uma tendência global, investida
pela tecnologia.91.

Estudos sobre o corpo, globalização, cultura do consumo, hedonismo exacerbado,


avanço tecnológico, mudanças na economia de mercados influenciam na visão que temos do
corpo e no seu papel na sociedade. Esses também são temas constantes para possibilidade de
resignificação do corpo na cena.

As infinitas possibilidades apresentadas no universo da dança contemporânea me


levam a refletir sobre que tipo de formação irá se delinear para o intérprete da dança, e se nela
se incluirá um trabalho sobre a cabotinagem performática. Parece não ser possível se trabalhar
apenas na dimensão física, mas buscar incluir o todo que envolve o corpo do dançarino. Nesse
sentido, essa pesquisa, busca trazer uma visão de corpo pelas relações que estabelece consigo
mesmo e com o mundo. Christine Greiner nos traz a idéia da co-evolução entre corpo e
ambiente, onde um constrói o outro de forma ativa sem seguir hierarquias, “ambos são ativos
o tempo todo”.92 As informações geradas no corpo e no ambiente se recategorizam
constantemente a partir de suas relações. Também aqui se considera que corpo físico, mente e
ambiente co-atuam e interagem numa mesma medida, numa relação de dependência como
condição da formação do dançarino. Ele vai se manifestar em movimento em uma dimensão
significativa indo além de sua forma estética, trazendo uma noção de preenchimento
expressivo, que não está ligada somente ao físico, motor, mas que se vale de tudo o mais que
o constitui; afetos, emoções, percepção, sentidos, história de vida pessoal e cultura.

Nessa perspectiva foi preciso entender o conceito da dança que estávamos nos
propondo fazer. A dança que sinalizo está mais relacionada à idéia da presença de um corpo
em cena, que realiza ações físicas, sem necessariamente se prender ao passo de dança, e que

90
KATZ, Helena. O corpo como mídia de seu tempo: A pergunta que o corpo faz. Disponível em
<www.itaucultural.org.br.> Acesso em: 15/05/2005. grifo meu.
91
SANT’ANA, Denise Bernuzzi. Corpos de Passagem: ensaios sobre a subjetividade contemporânea.
São Paulo: Estação Liberdade, 2001, p74.
92
GREINER,Christine. O Corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume,2005, p43.
42

se expressa na tentativa de comunicação e elaboração de um discurso, se valendo de variedade


de formas, em pausas, em qualidades diversificadas de tônus muscular, em voz, em emoções,
em olhares e também em movimentos soltos ou combinados, no passo, ou no simples gesto.
Talvez esta dança esteja inserida num contexto mais performático do movimento, onde se
extrapolam as convenções do movimento enquadrado na forma, no espaço e tempo pré-
definidos. A proposta é mais calcada na investigação das possibilidades expressivas geradas
pelo corpo em movimento e sua contextualização e diálogo cênico, que pelo emolduramento
desses numa estrutura coreográfica do passo de dança. É exatamente a exploração da
expressão total do corpo para um posicionamento mais crítico. Numa tentativa de alcançar
essa expressão é que me inspirei nas técnicas do Movimento Autêntico e do Body Mind
Centering, além da utilização de exercícios que apontassem para essa busca.
43

CAPÍTULO 2. PENSANDO O CORPO

Dance does not belong to dancers, it belongs to


Man – and always has.

Mary Starks Whitehouse93.

Neste capítulo apresento uma síntese do que vem a ser o Movimento Autêntico (MA),
o Body Mind Centering (BMC) e os exercícios utilizados no desenvolvimento da pesquisa.
Como foi dito anteriormente, a presente pesquisa inspirou-se na utilização da técnica do
Authentic Movement (Movimento Autêntico) desenvolvida pela norte-americana Mary Starks
Whitehouse, e no estudo do Body Mind Centering (Centralização Corpo Mente) realizado por
Bonnie Bainbridge Cohen.94 Nos históricos dessas técnicas, consta que foram inicialmente
desenvolvidas visando fins terapêuticos, mas logo começaram a ter aplicabilidade em outras
áreas também, dentre elas a dança.

2.1. MOVIMENTO AUTÊNTICO (MA)

Como citado anteriormente, o estudo de terapia do movimento desenvolvido por Mary


Starks Whitehouse no final da década de 1950 e início de 1960 era originalmente chamado de
Movimento em Profundidade, que consistiu na investigação das conexões entre a psicologia
junguiana, por meio da Imaginação Ativa e os simbolismos e conteúdos revelados no
movimento corporal. O termo Movimento Autêntico foi posteriormente usado em 1968 por
Janet Adler, discípula de Whitehouse e fundadora do Instituto Mary Starks Whitehouse, na
Califórnia.

Uma das pioneiras da terapia do movimento na década de 1960, Whitehouse


diplomou-se em dança pela Wigman Central Institute em Dresden, Alemanha. Foi aluna da
Jooss Ballet School, Bennington Summer School, Martha Graham School e outras. Membro
da American Dance Therapy Association, Whitehouse também estudou no C.G. Jung
Institute, em Zurique.95

93
PALLARO, Patrizia. Authentic Movement, Essays by Mary Starks Whitehouse, Janet Adler and Joan
Chodorow. London: JKP, 2001
94
No Brasil não se costuma traduzir para o português o termo Body Mind Centering, sendo a sigla BMC
mais amplamente utilizada e conhecida.
95
PALLARO, Patrizia. Op.cit., p17.
44

Como aluna de Mary Wigman, Whitehouse herda o interesse pela busca do sentido e
papel do movimento na dança. Wigman já trazia na formação que oferecia ao dançarino, o
ideal de “torná-lo consciente dos impulsos obscuros que estão dentro dele”.96 Defendia que o
dançarino deveria “se pôr à escuta de si mesmo”, 97 fugindo de sistemas preestabelecidos e do
adestramento corporal. Incluía métodos de improvisação em sua escola, e tinha como
característica respeitar e estimular o material individual dos dançarinos, o que afetava
sobremaneira no resultado de seus espetáculos, revelando uma sensibilidade corporal singular
de seus intérpretes.98 Essa visão de Wigman em relação ao dançarino e a abordagem da
consciência do movimento, via compreensão dos impulsos internos, tiveram grande influência
para o desenvolvimento da técnica do MA de Mary Starks Whitehouse.

Com sua grande bagagem em dança e experiência em psicologia analítica, método de


análise formulado por Carl Gustav Jung, Whitehouse agregou a Imaginação Ativa de Jung aos
seus estudos do movimento. Procurou analogias entre sua forma de analisar o movimento e o
método analítico de Jung. Viu a possibilidade de permitir os conteúdos inconscientes da
pessoa se expressarem em movimento.

A Imaginação Ativa visa fazer emergir o inconsciente para então buscar uma
comunicação com ele. “É um processo do qual, enquanto a consciência observa, participa sem
direcionar, coopera, mas não escolhe, o inconsciente tem a permissão de falar como e quando
quiser”.99 O processo é realizado em duas etapas, sendo que na primeira provoca-se o
inconsciente, por meio de um estado emocional que deve ser estimulado a se manifestar como
uma imagem, um fragmento de um sonho ou uma fantasia, ou mesmo a partir de um
sentimento. Em seguida, tenta-se uma comunicação com o inconsciente explorando-o e
visando que a imaginação flua sem controle da razão nem juízo crítico. Essa comunicação
com o inconsciente pode se dar de várias formas: pela dramatização, por um som, pelo

96
BOURCIER, Paul. História da dança no ocidente. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes,
1987, p299.
97
Idem, p299.
98
PALLARO, Patrizia. Op.cit., p74.
99
Idem, p83.
45

movimento, pela escrita, desenho etc. A pessoa deve observar atentamente como esse
fragmento de fantasia se desenvolve, dando vazão à imaginação.100

A partir da Imaginação Ativa, Whitehouse desenvolve a técnica do Movimento


Autêntico que consiste numa dinâmica realizada em dois grupos, ou em pares, onde uma das
pessoas se movimenta livremente num improviso de olhos fechados, enquanto o outro assume
papel de observador, testemunha da experiência de seu par. O movente é estimulado a se
mover a partir da Imaginação Ativa. Após um tempo determinado, em torno de vinte minutos,
a pessoa que se movimentou compartilha sua experiência com seu par, que no papel de
testemunha apenas escuta sem fazer julgamentos prévios, ou aconselhamentos. Janet Adler,
discípula de Mary Starks Whitehouse que deu prosseguimento aos estudos do MA
aprofundando a investigação do papel da testemunha na técnica, afirma que

a testemunha [...] carrega uma grande responsabilidade para a consciência,


pois senta-se ao lado do espaço de movimento. Ela não ‘está olhando para’ a
pessoa que se move, ela está testemunhando, escutando, trazendo uma
qualidade específica de atenção e presença para a experiência da pessoa que
se move.[...] a testemunha é responsável pela pessoa que se move, assim
como por si mesma [...] ela não atua sua experiência, mas a testemunha.101

O relato da experiência à testemunha pode se dar de várias formas, dentre elas


descrevê-la ou desenhá-la. Na técnica do MA é solicitado à pessoa fechar os olhos e esperar,
assumindo uma atitude de espera e escuta aberta e tranqüila. A espera aberta no MA refere-se
ao momento de uma espera para se escutar o corpo sem expectativas, onde há um momento de
exercitar o esvaziamento do desejo e da reflexão sobre o que está sendo vivenciado, abrindo
espaço para o corpo se manifestar a qualquer instante sem envolvimento do juízo crítico.102

No decorrer de nossa pesquisa desenvolvemos uma série de variações de exercícios


baseando-se na dinâmica utilizada pelo MA. Como exemplo dessas variações utilizamos
venda nos olhos, ao invés de somente fechá-los. Inicialmente esse fato não parece
desencadear muitas diferenças, entretanto me parece que a pessoa estar de olhos vendados
significa, necessariamente, a privação da possibilidade de ver em qualquer situação em que
essa pessoa possa se encontrar no momento do exercício. E ela estando somente de olhos

100
Para mais informações sobre Imaginação Ativa ver PALLARO, Patrizia, ibidem, capítulo 21, ou ainda,
HUMBERT, Elie G. Jung. Trad.de Marianne Ligeti. São Paulo: Summus, 2ªed,1985, pp34-6.
101
JANET ADLER in: PALLARO, Patrizia. Op.cit., 2001, pp 142-3.
102
PALLARO, Patrizia. Op.cit, p53.
46

fechados existe a possibilidade de abri-los quando se sentir ameaçada por algo externo, e
talvez isso a impeça de se concentrar mais profundamente no exercício. Outra variação
utilizada foi o tempo de realização do exercício, que gradativamente foi aumentando de vinte
minutos para uma hora. Além desses, realizamos outros exercícios com olhos vendados como
executar seqüências coreográficas elaboradas sem utilização de música, e depois utilizando
música. Na primeira opção o intérprete busca experimentar a relação do movimento com o
tempo interno e o espaço, e na segunda, ele tenta um diálogo do tempo interno do movimento
com o estímulo externo, a música.103

O MA busca provocar um processo de autoconhecimento profundo, partindo de


aspectos psicológicos e sua relação com o corpo, trazendo para a consciência conteúdos
emocionais internos e ocultos, que afetam e são afetados pela forma de se movimentar da
pessoa. Com o Movimento Autêntico, Whitehouse propunha deixar aflorar o movimento
partindo da escuta interna, do que o corpo está solicitando a ser feito, não abordando o
movimento apenas em direção a um fim, mas considerando-o como um processo de expressão
do interno, daquilo que está se processando no físico e na mente. Whitehouse argumentava
que na maior parte das pessoas o tempo e o padrão de todo movimento físico é hábito
formado, uma atitude automática e inconsciente, realizada quase sempre em direção a um
objetivo específico, a um fim utilitário, e que quando esse propósito é abandonado em favor
do movimento, de como ele acontece, a pessoa inicia o processo de percepção de si,
questionando-se sobre o que está sendo revelado pelo movimento. Whitehouse aponta que o
despertar da atenção sobre como nos movemos, nos leva a perceber o nosso caráter e nossos
hábitos corporais.104

A improvisação no MA é utilizada como forma de aprendizado do ‘deixar acontecer’,


em contraste com o ‘fazer acontecer’. Assim como se processa na Imaginação Ativa, onde a
pessoa deve dar vazão à fantasia, à imaginação e ao desenrolar livre de um fragmento de
sonho ou memória, o mesmo deve acontecer no corpo, onde a própria imaginação vai
interferir em como a pessoa expressa seu movimento. Logo, no improviso a pessoa é levada a
se mover a partir dessas imagens que emergem na mente, e não deve ser impedida de se

103
Outros exercícios com uso da venda realizados nesta pesquisa estão descritos no Anexo 1.
104
PALLARO, Patrizia, op.cit, p52.
47

expressar como quiser. A pessoa não deve forçar a se movimentar, ela se movimenta porque
algum impulso interno ocorreu, estimulando-a para ação.

A improvisação, associada ao trabalho de imagem, foi largamente utilizada nesta


pesquisa. Um dos exercícios consistiu numa improvisação sobre a frase ‘Eu num quarto
branco. É assim...’. Individualmente, cada intérprete deveria se imaginar num quarto branco
para então realizar um improviso com base na sensação e imagem trazida por essa frase. Em
outro improviso proposto, o intérprete, sendo observado pelos outros participantes, deveria
comer um pacote de biscoito sozinho da forma que quisesse. Além dessas propostas ainda
tivemos a de cada intérprete fazer um improviso mostrando algo que eu (Giselle) nunca
tivesse visto ele fazer, ou ainda improvisar sobre algum desejo específico, etc. As propostas
de improvisos trazidas buscaram estimular e provocar a auto-observação e o exercício de
deixar fluir a imaginação numa tentativa de fazer o intérprete se desapegar de seus
julgamentos e condicionamentos.

Whitehouse descreveu o cerne da experiência do movimento como a sensação de se


mover e de estar sendo movido: “Idealmente, as sensações acontecem juntas, é um momento
da consciência total do que estou fazendo e do que está me acontecendo”.105 Dizia ser
perceptível quando o movimento realizado não estava vinculado a algum tipo de impulso
interno consciente, tornando-o gratuito e vazio. Defendia a idéia que qualquer mudança na
pessoa (física ou psicológica) só poderia ocorrer, primeiramente, por meio da atenção e
consciência da condição atual dessa pessoa e, então, dos possíveis significados dessa
condição.106 Sua preocupação estava em integrar as intenções ao gesto, buscar a conexão do
impulso interno com a manifestação deste impulso no corpo, fazer da experiência do
movimento o caminho para o autoconhecimento. Sua técnica incentivou o desenvolvimento
da consciência sinestésica. 107

O MA enfatiza a importância de se trabalhar no momento presente, sem


planejamentos, expondo-se para as experiências sem se proteger e se apoiar nas situações

105
Idem, p43.
106
Idem, p34.
107
A palavra sinestesia relaciona-se com a psicologia e refere-se à ‘relação subjetiva que se estabelece
espontaneamente entre uma percepção e outra que pertença ao domínio de um sentido diferente (exemplo: um
perfume que evoca uma cor, um som que evoca uma imagem)’. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.
Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p602.
48

externas ao próprio corpo. A presença corporal é vivenciada pela consciência profunda de ser
e estar. Por isso, o Movimento Autêntico também é utilizado como prática meditativa e
espiritual, pois pode gerar um estado de presença total do ser.

Nesta pesquisa, o MA foi utilizado como inspiração inicial para o desenvolvimento de


vários outros exercícios, visando a aplicação desses no processo criativo em dança. Muitas
vezes utilizamos apenas o elemento de vendar os olhos sem a preocupação de provocar o
surgimento de alguma imagem, lembrança de sonho ou situação como estímulo para o
movimento ou ações corporais. Manter os olhos vendados por 20 minutos, com o comando de
se fazer o que se tem vontade, já era um estímulo bastante provocador para o intérprete.
Realizado dessa forma, o exercício pareceu proporcionar uma percepção sensória acentuada
do corpo. Além disso, durante todo o processo de investigação e experimentação dos
exercícios e improvisos, buscou-se uma atmosfera de concentração profunda e atenta,
propiciada por esta técnica. Os princípios do não julgamento, da escuta/espera aberta dentre
outros utilizados no MA, foram largamente trabalhados no processo. No final desse capítulo
estarei descrevendo sobre esses princípios.

Além da tentativa de provocar o intérprete para o autoquestionamento, sobre como ele


estabelece suas relações com os outros e consigo mesmo, era imprescindível estimular
também uma compreensão mais aprofundada de seu corpo físico, para um entendimento mais
efetivo dessas relações. Deveríamos inicialmente sensibilizar o corpo físico para uma escuta
ampliada e consciente, com a atenção voltada para os sistemas corporais (músculos, ossos,
articulações, fluidos, órgãos etc), dando ênfase à percepção sensorial. Esse caminho se deu
principalmente pelo BMC.

2.2. BODY-MIND CENTERING (BMC - CENTRALIZAÇÃO CORPO-MENTE)

O BMC está fundamentado na visão do corpo integral, corpo e mente conectados e


como expressões mútuas e interativas do ser. Foi desenvolvido pela norte-americana Bonnie
Bainbridge Cohen, fundadora da School for Body Mind Centering (1973), em Nova York.
Cohen iniciou sua carreira como terapeuta corporal na década de 1960, quando ensinava
dança para crianças com paralisia. Em sua formação, teve larga experiência com atividades
corporais como a dança, artes marciais e yoga. A partir dessas experiências, pode
compreender mais profundamente seus estudos teóricos sobre o funcionamento anatômico do
corpo e todos os conteúdos referentes a ele, como os sistemas corporais e o estudo sobre o
49

desenvolvimento neurológico e psicológico. Diplomou-se na área de analise do movimento


pela Laban/Baternief Institute of Movement Studies, em Nova York e Terapia Ocupacional e
Neurodesenvolvimento, na Ohio State University. Com essa formação, partiu para uma
investigação a fundo das características e possibilidades de cada sistema do corpo.

Cohen afirma que:

O corpo se move como a mente se move. As qualidades de qualquer


movimento são manifestações de como a mente se expressa por meio do
corpo [...] O movimento pode ser um caminho para observarmos a mente se
expressando por meio do corpo e um meio para influenciar mudanças na
relação corpo-mente. 108

Tomando como referência este pensamento, nesta pesquisa não há como tratar corpo e
mente como sistemas separados. Aqui, definitivamente, eles são vistos como sistemas
entrelaçados em que tanto o corpo se move como a mente se move, como também, segundo
coloca Antônio Damásio, “os processos mentais se alicerçam nos mapeamentos do corpo que
o cérebro constrói”.109 Queremos abandonar a concepção dualista do corpo instrumento, que
obedece, e a mente retentora, que conduz, pois, na realidade, as ações do corpo estão imersas
num ‘sentido de jogo’, e o BMC parece dar acesso à leitura e entendimento desse sentido de
jogo das ações, do sistema inteiro e suas relações.

Baseando-se na afirmação de Espinosa, citado por Antonio Damásio, que “mente-


corpo são diferentes aspectos da mesma substância”,110 nosso esforço nesta pesquisa tem sido
tentar fugir do condicionamento cultural e histórico da dualidade corpo-mente, buscando
incorporar e entender a relação que há entre esses dois aspectos (corpo e mente) da mesma
substância. Embora o dualismo se faça presente em alguns momentos, como efeito somente
de análise do processo, nossa intenção é de valorizar os dois aspectos numa tentativa de
enxergá-los e incorporá-los como uma substância só. Talvez tenhamos que considerar
relações hierárquicas, no sentido da ação de um sobre o outro, mas numa relação de devir
constante, onde, apesar de um operar mais enfaticamente sobre o outro em determinada
situação, não significa que o outro não esteja atuante e interferindo também na ação como um

108
COHEN, Bonnie Bainbridge. Sensing, feeling and action – the experiential anatomy of body-mind
centering. Northampton MA, 1993, p1.
109
DAMÁSIO, Antônio. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. Adaptação para
o português do Brasil Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p21.
110
Idem, p21.
50

todo. Parece ser questão apenas de foco de atenção, em como percebemos e operamos cada
aspecto em nós.

O estudo BMC foca no desenvolvimento da consciência corporal profunda, para que


possamos ‘incorporar’111 conscientemente cada sistema de nosso corpo, de modo a beneficiar
nossa expressividade. O termo ‘incorporar’, para Cohen, significa tomar conhecimento por
meio da experiência cinestésica, 112 sensível, de que aquele sistema corporal, aquela parte do
meu corpo sou eu. Então, começo a incorporar também as conexões dessas partes, até chegar
à compreensão do corpo que sou.113

No BMC, o corpo físico é o ponto de partida. Por meio de estudo anatômico


pormenorizado e de sua vivência e prática direta, o BMC envolve o aprendizado cognitivo e
experiencial dos sistemas do corpo, esqueleto, músculos, fluidos, órgãos, pele, glândulas
endócrinas etc. A partir da exploração do corpo físico como um todo, podemos aguçar a
percepção para um universo de sensações, sentimentos, pensamentos, memória e imaginação
e incorporá-los e expressá-los com consciência. Podemos também chegar à percepção de
como os sistemas corporais afetam e são afetados pelo movimento e pelo comportamento.
Cohen acredita que explorando, compreendendo e incorporando esta compreensão dos
sistemas do corpo estaremos entendendo melhor o desenvolvimento humano. Talvez esta
compreensão possa vir tanto num plano físico como relacional, influenciando nossa forma de
expressar. Por exemplo, com a incorporação do sistema esquelético, a mente se torna
estruturalmente organizada, proporcionando um suporte básico para nossos pensamentos, uma
alavanca para nossas idéias. Já o sistema dos órgãos está relacionado com nossas emoções,
desejos e memória de nossas reações internas a nossa história pessoal, além de nos dar um
senso de volume e preenchimento interno. O sistema endócrino está relacionado com a
tranqüilidade interna, o equilíbrio do caos e a cristalização da energia dentro das experiências
arquetípicas. O trabalho sobre esse sistema pode ampliar a intuição, a percepção e a
compreensão. 114

111
‘Incorporar’ foi a tradução para o português mais aproximada do termo embody utilizado por Cohen.
112
A palavra cinestesia relaciona-se com a fisiologia e refere-se ao ‘sentido pelo qual se percebe os
movimentos musculares, o peso e a posição dos membros’. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.
Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p151.
113
COHEN, Bonnie Bainbridge. Op.cit, p63.
114
Idem, pp2-3.
51

Visando essa ampliação pretendida por nós, a educadora do movimento Lívia


Marques, especializada em Somatic Movement Education pela School for Body Mind
Centering de Massachussets, EUA, ministrou aulas de BMC para o Basirah. Além de trazer a
informação teórica sobre cada sistema corporal que iríamos trabalhar, com figuras, desenhos e
uma miniatura de um boneco do esqueleto humano, Lívia passava exercícios práticos numa
tentativa de nos fazer experimentar cada sistema diretamente. Iniciávamos esses exercícios
tentando visualizar cada sistema apresentado nas figuras e desenhos. Com essa visualização
focava-se a atenção num sistema específico, buscando sentir sua forma, textura, peso,
sensação etc. A partir dessa experiência, Lívia nos sugeria começar a se movimentar
mantendo a atenção no sistema trabalhado. Além dessa prática, muitos outros exercícios
foram realizados, como por exemplo, a execução de movimentos relacionados aos padrões
básicos do desenvolvimento humano como arrastar, engatinhar, rolar, etc.

Figura 2 – Alessandro Brandão - Exercício do sistema dos órgãos115

Segundo Cohen, um importante aspecto do BMC é “descobrir a relação entre o menor


nível de atividade dentro do corpo e os grandes movimentos corporais, alinhando o
movimento celular interno com a expressão externa do movimento no espaço”.116 O
desenvolvimento do movimento se dá pelas conexões dos sistemas. Embora cada sistema
contribua com sua especificidade para o movimento corpo-mente, eles se entrelaçam.

115
Foto de Dalton Camargos tirada em ensaio privado.
116
COHEN, Bonnie Bainbridge. Op.cit, p1.
52

Por meio do BMC é possível observarmos como o movimento corporal realizado no


espaço pode ser afetado, por exemplo, quando levamos nossa atenção para as células, os
órgãos, ou fluidos, nos conscientizando mais profundamente de sua forma, função, peso,
textura etc. O estudo do BMC se volta principalmente para a percepção do funcionamento
desses sistemas, estimulando o desenvolvimento do que Cohen chama de active focusing, que
foca ativamente nossa atenção, motivação ou desejo em nós e naquilo que estamos
percebendo.117 Podemos constatar o desenvolvimento deste aspecto se dando claramente nos
participantes da pesquisa. É o que nos mostra o depoimento de um deles, Diego Pizarro:

Nesse momento, já tendo passado o período de adaptação (às vezes penso


que ainda não) e inserção no processo proposto, meu corpo encontra-se
“estranho”. Parece que ele não está como sempre esteve em sua relação
descompromissada com o espaço. Parece que qualquer movimento, por
mínimo que seja, chama a minha atenção para a sua relação com o espaço,
com o ar que está sendo deslocado a partir da movimentação até mesmo
involuntária.[...]E essa estranheza é tão latente que eu sinto como se meu
corpo estivesse mudando de tamanho, talvez porque esteja percebendo-o
melhor. Eu me sinto como um bebê que admira sua mãozinha, conhecendo-a
e explorando-a, pegando o seu pezinho e admirando-o. Como se as células e
os tecidos estivessem transformando-se, e o que está sendo transformado é
simplesmente a minha atenção, ou talvez não. 118

Com a experiência do BMC abre-se a possibilidade de se aprofundar e apreender as


sensações e a percepção no e do corpo, de forma aguçada, onde o contato com a expressão
sensível119 e a compreensão desse mecanismo pode dar ao intérprete uma qualidade de tônus
muscular distinta, afetando seu potencial expressivo do corpo, que mesmo sem se
movimentar, parado, traz uma textura diferente, um estado de presença ativa e de ser
evidenciados. Não há necessidade de que o corpo, para demonstrar sua expressividade e se
fazer perceptível, tenha que se manifestar pelo movimento. Sua existência no espaço e no
tempo parece já potencializar sua presença necessária para a cena. O corpo parado já é
movimento, parece estar impregnado de sensações afloradas, de expressão sensível, e
expressa uma dramaticidade que provém de seu estado de ser, de sua consciência do
momento.

117
Idem, p5.
118
O depoimento integral de todos os participantes desta pesquisa encontra-se no Anexo 2.
119
O termo “expressão sensível” que utilizo nessa pesquisa associa-se ao conceito de sensibilidade definida
por Fayga Ostrower. Segundo Ostrower, a sensibilidade está baseada “numa disponibilidade elementar, num
permanente estado de excitabilidade sensorial”, que abre uma porta de entrada para as sensações. “Representa
uma abertura constante ao mundo e nos liga de modo imediato ao acontecer em torno de nós”. OSTROWER,
Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 18ªed., 2004, p12.
53

Como o BMC propõe investigar a fundo os processos orgânicos, entendemos e


buscamos nesta pesquisa que, a partir da compreensão desses processos, o intérprete possa
transferir esse conhecimento para as ações envolvidas na encenação. A idéia é que o estímulo
dado ao intérprete para o exercício criativo, ou de repetição de ações, tenha foco mais na
atualização da memória corporal pela percepção e reconhecimento das sensações físicas do
momento, do que na tentativa de resgate de memória do passado. Seria como interpretar a
memória corporal de acordo com a situação atual numa tentativa de alcançar o punctum
cênico da ação. Rolland Barthes define o termo punctum como sendo o detalhe, o ponto
sensível, o que punge “uma espécie de extracampo sutil, como se a imagem lançasse o desejo
para além daquilo que ela dá a ver [...] para a excelência absoluta de um ser, alma e corpo
intrincados”. 120 Já Antônio Damásio nos fala que

As imagens não são armazenadas sob a forma de fotografias fac-similares de


coisas, de acontecimentos, de palavras ou de frases. O cérebro não arquiva
fotografias Polaroid de pessoas, objetos, paisagens [...] Em resumo, não
parecem existir imagens de qualquer coisa que seja permanentemente retida
[...] sempre que recordamos um dado objeto, um rosto ou uma cena, não
obtemos uma reprodução exata, mas antes uma interpretação, uma nova
versão reconstruída do original. Mais ainda, à medida que a idade e
experiência se modificam, as versões da mesma coisa evoluem. 121

Sendo assim, parece que temos que estar falando de atualização constante da memória
corporal pelo exercício da percepção constante das sensações do corpo, pois,

O corpo, tal como é representado no cérebro, pode constituir o quadro de


referência indispensável para os processos neurais que experienciamos como
sendo a mente. O nosso próprio organismo, e não uma realidade externa
absoluta, é utilizado como referência de base para as interpretações que
fazemos do mundo que nos rodeia e para a construção do permanente
sentido de subjetividade que é parte essencial de nossas experiências. De
acordo com essa perspectiva, os nossos mais refinados pensamentos e as
nossas melhores ações, as nossas maiores alegrias e as nossas mais
profundas mágoas usam o corpo como instrumento de aferição. 122

Por meio das técnicas do MA e BMC, que comungam pensamentos similares, buscou-
se trabalhar a dimensão física e psicológica da pessoa, numa tentativa de ampliar a

120
BARTHES, Rolland. A câmara clara: Nota sobre a fotografia.Trad. Júlio Castanon Guimarães. Rio de
Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1984, p89.
121
DAMÁSIO, António. O erro de Descartes – emoção, razão e o cérebro humano. Trad. portuguesa Dora
Vicente e Georgina Segurado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p129.
122
Idem, p16.
54

consciência do intérprete em vários níveis. Para a complementação deste processo de


conscientização do intérprete também utilizamos alguns exercícios com foco na percepção
dos condicionamentos corporais e comportamentais, que serão apresentados a seguir.

2.3. PERCEBENDO OS PADRÕES

Estamos em constante aprendizado de nossas experiências, e no armazenamento


dessas experiências vamos criando padrões de movimento, comportamento, de seleção
daquilo que queremos absorver do exterior etc, condicionando nossa percepção, nossa forma
de se relacionar com o outro e conosco mesmo. O BMC e o MA propiciam de forma indireta
o reconhecimento desses padrões. Um trabalho de conscientização com foco na percepção de
padrões de movimento e de comportamento, talvez possa auxiliar no seu transbordamento e
transformação. Pensando nessa possibilidade é que outros dois procedimentos também foram
aplicados nesta pesquisa. O primeiro, que intitulei como Mental Verbal e Ação (MVA),
consiste em mentalizar um movimento imaginado, descrever verbalmente este movimento e
posteriormente executá-lo fisicamente. O movimento pode ser imaginado tanto na sua forma
finalizada, quanto no caminho que ele percorre, e a pessoa deve estar atenta ao detalhamento
das quatro etapas do exercício: imaginar, mentalizar, verbalizar e executar.

O MVA propõe estimular uma percepção mais apurada do corpo físico em


movimento, na medida que ele facilita o contato com os condicionamentos corporais e o
reconhecimento do padrão de movimento da pessoa de forma mais direta. Segundo relatos dos
participantes, a pessoa que realiza o exercício percebe quando o corpo se movimenta sem que
o comando desta ação tenha passado pela etapa consciente da imaginação e mentalização. Ela
chega ao entendimento do quanto não possui consciência nem controle sobre as ações
corporais, e como essas ações são resultados de hábitos de movimento que adquirimos.
Alessandro Brandão, participante da pesquisa, nos fala que

A sensação da conscientização do movimento vinha de maneira muito calma


e às vezes irritada, os exercícios de pensar, dizer e fazer me causavam uma
irritação enorme, pois eu quase não consegui dominar a minha ansiedade.
Mas com a experimentação diária isso foi passando.

O MVA busca estimular a atenção para ‘o que’ a pessoa está realizando fisicamente
com o corpo, e ‘como’ ela realiza, fazendo-a perceber mais atentamente sobre os
condicionamentos do corpo e do movimento, bem como sobre a qualidade da imagem
mentalizada e da verbalização do movimento na interferência da qualidade de execução desse.
55

O segundo procedimento foi a Associação Livre (AL) de Idéias ou Palavras, técnica


utilizada por Freud em seu método de interpretação dos sonhos. AL consiste em descrever
verbalmente ou escrever palavras sobre determinado assunto, fazendo associação livre entre
elas, como numa colagem de imagens soltas que lhe vêm à mente por associação. 123 A pessoa
deve inicialmente adotar uma atitude imparcial, e renunciar qualquer juízo crítico em relação
ao que percebe e verbaliza se colocando na posição de observadora de si. Ela verbaliza ou
escreve aquilo que lhe vem à cabeça, numa escrita automática, sem dar tempo para o
pensamento racional se formular.

O uso da AL também está vinculado aos métodos de colagem utilizados, por exemplo,
nas artes plásticas na escrita surrealista, no cinema, em performances e também no teatro. A
colagem, segundo Renato Cohen, caracteriza uma linguagem que em seu processo de criação
faz uso da “justaposição e colagem de imagens não originalmente próximas, obtidas através
da seleção e picagem de imagens encontradas, ao acaso, em diversas fontes”,124 método
semelhante aos processos de AL de Freud. Cohen nos coloca ainda que pelo processo da livre
associação a “colagem na performance resgata, dessa forma, no ato de criação,.[...] sua
intenção mais primitiva, mais fluida, advinda dos conflitos inconscientes e não da instância
consciente crivada de barreiras do superego”.125

O exercício da Associação Livre parece descolar o sujeito da sua lógica de


pensamento deliberada e intencional, jogando-o numa possibilidade de lógica aleatória, sem
uma ordem definida. As idéias podem fluir sem a tentativa de se moldar a um raciocínio
específico, causando no sujeito um estranhamento em relação à construção de sua lógica
mental, pois mesmo não possuindo uma lógica coerente imediata, algum tipo de lógica vai se
estabelecendo pelas conexões da aleatoriedade e pela interpretação que se tem delas. O
exercício parece revelar outro regime do pensamento, que não se apóia numa lógica concreta,
mas parte da fragmentação desorganizada do pensar e de conteúdos que ainda não foram
estimulados a se expressar. Uma outra regra vai se construindo, delineando um outro lado do
sujeito, até então desconhecido por ele. A AL promove um encontro de imagens fragmentadas
suscitando uma releitura mais subliminar e menos racional do universo da pessoa. Esta,

123
FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira com
comentários e notas de James Strachey. Trad. Jayme Salomão.Rio de Janeiro: Imago, 1987, p123.
124
COHEN, Renato. Performance como Linguagem. 2ªed. São Paulo: Perspectiva, 2004, p62.
125
Idem, p62.
56

enquanto inserida no processo de estruturação da colagem, “não é um fim em si mesma, mas


incita a desmembramentos infinitos, que são as possibilidades de reter o mundo”.126

Tanto o MVA quanto a AL também foram realizados em duplas, onde um observa o


outro realizando a tarefa, e em seguida os dois conversam sobre a experiência vivenciada.
Inicialmente, com a aplicação desses dois exercícios intencionou-se estimular o intérprete
para o reconhecimento de suas estruturas condicionadas de pensamento e de movimento, e de
como se dava a influência dessas estruturas na qualidade expressiva do movimento. O MVA e
a AL associados à Imaginação Ativa permitem, de certa forma, estar trazendo esta situação.
Além disso, os exercícios promovem um distanciamento afetivo do sujeito em relação a si,
que passa a assumir um estado de espírito diferente do sujeito que está refletindo, sem
envolvimento emocional, na medida em que trata as situações como observador. Colocando-
se como observadora da situação a pessoa parece aliviar a tensão gerada pelo processo de
refletir sobre determinada situação. Segundo nos fala Freud

o estado de espírito de um homem que esteja refletindo é inteiramente


diferente do de um homem que esteja observando seus próprios processos
psíquicos. Na reflexão, há em funcionamento uma atividade psíquica a mais
do que na mais atenta auto-observação e isso é demonstrado, entre outras
coisas, pelos olhares tensos e o cenho franzido da pessoa que esteja
acompanhando suas reflexões, em contraste com a expressão repousada de
um auto-observador.127

Com essas técnicas buscou-se atenção às conexões entre a forma de estruturar o


pensamento e o processo de investigação do movimento. Levar o intérprete a reconhecer seus
padrões de pensamento em consonância com os padrões de movimento talvez fosse um
caminho para o entendimento dos mecanismos do pensamento e do movimento próprios,
facilitando uma atualização desses, no sentido de ampliar as possibilidades expressivas e/ou
criativas.

A aplicação da técnica MA e dos exercícios MVA e AL se deu por improvisação,


onde a partir do reconhecimento do padrão de movimento e pensamento almejou-se ampliar o
vocabulário corporal reatualizando e reorganizando esses padrões para novas possibilidades
de realização da ação cênica, tanto do movimento corporal como dos caminhos criativos para

126
Idem, p64.
127
FREUD, Sigmund. Op.cit, pp123-4.
57

desenvolvimento das ações. Segundo Helena Katz a improvisação ambiciona “a quebra das
cadeias habituais” do movimento, no sentido de “desarticular aquilo que estava estabelecido
como formas de conexão habitual no corpo”.128 Dessa forma a improvisação abre o campo
para a experiência das possibilidades, incluindo a possibilidade da desconstrução e
reorganização.

O uso dessas técnicas e exercícios objetivou interferir na racionalidade do intérprete,


revelando a ele seus condicionamentos corporais e do pensamento, na tentativa então, de levá-
lo à compreensão de como cria obstáculos a si mesmo, sejam físicos ou emocionais. A partir
do reconhecimento e da compreensão dos condicionamentos e dos padrões pode se abrir uma
possibilidade para a investigação da expressividade corporal, trazendo à consciência o
conhecimento dos mecanismos dessa expressividade, e como esta compreensão pode ter
influências na construção do pensamento, de como se estrutura o pensamento, provocando
questionamentos em relação a automatismos, forma de perceber, regras, limites, obstáculos
que o intérprete estabelece para si no exercício de criação e interpretação. Podemos observar
esse processo, quando Márcia Lusalva, outra participante da pesquisa, nos fala de sua
experiência com as técnicas e exercícios:

O processo é isso. O querer saber, a inquietude da pergunta. O processo não


é a resposta, no processo não se encontram as certezas, o processo são as
questões levantadas. Na verdade nada desaparece nem os padrões, nem os
julgamentos. A diferença é que você pode percebê-los e deixar que eles
ocupem o espaço que lhes é devido. E se dando conta deles (padrões e
características) se percebe também a diversidade de possibilidades e se
ampliam os caminhos de criação.

128
KATZ, Helena, O coreógrafo como DJ. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia (org). Lições de dança 1.
Rio de Janeiro: UniverCidade editora, 1998, p21.
58

Figura 3 - Márcia Lusalva - improviso da frase ‘Eu num quarto


branco. É assim...’, realizado após exercício da IA e AL129

Podemos observar que essas técnicas e exercícios apresentados aqui contêm princípios
fundamentais que as definem, e que se tornaram os pilares desta pesquisa. A seguir
abordaremos mais detalhadamente sobre cada princípio e sua importância para esta pesquisa.
No Capitulo 3 falaremos de como o processo criativo foi conduzido e orientado por meio
desses princípios.

2.4. PRINCÍPIOS QUE REGEM AS TÉCNICAS

Apresentamos a tabela a seguir visando demonstrar os exercícios e técnicas utilizadas


nesta pesquisa e os princípios que os norteiam. Identificamos princípios comuns no conjunto
dessas técnicas e exercícios tomando-os como foco fundamental para o desenvolvimento
desta pesquisa.

129
Foto retirada da imagem do registro de vídeo de um dos ensaios privados.
59

Quadro 1 – As técnicas e seus princípios

Técnicas e exercícios Princípios

Não Julgamento
MOVIMENTO AUTÊNTICO
Desapego
BODY-MIND CENTERING
Espera/Escuta aberta
MENTAL VERBAL AÇÃO
Observação atenta
ASSOCIAÇÃO LIVRE
Compartilhar a experiência

Todos os princípios são constituintes fundamentais de todas as técnicas e


procedimentos, e a incorporação destes princípios no processo vai se dando em conjunto, pois
cada princípio tem dentro de si os outros princípios. Um princípio é o que é porque tem em
sua constituição o outro princípio. Há um imbricamento natural entre eles.

A tentativa de suspensão do julgamento e da racionalização, no momento da


experiência das técnicas e exercícios permeou todo o processo, visando dar oportunidade para
o intérprete vivenciar a experiência da auto-exposição e exploração efetiva das possibilidades
expressivas. Segundo Freud a autocrítica pode impedir que determinados aspectos latentes do
sujeito se manifestem. Sendo assim, possivelmente muitos desejos da pessoa poderiam ser
sufocados em função de um senso crítico exagerado, o que provavelmente poderia limitar no
intérprete a experiência da potencialidade expressiva e criativa. Assim ele diz:

mas o homem que está refletindo exerce também sua faculdade crítica; e isso
o leva a rejeitar algumas idéias, que lhe ocorre após percebê-las, a
interromper outras abruptamente, sem seguir os fluxos de pensamento que
elas lhe desvendariam, e a se comportar de tal forma em relação a mais
outras que elas nunca chegam a se tornar conscientes e, por conseguinte, são
supridas antes de serem percebidas.130

O não julgamento proposto aqui não se refere a uma indiferença em relação ao que
está sendo visto ou realizado, mas se baseia no respeito a um outro espaço, ao espaço para a
experiência do momento presente, do outro e de si. É demandada a flexibilidade em permitir e
aceitar o presente, aquilo que está sendo, e também escutar a si, escutar o outro, percebendo e
introjetando o momento. O sujeito deve recuar do juízo crítico para aproximar-se da

130
FREUD,Sigmund. Op.cit, pp123-4.
60

experiência bruta, pois “é a experiência [...] ainda muda que se trata de levar à expressão pura
de seu próprio sentido”.131

Para destituir-se do juízo crítico era necessário assumir uma atitude de desapego em
relação aos pontos de conflito do corpo, do movimento e do comportamento, numa tentativa
de desligar-se de regras e condicionamentos estabelecidos pela própria pessoa. Para aceitar e
permitir viver a experiência presente era preciso se liberar do que estava cristalizado enquanto
movimento corporal, pensamentos e atitudes.

A apropriação do princípio da escuta/espera aberta, trabalhado no MA, BMC, AL e


IA, parece fundamental para o entendimento do que vem a ser a presença ativa. Esse princípio
pode ter como conseqüência o desenvolvimento de um estado de percepção aguçado do corpo
e do meio culminando no estado de presença ativa. A presença ativa refere-se a esse estado de
corpo esvaziado, porém vivo e conectado com o todo (o dentro e o fora). A mente está vazia
para a experiência, mas atenta ao que pode surgir, com o corpo disponível para a ação.
Transferindo este estado para a situação cênica o intérprete deve tentar se manter dentro da
ação que realiza sem pensar em como deve realizá-la. Quando ele ‘pensa’, ‘reflete’ em como
realizar a cena, ou o movimento no momento da ação, seu estado de presença se esvai, pois
sua preocupação está voltada para algo que ainda será feito e não algo que está sendo. O
intérprete deve exercitar a presença ativa como um devir puro, constante e ativo
proporcionando um processo não fixante.

O exercício da observação atenta é considerado um dos pontos importantes na


sensibilização da percepção e do autoconhecimento para o afloramento da expressividade e da
presença ativa. Atuar como observador (testemunha) do outro implica em grande trabalho
interno de concessão, de não gerar expectativa em relação ao outro, e nem a si mesmo. Além
disso, aquele que observa não é “mero observador do outro”. Ele observa o outro e observa a
si mesmo, testemunha a experiência do outro e a faz sua também.

Aprimorar a qualidade da observação e da auto-observação parece certamente auxiliar


no aprendizado da execução do sentido para o movimento, trazendo a noção da integralidade
do outro e de si no jogo cênico, é o que nos relata Rachel Cardoso, outra participante da

131
HUSSERL apud: MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto
Ribeiro de Moura. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes,1999, p12.
61

pesquisa, sobre a sua experiência da observação quando diz que “é possível aprender muito
discriminando também o processo dos demais intérpretes envolvidos. Muitas das vezes
consigo perceber melhor no outro do que em mim”. E também quando Lívia Frazão e Lina
Frazão, também integrantes da pesquisa, nos falam:

Nunca tive muita paciência: nem para observar os outros/coisas, nem para
me perceber. Agora, para mim, está sendo bastante gostoso perceber certos
detalhes nas pessoas e nas coisas que são absolutamente comoventes, como
o dia em que estava no sinal e percebi uma mãe com uma criança de colo
com seus 11 meses, um ano. Estaria tudo normal, se eu não tivesse me
absorvido com o detalhe da mãozinha da criança que mexia com o colar no
colo da mãe num gesto absolutamente displicente (característico das
crianças), mas com uma total atenção à sensação daquele ato. Era tão claro
que me absorveu durante todo o tempo em que o sinal esteve fechado (Lívia
Frazão).

Outra coisa que também tem me impressionado: o poder de observar as


sutilezas. Todos esses exercícios de observar o outro têm sido muito
interessante pra mim. Eu confesso que esse ainda não é o meu talento...hehe.
Por vezes, eu me vejo flutuando. Ou por vezes, eu me vejo atenta, mas sem
conseguir extrair muito daí (Lina Frazão).

Compartilhar a experiência prática das técnicas e dos exercícios foi outro princípio
obrigatório no desenvolvimento desta pesquisa. Por meio de conversas, ao final de cada
prática, a pessoa pode trazer à luz conteúdos até então não percebidos por ela. Muitas vezes
era a partir das trocas de idéias e opiniões nas discussões que se podia refletir e compreender
mais profundamente sobre a prática das técnicas, exercícios e princípios, ampliando a
consciência e o entendimento de como se dão os condicionamentos corporais, de como
reconhecer o padrão do movimento e do pensamento, de detectar os momentos onde ocorre o
julgamento e a fixação em pontos conflitantes do corpo para realização do movimento.

Esses princípios e técnicas foram os suportes para o processo de autoconhecimento


profundo e o desenvolvimento do estado pré-expressivo. Acredito que eles podem colaborar
no desenvolvimento da consciência de atuação cênica mais ampla, propondo ao intérprete um
exercício de atenção constante à consciência do corpo em sua organicidade física e espiritual
(objetiva e subjetiva), no momento criativo e interpretativo, evitando que no ato performático
ele não reconheça sua própria ação e aliene-se em um automatismo sem significado, numa
cabotinagem performática. Com o desejo de fugir da cabotinagem é que buscamos incorporar
e nos apropriar dos princípios de cada técnica e exercícios aplicados, trazendo-os para o
processo de investigação e desenvolvimento do estado pré-expressivo do intérprete,
acreditando que esse estado possa revelar o sentido do movimento manifestado ou produzido
62

no corpo que dança. Para a continuidade do exercício dos princípios e do estado pré-
expressivo é que elaboramos o espetáculo com estrutura flexível e caráter mais performático,
como veremos na próxima seção.

Figura 4 - Lívia Bennet – improviso solo livre após realização


dos exercícios do MA e IA132

132
Foto retirada da imagem do registro de vídeo de um dos ensaios privados.
63

CAPÍTULO 3. CONSTRUINDO UM PENSAMENTO QUE DANÇA

3.1. DO PROCESSO CRIATIVO À CENA

Esta pesquisa iniciou-se sem estar vinculada a uma temática definida para elaboração
do espetáculo. A definição temática do espetáculo se deu a partir da experiência dos
intérpretes na etapa do desenvolvimento pré-expressivo do processo, que será descrito mais
adiante. Sabíamos que caminharíamos para uma montagem, mas não tínhamos definido o que
seria essa montagem e qual sua temática específica. Na próxima seção estarei descrevendo o
desenvolvimento e aplicação da pesquisa com o Basirah e como foi se dando o processo
criativo do espetáculo.

Figura 5 - Grupo Basirah133

O Basirah trabalha de segunda à sexta-feira, das 8h às 12h, onde na primeira hora e


meia se dá o aquecimento, que normalmente é realizado com uma aula técnica, incluindo
vários estilos: técnica de ballet clássico, dança contemporânea, kung fu e yoga. Em seguida ao

133
Foto de Mila Petrillo tirada da apresentação realizada na Mostra XYZ, em 21 de maio de 2006, em
Brasília.
64

aquecimento, prosseguimos as atividades com investigações e ensaios. Para a pesquisa em


questão, algumas modificações ocorreram nesta rotina de trabalho, principalmente quanto ao
tipo de aquecimento realizado antes das atividades principais. Focar o aquecimento do
intérprete, preparando-o para o trabalho somente pelo seu aspecto físico e mecânico do corpo
não pareceu suficiente, era preciso encontrar estratégias para levá-lo a alcançar, além do
aquecimento físico, um estado de consciência dilatada do todo: corpo, energia, e disposição
psicológica e de espírito atuantes. Para desenvolver esta atmosfera, no sentido de preparar
também o espírito e se colocar disponível para a exposição e investigação no processo, nos
valemos da conduta gerada pela vivência das técnicas do BMC e MA, onde se objetiva o
máximo de concentração na atividade que está sendo realizada, expandindo a percepção da
experiência. Muitas vezes o aquecimento foi realizado partindo da concentração inicial de um
aspecto do corpo, por exemplo, os órgãos ou a respiração, e como esse sistema poderia
conduzir o corpo rumo a despertá-lo, aquecê-lo para o trabalho diário que seria realizado. A
partir dessa abordagem dávamos início ao processo de investigação e desenvolvimento da
pesquisa que será descrita a seguir.

3.2. FOCOS DA PESQUISA. COMO UMA ONDA NO MAR

O processo descrito a seguir me traz a imagem de uma sucessão de ondas no mar,


onde o mar é o processo como um todo, em que tudo se mistura, e a onda corresponde à
revelação de um foco desse processo num determinado momento. Para efeito de análise e
esclarecimento sobre o método da pesquisa, foram delineados três focos divididos em três
etapas para facilitar o entendimento de cada passo dado. Cada etapa significou o foco, a
ampliação e o direcionamento da atenção para determinado aspecto do processo, num
momento específico, sem desconsiderar que outros aspectos estivessem operando
conjuntamente. Sendo assim, o processo levou ao desenvolvimento dos seguintes focos da
pesquisa artística sintetizadas no quadro 2.
65

Quadro 2 –Procedimentos gerais realizados com o Basirah

Técnicas e exercícios
Etapa Foco Princípios
trabalhados

Movimento Autêntico (MA)


não julgamento,
Body-Mind Centering (BMC)
observação constante,
Desenvolvimento do estado Associação livre
1ª pré-expressivo para desapego,
processo criativo Imaginação Ativa
escuta aberta,
Mental Verbal Ação
presença ativa.
Improvisos solo livres

Juízo crítico/não julgamento,


observação constante,
Improvisos solo
Escolha dos temas / desapego/fixação
estruturados/elaborados134
processo criativo
2ª escuta aberta
direcionado para temática Seleção de material
específica. determinação/fragilidade
Definição de idéias células. 135
fazer acontecer/deixar acontecer
presença ativa

Juízo crítico/não julgamento,


Elaboração dos improvisos
segundo as idéias células. observação constante,
Exercícios de interpretação via desapego/fixação
Montagem e improvisos públicos
3ª escuta aberta
Exercício do espetáculo estruturados136,
determinação/fragilidade
Dinâmica intérprete/intérprete
intérprete/espaço/tempo fazer acontecer/deixar acontecer
intérprete/espectador...
presença ativa

Na primeira etapa se deu o desenvolvimento do estado pré-expressivo para o processo


criativo com a utilização das técnicas, exercícios e improvisos solos livres137 citados no

134
Improvisos individuais realizados a partir de temas específicos. Esses temas foram sendo definidos
tomando como base às experiências vivenciadas na primeira etapa do processo.
135
Definição de temas específicos trazidos pelos intérpretes para possível elaboração cênica.
136
Refiro-me a improvisos públicos estruturados àqueles realizados para o público, onde se definia a ordem
de acontecimento das idéias células, sem a definição de como elas se dariam.
137
Improvisos individuais realizados a partir das vivências das técnicas e exercícios, sem a preocupação de
se chegar a um conteúdo temático específico ou produto finalizado. O intérprete deve se ocupar apenas em
experimentar as sensações provocadas pelas técnicas e exercícios da forma que desejar.
66

Capítulo 2. Nesta etapa pré-expressiva, objetivou-se fazer emergir diversos estados corporais
e emocionais, aguçando a percepção para esses estados. Para facilitar o alcance desses estados
o trabalho se apoiou nos princípios apontados no quadro 2. A aplicação das técnicas e
exercícios dessa fase objetivou interferir na racionalidade do intérprete, na compreensão e
consciência do movimento corporal como um todo, voltando-se para a estimulação e
desautomatização da percepção, e para a sensibilização corporal. Nessa primeira etapa do
processo consideraram-se a fisicidade, as emoções, o pensamento e suas inter-relações e
interações com o meio, como experiências fundamentais para a expressividade corpórea. Com
a percepção mais apurada, direcionamos o estudo para uma compreensão mais aprofundada
de cada processo de surgimento de um estado corpóreo ou emocional, numa tentativa de
trazer o sentido de existência do movimento quando ele era manifestado livremente ou
produzido intencionalmente.

Na segunda etapa, ocorreu a definição temática do espetáculo e seu processo de


criação por meio de improvisos solos estruturados, seleção de material e definição de idéias
células. Nessa fase do processo criativo direcionado para um tema, foi quando se realizou a
tentativa máxima de perceber, compreender e direcionar o foco para as conexões dos estados
pré-expressivos com o processo de elaboração e definição das idéias para a composição
cênica.

Na última etapa, vivenciamos o que denominei de ‘exercício do espetáculo’.138 Essa


denominação se deu em função de considerarmos a montagem cênica não como produto
pronto, e a encararmos assumidamente como processo. Aliás, ela é talvez a etapa do
exercício, interminável, para o intérprete que almeja aprofundar e treinar sua compreensão do
processo vivenciado na criação a cada exposição ao público, exercitando os princípios
incorporados e atuando em direção a uma perspectiva de recriar suas ações, buscando um
eterno desafio. E parece mesmo existir sempre o elemento desafiador no incorporamento dos
princípios para a cena, pois eles não podem seguir uma regra de funcionamento e eficiência
absoluta. Não há como definir um modelo de aplicação e repeti-lo; para cada pessoa e para
cada situação se configura diferentemente, o que faz modificar também sua aplicação. Essa
etapa final direcionada para a elaboração do espetáculo, teve sua importância para o exercício
continuado das etapas anteriores dentro do contexto cênico. O espetáculo não foi um fim, mas

138
Ressalto que o uso do termo ‘espetáculo’ e ‘exercício do espetáculo’ nesta pesquisa são considerados
com mesmo sentido.
67

um meio para a aplicação e o exercício constante dos elementos abordados na pesquisa, e


também para o aprimoramento de habilidades que se adquiria como a escuta aberta, a
observação atenta, o controle do espaço e do tempo cênico, a comunicação com o outro
intérprete e com o público. Além disso, o espetáculo significou o espaço para o exercício
aprofundado da descabotinagem performática.

Figura 6 - Diego Pizarro – exercício do espetáculo139

As três etapas foram necessárias para se ter uma medida da influência e aplicabilidade
da metodologia utilizada para o desenvolvimento do estado pré-expressivo no processo como
um todo. Nelas buscou-se a consciência interpretativa, que nesse contexto, refere-se à
consciência no desempenho de uma situação cênica, envolvendo a habilidade de atenção,
concentração, escuta aberta, noção de tempo e espaço cênico, domínio sobre a relação com
outros intérpretes e com o público, além da atenção no próprio corpo e consciência de seus
estados no momento da atuação.

Considero o desenvolvimento do estado pré-expressivo talvez o mais importante foco


da pesquisa, por acreditar que a compreensão e o incorporamento desse estado possam

139
Foto de Dalton Camargos tirada de um ensaio privado.
68

enfraquecer a cabotinagem performática e, talvez, com a capacidade de manutenção desse, o


intérprete possa recriar suas ações com punctum tão bem definido por Roland Barthes.140
Entretanto percebi que trabalhar somente sobre o desenvolvimento do estado pré-expressivo
no intérprete não garantiria o transporte automático do que foi vivenciado para a situação de
atuação cênica, e que o diálogo e a capacidade de entrelaçamento das experiências de cada
etapa também faziam parte do processo de compreensão dessas. As próximas três seções
detalham essas três fases mencionadas.

Todo o processo foi registrado em vídeo, perfazendo em torno de quarenta horas de


documentação da pesquisa, o que auxiliou na análise do desenvolvimento de cada etapa. Os
registros foram realizados por mim, com a câmera parada na maioria das vezes.

3.2.1 Primeira Etapa – Desenvolvimento do estado pré-expressivo

Ser uma consciência, ou, antes, ser uma


experiência é comunicar interiormente com o
mundo, com o corpo e com os outros, ser com
eles em lugar de estar ao lado deles.

Maurice Merleau Ponty141

Tendo em vista que a cabotinagem performática possa estar vinculada a automatismos


de ações e condicionamentos corporais, a pesquisa teve como foco principal o estado pré-
expressivo do intérprete. Acredita-se aqui que o desenvolvimento do estado pré-expressivo
para o processo criativo coloca o intérprete em contato sensível com sua problemática e
potencialidade corporal, podendo propiciar o reconhecimento, compreensão e percepção mais
aprofundada dos padrões corporais físicos e psicológicos, auxiliando no trabalho com esses
automatismos e condicionamentos.

É na fase pré-expressiva onde se tem a possibilidade do entendimento da expressão


pela vivência do estado anterior a sua manifestação, onde passamos por ela sem
racionalidades e sem a “preocupação com a expressão artística em si”.142 Entendo como
expressão ou corpo expressivo aquele imbuído de afeto e de significado de existência.

140
BARTHES, Rolland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castanon Guimarães. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
141
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p142.
142
FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator. Campinas, SP: Ed. da
Unicamp, 2003, p 99.
69

Segundo a abordagem que proponho nesta presente pesquisa, a pré-expressão é um nível onde
o intérprete está comprometido inicialmente com a percepção e compreensão de seus estados
corpóreos e emocionais. É o nível que se ocupa principalmente da vivência de estados
corporais e psicológicos diversos, podendo levar à compreensão desses estados e da energia
gerada a partir deles e provocar, então, o estado de presença cênica ativa e atenta, e a
dilatação corpórea.

É importante lembrar que esta pesquisa se insere em processos criativos de


colaboração coletiva, onde o intérprete é considerado como co-autor do processo. Segundo
esta concepção, exige-se do intérprete habilidades para solucionar problemas em diversas
vertentes, seja na expressividade, na comunicação com o outro, na escuta, na clareza da
interpretação, seja no domínio corporal e na criatividade. Sem a pretensão de contemplar
todas essas exigências, mas acreditando poder despertar o desenvolvimento de algumas delas
no decorrer do processo, iniciamos a pesquisa com o estímulo à expressão corporal pessoal, à
descabotinagem, à disponibilidade do potencial expressivo e criativo do intérprete, e sua
consciência, juntamente com aquilo que o influencia no sentir, agir e reagir.

Esta primeira etapa da pesquisa teve duração de quatro meses, nos quais adotamos a
seguinte rotina de trabalho para o desenvolvimento e prática do estado pré-expressivo:
técnicas MA e BMC, e exercícios MVA, AL e IA realizados em duplas; roda do improviso/
improvisos solos livres; roda do diálogo; sessões de vídeos de registros do processo e relatório
escrito da experiência.

Durante esses quatro meses os participantes da pesquisa realizaram diariamente as


técnicas e exercícios propostos, bem como uma série de variações desses. A aplicação das
técnicas e exercícios seguiu o modelo do MA, realizados sempre em duplas, enquanto um
experimenta o exercício proposto executando-o propriamente, o outro experimenta o exercício
observando seu parceiro, ocorrendo em seguida a troca de papéis. Após essa dinâmica os
pares, ou o grupo, dialogam sobre a experiência, trazendo para a discussão coletiva pontos
percebidos e não percebidos, ou constatações das sensações em relação à experiência vivida.

Nessa etapa, o trabalho se emoldurou mais enfaticamente num contexto psicológico do


intérprete, onde, em decorrência da vivência de determinados exercícios, assuntos pertinentes
70

desse campo se revelaram. 143 Como o MVA, o BMC e o MA tem como características
suscitar auto-questionamentos foi a partir da vivência desses exercícios e técnicas, juntamente
com os improvisos livres, que os intérpretes se confrontaram com condicionamentos,
limitações, desejos e assuntos relacionados a suas memórias afetivas e seu modo de ser. O
depoimento de Dorka Hepp, participante da pesquisa, ilustra esses momentos:

Para o último improviso [...], eu admito que não estava (e estou) nem um
pouco convencida do que iria fazer e do que acabou sendo. Eu não sei, estou
indo muito numa direção meio “pesada”, meio “dramática” demais, e estou
começando a ficar entediada com isso. Pareço que não saio daquilo, e para
ser sincera, nem sei de onde vem! Mas o fato é que isso sempre volta e
aparece nos meus improvisos. Acabo me achando uma pessoa chata,
dramática, repetitiva, pouca criativa e pouco feliz. Bom, mas talvez eu tenha
justamente que esgotar este lado meu para ver onde ele possa me levar. O
que eu vou poder extrair dele. Talvez até não seja nada, mas isso só vou
poder descobrir mais tarde. [...] Não quero me “forçar” a nada, quero poder
ter o tempo de fazer as coisas do jeito que eu achar melhor para mim, e eu
mesma fazer as minhas escolhas. Ou seja, agir de uma forma que sempre me
foi negada quando eu era pequena: as pessoas escolhiam tudo para mim, e
pior, me diziam até o que deveria sentir, dizer e achar. Acredito então, que o
meu caminho seja este: me libertar, libertar este grito do qual falei no início
do processo, e que me persegue há muito tempo. Pegou um tom terapêutico,
eu não queria que isso acontecesse, mas eu vejo que preciso passar por isso
para poder seguir em frente. E, aliás, como poderia fazer um movimento
autêntico se eu mesma não sou autêntica, e para isso, eu devo me conhecer
por inteira.

No desenvolvimento do estado pré-expressivo o intérprete é levado a encarar os


questionamentos que emergem a respeito de sua personalidade, de seu corpo, de sua
identidade e da visão de mundo que possui, pois ele deve compreender que isto está
diretamente vinculado à forma como expressa e organiza seus pensamentos e movimentos
corporais, afetando na maneira como ele desenvolve seu estado de presença cênica. A
proposta de descabotinagem da pessoa sempre irá deparar-se com o trabalho sobre si, e isso
certamente envolverá um processo terapêutico. Apesar de o processo permear constantemente
questões terapêuticas impossíveis de não serem tocadas, sempre nos preocupamos de
estarmos conectados fundamentalmente à criação artística.

Embora essa atmosfera terapêutica não fosse o foco do trabalho, não refutamos em
trabalhar, coletivamente com ela, colocando sua discussão como mais um elemento facilitador

143
Exercícios descritos no Anexo 1.
71

da compreensão do processo de cada um dentro dessa experiência. Entretanto, não foi nosso
interesse aprofundar, na pesquisa, as questões terapêuticas, apesar delas terem influências
significativas naquilo que está sendo exposto e expressado com o corpo. Nos valemos desta
possibilidade, com a preocupação de direcionar os discursos para o processo artístico/criativo,
e não terapêutico. Conduzi esse processo de forma intuitiva e buscando mais escutar, do que
apontar problemas ou soluções. Na ocasião do início do processo da pesquisa Marília Márcia
Santos Pereira, psicóloga e ex-bailarina, que estava fazendo aulas de balé com o Basirah, se
interessou em acompanhar alguns ensaios. Em conversas particulares com Marília pude ter
uma opinião profissional sobre o comportamento psicológico de cada intérprete dentro do
processo da pesquisa, além de feedbacks a respeito de minha condução das pessoas no
processo como um todo. Este contato com Marília de alguma forma me deixou um pouco
mais tranqüila para dar continuidade ao processo iniciado, pois acredito que seja necessário,
como condutora da pesquisa, ter controle sobre maior parte das situações, no sentido de
amenizar tensões que acontecem com os intérpretes e nas relações que se estabelecem durante
o processo, caso contrário, esse tipo de processo pode desencadear outros processos que
desvirtuem a proposta da pesquisa.

Figura 7 – Dorka Hepp –improviso solo livre sobre a frase


‘Eu num quarto branco. É assim...’144

144
Foto retirada da imagem do registro de vídeo de um dos ensaios privados.
72

Para o desenvolvimento do estado pré-expressivo no intérprete partimos para o


trabalho de autoconhecimento por meio do corpo, ações, atitudes e relações, chamando sua
atenção para uma percepção ativa das vivências experienciadas. Vivenciar uma experiência
significa, aqui, nas palavras de Hans-Georg Gadamer, “ainda estar vivo quando algo
acontece”,145 é aprender algo real sem mediações, de forma direta. Além disso, é não só se
colocar disponível e atento para a experiência, como também se colocar dentro da própria
experiência, vivendo-a e se impregnando dela. Em estudos realizados por Gadamer, sobre os
significados do que vem a ser ‘vivência’, encontramos que um desses significados,

consiste em compreender a obra a partir da vida.[...] Algo se transforma em


vivência na medida em que não somente foi vivenciado mas que o seu ser-
vivenciado teve um efeito especial, que lhe empresta um significado
permanente. O que se torna uma “vivência” desse modo ganha um status de
ser totalmente novo na expressão da arte.146

Realizar essa primeira etapa sob a perspectiva da vivência foi importante para realçar
que o compromisso do intérprete, neste momento, era de disponibilidade para vivenciar com
seu corpo as técnicas e os exercícios propostos. Praticando-os sob a óptica da vivência,
poderíamos ampliar a percepção para o estado pré-expressivo, potencializando seu
desenvolvimento, na medida em que se vivendo intensamente e inteiramente a experiência, a
pessoa poderia entrar em contato com a unidade central do que está sendo vivenciado naquele
momento. O conceito e experiência de ‘vivência’ também pode assumir um caráter de
profundidade e permanência, de algo inesquecível e insubstituível, onde as coisas vivenciadas
não são esquecidas rapidamente, “sua elaboração é um longo processo e justamente nisso
reside seu ser específico e seu significado e não somente no conteúdo experimentado
originariamente”.147

Num primeiro instante, o intérprete deve ser lançado a vivenciar a experiência como
acontecimento bruto, onde “o mundo e a consciência, o dentro e o fora não estão separados,

145
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I – Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica.
Trad. Paulo Flávio Meurer. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 1997, p105. Para mais informações sobre este assunto,
Gadamer apresenta um estudo sobre a formação do conceito e significado da palavra ‘vivência’ na obra citada, pp
104-117.
146
Idem, p106.
147
Idem, p113.
73

eles são interdependentes”,148 deve se colocar na experiência antes da cisão mundo-corpo


provocada pela atitude da reflexão. Maurice Merleau Ponty cita que para a experiência do Ser
Bruto :

Torna-se necessário então recomeçar tudo de novo, rejeitar os instrumentos


adotados pela reflexão e pela intuição, instalar-se num local em que estas
ainda não se distinguem, em experiências que não foram ainda ‘trabalhadas’,
que nos ofereçam concomitantemente e confusamente o ‘sujeito’ e o
‘objeto’, a existência e a essência, e lhe dão, portanto, os meios de redefini-
los .149

Segundo Marilena Chauí, o Ser Bruto’ de Merleau-Ponty, “é o ser de indivisão, que


não foi submetido à separação (metafísica e científica) entre sujeito e objeto, alma e corpo,
consciência e mundo, percepção e pensamento”.150 O Ser Bruto é o ser que integra e que se
vincula à totalidade, é aquele que está no mundo, naquilo que existe, ou pelo contrário, que
aquilo que existe esteja nele.151

Deixar o intérprete em estado de Ser Bruto é propor a ele a fusão do avesso e do


direito de si mesmo, buscando provocar-lhe o encontro com vários estados de corpo suscitado
pelas técnicas e exercícios. É jogá-lo em um estado de amorfia pela aliança de si com o
mundo na tentativa de lhe revelar um leque de expressividade corporal mais alargado, além de
lhe proporcionar a experiência da expressão própria, aquela que explicita sua singularidade,
que traz em si um significado próprio. O intérprete deve vivenciar a experiência sem travas,
sem julgamentos, para então permitir a liberação e compreensão de sua história pessoal e
corporal.

Recomeçar tudo de novo para viver o ‘Ser Bruto’ não significa rejeitar ou negar aquilo
que o intérprete adquiriu no seu processo de formação como tal, mas aliar as coisas em
direção a uma maior compreensão delas. Na experiência do estado do Ser Bruto'
, o corpo
deve se revelar como processo de sua própria história no contexto do aqui e agora. Na
tentativa de se alcançar este estado de Ser Bruto'
, foi preciso exercitar continuamente e

148
MACIEL, Sônia Maria. Corpo invisível: uma nova leitura na filosofia de Merleau-Ponty. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1997, p87.
149
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. Trad. José Artur Gianotti e Armando Mora. São
Paulo: Ed. Perspectiva, 2003, p127.
150
CHAUI, Marilena. Experiência do pensamento: Ensaios sobre a obra de Merleau Ponty. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p153.
151
MERLEAU-PONTY, Maurice. Op.cit, p156.
74

introjetar os princípios do não julgamento, da observação atenta, da escuta aberta, encarando


as vivências das técnicas e exercícios desta etapa da pesquisa como a parte propulsora do
processo, o mote principal para se chegar ao estado pré-expressivo.

Nesta fase o princípio do não julgamento foi exercitado com bastante ênfase. No
momento de compartilhar e dialogar sobre a experiência vivida, tinha-se a preocupação de
conduzir a situação de forma mais a questionar o relato da experiência em detrimento a tentar
solucionar ou definir determinados problemas que pudessem surgir. Deixando as questões em
aberto, sem ter que solucioná-las de imediato, abria-se a perspectiva para uma reflexão mais
aprofundada da situação, ampliando-se as possibilidades de solução sem confiná-las a um
resultado único.

Com base em improvisos solos livres realizados freqüentemente, a roda do improviso


consistiu na exposição do intérprete ao grupo participante do processo, acontecendo em dois
momentos. Primeiramente, no momento da vivência imediata do exercício pelo intérprete,
sem elaboração anterior. E segundo, na apresentação do improviso solo, onde alguns
parâmetros eram definidos anteriormente à sua exposição.

Alguns exercícios foram realizados de modo a permitir a interferência dos integrantes


da roda na improvisação do solista, por meio de perguntas, percepções, sugestões, exposição
verbal dos sentimentos. Essa dinâmica foi realizada a partir de improvisos solos livres, sem
condicionar o dançarino a movimentos específicos. O dançarino improvisava a partir de seu
próprio desejo, estimulado pelas técnicas e exercícios desta etapa. O improviso não
necessitava ser realizado com finalidade coreográfica (produção de movimentos em
seqüências ordenadas de passos que se deslocam num tempo e espaço específico). O
intérprete era estimulado constantemente a experimentar possibilidades que não fossem
convencionais a ele como foi o caso do exercício em que cada intérprete deveria me
apresentar algo que eu nunca tivesse visto ele fazer, ou improvisar sobre algum desejo nunca
explicitado por ele. Sobre essa situação Dorka nos fala:

Quando veio o segundo improviso “me mostre alguma coisa que eu nunca vi
você fazer”, aí eu pensei: “estou frita”. Como eu vou mostrar alguma coisa
que ela nunca viu se eu mesma nunca me vi fazer alguma coisa diferente,
afinal sou uma pessoa MUITO normal, que nunca faz coisas diferentes! Mas
bem, eu também tinha resolvido não me importar de novo com o resultado
final... E incrivelmente, foi muito menos sofrido de que para o primeiro
improviso. Não quis me torturar para achar algo “interessante” para mostrar,
e decidi ir pelo mesmo caminho da outra vez. Por isso, eu procurei pensar na
minha vergonha, no meu desconforto em fazer algumas coisas. Esse seria
75

meu “Start”. Aí me veio a idéia dos palavrões. Era bastante simples, mas não
havia erro. Eu até achei divertido fazer.152

Importante salientar que toda e qualquer manifestação corporal da pessoa poderia ser
aproveitada para uma situação de dança, no sentido de se valer da expressão de algo que se
sente, seja pela voz, pelo gesto, pelas várias formas de respirar, pela exploração do espaço
com o corpo etc, como função estética. A produção do movimento já estava contida nessas
manifestações, e o dançarino deveria estar atento a elas, atento ao seu corpo e ao que se
manifestava nele.

De certa forma, nesta fase inicial do processo, foi preciso esquecer o movimento como
fim e voltar-se ao corpo como fonte de tudo, e ‘deixar acontecer’ ao invés de ‘fazer
acontecer’, percebendo o vínculo da expressão manifesta no corpo e seu sentido de existência.
Assim, buscou-se revelar ao intérprete outras possibilidades de reorganização de seu corpo e
do movimento, mobilizando-o para a expressão a partir de seu sentido de existência.

A roda de diálogo era o momento para se falar sobre as experiências do processo


vivenciadas no dia. Ao final de cada encontro, realizávamos uma roda, onde a proposta era
expor verbalmente as percepções, emoções, incompreensões, questionamentos, além da
tentativa de, em grupo, encontrar conexões gerais sobre o processo criativo. O diálogo ao final
de cada ensaio foi o que proporcionou a muitos intérpretes um pensamento reflexivo atuante
durante todo o processo como relata Márcia Lusalva, outra participante da pesquisa,

nas rodas de conversas permito que as inquietações dos outros me


contagiem, me estimulem e me desafiem e por aí o processo vai numa
recombinação continuas de estímulos, vontades e perguntas. Todas as
identidades emparelhadas e expostas, e da sobreposição de todas elas
estabelecemos referencias, contrastes, igualdades, diversidade e às vezes
chegamos a respostas pessoais (subjetivas e objetivas) ou em consenso. [...]
A mudança estrutural p/ mim são as rodas de conversas que me acrescentam
imensamente, pois é nesse momento em especial que a troca se promove que
podemos perceber com mais clareza os estímulos e caminhos de criação. E o
próprio ato de verbalizar sobre a experiência nos obriga a pensar,
compreender o que geralmente é só vivenciado de maneira inconsciente. [...]
Nesse processo saímos da dinâmica de praticar uma arte de estimulo e
resposta e passamos ao “diálogo”.

Muitos temas relacionados à prática da atuação foram levantados nesses diálogos, tais
como a exposição do real no universo da atuação, a tentativa de se fugir de condicionamentos

152
A próxima seção apresentará a idéia célula resultante do segundo improviso de Dorka.
76

e automatismos gerados pela representação, o controle da expectativa em relação à ação, ao


público e a outro intérprete, o tipo de formação profissional do dançarino, dentre outros temas
que suscitaram muitas discussões. Esse era o momento onde se promovia a troca e o estímulo
à reflexão dos caminhos da criação.

Cada experimentação de um novo exercício foi registrada em vídeo para facilitação


das análises, além de proporcionar ao intérprete mais uma ferramenta para o processo de
autoconhecimento e observação atenta. Segundo o depoimento de alguns intérpretes, a
imagem registrada servia de referência para adequação das expectativas que se tinha de
determinado improviso, determinado movimento ou estado corporal vivenciado, ajustar o
como me vejo ao que sou, ou como penso que ajo ao que realmente faço. Algumas dessas
sessões foram realizadas individualmente, onde eu, como condutora do processo, levantava
uma série de questões numa tentativa de suscitar no intérprete reflexões mais aprofundadas a
respeito do caminho do processo criativo traçado por ele até então.

Além dessa dinâmica, foi solicitado a cada intérprete que sempre escrevesse sobre
suas experiências e reflexões. Em novembro de 2004, após quatro meses de trabalho e
investigação sobre a primeira etapa, cada um apresentou um relatório sobre pontos que achou
importantes nessa fase e as percepções a respeito do estado pré-expressivo, que estão no
Anexo 2, onde também há um segundo relatório apresentado pelos intérpretes ao final da
terceira etapa em outubro de 2005.

3.2.2 Segunda Etapa – O espaço entre. A escolha do tema do espetáculo

O início da conscientização do meu centro


(utilização do abdômen), o exercício da escuta, a
aprendizagem do tempo e das minhas
ansiedades, a falta de controle do meu corpo, as
crises pessoais etc. Como pesquisar o orgânico
e depois marcá-lo? E como tornar o marcado
orgânico novamente? Como o intérprete pode se
manter presente em si em cena?

Márcia Lusalva

Considerando que o exercício do intérprete é um processo continuado, a segunda etapa


foi fundamental para assimilação da etapa pré-expressiva na compreensão dos estados
corpóreos e emocionais gerados. Foram realizados muitos exercícios de improvisação, já com
uma preocupação mais seletiva do material de movimento corporal e das cenas que iam
surgindo. Entretanto, o foco principal desta etapa foi sensibilizar-se para o processo de
77

construção e elaboração cênicas e das ações a partir da compreensão que se alcançou dos
estados pré-expressivos do corpo e do nível de apropriação e incorporamento dos princípios
da primeira fase.

Com o desenvolvimento do estado pré-expressivo do intérprete, partiu-se para a


escolha do tema do espetáculo. A temática não havia sido definida até então. Entretanto, foi a
partir das vivências e reflexões da primeira etapa que se chegou à consideração que a temática
deveria estar relacionada ao corpo, falar do corpo expressivo, e refinando mais ainda essa
idéia, falar das pessoas por meio da história de seus corpos.

Foram muitas conversas a respeito dessa temática. Passou-se a lembrança em tudo que
havia surgido durante o processo até aquele momento, o trabalho sobre o aparente e o oculto,
o dentro e o fora, a exposição e a proteção, a relação com o corpo em todos os sentidos, a
ficção e a realidade dentro do real e do imaginário etc. Além disso, foi se chegando a uma
concepção do espetáculo mais performática, onde a condição coreográfica estava calcada no
improviso corporal e cênico das idéias principais trazidas por cada intérprete. Não se via
coreografias propriamente ditas, com combinações de passos e seqüências elaboradas
musicalmente, mas sim um jogo de corpos em expressão que se manifestam em seus desejos,
carências e amores a partir da relação consigo e com o outro, dentro do tempo e espaço
cênicos.

Sugeri a cada intérprete trabalhar sobre aquilo que desejasse falar com seu corpo. A
pergunta então era: O que quero falar com meu corpo? O que quero fazer com meu corpo?
Logo, cada um deveria tentar responder a esta pergunta, escrevendo e desenvolvendo idéias a
esse respeito, com intuito de criarem pequenos solos, pequenas histórias pessoais.

Com o direcionamento de encontrar o que se quer dizer com o corpo sem abandonar o
que se escutou dele na primeira etapa do processo, cada solo foi se delineando e as histórias
foram sendo contadas corporalmente em contextos cênicos cada vez mais definidos. Uns
partiram de memórias da vida pessoal, ou ainda segundo a percepção do estado de algo atual
impregnado no corpo, como, por exemplo, o estado de carência do corpo. Outros tomaram
como início a necessidade de se transbordar cenicamente a relação entre real e imaginário.
Também alguns partiram da necessidade de se colocarem à prova de alguma coisa, de colocar
o corpo em risco, não no risco do corpo físico, mas no do corpo moral ou do corpo crítico.
Foram criados nove solos. São eles:
78

1. Dorka – Idéia célula utilizada vergonha de falar palavrões. Este solo foi baseado no
improviso realizado na primeira fase do processo criativo em que solicitei ao
intérprete fazer algo que eu nunca o tivesse visto fazer. Para Dorka falar palavrões
significou se colocar em risco, pois o fato de falar palavrões lhe dava muita vergonha
e desconforto. O outro motivo que a levou a esta idéia célula foi experimentar o seu
lado infantil. Dentro desta atmosfera Dorka foi experimentando sua relação com os
outros intérpretes, e com o público. A partir dessa idéia célula fomos investigando a
possibilidades de movimentos que estivessem associados com a vergonha. Dorka
deveria lançar bolas de papel em Lívia Frazão. Esse era um elemento do solo de Lívia,
entretanto Dorka incorporou-o ao seu solo utilizando-o para estabelecer relação com o
público. Para o espetáculo definimos que uma pessoa falaria os palavrões no ouvido
de Dorka para que ela os repetisse para qualquer um do público. Inicialmente
Alessandro ficou com essa função, entretanto algumas vezes experimentamos outro
intérprete realizando-a.

2. Alisson – Idéia célula utilizada escrever no corpo as dúvidas e questionamento


sobre o desejo de pertencimento. Esse elemento surgiu do improviso sobre a frase ‘Eu
num quarto branco. É assim...’. Alisson trouxe para seu solo alguns trechos de textos
de Clarisse Linspector mesclados com suas próprias escritas. Inicialmente somente ele
escrevia no seu corpo. À medida que fomos inserindo o solo no contexto do espetáculo
Alisson foi pedindo para que outras pessoas (os próprios intérpretes ou o público)
escrevessem em seu corpo também. Alisson poderia falar ou não o texto da cena
construída por ele. Essa decisão era tomada por ele no momento da cena.

3. Rachel - Idéia célula utilizada cantar comendo pão. Rachel teve como motivação a
idéia de estar sendo impedida de cantar. Essa idéia célula partiu de um dos improvisos
livres realizado no início do processo criativo e não teve nenhuma associação
específica e direta com alguma questão psicológica pessoal. Sua intenção era
simplesmente trabalhar com voz. Então lhe veio a idéia de construir uma cena onde ela
pudesse cantar e ao mesmo tempo ser impedida por alguém que lhe enfiasse pão na
boca sem parar. Essa cena foi se desenvolvendo para um jogo de fuga entre Rachel e a
pessoa que lhe dava o pão. No espetáculo incorporamos esse jogo utilizando todos os
intérpretes. Colocamos duas pessoas enfiando pão na boca de Rachel. No momento
em que Rachel tentava fugir dessas duas pessoas, para que ela pudesse continuar
cantando, todos corriam atrás dela. Quando ela parava todos paravam na sua frente
79

com o objetivo de testemunhar a cena entre ela e as duas pessoas que lhe davam o pão.
Nessa cena Rachel tinha liberdade para transitar entre o público, sentar-se ao lado de
algum espectador ou utilizar somente a região central do espaço cênico. Essa ação era
definida por ela no momento da cena.

Figura 8 - Rachel e Lina – exercício do espetáculo153

4. Márcia – Idéia célula utilizada o solo de Márcia não teve uma idéia centrada apenas
em um foco. A elaboração de seu solo partiu das várias vivências durante todo o
processo e os questionamentos suscitados nessas vivências como as perguntas ‘me
expor ou me proteger em cena?’, ‘mostrar meu desejo real, ou uma farsa?’, ‘dizer
sobre minhas intimidades?’, ‘não me julgar? Como?’, ‘mas isso é arte, ou é vida
real?’. Márcia foi elaborando uma síntese de suas vivências no processo até chegar em
seu solo e no texto onde ela diz algo como: “pensava que meu coração ficasse no
peito, mas ele escorregou para o pé e eu tive que tirar os sapatos para que ele pudesse
pulsar”, e também, “aqui dentro é lindo (aponta para sua cabeça), a vida é linda!”.
Durante o exercício do espetáculo Márcia tinha liberdade de falar com o público sobre
todos os seus questionamentos. Poderia falar sobrepondo a voz à música que toca na
cena, com a intenção de não ser ouvida pelo público, ou poderia esperar a música
terminar e começar o seu texto. Ela também poderia escolher entre falar o texto ou

153
Foto de Dalton Camargos tirada de um ensaio privado.
80

não. A cena construída por Márcia muitas vezes a fez chorar. Mas isso não
necessariamente significa uma definição fixa de se chorar na cena.

5. Lívia Frazão – Idéia célula utilizada sobre a sensação de se ver ‘sentada deixando a
vida passar’. Este solo foi sendo elaborado a partir de alguns improvisos realizados
por Lívia motivado pelas conclusões que chegou do processo criativo vivenciado. Em
conversas sobre o que levou Lívia a delinear esse solo ela nos diz que percebeu que
em sua vida está sempre esperando que algo aconteça, fica ‘sentada vendo a vida
passar’, e que isso lhe dava uma grande angústia, pois se sentia anestesiada para tomar
atitudes em relação a essa sensação. A partir dessa sensação Lívia trouxe uma
movimentação corporal associada a desconstrução, a falta de controle e sustentação do
corpo, ao abandono etc, o que a levou executar movimentos quebrados, com base no
deslizamento das articulações, no abandono muscular, levando o corpo a se mover
utilizando mais a estrutura esquelética. A vivência do sistema esquelético no BMC nos
ajudou a aprimorar o movimento e descobrir suas possibilidades. Na concepção de
Lívia alguém deveria lançar-lhe objetos (no caso do espetáculo Dorka lhe jogava bolas
de papel) para impulsioná-la a reagir, a tomar alguma atitude. Esse solo utiliza a
música “J’arrive à la ville” de Lhasa Sela escolhida pela própria Lívia.

6. Lina Frazão – Idéia célula utilizada Sobre a frase ‘mas, eu quero!’. O elemento de
Lina surgiu a partir de minha percepção sobre as atitudes de indignação dela em
relação a situações de seu dia a dia, que muitas vezes a levava a se sentir excluída
socialmente, como exemplo o dia em que ela entrou triste no supermercado e leu o
enunciado ‘Pão de Açúcar – o supermercado de gente feliz’. Esse tipo de situação
colocava Lina com uma sensação de liberdade podada, de restrição e de
enquadramento. A partir dessa sensação de exclusão e indignação perante essas
situações fomos investigando possibilidades de desenvolvimento do solo. Outro
elemento que Lina trouxe e que incorporamos no espetáculo foram as frases recortadas
de seu diário. Lina escreveu cada frase em uma folha de papel e ia mostrando essas
frases para as pessoas lerem. As frases eram: O mundo às vezes me ofende; às vezes
não; O mundo às vezes liquefaz as pessoas; O mundo recheia as pessoas de histórias;
O mundo faz as pessoas serem veementes; O mundo faz as pessoas serem míopes;
Para o mundo, o silêncio é uma ousadia; é que o mundo gira rápido demais; e há
movimento em demasia; até parece que o mundo não nos convida a ser sadios; O
mundo é mesmo bem cartesiano; Mas hoje, ele me veio singelo; Hoje eu olhei para o
81

mundo e vi TV e mil imagens sem som; Hoje eu vi a sutileza; as virtudes; e as


delicadezas.

7. Diego – Idéia célula utilizada Solo 1 - perguntar ao público ‘O que vocês querem
que eu faça?’. Essa idéia originou-se do improviso solo livre realizado por Diego na
segunda fase do processo criativo. Este solo partiu da solicitação que fiz aos
intérpretes para me falarem com o corpo o que desejassem. Nesse momento do
processo criativo como Diego se sentia muito perdido e com muitos questionamentos
em relação ao seu próprio corpo, achou que deveria perguntar aos outros intérpretes,
que o assistiam, o que eles gostariam de ver ele fazendo. Seu questionamento baseou-
se na constatação de que a imagem corporal própria que possuía era construída a partir
do que as pessoas achavam dele, e não pelo que ele mesmo achava. Além disso, Diego
quis trabalhar com a idéia de se expor para o outro. Para o seu improviso Diego
buscava interpretar as solicitações das pessoas (público) tentando fugir da literalidade
que os pedidos pudessem suscitar. Solo 2 – idéia célula expor o corpo, colocar o
corpo à prova da exposição e da exaustão demonstrando as próprias fragilidades.
Nesse solo Diego buscou explorar a exposição de seu corpo de forma mais explícita. A
cada realização desse improviso a exposição foi se tornando mais contundente, pois
Diego começa utilizar as próprias fragilidades como elemento para investigação e
realização de seu solo, como por exemplo se achar fora dos padrões corporais de
dançarino. Diego explora esse tema explicitamente para o público pegando na sua
gordura, se batendo e levando seu corpo à exaustão.

8. Alessandro – Idéia célula utilizada memória afetiva pessoal e movimentos baseados


nos órgãos. Assim como aconteceu com Márcia, Alessandro chegou ao seu solo a
partir das várias vivências e questionamentos suscitados no processo criativo. Foram
muitos os momentos que as temáticas de seus improvisos estiveram relacionados à
lembranças de sua infância e da perda de sua mãe quando tinha dois anos de idade.
Somado a este contexto Alessandro incorporou o trabalho do sistema dos órgãos
realizado nas vivências do BMC.

9. Lívia Bennet – Idéia célula utilizada girar o corpo sem parar, sempre para a mesma
direção. O solo de Lívia teve como inspiração inicial um improviso que fizemos sobre
fotos da família. Cada intérprete deveria trazer fotos que fossem marcantes de sua
vida. Após colocá-las expostas na parede da sala de ensaio cada um tentaria dançar a
82

sensação provocada pela situação de estar vendo as fotos, sem se fixar na lembrança
de alguma situação específica.

As músicas utilizadas no espetáculo foram, na maioria, trazidas pelos próprios


intérpretes.154 O fato de Alessandro cantar em dois momentos do espetáculo não foram
escolhas premeditadas, e sim partiram do desenvolvimento dos improvisos, sendo
incorporados posteriormente na estruturação do espetáculo. Em muitos momentos optou-se
também pelo desenvolvimento de cenas sem música, objetivando enfatizar o exercício da
escuta e do tempo cênico do intérprete com ele mesmo, com outro intérprete, com a cena e
com o público. No decorrer das apresentações públicas cada intérprete teve liberdade para
encontrar mais elementos ou ações e incorporá-las ao espetáculo, sem necessariamente
considerá-las como elementos fixos que deveriam acontecer sempre, como por exemplo
Dorka oferece pão para alguém do público próxima a ela, Lívia Frazão sugere trocar seus
óculos com o de alguém da platéia, etc.
A partir dessas histórias pessoais foi-se buscando chegar ao entendimento da
motivação central que gerava as escritas corporais. O termo escrita corporal, nessa pesquisa,
refere-se a célula de movimento resultante de uma gama de qualidades expressivas do corpo,
seu tônus muscular, sua densidade, sua velocidade, seu peso, e também seu gosto, sua
temperatura, sua paisagem etc, geradas a partir de um sentimento, emoção, memória e estados
do corpo que podem ser organizados em benefício da construção de uma dança. Essas
qualidades poderão ser compreendidas e exercitadas ao longo do processo criativo e também
no exercício do espetáculo. Dessa forma, vai-se tentando refinar a clareza do sentido de um
movimento corporal expressivo dentro de um contexto específico.

A expressão manifestada por meio do gesto e do movimento deveria ser abordada


como conseqüência de alguma motivação interna do intérprete, que gera uma qualidade
expressiva ativada por uma sensação no corpo, podendo ser uma sensação de um sentimento,
de uma emoção, uma sensação proveniente da percepção do estado corporal do momento, ou
mesmo pela sensação de um tônus muscular específico, provocado intencionalmente pelo
intérprete.

154
As músicas utilizadas foram “Wedding-Cocek” (momento do público entrando no teatro) e
“Underground Cocek” (solo Márcia) de Goran Bregovic, “J’arrive à la ville” de/com Lhasa Sela (solo Lívia
Frazão), “Donde estabas tu?” de Ernesto Duarte com Omara Portuondo (dança das camisolas e margaridas), “69
Frango assado” de/com Tati Quebra Barraco (solo Diego), “De tanto amor” de Roberto Carlos.com Claudette
Soares (solo Alessandro), “Por esso me quedo” de/com Lhasa Sela (solo Lívia Bennet).
83

Muitas motivações para as cenas emergiram do estado pré-expressivo. Ocorreu-me


que a definição da escrita corporal de cada solo deveria estar calcada mais especificamente na
consciência da sensação gerada por algum motivo específico, pois essa sensação é que
poderia revelar um estado corpóreo, uma qualidade expressiva distinta para a realização da
ação corporal. Antônio Damásio nos fala que, o corpo, por si só, já reage de forma adaptativa
em relação ao objeto que causou as alterações corporais, mesmo que esse objeto seja apenas
lembrado.155 Entretanto, minha sugestão é de que o intérprete possa desenvolver uma
compreensão cada vez mais apurada das sensações do corpo de modo a exercitá-las
independente do objeto que a causou.

Importante dizer que entendo como qualidade expressiva do corpo e das ações
corpóreas a qualidade de percepção e manifestação da sensação de um estado de corpo,
desencadeado por um estímulo qualquer, que provoca uma mudança no tônus muscular,
afetando a expressão. Por exemplo, se associo um sentimento de tristeza à deflagração de uma
contração muscular específica no corpo, isso me provoca uma sensação corporal que não é só
a contração muscular propriamente dita, devo perceber esta sensação no corpo como um todo,
pois essa contração irá afetar a respiração, a forma de olhar, a entonação da voz, o fluxo
sanguíneo etc, gerando uma qualidade expressiva corpórea. Ou seja, me provocou uma
sensação do estado de corpo triste acionado por uma situação de tristeza. Este estado de corpo
é a conjugação de uma série de transformações que ocorreram nesse corpo. Se, entendo meu
corpo triste, meu corpo carente, meu corpo em amor enquanto sensação corporal, talvez eu
possa integrar todo meu corpo na manifestação da expressão destes estados e me beneficiar
dessas faculdades internas em detrimento à imagem externa que se cria para atuar
determinada situação. A idéia é favorecer a atuação do estado de corpo ao invés da
representação de um estereótipo de uma situação externa vivida pelo intérprete, como uma
situação de felicidade. Sugiro, então, que o intérprete deve objetivar um trabalho sobre a
qualidade da percepção da sensação corpórea e da atualização do estado corporal gerado por
estímulos diversificados no momento da ação, além de como este estado de corpo materializa-
se em expressão e movimento no momento da criação e da atuação.

O treinamento das ações físicas, das habilidades corporais é importante para o


intérprete, mas não é tudo. Ele necessita ter o entendimento dessas ações em todas as

155
DAMÁSIO, António. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano.Trad. Dora Vicente e
Georgina Segurado. São Paulo: Companhia das Letras. 1996, p161.
84

dimensões que puder alcançar, na física, na psicológica, na espiritual e talvez ele tenha a
oportunidade de alcançar essas dimensões vivenciando o próprio corpo e seus afetos. Jerzy
Grotowski nos reforça essa idéia dizendo que

o ator deve atingir (não tenhamos medo do nome) um ato total, que faça
qualquer coisa com todo seu ser, e não apenas um gesto mecânico (e,
portanto, rígido) de braço ou de perna, nem uma expressão facial ajudada
por uma inflexão e um pensamento lógico. Nenhum pensamento pode
orientar todo o organismo de um ator de forma viva. Deve estimulá-lo, e isso
é tudo o que um pensamento pode realmente fazer. Sem compromissos, seu
organismo pára de viver, seus impulsos crescem superficialmente. Entre uma
reação dirigida por pensamento, há a mesma diferença que entre uma árvore
e uma planta. Como resultado final, estamos falando da impossibilidade de
separar o físico do espiritual. O ator não deve usar seu organismo para
ilustrar “um movimento da alma”; deve realizar este movimento com seu
organismo. 156

Com a codificação dos movimentos e o encontro das partituras corporais o desafio do


intérprete passa a ser, talvez, segundo a perspectiva apontada acima, o de agenciar as
sensações corporais entendidas e incorporadas por ele no estado pré-expressivo, buscando
atualizar constantemente o sentido do que se torna codificado enquanto forma. Os caminhos
para essa atualização talvez possam ser vislumbrados a partir do exercício continuado do
estado pré-expressivo, pois esse parece propor um devir constante do intérprete, e é nele que
as sensações corporais estão mais afloradas.

Na tentativa de se efetuar um diálogo entre as etapas, criou-se um jogo das polaridades


gerado a partir da tensão entre os aspectos trabalhados na primeira etapa e aqueles solicitados
na segunda etapa do processo criativo. A tabela a seguir explicita mais claramente esta tensão.

156
GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Trad. Aldomar Conrado. 3ªed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira,1987, pp97-8.
85

Quadro 3 – Aspectos conflitantes entre a 1ª e 2ª etapas do processo criativo

Aspectos trabalhados na 1ª etapa Aspectos trabalhados na 2ª etapa

Exercício do não julgamento Exercício de seleção envolvendo senso crítico

Prática do desapego, não se apegar a nenhuma Prática da fixação. Fixar aquilo que foi considerado
qualidade específica de movimento ou atitude. bom e funcional para a cena.

Controle. Não extrapolar demasiadamente as idéias


Permissão. Dar vazão a toda idéia de movimento
cênicas e os movimentos gerados a partir delas.
ou pensamento que surgir, deixando o corpo livre
Preocupar-se em manter o controle sobre o
para se manifestar como quiser.
desempenho da atuação.

Deixar acontecer. Deixar o corpo se expressar da Fazer acontecer. Provocar ações precisas para
maneira como quiser. desencadeamento das idéias cênicas.

Experimentar a realidade sem atuá-la. Atuar.

Atuar no processo criativo significa aqui viver sem pudor o que se atua no momento
da encenação, acreditar na ação assumindo-a convictamente como sua, como parte de você, e
não como uma representação de um outro (personagem). Grotowski nos aponta esta idéia
quando nos fala sobre o ato total:

Quando digo que a ação – se não se quer que sua reação fique sem vida –
deve absorver toda a personalidade do ator, não estou falando de algo
“externo”, como os gestos e truques exagerados. Que quero dizer, então? É
uma questão que envolve a própria existência da vocação do ator, de uma
reação, de sua parte, que lhe permita revelar cada um dos esconderijos da sua
personalidade, desde a fonte instintivo-biológica através do canal da
consciência e do pensamento, até aquele ápice tão difícil de definir e onde
tudo se transforma em unidade. Este ato de total desnudação de um ser
transforma-se numa doação do eu que atinge os limites da transgressão das
barreiras e do amor. Chamo isto de um ato total.157

Também Renato Cohen nos coloca que o ator e, nesse caso, o dançarino, não pode
‘ser’ e ‘representar’ ao mesmo tempo. Existe a “impossibilidade física de dois corpos
ocuparem o mesmo lugar no mesmo instante, e também a impossibilidade psíquica de haver
dois egos numa só psique”. 158 Seguindo este pensamento acredito que o intérprete deve jogar
com este paradoxo numa tentativa de diminuir esta lacuna entre ser ele mesmo e aquilo que
está atuando, pois, continuando com a fala de Cohen,

157
GROTOWSKI, Jerzy. Op.cit., p105.
158
COHEN, Renato. Performance como linguagem. 2ed. São Paulo: Perspectiva, 2004, p94.
86

alguém nunca pode estar só “atuando”: primeiro, porque não existe o estado
de espontaneidade absoluta; à medida que existe o pensamento prévio, já
existe uma formalização e uma representação. Mesmo que o personagem
seja auto-referente. Ainda assim haverá o desdobramento. Segundo, porque
sempre que estamos atuando (e isso é extensível para todas as situações da
vida) existe um lado nosso que “fala” e outro que observa. Essas situações
limites não são da esfera do humano ou, se o são, pertencem àqueles
momentos de transcendência, visualizados por Artaud, e atingidos por seres
privilegiados em momentos de oniconsciência, de perda do ego individual,
denominados pelos orientais como samadhi. É interessante que nessa
situação paradoxal os dois extremos se tocam: eu não sou mais “eu” e ao
mesmo tempo eu não “represento”.159

Outro conceito que objetiva apagar a dualidade do momento entre ser e atuar é o de
corpo-subjétil, definido por Renato Ferracini, ancorado em Antonin Artaud. Segundo
Ferracini o corpo-subjétil é o corpo que lida ao mesmo tempo com seu comportamento
cotidiano e extracotidiano, que lida com a forma e a vida, com a objetividade e a
subjetividade, com a técnica e o caos, não sendo nem um, nem o outro. É o corpo “entre
polaridades que se completam”.160 E ainda, continua Ferracini

o corpo cotidiano e o corpo-subjétil são um só e mesmo corpo que possuem,


no máximo, alguns comportamentos diferenciadores e são esses
comportamentos que nos permitem caracterizar, dentro desse corpo múltiplo,
um corpo com comportamento cotidiano (corpo cotidiano) e esse mesmo
corpo ampliado e vetorizado com um comportamento intensivo (corpo-
subjétil). 161

Mas também, como considera Ferracini, o corpo-subjétil não é só esse ‘corpo-entre’


senão um único corpo em expansão, oriundo do corpo cotidiano, que abarca todas as
multiplicidades de corpos, ações, comportamentos e zonas possíveis numa relação dinâmica
em direção ao uso artístico. O corpo-subjétil, segundo sua afirmação, não é um termo
dualista, mas “uma espécie de vetorização e transbordamento do corpo cotidiano” no
momento da atuação, e não pode ser visto como um ponto, ou como um corpo fixo e definido,
localizado de maneira exata, pois ele é exatamente um fluxo de ações e relações acontecendo
no aqui-agora que o redefine e que se desvanece a cada instante.162

159
Idem, p96.
160
FERRACINI, Renato. Corpos em criação, café e queijo. 2004, 345 f. Tese de Doutorado em
Multimeios, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, 2004, p77.
161
Idem, p79.
162
Idem, pp85-90.
87

A segunda etapa da pesquisa se deu, principalmente, pela tentativa de buscar uma


mediação e diálogo dos conflitos gerados pelos paradoxos entre o desenvolvimento do estado
pré-expressivo, que consiste num trabalho aprofundado do corpo cotidiano, e as atividades
solicitadas pelo processo criativo na fase de elaboração do espetáculo, que consistiu na
definição e estruturação do material a ser encenado. Assim, nessa etapa acentuou-se a
importância de se trabalhar com as polaridades, abordando-as como co-integrantes de uma
ação e aceitando que a existência dos opostos é fundamental para o exercício da presença
ativa na atuação. Luigi Pareyson nos fala que,

na arte, empenho e jogo, adesão e distanciamento, responsabilidade e


evasão, funcionalidade e gratuidade encontram-se e colaboram entre si, e, se
tal colaboração e compatibilidade pode parecer misteriosa, dever-se-á dizer
que não é este o único aspecto paradoxal desta atividade que é, certamente, a
mais complexa enigmática das atividades humanas.163

Se num primeiro instante temos que dar vazão à fruição dos sentidos, dos sentimentos
e das emoções que geram estados de corpo distintos, num segundo momento devemos ainda
estar exercitando esta fruição, mas em benefício de uma ação cênica colocada num contexto
específico, e que também sofre interferências de fatores externos à própria emoção e
sentimento vividos no momento. Dessa forma, atualiza-se e reconfigura-se o estado corpóreo
que se manifesta na expressão do movimento.

O jogo das polaridades parece colocar o intérprete numa zona de instabilidade entre a
ação de provocar algo no corpo e a ação de esperar sem expectativas, obrigando-o estar atento
às situações com todo seu corpo engajado no aqui e agora.

Em função do intérprete se valer de uma série de possibilidades para a composição de


seu solo, no contexto do espetáculo ele pode, em muitos momentos de seu processo, entrar em
situações de caos total da experiência, perdendo o ponto que o norteia, fazendo-o cair
novamente na cabotinagem. Portanto, é importante exercitar constantemente todos os
princípios trabalhados na primeira etapa, buscando manter viva e consciente a experiência
sensível do que está sendo vivenciado.

Essa vivência consciente da experiência sensível é que talvez possa oferecer ao


intérprete a possibilidade de se visualizar um eixo que o conduza na criação, embora, ao

163
PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. Trad. Maria Helena Nery Garcez. São Paulo: Martins
fontes, 2001, p41.
88

mesmo tempo, esta ‘tentativa’ de viver a experiência sensível de forma cada vez mais
consciente pode ser sufocante e paralisante para o momento criativo. O exercício da
‘consciência’ e da ‘tentativa’ em demasia pode levar à cristalização da percepção, ao
sufocamento da escuta, eu me vicio em ter que perceber. Voltar-se à escuta do corpo e sua
sensação no momento da experiência pode parecer um caminho para se manter a calma e a
escuta interna, ampliando este sentimento para as ações a serem realizadas. Também devemos
encarar que o aspecto da consciência a ser trabalhado deve ser no sentido da “consciência
libertadora”, não para cristalizar o que se encontra, mas para, a partir da consciência que se
chega, exercitar a liberdade das ações, entender seus fluxos. Em alguns momentos do
processo desta pesquisa, a impressão que se tem é que ter consciência “dói”. Grotowski vem
nos lembrar da expressão “crueldade é rigor”, utilizada por Artaud, que nos indica que a
conjunção dos opostos, espontaneidade e disciplina, pode originar o ato total, ou que, “a
anarquia e o caos devem estar ligados a um sentido de ordem”,164 e ainda de que “esta noção
de que a espontaneidade e a disciplina, longe de se enfraquecerem uma à outra, reforçam-se
mutuamente; de que o elementar alimenta o elaborado”.165 A partir dessa abordagem foi-se
dando o processo criativo, onde as histórias a serem contadas tornavam-se mais claras. O
processo de construção e de exercício do espetáculo foi calcado na busca de se manter o
estado pré-expressivo vivo e atuante no contexto cênico, como será apontado na próxima
seção.

3.2.3 Terceira Etapa – Laboratório cênico - o exercício do espetáculo

O que torna possível a experiência criadora é a


existência de uma falta ou de uma lacuna a
serem preenchidas, sentidas pelo sujeito como
intenção de significar alguma coisa muito
precisa e determinada, que faz do trabalho para
realizar a intenção significativa o próprio
caminho para preencher seu vazio e determinar
sua indeterminação, levando à expressão o que
ainda e nunca havia sido expresso.

Marilena Chauí.166

164
GROTOWSKI, Jerzy. Op.cit., p99.
165
Idem, p96.
166
CHAUÍ, Marilena. Experiência do pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Pulo:
Martins Fontes, 2002, 152-3.
89

No exercício do espetáculo configura-se um jogo improvisado entre o intérprete com


ele mesmo, com os outros intérpretes, com a cena e o público. Entra-se efetivamente no que
Ferracini chamou de ‘zona de turbulência’, ou ‘zona de jogo’, “zona que está ‘entre’ minhas
ações físicas, matrizes, estados, o espaço, o outro e o público e que afeta e é afetada”.167
Segundo Ferracini, nessa zona de turbulência pode ocorrer “modificações e
redimensionamento instantâneo em potência da matriz”,168 que no nosso caso seria
modificações e redimensionamento das idéias células e talvez da própria estrutura do
espetáculo. Nesse jogo o intérprete deve observar, atentamente, com uma escuta aberta,
buscando perceber o momento de se desapegar de determinada decisão para favorecer a cena,
ou permanecer numa idéia de movimento que possa resultar num diálogo com outro intérprete
ou, até mesmo com o público, explorando e transbordando suas possibilidades. Também ele
deve buscar perceber o momento de dar o suporte ao outro para exploração da idéia lançada
pelo companheiro de cena, além de tentar perceber as energias provenientes da conjunção das
tensões entre público, espaço, intérpretes e tempo que o afetam. Sônia Azevedo nos fala que
“o ator precisa dar conta dos trajetos do que é visível e do que é invisível em suas ações; saber
observar-se à sua produção exterior sem perder o eixo da concentração interior”.169

No decorrer do processo observou-se uma busca pela flexibilização dos princípios e


elementos pertinentes ao processo criativo, numa tentativa de se valorizar mais enfaticamente
o exercício da interpretação e o espaço para investigação do material próprio de cada
intérprete. Também buscou-se dissolver prováveis estruturas rígidas, às vezes utilizadas em
concepções coreográficas com pouca permissividade para exploração da expressividade e das
possibilidades que aí se encontram.

Após a definição das histórias pessoais que levaram à construção do solo de cada
intérprete, trouxemos uma concepção de espetáculo voltada para uma composição cênica e
coreográfica mais livre. Uma trama onde houvesse elementos, estados de corpo, células de
ações e movimentos isolados que pudessem se organizar e reorganizar de diversas formas, de
acordo com as situações cênicas que fossem aparecendo, permitindo ao intérprete exercitar a
reorganização constante de suas ações e estados corporais em um jogo.

167
FERRACINI, Renato. Op.cit., p176.
168
Idem, p176.
169
AZEVEDO, Sônia Machado. O papel do corpo no corpo do ator. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2002,
p122.
90

Paralelamente à construção dos solos foram desenvolvidas e definidas cinco células de


movimentos e de ações. Essas células e ações foram inspiradas nas observações em relação
aos desejos, dificuldades, prazeres e anseios dos intérpretes apresentados no processo de
elaboração de seus solos. A primeira célula de movimento e ação consiste no deslocamento
livre dos intérpretes para qualquer lugar do espaço de encenação, e em qualquer momento do
espetáculo. Considerando espaço cênico tanto o espaço onde grande parte das cenas ocorrem,
como o espaço utilizado pela platéia, o intérprete pode transitar livremente por esses espaços
buscando unificá-los. O intérprete deve carregar sempre consigo seu banco para se sentar. O
banco foi o principal objeto cênico comum de cada intérprete. Ele surgiu a partir de uma idéia
cênica de que todos os intérpretes deveriam ter um objeto em comum que os identificassem
como integrantes de um mesmo espaço coletivo e colaborativo de atuação e trabalho. O banco
também significou a possibilidade de interação mais direta de um intérprete com os outros e
com o público, na medida que ele o utiliza para se aproximar, afastar, compartilhar ou negar a
relação com o outro.

A segunda célula refere-se à frase coreográfica com ombros contraídos juntamente


com a dança das camisolas. Na estrutura do espetáculo essa seqüência de movimentos com
ombros contraídos acontece entre o solo de Lina e o solo de Diego e é realizada no meio do
espaço cênico. O número máximo de intérpretes que podem executá-la juntos nesse momento
do espetáculo é três, podendo também ser realizado por dois ou apenas um intérprete. Durante
a execução dessa célula, que é realizada com a música “Donde estabas tu?” de Ernesto
Duarte, três outros intérpretes quaisquer que não estejam fazendo a frase dos ombros, podem
vestir as camisolas colocadas em algum ponto do espaço cênico para executarem uma dança
debochada ou escrachada ao redor da cena (seqüência dos ombros). A seqüência dos ombros
contraídos também pode ser realizada em outros momentos por qualquer intérprete. Quando
ela ocorrer fora da estrutura definida no espetáculo o intérprete deve executá-la de forma mais
discreta, em espaços não tão evidenciados, nas sombras provocadas pelo jogo de luzes, ou
ainda de forma a reduzir o movimento à quase um pequeno gesto.

A terceira célula são deslocamentos em grupo com uma, ou duas pessoas que enchem
os pulmões de ar e correm definindo três pontos no espaço. Esses três pontos, que são
definidos no momento da corrida ajudam a conduzir o deslocamento do grupo que em
princípio deve seguir o que está com os pulmões cheios. Essa cena objetiva criar a máxima
tensão até culminar no dueto de Alessandro (quarta célula) com qualquer outra pessoa que ele
escolher na hora. Está célula acontece sem música.
91

A quarta célula é o acontecimento de um dueto que visa algum tipo de provocação ou


exposição dos intérpretes que o realizam. Normalmente ela se configura de forma agressiva,
embora em algumas apresentações ela tenha se desenrolado de forma leve e carinhosa, por
vezes engraçada. Esse dueto pode ser feito por qualquer intérprete que decidir realizar a cena
no momento de seu acontecimento, sem que os outros saibam. Entretanto definimos para o
espetáculo que Alessandro seria o intérprete responsável por escolher alguém para realizar o
dueto improvisado com ele. Qualquer cena pode resultar desse encontro de Alessandro com
outro intérprete. Apesar desta cena não ser fixa, Alessandro às vezes repete uma idéia, com
uma mesma pessoa.

A quinta célula refere-se ao uso das frases ‘me escolhe’ e ‘eu não quero você
porque...’, A frase ‘me escolhe’ antecede o dueto improvisa de Alessandro com outro
intérprete. Já a frase ‘eu não quero você porque...’ acontece antes do solo de Lina. Essa frase
pode ser completada livremente pelos intérpretes que falam, por exemplo ‘eu não quero você
porque você respira’. As frases podem ser ditas por qualquer pessoa no momento definido
para elas, observando-se para não incorrer em poluição de várias falas ao mesmo tempo.
Logicamente que por trás da possibilidade variada do uso dessas células deveria se ter a
preocupação constante com o diálogo e a composição cênica resultante desse uso. A opção
pela possibilidade de interferir na composição do espetáculo durante a performance acentuava
o trabalho sobre o sentido de jogo que o intérprete deveria exercitar.

Uma das características apresentada no decorrer do processo da pesquisa residiu na


tentativa de lidar com as constantes instabilidades geradas pelo contato do intérprete com suas
fragilidades. Christine Greiner, quando fala do pensamento de Ilya Pregogine nos coloca que,

Para Prigogine todos os vivos são dissipativos, tudo que dizemos, as


informações do ambiente, nosso sistema de conhecimento, nada disso é
imutável. Tudo que é vivo deve co-habitar com a desordem e a instabilidade.
Não há escolha. Esta é a natureza do vivo. Assim, no que diz respeito ao
corpo, para estudar um regime de atividade corporal é preciso estudar a
estabilidade e a instabilidade que, em certas circunstâncias têm uma
configuração e em outras já são modificadas.170

Concordando com este pensamento, vimos coerência em trabalhar o espetáculo


reforçando o caráter da instabilidade, numa zona de turbulência intensa vivenciada pelo
intérprete na atuação. Com essa perspectiva, propusemos construir o espetáculo como um

170
GREINER, Christine, O Corpo: Pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005, p39.
92

jogo, observando que no jogo se opera a mutabilidade com base nas incertezas das decisões,
abrindo um campo para a exploração de possibilidades de atuação na solução de problemas
gerados no jogar.

Neste jogo algumas regras são definidas ao longo de seu exercício. Entretanto, toda
regra criada pode ter exceções, podendo ser utilizada de uma forma ou de outra. Por exemplo,
as frases de movimentos realizadas em grupo são normalmente utilizadas como indicativas de
transições cênicas. Porém, elas também podem ser utilizadas isoladamente por qualquer
intérprete e em qualquer momento do espetáculo. Sendo usada individualmente, ela não se
configura como uma transição. Um exemplo dessa situação se dá no momento em que um dos
intérpretes decide dançar a coreografia dos ombros contraídos em qualquer parte do
espetáculo que não seja aquela em que se estabeleceu para a coreografia do grupo.

Para definição das regras deste jogo, e mesmo para a construção de uma estrutura que
servisse de base para o acontecimento do espetáculo, foram realizados vários improvisos
estruturais. Chamo de improviso estrutural o exercício do improviso para a construção da
estrutura de um espetáculo, onde os elementos que constituem o espetáculo já existem
isoladamente, entretanto, a composição desses elementos se dá pelo improviso. Cada
intérprete ficou responsável em compor uma ordem de acontecimento das células de
movimentos, ações e dos solos. Essa ordem era falada para todos os intérpretes pouco antes de
se realizar o experimento. Após a experiência, discutíamos as possibilidades que apareciam e
o que poderiam funcionar cenicamente.

Experimentamos várias ordenações de estruturação cênica das idéias, dos solos e das
células de movimentos encontradas. Numa dessas versões, foi proposto um sorteio da ordem
de acontecimento dos solos. Cada intérprete foi sorteado com um número. Esse número
indicava a ordem de acontecimento de seu solo. Por exemplo, aquele que tirou o número três
saberia apenas que seu solo deveria acontecer após dois solos quaisquer. Com esses
experimentos, cada ensaio foi também um exercício de composição dos elementos do
espetáculo, além do treino do diálogo cênico entre intérpretes, espaço e tempo de atuação.

Também houve o momento em que se experimentou por diversas vezes uma mesma
ordem estrutural definida anteriormente, em que se objetivou provocar interferências nessa
ordem por meio de justaposição dos solos, e desses com as células de movimentos e ações, e
também na quebra dessa ordem estruturada a qualquer instante. Para se quebrar a ordem de
93

uma estrutura previamente definida, o intérprete deveria propor algo coerente com o que
estava acontecendo na cena. Ele deveria estar atento ao diálogo do que propunha com o que
estava acontecendo, tentando uma composição que fluísse. Isso de certa forma parece exigir
que o intérprete reflita melhor sobre suas decisões e escolhas antes de propor uma quebra da
estrutura estipulada. Ao propor algo fora do script, ele deve saber como desenvolver seu
improviso de forma a dar espaço para que uma nova estrutura vá se delineando, ou mesmo
para que a estrutura estipulada anteriormente tenha possibilidade de retornar.

Trabalhar com o improviso estruturado gerava instabilidade constante na atuação do


intérprete. Essa proposta de atuação se assemelha de alguma forma à proposta da
performance, que tem como característica “valorizar o instante presente da atuação”, fazendo
com que “o performer tenha que aprender a conviver com as ambivalências tempo/espaço real
x tempo/espaço ficcional”.171 Não há meio seguro para a atuação, mas somente a segurança
do ser e estar ali do intérprete no diálogo com as situações cênicas e com o público. O
intérprete deveria estar seguro de si para dialogar com as instabilidades cênicas. Por esse
motivo o espetáculo se associa a uma interlinguagem, a uma dança performance ou
performance dança. Esse termo foi primeiramente utilizado por Fernando Villar em uma de
nossas sessões de orientação. O termo parece definir muito bem o gênero estético do
espetáculo, entre linguagens, se valendo de aspectos performáticos enquanto dramaturgia e
encenação e da dança enquanto estrutura coreográfica baseada no movimento, no jogo e no
risco.

O processo do improviso estruturado parece facilitar ao intérprete encontrar um


caminho de performar suas ações, em detrimento a cristalizá-las, mesmo que os movimentos
e/ou ações físicas estejam automatizados, ou supostamente codificados. No improviso
estruturado existe o espaço de abertura e experimentação com um pouco mais de controle,
sem correr o risco de se chegar ao caos total devido aos muitos aspectos da própria atuação do
intérprete e relações que se dão no contexto cênico estarem flutuantes e sem definições muito
precisas. O improviso estruturado permite o exercício do espetáculo, um exercício que se dá
tanto no âmbito dos ensaios como também nas seguidas “repetições” desse acontecimento
cênico para o público.

171 COHEN, Renato. Performance como linguagem. 2ed. São Paulo: Perspectiva, 2004, p98.
94

3.2.4 As repetições. E depois?

Para o exercício do espetáculo e de suas possíveis estruturas foram realizados quatro


ensaios abertos com uma média de público de cem pessoas em cada um. Três dessas
apresentações foram realizadas no Teatro Helena Barcellos, sala experimental do
Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília. A primeira ocorreu no dia 15 de
abril de 2005 e as outras que se seguiram tiveram um intervalo entre elas de mais ou menos
um mês. Esses ensaios abertos tiveram como público professores, estudantes, artistas da
cidade, dentre outras pessoas, embora fosse composto na maioria por alunos do Departamento
de Artes Cênicas da UnB. A quarta apresentação foi realizada no Teatro Dulcina, para alunos
da Faculdade de Artes Dulcina de Moraes.

As apresentações do espetáculo se deram em caráter de ensaio. Optou-se pelo formato


do teatro de arena para a disposição da platéia. Como definição do espaço cênico a ser
utilizado o intérprete deveria se preocupar no uso desse espaço como um todo, onde o espaço
do público também deveria ser considerado como espaço de atuação, e não só o palco, ou
seja, o espaço cênico era todo o teatro. Tudo e todos deveriam estar visíveis durante a
realização deste exercício do espetáculo, numa tentativa de proporcionar maior interação do
público com os intérpretes. A idéia era colocar os dois espaços num mesmo nível, sem
diferenciações de espaços escuros (normalmente definido para o lugar do público), e espaços
iluminados (dos intérpretes), considerando todos os espaços físicos como espaços atuantes e
de atuação. Os figurinos utilizados nesses ensaios partiram da necessidade do intérprete de
experimentar a roupa que se sentisse mais à vontade.

No primeiro ensaio público,172 foi possível detectar fragilidades conhecidas e


desconhecidas de cada intérprete, como cada um se relacionou com a performance, qual deles
recorreu a antigas fórmulas de atuação, quem se jogou ao experimento do improviso de fato,
quem se intimidou, quem se expôs sem pudores, quem liderou as cenas e como cada um
manipulou seu material construído anteriormente. Além disso, foi possível perceber os

172
No primeiro ensaio aberto ao público seguiu-se a seguinte ordem de acontecimento das cenas: 1- Solo
de Alisson fora do teatro junto ao público. 2- Público entra e Diego pergunta ao público o que eles querem ver.
3- Solo de Lívia Bennet. 4- Jogo de deslocamento dos bancos. 5- Solo Dorka – palavrões. 6- Solo Lívia Frazão.
7- Solo Rachel – elemento do pão. 8- Elemento dos pulmões, jogo de deslocamento de todo o grupo para
aumento da tensão culminando na cena de Alessandro pegando alguém e fazendo improviso. 9- Solo Alessandro.
10- Solo Márcia. 11- Canto Alessandro. 12- Jogo de deslocamento dos bancos novamente. 13- Dança dos
ombros com as camisolas e margaridas. 14- Solo de Diego. 15- Frases faladas pelos intérpretes ‘Eu não quero
você porque você...’.16- Solo Lina com canto de Alessandro.
95

avanços conquistados no processo por cada intérprete, em relação à presença cênica ativa e à
entrega total para a experiência da atuação. Foi interessante observar a luta interna desses
intérpretes para lidar com as próprias fragilidades cênicas e da atuação. Nesse sentido, o
exercício do espetáculo é um caminho no qual o intérprete se experimenta, se entrega e se
revela.

Figura 9 – Exercício do espetáculo173

A presença do público é ponto crucial para o exercício performático artístico de toda


experiência vivenciada no processo. Peter Brook nos lembra que,

O olhar do público é o primeiro elemento que nos ajuda. Quando sentimos


esse escrutínio como uma expectativa autêntica, exigindo a todo o momento
que nada seja gratuito, que não haja desleixo, e sim precisão,
compreendemos finalmente que o público não tem uma função passiva. Não
precisa intervir nem manifestar-se para participar: participa constantemente
por meio de sua presença atenta. Esta presença deve ser encarada como um
estimulante desafio, como um ímã diante do qual não é possível proceder
“de qualquer jeito”.174

173
Foto de Mila Petrillo tirada da apresentação realizada na Mostra XYZ, em 21 de maio de 2006, em
Brasília
174
BROOK, Peter. A porta aberta. Trad. Antonio Mercado. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002, p14.
96

É neste momento que temos o termômetro que nos indica se o processo não está se
desvirtuando de sua proposta, tanto no sentido de manter o vínculo com a expressão artística,
não se limitando apenas à demonstração da experiência, como também de incitar o intérprete
a utilizar o processo vivido como alimento para sua performance, numa tentativa de não se
apoiar unicamente em antigos hábitos performáticos, em atos cristalizados. A ênfase na idéia
do espetáculo como exercício visava que houvesse sempre a possibilidade da experimentação.

Nessas apresentações, o público presente foi informado que se tratava de ensaio aberto
para o estudo da pesquisa em curso. Observamos que a platéia foi bastante receptiva, com
retornos positivos, o que gerou uma euforia por parte dos intérpretes e uma satisfação interna
em relação a sua atuação. A satisfação pelo suposto sucesso alcançado muitas vezes pode
representar uma ameaça à continuidade do desenvolvimento do intérprete, podendo ele
cristalizar-se naquilo que o satisfaz. Ressalto, com as palavras de Grotowski, que, nesta
pesquisa, “o ator nunca possuirá uma técnica ‘fechada’, pois a cada degrau do seu auto-
escrutínio, a cada modificação, a cada excesso, a cada derrubada de barreiras escondidas,
encontrará ele novos problemas técnicos num nível mais alto”.175 Logo, ele deve sempre
desconfiar de sua satisfação.

A partir da primeira demonstração pública se traçou mais algumas possibilidades na


construção de uma estrutura espetacular que não fugisse da idéia do jogo cênico, como, por
exemplo, haver mais justaposições de solos e cenas, redefinir algumas regras, promover mais
interferências de cada um sobre cada cena, e também de construir uma intenção mais clara na
relação com o público.

Nesta fase o trabalho do intérprete estava mais voltado para questões relacionadas ao
momento de realizar determinada ação sem prejudicar a situação cênica, quando interferir no
improviso do outro, como se provocar constantemente na atuação, tanto no sentido de agir,
como no de não agir, sem perder a noção do tempo, do espaço, do outro e do público. Além
disso, como atuar com o estado de presença ativa, expondo-se às próprias fragilidades.

O intérprete pode usar de subterfúgios para mascarar sua interpretação, quando na


presença de alguém. Pode se apoiar naquilo que o mantém seguro, camuflando uma série de
outras possibilidades expressivas já trabalhadas até então. Pode, por exemplo, se sustentar na

175
GROTOWSKI, Jerzy. Op.cit, p31.
97

técnica corporal se escondendo atrás dela, ou numa característica específica própria que ele
sabe que pode funcionar, e que ele domina. Portanto, nessa etapa, a presença do público
objetiva também estimular a atenção do intérprete para a percepção da auto-sabotagem que o
impede no desafio de se expor e experimentar, fazendo-o cair em antigos hábitos
performáticos. Lina Frazão nos diz em seu depoimento que

o principal foco tem sido mesmo não se esconder atrás do corpo: me expor
tem sido com certeza, o que me causa mais frio na barriga. Sempre é muito
fácil estudar a técnica e se esconder atrás dela; o virtuosismo deixa os corpos
muito turvos, e pode esconder o intérprete. Por isso acho que trabalhar a
transparência como intérprete tem sido o meu maior ganho.

Figura 10 – Lina Frazão. Improviso da exposição176

No segundo ensaio aberto experimentou-se uma nova seqüência de cenas,177 além de


tentar uma aproximação maior com o público, enfatizando a fusão do palco com a platéia para

176
Foto retirada da imagem do registro de vídeo de um dos ensaios privados.
177
No segundo ensaio aberto ao público seguiu-se a seguinte ordem de acontecimento das cenas: 1- Cena
Diego fora do teatro junto ao público - Diego pergunta ao público o que eles querem ver. 2. Nessa nova versão
introduziu-se uma música para entrada do público no teatro, os intérpretes recebem o público. Outro novo
elemento inserido foi, enquanto a música toca e o público entra Márcia rola pelo chão sem tocar as mãos e os pés
no chão. 3- Jogo de deslocamento dos bancos. 4- Solo Dorka – palavrões. 5- Outro jogo de deslocamento dos
bancos. 6- Solo de Alisson. 7- Solo Márcia. 8- Canto Alessandro. 9- Elemento dos pulmões, jogo de
deslocamento de todo o grupo para aumento da tensão culminando na cena de Alessandro pegando alguém e
fazendo improviso. 10- Solo Lívia Frazão. 11- Solo Rachel – elemento do pão. 12- Outro jogo de deslocamento
98

a construção de um espaço cênico único. A relação que se foi estabelecendo com o público, a
partir da vivência da primeira apresentação pública, foi de querer cativar o espectador para a
cumplicidade com as propostas cênicas, sem expô-lo explicitamente, e também sem querer ser
impositivo na interação. Falamos na proposta de aproximação com o público de forma
delicada e carinhosa, sem intimá-lo a fazer parte de algo, sem pressioná-lo a interagir por
obrigação. O fato de um intérprete sentar-se ao lado de um espectador não significava que o
espectador tivesse que tomar uma atitude em relação a isto. O espaço do espectador, para o
intérprete, deveria ser tratado com naturalidade, ou na mesma relação que este intérprete
desenvolvia quando estava em cena. Entretanto, a relação não era também de ignorar esse
espectador, sentar-se ao lado dele como se ele não interferisse em nada na atuação, como se
ele não estivesse ali, mas, ao contrário disso, reconhecer que ele estava ali, sim, e que um
olhar poderia ser trocado com ele, um sorriso, um toque de mãos etc. O intérprete poderia
responder a alguma reação que, porventura, o espectador apresentasse. Era importante
encontrar um eco interno daquilo que vinha do externo. Exemplos dessa relação podemos ver
quando Dorka percebendo que alguém a olha comendo pão, dá um sorriso e oferece o pão a
essa pessoa, ou Diego se aproxima sutilmente de alguém do público e lhe pergunta algo ou
ainda quando Lívia Frazão sugere trocar, e troca, seus óculos com o de alguém da platéia.

No terceiro e quarto ensaios públicos, manteve-se a mesma estrutura do segundo


ensaio, entretanto o foco do exercício estava na exploração e extrapolação das cenas numa
tentativa de aprofundar sua dramaticidade. Cada intérprete, de alguma forma, tinha a
liberdade para se testar. A idéia era de que a cada cena realizada, o intérprete deveria
experimentar ir no ‘limite’ de sua possibilidade, do seu enfrentamento das questões pessoais
em relação à cena, e ao mesmo tempo, tentando manter o controle sobre o que estava sendo
produzido, experimentando o processo e suas possibilidades nas suas últimas conseqüências.
Importante lembrar que a liberdade para o experimento não significava ter que provocar
qualquer coisa displicentemente, só por provocar, só para dizer que alguma coisa estava sendo
feita, mas o intérprete deveria assumir a responsabilidade de seu ato. O intérprete deveria
experimentar esta liberdade permeada pela disciplina, e vice-versa.

dos bancos só que aqui os intérpretes disputam os bancos. 13- Frases faladas pelos intérpretes ‘Eu não quero
você porque você...’. 14- Solo Lina com canto de Alessandro. 15- Dança dos ombros, com as camisolas e
margaridas. 16- Solo Diego. 17- Solo Alessandro. 18- Solo Lívia Bennet. Essa versão foi mantida em
apresentações posteriores, havendo mais fusões entre solos e células.
99

Outros improvisos abertos foram realizados, mas utilizando apenas os solos


isoladamente, buscando proporcionar ao intérprete um exercício mais prolongado de sua
atuação, na medida em que ele sozinho, sem ter que se preocupar com a estrutura do
espetáculo como um todo, poderia estar mais livre para experimentar as possibilidades de seu
material. Por exemplo, Diego teve a oportunidade de experimentar seu solo das perguntas
para o público em uma mostra de trabalhos solos de dança que aconteceu na Sala Mover, em
Brasília. Nessa performance estabelecemos que a tarefa de Diego seria trabalhar seu
imaginário o mais profundamente possível a partir do que o público lhe solicitava, tentando
transportar esse imaginário para o movimento corporal.

Além desses ensaios abertos, foram realizadas mais quatro apresentações ‘oficiais’.
Digo ‘oficiais’, por terem sido apresentadas dentro de festival e mostra,178 nos quais,
supostamente, o espetáculo era visto pelo público como espetáculo, e não como exercício de
espetáculo. Este fato, de alguma forma, também pode provocar uma pequena transformação
do intérprete na abordagem de sua atuação. Sendo considerado oficialmente um espetáculo, o
intérprete tende a reduzir a intensidade da experimentação, talvez para ter mais controle, ou
talvez pelo medo da exposição, num ato de proteção e busca de segurança. Brook nos lembra
que “quando não se procura segurança, a verdadeira criatividade vem preencher o espaço”.179
Neste processo, buscamos estarmos atentos a esse fato para não limitar as possibilidades. Foi
preciso esclarecer aos intérpretes que o compromisso da atuação, no exercício de espetáculo e
no que ele considerava oficialmente de espetáculo, deveria ser o mesmo. Na verdade, as duas
coisas eram uma só, pois o desafio interno deveria ser constante, seja no espaço privado dos
ensaios, ou no espaço público das apresentações.

Nessas apresentações públicas tivemos muitas reações surpreendentes dos


espectadores, no sentido de interferirem na cena. Numa delas, um homem recitou poesias para
qualquer intérprete que se aproximava dele. Em outra, um outro homem chorando segurou a
mão de um dos intérpretes, quase como para solicitar um afago. Uma mulher teve uma crise
de risos quando Rachel, que fazia a cena com a boca cheia de pão, sentou-se ao seu lado E
também um jovem ator de Brasília, que pareceu se sentir ofendido com as exposições de cada

178
Das quatro apresentações realizadas três aconteceram no Festival Internacional de Teatro e Dança Cena
Contemporânea em Brasília, nos dias 28, 29 e 30 de outubro de 2005. A quarta apresentação se deu na Mostra de
Dança XYZ, dia 21 de maio de 2006, também em Brasília..
179
BROOK, Peter. A porta aberta. Trad. Antonio Mercado. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,
2002, p20.
100

intérprete expôs sua indignação, em alto e bom tom para todos do público ao final da
apresentação, suscitando uma discussão entre o público. Foi interessante observar essas
reações e perceber que quanto mais os intérpretes se expunham, se provocavam internamente,
mais a sensação de vulnerabilidade parecia ecoar no público. Como coloca Grotowski,
também acredito que se o intérprete, “estabelecendo para si próprio um desafio, desafia
publicamente os outros, e, através da profanação e do sacrilégio ultrajante, se revela, tirando
sua máscara do cotidiano, torna possível o espectador empreender um processo idêntico de
autopenetração”.180 A vulnerabilidade exposta do intérprete parecia não deixar o público
indiferente. Talvez esta vulnerabilidade fosse o que mais agredisse o espectador, o que mais o
incitava a se manifestar de alguma forma.181

Dessa forma foi-se e continua-se dando a construção do espetáculo como um


laboratório cênico continuado, buscando promover uma compreensão mais aprofundada do
processo criativo, e também o exercício constante da consciência interpretativa. Neste
momento de finalização desta dissertação, De Água e Sal continua sofrendo transformações
com as novas possibilidades que às vezes são impostas. Um dos intérpretes estará deixando o
trabalho para estudar dança no exterior. Esse fato nos impulsionará para outros experimentos,
a novas combinações que poderão significar outros processos também desafiantes para os
intérpretes envolvidos, já que não se tem a intenção de substituir ninguém. De Água e Sal
ainda tem muitos caminhos a serem percorridos, esperando ser mostrado para outros públicos,
outras cidades, outros espaços. Uma ambição que permanece é que sua vida seja longa longa!

180
GROTOWSKI, Jerzy. Op.cit., p29.
181
Não houve um estudo sistematizado da recepção do espetáculo. Entretanto,´logo após algumas
apresentações públicas realizamos entrevistas informais com os espectadores, registradas em vídeo, sobre suas
impressões do espetáculo. Busquei ouvir opiniões e impressões de pessoas próximas a mim, além de artistas e
diretores de teatro e dança.
101

CONCLUSÃO

No início desta pesquisa, talvez, a busca fosse por encontrar um caminho de


sensibilização do intérprete, ou um mecanismo de criação, na qual essa sensibilidade estivesse
articulada com o fazer artístico mais consciente do todo, que pudesse reverberar no corpo do
intérprete, no seu tônus muscular, na qualidade de seu movimento, na sua dança e no seu
pensamento. Dessa forma acreditei que pudesse interferir no processo do intérprete no
momento da criação e também no momento da atuação em dança, fazendo-o refletir a todo
instante sobre o “porquê” dos caminhos escolhidos por ele. Tudo isso teve como primeiro
propósito fugir da cabotinagem performática, de encontrar no corpo e no movimento uma
expressão que fosse além de sua aparente forma.

Essa interferência objetivou também estimular e instigar o intérprete a questionar os


porquês de se fazer dança, já que vejo a arte como instrumento de provocação, e de fazer
pensar aquele que vê e aquele que faz. Não que tivéssemos que chegar a uma resposta que
findasse nossos desejos do querer saber, mas, que nossos questionamentos nos
impulsionassem a delinear um pensamento de movimento, um pensamento da forma de se
fazer, um pensamento de dança, uma filosofia mais clara na relação com a dança e seu
alcance, que culminou numa visão mais crítica, e porque não dizer, mais política do processo
criativo, resultando no “exercício do espetáculo” De Água e Sal.

O processo de descondicionamento e desnudamento do intérprete, no sentido de pôr à


mostra os outros lados de sua personalidade, e buscar valer-se desses lados para afetar sua
expressividade corporal, foi fundamental para se estabelecer uma relação mais próxima e
profunda com a dança. Nesse processo constato a importância de um trabalho dirigido à
percepção e experiência do corpo no universo pessoal do intérprete, para enriquecimento de
seu universo cênico, tanto em termos anatômicos, relacionados ao corpo físico e as
habilidades provenientes dele, como também a aspectos da personalidade. Ao final, percebo
que, para muitos dos intérpretes que participaram desse processo, atuar era, exatamente, um
ato de proteção de si mesmos, onde não se alcança e não se mostra esses “outros de si”, mas
sim, a parte que está, talvez, associada à nossa vaidade, nosso espaço seguro, nossa suposta
beleza, virtuosismo, nosso desejo de poder, ao nosso ego. Talvez isso seja reflexo de uma
educação calcada no lema de que temos que mostrar “o melhor de nós”, e que esse “melhor de
nós”, infelizmente, seja interpretado como a beleza, que, normalmente, segue parâmetros da
mídia e padrões hegemônicos; que pensa a harmonia e a segurança, no sentido do controle e
102

sufocamento das fragilidades e/ou a capacidade de dominar para o alcance, exclusivamente,


do poder, etc. A meu ver, esse ponto de vista pode ser muito limitante para o intérprete, pois
parece fechar portas para experimentação de outras possibilidades criativas que se desviem
dos nossos parâmetros condicionados de comportamento. Fazer o intérprete perceber,
manifestar e, acima de tudo, se valer de seu lado “frágil”, “feio”, “patético”, instável e/ou
“ridículo” objetivou levá-lo a entender que, aí também, existe um potencial de beleza, de
riqueza e profundidade para o processo criativo. Isso o fez aproximar-se cada vez mais de
suas “convicções artísticas” do momento, mesmo que, essa convicção, tenha sido de optar por
trabalhar nas zonas mais confortáveis, mais “aceitas” pelo nosso padrão social. O que talvez
importe é que o intérprete tenha consciência de suas escolhas, e arque com o benefício ou o
prejuízo delas. Nesse sentido, acredito que essa pesquisa colocou o intérprete em contato com
seus outros lados de ser e de ver as coisas, pois ele foi estimulado constantemente a lidar com
esses outros lados, como nos mostrou o Capítulo 3. E isso resultou, concretamente, no
amadurecimento de suas abordagens em relação ao processo criativo, ecoando na
expressividade corporal e conseqüentemente na qualidade de sua dança.

Pude constatar que a abordagem do processo criativo proposta por essa pesquisa não é
de fácil assimilação para todo intérprete, visto que uma participante desistiu do processo
alegando não se sentir confortável e pronta para esse tipo de abordagem de criação. Aquele
que, de alguma forma, teme se confrontar, ou, por algum motivo, não se vê pronto para essa
confrontação, ou ainda, que acredita em caminhos mais confortáveis para se alcançar essa
confrontação, não consegue permanecer nesse processo. Esse processo necessita de pessoas
que possuam um desejo e curiosidade para se desenvolver intelectualmente,
psicologicamente, fisicamente, conhecer-se partindo de reflexão, formulação e reformulação
de seus pressupostos. A pessoa deve estar, acima de tudo, aberta ao processo de conhecimento
de si, permitindo que as transformações ocorram no nível mental, físico, espiritual. Ela deve
estar implicada nesse processo, deixando-se surpreender pelo desconhecido, mas se tornando
responsável por aquilo que se propõe.

Como disse anteriormente, esse processo “dói”, na medida que borra constantemente a
fronteira entre a vida e a arte, e põe em questionamento essas duas esferas, provocando uma
fusão explícita, e, às vezes, atordoante, entre elas. Assim, uma vai alimentando a outra em
benefício do desenvolvimento de um pensamento artístico, de um produto estético e, muitas
vezes, crítico.
103

O estar atento aos outros lados de ser e ver exigiu um exercício continuado, fora do
ambiente de ensaios, diluindo ainda mais a fronteira arte/vida. Em muitos momentos os
intérpretes se sentiram sufocados e com a criatividade estagnada, mas a grande conquista do
processo residiu na busca de mecanismos de fazer das limitações e dificuldades o ponto
inicial para novas descobertas na criação. Não foi, e não é, fácil! Não foi, e não é, leve!

Perguntei-me muitas vezes se levar as experiências do processo às últimas


conseqüências, no sentido de provocar o intérprete no seu extremo, tentando fazê-lo extrair o
máximo de si, às vezes de forma dolorosa, era mesmo necessário. Não tenho uma resposta
definitiva, mas constato que esse caminho surtiu efeito na maneira como os intérpretes
participantes da pesquisa começaram a se relacionar com a dança, e principalmente, com a
arte de uma forma geral. De forma mais comprometida, demonstraram uma disponibilidade e
curiosidade para o trabalho que me nutriu o desejo de mergulhar mais profundamente nas
investigações e provocações. Acredito que esse fato contribuiu, até mesmo para a qualidade
do movimento corporal, do tônus muscular, da forma de explorar as possibilidades corporais
e, metaforicamente dizendo, modificou o “tônus do pensamento”. Evidentemente, que isso se
deu em níveis diferenciados para cada intérprete se levamos em consideração tanto o tipo de
experiência profissional que esse intérprete possui, quanto da experiência de vida.

É bom dizer que tenho profundo interesse pelos assuntos pertinentes ao ser humano
contemporâneo (principalmente suas mazelas), e é dele que quero falar, é com ele que quero
trabalhar, é ele que quero tocar. Sendo assim, ficou explícito no processo, um caminho
criativo e uma abordagem que conduzisse para esse pensamento. Talvez por isso, essa
pesquisa seja tão existencialista, tão calcada na relação do intérprete com sua psique
utilizando técnicas que possam levá-lo a revisar seus pontos de vista para subverter a
normalidade das coisas. A propósito do produto artístico que resultou deste processo, o
espetáculo De Água e Sal, o vejo coerente com esse pensamento.

Foram muitos os percalços, as dúvidas, os desejos, as frustrações. Mas também, os


risos de satisfação no vislumbre de caminhos que se renovavam e nos surpreendiam, nos
revelando que teremos sempre o que fazer nesse percurso da criação. Os caminhos parecem
não se esgotarem. A pesquisa apenas lançou uma fagulha com possibilidades diversas a serem
exploradas no contexto da criação e de seu produto estética a ser mostrado. Vejo que ela foi,
acima de tudo, uma reflexão sobre o indivíduo e sua relação com as coisas que o cercam, e
que essa reflexão proporcionou o desenvolvimento de um corpo mais crítico e político que
104

não pretende a gratuidade, e sim o compromisso. Foi também um exercício do desapego, da


não cristalização, da intensidade, da tentativa do devir constante, tanto por parte dos
intérpretes envolvidos, como de minha parte na função de diretora e condutora do processo.
Como tal, meu desafio foi tentar encontrar uma forma não tanto de dirigir ou coreografar, no
sentido de definir para o intérprete o que deveria ser feito, mas, antes disso, dar pistas para
que ele encontrasse e construísse seu próprio caminho dentro do processo criativo do
espetáculo. Essa forma de trabalhar desenvolveu no intérprete o espírito questionador e uma
atitude mais autoral, satisfazendo a proposta dessa pesquisa.

A idéia de desenvolver o exercício do espetáculo como um jogo, deu a esse um caráter


totalmente performático, abrindo espaço para exploração mais efetiva do material próprio do
intérprete, além de sua experimentação constante na relação com a atuação. Não tenho como
afirmar se as montagens futuras do grupo seguirão o trajeto estético do espetáculo De Água e
Sal, onde se delineou o que, talvez, pudéssemos chamar de dança-performance, ou
performance-dança, já que nos valemos tanto dos aspectos da dança como da performance, ao
mesmo tempo que nenhuma das duas linguagens pode definir o espetáculo exclusivamente.
Entretanto parece certo que experienciamos um pensamento da forma de fazer, da forma de
criar que evidencia o aspecto humano e contemporâneo do indivíduo. Como isso também foi
um resultado ocorrido de minha parceria com Kênia Dias no processo de criação de Lambe
Lambe, acredito que nestes dois contextos de aplicação de minha pesquisa foi importante
perceber que, talvez ainda não estivesse propondo um método, ou uma técnica de atuação
para o intérprete, senão um sistema aberto, um pensamento de corpo para interpretação
cênica, onde os exercícios propostos se transformavam de acordo com a necessidade do
intérprete, embora buscássemos sempre seguir os princípios apontados nesta pesquisa. A
parceria com Kênia me confirmou que o processo da pesquisa delineado com o Basirah pode
certamente servir a outros universos criativos.

Poderíamos pensar que atuar um material cênico vinculado às questões corporais


próprias que foram reveladas no processo de criação, talvez, fosse mais fácil para o intérprete,
na medida que esse material está mais compreendido, e definitivamente, faz mais sentido
(psicológico, emotivo etc) para ele. Entretanto, sempre corremos o risco de cristalizar as
formas de se atuar um material cênico, mesmo que se tenha espaço na atuação para
investigação e mutabilidade constante desse material. Tentar fugir dessa cristalização foi um
exercício exaustivo e desgastante, pois levou o intérprete ao confronto agudo com seus
posicionamentos pessoais. Embora esse desgaste tenha ocorrido percebi nos intérpretes que o
105

desejo de encontrar caminhos diversos para atuação se tornou um pensamento do trabalho. O


desejo de atuar no exercício do espetáculo De Água e Sal se intensificou, pois cada exposição
pública significou um risco a ser encarado e um caminho de provocação para o
desenvolvimento do estado de presença ativa. Fico pensando que o que quis dos intérpretes
nessa pesquisa talvez tenha sido o acesso aos estados de corpo constante de um devir. Às
vezes penso que isso não seria possível, já que não estamos acostumados ao exercício de
nossas percepções.

A pesquisa também me fez perceber que, paralelo à utilização de técnicas corporais


que valorizem o aspecto da percepção e do descondicionamento corpóreo do intérprete na
relação com seu movimento e pensamento para benefício da expressividade, faz-se necessário
a utilização de técnicas corporais que proporcionem o desenvolvimento das habilidades
físicas, voltadas para o exercício do movimento, que poderiam ser as próprias técnicas de
dança (balé clássico, dança contemporânea etc), desde que a forma de aplicá-las levasse com
elas o pensamento de valorização do modo de fazer do intérprete, e não seu enquadramento, a
qualquer custo, na técnica específica. Ou seja, o intérprete deve estar atento ao seu corpo de
forma a buscar um caminho próprio para execução de determinado movimento, não impor ao
seu corpo uma forma externa, mas partir das sensações e da compreensão de suas limitações e
possibilidades corporais para que possa chegar a um resultado satisfatório na execução dos
movimentos das técnicas de dança específicas. Talvez, não seja a questão da técnica aplicada,
mas a forma de aplicá-la. O pensamento metodológico da aplicação de determinada técnica
deveria incluir o pensamento de seu processo de construção. Foi interessante perceber como o
trabalho sobre a reflexão, percepção, o descondicionamento, o lado psicológico e emocional,
realmente afeta a expressão corporal do intérprete. Entretanto esse processo não significou
uma melhoria na aptidão física e da habilidade de execução mais apurada do movimento para
a dança. Constatei que houve uma defasagem no preparo físico para o exercício do
movimento para a dança. Paralelo ao trabalho desenvolvido na pesquisa, parece enriquecedor
que haja um preparo físico voltado para aptidão corporal, e que todo o pensamento gerado na
pesquisa sobre o intérprete deve ser exercitado também nesse preparo técnico corporal.

Todo este processo vivenciado nesta pesquisa foi extremamente rico para os
intérpretes envolvidos, mas acima de tudo para mim que consegui concretizar algumas idéias
que sempre rondaram meu pensamento artístico, e que aprendi profundamente sobre as coisas
básicas da vida e da arte. Talvez por isso a escolha do título De Água e Sal para o espetáculo
tenha se dado como uma analogia e metáfora do suor, da lágrima, do básico, do essencial e até
106

do biscoito de água e sal que tanto serve para nutrir organismos descompensados. Também se
refere ao mar, imenso e misterioso, com sua água salgada que mistura, agita, acalma, funde,
absorve, e numa visão mais mística, nos limpa e traz novas energias.
107

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112

ANEXO 1 - EXERCÍCIOS REALIZADOS NA PESQUISA

MVA – MENTAL VERBAL AÇÃO

Consiste em pensar no movimento que se quer realizar com o corpo, verbalizar o


movimento pensado e realiza-lo no corpo. Exercíco executado em duplas, onde um observa e
o outro realiza. Duração de 10 minutos para cada executor. Diálogo ao final do exercício com
observações e feedbacks.

Variações:

1. Pensar o movimento e realiza-lo no corpo (retirar a verbalização). Exercíco executado


em duplas, onde um observa e o outro realiza. Duração de 10 minutos para cada
executor. Diálogo ao final do exercício com observações e feedbacks.

2. Em dupla, um pensa numa seqüência de movimentos que quer executar e espera o


comando do outro para iniciar a seqüência. Aquele que comanda objetiva variar o tempo
desse comando, estendendo ou diminuindo esse tempo entre um comando e outro.

3. Um deve pensar numa seqüência de movimentos por 30 seg, dado este tempo o outro
diz VAI e este realiza a seqüência imaginada.

4. Em dupla, um abraça o outro, o que abraça realizará o movimento, enquanto o que é


abraçado verbaliza imagens que venham espontaneamente em sua mente. O que abraça
escuta sobre as imagens e parte para o movimento a partir destas imagens, podendo ou
não cortar a descrição da imagem que esta sendo falada pelo outro para começar a se
mover.

5. Enganar o pensamento - pensar em um movimento, mas executar fisicamente outro


completamente diferente daquele imaginado.

O MVA na maior parte de sua realização era dirigido para o sistema motor com foco na
ação dos músculos, ossos e alavancas. Entretanto experimentamos o mesmo exercício
com foco em outros sistemas do corpo como podemos ver nos exercícios abaixo;

6. MVA com outro tipo de estimulação. O comando deveria ser dado às partes do corpo
não relacionadas diretamente à mecânica do movimento. Ex: torcer a língua, espremer o
coração, dilatar a pupila, deixar a bexiga cair, escorregar o estomago, jogar o coração
113

para o lado, girar o fígado, esmagar o umbigo, subir o tímpano. A partir destas imagens
é que se produzia o movimento corporal. O corpo deveria responder fisicamente a estes
estímulos imaginados.

7. A partir do exercício anterior, criar um texto que possibilite a realização de uma


seqüência ininterrupta de ação: enrolar a língua até que ela penetre no lado interno do
ouvido deslizando na parede do tímpano. Jogar o cérebro para a direita e fazer ele pesar
para frente. O nariz deve deslocar-se para dentro do corpo fazendo uma cavidade,
separar os pulmões fazendo-os circular para fora. Elevar o fígado estremecendo-o,
torcer o pâncreas e saltá-lo repentinamente, alargar a garganta e ir abrindo espaços até o
esôfago.

8. Treinando o olhar – roda de improviso, individualmente a pessoa pensa no movimento e


o executa, quando o observador achar que sabe qual é o movimento que será executado
ele fala que movimento é. Leitura dos códigos corporais e padrões de movimento do
corpo do outro. Diálogo ao final do exercício com observações.

ASSOCIAÇÃO LIVRE DE PALAVRAS

Exercício executado em duplas, que consiste em um falar uma palavra e o outro falar
outra palavra por associação, e assim sucessivamente por 10 minutos. A pessoa não deve
pensar sobre o que vai falar, ela fala a primeira palavra que consegue associar com a palavra
que o outro falou anteriormente. Diálogo ao final do exercício com observações. Exemplo:
pessoa 1 fala: chiclete; pessoa 2 fala: cola: pessoa 1 fala: escola; pessoa 2 fala: criança; pessoa
1 fala: liberdade; pessoa 2 fala: fazenda, etc.

Variações:

1. Associação livre de histórias. Exercício executado em duplas, onde um observa e o


outro realiza. Duração de 10 minutos para cada executor. O executor vai narrando uma
história através da associação de palavras que vão aparecendo espontaneamente no ato
da fala. Ele pega uma palavra que surge em sua mente e discorre uma história a partir
desta palavra até que outra palavra aparece em sua mente e assim segue narrando por 10
minutos. Diálogo ao final do exercício com observações.
114

2. Mesmo exercício anterior, só que agora as duplas atuam com mesmo propósito e
contam suas histórias simultaneamente, um olhando para o outro. Cada um deve, além
de contar sua própria história, tentar captar algumas palavras da história do outro para
desenvolver trechos de sua história. Neste exercício observou-se que como uma pessoa
ficava de frente para a outra cada um detectou que houve um aumento da percepção
física do outro. Como não havia possibilidade de desvencilhar a atenção da história
contada, uma outra atenção foi acionada para manter o foco na pessoa à frente. Diálogo
ao final do exercício com observações.

3. Mesmo anterior, entretanto deveria acontecer pausa na verbalização e no pensamento. O


exercício objetivava limpar o diálogo mental, tornar a mente branca com isso houve
aumento de percepção do outro, pois na medida que não se podia pensar em nada no
momento do silêncio a solução foi direcionar a atenção para alguma parte do corpo do
companheiro. (Suspensão do pensamento/ausência de imagens). Diálogo ao final do
exercício com observações.

EXERCÍCIOS COM INSPIRAÇÃO NA IMAGINAÇÃO ATIVA

Esses exercícios objetivam deixar a imaginação fluir. Dar vazão à imaginação.

Variações:

1. Individualmente, cada um deve possuir uma caneta e papel em branco. A pessoa se


posiciona em lugar confortável da sala e concentra-se na sua imaginação, deixa as
imagens habitarem sua mente. Quando aparece alguém na imaginação a pessoa a
convida para um diálogo. A pessoa vai descrevendo o diálogo, como numa escrita
automática, sem parar para pensar no que escreve durante vinte minutos. Após esse
tempo ela despede-se do alguém imaginário. Em seguida os diálogos escritos eram lidos
na roda e discutia-se sobre o que eles poderiam esclarecer a respeito do caminho do
processo criativo tomado por cada um.

2. Trabalho com as imagens. Deixar que as imagens habitassem a mente espontaneamente,


descrever verbalmente estas imagens. Dançar essas imagens ao mesmo tempo em que
elas vão surgindo.
115

3. Exercício do “mudar”, somente com verbalização. Exercício executado em duplas, onde


um comanda e o outro realiza. Duração de 10 minutos para cada executor. Um da dupla
conta uma história qualquer. A história não precisa ter coerência, a pessoa deve deixar
que as idéias fluam. A outra pessoa somente escuta. Quando aquele que escuta quiser
que a história contada se modifique ele fala a palavra “muda”. O executor da história
deve mudar completamente para outra história quando é solicitado. A pessoa que
comanda o “muda” deve estar atento e buscar perceber quando uma história começa se
construir na mente do que narra, para então cortar o fluxo da construção do pensamento.
Outra opção é deixar que a pessoa narre a história até se esgotar, estendendo o tempo
entre o comando das mudanças. Diálogo ao final do exercício com observações.

4. Mesmo exercício acima, mas agora realizado com movimento corporal. Um realiza
movimentos e quando o outro quiser ver outras possibilidades de movimento ele pede
para o executor mudar. O executor deve buscar uma gama de possibilidades para
realização de movimentos corporais, com qualidades diferenciadas, dinâmicas etc. O
exercício também pode ser realizando com outras regras como só se pode realizar
movimentos pequenos, ou só com tronco etc. Diálogo ao final do exercício com
observações.

EXERCÍCIOS COM INSPIRAÇÃO NO MOVIMENTO AUTÊNTICO

Em duplas (testemunha/executor). O executor realiza improviso com olhos vendados a


partir de impulso interno suscitado por imagens que aparecem espontaneamente na mente ou
por emoções que pudessem surgir. A testemunha só observa. Diálogo da dupla ao final do
exercício, em seguida troca-se os papéis. Iniciamos com 20 minutos para cada um da dupla
seguindo a dinâmica do observador/executor. Ao longo do processo a duração deste exercício
foi alargada até chegarmos à uma hora para cada pessoa. A pessoa fica de venda nos olhos e
se movimenta como quiser, aliás, podendo até não se movimentar. Ela pode tudo.

O exercício com vendas nos olhos pode ser realizado de diversas formas. Inicialmente
é importante experimentá-lo sem nenhuma regra definida, onde o executor possa estar livre
para a experiência da percepção da vontade de seu corpo. Após algum tempo dessa vivência é
interessante criar alguns jogos.
116

Variações:

1. executar uma frase de movimentos já elaborada com vendas nos olhos, sem música, ou
com música.

2. realizar o aquecimento já sistematizado com vendas nos olhos.

3. em duplas, um com venda e o outro sem, o que está sem vendas conduz o outro
provocando sensações neste por meio de vários estímulos diferentes, fazendo-o
caminhar em solos com texturas diferentes, tocar em objetos diversos, cheiros,
temperaturas, sabores. 20 minutos para cada pessoa.

IMPROVISOS SOLOS A PARTIR DE ALGUMAS PROVOCAÇÕES

Muitos improvisos solos foram realizados partindo de estimulações diferentes.


Objetivaram incitar o intérprete a se provocar e buscar outros caminhos criativos e de
movimento. Os estímulos foram:

1. cada intérprete deveria pensar, fora do horário do ensaio, em alguma situação que eu
(Giselle) nunca tivesse visto ele fazer desde o momento que nos conhecemos. No dia
seguinte ele deveria fazer uma improvisação sobre essa proposta.

2. Individualmente, sentado num banco na frente de todos os outros participantes da


pesquisa, o intérprete deveria comer um pacote de biscoito inteiro da forma como
quisesse.

3. Frase para improviso ‘Eu num quarto branco. É assim...’, cada intérprete em paralelo
com os exercícios vivenciados deveria ir construindo uma dramatização a respeito desta
frase. Esta foi uma forma de incitar os intérpretes a exercitar os descondicionamentos
observados nos exercícios, e também exercitar o improviso dentro de um contexto mais
definido.

4. Sobre paisagens, gostos, temperaturas etc. Com uma seqüência coreográfica já


estabelecida, o intérprete deve buscar dançá-la a partir de uma imagem subjetiva
escolhida anteriormente, por exemplo, dançar imaginando que está num espaço infinito,
117

dançar imaginando que está numa paisagem campestre, ou ainda, dançar a seqüência
tentando trazer a sensação de um gosto amargo na boca, ou de algo doce etc.
118

ANEXO 2 - RELATÓRIOS DO PROCESSO APRESENTADOS PELOS


PARTICIPANTES182

Relatórios apresentados ao final da primeira etapa da pesquisa, no mês de


novembro de 2004.

Márcia Lusalva

Bom, vc já viu que estou completamente empacada nesse relatório, né?! Então resolvi
escrever um pouco sobre essa dificuldade que estou tendo p/ ver se encontro uma maneira de
explicar o que é o processo p/ mim.

Como falar de um processo que não tem um início, não tem fim e não tem forma

definida? Como falar do que me é pessoal s/ me expor? Como falar da experiência


ainda estando nela? Como falar de um processo que é individual e coletivo ao mesmo tempo?
Seria certo falar de processos individuais sobrepostos? Como fazer tudo isso e não julgar? Por
onde eu vou? Como?

Acho que p/ fazer esse relatório vai ter de ser pela anarquia porque quando fico
pensando em tudo o que é o processo p/ mim é tanta coisa que vem que fico paralisada, ou se
tento sintetizar o processo em um foco ou no que é essencial dele chego quase sempre no

182
Os relatórios apresentados aqui foram anexados de acordo com seus originais.
119

pensamento de que o processo é um caminho autoconsciência. E daí não é mesmo?! Se eu


falo isso findam-se todas a questões?

E dizer isso pode até explicar fundamentalmente o que é o processo, mas não o
descreve, define, detalha. Então p/ fazer esse relatório, declaro a mim mesma e
conseqüentemente a vc que me é permitido descabelar a linguagem. Ou seja, Eu posso mudar
de assunto sem finalizar um pensamento. Eu posso ficar pedida divagando. Eu posso me
contradizer ou mudar de idéia. Eu posso não chegar a lugar algum. Pois assim também é o
processo.

E depois de estabelecido que o Eu pode tudo. É importante que também fique claro
que o “relatório” é uma visão pessoal, particular e no final das contas nada está certo, nada
está errado e tudo é verdade.

Bem, então sorte p/ nós duas. P/ vc que vai ter de ler minha confusão e p/ mim que
tive de fazer um manifesto anarquista p/ fazer tudo certinho como sempre. Tudo isso posto
vamos ao bendito.

O Processo na trajetória do grupo é uma inquietação, uma vontade, uma instigação e


vários questionamentos da artista Gisele Rodrigues. Estou falando isso pq como interprete
vejo o processo também dessa maneira. O processo é um momento na trajetória da artista em
busca de amadurecimento, autonomia e identidade dentro de uma linguagem.

Vejo hoje o Basirah muito mais próximo de seus impulsos iniciais de criação, gerando
assim um espaço de pesquisa, discussão, troca e desenvolvimento da linguagem artística
(teatro/dança). Nesse sentido então o processo surgi como um reflexo ou uma conseqüência
da uma história vivida até aqui.

Então o processo, também é ressonância da vivencia dela (Gisele) até aqui: o Endança,
o não Endança, Londres, o momento que ela improvisou c/ um desconhecido e tudo foi
bárbaro (tudo que aconteceu foi exatamente o que era p/ acontecer pq era. E o fato de o ser
com integralidade substanciava o nada em tudo naquele momento) e isso criou algum
entendimento subjetivo/ pessoal a ser melhor compreendido, o dv8, o que viu, o que fez, as
várias criações, a presença do Howard, a maternidade, o mestrado e por aí vai.

O processo sendo reflexo de tudo isso se mostra então como uma projeção para o
futuro num encaminhamento natural que segue seu rumo.
120

O processo é a vontade, o desejo, as instigações, as perguntas, ao palpites, os porquês.


O processo e o como dos porquês.

Agora agregado a isso tudo existe tb o meu processo particular, que caminha com o
dela em simultaneidade (não sincronia ou igualdade) em espaços diferentes de ação busca e
entendimento. Então, esse meu processo, dentro do processo dela é... O que?! Como? Pq?
Meu Deus, Para o mundo que eu quero descer!!!

Acho que está na hora de desorganizar as coisas. A desistência , o não julgamento, o


autentico, o padrão e o novo, o genuíno que de novo se torna um padrão. O padrão pode ser
genuíno? E a crise semântica, a crise das linguagens sobrepostas a emoção p/ os cientistas, a
emoção para os filósofos, a emoção p/ Artaud, a emoção p/ os gregos, a emoção p/ o
psicólogo x e o Eu retira disso e de si o que significa realmente emoção, afinal ele sente,
verdadeiramente ele sente assim. E se o que ele sente nada mais é do que ele decidiu que se
deve sentir naquele momento? Então tudo passa pelo julgamento e seria impossível suspende-
lo? E o que a gente sente, a gente sente por padrões? Será que alguns dos filósofos estão
certos e não podemos considerar a realidade como base de referencia pq esta nada mais é do
que pura percepção? E Eu o que tenho haver com tudo isso?

O processo é isso. O querer saber, a inquietude da pergunta. O processo não é a


resposta, no processo não se encontram as certezas, o processo são as questões levantas. Na
verdade nada desaparece nem os padrões, nem os julgamentos. A diferença é que vc pode
percebe-los e deixar que eles ocupem o espaço que lhes é devido. E se dando conta deles
(padrões e características) se percebe também a diversidade de possibilidades e se ampliam os
caminhos de criação.

Como falar do processo? Por onde? Vamos tentar desse jeito: O processo p/ mim se
da em vários níveis e p/ falar de alguns desses níveis vou recortar o eu em vários aspectos p/
falar isoladamente de cada um, mas na realidade tudo é um caos.

No grupo – Esse processo é o melhor momento p/ mim no grupo onde me sinto mais
envolvida. Nesse momento em particular sinto mais a troca e a flexibilidade entre as pessoas.
E a mudança estrutural p/ mim são as rodas de conversas que me acrescentam imensamente,
pois é nesse momento em especial que a troca se promove que podemos perceber com mais
clareza os estímulos e caminhos de criação. E o próprio ato de verbalizar sobre a experiência
nos obriga a pensar, compreender o que geralmente é só vivenciado de maneira inconsciente.
121

Nesse processo saímos da dinâmica de praticar uma arte de estimulo e resposta e


passamos ao “dialogo”. O processo do grupo deixa de ser gerado por única fonte criativa e
passa a ser gerado por varias fontes e orientado por uma pessoa que tb participa da criação
gerando-a e orientando-a , criando os estímulos e direcionando o material gerado (resposta).
Não to conseguindo me explicar direito, quem sabe eu volte depois.

Interprete – Como interprete esse processo é super instigante pq me nutri com a


compreensão e entendimento de minhas possibilidades, impossibilidades, caminhos, vícios, e
características na criação artística. É um processo de conscientização de como eu crio e como
me comporto durante a performance. Mostrando assim minha identidade artística pela
distinção dos meus padrões, e de minhas escolhas, validando assim meu processo criativo e
gerando uma maior clareza das minhas características e consequentemente de minha
personalidade e autonomia dentro dela, através da conscientização do Eu ou de um estado de
percepção dele, sei lá!!!!

O bom tb é que esse processo cria um espaço onde minhas inquietações e meus focos
podem ser explorados e trabalhados em paralelo com os da Gisele, e é claro que eles estão
sendo orientados, estimulados ou até induzidos por ela, mas existem espaços dentro dos
estímulos que permitem e exigem de mim como interprete voz... que eu me coloque , que eu
faça, que eu encontre o que eu quero diante daquele primeiro estimulo. Que eu tb me torne
responsável pelos estímulos, pelas perguntas, pelas respostas, que eu esteja presente no
processo p/ mim.

E nas rodas de conversas permito que as inquietações dos outros me contagiem, me


estimulem e me desafiem e por aí o processo vai numa recombinação continuas de estímulos,
vontades e perguntas. Todas as identidades emparelhadas e expostas, e da sobreposição de
todas elas estabelecemos referencias, contrastes, igualdades, diversidade e às vezes chegamos
a respostas pessoais (subjetivas e objetivas) ou em consenso.

Como interprete me sinto mais aproveitada nesse processo do que em qualquer outro
no Basirah.

A história – É claro que o processo tem uma historia anterior a ele que o conduz a esse
ponto. E como ilustração disso vou recuperar alguns trechos de registros pessoais do processo
122

do Howard e suas vendas p/ enxergar o movimento autêntico em um segundo bloco algumas


anotações do processo do Uroboros183:

Obs: Vc pode pular essa parte dos registros pessoais se quiser. Eu nem sei se vou
comenta-los depois, talvez só sirva de ilustração do meu processo criativo.

Bsb 23/05/2000

Na escuridão,o querer....o querer o querer.

Eu me repetindo e me iludindo sobre minha própria sinceridade,

E cada vez mais 1, 2, 3 reproduzo, na procura do original que me é imposto

refaço o mesmo na procura do diferente.

Me sinto burra...

Procuro no outro a realização do eu?

Eu não sei mais fugir de mim.

Eu sempre me acho, me pego e me aprisiono.

Minha liberdade sempre me é podada pelos limites do meu corpo.

Eu queria como já em desistência....

E como utopia, quero ter acesso a tudo que não é meu,

Para construir uma nova identidade e talvez me tornar duas ou três:

Uma cega que escuta imagens,

Uma surda que enxerga sons,

E quem sabe até eu mesma.

Talvez eu devesse ser despida da sensação tátil do mundo para recriar o sentir

Não penso em nada e com isso fujo a responsabilidade.

Eu quero vomitar a liberdade que está trancada em algum lugar aqui dentro.

Quero a solidão completa com o sentido de felicidade independente.

Eu queria acordar sem limites e sem medos.

183
Uroboros foi o último espetáculo do Basirah anterior a esta pesquisa realizado sob minha direção.
123

Bsb 24/05/2000

Dia ruim. Acho que comecei a entrar em crise total hoje. Cheguei numa quantidade

ensurdecedora de sons que parece incapacitar minha audição.

Não consigo me ouvir.

Nem nua eu apareço mais. Quem é essa vestida na minha pele?

S/ Data

Encontrar uma maneira nova de ver. Tudo é normal, como a natureza...é o que é. O

som não é melhor que o silêncio e nem o movimento é melhor ou pior que o não

movimento. O nada não existe, nem o silêncio, nem o estático.

É impossível tornar livre o que já é livre.

O livre está aprisionado por seus padrões compulsivos de liberdade?

Escutar,

Tempo,

Desapegar,

Relaxar,

O simples, a busca do é.

Eu escolho tudo, minhas dores, meus prazeres e inclusive o que é inevitável.

Eu escolho o que é sonho e o que é real.”

“Uroboros –

(todos registro sem datas)

Todas minha verdades são falsas...

O que está errado, só está fora do lugar que determinei adequado...

Eu forjo a verdade dos meus limites e a mentira surgi da minha incompreensão.


124

Não levar as coisas tão a sério.

Relaxar.

A relação é comigo.

Nada é eterno.

Abandonar as tentativas...Respirar e aprender a me aceitar.

Eu me projeto para o céu e o céu me projeta para onde estou agora.

Eu estou aqui, e onde está minha voz?

Olhar o tempo real, respirar e respeitar a desmedida da vida.

Os números são invenções exatas. Já na realidade sempre sobra ou falta.

A quantidade do equilíbrio nem sempre é natural.

Todo lado direito do meu corpo está duro, tenso, dolorido.

Eu sou destra.

Devo ficar parada ou assumir o outro lado do meu corpo?

Entrar no fluxo das coisas e respeitar.

Respeitar o tempo,

Respeitar o eu,

Respeitar meu tempo e perceber que o tempo não é minha propriedade.

Aceitar a capacidade de mutação.

Tudo está em transformação.

A transitoriedade das coisas caminha em tensão.

A tensão é gerada por polaridades de forças que se apresentam em oposição

fazendo a energia circular.

As vezes me sinto surda... e sinto com inconsciência.

Só sinto, só sinto...

Em geral, sou escreva do que sinto.

As vezes coisas me atravessam, não se detêm.

Mas a vezes fico entalada:


125

É algo que não disse,

Algo que não foi feito,

algo que não esqueci,

algo que não perdoei,

algo que sei lá porque volta

Talvez seja algo que ainda não entendi e por isso não sai do meu corpo,

Fica aqui atravessado me impedindo de respirar e segurando minhas mãos.

O que minhas mãos guardam?

Minhas lesões mais profundas deixam marcas invisíveis na superfície da minha

pele.

Mas meu corpo confessa, fala tudo...

Tenho de me ver tão de dentro, que por vezes até parece que estou do lado de

fora, me enxergando de uma maneira outra.

Eu tenho medo da imensidão.

O não limite das coisas me apavora.

Eu me ponho no meio de regras.

Não consigo modificar padrões mínimos...

As vezes a dignidade me pesa.

E pq ela não pode flutuar?

Pq eu não vôo?

Eu não sei o que fazer.

Eu vivo a existência com peso...

Vivo através do emprego da força.

Eu guardo tudo dentro de mim, e hoje em dia não consigo nem flutuar.

EU BOIO COM ESFORÇO.

E agora isso!!!

Tenho de conviver c/ esse outro lado.


126

Sempre me considerei basicamente emocional...

Emocional em tudo. Como se a existência se delineasse a partir do que sinto.

Eu sempre imaginei sentir o mundo emocionalmente.

Tenho de reconhecer que reajo c/ emoções justificadas.

Mas, mental?!!!

Mental???

Acho que demoro um tempo p/ aceitar novas informações.

Eu pergunto para os outros como eles me vêem de fora p/ dentro.

Para me reformular de dentro p/ fora.

Tudo parece exótico...e eu não sei de nada.

Só tinha certeza do que eu achava que sentia. E agora todo esse sentir só

estava dentro da minha cabeça?!”

Exponho tudo isso p/ ilustrar que o processo vem vindo de antes em um continuo de
perguntas geram outras perguntas e os ecos perguntas seguem. E o processo se desdobra em
perguntas: O quê? Por quê? Como? Quando? Será que meu processo é sempre esse?

Mas processo não é só esse som antigo, ele também tem características próprias
pertinentes a esse processo de agora em particular.

E como se em um primeiro momento c/ o Howard eu tivesse despertando a escuta do


corpo, a escuta dos padrões, o despertar da crise, o repensar os limites. E tudo muito pessoal
de olhos vendados, no silencio da imagem de fora.

Com o uroboros veio o inicio da compreensão do eu biológico partindo do BMC e a


tentativa de um estado de percepção consciente do interprete de seu corpo no momento da
performance. E também agregado a isso uma transposição de alguns pensamentos trazidos da
yoga na busca da consciência do eu de si estabelecendo o equilíbrio construído de dentro p/
fora (da percepção do interno p/ o externo), restituindo ao corpo respiração, preenchimento
“biológico” (de vida, energia) e significativo por si. O eu corpo de cada um impregnado de
características. O início da conscientização do meu centro (utilização o abdômen), o exercício
da escuta, a aprendizagem do tempo e das minhas ansiedades, a falta de controle do meu
127

corpo, as crises pessoais e etc. Como pesquisar o orgânico e depois marca-lo? E como tornar
o marcado orgânico novamente? Como o interprete pode se manter presente em si em cena? A
criação de alguns mecanismos estruturais combinando elementos marcados c/ elementos
livres como por exemplo: coreografia que combina tempos marcados, pontos marcados e
percursos livres. Coreografia de movimento marcados c/ exploração de tempo e dinâmica
livres, regidos pela escuta (consciência) de si e dos outros mantendo um equilíbrio entre as
formas propostas. Elementos de movimento com tempo fixo, e percurso livre. Elementos de
movimento c/ tempo livre e percurso fixo e etc. Ou seja, uma serie de mecanismos ou chaves
estruturais do produto que no permite estar sempre em desafio, tornando o espetáculo uma
pratica e não a reprodução de algo. Mantendo o interprete ativo e presente pois mesmo que
esse não faça nada de diferente o outro poderá fazer.

Que droga!!! Eu dou uma volta enorme e parece que sempre volto p/ mesmo lugar, o
mesmo ponto: consciência, autoconsciência. Os Gregos gritando novamente Conheça-te a ti.
Decifra-me ou te devoro. É destino se impondo. A necessidade de manter-se na justa medida.

Já tá na hora de falar do processo no presente o selo comprovante de autenticidade do


interprete Basirehnto. O processo tem sido um momento de investigação, questionamento,
permissividade, afirmação, reconhecimento e entendimento de caminhos e possibilidades de
alteração (alargamento do vocabulário) dos padrões. Agora que vai começar e já parece que
não vai acabar nunca. Como falar do caos de agora?!

É engraçado o processo parece decorrente de um caminho natural. Desde “O Homem


na Parede” já estamos rompendo formalmente com a estrutura do palco italiano,
redirecionando a relação do olhar (publico platéia). Já no Sebastião a ruptura foi p/ o
interprete que perdeu a estrutura tradicional do dentro e fora de cena. A partir dali foi
suspenso o fora de cena, tudo esta ali posto e exposto. Essa relação da presença do interprete
em cena, mesmo que como observador vem sendo mantida desde os trabalhos c/ Howard. O
basirah desde então colocou o interprete em cena sem fuga, s/ o lado de fora, o exercício de
manter a consciência e a presença por períodos maiores, s/ o lado oculto da cena. Tudo está
sendo visto, até o pensamento, o silêncio, a pausa, até o seu não momento está colocado em
cena ( mesmo que em segundo plano ou na sombra tudo está ali).

Esse processo de agora parece mais tranqüilo pq é como se um monte de conexões


estejam se fazendo agora. Finalmente compreendo que autentico não significa novo ou
128

inovador, ou inusitado, ou a negação dos meus padrões. O autentico é tão somente o que é
verdadeiro e o processo vem reconhecer e validar , como em um cartório, o meu processo
artístico. Me conscientizar do que é verdadeiro e também me mostrar onde são só os meus
padrões e seus mecanismos de defesa atuando, e por mais que os sinta como verdadeiro só
será genuíno quando auto consciente (que confusão ,né?!).

O processo vem p/ me expor em vários níveis, decifrar meus caminhos criativos,


pensar meu caos, dissecar meu pensamento, me dar noção dos meus padrões e seus reflexos
em vários níveis (motor, de linha de raciocínio, personalidade, características de movimento)
gerando assim possibilidade de aumentar meus caminhos de exploração.

Acho que isso já é um monte de luz se acendendo, já nos apropriamos até de nossa
linguagem enquanto falamos na roda, já se fala de alargamento de padrões e não em quebra
somente, as pessoas falam de suas linguagens, entram em crise, se pensam, se repensam, se
percebem, se assumem (mesmo que fugindo).

Lina Frazão.

Difícil falar sobre o processo quando se está exatamente no meio dele, ainda embutida
no meio das informações e das conseqüências dessas. Para mim, particularmente, tem sido
extremamente interessante. De certo modo, eu acho bem complementar a todas essas
informações que eu tive morando 8 anos na Holanda. Porque na Holanda, o maior foco de
informações que eu tive acesso, foi mesmo sobre a técnica e o virtuosismo, o espaço, a
qualidade de movimento, etc. Sempre, sempre trabalhando com o controle do corpo, da
mente, do movimento, das emoções. Sempre trabalhando com o apuro técnico, a limpeza dos
movimentos. Então para mim, trabalhar as imagens e a manifestação do inconsciente foi,
129

digamos assim, uma surpresa. Toda essa dinâmica de deixar o inconsciente se manifestar,
deixando que as imagens surgissem sem interferência seletiva foi muito interessante para
mim.

Eu confesso que no começo, eu me senti um pouco atordoada, principalmente pelo


fato de não ter feedback da sua parte, ou de ter algum tipo de direcionamento. Mas eu não
acho que eu necessitava de um feedback de “aceitação”., mas sim de direção mesmo. Eu
nunca conseguia saber se o que eu tinha acabado de fazer era ou não o proposto no exercício,
ou que se o que eu tinha acabado de fazer era o que você queria mais ou menos. É claro que
nessas horas você vinha questionar essa necessidade imensa que todas as pessoas têm em ser
aceitos, e em querer fazer tudo certo, correto, bonito... e nisso eu te vi fundindo a cabeça de
muita gente... hehe... ou pelo menos a minha.

Mas tudo isso foi passando depois de um exato dia em que você me deu um feedback,
e a partir desse dia, ficou muito mais fácil para eu ter clareza e poder ir me aprofundando. Eu
ainda me vejo te observando muito atentamente, tanto no falar, quanto no mover, porque essas
informações, esse “subtexto”, ainda me ajuda muito a ter ferramentas mais palpáveis. E,
embora Marcinha e Rachel digam que não, que não, que não, eu me via sim com mais
dificuldades de acessar suas informações do que o resto do grupo que já passou outros
processos criativos com você. Por agora, eu confesso que o seu dialeto já se torna mais
codificável. Então eu vou pegando mais ou menos o que eu entendi, e trabalhando por mim
mesma. Algumas vezes funciona, algumas nem tanto. Mas eu já não sinto mais aquela
necessidade de ter feedback como antes. Até porque eu sinto que as informações que você me
dá já me alimentam.

Então, por agora, eu estou sim, bastante feliz com tudo que se tem passado. Não que
eu não estivesse satisfeita; desde o início, o desafio de estar neste processo me instigou
bastante. Mesmo estando um pouco perdida, o procedimento todo tem sido muito sedutor. Eu
digo isso, porque pra mim, tem ocorrido determinadas fusões com minha vida pessoal, com
minha dança (se é que algum dia se pode separa-las). Pra mim, o principal foco tem sido
mesmo não se esconder atrás do corpo: me expor tem sido com certeza, o que me causa mais
frio na barriga. Sempre é muito fácil estudar a técnica e se esconder atrás dela; o virtuosismo
deixa os corpos muito turvos, e pode esconder o intérprete. Por isso acho que trabalhar a
transparência como intérprete tem sido o meu maior ganho. Ainda não digo o mesmo como
pessoa, mas também não acho que isso seja necessário. Mas é por isso, que toda vez que eu
130

vejo a Dorka chorando, eu a vejo tão bonita. E eu acho isso lindo nela; tanto a transparência
dela no movimento, ou a transparência dela como pessoa.

Outra coisa que também tem me impressionado: o poder de observar as sutilezas.


Todos esses exercícios de observar o outro têm sido muito interessante pra mim. Eu confesso
que esse ainda não é o meu talento...hehe. Por vezes, eu me vejo flutuando. Ou por vezes, eu
me vejo atenta, mas sem conseguir extrair muito daí. É por isso que eu gosto tanto de ouvir as
pessoas na roda, é aí que minhas idéias vão ficando mais claras e tudo se costura. Aliás, eu me
vejo captando mais o verbo das pessoas que seus movimentos. Mas um alimenta o outro, e é
na roda onde eu consigo me guiar. Embora muitas vezes eu fique meio boiando...

Eu também gosto muito de observar o rosto das pessoas no momento em que elas
estão observando alguém dançando. Elas ficam sempre muito transparentes e é possível vê-las
embuídas (ou não) naquilo que elas estão observando. A Marcinha, por exemplo, está sempre
sentada muito ereta quase que como acompanhando algo muito importante e solene. No outro
extremo, o Alessandro ta quase sempre com cara de sono, e eu acho isso engraçado...

Falando em observação e sutileza, vou chegando também ao meu outro desafio: o


sensório. Perceber a minha dificuldade em acessar o sensório, foi para mim uma descoberta
desconcertante. Por que aí, eu fui percebendo outros detalhes da minha vida que estão
intimamente vinculados, se é que não são já a mesma coisa. Por exemplo, ter perdido tanto
peso depois de ter chegado no Brasil... Aliás, a chegada ao Brasil, por si só, já é um episódio
extenuante... E por causa do processo, eu me vi observando se essa falta de vontade de comer,
essa falta de tesão pelo paladar, essa ausência de desejo pelo prazer gustativo... Não seria
isso mais uma negação do sensório? Por que ao invés de ter desejo e cor nas minhas
refeições, eu comia muito mais por obrigação do que por gosto. Não seria a falta de apetite
uma rejeição aos sentidos? E foi aí, em que ter ficado doente teve uma participação
significativa em tudo isso. Por que ficar doente, fragiliza, expõe, obriga a ter percepção do
sensório através da dor. Ficar doente imbui um senso de escuta interna enorme. Então,
para mim, ter ficado doente também me despertou para uma série de questões que eu consigo
fazer um link direto com o processo todo, é a possibilidade de autoconhecimento, gerando
assim, maior conhecimento sobre a ação genuína, autêntica, transparente e fiel. Seja no campo
emocional, mental, físico, motor ou sutil, já que todas essas peculiaridades fazem parte
exatamente do mesmo corpo.
131

Alessandro Brandão

Já no início não criei nem uma expectativa. Deixei que os exercícios me propusessem
e me levassem. E dentro das propostas fui o mais sincero possível e consciente. Até hoje
sinto que já passei por duas etapas: A conscientização, quando tudo era analisado e pensado.
A subconscientização, que começou com a imaginação ativa.

A primeira semana abriu um espaço para o que eu chamei de desintoxicação do


movimento, ou melhor, de mim. Foi quando comecei a notar os padrões que eu, mais uma
vez, tinha encontrado e cristalizado. E achava que eles eram as respostas para os meus vícios.
Notei, então, que o que era para mim uma nova maneira de responder ao meu lugar comum já
havia se tornado um também. Quando me deparei com essa reflexão fiquei com a paciência
muito curta, pois passei a me sentir sem caminhos e preso a necessidade de ficar sempre atrás
de um caminho novo, nunca experimentado. Irritava-me muito ver as pessoas dançando, pois
eu sempre as criticava e analisava. Notava que se movimentavam sempre igual, e criava
expectativas querendo que elas as seguissem, para eu ver algo diferente em suas formas de se
moverem. Até que a Lina disse: - será que temos que negar tudo o que nós aprendemos em
movimento! E o quê acontece com a minha linguagem que aprendi até hoje, vou ter que jogar
fora? Foi ai que tudo mudou para mim. Notei que o que eu fazia era, achar que uma nova
forma aprendida era a única e verdadeira resposta para o que eu chamava de vícios. Então
notei que tudo o que eu aprendia vinha como uma forma de negação ao que já estava
registrado. Fixava-me na nova qualidade e esquecia as outras, negando assim toda a riqueza
corporal que foi assimilada durante a minha vida!

A sensação da conscientização do movimento vinha de maneira muito calma e às


vezes irritada, os exercícios de pensar, dizer e fazer me causavam uma irritação enorme, pois
eu quase não consegui dominar a minha ansiedade. Mas com a experimentação diária isso foi
passando. Interessante era observar os caminho de cada pessoa. Ver como elas iam mudando
o seu corpo e a maneira com exploram ele a cada improviso. Eu creio que esse processo é
132

uma procura da conscientização e aceitação do que você é. Trazendo essa riqueza para a
atuação, a interpretação ou como quer que se chame o ofício do intérprete.

Eu não quero falar de cada exercício e sim do que esse processo vem causado em
mim. Pelo menos até aqui é isso!

Lívia Frazão

Foi bem difícil começar e manter uma linha de raciocínio clara para falar sobre o
processo e as descobertas feitas, já que são muitas e confusas. Portanto, se você não conseguir
entender qualquer coisa, me avise. Acho que as abordagens têm sido bem diferentes e
bastante pessoais, então vou começar pela pergunta básica: o que eu busco nesse processo.

No início, eu não sabia muito claramente o que eu procurava dentro do processo, mas
eu me preocupava em me manter aberta às propostas e, principalmente, como bailarina, em ter
êxito: a pergunta mais freqüente depois de um improviso era se eu estava “conseguindo
realizar bem” a proposta. Quando me desapeguei desta idéia e passei a me colocar no
processo como investigadora, coisas começaram a fluir melhor. Depois percebi que,
conseqüentemente, a minha condição como intérprete (ou bailarina) no processo começou a se
alterar também. Descobri, então, que um dos caminhos que eu tentaria trilhar seria o da
pesquisa, mas agora com a abordagem do desapego e do “riso” (tanto quanto fosse possível, é
claro, já que todos temos egos perversos...).
133

É claro que aconteceram muitos momentos de desconforto; assim como de grande


conforto ao perceber que em algum “caminho”184 eu me encontrava. Resolvi também que,
apesar da segurança dessas trilhas, não haveriam certezas ou erros absolutos nem mesmo nos
momentos de conforto, mas a tentativa da comunicação e da simplicidade livres deste tipo de
julgamento (isso tudo para driblar o meu julgamento e estar segura e íntegra dentro do
processo).

Existiu um momento específico onde começou a acontecer esta mudança específica


sobre minha abordagem. E ela se processou através de, veja bem, um descarado julgamento:
foi quando constatei o quanto meu movimento estava vazio (foi o meu dia do choro: cada um
tem o seu nesse processo!!). É claro que agora já não sei se ela se processou através de um
julgamento ou de uma consciência sobre meu movimento. No dia específico, achei que era
julgamento, pois estava utilizando a mesma estrutura de julgamento que usava em qualquer
improvisação: geralmente o que preocupa nesses momentos são a performance em si, a
movimentação, a plasticidade do corpo (acho que por isso me perco em experimentações
absurdamente longas e isso também me ajuda a realmente não prestar atenção no meu corpo
dentro do espaço e ao meu olhar, que fica interiorizado).

Já o que ocorreu no dia específico, foi uma constatação do vazio, e não a questão
estética do meu movimento vazio. Naquele momento, já não importava se os movimentos
eram plásticos ou não, mas que não existia absolutamente nada neles: nem graça, nem beleza,
nem texto, nem subtextos, ou intenções, ou experimentação ou imagens. Não existia nada: até
um elefante dormindo em pé a balançar sua tromba diria mais coisas com esse gesto torpe.
Por esses motivos, acho hoje que não foi meu julgamento do tipo clássico, mas outro tipo de
julgamento: o tomar consciência. Mais cruel e poderoso que julgar-se esteticamente é tomar
conhecimento que aqueles movimentos estéticos não valem nada.

Tudo isso se associou também à consciência do meu não-silêncio, mesmo quando o


silêncio era desejado. Essa conjunção foi o estopim. Resolvi tentar encontrar o meu silêncio:
alguns caminhos se mostraram pouco adequado, já que ainda não estava ligada ao meu
silêncio através da percepção: o importante não era criar um silêncio, mas absorvê-lo no
momento da percepção. E minha busca se intensificava ainda mais quando eu não procurava

184
Sobre “caminho”, considero a percepção ou consciência da mudança, seja ela pequena ou não (nota da
autora do relatório).
134

perceber o silêncio, mas quando o meu estado emocional alterava meu estado corporal,
intensificando várias vezes os silêncios que brotavam. Mas eles ainda duram pouco. O
silêncio: essa tranqüila suspensão que parece não ter fim (apesar de ter). Vendo a Dorka –
que aliás foi a primeira pessoa que eu me lembro a comentar mais efetivamente sobre os meus
não-silêncios – percebi que existe nela um tipo de silêncio que não acaba, que é natural dela,
da sua tranqüilidade, que realça qualquer movimento que faça pois dá oportunidade e tempo
para adentrarmos nos movimentos e nas imagens.

Falando em imagens, tenho uma página do meu diário (do início do processo) que diz
o seguinte: “Minhas idéias e imagens fluem numa rapidez que fica difícil parar. Como numa
retroalimentação, as imagens impulsionam meu corpo e meu corpo alimenta minha mente
com novas imagens (a partir da percepção do meu corpo). Hoje, Giselle mencionou que o meu
corpo me domina. Acho que começo a entender... e aceitar...talvez!”. Mas algo se modificou,
já que hoje percebo que as imagens já não fluem com tanta rapidez, mas ao mesmo tempo
respiro mais tranqüilamente nas minhas improvisações e não me preocupo realmente. Não sei
o motivo delas diminuírem a velocidade, mas realmente não me importo agora. Me importa a
minha tranqüilidade e aceitação desta nova realidade. Não acho ainda que entendi realmente o
que significa ter meu corpo me dominando (tenho uma idéia nublada somente de que, em
algumas situações, essa fluência é uma indicação da minha falta de concentração: por
exemplo no exercício de falar/fazer), mas isso não vai ser uma preocupação como estava
sendo no começo do processo. Isso vai se esclarecer com as vivências.

Mas tem alguma coisa nessa frase que acho equivocada e utópica: quando eu escrevi
que, como numa retroalimentação, as imagens impulsionam meu corpo e meu corpo alimenta
minha mente com novas imagens (a partir da percepção do meu corpo), é por que soube
através das experimentações sobre essa retroalimentação (e isso é claro pra mim até hoje);
mas essa retroalimentação não acontece em todos os momentos e isso fica fácil de perceber. É
fácil perceber quando acontece e quando não acontece. E hoje já consigo perceber, mesmo
que seja de uma forma muito sutil, quando isso acontece com outras pessoas improvisando. É
como uma linha brilhante que perde seu brilho de uma vez e recomeça depois de um tempo a
ganhar força e brilho lentamente. Esse brilho quem impõe é a atenção de quem assiste em
conjunto com a coerência185 de quem improvisa, ou seja, a coerência da comunicação entre

185
Que não quer dizer uma lógica cartesiana (nota da autora do relatório).
135

interlocutor e receptor; e mesmo que as imagens e textos ditos e recebidos sejam divergentes,
ainda assim parece ter acontecido algum tipo de comunicação (ou relacionamento). Esse
relacionamento franco me interessa.

Aliás outra coisa que para mim é um avanço como observadora é ter percebido que,
mais e mais, consigo me comunicar com as pessoas, com as imagens e com o espaço ao meu
redor. Nunca tive muita paciência: nem para observar os outros/coisas, nem para me perceber.
Agora, para mim, está sendo bastante gostoso perceber certos detalhes nas pessoas e nas
coisas que são absolutamente comoventes, como o dia em que estava no sinal e percebi uma
mãe com uma criança de colo com seus 11 meses, um ano. Estaria tudo normal, se eu não
tivesse me absorvido com o detalhe da mãozinha da criança que mexia com o colar no colo da
mãe num gesto absolutamente displicente (característico das crianças), mas com uma total
atenção à sensação daquele ato. Era tão claro que me absorveu durante todo o tempo em que o
sinal esteve fechado.

A continuar... impressionante como não acaba nunca!!!

Alisson Araújo.

De repente uma gota luminosa caiu em um rio escuro. Ela faz ondas curtas, quase
imperceptíveis para os olhos desatentos. A escuridão do rio continua e a gota goteja de tempo
em tempo. Sinto-a de maneira compassada.

A venda fecha os olhos, escurece a íris, sou o rio, sou água turbulenta e escura que
movimenta com o gotejar da gota... gota... gota... gota.

Temperatura descontrolada, oscilando entre a altura da expectativa e a queda da


frustração... “Por que?”... “Por que não saiu como planejei?!”... “Por que escolhi esse
caminho e não o outro?”
136

Uma sala de julgamentos transforma minha cabeça. Quem é o juiz? Acho que não há!
Essa consciência da ausência de juiz desestrutura a base. “Então pode tudo?” – Mas será? Se
pode porque fico ouvindo essa voz do advogado do diabo que não silencia nem um minuto?

O cansaço invade meu corpo e já não posso pensar... Embora dentro da cabeça uma
série de ligações vão sendo feitas. Algo que liga com algo. O curto-circuito é inevitável. Pede-
se ajuda da eletricista e dos demais voltz. Esclarece-me muito... certezas, incertas.

O pipocar de imagens. A amedrontante e prazerosa brisa que sinto nas asas da


liberdade. Não há só um caminho, há o céu.

Espaço em branco....... o branco.

A gota cai. E o que sinto? Tem momentos que julgo que sei, outros acho apenas que
não tem respostas e outros que se há respostas não me foi compreendida.

Um caleidoscópio de quarto branco que se modifica.... mas o que? Uma estada se


apresenta em minha frente – Será se me conduzirá a Godot?

A dificuldade é silenciar, ou melhor, dialogar mente e corpo. O fluir. Escutar a voz da


psicografia do não julgamento. Aceitar.

O surpreendentemente novo é a propriedade do simples. E como tenho dificuldade


com o simples. Ouvir a voz da gota nesse rio intimamente desconhecido, me parece muitas
vezes mais complicada do que realmente é.

Sou um rio escuro que aos poucos vou sendo reapresentado para meus afluentes. E
essa apresentação ocorre de maneira a aceitar a importância de todas as águas que dão corpo
ao meu corpo d’água.

Um grande vale se abre e posso escutar o som da minha voz onde esteja, embora na
grande maioria ouço-a retardada.

Sinto que ainda não consigo coporificar as gotas que gotejam em minha cabeça, mas
pelo menos já posso ver muitos afluentes sem renegá-los só porque há uma nascente nova.
Descobri que é muito mais importante somar as águas do que soterra-las.
137

Posso ver que nesse processo encontro-me muito mais em um estágio de compreensão
de como se dá o meu processo criativo, do que de criador. Embora esteja criando sempre.

Tenho tendência a querer absorver os processos de uma maneira muito dinâmica e


rápida. E agora posso perceber isso, percebo que isso às vezes passa por cima do meu próprio
tempo. Minha ansiedade e a vontade de estar certo me prejudica. Compreendo que devo estar
sentindo o vazio do aqui e agora. Contudo sei que ainda não consegui esse estágio e que isso
pode levar anos, mas sei o que devo obter.

Sinto que o processo me ajudou a aceitar a dramaticidade de meus movimentos e a


teatralidade dos mesmos. Não sei como utiliza-los, mas sei o quão fortes estão em mim. Pois
tenho o costume de recusar os meus padrões ao invés de aceita-los. Porque tedencio a querer o
novo, mas não tem como surgir o novo sem esgotar o que já é conhecido.

A força de um interprete é a segurança com que ele joga no aqui agora de suas ações.
Pelo menos sei que só adquiro força como interprete quando ganho essa segurança. A
incerteza do que não existe me deixa temeroso. Julgo-me de minuto em minuto. Acabo
ficando muito mais no fora do que no dentro - pois costumo ficar percebendo a reação de
quem me olha.

Devo confessar que no início do processo não havia entendido o objetivo. Quando
ouvia falar do “sem julgamento”, “quebra de padrões”, “não premeditação”; sentia que era
para quebrar com a segurança do interprete. Hoje vejo que esse processo é uma lente de
aumento no processo criativo de cada interprete, para que consciente de suas “muletas”, possa
estar dando espaço para outros caminhos. Fortalecendo a segurança do interprete, de que ele
não precisa ir apenas por um caminho, mas que ele pode utilizar vários dialogando de maneira
que possa satisfazê-los no momento em que está executando a sua ação no espaço.

Esse processo me ajudou a perceber-me de maneira mais consciente, quebrando com


algumas percepções distorcidas que fazia de mim, e me mostrando da maneira que sou. Isso
tem me feito ralentar mais e escutar mais. Por enquanto é o que consigo perceber em mim,
acho que ainda não consegui transferir isso em termos de movimento, ate porque a maioria
das vezes me percebo ou no momento, ou depois que executei uma ação, o que me possibilita
apenas uma reflexão de meu improviso ou do que eu esteja fazendo como interprete.
138

Dorka Hepp186

Bom, vou tentar escrever sem me julgar, senão vou precisar de cinco dias para
terminar este relatório... Eu fico tropeçando nas palavras, fico com dúvidas em relação à
escrita... Enfim, você vai ter que decifrar o que estou escrevendo!!! Já vai preparada porque
não sou nenhuma escritora e nem pretendo ser. E pior, não tenho a menor idéia do que vou
escrever! Como colocar as coisas de uma forma clara e objetiva, se na minha cabeça está a
confusão geral de informações???

Por onde começar? Pelo início talvez? Não! Ai, mas que dificuldade! É incrível como
eu não gosto de refletir sobre as coisas: faço de tudo para evitar pensar nas coisas que me
incomodam. Por que me incomodam? Isso eu não sei: como já disse faço de tudo para não
pensar nelas. Mas na verdade já falei bastante sobre o meu estágio no processo. É difícil falar
sobre uma coisa em particular porque estou percebendo que me vêm muitas informações de
uma vez só na cabeça! Fica difícil estabelecer uma ordem lógica para elas. Vou chutar sem
me preocupar se você vai entender ou não...

Quando foi proposta a primeira improvisação, eu fiquei desesperada (sem exagero).


Quando eu tinha mais ou menos uns 16 anos, eu passei por uma frustração muito grande com
um exercício parecido, que eu tive que me concentrar bastante aqui para poder encarar esta
mesma situação de novo! Bom, então, já que estava muito perturbada (e desesperada), eu
resolvi encarar de uma outra forma: mostrar justamente as minhas fraquezas. Aí eu teria
“certeza” que não poderia cometer nenhum erro. Mostrar as minhas “incompetências” seria a
solução porque, neste caso, fazer “errado” seria o “certo” para mim! Entendeu?... tá um pouco
confusão, não é?... Mas como a proposta do exercício era: “me mostra alguma coisa que você
gostaria de fazer”, eu então aproveitei um outro elemento: o Edi tem uma coisa quando ele
improvisa que eu não sei descrever ao certo, mas parece que ele não tem medo de encarar o

186
Esta participante não é brasileira, por isso a dificuldade da escrita.
139

mundo, e apesar dele ser uma pessoa bastante misteriosa, ele parece dançar completamente
“aberto”... Eu já sou mais retraída, mais para dentro. Ás vezes, eu sinto vontade de me rasgar
o peito para ver se sai alguma coisa. Por isso escolhi me pendurar na barra de peito aberto sem
poder me retrair. Eu quis me colocar numa situação de exposição para ver qual seria a
sensação que isso provocaria em mim... Foi bastante desconfortável, diria até mesmo MUITO
desconfortável. Tanto é que não sabia por onde olhar, quem olhar e como olhar de tão perto
(eu havia definido também não ficar muito longe do “público”). Mas ao mesmo tempo (o que
é legal), eu percebi que não era impossível, só falta a prática, aliás, MUITA prática!

Outra coisa que devo colocar é que inicialmente, quando comecei a pensar no que iria
apresentar, eu estava bastante preocupada com o resultado final, com o produto. Até que
percebi que esse não seria o caminho apropriado para mim: pois é, eu não me sinto com a
menor vocação para coreógrafa e duvido que isso ainda acontece! Então optei pelo
desconforto, mas, um desconforto que fazia mais sentido para mim, por que me provocava de
uma forma muita mais interessante para aquele momento. Mas mesmo assim, eu fiquei
frustrada, porque neste improviso, não havia nenhum comentário, ninguém podia falar nada!
E para mim, era importante saber se as pessoas tinham entendido o meu objetivo. Eu queria
muito ter falado para todo mundo (e até pensei incluir isso no improviso, mas achei que iria
soar como desculpa): “não olhem para o produto, mas sim para o caminho”. E eu realmente só
fiquei mais tranqüila (e um pouco menos frustrada) quando o Alessandro falou que três coisas
o haviam surpreendido nessas improvisações: a Rachel cantar, a Lina não dançar e eu falar. Aí
eu pensei: “bom, pelo menos consegui atingir uma pessoa!” Continuo sem saber ao certo se o
resto entendeu o que eu quis dizer/fazer, mas já vale por enquanto.

Quando veio o segundo improviso “me mostre alguma coisa que eu nunca vi você
fazer”, aí eu pensei: “estou frita”. Como eu vou mostrar alguma coisa que ela nunca viu se eu
mesma nunca me vi fazer alguma coisa diferente, afinal sou uma pessoa MUITO normal, que
nunca faz coisas diferentes! Mas bem, eu também tinha resolvido não me importar de novo
com o resultado final... E incrivelmente, foi muito menos sofrido de que para o primeiro
improviso. Não quis me torturar para achar algo “interessante” para mostrar, e decidi ir pelo
mesmo caminho da outra vez. Por isso, eu procurei pensar na minha vergonha, no meu
desconforto em fazer algumas coisas. Esse seria meu “Start”. Aí me veio a idéia dos
palavrões. Era bastante simples, mas não havia erro. Eu até achei divertido fazer. Mas me
arrependi um pouco porque tinha pensado em escrever uma lista de palavrões no papel para
poder lê-la, mas aí, mais uma vez fiquei na dúvida e acabei não fazendo (achei que ficaria
140

menos natural). Mas então os palavrões não vieram de uma forma fluida, e agora acho que
deveria ter feito esta lista. Poderia ter imaginado um outro jeito um pouco diferente (e mais
elaborado) de aproveitá-la. Mas os erros estão aqui para a gente aprender com eles, e, pelo
menos desta vez, não fiquei frustrada... o que já é um grande avanço para mim!

Não posso dizer também que achei o “produto final” super legal, mas, mais uma vez, o
caminho/processo é que realmente foi importante para mim neste caso. Não vejo o que
poderia dizer ainda sobre este assunto...

Agora o famoso quarto branco. Bom, acho que já falei tudo sobre isso logo depois do
improviso, mas já que é para colocar tudo por escrito, então vamos lá!

Na primeira tentativa (na qual só falava... e chorava – apesar de não estar nos meus
planos), acredito que não devo acrescentar nada, acho que ficou bem claro para todo mundo
(pelo menos eu espero!). Mais uma vez, era importante e imprescindível ser sincera comigo
mesma e frente ao público. Aliás, não vejo mais (e acredito que sempre foi assim para mim)
como não ser sincera, porque é de lá que posso tirar a minha força: na minha sinceridade, nas
coisas que realmente existem dentro de mim e que possam me oferecer material para atuar/
representar/ dançar. Eu não consigo conceber algum improviso estruturando ele inteirinho,
pensando em tudo antecipadamente. Para mim é impossível: não gosto de estruturar demais,
isso me atrapalha. Sou muito virginiana e quando faço esse tipo de coisas, fico muito pouco
flexível para mudar depois na hora de apresentar. Por isso prefiro ter alguns pontos de
referência e seguir a minha vontade (sensorial e/ou emocional). Eu fico então mais aberta e
receptiva aos impulsos e informações que recebo, e principalmente, fico livre de poder usá-los
da forma mais sincera para aquele momento. Foi o que aconteceu na segunda tentativa. Eu
tinha alguns pontos de referência, mas não quis estabelecer nenhuma estrutura fixa e rígida.
Eu tinha pensado em alguns elementos e me deixei completamente aberta para usá-los ou não
na hora do improviso. E o engraçado, é que, vários elementos que eu havia preestabelecido,
como, por exemplo, cantarolar, usar o cantinho da sala, me vieram naturalmente. Não tive que
fazer esforço para que eles acontecessem. Não consigo me lembrar muito bem do que eu fiz, e
não tenho a menor noção do tempo que levou a improvisação, mas eu fiquei bastante
satisfeito com o que fiz. Deu-me vontade também de falar, antes de começar, de que
provavelmente ficaria um pouco brega, mas que assumia isso como parte do meu processo.
Mas mais uma vez achei que fosse parecer que queria me justificar, me desculpar, e acabei
não falando.
141

Como já disse, até agora não estava preocupada com o produto e ao contrário, estava
sendo muito mais importante o processo do que o resultado. Me provocar, me cutucar, atingir
as minhas fraquezas é o que realmente me importava. Só que fui percebendo que as pessoas
estavam elaborando cada vez mais as suas improvisações. Aí eu pensei: “será que não está na
hora de eu elaborar um pouco mais também? Será que não estou me conformando de uma
certa forma, já que fico achando o tempo todo que o que importa é o meu processo... talvez eu
esteja com medo de dar o passo para frente elaborando mais os meus improvisos... medo de
não conseguir fazê-los parecer mais “maduros”... e talvez eu não conseguirei fazer isso nunca
por não me achar capaz disso!?!?” Agora complicou tudo! Já saí da fase de achar que tá tudo
legal e entrei em conflito comigo mesma de novo! É exatamente aqui que entram... OS
ÓRGÃOS.

Nossa! Essa foi difícil! Eu estava com a auto-estima um pouco abalada (e ainda estou).
Estava achando tudo o que fazia medíocre. Na verdade, no exercício, nem estava conseguindo
acessar os meus órgãos e isso me deixava bastante frustrada. Eu estava fingindo que os
acessava. Representava, e isso me incomodava demais! Até agora não assimilei muito bem
esta parte do processo... Não sei o que houve ao certo. Esta parte do processo realmente está
me incomodando demais. Sentia até um pouco de preguiça toda vez que a gente ia trabalhar
com isso! Na verdade, eu queria ter insistido um pouco mais nos exercícios sem ter que me
preocupar com um improviso, uma frase para construir. Eu não “dominava” o exercício (não
que seja necessário o domínio completo, mas pelo menos um pouquinho mais do que estava
conseguindo fazer), e isso me desanimou bastante! Voltou a virginiana: tudo dentro da
perfeição senão, não serve!... Mas é isso, não sei o que dizer mais sobre este assunto porque,
na verdade, eu não assimilei muito bem. Acredito que, por isso, quando começaram a
conversar sobre o assunto, fiquei completamente perdida, sem entender nada. Foi horrível
porque me senti uma perfeita idiota e ignorante! Senti-me distante do resto das pessoas...
apesar de achar que algumas dessas pessoas devem estar numa situação um pouco parecida
com a minha (ou talvez eu queira me consolar achando isso!).

Em relação aos improvisos em si, procurei não pensar muito no meu estado de espírito
(a preguiça, a auto-estima baixa...), e resolvi encarar como mais um desafio para superar.
Arriscaria até dizer que foi divertido fazer a criança da Raquel. Engraçado, porque quando
nos foi pedido para colocar uma personagem, a primeira idéia que me veio na cabeça para a
Raquel, foi um débil mental. Mas aí, fiquei com um peso na consciência e optei por um
epiléptico. Agora entendo de onde surgiu esse débil mental: é assim que estava me sentindo,
142

uma débil mental, incapaz de acompanhar os comentários de fim de aula! Credo, que
horror!!!!!... Mas enfim, voltando ao assunto da criança da Raquel... Sim, então, achei legal
ter tido a oportunidade de explorar um lado meu que só revelo aqui em casa, tendo somente a
Luiza e o Livino como espectadores. Foi divertido “interpretar para valer“ uma criança. Bem,
na verdade, estou me lembrando que já havia feito isso em público antes, na experiência
infeliz com Hugo Rodas: SO-SA-SUS-COR e a INFELIZ boquinha da garrafa (estou
exagerando um pouco, só não estava preparada para este tipo de “humilhação”).

Mas infelizmente (?), eu não consegui ver por onde esta criança poderia me levar e
preferi colocá-la de lado por enquanto... Quem sabe ela aparece de novo mais tarde neste
processo. Eu fico dizendo o tempo todo “a criança da Raquel”, mas eu também tenho uma
criança muito presente dentro mim, e só não a revelo tanto quanto ela porque tenho
vergonha... Mas que às vezes ela quer sair e aparecer, isso eu não tenho a menor dúvida: eu é
que não a deixo sair! Por isso, prefiro não dizer que a abandonei, mas sim, a coloquei de lado
esperando um outro momento para faze-la aparecer de novo. Bom, pelo menos é o que desejo,
agora, vamos ver se acontece!

Para o último improviso da quinta-feira passada, eu admito que não estava (e estou)
nem um pouco convencida do que iria fazer e do que acabou sendo. Eu não sei, estou indo
muito numa direção meio “pesada”, meio “dramática” demais, e estou começando a ficar
entediada com isso. Pareço que não saio daquilo, e para ser sincera, nem sei de onde vem!
Mas o fato é que isso sempre volta e aparece nos meus improvisos. Acabo me achando uma
pessoa chata, dramática, repetitiva, pouca criativa e pouco feliz. Bom, mas talvez eu tenha
justamente que esgotar este lado meu para ver onde ele possa me levar. O que eu vou poder
extrair dele. Talvez até não seja nada, mas isso só vou poder descobrir mais tarde. Por
enquanto, prefiro ser levada e deixar as coisas acontecerem. Não quero me “forçar” a nada,
quero poder ter o tempo de fazer as coisas do jeito que eu achar melhor para mim, e eu mesma
fazer as minhas escolhas. Ou seja, agir de uma forma que sempre me foi negada quando eu
era pequena: as pessoas escolhiam tudo para mim, e pior, me diziam até o que deveria sentir,
dizer e achar. Acredito então, que o meu caminho seja este: me libertar, libertar este grito do
qual falei no início do processo, e que me persegue há muito tempo. Pegou um tom
terapêutico, eu não queria que isso acontecesse, mas eu vejo que preciso passar por isso para
poder seguir em frente. E, aliás, como poderia fazer um movimento autêntico se eu mesma
não sou autêntica, e para isso, eu devo me conhecer por intera. Vou parar por aqui porque o
143

discurso ta ficando meio brega. Então é isso. Qualquer dúvida, pode me perguntar, ou se você
quiser saber outra coisa, pode entrar em contato comigo.

Diego Pizarro

Nesse momento, já tendo passado o período de adaptação (às vezes penso que ainda
não) e inserção no processo proposto, meu corpo encontra-se “estranho”. Parece que ele não
está como sempre esteve em sua relação descompromissada com o espaço. Parece que
qualquer movimento, por mínimo que seja, chama a minha atenção para a sua relação com o
espaço, com o ar que está sendo deslocado a partir da movimentação até mesmo involuntária.

E essa estranheza é tão latente que eu sinto como se meu corpo estivesse mudando de
tamanho, talvez porque esteja percebendo-o melhor. Eu me sinto como um bebê que admira
sua mãozinha, conhecendo-a e explorando-a, pegando o seu pezinho e admirando-o. Como se
as células e os tecidos estivessem transformando-se, e o que está sendo transformado é
simplesmente a minha atenção, ou talvez não.

Por causa dessa relação diferente que estou tendo com o meu corpo, as aulas de dança
fazem com eu perceba vários movimentos executados sem atenção anteriormente, mas que
agora partem para uma sensação mais interna de que partes corporais estão sendo trabalhadas.
Mas eu sou o meu corpo, e essas mudanças eu acredito que são reflexo da minha própria
mudança de “pensamento”. Estou passando por uma fase muito importante de auto-
conhecimento e reflexões sobre a minha colocação perante a vida, perante o espaço, perante a
arte principalmente. Por isso a mente interfere no corpo de maneira a fazer com que ele se
coloque no espaço de uma forma mais consciente.

Nesse sentido, eu acho que o processo vivido até agora com o grupo está sendo
riquíssimo para o meu desenvolvimento pessoal, seja artístico, corporal ou mental. Mas
também me coloca em situações em que eu não sei o que fazer, há momentos em que eu
144

travo, principalmente quando a palavra é: “Eu num quarto branco é assim”. Ou seja, criar uma
performance artística a partir de um estímulo que é esta frase, e pensando em todos os
exercícios vividos como experiência até agora parece simples. Mas como trazer para o
movimento algo a ser dito a uma platéia? Será claro o que estarei dizendo, ou cairá sempre
numa abstração sem fim? O que é que eu quero dizer?

O processo trabalha o tempo todo com a criação individual, seja em improvisos, em


exercícios, ou em performances previamente pensadas. No início, todas essas experiências
estiveram muito confusas na minha cabeça, a maioria dos movimentos aconteciam e depois eu
não entendia bem o que eu tinha feito. Acho que agora estou um pouquinho mais tranqüilo
com relação a isso, acredito que pelo motivo de estar mais tranqüilo também no grupo, mais
seguro em relação aos colegas. Fazer os exercícios preocupado com julgamentos é sempre um
bloqueio para que as idéias fluam pelo corpo e apareçam nos movimentos, mas às vezes ele é
inevitável.

Esse período de “folga” que eu tive maior que os outros, pois estive duas semanas sem
participar do processo, fez com que eu percebesse as mudanças já em conseqüência do
trabalho. Com o corpo e a mente descansados, pelo menos da experiência com o grupo, eu
pude sentir diferenças. Estou ansioso para continuar com o processo, pois quero ver como é
que será minha movimentação depois desse período de reflexão, talvez seja como sempre foi,
mas a percepção pelo menos já está um pouco alterada, para o bem, creio eu.

Micheline Diniz

Transbordar

O processo criativo começou como uma proposta que vinha de fora para dentro. Isto é,
começou com os estímulos e sugestões que vinham da Giselle e que eu não sabia ao certo
onde ela queria chegar. Nesse momento, percebo que o processo criativo é uma gestação que
cada um de nós vivencia separadamente e a cada dia que passa ganha mais força.

Embora eu ache que o processo criativo tenha se tornado bastante individual, isso
aconteceu de forma natural. Afinal, a busca do intérprete é pessoal e é preciso exercitar o
artista-expedicionário. Acredito que é extremamente importante estarmos “juntos”, pois
145

observar o trabalho do outro e acompanhar seu desenvolvimento somado às discussões em


roda têm me ajudado muito.

Realizamos até agora vários exercícios. Primeiro começamos pelos mais mentais até
chegar àqueles que geram movimento. Quanto aos mentais acho que tenho mais facilidade. A
dificuldade está naqueles onde é preciso gerar movimento. A transformação de algo que é
mental para o movimento é mais delicado, mas também não acho que está aí o problema, pois
o exercício diário estimula a criatividade e acredito que com o tempo aparecem bons
resultados.

Um pouco mais complicado é a questão de gerar movimentos a partir de sentimentos,


pois logo aparecem as “Máscaras”. Mesmo quando se está disposto a falar delas é preciso ter
cuidado porque o ser humano está acostumado a “maquiar” e isso atrapalha bastante. Como o
movimento é uma linguagem muito abstrata, ou somos claros na nossa proposta ou não vai
haver comunicação. Acredito que ser claro significa buscar a essência do que se quer dizer,
tentar reduzir ao que é verdade. Assim, a maquiagem atrapalha bastante, porque ela vem de
forma inconsciente e isso torna tudo mais difícil.

Falando especificamente sobre o exercício de pensar-falar-fazer, acho incrível como


todas as vezes que eu o realizo, consigo perceber coisas diferentes. Percepção ou falta de
percepção do próprio corpo, os tempos, as texturas e a presença.

Os exercícios que realizamos com o foco na presença também foram bastante


interessantes. É importante desvencilhar-se do tempo anterior e do futuro (preocupação com o
próximo movimento). Sentir o corpo como um todo, com consciência do caminho que ele está
realizando. Quando o corpo está todo conectado é produzida uma textura mais interessante.

Quanto às improvisações, ainda não estou construindo nada que vá se tornar maior.
Gostaria de já estar com as minhas atenções mais voltadas para uma direção, pois me sinto
‘em aberto’ e isso dificulta um pouco. Mais tudo bem! Não é porque não tomei uma direção
que o processo não esteja sendo muito intenso pra mim.

Até agora minhas improvisações foram investigações e tentativas. De certa forma


todos os improvisos tiveram seu valor. Testei coisas, esbarrei em dificuldades, consegui me
livrar de algumas idéias ruins, percebendo caminhos que não devem ser seguidos e cheguei à
146

conclusão, que parece óbvia, mas com muita consciência, de que quero mesmo produzir
movimento.

Segue parte do meu monólogo:

“percebi que a movimentação e eu ainda não somos a mesma coisa. Eu ainda


preciso fazer a movimentação, ela não sai sozinha. Acho que para ser uma
coisa só eu deveria sentir e ela deveria acontecer e não Ter que fazê-la.”

Estive pensando que meu corpo dorme. Quando descobri isso me assustei um pouco,
porque eu sou uma intérprete bailarina! Se meu corpo dorme eu não sou nada! Mas graças a
deus eu sou uma pessoa insistente, e se meu corpo dorme, eu vou acordá-lo.

Nesse momento meu olhar se volta para saber como deixar as emoções e sensações
extravasarem os limites do egoísmo. Ou seja, como deixar que essas sensações que eu sei que
existem, e sei que são interessantes, sejam vistas pelo observador.

“as vezes tenho a impressão de estar dentro de um ovo. As emoções, os


sentimentos existem, mas ninguém consegue ver porque a casca do ovo
impede que as emoções extravasem para o movimento. É preciso quebrar a
casca do ovo.”

Alguns dias depois dessa observação que fiz pra mim mesma, estávamos em roda
conversando sobre o improviso daquela manhã e começamos a falar sobre a busca da
identidade de cada intérprete, sobre assumir a sua identidade, sobre não Ter que atender à
expectativa do outro e do tão falado julgamento, que é tema recorrente de nossas discussões.

Nesse momento comecei a perceber que talvez não seja preciso quebrar nenhuma
casca de ovo para que venha nascer o movimento. Talvez seja melhor relaxar, dilatar meus
poros para que o movimento saia tranqüilo sem Ter que romper barreiras. A casca que impede
o movimento deve ser desintegrada e não quebrada, dando lugar a “expressão movimento” e
assim, de forma generosa, mostrar sentimentos, sensações, idéias e vontades, críticas...

Outro susto. Será que essa casca do ovo é o tão falado julgamento que fazemos de nós
mesmos! Se isso for verdade, ele é muito mais pernicioso do que pensei. Eu nunca duvidei
que ele existia e que estava presente, mas tinha certeza que ele não estava me atrapalhando
tanto.

Essa reflexão merece uma longa e prolongada digestão.


147

Não quero pensar porque o julgamento existe e está presente em nossas vidas (pelo
menos nesse momento, pois isso daria uma dissertação de mestrado, mas me afastaria do meu
objetivo de agora que é voltar a dançar), quero apenas me livrar dele, e é nisso que vou
concentrar minhas atenções, sem esquecer que é preciso relaxar.

EXPRESSAR-EXPOSTO-EXTENSÃO-EXPLOSÃO-EXPRIMIR-EXPLORAR-
EXPELIR-EXPULSAR-EXISTIR.

Livia Bennet

É interessante perceber em todo o processo experimentado até hoje, as mudanças que


acontecem no corpo e na cabeça das pessoas envlovidas. Muitas vezes durante os trabalhos,
surgem questionamentos como: onde isso vai dar? Por que estou fazendo isso? No meu caso
é: será que é isso mesmo? Um questionamento que tenho claro na minha cabeça, que não é
válido para este trabalho, pelo menos não agora no começo, mas que é uma pergunta que vem
à cabeça. Talvez uma preocupação.

Estamos a um mês, e já percebo mudanças no meu corpo e na minha cabeça.


Novidades aparecem na minha forma de me mover e no tempo que levo para executa-lo.

É o primeiro processo que participo dentro do basirah, e o que mais me excita em


fazer o trabalho é que saio do ensaio pensando. O trabalho não acontece apenas na parte da
manhã e sim durante todo o dia. E como esse trabalho tem influenciado na minha forma de
pensar e agir.

O emocional ainda é muito forte no processo de cada um. E no meu caso, o que senti,
foi que o meu emocional estava me levando para outro caminho. Com isso, acabava que fugia
um pouco da proposta, pois queria expor o que verdadeiramente estava sentindo naquele
momento. Isso ainda acontece, mas está menos evidente, ao que me parece.
148

Um outro ponto que é bastante excitante é o trabalho de mostrar seu improviso


estruturado ou não para as pessoas que fazem parte do processo e para convidados. O melhor
é ter o prazer de ver coisas que você nunca imaginaria ver e ouvir daquela pessoa. Elas te
surpreendem.

O meu primeiro improviso – Quando foi pedido para que apresentássemos algo que
quiséssemos falar, já tinha claro na minha cabeça o que eu gostaria, mas como fazer isso? Há
dois anos atrás tive vontade de falar sobre uma tal situação. Não que estivesse estudando isso
durante todo este tempo, mas li algumas coisas e vi outras. E muito legal também, foi que a
seqüência coreográfica dada e pedida para que estivesse inserida na improvisação, deu muito
certo com o que eu queria falar. O tempo foi muito curto, tanto de pesquisa quanto de
execução. Difícil então saber se tem futuro ou não, mas quando dá, ainda estudo sobre o
assunto.

Segundo improviso – fazer algo que a Giselle nunca tivesse visto em você. Logo
pensei na minha primeira ação: colocar a língua no nariz. Bizarro, mas pouca gente consegue
e ninguém me vê fazendo isso. E os outros vieram depois. Com o nervosismo não consegui
fazer lento o que era para ter sido feito, mas foi. É muito estranho, eu me senti uma outra
pessoa. E lógico, morrendo de vergonha. Muitos ali me surpreenderam.

Terceiro improviso – O que pensei que fosse ser fácil e acabou se tornando o bichão
de 1000 cabeças. “Eu num quarto branco é assim”. Essa era a frase que tínhamos para
trabalharmos.

1ºdia – Me veio logo na cabeça o que eu queria trabalhar. Era muito nítido para mim o
que eu sentia em relação aquela frase. E acabamos com isso fazendo “Eu num quarto branco
sou assim”. Fizemos e tudo bem. Enlouqueci, era tanta a minha agonia de estar ali, naquele
quarto branco que para mim era totalmente fechado, que saí me debatendo. Nesse dia foi
pedido que trabalhássemos para a próxima semana a cena mais estruturada.

2º dia – Estruturei toda minha cena. Fiz o meu quarto, coloquei um figurino e uma
música. Quando escolhi a música sabia que ela seria muito comprida, mas mesmo assim quis
usa-la. E foi assim no dia da apresentação. Senti que era hora de parar, mas ao mesmo tempo
queria usar toda a música. Não foi o meu pior dia, mas senti este desconforto. Me foi pedido
novamente para que apresentasse na outra semana. Já comecei então a ficar mais louca. Nada
149

me vinha a cabeça. Nem uma idéia, nem um estímulo, nada. Mas queria continuar trabalhando
com aquela sensação, de agonia e de eterno sufoco.

3º dia – Cena sem música. Pensei nessa estrutura algumas horas depois da conversa
que tivemos depois do improviso da Micheline. Não que tivesse haver,, mas algumas idéias
me vieram após a conversa. Imaginei o meu quarto cheio de objetos espalhados, e os meus
objetos no caso, seriam as pessoas. Era como se eu saísse tropeçando nelas, com aquela
sensação de agonia, querendo sair do quarto fechado sem poder. Bem, nesse dia, o dia da
apresentação, aconteceu tudo diferente: eu provocava o contato com as pessoas, fiz tudo
muito rápido e ainda consegui sair do quarto. Foi péssimo! Tudo bem! Sem julgamentos! Mas
foi tudo muito desesperado. Estava a um passo da loucura real! Seria caso de internação. E
novamente foi pedido que eu apresentasse na outra semana. Aí pronto! Pirei total! Passava
noites e noites pensando, conversava com alguém, e nada me vinha a cabeça. A única coisa
que pensava era: vou esquecer o que já fiz, pois não consegui avançar mesmo, e tentar fazer
uma outra coisa. Mas que coisa era essa, pelo amor de Deus? Aconselharam-me então a
escrever. Escrever o que eu sinto, como eu me vejo, e como é esse quarto para mim. Dois dias
antes do 4º dia de apresentação do mesmo tema, fui ao teatro assistir “Cascudo” com direção
de André Amaro. Muito boa e louca a peça. Os personagens não eram comuns. Não pela peça,
mas pela situação péssima que presenciei no teatro fui para casa mal e logo fui dormir.
Começaram a vir coisas para eu escrever e junto com a escrita vinham as imagens. No dia
seguinte escrevi tudo e já estruturei a minha cena. Teria também que ser sem música.

4º dia – Que alívio que tenho algo para mostrar. Não que fosse uma grande coisa, mas
eu tinha algo para mostrar. Isso foi muito bom. Fiz o meu improviso e usei o texto que havia
escrito. A minha cena não teve um fim, e mesmo se não continuarmos com este tema vejo
possibilidades de movimentação com o que foi feito. E o que mais ficou para mim foi a
insistência pela dificuldade. Poder trabalhar essa dificuldade. Foi um desafio que gostei de
vivenciar. Confesso que foi desesperador, mas muito enriquecedor.

Nem tudo que eu faço, nos meus improvisos principalmente, penso em todos os
exercícios que fiz até aqui. Mas sei que muita coisa mudou. Acho até que muita coisa fica no
corpo. Tudo que vivenciamos vem automaticamente.

O uso da palavra nos exercícios foi de extrema importância para a consciência do


movimento. O tempo muda e a textura também.
150

Rachel Cardoso

Este processo tem sido um instrumento para que o intérprete “se assuma”. Ou melhor,
tem ME forçado a ASSUMIR MELHOR MINHA CONDIÇÃO DE INTÉRPRETE em
desenvolvimento. O que tem me ocorrido enquanto reflexão é que, para um artista assumir
seus “produtos artísticos” ele tem que primeiro se assumir (e para isso ele vai ter que entrar
em contato com o que ele é, como ele cria e se mostra).

É diferente quando assumimos o produto criativo, pois nos justificamos através de


conceitos elaborados ou por meio de uma linguagem esteticamente “bonita” ou aceita. Já
quando assumimos a NÒS mesmos, nossas construções artísticas (mesmo que imbuídas de
conceitos e elementos estéticos), tem a força do artista que SE COLOCA NELA, e não que
apenas fala dela!!!

O processo vem se encaixando na minha necessidade atual de me desenvolver. Até


pouco tempo eu achava que para sair dos meus caminhos comuns e fáceis eu teria que entrar
em contato com questões emocionais “fortes”, para que assim eu atingisse a “verdade”. Mas o
interessante é que, no decorrer do processo, vi que pode ser feito por outros caminhos, que são
até mais ricos, pois me possibilitam perceber e refletir sem que eu me desgaste
emocionalmente. Se eu buscasse apenas pelo que é emocionalmente forte para mim, acho que
eu ficaria presa ao conteúdo e não desenvolveria as habilidades. E o legal é perceber, durante
os exercícios do processo, que o resultado “final” não é o mais importante, e sim a percepção
das infinitas possibilidades, tanto nos outros, e principalmente em mim.

Têm sido uma deliciosa descoberta do meu mundo criativo. Dentro da minha dinâmica
criativa de antes eu achava que realmente estava recorrendo a elementos “diferentes”. Este
processo tem me ajudado a me “forçar” a sair do confortável, onde eu caio muito fácil!!! Seja
151

porque é mais seguro (dentro dos meus julgamentos de que “devo fazer algo bom”), seja por
não ter a consciência dos caminhos que eu percorro na construção artística.

É muito bacana perceber nos outros os caminhos de cada um. É possível aprender
muito discriminando também o processo dos demais intérpretes envolvidos. Muitas das vezes
consigo perceber melhor no outro do que em mim. Só consigo discriminar alguma coisa
depois que sentamos e falamos sobre os exercícios e sobre o processo. Tem muita coisa que
ainda não me sinto segura, compreendendo e dominando. Até mesmo para falar a respeito.
Em compensação posso claramente perceber as minhas “preguiças” de escrever sobre o
processo; a falta de disciplina em procurar me aprofundar nas coisas que eu tenho
trabalhado... enfim!!!

Resumindo, a compreensão que estou tendo hoje de tudo isso é que este processo está
tateando e exercitando mecanismos que AMPLIAM AS POSSIBILIDADES DO
INTÉRPRETE. Não propõe ampliar a “criatividade” em si, mas as possibilidades do
intérprete se assumir de tal forma que o conceito de “criativo” se transforma em capacidade
de ser verdadeiro e inteiro naquilo que se propõe a mostrar (seja “bonito” ou “feio”).

Isto muda consideravelmente a responsabilidade sobre aquilo que se cria. Não no


sentido de colocar um peso e uma cobrança sobre o que se cria, mas o comprometimento com
o que se observa e executa o que se cria. Isso interfere diretamente na criatividade, mas não é
o principal ponto, pois muitas vezes me sinto “emperrada” na criação, mas consigo ter
aproveitamento dos exercícios e do que eu observo dos demais intérpretes. Pois o foco não é
julgar se o que está sendo feito é novo... Mas, como é apresentado.

Para que eu possa falar do MEU processo, tenho que primeiro situar que ele teve
início bem antes do que esta data de início deste grupo em processo. Hoje consigo entender
por onde percorreu minha “experiência” na dança, e como o que eu tive contato me
influenciou. Desde 1996, quando comecei a entender melhor a noção de “improviso” e as
proposta dos cursos do USINA,. que traziam um conteúdo despreocupado em seguir
parâmetros convencionais da “dança pela forma” e do bailarino apenas como executor de
coreografias. Entrava no meu mundo neste momento, as primeiras idéias (que eu pude
assimilar) do artista dando ênfase na possibilidade PERFORMÁTICA, livre de paradigmas de
estar sempre preocupado com o resultado formal dos movimentos e de mostrar sempre o
esperado e bonito, ou o certo (sei que isso é totalmente possível... hehe he).
152

E eu demorei a assimilar e perceber as mudanças que já estavam se processando, pois


eram quase que imperceptíveis. Na maioria das vezes aprendemos a desenvolver uma
mentalidade muitíssimo voltada para a produção de um “resultado” estético ou de mostrar um
“aprimoramento” técnico na dança como sendo aquilo que vai te desenvolver como intérprete.
E por isso buscamos alguma coisa por caminhos equivocados e nem percebemos...Quando
sabemos qual caminho utilizamos.

O fato do Basirah também estar na minha história tem uma influência na mudança dos
instrumentos criativos que eu fui desenvolvendo. Foi dentro dos processos criativos do
Basirah, onde eu pude “participar” da criação (mesmo que fosse totalmente dirigida, mas
eram utilizados elementos meus). A própria linha de trabalho do grupo favoreceu para que
hoje exista alguma consciência sobre a criação e a preocupação com a construção “gratuita”.

É como se, só hoje eu conseguisse fazer essa leitura de tudo o que me influencia. E
esta reflexão foi estimulada pelo processo atual. Como o objetivo é conseguir aplicar melhor
aquilo que eu identifico, em mim e nos outros, como intérpretes, tenho ainda que fazer “cair a
ficha” para várias coisas em mim.

Outra influência gritante no meu foco de percepção, HOJE, foram os contatos que tive
com as práticas orientais pelo Howard. Muitas coisas eu assimilei, outras eu já aplicava, mas
não tinha consciência de que já aplicava e COMO eu aplicava. A influência do Howard foi tão
“fracionada” quanto a minha capacidade de ver e internalizar as práticas propostas em mim. O
elemento do Body Mind Centering, dos improvisos, das atividades com venda, da experiência
como testemunha, dos silêncios, do “não julgamento” sobre mim, o tempo prolongado dos
exercícios etc, me forçaram a entrar em contato com muitas questões pessoais e sobre a
dança; em épocas diferentes e em momentos artísticos diferentes, somados a todas as outras
experiências.

Tudo isso talvez possa esclarecer que nada do que eu consiga perceber atualmente é
“ISOLADAMENTE” resultado deste processo. Ele tem me proporcionado a EXPANSÃO da
minha percepção cognitiva, mental e corporal (de mim) como intérprete (mais do que a
“construção” de uma percepção, pois isso traria um caráter de indução). Seria a ampliação da
percepção, para que daí fosse possível desencadear mecanismos de consciência e mudança.

Eu inicialmente me apeguei a condição interna... Muito orgânica e sensorial. Este


momento foi muito importante para mim, pois pude mudar meu ritmo de percepção; pude
153

tomar consciência de vários mecanismos mentais que eu atribuo e corporais que eu assumia; e
pude questionar muitos “pré-conceitos” e valores que atribuo a minha criação.

Como tenho me deparado com dificuldades na criatividade, nos “significados


atribuídos”, nos processos artísticos que utilizo, enfim, na forma como EU lido com tudo isso
em cena etc, acho que meu momento agora é outro. Diferente daquele mais sensorial e mental
que eu mencionei anteriormente. Muitas coisas vão se processando, mas só nos tornamos
capazes de realiza-las com domínio e verdade quando nos entendemos e nos aceitamos. Acho
que este é meu momento de agora... conseguir me aceitar e me assumir!!!
154

Relatórios apresentados ao final da pesquisa, outubro de 2005

Lina Frazão

Parece que já foi há muito, muito tempo que o processo passou. E apesar de todo o
meu encantamento com tudo, com todas as descobertas que eu tive, todas as mudanças, eu
vou confessar que eu, olhando para trás tenho me sentido meio incompetente.

O processo todo foi muito interessante e muito cativante porque possibilitou que todos
nós tivéssemos um ambiente de observação (e auto-observação!) muito grande. Para mim,
sinto que hoje em dia eu tenho mais firmeza, principalmente sobre dar aulas. Eu me percebo
muito mais concisa na hora de dar aulas para os adolescentes com quem eu estou trabalhando.
Porque meu principal intuito com eles é o de desenvolver a possibilidade de uma maior
expressividade corporal, e isso vai englobando muita coisa, muitos questionamentos, leituras,
discussões, etc.

Mas enquanto bailarina, eu confesso, que apesar de todo o meu encanto com o
processo, eu tenho me sentido meio incompetente mesmo. Olhando para trás, me vejo meio
anêmica, sem conseguir muita expressividade no espetáculo. (isso ficou meio forte com o
ultimo ensaio aberto do Dulcina...) Acho que o processo foi forte, mas eu sinto um certo
gostinho de-quero-mais...Teve uma fase do processo que foi excelente enquanto
autodescoberta, enquanto desafio, mas aí, no resultado do processo, embora não seja um
resultado estável e fixo, eu não me vejo muito ativa não. Na verdade, eu ainda não sei como
atingir MAIS esse espetáculo, e isso me parece uma certa alegria distante. Olhando para trás,
eu agora me sinto meio inútil mesmo...

Achei que todo o processo criativo foi muito interessante enquanto idéia, enquanto
confronto, que houve uma renovação e um questionamento muito significativo, e isso pra
mim foi o mais interessante: o conhecimento enquanto poder, que nos leva à transgressão.
Eu estava lendo o Marcelo yuka (aquele do rappa que levou um tiro e ficou paralitico), e ele
dizia assim: “Conhecimento é mesmo uma arma. Eu aprendi a ler com raiva".

Enfim, este trabalho do basirah se posiciona muito politicamente (pelo menos é assim
que eu o percebo), porque eu o vejo como um trabalho engajado. Qualquer arte é política se
não for medíocre ou alienada.
155

Esse trabalho é muito transgressor para mim, mas eu ainda não me vejo conseguindo
alcançá-lo em seu objetivo.

Alessandro Brandão.

Primeiro foi difícil começar, mas depois foi impossível parar. A descoberta dos limites
e o trabalho de alargá-los ou experimentar este lugar é uma atitude excitante para todo o
interprete. É simplesmente o trabalho da conscientização do interprete para com ele mesmo,
com seu corpo e como tudo o que pertença ao seu espaço cênico.

Os dias começavam com um desafio: - o de buscar motivação para o exercício. Às


vezes era impossível não demonstrar resistência, mas a aceitação do estado real nos levava ao
trabalho. Buscar algo que não sabemos dar nome, assim eu via. Difícil era entender aonde
chegaríamos. A minha sensação era que eu iria revirar cada pedacinho do meu corpo, cada
célula seria agora visitada e conhecida, como uma espécie de senso. Mas não era apenas isso,
havia aquilo que não se pode tocar e, com certeza, era o mais difícil de acessar. O que fazer?
Esta pergunta nunca foi respondida, mas algo foi feito e alcançado.

A consciência, que este treinamento me proporcionou, é algo que me faz realizar o


meu dia com mais sabedoria sobre mim. O trabalho se tornou um momento de busca, de
aperfeiçoamento e não mais de repetição e realização sem consistência. A maneira que eu me
coloco como interprete foi alterada de forma sutil, mas intensa. É realmente paradoxal!

Fazer um trabalho onde a proposta não seja vivenciada por inteiro é muito
complicado, não é mais possível trabalhar sem o aprofundamento necessário. E não estou
falando de momentos enfadonhos, de teorias e leituras, e sim de um inteiramento do que se
diz, da apropriação da linguagem que se utiliza, de forma real, verdadeira, e não hipotética e
superficial. A honestidade que encontramos é importantíssima para a inteireza de qualquer
trabalho a ser desenvolvido, é simples e eficaz, pois utiliza os seus próprios recursos.
Colocando-os em evidência para que sejam trabalhados e moldados.

Na verdade, eu me sinto como se estivesse falando um monte de besteiras, pois pode


parecer extremamente piegas, simples, e sem valor para quem não experimentou o processo
de trabalho que nós nos submetemos.
156

O que eu encontrei neste treinamento foi algo que é genuinamente meu, a minha busca
e minha aceitação. A satisfação de ver além do que achávamos ver, de ouvir mais do que se é
acostumado. Ver com frescor o que já é rotina.

Lívia Frazão.

Agora consigo entender, racionalmente, a pergunta que originou o processo: “O que


seu corpo quer falar?” E agora também verifico que o discurso que meu corpo escreve durante
o “De água e Sal” é coerente às minhas questões mais básicas (e que agora percebo que não
são só minhas, mas de qualquer sistema complexo - Teoria Geral dos Sistemas de Pierce: o
desejo da permanência). Ou melhor, o medo da impermanência, do desaparecimento, da
morte em vida.

Mas voltando à questão da metodologia, que mais te interessa agora, percebo, vendo
as fitas de vídeo, que a primeira fase do trabalho (de setembro a dezembro de 2004) foi
fundamental e efetiva para a pesquisa de como modificar os nossos padrões. É interessante
acrescentar também que se meu corpo pensa (já que pensamento é organização da informação
percebida pelo sensoriomotor), se mudo meu pensamento/idéias/conceitos/imagens/sensações,
mudo também o estado do meu corpo e, conseqüentemente, a qualidade corporal. Dessa
forma, os exercícios que mais me ajudaram foram as improvisações que trabalhávamos mais
diretamente com imagens mentais. Os exercícios sobre imagens mentais do corpo (como o
exercício do mentalizar-falar-fazer e do próprio BMC) conduziam mais à quebra do padrão
corporal e este tipo de exercício é realmente interessante quando o fazemos durante um
extenso período (principalmente quando o consideramos em anos) e daí, sim, percebemos
com mais clareza a transformação dos padrões. Mas é preciso lembrar também que não é a
consciência corporal somente que me leva à transformação, mas toda uma conjunção de
informações que se soma às minhas novas reorganizações e às minhas novas idéias. Tanto o é
que percebemos claramente a diferença de quando fazíamos este exercício com o Howard e
agora, 4 anos mais tarde.

Mas, os exercícios que mais me impressionaram naquela fase foi, realmente, os que
trabalhavam com a memória, com as imagens mentais e com as paisagens. É interessante que
as improvisações com as paisagens pareciam triviais; mas no momento da improvisação, se
você realmente se deixasse levar por aquelas informações, o estado realmente se alterava
157

assim como a produção do movimento. Dessa forma, meu movimento era meu pensamento,
minha paisagem, e vice-versa. E assim, meu corpo pensava e comunicava. Já o trabalho com a
memória trabalhava tudo isso, mas tendo como ignição a emoção associada àquela
informação. E mesmo que essa informação já tivesse siso de alguma maneira e em algum grau
distorcida pelo ato de imaginar, ela era muito forte a ponto de provocar uma quebra quase
instantânea de padrão dentro mesmo do não-movimento, agora muito denso e repleto de
intenções corporais. Como foi o caso dos exercícios com as fotos.

No caso das improvisações com imagens mentais livres (as chamo assim pois
usávamos as imagens que primeiro nos aparecesse), percebi que a mudança de qualidade
corporal fica ainda mais instantânea e clara, pois não há cristalização da imagem, mas
sucessivas composições dessa com as que se seguem, criando novas metáforas e novos
discursos. A rapidez destas transformações no corpo me impressionaram, ainda mais quando a
transformação era percebida pela qualidade do movimento diferente (pelo novo padrão) e não
simplesmente pela mudança do “tema” ou do “assunto” da imagem. Na verdade, o “assunto”
mudava quando as imagens mudavam, isso era claro;mas o mais interessante era o passo
seguinte: quando isso sugeria uma informação cinética nova ao corpo, um estado novo, uma
qualidade diferente.

Alisson Araújo

Este exercício que temos que executar, se apresenta tão difícil quanto os vivenciados
durante o processo de pesquisa para fortalecer o interprete em cena, mas também, se apresenta
tão necessário quanto todos os outros exercícios que fizemos, pois pode se tornar uma
ferramenta a mais para o interprete, ou seja, a reflexão sobre algo. Verificando com isso até
que ponto absorve, e até que ponto deve permanecer na busca, ou simplesmente amadurecer o
que já fora compreendido e assimilado, mas não corporificado.

Para relatar o que esse processo interferiu no meu corpo, vou ter que fazer um breve
momento em que meus olhos se fecham para percorrer, o corpo e o ser humano Alisson há
algum tempo atrás. Posso ver um corpo extremamente ansioso, sem compreensão do que vem
a ser movimentar-se, pois ao imaginar movendo-se, a primeira idéia que vinha era de um
desenho seqüenciado no espaço. Uma série dinâmica de movimento saía. Hoje, vejo que há
ainda a ansiedade, que muitas vezes retorna e insiste em atuar juntamente com o interprete em
158

cena, mas já consigo perceber uma respiração maior, uma busca por acalmar mais a
ansiedade, e perceber o tempo, deixando que o aqui agora haja de forma mais natural.

Meu corpo passou por um processo muito forte, e visceral, onde a exposição se fazia
presente o tempo todo. Estávamos o tempo todo trabalhando com o nosso limite. Na primeira
fase do processo, onde a quebra de padrão consistia o foco, era de extrema estagnação, pois o
que há fora dos padrões? Como rompê-los e mover-se? Como aceitar que para si só há aquela
gama de movimento do qual você gosta e sempre usa? – Foi um período muito difícil para
todos, porque sempre vinha o julgamento de: olha novamente esse movimento? Isso partia
tanto de nós mesmos quanto do outro. Sempre que eu observava alguém, o que eu queria era
ver movimentos que nunca havia visto – mesmo sendo, juntamente com o Diego, o mais novo
e não sabendo muito bem como cada um costumava se mover. Mas o que eu queria era ver
movimentos novos, e não compreendia quando a Giselle vinha nos falar que alguns padrões já
estavam sendo quebrados – eu pensava: onde?

Mas a estagnação que estávamos, mesmo com alguns avanços, nos fez mudar de
conceito na proposta, não haveríamos mais que quebrar padrão, e sim amplia-lo,
acompanhando com isso o não julgamento. Que permite uma mudança de foco, pois todo o
exercício que fazíamos para ampliar nossa percepção como interprete, não estava voltado para
quebrar algo, mas estava voltado para perceber que fora executado um padrão, mas tudo bem!
Aceitava-o e continue a mover.

Para mim, a ampliação de padrão com o não julgamento me fez respirar mais na venda
– embora, ainda sim, provocando o movimento quando a vontade era dormir! Porque ainda
não permito não estar executando o que fora proposto. Sei que tenho uma tendência de fazer
tudo o que deve ser feito, minha criação sempre me exigiu isso, e sempre que tenho a
liberdade exacerbada fico um pouco intimidado, pois há algo a ser executado, mas minha
vontade é outra, como não fazer o que tem que ser feito e fazer a outra coisa? Isso ainda é
conflituoso em minha cabeça, e sempre que aparece trás consigo a ansiedade que me faz
executar tudo mais que necessário.

Entretanto, a venda me permitiu um retorno a algo que eu tinha, mas que havia
perdido com o tempo. Talvez porque as exigências eram outras, por exemplo, sempre que me
movia em pesquisa de movimento – em exercícios no teatro, buscava criar uma historinha
para o que estava fazendo, e com venda isso retornou. Junto ao espaço negro que a venda
159

produzia, habitava minhas imagens, demônios, anjos, seres que compõem a minha
imaginação.

É importante lembrar que cada exercício que fizemos durante esse processo tinha o
intuito de mergulhar mais fundo na pessoa do interprete, fazendo-o confrontar-se com suas
questões inibidoras, seus padrões, suas imagens, enfim acessar o imaginário o tempo todo.
Mas, mesmo assim, sempre havia um gancho para a expressão artística, alguma coisa que nos
lembrava que o que fazíamos era arte, e assim não nos deixando cair em uma terapia coletiva,
aonde cada um ia expondo suas coisas. Pelo contrário, a exposição era para ampliar a
percepção, trabalhando com o que há de imagético e de vivo no interprete, utilizando o
interno como ferramenta de expressão, e não algo que vem de fora.

Cada qual se expunha até o ponto em que lhe era seguro expor, até onde queria, e
achava que estava preparado. Mas o carisma da pesquisa, assim com o desafio que essa
representava, fazia com que as pessoas quisessem se arriscar sempre um pouco mais.

Em mim cada novo desafio remexia meu estomago, chegando o enjôo até meu
paladar, pois é a primeira coisa que me acontece quando estou muito ansioso e nervoso, mas
mesmo assim respirava e me disponibilizava a entrar na proposta. Acho as vezes que, esse
processo é um “elasticador” de disponibilidade, porque todos foram se disponibilizando um
pouco mais para o trabalho, até ficar mais gostoso lidar com suas questões, aceitando-as. Mas
eis que surge o grande desafio, selecionar o material produzido para uma produção artística.
Como definir: é isso e não aquilo que vai para o espetáculo? Aí posso perceber uma
imaturidade artística minha, que se justifica devido minha idade e experiência: saber o que é
melhor, ou o que pode ser explorado a mais, o que pode extrapolar.

Quando fui selecionar o meu material, eu queria pegar as coisas que mais havia
movimento, ou que me permitiria chegar a isso, ou algo que poderia impressionar mais, e
junto delas escolhi algo simples como, escrever em meu corpo com canetas, dentro de uma
mala. Hoje percebo que fora o material mais sensatamente escolhido, pois diz mais da
dualidade que eu queria tratar. Da dualidade que a vontade, o querer e a obrigação se faz
presente, e como eu me diluo no meu desejo, porque tenho que fazer o que tem que ser feito,
simplesmente para ser aceito, ou para manter um conceito de eficiência, ou até para as pessoas
confiarem em mim e gostarem de mim.
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Tivemos três ensaios abertos, no qual os dois primeiro foram muito bons para mim,
porque pude chegar a lugares que não havia chegado antes, pude me acalmar mesmo quando
o nervosismo se fazia tão presente. Pude, nos dois primeiros ensaios abertos, respirar e
perceber como meu corpo estava naquele momento, e o que ele pedia. No terceiro ensaio
aberto, eu já não conseguir alcançar o que havia alcançado nos anteriores. Depois de uma
conversa com a Giselle, posso compreender que o meu desejo de executar o que tem que ser
executado às vezes sobra. E posso perceber que, não atingi o que havia atingido nos
anteriores, porque estive mais preocupado em recuperar o que já tinha alcançado, do que
escutar o meu corpo naquele momento, e alcançar o que o momento estava me dando.

A importância do terceiro ensaio aberto para mim, é tão ou maior do que os dois
primeiro, porque ele me deu a consciência de que algumas coisas que eu alcancei estão se
perdendo, e com isso devo perceber e me ater a elas e os caminhos que percorri para não
perder.

Esse exercício do interprete, todo o processo vivenciado desde o pensar e depois fazer,
a venda, a associação livre de idéias, o trabalho de imaginação ativa, o trabalho com os
órgãos, o trabalho de olhar, e todos os jogos propostos, despertou em mim uma percepção
maior do corpo do outro e do meu próprio. Hoje já consigo perceber mais as mudanças
ocorridas nos corpos dos meus parceiros de grupo, e também consigo perceber melhor o corpo
de minhas alunas, quando esse esta mais presente e vivo em cena. Assim como me abriu um
interesse maior em observar, e até concentrar-me em apreciar, os corpos em cena em tudo o
que vejo.

Creio que o processo me deu a maturidade de enxergar o percurso que ainda tenho que
percorrer como interprete. Conscientizou-me sobre vários pontos que devem ser fortalecidos
em minha interpretação, e me fez abrir os olhos mais um pouco para perceber as coisas, em
mim e no outro. Além de me ter dado um outro corpo, um corpo um pouco mais respirado,
um corpo que não se resigna, mas aceita o que tem que ser feito, nem que seja um segundo
depois do que deveria, nem que seja um ou três dias depois, mas percebo que eu já consigo
aceitar mais algumas coisas, ao invés de brigar para alcançar. Percebo que agora, eu ainda não
consigo, mas já quero obter tempo e calma para absorver as coisas e manipula-las melhor.

Percebo que o exercício do interprete é um processo continuado que teremos que estar
sempre aprimorando a cada segundo, a cada momento, retornando em pontos que em alguns
161

momentos se apresentam frágeis, avançando em outros que já estão seguros, e por isso mesmo
podem ser extrapolados.

Dorka Hepp

O que foi mais importante no processo?

Para mim, foi superimportante perceber as minhas fraquezas. Como por exemplo, nos
exercícios da imaginação ativa. Eu preciso de desafio para querer me superar e assim
melhorar. Nesse exercício (que também envolve a fala, e como todo mundo já sabe: não sou
atriz!!!), eu me sentia uma completa ignorante, como se eu fosse uma criança que andava de
bicicleta pela primeira vez! Superar os meus limites é o que mais me motiva, então esse
exercício (e todos os outros) me estimulou bastante... Apesar de que precisaria de muito mais
prática para alcançar o meu ideal.

Não acho que posso apontar para um exercício em particular e te dizer que esse foi o
mais importante. Não, para mim, o importante é o desafio de conseguir vencer os meus
limites, ir além do que já sei fazer (não sem medo, é claro, e nem sempre consigo chegar lá).
Se tiver algum desafio no meio, eu estou dentro, vou fundo! O assunto aqui nesta proposta de
trabalho me interessa muito, então tento aproveitar o máximo que posso sem desperdiçar o
tempo. Obviamente, encontro muitas dificuldades no meu caminho e nem sempre consigo
passar por cima das minhas fraquezas. Mas a possibilidade de melhorar e de vencer o desafio
me dá energia para continuar em frente. Por isso todos os exercícios foram importantes,
porque todos eles me provocavam de alguma maneira (e acredite, nenhum deles foi fácil!).
Andar num caminho desconhecido é assustador, mas também não é nada monótono, o
trabalho fica interessante o tempo todo porque ninguém sabe o que vai acontecer no próximo
passo. Isso deixa a gente muito ligada porque ninguém quer perder o próximo capítulo da
história.

Hoje eu vejo o tanto que melhorei... na minha cabeça. Tenho menos medo de errar, e
não me preocupo tanto em encarar um novo exercício, uma nova exposição. Me disponho
também em me colocar em situações inusitadas e de desconforto sem sofrer com isso.

Um outro momento muito marcante, foi a conversa que nós tivemos depois de assistir
ao vídeo do primeiro ensaio aberto. Você falou uma coisa que ficou na minha cabeça o tempo
162

todo até agora: (desculpa aí, mas foi você quem disse) “vocês têm que rasgar o cu...” Esse dia
resume bem o que falei até agora: UM NOVO DESAFIO, e desta vez, dos grandes! Foi
engraçado porque, naquele dia, tudo mundo estava entrando em crise por vários motivos, mas
eu fiquei tão feliz! Pois, estava com desafio muito grande nas minhas mãos e para mim,
aquilo era demais... Saí de lá muito animada e cheia de energia. Por onde isso tudo poderia me
levar, como fazer para conseguir ir além de tudo que já tinha alcançado até agora, como fazer
para ousar mais? Fiquei com muita vontade de tentar, e principalmente de me permitir fazer
as coisas. Naquele dia, eu queria muito abrir todas as portas e experimentar entrar em todas
elas!

É claro que ainda não consegui tudo aquilo que acho que sou capaz e acredito que nem
vou conseguir. Porque toda vez que chego em algum lugar, existe de novo a possibilidade de
ir além. Então nunca pára, e isso é fantástico... e ás vezes um pouco cansativo/frustrante
também. Uma coisa importante de se mencionar, é que desde aquele dia, estou muito
DISPOSTA a encarar esta proposta até além dos meus limites!!!! Pois, percebi que aquilo
tudo é um saco sem fundo: sempre tem mais, e sinceramente não sei se a gente vai chegar em
algum lugar específico algum dia... Esse espetáculo não tem fim!!!

Diego Pizarro

No início do trabalho com o grupo este ano, parece que a maioria das pessoas estava
mais disponível ao trabalho que seria composto. No entanto, foi de extrema dificuldade (e isso
eu digo sob experiência pessoal) o momento em que surgiu a pergunta: “O que você quer
dizer com o seu corpo?”.

Meu pensamento na hora questionou: “Como assim?”. Compreender, descobrir,


procurar saber o que eu quero dizer com o meu corpo tornou-se uma luta incessante durante
todo o processo. Pois não vale qualquer coisa e vale tudo, ou seja, só vale o que eu realmente
quero dizer utilizando o meu corpo dentro de todas as possibilidades do universo. Tarefa
complexa, pois de grande valia para todos durante essa árdua luta de compor uma cena a
partir de material pessoal e de certa forma intransponível. Pois o que eu compor terá a ver
comigo, e se outra pessoa repetir minha composição nunca será a mesma, pois ela terá outra
magia, outra energia, outra qualidade, nem melhor, nem pior, simplesmente outra.
163

Bem, verificando anotações passadas, a minha primeira resposta, vinda de reflexões


sobre a questão, foi: “Eu quero que as pessoas vejam algo se abrindo”. E depois, infinitas
imagens: “Eu me vejo olhando profundamente nos olhos das pessoas”; “Eu me vejo caindo”;
“Machucar-se fisicamente como resultado de algo emocional”; “Comer coisas grandes”;
“Arrancar pêlos”, “Fazer as coisas sem pudor”, “Sentimento de vazio”; “Andar no meio da
multidão”. Enfim, a partir dessas anotações eu traço um paralelo com as cenas que faço hoje e
que foram compostas durante o semestre, e percebo como elas têm a ver com a questão
central do que quero dizer: O corpo carente.

Durante esse período de cinco meses, é perceptível um certo incômodo da minha parte
durante o processo. Mas não um incômodo negativo, e sim um incômodo positivo, pois a
partir das “alfinetadas” constantes da diretora no sentido de estar sempre tirando o tapete dos
intérpretes, tentando-os em fugir do costume, do comum, do domínio de suas capacidades
conhecidas, eu me sentia o tempo todo como se tivesse um fogo queimando de leve os meus
músculos, para que eu não os relaxasse no sentido de acomodar-me, e quando digo músculos,
falo de todos, o cérebro inclusive.

Com certeza, durante o processo, eu podia ter consciência de como é complicado para
o corpo administrar os vários textos propostos pela diretora. Administrar texturas de
movimento, intenções, olhares, espaço, dinâmica, tempo, interação com o grupo, tudo com
muita concentração sobre o enfoque do que eu quero dizer com o meu corpo. Essa questão
corpo-mente às vezes me fazia entrar em desespero. Porém, na verdade, eu acredito que o
corpo-mente é um só e a experiência em administrar as informações e automatizá-las de certa
forma faz com que o corpo-mente se torne corpomente, sem existir uma dicotomia. Mas para
ter o domínio da performance no sentido de mostrar realmente o que eu quero mostrar parece
que é necessário pensar mais, e com o passar do tempo isso vai sendo diluído e
“inCORPOrado”.

Lembro-me de uma frase que me foi dita pela diretora: “Diego, parece que você não
entrega o seu corpo”. E refletindo durante muito tempo sobre essa frase que até hoje me vem
à mente em vários momentos, eu percebo que realmente é difícil entregar-se fisicamente à
coisa. E percebo mais nitidamente quando acontece, o racional vem primeiro e eu sempre falo
pra mim mesmo: “Não pense, faça!”. No entanto, pensando em etapa por etapa, acredito que a
etapa que vem agora, a partir de agosto, será decisiva para o envolvimento corporal pleno...
(ou não).
164

No geral, essa experiência vivida desde setembro do ano passado transformou


consideravelmente minha postura como intérprete, parece que se passou muito mais tempo
que oito meses de trabalho. Pude perceber que me sinto mais seguro em cena, mais
tranqüilidade em dizer algo para o público com o meu corpo. E também mais possibilidades
de caminhos para compor uma cena, seja ela qual for. Minha postura como artista e a maneira
de trabalhar em grupo foram aguçadas fortemente. E espero cada vez mais encontrar pessoas
que tirem o chão debaixo dos meus pés para que eu não me acostume com o que já consigo
fazer, ou senão, eu mesmo vou tentar tirar esse chão, mesmo que de forma tendenciosa.

Como uma imagem fractal do universo, o corpo guarda sempre um novo segredo, um
secreto tesouro, uma rima rara, a surpresa de um vendaval, um movimento inefável. Para
quem pretende flagrá-lo, só resta seguir como um Indiana Jones aparelhado de muita
curiosidade por entre as trilhas que s

Lívia Bennet

Não é nada fácil falar sobre o trabalho, por isso, talvez, eu saia vomitando um monte
de coisas... Ou POUCAS COISAS.

Entrei nesse trabalho, aberta a experimentar, com vontade de fazer e deixar acontecer.

Em uma conversa dividimos o trabalho em 3 fases:

É COMO APRENDER A ANDAR DE BICICLETA

Fase 1 – Cheguei no trabalho sem saber o que ia acontecer. Experimentei milhões de


coisas diferentes. Criei e recriei. No início, tudo se transforma, até o meu jeito de pensar, de
agir, de me mover... tudo é muito novo.

A forma como tudo começou, foi me deixando mais à vontade para experimentar
coisas. Não só externamente mais internamente também. Minhas atitudes foram ficando mais
precisas, fui perdendo o medo de me expor, e é aí que tudo acontece. Coisas novas vão
surgindo, poucos questionamentos, tudo começa a fluir. Com os exercícios, vou me
conhecendo mais e perdendo o medo. O intérprete vai aparecendo mais. Sinto-me diferente,
mudando a cada dia.
165

Noto essa mudança até quando assisto a um filme. Nas falas dos personagens, o que eu
seleciono de interessante pra mim. Como aquelas palavras soam nos meus ouvidos.

VONTADE DE LER? Tive muita nessa Fase 1. Comia os livros com uma vontade
louca. Todos os livros que eu lia, parecia que falava da mesma coisa. Todo o nosso trabalho
vivido no processo, estava ali, não sei se no livro ou na minha cabeça. COINCIDÊNCIA,
MUDANÇA E AMADURECIMENTO DE PENSAMENTO, OU É PORQUE EU ESTAVA
FICANDO DOIDA MESMO?

Tudo que eu trabalhava, fazia sentido pra mim. E mesmo que não usasse essas
movimentações no trabalho, ele já seria diferente. Meu corpo já estava mais preparado para o
que viesse. É REAL: senti meu corpo transformar. Percebi isso claramente em mim. Tanto
externamente como internamente. INTERNAMENTE, COMO TRANSFORMOU!

TRANSFORMAR é essa a melhor palavra.

Tudo que aprendi, está ali registrado, não tem como passar uma borracha em cima, ou
voltar a fita e gravar por cima. Tudo vai se transformando, e pra mim foi pra melhor.

Fase 2 – Experimentei, experimentei, agora vamos criar. Idéias, estímulos, temas,


temos tudo nas mãos, agora VAMOS CRIAR. Quanta coisa! Era tanta coisa, que eu ficava
tentando entender tudo aquilo. DE ONDE VEIO ISSO? E me voltava a Fase 1 . Muitas vezes
não conseguia achar um link. Será que só eu tinha dificuldade? Pequenas crises iam surgindo,
pequenas mesmo. Mas o meu papel de intérprete esta ali, muito mais forte e mais presente.
Hahahaha creio eu!

Quando que em um improviso, eu iria chorar ou rir daquela maneira, tão intensamente
desde que começamos o processo? Não controlei o que eu senti e fui feliz nessa minha
escolha. Deu-me possibilidade, caminhos novos.

Como trabalhar a leveza em mim? Isso foi um parto, mas aconteceu quando eu menos
esperava. E tem sido um parto ainda maior manter essa leveza mesmo quando me encontro
em prantos. E não reprovo meus resultados.

Fase 3 – Chegou a hora de selecionarmos o material para o trabalho. CRISE! CRISE!


CRISE! CRISE! CRISE! O que selecionar para o trabalho e faze-lo crescer? Aí é que vem:
166

VOU APRENDER A ANDAR DE BICICLETA!

ESTOU APRENDENDO!

APRENDI, JÁ SEI ANDAR!

E AGORA? O QUE EU FAÇO AGORA QUE JÁ SEI ANDAR?

Foi isso que aconteceu! Ficamos congelados sem saber pra onde ir.

Depois de um bombardeio de transformações, de uma evolução de estados e


pensamentos, será que estacionei de novo? Como vou conseguir saltar três carros com uma
bicicleta? Hahahaha pra mim é mais ou menos isso. E não sei se é só perder o medo. Talvez
tenha algo mais por trás disso que não conseguimos acessar. Já me falaram isso na posição de
atriz:

“VOCÊ JÁ CHEGOU, SÓ FALTA PULAR NO PRECIPÍCIO”. Só falta pular no


precipício. Só. Bom talvez não seja tão difícil assim...

Chegamos num ponto questionador do trabalho, mas não no limite. Chegamos num
ponto em que não sabemos se vamos para a direita ou para a esquerda. Mas cada dia que
passa os passos vão se definindo. O pulo para o precipício pode não estar muito longe de
acontecer.

Rachel Cardoso

Vou começar buscando concluir o que ficou de mais importante em todo este
processo. Acredito que o ponto mais forte da construção do “movimento autêntico” é entender
que não é uma “técnica” para ser introjetada, ou ainda uma linha de pensamento sobre o
movimento, a dança ou o corpo. É exatamente o contrário: na verdade o processo dá a
OPORTUNIDADE DE CADA INTÈRPRETE RECONHECER, APROFUNDAR E
ESCOLHER A CONSTRUÇÃO DO SEU CORPO NA PERFORMANCE. Cada um vai
desenvolver o seu caminho de “preencher o corpo”. Foram vivências onde cada um teve de
reconhecer seu corpo de uma maneira verdadeira comprometida.
167

Quais técnicas já tenho no meu corpo e quais eu preciso desenvolver ou modificar? O


que sempre faço usando o mesmo mecanismo? Devo desqualificar todos os meus padrões?
Como usar minha potencialidade para expressar o que quero dizer com o meu corpo? ... Estas
foram algumas das muitas questões que surgiram durante o processo. Definitivamente é um
processo bastante questionador, que começou perguntando: o que quero fazer com o meu
corpo?? E acabou trazendo, na minha experiência, a pergunta: “COMO É ESSE MEU
CORPO?”.

Percebi que o fato dos bailarinos e atores já “trabalharem” com o corpo não
necessariamente garantia que eles tivessem a compreensão e o domínio deste corpo de uma
forma consciente. Como realmente o meu corpo se expressava? Qual a leitura que os outros
fazem da minha forma de expressar o meu corpo? Enfim.... foi revelador em vários sentidos.
Tanto desmascarando aquilo que eu “achava” que conseguia esconder ou disfarçar, como das
grandes facilidades e potencialidades que eu poderia desenvolver.

Ou seja, o interprete é estimulado a trabalhar de uma maneira mais MADURA


(assumindo a consciência e a responsabilidade das escolhas de como ele vai usar o seu corpo
como linguagem) e mais AMPLA (no sentido de que, se torna menos mecânico o exercício de
criar, trabalhar e executar sua performance artística).

Quando coloquei que a atuação do intérprete se torna mais MADURA, não quer dizer
necessariamente que todos os intérpretes saem “prontos”. Até porque, para isso, o estágio
final teria de ser engessado em uma referência pré-estabelecida. O processo, ao contrário, é
muito individual. Cada um começa com uma bagagem corporal e psicológica particular, e
durante o processo, isso é mexido e trabalhado dentro do contexto e da necessidade de cada
um. Foi muito interessante entender justamente essa “individualização” no processo: eu não
precisava chegar em uma etapa final específica nem me comparar a nada nem a ninguém; mas
não tive como não me deparar comigo mesma..., com os meus padrões, minhas limitações,
minhas potencialidades e minhas qualidades artísticas e pessoais. E saber reconhecer isso não
foi muito fácil durante as atividades. (mas depois que passa tudo se torna mais ameno, não é
mesmo?).

Essa individualização do processo de cada um contribuiu para que o intérprete


ganhasse mais PROPRIEDADE sobre o seu próprio corpo (e quando falo corpo, quero que
seja entendido de uma forma bem ampliada, não sendo somente a forma da “massa corporal,
168

material, visível”, mas TODO o conteúdo emocional, psicológico, e principalmente vivencial


desta “massa”). Na medida em que essa “propriedade” acontece, o intérprete vai
desenvolvendo mais confiança e segurança em si mesmo. Quando isso é possível, o corpo se
mostra mais maduro (mas para isso, ele passa por um processo que muitas vezes fragiliza
muito o intérprete, para que a partir daí, ele possa buscar o PRÒPRIO caminho de conhecê-lo
e fortalecê-lo).

Assim como quando coloquei que o processo favorece para que o intérprete também
trabalhe de uma forma mais “ampla”, quero dizer que os exercícios propostos abrem a nossa
percepção não só para a execução em si de uma ação, como também: para as nossas reações
emocionais enquanto nos expomos, para pararmos e percebermos novos caminhos que vamos
encontrando para solucionar nossos bloqueios, para as “outras coisas” que estão acontecendo
no ambiente naquele mesmo momento (inclusive isso modifica significativamente a relação
do artista com o público).

As atividades exercitam essa LIBERDADE corporal e mental. Este, também, é outro


grande lance dos exercícios propostos durante o processo: como os exercícios “com a venda”,
da “imaginação ativa”, de “extrapolar uma idéia mesmo que o movimento pareça
inadequado”, entre outros. Pois desbloqueiam uma parte do nosso “controle” onde o nosso
julgamento e nossas críticas, com a gente mesmo, limitam nosso caminho de exploração.
Muitas vezes durante o processo eu consegui perceber como este autojulgamento me
bloqueava a explorar idéias e caminhos. Assim como, certas atividades “magicamente”
libertavam o meu corpo deste “controle mental”, o que fazia com que eu me sentisse
DISPONÌVEL para outro caminho. Essa “disponibilidade” facilitou para que eu encontrasse
caminhos, que não foram racionalizados mais que surgiram de uma forma mais ORGÂNICA e
mais ESPONTÂNEA. O que demonstra que o intérprete passa a estar mais INTEIRO, quer
dizer, atento às várias possibilidades de caminhos e idéias que podem aparecer durante uma
exploração ou um improviso.

Isso me faz reconhecer como minha relação com a criação modificou ao longo deste
processo. Sinto o meu corpo, justamente, mais disponível para os processos. È claro que vão
sempre haver coisas que ainda podem me “bloquear” ou trabalhos que não sejam tão
coerentes com a minha forma pessoal de trabalhar as coisas. Mas mesmo assim me vejo muito
mais aberta a, pelo menos, me DESAFIAR a buscar um caminho mais confortável de
vivenciar isso.
169

Inclusive, acabei de passar por um processo de criação de um espetáculo onde a


concepção e a direção propunha uma forma de trabalhar bem “diferente” da minha rotina e
das minhas preferências. Inicialmente percebi em mim uma certa “resistência” em aceitar um
outro tipo de processo, que julguei ser mais “superficial e mecânico” (do que este último que
eu havia passado). Contudo me comprometi e exercitar a minha “entrega”, mesmo não sendo
um processo que me convenceu. Procurei buscar estar inteira e presente, e acho que consegui
exercitar isso. Mas também reconheço que minha pesquisa corporal foi superficial e
confortável. Neste sentido, verifico que os exercícios e reflexões vividos no processo do
“movimento autêntico” são infinitamente mais DESAFIADORES para o crescimento do
intérprete.

È claro que poderíamos questionar: o próprio interprete não deveria se desafiar??


Talvez sim. Mas acredito que até um certo ponto. O direcionamento e a condução também são
muito importantes neste processo de “auto-gestão”. Muitas vezes eu não conseguia perceber,
sozinha, certas coisas que aconteciam. Quantas vezes eu só tive condições de discriminar uma
sutileza quando recebia um feedback ou através da observação do processo dos outros
integrantes do grupo?

O que vejo de mais positivo neste trabalho com o intérprete é que ele é DINÂMICO e
CONTÌNUO. Ou seja, dependendo do seu momento de vida e da sua maturidade artística você
vai assimilar partes do processo de uma forma bem seletiva (mais ou menos consciente, mais
ou menos confiante, mais ou menos disponível). Além de que ele não se limita apenas ao
período das práticas, pelo contrário, acaba acompanhando todo o seu desenvolvimento
artístico e pessoal, mesmo que você não esteja mais “em processo”. Sinto isso nitidamente,
pois, outros processos e experiências que eu vivenciei anteriormente foram determinantes
para a forma como as práticas “entraram” em mim. (isso foi até comentado no meu relatório
anterior).

Outro ponto significativo deste processo é a transformação na relação com o público.


Como as últimas experiências de trabalho com o Basirah já traçavam uma proposta de
performance mais “intimista” com o público, já havia uma certa familiaridade em se estar
próximo do público. Eu já me sentia confortável com esta condição de proximidade. Ou seja,
algumas mudanças já estavam acontecendo antes mesmo deste processo específico. No
entanto, durante o processo, a minha relação na forma de sentir o público se transformou. Eu
170

passei a não “estar para o público” e sim a “estar COM o público”. Não sei se isso é
compreensível, mas passou a ser mais tranqüilo ter público presente.

Não se pode negar que a presença de público é uma variável que sempre altera o
ambiente. Mas, pra mim, passou a não alterar mais de uma forma tão inconsciente e
aleatória. Quer dizer, eu procuro perceber o público assim como eu procuro me perceber e
perceber as outras coisas que estão acontecendo (a minha volta e dentro de mim). Passou a ser
mais tranqüilo e mais verdadeiro (inclusive quando o público interfere de alguma forma
negativa a ponto de eu me sentir vulnerável). Eu simplesmente reconheço isso e procuro não
tentar disfarçar o que não é “disfarçável”... continuar presente.

Concluindo, foi um processo que auxiliou muito mais a mim, como intérprete, do que
para a concepção de um “produto artístico final”. Até mesmo porque em muitos exercícios se
chegou a pontos mais profundos e espontâneos do que o espetáculo (“De água e sal”). /
Facilitou para que eu me colocasse de uma maneira mais confiante e responsável dentro da
minha performance./ Me ajudou a estabelecer uma relação mais verdadeira entre eu, os
processos de criação e o público. / Eu sinto que o trabalho não “parou por aí”... Mas que é
uma parte do processo de desenvolvimento do intérprete./ Percebo também que ao mesmo
tempo em que é um processo intenso e desafiador, no sentido de que instiga o intérprete a
realmente mexer nas suas questões pessoais e emocionais, fragiliza e expõe em vários
momentos delicados do processo (e que talvez ele (ainda) não tenha todo o suporte
necessário). / A maioria das atividades e práticas que expõem as pessoas do grupo de alguma
forma, mas acredito que ainda seja de uma forma saudável (acho que deu mais certo porque o
grupo já tem muita intimidade). / E definitivamente, é um caminho muito particular, cada
pessoa vai modificar e transitar apenas nos espaços onde ela der “conta” e onde for sua
necessidade pessoal.

É um processo como o próprio nome propõe: AUTÊNTICO. Cada um terá uma


vivência muito pessoal e particular desta experiência.

Micheline Diniz

Coisas que foram importantes:


171

Buscar minha identidade como intérprete. Refletir sobre minha identidade como
intérprete, durante o processo criativo, foi uma das coisas mais importantes. Tudo passa pela
minha compreensão, meu corpo, minha voz, minha emoção. No início parecia que era preciso
buscar minha identidade, mas depois percebi que não é preciso buscá-la, ela está comigo o
tempo todo. Às vezes refratária, mas sempre presente. Ser no espaço como intérprete significa
também ser eu mesma a todo instante.

Acreditar no movimento. Pensar sobre a forma movimento, sua motivação, tamanho,


são velhas reflexões, mas a cada dia que passa, gosto mais dessa opção de expressão. A dança
é uma forma de expressão abstrata que esbarra em várias dificuldades de comunicação, mas
também permite uma enorme liberdade de interpretação para o observador, e isso me agrada.
Existimos em mundo cheio de informações e direções predeterminadas, vivenciar um
momento com uma maior amplitude de interpretação (refiro-me ao observador) é algo
valioso, e estar pensando diariamente sobre como me comunicar com meu corpo é instigante.

Buscar construir. O exercício da construção é importante para o intérprete, pois toda


construção envolve escolha de caminhos e isso nos coloca refletindo, ou seja, em
movimento/pensamento.

Mergulhar na crise. Parece loucura, mas mergulhar na crise teve seu lado bom.
Mesmo sem Ter saído dela (já que eu saí do trabalho no auge da minha crise), percebo o
quanto é importante estarmos nos provocando para alcançar um crescimento. É bom saber que
me deixei revirar, especialmente porque me conheço e sei que tenho uma personalidade forte
e não perco o controle facilmente.

Estar de venda. Este é sem dúvida um dos exercícios mais importantes que realizei,
pois nos ajuda a mergulhar no nosso mundo interior, nos afasta do “maldito julgamento”,
aguça a sensibilidade, além de provocar o movimento. Lembro de todas as vezes que estive
vendada e consigo recordar como aqueles movimentos, aparentemente desordenados, falavam
de mim. Mergulhar em nós mesmos é mergulhar na riqueza das infinito.

Coisas que foram difíceis:

Sentir meu corpo falhando. Sentir dor e não poder usar o corpo plenamente foi
determinante para a minha decisão de sair do processo naquele momento. Eu não conseguia
experimentar. A proposta de mergulhar nas emoções traz uma intensidade que repercute no
172

corpo. Por simples que pareça o movimento, quem o realiza é uma pessoa com todas as suas
lembranças emocionais. O processo criativo, como um todo, priorizou nossas memórias
emocionais. Em algum momento eu resgatei vivências difíceis, ainda não bem resolvidas pra
mim, e tive dificuldades para lidar com isso. Acho importante dizer que antes mesmo de
iniciá-lo, meu corpo já estava mostrando que algumas vivências difíceis já o tinham
maltratado. Depois de todas essas reflexões, percebo a importância do intérprete buscar uma
forma “técnica” de acessar seus registros emocionais, sem deixar que isso fique ‘pesado’
demais. Ao mesmo tempo que queremos nos beneficiar da carga dramática de cada mergulho
emocional é preciso saber lidar bem com isso, e este ainda é um universo novo pra mim.

Participar de um ensaio aberto, sem estar pronta para isso. Os dois ensaios abertos
que participei não foram boas experiências para mim. Isso aconteceu por motivos diferentes.
No primeiro por sofrer a interferência e o descuido de um colega. No segundo, por não estar
no momento certo de me expor. Os ensaios abertos não foram ensaios, foram apresentações.
No segundo ensaio eu não sabia quem eu era lá dentro, e eu me perguntava isso a todo
instante. A exposição naquele momento ajudou a aumentar a impressão de que o tempo havia
se esgotado, e como aquele era um momento de profunda crise para mim, eu me senti fora.
Fora do tempo, fora do espaço.

O descuido do colega. Dividir o mesmo espaço cênico é muito mais do que dançar
com mais nove pessoas. É perceber o outro, é saber recuar, é abrir os olhos e olhar o que tem
na sua frente,.... A falta de cuidado de um colega de trabalho me fez pensar por que eu estava
ali dividindo o mesmo espaço com todas aquelas pessoas. É certo que as pessoas com suas
diferentes personalidades ocupam espaços diferentes. Alguns maiores outros menores. Mas é
preciso que exista harmonia na ocupação desse espaço. Não acho que isso seja uma coisa
fácil, mas quando se está no auge do seu desgaste emocional e físico ser surpreendida pelo
descuido de um colega me provocou várias reflexões, e, sem dúvida, foi uma experiência
ruim.

Nem difíceis nem fáceis, apenas comentários:

Estar em um espaço fervendo de energia. Lembrando uma panela de pressão, estar no


espaço com mais nove pessoas, reviradas emocionalmente, foi uma experiência curiosa e
instigante. É engraçado porque eu me lembro que eu dizia: “lá dentro está vivo”. É uma
loucura de energia! Às vezes saía faísca pra todo lado! Eu sei que sou meio antena parabólica
173

e acabo sentindo muito as faíscas que saíam daquela panela pressão. Como eu não estava
canalizando a minha energia, acabei implodindo. O fato de estar em um espaço fervendo de
energia era motivador, mas não direcionar a minha energia para algum lugar me fragilizou.

Falta de espaço e tempo para tentar novamente: Sei que em tese o processo criativo
não estava finalizado quando decidi me afastar do trabalho, mas de algum modo o trabalho
tomou forma e já estava existindo. A partir daí eu não estava mais encontrando espaço para
continuar experimentando.

Discordâncias de caminhos:

Acho que não há discordâncias de caminhos, mas fico pensando em quantas e quais
outras possibilidades também podem servir como mergulho para emergir um trabalho
artístico. Penso que talvez o caminho inverso possa ser uma opção. Ou seja, partir de um
movimento para depois preenche-lo com minha emoção. Encontrar algum movimento que
pudesse dar o start. É claro que antes desse movimento é preciso saber sobre o que se quer
falar. Também exige do intérprete um desapego do movimento inicial, pois em algum
momento seja necessário abandonar o “movimento alavanca”. Os movimentos também falam
por si, e acredito que não são escolhidos tão aleatoriamente assim. Penso que talvez seja um
caminho porque senti dificuldade de fisicalizar minha emoção, e a minha linguagem mais
acessível era o movimento.

O porque da minha decisão de me afastar: Acho que os motivos foram o meu corpo
que estava falhando, o tempo que parecia ter se esgotado e não estar canalizando a minha
emoção, o que me fez implodir. Definitivamente, existir no espaço com mais nove pessoas
sem Ter uma construção individual, não estava sendo possível. Como o meu corpo estava
reclamando para que eu fizesse algo mais leve, eu precisava de tempo e tranqüilidade para
começar tudo de novo. Ou seja, voltar a experimentar, especialmente, de forma individual.
Mas, naquele momento, era como se o espaço o e tempo já não existissem mais, pois o
processo criativo já estava em outra etapa. Sei que em tese havia tempo e espaço, mas, para
mim, esta era uma impressão concreta. Estava emocionalmente muito revirada e só fui
entender estes motivos muito depois. Naquele momento, minha decisão foi completamente
emocional. Como você me pediu no e-mail que falasse o que “realmente me levou a sair do
processo”, envio, agora, um texto que escrevi no sábado/domingo que se seguiu ao meu
último ensaio aberto. Neste fim de semana estava confusa, chorei bastante e me senti muito
174

mal. Como ele foi escrito no momento que estava resolvendo me afastar, ele mostra
emocionalmente o que estava acontecendo comigo. Pensei em enviá-lo a você, Gisele, mas
não consegui. Escrevi mais ou menos dez páginas no meu caderno de anotações, depois sentei
em frente ao computador e organizei um pouco aquela confusão emocional. Depois disso
passei a me sentir melhor e mais aliviada. Foi um enorme vômito. Um vômito absolutamente
necessário. Ainda me sinto nua mostrando este texto, mas acho que vale a pena você dar uma
lida. É um texto curioso, pois nele o processo criativo cai na minha cabeça, e as coisas
começam a fazer mais sentido. Vivencio a minha morte no trabalho e um pouco de todos os
outros intérpretes. Eu estava revirada emocionalmente e precisava canalizar aquelas emoções
para algum lugar, não estava achando espaço para fazer isso com o movimento, acabei
fazendo com as palavras. Anexo: as ondas.

Acho importante dizer que gostei muito de ter participado do processo criativo pois
estive refletindo todos os dias, descobri novos caminhos e ampliei meus horizontes. Muitas
idéias que estou tendo agora, sei que são frutos do processo criativo.
175

ANEXO 3 – RELATO DA APLICAÇÃO DA PESQUISA NO PROCESSO DE


CRIAÇÃO DE LAMBE LAMBE DE KÊNIA DIAS
Além do desenvolvimento desta pesquisa no grupo Basirah, tive a oportunidade de
realizá-la num tempo mais reduzido e num contexto diferente, no segundo semestre de 2004.
Fui convidada a participar de um grupo de improvisação, como objeto de pesquisa da
doutoranda em psicologia e dançarina Susi Martinelli, na Universidade de Brasília. Sua tese
refere-se ao estudo sobre as especificidades da criatividade expressa no movimento corporal.
Com essa pesquisa, reuniram-se pessoas de distintas formações em dança, e algumas em
teatro. As atividades desse grupo foram realizadas num período de dois meses, com encontros
semanais de três horas e consistiram em sessões de improvisos, entrevistas em grupo e
individuais, observações de gravações em vídeo do processo, e discussões diversas sobre o
tema criatividade no movimento.

Numa das fases de sua pesquisa, Martinelli propôs a divisão do grupo em trios e
duetos. Na ocasião, tive a oportunidade de trabalhar mais proximamente com Kênia Dias,
dançarina, bacharel em Interpretação Teatral e Mestre em Artes pela Universidade de Brasília,
com experiência profissional na área, e que na ocasião também desenvolvia sua pesquisa de
mestrado na linha de Processos Composicionais para Cena na UnB. Seu objeto de estudo
referia-se à observação e reflexão acerca de moradores e pedintes de rua, para a construção de
uma dramaturgia em dança que resultou o espetáculo Lambe Lambe.

Neste Anexo, estarei apresentando o processo de minha pesquisa realizado com Kênia.
É importante lembrar que nossa parceria se deu a partir da pesquisa dela, onde pude contribuir
aplicando parte da minha pesquisa em seu processo criativo por meio de improvisações
estimuladas por exercícios inspirados no MA, BMC, AL e IA. Meu intuito era trazer as idéias
de minha investigação, principalmente em relação ao desenvolvimento do estado pré-
expressivo como foco fundamental do processo criativo, sem desvirtuar, ou modificar
demasiadamente, a concepção criativa da temática proposta por Kênia. Como aplicar os
princípios delineados na minha pesquisa num processo criativo com temática estabelecida, e
para um intérprete com formação diferente do elenco do Basirah?

Nascida em Brasília em 1973, o contato de Kênia com a dança teve início aos cinco
anos de idade, com aulas de balé clássico. Aos quinze anos, ainda no balé, começa a fazer
dança contemporânea com Lenora Lobo, discípula de Klauss Vianna, participando mais tarde
da companhia Alaya, sob a direção de Lobo. Permanece trabalhando com a Alaya por doze
176

anos, o que influenciou sua formação como intérprete. A Alaya sistematiza como fundamento
e princípio criativo para o intérprete criador o Teatro do Movimento, método criado e
desenvolvido por Lobo, que consiste em “dar ao intérprete consciência nos traçados de seus
caminhos”187 criativos, partindo de três eixos fundamentais: Corpo Cênico, Movimento
Estruturado e Imaginário Criativo que formam o que Lobo intitulou de Triângulo da
Composição, estrutura mater do método. A partir do trabalho sobre os três vértices do
triângulo, o método propõe “uma tomada de consciência, uma visão e proposta de
organização, elaboração e desenvolvimento de processos criativos e de seus conseqüentes
produtos cênicos”.188 O método, que prima pelo respeito ao material corporal do intérprete
considerando suas vivências e história pessoal, foi desenvolvido à luz do “movimento
consciente” de Klauss Vianna e da coreologia de Rudolf von Laban. Tem como característica
principal a investigação criativa pela análise do movimento.

Quando nos encontramos, Kênia já havia realizado sua pesquisa teórica e de campo
sobre os modos de vida dos pedintes e moradores de rua. Seu projeto de mestrado objetivava
realizar uma reflexão sobre o processo criativo com base na observação desses modos de vida,
daí partindo para investigar o movimento e situações de cena na busca da construção de uma
dramaturgia corporal. Dentro dessa perspectiva, me coloquei como colaboradora de seu
processo. Não era meu objetivo empenhar o papel de direção na sua montagem, mas apenas
estimular sua sensibilidade corporal e emotiva (tópicos de minha pesquisa) para o que ela
estava propondo. Os exercícios aplicados neste contexto assumiram um caráter mais de
compreensão do material de sua pesquisa de campo, e de um exercício de presença para a
interpretação do material selecionado no processo criativo.

Considerando que Kênia já possuía algumas idéias corporais a respeito de sua


pesquisa, propus a ela fazer um levantamento das imagens e situações que habitavam seu
imaginário 189 e que pudessem estar relacionadas com moradores e pedintes de rua,
descrevendo-os num papel. Em seguida, solicitei que, a partir dessas imagens, ou situações,

187
LOBO, Lenora, CÁSSIA, Navas. Teatro do movimento: um método para o intérprete criador. Brasília:
LGE Editora, 2003, p48
188
Idem, p77.
189
Utilizo o termo imaginário segundo a definição de Lenora Lobo que consiste no “ato de imaginar –
aquilo que vem da imaginação da pessoa”, sendo imaginação “a faculdade de representar ou evocar imagens já
percebidas, podendo também ser a faculdade de criar e inventar”. Segundo Lobo, “o imaginário do artista é
composto de suas imagens internas, imbuídas de sua afetividade e história de vida”. Idem, p185.
177

ela fizesse o exercício da associação livre de idéias relacionando-as a sensações e ações


físicas que pudessem ser geradas no corpo. As associações foram: 1 – Tremor do corpo, que
ela associou a susto, pulsação, respiração interrompida, o que quebra a continuidade, o que
provoca, o que se faz perceber; 2 – A imagem de estar enrolada em um plástico, associação
com falsa limpeza, aprisionamento, molde; 3 - Água dentro de um balde, associado a esfriar,
tranqüilizar, parar; 4 – A ação de comer barbante, comer as mãos, comer os pés, associação
com a frase “O lixo daqui é melhor que o de lá”. A partir desse exercício fomos analisando
cada associação e ação, e como cada uma delas se situava dentro da pesquisa, que significados
poderia ter, que tipo de leituras poderiam suscitar partindo dessas associações, além de como
poderíamos desenvolver as ações físicas (movimentos, seqüências coreográficas).

Após uma reflexão sobre esta análise realizada por Kênia, sugeri a ela que realizasse
um improviso sobre sua pesquisa, sem qualquer controle crítico, qualquer julgamento. Ela
poderia partir das imagens levantadas ou outras que surgissem, de imitação, de representação,
de pantomima, de impressão, de emoção suscitada pela lembrança de alguma imagem
presenciada na pesquisa de campo, etc. Nada deveria ser excluído. Pedi que ela não se
detivesse numa situação específica, não buscasse uma estrutura, não se preocupasse em seguir
alguma possível regra de composição, nem se preocupasse em fazer algo de interessante para
mim, que a observava, mas que deixasse fluir as imagens por meio de seu corpo, sem julgar as
ações. Seguiram-se trinta minutos ininterruptos de improviso no silêncio, onde os movimentos
eram realizados um atrás do outro sem lapsos, sem equívocos. A proposta corporal parecia
muito precisa, não havia dúvidas. Uma ação puxava outra construindo uma coerência interna
entre elas, como se todo material pesquisado estivesse armazenado no corpo esperando a
oportunidade de ser materializado, ou melhor dizendo, ser escutado. Kênia parecia estar
penetrada de ação, envolvida com seu devir, encarnada de impulsos, com seu estado corporal
alterado, embora sem consciência atenta deste estado.

Observamos o quanto o corpo absorve informações num processo de consciência


própria sem, necessariamente, envolver um processo de atenção consciente. Christine Greiner,
em sua investigação sobre a história do corpo, nos coloca que, atualmente, tem havido um
reconhecimento, por parte de estudiosos, da natureza cognitiva do sistema sensório-motor e
imunológico, descentralizando esta capacidade do sistema nervoso central. Segundo Greiner,
178

esse reconhecimento “reitera não apenas a evidência de que o corpo pensa, mas a de que o
pensamento se organiza como ações possivelmente descentralizadas”. 190

Considerando, então, que o corpo possui uma inteligência independente de nossa


vontade e consciência, reforço a importância de se desenvolver a capacidade para a escuta e
percepção daquilo que o corpo oferece, dando oportunidade ao intérprete de se valer dessa
inteligência, afetando-a com intenções para o seu processo criativo. Sandra Meyer Nunes nos
esclarece que,

A ação “consciente” (incluindo a do ator) emerge, muitas vezes, de


movimentos aparentemente involuntários, orquestrados em uma rede
neuronal rica em referências, memórias passadas e percepção do momento
presente sem o controle intencional do agente. Há um terreno desconhecido
(e criativo) que não depende plenamente da intenção do ator, mas que pode
ser acionado pela parte cabível ao exercício de sua vontade.[...O] corpo
sempre está de certa forma consciente do movimento. Existe uma
operacionalidade consciente – embora não a percebamos – todo o tempo,
não necessitando de um “eu” para legitimá-la. Haveria uma percepção que se
daria a nível subpessoal, não intencional, onde há um acionamento
constante, porém sem o comando do homem. Do contrário, teríamos que
constantemente “ordenar” aos nossos centros vitais que funcionassem, senão
morreríamos. Da mesma maneira milhões de sinapses ocorrem a cada
segundo em nosso sistema nervoso e determinam o que aprendemos sem
nosso “consentimento”.[...]A consciência do corpo já está nele, e é atuando
com o corpo e não no corpo, ou sobre o corpo, que atingimos uma
funcionalidade mais plena.191

Embora o material criativo estivesse latente no corpo de Kênia, revelando-se com


facilidade no primeiro improviso, intitulado por ela de ‘improviso embrião’, em muitos outros
que se seguiram isto não aconteceu. Segundo seus depoimentos, foi difícil retomar os estados
corporais que emergiram nesse ‘improviso embrião’.

Propus a Kênia ver o vídeo do improviso embrião fazendo, inicialmente, uma


observação do todo, para em seguida ir fragmentando as imagens para detectar o que chamei
de ‘células cênicas e de movimentos’, passíveis de desenvolvimento e exploração futura. Ao
detectar estas células, Kênia deveria analisá-las num sentido mais afetivo, buscando um
significado em cada uma, observando o que cada célula dizia a ela, se havia uma coerência

190
GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005, p48.
191
NUNES, Sandra Meyer. O corpo do ator em ação. In: GREINER, Christine, AMORIM, Claúdia (org).
Leituras do corpo. São Paulo: Annablume, 2003, p129-31.
179

com a pesquisa teórica e de campo, e como ela via sua relação corporal com isso. A partir
dessa análise ela deveria selecionar algumas células do qual considerasse mais fortes e
significativas, definindo-as como pontos centrais, norteadores dos improvisos futuros.

Com esse procedimento, Kênia pode observar a corporificação das várias imagens que
emergiram de seu campo de pesquisa. A imagem de uma mulher grotesca, totalmente
selvagem e outra mais civilizada, ereta, embora as duas se apresentassem sem sutilezas,
inumanas e caricaturais. E também as imagens do homem que se arrastava pelo chão na sua
miséria de pedinte, da mulher que se despe toda e permanece envolta com as próprias ações
sem se preocupar com o que acontecia ao seu redor, uma outra que parecia segurar um
guarda-chuva, imóvel, como numa espera resignada por algo que nunca vem. Essas
personagens, ou formas corporais que remetiam a personagens, emergiam de uma para outra,
sem uma linearidade aparente, sem possuir uma ligação entre elas, e também não se davam
pela transformação de uma para outra. A improvisação simplesmente acontecia como impulso
interno que vai sendo revelado, sem demonstrar qualquer processo de análise, qualquer juízo
crítico. Para o início do processo criativo esse aspecto é muito importante para levantar
possibilidades e trabalhar escutando o que o corpo tem a dizer.

Kênia também observou que sempre caminhava em círculo antes de iniciar seu
improviso, e este percurso se mantinha no desenvolvimento do improviso como um impulso
realizado pelo próprio corpo sem um comando intencional e consciente, o que lhe revelava
uma possibilidade de construção espacial da encenação. O caminhar em círculo foi
futuramente incorporado na concepção cênica.

Embora Kênia desenvolvesse uma movimentação corporal baseada nessas imagens,


sugeri que no início do processo ela não se prendesse a construção e definição imediata de
personagens específicos, que ela deixasse eles virem e irem. As formas que emergiam no
corpo, motivadas pela fundamentação teórica e empírica sobre o tema ‘moradores de rua’,
traziam um significado muito particular ao movimento de Kênia. O movimento do corpo,
apesar de não passar por uma construção organizacional conscientemente elaborada, estava
preenchido de sentido, pois Kênia parecia já ter se apropriado intelectualmente de sua
temática, o que lhe dava suporte para um trabalho corporal mais consistente, agregado à longa
experiência como dançarina. Aparentemente, lhe faltava organizar o material “expelido” em
seu improviso embrião. Entretanto, não era só isso. Foi preciso entrar no processo da escuta
de si mesma e não somente dessas imagens e formas que lhe habitavam o corpo. Afinal, esses
180

personagens surgiram ali, em seu corpo, a partir de leituras pessoais no contato com a
pesquisa de campo. É sempre importante lembrar que, “antes de tudo, o intérprete é o seu
corpo, e não alguém que mora dentro deste corpo e o utiliza como uma espécie de
instrumento, que pode ser tocado a seu serviço”.192 Assim todos os demais laboratórios
realizados em nossos encontros foram desenvolvidos por meio de improvisações estimuladas
por exercícios inspirados no Movimento Autêntico, BMC, Associação Livre e Imaginação
Ativa.

Nos primeiros encontros, Kênia não possuía uma idéia muito clara a respeito da
concepção do espetáculo. Todavia, a forma como íamos trabalhando o material não parecia
apontar à construção do espetáculo para uma concepção coreográfica, no sentido do passo
coreografado. Existia uma dificuldade em desenvolver um argumento coreográfico do passo
de dança dentro da estrutura do improviso. As formas corporais apareciam mais fortemente,
trazendo a idéia da movimentação. A concepção cênica pareceu se delinear dentro de uma
construção corporal que permitisse a manifestação fluida da movimentação dessas formas,
relacionadas com a pesquisa de campo desenvolvida, e não de uma definição sistemática e
fixa do movimento dançado, do passo coreográfico.

Seria realmente necessária a definição de uma “estrutura coreográfica”, enquanto


seqüência de passos ordenados, para a construção cênica do espetáculo? Talvez a construção
de seqüências definidas e fixadas de movimentos, dentro de uma estrutura coreográfica
calcada no passo de dança, limitasse demasiadamente a concepção de Kênia.

Seguindo as idéias de Kênia a respeito da concepção do espetáculo, pareceu mais


coerente explorar a idéia do corpo expressivo, que explora o movimento valorizando seu
aspecto expressivo, sem a necessidade de seguir estruturas rígidas. Talvez fosse interessante
se valer das células de movimentos, e das idéias encontradas por Kênia, para fortalecer a
concepção, e não usar uma alegoria coreográfica como pretexto de ser um espetáculo de
dança.

Com esse ponto de vista, o exercício do improviso era fundamental para o


desenvolvimento e compreensão das idéias e células. Entretanto, Kênia deveria optar sobre a
linha que ela gostaria de seguir, se uma linha estritamente de composição coreográfica

192
NUNES, Sandra Meyer. Op.cit., p120.
181

sistematizada, ou se algo mais flutuante, onde o ponto fundamental estivesse ligado à


compreensão da expressividade do corpo na temática moradores de rua, que gera ações
(movimentos corporais) para a construção do contexto cênico. Contexto com estruturas
traçadas, porém flexíveis, possibilitando o exercício constante da interpretação, como o
desenvolvido com o Basirah. Sendo assim, os esquemas de ensaios e laboratórios deveriam
estar calcados no desenvolvimento das habilidades do improviso.

Como Kênia havia definido algumas células/idéias de movimentos que emergiram das
imagens reveladas no improviso embrião, era importante exercitar essas células também por
meio dos improvisos até que ela fosse se apropriando dessas células/idéias, compreendendo-
as e incorporando-as dentro das possibilidades encontradas. Ou seja, ela deveria encontrar e
desenvolver uma categoria de idéias para determinadas células já selecionadas, e improvisar
dentro desta categoria até dominar a compreensão das células e das categorias. Assim poderia
ir desenvolvendo a habilidade de manipulação dos elementos do improviso, a partir da
compreensão de cada um deles, pelo menos enquanto idéia e corporalidade.

Diante dessas considerações sobre o processo criativo, ficou claro que a contribuição
que eu poderia dar a Kênia, partindo de minha pesquisa, era estimulá-la a compreender o
processo que se dava com aparecimento das formas no corpo que culminava no
desenvolvimento das células e idéias. Mas para isso acontecer deveria primeiro fazê-la voltar-
se ao próprio corpo, numa tentativa de levá-la a compreender seus estados corporais. Assim
iniciamos a aplicação dos exercícios.

O primeiro contato de Kênia com o exercício de olhos vendados se deu no


aquecimento que propus. Com o uso da venda nos olhos, a proposta inicial era sensibilizar
Kênia para a percepção de seu corpo, suas possibilidades de movimento, a consciência de
suas ações, sensações e desejos no momento da realização de seu aquecimento. A proposta
consistia também em buscar se mover, inicialmente, alongando a musculatura sem
preocupação com as formas do corpo, para em seguida levar o foco de atenção para cada
sistema corporal, músculos, ossos, respiração, fluidos etc, e deixar o movimento acontecer a
partir desta atenção. Este aquecimento tinha como objetivo tentar trazer uma atmosfera de
introspecção para o próprio corpo, além de uma atenção à percepção mais detalhada das
sensações provocadas pelos movimentos realizados durante o aquecimento, a sensação do
corpo no espaço, a dilatação da escuta corporal. Enfim, tudo que pudesse levar Kênia a se
perceber a partir de seu corpo. Entretanto, nesse aquecimento, Kênia pareceu estar focada nas
182

formas corporais. O estímulo para o movimento parecia partir de uma idéia externa ao seu
corpo, e não de uma sensação internalizada da ação física. A ação intencional de alongar um
músculo específico, por exemplo, não pareceu clara, pois sua atenção parecia estar voltada
para a realização de formas corporais. A ação de alongar determinada musculatura parecia ser
conseqüência da forma realizada pelo corpo, e não um objetivo proveniente da intenção de
alongar o músculo específico. Kênia não demonstrou estar focada na natureza de seu corpo,
mas nas formas que ele poderia criar ao mover-se. E isso também não parecia se dar de
maneira consciente para ela.

Kênia acredita que esta situação pudesse estar associada à maneira pelo qual vivenciou
seus processos criativos em dança, onde normalmente a composição coreográfica se atinha a
reprodução das formas dos movimentos encontrados no corpo. Mesmo que para se chegar às
formas corporais houvesse uma investigação e exploração aprofundada do movimento, a
composição final do produto coreográfico, muitas vezes, se restringia à repetição das formas.
A compreensão do caminho para se chegar à forma era excluída no resultado final. A
abordagem do movimento corporal para a composição coreográfica se dava pela forma e não
pela compreensão de seu processo de construção. Também, nesse momento, o contexto
criativo de Kênia para a experimentação parecia estar demasiadamente imbuído de sua
pesquisa sobre moradores de rua, o que algumas vezes a impedia numa investigação corporal
desvinculada do material pesquisado.

Kênia falava sobre suas impressões após a execução de cada proposta sugerida, e
então conversávamos sobre elas. Em seu depoimento sobre esta primeira experiência com os
olhos vendados, Kênia não se sentiu confortável e percebeu uma ansiedade interna que a
incomodou. Ela mesma concluiu que sua ansiedade não a deixava perceber seu corpo.

O trabalho com vendas parece ampliar tudo o que a pessoa considera como um
obstáculo para si, todos os elementos que entram no seu universo do juízo crítico, tais como
ansiedade, medo, reconhecimento de padrão de comportamento, reconhecimento de padrão de
movimento, indiferença, recusa etc. Talvez por isto, no início, algumas pessoas se sintam
desconfortáveis com este exercício, pois ele pode mexer com suas expectativas, frustrações,
desejos contidos, necessidade de se chegar a um resultado específico. Com o passar do tempo,
o exercício com vendas pareceu chamar Kênia para uma calma interna e uma percepção de si
mesma, fazendo-a detectar muitos aspectos pessoais desapercebidos por ela. Isso parece afetar
183

também a imagem corporal que a pessoa tem de si. A escuta ao tempo das ações físicas vai se
dando mais naturalmente, trazendo uma noção de organicidade mais concreta.

Experimentamos variados improvisos com olhos vendados. Os exercícios realizados


com a venda nos olhos objetivavam, não só um aquecimento puramente do corpo físico, da
musculatura, mas estavam focados, principalmente, no exercício de aquecimento e apuro da
percepção dos estados corporais. As variações de exercícios com olhos vendados foram três.
Na primeira variação a pessoa deve mover-se somente quando sentir uma necessidade
profunda de fazê-lo, não provocando o movimento. Essa variação é realizada por vinte
minutos. Na segunda, também por vinte minutos a pessoa deve provocar o movimento no
corpo observando as sensações e estados gerados a partir dessa provocação. E na terceira
variação a pessoa poderia fazer o que quisesse durante vinte minutos.

Em um dos laboratórios realizados com venda, sugeri a Kênia realizar um improviso


buscando trazer o material de sua pesquisa. Ela poderia transitar, ou não, pelas formas e
células de movimentos até então identificadas. Os olhos vendados trouxeram outra dinâmica
ao improviso. Em função da escuta corporal aflorada e sensível provocada pela venda, se deu
a dilatação do tempo de percepção do corpo. Seu corpo parecia mais evidenciado. A força
expressiva do movimento não estava nas formas corporais, senão no próprio corpo que neste
momento revelava um lado genuíno e frágil. Seu corpo pareceu iniciar um encontro com ele
mesmo, como pessoa que sente, se movimenta, tem atitudes, reage, pensa, sofre, recebe
influências. Segundo o depoimento de Kênia,193 a venda lhe revelou a necessidade de se
distanciar do contexto da pesquisa de campo, pois até então, o ingrediente do corpo ‘real’,
daquilo que pertencia ao lado mais íntimo dela, parecia ter sido colocado de lado para dar
espaço ao ‘corpo cênico’, e que estes dois corpos faziam parte de universos diferentes.
Entretanto, ela mesma pode perceber que quanto mais se distanciava do contexto de sua
pesquisa, mais sentia se aproximar dele. Quanto mais experimentava seu corpo sem um
objetivo contextual específico, onde a experiência e vivência do próprio corpo eram o foco,
mais ela compreendia sobre seu processo criativo, sobre sua visão de mundo na relação com
as coisas, e conseqüentemente, na relação com seu material pesquisado. Na fala de Kênia ela
coloca que “quanto mais eu esquecia da pesquisa, mais ela vinha no meu corpo”.

193
Depoimento gravado em 03 de março de 2006.
184

Kênia detectou a importância de ter realizado o improviso embrião num primeiro


momento, pois ali se verificou que a corporificação das imagens estava vinculada
objetivamente ao campo pesquisado. Segundo ela os exercícios de olhos vendados lhe
proporcionaram encontrar um caminho para chegar aos elementos do improviso embrião,
numa relação menos direta com o campo de pesquisa, e mais a partir de seus registros
corporais. Em seu depoimento ela diz:

A venda oxigenou meu campo de pesquisa porque eu não estava restrita só


ao meu campo. O ar que vinha era de mim, e não do campo pesquisado. O
trabalho com a venda me possibilitou trabalhar a Kênia (pessoa) e a Kênia
pesquisadora [...] consegui trabalhar uma fusão entre eu, Kênia, e o campo
pesquisado. O que trazia mais oxigênio ao processo era eu mesma, e não o
campo pesquisado. 194

As formas corporais reveladas no improviso embrião agora apareciam enfraquecidas e


imprecisas, talvez pelo trânsito entre a “personagem” Kênia (imaginário) e a pessoa Kênia
(real). O uso da venda amenizou o aspecto caricatural das formas e da sua representação no
corpo, trouxe um corpo com um aspecto humano mais evidenciado. Isso sob determinados
aspectos era interessante, pois poderia interferir na concepção do espetáculo, no sentido de
torná-lo mais próximo da realidade. Aproximar-se de um contexto mais realista talvez
reforçasse uma visão mais crítica de Kênia em relação à temática do espetáculo.

Por termos adotado como ponto principal dos ensaios o exercício do improviso
propriamente dito, Kênia comenta sobre sua dificuldade de reter determinadas cenas que
surgem nos improvisos, e também não consegue parar de ter idéias. A cada improviso surgem
novas possibilidades que vão se perdendo. Segundo suas palavras “o improviso parece não ter
fim, é uma sucessão de imagens intermináveis”. Entretanto, algumas ações provenientes das
imagens, como caminhar em circulo, a mulher que segura um guarda chuva, dentre outras, se
repetem funcionando como pontos de apoio do improviso.

Algum elemento delimitador deveria ser definido para que Kênia não divagasse por
caminhos tão diferentes nos improvisos realizados, e também para que pudesse reter com
mais facilidade as cenas que fossem mais significativas para ela. Pensei que a retenção das
cenas que apareciam pudesse estar ligada a familiaridade de Kênia com seu próprio corpo. Era
preciso lembrar do corpo e entender seus processos mentais, psicológicos e físicos, para então

194
Idem.
185

compreender o caminho que se levou para a construção do corpo cênico. Talvez assim, na
repetição do improviso, Kênia pudesse se aproximar mais das cenas perdidas até então.

Trabalhamos também o exercício MVA acreditando que, talvez esse exercício


ajudasse Kênia a perceber mais seu corpo em movimento. Ao realizar esse exercício, Kênia
não verbalizava toda ação física executada. E também o tempo entre a construção mental da
imagem de movimento e a verbalização do movimento eram quase que simultâneos. Parecia
que a imagem do movimento ia se construindo (se concluindo) com o tempo de verbalização
da ação. Algumas vezes também a ação física sobrepunha-se a ação verbal. A seqüência do
exercício muitas vezes era negligenciada sem se perceber. Muitas ações físicas executadas
não eram percebidas. Parecia não haver uma atenção focada no detalhe da ação física. A
descrição verbal da imagem era realizada dentro de uma categoria generalizada do
movimento, e não no seu detalhe, na sua característica particular para aquela determinada
ação. Por exemplo, se a ação era levantar o braço, o comando verbal era – ‘eu vou levantar
meu braço’, e não, ‘eu vou levantar meu braço direito, estendido, à frente do meu corpo, na
altura de meus ombros, etc’. Parecia não haver uma preocupação com a construção da ação,
do movimento, de seu peso, velocidade, densidade, mas apenas com a forma final que ele
deveria adotar. A imagem do movimento estava ligada a sua forma, e não a sua construção.
Kênia observou a partir deste dado que, não se preocupar com caminho percorrido, mas
somente com seu fim, estava relacionado a uma característica de sua personalidade. Ela sentia
que tratava muitas coisas de sua vida desta maneira, sem se ater aos entremeios.

Repetimos esse exercício por mais duas vezes, ampliando seu tempo de execução para
que Kênia tivesse a oportunidade de ir refinando sua percepção, na forma de construir e
executar o movimento. Sugeri que ela buscasse a imagem mental do movimento em seu
percurso e não em sua forma final. Depois de certo tempo realizando o exercício, a percepção
em relação aos detalhes de um movimento foi se apurando. Também algumas características
da personalidade de Kênia foram sendo reconhecidas por ela, como possíveis causadoras de
determinadas tendências de execução do movimento, e da forma de pensar o movimento.

Uma variação proposta do exercício mental-verbal-ação (MVA) foi de realizar um


improviso de vinte minutos, retirando a etapa de verbalizar a imagem mental. Kênia poderia
transitar pelas formas encontradas na pesquisa, mas buscando perceber, atentamente, como se
processava o improviso. Pedi para ela não se deixar levar inconscientemente pelo impulso de
interpretar uma personagem, ou criar uma forma física que remetesse a personagem. Caso isso
186

acontecesse, ela deveria parar e voltar mentalmente à cena executada logo em seguida a sua
realização, numa tentativa de fazer uma observação mais aguçada desse impulso.

O conjunto dos exercícios trabalhados no processo proporcionou-lhe uma dilatação do


tempo de escuta do corpo e do movimento. Dando prosseguimento aos improvisos, Kênia
passou a se sentir mais conectada ao corpo, e teve a sensação de executar mais movimentos
do que normalmente fazia. Talvez o fato de ter aguçado a percepção do seu corpo em relação
ao movimento tenha causado a impressão de executar mais movimentos, mas na realidade
utilizou menos elementos cênicos e menos movimentos, comparados aos improvisos
anteriores. Kênia comenta a sensação de desnudamento de algo, que anteriormente fugia a sua
percepção. Segundo suas palavras, “parece que abriu-se uma janela aqui”, e aponta para o
lado esquerdo de seu tronco, na altura de sua costela inferior.

A partir desse processo, Kênia foi concebendo sua criação, que mais do que
denominarmos de um espetáculo de dança, seria coerente defini-lo também como um
espetáculo de dança-performance, onde se via idéias de movimentos executadas sobre uma
base dramatúrgica bem precisa, calcada no universo dos moradores de rua. Neste novo
contexto de minha pesquisa foi importante perceber que, definitivamente, não estava
propondo um método, ou uma técnica de atuação para o intérprete, senão um sistema aberto,
um pensamento de corpo para interpretação cênica, onde os exercícios propostos se
transformavam de acordo com a necessidade do intérprete, embora buscássemos sempre
seguir os princípios apontados na minha pesquisa. Certamente que os exercícios iniciais do
MA, MVA e IA serviram como propulsores para os variados exercícios que se seguiram, e
que eram delineados em função da necessidade de algum aspecto a ser trabalhado no
intérprete.

Em determinados momentos fiquei temerosa em desvirtuar o processo criativo de


Kênia ao propor uma abordagem de processo diferente do dela. Tentei desta forma buscar as
conexões que poderíamos estar fazendo para aproximar nossos objetivos, que até então não
me pareciam contraditórios, mas apenas diferentes em seu percurso. A idéia então era
mergulhar em seu material corporal para entendê-lo, e para isso deveríamos deixar as
sensações, impressões, as imagens, os impulsos se manifestarem corporalmente, para então
trabalharmos as conexões, os sentidos, os significados etc.

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