2006 - Giselle Rodrigues de Brito
2006 - Giselle Rodrigues de Brito
2006 - Giselle Rodrigues de Brito
Instituto de Artes
DE ÁGUA E SAL
Brasília – D.F.
2006
Universidade de Brasília
Instituto de Artes
DE ÁGUA E SAL:
UMA ABORDAGEM DE PROCESSO CRIATIVO EM DANÇA
Brasília – D.F
2006
i
e elenco do BasiraH.
ii
AGRADECIMENTOS
À querida família, Fred e Dirce pelo amor e apoio incondicional nesse processo!
A Alessandro Brandão, Rachel Cardoso, Lina Frazão, Lívia Bennet, Lívia Frazão,
Márcia Lusalva, Diego Pizarro, Alisson Araújo, Dorka Hepp, Micheline Santiago, elenco do
Basirah, a quem eu devo verdadeiramente a realização deste trabalho. Obrigada pela coragem
e entrega, e por me proporcionar, acima de tudo, crescimento pessoal cada vez mais profundo.
Amo vocês!
À preciosa colaboração de Lívia Marques através das aulas de Body Mind Centering,
Marília Márcia pela assistência psicológica e Janson Damasceno pelas aulas de balé para o
grupo Basirah.
Aos meus anjos da guarda Yara de Cunto, Luiz Mendonça, Márcia Duarte, Lenora
Lobo, por deixarem meus caminhos artísticos menos turvos!
Aos amigos, José Regino, Joana Abreu, Ana Carolina, Raquel Mendes, Marcelle
Lago, que me acompanharam nessa empreitada e me ajudaram com conversas e sugestões.
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS.............................................................................................................. ii
RESUMO................................................................................................................................. vii
ABSTRACT….......................................................................................................................... ix
INTRODUÇÃO......................................................................................................................... 1
CONCLUSÃO........................................................................................................................101
Figura 3 - Márcia Lusalva - improviso da frase ‘Eu num quarto branco. É assim...’, realizado
após exercício da IA e AL ............................................................................................ 58
Figura 4 - Lívia Bennet – improviso solo livre após realização dos exercícios do MA e IA .. 62
LISTA DE QUADROS
RESUMO
Esta pesquisa é um estudo sobre processo criativo em dança contemporânea com foco
na investigação e desenvolvimento de um estado pré-expressivo de criação e sua importância
para o processo criativo que resultou na montagem do espetáculo De Água e Sal, com a
companhia de dança Basirah. O espetáculo configurou-se como um laboratório cênico para o
exercício da interpretação, objetivando principalmente a preservação do estado pré-expressivo
no contexto de atuação.
Este estudo direciona-se para o dançarino intérprete criador, buscando fazê-lo entender
mais claramente sua dança, na criação de um movimento, na compreensão de um sentimento
gerador de determinada expressão no corpo e na identificação dos bloqueios psicológicos ou
físicos que o empeçam no desenvolvimento criativo. Também baseia-se num modelo de
processo criativo com colaboração coletiva.
pesquisa como um todo e a definição das etapas do processo, com reflexões sobre cada uma
delas, até se chegar à criação do espetáculo De Água e Sal. Alguns exercícios desta pesquisa,
especialmente os desenvolvidos na primeira etapa, também foram aplicados no processo
criativo do espetáculo Lambe Lambe da dançarina e coreógrafa Kênia Dias. O relato dessa
aplicação encontra-se no Anexo 3.
Por fim, na Conclusão apresento uma reflexão dos resultados obtidos na pesquisa
fazendo uma ponte para diversos questionamentos que foram levantados a respeito desta
abordagem de processo criativo.
ix
ABSTRACT
This research is a study about the creative process in contemporary dance focusing on
the investigation and development of a pre-expressive state of creation and it´s importance to
the creative process. It resuted on the production of the dance performance De Água e Sal
with the dance company Basirah. The performance served as a stage laboratory for the
exercise of interpretation, aiming mainly at the preservation of a pre-expressive state in the
context of the acting.
The research has been initially inspired on the Authentic Movement method and on
the studies of Body Mind Centering as elements that start the development of the pre-
expressive state. From these elements, it was developed a set of exercises aimed at making the
performer`s body sensitive and aware, as well as taking the perception out of automation. The
developed exercises focused on the interference in the rationality of the performer, not only in
the construction of thought, but also in the construction and manifestation of the body
movement. It stimulates in the performer the atention to his/her physical and psychological
processes for the development of an expanded awareness of the stage acting.
This study is directed to the creative dance performer, aimed at making him/her
understand more clearly his/her dance in the context of the creation of a movement, the
understanding of a feeling that generates a certain body expression, and the identification of
the psychological or physical blocks which prevents the creative process.
In the first chapter I present a brief historical perspective of the modern and post
modern western dance. It is used as a basis for a reflection and reading about aspects of the
current moment of the comtemporary dance, and the new parameters that have been revealed.
In the second chapter, there is an explanation about what are the Authentic Movement
technic and the study of Body-Mind Centering, which were our starting point. It also states
how these techniques were used in the process, besides the mix that happened with other
exercises, enabling the construction of what I´m going to name research principles.
The third chapter is an account of the phases of the creative process applied with the
dance company Basirah, where there was the main investigation and development of the
research as a whole and the definitions of the phases of the process. Some reflections were
made about each one of these phases culminating in the performance De Água e de Sal . Some
x
exercises of this research, specially the ones developed at the first phase, were also applied at
the creative process of the performance Lambe Lambe of the dancer and choreographer Kênia
Dias. The account of this application is shown in the Annex 3.
Finally, in the conclusion I present a reflexion about the results obtained in the
research establishing a link to many questions that were raised concerning this approach of
the creative process.
1
INTRODUÇÃO
Sem uma técnica específica ou sistematizada, tive uma preparação versátil do corpo
por meio de atividade física diversificada, e bastante intuitiva, que envolvia desde trabalhos
de estimulação sensorial a caminhadas em cachoeiras. Esse processo possibilitou, além de um
enriquecimento no vocabulário do movimento, a construção de um pensamento abrangente
em relação à formação de um dançarino, considerando o corpo em sua totalidade e capaz de
pensar por si, trazendo um potencial expressivo inerente a ser explorado e desenvolvido.
Nesse período, assisti muitos espetáculos, alguns voltados mais para a plasticidade e
virtuosismo corporal, e outros, pelos quais me sentia mais atraída, que possuíam como suporte
as singularidades de seus intérpretes, e posicionamento mais questionador. Nesta trajetória
muitos questionamentos me acompanhavam. A todo instante me preocupava em encontrar o
sentido para a dança. Qual o significado da dança para mim? E que papel ela pode
desempenhar na sociedade? Em que o trabalho artístico de um dançarino poderia contribuir na
transformação do ser humano? Seria possível alcançar uma comunicação direta com público
despertando a reflexão de questões existenciais? E como fazê-lo, como tocar, como atingir?
1
Companhia brasiliense de dança criada em 1980, por Luiz Mendonça (diretor artístico e coreógrafo) e
Márcia Duarte (dançarina e coreógrafa), que se dedicou à experimentação e desenvolveu uma poética própria de
movimento, alcançando projeção nacional e internacional, tornando-se referência para o surgimento de novos
grupos no Distrito Federal.
2
Desde então, comecei a perceber que meu interesse estava calcado muito mais no
universo psicológico do intérprete, em como ele pensa, sente, percebe, se relaciona, age,
compreende a si e se expressa, enfim, como permite manifestar em seu corpo aquilo que ele
realmente é. Com a criação do Basirah, alimentei a expectativa de experimentar processos
criativos com intérpretes autorais. Entretanto, em função dos integrantes do grupo serem
muito jovens e com pouca experiência profissional, além da minha pouca experiência em
direção, acabei por adotar um modelo onde o diretor/coreógrafo era o mentor das idéias e
2
Projeto de fomento à dança, onde se promoviam intercâmbios, seminários, workshops, apresentações de
espetáculos de dança, palestras, dentre outras atividades afins. Realizado por dois anos (1996/97) na Faculdade de
Teatro Dulcina de Moraes, em Brasília.
3
acumulava todas as funções. No entanto, essa forma de trabalhar limitou a possibilidade dos
intérpretes desenvolverem uma visão crítica em relação ao que estavam fazendo. No final das
contas, o intérprete apenas era usado como tradutor de idéias do coreógrafo, sem
necessariamente apresentar um posicionamento em relação a essas idéias. Conseqüentemente,
o trabalho sofreu um sufocamento criativo, pois todo o investimento no processo artístico
dependia exclusivamente do diretor e coreógrafo.
Esse modelo foi se modificando ao longo dos processos que fomos vivendo juntos, em
função do meu anseio de que o trabalho tomasse outros rumos, onde seus integrantes
estivessem investindo nele como parceiros e cúmplices, gerando troca de idéias num mesmo
nível, não tanto de diretor para dançarinos, mas de criador para intérpretes co-autores que
questionam juntos sobre o desenvolvimento do trabalho. Assim, ampliava-se a possibilidade
de valorização e participação mais efetiva do intérprete no processo criativo.
Outra influência que reforçou o desejo de trabalhar com intérpretes valorizando seus
aspectos pessoais foi o trabalho de criação com o coreógrafo estadunidense radicado em
Portugal, Howard Sonenklar.3 Sonenklar aborda a criação desnudando o intérprete,
confrontando-o consigo mesmo, levando em conta suas características particulares, físicas e
psíquicas, relacionando a expressão do movimento com a natureza psíquica de cada um,
expondo as limitações físicas motoras e criativas que deitam raízes em processos afetivos e
emocionais. A partir dessa confrontação ele parte para a criação. Com esse processo criativo
tive o primeiro contato com o método do Movimento Autêntico (MA) introduzido no Basirah
por Sonenklar.
3
Na ocasião (2000) foi convidado pelo Basirah para montar o espetáculo SEBASTIÃO em parceria
comigo e Márcia Duarte.
4
improvisação. O termo Movimento Autêntico foi introduzido por Janet Adler, discípula de
Whitehouse e fundadora do Instituto Mary Starks Whitehouse, na Califórnia, em 1968. Soraia
Jorge4, aluna de Janet Adler e divulgadora desse método no Brasil, nos sintetiza uma clara
descrição sobre o que vêm a ser o MA:
4
Soraia Jorge é formada pelo Authentic Movement Institute na Califórnia. Para mais informações sobre o
trabalho de Jorge acessar o site http//:www.movimentoautentico.com
5
JORGE, Soraia. A arte de ser movido. Disponível em <http//:www.movimentoautentico.com> Acesso
em 12/05/2005.
6
Como forma de simplificar a escrita, optei por abreviar a nomenclatura das técnicas e exercícios
utilizados no processo pelas seguintes siglas: MA – Movimento Autêntico; BMC – Body Mind Centering; MVA
– Mental Verbal e Ação; AL – Associação Livre; IA – Imaginação Ativa.
5
Esta pesquisa propõe realizar um processo criativo com foco no dançarino intérprete
criador, numa tentativa de conduzi-lo ao entendimento aprofundado de sua dança no momento
da criação de um movimento, na compreensão de um sentimento gerador de determinada
expressão no corpo e na identificação dos bloqueios psicológicos ou físicos que o empeçam
no desenvolvimento criativo, buscando dar-lhe mais confiança para adentrar nas próprias
7
Este termo e ou estado será apresentado mais detalhadamente no Capítulo 2 desta dissertação.
6
Esse direcionamento foi conduzido por três questões fundamentais. A primeira seria o
que a dança pode realmente dizer. A segunda, como fazer brotar o movimento preenchido de
sua história, de seu sentido de existência, sem abdicar de sua forma, das subjetividades, e de
sua elaboração estética para a dança. E a terceira questão suscitada indaga como estimular o
intérprete direcionando-o para a busca desse sentido da existência e trazê-lo para o
movimento, para seu corpo, sem dissociá-lo daquilo que ele é com o que ele expressa. A
dança é um universo criativo que pode e deve se alimentar da autonomia de seus intérpretes
mas, para tanto, o dançarino deve primeiramente conquistar essa autonomia, conscientizando-
se de si e dos caminhos que traça no processo criativo.
Cada integrante possui formação e experiência artística diferente. Dorka Hepp iniciou-
se na dança com nove anos de idade. Estudou no Conservatório de Bruxelas e na Academie
Royale dês Beaux-Arts de la ville de Bruxelles, na Bélgica. Graduou-se em dança (1995),
pelo Curso de Qualificação de Bailarinos D.E.A., no Porto, Portugal. Dorka tem a dança
como principal foco de seu trabalho profissional, não se aventurando em outras linhas de
atuação na arte até o momento. Assim também é com Lina Frazão, graduada em dança, pela
Modern Theater Dans, da Theaterschool de Amsterdã, Holanda (2003), sua experiência
artística está voltada especificamente para a dança contemporânea. Participou como dançarina
em alguns trabalhos de coreógrafos estrangeiros, além de integrar por três anos a companhia
de dança Beton (1991-94), de Brasília, e o TRAN CHAN (1995), de Salvador.
Lívia Frazão, ainda que tenha se graduado como bacharel em Interpretação Teatral
pela Universidade de Brasília (2002), atua basicamente como dançarina contemporânea. Sua
formação em dança inclui aulas informais de balé clássico e técnicas de dança
contemporânea, além de workshops de curta duração com coreógrafos estrangeiros que
passaram por Brasília. Também fez parte da Companhia de dança Beton (1991-97), e
participou como convidada do espetáculo Alethea da Companhia Anti Status Quo de Brasília,
em 2002.
para a investigação em dança. O contato de Márcia com a dança, iniciado em 1991, também
se deu por meio de cursos livres com coreógrafos de Brasília e alguns estrangeiros. O
desenvolvimento de sua experiência profissional de dança se realiza basicamente dentro da
Companhia Márcia Duarte8, de Brasília, e do Basirah.
8
Márcia Duarte desenvolveu dissertação de mestrado sobre o processo criativo do espetáculo OLHOS DE
TOURO, do qual Márcia Lusalva participou como intérprete e criadora. Mais informações sobre essa pesquisa
em PINHO, Márcia Duarte. Olhos de Touro: um caminho de criação. 2003. 111f. Dissertação de Mestrado em
Artes Cêncicas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2003.
9
espetáculos de balé clássico, peças teatrais, cinema e recitais, além de trabalhar como
coreógrafo, diretor e figurinista de teatro e dança. Com a heterogeneidade do perfil dos
participantes a pesquisa busca respeitar a experiência de cada um, fazendo da diversidade um
estímulo para a investigação.
Importante lembrar que não tive a intenção, nesta pesquisa, de me aprofundar nos
estudos de cada fonte teórica apresentada. Meu interesse maior é fazer conexões da prática
realizada com as idéias, conceitos e pensamentos apresentados por filósofos, historiadores,
acadêmicos, críticos, artistas e diretores de teatro e dança que estejam discutindo temas afins
com essa pesquisa. Muitas vezes tomei como referência a teoria do teatro pela dificuldade de
encontrar na bibliografia de dança pesquisada, discussão e reflexão sobre a encenação e temas
como presença, dilatação corpórea e desenvolvimento do intérprete em cena, dentre outros. A
carência de material bibliográfico sobre dança contemporânea em Brasília, assim como a
pouca teoria existente sobre ela, foram fatores limitantes para o aprofundamento das reflexões
com referências na dança. Mas, também me senti atraída em buscar fontes teóricas do teatro,
por encontrar afinidades de princípios propostos nesta pesquisa com as reflexões e análises
apresentadas nessas fontes, principalmente pelo pensamento de Jerzy Grotowski, Renato
Ferracini e Peter Brook. Estes autores anunciam em suas teorias uma preocupação eminente
com os processos do intérprete, preocupação que também faz parte dessa pesquisa. No campo
da performance me vali de Renato Cohen, RoseLee Goldberg e de meu orientador Fernando
Pinheiro Villar, dentre outros, pois detecto algumas características da performance utilizadas
tanto na montagem e apresentação do espetáculo, bem como na forma de utilização de alguns
princípios definidos na pesquisa. Embora tenha me alimentado de fontes diversas, a pesquisa
partiu fundamentalmente do pensamento e metodologias desenvolvidas por Mary Starks
Whitehouse e Bonnie Bainbridge Cohen, inspirando-me em seus estudos, respectivamente o
Movimento Autêntico (MA) e o Body Mind Centering (BMC). Além desses autores citados
acima, busquei dialogar com a filosofia de Maurice Merleau Ponty, Hans-Georg Gadamer e
Luigi Pareyson, da psicologia de Carl Gustav Jung e Sigmund Freud, e me aventurei no
estudo de alguns conteúdos da neurociência, por meio de António Damásio.
10
9
HODGE, Alison. Twentieth century actor training. Londres and Nova York: Routledge, 2000, p55.
Minha tradução, assim como todos os trechos de obras em línguas estrangeiras nesta dissertação não traduzidas
para o português.
11
Por fim, na Conclusão apresento uma reflexão sobre os resultados obtidos na pesquisa
fazendo uma ponte para diversos questionamentos que foram levantados a respeito do
processo criativo.
13
Merleau-Ponty.10
Este capítulo propõe uma reflexão sobre aspectos do atual momento da dança
contemporânea, e os novos parâmetros que se revelam. Como o corpo dessa nova dança vem
sendo pensado e investigado? Qual a relação da dança contemporânea e o corpo contaminado
pela contemporaneidade?
10
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura.
São Paulo: Martins Fontes, 1999, p253.
11
Para mais informações sobre história da dança moderna e pós-moderna ver BOUCIER, Paul. História
da dança no ocidente. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1ª edição brasileira, 1987 e
BANES, Sally. Terpsichore in sneakers: post-modern dance. Boston: Houghton Mifflin Company, 1980.
12
Segundo Boucier o gênero ópera-balé foi criado por André Campra, na França, em 1698, e consistiu em
valorizar a dança em detrimento a ópera. Antes disso os elementos tradicionais da ópera, as árias, recitativos,
coros, eram tratados com mais importância que o balé dentro do espetáculo, que só servia como divertimento nos
intervalos entre os atos. BOUCIER, Paul. Op.cit., p158.
14
pensamento mais moderno para a dança, com esforços para uma evolução em direção ao
“realismo de assuntos, da técnica e rumo à expressão da sensibilidade”. 13 Noverre adotou com
suas Lettres sur lê ballets et lês arts d’imitation (Cartas sobre o balé e as artes de imitação,
1760) uma doutrina de contestação, tanto no plano teórico quanto no das realizações,
reivindicando maior liberdade para a dança, propondo uma série de modificações das
estruturas clássicas tradicionais, dentre elas a formação do dançarino, que deveria ter uma
cultura geral vasta envolvendo poesia, história, pintura, música, anatomia e geometria, e
também, a formação dos professores e a forma como os coreógrafos criavam suas
composições coreográficas. Criticava a importância dada somente ao aspecto da habilidade
física e da técnica do bailarino, pois para ele, o bailarino deveria conhecer o próprio corpo no
sentido físico e espiritual.14 Após Noverre tivemos outros coreógrafos que tentaram levar
adiante suas idéias como Jean Dauberval e Salvatore Vigano. Outro simpatizante das idéias de
Noverre foi o coreógrafo Mikhail Fokine, que participou dos Balés Russos de Serge de
Diaghilev já no início do século XX, e é considerado o pai do balé moderno.15 Noverre impôs
suas idéias reformadoras causando polêmica em grande parte da Europa. Entretanto, seu
espírito contestador foi determinante para criação e fortalecimento do balé clássico como
gênero artístico completo e independente da ópera.
13
Idem, p150.
14
Idem, p172.
15
PORTINARI, Maribel. História da dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p113.
16
Mais detalhes sobre vanguardas artísticas ver GOLDBERG, RoseLee. Performance Art: from futurism
to the present. Londres: Thames and Hudson, 1988.
15
Já antes da Black Mountain College, ‘reagir’ talvez fosse a palavra que melhor
traduzisse o sentimento da dança moderna no século XX. Inclusive, o surgimento de novos
estilos, teorias e técnicas de dança se deram, principalmente, num contexto reativo de
coreógrafos e dançarinos aos conteúdos aprendidos de seus mestres. Cada pequena
17
VILLAR, Fernando Pinheiro. Performances. In: CARREIRA, André Luiz Antunes; VILLAR, Fernando
Pinheiro; GRAMMONT, Guiomar; RAVETTI, Graciela; ROJO, Sara (Org). Mediações Performáticas Latino
Americanas. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2003, p73.
16
18
BANES, Sally. Terpsichore in sneakers: post-modern dance. Boston: Houghton Mifflin Company
Boston, 1980, p5.
19
BOUCIER, Paul. Op.cit., p244.
17
A ESC O LA AM ER IC ANA
Isadora Duncan
A E SC O LA A LE M Ã
Teórico: Jaques-Dalcroze
Laban
W igm an
Jooss Nikolais
20
Idem, p308.
18
expressividade do movimento por meio do torso, “que todos os dançarinos modernos de todas
as tendências consideram a fonte e o motor do gesto”.21
21
BOUCIER, Paul. Op.cit, p245.
22
Idem, p292.
23
BANES, Sally. Op.cit.,, p1.
19
efeitos visuais, voltados principalmente para a plasticidade cênica criada com o colorido das
luzes sobre os figurinos em movimento. Normalmente trabalhava com bailarinos amadores
em suas criações.
Sem formação de bailarina, Fuller foi uma artista que conquistou sucesso na Europa e
Estados Unidos nos anos entre 1892 até 1927, principalmente pela descoberta da magia das
luzes utilizada no palco produzindo atmosferas fora do real.24 Embora, parte dos coreógrafos
dessa geração rejeitasse suas propostas, Fuller teve livre circulação e bom relacionamento
com as vanguardas artísticas. Inclusive foi grande influenciadora e inspiradora de artistas
contemporâneos como Appia, Graig, o poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti em seu balé
futurista, além das precursoras da dança moderna Duncan e St-Denis. Para Duncan, Fuller foi
a responsável pela criação das cores cambiantes e do uso de graciosas écharpes Liberty, além
das “primeiras inspirações bebidas na luz e nos efeitos policrômicos”.25 Com ela a dança
começa a explorar outras possibilidades de contextualização do movimento, introduzindo uma
nova estética visual, voltada principalmente para a plasticidade dos movimentos.26
Assim como Fuller, Isadora Duncan foi uma coreógrafa que tentou buscar na dança
algo completamente diferente do modelo clássico, se inspirando em motivos da natureza (ar,
fogo, água, árvores, etc), como referência para uma expressão mais natural do movimento.
Para Boucier, a contribuição de Duncan para a dança moderna foi “aparentemente efêmera”,27
pois não desenvolveu nenhuma técnica ou pensamento mais sólido sobre suas idéias. Segundo
ele, a maior herança deixada por Duncan foram suas atitudes em relação à liberdade de
expressão do ser humano. Entretanto, de acordo com Maribel Portinari, em seu livro História
da dança,28 o legado de Duncan foi da máxima importância, até mesmo no balé, através das
criações de Michel Fokine nos Balés Russos de Serge de Diaghilev:
24
BOUCIER, Paul. Op.cit, p253.
25
DUNCAN, Isadora. Minha vida. Trad. Gastão Crus. São Paulo: Círculo do Livro, sem ano, p85.
26
Para mais informações sobre Loïe Fuller ou textos dela e de outros artistas das Vanguardas Históricas
ver SÁNCHEZ, José A..La escena moderna: manifestos y textos sobre teatro de la época de vanguardias.
Madrid: Ediciones Akal, 1999b.
27
BOUCIER, Paul. Op.cit., p250.
28
PORTINARI, Maribel. História da dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
20
Ruth Saint-Denis, outra precursora da dança moderna, casa-se com o dançarino Ted
Shawn e montam em 1916 a Denishawnschool, onde se formaram Grahan e Humphrey. Na
Denishawnschool aplicam-se princípios dos ensinamentos de Delsarte. Esses princípios
referem-se à mobilização de todo o corpo para a expressão, dando ênfase principalmente ao
torso, utilização da contração e relaxamento da musculatura para obtenção da expressão e a
importância dada ao significado dos gestos e sentimentos.
Outro importante teórico do movimento, Rudolf von Laban foi criador do sistema
Labanotação e do Labanálise, em 1926. A Labanotação consiste num método de notação da
dança, partitura escrita com sinais gráficos que objetivavam registrar o movimento. A
Labanálise ou Análise Laban de Movimento, combina a labanotação com a análise do
movimento, registrando além da mecânica do movimento, seus aspectos qualitativos como
dinâmica e qualidades expressivas. O desenvolvimento de seu método estava ligado tanto à
prática corporal de atores e dançarinos, como também na observação do movimento dos
trabalhadores nas fábricas.31 Com Laban, alguns importantes coreógrafos se valeram de seus
ensinamentos, mesmo que fosse para caminhar no sentido oposto a eles. Ainda hoje, diversas
escolas de dança, principalmente na Europa, utilizam seu sistema como meio para a educação
29
Idem, p139.
30
CARLSON, Marvin. Performance: a critical introduction. Londres e Nova York: Routledge, 1996, p88.
31
DIAS, Kênia. Da rua à cena: trilhas de um processo criativo. 2005, 120 f. Dissertação (Mestrado em
Artes) Universidade de Brasília. Brasília, 2005, p127.
21
Aluna de Laban e Dalcroze, Mary Wigman foi uma das fundadoras da Ausdrucktanz,
dança da expressão, na Alemanha. De acordo com Kátia Canton, a dança alemã, na busca de
liberdade para o vocabulário de dança sem referências nos códigos do balé clássico, usa o
movimento para expressar emoções profundas desejando alcançar leis universais de
expressão. Canton nos aponta que
Seguindo essa realidade a Ausdrucktanz foi, nas palavras de Ciane Fernandes, “uma
rebelião contra o balé clássico, buscando uma expressão individual ligada a lutas e
necessidades humanas universais”. 33 A Ausdrucktanz foi classificada como uma dança
ideológica que buscava inspiração no estado primitivo da emoção, onde o movimento
expressivo se manifesta a partir de uma necessidade interna e do diálogo dessa necessidade
com o exterior. Segundo Soraia Maria Silva, a Ausdrucktanz desenvolveu uma técnica e um
método de ensino com princípios como devoção a uma experiência pessoal do ambiente,
libertação da dança da dependência da música e das narrativas, introdução da improvisação
como recurso no processo técnico de treinamento corporal e de composição coreográfica,
desenvolvimento dos aspectos expressivos do movimento chamado eucinética, desenvolvida
por Kurt Joos, desenvolvimento da corêutica, investigada por Laban, que consiste em
aprimorar a consciência do espaço ao bailarino e ao coreógrafo, além de outros princípios.34
Como veremos no Capítulo 2 Mary Starks Whitehouse, que foi aluna de Wigman, utiliza
alguns desses princípios para seu estudo do Movimento Autêntico.
32
CANTON, Kátia. E o príncipe dançou...: O conto de fadas, da tradição oral à dança contemporânea.
Trad. Cláudia Sant’Ana Martins. São Paulo: Ed. Ática, 1994, p155.
33
FERNANDES, Ciane. Pina Bausch e o Wuppertal Dança-Teatro: repetição e transformação. São
Paulo: Hucitec, 2000, p14.
34
Mais informações sobre Ausdrucktanz ver SILVA, Soraia Maria. O expressionismo e a dança. In:
GUINSBURG, Jacó. O expressionismo. São Paulo: Perspectiva, 2002, p339.
22
Wigman viveu em plena Primeira Guerra Mundial, o que influenciou fortemente sua
dança como nos coloca Boucier:
Wigman não compartilhava com Laban suas teorias cinéticas do movimento, as quais
achava aprisionadoras para o dançarino, mas sim o “sentido profundo da dança: a revelação
de tudo que jaz escondido no homem”. 36 Também não possuía muitas afinidades com a
pedagogia dalcrozeana. Profundamente envolvida com as questões de sua época como a
ascensão do nazismo, miséria, desespero e o desprezo pelo ser humano, Wigman criou um
tipo de dança que buscava personificar a própria emoção, explorando estados emocionais
primitivos, expressos em movimentos abstratos. Utilizou máscaras nos intérpretes,
acreditando que assim, eles se transformariam em ‘tipos e emoções universais, que
transcendiam os limites do mundo material’.37 Propunha retratar o destino trágico do ser
humano e da humanidade, sem submeter-se à leveza, mas sim ao poder da expressão. Boucier
nos fala que, Wigman, na busca pelo poder da expressão do movimento, adota uma forma de
ensinar que incentiva seus dançarinos a se conhecerem profundamente, pois,
35
BOUCIER, Paul, Op.cit.,p296.
36
Idem, p297.
37
CANTON, Kátia. Op. cit., p155.
38
BOUCIER, Paul. Op.cit., p299.
23
de gerações posteriores como Carolyn Carlson, Kurt Joos, Susan Buirge e, indiretamente,
Pina Bausch.
Jooss discordava de seus mestres em muitos pontos. Não acreditava, por exemplo, que
qualquer um pudesse se tornar um dançarino, idéia defendida por Laban. Também discorda de
Wigman que pregava o não adestramento corporal em sistemas preestabelecidos. Criou,
então, um novo sistema de dança chamado Eukinetics, que era um método de interpretação
que valorizava a técnica corporal do dançarino, baseando-se em posturas e passos de balé.
Canton nos fala que
Com formação em música, teatro e dança, Jooss trouxe para suas criações uma relação
íntima do teatro com a dança. A Mesa Verde (1932) é sua obra mais conhecida. Segundo
Portinari, as pesquisas sobre o movimento puro empreendidas por Jooss, fizeram sua arte
ganhar contorno humano e refletir os dramas e aspirações de um período, inovando o
panorama da dança. 41 Foi um importante influenciador de sua ex-aluna Pina Bausch, de quem
falaremos mais adiante.
39
Esse conceito foi trazido por Gustav F. Hartblaud em 1923 por ocasião da preparação de uma exposição
das obras dos artistas visuais Otto Dix e George Grosz, dentre outros que se interessavam pela arte figurativa e a
retratação da realidade social. Embora o movimento tenha envolvido todos os campos artísticos, o termo Nova
Objetividade está ligado, principalmente, às artes visuais. Kurt Jooss, o dramaturgo Ernest Toller e a intérprete
solo Valeska Gert participaram do movimento. CANTON, Kátia. E o príncipe dançou...: O conto de fadas, da
tradição oral à dança contemporânea. Trad. Cláudia Sant’Ana Martins. São Paulo: Ed. Ática, 1994, p155.
40
Idem, p156-7.
41
PORTINARI, Maribel. Op.cit., p145-6.
24
Talvez seja importante lembrar que, mesmo produzindo no âmbito do balé clássico,
outro impulsionador de inovações no mundo da dança foi o russo Sergei de Diaghilev.
Empresário, produtor artístico e agitador cultural bastante envolvido com os movimentos das
vanguardas artísticas do começo do século XX, cria os Balés Russos em 1909. Desejando que
“a dança fosse o ponto de encontro de todas as artes”,42 Diaghilev reúne famosos coreógrafos
e dançarinos como Mikhail Fokine, Anna Pavlova, Leonide Massine, Serge Lifar, Tâmara
Karsavina, Vaslav Nijinski, dentre outros, e se associa a artistas dos movimentos futurista e
cubista como Jean Cocteau, Giacomo Balla, Erik Satie, Pablo Picasso, Alexandre Benoi
dentre outros,43 absorvendo para a dança a sensibilidade artística da época. Pregava grandes
modificações nas tradições do balé, referindo-se, principalmente, às concepções de cenários e
figurinos, propondo uma nova estética para a dança. Diaghilev foi um aglutinador de artistas
que pensavam à frente de seu tempo. Reuniu-os na maior parte de suas montagens, abrindo
42
BOUCIER, Paul. Op.cit., p226.
43
Mais informações sobre a participação de Diaghilev nos movimentos das vanguardas artísticas ver
GOLDBERG, RoseLee. Performance Art: from futurism to the present. Londres: Thames and Hudson, 1988,
p21, e BOUCIER, Paul. Op.cit, p228.
25
campo para a criação de balés com tendências modernas, principalmente com as coreografias
de Fokine e Nijinski, que começam então a ser influenciados por Isadora Duncan. 44
No Brasil, a dança moderna é trazida na década de 1930 pela gaúcha Frieda Ullman
(Chinita Ullman) e pela moscovita Nina Verchinina. Ullman foi aluna de Wigman, e funda a
primeira escola de dança de São Paulo, em 1932. Verchinina teve grandes influências de
Duncan e também abre uma escola no Rio de Janeiro em 1954. 45 Esse novo estilo de dança
no Brasil teve dificuldade em se solidificar em função de uma elite mais interessada em balés
importados, como acontece até hoje. Na mesma época Eros Volúsia, que traz a expressão
regional, e Felicitas Barreto, que incrementa sua dança com lendas brasileiras, “cercada de
índios e de negros”,46 também foram personalidades importantes, responsáveis pelo fomento
da dança moderna no Brasil. Ulman, Verchinina, Volúsia e Barreto deram impulso para o
surgimento de grupos e companhias independentes que se proliferaram a partir da década de
1940, resultando numa acelerada e diversa produção de estilos de dança.
Essa primeira fase da dança moderna aqui rapidamente esboçada, veio trazer, talvez, o
aspecto emocional ao passo de dança, numa tentativa de expor a insatisfação do homem
perante as situações da vida, seus conflitos e anseios. Ocorre um deslocamento do foco de
trabalho no corpo, que passa das extremidades (pernas e braços mais trabalhados no balé) para
o tronco e pélvis, além da quebra da verticalidade corporal, que dá mais mobilidade para
coluna, imprimindo na dança outros sentidos ao movimento. A quebra da verticalidade
também vem facilitar o uso dos movimentos no chão, introduzidos principalmente por Doris
Humphrey com sua técnica de queda e recuperação. Além disso, as expressões faciais são
mais exploradas, assumindo o rosto como parte da expressividade corporal, tornando a
interpretação mais teatral ao invés da neutralidade e frieza dos balés convencionais. A ligação
com a atmosfera etérea, característica dos balés é substituída pelo sentimento em relação à
terra, às raízes, que retratam mais objetivamente os conflitos do homem com sua realidade
viva. O conteúdo temático das coreografias vai se transformando, passando das histórias
românticas ao drama adulto da atualidade. Essa fase revelou uma face introspectiva e
psicológica da dança, com ênfase em argumentos pessoais, principalmente dos coreógrafos. A
44
Mais informações sobre Balés Russos ver PORTINARI, Maribel. Op.cit., pp107-30.
45
VICENZIA, Ida. Dança no Brasil. Rio de Janeiro: Funarte Fundação Nacional de Arte, 1997, p17.
46
Idem, p19.
26
No período entre 1940 e 1950 a dança moderna perde sua força criativa em função do
conservadorismo cultural e da Segunda Guerra Mundial, dentre outros fatores, que
contribuíram para o enfraquecimento, e posteriormente ressurgimento, do espírito
revolucionário artístico e político. Dentro deste panorama surge o americano Merce
Cunningham, aluno e solista da companhia de Martha Graham, que vem propor uma ruptura
definitiva com a ‘dança emocional’ característica da época, e com a influência preponderante
do coreógrafo nas obras.
47
Dance by chance, termo utilizado por Margery J. Turner em TURNER, Margery J. New dance:
approaches to nonliteral choreography. University of Pittsburgh Press, 1971, p10. Refere-se ao método do acaso
criado por Cunningham para determinação das seqüências e estruturas coreográficas a serem executadas. As
estruturas eram determinadas jogando-se moedas (como no jogo cara-coroa), ou retirando cartas aleatoriamente.
Cunningham acreditava que tomar ao acaso as possibilidades era uma forma de subverter hábitos e permitir
novas combinações. BANES, Sally. Op. cit., p7.
48
BOUCIER, Paul. Op. cit., p284.
49
BANES, Sally. Op. cit., p6.
27
50
GIL, José. Movimento Total: o corpo e a dança. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água
Editores, 2001, p32.
51
Idem, p31.
52
SILVA, Soraia Maria. Pós-modernismo na dança. In: GUINSBURG, Jacó, BARBOSA, Ana Mae (org).
O Pós-modernismo. São Paulo: Perspectiva, 2005, p437.
28
contexto cênico muda, já que o corpo não necessita se submeter a um contexto externo a ele, a
um conteúdo determinado. O corpo é o próprio contexto para o desenrolar cênico.
Essas novas possibilidades vão se infiltrando cada vez mais no universo da dança na
década seguinte. O advento da era digital na década de 1950 também influenciou na mudança
de comportamento, onde verificamos a passagem da condução normal dos fenômenos para a
quebra da regularidade dos fatos da vida, imprimindo a visão dos acontecimentos ao acaso,
fragmentado, com possibilidades de cortes e recombinações constantes, o que se transfere
para a forma de lidar com o movimento na dança.53 A visão de dança trazida por Cunninghan
somada às influências dos movimentos das Vanguardas Históricas que nutriram a nova
geração de coreógrafos marcam a passagem da dança moderna americana para a pós-
moderna, na década de 1960. As artes “continua(ra)m indo contra restrições das
possibilidades expressivas e rechaçando definições que se pretendiam definitivas”54 dentro da
música, das artes visuais, da poesia, do teatro ou dos novos gêneros como os Happenings,
influenciando tendências e estilos da dança pós-moderna.
De acordo com Villar, Sally Banes nos indica que o termo ‘dança pós-moderna’
começou a ser usado pela coreógrafa e dançarina Yvone Rainer na década de 1960, para
descrever seu trabalho.55 Esse termo diferenciou a primeira geração de coreógrafos da dança
moderna americana no início do século XX, da segunda geração, formada por Douglas Dunn,
David Gordon, Steve Paxton, Rainer, Trisha Brown e outros que vieram a partir da década de
1960. A primeira geração tinha como foco idéias narrativas, sentimentalismo artístico e
expressionismo, enquanto a segunda geração caracterizou-se pela preocupação com a
abstração, descontextualização, antiilusionismos e busca formalista.
Banes aponta que, juntamente com Cunningham, a Judson Church, igreja nova-
iorquina fundada em 1890, foi o principal berço de fomento das novas idéias responsáveis
pela passagem da dança moderna para a chamada ‘pós-moderna’ que surgia nos Estados
Unidos. Com a criação do grupo Judson Dance Theater na década 1960, ocorre uma grande
revolução na dança com eco em todo o ocidente. No Judson Dance Theater se reuniam artistas
53
Idem, p438.
54
VILLAR, Fernando Pinheiro. Performances. Op.cit., p73.
55
BANES, Sally apud VILLAR DE QUEIROZ, Fernando Antonio Pinheiro. Artistic Interdisciplinarity
and La Fura Dels Baús.1979-1989. 2001. 331f. Tese de Doutorado em Teatro e Performance, Queen Mary
College, Universidade de Londres, 2001, p95.
29
Artistas de outras áreas, fora do universo da dança, como Cage, Allan Kaprow, Robert
Whitman, Claes Oldenburg foram dos principais contribuidores para o enriquecimento e
desenvolvimento da dança pós-moderna americana. Trouxeram influências das idéias teatrais
de Antonin Artaud, Marcel Duchamp, filosofia Zen, além de uma ideologia de arte com
princípios da performance art,56 que sugeria uma relação mais imbricada entre arte e vida,
valorizando mais o processo de criação em detrimento ao produto final. 57
A performance art, nas palavras de RoseLee Goldberg era “como uma arma contra as
convenções da arte instituída” possibilitando uma forma de quebrar com as categorias
vigentes e indicar novos caminhos artísticos.58 Para Goldberg,
56
Mais informações sobre performance art ver GOLDBERG, RoseLee. Op. cit., SCHIMMEL, Paul. Out
of action: between performance and the object, 1949-1979. Londres: Thames and Hudson, 1998, e CARLSON,
Marvin. Performance: a critical introduction. Londres e Nova York: Routledge, 1996
57
BANES, Sally. Op.cit., p10.
58
GOLDBERG, RoseLee. Op.cit., p7.
59
Idem, p9.
30
O movimento judsonista foi a base que sustentou, e, em alguns cantos, ainda sustenta,
as práticas e o pensamento da dança contemporânea no ocidente, como nos coloca Jill
Johnson (1965), citado por Silva;
60
CARLSON, Marvin. Performance:a critical introduction. Londres e Nova York: Routledge, 1996, p80.
61
VILLAR, Fernando Pinheiro. Op.cit., p74.
62
CANTON, Kátia. Op.cit., p104.
63
Idem, p103.
64
Idem, p107.
31
dança moderna numa nova era de atividade ilegal devido a sua enorme
variedade e liberdade de estruturas e estilos; sua inserção política; sua
mobilidade, e por sua exposição de atitudes contemporâneas.65
65
JOHNSON, J. apud SILVA, Soraia Maria. Op.cit, p441.
66
BANES, Sally. Op.cit., p17.
67
SILVA, Soraia Maria. Op.cit., p438.
32
68
BANES, Sally. Op.cit., p16.
69
VILLAR, Fernando Pinheiro. Op.cit., p76.
33
Márika Gidali, e também os coreógrafos J. C. Violla, Ivaldo Bertazzo, Angel Vianna, Klaus
Vianna dentre muitos outros.70
Embora houvesse uma rejeição das narrativas expressionistas por parte da primeira
geração dos coreógrafos pós-modernos, ainda assim, existiram coreógrafos que continuaram
trabalhando com narrativa e emoções. Na Alemanha, o traço expressionista da dança moderna
prevaleceu, se fortalecendo com novo fôlego pelas mãos de Pina Bausch.
Bausch incorpora ao seu estilo tanto a gestualidade cotidiana, assumida como função
estética, quanto o movimento proveniente das técnicas de dança, principalmente o balé
clássico. Traz a expressão pessoal e psicológica para a dança por meio das experiências de
vida dos dançarinos, proposta oriunda de Wigman, além da abordagem de questões sociais e
políticas, que são características do estilo de Jooss. A dança teatro de Bausch é um exemplo
claro de desterritorialização e de questionamento das fronteiras artísticas preconizados pelos
movimentos das vanguardas artísticas dos século XX e que ainda hoje ecoam fortemente na
arte do século XXI. A interdisciplinaridade artística é considerada um aspecto fundamental
70
Mais informações sobre esses coreógrafos ver NAVAS, Cássia; DIAS, Linneu. Dança Moderna. São
Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. NAVAS, Cássia. Imagens da dança em São Paulo. São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado: Centro Cultural São Paulo, 1987. VIANNA, Klaus. A dança. São Paulo: Summus,
3ªed. 2005. DANÇAR 10 ANOS. Editores de texto Christine Greiner e Marcos Bragato. São Paulo: Editora
dançar 10 anos.[1992?]. KATZ, Helena. O Brasil descobre a dança descobre o Brasil. São Paulo: Dórea Books
and Art,1994. FREIRE, Ana Vitória. Angel Vianna: uma biografia da dança contemporânea. Rio de
Janeiro:Dublin, 2005. VICENZIA, Ida. A dança no Brasil. Rio de Janeiro: Funarte; São Paulo: Atração
Produções Limitadas, 1997.
71
FERNANDES, Op.cit., p18.
34
Grande parte dos coreógrafos ocidentais, de alguma forma, sofreram influências das
idéias pós-modernistas do movimento judsonista e da escola alemã, e muitas dessas idéias
foram transformando e se fundindo no cenário.da dança contemporânea nas décadas de 1980
e 1990 até nossos dias. A diversidade parece denunciar uma tendência cada vez mais
acentuada na dança, assim como um desejo em aprimorar a fusão das fronteiras artísticas e
disciplinares, borrando conceitos e definições que possam ameaçar a liberdade das criações.
Como resultado dessa diversidade, a partir da década de 1980, podemos ver a utilização de
dança clássica com novas releituras e possibilidades de experimentação dentro da linguagem
contemporânea, a exemplo de William Forsythe e o Ballet de Frankfurt ou Édouard Lock e a
companhia canadense La La La Human Steps, e também a fusão acentuada da dança com o
teatro e o cinema em trabalhos de coreógrafos como Lloyd Newson e o DV8 na Inglaterra,
Wim Vanderkeybus e sua companhia Última Vez, além de Meg Stuart e Allan Platel na
Bélgica, Vera Mantero e João Fiadeiro em Portugal, Maguy Marin, Jerôme Bell, Xavier Le
Roy na França, só para citar alguns. Podemos presenciar também criações coreográficas se
72
VILLAR, Fernando Pinheiro. Interdisciplinaridades artísticas. In: SANTANA, Arão Paranaguá de;
SOUZA, Luiz Roberto; RIBEIRO, Tânia Cristina Costa (Coord.). Visões da ilha: apontamentos sobre teatro e
educação. São Luís, 2003, p118.
35
73
Para mais informações sobre a dança em Brasília, veja DE CUNTO, Yara e MARTINELLI, Susi, A
História que se Dança. Brasília: sem editora, 2005.
36
Louppe nos aponta que, na perspectiva do corpo híbrido não existe uma filosofia do
corpo capaz de sustentar as referências e a própria história na construção do sujeito que dança.
E que muitas vezes, a multiplicidade de informações raramente oferece as ferramentas
necessárias à leitura da diversidade corporal alcançada pelo dançarino, já que, a filosofia do
corpo e a concepção do mover e do pensar o movimento está ligada ao tipo de formação
corporal do intérprete, como nos exemplifica Helena Katz:
Quem treina ginástica olímpica desde pequeno carrega esse traço inscrito
nos seus gestos. O mesmo para quem faz balé ou dança do ventre. A
informação técnica que negociar a do primeiro treinamento (desde que ele
tenha sido extenso e permanente), a princípio, não se livrará de seu traço.
74
Laurence Louppe é crítica de arte, professora de história da dança e autora de livro La Poétique de la
Danse Contemporaine, pela Editora Contredanse, Paris, 1997.
75
LOUPPE, Laurence. Corpos híbridos. In PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia (Org). Lições de Dança 2.
Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, 2000, p32.
37
76
KATZ, Helena. Um, dois, três. A dança é o pensamento do corpo. Belo Horizonte: Helena Katz,2005,
p166. grifo meu.
77
LOUPPE, Laurence. Op.cit., p31.
78
LIMA, Dani. Corpos humanos não identificados:hibridismo cultural. In: PEREIRA, Roberto; SOTER,
Sílvia (Org). Lições de dança 4. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, 2003, p101.
79
LOUPPE, Laurence. Op.cit, p36.
80
LIMA, Dani. Op.cit., p103.
81
LOUPPE, Laurence. Op.cit, p31.
38
Além dos pontos que citamos acima, que impulsionaram o surgimento do corpo
híbrido, podemos, também, associá-lo ao desenvolvimento das leis do mercado. No Brasil,
por exemplo, onde o apoio à manutenção de companhias é restrito a poucos, ser um dançarino
autônomo, sem vínculos, pode significar para ele maiores chances de trabalho com
coreógrafos diferentes, além de melhores oportunidades financeiras e de crescimento
profissional. Logo, esse dançarino também busca, para sua formação, informação
diversificada, acreditando que assim, ele conseguirá adaptar-se melhor ao mercado.
Mas não seria o corpo híbrido um dos fenômenos responsáveis pela cabotinagem
(falsidade) performática? Lembramos que o conceito de cabotinagem está ligado à falsidade
performática de um intérprete na sua atuação, uma falsidade que muitas vezes se dá
inconscientemente. O intérprete pode estar acreditando profundamente na sua verdade
performática, entretanto o que o público presencia é uma atuação vazia, sem sentido que
transborde sua presença física. O fato do intérprete se valer de tantas informações não o
levaria a uma confusão ou superficialidade naquilo que quer passar com sua dança?
82
Mais informações sobre essa mudança ver GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Trad. Plínio
Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
83
LIMA, Dani. Op.cit., p81.
39
filosofia de corpo, como as práticas propostas pelos fundadores da dança moderna. A segunda
corrente
84
LOUPPE, Laurence. Op.cit., p38.
85
LIMA, Dani. Op.cit., p104.
86
Idem, p105.
87
Idem, p106.
88
Idem, p108.
40
É um corpo que não tem mais necessidade de fazer esforços físicos, mas
apenas de se colocar, de se tornar sensível, assim como um predador
emboscado na espera de sua presa: a infinita riqueza de suas percepções, de
suas relações com o mundo (seu entorno, os objetos, sua turma, os
espectadores) e de suas conseqüências, as produções de seu pensamento.[...]
o corpo do ator não é mais central [...]O Roy Xavier, sobretudo porque está
sozinho, graças a essa cena, subverteu a tradição do teatro cujo elemento
principal é o ator, convidando para acompanhá-lo em cena uma cadeira, um
gravador, uma mesa, o chão do palco, as paredes, o oxigênio, o rodapé e os
espectadores. 89
89
BEL, Jerôme. Que morram os artistas. In PEREIRA, Roberto; SOTER, Sílvia (Org). Lições de dança 4.
Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, 2003, p27. grifo do autor.
41
Nessa perspectiva foi preciso entender o conceito da dança que estávamos nos
propondo fazer. A dança que sinalizo está mais relacionada à idéia da presença de um corpo
em cena, que realiza ações físicas, sem necessariamente se prender ao passo de dança, e que
90
KATZ, Helena. O corpo como mídia de seu tempo: A pergunta que o corpo faz. Disponível em
<www.itaucultural.org.br.> Acesso em: 15/05/2005. grifo meu.
91
SANT’ANA, Denise Bernuzzi. Corpos de Passagem: ensaios sobre a subjetividade contemporânea.
São Paulo: Estação Liberdade, 2001, p74.
92
GREINER,Christine. O Corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume,2005, p43.
42
Neste capítulo apresento uma síntese do que vem a ser o Movimento Autêntico (MA),
o Body Mind Centering (BMC) e os exercícios utilizados no desenvolvimento da pesquisa.
Como foi dito anteriormente, a presente pesquisa inspirou-se na utilização da técnica do
Authentic Movement (Movimento Autêntico) desenvolvida pela norte-americana Mary Starks
Whitehouse, e no estudo do Body Mind Centering (Centralização Corpo Mente) realizado por
Bonnie Bainbridge Cohen.94 Nos históricos dessas técnicas, consta que foram inicialmente
desenvolvidas visando fins terapêuticos, mas logo começaram a ter aplicabilidade em outras
áreas também, dentre elas a dança.
93
PALLARO, Patrizia. Authentic Movement, Essays by Mary Starks Whitehouse, Janet Adler and Joan
Chodorow. London: JKP, 2001
94
No Brasil não se costuma traduzir para o português o termo Body Mind Centering, sendo a sigla BMC
mais amplamente utilizada e conhecida.
95
PALLARO, Patrizia. Op.cit., p17.
44
Como aluna de Mary Wigman, Whitehouse herda o interesse pela busca do sentido e
papel do movimento na dança. Wigman já trazia na formação que oferecia ao dançarino, o
ideal de “torná-lo consciente dos impulsos obscuros que estão dentro dele”.96 Defendia que o
dançarino deveria “se pôr à escuta de si mesmo”, 97 fugindo de sistemas preestabelecidos e do
adestramento corporal. Incluía métodos de improvisação em sua escola, e tinha como
característica respeitar e estimular o material individual dos dançarinos, o que afetava
sobremaneira no resultado de seus espetáculos, revelando uma sensibilidade corporal singular
de seus intérpretes.98 Essa visão de Wigman em relação ao dançarino e a abordagem da
consciência do movimento, via compreensão dos impulsos internos, tiveram grande influência
para o desenvolvimento da técnica do MA de Mary Starks Whitehouse.
A Imaginação Ativa visa fazer emergir o inconsciente para então buscar uma
comunicação com ele. “É um processo do qual, enquanto a consciência observa, participa sem
direcionar, coopera, mas não escolhe, o inconsciente tem a permissão de falar como e quando
quiser”.99 O processo é realizado em duas etapas, sendo que na primeira provoca-se o
inconsciente, por meio de um estado emocional que deve ser estimulado a se manifestar como
uma imagem, um fragmento de um sonho ou uma fantasia, ou mesmo a partir de um
sentimento. Em seguida, tenta-se uma comunicação com o inconsciente explorando-o e
visando que a imaginação flua sem controle da razão nem juízo crítico. Essa comunicação
com o inconsciente pode se dar de várias formas: pela dramatização, por um som, pelo
96
BOURCIER, Paul. História da dança no ocidente. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes,
1987, p299.
97
Idem, p299.
98
PALLARO, Patrizia. Op.cit., p74.
99
Idem, p83.
45
movimento, pela escrita, desenho etc. A pessoa deve observar atentamente como esse
fragmento de fantasia se desenvolve, dando vazão à imaginação.100
100
Para mais informações sobre Imaginação Ativa ver PALLARO, Patrizia, ibidem, capítulo 21, ou ainda,
HUMBERT, Elie G. Jung. Trad.de Marianne Ligeti. São Paulo: Summus, 2ªed,1985, pp34-6.
101
JANET ADLER in: PALLARO, Patrizia. Op.cit., 2001, pp 142-3.
102
PALLARO, Patrizia. Op.cit, p53.
46
fechados existe a possibilidade de abri-los quando se sentir ameaçada por algo externo, e
talvez isso a impeça de se concentrar mais profundamente no exercício. Outra variação
utilizada foi o tempo de realização do exercício, que gradativamente foi aumentando de vinte
minutos para uma hora. Além desses, realizamos outros exercícios com olhos vendados como
executar seqüências coreográficas elaboradas sem utilização de música, e depois utilizando
música. Na primeira opção o intérprete busca experimentar a relação do movimento com o
tempo interno e o espaço, e na segunda, ele tenta um diálogo do tempo interno do movimento
com o estímulo externo, a música.103
103
Outros exercícios com uso da venda realizados nesta pesquisa estão descritos no Anexo 1.
104
PALLARO, Patrizia, op.cit, p52.
47
expressar como quiser. A pessoa não deve forçar a se movimentar, ela se movimenta porque
algum impulso interno ocorreu, estimulando-a para ação.
105
Idem, p43.
106
Idem, p34.
107
A palavra sinestesia relaciona-se com a psicologia e refere-se à ‘relação subjetiva que se estabelece
espontaneamente entre uma percepção e outra que pertença ao domínio de um sentido diferente (exemplo: um
perfume que evoca uma cor, um som que evoca uma imagem)’. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.
Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p602.
48
externas ao próprio corpo. A presença corporal é vivenciada pela consciência profunda de ser
e estar. Por isso, o Movimento Autêntico também é utilizado como prática meditativa e
espiritual, pois pode gerar um estado de presença total do ser.
Tomando como referência este pensamento, nesta pesquisa não há como tratar corpo e
mente como sistemas separados. Aqui, definitivamente, eles são vistos como sistemas
entrelaçados em que tanto o corpo se move como a mente se move, como também, segundo
coloca Antônio Damásio, “os processos mentais se alicerçam nos mapeamentos do corpo que
o cérebro constrói”.109 Queremos abandonar a concepção dualista do corpo instrumento, que
obedece, e a mente retentora, que conduz, pois, na realidade, as ações do corpo estão imersas
num ‘sentido de jogo’, e o BMC parece dar acesso à leitura e entendimento desse sentido de
jogo das ações, do sistema inteiro e suas relações.
108
COHEN, Bonnie Bainbridge. Sensing, feeling and action – the experiential anatomy of body-mind
centering. Northampton MA, 1993, p1.
109
DAMÁSIO, Antônio. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. Adaptação para
o português do Brasil Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p21.
110
Idem, p21.
50
todo. Parece ser questão apenas de foco de atenção, em como percebemos e operamos cada
aspecto em nós.
111
‘Incorporar’ foi a tradução para o português mais aproximada do termo embody utilizado por Cohen.
112
A palavra cinestesia relaciona-se com a fisiologia e refere-se ao ‘sentido pelo qual se percebe os
movimentos musculares, o peso e a posição dos membros’. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.
Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p151.
113
COHEN, Bonnie Bainbridge. Op.cit, p63.
114
Idem, pp2-3.
51
115
Foto de Dalton Camargos tirada em ensaio privado.
116
COHEN, Bonnie Bainbridge. Op.cit, p1.
52
117
Idem, p5.
118
O depoimento integral de todos os participantes desta pesquisa encontra-se no Anexo 2.
119
O termo “expressão sensível” que utilizo nessa pesquisa associa-se ao conceito de sensibilidade definida
por Fayga Ostrower. Segundo Ostrower, a sensibilidade está baseada “numa disponibilidade elementar, num
permanente estado de excitabilidade sensorial”, que abre uma porta de entrada para as sensações. “Representa
uma abertura constante ao mundo e nos liga de modo imediato ao acontecer em torno de nós”. OSTROWER,
Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 18ªed., 2004, p12.
53
Sendo assim, parece que temos que estar falando de atualização constante da memória
corporal pelo exercício da percepção constante das sensações do corpo, pois,
Por meio das técnicas do MA e BMC, que comungam pensamentos similares, buscou-
se trabalhar a dimensão física e psicológica da pessoa, numa tentativa de ampliar a
120
BARTHES, Rolland. A câmara clara: Nota sobre a fotografia.Trad. Júlio Castanon Guimarães. Rio de
Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1984, p89.
121
DAMÁSIO, António. O erro de Descartes – emoção, razão e o cérebro humano. Trad. portuguesa Dora
Vicente e Georgina Segurado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p129.
122
Idem, p16.
54
O MVA busca estimular a atenção para ‘o que’ a pessoa está realizando fisicamente
com o corpo, e ‘como’ ela realiza, fazendo-a perceber mais atentamente sobre os
condicionamentos do corpo e do movimento, bem como sobre a qualidade da imagem
mentalizada e da verbalização do movimento na interferência da qualidade de execução desse.
55
O uso da AL também está vinculado aos métodos de colagem utilizados, por exemplo,
nas artes plásticas na escrita surrealista, no cinema, em performances e também no teatro. A
colagem, segundo Renato Cohen, caracteriza uma linguagem que em seu processo de criação
faz uso da “justaposição e colagem de imagens não originalmente próximas, obtidas através
da seleção e picagem de imagens encontradas, ao acaso, em diversas fontes”,124 método
semelhante aos processos de AL de Freud. Cohen nos coloca ainda que pelo processo da livre
associação a “colagem na performance resgata, dessa forma, no ato de criação,.[...] sua
intenção mais primitiva, mais fluida, advinda dos conflitos inconscientes e não da instância
consciente crivada de barreiras do superego”.125
123
FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira com
comentários e notas de James Strachey. Trad. Jayme Salomão.Rio de Janeiro: Imago, 1987, p123.
124
COHEN, Renato. Performance como Linguagem. 2ªed. São Paulo: Perspectiva, 2004, p62.
125
Idem, p62.
56
126
Idem, p64.
127
FREUD, Sigmund. Op.cit, pp123-4.
57
desenvolvimento das ações. Segundo Helena Katz a improvisação ambiciona “a quebra das
cadeias habituais” do movimento, no sentido de “desarticular aquilo que estava estabelecido
como formas de conexão habitual no corpo”.128 Dessa forma a improvisação abre o campo
para a experiência das possibilidades, incluindo a possibilidade da desconstrução e
reorganização.
128
KATZ, Helena, O coreógrafo como DJ. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia (org). Lições de dança 1.
Rio de Janeiro: UniverCidade editora, 1998, p21.
58
Podemos observar que essas técnicas e exercícios apresentados aqui contêm princípios
fundamentais que as definem, e que se tornaram os pilares desta pesquisa. A seguir
abordaremos mais detalhadamente sobre cada princípio e sua importância para esta pesquisa.
No Capitulo 3 falaremos de como o processo criativo foi conduzido e orientado por meio
desses princípios.
129
Foto retirada da imagem do registro de vídeo de um dos ensaios privados.
59
Não Julgamento
MOVIMENTO AUTÊNTICO
Desapego
BODY-MIND CENTERING
Espera/Escuta aberta
MENTAL VERBAL AÇÃO
Observação atenta
ASSOCIAÇÃO LIVRE
Compartilhar a experiência
mas o homem que está refletindo exerce também sua faculdade crítica; e isso
o leva a rejeitar algumas idéias, que lhe ocorre após percebê-las, a
interromper outras abruptamente, sem seguir os fluxos de pensamento que
elas lhe desvendariam, e a se comportar de tal forma em relação a mais
outras que elas nunca chegam a se tornar conscientes e, por conseguinte, são
supridas antes de serem percebidas.130
O não julgamento proposto aqui não se refere a uma indiferença em relação ao que
está sendo visto ou realizado, mas se baseia no respeito a um outro espaço, ao espaço para a
experiência do momento presente, do outro e de si. É demandada a flexibilidade em permitir e
aceitar o presente, aquilo que está sendo, e também escutar a si, escutar o outro, percebendo e
introjetando o momento. O sujeito deve recuar do juízo crítico para aproximar-se da
130
FREUD,Sigmund. Op.cit, pp123-4.
60
experiência bruta, pois “é a experiência [...] ainda muda que se trata de levar à expressão pura
de seu próprio sentido”.131
Para destituir-se do juízo crítico era necessário assumir uma atitude de desapego em
relação aos pontos de conflito do corpo, do movimento e do comportamento, numa tentativa
de desligar-se de regras e condicionamentos estabelecidos pela própria pessoa. Para aceitar e
permitir viver a experiência presente era preciso se liberar do que estava cristalizado enquanto
movimento corporal, pensamentos e atitudes.
131
HUSSERL apud: MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto
Ribeiro de Moura. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes,1999, p12.
61
pesquisa, sobre a sua experiência da observação quando diz que “é possível aprender muito
discriminando também o processo dos demais intérpretes envolvidos. Muitas das vezes
consigo perceber melhor no outro do que em mim”. E também quando Lívia Frazão e Lina
Frazão, também integrantes da pesquisa, nos falam:
Nunca tive muita paciência: nem para observar os outros/coisas, nem para
me perceber. Agora, para mim, está sendo bastante gostoso perceber certos
detalhes nas pessoas e nas coisas que são absolutamente comoventes, como
o dia em que estava no sinal e percebi uma mãe com uma criança de colo
com seus 11 meses, um ano. Estaria tudo normal, se eu não tivesse me
absorvido com o detalhe da mãozinha da criança que mexia com o colar no
colo da mãe num gesto absolutamente displicente (característico das
crianças), mas com uma total atenção à sensação daquele ato. Era tão claro
que me absorveu durante todo o tempo em que o sinal esteve fechado (Lívia
Frazão).
Compartilhar a experiência prática das técnicas e dos exercícios foi outro princípio
obrigatório no desenvolvimento desta pesquisa. Por meio de conversas, ao final de cada
prática, a pessoa pode trazer à luz conteúdos até então não percebidos por ela. Muitas vezes
era a partir das trocas de idéias e opiniões nas discussões que se podia refletir e compreender
mais profundamente sobre a prática das técnicas, exercícios e princípios, ampliando a
consciência e o entendimento de como se dão os condicionamentos corporais, de como
reconhecer o padrão do movimento e do pensamento, de detectar os momentos onde ocorre o
julgamento e a fixação em pontos conflitantes do corpo para realização do movimento.
no corpo que dança. Para a continuidade do exercício dos princípios e do estado pré-
expressivo é que elaboramos o espetáculo com estrutura flexível e caráter mais performático,
como veremos na próxima seção.
132
Foto retirada da imagem do registro de vídeo de um dos ensaios privados.
63
Esta pesquisa iniciou-se sem estar vinculada a uma temática definida para elaboração
do espetáculo. A definição temática do espetáculo se deu a partir da experiência dos
intérpretes na etapa do desenvolvimento pré-expressivo do processo, que será descrito mais
adiante. Sabíamos que caminharíamos para uma montagem, mas não tínhamos definido o que
seria essa montagem e qual sua temática específica. Na próxima seção estarei descrevendo o
desenvolvimento e aplicação da pesquisa com o Basirah e como foi se dando o processo
criativo do espetáculo.
133
Foto de Mila Petrillo tirada da apresentação realizada na Mostra XYZ, em 21 de maio de 2006, em
Brasília.
64
Técnicas e exercícios
Etapa Foco Princípios
trabalhados
134
Improvisos individuais realizados a partir de temas específicos. Esses temas foram sendo definidos
tomando como base às experiências vivenciadas na primeira etapa do processo.
135
Definição de temas específicos trazidos pelos intérpretes para possível elaboração cênica.
136
Refiro-me a improvisos públicos estruturados àqueles realizados para o público, onde se definia a ordem
de acontecimento das idéias células, sem a definição de como elas se dariam.
137
Improvisos individuais realizados a partir das vivências das técnicas e exercícios, sem a preocupação de
se chegar a um conteúdo temático específico ou produto finalizado. O intérprete deve se ocupar apenas em
experimentar as sensações provocadas pelas técnicas e exercícios da forma que desejar.
66
Capítulo 2. Nesta etapa pré-expressiva, objetivou-se fazer emergir diversos estados corporais
e emocionais, aguçando a percepção para esses estados. Para facilitar o alcance desses estados
o trabalho se apoiou nos princípios apontados no quadro 2. A aplicação das técnicas e
exercícios dessa fase objetivou interferir na racionalidade do intérprete, na compreensão e
consciência do movimento corporal como um todo, voltando-se para a estimulação e
desautomatização da percepção, e para a sensibilização corporal. Nessa primeira etapa do
processo consideraram-se a fisicidade, as emoções, o pensamento e suas inter-relações e
interações com o meio, como experiências fundamentais para a expressividade corpórea. Com
a percepção mais apurada, direcionamos o estudo para uma compreensão mais aprofundada
de cada processo de surgimento de um estado corpóreo ou emocional, numa tentativa de
trazer o sentido de existência do movimento quando ele era manifestado livremente ou
produzido intencionalmente.
138
Ressalto que o uso do termo ‘espetáculo’ e ‘exercício do espetáculo’ nesta pesquisa são considerados
com mesmo sentido.
67
As três etapas foram necessárias para se ter uma medida da influência e aplicabilidade
da metodologia utilizada para o desenvolvimento do estado pré-expressivo no processo como
um todo. Nelas buscou-se a consciência interpretativa, que nesse contexto, refere-se à
consciência no desempenho de uma situação cênica, envolvendo a habilidade de atenção,
concentração, escuta aberta, noção de tempo e espaço cênico, domínio sobre a relação com
outros intérpretes e com o público, além da atenção no próprio corpo e consciência de seus
estados no momento da atuação.
139
Foto de Dalton Camargos tirada de um ensaio privado.
68
140
BARTHES, Rolland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castanon Guimarães. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
141
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p142.
142
FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator. Campinas, SP: Ed. da
Unicamp, 2003, p 99.
69
Segundo a abordagem que proponho nesta presente pesquisa, a pré-expressão é um nível onde
o intérprete está comprometido inicialmente com a percepção e compreensão de seus estados
corpóreos e emocionais. É o nível que se ocupa principalmente da vivência de estados
corporais e psicológicos diversos, podendo levar à compreensão desses estados e da energia
gerada a partir deles e provocar, então, o estado de presença cênica ativa e atenta, e a
dilatação corpórea.
Esta primeira etapa da pesquisa teve duração de quatro meses, nos quais adotamos a
seguinte rotina de trabalho para o desenvolvimento e prática do estado pré-expressivo:
técnicas MA e BMC, e exercícios MVA, AL e IA realizados em duplas; roda do improviso/
improvisos solos livres; roda do diálogo; sessões de vídeos de registros do processo e relatório
escrito da experiência.
desse campo se revelaram. 143 Como o MVA, o BMC e o MA tem como características
suscitar auto-questionamentos foi a partir da vivência desses exercícios e técnicas, juntamente
com os improvisos livres, que os intérpretes se confrontaram com condicionamentos,
limitações, desejos e assuntos relacionados a suas memórias afetivas e seu modo de ser. O
depoimento de Dorka Hepp, participante da pesquisa, ilustra esses momentos:
Para o último improviso [...], eu admito que não estava (e estou) nem um
pouco convencida do que iria fazer e do que acabou sendo. Eu não sei, estou
indo muito numa direção meio “pesada”, meio “dramática” demais, e estou
começando a ficar entediada com isso. Pareço que não saio daquilo, e para
ser sincera, nem sei de onde vem! Mas o fato é que isso sempre volta e
aparece nos meus improvisos. Acabo me achando uma pessoa chata,
dramática, repetitiva, pouca criativa e pouco feliz. Bom, mas talvez eu tenha
justamente que esgotar este lado meu para ver onde ele possa me levar. O
que eu vou poder extrair dele. Talvez até não seja nada, mas isso só vou
poder descobrir mais tarde. [...] Não quero me “forçar” a nada, quero poder
ter o tempo de fazer as coisas do jeito que eu achar melhor para mim, e eu
mesma fazer as minhas escolhas. Ou seja, agir de uma forma que sempre me
foi negada quando eu era pequena: as pessoas escolhiam tudo para mim, e
pior, me diziam até o que deveria sentir, dizer e achar. Acredito então, que o
meu caminho seja este: me libertar, libertar este grito do qual falei no início
do processo, e que me persegue há muito tempo. Pegou um tom terapêutico,
eu não queria que isso acontecesse, mas eu vejo que preciso passar por isso
para poder seguir em frente. E, aliás, como poderia fazer um movimento
autêntico se eu mesma não sou autêntica, e para isso, eu devo me conhecer
por inteira.
Embora essa atmosfera terapêutica não fosse o foco do trabalho, não refutamos em
trabalhar, coletivamente com ela, colocando sua discussão como mais um elemento facilitador
143
Exercícios descritos no Anexo 1.
71
da compreensão do processo de cada um dentro dessa experiência. Entretanto, não foi nosso
interesse aprofundar, na pesquisa, as questões terapêuticas, apesar delas terem influências
significativas naquilo que está sendo exposto e expressado com o corpo. Nos valemos desta
possibilidade, com a preocupação de direcionar os discursos para o processo artístico/criativo,
e não terapêutico. Conduzi esse processo de forma intuitiva e buscando mais escutar, do que
apontar problemas ou soluções. Na ocasião do início do processo da pesquisa Marília Márcia
Santos Pereira, psicóloga e ex-bailarina, que estava fazendo aulas de balé com o Basirah, se
interessou em acompanhar alguns ensaios. Em conversas particulares com Marília pude ter
uma opinião profissional sobre o comportamento psicológico de cada intérprete dentro do
processo da pesquisa, além de feedbacks a respeito de minha condução das pessoas no
processo como um todo. Este contato com Marília de alguma forma me deixou um pouco
mais tranqüila para dar continuidade ao processo iniciado, pois acredito que seja necessário,
como condutora da pesquisa, ter controle sobre maior parte das situações, no sentido de
amenizar tensões que acontecem com os intérpretes e nas relações que se estabelecem durante
o processo, caso contrário, esse tipo de processo pode desencadear outros processos que
desvirtuem a proposta da pesquisa.
144
Foto retirada da imagem do registro de vídeo de um dos ensaios privados.
72
Realizar essa primeira etapa sob a perspectiva da vivência foi importante para realçar
que o compromisso do intérprete, neste momento, era de disponibilidade para vivenciar com
seu corpo as técnicas e os exercícios propostos. Praticando-os sob a óptica da vivência,
poderíamos ampliar a percepção para o estado pré-expressivo, potencializando seu
desenvolvimento, na medida em que se vivendo intensamente e inteiramente a experiência, a
pessoa poderia entrar em contato com a unidade central do que está sendo vivenciado naquele
momento. O conceito e experiência de ‘vivência’ também pode assumir um caráter de
profundidade e permanência, de algo inesquecível e insubstituível, onde as coisas vivenciadas
não são esquecidas rapidamente, “sua elaboração é um longo processo e justamente nisso
reside seu ser específico e seu significado e não somente no conteúdo experimentado
originariamente”.147
Num primeiro instante, o intérprete deve ser lançado a vivenciar a experiência como
acontecimento bruto, onde “o mundo e a consciência, o dentro e o fora não estão separados,
145
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I – Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica.
Trad. Paulo Flávio Meurer. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 1997, p105. Para mais informações sobre este assunto,
Gadamer apresenta um estudo sobre a formação do conceito e significado da palavra ‘vivência’ na obra citada, pp
104-117.
146
Idem, p106.
147
Idem, p113.
73
Recomeçar tudo de novo para viver o ‘Ser Bruto’ não significa rejeitar ou negar aquilo
que o intérprete adquiriu no seu processo de formação como tal, mas aliar as coisas em
direção a uma maior compreensão delas. Na experiência do estado do Ser Bruto'
, o corpo
deve se revelar como processo de sua própria história no contexto do aqui e agora. Na
tentativa de se alcançar este estado de Ser Bruto'
, foi preciso exercitar continuamente e
148
MACIEL, Sônia Maria. Corpo invisível: uma nova leitura na filosofia de Merleau-Ponty. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1997, p87.
149
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. Trad. José Artur Gianotti e Armando Mora. São
Paulo: Ed. Perspectiva, 2003, p127.
150
CHAUI, Marilena. Experiência do pensamento: Ensaios sobre a obra de Merleau Ponty. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p153.
151
MERLEAU-PONTY, Maurice. Op.cit, p156.
74
Nesta fase o princípio do não julgamento foi exercitado com bastante ênfase. No
momento de compartilhar e dialogar sobre a experiência vivida, tinha-se a preocupação de
conduzir a situação de forma mais a questionar o relato da experiência em detrimento a tentar
solucionar ou definir determinados problemas que pudessem surgir. Deixando as questões em
aberto, sem ter que solucioná-las de imediato, abria-se a perspectiva para uma reflexão mais
aprofundada da situação, ampliando-se as possibilidades de solução sem confiná-las a um
resultado único.
Quando veio o segundo improviso “me mostre alguma coisa que eu nunca vi
você fazer”, aí eu pensei: “estou frita”. Como eu vou mostrar alguma coisa
que ela nunca viu se eu mesma nunca me vi fazer alguma coisa diferente,
afinal sou uma pessoa MUITO normal, que nunca faz coisas diferentes! Mas
bem, eu também tinha resolvido não me importar de novo com o resultado
final... E incrivelmente, foi muito menos sofrido de que para o primeiro
improviso. Não quis me torturar para achar algo “interessante” para mostrar,
e decidi ir pelo mesmo caminho da outra vez. Por isso, eu procurei pensar na
minha vergonha, no meu desconforto em fazer algumas coisas. Esse seria
75
meu “Start”. Aí me veio a idéia dos palavrões. Era bastante simples, mas não
havia erro. Eu até achei divertido fazer.152
Importante salientar que toda e qualquer manifestação corporal da pessoa poderia ser
aproveitada para uma situação de dança, no sentido de se valer da expressão de algo que se
sente, seja pela voz, pelo gesto, pelas várias formas de respirar, pela exploração do espaço
com o corpo etc, como função estética. A produção do movimento já estava contida nessas
manifestações, e o dançarino deveria estar atento a elas, atento ao seu corpo e ao que se
manifestava nele.
De certa forma, nesta fase inicial do processo, foi preciso esquecer o movimento como
fim e voltar-se ao corpo como fonte de tudo, e ‘deixar acontecer’ ao invés de ‘fazer
acontecer’, percebendo o vínculo da expressão manifesta no corpo e seu sentido de existência.
Assim, buscou-se revelar ao intérprete outras possibilidades de reorganização de seu corpo e
do movimento, mobilizando-o para a expressão a partir de seu sentido de existência.
Muitos temas relacionados à prática da atuação foram levantados nesses diálogos, tais
como a exposição do real no universo da atuação, a tentativa de se fugir de condicionamentos
152
A próxima seção apresentará a idéia célula resultante do segundo improviso de Dorka.
76
Além dessa dinâmica, foi solicitado a cada intérprete que sempre escrevesse sobre
suas experiências e reflexões. Em novembro de 2004, após quatro meses de trabalho e
investigação sobre a primeira etapa, cada um apresentou um relatório sobre pontos que achou
importantes nessa fase e as percepções a respeito do estado pré-expressivo, que estão no
Anexo 2, onde também há um segundo relatório apresentado pelos intérpretes ao final da
terceira etapa em outubro de 2005.
Márcia Lusalva
construção e elaboração cênicas e das ações a partir da compreensão que se alcançou dos
estados pré-expressivos do corpo e do nível de apropriação e incorporamento dos princípios
da primeira fase.
Foram muitas conversas a respeito dessa temática. Passou-se a lembrança em tudo que
havia surgido durante o processo até aquele momento, o trabalho sobre o aparente e o oculto,
o dentro e o fora, a exposição e a proteção, a relação com o corpo em todos os sentidos, a
ficção e a realidade dentro do real e do imaginário etc. Além disso, foi se chegando a uma
concepção do espetáculo mais performática, onde a condição coreográfica estava calcada no
improviso corporal e cênico das idéias principais trazidas por cada intérprete. Não se via
coreografias propriamente ditas, com combinações de passos e seqüências elaboradas
musicalmente, mas sim um jogo de corpos em expressão que se manifestam em seus desejos,
carências e amores a partir da relação consigo e com o outro, dentro do tempo e espaço
cênicos.
Sugeri a cada intérprete trabalhar sobre aquilo que desejasse falar com seu corpo. A
pergunta então era: O que quero falar com meu corpo? O que quero fazer com meu corpo?
Logo, cada um deveria tentar responder a esta pergunta, escrevendo e desenvolvendo idéias a
esse respeito, com intuito de criarem pequenos solos, pequenas histórias pessoais.
Com o direcionamento de encontrar o que se quer dizer com o corpo sem abandonar o
que se escutou dele na primeira etapa do processo, cada solo foi se delineando e as histórias
foram sendo contadas corporalmente em contextos cênicos cada vez mais definidos. Uns
partiram de memórias da vida pessoal, ou ainda segundo a percepção do estado de algo atual
impregnado no corpo, como, por exemplo, o estado de carência do corpo. Outros tomaram
como início a necessidade de se transbordar cenicamente a relação entre real e imaginário.
Também alguns partiram da necessidade de se colocarem à prova de alguma coisa, de colocar
o corpo em risco, não no risco do corpo físico, mas no do corpo moral ou do corpo crítico.
Foram criados nove solos. São eles:
78
1. Dorka – Idéia célula utilizada vergonha de falar palavrões. Este solo foi baseado no
improviso realizado na primeira fase do processo criativo em que solicitei ao
intérprete fazer algo que eu nunca o tivesse visto fazer. Para Dorka falar palavrões
significou se colocar em risco, pois o fato de falar palavrões lhe dava muita vergonha
e desconforto. O outro motivo que a levou a esta idéia célula foi experimentar o seu
lado infantil. Dentro desta atmosfera Dorka foi experimentando sua relação com os
outros intérpretes, e com o público. A partir dessa idéia célula fomos investigando a
possibilidades de movimentos que estivessem associados com a vergonha. Dorka
deveria lançar bolas de papel em Lívia Frazão. Esse era um elemento do solo de Lívia,
entretanto Dorka incorporou-o ao seu solo utilizando-o para estabelecer relação com o
público. Para o espetáculo definimos que uma pessoa falaria os palavrões no ouvido
de Dorka para que ela os repetisse para qualquer um do público. Inicialmente
Alessandro ficou com essa função, entretanto algumas vezes experimentamos outro
intérprete realizando-a.
3. Rachel - Idéia célula utilizada cantar comendo pão. Rachel teve como motivação a
idéia de estar sendo impedida de cantar. Essa idéia célula partiu de um dos improvisos
livres realizado no início do processo criativo e não teve nenhuma associação
específica e direta com alguma questão psicológica pessoal. Sua intenção era
simplesmente trabalhar com voz. Então lhe veio a idéia de construir uma cena onde ela
pudesse cantar e ao mesmo tempo ser impedida por alguém que lhe enfiasse pão na
boca sem parar. Essa cena foi se desenvolvendo para um jogo de fuga entre Rachel e a
pessoa que lhe dava o pão. No espetáculo incorporamos esse jogo utilizando todos os
intérpretes. Colocamos duas pessoas enfiando pão na boca de Rachel. No momento
em que Rachel tentava fugir dessas duas pessoas, para que ela pudesse continuar
cantando, todos corriam atrás dela. Quando ela parava todos paravam na sua frente
79
com o objetivo de testemunhar a cena entre ela e as duas pessoas que lhe davam o pão.
Nessa cena Rachel tinha liberdade para transitar entre o público, sentar-se ao lado de
algum espectador ou utilizar somente a região central do espaço cênico. Essa ação era
definida por ela no momento da cena.
4. Márcia – Idéia célula utilizada o solo de Márcia não teve uma idéia centrada apenas
em um foco. A elaboração de seu solo partiu das várias vivências durante todo o
processo e os questionamentos suscitados nessas vivências como as perguntas ‘me
expor ou me proteger em cena?’, ‘mostrar meu desejo real, ou uma farsa?’, ‘dizer
sobre minhas intimidades?’, ‘não me julgar? Como?’, ‘mas isso é arte, ou é vida
real?’. Márcia foi elaborando uma síntese de suas vivências no processo até chegar em
seu solo e no texto onde ela diz algo como: “pensava que meu coração ficasse no
peito, mas ele escorregou para o pé e eu tive que tirar os sapatos para que ele pudesse
pulsar”, e também, “aqui dentro é lindo (aponta para sua cabeça), a vida é linda!”.
Durante o exercício do espetáculo Márcia tinha liberdade de falar com o público sobre
todos os seus questionamentos. Poderia falar sobrepondo a voz à música que toca na
cena, com a intenção de não ser ouvida pelo público, ou poderia esperar a música
terminar e começar o seu texto. Ela também poderia escolher entre falar o texto ou
153
Foto de Dalton Camargos tirada de um ensaio privado.
80
não. A cena construída por Márcia muitas vezes a fez chorar. Mas isso não
necessariamente significa uma definição fixa de se chorar na cena.
5. Lívia Frazão – Idéia célula utilizada sobre a sensação de se ver ‘sentada deixando a
vida passar’. Este solo foi sendo elaborado a partir de alguns improvisos realizados
por Lívia motivado pelas conclusões que chegou do processo criativo vivenciado. Em
conversas sobre o que levou Lívia a delinear esse solo ela nos diz que percebeu que
em sua vida está sempre esperando que algo aconteça, fica ‘sentada vendo a vida
passar’, e que isso lhe dava uma grande angústia, pois se sentia anestesiada para tomar
atitudes em relação a essa sensação. A partir dessa sensação Lívia trouxe uma
movimentação corporal associada a desconstrução, a falta de controle e sustentação do
corpo, ao abandono etc, o que a levou executar movimentos quebrados, com base no
deslizamento das articulações, no abandono muscular, levando o corpo a se mover
utilizando mais a estrutura esquelética. A vivência do sistema esquelético no BMC nos
ajudou a aprimorar o movimento e descobrir suas possibilidades. Na concepção de
Lívia alguém deveria lançar-lhe objetos (no caso do espetáculo Dorka lhe jogava bolas
de papel) para impulsioná-la a reagir, a tomar alguma atitude. Esse solo utiliza a
música “J’arrive à la ville” de Lhasa Sela escolhida pela própria Lívia.
6. Lina Frazão – Idéia célula utilizada Sobre a frase ‘mas, eu quero!’. O elemento de
Lina surgiu a partir de minha percepção sobre as atitudes de indignação dela em
relação a situações de seu dia a dia, que muitas vezes a levava a se sentir excluída
socialmente, como exemplo o dia em que ela entrou triste no supermercado e leu o
enunciado ‘Pão de Açúcar – o supermercado de gente feliz’. Esse tipo de situação
colocava Lina com uma sensação de liberdade podada, de restrição e de
enquadramento. A partir dessa sensação de exclusão e indignação perante essas
situações fomos investigando possibilidades de desenvolvimento do solo. Outro
elemento que Lina trouxe e que incorporamos no espetáculo foram as frases recortadas
de seu diário. Lina escreveu cada frase em uma folha de papel e ia mostrando essas
frases para as pessoas lerem. As frases eram: O mundo às vezes me ofende; às vezes
não; O mundo às vezes liquefaz as pessoas; O mundo recheia as pessoas de histórias;
O mundo faz as pessoas serem veementes; O mundo faz as pessoas serem míopes;
Para o mundo, o silêncio é uma ousadia; é que o mundo gira rápido demais; e há
movimento em demasia; até parece que o mundo não nos convida a ser sadios; O
mundo é mesmo bem cartesiano; Mas hoje, ele me veio singelo; Hoje eu olhei para o
81
7. Diego – Idéia célula utilizada Solo 1 - perguntar ao público ‘O que vocês querem
que eu faça?’. Essa idéia originou-se do improviso solo livre realizado por Diego na
segunda fase do processo criativo. Este solo partiu da solicitação que fiz aos
intérpretes para me falarem com o corpo o que desejassem. Nesse momento do
processo criativo como Diego se sentia muito perdido e com muitos questionamentos
em relação ao seu próprio corpo, achou que deveria perguntar aos outros intérpretes,
que o assistiam, o que eles gostariam de ver ele fazendo. Seu questionamento baseou-
se na constatação de que a imagem corporal própria que possuía era construída a partir
do que as pessoas achavam dele, e não pelo que ele mesmo achava. Além disso, Diego
quis trabalhar com a idéia de se expor para o outro. Para o seu improviso Diego
buscava interpretar as solicitações das pessoas (público) tentando fugir da literalidade
que os pedidos pudessem suscitar. Solo 2 – idéia célula expor o corpo, colocar o
corpo à prova da exposição e da exaustão demonstrando as próprias fragilidades.
Nesse solo Diego buscou explorar a exposição de seu corpo de forma mais explícita. A
cada realização desse improviso a exposição foi se tornando mais contundente, pois
Diego começa utilizar as próprias fragilidades como elemento para investigação e
realização de seu solo, como por exemplo se achar fora dos padrões corporais de
dançarino. Diego explora esse tema explicitamente para o público pegando na sua
gordura, se batendo e levando seu corpo à exaustão.
9. Lívia Bennet – Idéia célula utilizada girar o corpo sem parar, sempre para a mesma
direção. O solo de Lívia teve como inspiração inicial um improviso que fizemos sobre
fotos da família. Cada intérprete deveria trazer fotos que fossem marcantes de sua
vida. Após colocá-las expostas na parede da sala de ensaio cada um tentaria dançar a
82
sensação provocada pela situação de estar vendo as fotos, sem se fixar na lembrança
de alguma situação específica.
154
As músicas utilizadas foram “Wedding-Cocek” (momento do público entrando no teatro) e
“Underground Cocek” (solo Márcia) de Goran Bregovic, “J’arrive à la ville” de/com Lhasa Sela (solo Lívia
Frazão), “Donde estabas tu?” de Ernesto Duarte com Omara Portuondo (dança das camisolas e margaridas), “69
Frango assado” de/com Tati Quebra Barraco (solo Diego), “De tanto amor” de Roberto Carlos.com Claudette
Soares (solo Alessandro), “Por esso me quedo” de/com Lhasa Sela (solo Lívia Bennet).
83
Importante dizer que entendo como qualidade expressiva do corpo e das ações
corpóreas a qualidade de percepção e manifestação da sensação de um estado de corpo,
desencadeado por um estímulo qualquer, que provoca uma mudança no tônus muscular,
afetando a expressão. Por exemplo, se associo um sentimento de tristeza à deflagração de uma
contração muscular específica no corpo, isso me provoca uma sensação corporal que não é só
a contração muscular propriamente dita, devo perceber esta sensação no corpo como um todo,
pois essa contração irá afetar a respiração, a forma de olhar, a entonação da voz, o fluxo
sanguíneo etc, gerando uma qualidade expressiva corpórea. Ou seja, me provocou uma
sensação do estado de corpo triste acionado por uma situação de tristeza. Este estado de corpo
é a conjugação de uma série de transformações que ocorreram nesse corpo. Se, entendo meu
corpo triste, meu corpo carente, meu corpo em amor enquanto sensação corporal, talvez eu
possa integrar todo meu corpo na manifestação da expressão destes estados e me beneficiar
dessas faculdades internas em detrimento à imagem externa que se cria para atuar
determinada situação. A idéia é favorecer a atuação do estado de corpo ao invés da
representação de um estereótipo de uma situação externa vivida pelo intérprete, como uma
situação de felicidade. Sugiro, então, que o intérprete deve objetivar um trabalho sobre a
qualidade da percepção da sensação corpórea e da atualização do estado corporal gerado por
estímulos diversificados no momento da ação, além de como este estado de corpo materializa-
se em expressão e movimento no momento da criação e da atuação.
155
DAMÁSIO, António. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano.Trad. Dora Vicente e
Georgina Segurado. São Paulo: Companhia das Letras. 1996, p161.
84
dimensões que puder alcançar, na física, na psicológica, na espiritual e talvez ele tenha a
oportunidade de alcançar essas dimensões vivenciando o próprio corpo e seus afetos. Jerzy
Grotowski nos reforça essa idéia dizendo que
o ator deve atingir (não tenhamos medo do nome) um ato total, que faça
qualquer coisa com todo seu ser, e não apenas um gesto mecânico (e,
portanto, rígido) de braço ou de perna, nem uma expressão facial ajudada
por uma inflexão e um pensamento lógico. Nenhum pensamento pode
orientar todo o organismo de um ator de forma viva. Deve estimulá-lo, e isso
é tudo o que um pensamento pode realmente fazer. Sem compromissos, seu
organismo pára de viver, seus impulsos crescem superficialmente. Entre uma
reação dirigida por pensamento, há a mesma diferença que entre uma árvore
e uma planta. Como resultado final, estamos falando da impossibilidade de
separar o físico do espiritual. O ator não deve usar seu organismo para
ilustrar “um movimento da alma”; deve realizar este movimento com seu
organismo. 156
156
GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Trad. Aldomar Conrado. 3ªed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira,1987, pp97-8.
85
Prática do desapego, não se apegar a nenhuma Prática da fixação. Fixar aquilo que foi considerado
qualidade específica de movimento ou atitude. bom e funcional para a cena.
Deixar acontecer. Deixar o corpo se expressar da Fazer acontecer. Provocar ações precisas para
maneira como quiser. desencadeamento das idéias cênicas.
Atuar no processo criativo significa aqui viver sem pudor o que se atua no momento
da encenação, acreditar na ação assumindo-a convictamente como sua, como parte de você, e
não como uma representação de um outro (personagem). Grotowski nos aponta esta idéia
quando nos fala sobre o ato total:
Quando digo que a ação – se não se quer que sua reação fique sem vida –
deve absorver toda a personalidade do ator, não estou falando de algo
“externo”, como os gestos e truques exagerados. Que quero dizer, então? É
uma questão que envolve a própria existência da vocação do ator, de uma
reação, de sua parte, que lhe permita revelar cada um dos esconderijos da sua
personalidade, desde a fonte instintivo-biológica através do canal da
consciência e do pensamento, até aquele ápice tão difícil de definir e onde
tudo se transforma em unidade. Este ato de total desnudação de um ser
transforma-se numa doação do eu que atinge os limites da transgressão das
barreiras e do amor. Chamo isto de um ato total.157
Também Renato Cohen nos coloca que o ator e, nesse caso, o dançarino, não pode
‘ser’ e ‘representar’ ao mesmo tempo. Existe a “impossibilidade física de dois corpos
ocuparem o mesmo lugar no mesmo instante, e também a impossibilidade psíquica de haver
dois egos numa só psique”. 158 Seguindo este pensamento acredito que o intérprete deve jogar
com este paradoxo numa tentativa de diminuir esta lacuna entre ser ele mesmo e aquilo que
está atuando, pois, continuando com a fala de Cohen,
157
GROTOWSKI, Jerzy. Op.cit., p105.
158
COHEN, Renato. Performance como linguagem. 2ed. São Paulo: Perspectiva, 2004, p94.
86
alguém nunca pode estar só “atuando”: primeiro, porque não existe o estado
de espontaneidade absoluta; à medida que existe o pensamento prévio, já
existe uma formalização e uma representação. Mesmo que o personagem
seja auto-referente. Ainda assim haverá o desdobramento. Segundo, porque
sempre que estamos atuando (e isso é extensível para todas as situações da
vida) existe um lado nosso que “fala” e outro que observa. Essas situações
limites não são da esfera do humano ou, se o são, pertencem àqueles
momentos de transcendência, visualizados por Artaud, e atingidos por seres
privilegiados em momentos de oniconsciência, de perda do ego individual,
denominados pelos orientais como samadhi. É interessante que nessa
situação paradoxal os dois extremos se tocam: eu não sou mais “eu” e ao
mesmo tempo eu não “represento”.159
Outro conceito que objetiva apagar a dualidade do momento entre ser e atuar é o de
corpo-subjétil, definido por Renato Ferracini, ancorado em Antonin Artaud. Segundo
Ferracini o corpo-subjétil é o corpo que lida ao mesmo tempo com seu comportamento
cotidiano e extracotidiano, que lida com a forma e a vida, com a objetividade e a
subjetividade, com a técnica e o caos, não sendo nem um, nem o outro. É o corpo “entre
polaridades que se completam”.160 E ainda, continua Ferracini
159
Idem, p96.
160
FERRACINI, Renato. Corpos em criação, café e queijo. 2004, 345 f. Tese de Doutorado em
Multimeios, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, 2004, p77.
161
Idem, p79.
162
Idem, pp85-90.
87
Se num primeiro instante temos que dar vazão à fruição dos sentidos, dos sentimentos
e das emoções que geram estados de corpo distintos, num segundo momento devemos ainda
estar exercitando esta fruição, mas em benefício de uma ação cênica colocada num contexto
específico, e que também sofre interferências de fatores externos à própria emoção e
sentimento vividos no momento. Dessa forma, atualiza-se e reconfigura-se o estado corpóreo
que se manifesta na expressão do movimento.
O jogo das polaridades parece colocar o intérprete numa zona de instabilidade entre a
ação de provocar algo no corpo e a ação de esperar sem expectativas, obrigando-o estar atento
às situações com todo seu corpo engajado no aqui e agora.
163
PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. Trad. Maria Helena Nery Garcez. São Paulo: Martins
fontes, 2001, p41.
88
mesmo tempo, esta ‘tentativa’ de viver a experiência sensível de forma cada vez mais
consciente pode ser sufocante e paralisante para o momento criativo. O exercício da
‘consciência’ e da ‘tentativa’ em demasia pode levar à cristalização da percepção, ao
sufocamento da escuta, eu me vicio em ter que perceber. Voltar-se à escuta do corpo e sua
sensação no momento da experiência pode parecer um caminho para se manter a calma e a
escuta interna, ampliando este sentimento para as ações a serem realizadas. Também devemos
encarar que o aspecto da consciência a ser trabalhado deve ser no sentido da “consciência
libertadora”, não para cristalizar o que se encontra, mas para, a partir da consciência que se
chega, exercitar a liberdade das ações, entender seus fluxos. Em alguns momentos do
processo desta pesquisa, a impressão que se tem é que ter consciência “dói”. Grotowski vem
nos lembrar da expressão “crueldade é rigor”, utilizada por Artaud, que nos indica que a
conjunção dos opostos, espontaneidade e disciplina, pode originar o ato total, ou que, “a
anarquia e o caos devem estar ligados a um sentido de ordem”,164 e ainda de que “esta noção
de que a espontaneidade e a disciplina, longe de se enfraquecerem uma à outra, reforçam-se
mutuamente; de que o elementar alimenta o elaborado”.165 A partir dessa abordagem foi-se
dando o processo criativo, onde as histórias a serem contadas tornavam-se mais claras. O
processo de construção e de exercício do espetáculo foi calcado na busca de se manter o
estado pré-expressivo vivo e atuante no contexto cênico, como será apontado na próxima
seção.
Marilena Chauí.166
164
GROTOWSKI, Jerzy. Op.cit., p99.
165
Idem, p96.
166
CHAUÍ, Marilena. Experiência do pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Pulo:
Martins Fontes, 2002, 152-3.
89
Após a definição das histórias pessoais que levaram à construção do solo de cada
intérprete, trouxemos uma concepção de espetáculo voltada para uma composição cênica e
coreográfica mais livre. Uma trama onde houvesse elementos, estados de corpo, células de
ações e movimentos isolados que pudessem se organizar e reorganizar de diversas formas, de
acordo com as situações cênicas que fossem aparecendo, permitindo ao intérprete exercitar a
reorganização constante de suas ações e estados corporais em um jogo.
167
FERRACINI, Renato. Op.cit., p176.
168
Idem, p176.
169
AZEVEDO, Sônia Machado. O papel do corpo no corpo do ator. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2002,
p122.
90
A terceira célula são deslocamentos em grupo com uma, ou duas pessoas que enchem
os pulmões de ar e correm definindo três pontos no espaço. Esses três pontos, que são
definidos no momento da corrida ajudam a conduzir o deslocamento do grupo que em
princípio deve seguir o que está com os pulmões cheios. Essa cena objetiva criar a máxima
tensão até culminar no dueto de Alessandro (quarta célula) com qualquer outra pessoa que ele
escolher na hora. Está célula acontece sem música.
91
A quinta célula refere-se ao uso das frases ‘me escolhe’ e ‘eu não quero você
porque...’, A frase ‘me escolhe’ antecede o dueto improvisa de Alessandro com outro
intérprete. Já a frase ‘eu não quero você porque...’ acontece antes do solo de Lina. Essa frase
pode ser completada livremente pelos intérpretes que falam, por exemplo ‘eu não quero você
porque você respira’. As frases podem ser ditas por qualquer pessoa no momento definido
para elas, observando-se para não incorrer em poluição de várias falas ao mesmo tempo.
Logicamente que por trás da possibilidade variada do uso dessas células deveria se ter a
preocupação constante com o diálogo e a composição cênica resultante desse uso. A opção
pela possibilidade de interferir na composição do espetáculo durante a performance acentuava
o trabalho sobre o sentido de jogo que o intérprete deveria exercitar.
170
GREINER, Christine, O Corpo: Pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005, p39.
92
jogo, observando que no jogo se opera a mutabilidade com base nas incertezas das decisões,
abrindo um campo para a exploração de possibilidades de atuação na solução de problemas
gerados no jogar.
Neste jogo algumas regras são definidas ao longo de seu exercício. Entretanto, toda
regra criada pode ter exceções, podendo ser utilizada de uma forma ou de outra. Por exemplo,
as frases de movimentos realizadas em grupo são normalmente utilizadas como indicativas de
transições cênicas. Porém, elas também podem ser utilizadas isoladamente por qualquer
intérprete e em qualquer momento do espetáculo. Sendo usada individualmente, ela não se
configura como uma transição. Um exemplo dessa situação se dá no momento em que um dos
intérpretes decide dançar a coreografia dos ombros contraídos em qualquer parte do
espetáculo que não seja aquela em que se estabeleceu para a coreografia do grupo.
Para definição das regras deste jogo, e mesmo para a construção de uma estrutura que
servisse de base para o acontecimento do espetáculo, foram realizados vários improvisos
estruturais. Chamo de improviso estrutural o exercício do improviso para a construção da
estrutura de um espetáculo, onde os elementos que constituem o espetáculo já existem
isoladamente, entretanto, a composição desses elementos se dá pelo improviso. Cada
intérprete ficou responsável em compor uma ordem de acontecimento das células de
movimentos, ações e dos solos. Essa ordem era falada para todos os intérpretes pouco antes de
se realizar o experimento. Após a experiência, discutíamos as possibilidades que apareciam e
o que poderiam funcionar cenicamente.
Experimentamos várias ordenações de estruturação cênica das idéias, dos solos e das
células de movimentos encontradas. Numa dessas versões, foi proposto um sorteio da ordem
de acontecimento dos solos. Cada intérprete foi sorteado com um número. Esse número
indicava a ordem de acontecimento de seu solo. Por exemplo, aquele que tirou o número três
saberia apenas que seu solo deveria acontecer após dois solos quaisquer. Com esses
experimentos, cada ensaio foi também um exercício de composição dos elementos do
espetáculo, além do treino do diálogo cênico entre intérpretes, espaço e tempo de atuação.
Também houve o momento em que se experimentou por diversas vezes uma mesma
ordem estrutural definida anteriormente, em que se objetivou provocar interferências nessa
ordem por meio de justaposição dos solos, e desses com as células de movimentos e ações, e
também na quebra dessa ordem estruturada a qualquer instante. Para se quebrar a ordem de
93
uma estrutura previamente definida, o intérprete deveria propor algo coerente com o que
estava acontecendo na cena. Ele deveria estar atento ao diálogo do que propunha com o que
estava acontecendo, tentando uma composição que fluísse. Isso de certa forma parece exigir
que o intérprete reflita melhor sobre suas decisões e escolhas antes de propor uma quebra da
estrutura estipulada. Ao propor algo fora do script, ele deve saber como desenvolver seu
improviso de forma a dar espaço para que uma nova estrutura vá se delineando, ou mesmo
para que a estrutura estipulada anteriormente tenha possibilidade de retornar.
171 COHEN, Renato. Performance como linguagem. 2ed. São Paulo: Perspectiva, 2004, p98.
94
172
No primeiro ensaio aberto ao público seguiu-se a seguinte ordem de acontecimento das cenas: 1- Solo
de Alisson fora do teatro junto ao público. 2- Público entra e Diego pergunta ao público o que eles querem ver.
3- Solo de Lívia Bennet. 4- Jogo de deslocamento dos bancos. 5- Solo Dorka – palavrões. 6- Solo Lívia Frazão.
7- Solo Rachel – elemento do pão. 8- Elemento dos pulmões, jogo de deslocamento de todo o grupo para
aumento da tensão culminando na cena de Alessandro pegando alguém e fazendo improviso. 9- Solo Alessandro.
10- Solo Márcia. 11- Canto Alessandro. 12- Jogo de deslocamento dos bancos novamente. 13- Dança dos
ombros com as camisolas e margaridas. 14- Solo de Diego. 15- Frases faladas pelos intérpretes ‘Eu não quero
você porque você...’.16- Solo Lina com canto de Alessandro.
95
avanços conquistados no processo por cada intérprete, em relação à presença cênica ativa e à
entrega total para a experiência da atuação. Foi interessante observar a luta interna desses
intérpretes para lidar com as próprias fragilidades cênicas e da atuação. Nesse sentido, o
exercício do espetáculo é um caminho no qual o intérprete se experimenta, se entrega e se
revela.
173
Foto de Mila Petrillo tirada da apresentação realizada na Mostra XYZ, em 21 de maio de 2006, em
Brasília
174
BROOK, Peter. A porta aberta. Trad. Antonio Mercado. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002, p14.
96
É neste momento que temos o termômetro que nos indica se o processo não está se
desvirtuando de sua proposta, tanto no sentido de manter o vínculo com a expressão artística,
não se limitando apenas à demonstração da experiência, como também de incitar o intérprete
a utilizar o processo vivido como alimento para sua performance, numa tentativa de não se
apoiar unicamente em antigos hábitos performáticos, em atos cristalizados. A ênfase na idéia
do espetáculo como exercício visava que houvesse sempre a possibilidade da experimentação.
Nessas apresentações, o público presente foi informado que se tratava de ensaio aberto
para o estudo da pesquisa em curso. Observamos que a platéia foi bastante receptiva, com
retornos positivos, o que gerou uma euforia por parte dos intérpretes e uma satisfação interna
em relação a sua atuação. A satisfação pelo suposto sucesso alcançado muitas vezes pode
representar uma ameaça à continuidade do desenvolvimento do intérprete, podendo ele
cristalizar-se naquilo que o satisfaz. Ressalto, com as palavras de Grotowski, que, nesta
pesquisa, “o ator nunca possuirá uma técnica ‘fechada’, pois a cada degrau do seu auto-
escrutínio, a cada modificação, a cada excesso, a cada derrubada de barreiras escondidas,
encontrará ele novos problemas técnicos num nível mais alto”.175 Logo, ele deve sempre
desconfiar de sua satisfação.
Nesta fase o trabalho do intérprete estava mais voltado para questões relacionadas ao
momento de realizar determinada ação sem prejudicar a situação cênica, quando interferir no
improviso do outro, como se provocar constantemente na atuação, tanto no sentido de agir,
como no de não agir, sem perder a noção do tempo, do espaço, do outro e do público. Além
disso, como atuar com o estado de presença ativa, expondo-se às próprias fragilidades.
175
GROTOWSKI, Jerzy. Op.cit, p31.
97
técnica corporal se escondendo atrás dela, ou numa característica específica própria que ele
sabe que pode funcionar, e que ele domina. Portanto, nessa etapa, a presença do público
objetiva também estimular a atenção do intérprete para a percepção da auto-sabotagem que o
impede no desafio de se expor e experimentar, fazendo-o cair em antigos hábitos
performáticos. Lina Frazão nos diz em seu depoimento que
o principal foco tem sido mesmo não se esconder atrás do corpo: me expor
tem sido com certeza, o que me causa mais frio na barriga. Sempre é muito
fácil estudar a técnica e se esconder atrás dela; o virtuosismo deixa os corpos
muito turvos, e pode esconder o intérprete. Por isso acho que trabalhar a
transparência como intérprete tem sido o meu maior ganho.
176
Foto retirada da imagem do registro de vídeo de um dos ensaios privados.
177
No segundo ensaio aberto ao público seguiu-se a seguinte ordem de acontecimento das cenas: 1- Cena
Diego fora do teatro junto ao público - Diego pergunta ao público o que eles querem ver. 2. Nessa nova versão
introduziu-se uma música para entrada do público no teatro, os intérpretes recebem o público. Outro novo
elemento inserido foi, enquanto a música toca e o público entra Márcia rola pelo chão sem tocar as mãos e os pés
no chão. 3- Jogo de deslocamento dos bancos. 4- Solo Dorka – palavrões. 5- Outro jogo de deslocamento dos
bancos. 6- Solo de Alisson. 7- Solo Márcia. 8- Canto Alessandro. 9- Elemento dos pulmões, jogo de
deslocamento de todo o grupo para aumento da tensão culminando na cena de Alessandro pegando alguém e
fazendo improviso. 10- Solo Lívia Frazão. 11- Solo Rachel – elemento do pão. 12- Outro jogo de deslocamento
98
a construção de um espaço cênico único. A relação que se foi estabelecendo com o público, a
partir da vivência da primeira apresentação pública, foi de querer cativar o espectador para a
cumplicidade com as propostas cênicas, sem expô-lo explicitamente, e também sem querer ser
impositivo na interação. Falamos na proposta de aproximação com o público de forma
delicada e carinhosa, sem intimá-lo a fazer parte de algo, sem pressioná-lo a interagir por
obrigação. O fato de um intérprete sentar-se ao lado de um espectador não significava que o
espectador tivesse que tomar uma atitude em relação a isto. O espaço do espectador, para o
intérprete, deveria ser tratado com naturalidade, ou na mesma relação que este intérprete
desenvolvia quando estava em cena. Entretanto, a relação não era também de ignorar esse
espectador, sentar-se ao lado dele como se ele não interferisse em nada na atuação, como se
ele não estivesse ali, mas, ao contrário disso, reconhecer que ele estava ali, sim, e que um
olhar poderia ser trocado com ele, um sorriso, um toque de mãos etc. O intérprete poderia
responder a alguma reação que, porventura, o espectador apresentasse. Era importante
encontrar um eco interno daquilo que vinha do externo. Exemplos dessa relação podemos ver
quando Dorka percebendo que alguém a olha comendo pão, dá um sorriso e oferece o pão a
essa pessoa, ou Diego se aproxima sutilmente de alguém do público e lhe pergunta algo ou
ainda quando Lívia Frazão sugere trocar, e troca, seus óculos com o de alguém da platéia.
dos bancos só que aqui os intérpretes disputam os bancos. 13- Frases faladas pelos intérpretes ‘Eu não quero
você porque você...’. 14- Solo Lina com canto de Alessandro. 15- Dança dos ombros, com as camisolas e
margaridas. 16- Solo Diego. 17- Solo Alessandro. 18- Solo Lívia Bennet. Essa versão foi mantida em
apresentações posteriores, havendo mais fusões entre solos e células.
99
Além desses ensaios abertos, foram realizadas mais quatro apresentações ‘oficiais’.
Digo ‘oficiais’, por terem sido apresentadas dentro de festival e mostra,178 nos quais,
supostamente, o espetáculo era visto pelo público como espetáculo, e não como exercício de
espetáculo. Este fato, de alguma forma, também pode provocar uma pequena transformação
do intérprete na abordagem de sua atuação. Sendo considerado oficialmente um espetáculo, o
intérprete tende a reduzir a intensidade da experimentação, talvez para ter mais controle, ou
talvez pelo medo da exposição, num ato de proteção e busca de segurança. Brook nos lembra
que “quando não se procura segurança, a verdadeira criatividade vem preencher o espaço”.179
Neste processo, buscamos estarmos atentos a esse fato para não limitar as possibilidades. Foi
preciso esclarecer aos intérpretes que o compromisso da atuação, no exercício de espetáculo e
no que ele considerava oficialmente de espetáculo, deveria ser o mesmo. Na verdade, as duas
coisas eram uma só, pois o desafio interno deveria ser constante, seja no espaço privado dos
ensaios, ou no espaço público das apresentações.
178
Das quatro apresentações realizadas três aconteceram no Festival Internacional de Teatro e Dança Cena
Contemporânea em Brasília, nos dias 28, 29 e 30 de outubro de 2005. A quarta apresentação se deu na Mostra de
Dança XYZ, dia 21 de maio de 2006, também em Brasília..
179
BROOK, Peter. A porta aberta. Trad. Antonio Mercado. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,
2002, p20.
100
intérprete expôs sua indignação, em alto e bom tom para todos do público ao final da
apresentação, suscitando uma discussão entre o público. Foi interessante observar essas
reações e perceber que quanto mais os intérpretes se expunham, se provocavam internamente,
mais a sensação de vulnerabilidade parecia ecoar no público. Como coloca Grotowski,
também acredito que se o intérprete, “estabelecendo para si próprio um desafio, desafia
publicamente os outros, e, através da profanação e do sacrilégio ultrajante, se revela, tirando
sua máscara do cotidiano, torna possível o espectador empreender um processo idêntico de
autopenetração”.180 A vulnerabilidade exposta do intérprete parecia não deixar o público
indiferente. Talvez esta vulnerabilidade fosse o que mais agredisse o espectador, o que mais o
incitava a se manifestar de alguma forma.181
180
GROTOWSKI, Jerzy. Op.cit., p29.
181
Não houve um estudo sistematizado da recepção do espetáculo. Entretanto,´logo após algumas
apresentações públicas realizamos entrevistas informais com os espectadores, registradas em vídeo, sobre suas
impressões do espetáculo. Busquei ouvir opiniões e impressões de pessoas próximas a mim, além de artistas e
diretores de teatro e dança.
101
CONCLUSÃO
Pude constatar que a abordagem do processo criativo proposta por essa pesquisa não é
de fácil assimilação para todo intérprete, visto que uma participante desistiu do processo
alegando não se sentir confortável e pronta para esse tipo de abordagem de criação. Aquele
que, de alguma forma, teme se confrontar, ou, por algum motivo, não se vê pronto para essa
confrontação, ou ainda, que acredita em caminhos mais confortáveis para se alcançar essa
confrontação, não consegue permanecer nesse processo. Esse processo necessita de pessoas
que possuam um desejo e curiosidade para se desenvolver intelectualmente,
psicologicamente, fisicamente, conhecer-se partindo de reflexão, formulação e reformulação
de seus pressupostos. A pessoa deve estar, acima de tudo, aberta ao processo de conhecimento
de si, permitindo que as transformações ocorram no nível mental, físico, espiritual. Ela deve
estar implicada nesse processo, deixando-se surpreender pelo desconhecido, mas se tornando
responsável por aquilo que se propõe.
Como disse anteriormente, esse processo “dói”, na medida que borra constantemente a
fronteira entre a vida e a arte, e põe em questionamento essas duas esferas, provocando uma
fusão explícita, e, às vezes, atordoante, entre elas. Assim, uma vai alimentando a outra em
benefício do desenvolvimento de um pensamento artístico, de um produto estético e, muitas
vezes, crítico.
103
O estar atento aos outros lados de ser e ver exigiu um exercício continuado, fora do
ambiente de ensaios, diluindo ainda mais a fronteira arte/vida. Em muitos momentos os
intérpretes se sentiram sufocados e com a criatividade estagnada, mas a grande conquista do
processo residiu na busca de mecanismos de fazer das limitações e dificuldades o ponto
inicial para novas descobertas na criação. Não foi, e não é, fácil! Não foi, e não é, leve!
É bom dizer que tenho profundo interesse pelos assuntos pertinentes ao ser humano
contemporâneo (principalmente suas mazelas), e é dele que quero falar, é com ele que quero
trabalhar, é ele que quero tocar. Sendo assim, ficou explícito no processo, um caminho
criativo e uma abordagem que conduzisse para esse pensamento. Talvez por isso, essa
pesquisa seja tão existencialista, tão calcada na relação do intérprete com sua psique
utilizando técnicas que possam levá-lo a revisar seus pontos de vista para subverter a
normalidade das coisas. A propósito do produto artístico que resultou deste processo, o
espetáculo De Água e Sal, o vejo coerente com esse pensamento.
Todo este processo vivenciado nesta pesquisa foi extremamente rico para os
intérpretes envolvidos, mas acima de tudo para mim que consegui concretizar algumas idéias
que sempre rondaram meu pensamento artístico, e que aprendi profundamente sobre as coisas
básicas da vida e da arte. Talvez por isso a escolha do título De Água e Sal para o espetáculo
tenha se dado como uma analogia e metáfora do suor, da lágrima, do básico, do essencial e até
106
do biscoito de água e sal que tanto serve para nutrir organismos descompensados. Também se
refere ao mar, imenso e misterioso, com sua água salgada que mistura, agita, acalma, funde,
absorve, e numa visão mais mística, nos limpa e traz novas energias.
107
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PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. Trad. Maria Helena Nery Garcez. São Paulo:
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PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia (org). Lições de dança 1. Rio de Janeiro: UniverCidade
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Mae (org). O Pós-modernismo. São Paulo: Perspectiva, 2005.
Variações:
3. Um deve pensar numa seqüência de movimentos por 30 seg, dado este tempo o outro
diz VAI e este realiza a seqüência imaginada.
O MVA na maior parte de sua realização era dirigido para o sistema motor com foco na
ação dos músculos, ossos e alavancas. Entretanto experimentamos o mesmo exercício
com foco em outros sistemas do corpo como podemos ver nos exercícios abaixo;
6. MVA com outro tipo de estimulação. O comando deveria ser dado às partes do corpo
não relacionadas diretamente à mecânica do movimento. Ex: torcer a língua, espremer o
coração, dilatar a pupila, deixar a bexiga cair, escorregar o estomago, jogar o coração
113
para o lado, girar o fígado, esmagar o umbigo, subir o tímpano. A partir destas imagens
é que se produzia o movimento corporal. O corpo deveria responder fisicamente a estes
estímulos imaginados.
Exercício executado em duplas, que consiste em um falar uma palavra e o outro falar
outra palavra por associação, e assim sucessivamente por 10 minutos. A pessoa não deve
pensar sobre o que vai falar, ela fala a primeira palavra que consegue associar com a palavra
que o outro falou anteriormente. Diálogo ao final do exercício com observações. Exemplo:
pessoa 1 fala: chiclete; pessoa 2 fala: cola: pessoa 1 fala: escola; pessoa 2 fala: criança; pessoa
1 fala: liberdade; pessoa 2 fala: fazenda, etc.
Variações:
2. Mesmo exercício anterior, só que agora as duplas atuam com mesmo propósito e
contam suas histórias simultaneamente, um olhando para o outro. Cada um deve, além
de contar sua própria história, tentar captar algumas palavras da história do outro para
desenvolver trechos de sua história. Neste exercício observou-se que como uma pessoa
ficava de frente para a outra cada um detectou que houve um aumento da percepção
física do outro. Como não havia possibilidade de desvencilhar a atenção da história
contada, uma outra atenção foi acionada para manter o foco na pessoa à frente. Diálogo
ao final do exercício com observações.
Variações:
4. Mesmo exercício acima, mas agora realizado com movimento corporal. Um realiza
movimentos e quando o outro quiser ver outras possibilidades de movimento ele pede
para o executor mudar. O executor deve buscar uma gama de possibilidades para
realização de movimentos corporais, com qualidades diferenciadas, dinâmicas etc. O
exercício também pode ser realizando com outras regras como só se pode realizar
movimentos pequenos, ou só com tronco etc. Diálogo ao final do exercício com
observações.
O exercício com vendas nos olhos pode ser realizado de diversas formas. Inicialmente
é importante experimentá-lo sem nenhuma regra definida, onde o executor possa estar livre
para a experiência da percepção da vontade de seu corpo. Após algum tempo dessa vivência é
interessante criar alguns jogos.
116
Variações:
1. executar uma frase de movimentos já elaborada com vendas nos olhos, sem música, ou
com música.
3. em duplas, um com venda e o outro sem, o que está sem vendas conduz o outro
provocando sensações neste por meio de vários estímulos diferentes, fazendo-o
caminhar em solos com texturas diferentes, tocar em objetos diversos, cheiros,
temperaturas, sabores. 20 minutos para cada pessoa.
1. cada intérprete deveria pensar, fora do horário do ensaio, em alguma situação que eu
(Giselle) nunca tivesse visto ele fazer desde o momento que nos conhecemos. No dia
seguinte ele deveria fazer uma improvisação sobre essa proposta.
3. Frase para improviso ‘Eu num quarto branco. É assim...’, cada intérprete em paralelo
com os exercícios vivenciados deveria ir construindo uma dramatização a respeito desta
frase. Esta foi uma forma de incitar os intérpretes a exercitar os descondicionamentos
observados nos exercícios, e também exercitar o improviso dentro de um contexto mais
definido.
dançar imaginando que está numa paisagem campestre, ou ainda, dançar a seqüência
tentando trazer a sensação de um gosto amargo na boca, ou de algo doce etc.
118
Márcia Lusalva
Bom, vc já viu que estou completamente empacada nesse relatório, né?! Então resolvi
escrever um pouco sobre essa dificuldade que estou tendo p/ ver se encontro uma maneira de
explicar o que é o processo p/ mim.
Como falar de um processo que não tem um início, não tem fim e não tem forma
Acho que p/ fazer esse relatório vai ter de ser pela anarquia porque quando fico
pensando em tudo o que é o processo p/ mim é tanta coisa que vem que fico paralisada, ou se
tento sintetizar o processo em um foco ou no que é essencial dele chego quase sempre no
182
Os relatórios apresentados aqui foram anexados de acordo com seus originais.
119
E dizer isso pode até explicar fundamentalmente o que é o processo, mas não o
descreve, define, detalha. Então p/ fazer esse relatório, declaro a mim mesma e
conseqüentemente a vc que me é permitido descabelar a linguagem. Ou seja, Eu posso mudar
de assunto sem finalizar um pensamento. Eu posso ficar pedida divagando. Eu posso me
contradizer ou mudar de idéia. Eu posso não chegar a lugar algum. Pois assim também é o
processo.
E depois de estabelecido que o Eu pode tudo. É importante que também fique claro
que o “relatório” é uma visão pessoal, particular e no final das contas nada está certo, nada
está errado e tudo é verdade.
Bem, então sorte p/ nós duas. P/ vc que vai ter de ler minha confusão e p/ mim que
tive de fazer um manifesto anarquista p/ fazer tudo certinho como sempre. Tudo isso posto
vamos ao bendito.
Vejo hoje o Basirah muito mais próximo de seus impulsos iniciais de criação, gerando
assim um espaço de pesquisa, discussão, troca e desenvolvimento da linguagem artística
(teatro/dança). Nesse sentido então o processo surgi como um reflexo ou uma conseqüência
da uma história vivida até aqui.
Então o processo, também é ressonância da vivencia dela (Gisele) até aqui: o Endança,
o não Endança, Londres, o momento que ela improvisou c/ um desconhecido e tudo foi
bárbaro (tudo que aconteceu foi exatamente o que era p/ acontecer pq era. E o fato de o ser
com integralidade substanciava o nada em tudo naquele momento) e isso criou algum
entendimento subjetivo/ pessoal a ser melhor compreendido, o dv8, o que viu, o que fez, as
várias criações, a presença do Howard, a maternidade, o mestrado e por aí vai.
O processo sendo reflexo de tudo isso se mostra então como uma projeção para o
futuro num encaminhamento natural que segue seu rumo.
120
Agora agregado a isso tudo existe tb o meu processo particular, que caminha com o
dela em simultaneidade (não sincronia ou igualdade) em espaços diferentes de ação busca e
entendimento. Então, esse meu processo, dentro do processo dela é... O que?! Como? Pq?
Meu Deus, Para o mundo que eu quero descer!!!
Como falar do processo? Por onde? Vamos tentar desse jeito: O processo p/ mim se
da em vários níveis e p/ falar de alguns desses níveis vou recortar o eu em vários aspectos p/
falar isoladamente de cada um, mas na realidade tudo é um caos.
No grupo – Esse processo é o melhor momento p/ mim no grupo onde me sinto mais
envolvida. Nesse momento em particular sinto mais a troca e a flexibilidade entre as pessoas.
E a mudança estrutural p/ mim são as rodas de conversas que me acrescentam imensamente,
pois é nesse momento em especial que a troca se promove que podemos perceber com mais
clareza os estímulos e caminhos de criação. E o próprio ato de verbalizar sobre a experiência
nos obriga a pensar, compreender o que geralmente é só vivenciado de maneira inconsciente.
121
O bom tb é que esse processo cria um espaço onde minhas inquietações e meus focos
podem ser explorados e trabalhados em paralelo com os da Gisele, e é claro que eles estão
sendo orientados, estimulados ou até induzidos por ela, mas existem espaços dentro dos
estímulos que permitem e exigem de mim como interprete voz... que eu me coloque , que eu
faça, que eu encontre o que eu quero diante daquele primeiro estimulo. Que eu tb me torne
responsável pelos estímulos, pelas perguntas, pelas respostas, que eu esteja presente no
processo p/ mim.
Como interprete me sinto mais aproveitada nesse processo do que em qualquer outro
no Basirah.
A história – É claro que o processo tem uma historia anterior a ele que o conduz a esse
ponto. E como ilustração disso vou recuperar alguns trechos de registros pessoais do processo
122
Obs: Vc pode pular essa parte dos registros pessoais se quiser. Eu nem sei se vou
comenta-los depois, talvez só sirva de ilustração do meu processo criativo.
Bsb 23/05/2000
Me sinto burra...
Talvez eu devesse ser despida da sensação tátil do mundo para recriar o sentir
Eu quero vomitar a liberdade que está trancada em algum lugar aqui dentro.
183
Uroboros foi o último espetáculo do Basirah anterior a esta pesquisa realizado sob minha direção.
123
Bsb 24/05/2000
Dia ruim. Acho que comecei a entrar em crise total hoje. Cheguei numa quantidade
S/ Data
Encontrar uma maneira nova de ver. Tudo é normal, como a natureza...é o que é. O
som não é melhor que o silêncio e nem o movimento é melhor ou pior que o não
Escutar,
Tempo,
Desapegar,
Relaxar,
O simples, a busca do é.
“Uroboros –
Relaxar.
A relação é comigo.
Nada é eterno.
Eu sou destra.
Respeitar o tempo,
Respeitar o eu,
Só sinto, só sinto...
Talvez seja algo que ainda não entendi e por isso não sai do meu corpo,
pele.
Tenho de me ver tão de dentro, que por vezes até parece que estou do lado de
Pq eu não vôo?
Eu guardo tudo dentro de mim, e hoje em dia não consigo nem flutuar.
E agora isso!!!
Mas, mental?!!!
Mental???
Só tinha certeza do que eu achava que sentia. E agora todo esse sentir só
Exponho tudo isso p/ ilustrar que o processo vem vindo de antes em um continuo de
perguntas geram outras perguntas e os ecos perguntas seguem. E o processo se desdobra em
perguntas: O quê? Por quê? Como? Quando? Será que meu processo é sempre esse?
Mas processo não é só esse som antigo, ele também tem características próprias
pertinentes a esse processo de agora em particular.
corpo, as crises pessoais e etc. Como pesquisar o orgânico e depois marca-lo? E como tornar
o marcado orgânico novamente? Como o interprete pode se manter presente em si em cena? A
criação de alguns mecanismos estruturais combinando elementos marcados c/ elementos
livres como por exemplo: coreografia que combina tempos marcados, pontos marcados e
percursos livres. Coreografia de movimento marcados c/ exploração de tempo e dinâmica
livres, regidos pela escuta (consciência) de si e dos outros mantendo um equilíbrio entre as
formas propostas. Elementos de movimento com tempo fixo, e percurso livre. Elementos de
movimento c/ tempo livre e percurso fixo e etc. Ou seja, uma serie de mecanismos ou chaves
estruturais do produto que no permite estar sempre em desafio, tornando o espetáculo uma
pratica e não a reprodução de algo. Mantendo o interprete ativo e presente pois mesmo que
esse não faça nada de diferente o outro poderá fazer.
Que droga!!! Eu dou uma volta enorme e parece que sempre volto p/ mesmo lugar, o
mesmo ponto: consciência, autoconsciência. Os Gregos gritando novamente Conheça-te a ti.
Decifra-me ou te devoro. É destino se impondo. A necessidade de manter-se na justa medida.
inovador, ou inusitado, ou a negação dos meus padrões. O autentico é tão somente o que é
verdadeiro e o processo vem reconhecer e validar , como em um cartório, o meu processo
artístico. Me conscientizar do que é verdadeiro e também me mostrar onde são só os meus
padrões e seus mecanismos de defesa atuando, e por mais que os sinta como verdadeiro só
será genuíno quando auto consciente (que confusão ,né?!).
Acho que isso já é um monte de luz se acendendo, já nos apropriamos até de nossa
linguagem enquanto falamos na roda, já se fala de alargamento de padrões e não em quebra
somente, as pessoas falam de suas linguagens, entram em crise, se pensam, se repensam, se
percebem, se assumem (mesmo que fugindo).
Lina Frazão.
Difícil falar sobre o processo quando se está exatamente no meio dele, ainda embutida
no meio das informações e das conseqüências dessas. Para mim, particularmente, tem sido
extremamente interessante. De certo modo, eu acho bem complementar a todas essas
informações que eu tive morando 8 anos na Holanda. Porque na Holanda, o maior foco de
informações que eu tive acesso, foi mesmo sobre a técnica e o virtuosismo, o espaço, a
qualidade de movimento, etc. Sempre, sempre trabalhando com o controle do corpo, da
mente, do movimento, das emoções. Sempre trabalhando com o apuro técnico, a limpeza dos
movimentos. Então para mim, trabalhar as imagens e a manifestação do inconsciente foi,
129
digamos assim, uma surpresa. Toda essa dinâmica de deixar o inconsciente se manifestar,
deixando que as imagens surgissem sem interferência seletiva foi muito interessante para
mim.
Mas tudo isso foi passando depois de um exato dia em que você me deu um feedback,
e a partir desse dia, ficou muito mais fácil para eu ter clareza e poder ir me aprofundando. Eu
ainda me vejo te observando muito atentamente, tanto no falar, quanto no mover, porque essas
informações, esse “subtexto”, ainda me ajuda muito a ter ferramentas mais palpáveis. E,
embora Marcinha e Rachel digam que não, que não, que não, eu me via sim com mais
dificuldades de acessar suas informações do que o resto do grupo que já passou outros
processos criativos com você. Por agora, eu confesso que o seu dialeto já se torna mais
codificável. Então eu vou pegando mais ou menos o que eu entendi, e trabalhando por mim
mesma. Algumas vezes funciona, algumas nem tanto. Mas eu já não sinto mais aquela
necessidade de ter feedback como antes. Até porque eu sinto que as informações que você me
dá já me alimentam.
Então, por agora, eu estou sim, bastante feliz com tudo que se tem passado. Não que
eu não estivesse satisfeita; desde o início, o desafio de estar neste processo me instigou
bastante. Mesmo estando um pouco perdida, o procedimento todo tem sido muito sedutor. Eu
digo isso, porque pra mim, tem ocorrido determinadas fusões com minha vida pessoal, com
minha dança (se é que algum dia se pode separa-las). Pra mim, o principal foco tem sido
mesmo não se esconder atrás do corpo: me expor tem sido com certeza, o que me causa mais
frio na barriga. Sempre é muito fácil estudar a técnica e se esconder atrás dela; o virtuosismo
deixa os corpos muito turvos, e pode esconder o intérprete. Por isso acho que trabalhar a
transparência como intérprete tem sido o meu maior ganho. Ainda não digo o mesmo como
pessoa, mas também não acho que isso seja necessário. Mas é por isso, que toda vez que eu
130
vejo a Dorka chorando, eu a vejo tão bonita. E eu acho isso lindo nela; tanto a transparência
dela no movimento, ou a transparência dela como pessoa.
Eu também gosto muito de observar o rosto das pessoas no momento em que elas
estão observando alguém dançando. Elas ficam sempre muito transparentes e é possível vê-las
embuídas (ou não) naquilo que elas estão observando. A Marcinha, por exemplo, está sempre
sentada muito ereta quase que como acompanhando algo muito importante e solene. No outro
extremo, o Alessandro ta quase sempre com cara de sono, e eu acho isso engraçado...
Alessandro Brandão
Já no início não criei nem uma expectativa. Deixei que os exercícios me propusessem
e me levassem. E dentro das propostas fui o mais sincero possível e consciente. Até hoje
sinto que já passei por duas etapas: A conscientização, quando tudo era analisado e pensado.
A subconscientização, que começou com a imaginação ativa.
uma procura da conscientização e aceitação do que você é. Trazendo essa riqueza para a
atuação, a interpretação ou como quer que se chame o ofício do intérprete.
Eu não quero falar de cada exercício e sim do que esse processo vem causado em
mim. Pelo menos até aqui é isso!
Lívia Frazão
Foi bem difícil começar e manter uma linha de raciocínio clara para falar sobre o
processo e as descobertas feitas, já que são muitas e confusas. Portanto, se você não conseguir
entender qualquer coisa, me avise. Acho que as abordagens têm sido bem diferentes e
bastante pessoais, então vou começar pela pergunta básica: o que eu busco nesse processo.
No início, eu não sabia muito claramente o que eu procurava dentro do processo, mas
eu me preocupava em me manter aberta às propostas e, principalmente, como bailarina, em ter
êxito: a pergunta mais freqüente depois de um improviso era se eu estava “conseguindo
realizar bem” a proposta. Quando me desapeguei desta idéia e passei a me colocar no
processo como investigadora, coisas começaram a fluir melhor. Depois percebi que,
conseqüentemente, a minha condição como intérprete (ou bailarina) no processo começou a se
alterar também. Descobri, então, que um dos caminhos que eu tentaria trilhar seria o da
pesquisa, mas agora com a abordagem do desapego e do “riso” (tanto quanto fosse possível, é
claro, já que todos temos egos perversos...).
133
Já o que ocorreu no dia específico, foi uma constatação do vazio, e não a questão
estética do meu movimento vazio. Naquele momento, já não importava se os movimentos
eram plásticos ou não, mas que não existia absolutamente nada neles: nem graça, nem beleza,
nem texto, nem subtextos, ou intenções, ou experimentação ou imagens. Não existia nada: até
um elefante dormindo em pé a balançar sua tromba diria mais coisas com esse gesto torpe.
Por esses motivos, acho hoje que não foi meu julgamento do tipo clássico, mas outro tipo de
julgamento: o tomar consciência. Mais cruel e poderoso que julgar-se esteticamente é tomar
conhecimento que aqueles movimentos estéticos não valem nada.
184
Sobre “caminho”, considero a percepção ou consciência da mudança, seja ela pequena ou não (nota da
autora do relatório).
134
perceber o silêncio, mas quando o meu estado emocional alterava meu estado corporal,
intensificando várias vezes os silêncios que brotavam. Mas eles ainda duram pouco. O
silêncio: essa tranqüila suspensão que parece não ter fim (apesar de ter). Vendo a Dorka –
que aliás foi a primeira pessoa que eu me lembro a comentar mais efetivamente sobre os meus
não-silêncios – percebi que existe nela um tipo de silêncio que não acaba, que é natural dela,
da sua tranqüilidade, que realça qualquer movimento que faça pois dá oportunidade e tempo
para adentrarmos nos movimentos e nas imagens.
Falando em imagens, tenho uma página do meu diário (do início do processo) que diz
o seguinte: “Minhas idéias e imagens fluem numa rapidez que fica difícil parar. Como numa
retroalimentação, as imagens impulsionam meu corpo e meu corpo alimenta minha mente
com novas imagens (a partir da percepção do meu corpo). Hoje, Giselle mencionou que o meu
corpo me domina. Acho que começo a entender... e aceitar...talvez!”. Mas algo se modificou,
já que hoje percebo que as imagens já não fluem com tanta rapidez, mas ao mesmo tempo
respiro mais tranqüilamente nas minhas improvisações e não me preocupo realmente. Não sei
o motivo delas diminuírem a velocidade, mas realmente não me importo agora. Me importa a
minha tranqüilidade e aceitação desta nova realidade. Não acho ainda que entendi realmente o
que significa ter meu corpo me dominando (tenho uma idéia nublada somente de que, em
algumas situações, essa fluência é uma indicação da minha falta de concentração: por
exemplo no exercício de falar/fazer), mas isso não vai ser uma preocupação como estava
sendo no começo do processo. Isso vai se esclarecer com as vivências.
Mas tem alguma coisa nessa frase que acho equivocada e utópica: quando eu escrevi
que, como numa retroalimentação, as imagens impulsionam meu corpo e meu corpo alimenta
minha mente com novas imagens (a partir da percepção do meu corpo), é por que soube
através das experimentações sobre essa retroalimentação (e isso é claro pra mim até hoje);
mas essa retroalimentação não acontece em todos os momentos e isso fica fácil de perceber. É
fácil perceber quando acontece e quando não acontece. E hoje já consigo perceber, mesmo
que seja de uma forma muito sutil, quando isso acontece com outras pessoas improvisando. É
como uma linha brilhante que perde seu brilho de uma vez e recomeça depois de um tempo a
ganhar força e brilho lentamente. Esse brilho quem impõe é a atenção de quem assiste em
conjunto com a coerência185 de quem improvisa, ou seja, a coerência da comunicação entre
185
Que não quer dizer uma lógica cartesiana (nota da autora do relatório).
135
interlocutor e receptor; e mesmo que as imagens e textos ditos e recebidos sejam divergentes,
ainda assim parece ter acontecido algum tipo de comunicação (ou relacionamento). Esse
relacionamento franco me interessa.
Aliás outra coisa que para mim é um avanço como observadora é ter percebido que,
mais e mais, consigo me comunicar com as pessoas, com as imagens e com o espaço ao meu
redor. Nunca tive muita paciência: nem para observar os outros/coisas, nem para me perceber.
Agora, para mim, está sendo bastante gostoso perceber certos detalhes nas pessoas e nas
coisas que são absolutamente comoventes, como o dia em que estava no sinal e percebi uma
mãe com uma criança de colo com seus 11 meses, um ano. Estaria tudo normal, se eu não
tivesse me absorvido com o detalhe da mãozinha da criança que mexia com o colar no colo da
mãe num gesto absolutamente displicente (característico das crianças), mas com uma total
atenção à sensação daquele ato. Era tão claro que me absorveu durante todo o tempo em que o
sinal esteve fechado.
Alisson Araújo.
De repente uma gota luminosa caiu em um rio escuro. Ela faz ondas curtas, quase
imperceptíveis para os olhos desatentos. A escuridão do rio continua e a gota goteja de tempo
em tempo. Sinto-a de maneira compassada.
A venda fecha os olhos, escurece a íris, sou o rio, sou água turbulenta e escura que
movimenta com o gotejar da gota... gota... gota... gota.
Uma sala de julgamentos transforma minha cabeça. Quem é o juiz? Acho que não há!
Essa consciência da ausência de juiz desestrutura a base. “Então pode tudo?” – Mas será? Se
pode porque fico ouvindo essa voz do advogado do diabo que não silencia nem um minuto?
O cansaço invade meu corpo e já não posso pensar... Embora dentro da cabeça uma
série de ligações vão sendo feitas. Algo que liga com algo. O curto-circuito é inevitável. Pede-
se ajuda da eletricista e dos demais voltz. Esclarece-me muito... certezas, incertas.
A gota cai. E o que sinto? Tem momentos que julgo que sei, outros acho apenas que
não tem respostas e outros que se há respostas não me foi compreendida.
Sou um rio escuro que aos poucos vou sendo reapresentado para meus afluentes. E
essa apresentação ocorre de maneira a aceitar a importância de todas as águas que dão corpo
ao meu corpo d’água.
Um grande vale se abre e posso escutar o som da minha voz onde esteja, embora na
grande maioria ouço-a retardada.
Sinto que ainda não consigo coporificar as gotas que gotejam em minha cabeça, mas
pelo menos já posso ver muitos afluentes sem renegá-los só porque há uma nascente nova.
Descobri que é muito mais importante somar as águas do que soterra-las.
137
Posso ver que nesse processo encontro-me muito mais em um estágio de compreensão
de como se dá o meu processo criativo, do que de criador. Embora esteja criando sempre.
A força de um interprete é a segurança com que ele joga no aqui agora de suas ações.
Pelo menos sei que só adquiro força como interprete quando ganho essa segurança. A
incerteza do que não existe me deixa temeroso. Julgo-me de minuto em minuto. Acabo
ficando muito mais no fora do que no dentro - pois costumo ficar percebendo a reação de
quem me olha.
Devo confessar que no início do processo não havia entendido o objetivo. Quando
ouvia falar do “sem julgamento”, “quebra de padrões”, “não premeditação”; sentia que era
para quebrar com a segurança do interprete. Hoje vejo que esse processo é uma lente de
aumento no processo criativo de cada interprete, para que consciente de suas “muletas”, possa
estar dando espaço para outros caminhos. Fortalecendo a segurança do interprete, de que ele
não precisa ir apenas por um caminho, mas que ele pode utilizar vários dialogando de maneira
que possa satisfazê-los no momento em que está executando a sua ação no espaço.
Dorka Hepp186
Bom, vou tentar escrever sem me julgar, senão vou precisar de cinco dias para
terminar este relatório... Eu fico tropeçando nas palavras, fico com dúvidas em relação à
escrita... Enfim, você vai ter que decifrar o que estou escrevendo!!! Já vai preparada porque
não sou nenhuma escritora e nem pretendo ser. E pior, não tenho a menor idéia do que vou
escrever! Como colocar as coisas de uma forma clara e objetiva, se na minha cabeça está a
confusão geral de informações???
Por onde começar? Pelo início talvez? Não! Ai, mas que dificuldade! É incrível como
eu não gosto de refletir sobre as coisas: faço de tudo para evitar pensar nas coisas que me
incomodam. Por que me incomodam? Isso eu não sei: como já disse faço de tudo para não
pensar nelas. Mas na verdade já falei bastante sobre o meu estágio no processo. É difícil falar
sobre uma coisa em particular porque estou percebendo que me vêm muitas informações de
uma vez só na cabeça! Fica difícil estabelecer uma ordem lógica para elas. Vou chutar sem
me preocupar se você vai entender ou não...
186
Esta participante não é brasileira, por isso a dificuldade da escrita.
139
mundo, e apesar dele ser uma pessoa bastante misteriosa, ele parece dançar completamente
“aberto”... Eu já sou mais retraída, mais para dentro. Ás vezes, eu sinto vontade de me rasgar
o peito para ver se sai alguma coisa. Por isso escolhi me pendurar na barra de peito aberto sem
poder me retrair. Eu quis me colocar numa situação de exposição para ver qual seria a
sensação que isso provocaria em mim... Foi bastante desconfortável, diria até mesmo MUITO
desconfortável. Tanto é que não sabia por onde olhar, quem olhar e como olhar de tão perto
(eu havia definido também não ficar muito longe do “público”). Mas ao mesmo tempo (o que
é legal), eu percebi que não era impossível, só falta a prática, aliás, MUITA prática!
Outra coisa que devo colocar é que inicialmente, quando comecei a pensar no que iria
apresentar, eu estava bastante preocupada com o resultado final, com o produto. Até que
percebi que esse não seria o caminho apropriado para mim: pois é, eu não me sinto com a
menor vocação para coreógrafa e duvido que isso ainda acontece! Então optei pelo
desconforto, mas, um desconforto que fazia mais sentido para mim, por que me provocava de
uma forma muita mais interessante para aquele momento. Mas mesmo assim, eu fiquei
frustrada, porque neste improviso, não havia nenhum comentário, ninguém podia falar nada!
E para mim, era importante saber se as pessoas tinham entendido o meu objetivo. Eu queria
muito ter falado para todo mundo (e até pensei incluir isso no improviso, mas achei que iria
soar como desculpa): “não olhem para o produto, mas sim para o caminho”. E eu realmente só
fiquei mais tranqüila (e um pouco menos frustrada) quando o Alessandro falou que três coisas
o haviam surpreendido nessas improvisações: a Rachel cantar, a Lina não dançar e eu falar. Aí
eu pensei: “bom, pelo menos consegui atingir uma pessoa!” Continuo sem saber ao certo se o
resto entendeu o que eu quis dizer/fazer, mas já vale por enquanto.
Quando veio o segundo improviso “me mostre alguma coisa que eu nunca vi você
fazer”, aí eu pensei: “estou frita”. Como eu vou mostrar alguma coisa que ela nunca viu se eu
mesma nunca me vi fazer alguma coisa diferente, afinal sou uma pessoa MUITO normal, que
nunca faz coisas diferentes! Mas bem, eu também tinha resolvido não me importar de novo
com o resultado final... E incrivelmente, foi muito menos sofrido de que para o primeiro
improviso. Não quis me torturar para achar algo “interessante” para mostrar, e decidi ir pelo
mesmo caminho da outra vez. Por isso, eu procurei pensar na minha vergonha, no meu
desconforto em fazer algumas coisas. Esse seria meu “Start”. Aí me veio a idéia dos
palavrões. Era bastante simples, mas não havia erro. Eu até achei divertido fazer. Mas me
arrependi um pouco porque tinha pensado em escrever uma lista de palavrões no papel para
poder lê-la, mas aí, mais uma vez fiquei na dúvida e acabei não fazendo (achei que ficaria
140
menos natural). Mas então os palavrões não vieram de uma forma fluida, e agora acho que
deveria ter feito esta lista. Poderia ter imaginado um outro jeito um pouco diferente (e mais
elaborado) de aproveitá-la. Mas os erros estão aqui para a gente aprender com eles, e, pelo
menos desta vez, não fiquei frustrada... o que já é um grande avanço para mim!
Não posso dizer também que achei o “produto final” super legal, mas, mais uma vez, o
caminho/processo é que realmente foi importante para mim neste caso. Não vejo o que
poderia dizer ainda sobre este assunto...
Agora o famoso quarto branco. Bom, acho que já falei tudo sobre isso logo depois do
improviso, mas já que é para colocar tudo por escrito, então vamos lá!
Na primeira tentativa (na qual só falava... e chorava – apesar de não estar nos meus
planos), acredito que não devo acrescentar nada, acho que ficou bem claro para todo mundo
(pelo menos eu espero!). Mais uma vez, era importante e imprescindível ser sincera comigo
mesma e frente ao público. Aliás, não vejo mais (e acredito que sempre foi assim para mim)
como não ser sincera, porque é de lá que posso tirar a minha força: na minha sinceridade, nas
coisas que realmente existem dentro de mim e que possam me oferecer material para atuar/
representar/ dançar. Eu não consigo conceber algum improviso estruturando ele inteirinho,
pensando em tudo antecipadamente. Para mim é impossível: não gosto de estruturar demais,
isso me atrapalha. Sou muito virginiana e quando faço esse tipo de coisas, fico muito pouco
flexível para mudar depois na hora de apresentar. Por isso prefiro ter alguns pontos de
referência e seguir a minha vontade (sensorial e/ou emocional). Eu fico então mais aberta e
receptiva aos impulsos e informações que recebo, e principalmente, fico livre de poder usá-los
da forma mais sincera para aquele momento. Foi o que aconteceu na segunda tentativa. Eu
tinha alguns pontos de referência, mas não quis estabelecer nenhuma estrutura fixa e rígida.
Eu tinha pensado em alguns elementos e me deixei completamente aberta para usá-los ou não
na hora do improviso. E o engraçado, é que, vários elementos que eu havia preestabelecido,
como, por exemplo, cantarolar, usar o cantinho da sala, me vieram naturalmente. Não tive que
fazer esforço para que eles acontecessem. Não consigo me lembrar muito bem do que eu fiz, e
não tenho a menor noção do tempo que levou a improvisação, mas eu fiquei bastante
satisfeito com o que fiz. Deu-me vontade também de falar, antes de começar, de que
provavelmente ficaria um pouco brega, mas que assumia isso como parte do meu processo.
Mas mais uma vez achei que fosse parecer que queria me justificar, me desculpar, e acabei
não falando.
141
Como já disse, até agora não estava preocupada com o produto e ao contrário, estava
sendo muito mais importante o processo do que o resultado. Me provocar, me cutucar, atingir
as minhas fraquezas é o que realmente me importava. Só que fui percebendo que as pessoas
estavam elaborando cada vez mais as suas improvisações. Aí eu pensei: “será que não está na
hora de eu elaborar um pouco mais também? Será que não estou me conformando de uma
certa forma, já que fico achando o tempo todo que o que importa é o meu processo... talvez eu
esteja com medo de dar o passo para frente elaborando mais os meus improvisos... medo de
não conseguir fazê-los parecer mais “maduros”... e talvez eu não conseguirei fazer isso nunca
por não me achar capaz disso!?!?” Agora complicou tudo! Já saí da fase de achar que tá tudo
legal e entrei em conflito comigo mesma de novo! É exatamente aqui que entram... OS
ÓRGÃOS.
Nossa! Essa foi difícil! Eu estava com a auto-estima um pouco abalada (e ainda estou).
Estava achando tudo o que fazia medíocre. Na verdade, no exercício, nem estava conseguindo
acessar os meus órgãos e isso me deixava bastante frustrada. Eu estava fingindo que os
acessava. Representava, e isso me incomodava demais! Até agora não assimilei muito bem
esta parte do processo... Não sei o que houve ao certo. Esta parte do processo realmente está
me incomodando demais. Sentia até um pouco de preguiça toda vez que a gente ia trabalhar
com isso! Na verdade, eu queria ter insistido um pouco mais nos exercícios sem ter que me
preocupar com um improviso, uma frase para construir. Eu não “dominava” o exercício (não
que seja necessário o domínio completo, mas pelo menos um pouquinho mais do que estava
conseguindo fazer), e isso me desanimou bastante! Voltou a virginiana: tudo dentro da
perfeição senão, não serve!... Mas é isso, não sei o que dizer mais sobre este assunto porque,
na verdade, eu não assimilei muito bem. Acredito que, por isso, quando começaram a
conversar sobre o assunto, fiquei completamente perdida, sem entender nada. Foi horrível
porque me senti uma perfeita idiota e ignorante! Senti-me distante do resto das pessoas...
apesar de achar que algumas dessas pessoas devem estar numa situação um pouco parecida
com a minha (ou talvez eu queira me consolar achando isso!).
Em relação aos improvisos em si, procurei não pensar muito no meu estado de espírito
(a preguiça, a auto-estima baixa...), e resolvi encarar como mais um desafio para superar.
Arriscaria até dizer que foi divertido fazer a criança da Raquel. Engraçado, porque quando
nos foi pedido para colocar uma personagem, a primeira idéia que me veio na cabeça para a
Raquel, foi um débil mental. Mas aí, fiquei com um peso na consciência e optei por um
epiléptico. Agora entendo de onde surgiu esse débil mental: é assim que estava me sentindo,
142
uma débil mental, incapaz de acompanhar os comentários de fim de aula! Credo, que
horror!!!!!... Mas enfim, voltando ao assunto da criança da Raquel... Sim, então, achei legal
ter tido a oportunidade de explorar um lado meu que só revelo aqui em casa, tendo somente a
Luiza e o Livino como espectadores. Foi divertido “interpretar para valer“ uma criança. Bem,
na verdade, estou me lembrando que já havia feito isso em público antes, na experiência
infeliz com Hugo Rodas: SO-SA-SUS-COR e a INFELIZ boquinha da garrafa (estou
exagerando um pouco, só não estava preparada para este tipo de “humilhação”).
Mas infelizmente (?), eu não consegui ver por onde esta criança poderia me levar e
preferi colocá-la de lado por enquanto... Quem sabe ela aparece de novo mais tarde neste
processo. Eu fico dizendo o tempo todo “a criança da Raquel”, mas eu também tenho uma
criança muito presente dentro mim, e só não a revelo tanto quanto ela porque tenho
vergonha... Mas que às vezes ela quer sair e aparecer, isso eu não tenho a menor dúvida: eu é
que não a deixo sair! Por isso, prefiro não dizer que a abandonei, mas sim, a coloquei de lado
esperando um outro momento para faze-la aparecer de novo. Bom, pelo menos é o que desejo,
agora, vamos ver se acontece!
Para o último improviso da quinta-feira passada, eu admito que não estava (e estou)
nem um pouco convencida do que iria fazer e do que acabou sendo. Eu não sei, estou indo
muito numa direção meio “pesada”, meio “dramática” demais, e estou começando a ficar
entediada com isso. Pareço que não saio daquilo, e para ser sincera, nem sei de onde vem!
Mas o fato é que isso sempre volta e aparece nos meus improvisos. Acabo me achando uma
pessoa chata, dramática, repetitiva, pouca criativa e pouco feliz. Bom, mas talvez eu tenha
justamente que esgotar este lado meu para ver onde ele possa me levar. O que eu vou poder
extrair dele. Talvez até não seja nada, mas isso só vou poder descobrir mais tarde. Por
enquanto, prefiro ser levada e deixar as coisas acontecerem. Não quero me “forçar” a nada,
quero poder ter o tempo de fazer as coisas do jeito que eu achar melhor para mim, e eu mesma
fazer as minhas escolhas. Ou seja, agir de uma forma que sempre me foi negada quando eu
era pequena: as pessoas escolhiam tudo para mim, e pior, me diziam até o que deveria sentir,
dizer e achar. Acredito então, que o meu caminho seja este: me libertar, libertar este grito do
qual falei no início do processo, e que me persegue há muito tempo. Pegou um tom
terapêutico, eu não queria que isso acontecesse, mas eu vejo que preciso passar por isso para
poder seguir em frente. E, aliás, como poderia fazer um movimento autêntico se eu mesma
não sou autêntica, e para isso, eu devo me conhecer por intera. Vou parar por aqui porque o
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discurso ta ficando meio brega. Então é isso. Qualquer dúvida, pode me perguntar, ou se você
quiser saber outra coisa, pode entrar em contato comigo.
Diego Pizarro
Nesse momento, já tendo passado o período de adaptação (às vezes penso que ainda
não) e inserção no processo proposto, meu corpo encontra-se “estranho”. Parece que ele não
está como sempre esteve em sua relação descompromissada com o espaço. Parece que
qualquer movimento, por mínimo que seja, chama a minha atenção para a sua relação com o
espaço, com o ar que está sendo deslocado a partir da movimentação até mesmo involuntária.
E essa estranheza é tão latente que eu sinto como se meu corpo estivesse mudando de
tamanho, talvez porque esteja percebendo-o melhor. Eu me sinto como um bebê que admira
sua mãozinha, conhecendo-a e explorando-a, pegando o seu pezinho e admirando-o. Como se
as células e os tecidos estivessem transformando-se, e o que está sendo transformado é
simplesmente a minha atenção, ou talvez não.
Por causa dessa relação diferente que estou tendo com o meu corpo, as aulas de dança
fazem com eu perceba vários movimentos executados sem atenção anteriormente, mas que
agora partem para uma sensação mais interna de que partes corporais estão sendo trabalhadas.
Mas eu sou o meu corpo, e essas mudanças eu acredito que são reflexo da minha própria
mudança de “pensamento”. Estou passando por uma fase muito importante de auto-
conhecimento e reflexões sobre a minha colocação perante a vida, perante o espaço, perante a
arte principalmente. Por isso a mente interfere no corpo de maneira a fazer com que ele se
coloque no espaço de uma forma mais consciente.
Nesse sentido, eu acho que o processo vivido até agora com o grupo está sendo
riquíssimo para o meu desenvolvimento pessoal, seja artístico, corporal ou mental. Mas
também me coloca em situações em que eu não sei o que fazer, há momentos em que eu
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travo, principalmente quando a palavra é: “Eu num quarto branco é assim”. Ou seja, criar uma
performance artística a partir de um estímulo que é esta frase, e pensando em todos os
exercícios vividos como experiência até agora parece simples. Mas como trazer para o
movimento algo a ser dito a uma platéia? Será claro o que estarei dizendo, ou cairá sempre
numa abstração sem fim? O que é que eu quero dizer?
Esse período de “folga” que eu tive maior que os outros, pois estive duas semanas sem
participar do processo, fez com que eu percebesse as mudanças já em conseqüência do
trabalho. Com o corpo e a mente descansados, pelo menos da experiência com o grupo, eu
pude sentir diferenças. Estou ansioso para continuar com o processo, pois quero ver como é
que será minha movimentação depois desse período de reflexão, talvez seja como sempre foi,
mas a percepção pelo menos já está um pouco alterada, para o bem, creio eu.
Micheline Diniz
Transbordar
O processo criativo começou como uma proposta que vinha de fora para dentro. Isto é,
começou com os estímulos e sugestões que vinham da Giselle e que eu não sabia ao certo
onde ela queria chegar. Nesse momento, percebo que o processo criativo é uma gestação que
cada um de nós vivencia separadamente e a cada dia que passa ganha mais força.
Embora eu ache que o processo criativo tenha se tornado bastante individual, isso
aconteceu de forma natural. Afinal, a busca do intérprete é pessoal e é preciso exercitar o
artista-expedicionário. Acredito que é extremamente importante estarmos “juntos”, pois
145
Realizamos até agora vários exercícios. Primeiro começamos pelos mais mentais até
chegar àqueles que geram movimento. Quanto aos mentais acho que tenho mais facilidade. A
dificuldade está naqueles onde é preciso gerar movimento. A transformação de algo que é
mental para o movimento é mais delicado, mas também não acho que está aí o problema, pois
o exercício diário estimula a criatividade e acredito que com o tempo aparecem bons
resultados.
Quanto às improvisações, ainda não estou construindo nada que vá se tornar maior.
Gostaria de já estar com as minhas atenções mais voltadas para uma direção, pois me sinto
‘em aberto’ e isso dificulta um pouco. Mais tudo bem! Não é porque não tomei uma direção
que o processo não esteja sendo muito intenso pra mim.
conclusão, que parece óbvia, mas com muita consciência, de que quero mesmo produzir
movimento.
Estive pensando que meu corpo dorme. Quando descobri isso me assustei um pouco,
porque eu sou uma intérprete bailarina! Se meu corpo dorme eu não sou nada! Mas graças a
deus eu sou uma pessoa insistente, e se meu corpo dorme, eu vou acordá-lo.
Nesse momento meu olhar se volta para saber como deixar as emoções e sensações
extravasarem os limites do egoísmo. Ou seja, como deixar que essas sensações que eu sei que
existem, e sei que são interessantes, sejam vistas pelo observador.
Alguns dias depois dessa observação que fiz pra mim mesma, estávamos em roda
conversando sobre o improviso daquela manhã e começamos a falar sobre a busca da
identidade de cada intérprete, sobre assumir a sua identidade, sobre não Ter que atender à
expectativa do outro e do tão falado julgamento, que é tema recorrente de nossas discussões.
Nesse momento comecei a perceber que talvez não seja preciso quebrar nenhuma
casca de ovo para que venha nascer o movimento. Talvez seja melhor relaxar, dilatar meus
poros para que o movimento saia tranqüilo sem Ter que romper barreiras. A casca que impede
o movimento deve ser desintegrada e não quebrada, dando lugar a “expressão movimento” e
assim, de forma generosa, mostrar sentimentos, sensações, idéias e vontades, críticas...
Outro susto. Será que essa casca do ovo é o tão falado julgamento que fazemos de nós
mesmos! Se isso for verdade, ele é muito mais pernicioso do que pensei. Eu nunca duvidei
que ele existia e que estava presente, mas tinha certeza que ele não estava me atrapalhando
tanto.
Não quero pensar porque o julgamento existe e está presente em nossas vidas (pelo
menos nesse momento, pois isso daria uma dissertação de mestrado, mas me afastaria do meu
objetivo de agora que é voltar a dançar), quero apenas me livrar dele, e é nisso que vou
concentrar minhas atenções, sem esquecer que é preciso relaxar.
EXPRESSAR-EXPOSTO-EXTENSÃO-EXPLOSÃO-EXPRIMIR-EXPLORAR-
EXPELIR-EXPULSAR-EXISTIR.
Livia Bennet
O emocional ainda é muito forte no processo de cada um. E no meu caso, o que senti,
foi que o meu emocional estava me levando para outro caminho. Com isso, acabava que fugia
um pouco da proposta, pois queria expor o que verdadeiramente estava sentindo naquele
momento. Isso ainda acontece, mas está menos evidente, ao que me parece.
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O meu primeiro improviso – Quando foi pedido para que apresentássemos algo que
quiséssemos falar, já tinha claro na minha cabeça o que eu gostaria, mas como fazer isso? Há
dois anos atrás tive vontade de falar sobre uma tal situação. Não que estivesse estudando isso
durante todo este tempo, mas li algumas coisas e vi outras. E muito legal também, foi que a
seqüência coreográfica dada e pedida para que estivesse inserida na improvisação, deu muito
certo com o que eu queria falar. O tempo foi muito curto, tanto de pesquisa quanto de
execução. Difícil então saber se tem futuro ou não, mas quando dá, ainda estudo sobre o
assunto.
Segundo improviso – fazer algo que a Giselle nunca tivesse visto em você. Logo
pensei na minha primeira ação: colocar a língua no nariz. Bizarro, mas pouca gente consegue
e ninguém me vê fazendo isso. E os outros vieram depois. Com o nervosismo não consegui
fazer lento o que era para ter sido feito, mas foi. É muito estranho, eu me senti uma outra
pessoa. E lógico, morrendo de vergonha. Muitos ali me surpreenderam.
Terceiro improviso – O que pensei que fosse ser fácil e acabou se tornando o bichão
de 1000 cabeças. “Eu num quarto branco é assim”. Essa era a frase que tínhamos para
trabalharmos.
1ºdia – Me veio logo na cabeça o que eu queria trabalhar. Era muito nítido para mim o
que eu sentia em relação aquela frase. E acabamos com isso fazendo “Eu num quarto branco
sou assim”. Fizemos e tudo bem. Enlouqueci, era tanta a minha agonia de estar ali, naquele
quarto branco que para mim era totalmente fechado, que saí me debatendo. Nesse dia foi
pedido que trabalhássemos para a próxima semana a cena mais estruturada.
2º dia – Estruturei toda minha cena. Fiz o meu quarto, coloquei um figurino e uma
música. Quando escolhi a música sabia que ela seria muito comprida, mas mesmo assim quis
usa-la. E foi assim no dia da apresentação. Senti que era hora de parar, mas ao mesmo tempo
queria usar toda a música. Não foi o meu pior dia, mas senti este desconforto. Me foi pedido
novamente para que apresentasse na outra semana. Já comecei então a ficar mais louca. Nada
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me vinha a cabeça. Nem uma idéia, nem um estímulo, nada. Mas queria continuar trabalhando
com aquela sensação, de agonia e de eterno sufoco.
3º dia – Cena sem música. Pensei nessa estrutura algumas horas depois da conversa
que tivemos depois do improviso da Micheline. Não que tivesse haver,, mas algumas idéias
me vieram após a conversa. Imaginei o meu quarto cheio de objetos espalhados, e os meus
objetos no caso, seriam as pessoas. Era como se eu saísse tropeçando nelas, com aquela
sensação de agonia, querendo sair do quarto fechado sem poder. Bem, nesse dia, o dia da
apresentação, aconteceu tudo diferente: eu provocava o contato com as pessoas, fiz tudo
muito rápido e ainda consegui sair do quarto. Foi péssimo! Tudo bem! Sem julgamentos! Mas
foi tudo muito desesperado. Estava a um passo da loucura real! Seria caso de internação. E
novamente foi pedido que eu apresentasse na outra semana. Aí pronto! Pirei total! Passava
noites e noites pensando, conversava com alguém, e nada me vinha a cabeça. A única coisa
que pensava era: vou esquecer o que já fiz, pois não consegui avançar mesmo, e tentar fazer
uma outra coisa. Mas que coisa era essa, pelo amor de Deus? Aconselharam-me então a
escrever. Escrever o que eu sinto, como eu me vejo, e como é esse quarto para mim. Dois dias
antes do 4º dia de apresentação do mesmo tema, fui ao teatro assistir “Cascudo” com direção
de André Amaro. Muito boa e louca a peça. Os personagens não eram comuns. Não pela peça,
mas pela situação péssima que presenciei no teatro fui para casa mal e logo fui dormir.
Começaram a vir coisas para eu escrever e junto com a escrita vinham as imagens. No dia
seguinte escrevi tudo e já estruturei a minha cena. Teria também que ser sem música.
4º dia – Que alívio que tenho algo para mostrar. Não que fosse uma grande coisa, mas
eu tinha algo para mostrar. Isso foi muito bom. Fiz o meu improviso e usei o texto que havia
escrito. A minha cena não teve um fim, e mesmo se não continuarmos com este tema vejo
possibilidades de movimentação com o que foi feito. E o que mais ficou para mim foi a
insistência pela dificuldade. Poder trabalhar essa dificuldade. Foi um desafio que gostei de
vivenciar. Confesso que foi desesperador, mas muito enriquecedor.
Nem tudo que eu faço, nos meus improvisos principalmente, penso em todos os
exercícios que fiz até aqui. Mas sei que muita coisa mudou. Acho até que muita coisa fica no
corpo. Tudo que vivenciamos vem automaticamente.
Rachel Cardoso
Este processo tem sido um instrumento para que o intérprete “se assuma”. Ou melhor,
tem ME forçado a ASSUMIR MELHOR MINHA CONDIÇÃO DE INTÉRPRETE em
desenvolvimento. O que tem me ocorrido enquanto reflexão é que, para um artista assumir
seus “produtos artísticos” ele tem que primeiro se assumir (e para isso ele vai ter que entrar
em contato com o que ele é, como ele cria e se mostra).
Têm sido uma deliciosa descoberta do meu mundo criativo. Dentro da minha dinâmica
criativa de antes eu achava que realmente estava recorrendo a elementos “diferentes”. Este
processo tem me ajudado a me “forçar” a sair do confortável, onde eu caio muito fácil!!! Seja
151
porque é mais seguro (dentro dos meus julgamentos de que “devo fazer algo bom”), seja por
não ter a consciência dos caminhos que eu percorro na construção artística.
É muito bacana perceber nos outros os caminhos de cada um. É possível aprender
muito discriminando também o processo dos demais intérpretes envolvidos. Muitas das vezes
consigo perceber melhor no outro do que em mim. Só consigo discriminar alguma coisa
depois que sentamos e falamos sobre os exercícios e sobre o processo. Tem muita coisa que
ainda não me sinto segura, compreendendo e dominando. Até mesmo para falar a respeito.
Em compensação posso claramente perceber as minhas “preguiças” de escrever sobre o
processo; a falta de disciplina em procurar me aprofundar nas coisas que eu tenho
trabalhado... enfim!!!
Resumindo, a compreensão que estou tendo hoje de tudo isso é que este processo está
tateando e exercitando mecanismos que AMPLIAM AS POSSIBILIDADES DO
INTÉRPRETE. Não propõe ampliar a “criatividade” em si, mas as possibilidades do
intérprete se assumir de tal forma que o conceito de “criativo” se transforma em capacidade
de ser verdadeiro e inteiro naquilo que se propõe a mostrar (seja “bonito” ou “feio”).
Para que eu possa falar do MEU processo, tenho que primeiro situar que ele teve
início bem antes do que esta data de início deste grupo em processo. Hoje consigo entender
por onde percorreu minha “experiência” na dança, e como o que eu tive contato me
influenciou. Desde 1996, quando comecei a entender melhor a noção de “improviso” e as
proposta dos cursos do USINA,. que traziam um conteúdo despreocupado em seguir
parâmetros convencionais da “dança pela forma” e do bailarino apenas como executor de
coreografias. Entrava no meu mundo neste momento, as primeiras idéias (que eu pude
assimilar) do artista dando ênfase na possibilidade PERFORMÁTICA, livre de paradigmas de
estar sempre preocupado com o resultado formal dos movimentos e de mostrar sempre o
esperado e bonito, ou o certo (sei que isso é totalmente possível... hehe he).
152
O fato do Basirah também estar na minha história tem uma influência na mudança dos
instrumentos criativos que eu fui desenvolvendo. Foi dentro dos processos criativos do
Basirah, onde eu pude “participar” da criação (mesmo que fosse totalmente dirigida, mas
eram utilizados elementos meus). A própria linha de trabalho do grupo favoreceu para que
hoje exista alguma consciência sobre a criação e a preocupação com a construção “gratuita”.
É como se, só hoje eu conseguisse fazer essa leitura de tudo o que me influencia. E
esta reflexão foi estimulada pelo processo atual. Como o objetivo é conseguir aplicar melhor
aquilo que eu identifico, em mim e nos outros, como intérpretes, tenho ainda que fazer “cair a
ficha” para várias coisas em mim.
Outra influência gritante no meu foco de percepção, HOJE, foram os contatos que tive
com as práticas orientais pelo Howard. Muitas coisas eu assimilei, outras eu já aplicava, mas
não tinha consciência de que já aplicava e COMO eu aplicava. A influência do Howard foi tão
“fracionada” quanto a minha capacidade de ver e internalizar as práticas propostas em mim. O
elemento do Body Mind Centering, dos improvisos, das atividades com venda, da experiência
como testemunha, dos silêncios, do “não julgamento” sobre mim, o tempo prolongado dos
exercícios etc, me forçaram a entrar em contato com muitas questões pessoais e sobre a
dança; em épocas diferentes e em momentos artísticos diferentes, somados a todas as outras
experiências.
Tudo isso talvez possa esclarecer que nada do que eu consiga perceber atualmente é
“ISOLADAMENTE” resultado deste processo. Ele tem me proporcionado a EXPANSÃO da
minha percepção cognitiva, mental e corporal (de mim) como intérprete (mais do que a
“construção” de uma percepção, pois isso traria um caráter de indução). Seria a ampliação da
percepção, para que daí fosse possível desencadear mecanismos de consciência e mudança.
tomar consciência de vários mecanismos mentais que eu atribuo e corporais que eu assumia; e
pude questionar muitos “pré-conceitos” e valores que atribuo a minha criação.
Lina Frazão
Parece que já foi há muito, muito tempo que o processo passou. E apesar de todo o
meu encantamento com tudo, com todas as descobertas que eu tive, todas as mudanças, eu
vou confessar que eu, olhando para trás tenho me sentido meio incompetente.
O processo todo foi muito interessante e muito cativante porque possibilitou que todos
nós tivéssemos um ambiente de observação (e auto-observação!) muito grande. Para mim,
sinto que hoje em dia eu tenho mais firmeza, principalmente sobre dar aulas. Eu me percebo
muito mais concisa na hora de dar aulas para os adolescentes com quem eu estou trabalhando.
Porque meu principal intuito com eles é o de desenvolver a possibilidade de uma maior
expressividade corporal, e isso vai englobando muita coisa, muitos questionamentos, leituras,
discussões, etc.
Mas enquanto bailarina, eu confesso, que apesar de todo o meu encanto com o
processo, eu tenho me sentido meio incompetente mesmo. Olhando para trás, me vejo meio
anêmica, sem conseguir muita expressividade no espetáculo. (isso ficou meio forte com o
ultimo ensaio aberto do Dulcina...) Acho que o processo foi forte, mas eu sinto um certo
gostinho de-quero-mais...Teve uma fase do processo que foi excelente enquanto
autodescoberta, enquanto desafio, mas aí, no resultado do processo, embora não seja um
resultado estável e fixo, eu não me vejo muito ativa não. Na verdade, eu ainda não sei como
atingir MAIS esse espetáculo, e isso me parece uma certa alegria distante. Olhando para trás,
eu agora me sinto meio inútil mesmo...
Achei que todo o processo criativo foi muito interessante enquanto idéia, enquanto
confronto, que houve uma renovação e um questionamento muito significativo, e isso pra
mim foi o mais interessante: o conhecimento enquanto poder, que nos leva à transgressão.
Eu estava lendo o Marcelo yuka (aquele do rappa que levou um tiro e ficou paralitico), e ele
dizia assim: “Conhecimento é mesmo uma arma. Eu aprendi a ler com raiva".
Enfim, este trabalho do basirah se posiciona muito politicamente (pelo menos é assim
que eu o percebo), porque eu o vejo como um trabalho engajado. Qualquer arte é política se
não for medíocre ou alienada.
155
Esse trabalho é muito transgressor para mim, mas eu ainda não me vejo conseguindo
alcançá-lo em seu objetivo.
Alessandro Brandão.
Primeiro foi difícil começar, mas depois foi impossível parar. A descoberta dos limites
e o trabalho de alargá-los ou experimentar este lugar é uma atitude excitante para todo o
interprete. É simplesmente o trabalho da conscientização do interprete para com ele mesmo,
com seu corpo e como tudo o que pertença ao seu espaço cênico.
Fazer um trabalho onde a proposta não seja vivenciada por inteiro é muito
complicado, não é mais possível trabalhar sem o aprofundamento necessário. E não estou
falando de momentos enfadonhos, de teorias e leituras, e sim de um inteiramento do que se
diz, da apropriação da linguagem que se utiliza, de forma real, verdadeira, e não hipotética e
superficial. A honestidade que encontramos é importantíssima para a inteireza de qualquer
trabalho a ser desenvolvido, é simples e eficaz, pois utiliza os seus próprios recursos.
Colocando-os em evidência para que sejam trabalhados e moldados.
O que eu encontrei neste treinamento foi algo que é genuinamente meu, a minha busca
e minha aceitação. A satisfação de ver além do que achávamos ver, de ouvir mais do que se é
acostumado. Ver com frescor o que já é rotina.
Lívia Frazão.
Mas voltando à questão da metodologia, que mais te interessa agora, percebo, vendo
as fitas de vídeo, que a primeira fase do trabalho (de setembro a dezembro de 2004) foi
fundamental e efetiva para a pesquisa de como modificar os nossos padrões. É interessante
acrescentar também que se meu corpo pensa (já que pensamento é organização da informação
percebida pelo sensoriomotor), se mudo meu pensamento/idéias/conceitos/imagens/sensações,
mudo também o estado do meu corpo e, conseqüentemente, a qualidade corporal. Dessa
forma, os exercícios que mais me ajudaram foram as improvisações que trabalhávamos mais
diretamente com imagens mentais. Os exercícios sobre imagens mentais do corpo (como o
exercício do mentalizar-falar-fazer e do próprio BMC) conduziam mais à quebra do padrão
corporal e este tipo de exercício é realmente interessante quando o fazemos durante um
extenso período (principalmente quando o consideramos em anos) e daí, sim, percebemos
com mais clareza a transformação dos padrões. Mas é preciso lembrar também que não é a
consciência corporal somente que me leva à transformação, mas toda uma conjunção de
informações que se soma às minhas novas reorganizações e às minhas novas idéias. Tanto o é
que percebemos claramente a diferença de quando fazíamos este exercício com o Howard e
agora, 4 anos mais tarde.
Mas, os exercícios que mais me impressionaram naquela fase foi, realmente, os que
trabalhavam com a memória, com as imagens mentais e com as paisagens. É interessante que
as improvisações com as paisagens pareciam triviais; mas no momento da improvisação, se
você realmente se deixasse levar por aquelas informações, o estado realmente se alterava
157
assim como a produção do movimento. Dessa forma, meu movimento era meu pensamento,
minha paisagem, e vice-versa. E assim, meu corpo pensava e comunicava. Já o trabalho com a
memória trabalhava tudo isso, mas tendo como ignição a emoção associada àquela
informação. E mesmo que essa informação já tivesse siso de alguma maneira e em algum grau
distorcida pelo ato de imaginar, ela era muito forte a ponto de provocar uma quebra quase
instantânea de padrão dentro mesmo do não-movimento, agora muito denso e repleto de
intenções corporais. Como foi o caso dos exercícios com as fotos.
No caso das improvisações com imagens mentais livres (as chamo assim pois
usávamos as imagens que primeiro nos aparecesse), percebi que a mudança de qualidade
corporal fica ainda mais instantânea e clara, pois não há cristalização da imagem, mas
sucessivas composições dessa com as que se seguem, criando novas metáforas e novos
discursos. A rapidez destas transformações no corpo me impressionaram, ainda mais quando a
transformação era percebida pela qualidade do movimento diferente (pelo novo padrão) e não
simplesmente pela mudança do “tema” ou do “assunto” da imagem. Na verdade, o “assunto”
mudava quando as imagens mudavam, isso era claro;mas o mais interessante era o passo
seguinte: quando isso sugeria uma informação cinética nova ao corpo, um estado novo, uma
qualidade diferente.
Alisson Araújo
Este exercício que temos que executar, se apresenta tão difícil quanto os vivenciados
durante o processo de pesquisa para fortalecer o interprete em cena, mas também, se apresenta
tão necessário quanto todos os outros exercícios que fizemos, pois pode se tornar uma
ferramenta a mais para o interprete, ou seja, a reflexão sobre algo. Verificando com isso até
que ponto absorve, e até que ponto deve permanecer na busca, ou simplesmente amadurecer o
que já fora compreendido e assimilado, mas não corporificado.
Para relatar o que esse processo interferiu no meu corpo, vou ter que fazer um breve
momento em que meus olhos se fecham para percorrer, o corpo e o ser humano Alisson há
algum tempo atrás. Posso ver um corpo extremamente ansioso, sem compreensão do que vem
a ser movimentar-se, pois ao imaginar movendo-se, a primeira idéia que vinha era de um
desenho seqüenciado no espaço. Uma série dinâmica de movimento saía. Hoje, vejo que há
ainda a ansiedade, que muitas vezes retorna e insiste em atuar juntamente com o interprete em
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cena, mas já consigo perceber uma respiração maior, uma busca por acalmar mais a
ansiedade, e perceber o tempo, deixando que o aqui agora haja de forma mais natural.
Meu corpo passou por um processo muito forte, e visceral, onde a exposição se fazia
presente o tempo todo. Estávamos o tempo todo trabalhando com o nosso limite. Na primeira
fase do processo, onde a quebra de padrão consistia o foco, era de extrema estagnação, pois o
que há fora dos padrões? Como rompê-los e mover-se? Como aceitar que para si só há aquela
gama de movimento do qual você gosta e sempre usa? – Foi um período muito difícil para
todos, porque sempre vinha o julgamento de: olha novamente esse movimento? Isso partia
tanto de nós mesmos quanto do outro. Sempre que eu observava alguém, o que eu queria era
ver movimentos que nunca havia visto – mesmo sendo, juntamente com o Diego, o mais novo
e não sabendo muito bem como cada um costumava se mover. Mas o que eu queria era ver
movimentos novos, e não compreendia quando a Giselle vinha nos falar que alguns padrões já
estavam sendo quebrados – eu pensava: onde?
Mas a estagnação que estávamos, mesmo com alguns avanços, nos fez mudar de
conceito na proposta, não haveríamos mais que quebrar padrão, e sim amplia-lo,
acompanhando com isso o não julgamento. Que permite uma mudança de foco, pois todo o
exercício que fazíamos para ampliar nossa percepção como interprete, não estava voltado para
quebrar algo, mas estava voltado para perceber que fora executado um padrão, mas tudo bem!
Aceitava-o e continue a mover.
Para mim, a ampliação de padrão com o não julgamento me fez respirar mais na venda
– embora, ainda sim, provocando o movimento quando a vontade era dormir! Porque ainda
não permito não estar executando o que fora proposto. Sei que tenho uma tendência de fazer
tudo o que deve ser feito, minha criação sempre me exigiu isso, e sempre que tenho a
liberdade exacerbada fico um pouco intimidado, pois há algo a ser executado, mas minha
vontade é outra, como não fazer o que tem que ser feito e fazer a outra coisa? Isso ainda é
conflituoso em minha cabeça, e sempre que aparece trás consigo a ansiedade que me faz
executar tudo mais que necessário.
Entretanto, a venda me permitiu um retorno a algo que eu tinha, mas que havia
perdido com o tempo. Talvez porque as exigências eram outras, por exemplo, sempre que me
movia em pesquisa de movimento – em exercícios no teatro, buscava criar uma historinha
para o que estava fazendo, e com venda isso retornou. Junto ao espaço negro que a venda
159
produzia, habitava minhas imagens, demônios, anjos, seres que compõem a minha
imaginação.
É importante lembrar que cada exercício que fizemos durante esse processo tinha o
intuito de mergulhar mais fundo na pessoa do interprete, fazendo-o confrontar-se com suas
questões inibidoras, seus padrões, suas imagens, enfim acessar o imaginário o tempo todo.
Mas, mesmo assim, sempre havia um gancho para a expressão artística, alguma coisa que nos
lembrava que o que fazíamos era arte, e assim não nos deixando cair em uma terapia coletiva,
aonde cada um ia expondo suas coisas. Pelo contrário, a exposição era para ampliar a
percepção, trabalhando com o que há de imagético e de vivo no interprete, utilizando o
interno como ferramenta de expressão, e não algo que vem de fora.
Cada qual se expunha até o ponto em que lhe era seguro expor, até onde queria, e
achava que estava preparado. Mas o carisma da pesquisa, assim com o desafio que essa
representava, fazia com que as pessoas quisessem se arriscar sempre um pouco mais.
Em mim cada novo desafio remexia meu estomago, chegando o enjôo até meu
paladar, pois é a primeira coisa que me acontece quando estou muito ansioso e nervoso, mas
mesmo assim respirava e me disponibilizava a entrar na proposta. Acho as vezes que, esse
processo é um “elasticador” de disponibilidade, porque todos foram se disponibilizando um
pouco mais para o trabalho, até ficar mais gostoso lidar com suas questões, aceitando-as. Mas
eis que surge o grande desafio, selecionar o material produzido para uma produção artística.
Como definir: é isso e não aquilo que vai para o espetáculo? Aí posso perceber uma
imaturidade artística minha, que se justifica devido minha idade e experiência: saber o que é
melhor, ou o que pode ser explorado a mais, o que pode extrapolar.
Quando fui selecionar o meu material, eu queria pegar as coisas que mais havia
movimento, ou que me permitiria chegar a isso, ou algo que poderia impressionar mais, e
junto delas escolhi algo simples como, escrever em meu corpo com canetas, dentro de uma
mala. Hoje percebo que fora o material mais sensatamente escolhido, pois diz mais da
dualidade que eu queria tratar. Da dualidade que a vontade, o querer e a obrigação se faz
presente, e como eu me diluo no meu desejo, porque tenho que fazer o que tem que ser feito,
simplesmente para ser aceito, ou para manter um conceito de eficiência, ou até para as pessoas
confiarem em mim e gostarem de mim.
160
Tivemos três ensaios abertos, no qual os dois primeiro foram muito bons para mim,
porque pude chegar a lugares que não havia chegado antes, pude me acalmar mesmo quando
o nervosismo se fazia tão presente. Pude, nos dois primeiros ensaios abertos, respirar e
perceber como meu corpo estava naquele momento, e o que ele pedia. No terceiro ensaio
aberto, eu já não conseguir alcançar o que havia alcançado nos anteriores. Depois de uma
conversa com a Giselle, posso compreender que o meu desejo de executar o que tem que ser
executado às vezes sobra. E posso perceber que, não atingi o que havia atingido nos
anteriores, porque estive mais preocupado em recuperar o que já tinha alcançado, do que
escutar o meu corpo naquele momento, e alcançar o que o momento estava me dando.
A importância do terceiro ensaio aberto para mim, é tão ou maior do que os dois
primeiro, porque ele me deu a consciência de que algumas coisas que eu alcancei estão se
perdendo, e com isso devo perceber e me ater a elas e os caminhos que percorri para não
perder.
Esse exercício do interprete, todo o processo vivenciado desde o pensar e depois fazer,
a venda, a associação livre de idéias, o trabalho de imaginação ativa, o trabalho com os
órgãos, o trabalho de olhar, e todos os jogos propostos, despertou em mim uma percepção
maior do corpo do outro e do meu próprio. Hoje já consigo perceber mais as mudanças
ocorridas nos corpos dos meus parceiros de grupo, e também consigo perceber melhor o corpo
de minhas alunas, quando esse esta mais presente e vivo em cena. Assim como me abriu um
interesse maior em observar, e até concentrar-me em apreciar, os corpos em cena em tudo o
que vejo.
Creio que o processo me deu a maturidade de enxergar o percurso que ainda tenho que
percorrer como interprete. Conscientizou-me sobre vários pontos que devem ser fortalecidos
em minha interpretação, e me fez abrir os olhos mais um pouco para perceber as coisas, em
mim e no outro. Além de me ter dado um outro corpo, um corpo um pouco mais respirado,
um corpo que não se resigna, mas aceita o que tem que ser feito, nem que seja um segundo
depois do que deveria, nem que seja um ou três dias depois, mas percebo que eu já consigo
aceitar mais algumas coisas, ao invés de brigar para alcançar. Percebo que agora, eu ainda não
consigo, mas já quero obter tempo e calma para absorver as coisas e manipula-las melhor.
Percebo que o exercício do interprete é um processo continuado que teremos que estar
sempre aprimorando a cada segundo, a cada momento, retornando em pontos que em alguns
161
momentos se apresentam frágeis, avançando em outros que já estão seguros, e por isso mesmo
podem ser extrapolados.
Dorka Hepp
Para mim, foi superimportante perceber as minhas fraquezas. Como por exemplo, nos
exercícios da imaginação ativa. Eu preciso de desafio para querer me superar e assim
melhorar. Nesse exercício (que também envolve a fala, e como todo mundo já sabe: não sou
atriz!!!), eu me sentia uma completa ignorante, como se eu fosse uma criança que andava de
bicicleta pela primeira vez! Superar os meus limites é o que mais me motiva, então esse
exercício (e todos os outros) me estimulou bastante... Apesar de que precisaria de muito mais
prática para alcançar o meu ideal.
Não acho que posso apontar para um exercício em particular e te dizer que esse foi o
mais importante. Não, para mim, o importante é o desafio de conseguir vencer os meus
limites, ir além do que já sei fazer (não sem medo, é claro, e nem sempre consigo chegar lá).
Se tiver algum desafio no meio, eu estou dentro, vou fundo! O assunto aqui nesta proposta de
trabalho me interessa muito, então tento aproveitar o máximo que posso sem desperdiçar o
tempo. Obviamente, encontro muitas dificuldades no meu caminho e nem sempre consigo
passar por cima das minhas fraquezas. Mas a possibilidade de melhorar e de vencer o desafio
me dá energia para continuar em frente. Por isso todos os exercícios foram importantes,
porque todos eles me provocavam de alguma maneira (e acredite, nenhum deles foi fácil!).
Andar num caminho desconhecido é assustador, mas também não é nada monótono, o
trabalho fica interessante o tempo todo porque ninguém sabe o que vai acontecer no próximo
passo. Isso deixa a gente muito ligada porque ninguém quer perder o próximo capítulo da
história.
Hoje eu vejo o tanto que melhorei... na minha cabeça. Tenho menos medo de errar, e
não me preocupo tanto em encarar um novo exercício, uma nova exposição. Me disponho
também em me colocar em situações inusitadas e de desconforto sem sofrer com isso.
Um outro momento muito marcante, foi a conversa que nós tivemos depois de assistir
ao vídeo do primeiro ensaio aberto. Você falou uma coisa que ficou na minha cabeça o tempo
162
todo até agora: (desculpa aí, mas foi você quem disse) “vocês têm que rasgar o cu...” Esse dia
resume bem o que falei até agora: UM NOVO DESAFIO, e desta vez, dos grandes! Foi
engraçado porque, naquele dia, tudo mundo estava entrando em crise por vários motivos, mas
eu fiquei tão feliz! Pois, estava com desafio muito grande nas minhas mãos e para mim,
aquilo era demais... Saí de lá muito animada e cheia de energia. Por onde isso tudo poderia me
levar, como fazer para conseguir ir além de tudo que já tinha alcançado até agora, como fazer
para ousar mais? Fiquei com muita vontade de tentar, e principalmente de me permitir fazer
as coisas. Naquele dia, eu queria muito abrir todas as portas e experimentar entrar em todas
elas!
É claro que ainda não consegui tudo aquilo que acho que sou capaz e acredito que nem
vou conseguir. Porque toda vez que chego em algum lugar, existe de novo a possibilidade de
ir além. Então nunca pára, e isso é fantástico... e ás vezes um pouco cansativo/frustrante
também. Uma coisa importante de se mencionar, é que desde aquele dia, estou muito
DISPOSTA a encarar esta proposta até além dos meus limites!!!! Pois, percebi que aquilo
tudo é um saco sem fundo: sempre tem mais, e sinceramente não sei se a gente vai chegar em
algum lugar específico algum dia... Esse espetáculo não tem fim!!!
Diego Pizarro
No início do trabalho com o grupo este ano, parece que a maioria das pessoas estava
mais disponível ao trabalho que seria composto. No entanto, foi de extrema dificuldade (e isso
eu digo sob experiência pessoal) o momento em que surgiu a pergunta: “O que você quer
dizer com o seu corpo?”.
Durante esse período de cinco meses, é perceptível um certo incômodo da minha parte
durante o processo. Mas não um incômodo negativo, e sim um incômodo positivo, pois a
partir das “alfinetadas” constantes da diretora no sentido de estar sempre tirando o tapete dos
intérpretes, tentando-os em fugir do costume, do comum, do domínio de suas capacidades
conhecidas, eu me sentia o tempo todo como se tivesse um fogo queimando de leve os meus
músculos, para que eu não os relaxasse no sentido de acomodar-me, e quando digo músculos,
falo de todos, o cérebro inclusive.
Com certeza, durante o processo, eu podia ter consciência de como é complicado para
o corpo administrar os vários textos propostos pela diretora. Administrar texturas de
movimento, intenções, olhares, espaço, dinâmica, tempo, interação com o grupo, tudo com
muita concentração sobre o enfoque do que eu quero dizer com o meu corpo. Essa questão
corpo-mente às vezes me fazia entrar em desespero. Porém, na verdade, eu acredito que o
corpo-mente é um só e a experiência em administrar as informações e automatizá-las de certa
forma faz com que o corpo-mente se torne corpomente, sem existir uma dicotomia. Mas para
ter o domínio da performance no sentido de mostrar realmente o que eu quero mostrar parece
que é necessário pensar mais, e com o passar do tempo isso vai sendo diluído e
“inCORPOrado”.
Lembro-me de uma frase que me foi dita pela diretora: “Diego, parece que você não
entrega o seu corpo”. E refletindo durante muito tempo sobre essa frase que até hoje me vem
à mente em vários momentos, eu percebo que realmente é difícil entregar-se fisicamente à
coisa. E percebo mais nitidamente quando acontece, o racional vem primeiro e eu sempre falo
pra mim mesmo: “Não pense, faça!”. No entanto, pensando em etapa por etapa, acredito que a
etapa que vem agora, a partir de agosto, será decisiva para o envolvimento corporal pleno...
(ou não).
164
Como uma imagem fractal do universo, o corpo guarda sempre um novo segredo, um
secreto tesouro, uma rima rara, a surpresa de um vendaval, um movimento inefável. Para
quem pretende flagrá-lo, só resta seguir como um Indiana Jones aparelhado de muita
curiosidade por entre as trilhas que s
Lívia Bennet
Não é nada fácil falar sobre o trabalho, por isso, talvez, eu saia vomitando um monte
de coisas... Ou POUCAS COISAS.
Entrei nesse trabalho, aberta a experimentar, com vontade de fazer e deixar acontecer.
A forma como tudo começou, foi me deixando mais à vontade para experimentar
coisas. Não só externamente mais internamente também. Minhas atitudes foram ficando mais
precisas, fui perdendo o medo de me expor, e é aí que tudo acontece. Coisas novas vão
surgindo, poucos questionamentos, tudo começa a fluir. Com os exercícios, vou me
conhecendo mais e perdendo o medo. O intérprete vai aparecendo mais. Sinto-me diferente,
mudando a cada dia.
165
Noto essa mudança até quando assisto a um filme. Nas falas dos personagens, o que eu
seleciono de interessante pra mim. Como aquelas palavras soam nos meus ouvidos.
VONTADE DE LER? Tive muita nessa Fase 1. Comia os livros com uma vontade
louca. Todos os livros que eu lia, parecia que falava da mesma coisa. Todo o nosso trabalho
vivido no processo, estava ali, não sei se no livro ou na minha cabeça. COINCIDÊNCIA,
MUDANÇA E AMADURECIMENTO DE PENSAMENTO, OU É PORQUE EU ESTAVA
FICANDO DOIDA MESMO?
Tudo que eu trabalhava, fazia sentido pra mim. E mesmo que não usasse essas
movimentações no trabalho, ele já seria diferente. Meu corpo já estava mais preparado para o
que viesse. É REAL: senti meu corpo transformar. Percebi isso claramente em mim. Tanto
externamente como internamente. INTERNAMENTE, COMO TRANSFORMOU!
Tudo que aprendi, está ali registrado, não tem como passar uma borracha em cima, ou
voltar a fita e gravar por cima. Tudo vai se transformando, e pra mim foi pra melhor.
Quando que em um improviso, eu iria chorar ou rir daquela maneira, tão intensamente
desde que começamos o processo? Não controlei o que eu senti e fui feliz nessa minha
escolha. Deu-me possibilidade, caminhos novos.
Como trabalhar a leveza em mim? Isso foi um parto, mas aconteceu quando eu menos
esperava. E tem sido um parto ainda maior manter essa leveza mesmo quando me encontro
em prantos. E não reprovo meus resultados.
ESTOU APRENDENDO!
Foi isso que aconteceu! Ficamos congelados sem saber pra onde ir.
Chegamos num ponto questionador do trabalho, mas não no limite. Chegamos num
ponto em que não sabemos se vamos para a direita ou para a esquerda. Mas cada dia que
passa os passos vão se definindo. O pulo para o precipício pode não estar muito longe de
acontecer.
Rachel Cardoso
Vou começar buscando concluir o que ficou de mais importante em todo este
processo. Acredito que o ponto mais forte da construção do “movimento autêntico” é entender
que não é uma “técnica” para ser introjetada, ou ainda uma linha de pensamento sobre o
movimento, a dança ou o corpo. É exatamente o contrário: na verdade o processo dá a
OPORTUNIDADE DE CADA INTÈRPRETE RECONHECER, APROFUNDAR E
ESCOLHER A CONSTRUÇÃO DO SEU CORPO NA PERFORMANCE. Cada um vai
desenvolver o seu caminho de “preencher o corpo”. Foram vivências onde cada um teve de
reconhecer seu corpo de uma maneira verdadeira comprometida.
167
Percebi que o fato dos bailarinos e atores já “trabalharem” com o corpo não
necessariamente garantia que eles tivessem a compreensão e o domínio deste corpo de uma
forma consciente. Como realmente o meu corpo se expressava? Qual a leitura que os outros
fazem da minha forma de expressar o meu corpo? Enfim.... foi revelador em vários sentidos.
Tanto desmascarando aquilo que eu “achava” que conseguia esconder ou disfarçar, como das
grandes facilidades e potencialidades que eu poderia desenvolver.
Quando coloquei que a atuação do intérprete se torna mais MADURA, não quer dizer
necessariamente que todos os intérpretes saem “prontos”. Até porque, para isso, o estágio
final teria de ser engessado em uma referência pré-estabelecida. O processo, ao contrário, é
muito individual. Cada um começa com uma bagagem corporal e psicológica particular, e
durante o processo, isso é mexido e trabalhado dentro do contexto e da necessidade de cada
um. Foi muito interessante entender justamente essa “individualização” no processo: eu não
precisava chegar em uma etapa final específica nem me comparar a nada nem a ninguém; mas
não tive como não me deparar comigo mesma..., com os meus padrões, minhas limitações,
minhas potencialidades e minhas qualidades artísticas e pessoais. E saber reconhecer isso não
foi muito fácil durante as atividades. (mas depois que passa tudo se torna mais ameno, não é
mesmo?).
Assim como quando coloquei que o processo favorece para que o intérprete também
trabalhe de uma forma mais “ampla”, quero dizer que os exercícios propostos abrem a nossa
percepção não só para a execução em si de uma ação, como também: para as nossas reações
emocionais enquanto nos expomos, para pararmos e percebermos novos caminhos que vamos
encontrando para solucionar nossos bloqueios, para as “outras coisas” que estão acontecendo
no ambiente naquele mesmo momento (inclusive isso modifica significativamente a relação
do artista com o público).
Isso me faz reconhecer como minha relação com a criação modificou ao longo deste
processo. Sinto o meu corpo, justamente, mais disponível para os processos. È claro que vão
sempre haver coisas que ainda podem me “bloquear” ou trabalhos que não sejam tão
coerentes com a minha forma pessoal de trabalhar as coisas. Mas mesmo assim me vejo muito
mais aberta a, pelo menos, me DESAFIAR a buscar um caminho mais confortável de
vivenciar isso.
169
O que vejo de mais positivo neste trabalho com o intérprete é que ele é DINÂMICO e
CONTÌNUO. Ou seja, dependendo do seu momento de vida e da sua maturidade artística você
vai assimilar partes do processo de uma forma bem seletiva (mais ou menos consciente, mais
ou menos confiante, mais ou menos disponível). Além de que ele não se limita apenas ao
período das práticas, pelo contrário, acaba acompanhando todo o seu desenvolvimento
artístico e pessoal, mesmo que você não esteja mais “em processo”. Sinto isso nitidamente,
pois, outros processos e experiências que eu vivenciei anteriormente foram determinantes
para a forma como as práticas “entraram” em mim. (isso foi até comentado no meu relatório
anterior).
passei a não “estar para o público” e sim a “estar COM o público”. Não sei se isso é
compreensível, mas passou a ser mais tranqüilo ter público presente.
Não se pode negar que a presença de público é uma variável que sempre altera o
ambiente. Mas, pra mim, passou a não alterar mais de uma forma tão inconsciente e
aleatória. Quer dizer, eu procuro perceber o público assim como eu procuro me perceber e
perceber as outras coisas que estão acontecendo (a minha volta e dentro de mim). Passou a ser
mais tranqüilo e mais verdadeiro (inclusive quando o público interfere de alguma forma
negativa a ponto de eu me sentir vulnerável). Eu simplesmente reconheço isso e procuro não
tentar disfarçar o que não é “disfarçável”... continuar presente.
Concluindo, foi um processo que auxiliou muito mais a mim, como intérprete, do que
para a concepção de um “produto artístico final”. Até mesmo porque em muitos exercícios se
chegou a pontos mais profundos e espontâneos do que o espetáculo (“De água e sal”). /
Facilitou para que eu me colocasse de uma maneira mais confiante e responsável dentro da
minha performance./ Me ajudou a estabelecer uma relação mais verdadeira entre eu, os
processos de criação e o público. / Eu sinto que o trabalho não “parou por aí”... Mas que é
uma parte do processo de desenvolvimento do intérprete./ Percebo também que ao mesmo
tempo em que é um processo intenso e desafiador, no sentido de que instiga o intérprete a
realmente mexer nas suas questões pessoais e emocionais, fragiliza e expõe em vários
momentos delicados do processo (e que talvez ele (ainda) não tenha todo o suporte
necessário). / A maioria das atividades e práticas que expõem as pessoas do grupo de alguma
forma, mas acredito que ainda seja de uma forma saudável (acho que deu mais certo porque o
grupo já tem muita intimidade). / E definitivamente, é um caminho muito particular, cada
pessoa vai modificar e transitar apenas nos espaços onde ela der “conta” e onde for sua
necessidade pessoal.
Micheline Diniz
Buscar minha identidade como intérprete. Refletir sobre minha identidade como
intérprete, durante o processo criativo, foi uma das coisas mais importantes. Tudo passa pela
minha compreensão, meu corpo, minha voz, minha emoção. No início parecia que era preciso
buscar minha identidade, mas depois percebi que não é preciso buscá-la, ela está comigo o
tempo todo. Às vezes refratária, mas sempre presente. Ser no espaço como intérprete significa
também ser eu mesma a todo instante.
Mergulhar na crise. Parece loucura, mas mergulhar na crise teve seu lado bom.
Mesmo sem Ter saído dela (já que eu saí do trabalho no auge da minha crise), percebo o
quanto é importante estarmos nos provocando para alcançar um crescimento. É bom saber que
me deixei revirar, especialmente porque me conheço e sei que tenho uma personalidade forte
e não perco o controle facilmente.
Estar de venda. Este é sem dúvida um dos exercícios mais importantes que realizei,
pois nos ajuda a mergulhar no nosso mundo interior, nos afasta do “maldito julgamento”,
aguça a sensibilidade, além de provocar o movimento. Lembro de todas as vezes que estive
vendada e consigo recordar como aqueles movimentos, aparentemente desordenados, falavam
de mim. Mergulhar em nós mesmos é mergulhar na riqueza das infinito.
Sentir meu corpo falhando. Sentir dor e não poder usar o corpo plenamente foi
determinante para a minha decisão de sair do processo naquele momento. Eu não conseguia
experimentar. A proposta de mergulhar nas emoções traz uma intensidade que repercute no
172
corpo. Por simples que pareça o movimento, quem o realiza é uma pessoa com todas as suas
lembranças emocionais. O processo criativo, como um todo, priorizou nossas memórias
emocionais. Em algum momento eu resgatei vivências difíceis, ainda não bem resolvidas pra
mim, e tive dificuldades para lidar com isso. Acho importante dizer que antes mesmo de
iniciá-lo, meu corpo já estava mostrando que algumas vivências difíceis já o tinham
maltratado. Depois de todas essas reflexões, percebo a importância do intérprete buscar uma
forma “técnica” de acessar seus registros emocionais, sem deixar que isso fique ‘pesado’
demais. Ao mesmo tempo que queremos nos beneficiar da carga dramática de cada mergulho
emocional é preciso saber lidar bem com isso, e este ainda é um universo novo pra mim.
Participar de um ensaio aberto, sem estar pronta para isso. Os dois ensaios abertos
que participei não foram boas experiências para mim. Isso aconteceu por motivos diferentes.
No primeiro por sofrer a interferência e o descuido de um colega. No segundo, por não estar
no momento certo de me expor. Os ensaios abertos não foram ensaios, foram apresentações.
No segundo ensaio eu não sabia quem eu era lá dentro, e eu me perguntava isso a todo
instante. A exposição naquele momento ajudou a aumentar a impressão de que o tempo havia
se esgotado, e como aquele era um momento de profunda crise para mim, eu me senti fora.
Fora do tempo, fora do espaço.
O descuido do colega. Dividir o mesmo espaço cênico é muito mais do que dançar
com mais nove pessoas. É perceber o outro, é saber recuar, é abrir os olhos e olhar o que tem
na sua frente,.... A falta de cuidado de um colega de trabalho me fez pensar por que eu estava
ali dividindo o mesmo espaço com todas aquelas pessoas. É certo que as pessoas com suas
diferentes personalidades ocupam espaços diferentes. Alguns maiores outros menores. Mas é
preciso que exista harmonia na ocupação desse espaço. Não acho que isso seja uma coisa
fácil, mas quando se está no auge do seu desgaste emocional e físico ser surpreendida pelo
descuido de um colega me provocou várias reflexões, e, sem dúvida, foi uma experiência
ruim.
e acabo sentindo muito as faíscas que saíam daquela panela pressão. Como eu não estava
canalizando a minha energia, acabei implodindo. O fato de estar em um espaço fervendo de
energia era motivador, mas não direcionar a minha energia para algum lugar me fragilizou.
Falta de espaço e tempo para tentar novamente: Sei que em tese o processo criativo
não estava finalizado quando decidi me afastar do trabalho, mas de algum modo o trabalho
tomou forma e já estava existindo. A partir daí eu não estava mais encontrando espaço para
continuar experimentando.
Discordâncias de caminhos:
Acho que não há discordâncias de caminhos, mas fico pensando em quantas e quais
outras possibilidades também podem servir como mergulho para emergir um trabalho
artístico. Penso que talvez o caminho inverso possa ser uma opção. Ou seja, partir de um
movimento para depois preenche-lo com minha emoção. Encontrar algum movimento que
pudesse dar o start. É claro que antes desse movimento é preciso saber sobre o que se quer
falar. Também exige do intérprete um desapego do movimento inicial, pois em algum
momento seja necessário abandonar o “movimento alavanca”. Os movimentos também falam
por si, e acredito que não são escolhidos tão aleatoriamente assim. Penso que talvez seja um
caminho porque senti dificuldade de fisicalizar minha emoção, e a minha linguagem mais
acessível era o movimento.
O porque da minha decisão de me afastar: Acho que os motivos foram o meu corpo
que estava falhando, o tempo que parecia ter se esgotado e não estar canalizando a minha
emoção, o que me fez implodir. Definitivamente, existir no espaço com mais nove pessoas
sem Ter uma construção individual, não estava sendo possível. Como o meu corpo estava
reclamando para que eu fizesse algo mais leve, eu precisava de tempo e tranqüilidade para
começar tudo de novo. Ou seja, voltar a experimentar, especialmente, de forma individual.
Mas, naquele momento, era como se o espaço o e tempo já não existissem mais, pois o
processo criativo já estava em outra etapa. Sei que em tese havia tempo e espaço, mas, para
mim, esta era uma impressão concreta. Estava emocionalmente muito revirada e só fui
entender estes motivos muito depois. Naquele momento, minha decisão foi completamente
emocional. Como você me pediu no e-mail que falasse o que “realmente me levou a sair do
processo”, envio, agora, um texto que escrevi no sábado/domingo que se seguiu ao meu
último ensaio aberto. Neste fim de semana estava confusa, chorei bastante e me senti muito
174
mal. Como ele foi escrito no momento que estava resolvendo me afastar, ele mostra
emocionalmente o que estava acontecendo comigo. Pensei em enviá-lo a você, Gisele, mas
não consegui. Escrevi mais ou menos dez páginas no meu caderno de anotações, depois sentei
em frente ao computador e organizei um pouco aquela confusão emocional. Depois disso
passei a me sentir melhor e mais aliviada. Foi um enorme vômito. Um vômito absolutamente
necessário. Ainda me sinto nua mostrando este texto, mas acho que vale a pena você dar uma
lida. É um texto curioso, pois nele o processo criativo cai na minha cabeça, e as coisas
começam a fazer mais sentido. Vivencio a minha morte no trabalho e um pouco de todos os
outros intérpretes. Eu estava revirada emocionalmente e precisava canalizar aquelas emoções
para algum lugar, não estava achando espaço para fazer isso com o movimento, acabei
fazendo com as palavras. Anexo: as ondas.
Acho importante dizer que gostei muito de ter participado do processo criativo pois
estive refletindo todos os dias, descobri novos caminhos e ampliei meus horizontes. Muitas
idéias que estou tendo agora, sei que são frutos do processo criativo.
175
Numa das fases de sua pesquisa, Martinelli propôs a divisão do grupo em trios e
duetos. Na ocasião, tive a oportunidade de trabalhar mais proximamente com Kênia Dias,
dançarina, bacharel em Interpretação Teatral e Mestre em Artes pela Universidade de Brasília,
com experiência profissional na área, e que na ocasião também desenvolvia sua pesquisa de
mestrado na linha de Processos Composicionais para Cena na UnB. Seu objeto de estudo
referia-se à observação e reflexão acerca de moradores e pedintes de rua, para a construção de
uma dramaturgia em dança que resultou o espetáculo Lambe Lambe.
Neste Anexo, estarei apresentando o processo de minha pesquisa realizado com Kênia.
É importante lembrar que nossa parceria se deu a partir da pesquisa dela, onde pude contribuir
aplicando parte da minha pesquisa em seu processo criativo por meio de improvisações
estimuladas por exercícios inspirados no MA, BMC, AL e IA. Meu intuito era trazer as idéias
de minha investigação, principalmente em relação ao desenvolvimento do estado pré-
expressivo como foco fundamental do processo criativo, sem desvirtuar, ou modificar
demasiadamente, a concepção criativa da temática proposta por Kênia. Como aplicar os
princípios delineados na minha pesquisa num processo criativo com temática estabelecida, e
para um intérprete com formação diferente do elenco do Basirah?
Nascida em Brasília em 1973, o contato de Kênia com a dança teve início aos cinco
anos de idade, com aulas de balé clássico. Aos quinze anos, ainda no balé, começa a fazer
dança contemporânea com Lenora Lobo, discípula de Klauss Vianna, participando mais tarde
da companhia Alaya, sob a direção de Lobo. Permanece trabalhando com a Alaya por doze
176
anos, o que influenciou sua formação como intérprete. A Alaya sistematiza como fundamento
e princípio criativo para o intérprete criador o Teatro do Movimento, método criado e
desenvolvido por Lobo, que consiste em “dar ao intérprete consciência nos traçados de seus
caminhos”187 criativos, partindo de três eixos fundamentais: Corpo Cênico, Movimento
Estruturado e Imaginário Criativo que formam o que Lobo intitulou de Triângulo da
Composição, estrutura mater do método. A partir do trabalho sobre os três vértices do
triângulo, o método propõe “uma tomada de consciência, uma visão e proposta de
organização, elaboração e desenvolvimento de processos criativos e de seus conseqüentes
produtos cênicos”.188 O método, que prima pelo respeito ao material corporal do intérprete
considerando suas vivências e história pessoal, foi desenvolvido à luz do “movimento
consciente” de Klauss Vianna e da coreologia de Rudolf von Laban. Tem como característica
principal a investigação criativa pela análise do movimento.
Quando nos encontramos, Kênia já havia realizado sua pesquisa teórica e de campo
sobre os modos de vida dos pedintes e moradores de rua. Seu projeto de mestrado objetivava
realizar uma reflexão sobre o processo criativo com base na observação desses modos de vida,
daí partindo para investigar o movimento e situações de cena na busca da construção de uma
dramaturgia corporal. Dentro dessa perspectiva, me coloquei como colaboradora de seu
processo. Não era meu objetivo empenhar o papel de direção na sua montagem, mas apenas
estimular sua sensibilidade corporal e emotiva (tópicos de minha pesquisa) para o que ela
estava propondo. Os exercícios aplicados neste contexto assumiram um caráter mais de
compreensão do material de sua pesquisa de campo, e de um exercício de presença para a
interpretação do material selecionado no processo criativo.
187
LOBO, Lenora, CÁSSIA, Navas. Teatro do movimento: um método para o intérprete criador. Brasília:
LGE Editora, 2003, p48
188
Idem, p77.
189
Utilizo o termo imaginário segundo a definição de Lenora Lobo que consiste no “ato de imaginar –
aquilo que vem da imaginação da pessoa”, sendo imaginação “a faculdade de representar ou evocar imagens já
percebidas, podendo também ser a faculdade de criar e inventar”. Segundo Lobo, “o imaginário do artista é
composto de suas imagens internas, imbuídas de sua afetividade e história de vida”. Idem, p185.
177
Após uma reflexão sobre esta análise realizada por Kênia, sugeri a ela que realizasse
um improviso sobre sua pesquisa, sem qualquer controle crítico, qualquer julgamento. Ela
poderia partir das imagens levantadas ou outras que surgissem, de imitação, de representação,
de pantomima, de impressão, de emoção suscitada pela lembrança de alguma imagem
presenciada na pesquisa de campo, etc. Nada deveria ser excluído. Pedi que ela não se
detivesse numa situação específica, não buscasse uma estrutura, não se preocupasse em seguir
alguma possível regra de composição, nem se preocupasse em fazer algo de interessante para
mim, que a observava, mas que deixasse fluir as imagens por meio de seu corpo, sem julgar as
ações. Seguiram-se trinta minutos ininterruptos de improviso no silêncio, onde os movimentos
eram realizados um atrás do outro sem lapsos, sem equívocos. A proposta corporal parecia
muito precisa, não havia dúvidas. Uma ação puxava outra construindo uma coerência interna
entre elas, como se todo material pesquisado estivesse armazenado no corpo esperando a
oportunidade de ser materializado, ou melhor dizendo, ser escutado. Kênia parecia estar
penetrada de ação, envolvida com seu devir, encarnada de impulsos, com seu estado corporal
alterado, embora sem consciência atenta deste estado.
esse reconhecimento “reitera não apenas a evidência de que o corpo pensa, mas a de que o
pensamento se organiza como ações possivelmente descentralizadas”. 190
190
GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005, p48.
191
NUNES, Sandra Meyer. O corpo do ator em ação. In: GREINER, Christine, AMORIM, Claúdia (org).
Leituras do corpo. São Paulo: Annablume, 2003, p129-31.
179
com a pesquisa teórica e de campo, e como ela via sua relação corporal com isso. A partir
dessa análise ela deveria selecionar algumas células do qual considerasse mais fortes e
significativas, definindo-as como pontos centrais, norteadores dos improvisos futuros.
Com esse procedimento, Kênia pode observar a corporificação das várias imagens que
emergiram de seu campo de pesquisa. A imagem de uma mulher grotesca, totalmente
selvagem e outra mais civilizada, ereta, embora as duas se apresentassem sem sutilezas,
inumanas e caricaturais. E também as imagens do homem que se arrastava pelo chão na sua
miséria de pedinte, da mulher que se despe toda e permanece envolta com as próprias ações
sem se preocupar com o que acontecia ao seu redor, uma outra que parecia segurar um
guarda-chuva, imóvel, como numa espera resignada por algo que nunca vem. Essas
personagens, ou formas corporais que remetiam a personagens, emergiam de uma para outra,
sem uma linearidade aparente, sem possuir uma ligação entre elas, e também não se davam
pela transformação de uma para outra. A improvisação simplesmente acontecia como impulso
interno que vai sendo revelado, sem demonstrar qualquer processo de análise, qualquer juízo
crítico. Para o início do processo criativo esse aspecto é muito importante para levantar
possibilidades e trabalhar escutando o que o corpo tem a dizer.
Kênia também observou que sempre caminhava em círculo antes de iniciar seu
improviso, e este percurso se mantinha no desenvolvimento do improviso como um impulso
realizado pelo próprio corpo sem um comando intencional e consciente, o que lhe revelava
uma possibilidade de construção espacial da encenação. O caminhar em círculo foi
futuramente incorporado na concepção cênica.
personagens surgiram ali, em seu corpo, a partir de leituras pessoais no contato com a
pesquisa de campo. É sempre importante lembrar que, “antes de tudo, o intérprete é o seu
corpo, e não alguém que mora dentro deste corpo e o utiliza como uma espécie de
instrumento, que pode ser tocado a seu serviço”.192 Assim todos os demais laboratórios
realizados em nossos encontros foram desenvolvidos por meio de improvisações estimuladas
por exercícios inspirados no Movimento Autêntico, BMC, Associação Livre e Imaginação
Ativa.
Nos primeiros encontros, Kênia não possuía uma idéia muito clara a respeito da
concepção do espetáculo. Todavia, a forma como íamos trabalhando o material não parecia
apontar à construção do espetáculo para uma concepção coreográfica, no sentido do passo
coreografado. Existia uma dificuldade em desenvolver um argumento coreográfico do passo
de dança dentro da estrutura do improviso. As formas corporais apareciam mais fortemente,
trazendo a idéia da movimentação. A concepção cênica pareceu se delinear dentro de uma
construção corporal que permitisse a manifestação fluida da movimentação dessas formas,
relacionadas com a pesquisa de campo desenvolvida, e não de uma definição sistemática e
fixa do movimento dançado, do passo coreográfico.
192
NUNES, Sandra Meyer. Op.cit., p120.
181
Como Kênia havia definido algumas células/idéias de movimentos que emergiram das
imagens reveladas no improviso embrião, era importante exercitar essas células também por
meio dos improvisos até que ela fosse se apropriando dessas células/idéias, compreendendo-
as e incorporando-as dentro das possibilidades encontradas. Ou seja, ela deveria encontrar e
desenvolver uma categoria de idéias para determinadas células já selecionadas, e improvisar
dentro desta categoria até dominar a compreensão das células e das categorias. Assim poderia
ir desenvolvendo a habilidade de manipulação dos elementos do improviso, a partir da
compreensão de cada um deles, pelo menos enquanto idéia e corporalidade.
Diante dessas considerações sobre o processo criativo, ficou claro que a contribuição
que eu poderia dar a Kênia, partindo de minha pesquisa, era estimulá-la a compreender o
processo que se dava com aparecimento das formas no corpo que culminava no
desenvolvimento das células e idéias. Mas para isso acontecer deveria primeiro fazê-la voltar-
se ao próprio corpo, numa tentativa de levá-la a compreender seus estados corporais. Assim
iniciamos a aplicação dos exercícios.
formas corporais. O estímulo para o movimento parecia partir de uma idéia externa ao seu
corpo, e não de uma sensação internalizada da ação física. A ação intencional de alongar um
músculo específico, por exemplo, não pareceu clara, pois sua atenção parecia estar voltada
para a realização de formas corporais. A ação de alongar determinada musculatura parecia ser
conseqüência da forma realizada pelo corpo, e não um objetivo proveniente da intenção de
alongar o músculo específico. Kênia não demonstrou estar focada na natureza de seu corpo,
mas nas formas que ele poderia criar ao mover-se. E isso também não parecia se dar de
maneira consciente para ela.
Kênia acredita que esta situação pudesse estar associada à maneira pelo qual vivenciou
seus processos criativos em dança, onde normalmente a composição coreográfica se atinha a
reprodução das formas dos movimentos encontrados no corpo. Mesmo que para se chegar às
formas corporais houvesse uma investigação e exploração aprofundada do movimento, a
composição final do produto coreográfico, muitas vezes, se restringia à repetição das formas.
A compreensão do caminho para se chegar à forma era excluída no resultado final. A
abordagem do movimento corporal para a composição coreográfica se dava pela forma e não
pela compreensão de seu processo de construção. Também, nesse momento, o contexto
criativo de Kênia para a experimentação parecia estar demasiadamente imbuído de sua
pesquisa sobre moradores de rua, o que algumas vezes a impedia numa investigação corporal
desvinculada do material pesquisado.
Kênia falava sobre suas impressões após a execução de cada proposta sugerida, e
então conversávamos sobre elas. Em seu depoimento sobre esta primeira experiência com os
olhos vendados, Kênia não se sentiu confortável e percebeu uma ansiedade interna que a
incomodou. Ela mesma concluiu que sua ansiedade não a deixava perceber seu corpo.
O trabalho com vendas parece ampliar tudo o que a pessoa considera como um
obstáculo para si, todos os elementos que entram no seu universo do juízo crítico, tais como
ansiedade, medo, reconhecimento de padrão de comportamento, reconhecimento de padrão de
movimento, indiferença, recusa etc. Talvez por isto, no início, algumas pessoas se sintam
desconfortáveis com este exercício, pois ele pode mexer com suas expectativas, frustrações,
desejos contidos, necessidade de se chegar a um resultado específico. Com o passar do tempo,
o exercício com vendas pareceu chamar Kênia para uma calma interna e uma percepção de si
mesma, fazendo-a detectar muitos aspectos pessoais desapercebidos por ela. Isso parece afetar
183
também a imagem corporal que a pessoa tem de si. A escuta ao tempo das ações físicas vai se
dando mais naturalmente, trazendo uma noção de organicidade mais concreta.
193
Depoimento gravado em 03 de março de 2006.
184
Por termos adotado como ponto principal dos ensaios o exercício do improviso
propriamente dito, Kênia comenta sobre sua dificuldade de reter determinadas cenas que
surgem nos improvisos, e também não consegue parar de ter idéias. A cada improviso surgem
novas possibilidades que vão se perdendo. Segundo suas palavras “o improviso parece não ter
fim, é uma sucessão de imagens intermináveis”. Entretanto, algumas ações provenientes das
imagens, como caminhar em circulo, a mulher que segura um guarda chuva, dentre outras, se
repetem funcionando como pontos de apoio do improviso.
Algum elemento delimitador deveria ser definido para que Kênia não divagasse por
caminhos tão diferentes nos improvisos realizados, e também para que pudesse reter com
mais facilidade as cenas que fossem mais significativas para ela. Pensei que a retenção das
cenas que apareciam pudesse estar ligada a familiaridade de Kênia com seu próprio corpo. Era
preciso lembrar do corpo e entender seus processos mentais, psicológicos e físicos, para então
194
Idem.
185
compreender o caminho que se levou para a construção do corpo cênico. Talvez assim, na
repetição do improviso, Kênia pudesse se aproximar mais das cenas perdidas até então.
Repetimos esse exercício por mais duas vezes, ampliando seu tempo de execução para
que Kênia tivesse a oportunidade de ir refinando sua percepção, na forma de construir e
executar o movimento. Sugeri que ela buscasse a imagem mental do movimento em seu
percurso e não em sua forma final. Depois de certo tempo realizando o exercício, a percepção
em relação aos detalhes de um movimento foi se apurando. Também algumas características
da personalidade de Kênia foram sendo reconhecidas por ela, como possíveis causadoras de
determinadas tendências de execução do movimento, e da forma de pensar o movimento.
acontecesse, ela deveria parar e voltar mentalmente à cena executada logo em seguida a sua
realização, numa tentativa de fazer uma observação mais aguçada desse impulso.
A partir desse processo, Kênia foi concebendo sua criação, que mais do que
denominarmos de um espetáculo de dança, seria coerente defini-lo também como um
espetáculo de dança-performance, onde se via idéias de movimentos executadas sobre uma
base dramatúrgica bem precisa, calcada no universo dos moradores de rua. Neste novo
contexto de minha pesquisa foi importante perceber que, definitivamente, não estava
propondo um método, ou uma técnica de atuação para o intérprete, senão um sistema aberto,
um pensamento de corpo para interpretação cênica, onde os exercícios propostos se
transformavam de acordo com a necessidade do intérprete, embora buscássemos sempre
seguir os princípios apontados na minha pesquisa. Certamente que os exercícios iniciais do
MA, MVA e IA serviram como propulsores para os variados exercícios que se seguiram, e
que eram delineados em função da necessidade de algum aspecto a ser trabalhado no
intérprete.